Reflexões Sobre Ética em Ailton Krenak

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REFLEXÕES SOBRE ÉTICA EM AILTON KRENAK

Por Rafael P. Mury

Não há uma só definição para ética. Por vezes a confundimos com a moral. Contudo,
independente de quem a enuncia, o termo parece tomar vida própria e autodefinir-se diante de
seus ouvintes. É muito comum ouvir nos diversos círculos sociais algo como “sejamos éticos”
ou “isso não foi nada ético” ou mais ainda “faltou ética” e, no entanto, se alguém nos pergunta
o que é essa tal de ética, certamente diríamos algo do tipo “é fazer o bem” ou “fazer o certo”.
Se esse alguém estivesse impelido pelo apetite intelectual de Sócrates, logo nos faria
questionar sobre o que seria esse “bem” ou “o certo”. E, por consequência, seríamos jogados
em um paradoxo que nos fará questionar os nossos próprios valores e modo de ver o mundo.

Do ponto de vista filosófico tendemos a pensar a ética como princípios universais


enquanto que do ponto de vista sociológico e antropológico essa universalidade passa a ser
questionada. Nesse sentido, longe de ela ser vista como atemporal e universal, a sua
historicidade demonstra que ela não só se transforma como também se trata de um discurso
que parte de um lugar. Caso contrário, não faria o menor sentido conceber a “ética
protestante” tal como Weber (2005) o fez em seu estudo sobre as origens do capitalismo ou
falar de uma “ética pós-moderna” tal como Bauman (1997), demonstrável empiricamente.
Uma das objeções que bem poderia surgir a partir dos casos mencionados acima seriam a de
que se tratariam de “éticas” diferentes. Contudo, ambas as éticas, mesmo que em última
instância, orientam as ações de determinados grupos, seja os protestantes da época estudada
por Weber ou as pessoas da chamada “era pós-moderna”. No fim, a ética ou as “éticas”
orientam os comportamentos concretos e fundam práticas sociais.

Há um certo entendimento de que a ética e a moral são coisas parecidas, mas não a
mesma coisa e a falta de clareza sobre essa distinção confundem até o mais bem intencionado
estudioso das questões humanas. De forma bastante simplista, sem a profundidade que o
assunto merece, utilizamos aqui uma definição para evidenciar uma característica que
hierarquiza essas duas categorias. A definição mais corrente é a de que Ética é um campo de
estudo da Filosofia que reflete sobre a moral, ao passo que a moral é entendida como o
conjunto de regras que orientam o comportamento dos indivíduos de uma determinada
sociedade, de um lugar e tempo específicos. O que pretendemos dizer é que “comportamento
ético” e “comportamento moral” não são sinônimos, mesmo que, a depender do discurso, elas
sejam utilizadas como tal.
Para ilustrar a distinção entre ética e moral, sem pretender fixar elas nos conceitos
acima apresentados, reproduziremos uma situação da vida cotidiana que bem poderá ser vista
como um caso extremo e radical. Dentre as várias denominações religiosas presentes no
Brasil temos as chamadas Testemunhas de Jeová. Uma de suas crenças é a de que o sangue é
divino e por isso não pode ser compartilhado. Por consequência, eles não aceitam transfusão
de sangue, o que se configura como uma regra moral para o grupo. Como proceder, se um
paciente participante desse grupo religioso estiver em estado grave e sua vida depender da
transfusão de sangue? Do ponto de vista do grupo, só resta esperar a “providência divina”
para que a saúde se restabeleça. Do ponto de vista do médico que fez um juramento de salvar
vidas, ele se depara com um dilema ético-moral se lhe foi concedido o poder para decidir
salvar ou não seu paciente. A questão que emerge é: assumir o risco da morte por obediência
à uma regra moral de um grupo religioso ou salvar a vida por julgar que esta seria a coisa
“certa” a se fazer? Do ponto de vista de uma ética que pretende ser universal, preservar a vida
parece um axioma fundante, um princípio magno que deveria dirigir toda e qualquer ação
humana. Assim, o “comportamento ético” desejado é a de efetuar a transfusão de sangue
mesmo que isso seja concebido como um comportamento contra a moral vigente do grupo.

Poderíamos ser mais simplistas e reduzir a distinção entre ética e moral sob a seguinte
analogia matemática (esperamos que as noções básicas de conjunto não lhes sejam estranhas):
a ética seria um conjunto e a moral um elemento do conjunto. Nesse sentido, regras morais
que se contradizem podem estar dentro do mesmo conjunto da Ética. Contudo, a Ética seria
uma espécie de ponto em comum entre os diversos indivíduos morais. Ao voltarmos a
situação da transfusão de sangue do paciente de um grupo religioso que proíbe esse
procedimento, a pergunta que fazemos é uma espécie de personificação da “humanidade” em
um só indivíduo. Pois na ânsia de salvar a vida às custas de qualquer regra moral, o médico se
perguntaria: qual seria a escolha “certa” que qualquer indivíduo, independente do tempo ou
espaço faria se estivesse no meu lugar? A resolução na qual ele chegaria seria no sentido de
qual ação seria a menos desaprovada por essa humanidade, mesmo que concebida em
abstração.

Acreditamos que através da exposição acima é possível evidenciar uma hierarquia em


que a ética se sobrepõe à moral. Em suma, posso ter um comportamento ético e ao mesmo
tempo ser considerado imoral da perspectiva das regras de um grupo do qual eu posso ou não
ser participante. Não estamos defendendo uma hierarquia da ética sobre a moral, mas
demonstrando que sob determinadas condições a primeira adquire um status de
predominância sobre a segunda.

O termo “ética”, “democracia”, “direito” e “igualdade” têm algo em comum na nossa


atualidade: tornaram-se ornamentos nos diversos discursos proferidos em diversos contextos.
São muitas vezes utilizados para romper fronteiras (ganhar a confiança de indivíduos ou
grupos), como se pronunciando-as se denunciam um estado de opressão, ou acolhem um
estado de coisas aparentemente desejáveis a todos, ou se promove um sentimento de
solidariedade. Assim, a ética se setoriza e podemos falar de várias “éticas”. O principal
responsável por essa setorização da ética provavelmente é o próprio sistema capitalista que
aprendeu a mobilizar o capital simbólico ao seu favor, conforme o conceito de Bourdieu.
Porém, temos éticas que emergem como alternativas de se pensar o próprio modus operandi
do capitalismo. Nesse sentido, emerge a ética que nos interessa discutir aqui e que diz
respeito a alternativas de pensar uma convivência no planeta que minimize os efeitos nocivos
do capitalismo sobre os diversos modos de vida a partir do pensamento de Ailton Krenak
(2022) presentes em sua obra Futuro Ancestral.

Nos limites que esse ensaio nos impõe, tomamos como certo que há uma ética na obra
supracitada, assim como também ela mesma não é estranha ao “homem da cidade”. Há
quanto tempo a comunidade científica nos alerta sobre o aquecimento global, o buraco na
camada de ozônio, o perigo da extinção de espécies animais e da necessidade de cuidar do
planeta? Se um dia, a “raça humana” vier a desaparecer da face da Terra, não será por falta de
avisos. Ailton Krenak aparece como um desses pensadores que falam a partir da experiência
de ver o seu mundo ser totalmente transformado pelo avanço de um sistema econômico-
político-administrativo que não respeita as fronteiras. A história da colonização, por exemplo,
traz em si evidências da destruição de vários modos de vida, pensamentos e culturas a partir
do contato do europeu com os povos nativos em várias partes do globo. Mas nem precisamos
ir tão longe se voltarmos o nosso olhar para o caos vivido pelos povos Yanomami no Brasil.
Estes sofrem o avanço do capitalismo sobre suas florestas através da extração mineral e o
desmatamento, causando fome, doenças e morte física.

Contudo, temos que reconhecer que somos (os autores) o tal “homem da cidade”. E
que na nossa vida cotidiana estamos mais preocupados em não chegar atrasados em nossos
trabalhos do que pensar que a fumaça que sai do escapamento de nossos carros é o
responsável pelo alagamento de alguma região costeira da Ásia depois de contribuir com o
derretimento de geleiras. Não hesitamos em ceder ao consumismo desenfreado às custas da
quantidade de resíduos que isso possa produzir. Na perspectiva do autor, de um lado temos
vários mundos, e do outro lado, nos deparamos com um sistema econômico-político-
administrativo que parece não respeitar as fronteiras, chamado capitalismo. Ailton Krenak não
mede esforços para se colocar como um pensador crítico do que ele chamou de Capitaloceno
ou a Era do Capitalismo. Isto é, trata-se da atual condição de imposição da lógica capitalista
sobre o Homem e a Natureza, eficiente na formatação não só dos mundos, mas também das
pessoas que neles habitam. Assim, a cidade e o “homem da cidade” são tanto reprodutores
desse sistema como também o seu produto. Embora o autor reconheça a existência de vários
mundos, observamos que há uma dicotomia que orienta as críticas do pensador e suas
variantes como florestania/cidadania ou povo da floresta/ homem da cidade.

Ao concluir a leitura de Futuro Ancestral, o leitor provavelmente sente que lhe foi
feito um convite: o de se elevar a um estado de consciência que não é novo e nem original.
Trata-se da urgência de se ter uma nova postura diante do mundo ou mundos que nos rodeiam
via acesso a uma conscientização de que nossas ações afetam uns aos outros mesmo que
distantes. Para os indivíduos formatados para a cidade, o “chamado” feito por Krenak vai em
direção àquilo que costumeiramente chamamos de consciência ambiental ou ecológica. Como
vimos, os ditos “homens da ciência” já nos alertavam sobre os impactos da intervenção
humana sobre a Natureza. Contudo, essas consequências parecem não sensibilizar uma grande
parcela da população mundial que vivem como fora da zona de perigo. Nesse sentido, visões
críticas como a de Krenak são essenciais, pois se trata da fala de quem viveu um mundo
afetado pelo capitalismo.

Embora não haja uma proposta definitiva para o problema que é o capitalismo, o autor
acima se esforça ao apontar direções para uma “confluência” dos mundos. O conceito de
“confluência” que o próprio Ailton Krenak admite que o toma emprestado do pensador Nego
Bispo, se refere à possibilidade de diferentes mundos conviverem uns com os outros, cientes
de que suas ações afetam o modo de vida dos outros. Portanto, o autor parece acreditar que se
nossas ações forem dirigidas por esse estado de consciência (ambiental ou ecológica)
causaríamos menos danos à Terra e aos seus habitantes. A ética que apreendemos do autor
está nessas proposições que defende o respeito a todos os sujeitos e seus modos de vida.

Porém, nossa postura (de autores) é de certo ceticismo quanto a efetividade de uma
ética ambiental e da “confluência” desses mundos. Krenak parece acreditar que seria possível,
pois dentro de sua cosmovisão bastaria o restabelecimento da ligação entre Homem e a
Natureza. Ao mesmo tempo, ele mesmo compreende que a tarefa não será fácil devido ao
“homem da cidade” ser formatado pelo próprio capitalismo e, portanto, o modo de vida
urbano é um modo de vida capitalista. De modo prático, ele até propõe pequenas ações em
que se permita a troca de experiências desses mundos. Por fim, sua resolução recai sobre a
educação das crianças como uma tentativa de saída para os impactos destrutivos do
capitalismo. No entanto, acreditamos que toda tentativa de solucionar os problemas
complexos da sociedade via educação é perder de vista que a própria educação pode ser a
reprodutora das condições que retroalimenta esses problemas.

REFERÊNCIA

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. Tradução de João Rezende Costa. São Paulo:
Paulus, 1997.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2005.

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