História Cultura Material e Museus

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Odair da Cruz Paiva


(Organizador)

História, Cultura
Material e Museus
Grupo de Pesquisa História, Memória,
Educação e Patrimônio Cultural – CNPq

São Paulo, 2023


Copyright© Dos autores, 2023

Direção editorial Leoberto Balbino


Organização Odair da Cruz Paiva
Revisão Ondina Antonio Rodrigues
Design de capa, projeto gráfico e editoração eletrônica Schaffer Editorial
Imagens de miolo Acervos pessoais dos autores ou conforme créditos dados em cada foto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

H673
História, cultura material e museus / organizado por Odair da Cruz Paiva. - São
Paulo : D’Livros Editora, 2023.
165 p.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-89053-09-5 (E-book)

1. Museus. 2. Cultura material. 3. História. I. Paiva, Odair da Cruz. II. Título.

 CDD 708
2022-3702 CDU 69

Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior – CRB-8/9949

Índices para catálogo sistemático:


1. Museus 708
2. Museus 69

O conteúdo deste livro é de inteira responsabilidade do(s) autor(es) e/ou do(s) deten-
tor(es) do copyright; nem sempre manifesta a opinião da Editora.

2023
Direitos exclusivos de edição à

Tel.: (11) 3641-3225


e-mail: [email protected]
dlivros.com.br
Sobre as(os) autoras(es)

Ana Helena Gomes Souza. ; Pós-Graduação Lato Sensu em Educação e Patri-


mônio Cultural e Artístico ; pela Universidade de Brasília (UNB); B acharel e
licenciada em História pela Universidade Federal de São Paulo ; (UNIFESP);
Graduanda em Pedagogia pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo
(UNIVESP) ; Técnico em Museologia pelo Centro Paula Souza de São Paulo; ;
Professora de História ; do ensino médio e fundamental da rede privada do Esta-
do de São Paulo. ( Colégio PM Cruz Azul São Paulo). E-mail:; anahelenasouza@
[email protected] ; CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1779177629583907

Ana Carla Hansen da Fonseca ; possui graduação (bacharelado e licenciatura)


em História pela Universidade Federal de São Paulo. Possui habilitação em Patri-
mônio Histórico e Mestrado em História Social, na área de Museologia e Diás-
pora Africana pela mesma universidade, possuindo publicações de artigos sobre o
tema em revistas científicas. Detém o grau de especialista em Jornalismo, na área
de Gestão de Conteúdo, pela Universidade Metodista. É estudante do último
ano do curso de Pedagogia das Faculdades Metropolitanas Unidas. Atuou como
professora universitária na FMU. Atualmente, é professora de história do Mid-
dle e High School no colégio bilíngue Santa Amália Maple Bear. No Santanna
International School, é professora de Social Studies do programa internacional
americano. Contribui como colunista para a mídia independente NewsD e blog
do jornal Estadão do Colégio Santa Amália. E-mail: [email protected];–
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/8380768402290168

Guilherme Lopes Vieira , Técnico em Museologia pelo Centro Paula Souza de


São Paulo, Bacharel e Mestre em História pela Universidade Federal de São Pau-
lo. Possui experiência na área de Museologia, com ênfase na organização e catalo-
gação de acervos e exposições, em equipamentos culturais, tais como: Museu de
Arte Sacra de São Paulo, Museu do Futebol, Casa Guilherme de Almeida, Museu

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da Língua Portuguesa e Museu Afro Brasil. Desde 2021, atua como documen-
talista das coleções do Theatro Municipal de São Paulo. Publicou os artigos; “O
Eco ao Longo dos Meus Passos: Guilherme de Almeida e suas Cores `Políticas”,
na Revista; Hydra (UNIFESP), “O Museu como Lugar de Memória: o Conceito
em uma Perspectiva Histórica”, na Revista Mosaico (CPDOC-FGV) , “Casa
Guilherme de Almeida: a Musealização de uma Biografia”, na; Revista Museolo-
gia & Interdisciplinaridade (UnB) e “Epílogo – Complexo Modernismo: a His-
tória da Semana de Arte Moderna pelo acervo do Complexo Theatro Municipal
de São Paulo, no Índice de Fontes Vestígios da Semana de 22 no Acervo do Thea-
tro Municipal . E-mail: [email protected] . Currículo:; http://lattes.cnpq.
br/4783857020821757

Jonathan de Souza Leite . Graduado em Ciências Sociais pela Universidade


Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP; graduado em Teologia pelo
Centro Universitário Edmundo Ulson – UNAR; possui especialização em Histó-
ria e Ensino de História pela Universidade Santa Cecília – UNISANTA. Profes-
sor de História, Filosofia e Sociologia para ensino médio e Curso Pré-Vestibular.
Atuou como Coordenador de Ensino Técnico e Curso Pré-Vestibular. Foi editor
da Linha de História na Editora Setembro. Publicações: Holambra e o “Holam-
brês”. Revista Sinpro Cultura. Ano XIII – n. 69. jul. 2008; Cultura além das
Fronteiras. Revista 60 Anos de Imigração Holandesa. Holambra: Editora Setem-
bro, 2008 e Holambrês: a Cultura Miscigenada da Cidade das Flores do Brasil.
Revista Holambra. Holambra: Editora Setembro, 2018. E-mail: jow.davinci@
gmail.com . CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/5433385853982857

Odair da Cruz Paiva. Bacharel em História pela PUC-SP em 1988, Mestre


em Sociologia pela UNICAMP (1993) e Doutor em História Social pela USP
(2000). Possui Pós-Doutorado em Demografia pelo Núcleo de Estudos de Popu-
lação-NEPO/UNICAMP (2010). Atualmente é Professor do Departamento de
História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP). É pesquisador do Centro de Investigação Transdis-
ciplinar Cultura Espaço e Memória (CITCEM) das Universidades do Porto e

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da Universidade do Minho (Portugal). É líder do Grupo de Pesquisa História,
Memória, Educação e Patrimônio Cultural. Desde 2007, é membro do Conse-
lho Editorial da “Travessia, Revista do Migrante”. Atualmente é Conselheiro do
CONDEPHAAT; atuou como Conselheiro no mesmo órgão entre os anos 2008
e 2010. Entre 2014 e 2018, foi Conselheiro do Conselho do Patrimônio His-
tórico de Guarulhos. Fez parte do Conselho de Administração do Memorial do
Imigrante entre 2006 e 2009. Foi pesquisador do Laboratório de Estudos Sobre
a Intolerância (LEI) da Universidade de São Paulo no mesmo período. Atuou
como pesquisador junto ao Núcleo de Estudos de População (NEPO/UNI-
CAMP) entre 2004 e 2010. Entre 2011 e 2013, foi membro do Grupo de Tra-
balho Interinstitucional sobre o Patrimônio Cultural do Café–IPHAN. Atua na
área de Migrações, Patrimônio Cultural e Museus. E-mail: [email protected]
; [email protected]. CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/0579359295517355;

Rosávio de Lima Silva . Bacharel e Licenciado em História pela Universidade


Federal de São Paulo/EFLCH; Licenciado em Letras (Inglês - Português) pelo
Centro Universitário de Jales-UNIJALES e Licenciatura Plena em Pedagogia
pela mesma instituição; Pós-Graduação Latu Sensu – Especialização em Educa-
ção / Área da Saúde – Universidade Federal de São Paulo / Universidade Aber-
ta do Brasil-UAB. Professor do ensino médio e fundamental da rede pública e
privada do Estado de São Paulo. Publicação: A Expressão Cultural Cantoria no
Jardim da Conquista. In: Jardim da Conquista: o Canto Poético. São Paulo: Sa-
rau Conquista, 2014. E-mail: [email protected] . ; CV Lattes: http://lattes.
cnpq.br/7953362950384480

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Apresentação

História, Cultura Material e Museus nomina a unidade curricular que minis-


tro no curso de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Tra-
ta-se de uma disciplina da área de patrimônio cultural cujo objetivo é apresentar
aos discentes reflexões que estão no entorno da tríade que dá o nome a ela. Como
suas congêneres da área (História e Arquivos, História, Memória e Patrimônio,
Arqueologia Histórica, História e Patrimônio Edificado, História e Patrimônio
Imaterial e Educação Patrimonial), História, Cultura Material e Museus tem seu
lugar de partida a História, entendida como área do conhecimento e território
do historiador. As reflexões sobre a cultura material e museus são trabalhadas
tendo em conta as necessidades da formação dos historiadores e consideram as
interfaces com outras áreas do conhecimento como a antropologia e museologia.
Durante mais de uma década como docente responsável por essa disciplina na
graduação houve um crescente interesse na produção de estudos sobre processos
de musealização ocorridos em diferentes espaços; o mesmo ocorreu no Programa
de Pós-graduação em História da UNIFESP. Este livro apresenta uma coletânea de
parte desses estudos que tive oportunidade de orientar, tanto na graduação quanto
no mestrado. Para reuni-los nesta coletânea foram necessários vários esforços (inte-
lectuais e pessoais) por parte das(os) autoras(es). A proposta deste livro surgiu du-
rante a pandemia do COVID-19, e aceitá-la foi um ato de coragem e de aposta na
superação daqueles tempos nebulosos. Como era previsível, houve intercorrências
de várias ordens que, felizmente, foram superadas por todos.
Sobre os trabalhos aqui publicados, alguns apontamentos preliminares. Casa
Guilherme de Almeida: a Musealização de uma Biografia , de Guilherme Lopes
Vieira, e Onde Está o Patrimônio Negro em São Paulo?, de Ana Carla Hansen da
Fonseca, são oriundos de pesquisas de mestrado e contaram com larga expe-
riência dos autores nos espaços que foram objeto de análise. Centro de Tradições
Nordestinas: a Construção da Memória Pessoal num Território Nordestino em São
Paulo (1990-2000), de Rosávio de Lima e Silva, foi resultado de uma pesquisa de

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iniciação científica realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP). Museu de Holambra e as Representações da Coloni-
zação Holandesa , de Jonathan de Souza Leite, partiu de uma pesquisa monográ-
fica desenvolvida no curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Representações
da História Nacional em Itu nas Páginas do Guia do Museu Republicano Convenção
de Itu, ; de Ana Helena Gomes Souza, também foi resultado de uma pesquisa
monográfica desenvolvida no curso de História da UNIFESP.
Como o leitor poderá observar, os textos aqui reunidos guardam uma unida-
de temática que está no entorno das práticas de musealização e da construção de
memórias pessoais, coletivas ou institucionais. Os trabalhos analisam diferentes
aspectos dos discursos expositivos produzidos na Casa Guilherme de Almeida,
no Museu Afro Brasil, no Museu Holambra, no Museu Republicano Convenção
de Itu, no Museu da Imigração e no Centro de Tradições Nordestinas. Em cada
um desses espaços a cultura material constitui um substrato fundamental de nar-
rativas e suas intencionalidades. Do conjunto de trabalhos aqui apresentados, o
estudo de Rosávio Lima sobre o Centro de Tradições Nordestinas se desloca um
pouco do núcleo museal, a partir do qual gravitam os outros textos, mas apro-
xima-se desses ao tratar o arranjo da documentação naquela instituição como
fundamento de um discurso sobre o fundador do espaço.
Este livro está dividido em três seções. Na primeira delas, intitulada Disser-
tações , estão inscritos dois trabalhos. O estudo de Guilherme Lopes Vieira apre-
senta o processo de patrimonialização da antiga residência do escritor paulista
Guilherme de Almeida e sua constituição como um museu-casa. O autor discute
a articulação de vários agentes para a construção de um ambiente de valoração,
tanto da trajetória do escritor quanto de sua residência. Para além desse aspecto
por si de extrema relevância para a compreensão da elevação de Guilherme de
Almeida ao seleto rol de personalidades representantes da paulistanidade, o autor
analisa a narrativa inscrita no museu-casa e a construção da memória do escritor
a partir do espaço doméstico.
Ainda nesta seção, temos o trabalho de Ana Carla Hansen da Fonseca. Tra-
ta-se de um excerto de sua dissertação de mestrado que foi orientada pela Profa.

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Dra. Patrícia Santos Teixeira e que tive o prazer de ser o coorientador. A autora
analisa a constituição do Museu Afro Brasil de maneira a inseri-lo numa trajetó-
ria plural que congrega aos estudos sobre questões ligadas à cultura e à diáspora
africana elementos da trajetória intelectual do curador Emanoel Araújo e a forma
como o museu apresenta seu acervo ao público. O trabalho traz questões impor-
tantes sobre a valorização do negro na sociedade brasileira e enfrenta questões
sensíveis da condição desses sujeitos numa sociedade eivada por contradições
sociais e preconceitos.
Na segunda seção, intitulada Primeiras Aproximações, ; reuni três trabalhos
que, como apontado anteriormente, são resultado de pesquisas de iniciação cien-
tífica. O estudo de Rosávio de Lima Silva apresenta uma imersão sobre o arquivo
documental e iconográfico do Centro de Tradições Nordestinas, revelando os
meandros da construção da imagem de seu fundador José de Abreu. O autor
apresenta as articulações deste com líderes políticos e suas ações na comunidade
nordestina paulistana. Essas ações foram fartamente documentadas e compõem
parte importante do acervo da instituição.
No segundo trabalho desta seção, temos a reflexão de Jonathan de Souza so-
bre o Museu Holambra enquanto um espaço de patrimonialização da história da
colonização holandesa. O autor centra sua análise na apresentação dos sentidos
atribuídos à exposição da cultura material exposta no Museu e suas conexões com
a construção de uma história de sucesso do empreendimento colonizador. Para
o autor, a história (musealizada) da colonização colocou num plano subalterno a
presença dos brasileiros que possuíam ancestralidade na região.
O terceiro trabalho desta seção foi produzido por Ana Helena Gomes Souza
e discute o registro feito por Afonso d’Escragnolle Taunay da primeira exposição
realizada naquele espaço. A autora, ciente da importância de Taunay para a cons-
trução de discursos expositivos sobre a história paulista, analisa o Guia Museu
Republicano Convenção de Itu, publicado em 1946. Essa publicação pouco co-
nhecida pelo público traz um registro precioso de como Taunay concebeu aquele
espaço num período em que acumulava o cargo de diretor do Museu Paulista. A
análise de uma exposição, atualmente inexistente por meio de sua representação
(o Guia) revela um esforço considerável e importante para publicizar não apenas

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a primeira exposição inscrita no Museu, mas também a presença de Taunay na
sua construção.
Por fim, inscrevo nesta coletânea uma terceira seção intitulada Ensaio. Apre-
sento um breve ensaio de minha autoria intitulado Usos e Ressignificações de Ob-
jetos em Exposições: o Caso do Museu da Imigração do Estado de São Paulo. Esse
texto foi originalmente apresentado em 2019, no 30º Simpósio Nacional da
Associação Nacional de História (ANPUH), e discute um tema que considero
necessário no âmbito dos processos de musealização, qual seja: a trajetória dos
artefatos nos museus a partir dos seus usos em diferentes exposições. Refaço a
trajetória de três artefatos do acervo do atual Museu da Imigração, expostos em
três momentos distintos, e suas apropriações nos discursos expositivos em cada
um desses momentos.

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Sumário

Dissertações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12
Casa Guilherme de Almeida: A musealização de uma biografia . . . . . . . . 13
Guilherme Lopes Vieira

Onde Está o Patrimônio Negro em São Paulo? Memória,


Patrimônio e Identidade Negra Dentro e Fora do Museu Afro Brasil . . . . . 45
Ana Carla Hansen da Fonseca

Primeiras Aproximações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84
Centro de Tradições Nordestinas: a construção da memória
pessoal num território nordestino em São Paulo (1990-2000) . . . . . . . . 85
Rosávio de Lima Silva

Museu de Holambra e as Representações da Colonização Holandesa . . . . 105


Jonathan de Souza Leite

Representações da História Nacional em Itu nas Páginas do


Guia do Museu Republicano Convenção de Itu . . . . . . . . . . . . . . 124
Ana Helena Gomes Souza

Ensaio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148
Usos e Ressignificações de Objetos em Exposições: o Caso do
Museu da Imigração do Estado de São Paulo . . . . . . . . . . . . . . . . 149
Odair da Cruz Paiva

11
Dissertações

12
Casa Guilherme de Almeida:
A musealização de
uma biografia1

Guilherme Lopes Vieira

Apresentação – considerações sobre a musealização

A Casa Guilherme de Almeida, São Paulo, SP, em 2017. Imagem produzida pelo autor.
Acervo pessoal

Este capítulo resulta de pesquisa de mestrado que analisa a trajetória para fa-
bricação do museu-casa, que homenageia o escritor paulista Guilherme de Almei-
da (1890-1969), com o processo de musealização imposto ao imóvel que serviu
de residência para sua família, por volta de 23 anos. Almeida foi um importante

1 Este texto, que faz parte da pesquisa Casa Guilherme de Almeida: a Fabricação de um Museu-Casa
(1968-1979), apresenta uma versão ampliada e atualizada do artigo Casa Guilherme de Almeida: a
Musealização de uma Biografia, publicado na Revista Museologia & Interdisciplinaridade, em 2021.

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escritor brasileiro do século XX, membro das mais seletas associações eruditas
de sua época, como a Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo; destaca-se também sua participação na organização da
Semana de Arte Moderna de 1922 e na Revolução Constitucionalista de 1932.
Durante a década de 1970, no regime civil militar brasileiro, após o seu fale-
cimento, que ocorreu em sua residência, agentes políticos, tais como os governa-
dores arenistas Roberto de Abreu Sodré (1917-1999), Laudo Natel (1920-2020)
e Paulo Egydio Martins (1928-2021) deram prosseguimento ao processo que
musealizou o imóvel e que culminou na fundação da Casa Guilherme de Almei-
da, em 1979. Dessa forma, este capítulo objetiva identificar como os arranjos ex-
pográficos foram organizados para valorizar o personagem histórico Guilherme
de Almeida para essa homenagem pública.
Conforme pôde ser visto no processo SEC 42.678/742, que agrega a do-
cumentação de compra do conjunto que compôs a domesticidade da família
Almeida, houve um intenso movimento de articulação política para a efetivação
da montagem desse museu. Entre os nomes, sublinham-se os familiares de Al-
meida como Antônio Joaquim de Almeida, irmão do escritor e diretor regional
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-MG); Flávio
Pinho de Almeida, sobrinho, diretor do Museu de Arte Moderna de São Paulo e
empresário, e Roberto Abreu Sodré, governador do Estado de São Paulo e casa-
do com a sobrinha de Tácito de Almeida, que era irmão de Guilherme e pai de
Flávio de Almeida. Um complexo emaranhado de relações que propiciaram um
ambiente político favorável a essa homenagem pública.
É importante ter em vista que, em última instância, a montagem desse lugar
de memória foi fabricada por agentes políticos interessados na constituição de
um museu público que valorizasse a história cívica de São Paulo, refletida por
artifícios expográficos na própria domesticidade musealizada.
Para tanto, a materialidade doméstica por meio da musealização alcançou
novos atributos, tanto como elemento narrativo e item dotado de historicidade
como exemplar autêntico de uma específica realidade. Elementos que ao se agre-

2 Processo SEC 42.678/74, salvaguardado na Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, na Unidade
de Preservação do Patrimônio Museológico (UPPM).

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garem criam argumentos que, mesmo que tensionados, passam a justificar sua
conservação pelos órgãos oficiais.

A fabricação da narrativa curatorial:


Guilherme de Almeida modernista
A construção discursiva nos museus se pela exposição de suas coleções articu-
ladas a uma proposta curatorial. A análise dos espaços expositivos, que será rea-
lizada a seguir, considera o tempo presente como um dos fatores de construção
do passado. Assim, os sujeitos resgatam os eventos que ocorreram através de suas
expectativas atuais, fabricando uma narrativa histórica.
Dessa forma, será explicitado como os arranjos expográficos na Casa Gui-
lherme de Almeida são construídos com o objetivo de reforçar os argumentos do
programa museográfico, que visa à valorização dos feitos do escritor homenagea-
do pela musealização.
Os ambientes marcadamente públicos dessa casa, como as salas de estar, jan-
tar e leitura, assim como o jardim de inverno, outrora destinados à socialização
dos antigos frequentadores da residência, atualmente inauguram a visitação do
museu-casa, explicitando, enquanto argumento discursivo, as relações estabeleci-
das pelo casal Guilherme e Baby de Almeida no decorrer do tempo. À primeira
vista, encontram-se distribuídos pelos cômodos do primeiro pavimento os itens
originais escolhidos pelo casal para compor a domesticidade do local.
A mobília é composta basicamente por itens do século XIX e XX, confec-
cionados, em sua maioria, de madeira de jacarandá, imbuia e vinhático, que são
madeiras de lei, selecionadas para a confecção de móveis marcados pela qualidade
e durabilidade. A coleção mobiliária do casal expressa a opção por itens decora-
tivos clássicos, que remontam estilos de séculos anteriores, típicos de exemplares
encontrados em antiquários ou adquiridos em leilões, provável proveniência de
tais artefatos, que revelam também a vertente colecionista do casal.
Tendo em vista que esse local, por se tratar de um museu, possui articulações
entre o que se pretende expor e o que se quer comunicar, vale a premissa de que

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as arrumações e os arranjos organizados nas salas expositivas devem ser investi-
gados, a fim de que se possa inferir quais relações foram estabelecidas entre os
artefatos exibidos e a biografia do personagem que compõe o museu.
Nesse sentido, percebe-se um discurso expositivo que ao se inter-relacionar
com aspectos da biografia do escritor Almeida, por meio da retórica, fabrica a his-
tória oficial do museu que se vale de certos artefatos como vetores de legitimação.
O primeiro argumento curatorial pretende apresentar os moradores principais
da residência, por meio da composição de um cenário que privilegia, através de
produções artísticas modernas, a ligação dos Almeida com o movimento moder-
nista de 1922.
O item mais marcante desse argumento expositivo é a posição escolhida para
o expositor que abriga a obra Soror Dolorosa, produzida em 1920, em bronze,
pelo artista Victor Brecheret. A escultura permanece abaixo da parede com retra-
tos de Baby de Almeida, em uma mesa circular na sala principal da residência,
sendo uma das primeiras referências que o visitante do museu encontra exposta
ao iniciar a visita. A obra ganha destaque diante da composição repleta de móveis
e abundante presença de pinturas. Expô-la sem interferências imediatas, privile-
gia sua potencialidade discursiva.

Na sala de estar, há uma parede com retratos de Baby de Almeida e a


escultura Soror Dolorosa, posicionada à direita, sobre uma mesa de canto (2010).
Foto: Cida Souza. Acervo Abril – VejaSP

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Escultura Sóror Dolorosa, de Victor Brecheret. 1920

Essa escultura, totenizada pela curadoria, foi concebida como uma síntese
da obra Livro de Horas de Soror Dolorosa: a que Morreu de Amor, escrita por Gui-
lherme de Almeida. O livro, contemporâneo à escultura, retrata através de um
monólogo a relação de uma monja com os mistérios fundamentais da religião
católica. Assim como o enredo da obra sugere
Brecheret esculpiu uma figura feminina representando a religiosa que ao en-
carar outra figura, neste caso, masculina, provavelmente a divindade cristã se
coloca à frente de debates íntimos que percorreram os versos de Almeida.
No que diz respeito ao argumento expositivo, Soror é destacada por ser um
dos exemplares diretamente associados à Semana de Arte Moderna. Em meio às
esculturas escolhidas para compor a exposição modernista no Theatro Munici-
pal, em 1922, estava o simulacro da obra de Almeida, Soror, juntamente com a
célebre escultura Cabeça de Cristo, com suas trancinhas, que pertencia a Mário de
Andrade. (AMARAL, 2010, p. 164-171)
Portanto, diversas ligações são despertadas com esse artefato. Como argu-
mento curatorial, pode-se recorrer, por exemplo, à figura de Victor Brecheret,
um artista ligado ao modernismo de forma inquestionável que, ao homenagear
uma obra de Almeida sugeriria a proximidade do escritor com o Movimento e
seus protagonistas. Além, é claro, da homenagem em si como consagração de

17
uma obra inspiradora que esteve no rol da Semana. Mas o que se deve ter em vis-
ta é que esse arranjo expográfico foi construído a fim de explicitar os argumentos
curatoriais que, nesse caso, dizem respeito ao pretenso “Guilherme de Almeida
modernista”.
Levando em consideração características extrínsecas à sua materialidade e
composição formal, como são os contextos históricos de sua criação e circulação,
o artefato torna-se documento de pesquisa. Meneses (1998. p. 91) sintetiza essa
ideia com a sentença “[...] Por isso, seria vão buscar nos objetos o sentido dos
objetos”. O raciocínio se baseia na passagem:

[...] Os atributos intrínsecos dos artefatos, é bom que se lembre, incluem apenas pro-
priedades de natureza físico-química: forma geométrica, peso, cor, textura, dureza etc.
etc. Nenhum atributo de sentido é imanente. O fetichismo consiste, precisamente, no
deslocamento de sentidos das relações sociais – onde eles são efetivamente gerados –
para os artefatos, criando-se a ilusão de sua autonomia e naturalidade. Por certo, tais
atributos são historicamente selecionados e mobilizados pelas sociedades e grupos nas
operações de produção, circulação e consumo de sentido. (MENESES, 1998, p. 91)

Seguindo essa lógica, se a curadoria evoca o artefato para contar uma his-
tória, o historiador deve impor perguntas que visem desnaturalizar a aparente
conformidade de fatos criados pela expografia. Se o museu consagra o axioma, o
historiador deve dessacralizar o museu. Essa ideia se baseia na reflexão de D’Ales-
sio (2013), acerca da relação tensionada entre história e teoria. Ao problematizar
os lugares de memória, de Pierre Nora (1993), a professora pontua:

[...] A sensação de referenciais sempre perdidos leva à busca de estabilidades; as con-


tínuas rupturas levam à busca de continuidade. Estabilidade e continuidade levam a
construção dos ‘lugares de memória’ [...]. Há lugares de memória porque, na socieda-
de, tudo muda, não há continuidade, portanto, não há como os grupos se reconhece-
rem neles mesmos. [...] Evidencia-se, assim, que a história (historiografia) tem história
e a história da história põe em questão o discurso historiográfico, dessacralizando-o. A
memória celebra, a história questiona! (D’ALESSIO, p. 37)

Com a escolha dessa tipologia documental, pretende-se demonstrar que


elementos iconográficos presentes em produções artísticas de expressão estética

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e informativa são documentos históricos singulares quando analisados em suas
particularidades intrínsecas (propriedades físicas, tais como: composição mate-
rial, forma espacial e dimensões, elementos decorativos e iconográficos, padrões
de cores, textualidade etc.) e extrínsecos (contexto de produção, demanda de
confecção, perfil do elaborar, potencial simbólico etc.). Portanto, com o apoio de
produções historiográficas pertinentes, qualquer produção artística, devidamente
analisada, pode auxiliar nos processos de elaboração da História que se quer re-
visitar. Nesse aspecto, o arranjo expográfico deixa de ser mero fator ilustrativo e
passa a ser elemento interpretável.
Pelos registros fotográficos, pode-se afirmar que a localização original da es-
cultura era o estúdio particular do escritor, no terceiro pavimento da residência,
conhecido como Mansarda. Espaço privado da casa e que apresenta o maior nível
de intimidade do escritor em relação aos temas que lhe cercam. Lá permaneciam a
sua biblioteca particular e diversos outros objetos que refletiam seus posicionamen-
tos em vida, como é o caso da Revolução de 1932, que será explorada mais adiante.
A Semana de Arte Moderna é frequentemente difundida de forma pouco crí-
tica pela tradição acadêmica. É apontada como o principal epicentro que trouxe
à tona as transformações provenientes da modernidade na sociedade paulistana
do início do século XX3. O evento de 22 e as condições específicas da “provin-
cianidade” da São Paulo cafeeira, nessa lógica, são posicionados como facilita-
dores de uma revolução artística sem precedentes. Tal revolução encabeçada por
intelectuais aristocráticos, que discutiam os rumos da brasilidade em círculos
exclusivos, sediados ora em cafeterias ao estilo da Belle Époque, ora nos salões
dos mecenas de estirpe tradicional. Segundo essa tradição, a famosa Semana seria
uma manifestação genuinamente paulista4. ímpar na história cultural brasilei-

3 Para Daniel Faria, o ano de 1922 foi estabelecido como o marco de entrada do Brasil na modernidade.
Há uma tradição acadêmica que ao mitificar o evento do Teatro Municipal elegeu os heróis e os vilões
do movimento. Segundo o autor, essa perspectiva “[...] têm seus heróis (sobretudo Mário e Oswald de
Andrade) e seus anti-heróis, ou suas paródias demoníacas (o grupo verde-amarelo de Menotti, ou Graça
Aranha, ou o parnasianismo). Traça-se dessa forma um verdadeiro sentido para a literatura brasileira
[...]”. (FARIA, 2004, p. 237)
4 Mônica Velloso (2006) expande a ideia de Modernismo, indo além da Semana de 1922, em São Paulo.
Apresenta a ideia de um modernismo brasileiro, manifestado, tanto em Recife, na década de 1870,
como no Rio de Janeiro, com os intelectuais boêmios e satíricos. Segundo Ana Paula Simioni (2013, p.
37) diversos trabalhos acadêmicos têm analisado e ampliado o termo “moderno” nas manifestações ar-

19
ra, reflexo de poucos iluminados vanguardistas, que passam a ser denominados
como “modernistas”5.
Nesta análise, não se trata de discutir a modernidade de Guilherme de Al-
meida ou a sua inexistência, até mesmo porque o próprio evento em si merece
maiores reflexões. Trata-se, na verdade, de uma investigação histórica cujo inte-
resse consiste em indicar como um artifício expográfico, aparentemente naturali-
zado, parte de uma pretensa paisagem original, mantido “na ordem que o poeta
lhe deu”6, pode se apresentar como um sofisma.7
O que se deve ter em vista é que os museus constroem argumentos curato-
riais inerentes à fabricação de discursos expositivos que normalmente não são
questionados e, sim, assimilados, Meneses (1993).

[...] No museu, o risco é que uma exposição, por exemplo, se transforme em apresen-
tação de coisas, das quais se podem inferir paradigmas de valores para os comporta-
mentos humanos e não na discussão de como os comportamentos humanos produzem
e utilizam coisas com as quais eles próprios se explicam. (MENESES, 1993, p. 212)

Em geral, acredita-se que os museus se baseiam em verdades consolidadas e


se excluiu o movimento de construção curatorial que é articulado no tempo pre-
sente. São os sujeitos do presente contando o passado através de seus interesses8.

tísticas e formais no Brasil. Para a autora essa iniciativa pretende debater “[...] o monopólio reivindicado
pelos estudos canônicos sobre modernismo realizado nas décadas de 1970 e 1980”.
5 O título “modernista” teria sido instituído por Mário de Andrade, como ferramenta de legitimação polí-
tica no campo literário, passando a ser associado a manifestações de vanguarda já na década de 1930. A
posteriori, na década de 1950, passou a ter “estatuto acadêmico”, principalmente pelas obras de Antônio
Cândido, e passando a ter adesão editorial na década de 1970, a partir da promoção do Estado. (FARIA,
2004, p. 13)
6 Em 1981, na reportagem O Acervo de Guilherme de Almeida, a sensação simulada do passado, aparece
no seguinte trecho “[...] O público que chega à Casa de Guilherme de Almeida encontra tudo disposto
na mesma ordem que o poeta lhe deu” (O Estado S. Paulo, 27 mar. 1981. Turismo, p. 46).
7 Esse posicionamento parte de uma expectativa de como se lidar com o fenômeno museu: “[...] a pro-
posta utópica de transformar o museu antes num espaço de questionamento e de indagações do que de
respostas”. (MENESES, 2002, p. 19)
8 Meneses caracteriza esse movimento nas noções de relíquia, semióforo ou objeto histórico. Segundo o
autor, para esses itens “[...] seus compromissos são essencialmente com o presente, pois é no presente
que eles são produzidos ou reproduzidos como categoria de objeto e é às necessidades do presente que
eles respondem”. (MENESES, 1998, p. 94; MENESES, 2007, p. 13-33)

20
E como se sabe, a construção discursiva nos museus e a sua necessidade didática
tensionam fatos e personagens em busca de uma coerência que a legitime.
Para além da relativização acerca do que significou a Semana e qual foi o real
nível de modernidade do escritor, em diálogo com sua biografia, o ano de 1922
ficou, de fato, marcado pelo seu engajamento nos preparativos para a realização
da Semana de Arte Moderna, realizada no Theatro Municipal. Para explicitar sua
participação, pode ser citado que, em fevereiro daquele ano no primeiro dia do
evento, durante a conferência inaugural de Graça Aranha, o escritor declamou
duas poesias de sua autoria. Trata-se das composições: Os Discóbolos e As Galeras.
(RIBEIRO, 1983, p. 13)
Durante a fala de Aranha, ao comentar sobre a poesia moderna, o conferen-
cista apoiou parte de sua argumentação no lirismo romântico de Guilherme de
Almeida:

[...] Destes [poetas] libertados da tristeza, do lirismo e do formalismo temos aqui uma
plêiade. Basta que um deles cante, será uma poesia estranha, nova, alada e que só faz
música para ser mais poesia. De dois deles, nesta promissora noite, ouvires as derradei-
ras ‘imaginações’. Um é Guilherme de Almeida, o poeta de ‘Messidor’, cujo lirismo se
destila [...] e fresco de uma longínqua e vaga nostalgia de amor, de sonho e de esperan-
ça, e que, sorrindo, se eleva da longa e doce tristeza para nos dar nas ‘Canções Gregas’
a magia de uma poesia mais livre do que a Arte. (O ESTADO DE S. PAULO, 14 fev.
1992. Geral, p. 2)

Em consonância com o discurso hegemônico acerca do evento, Cândido


(1999), descreve:

[...] Em São Paulo teve lugar a histórica Semana de Arte Moderna (1922), (precedida
por artigos de Menotti del Picchia e Oswald de Andrade desde 1920), que lançou pu-
blicamente a renovação, encarnada por jovens escritores como, além dos dois citados,
Mário de Andrade e Guilherme de Almeida, de São Paulo, Manuel Bandeira e Ronald de
Carvalho, do Rio de Janeiro, aos quais é preciso juntar os nomes dos pintores Emiliano
Di Cavalcanti e Anita Malfatti, do escultor Victor Brecheret, do compositor Villa-Lobos.
[...] O Modernismo Brasileiro foi complexo e contraditório, com linhas centrais e linhas
secundárias, mas iniciou uma era de transformações essenciais. Depois de ter sido consi-
derado excentricidade e afronta ao bom gosto, acabou tornando-se um grande fator de

21
renovação e o ponto de referência da atividade artística e literária. De certo modo, abriu
a fase mais fecunda da literatura brasileira, porque já então havia adquirido maturidade
suficiente para assimilar com originalidade as sugestões das matrizes culturais, produzin-
do em larga escala uma literatura própria. (CÂNDIDO, 1999, p. 74)

A modernidade de Almeida é questionada pela tradição acadêmica, como


pode ser visto em nomes como Antônio Cândido (1999), Alfredo Bosi (2013) e
Massaud Moisés (2012). Cândido (1999, p. 74), por exemplo, define Guilherme
de Almeida como “[...] grande malabarista do verso, que veio do intimismo sen-
timental, passou pelos aspectos exteriores do Modernismo e terminou na poesia
mundana e arcaizante”. O mesmo autor aduz que ele teria sido um dos autores
de “compromisso” do Movimento, em oposição à “ala inovadora e combativa”
reservada, em sua opinião, apenas a Mário e Oswald de Andrade.
Na mesma lógica, Bosi (2013, p. 398) afirma que Almeida “[...] pertenceu
só episodicamente ao movimento de 22. Não havendo partido do espírito que o
animava”. Enquanto Moisés (2012, p. 436) sintetiza que os versos do escritor pos-
suíam “[...] feição romântica, sentimental, vinculado à tradição lírica portuguesa
que recua até a Idade Média trovadoresca”, ou seja, sem a inspiração moderna.
Em oposição a essa tradição, o museu, por meio de seu discurso expositi-
vo, reivindica a modernidade que o próprio homenageado acreditava possuir. O
museu, na posição de divulgador da obra de seu patrono, também se torna seu
defensor. Na tese de concurso, publicada em 1926, intitulada Do Sentimento Na-
cionalista na Poesia Brasileira, Guilherme de Almeida comenta acerca dos regio-
nalistas predecessores do Modernismo, como Monteiro Lobato e o seu caipiris-
mo. Marcadamente influenciado pelo Manifesto Pau-Brasil, Guilherme encerra
a análise se colocando no grupo dos modernos.
Naquela oportunidade, o escritor sugere que o poeta brasileiro olhe o país
em suas particularidades internas, “[...] Brasil de dentro do Brasil [...] Brasileiro
não quer dizer regionalista; e regionalista quer dizer caipira, tabaréo, sertanejo,
roceiro, matuto, mambira... O movimento brasileiro é lógico [...] parte do par-
ticular para o geral. O contrário é absurdo”. Essas premissas mantêm diálogo es-
treito com o Manifesto Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, publicado em 1924,

22
ao sugerirem o fim da aproximação das tendências europeias às artes nacionais.
Almeida completa, “[...] A nossa poesia deve ser uma riqueza nossa: deve ser de
exportação e não de importação”. Para Guilherme de Almeida:

[...] Esses últimos conceitos são o pensamento de um grupo de poetas modernos – mal
compreendidos ainda – que ora se esforçam por fazer uma poesia legitimamente bra-
sileira. Desse grupo, nada se dirá aqui – não só por ser cedo ainda para julgar dos seus
esforços, como também e principalmente porque a ele pertence e por ele tem comba-
tido, com o duplo sacrifício do seu nome e dos seus interesses, o autor deste estudo.
(ALMEIDA, 1926, p. 104-106)

Como pôde ser visto, o museu cria arranjos expográficos para defender seu
posicionamento acerca do envolvimento de Guilherme com o Modernismo pau-
lista. O que deve ser percebido é a tensão que se estabelece, na medida em que o
museu-casa pretende naturalizar os ambientes da residência, criando a impressão
de que tudo está “na mesma ordem que o poeta lhe deu” e que, por conta disso,
sua legitimidade se dá na presença dos objetos.
Deve-se reconhecer o potencial simbólico dos itens expostos, na medida em
que são artefatos originais e diretamente relacionados à vivência dos Almeida, o
que de fato os reveste de significados para além do utilitário e funcional, mas deve
ser reconhecido também que enquanto itens do museu estão sujeitos às mano-
bras e manipulações de uma curadoria.

A fabricação da narrativa curatorial:


as armas para a musealização do poeta paulista
Durante os efervescentes anos políticos da década de 1930, entre disputas,
arranjos e conchavos, o orgulho paulista da oligarquia cafeeira sentiu-se ferido;
acusado de fraudulento, perdeu o posto presidencial e, com isso, findou-se a po-
lítica café com leite. Enquanto Getúlio Vargas se estabelecia provisoriamente em
um governo longevo, São Paulo e seus partidários indignados conspiravam pela
retomada do poder. Tais articulações deflagraram uma rebelião que se arrastou

23
por pouco mais de três meses e acabou sendo denominada pela tradição memo-
rialística como Revolução Constitucionalista de 1932.
A guerra paulista foi uma revolta armada travada, principalmente, pelo interior
do Estado de São Paulo e nas regiões fronteiriças da capital federal, na oportunida-
de, fixada no Rio de Janeiro. Mesmo que do ponto de vista prático seu resultado
tenha fracassado e seus principais líderes exilados do país, esse confronto, pouco co-
nhecido pela memória nacional, alcançou patamares relevantes na constituição da
identidade paulista. Entre os privados do Brasil, destacavam-se políticos, militares,
jornalistas e, no caso específico desta reflexão, o escritor Guilherme de Almeida.
Apesar de sua extensa carreira literária e intensa participação nos principais
eventos culturais do século XX, assim como a guerra civil de 1932, ainda hoje
o escritor é um ilustre desconhecido para o público em geral. Com o deslocar
do tempo, sua relevância no cenário artístico foi sendo ocultada, principalmente
pela crítica acadêmica, e seus feitos marcantes pouco a pouco foram sendo esque-
cidos. Seu total apagamento não se deu, graças à fabricação de um museu público
que o homenageia.
Considerando sua trajetória pública, nota-se que as cores da revolução cons-
titucionalista tingiram sensivelmente a trajetória do escritor. Certa vez, Guilher-
me chegou a escrever que aquela guerra era “a razão de ser da sua vida”9. Cons-
pirador de primeira ordem, com 42 anos de idade, partiu para o Interior, junto
com um grupamento repleto de voluntários civis – para Pindamonhangaba – até
se estabelecer na cidade interiorana de Cunha, divisa com o Estado do Rio de
Janeiro. Durante os conflitos, o escritor que já gozava de prestígio nas rodas lite-
rárias, utilizou de sua influência para se retirar do campo de batalha e ocupar um
novo posto entre os revolucionários10.

9 Para conferir um de seus relatos sobre seu envolvimento afetivo naquele evento, consulte as crônicas
publicadas em sua coluna Eco ao Longo dos Meus Passos, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 08
jul. 1960. Geral, p. 5.
10 Durante os conflitos de 32, o escritor Guilherme de Almeida se correspondia regularmente com sua
esposa Belkiss de Almeida. Em uma das oportunidades, o escritor solicitou que a esposa entrasse em
contato com Vivaldo Coaracy, articulista do jornal O Estado de S. Paulo e membro da Liga de Defesa
Paulista, órgão que organizava na capital do Estado o Jornal das Trincheiras, para que fosse solicitada sua
volta à capital para auxiliar no periódico, longe dos principais fronts de batalha. Para conferir as missivas,
conferir o Fundo Guilherme de Almeida, caixa 42, maço 1, salvaguardado no Centro de Documentação
Cultural “Alexandre Eulalio”, no IEL/UNICAMP.

24
Guilherme de Almeida (2) com os irmãos Estevão (1) e Tácito de Almeida (4),
com trajes militares, durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Acervo:
Casa Guilherme de Almeida (Sem Patr. 00000-00059).
Consultado no acervo CGA, em 2017

Graças a sua ocupação jornalística, passou a editar o informativo de guerra


Jornal das Trincheiras, chegando a assinar artigos editoriais, até então anônimos,
que atacavam o governo central11. Com o fim dos conflitos, passou a ser associa-
do aos líderes do movimento, o que resultou no seu exílio para Portugal, logo
em 1932.

11 Para comemorar a data referência à Independência da República, Almeida assinou um editorial no


Jornal das Trincheiras, que entre outras manifestações, se referia à guerra civil da seguinte maneira: “[...]
Morrerá a liberdade nas terras do Brasil? Não! No chão de S. Paulo [...]. É o milagre assombroso de S. Paulo!”
(Jornal das Trincheiras, 08 set. 1932, p. 1).

25
A intensidade da experiência ressaltou de forma indelével a marca da pau-
listanidade em sua biografia. Baseado nos movimentos da memória e nas ade-
quações que o fenômeno é capaz de proporcionar, o escritor passou a receber
a alcunha de poeta-soldado (ESP, 09 jul. 1969. Geral, p. 22; 26 jan. 1960. p.
12), em referência a sua interação com o conflito. Mesmo que na prática sua
desenvoltura armamentista não tenha sido posta à prova. Em 1990, seu amigo
e médico particular Francisco Moura Coutinho, prestou o seguinte depoimento
sobre os últimos dias que presenciou com o escritor:

Acontecia o seguinte: todo dia 9 de julho ele hasteava a bandeira paulista ali, naquela
janela do quarto dele. E no dia 9 de julho, já muito mal, e num momento em que ele
olhou para a janela, para o lado da sacada, ele viu o reflexo da bandeira tremulando
no vidro da janela. E ele então pediu: ‘Coutinho, me levanta, me levanta ...’. Eu tinha
uma enfermeira, chamada Elvira (não sei se ela ainda vive) que era uma mulher forte,
com ela levantamos o Guilherme porque ele queria ver a bandeira. Ele sentou-se na
cama, ficou sentado e disse: ‘minha bandeira... minha bandeira...’ e depois deitou-se
ajudado por nós. Daí a pouco, talvez uns 10 minutos depois, ele muito aflito pediu:
‘levante-me mais, levante-me muito mais, mais...’ E eu ‘o que mais você quer Guilher-
me?’ e ele ‘levante-me, levante-me...’ e, com a enfermeira procuramos levantá-lo e per-
guntei ‘mas o que você quer ver agora?” ‘Levante, estou pedindo pra me levantar, – eu
quero mais, quero mais’ – eu continuando sem saber e de repente ele falou ‘levante-me,
quero ver a face de Deus’. E foi assim que ele morreu12.

Para efeitos desta reflexão, vale ressaltar alguns pontos do relato pretenso
hagiográfico prestado acima. O evento descrito ocorreu em 1969, em um dos
quartos da casa do escritor, que cerca de dez anos depois se tornaria o museu-
-casa que o homenageia. A narrativa foi elaborada para um projeto de história
oral encabeçado pelos dirigentes do museu, com o intuito de esboçar relatos que
pudessem compor a biografia do escritor, cerca de duas décadas depois de seu
falecimento, haja vista que não havia muitas elaborações biográficas confiáveis
acerca da trajetória do patrono da instituição.

12 Entrevista cedida em 30 de agosto de 1990 no Projeto Memória Guilherme de Almeida, pelo museu-
-casa, em decorrência do centenário de nascimento do poeta. Acervo: Casa Guilherme de Almeida.

26
No que diz respeito ao museu-casa, atualmente, os itens relacionados a esse
evento foram reorganizados e a escolha curatorial de um dos cômodos da resi-
dência destaca a Revolução Constitucionalista de 1932. Por meio do confronto
biográfico, percebe-se que a Revolução de 32 marcou definitivamente a trajetória
do escritor, sendo relembrada, inclusive, com maior destaque que a Semana de
22. No que diz respeito ao evento em si, Almeida atuou nessa guerra civil que
movimentou grande parte do Estado de São Paulo entre os meses de julho e ou-
tubro de 1932.
Na expografia, o tema será explicitado com a exposição dos remanescentes que
despertam as temáticas de 32. O arranjo é composto pelo agrupamento dos arte-
fatos utilizados pelo escritor durante os conflitos. Como o capacete, a carabina, o
pente de balas, cartucho com 15 projéteis e uma granada de mão, com pino.

Estúdio de trabalho do escritor, conhecido como “Mansarda”,


em 2012, com a exposição do Totem de 1932.
Foto: Luiz Setti. Acervo: JCruzeiro

27
Diferentemente do exposto pelo médico, Guilherme de Almeida faleceu dia
11 de julho13, alguns dias depois do feriado estadual do dia 9, que comemora os
feitos da Revolução Constitucionalista de 1932 em São Paulo. Mas, para efeitos
do delineamento mítico do personagem, tal deslocamento favorece o incensa-
mento pertinente para a sua valorização. Afinal, associar o seu falecimento à data
ícone do orgulho paulista, mesmo que simbolicamente, potencializa o mito.

Totem de 1932. Arma e capacete utilizados por Almeida, em Cunha,


em 1932, atualmente expostos no museu-casa.
Imagem produzida pelo autor em 2014. Acervo pessoal

Como poeta, está inserido nas transformações vividas durante o início do


século XX, especialmente na participação dos principais eventos políticos de São

13 O escritor faleceu por conta das complicações na saúde provenientes de uma crise de uremia, que durou
cerca de um mês (Folha de S. Paulo, 12 jul. 1969. Primeiro Caderno, p. 1).

28
Paulo, tanto como editor do periódico Jornal das Trincheiras, que era distribuído
nas áreas de combate durante os conflitos bélicos da guerra civil de 1932, quan-
to na organização das festividades de 1954, na presidência da Comissão do IV
Centenário de São Paulo.
Sua atuação política o colocou em contato com os principais personagens do
período, como é o caso, em 1960, do Presidente da República Juscelino Kubits-
chek que o convidou a compor o discurso oficial de inauguração da nova capital
Brasília (BRASÍLIA-NOVA CAPITAL, 1960, p. 16-19). E por conta de sua
destacada trajetória cultural, na manhã do dia 12 de julho de 1969, poucos dias
após a celebração do orgulho paulista, as principais autoridades de São Paulo se
reuniram para consagrar os feitos de um histórico escritor influente14.
O prestígio entre as lideranças políticas foi experimentado após o seu faleci-
mento, em 1969, com a autorização expedida pelo então Governador do Estado
de São Paulo Abreu Sodré e pelo Prefeito Paulo Maluf para o seu sepultamento
no Mausoléu dos Combatentes de 1932, conhecido como Obelisco do Ibirapue-
ra15. Tratava-se de um fato inédito até então, haja vista que os demais sepulta-
mentos naquele local se restringiram aos soldados que morreram em decorrência
direta dos combates, o que evidentemente não ocorreu com esse poeta soldado.
Outra movimentação que não pode passar despercebida diz respeito ao próprio
engajamento político na montagem do museu que o homenageia.
Após o falecimento do escritor, uma intensa articulação política se fez ne-
cessária para a efetivação da montagem do museu. Durante a década de 1970,
diversos agentes inseridos na administração pública se engajaram nos trâmites
necessários para encaminhar a homenagem museal.
Trata-se de um museu-casa apoiado, tanto no acervo colecionado pelo es-
critor quanto na sua produção intelectual, que em certa medida está vinculada

14 Estiveram presentes na cerimônia o governador do Estado Roberto Abreu Sodré, Dom Agnelo Rossi,
Arcebispo de São Paulo, José Canavarro Pereira, Comandante do II Exército, Raimundo Menezes, Pre-
sidente da União Brasileira de Escritores, substituto de Almeida na Academia Paulista de Letras e um
dos principais incentivadores da musealização do conjunto de Almeida e, por fim, os escritores Menotti
Del Picchia, Maria de Lourdes Teixeira, Ibrahim Nobre e Paulo Bomfim. (Diário de S. Paulo, 13 jul.
1969, p. 1 [recorte] IEB, Fundo Guilherme de Almeida, GA280; O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12
jul. 1969. Geral, p. 11).
15 Cf. Decreto nº 52.162, de 11 de julho de 1969, São Paulo/SP.

29
aos principais episódios históricos sediados em São Paulo. Apesar de ser rico em
indicativos biográficos, deve ser problematizado tendo-se em vista que o conjun-
to é uma composição articulada, fragmentada e, em certa medida, fabricada. Em
última análise, se trata de um museu biográfico que empresta seu patrono para o
delineamento de uma narrativa que explora a história oficial de São Paulo.

O museu que abriga uma casa


Após o falecimento do escritor, no final da década de 1960, uma intensa
movimentação política se fez necessária para a aquisição dos itens da coleção da
família Almeida. No decorrer da década de 1970, agentes políticos partidários do
homenageado, como Raimundo Menezes, na administração municipal, e Paulo
Bomfim, na esfera estadual, se engajaram no intuito de efetivar a homenagem
museológica delineada16.

Guilherme sentado na mureta côncava, em 1961.


Foto: George Torok. Extraída de: A Cigarra, Rio de Janeiro, n. 11, nov. 1961

16 Para compreender as tratativas burocráticas e políticas que envolveram a fabricação do museu-casa


consulte o processo SEC 42.678/74, salvaguardado na Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, na
Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico (UPPM).

30
Baby, pequinês e Guilherme sentado na mureta côncava
Foto: George Torok. Extraída de: A Cigarra, Rio de Janeiro, n. 11, nov. 1961

Em 1971, o escritor Raimundo de Menezes, em uma entrevista para o jornal


O Estado de São Paulo, sugeriu que o imóvel fosse adquirido pela prefeitura da
capital paulista. Segundo a reportagem veiculada naquele ano, “[...] Tudo, até a
‘presença’ do poeta, que um funcionário municipal sentiu ao entrar recentemente
na casa, será vendido à Prefeitura por 1 milhão de cruzeiros, para que nada ali
seja alterado e continue, para sempre, a ser a Casa de Guilherme de Almeida.”
O valor havia sido fixado pela própria viúva do poeta, que via a musealização,
intermediada pelo poder público, como “[...] a melhor forma de homenagear a
memória do marido”. (ESP, 18 mar. 1971. Geral, p. 14)
Apesar do interesse apresentado, apenas em janeiro de 1974, o processo foi
desarquivado. Segundo uma reportagem daquele ano, após consultar a viúva do
poeta a respeito do interesse em prosseguir com a venda da coleção da família,
“[...] não se sabe por que o negócio não foi feito e o expediente foi mais uma vez
engavetado. Agora [julho de 1974], mais uma vez o processo está sendo exami-
nado, mas não se sabe se terá alguma solução”. (ESP, 20 jul. 1974. Geral, p. 7)
No grupamento estadual, destacava-se o poeta Paulo Bomfim, discípulo e
amigo de Guilherme de Almeida que, na década de 1970, presidiu o Conselho

31
Estadual de Cultura, órgão responsável pelos trâmites que efetivaram a compra
do imóvel de Almeida em 197917.
Após três anos das tentativas municipais, o processo de musealização da resi-
dência e da coleção de Guilherme de Almeida foi finalmente iniciado em 1974,
com as tratativas preliminares para desapropriação amigável do imóvel, só que
dessa vez realizadas em outra esfera administrativa, o Governo do Estado de São
Paulo. Nessa nova empreitada, o objetivo inicial na aquisição pautava-se na cria-
ção de um centro de pesquisas culturais ligado ao Museu do Modernismo18, que
seria criado na cidade.
Dessa forma, entre idas e vindas, ao sabor da burocracia estatal, a viúva
Belkiss de Almeida, no final de novembro de 1977, com a oficialização da en-
trega das chaves do imóvel, mudou-se para uma nova residência que havia com-
prado alguns anos antes19, permanecendo ali até o seu falecimento, aos oitenta
e sete anos de idade, em 27 de setembro de 1988 (ESP, 28 set. 1988. Geral, p.
16). A nova morada ficava nas proximidades do museu e assim, como ela mesma
relatou na oportunidade, “[...] não quero ficar longe desta casa que foi minha e
de Guilherme. É tão perto que posso vir a pé. E eu virei sempre visitá-la, rever
estas coisas todas”. (FOLHA DE S. PAULO, 30 nov. 1977)
Compreendendo as especificidades dessa tipologia museal, o principal desa-
fio em lidar com a musealização de uma biografia em um museu-casa, cujo mote
principal de sua constituição pauta a valorização dos feitos do patrono homena-
geado, é articular adequadamente sua biografia sem criar falsas narrativas, já que,
como pode ser visto nesse museu, a curadoria retrata a trajetória pessoal do per-
sonagem de forma mitificada, por meio de arranjos expográficos que tensionam
os feitos pertinentes a sua valorização, em detrimento de uma análise crítica que
respeite as incoerências que qualquer trajetória pessoal possui. Em certa medida,

17 Paulo Bomfim, em entrevista cedida ao autor desse texto, em 29 de junho de 2017.


18 Cf. UPPM/SEC Processo 42.678/74, p. 168.
19 Não se tem precisão quanto à data de compra da nova residência, mas desde 1971, esse assunto já estava
em voga. Segundo a reportagem, “[...] D. Baby confessa que está triste em deixar a casa. Com a metade
do dinheiro – a outra metade ficará com seu filho – comprará uma outra, ainda não sabe onde. Ela
gostaria de ficar morando lá, percebe-se na sua maneira de falar. Levará pouca coisa: apenas os objetos
muito pessoais, as pastas de manuscritos, muito inédito, algumas peças que marcam um amor que du-
rou quase 50 anos.” (O Estado de S. Paulo, 18 mar. 1971. Geral, p. 14)

32
os discursos curatoriais em museus tensionam suas narrativas a partir das pers-
pectivas que o presente possui sobre o passado. De acordo com Paiva (2014):

Os Museus emergem como territórios de preservação da memória e sempre em co-


nexão com o seu tempo produtor [...]. Em seu sentido tempo tende, por um lado, a
subsumir da paisagem e do vivido social; por positivo, os Museus são territórios de
preservação da memória, cultura material e formas intangíveis do patrimônio cultu-
ral, cuja dinâmica do outro lado, os Museus também são sujeitos que podem atribuir
valor e importância a esses mesmos elementos, independentemente de sua condição
de fragilidade – ou não – no contexto social. Em seu sentido negativo, os Museus são
territórios que envelhecem. Passadas algumas décadas ou mesmo alguns anos de sua
fundação/formação, podem se tornar objetos de estranhamento por preservarem uma
memória-história não mais reconhecida no presente. Originários de um passado dis-
tante, esses territórios da memória tendem a expressar concepções e perspectivas que,
potencialmente, podem ser desvalorizadas pelas novas gerações implicando numa série
de desafios aos Museus. (PAIVA, 2014, p. 157)

Em narrativas estáticas e mitificadoras, as “margens de liberdades” (LEVI,


206, p. 182) que os sujeitos experimentam durante sua trajetória de vida são
desconsideradas. Trata-se de não problematizar a narrativa e definir o sujeito su-
perficialmente como um herói ou um vilão, e ignorar as naturais contradições
que todos experimentamos (GINZBURG, [1987] apud SCHMIDT, 2012, p.
194). Portanto, seguindo o entendimento de Bourdieu (1998), seria o mesmo
que considerar

[...] que não podemos compreender uma trajetória (isto é, o envelhecimento social
que, embora o acompanhe de forma inevitável, é independente do envelhecimento
biológico) sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo
no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agen-
te considerado – pelo menos em certo número de estados pertinentes – ao conjunto
dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço
dos possíveis. (BOURDIEU, 1998, p. 190)

Para escapar de generalizações tacanhas acerca das trajetórias dos sujeitos,


os museus tendem a apoiar sua narrativa, legitimando seus argumentos, nos re-
miniscentes materiais de seus acervos. Quando se trata de um museu-casa, essa

33
engenhosa articulação se vale dos itens preservados no imóvel. Como se a exposi-
ção dos itens salvaguardados fosse capaz de reconstituir a domesticidade do local.
Dessa forma, a constituição de um museu desta natureza possui duas pers-
pectivas que devem ser consideradas. A primeira está relacionada à domesticida-
de e aos usos práticos que os sujeitos exploram em seus imóveis. Ou seja, como
Guilherme e sua família, enquanto moradores desta casa ao longo dos processos
de vivência familiar, acumularam e organizaram diversos itens para a composição
de sua vida privada.
Evidentemente, que por mais que se esforcem para a reconstituição de um
local, sua naturalidade, típica da vivência humana, não será reproduzida em um
museu, considerando que para que a dinâmica museal ocorra, adaptações básicas
são pertinentes.

Guilherme de Almeida e seu pequinês de estimação,


no cômodo “Jardim de Inverno”, em 1961.
Foto: George Torok. Extraída de: A Cigarra, Rio de Janeiro, n. 1, nov. 1961

34
O sofá da família Almeida, no museu, por exemplo, nunca mais servirá para
acomodar os ocupantes do imóvel, no caso, seu público visitante. Na nova con-
figuração será explorado como um exemplar capaz de dar indícios do modo de
viver dos Almeida. Seu valor não será mais prático, será simbólico e informativo.
De acordo com Bachelard (1993, p. 202), “[...] é graças à casa que um gran-
de número de nossas lembranças estão guardadas [...] nossas lembranças têm
refúgios cada vez mais bem caracterizados. Voltamos a eles durante toda a vida
em nossos devaneios”. Ou seja, os elementos materiais que compõem a domesti-
cidade de uma casa são vetores de rememorações e, em certa medida, compõem
sua “história de vida”, como elemento que compõe a identidade dos sujeitos,
perante si e para os outros. (BOURDIEU, 1998, p. 189-190)
Portanto, as configurações do imóvel musealizado são ambiências simuladas
do passado, em sua maioria com certo grau de agência, considerando as ressalvas
indicadas. Além disso, as arrumações expográficas ainda podem revelar impor-
tantes indícios biográficos dos ocupantes do imóvel, na medida em que expres-
sam fragmentos selecionados de seu modo de viver, preservados em um contexto
de investigação e pesquisa que, no caso, são os museus, instituições voltadas para
as práticas da reflexão.
A segunda perspectiva associa a fabricação do museu à atuação dos agentes
musealizantes. A transposição do imóvel residencial para um espaço museológico
é realizada através da agência de sujeitos interessados na preservação da memória
do escritor. Nesse caso, são autores presentes no processo de musealização, tanto
como proponentes iniciais do museu como curadores e gestores do imóvel-mu-
seal em exposições temáticas.
Nesse sentido, é importante considerar a expectativa do público visitante e
traçar estratégias pertinentes para o estabelecimento de um ambiente crítico, que
descortine equívocos biográficos. Para Butcher-Younghans (1993, p. 196), “[...]
Many visitors go to historic houses to savor the feeling of historical surroundings and
to admire the furnishings of the interiors. They enjoy the sense of being cast back in
time-of strolling through rooms essentially frozen in the past”20.

20 Tradução livre: “Muitos visitantes vão às casas históricas para saborear o sentimento de um ambiente
histórico e para admirar o mobiliário dos interiores. Eles gostam da sensação de voltar no tempo - de
passear por salas essencialmente congeladas no passado.”

35
Guilherme na sala de jantar, próximo da coleção de prataria do casal,
em 1961. Foto: George Torok. Extraída de: A Cigarra,
Rio de Janeiro, n. 11, nov. 1961

O público é um agente ativo nos museus, na medida em que as exposições


são disponibilizadas para que sujeitos as consumam. Em um museu-casa, essa
experiência é propiciada pela reconstrução artificial da domesticidade a partir de
artefatos autênticos do passado, reorganizados por uma curadoria em uma expo-
grafia. Em certa medida, esse artifício curatorial se assemelha à montagem dos
Period rooms21, cujo intuito é propiciar um cenário teatralizado das ambiências.
Nesse sentido, Butcher-Younghans (1993) apresentou alguns preceitos emprega-
dos recorrentemente pelos curadores na montagem de um museu-casa:

[...] The house should be viewed as its occupants would have used it. If there were chil-
dren, it is important to show their toys strewn about as if they had been playing. If the
children slept with their parents which they often did in the eighteenth and nineteenth
century, show this by placing the children’s belongings in the bedchamber and explain to

21 Acerca do Period rooms, Rosana Pavoni (2011, p. 162) o caracteriza como “[...] aqueles locais nos quais
cada ambiente da residência é dedicado a representar, junto com os móveis e as decorações fixas, um
estilo ou um período diferente da história. Essa estratégia é empregada como simplificação museográfica
a fim de tornar mais fácil e compreensível o percurso do visitante através do suceder das épocas”.

36
visitors why this was the custom then and why it is different today. [...] Be truthful about
the arrangements of objects in a room. Let dust pile up in corners if it is deemed appro-
priate for the time period and cultural views of the family. Today’s sterilized interiors are
a fairly modern phenomenon. Stack pots, pans, and utensils on the stove or tabletops if
they were kept in this way. Hang coats and hats on chair backs, or place them on tables.
Burn candles down, toss a newspaper in a favorite chair, or leave boots lying about on the
floor for authenticity22. (BUTCHER-YOUNGHANS, 1993, p. 205-207)

Nessa tipologia de museus, a proposta discursiva da exposição está diretamente


relacionada ao artefato reposicionado num cenário construído, alusivo ao tempo
vivido pelo patrono do museu, onde será criada uma expografia estática, que reme-
terá a uma espécie de cápsula do tempo. Os artefatos colecionados são realocados
nos locais aparentemente originais, pois há um interesse discursivo na legitimação
da proposta curatorial que se apropria do artefato posicionado em arranjos expo-
gráficos. A seguir, alguns desses artifícios expográficos serão apresentados:

Detalhe dos óculos de leitura do escritor (2010).


Foto: Alessandro Ahinoda. Acervo: Folhapress

22 Tradução livre: “A casa deve ser vista como seus ocupantes a teriam usado. Se houvesse crianças, é
importante mostrar seus brinquedos espalhados como se elas estivessem brincando. Se as crianças dor-
miam com seus pais, o que muitas vezes acontecia nos séculos XVIII e XIX, mostre esse fato colocando
os pertences das crianças no quarto de dormir e explicando aos visitantes por que isso era costume então
e por que é diferente hoje. [...] Seja verdadeiro quanto à disposição de objetos em uma sala. Deixe a
poeira se acumular nos cantos se isso for considerado apropriado para o período e as visões culturais da
família. Os interiores esterilizados de hoje são um fenômeno bastante moderno. Empilhe potes, panelas
e utensílios no fogão ou na mesa se esses itens fossem mantidos dessa forma. Pendure casacos e chapéus
nas costas das cadeiras, ou os coloque nas mesas. Queime velas, jogue um jornal sobre uma cadeira
favorita ou deixe botas jogadas no chão para autenticidade.”

37
Detalhe do arranjo expográfico, em 2017, que apresenta itens da
indumentária do escritor. Acomodado sobre a cadeira,
o casaco permanece próximo do chapéu e do par de luvas brancas

Quarto do casal, década de 2010. Ao lado, sobre o móvel de cabeceira estão


posicionados os óculos de leitura do escritor, assim como ao fundo, é possível ver um
artifício expográfico apresentando um dos trajes de Almeida.
Foto: Hélvio Romero. Acervo Estadão

38
Atualmente, parte da indumentária do escritor encontra-se em exposição.
Em uma de suas salas, há um casaco sobre a cadeira, assim como um par de
luvas e um chapéu sobre o sofá. Tais objetos foram distribuídos pela sala exposi-
tiva para criar a ideia de uma ambiência simulada do passado. O presente quer
acessar o passado através dos objetos conservados em posições articuladamente
estabelecidas. O museu-casa, por meio da invocação do patrono, almeja ratificar
a legitimidade de sua exposição. Nessa lógica, esse artifício certificaria o museu,
já que expor artefatos autênticos do escritor seria como apresentar uma prova de
que aqueles temas atrelados ao artefato são tão reais quanto à matéria.

[...] A viúva, Dona Baby de Almeida, mudou-se ontem para uma outra casa que adqui-
riu, deixando todos os móveis, quadros, pratarias, objetos pessoais, manuscritos, placas
e medalhas nos exatos lugares onde o casal costumava guardá-los. Ela está pesarosa
de deixar a casa, mas contente porque, finalmente, depois de oito anos, conseguiu o
tombamento: para ela, esta é a melhor maneira de conservar viva, para o público, a
memória de Guilherme de Almeida. (FSP, 30 nov. 1977. Ilustrada. p. 42).

Está-se diante do efeito dialético dos museus. Na mesma medida que a ins-
tituição pretende legitimar seu discurso através de artefatos autênticos, ela se
vale do seu prestígio, emprestado da pretensa condição de instituição que sal-
vaguarda a história/verdade, ou melhor, a realidade. Quem canoniza o artefato
como autêntico é o museu. E, como está sendo visto, a realidade museal pode
ser fabricada.
Esse aspecto evidencia a agência sobre o artefato que, através da musealiza-
ção, adquire o estatuto de exemplaridade da musealia23. Por isso se faz necessária
a problematização histórica, haja vista que a musealização não é meramente o
processo de transferência de um artefato anteriormente inserido em um contexto
cotidiano, a uma vitrine de museu. A musealização infere valor ao artefato e atua
na construção discursiva de uma exposição.

23 Objeto de museu ou musealia refere-se ao produto da musealização imposto a um artefato. Segundo


Desvallés e Mairesse o objeto de museu é um testemunho material, simbólico e funcional de um exem-
plar do cotidiano que está temporariamente impedido de exercer sua utilidade (ou funcionalidade) para
se tornar portador de sentido, um semióforo. (DESVALLÉES, A.; MAIRESSE, F., 2013. p. 34-68).

39
Nesse tratamento proposto ao objeto de museu evidencia-se que o proces-
so de musealização para um museu-casa possui particularidades que devem ser
consideradas. O que se pretende destacar é que em um museu-casa o artefato é
um mediador capaz de acessar memórias de sujeitos específicos e identificáveis.
Em uma perspectiva historiográfica, Meneses (1992, p. 4) indica, através de uma
noção aproximada do conceito, que museus são locais em que a sociedade através
da institucionalização transforma objetos materiais em documentos.
Dessa forma, trata-se de investigar os arranjos expográficos, considerando as
agências aplicadas, e identificar esse espaço de memória, sem abdicar da possibi-
lidade de discutir o sujeito histórico diante de suas ambiguidades e contradições
apenas mitificando-o e imortalizando-o. O que se pretende explicitar é que a
presença de um item legítimo relacionado ao patrono do museu-casa, além de
preencher uma ausência, não é o suficiente para legitimar uma narrativa, na me-
dida em que é possível identificar as potencialidades da cultura material em es-
culpir, delinear e musealizar representações, identidades, e nesse caso específico,
biografias.

Considerações Finais
Neste capítulo, o museu é analisado como um espaço de representação sobre
o escritor paulista, que desde o momento em que foi fabricado apresenta-se como
uma cápsula do tempo, um local que pretende passar a impressão de atempora-
lidade. Certa imunidade à ação do tempo se dá graças às escolhas expográficas
que apontam para características de um museu templo, ritualizado, destinado à
contemplação e assimilação das temáticas propostas pela curadoria.
Em certa medida, a Casa Guilherme de Almeida exerce um papel relevante
como ponto agregador da memória do poeta, no montante material e simbólico
de um espaço que acabou se tornando depositário da rememoração dos vividos
da produção intelectual do poeta. De acordo com Halbwachs (2006, p. 150), a
memória de um indivíduo é estabelecida através da adequação de vestígios de
lembranças, as quais podem ser tanto datas como indivíduos ou locais, e que a
partir de referências sociais integram-se à memória coletiva.

40
A vontade de memória se dá em um momento de tensão entre o laten-
te esquecimento e o desejo de se lembrar. A restauração desse passado evocado
sempre se dá no tempo presente, sem rupturas e desorganização narrativa, pois é
preenchida por lembranças que buscam nos referenciais concretos a legitimidade
daquela memória.
Apesar da natureza do local estudado, onde se reúnem elementos relativos
à vida particular, doméstica e familiar de Almeida, não se pode esperar que a
memória deste sujeito esteja armazenada no espaço expositivo em sua totalidade.
Com apoio de bibliografia especializada, os artefatos reminiscentes do tempo vi-
vido pelo poeta devem ser revisitados e explorados de forma mais questionadora.
É evidente que os museus, dentro da dinâmica dos processos museológicos,
auxiliam na recuperação e revitalização dos lugares de memória em virtude de
seu aspecto rememorativo, mas para alcançar sua função social junto a sociedade
é papel dos museus propor a reflexão sobre seu próprio objeto, o que em geral,
não se vê.

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44
Onde Está o Patrimônio Negro em
São Paulo? Memória, Patrimônio
e Identidade Negra Dentro e
Fora do Museu Afro Brasil

Ana Carla Hansen da Fonseca

“É que na verdade, quando se trabalha com memória,


museologia, com museu, é um ato político.”
Luís Antonio de Oliveira24

Apresentação
As renovações metodológicas e conceituais historiográficas dos
últimos anos abriram um universo de possibilidades para a com-
preensão da experiência humana. Especialmente com a 3ª geração da
Escola dos Annales, uma infinidade de tipos de fontes pôde ser consi-
derada digna de análise pelos historiadores, levando à democratização
das narrativas, na medida em que novas vozes puderam ser ouvidas.
Nesse sentido, a análise histórica da memória aparece como pos-
sível portal para a construção do conhecimento sobre o passado. Essa
nova tendência, ampliada pelos estudos da História Oral, bem como
o da construção de memórias coletivas, abre novos caminhos em prol

24 Luís Antonio de Oliveira é um dos idealizadores do Museu da Maré, no Rio de Janeiro, criado por
moradores da região com o intuito de refletir sobre a história e memória desta comunidade. EMER-
GÊNCIA POLÍTICA (Brasil). Direito à memória, à educação e à cultura. Disponível em: <https://
emergenciapolitica.org/periferias/direito-a-memorial>. Acesso em: 10 jun. 2021. Site do Museu da
Maré: http://www.museudamare.org.br/.

45
da inclusão de novos atores sociais. Não se quer com isso afirmar que a
memória coletiva esteja livre de relações de poder que buscam a hege-
monia em relação ao que se recordar ou mesmo esquecer do passado.
No entanto, a onipotência de uma não significa a necessária morte de
outras memórias, formalizando o que podemos considerar um campo
de disputa.
Logo, amparados na argumentação de estudiosos do campo, como Meneses
(1993), Nora (1993), Guarinello (1993), entre outros, este capítulo pretende
compreender a memória enquanto objeto da História. Pretende-se aqui, mais
precisamente, compreender a relação entre a memória construída pelo Museu
Afro Brasil (MAB), inaugurado em 2004, e sua capilaridade social, isto é, o
quanto sua proposta mnemônica atinge a sociedade e vice-versa.
Nesse caso, o discurso expositivo da exposição de longa duração do MAB
será analisado enquanto fonte histórica, buscando avaliar suas limitações e avan-
ços enquanto narrativa e construção de um referencial de memória negra no
Brasil, uma vez que, segundo as palavras de Emanoel Araújo, diretor do espaço,
“O Museu Afro Brasil pretende ser um museu contemporâneo, em que o negro de hoje
possa se reconhecer.” (ARAUJO, 2010, p. 10)
Dessa forma, o capítulo que se segue trará, inicialmente, no item “Onde Está
o Patrimônio Negro na Cidade de São Paulo?”, uma importante discussão sobre a
preservação e valorização do patrimônio afro-brasileiro na capital paulista para
daí compreender a importância da MAB enquanto espaço propagador de uma
nova memória e história social que considera e valoriza a atuação de negros e ne-
gras na História do Brasil, ampliando as narrativas disseminadas por consagrados
museus históricos paulistanos, como o Museu da Imigração, o Pateo do Collegio
e o Museu Paulista. Também avaliaremos como o patrimônio cultural africano
vem sendo tratado nos espaços museológicos desde o século XIX.
Posteriormente, adentraremos o discurso expositivo do MAB, nossa princi-
pal fonte de análise, na seção Museu Afro Brasil: Novos Olhares sobre a História e
Memória do Brasil. Para tanto, analisaremos brevemente a trajetória profissional
do diretor e curador do espaço: Emanoel Araújo. A compreensão de sua biografia

46
se torna essencial para que sejam compreendidas as escolhas que formam o acer-
vo e a expografia do museu.
Em seguida, a partir de uma breve descrição de cada setor que compõe o
espaço expositivo de longa duração, compreenderemos os pontos de inflexão do
discurso expositivo em relação à construção da Identidade Negra proposta pela
instituição, no item discurso, na parte denominada Plural-Singular: a Homoge-
neidade em Nome da Luta. Para isso, o material produzido pelo setor educativo,
o roteiro educativo (2006), o livro de apresentação do MAB (2010) e o Plano
Museológico (2011) também servirão de fontes auxiliares à compreensão do dis-
curso expositivo do espaço.
Na sequência, avaliaremos os avanços e limites da identidade e memória
negra proposta pelo MAB, no subitem denominado Plural-Singular-Plural: O
Museu Afro Brasil e o Problema que não se Resolve, em que reflito a respeito das
potencialidades e riscos do Museu em buscar se colocar como referência para o
reconhecimento do negro contemporâneo na sociedade brasileira para, enfim,
chegarmos às Considerações Finais.
As discussões aqui se baseiam na pesquisa de Mestrado realizada por mim
entre os anos de 2014 e 2017. Logo, as reflexões levantadas não se pretendem
absolutas, tampouco definitivas. Apenas pretendem-se um elemento a mais para
ser considerado ao debruçarmos sobre importância da valorização da memória
negra dentro e fora dos espaços oficiais de memória, em especial em uma cidade
e país que tendem a minimizar, senão, escamotear tais perspectivas.

Onde está o patrimônio negro na cidade de São Paulo?


A cidade de São Paulo é conhecida por seu caráter cosmopolita. A existên-
cia de diferentes grupos sociais, das mais variadas origens, culturas e hábitos,
que ocupam suas ruas, trens, favelas, arranha-céus e centro comerciais, contudo,
não significa necessariamente respeito à história, memória e identidade de todos
aqueles que movimentaram e movimentam a capital paulista. Afinal, a preserva-
ção da memória coletiva e o traçado da História envolvem, entre outros fatores,
uma disputa política.

47
A memória coletiva de uma sociedade é moldada pelos referenciais culturais,
históricos, políticos e sociais compartilhados muitas vezes pelos grupos conside-
rados vitoriosos pela História, isto é, os europeus, os grandes políticos, a elite.
A memória paulistana é um reflexo disso. Os mais conhecidos museus, monu-
mentos e patrimônio cultural espalhados pela cidade valorizam, em sua maioria,
a atuação dos jesuítas, bandeirantes e imigrantes, que ainda que tenham tido um
papel relevante (e até controverso) na história nacional, não são os únicos a terem
traçado as linhas da história.
Dessa forma, entende-se a construção e coletivização de uma memória rela-
cionada a um determinado grupo social como um instrumento de poder, confor-
me aponta Guarinello (1993, p. 189):

A memória coletiva é, deste modo, um meio fundamental da vida social, uma das
dimensões da vida coletiva e um veículo de poder. Poder, por exemplo, de transmitir
ou perenizar uma memória de si, ou de propor ou impor uma dada memória à cole-
tividade; poder criar, refazer, ou destruir identidades sociais, de dar sentido, corpo e
eficácia aos atos coletivos.

Diante dessa questão, aqueles que analisam a história à contrapelo se ques-


tionam: onde está o patrimônio negro e indígena da cidade? A resposta para essa
pergunta seria difícil de ser encontrada se não fosse a iniciativa de pretos e pretas,
indígenas e outros estudiosos em revelar as diferentes camadas sociais que muitas
vezes são encobertas não só pelo tempo, mas pela intenção em ocultar a história,
memória e identidade de alguns grupos sociais.
O projeto Passeando pelas Ruas, liderado por estudantes e ex-estudantes da
Universidade Federal de São Paulo, por exemplo, realiza um esforço de grande
valia para identificar e problematizar as diferentes memórias produzidas na cida-
de de São Paulo, para além daquela atrelada aos grupos hegemônicos.
Nesse sentido, Reis (2017, p. 12-13), um dos líderes do grupo, alerta sobre
a existência

de um patrimônio para além da colina histórica, Avenida Paulista e do eixo da Avenida


Faria Lima e, que se analisado conjuntamente aos espaços já conhecidos pelo público

48
em geral pode-nos sugerir novas perspectivas [...] não permanecendo apenas como um
espaço dedicado ao campo da história oficial, [...], abraçando novas vertentes e ques-
tões que estiveram em discussão com o correr do século, como a imigração, a questão
racial, de gênero, da população marginalizada e dos trabalhadores.

O trabalho desenvolvido pelo projeto citado conversa com a proposta do


Instituto Bixiga – Formação e Cultura Popular25. A instituição desenvolve não
somente roteiros históricos com um olhar mais amplo sobre o conceito de bens
culturais e espaços de memória, mas também fornece cursos de formação para
educadores e público em geral.
Nesse mesmo sentido, o coletivo Cartografia Negra busca identificar, valori-
zar e discutir o patrimônio negro oculto nas ruas da cidade. Segundo a apresen-
tação oficial do projeto em seu site:

O coletivo Cartografia Negra surge para pensar, revisitar, conhecer e ressignificar al-
guns territórios negros históricos em São Paulo. Lugares de resistência ou espaços que
foram utilizados para venda, tortura ou execuções de pessoas escravizadas e que hoje
têm nomes e significados que apagam essas histórias – muitas vezes inclusive as contra-
dizem. (CARTOGRAFIA NEGRA, 2021)

O grupo formado por pesquisadores negros compartilha em seu site um


mapa interativo26 com espaços relacionados à cultura negra na cidade, o que
permite aos visitantes elaborarem seus próprios roteiros baseados na sugestão do
coletivo. Em outras palavras, diversos estudiosos, ligados à academia ou não, vêm
lutando para destacarem na paisagem e na memória coletiva uma abordagem
mais diversa do patrimônio cultural paulistano, oficiais e não oficiais, de modo a
democratizar as referências mnêmicas e históricas da cidade e do país.
Ainda que o trabalho brevemente descrito nos parágrafos anteriores seja de
uma riqueza imensurável, não é o objetivo deste capítulo de aprofundar-se sobre
tais questões. No entanto, o debate levantado até aqui nos permite lançar as bases
para compreender a importância do MAB na metrópole.

25 Mais informações podem ser encontradas no site da instituição: https://institutobixiga.com.br/.


26 O mapa pode ser acessado no endereço: https://cartografianegra.com.br/mapa/.

49
Afinal, se entendemos que historicamente o patrimônio negro e de outras
minorias foi renegado, senão suprimido e deliberadamente apagado pelos cha-
mados vencedores, a quem pouco interessava a construção de referências identitá-
rias desses povos, podemos vislumbrar o papel e impacto que o museu, idealizado
e dirigido, por Emanoel Araújo tem sobre a reconstrução e ressignificação da
memória paulistana.

Museu Afro Brasil: novos olhares sobre a história e


memória do Brasil
Iniciamos nossa reflexão acerca do MAB resgatando um dos argumentos
mais impactantes da escritora nigeriana Chimananda Adichie que nos alerta so-
bre o risco da história única. Em sua palestra no TED Talk, que virou livro,
Adichie nos aponta como a construção de uma única perspectiva sobre os fatos
históricos tem como consequência, muitas vezes, a fatal (literal e metaforicamen-
te) destruição de um povo. Segundo ela, “A consequência da história única é esta:
ela rouba a dignidade das pessoas. Torna difícil o reconhecimento da nossa huma-
nidade em comum. Enfatiza como somos diferentes, e não como somos parecidos”.
(ADICHIE, 2019, p. 13)
Isso se torna ainda mais relevante ao compreendermos a especificidade his-
tórica do nosso país marcada pela escravidão. Tal instituição foi tão amplamente
utilizada em terras brasileiras que a memória coletiva nacional se limita a dois
vieses quando refletimos sobre a atuação africana e afrodescendente: hora nos
limitamos ao legado da escravidão e de sua crueldade, hora enfatizamos o mito
da democracia racial, negando o racismo que marginaliza e mata milhares de
crianças, jovens e adultos, negros e negras, na sociedade.
Isto é, em uma sociedade que carece de reflexões mais profundas a respeito
da atuação negra na história do Brasil, a existência do MAB se faz fundamental
para incentivar a construção de novas perspectivas sobre a história e memória
negra no país.

50
Do ponto de vista museológico, o espaço contribui ainda mais. Consideran-
do que museus são um dos espaços de memória mais consagrados na sociedade
contemporânea, eles podem revelar como a sociedade se relaciona com o seu
passado, utilizando da cultura material organizada em exposição, como forma
de produzir uma memória acerca de um determinado grupo. Em um espaço em
que encontramos memória e história, o passado se associa ao presente, em que
se buscam referências históricas para responder a demandas do presente. Nas
palavras de Paiva (2014, p. 8):

Os Museus assumem a responsabilidade em recolher da paisagem elementos materiais


e intangíveis, cuja dinâmica do tempo social relega ao esquecimento, ao ostracismo.
Enquanto territórios da memória, criam discursos sobre tempos passados que são fun-
damentais para a manutenção da memória coletiva. Eles funcionam como elos entre
diferentes grupos sociais, diferentes gerações e mesmo classes sociais. Neles encontra-
mos tanto a cultura material – transformada em Semióforo – quanto perspectivas ou
reconstruções sobre o passado da nação, de um grupo social específico, de um momen-
to econômico etc.

Os museus são, portanto, espaços que podem ao mesmo tempo servir de


instituições reforçadoras da memória coletiva hegemônica ou permitir a constru-
ção de novas memórias e identidades a partir da musealização de bens culturais
tangíveis e intangíveis em seu discurso expográfico e exposição. Vale salientar, no
entanto, que a construção da memória e do conhecimento histórico produzido
no interior desses “templos da identidade”, devem ser eles próprios historicizados,
de maneira que esta não seja tratada como uma entidade a ser resgatada sem con-
siderar qualquer interferência humana. Isso porque, segundo Meneses (1993), a
identidade só existe em situação, isto é, é fruto das relações humanas e sociais e
sempre estará investida de uma hierarquia de poder que não pode ser ignorada
em sua análise e formação. Nessa perspectiva, o MAB pode ser compreendido
com uma proposta de contrapoder, ao considerarmos as demandas sociais atuais
relacionadas à maior diversificação das narrativas históricas e mnêmicas, em res-
posta aos demais espaços de memória da cidade.

51
Se levarmos em conta, por exemplo, o Museu Paulista, localizado na cidade
de São Paulo, e tido como um dos ícones da celebração de “nação brasileira inde-
pendente”, veremos que a memória que se quer preservada por meio do espaço
não se refere de maneira alguma aos trabalhadores, indígenas, escravos, que com
suas mãos contribuíram para a história nacional, mas sim à memória dos paulis-
tas bandeirantes.
O artigo de Brefe (2002-2003), publicado na revista Anais do Museu Pau-
lista, nos transmite uma visão clara de como o Museu Paulista, após adquirir,
através do trabalho de Taunay, um caráter histórico, serve aos interesses regionais
para a constituição de uma memória nacional em torno dessas personagens.
Taunay buscou materializar a valorização do Brasil independente, da coesão
nacional, mas, em sua perspectiva, somente possível pela bravura dos bandei-
rantes. Ou como cita passagem de escrito de Taunay (1937, p. 60 apud Brefe,
2002-2003, p. 99):

Foram aproveitadas para recordar o bandeirantismo, episódio culminante da história


nacional e, por assim dizer singular da História Universal. Recorda a expansão brasilei-
ra para o Oeste, sem a qual seria nosso território um terço do que é.

O povo miúdo e a massa de escravos, por sua vez, eram pouco referenciadas
nas obras do acervo, quando o eram, eram colocadas em segundo plano, apenas
como parte da paisagem em que os grandes vultos históricos aparecem em posição
de dominância, como comenta Taunay de um dos esboços enviados a ele pelo autor
do quadro para sua aprovação (TAUNAY, 1937 apud BREFE, 2002-2003, p. 95):

Recebi esbocetos que me agradaram muito [...] Muito boa a concepção do grupo; em
lugar da picareta é bom pôr o almocrafe às mãos dos índios; neste quadro peço-lhe que
ponha índios e negros. Variação: colocar só índio e tirar o toldo da Canoa. Conjunto
excelente.

O Museu da Imigração é outro exemplo de instituição de memória que re-


força o ideário hegemônico sobre os atores sociais da história da cidade. Ins-
talado no local onde funcionava a antiga Hospedaria de Imigrantes do Brás, a
expografia do espaço tende a valorizar os anseios, necessidades e dificuldades

52
dos imigrantes, em sua maioria, europeus, mas também asiáticos e brasileiros
nordestinos, aqui chegados ao longo do fim do século XIX e primeira metade do
século XX. Embora haja um esforço mais recente em abordar também os dife-
rentes tipos e ondas migratórias para o país, como é o caso da escravidão como
migração forçada, e as recentes ondas boliviana, libanesa, coreana, entre outras,
pouco se reflete a respeito dos conflitos e debates raciais relacionados à questão.
Paiva (2015, p. 10) analisa:

Os temas “deslocamentos indígenas”; “colonização portuguesa” e “escravidão como


imigração forçada” são tratados como ondas ou processos de deslocamentos que se
sobrepõem uns sobre os outros sem margem para se discutir as implicações inevitáveis
destes encontros como as guerras, doenças, extermínio, exploração, escravização. No
paralelo destas questões, as razões do deslocamento dos colonizadores, escravos e imi-
grantes tão pouco são analisadas neste módulo. Temas como exploração e colonização
são tratados sem os conflitos que lhe são inerentes.

O Museu Anchieta, por sua vez, localizado no Pateo do Collegio, espaço


considerado como marco histórico da fundação da cidade de São Paulo, ocorrida
em 1554, dedica-se à valorização da atuação jesuítica na constituição da cida-
de. Ainda hoje, coordenado pela Companhia de Jesus, sua exposição principal é
inteiramente voltada à arte sacra e jesuítica, dedicando-se diversas homenagens
aos padres Anchieta e Manuel de Nóbrega, tidos como responsáveis pelo início
da catequese, de forma um tanto controversa e polêmica, em terras paulistas.
As memórias indígenas, tão importantes se considerarmos a história original do
local, prévia à chegada europeia, pouco encontra espaço no discurso expográfico
da instituição, sendo reduzida a uma cripta (sem qualquer ironia), espaço locali-
zado abaixo da capela do conjunto. Não se esconde, nem mesmo em sua carta de
apresentação do site, o objetivo propagandístico religioso ainda nos dias de hoje:

Ao longo dos últimos anos o Pateo do Collegio tem-se tornado referência na preserva-
ção da memória histórica acerca das origens da cidade de São Paulo, na promoção da
cultura e na afirmação da Fé Cristã em nossa sociedade, ao proporcionar um diálogo
constante entre a história, a cultura inaciana (que é o modo de proceder e espirituali-

53
dade dos jesuítas, legado de seu fundador) e a cultura atual por meio da realização de
eventos gratuitos ou de baixo custo. (PATEO DO COLLEGIO, 2021)

A cultura africana, quando finalmente musealizada durante o século XIX,


o foi nos museus etnográficos europeus. O que pode parecer, à primeira vista,
um movimento para a valorização desses povos, na verdade, tem o exato efeito
contrário. Nesses espaços, era comum que se reunisse, em uma mesma coleção,
elementos naturais (animais empalhados, elementos da vegetação e geologia) e
culturais, de maneira que o homem africano e sua produção cultural fossem tra-
tados como parte da paisagem, sem o devido valor técnico, social e/ou artístico,
desumanizando-os, tornando-os estáticos, sem qualquer relação com a sociedade
que o produz, segundo Abranches (1989, p. 52):

O museu colonial devido ao papel artificial que lhe era reservado – como
de resto, a maior parte dos museus de então – era sobretudo uma espécie
de entreposto onde os objetos expostos perdiam a sua verdadeira alma
ficando numa inanição total. Assim, o museu colonial não tinha ne-
nhuma relação com o seu meio indígena que ignorava até sua existência
[...] Por isso tais museus apenas podiam servir à administração colonial
e a um número muito reduzido de visitantes ilustres que estudavam a
África, senão o exotismo africano.

Logo, vemos que a construção dos museus coloniais do século XIX, dentro
do contexto do colonialismo, servia mais à valorização da superioridade europeia,
seja do ponto de vista cultural, político ou social, do que realmente à demanda
dos povos ali (sub)representados. Podemos perceber, então, quer seja dentro ou
fora dos espaços museais, o patrimônio, os espaços de identidade e memória das
minorias políticas, em especial de negros e negras, ainda se encontram relegados
ao esquecimento, à superficialidade e ao total desrespeito. Como oposição, o
MAB se destaca ao pretender, tornar-se referência de reconhecimento ao negro
brasileiro contemporâneo (ARAÚJO, 2010, p. 10)

54
Museu Afro Brasil: o curador
Para compreendermos o MAB é necessário, primeiramente, analisar a tra-
jetória da principal figura do museu: seu idealizador, curador e diretor: Ema-
noel Araújo. Dono de uma carreira artística renomada, tanto nacional como
internacionalmente, começou seus primeiros passos pelo ofício de marceneiro e
posteriormente se dedicou à realização de gravuras, tendo estudado essa arte na
Universidade Federal da Bahia. Mais tarde, se internacionaliza a partir do conta-
to com grandes artistas como George Preston nos Estados Unidos, onde também
foi professor universitário. Também estabelece relações com grandes ativistas bra-
sileiros, como Abdias do Nascimento.
A partir de sua participação no Festival Mundial de Artes e Culturas Negras,
ocorrido na Nigéria em 1977, evento expoente dos debates panafricanistas e do
Movimento Negritude em voga na época, teve em si despertado o desejo de se
aprofundar na temática negra e afro-brasileira, o que iria influenciar toda sua
atuação curatorial posterior (SOUZA, 2009), assunto a ser tratado mais adiante.
Desde então, assumiu a curadoria de diversos espaços museológicos importantes,
como o Museu de Arte da Bahia (1981-1983). Posteriormente veio para São Pau-
lo, onde realizou exposições27 voltadas à valorização do nome de artistas negros e
da herança africana na história e na arte brasileira.
Foi também curador da Pinacoteca do Estado de São Paulo na década de
1990, utilizando o espaço também para realizar mostras que pautassem a questão
do negro no Brasil, como no ano do tricentenário da morte de Zumbi, 1995,
quando a exposição Herdeiros da Noite foi aberta ao público.
Em 2004, em consequência de sua já relevante experiência e identificação
com a questão negra, apresenta o projeto do MAB à prefeitura da cidade, coman-
dada por Marta Suplicy, à época, membro do Partido dos Trabalhadores. Logo
após, o espaço é implantado e aberto ao público.

27 Entre as principais exposições do curador do MAB podemos citar: A Mão Afro Brasileira – 1988 –
MAM; Vozes da Diáspora – 1993 – Pinacoteca do Estado de São Paulo; Arte e Religiosidade Afro-bra-
sileira – 1994 – Frankfurt; Herdeiros da Noite – 1995 – Pinacoteca do Estado de São Paulo; Negro de
Corpo e Alma – 2000 – Bienal de São Paulo – Mostra do Descobrimento; Negras Memórias/Memórias
de Negros: o Imaginário Luso-Afro-Brasileiro e a Herança da Escravidão – Centro Cultural da FIESP.

55
O MAB é, desde 2005, administrado pela Organização da Sociedade Civil
de Interesse Público (OSCIP) Associação Museu Afro Brasil. Para se qualificar
como Organização Social de Cultura e para a Associação assumir a gestão do
espaço, Emanoel Araújo doou mais de 2000 obras de arte para o Estado de São
Paulo e para o próprio museu, tornando-o uma instituição pública e subordinada
à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Portanto, é evidente a influência
de Araújo na condução do espaço, tanto do ponto de vista museológico como
político. Embora a instituição seja gerida por um coletivo, Emanoel Araújo ainda
se vale de grande reconhecimento interno e externo pelo seu trabalho no museu.
Dessa forma, compreenderemos, mais à frente, como sua trajetória será determi-
nante para a concepção da expografia do museu.

Museu Afro Brasil: avanços e limites de seu discurso


expositivo
Localizado no Parque Ibirapuera, sua fundação e implementação, ocorridas
em 2004, têm como mérito o fortalecimento da presença negra em espaços cen-
trais e relacionados à elite paulistana, colocando a discussão sobre patrimônio e
memória negra em regiões de destaque, disputando relevância com outros mu-
seus já mencionados anteriormente. O próprio pavilhão onde se encontra, deno-
minado Pavilhão Padre Manoel da Nóbrega28, já demonstra a potencialidade da
disputa de memória travada pelo MAB.
À parte dos diversos espaços que compõem o complexo, como uma loja de
souvenires, a biblioteca Carolina Maria de Jesus e o Teatro Ruth de Souza, vamos
nos focar no espaço expográfico definitivo da instituição, localizado no segundo
andar do espaço.
A grandiosidade do museu e de sua exposição definitiva é correspondente
à ampla capacidade e criatividade de produção de cultura material pelos povos

28 Manoel de Nóbrega (1715-1580) foi um padre jesuíta português que, juntamente com o padre jesuíta
José de Anchieta, fundou a primeira capela católica no que hoje é a cidade de São Paulo, com o intuito
de iniciar a catequização de indígenas e filhos de portugueses que viviam no Brasil à época. No local,
hoje, encontra-se o complexo cultural e histórico Pateo do Collegio, já mencionado anteriormente neste
capítulo.

56
negros. São tantas as peças que compõem o acervo, que parece difícil saber por
onde começar. Seria um equívoco afirmar que existe apenas um percurso possível
ao visitante, no entanto, não podemos tampouco desconsiderar que há um plano
de exposição pensado e organizado pela curadoria do espaço e que pressupõe um
percurso ideal segundo as intenções e conceito defendidos pela curadoria.
Para isso, considerou-se o roteiro de visitação de 2006 por se acreditar que
este, por ser o primeiro e a princípio, nos anos iniciais de atuação do museu, ser
distribuído gratuitamente aos visitantes, demonstra a intenção de leitura que a
curadoria, subsidiando o setor de educação, gostaria que se fizesse do local. Dessa
forma, a visita começaria na ordem aqui apresentada dos setores, como pode ser
visto na planta abaixo, retirada do Plano Museológico da instituição:

Imagem 1. Planta Museográfica – Exposição de Longa Duração (Acervo). 2011


Fonte: Plano Museológico MAB (2011)

No primeiro setor, acessado pela rampa que leva ao segundo andar, África:
Diversidade e Permanências, encontram-se diversas obras africanas de origem
distintas, sendo a maioria datada do século XX. A grande intenção desse espaço
é a desconstrução do estereótipo homogeneizante sobre o continente africano;

57
ideia, com raiz nos Oitocentos, ainda muito presente em sociedades extra-África.
Por isso, é possível perceber uma atenção especial à contextualização das peças e
de seus respectivos usos, havendo ainda, nessa seção, mapas ao lado das legendas
para indicar a origem do bem apresentado, bem como legendas explicativas sobre
o uso dado aos objetos pelos povos a eles relacionados.
Essa perspectiva fica ainda mais clara ao considerarmos os textos escolhidos
para comporem a seção. Próximo à rampa de acesso ao que seria a parte inicial
do museu, um texto de Darcy Ribeiro disserta sobre a diáspora e a “contribui-
ção silenciosa” do negro na formação da identidade e história brasileira. Mais
adiante, outro texto do próprio Emanoel Araújo que nos informa seus objetivos
de representar o negro como sujeito histórico ativo, múltiplo, influenciador e
influenciado. Tais palavras se relacionam com esse primeiro espaço já que ele
buscará provar o alto grau cultural das civilizações africanas, promovendo uma
exposição diversa em termos de multiplicidade de peças e referências culturais.
Ao adentrarmos a exposição, ao lado de um grande mapa referente ao Tráfico
Negreiro dos séculos XVI ao XIX, temos outro texto de parede que nos permite
compreender o alcance político do tema trabalhado no MAB. Trata-se de um
escrito de Fábio K. Comparato, intitulado “Um Débito Colossal”, e que defende
a ideia de que a escravidão subjugou um povo múltiplo em sua diversidade étnica
e cultural, subtraindo-lhe a liberdade e especificidades, sendo a nação brasileira
e europeia devedora de um crédito a esses povos, que seriam pagos por meio da
reparação da desigualdade social, por exemplo, através das cotas raciais nas uni-
versidades públicas.
Se por um lado, essa expografia mostra a pluralidade de produções, signifi-
cados e usos da arte africana (ainda que a consolidação total deste objetivo seja
impossível, já que se trata de peças descontextualizadas de sua origem, servindo
assim a novos propósitos, desta vez museológicos.), por outro lado, a insistência
em expor nesse setor uma maioria de esculturas e máscaras rituais corrobora para
a visualização de uma África ainda de caráter tradicional. Isto é, neste momento,
ao pensar sobre a África, a curadoria ainda seleciona obras que limitam a verifica-
ção da produção de uma arte diferente do que comumente é considerado como
“primitivo”. Ainda que a intenção seja valorizar tais produções, diferentemente

58
do que se fazia na museologia etnográfica do século XIX até meados do século
XX, a seleção de obras do MAB para este setor cristaliza o olhar do visitante sobre
arte africana, uma vez que outras temáticas artísticas só serão referenciadas nos
setores relacionados à experiência afro-brasileira, como veremos mais à frente, ao
falarmos do último setor.

Imagens 2 e 3. Corredor de exposição de peças relacionadas à diferentes povos


africanos. Na imagem 3, vemos as vitrines em que tais peças são expostas e, ao fundo, a
porta de entrada para a Sala do Navio Negreiro, Setor África: Diversidade e Permanência.
Fonte: Acervo pessoal

Seguindo a visita, somos levados para uma sala que possui três entradas: a
Sala do Navio Negreiro, que dá início ao setor Trabalho e Escravidão. No cami-
nho, deparamo-nos com painéis que ficam na parte superior do corredor princi-
pal que leva à sala em questão. Neles, é possível perceber imagens (desenhadas)
de rostos de negros com suas específicas marcas de etnia (Imagem 6), seja no
rosto ou no cabelo. Mesclando-se com esses painéis, vemos outros que já mos-
tram os africanos escravizados (Imagem 7), sem qualquer traço étnico ou sinal
que possa diferenciá-lo, segundo sua cultura ou grupo, sendo, portanto, segundo
análise das obras apresentadas nos painéis, um negro escravizado, a serviço do
homem branco, momento em que sua individualidade se esvai.

59
Imagens 4 e 5: Painéis que compõem o corredor em direção à sala do Navio Negreiro.
Setor: África: Diversidade e Permanências. Fonte: Acervo Pessoal

Assim, entramos na sala do Navio Negreiro. Dedicada a expor os terrores da


escravidão, localiza-se basicamente ao meio de todo o percurso (vide planta) e
se torna estratégica já que pode ser acessada por diferentes portas. Defendo que
é nesse espaço que ocorre um ponto de influxo do discurso expositivo. O forte
apelo emocional ao replicar o porão de um navio e expô-lo ao lado de algemas
e correntes ao som de cânticos africanos e o poema de Castro Alves, O Navio
Negreiro, ele fornece as bases de um novo discurso que pretende unificar as múl-
tiplas identidades africanas, amalgamando-as sob a égide da identidade negra,
construída a partir da experiência da escravidão. Isto é, a experiência do desloca-
mento e da crueldade do trabalho forçado forma uma nova identidade, desta vez,
uma, ou nas palavras de Munanga (2012, p. 13):

Na realidade, o que esses grupos humanos têm fundamentalmente em


comum não é, como parece indicar o termo negritude, a cor da pele,

60
mas sim o fato de terem sido na história vítimas das piores tentativas de
desumanização e terem sido suas culturas não apenas objeto de políticas
sistemáticas de destruição, mais do que isso, ter sido simplesmente ne-
gada à existência dessas culturas.

Nesse espaço, não há qualquer referência sobre de qual região da África esses
africanos vieram; há também um mapa da África exposto na parede, sem qual-
quer indicação de onde partia o tráfico de escravos para o Brasil. Uma expografia
que nos leva a entender que, neste momento, os dados históricos concernentes
ao local, etnias, datas e outros “detalhes” perdem importância diante de tamanha
atrocidade humanitária Dessa forma, as peças não são vistas como documentos,
mas como monumentos atemporais, valorizadas pelo sentimento que são capazes
de despertar nos visitantes.
A partir desse momento, o discurso expositivo do museu seguirá uma con-
cepção voltada à existência de uma “identidade negra”, que é, supostamente,
compartilhada pelos negros do país.

Imagem 6. Algemas, correntes de ferro.


Sem data Setor: Trabalho e Escravidão. Fonte: Acervo pessoal

61
A exposição desse núcleo segue. O próximo espaço conta com peças rela-
cionadas ao cultivo da cana, café, mineração, como pães de açúcar, peneiras,
coadores de café, todos datados e em sua maioria do século XIX. Essas peças
chamam atenção pelo seu teor de testemunho histórico em relação ao tão conhe-
cido trabalho escravo dos negros nos engenhos de açúcar e, posteriormente, nas
lavouras de café. Além disso, existem fotografias, documentos escritos ampliados
em paredes, como o contrato sobre a posse de um escravo, entre muitas outras
peças que nos dão indício do tempo da escravidão e do trabalho pesado aos quais
os negros eram submetidos. A grande inovação desse espaço, porém, encontra-se
no fato de ele apresentar outras peças relacionadas a outros ofícios desenvolvidos
pelos negros no processo da escravidão, como é o caso da marcenaria, fundição,
amas-de-leite, que costumeiramente são relegados ao esquecimento por parte do
senso comum ou da historiografia tradicional, que insiste em relacionar o traba-
lho escravo somente ao trabalho braçal.
Importante salientar que a partir de agora, não há mais qualquer menção à
multiplicidade étnica e cultural dos negros e negras, que foram escravizados no
Brasil. A expografia passa a apresentar, de forma horizontal, as referências cultu-
rais e laborais dos trabalhadores africanos e afro-brasileiros escravizados em solo
brasileiro.
Um exemplo dessa abordagem é o setor Religiões Afro-Brasileiras. Ora, as
religiões afro-brasileiras são muitas e praticadas de diversas formas, no entanto,
a menção principal e mais apelativa se dá através do acervo e é feita ao Can-
domblé baiano, deixando em segundo plano outras religiões relacionadas à
cultura afro-brasileira, como o Tambor de Mina, a Umbanda ou até mesmo
o Islamismo, que esteve em cena pelo culto de negros escravizados na Revolta
dos Malês, na Bahia.
Ainda assim, podemos considerar que o setor avança ao buscar um efei-
to didático para apresentar, ou reapresentar, aspectos importantes das religiões
afro-brasileiras. Ao expor peças, vestuário e instrumentos utilizados nos ritos e
cultos, colocando-os disponíveis aos olhos do visitante, juntamente com textos

62
explicativos sobre o uso dessas peças, e Orikis29, a respeito de cada entidade do
Candomblé, obtém-se uma aproximação entre o público e o que é ali mostrado,
no sentido de torná-lo capaz de compreender as dimensões culturais que envol-
vem as religiões afro-brasileiras.

Imagem 7. Vestimentas de entidades do Candomblé baiano.


Setor: Religiões Afro-Brasileiras. Fonte: Acervo pessoal

Um segundo objetivo diz respeito à busca em mostrar as diferentes matrizes


religiosas sincréticas existentes no Brasil, buscando explicá-las frente às adapta-
ções necessárias ocorridas aqui com o contato com a religião cristã que, por um
lado, mostra a resistência e capacidade de negociação dos afrodescendentes em
manter e dissimular suas práticas e, por outro, também pode indicar um processo
de embranquecimento das culturas afro-brasileiras30.

29 Segundo informações retiradas do site – Candomblé -, A palavra Oriki, é formada por duas palavras,
Ori = Cabeça e KI = Louvar / saudar. Então Oriki significa, saudar ou louvar a algo que estamos nos refe-
rindo, sendo consideradas orações em que as virtudes e as atividades de cada entidade são evidenciadas
em suas frases. Fonte: OlLAIGBO, Odé. Oriki (Invocação). Disponível em: <https://ocandomble.
com/2011/04/19/oriki-invocacao/>. Acesso em: set. 2021.
30 O debate a respeito do sincretismo religioso torna-se polêmico ao colocar de um lado o entendimento
de que este se dá por um processo de resistência e negociação da cultura africana em contato com outras
matrizes religiosas, passando por transformações para poder continuar existindo e de outro, se o sincre-

63
Verificamos que esse setor tem especial atenção por parte do museu, visto
que o tema religião perpassa mesmo os demais setores, pois é por meio das reli-
giões que, ainda que tenham sofrido alterações e adaptações em solo brasileiro,
transparecem o laço entre os afro-brasileiros e a África, por meio do culto de seus
ancestrais. Ainda que tenha sido perseguida pela cultura ocidental, sendo muitas
vezes considerada caso de polícia e pecado aos olhos dos cristãos, a religião possi-
bilitou a manutenção dos laços entre os povos negros daqui e os povos negros de
lá, de acordo com a perspectiva de Araújo.
Outras manifestações religiosas são relacionadas ao culto do catolicismo e
sua reinterpretação e ressignificação pela cultura afro-brasileira, o que aparece no
setor Sagrado e o Profano.
Aqui, as festas e manifestações culturais dos negros em solo brasileiro são
colocadas em foco. Ao expor peças como o Cruzeiro Monumental Martirológico
de Cristo, vestimentas, estandartes de festas religiosas em homenagem a Nossa
Senhora do Rosário, evidencia-se a articulação existente entre as religiões africa-
nas e a católica. A participação dos negros em festas, antes puramente católicas,
inscreve-se pela música e pelo toque dos tambores, como ocorre na Congada, que
estão expostos no local, bem como a confecção por negros de balagandãs utili-
zados pelos participantes das festas. Um ponto que chama atenção é o colorido
desse setor (Imagem 8).
A cor escolhida para esse setor, que é reproduzida no roteiro de visitação, é a
amarela, que, em combinação com as cores das vestimentas, máscaras utilizadas
nas mais diversas festas, ali representadas, transparece um clima oposto ao da
sala do Navio Negreiro, promove sentimentos relacionados à alegria, celebração,
vida. Os sons produzidos pelo vídeo da manifestação do Bumba-meu-Boi pro-
movem uma perspectiva que se contrapõe à uma memória de sofrimento vincu-
lada à escravização. O negro, nessa sala, aparece vivo e ativo na apropriação da

tismo significa o embranquecimento da mesma cultura. Silva (2013) levanta esse debate especialmente
através da fala da Mãe Stela d’Oxóssi, yalorixá de Ilé Axé de OpoAfonjá, intelectual orgânica e reconhe-
cida pela Universidade Estadual da Bahia como Doutora Honoris Causa e pela Universidade Federal da
Bahia, que defende que a representação dos orixás se dê sem maquiagens embranquecedoras.

64
religião cristã e sua combinação com seus ritos ancestrais, bem como fortalece a
ideia de resistência de sua identidade enquanto africano.

Imagem 8. Acessórios utilizados em festejos populares que


contam com a influência africana
Setor: O Sagrado e o Profano. Fonte: Acervo pessoal

Temos então, como afirma Silva (2013), dois catolicismos: o oficial, que des-
considera a influência das crenças negras, e o popular que, presente no cotidiano,
não resiste às interpretações e associações promovidas pelos afro-brasileiros.
Os dois últimos setores, História e Memória e A Mão Afro-Brasileira são de-
dicados à valorização de personalidades negras e suas obras. O primeiro trata-se
de painéis com fotos de personalidades negras importantes em diversas áreas de
atuação, seja nas artes, no jornalismo, na luta pela abolição, como André Re-
bouças, nos esportes, como Pelé, Garrincha, na literatura, como Carolina Maria
de Jesus, entre outros grandes nomes. Esse setor passa a servir de homenagem
e valorização da memória de tais personalidades, servindo também como pro-

65
pulsor do orgulho negro, além de dar visibilidade à tais figuras, fato tão negado
durante a nossa experiência enquanto país. Além disso, fortalece a força de tais
personalidades por terem ascendido socialmente apesar das mazelas do racismo
na nossa sociedade.

Imagem 9. Retratos de importantes personalidades negras da História do Brasil


Setor: História e Memória. Fonte: Acervo pessoal

Há também um forte destaque relacionado às personalidades do futebol


(Imagem 10 e 11), como Garrincha, Djalma Santos, Pelé, este último com im-
portante destaque no espaço. Esses jogadores do futebol brasileiro estão repre-
sentados em imagens de tamanho real, cujo recorte promove uma ideia de mo-
vimentação sobre um tapete gramado onde estão alocados. É, neste momento,
que o objetivo tão expresso por Emanoel Araújo em seus textos, fica evidente:
o reconhecimento do negro como componente da identidade brasileira, como
sujeito de nossa história. E o futebol é um dos itens que, via senso comum, ex-
pressa a brasilidade. Para ajudar nessa identificação, uma réplica da bola utilizada
na última Copa do Mundo, em 2010, também está exposta. Vale lembrar, que o
palco dessa competição foi a África do Sul.

66
Imagens 10 e 11. Jogadores de futebol homenageados. Setor: História e Memória. Na
primeira figura, é possível visualizar, além dos jogadores homenageados, Garrincha,
Djalma Santos, e Pelé. Fonte: Acervo pessoal

No último setor, seguindo a sugestão do roteiro de visita, expõem-se obras


de diversos artistas negros que produzem peças acerca da temática afro-brasilei-
ra ou ainda sobre temas universais. É importante citar que, apesar dessa seção
se concentrar no último corredor do acervo permanente, outras obras do setor
encontram-se espalhadas pelo andar, fornecendo também espaço para mostrar
a influência de artistas negros nos séculos passados, ainda que produzindo artes
mais relacionadas à temática europeia, como Aleijadinho e sua produção barroca.
Diversas obras do próprio curador também são aqui expostas. Ao contrário
do que se pretendia no primeiro setor, as obras aqui possuem uma estética con-
temporânea.

67
Imagem 12. Mestre Didi – Dan – A Serpente do Além.
Técnica Mista – Coleção particular
Setor: A Mão Afro-Brasileira. Fonte: Roteiro de Visita MAB

Imagem 13. Sidney Amaral – Acesso Restrito (2006)


Mármore, cerâmica e bronze – Coleção particular do artista.
Setor: A Mão Afro-Brasileira. Fonte: Roteiro de Visita MAB

É importante perceber aqui que a arte tem um espaço primordial no museu,


afinal, o fazer artístico é exclusividade da espécie humana. Ainda que partilhe-
mos com os demais animais sentimentos de dor e medo, a capacidade de recriar
o ambiente ao redor, a fim de expressar sentimentos para além da necessidade
de sobrevivência, nos torna especial como a nossa condição. Não somente per-

68
ceber, mas também valorizar a capacidade criativa e artística dos negros e negras
torna-se um ato revolucionário. Revolucionário porque diante da opressão e ex-
ploração às quais esses homens e mulheres foram submetidos, a arte retoma a
humanidade negada e os recolocam como civilização que, apesar de ainda lutar
para ser equiparada à civilização europeia do ponto de vista do respeito e valor,
lançam novas perspectivas diferentes da opressão, vitimização e exploração. E é
inegável que o MAB faz isso muito bem.

Plural – Singular – A homogeneidade identitária em


nome da luta
Magalhães e Ramos (2008), juntamente com Cury (2006,) nos lembram
que a função da curadoria é planejar uma expografia capaz de transparecer um
problema, uma questão a ser debatida através de sua exposição.
O acervo permanente do MAB e sua expografia nos convidam ao debate a
respeito da representatividade negra na história e memória nacional, buscando
torná-la positiva e fundamental para o entendimento da história de nosso país,
ultrapassando visões limitadoras como as quais relacionam a participação negra
na história apenas à escravidão.
Visando criar laços identitários que promovam o reconhecimento positivo
do “negro brasileiro contemporâneo” com o espaço, história e memória valorizada
pela instituição, Emanoel Araújo lança mão de uma estratégia que denominarei
aqui como Plural-Singular. Isto é, a concepção que orienta o discurso expositivo
da instituição pressupõe um afunilamento que parte das múltiplas identidades e
experiências vividas em território africano e chegam à formação de uma identi-
dade única de caráter racial – a identidade negra –, que será então o amálgama
que produziria o fenômeno do reconhecimento de seu principal público-alvo.
Essa transformação de referências plurais a uma singular é reflexo de um pro-
cesso de Diáspora que no museu é evidenciado pelo setor Trabalho e Escravidão.
Esse setor, localizado exatamente no meio do acervo expositivo e que se inicia
com a já analisada Sala do Navio Negreiro, representa não somente a linha histó-

69
rica que conecta Brasil e África, mas também o ponto de influxo em que ocorre
a edificação de uma nova identidade, desligada das individualidades étnicas e/ou
culturais dos protagonistas desta História.
Gilroy (1993) nos ajuda a pensar como o processo de Diáspora se torna re-
levante em relação à discussão sobre identidade negra e a constituição desta pelos
seus participantes. Ao se utilizar do conceito de Atlântico Negro, colocando o
oceano enquanto espaço de troca de referências, experiências e cultura, conectan-
do Américas, África e Europa, percebemos que a dimensão da personalidade do
escravizado e seus descendentes perde o tom puramente nacionalista, passando
a ser um produto de múltiplas referências, não podendo ser facilmente definida
como uma identidade puramente africana, americana ou mesmo europeia. Para
o sociólogo inglês, há algo novo no que concerne à identidade e cultura dos
negros da Diáspora, aspectos que as fronteiras nacionais já não explicam e até as
limitam, ou em suas palavras, as manifestações culturais ocorridas na Diáspora,
“transbordam os vasilhames que o estado-nação moderno forneceu a elas”. (GIL-
ROY, 1993, p. 100)
Logo, no museu, o evento da escravidão promove tamanho compartilha-
mento de vivências, que mencionar, a partir daí, as especificidades regionais afri-
canas, perde o sentido para o curador, uma vez que a simbiose entre todas elas
formarão uma nova identidade.
O que ocorre, portanto, é que enfrentando na prática e no cotidiano as for-
mulações discriminatórias das teorias raciais31 que ganham força no século XIX,
os negros-africanos deparam-se com uma diferença de oportunidades e trata-

31 Arthur Gobineau e outros estudiosos dedicaram sua vida a relacionar a existências de múltiplas expe-
riências humanas a qualidades raciais específicas, relacionando aspectos positivos a determinados povos,
como os europeus, e negativos às civilizações africanas, por exemplo. Pensamentos como esses eram
reinterpretações das pesquisas dos naturalistas do século XIX, como o evolucionismo de Darwin, que
apropriados politicamente, passam a servir o interesse da elite burguesa europeia. O Darwinismo Social,
por exemplo, pode ser visto como uma reinterpretação tendenciosa da pesquisa biológica de Charles
Darwin, para explicar diferenças sociais e colocar grupos sociais em diferentes patamares evolutivos,
sendo mais uma vez, os negros-africanos considerados primitivos com relação à “avançada” Europa.
Para mais detalhes sobre teorias raciais, o artigo de Flavio Raimundo Giarola, pode ser útil: GIAROLA,
Flavio Raimundo. Racismo e teorias raciais no século XIX: principais noções e balanço historiográfico
In: História e História. Agosto, 2010. Disponível em: <http://www.historiaehistoria.com.br/materia.
cfm?tb=alunos&ID=313>. Acesso em: dez. 2015.

70
mento, que persistem no pós-abolição, levando a um processo de construção de
uma solidariedade racial em meio à opressão da escravidão e da marginalização
social subsequente a esta, isto é, cria-se uma identidade política, ou como afirma
Munanga. (2012, p. 14)

Muitas de nossas identidades coletivas que se processam pelo discurso


têm conteúdo e finalidades políticas, visando às mudanças na sociedade.
Neste sentido, a identidade negra que reuniria todos os negros e todas
as negras é a identidade política. Nela se encontram negros e negras de
todas as classes sociais, de todas as religiões, de todos os sexos, porque
juntos todos são vítimas da discriminação e exclusão raciais.

Essa argumentação defendida pelos autores expostos compõe a expografia do


museu. Araújo acredita que essa identidade seja suficiente para abarcar todas as
experiências dos negros no território nacional, para além de outros lugares sociais
que os indivíduos adquirem ao longo de sua jornada.
Dessa forma, como alerta Gilroy, cria-se um essencialismo absoluto em rela-
ção ao grupo, que busca menosprezar o hibridismo característico das experiências
humanas, promovendo uma ideia de resistência negra obstinadamente monocultu-
ral, nacional e etnocêntrica (GILROY, 1993, p. 170).
Para a curadoria, o elo que conecta os negros no Brasil se justifica sob duas
vertentes: a condição de exploração, a que historicamente foram submetidos, e a
sua origem espacial – a África. A afrocentricidade recebe forte apelo na instituição
na formação da memória proposta, o que, inclusive, fundamenta o nome e logo
do museu (Imagem 14), sendo utilizada como potencial catalisador do reconhe-
cimento do negro brasileiro com a África, que aparece como terra-mãe de seus
filhos dispersados pela escravidão.
Isto é, de multiétnico e multicultural, o continente se torna monolítico, ho-
mogêneo, de maneira que possa ser referenciado enquanto entidade, ou seja, um
mito no qual todos os negros contemporâneos devem se autorreferenciar, e que
nessa relação constroem uma identidade unificada a qual o MAB busca defender.

71
A memória negra produzida pela instituição, então, baseia-se nessa referência
geográfica, fundamentando a homogeneidade identitária dos negros do Brasil.

Imagem 14. Logo do Museu Afro Brasil: em verde, representação do Brasil,


em marrom, a África, e no meio, em azul, o Oceano Atlântico. Fonte: MAB

A compreensão dessa percepção expográfica passa pelo entendimento da re-


lação da trajetória artística, e até política de Araújo, e das ideologias de afirmação
negra, tais como o Pan-Africanismo,32 dos meados do século XX e do Movi-
mento Negritude33, da década de 30. Ambas as correntes ideológicas e políticas
passaram a ganhar força no cenário internacional repensando e problematizando
a questão da identidade negra, que como vimos, é fruto do processo diaspórico e
não ocorre de forma automática, mas sim, através de um processo que se desen-
volve principalmente no século XX.

Plural – singular – plural: o Museu Afro Brasil e o


problema que não se resolve
A discussão e a luta pela formação e afirmação de uma identidade negra se
refletem nos ideais de Araújo ao formalizar o MAB. Sua trajetória interessada no
assunto e próxima inclusive a figuras do movimento negro brasileiro, como Ab-

32 Ideologia de afirmação da identidade negra e afroancestralidade que surge na América frente a segre-
gação racial sofrida pelos afro-americanos. O termo Panafricanismo foi primeiramente cunhado por
Sylvester Willians em 1900, no entanto, ganha força com o I Congresso Pan-africano, ocorrido em
Paris, no ano de 1919, sob a liderança de W. E. B. Dubois. Outros nomes do movimento são Alexander
Crummell (1819 -1898) e Marcus Garvey (1887-1940) (PARADA et al., 2013).
33 O Movimento Negritude, com forte atuação nas décadas de 20 e 30 do século XX, se tratou de uma ma-
nifestação cultural e artística, especialmente literária, mas em suas consequências sociais, desenvolvida
na França, por africanos e martinicanos que se dirigem a Paris em busca de acesso ao ensino superior, e
lá, passam a participar da academia e cultura francesa, no entanto percebem a segregação racial que exis-
te mesmo dentro de um ambiente elitista e intelectual. Seus principais líderes foram Leopold Senghor,
Aime Cesarie e René Maran (PARADA et al., 2013).

72
dias do Nascimento, e ao Movimento Negritude, que deu o tom do FESTAC 77,
evento onde também esteve presente Araújo, imprimirá uma marca bem definida
na expografia do espaço.
Como dito anteriormente, é evidente a importância do MAB no cenário
atual brasileiro, ainda carente de representatividade e valorização de outras pers-
pectivas mnêmicas e históricas do povo negro, seja em espaços formais ou não,
como abordado nos pontos anteriores deste capítulo. No entanto, a ideia de
uma “identidade negra” única é uma armadilha que, ao buscar funcionar como
baluarte dessa representação, o museu acaba por cair.
O discurso expográfico se baseia em dois enfoques, já citados anteriormen-
te, que norteiam o discurso expositivo do museu: a ancestralidade africana, um
ideal panafricanista, que seria utilizado como justificativa para a unificação racial
constituída no processo da diáspora (representado no museu pela sala do Navio
Negreiro) e a produção artística e cultural de negros e negras como prova de sua
capacidade criativa, argumento do Movimento Negritude, da segunda metade do
século XX, representado no museu pela apelativa quantidade de obras expostas.
Do primeiro enfoque, há um desdobramento que Appiah (1997) já alertava
como problemático. Considerando o objetivo do museu de ser um espaço de
reconhecimento, isto é, de identificação do negro brasileiro contemporâneo, a
associação entre negro e África pressupõe uma identificação natural entre um e
outro. Esse apelo feito pela curadoria relaciona-se à visão intelectual de Araújo
ao buscar estabelecer a conexão entre negros no Brasil e a África, a partir de uma
perspectiva política de tecer uma história para aqueles que foram desconectados
forçosamente de sua ancestralidade, construindo um mito de origem.
Se por um lado, essa expografia é de uma ousadia e genialidade ímpar, por
outro, ela desconsidera as múltiplas formações identitárias as quais indivíduos
formam ao longo de suas experiências, havendo então a possibilidade dessa iden-
tificação africana não ser reconhecida tão facilmente frente às múltiplas inter-
pretações que podem ser assumidas mais fortemente pelo público do que a que
é proposta pelo museu. A identidade nacional, regional, ou mesmo a negação
da negritude, como forma de se desvencilhar da discriminação, podem ser mais

73
presentes na vida do indivíduo do que a temporalmente remota conexão com o
continente africano.
Em relação ao forte apelo artístico como prova tenaz da civilidade africana
e afro-brasileira, outro limite se coloca. Enquanto artista plástico e intelectual,
o curador promove uma atenção especial a esse tipo de manifestação cultural,
expondo de forma articulada não só obras consideradas tradicionais produzidas
em África, mas buscando também valorizar artistas negros que produziram gran-
des obras em relação a temáticas comumente relacionadas à Europa, como no
Barroco. No último setor, A Mão Afro-Brasileira, Araújo consolida essa concep-
ção de diversidade, ao apresentar artistas contemporâneos que trabalham com
abordagens relacionadas à identidade negra e cultura afro-brasileira e outros que
se debruçam sobre temas universais, desafiando a perspectiva homogeneizante e
exótica sobre arte africana.
No entanto, a escolha das manifestações culturais que ocupam o espaço ex-
positivo do museu deixa de lado outras expressões artísticas oriundas da periferia,
onde grande parte da população negra reside. Segundo dados levantados pela
Secretaria Municipal de São Paulo, baseado em dados do IBGE 201034, as regiões
mais extremas da cidade possuem uma população que chega a mais de 50% de
negros. Em Parelheiros, por exemplo, o índice chega a 57%35.
Em artigo próprio publicado na Revista Transveros, eu explico (FONSECA,
2017. p. 199):

A valorização que se faz com relação às artes plásticas e a outras manifestações culturais
como as religiões afro-brasileiras e cristãs, danças e festejos toma conta do discurso
expositivo do museu de modo que as artes produzidas por uma importante parcela
da sociedade em que estão localizados negros e negras hoje não sejam representadas –
falamos especificamente das produções artísticas e culturais produzidas nas periferias
das grandes metrópoles, como o funk, o rap, o hip hop, teatro de rua, saraus, grafites e
inúmeras outras manifestações que não aparecem no museu.

34 Fonte: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf>. Acesso em: jun.


2021.
35 Os dados podem ser consultados aqui: <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/
igualdade_racial/arquivos/Relatorio_Final_Virtual.pdf>. Acesso: em jun. 20 21.

74
Não se quer com isso associar a arte e cultura negra apenas às produções peri-
féricas. Pelo contrário, é essencial a valorização de diferentes referências culturais
e históricas, sem que reduzamos ou congelemos as expressões sociais a um ou
outro estilo artístico, como se a periferia só fosse capaz de produzir ou compreen-
der os estilos supracitados. No entanto, ignorar artes produzidas nesse ambiente
é negar a possibilidade de representação de considerável parcela da população
negra que se encontra marginalizada dos grandes centros culturais, mas que nem
por isso deixa de produzir36.
Esse fator se torna relevante ao tratarmos de identidade e representatividade
negra no MAB, uma vez que desconsiderar essa população é correr o risco de tra-
tar o conceito de identidade de forma homogênea, como se a proposta do MAB
fosse hegemônica e de fato fosse capaz de abarcar todas as esferas sociais que exis-
tem e persistem para além da questão racial. O próprio processo de escravização,
sem qualquer novidade nisso, prevalece vivo na marginalização que esses povos
são submetidos ainda hoje. Haver pouca representação sobre as produções desses
artistas da periferia no museu não favorece a reflexão a respeito do racismo nessas
regiões e obscurece outro aspecto que nos identifica na sociedade – a classe.
Soma-se a isso, o potencial aglutinador e identitário que a arte possui na pe-
riferia, uma vez que, segundo D’Andrea (2013), a arte periférica pode funcionar
como fonte de renda, participação política, autoafirmação e autorrepresentação
já que, muitas vezes, a cultura produzida sobre a periferia vem de agentes exter-
nos que pouco vivem ou conhecem a realidade. A inserção dessas referências no
discurso expográfico, a partir do efeito de musealização, levaria a maior valoriza-
ção e reconhecimento dessas produções artísticas.
A própria localização do museu evidencia tal controvérsia. Como vimos, o
MAB se localiza no Parque Ibirapuera, um lugar de grande circulação da classe
média paulistana historicamente embranquecida, afastada das periferias negras
da cidade. Mantê-lo nesse local, como dito anteriormente, é extremamente posi-

36 A pesquisa aqui apresentada foca-se na exposição e expografia de longa duração do Museu Afro Brasil.
No entanto, vale ressaltar que o espaço elabora exposições temporárias a fim de diversificar as expressões
artísticas e culturais lá expostas. Um exemplo disso é a exposição das obras do artista plástico, focado
em Street Art e Graffitti, Paulo Cesar Silva, o Speto, exibidas em 2009, na parte externa do MAB, e em
uma mostra sobre grafitti, de nome Território Ocupado, em 2006.

75
tivo ao considerarmos a ausência de representação de espaços alusivos aos negros
enquanto sujeitos ativos na cidade e na história do país. No entanto, se por um
lado, o museu instiga a reflexão entre interlocutores brancos não acostumados
a refletir sobre a importância do negro no Brasil, por outro, seu público-alvo se
mantém com dificuldades de acesso ao local. Ainda que a instituição mantenha
atividades de exposição itinerante que são voltadas a levar o debate para outras
regiões além da cidade de São Paulo, e forneça visita monitorada a escolas, o fato
é que não se anula a ausência de representação de aspectos culturais e artísticos
mais próximos à realidade desses negros e negras.
O contrário, porém, nos levaria ao efeito colateral da nichização. Se falar so-
bre identidade negra e construir uma memória positiva sobre a atuação negra na
história do Brasil, para além da escravidão, é condição sine qua non para o alcance
da real democracia racial; o debate não deve se encerrar apenas aos mais interes-
sados. Guetalizar a instituição, que promove um debate amplo e necessário na
atualidade na periferia apenas pelo fato de lá se encontrar a maior parte de seus
interlocutores-foco, seria também minguar a possibilidade de diálogo e atenção
da sociedade como um todo.
Essa questão jaz sem solução, uma vez que é impossível alcançar a represen-
tatividade total de qualquer grupo que seja, frente às diferentes identidades que
transpassam o nosso ser. Ainda assim, ouso dizer que o MAB, em partes, abre
margem para a ideia de democracia racial, explico:

[...] o ocultamento em seu acervo da representação da população negra mais pobre


corrobora para a construção de um discurso que vê a história dos negros somente do
ponto de vista positivo, dos vencedores que conseguiram tanto produzir mesmo sob
condições adversas. De fato, essa perspectiva é positiva e necessária, no entanto, não se
deve com isso fazer com que o reconhecimento da participação e da importância dos
mesmos em diversas áreas nos isente da necessidade do debate e da luta por avanços
em direitos dos negros, contra o racismo e contra a marginalização. Boa parte da popu-
lação negra ainda é excluída do ensino formal, dos museus, do mercado de trabalho e
esquecida nos espaços que deveriam lembrá-las. A marginalização aqui não está sendo
somente geográfica, social, ela está se dando também nas esferas dos espaços de memó-
ria, como se não devessem ser lembradas. FONSECA, 2017, p. 202)

76
Como artista plástico, inserido em universidades, inclusive internacionais,
com articulações sociais em meios políticos e artísticos, como dito anteriormente
na FESTAC 77, é natural que Araújo promova um recorte que desconsidere uma
realidade ao qual ele não necessariamente teve contato efetivo durante sua vida,
uma vez que Emanoel Araújo é negro, intelectual e de classe econômica alta.
Logo, seu museu transparece suas referências, e ainda que se almeje o recorte
apenas racial, seu conceito sobre afro-brasilidade se dá sob uma perspectiva que
tem lugar social e, portanto, não é total.
A vivência de intelectuais negros diante de situações de descriminalização
cria uma disputa sobre os códigos que irão regular a maneira pela qual a história das
culturas negras no século XX será escrita (GILROY, 2012, p. 23). E assim como
ocorreu no Movimento Negritude e no Pan-africanismo, o MAB, por meio de
seu curador e da expografia por ele pensada, cria padrões que determinam os
referenciais históricos e artísticos que os negros brasileiros deveriam guardar em
sua memória. Consequentemente, temos que a patrimonialização da cultura e
da história de um povo em espaços museológicos promove a cristalização da
identidade, de maneira que outras alcunhas assumidas pelos indivíduos ao longo
da sua vida não podem ser contempladas no museu. No caso do MAB, embora
funcione como um projeto político, fala-se de negro, mas enquanto unidade.
Isto é, ainda que o museu recupere de forma explícita o processo escrava-
gista, o faz como forma de justificar a unidade racial frente à opressão, não re-
ferenciando em suas salas os indivíduos que ainda sofrem as consequências da
marginalização, que tem raízes na escravidão, e continuam tendo suas produções
e referências culturais diminuídas. Em outras palavras, no MAB, a memória do
negro brasileiro deve remeter mais à sua ancestralidade do que a sua própria con-
dição material e histórica, congelando sua identidade em tempos remotos, antes
da viagem pelo Atlântico. Nas palavras de Gilroy (2012, p. 355):

Os negros são instados quando não a esquecer a experiência escrava que surge como
aberração a partir do relato da grandeza da história africana, então a substituí-la por
uma noção mística e impiedosamente positiva da África que é indiferente à variação
intrarracial e é congelada no ponto em que os negros embarcaram nos navios que os
levariam para os inimigos e horrores da Middle Passage.

77
Ou seja, as variações intrarraciais de caráter classicista, religioso, regional ou
artísticas não devem ser evidenciadas a fim de valorizar uma unidade que remete
à origem africana, não historicizando relações que são frutos de contextos históri-
cos extremamente específicos e que, por assim serem, se alteram e se diversificam
conforme o tempo, o espaço e a ação do homem.
Não se trata apenas de expor obras de artistas de origem periférica, como de
fato ocorre no museu, ao referenciar, por exemplo, a escritora Carolina Maria de
Jesus, entre outros nomes, mas sim, de valorizar uma arte que ainda é tida como
de baixo valor e segue sendo marginalizada justamente pela condição social e
racial a qual se relaciona. Em outras palavras, a abrangência de outras produções
negras de diferentes níveis sociais no MAB seria uma excelente oportunidade de
valorização daqueles que seguem renegados, não só pela sua identificação racial,
mas também por sua classe social. O recente debate sobre a criminalização do
funk37, por exemplo, é um reflexo de como determinadas produções culturais
negras e periféricas seguem sendo excluídas e estigmatizadas pela sociedade. O
museu, com o seu potencial de fetichização, poderia trazer à tona tais artes como
dignas de valor e respeito.
A perspectiva lançada pelo museu é funcional do ponto de vista pedagógico
e político, mas ainda assim não debate a fundo os outros abismos que separam
os negros das oportunidades e do reconhecimento, para além do racial, que se
desenvolvem na pluralidade da sociedade contemporânea.

Considerações finais
Falar de identidades é sempre desafiador, uma vez que ainda que haja pontos
comuns entre indivíduos de um grupo social ou racial, a experiência múltipla
vivida por cada um deles não nos permite definições abrangentes. A pluralidade
presente no início da visita ao MAB e o processo da construção de uma iden-
tidade negra singular não responde às multiplicidades de experiência de seres
humanos. Isto é, a abordagem identitária Plural-Singular do museu é desafiada

37 Mais sobre o tema pode ser visto aqui: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?d-


m=7186113&ts=1571777722775&disposition=inline.

78
pela pluralidade das vivências humanas, embrenhando-se num campo de disputa
entre o Plural-Singular-Plural.
E ao contrário dos movimentos sociais que são porosos a novas interpreta-
ções, os espaços de memória musealizam as demandas, monumentalizando-as sob
uma perspectiva, mais dificilmente alteradas do que a dinâmica dos movimentos
sociais.
No entanto, a nossa intenção e o desejo da própria curadoria em querer
condensar em um só espaço as experiências negras nos mostra que o racismo e a
exclusão social não são uma questão que somente um museu iria resolver. Pelo
contrário, assim como a memória dos tidos como vencedores da história estão
preservadas em diversos espaços sociais, por que deveria de haver um único es-
paço para a memória negra? Esse fator evidencia o quanto a sociedade ainda tem
muito a avançar sobre as questões raciais e dar oportunidade para outros inter-
locutores de pensarem sobre si e serem ouvidos, seja por meio do trabalho dos
coletivos apresentados no início desse capítulo, seja por meio da criação de mais
centros culturais, museus ou espaços de formação, como é o Museu da Maré,
citado na epígrafe deste texto.
O MAB faz um excelente trabalho, mas torçamos para que cada vez mais,
tenhamos diferentes perspectivas e abordagens sobre o tema, a ponto de conse-
guirmos responder com facilidade: onde está o patrimônio negro de nosso país?

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83
Primeiras Aproximações

84
Centro de Tradições
Nordestinas: a construção
da memória pessoal num
território nordestino em
São Paulo (1990-2000)

Rosávio de Lima Silva

Apresentação
A motivação inicial para a produção deste capítulo tem relação com a cons-
trução da memória pessoal no processo de produção do acervo do Centro de
Traduções Nordestinas (doravante, CTN ou apenas Centro). Como analisado
adiante, os usos do CTN – compreendido como um território nordestino na
cidade de São Paulo – por um de seus criadores, engendraram um contexto no
qual o território foi transformado em arena para a visibilidade das ações de seu
fundador.
Este texto é uma versão mais enxuta da pesquisa de iniciação científica reali-
zada por este pesquisador e que deu origem à monografia apresentada em 2014,
na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), intitulada “A (Re)invenção
do Nordeste em São Paulo”: Centro de Tradições Nordestinas (CTN), a Cons-
trução de um Território Migrante – (1990-2000), sob a orientação do Prof. Dr.
Odair da Cruz Paiva. A pesquisa no acervo do CTN ocorreu entre 2012 e 2013
e as considerações inscritas aqui são reflexos desse período, assim, as transforma-
ções naquele espaço, ocorridas nos anos posteriores, não são objeto desta reflexão.
Em São Paulo, como em qualquer cidade, muitas e múltiplas ações e moti-
vações políticas e culturais estão presentes na formação de espaços identitários.
Como sabemos, a relação entre os migrantes e o espaço urbano não se dá de for-

85
ma harmônica e a constituição dos territórios que expressam essa identidade é,
por si, uma expressão ambígua da afirmação e da negação da condição migrante.
(PAIVA, 2011)
Dessa maneira, o CTN, na década de 1990, expressou representações sobre a
identidade nordestina num contexto de enfrentamentos políticos, sociais e econô-
micos. Penna (1992) afirma que a memória pode ser induzida dentro de um mo-
delo de valores e ações. Paes (2009), por sua vez, explora a ideia de formação de ter-
ritórios diferentes a partir de representações e vivências em determinados espaços
culturais. A autora, ao hierarquizar financeiramente esses espaços, nos mostra que a
procura por divertimento constitui uma identificação de classe social. O migrante
nordestino constituiu espaços próprios a partir de seus referenciais.
A condição migrante não pode ser naturalizada; os migrantes percebem-se
migrantes no processo da migração, em contato com o outro. Nessa condição
há vários elementos como a nostalgia, a perspectiva de retorno para seu local de
origem. Com o tempo, a condição migrante pode se tornar definitiva e criar a
necessidade da formação de territórios assemelhados aos de origem. Dessa for-
ma, o tempo também age sobre os migrantes; na impossibilidade de realização
do tempo de regresso, este é recriado numa dimensão física e intangível que se
materializa na ambientação de um território. (SAYAD, 2000)
O CTN pode ser visto como uma expressão do território nordestino na
cidade de São Paulo. Fundado em 1991, em 2007, se tornou uma “organização
de sociedade civil de interesse público (OSCIP), sem finalidade econômica, de
caráter filantrópico e natureza privada” (ESTATUTO DO CTN). O espaço lo-
caliza-se na Rua Jacofer, n° 615, no Bairro do Limão, Zona Norte de São Paulo.
Sua área inclui uma igreja, parque de diversões, salão de dança com palco central,
espaço gastronômico, estacionamento e os estúdios da Rádio Atual38 que foi de
propriedade do empresário José de Abreu.

38 A Rádio Atual e o CTN se confundem como instituições fundadas pelo mesmo proprietário. A rádio foi
precursora do espaço CTN, parte integrante deste e vista por muitos frequentadores e funcionários do
Centro como definidora de seu território. Por mais que ambas as propriedades estivessem no comando
do mesmo presidente, são empresas distintas.

86
Imagem 1 e 2. Centro de Tradições Nordestinas (CTN). A presença do “Chapéu de
Couro” como ornamentação do portal de entrada do espaço que dá acesso ao saguão
central. Nesse local vemos um boneco gigante representando uma figura com elementos
“nordestinos”. Fonte: Fotos produzidas pelo autor em 2013

O CTN tem como centro de suas atividades a promoção de ações relaciona-


das à cultura nordestina, dentre elas: ações desenvolvidas na igreja, shows, ativi-
dades teatrais e ações sociais – como encaminhamento a empregos –, programas
de cooperativas voluntárias, cursos de alfabetização, além da venda e comerciali-
zação de artigos e culinária nordestina.
Os frequentadores do CTN são em sua maioria nordestinos e descendentes
radicados em São Paulo. A história do CTN relaciona-se com a história dos nor-
destinos e aspectos do que podemos considerar como uma afirmação identitária.
No transcurso das atividades do CTN, um acervo documental foi constituído
de maneira a registrar as atividades do Centro e, como veremos, salvaguardar a
presença e as ações de seu fundador.
O objetivo deste artigo é analisar elementos presentes no acervo do CTN,
de maneira a compreender aquele espaço como um território nordestino na ci-
dade imbricado com a memória pessoal de seu fundador. Dividirei este texto em
três momentos. No primeiro deles, “Memória e Arquivo Privado/Pessoal”, uma
breve discussão teórica que permeia a pessoalidade memorialística presente no
acervo do CTN. No segundo, intitulado “A Documentação do Acervo CTN”,
farei uma exposição e identificação de alguns materiais do acervo e no terceiro

87
momento, “Intencionalidades na Constituição do Acervo do CTN”, apresenta-
rei aspectos de uma memória construída a partir dos principais fatos da história
do Centro contidos em seu acervo documental. Do ponto de vista metodoló-
gico, privilegiarei na análise do arquivo do CTN, as revistas, jornais e material
iconográfico; na reflexão acerca desse material utilizei estudos sobre os temas da
memória, território e arquivos.

Memória e arquivo privado/pessoal


Há uma bibliografia importante que versa sobre questões relacionadas à
memória e arquivo privado pessoal; cabe ressaltar: Pollack (1992); Halbwachs
(2006); Hartog (2006); Meneses (1998); Heymann (2009); Abreu (1996). Por
ora, vale ressaltar a perspectiva de Halbwachs (2006) na qual a memória está
ancorada em um contexto espacial e permeada por elementos materiais. Para o
autor, o mundo físico determina a memória. Como veremos adiante, o arquivo
do CTN é uma expressão importante desse mundo físico.
Dois grupos documentais estão presentes no acervo do CTN: hemerote-
ca e acervo fotográfico. Esses foram compostos com a finalidade de registrar as
representações do Nordeste presentes no CTN, as ações culturais, políticas e
assistenciais nele desenvolvidas e a trajetória pessoal de José Masci de Abreu que
está mesclada com as questões institucionais. Em outros termos, a trajetória do
Centro se funde com a trajetória pessoal do presidente da instituição.
Faz-se necessário pensar a ideia de Nordeste presente no CTN como ex-
pressão marcada por estereótipos e por um conjunto multiforme de representa-
ções que confirmam diferentes “nordestes” formados em São Paulo. Por vezes,
no imaginário do migrante a noção de Nordeste paulatinamente é homoge-
neizada pela ação do tempo. A noção de Nordeste não pode ser vista como
um dado pronto e existente desde sempre e, sim, algo que está relacionado
com os processos variados. A reconstituição histórica da ideia de Nordeste para
Albuquerque Junior (2011) é um arquivo de imagens e enunciados, verdades

88
e várias visibilidades e dizibilidades39 direcionadas a esse local, principalmente
nos meios de comunicação.
O CTN emerge na cidade de São Paulo como materialização de uma região
inventada. Em seu espaço houve uma reinvenção de um território imaginado e
regionalizado que abarcou além da cultura, as contradições políticas envolvidas
nessa aparição em uma época tão conturbada para a presença nordestina, que foi
justamente os anos 1990.
Nesse território, por vezes tangível, por vezes intangível, por vezes eivado
por dizibilidades, José Masci de Abreu emerge como personalidade proeminente.
Fundador do CTN e da Rádio Atual, foi deputado federal entre 1995 e 2003.
Empresário do ramo radiofônico, filiado ao PMDB e PSDB, presidiu o PTN no
qual chegou a concorrer à Prefeitura de São Paulo, em 2000.
Com a fundação da Radio Atual, em 1990, e o CTN, em 1991, Abreu ob-
teve notoriedade, levando-o a direcionar o CTN a ações sociais vinculadas a po-
pulações pobres paulistanas e no Nordeste. Além disso, teve proeminência como
difusor da cultura nordestina em São Paulo. Tais ações lhe fez relacionar com seu
grande eleitorado, que de uma maneira maior, eram nordestinos radicados em
São Paulo, frequentadores do Centro. (ABREU 2002)
Segundo Heymann (2005), há duas valorizações do legado da memória
para um arquivo pessoal. O da memória acadêmica, que relativiza o valor das
homenagens para ideais civis e políticos, e os legados políticos propriamente
ditos, na medida em que há uma intencionalidade na preservação pessoal de
uma imagem pública.

39 Segundo Albuquerque Junior (2011), “dizibilidade” no que tange a “invenção do Nordeste” são séries
de dizeres e falas que são representadas em histórias, escritas ou oralmente transmitidas. Esses dizeres
e falas são passados de geração para geração, publicadas, divulgadas de alguma forma, até tomar parte
de uma imagem característica daquele lugar. São oriundas de vários lugares que dizem algo sobre esse
“Nordeste”. Nestes termos, “dizibilidade”, diz algo sobre aquela região e esses dizeres ficam registrados
na memória, tanto dos migrantes quanto dos locais onde estes últimos estão inseridos.

89
Imagem 3. José de Abreu (no centro à direita) ao lado de Fernando Henrique Cardoso
(no centro, à esquerda) no CTN, fotografia de 1994, durante a candidatura do empresário
à Câmara dos Deputados, ao mesmo tempo em que FHC se candidatava à Presidência da
República, ambos pelo PSDB. Fonte: Acervo do CTN

Dessa forma, podemos pensar que há uma espécie de resíduo histórico, como
pontua Heymann (1997), sobras de documentação arranjada no acervo institu-
cional feito para elevar a vida pública de uma pessoa, no caso, José de Abreu, o
que o torna personagem principal, sua vida e trajetória, evidenciada juntamente
com a instituição. No CTN, essa relação do que é institucional e pessoal se con-
fundem a todo instante.
Rigamonte (2001) destaca a intencionalidade política do seu criador em se
beneficiar do Centro – como arauto da cultura nordestina. Em comunhão com
seu projeto pessoal, destaca que muito mais do que exaltar a cultura nordestina, o
Centro eleva um projeto pessoal-empresarial. Esta perspectiva é semelhante a que
encontramos no estudo de Azevedo, Dulce e Vidal (1999). As autoras relatam
o que apreenderam ao visitar o CTN, em finais dos anos 1990: um espaço rela-
cionado aos seus apelos políticos e empresariais. Contudo, ressaltam a conexão

90
entre a presença do CTN e a afluência dos nordestinos radicados na cidade de
São Paulo no local, sendo de importância para ambos.
Abreu40 (2007) analisou o CTN do ponto de vista institucional e pessoal,
destacando a importância do Centro para história dos nordestinos e ressaltando a
personalidade de José de Abreu. No livro da esposa do fundador do CTN, assim
como nos arquivos do centro, a imagem do “pai fundador” é sempre positivada,
como veremos na apresentação do acervo a seguir.

A documentação do acervo CTN


No período em que realizei a pesquisa, tanto as revistas e jornais quanto o
material iconográfico não estavam organizados e não estavam instalados num es-
paço adequado. A produção desse acervo tem início em 2006. Em 2007, o CTN
tornou-se uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, pelo Minis-
tério de Justiça (28/09/2006) e de Utilidade Pública Municipal, pela Prefeitura
de São Paulo (05/03/2007).
Como já exposto, a documentação presente no acervo CTN está dividida em
dois fundos que agregam a maior parte das fontes – hemeroteca e fundo icono-
gráfico. Destacarei, de maneira pontual, outros documentos que fazem parte do
acervo, mas que não estão incluídos nos fundos citados anteriormente.
Farei a apresentação dessa documentação de maneira cronológica e elegendo
algumas questões/temas que me pareceram pertinentes para compreender qual
memória/história os responsáveis pelo CTN privilegiaram e, por decorrência, os
elementos que constituíram a identidade daquele território.
Em primeiro lugar, e no que se refere à hemeroteca, nos anos 1990 e 1991,
há uma profusão de recortes relativos à Rádio Atual e ao CTN. As matérias da-
queles anos mostram o surgimento da Rádio Atual e do CTN, em São Paulo,

40 Cristina Hellmeister Abreu é cofundadora do CTN juntamente com seu esposo, José de Abreu. Sua
obra apresenta um relato acompanhado da exposição de materiais (fotos, títulos, recortes de jornais) que
compõem o arquivo do CTN. A análise da autora mesclava sua versão da história do CTN e da versão
de José de Abreu. Esse livro teve a colaboração dos jornalistas Gildo Mazza e Claudimir Mazza.

91
como algo novo, ousado e representativo para a comunidade nordestina – uma
comunidade esquecida pela cidade.
O ano de 1992 corrobora os anos anteriores, apresentando notícias sobre a
Rádio, o primeiro ano de existência do CTN (festa de aniversário) e a sua visi-
bilidade na grande imprensa. O ataque realizado por skinheads ao Centro, em
24/09/1992, está registrado na hemeroteca, dando conta de que se tratava de um
fenômeno que se espraiou também para a cidade do Rio de Janeiro.

Imagem 4. O Jornal Estado de São Paulo de 1992 documenta o ataque dos skinheads no
Centro. Esse acontecimento colocou o CTN nas grandes mídias de comunicação.
Fonte: Acervo do CTN

No ano de 1993, há na hemeroteca notícias sobre o segundo aniversário do


CTN, o terceiro ano da Rádio Atual e a campanha SOS-Nordeste. Além das
questões comemorativas há notícias enfatizando ameaças aos funcionários do
CTN. Uma carta de 13/09/1993, direcionada a Rádio Atual mencionando o
nome do radialista Jorge Mauro tem grande destaque por seu teor racista. Na car-
ta há uma ameaça de morte ao radialista com símbolos nazistas. Naquele mesmo
ano, o ataque de skinheads também teve repercussão; há também notícias que
ressaltam ameaças de morte a José de Abreu nas várias mídias.

92
Imagem 5. Carta enviada a Rádio Atual, direcionada ao radialista Jorge Mauro. Clara
demonstração da carga de aversão à presença migrante na década de 1990 e ao espaço
CTN que, na época, representava a população nordestina. Fonte: Acervo do CTN

A partir de 1994, o CTN consolida-se junto à comunidade de nordestinos e


descendentes. Nesse ano, a candidatura de José de Abreu à Câmara dos Deputados
foi documentada, assim como as campanhas eleitorais. Em 1995, há na hemerote-
ca um vasto material sobre a atuação de José de Abreu como deputado, bem como
eventos ligados à política nacional e estadual. As ações do CTN e da Rádio Atual
ficam em segundo plano. Em 1996, a candidatura de José de Abreu à Prefeitura de
Osasco é amplamente destacada. O deputado é derrotado neste pleito; contudo, o
CTN e a Rádio são utilizados como instrumentos de divulgação de seus projetos
para prefeito assim como foram para deputado nos anos anteriores.
Em 1997, encontram-se materiais que apresentam notícias variadas, dentre
elas: enchentes, desemprego, propagandas sobre programas do CTN e seus pro-
jetos sociais, a campanha SOS Enchente daquele ano, copiando o sucesso do ano
de 1993 quando fizera SOS Nordeste. O bloco de 1998 também é diversificado,
apesar da candidatura do presidente do Centro para reeleição à Câmara dos De-
putados. Há notícias sobre atrações culturais que vêm ao Centro, curiosidades
sobre artistas e divulgação da programação de atividades no CTN. Muitas maté-
rias destacam a ação parlamentar de José de Abreu naquele ano.

93
Imagem 6 e 7. Caminhões da campanha SOS Nordeste estacionado dentro do espaço do
Centro em 1993. O espaço CTN e a circulação de pessoas. A campanha SOS Nordeste
criou uma movimentação muito grande e deu muita visibilidade para seu fundador e para
o CTN. Fonte: Acervo do CTN

A análise dos materiais presentes na hemeroteca para o ano de 1999 demons-


tra uma mudança na temática. Registra-se – e em certa medida, retoma-se – a
atuação do CTN e da Rádio Atual como difusores da cultura nordestina em São
Paulo. Um elemento novo neste âmbito é o surgimento do forró eletrônico41 e
suas ressignificações como o forró universitário. Em 2000, há várias reportagens
sobre cultura nordestina e sobre o Centro como seu difusor e 2000 é o ano de
maior sucesso do Centro e a marca desse sucesso foi o lançamento no canal de
televisão “Canal 14” do programa Nordeste Atual42, canal comunitário da Net.
Com relação ao material iconográfico, este corrobora muitas das notícias
veiculadas sobre o CTN e presentes na hemeroteca. Fotos de artistas nordestinos
visitando o CTN são uma constante. Tudo é registrado; o antes, o durante e o
depois dos shows. Em 1993, um Festival de música Nordestina é fartamente do-
cumentado por conta da presença de Patativa do Assaré, um dos maiores poetas
e representantes da cultura do Nordeste. Vários nomes associados aos ritmos da
música nordestina estiveram no Centro em seus anos iniciais: Dominguinhos,
Anastácia, Trio Virgulino, Elba Ramalho, Sebastião do Rojão. Houve a presença

41 O ritmo surgiu no Nordeste com a banda Mastruz com Leite em 1992; ultrapassou aquela região e se
alastrou por todo o país. O CTN incorporou o estilo como parte de sua programação mais explorada
musicalmente nesse espaço.
42 Programa protagonizado por Cristina Abreu e tem na cultura nordestina seu ponto de realização.

94
de cantores do novo forró: Frank Aguiar, Francis Lopes; as Bandas de Forró:
Mastruz com Leite, Calcinha Preta, Aviões do Forró e outros.
As fotografias produzidas/armazenadas no acervo do CTN possuem um ca-
ráter probatório das realizações de José de Abreu e sua esposa Cristina Abreu. A
seguir, vemos imagens da inauguração das estátuas de Padre Cícero, em 1991
– com destaque para a então Prefeita de São Paulo, Luíza Erundina –, e de Lam-
pião e Maria Bonita, em 1993.

Imagens 8 e 9. Inauguração da estátua de Padre Cícero com Luiza Erundina em 1991 e


José de Abreu ao lado de João Peitudo, filho de Lampião e Maria Bonita, com as estátuas
deles. Toda uma documentação é produzida, quando se tem a presença de figuras
ilustres; as fotografias são feitas por profissionais. Fonte: Acervo do CTN

Imagens 10 e 11. Construção da Igreja Imaculada Conceição em homenagem a Frei


Damião, em 1997. Todo o processo, desde o lançamento da pedra fundamental desta
obra, foi fotografado e acompanhado passo a passo. Fonte: Acervo do CTN

95
As fotografias também registram as modificações na musicalidade veiculada
no CTN no decorrer da década de 1990. No carnaval de 1996, houve apresen-
tação no palco, em clima de descontração, de anônimos dançando músicas de
axé, brega, sertanejo, pop e pagode. O lúdico, a festa, a musicalidade marcam
aspectos das tradições nordestinas presentes no espaço CTN.
As inaugurações das estátuas de Frei Damião e Padre Cícero, missas e cele-
brações estão registradas com presença massiva de fiéis nesses eventos. Destaques
para a inauguração da estátua de Padre Cícero, em 1991, que contou com a pre-
sença de Luiza Erundina, prefeita de São Paulo na época. A reinauguração dessa
estátua, em 2001, teve a presença do prefeito de Juazeiro do Norte, Carlos Cruz,
amigo de José de Abreu e apoiador do CTN. Cruz doou vários objetos de Padre
Cícero para a Igreja Imaculada Conceição.

Imagens 11 e 12. Fotografia de Frei Damião emoldurada ao lado de José de Abreu


dentro da Igreja Imaculada Conceição. Estátua do Frei ao lado da Igreja construída em
sua homenagem no local exato onde pousou o helicóptero que trouxe o religioso ao
Centro, pela primeira vez, em 1994.

A entrega do livro de assinaturas para a reabilitação de Padre Cícero à Dioce-


se do Crato foi feita em 1994 e foi fartamente registrada. O lançamento da pedra
fundamental da Igreja Imaculada Conceição em homenagem a Frei Damião, em
05/07/1997, a inauguração da Igreja, em 23/08/1998 e a relação do Frei com a
família Abreu e o CTN estão registrados no acervo.

96
O acervo do CTN guarda um conjunto de documentos emoldurados – apro-
ximadamente 40 quadros – registrando parte da trajetória de José de Abreu, bem
como suas conexões com diversos agentes. Certificados, serviços prestados à comu-
nidade, diplomas, prêmios, cartas de políticos foram escolhidos como documentação
de caráter honroso e elevados a um patamar diferenciado no conjunto dos outros
documentos. Segundo Rigamonte (2001), esses documentos foram colocados em
diferentes lugares do CTN, entre eles: no saguão de entrada e no corredor da Rádio
Atual, na sala de espera da administração, dentro da Igreja Imaculada Conceição,
enfim, em locais onde fossem visíveis ao público. A datação da maioria das molduras
coincide com as duas gestões parlamentares de José de Abreu, 1995-2003.
Uma fotografia emoldurada esteve exposta na entrada da administração do
CTN, no saguão da Rádio Atual, antes de ir parar no acervo. A foto registra a ida
ao CTN do Senador Eduardo Suplicy e da Prefeita de São Paulo, Luiza Erundina
no contexto do ataque dos skinheads, em 1992.

Imagem 13. Presença de Erundina e Suplicy no CTN. A visita se deu no auge das
repercussões sobre o ataque dos skinheads ao Centro no ano de 1992. Foto emblemática
que dá destaque para a presença política em relação a um acontecimento de âmbito
social nas dependências do CTN. Essa repercussão dos ataques neonazistas foi de suma
importância para a visibilidade do CTN enquanto espaço de resistência cultural.
Fonte: Acervo do CTN

97
Essa foto é marco importante, tanto para o CTN quanto para a carreira de
José de Abreu. Ela faz parte de uma série de fotografias que registraram visitas
dos políticos que discutiram os ataques e prestaram solidariedade ao Centro em
1992. Esses materiais foram escolhidos, dentre toda uma documentação, para
serem probatórios de um conjunto de relações, que mesclam nordestinidade,
política, memória individual e institucional.

Intencionalidades na constituição do acervo do CTN


Diante da quantidade de recortes de revistas e jornais presentes na hemeroteca
do CTN, algumas empresas foram contratadas para fazer o trabalho de organiza-
ção. Entre elas: Enigma Recortes de Jornais e Revistas, Cream Comunicações e Top
Clip Recortes. A rigor, essas empresas não foram contratadas apenas para organizar
um acervo, mas também para produzi-lo, pois deveriam coletar o que era noticiado
na imprensa envolvendo o CTN. Os recortes em maior profusão no arquivo são
oriundos de três jornais: Diário Popular, Folha da Manhã e Notícias Populares.

Imagens 14 e 15. Diário Popular de 1992: divulgação de como chegar ao CTN. Destaque
para a empresa Enigma Recortes de Jornal na junção de notícias. Notícias Populares de
1992, veículo de divulgação da rádio e do Centro. Há o logo da rádio embaixo do texto
que denuncia o ataque de skinheads ao Centro naquele ano. Fonte: Acervo do CTN

98
Alguns temas são recorrentes na documentação: política, cultura, religiosi-
dade e entretenimento – música, poesia, literatura e culinária. Como vimos, nos
primeiros anos de fundação do CTN, questões que envolviam o universo políti-
co foram mais frequentes; a partir de meados dos anos 1990 e fruto da consoli-
dação do CTN, as representações do Centro enquanto um território nordestino
ganha projeção.

Imagens 16 e 17. Fotografia da inauguração do busto de Luiz Gonzaga no CTN, em 1992.


Notícia de Jornal Diário de Pernambuco, de 1992. Nessa reportagem, há o destaque
para a festa promovida no Centro em prol da memória do artista em seu espaço. Fonte:
Acervo do CTN

A Rádio Atual e a ação dos radialistas foram, no período pesquisado, ele-


mentos importantes para a divulgação de um sentido de nordestinidade presente
dentro do Centro. Por razões evidentes, um veículo de comunicação como o
rádio direcionado a um público específico pode, potencialmente, ter um alcance
significativo. Nas notícias de divulgação publicitária há o slogan da rádio e, logo
abaixo, o dizer: “idealização José de Abreu”, o que reitera a presença do sujeito
nas ondas do rádio.

99
Imagens 18 e 19. Jornal mostra o surgimento da Rádio Atual. Outro jornal de 1991
enfatizando o surgimento do CTN. O destaque se dá na forma como era noticiada nos
meios impressos a identificação de um local para um determinado público. A Rádio era a
voz e o CTN, o lugar nordestino. Fonte: Acervo do CTN

Imagens 18 e 19. Paulo Maluf (à esquerda) em 1993 e Ciro Gomes (à direita) em 1991.
Visitas no CTN, recepção em todas as fotos com a presença de José de Abreu na sua
totalidade. Percebe-se nesses registros uma assessoria de imprensa que documentava as
presenças de políticos no Centro. Fonte: Acervo do CTN

A produção das fotografias era oriunda de várias iniciativas, desde funcio-


nários contratados para esse fim até as, digamos, espontâneas, tiradas por fun-
cionários por livre iniciativa ou registro pessoal que, por algum motivo, foram
juntadas e chegadas à guarda do acervo.

100
Considerações Finais
Nesta reflexão a análise da documentação do acervo do CTN apresenta um
conjunto de elementos sobre as conexões entre o público e o privado naquele
território. Em seus dez primeiros anos o CTN foi expressão e, digamos, rever-
berou um conjunto de questões presentes em vários contextos. Como vimos, a
trajetória pessoal e política de seu fundador representa uma marca identitária
importante do CTN. Os ecos da eleição de Luiza Erundina em São Paulo e o
levante de setores conservadores também reverberaram no CTN. Além disso, as
conexões do Centro com elementos da cultura nordestina, obviamente, estão
expressas na documentação.
No que se refere às conexões entre o público e o privado, vale reiterar alguns
elementos sobre a trajetória do fundador do CTN. Eleito como Deputado Fede-
ral no final de 1994, José de Abreu utiliza uma estratégia de publicização de sua
carreira política, tendo como centralidade o CTN. Atualmente, o CTN está dis-
tante das representações iniciais contidas na iconografia e em notícias de jornais
presentes em seu acervo. Mudaram os funcionários, a administração mudou, o
tempo mudou e os sentidos sobre o que vem a ser o Nordeste também. Os proje-
tos sociais, um dos pilares de sustentação do CTN não fazem mais parte daquela
imagem nordestina de outrora.
Essas transformações são uma das características dos territórios migrantes.
Como abordado por Paiva (2011), os territórios envelhecem e modificam-se.
Transformações sociais, mudanças no público visitante, novas diretrizes insti-
tucionais etc., são indícios do movimento em movimento que incide sobre os
territórios. O Centro, em sua primeira década de existência foi resultado de um
contexto histórico complexo, diverso e, em certa medida, eivado por contendas.
Na sua primeira década de existência, os migrantes, a presença nordestina na
cidade e o CTN encontraram novos caminhos, buscaram novas conexões e apre-
sentaram novas propostas de relação com a metrópole. Assim, incidem sobre o
CTN percepções particulares, dependendo da relação dos sujeitos com esse espa-
ço. Procurei apresentar neste capítulo um momento do Centro que foi marcado

101
pelos interesses pessoais e políticos de seu fundador, mas que, ao mesmo tempo,
demonstravam uma capilaridade com questões mais amplas.
Em outros termos, a eleição de Luiza Erundina, abriu possibilidades para
uma representação nordestina no espaço político de uma cidade que se notabili-
zava como branca e imigrante. O CTN, a Rádio Atual e mesmo José de Abreu
são signos desta conjuntura, bem como também o são os ataques dos skinheads.
A forma pela qual o acervo do Centro foi constituído e, obviamente, os interesses
que informaram essa construção representam uma captura particular da realida-
de social e política presente na cidade naqueles anos finais do século XX.
Nós, historiadores, sabemos da importância dos documentos para a constru-
ção da História. Sabemos também da carência de estudos sobre a constituição de
acervos e da importância desses, tendo em vista que ir ao arquivo significa muito
mais do que ter acesso a informações presentes nos documentos. Uma história da
constituição dos acervos é fundamental para que possamos compreender melhor
a ausência que informa a presença dos conjuntos documentais em determinado
espaço. Espero que este capítulo também possa servir a esse intuito.

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ria) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. São Paulo, 2014.

104
Museu de Holambra e as
Representações da
Colonização Holandesa

Jonathan de Souza Leite

Apresentação
Este capítulo contém observações realizadas por mim nos últimos 15 anos
sobre as representações da história da cidade de Holambra/SP presentes no Mu-
seu Holambra (MH). Utilizei como referências estudos sobre o museu, análises
sobre outras experiências de musealização da imigração, material documental,
entrevistas com diferentes agentes dessa imigração e com a comunidade local.
A origem do município de Holambra está ligada à imigração e colonização
holandesa, ocorrida nos anos seguintes, a término da Segunda Guerra Mundial.
A inserção de imigrantes causou um impacto naquele território, na medida em
que não se tratava de uma “terra livre”. Em outros termos, um olhar mais cui-
dadoso em relação à história da inserção dos holandeses e seus vínculos com
a comunidade ali estabelecida demonstra um conjunto complexo de questões,
algumas delas inseridas na expografia do museu e na forma como a imigração
holandesa para a região foi musealizada.
Segundo Cury (1999) o processo de musealização pode ser compreendido

“[...] como uma série de ações, sobre os objetos, quais sejam: aquisição, pesquisa, con-
servação, documentação, comunicação. O processo inicia-se ao selecionar um objeto
de seu contexto e completa-se ao apresentá-lo publicamente por meio de exposições,
de atividades educativas e de outras formas”. (CURY, 1999, p. 135)

Este capítulo tem por objetivo refletir sobre as representações da imigração


holandesa tendo como referência o acervo exposto no MH. Essas representações,

105
como sabemos, são construções erigidas segundo intencionalidades. No caso de
Holambra, a história apresentada no Museu foi resultado de uma série de ideações
que salientam a imigração holandesa como sinônimo de progresso e, para tal, co-
locou em demérito a presença da população estabelecida na região anteriormente.
Holambra, no interior do Estado de São Paulo, é uma cidade de cerca de
15 mil habitantes, segundo dados estimativos do IBGE de 2021. A cidade foi
fundada em 1948 a partir da criação de um projeto de colonização holandesa or-
ganizado pela K.N.B.T.B. (Associação dos Lavradores e Horticultores Católicos
Holandeses) que coordenou a chegada de imigrantes na Fazenda Ribeirão.
A cidade se destaca no cenário nacional e internacional como “Cidade das
Flores”, visto que é a maior produtora de flores da América Latina. Segundo
Corrêa (2001, p. 45), Holambra é sinônimo de um “simpático mundo bucólico”.
De acordo com a autora, a beleza de Holambra, os discursos e imagens do museu
local nos levam a imaginar a cidade como resultado de uma conquista heroica e
da cooperação entre imigrantes (colonos) e trabalhadores nacionais.
Para além de um olhar de “visitante” sobre Holambra, o vivido de seus mo-
radores – imigrantes holandeses, brasileiros descendentes de holandeses e brasi-
leiros estabelecidos na região – revela dimensões diferentes daqueles colocados
à disposição dos turistas. Em outros termos, apesar das representações “oficiais”
sobre a história de sua constituição, para aqueles que nasceram e ainda vivem na
cidade, a sua história pode ser apreendida de outra forma.
O MH representa um lugar importante para a análise dos meandros da
construção da história da cidade, daquilo que emerge como representações hege-
mônicas e sobre os ocultamentos. A construção de uma história, baseada na apre-
sentação da cultura material preservada, selecionada, organizada e apresentada,
demonstra, como veremos, interesses que estão longe de uma mera apresentação
de artefatos antigos ou curiosos.

O Museu Holambra
O MH tornou-se um dos principais instrumentos para a divulgação de uma
história marcada pelo sucesso e pioneirismo dos imigrantes holandeses. Segundo

106
Carvalho e Funari (2011), os museus são espaços de construção de identidades
culturais. O MH foi criado em 1988 em virtude das comemorações dos 40 anos
da imigração holandesa para a Fazenda Ribeirão. Segundo Jan Eltink, um dos
principais responsáveis pela manutenção do Museu, a ideia surgiu a partir do
imigrante Wim Welle e teve o apoio de um grupo de imigrantes.
Jan Eltink definiu como objetivos principais do grupo: homenagear os pri-
meiros imigrantes, valorizar a cultura de Holambra, comemorar o sucesso da
colônia, criar um espaço de memória afetiva para as gerações que viveram os anos
difíceis do início da instalação do projeto de colonização e demonstrar para as ge-
rações mais novas como o empenho e a dedicação geraram os frutos de Holambra
(Entrevista realizada pelo autor em 03/05/21).
Com uma área de cerca de 4.000 m², o Museu recebia – até março de 2019
– em média, 500 visitantes por semana que pagavam entrada no valor de R$
7,00. Segundo Jan Eltink, é com esse recurso que o museu realiza as reformas,
manutenções e salários dos funcionários; um complemento à essa renda é feito
com as vendas de poucos souvenires, livros, revistas e materiais audiovisuais. O
acervo atual do MH é composto por uma coleção de itens doados por diversas
pessoas e empresas de Holambra.

Apresentação dos espaços expositivos


A entrada do Museu se dá pelo antigo ponto de ônibus da Fazenda Ribeirão e
apresenta em destaque a identificação da Cooperativa Agropecuária de Holambra.
Internamente, a estrutura do MH pode ser dividida em cinco áreas de apre-
sentação; essas devem ser compreendidas como uma construção curatorial que
transmite mensagens a partir da cultura material exposta (CARVALHO, 2011).
De maneira ampla há uma construção narrativa que elege 1948 como o início
da história na região, ocultando a dinâmica social ali presente antes da chegada
dos holandeses.

107
Imagem 1. Antiga parada de ônibus. Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

Imagem 2. Entrada do Museu Holambra.


Foto produzida por Sophia W. M. Meewis, 19/12/2021

A primeira área é composta pela exposição de antigas máquinas trazidas da


Holanda ou adquiridas no Brasil ainda nas primeiras décadas do empreendimen-
to. Essa exposição tem como objetivo demonstrar o caráter técnico associado à

108
colonização holandesa e ocupa a maior parte do Museu. São implementos inova-
dores à época, como tratores e máquinas colhedeiras.
O caráter rústico da ambientação – feita a céu aberto – tem o objetivo de
apresentar ao visitante um ambiente de fazenda. O público pode observar um
sem-número de artefatos utilizados na agricultura. Para as novas gerações ou para
aqueles que vivem em contextos urbanizados, os instrumentos expostos induzem
curiosidade. São aquilo que Pomian (1984) denomina como semióforos, ou re-
presentantes do invisível; artefatos que materializam uma ausência na presença.
A tecnologia empregada pelos holandeses é apresentada de maneira a contrastar
a agricultura empreendida anteriormente na Fazenda Ribeirão. Há uma ausên-
cia – presença do passado anterior à imigração holandesa cujos desdobramentos
constituirão no discurso expositivo formas veladas de discriminação e segregação
reforçadas nos demais espaços do Museu.

Imagem 3. Área externa do Museu. Ambiente que apresenta vários artefatos utilizados na
agricultura. Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

109
Imagem 4. Área externa do Museu. Ambiente que apresenta vários artefatos
utilizados na agricultura. Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

Imagens 05 e 06 – Tratores e implementos agrícolas na área externa do Museu.


Fotos produzidas pelo autor, 03/05/2021

A segunda área do MH é composta por réplicas das casas construídas por


holandeses e brasileiros nos primeiros anos da colonização. A primeira casa (ima-
gem 7) é de alvenaria e toda decorada com utensílios domésticos, bem pintada,
com detalhes como cortinas e toalhas, além do fogão na parte interna, destacan-
do-se a chaminé e o banheiro interno na casa. A segunda casa (imagens 09, 10

110
e 11) é de pau-a-pique, rebocada com cal e com janelas de bambu. Destacam-se
nessa casa o fogão a lenha e o banheiro fora da casa, prática comum nas casas do
interior do Brasil.
Segundo, Jan Eltink, já existiam cerca de 20 casas de pau-a-pique em 1948,
na fazenda Ribeirão. As primeiras famílias que chegaram foram acomodadas nes-
se modelo de casa tradicional, assim como os brasileiros que já viviam na fazenda.
Porém, com a chegada de novos imigrantes as casas de alvenaria passaram a ser o
padrão de construção para as famílias holandesas, sendo as de pau-a-pique ainda
muito comuns para os brasileiros.
O discurso expositivo como sabemos não é neutro. É possível inferir que ao
se demonstrar as diferenças, sobretudo a disposição dos itens internos das casas,
procura-se reforçar o ideário de progresso representado no discurso museal acerca
da colonização holandesa. Ao apresentar ambas as residências, o MH reforça a
noção na qual Holambra foi erigida a partir do avanço e progresso que somente
os holandeses puderam oferecer.

Imagem 7. Modelo de Casa dos Imigrantes Holandeses.


Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

111
Imagem 8. Interior da Casa dos Imigrantes Holandeses.
Foto produzida por Sophia W. M. Meewis, 19/12/2021

Imagem 9. Interior da Casa dos Imigrantes Holandeses.


Foto produzida por Sophia W. M. Meewis, 19/12/2021

112
Imagem 10. Interior da Casa dos Imigrantes Holandeses.
Foto produzida por Sophia W. M. Meewis, 19/12/2021

Imagem 11. Parte externa do Modelo de Casa dos Brasileiros.


Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

113
Imagem 12. Parte externa do Modelo de Casa dos Brasileiros.
Foto produzida por Sophia W. M. Meewis, 19/12/2021

Imagem 13. Parte interna do Modelo de Casa dos Brasileiros.


Foto produzida por Sophia W. M. Meewis, 19/12/2021

114
Imagem 14. Parte interna do Modelo de Casa dos Brasileiros.
Foto produzida por Sophia W. M. Meewis 19/12/2021

A terceira área de exposição é uma reconstrução do antigo “Klok Digital”


da Cooperativa Velling Holambra. Os itens que compõem esse espaço foram
doados pela própria cooperativa de flores e se tornou uns dos espaços de maior
interesse dos visitantes e se refere ao sistema desenvolvido na Holanda de leilão
de flores. Além do “Klok”, a área é composta pelas mesas eletrônicas do leilão e
de um vídeo-promocional do Velling Holambra.
O “Klok” funciona como um relógio de leilão eletrônico: cada comprador
possui um botão de lance em sua mesa e conforme os lotes de flores e plantas são
apresentados os lances são realizados; como um grande relógio, os valores dos
lances são apresentados, bem como o número de referência do respetivo com-
prador que fez o lance. O tempo do leilão de cada lote é restrito ao tempo que o
carrinho com o produto atravessa a frente da sala.
Na imagem de referência (imagem 9) temos o “relógio” com os números
digitais referentes ao leilão, bem como as mesas com os botões para os lances.

115
Imagem 15. Representação do “Klok” da Velling Holambra.
Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

Os visitantes podem participar de uma simulação do leilão (com a marcação


de lances, botões e valores). A área se tornou um atrativo especial. Nesse espaço,
o Klok reforça o sentido de inovação tecnológica trazida pelos holandeses. Aqui,
a venda das flores ganha um aspecto curioso, pitoresco e, em certa medida, lú-
dico. O Klok é o único espaço no Museu que apresenta a atração principal de
Holambra: as flores. Todo o trabalho humano inserido na produção dessa merca-
doria, cuja estética é aprazível aos olhos, não emerge. A produção industrial dessa
mercadoria em seus diferentes aspectos, entre eles os viveiros que mais parecem
linhas de produção, são elementos que trazem dimensões não tão palatáveis das
inovações tecnológicas.
A quarta área e a de maior destaque do Museu é sem dúvida a exposição
composta por um Foto Hall.
Logo na entrada, temos um dos principais itens do acervo do MH. Trata-se
de uma réplica da primeira capela da fazenda. A entrada é marcada pela presença
da religiosidade católica, essencial para compreensão dos laços que formaram a
colônia. Entre os artefatos da reconstrução da capela estão itens cedidos pelas
irmãs do “Santo Sepulcro”, ordem religiosa destacada para dar apoio espiritual,

116
educacional psicológico aos imigrantes. Entre as peças que chamam a atenção, o
destaque é o Sino Original trazido pelas irmãs da Holanda. Esse sino esteve en-
terrado durante alguns anos para não ser levado pelos soldados nazistas durante
a ocupação alemã da Segunda Guerra Mundial.

Imagem 16. Entrada do Foto Hall. Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

Imagem 17. Parte Externa do “Foto Hall”, destaque para a réplica da Capela.
Fotografia produzida pelo autor em 03/05/2021

117
Imagem 18. Altar no interior da réplica da Capela. Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

Na sequência, temos artefatos trazidos pelos imigrantes holandeses como


malas, instrumentos musicais, utensílios domésticos, fogão caseiro e fotografias;
O que chama a atenção é que em meio a tantas fotos sobre a história de Ho-
lambra – com autoridades brasileiras e holandesas, imagens das construções da
Cooperativa, casas e festas dos holandeses e do cotidiano da colônia – quase não
é possível perceber a existência de brasileiros.
Como vimos anteriormente, a musealização no MH é composta de escolhas
que constroem narrativas sobre a colônia reforçando o sucesso da ação holandesa
em Holambra. Evidentemente, isto não ocorre apenas no MH, a literatura sobre
a musealização da imigração relacionada a outras correntes nacionais e étnicas
reedita essa máxima. (PAIVA, 2013; 2017). A musealização materializa um pro-
cesso de escolhas entre o que merece ser mostrado ao público e aquilo que fica em
segundo plano, sempre mantendo a relação de segregação desenhada na cidade e
verificada por Leite (2008).
Mesmo considerando que a história de Holambra foi marcada pelo trabalho
dos brasileiros, os visitantes do MH dificilmente percebem a existência deles. As-
sim temos a demonstração de uma história marcada pelo heroísmo dos imigrantes

118
holandeses em desbravar a terra e obter sucesso, afastando toda participação de
brasileiros na obtenção desse sucesso.
O Foto Hall é composto por uma profusão de artefatos e imagens que apre-
sentam a história de Holambra e informações sobre a Holanda. A área de exposi-
ção é encerrada por um espaço de apresentação audiovisual, no qual documentá-
rios e pequenos curtas-metragens são apresentados. Entre as exibições, o destaque
é um documentário holandês sobre a colônia de Holambra, produzido em 2008.

Imagem 19. Corredor do Foto Hall. Foto produzida por Sophia W. M. Meewis, 19/12/2021

Imagem 20. Foto panorâmica do Foto Hall. Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

119
Imagem 21. Interior do Foto Hall com destaque para fogão e utensílios doados por
famílias holandesas. Foto produzida por Sophia W. M. Meewis, 19/12/2021

Por fim, a quinta área expositiva do Museu é chamada de “Espaço do Café”.


Segundo Jan Eltink, esse espaço foi idealizado como um local de integração. Para
ele, os visitantes do Museu podem se sentir em casa, enquanto os guias e membros
da comissão passeiam entre as mesas contando curiosidades e respondendo dúvidas.

Imagem 22. Espaço do Café. Foto produzida pelo autor, 03/05/2021

120
Considerações Finais
O MH representa, no contexto da cidade, o único espaço dedicado à histó-
ria da localidade. Uma história construída/representada pela exposição de tridi-
mensionais e bidimensionais que, como apontado anteriormente, apresenta um
conjunto de remanescentes que foram preservados por um grupo cioso da sua
ancestralidade. É importante considerar que o MH é composto, sobretudo, por
peças, artefatos, itens e imagens doadas. Segundo Abreu (1996), o doador é, em
grande, parte responsável pela fabricação das memórias apresentadas no espaço
musealizado.
A história apresentada aos visitantes do MH foi elaborada a partir da seleção
dos elementos que foram doados para cumprir a função de narrar, de forma po-
sitiva, a inserção e presença dos imigrantes holandeses e de seus descendentes. A
ação dos doadores no processo de musealização é tão importante quanto à daque-
les que cumprem a função de curadores. Esses selecionam o que consideram mais
significativo, mais digno de ser exposto e que, evidentemente, traga (ao doador)
um papel de destaque na exposição e na história da cidade.
A história musealizada é constituída de um sem-número de escolhas e parte
delas ocorre antes mesmo da chegada do artefato ao museu. Dado o perfil dos
doadores é de se esperar que a história de Holambra tenha como centralidade os
imigrantes holandeses e seus descendentes, ocultando e subvalorizando a partici-
pação dos brasileiros. Por outro lado, o MH, apresenta ao visitante uma proposta
de musealização da imigração holandesa para a região na qual a mensagem a ser
transmitida deve ser decodificada, entre outros formas, na análise da materiali-
dade exposta.
O MH apresenta uma representação da história de Holambra baseada numa
unidade de indícios que estão diluídos por todo o percurso expositivo. De acordo
com Cury (1999), os processos de musealização estão relacionados à uma série de
ações sobre os objetos apresentados; entre elas, a utilização dos artefatos expostos
como signos de um discurso a ser compreendido pelo visitante. No ambiente
museal, mensagens transmitidas por meio da cultura material são particularmen-
te convincentes, dado o caráter probatório que os artefatos guardam em si. O

121
MH apresenta-se como espaço reprodutor da narrativa hegemônica sobre a cida-
de e sua história e como importante instrumento mercadológico para o turismo
de Holambra.

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123
Representações da História
Nacional em Itu nas Páginas
do Guia do Museu Republicano
Convenção de Itu

Ana Helena Gomes Souza

Considerações preliminares

O tempo tornado espaço, o espaço tornado instrumento de demonstração de uma ordem


natural, e a ordem interpretada por intermédio de indícios. Esta parece ser a receita ideal
do museu. (BITTENCOURT, 2003, p. 156)

Os primeiros museus no Brasil datam do século XIX e foram organizados


tendo como fundamentos a história natural. Segundo Lopes (1997 apud BRE-
FE, 2005, p. 52) o surgimento dessas instituições esteve associado, tanto à trans-
ferência da família real quanto à novas perspectivas culturais advindas com o
processo de independência. Nesse ambiente, o surgimento de uma elite intelec-
tual, vinculada ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), produziu
trabalhos que procuraram dar sentido à uma identidade brasileira. Assim, “os
museus aparecem nesse panorama como marcos contextuais para a caracteriza-
ção das diferentes fases de introdução das ciências naturais do Brasil.” (BREFE,
2005, p. 51)
Os museus naquele período possuíam um caráter enciclopédico. O Museu
Real – posteriormente nominado como Museu Nacional (1818), o Museu Pa-
ranaense (1876), o Museu Botânico do Amazonas (1883) e o Museu Paulis-
ta (1890) são exemplos importantes dessa tendência. O sentido enciclopédico
estava fundamentado no estudo das ciências naturais com coleções zoológicas,

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botânicas, mineralógicas, arqueológicas, históricas e numismática (moedas e me-
dalhas), pautadas principalmente nas ideias darwinistas e evolucionistas.
As coleções dos museus enciclopédicos possuem características específicas
da região onde se encontravam. No caso do Museu Paulista, seu perfil esteve
atrelado aos estudos do campo das ciências naturais com maior incidência para a
zoologia. Seu diretor, o zoólogo Hermann Von Ihering, dirigiu a instituição entre
os anos de 1894 a 1916; durante esse período, as coleções, digamos, históricas,
ficaram relegadas a um segundo plano. Há que se considerar, entretanto, que
a celebração da história esteve presente no museu desde seu princípio, dada a
íntima conexão do edifício-monumento com a Proclamação da Independência,
além, evidentemente da presença do quadro de Pedro Américo, “Independência
ou Morte”, exposto como destaque no salão nobre.
Em 1916 com a saída de Von Ihering da direção, o museu passou por mu-
danças. No ano seguinte, Taunay assume a direção e empreende esforços para que
o Museu Paulista fosse transformado num museu de história. Entendido como
continuidade do projeto de museu de história, o museu Republicano Convenção
de Itu abre as suas portas com o intuito celebrativo, a comemoração do cinquen-
tenário da convenção Ituana, em 18 de abril de 1923. A transformação da casa,
onde se realizou a reunião, um museu começou a se concretizar em 1921.
Neste capítulo analisarei a primeira exposição de longa duração do Museu
Republicano Convenção de Itu, aberta ao público em 1923. A análise terá como
centralidade o Guia do Museu Republicano Convenção de Itu, publicado em 1946
e de autoria de Affonso de d’Escragnolle Taunay. Dessa forma, o objetivo central
deste capítulo é a reconstituição da primeira exposição permanente do Museu
Republicano tendo como elemento central o Guia.

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Imagem 1. Capa do Guia do Museu Republicano Convenção de Itu, 1946.
Imagem produzida pelo autor. Acervo pessoal

Estudos de exposições realizadas em museus a partir de catálogos guardam


dificuldades em sua realização, dado o distanciamento entre ambos (exposição
e catálogo). Em outros termos, é preciso considerar que o catálogo – por vezes
o único registro remanescente – é uma representação da exposição e, evidente-
mente, não sua cópia fiel. Dentre os estudos que trabalharam numa perspectiva
aproximada ao que farei neste capítulo, há a instigante reflexão de Bittencourt
(2003) sobre as exposições presentes no Museu Histórico Nacional (MHN). De
acordo com o autor, “é difícil perceber a unidade de princípios que ordenava o
interior dessas instituições” (BITTENCOURT, 2003 p. 152). Bittencourt tenta
reconstituir aquele ambiente museal por meio de fotografias, lista de acervos e
outros documentos. O caminho, então, é seguir pistas, indícios quaisquer propo-
sições dos agentes envolvidos no processo de formação da exposição.

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Bittencourt (2003) analisou as exposições presentes nas primeiras décadas do
Museu Histórico Nacional (entre os anos 1920 a 1940), no período em que a ins-
tituição esteve sob a direção de Gustavo Barroso e, segundo o autor, o MHN era:

Um bazar de Maravilhas, constituído pela “miscelânea histórica” acumulada pelas ati-


vidades de recolhimento da instituição desde seus primórdios. [...] O que é difícil
perceber é a unidade de princípios que ordenava o interior dessas instituições. E essa
unidade fundava-se nos princípios conceituais unívocos que orientavam a formação
de acervos e a atuação técnico-profissional dos servidores. (BITTENCOURT, 2003,
p. 151)

A perspectiva de análise de Bittencourt possibilitou um caminho interes-


sante para que utilizasse o Guia como fonte basal na reconstituição da primeira
exposição no Museu Republicano.
O estudo de Mariana Martins sobre: A Formação do Museu Republicano Con-
venção de Itu (2012), contribuiu para discussão e produção deste trabalho, na
perspectiva da cultura material. A reconstituição do MRCI, no período de sua
formação (1921-1946) contribuiu para o entendimento da exposição de longa
duração, finalizada em 1946, pelo então diretor Taunay, analisada neste capítulo.

Affonso d’Escragnolle de Taunay: autor do Guia e o


homem à frente do Museu
Engenheiro de formação e professor de química, física experimental e his-
tória natural, entre 1899 a 1917, Taunay trabalhou como docente na Escola
Politécnica de São Paulo. Seus estudos sobre história começam com o trabalho
intitulado Crônica do tempo dos Felipes, de 1910, o que lhe abriu a porta para o
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), e logo depois para o Instituto
Histórico Geográfico São Paulo (IHGSP) em 1911.
No IHGSP, publicou trabalhos sobre o passado paulista e as ‘glórias’ desses
relacionadas à história da nação. Brefe (2005) verificou pela correspondência
institucional a ativa troca de ideias e informações entre os membros do IHGSP e
Taunay. Discussões e orientações sobre a elaboração da nova seção de História do

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Museu Paulista renderam no seu primeiro ano como diretor, uma sala dedicada
à história de São Paulo.
Além de diretor, atuava como curador e especialista recolhendo, classifican-
do e colocando sob guarda os documentos referentes à história e geografia do
Brasil. Oficializada em 1922, e sob seu o comando, a seção de História do Museu
Paulista, ganhou cada vez mais destaque em relação às outras coleções do Mu-
seu. Segundo Brefe (2005) as exposições de zoologia, história natural e botânica
conviviam com a de história sob uma constante tensão, até que, em 1940, com o
desmembramento do acervo e a criação do Museu de Zoologia, o Museu Paulista
passou a ser exclusivamente histórico.
Em discurso proferido em cerimônia de posse de novo sócio do IHGSP, Tau-
nay deixou claro a importância dos paulistas, tanto para os estudos da história
nacional quanto para os estudos regionais.

Assim é que, longe de se restringir aos limites do vasto campo de estudos constituídos
pelas pesquisas da história local e a celebração das glorias paulistanas, sempre se preo-
cupou o Instituto com as questões nacionais, dedicando aos estudos brasileiros tanta
atenção quanto aos regionais. É o que inspira a tradição: assim também nunca coube
a São Paulo dentro de suas fronteiras. Eram os paulistas um punhado de homens
ainda e, como que sufocados num âmbito que tinha dimensões para abrigar qualquer
nação europeia (sic), já procuravam devassar os mistérios do continente sul-americano.
(TAUNAY, Apud BREFE, 2005, p. 61)

Responsável por recolher, classificar, e guarda dos documentos referentes à


história e à geografia brasileira, o IHGSP produziu e incentivou um tipo de na-
cionalismo paulista, não limitou a suas contribuições à historiografia da época,
adentrando o Museu Paulista e o Museu Republicano Convenção de Itu. Segun-
do Brefe:

Sem dúvida por meio desse investimento direcionado sobre as imagens relativas ao
passado paulista, Taunay foi um dos responsáveis pela difusão e fixação da ideia de um
nacionalismo paulista, já esboçados pela produção historiográfica do IHGSP, que vê
o paulista, em suas várias gerações – bandeirante, tropeiro, cafeicultor –, como o res-

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ponsável pelo progresso não só do estado de São Paulo, mas de todo o país. (BREFE,
2005, p. 110)

Taunay como homem de seu tempo expressava os interesses de uma elite


paulista, interessada em sua projeção no ambiente histórico, político e cultural
nacional. Sua produção historiográfica ganhou concretude, tanto no Museu Pau-
lista quanto no Museu Republicano, como veremos a seguir.

A assembleia soleníssima, em que foram tomadas deliberações fundamentais e vitais


para a arregimentação democrática, realizou-se em Itu e teve a denominação de Con-
venção de Itu. [...] Celebremos o passado. Entreguemos a casa modesta, onde nasce-
ram o Partido Republicano e a democracia brasileira, ao preito do povo e especialmen-
te da mocidade, para que ela transmita, de geração a geração, o fogo sagrado desta fé
vigorosa nos destinos da nossa terra [...] (TAVARES, 1921, apud SOUZA, 2003, p.
217-218)

O discurso proferido pelo deputado Mário Tavares em 1921, deixou clara


qual seria a função do antigo sobrado de Almeida Prado na cidade de Itu. O
museu seria instalado na mesma casa onde ocorreu, em 18 de abril de 1873, a
reunião que, posteriormente, foi considerada como originária do Partido Repu-
blicano Paulista (PRP). Construída pelo fazendeiro Almeida Prado, na década de
1850, a edificação passou por reformas em 1867. A reforma atualizou os cômo-
dos dianteiros dos dois pavimentos e a fachada principal do sobrado. O imenso
beiral que avançava na área da calçada cedeu lugar à platibanda, e a parte superior
da fachada ganhou tratamento em azulejos portugueses. (SOUZA, 2003, p. 213)
Como propriedade do Estado de São Paulo, em 1922, o sobrado passou
por adaptações em seus espaços internos; essas foram executadas para contem-
plar a data de comemoração do cinquentenário da Convenção de Itu. Pare-
des foram derrubadas e alguns cômodos foram suprimidos; a “cúpula do PRP
acompanhou de perto o andamento das obras e determinou que nos cômodos
utilizados pela convenção republicana não se fizesse qualquer mudança, e neles,
absolutamente, não se tocou; estão tal qual eram, em 18 de abril de 1873”.
(SOUZA, 2003, p. 221)

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Imagem 2. Fachada do Museu Republicano Convenção de Itu, 1946.
Imagem produzida pelo autor. Acervo pessoal

O Museu Republicano Convenção de Itu: a exposição de 1946 nas páginas


do Guia

O Guia

Desde muito era meu intento publicar este guia do Museu Republicano Convenção de
Itu [...] Esperei, porém, que os trabalhos de azulejamento do grande saguão do edifício
estivessem concluídos para realizar tal desideratum. [...] esta iniciativa que, estou certo,
será apreciada pelo público paulista e nacional, informando do que de mais saliente
existe na casa da tradição que é o Museu da Convenção de Itu. (TAUNAY, 1946, p. 3)

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Guia do Museu Republicano “Convenção de Itu”, autoria de Taunay, foi im-
presso pela Indústria Gráfica Siqueira e distribuído pelo Departamento Estadual
de Informações em 1946. A capa contém o ano da publicação, a imagem de um
oratório (imagem 1) e o título. Não possui índice. As partes são identificadas
por números romanos e os títulos em letras garrafais. Os textos explicativos são
intercalados por fotografias do museu. Os textos estão organizados cronologica-
mente, seguem-se a descrição dos espaços, objetos da exposição e fotografias dos
espaços expositivos.

Imagem 3. Parte I: Fundação do Museu Republicano Convenção de Itu, p. 5.


Imagem produzida pelo autor. Acervo pessoal

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Taunay organizou o Guia de maneira a apresentar os espaços de exposição
de acordo com sua alocação no edifício. As salas são identificadas de maneira
alfanumérica. Para as salas do primeiro andar (que corresponde ao piso térreo),
utilizou a letra A e suas derivações: A1, A2, A3 e A4. As salas do segundo andar
foram nominadas como: B1, B2, B3, B4 e B5. Algumas salas foram apresentadas
também por seu nome. Sala A2 Saguão Nobre, A3 Prudente de Morais, B1 Salão
de Honra, B4 Salão Grande, e B5 Grande Salão. Além disso, há uma subdivisão
em partes, nominadas como Parte I, Parte II, Parte III e Parte IV. Essas serão de-
talhadas no decorrer do texto.
No Guia há 74 páginas de textos numeradas e 17 páginas com fotografias
da exposição, que não são contabilizadas na numeração. Ao todo, o Guia possui
23 fotografias, sendo uma da fachada do museu, três do salão de honra, dez dos
painéis de azulejos, uma da sala A1, uma da sala B2, duas da sala B3, duas da sala
B4, uma da sala B5, e duas do jardim.
Para a parte I “Fundação do Museu Republicano Convenção de Itu”, o autor
dedicou as 10 primeiras páginas para a explanação de fatos históricos locais que
culminam na convenção de Itu, na formação do PRP e na constituição do Museu
como um projeto de Estado/partido. Conclui essa parte com uma breve descri-
ção do edifício.
A parte II não possui título. O texto traz dados coletados da instituição já em
funcionamento, destacando os indicadores de visitação de maneira a demons-
trar números ascendentes. “Sua frequência de visitantes, a princípio muito baixa
(2.5000 pessoas por ano), cresceu razoavelmente com o decorrer dos anos, e no
último biênio, muito, sendo de mais de doze mil visitantes em 1945 [...]” (TAU-
NAY, 1946, p. 11). Finaliza essa segunda parte com uma fotografia da fachada do
museu (imagem 2), seguida por duas fotografias do salão de honra (Imagem 4).

A exposição: Primeiro Andar, parte III

Os textos que descrevem a exposição aparecem a partir da parte III com o


título Primeiro Andar, O saguão do museu (A2). Taunay dedicou-se a escrever um
guia que indicasse ao visitante o que ele deveria ver e como ver sua representação

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da memória republicana. Começando pelo saguão do museu, descreve o espaço
combinando informações de datas, nome dos autores e de suas obras, seguidas de
explicações sobre o evento histórico que representa:

Dividem-se os painéis decorativos que azulejam o grande saguão do Museu de Itu, em


duas categorias, os que representam composições pictóreas evocando cenas da história
local nos séculos XVII, XVIII e XIX. (TAUNAY, 1946, p. 14)

Com o intuito de manter uma continuidade visual em relação a fachada do


sobrado, e de ocupar o amplo espaço do saguão de entrada, Taunay optou por
representar nesse espaço a história da cidade de Itu. Os painéis foram “o ponto
de finalização do projeto de museu que se estendeu por 23 anos” (MARTINS,
2012, p. 114) e hoje, como na exposição de 1946, são o ponto de partida do visi-
tante. Os painéis possuem a função para além de objetos, há uma função estética
e didática. Segundo Zequini, “Este azulejamento, corresponde a um conjunto
de azulejos pintados sobre temas e personalidades relacionadas à História de Itu,
que haviam sido encomendados ao pintor Antonio Luiz Gagni para compor a
exposição inaugural.” (ZEQUINI, 2003, p. 197)
A construção de narrativas por meio de imagens – independentemente de
seu suporte – é algo comum em instituições como os museus. No caso dos azu-
lejos, vale lembrar que foram utilizados nos monumentos no Caminho do Mar,
em comemoração ao Centenário da Independência. No museu, eles estão re-
lacionados à história de Itu e foram pensados em três séries: “a dos painéis de
composição, evocando lances dos fatos ituanos, a das reproduções de antigos
documentos iconográficos locais, e as dos retratos de vários personagens de prol
nascidos na velha cidade paulista”. (TAUNAY, 1946, p. 13), Ao todo foram pro-
duzidos 50 painéis de azulejos para o museu.
Para a primeira série, as dos lances e fatos ituanos, foram feitos 19 painéis,
representando os seguintes episódios: Missão de Maniçoba (1553), fundação de
Itu, por Domingos Fernandes e Cristovam Diniz (1610), e elevação de Itu à Vila
(1657), entre outros. A segunda série, Taunay descreve “como painéis documen-
tais” (TAUNAY, 1946, p. 14). Composta por 19 painéis de azulejos represen-

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tando: engenho de cana (1826), fabricação de açúcar (1826), beneficiamento
do café (1850), tropa cargueira transportando (1850), entre outros. A terceira é
composta por 12 painéis, e distribuídos em pares, no saguão anexo, os retratos
dos ituanos “ilustres”. Com o objetivo de representar fatos considerados impor-
tantes para a composição do espaço urbano a narrativa segue uma linha, não
cronológica e evolutiva, tendo como ponto de chegada a República.
Com o olhar mais apurado percebe-se linhas que dividem, organizam e es-
tabelecem uma hierarquia (imagem 5). A parte inferior dos painéis de azulejos
são relativos à história local: no centro, as vistas históricas da cidade e, no alto, os
“retratos de vários personagens de prol nascidos na velha cidade paulista” (TAU-
NAY, 1946, p. 14). A narrativa expressa nos painéis não segue uma cronologia, os
eventos mais antigos ficam na extremidade da composição; Taunay não se preo-
cupou em criar uma linha de tempo visual formadas pelas datas dos painéis, dife-
rente do que ele fez no texto do Guia do Museu, publicado de 1946. Contudo, o
próprio nome que atribui ao espaço, Vestíbulo, aquilo que inevitavelmente ante-
cede ou que forçosamente leva a algo, é um indicativo de seu objetivo expositivo.

Imagem 4. Parte III: Primeiro andar r, vestíbulo, saguão do museu (A2). I. Imagem
produzida pelo autor. Acervo pessoal

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Ainda no primeiro andar, sobre a sala A1, Taunay descreve:

Consagra-se esta sala a relembrar os diversos movimentos republicanos no Brasil, cul-


minados pela revolução de 15 de novembro de 1889. A esta recordam os retratos dos
Marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto [...] Diversos quadros esquemáticos
mencionam os principais vultos dos movimentos [...] Nas vitrinas expõe-se numerosos
jornais do Rio de Janeiro e S. Paulo [...] Expõe-se ainda a banda usada pelo Marechal
Manuel Deodoro da Fonseca em seus últimos anos [...]. (TAUNAY, 1946, p. 15)

Imagem 5. Parte III: Primeiro andar, sala A1.


Imagem produzida pelo autor. Acervo pessoal

Também no primeiro andar, o visitante se depara com documentos do pe-


ríodo de propaganda republicana. Os retratos de líderes das revoltas (revolução
baiana, pernambucana, rio-grandense, mineira, entre outras) identificam os per-
sonagens-chave dos movimentos e o culto aos mesmos pelas suas ações em prol
da República. Periódicos certificam os eventos como verdadeiros e dignos de
prestígio. A posição dos retratos, sempre altos em relação à linha de visão do
visitante, demonstra hierarquia e grandeza dos retratados.

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Ainda no mesmo andar a sala (A3), dedicada a Prudente de Morais, se “en-
chem os móveis, quadros, livros, objetos diversos que existiam no gabinete de
trabalho” (TAUNAY, 1946, p. 15). Mobílias em materiais nobres, livros, moldu-
ras douradas em retratos de figuras históricas internacionais e nacionais dão o ar
de sobriedade necessário ao homem público. Os retratos conectam Prudente de
Moraes a um rol seleto de personalidades. A sala de Prudente de Moraes indica o
triunfo da trajetória republicana.

Imagem 6. Parte III: Primeiro andar, sala A3, Prudente de Morais.


Imagem produzida pelo autor. Acervo pessoal

A sala A4 não recebeu destaque. Taunay faz uma breve descrição da mes-
ma e não insere fotografias. “Alguns objetos da antiguidade local” (TAUNAY,
1946, p. 15) para completar a ambiência há dois painéis de azulejos, sobre a
história local.

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Segundo andar, parte IV

No segundo andar, as salas B1 (Salão de honra), B2, B3, B4 (salão grande), e


B5 (o grande salão), compõem o espaço expositivo. Nesse andar, as salas estavam
equipadas por mobílias refinadas, galeria de retratos, documentos e tridimensio-
nais, vários de uso pessoal.
As salas B2 e B3 podem ser compreendidas como espaços dedicados aos con-
vencionais, embora Taunay não demonstrar isso de maneira clara no Guia. Há
13 retratos em cada sala representando os participantes da reunião republicana.
Entre documentos, há diplomas de deputados e o anteprojeto da Constituição
republicana com notas marginais do futuro presidente (TAUNAY, 1946, p. 18).
Objetos de mobília doados pela família Prudente de Morais compõem a ambiên-
cia, como o “lustre, antigo, francês, de cristal” (TAUNAY, 1946, p. 18).

Imagem 7. Parte IV: Segundo andar, sala B2. Imagem produzida pelo autor.
Acervo pessoal

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O mobiliário e objetos decorativos compunham uma ambientação que re-
montava à uma residência da elite no século XIX; entendidos por Taunay como
objetos de fruição.

Criado para rememorar, precipuamente, a Convenção e os Convencionais de 1873,


assim como os fatos da propaganda republicana na Província de São Paulo até 15 de
novembro, entendemos que ao mesmo tempo poderia servir para um museu de artes
decorativas, dando aos seus visitantes a ideia do que eram o mobiliário e a ornamentação
de uma casa rica brasileira pelas vizinhanças de 1870 com seu efeito típico de disparidade
muito bric a brac, pela mistura de estilos e procedências. (TAUNAY, 1946, p. 11)

Taunay montou uma exposição com o objetivo de demonstrar o “gosto ar-


tístico, o conforto e os meios de fortuna dos nossos maiores” (TAUNAY, 1921,
Apud MARTINS, 2012, p. 99), sem se preocupar com a origem do objeto.

Documentos

Dois perfis de documentos podem ser percebidos: sobre os eventos e sobre


as personalidades, ambos fulcrais para a história republicana narrada no Museu
(MARTINS, 2012, p. 86). Para o primeiro, documentos como atas do PRP,
ofícios do governo provisório, projetos de lei davam à coleção a credibilidade,
necessária e chancelada para o “novo” governo. Para o segundo perfil, diploma de
eleitor de Morais, autógrafos de Campos Sales entre outros, davam à coleção as
chancelas de veracidade aos próceres do movimento republicano.
Os documentos, em sua maioria, eram de caráter oficial, “já concebidos com
caráter de informar e atestar” (MARTINS, 2012, p. 87). Os periódicos colocados
em exposição desempenhavam a mesma função, mesmo não possuindo a mesma
lógica de produção. Os documentos expostos foram desterritorializados de seus
ambientes originais; ao fazerem parte de um discurso expositivo, eles são reterri-
torializados e ressemantizados, pois cumprem novas funções, novos significados.
De outro modo, quando colocados em exposição, os documentos passam a fazer
parte de um novo ambiente e partilhá-lo com outros objetos e recursos expli-

138
cativos, como painéis e legendas, ganham aqui uma função probatória de uma
narrativa histórica.

Imagem 8. Parte IV: Segundo andar, Grande Salão, B5. Imagem produzida pelo autor.
Acervo pessoal

Representar em pinturas os homens que participaram da reunião pró-repúbli-


ca e que derivaria na formação do Partido Republicano Paulista, serviria bem aos
propósitos do Museu. Tradicionais desde a renascença, as galerias de homens ilustre
fizeram-se presentes em muitos museus e instituições públicas. Martins afirma que
a galeria dos convencionais foi pensada desde o início, “uma vez que correspondia
a missão original do Museu” (TAUNAY, 1930 apud Martins, 2012, p. 68).
A lista dos convencionais foi produzida a partir de conversas entre Taunay,
Eugenio Egas (membro do IHGSP) e representantes do Governo do Estado. Ela
foi organizada a partir das atividades políticas dos inscritos. Na primeira lista
(anterior à inauguração do museu) havia: “militares”, “convencionais”, “propa-
gandistas”, “governo provisório” e “manifesto de 1870”. Em 1923, no relatório
anual do diretor, a lista passou a ter outras categorias como: “mesa que presidiu

139
os trabalhos da Convenção de Itu”; “diversos convencionais de grande destaque”;
“grandes orientadores e chefes de propaganda”; “propagandistas incansáveis”;
“chefes do movimento de 15 de novembro” e “convencionais vivos em 1923”.
(MARTINS, 2012, p. 70)
A formação da galeria de retratos foi um processo que percorreu o tempo
de formação do museu. Podemos afirmar que a galeria foi incrementada ao pas-
so em que era incrementando o acervo do Museu. Os retratos produzidos sob
encomenda eram baseados em fotografias. Taunay, em correspondência com os
artistas, dava detalhes da composição de cada obra. Medidas da tela e a propor-
ção dos detalhes da pintura (cabeça e nariz) eram bem especificadas pelo diretor.
Apesar da heterogeneidade dos tipos físicos, numa visão de conjunto é possível
estabelecer aspectos constantes: a maioria dos retratados tinham barba, trajavam
ternos em tons escuros, possuíam expressões fechadas e foram retratados de fren-
te ao observador.
Para reunir as fotos daqueles que ainda não possuíam retratos, em 1930, Tau-
nay colocou um anúncio nos jornais de São Paulo e Rio de Janeiro pedindo aos
familiares que lhe mandassem fotos. O efeito do anúncio foi positivo, no relatório
do mesmo ano: “Hoje o número de lacunas baixou imenso. Dos 133 convencio-
nais as efígies de 110, quando até pouco só tínhamos os retratos de 63 delegados a
assembleia de 18 de abril.” (TAUNAY, 1930 apud Martins, 2012, p. 73).
Os artistas escolhidos faziam parte da rede de contatos do diretor, pois já ha-
viam lhe prestado serviço para as exposições do Museu Paulista. Taunay usou os
mesmos recursos que havia utilizado para a produção do cenário do Centenário
da Independência. Apesar da gama de artistas pertencentes a estilos diferentes, o
que se percebeu foi uma galeria bem homogênea “no qual escolas pictóricas são
pouco relevantes enquanto elementos de análise” (MARTINS, 2012, p. 79). Al-
gumas exposições começaram somente com documentos e painéis explicativos; à
medida que a galeria de retratos era incrementada essas mesmas salas ganharam
retratos, dando assim à expografia não só a ideia de história comprovada por do-
cumentos, mas também uma função: evocar os vultos da história.
A prática da produção de retratos para fins comprobatórios em exposições
possuía alguns desafetos. Martins (2012) analisou o caso de uma carta enviada

140
a Taunay, de autoria anônima, expressando que considerava afrontoso o pedido
do diretor de que lhe mandassem fotos para completar a galeria, e que “ninguém
toma mais a sério esta farsa que foi inventada pelo Sr. Washington Luís para ser-
vir unicamente de pretexto do lançamento da candidatura Carlos de Campos”.
(ANÕNIMO, 1930 apud MARTINS, 2012, p. 83). De todo modo, o poder da
representação muitas vezes suplanta o representado,

Imagem 9. Parte IV, sala B4, Salão Grande. Imagem produzida pelo autor. Acervo pessoal

A sala B4, uma alcova, abrigou cômodas, lavatórios e oratórios, com pouco
destaque, porque não interessava os aspectos da vida privada. O Guia não traz
muitas informações sobre esse espaço.
Em sentido amplo, em nenhum dos espaços do Museu houve a preocupação
com a reprodução dos ambientes da residência. Isso porque o diretor não preten-
deu fazer um modelo de casa ou representar a casa da família Almeida Prado, mas
representar o grupo que participou da convenção republicana. “Assim, não cabia ao

141
Museu Republicano reproduzir o modo de vida de uma dada família ou de toda a
sociedade, mas, sim, de um determinado grupo.” (MARTINS, 2012, p. 111)

Imagem 10. Parte IV: Segundo andar, sala B4. Imagem produzida pelo autor.
Acervo pessoal

Salão de Honra

De suas paredes pendem quatorze elas a óleo com os retratos dos seis componentes
da mesa que presidiu a Convenção de 1873 [...] Das paredes pendem, enquadrados,
dois documentos da mais alta evocatividade o singelo livro em que se lavrou a “Ata de
Reunião do Partido Republicano em Itú [...] O mobiliário da sala costa de sofá, pol-
tronas, cadeiras simples, mesa central, [...] vasos de meados do século XIX. (TAUNAY,
1946, p. 11)

O ponto alto da exposição ficaria a cargo do Salão de Honra, local onde


supostamente teria ocorrido a reunião que seria a responsável por desencadear os
acontecimentos que levariam à República. Montada como uma sala de estar, nas
paredes figuravam os homens que participaram da reunião.

142
Imagem 11. Parte III: Segundo andar, sala B1, Salão de Honra.
Imagem produzida pelo autor. Acervo pessoal

Imagem 12. Parte III: Segundo andar, sala B1, Salão de Honra.
Imagem produzida pelo autor. Acervo pessoal

143
A sala representativa da convenção ituana foi a primeira a ser montada no
Museu. Dada a sua importância e a prematura montagem, a sala passou por
várias alterações ao longo do tempo. Segundo Martins (2012), no primeiro mo-
mento, o lustre é simples, de metal para seis velas, no segundo momento, um
de cristal, e no terceiro momento, de cristal com velas em cúpulas de vidros e
diversos pingentes. É este último que aparece na fotografia da exposição de 1946.
O Salão de Honra pode ser compreendido como o ponto-chave da interpretação
que Taunay tem para a memória da República. Nela, os diferentes recursos ex-
pográficos estão em diálogo. Retratos de vultos históricos, documentos textuais
e iconográficos, móveis, garantindo a ambiência e o transporte para o passado. A
receita do museu ideal foi bem-sucedida.

Considerações finais
O público que frequenta museus raramente tem condições de compreender
– e de acompanhar – as transformações ocorridas nos ambientes destas institui-
ções. Como é de se esperar, as exposições são apresentadas ao visitante durante
um período, em seguida, são desmontadas e abrem espaço para outras. Há assim
uma sucessão de discursos expositivos que se alternam com o tempo e que são
influenciados pela ação de diferentes curadores, pelas perspectivas de história, pe-
las noções de passado, pelos olhares sobre o acervo etc. Uma história dos museus
necessita considerar inclusive a forma como os artefatos são apresentados ao pú-
blico e quais os discursos que se constroem a partir deles. Paradoxalmente, apesar
de os museus serem socialmente aceitos como guardiães da história-memória de
uma sociedade, eles são péssimos na guarda dos registros de suas exposições, da
sua vida cotidiana e dos processos que constituíram sua história.
O Guia, publicado por Taunay em 1946, é um documento de suma impor-
tância para a reconstituição de parte do que foi a primeira exposição de longa
duração constituída naquela instituição. Revisitar esse Guia é uma oportunidade
para apresentar ao leitor aspectos da exposição e reencontrar uma das perso-
nagens mais importantes do ambiente museal paulista da primeira metade do
século XX. Ao observar a exposição pelo Guia nos deparamos com práticas que

144
Taunay utilizava no Museu Paulista, mas também com as estratégias clássicas de
valorização das ações das elites paulistas.
Desde o redirecionamento do Museu Paulista para um museu de história,
algo possível com a troca de sua direção em 1917, a perspectiva de história que
informou a constituição daquela instituição e que também emergiu no Museu
Republicano em Itu foi a da escola tradicional e seus pressupostos. O que vimos
neste breve capítulo foi a construção de um discurso histórico baseado funda-
mentalmente na ação dos grandes homens, no caráter probatório da iconografia,
dos tridimensionais e da documentação e na constituição de um novo edifício,
monumentalizado por Taunay.
Acredito que este capítulo seja uma primeira e preliminar contribuição para
a compreensão dos sentidos históricos e ideológicos inscritos por Taunay naquele
espaço.

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147
Ensaio

148
Usos e Ressignificações de
Objetos em Exposições:
o Caso do Museu da Imigração
do Estado de São Paulo

Odair da Cruz Paiva

Apresentação
Este texto não é resultado de pesquisa em curso ou finalizada. Nele apre-
sento reflexões que me acompanham há alguns anos e cujas origens estão, tanto
na minha prática como professor da disciplina de História, Cultura Material e
Museus na Universidade Federal de São Paulo quanto em minha atuação como
historiador na antiga Hospedaria de Imigrantes de São Paulo. As considerações
que se seguem não representam um conhecimento novo; no entanto, conside-
ro-as significativas para a discussão sobre os sentidos atribuídos aos elementos
tridimensionais em exposições em museus.
Apresentarei a trajetória de três artefatos que atualmente fazem parte do
acervo do Museu da Imigração. Trata-se da cadeira de dentista, da máquina “pi-
ca-pau” e do projetor de filmes; estes compuseram ambientes expositivos em
três momentos do processo de musealização da Hospedaria de Imigrantes. O
primeiro momento se deu em meados dos anos 1980 com a criação do Centro
Histórico do Imigrante; o segundo, em 2008, com a exposição comemorativa
dos “120 anos da Hospedaria de Imigrantes do Brás” e o terceiro, em 2014, com
a exposição “Migrar: Experiências, Memórias e Identidades”.
Os registros fotográficos que dão conta da exposição desses elementos reve-
lam, ao menos, uma questão que considero importante: a melhoria estética dos
ambientes expositivos não foi acompanhada de uma mudança na perspectiva

149
sobre os três objetos. A apresentação deles ao público manteve a mesma perspec-
tiva, ou seja: foram e são ainda considerados como objetos históricos e não como
documentos históricos. (MENESES, 2005)
Refletir sobre presença da cadeira de dentista, máquina “pica-pau” e projetor
de filmes, em diferentes momentos da história recente da Hospedaria, representa
um recurso para retomar uma questão sempre presente nas exposições em mu-
seus: a utilização de artefatos como ilustração de discursos que são prévios à sua
inserção nas exposições. Em que pese a literatura que versa sobre a necessidade de
compreender objetos como documentos, as práticas que incidem sobre a monta-
gem de exposições ainda encontram muitas dificuldades em transpor os sentidos
tradicionais atribuídos a esses. Exotismo e fetiche são duas das muitas perspecti-
vas que enfraquecem a percepção do objeto como documento.
Estruturei este texto em três momentos. No primeiro, farei uma breve in-
trodução sobre a cadeira de dentista, máquina “pica-pau” e projetor de filmes,
enquanto elementos do mobiliário da Hospedaria de Imigrantes e sua inserção
no espaço do Centro Histórico. A mesma proposta norteará o segundo e o ter-
ceiro momentos quando abordarei, respectivamente, a exposição sobre os 120
anos da Hospedaria de Imigrantes e a exposição Migrar: Experiências, Memórias
e Identidades.

O Centro Histórico do Imigrante e a cadeira de


dentista, a máquina “pica-pau” e o projetor de filmes
Esses três equipamentos fizeram parte do patrimônio mobiliário da antiga
Hospedaria de Imigrantes. A cadeira de dentista e a máquina “pica-pau” possuem
relação com o atendimento médico-hospitalar; era um dos serviços que compu-
nham as funções básicas da Hospedaria: recepção – triagem – encaminhamento.
Sobre o projetor de filmes, informações sobre a existência de recinto ligado à exi-
bição de filmes nos chegam de maneira indiciária. Em minha experiência como
estagiário da Hospedaria, nos anos 1980, o projetor era apresentado como prova
da existência do espaço.

150
De qualquer forma, creio que o mais importante está no fato de que a exis-
tência desses equipamentos é condizente com os serviços que foram ali desen-
volvidos. Veremos adiante que as informações disponibilizadas ao público na
exposição Migrar: Experiências, Memórias e Identidades sobre esses artefatos são
muito suscintas.
A Hospedaria de Imigrantes esteve sob a administração da Secretaria da
Agricultura, entre 1892 e 1968. Em fins de 1968, sua administração foi transfe-
rida para a Secretaria de Estado da Promoção Social. Essa mudança teve relação
com questões como a diminuição da entrada de imigrantes em São Paulo e a
ressignificação das funções da migração nacional no contexto econômico paulista
(PAIVA, 2016). Esses processos apontaram, uma década mais tarde, para a pau-
latina musealização daquele espaço. Compuseram também esses processos, o en-
cerramento das atividades de recepção de imigrantes, em 1978, e o tombamento
da edificação pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico,
Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), em 1982.
No início dos anos 1980, respondendo às demandas por documentação para
pedidos de dupla cidadania, foi criado um setor para expedição de certidões de
desembarque. Essas eram emitidas tendo como base os Livros de Registro de
Imigrantes hospedados nas dependências da Hospedaria e as Listas de Bordo
de Vapores atracados no porto de Santos. A pesquisa nessa documentação foi
importante para a valorização do patrimônio documental da Hospedaria e abriu
possibilidades para outros olhares sobre o seu patrimônio tridimensional e valo-
rização da história institucional.
Nesse contexto, surgiu o Centro Histórico do Imigrante (CHI); que ocupa-
va um pequeno espaço na ala térrea esquerda da edificação. Datam daquele pe-
ríodo as primeiras contratações de estudantes de história como estagiários, para
trabalharem na organização da documentação. Fui um desses e estagiei por lá
entre 1985-1986.
Embora os rumos da musealização da edificação não estivessem no horizonte
dos que trabalhavam no CHI, o fato é que foi montado numa das salas dessa ala
um ambiente/exposição com parte do mobiliário remanescente da Hospedaria.
Foi nesse precário ambiente expositivo que emergiram, para os olhares curiosos

151
dos que adentravam o CHI em busca de documentos para a dupla cidadania, a
cadeira de dentista, a máquina “pica-pau” e o projetor de filmes.
Enquanto conjunto, o CHI se assemelhava a um gabinete de curiosidades
renascentista (BITTENCOURT, 1996). O mote para a exposição do mobiliário
tinha mais relação com suas apropriações enquanto coisas curiosas e excepcionais.
Desterritorializados por conta das transformações das funções daquele espaço e
sucateados pela modernização dos serviços, a cadeira de dentista, a máquina “pica-
-pau” e o projetor de filmes, foram resgatados e expostos pela sua aparência exótica.
Naquele meado de década, todos os que ali trabalhavam (evidentemente me
incluo) não faziam a menor ideia das discussões sobre cultura material, exposi-
ções, expografia, museologia etc. Vale registrar que alguns ambientes universitá-
rios paulistas não percebiam aquele lugar como digno de suas atenções – salvo
raríssimas exceções, como profissionais ligados aos arquivos e alguns poucos his-
toriadores interessados no tema da imigração.

Imagem 1. Centro Histórico do Imigrante. 1986. Acervo Pessoal


Ao fundo da imagem, a partir da esquerda para a direita, estão localizados a cadeira de
dentista, a máquina “pica-pau” e o projetor de filmes

152
Entre um intervalo de trabalho e outro, interagíamos com o mobiliário. Os
usos que nós fazíamos deles não apreendiam quaisquer atributos de valor (ME-
NESES, 2009). Sua conexão enquanto remanescentes documentais da história
da Hospedaria de Imigrantes era pensada da forma mais superficial possível. Fal-
tava uma chave importante para a reversão dessa perspectiva: a conexão entre os
remanescentes e seus usuários.
Carvalho (2011), Miller (2013), entre outros autores, discutem as relações
entre os artefatos e os sujeitos que fazem uso deles, destacando a importância
de apreender essa relação de maneira dialética. Miller, ao defender a perspectiva
antropológica sobre a cultura material, ressalta a importância em não isolar os
sujeitos (artefatos e pessoas) dessa relação. De acordo com o autor:

Ao se retomar o binômio sujeito-objeto, vê-se que várias são as tentativas de romper


com raciocínios em que um dos termos é passivo e o outro ativo. [...] Colocado de
outra forma, trata-se hoje de deslocar a atenção do binômio sujeito-objeto para a ação
desencadeada neste encontro. (MILER, 2013, p. 447)

A chave ausente para a ressignificação desses remanescentes foi a não valori-


zação, à época, do cotidiano da instituição e sua relação com o contexto migrató-
rio para São Paulo. Assim, os três artefatos não emergiram como remanescentes
de um ambiente no qual suas funções estivessem ligadas a um contexto social
mais amplo. Isolados de seu contexto original e decodificados apenas por sua
materialidade, perderam seu potencial enquanto cultura material.
Como veremos em seguida, a exposição da cadeira de dentista, da máqui-
na “pica-pau” e do projetor, tanto na exposição sobre os 120 anos da Hospedaria
quanto na exposição inaugurada em 2014, reeditaram o mesmo olhar presente nos
anos 1980, reforçando a clivagem entre o objeto histórico e documento histórico.

Exposição “120 Anos da Hospedaria de Imigrantes” -


Memorial do Imigrante
Em 1993, a administração do edifício da Hospedaria de Imigrantes passou
para a Secretaria de Estado da Cultura. No ano de 1998, a criação do Memorial

153
do Imigrante representou um passo importante no processo de musealização da
Hospedaria. À época, a edificação foi dividida em duas partes. Enquanto a parte
frontal foi reservada ao Memorial do Imigrante, a administração da porção ao
fundo coube ao Servizio Missionario Giovanni. Em 1996, nessa mesma porção foi
criado o Arsenal da Esperança. Lugar de atendimento de migrantes e imigrantes o
Arsenal permanece ativo na atualidade. (PAIVA, 2016)
As equipes que trabalharam no Memorial do Imigrante realizaram aquilo
que Candau (2012) denominou como memória de alto nível na memória difusa
do processo imigratório, que os visitantes daquele espaço possuíam. Para tal fo-
ram contratados profissionais com experiência na área de museus. A criação de
procedimentos adequados para a gestão da reserva técnica – captação, documen-
tação, acondicionamento e conservação – revelou as inúmeras potencialidades
desse acervo transformando-o num subsidiário importante para as exposições ali
produzidas durante os 15 anos do Memorial do Imigrante.
Para além das exposições, foram realizados seminários reunindo especialistas
em imigração; houve também a publicação de livros e fomento à participação de
grupos de descendentes de imigrantes. O acervo documental foi organizado em
parte e a criação de instrumentos de pesquisa potencializou consultas de pesquisa-
dores envolvidos com o tema da imigração e migração para São Paulo. Esse conjun-
to de ações compôs um ambiente mais profissionalizado e reconhecido por diversos
grupos – comunidades de imigrantes, universidades, pesquisadores etc.
Em 2008, foi inaugurada a exposição comemorativa dos 120 anos da Hos-
pedaria de Imigrantes do Brás. A curadoria esteve a cargo da historiadora So-
raya Moura e deste que escreve. Como o próprio nome indicava, tratava-se de
produzir um ambiente que apresentava uma síntese das funções primárias da
Hospedaria: recepção, triagem e encaminhamento de imigrantes e migrantes.
Foi na proposição de vários nichos temáticos que a cadeira de dentista, máquina
“pica-pau” e projetor de filmes ressurgiram depois de mais de duas décadas.
Esses objetos fizeram parte de um conjunto temático que apresentava ao
visitante as várias dependências/setores da Hospedaria. Pela primeira vez, uma
exposição naquele espaço contou com a participação de empresas e profissionais
com experiência na produção de exposições. Houve a incorporação de um apara-

154
to técnico envolvendo filmes, totens multimídia, sonorização etc. A seleção dos
artefatos, bem como a pesquisa, ficou a cargo dos profissionais da reserva técnica
e dos curadores.
A experiência com a curadoria dessa exposição revelou para mim algo que
era sobejamente conhecido: o papel tradicional desempenhado pelo curador nas
exposições foi reescrito. Se em tempos idos a escolha do tema e das questões que
norteavam uma exposição eram embasadas pela pesquisa e pela escolha de artefa-
tos/documentos representativos da reserva técnica, o que vivenciamos enquanto
curadores foi algo bem diferente.
A quantidade de pessoas envolvidas, suas especializações e demandas produ-
ziu um ambiente singular no qual houve um tour de forças constante entre os
profissionais envolvidos. Na exposição, a dimensão comunicativa foi atravessa-
da por outros interesses e sentidos. Em outros termos, a construção expográfica
(CURY, 2005) tornou-se mais complexa com a inserção de elementos como:
iluminação, sonorização do ambiente, documentação exposta em meios digitais,
inserção de filmes e documentários, audição de trechos de história oral de imi-
grantes, colorização de módulos expositivos, produção de textos etc.
A incorporação desses e outros elementos concorreu com os objetivos prin-
cipais que informaram a decisão em organizar a exposição. Do ponto de vista
estético, considero que a exposição sobre os 120 anos da Hospedaria do Brás foi
superior a outras produzidas no Memorial. Inseriu-se nessa exposição um con-
junto de ações que conformaram, num espaço de duas décadas, um padrão cada
vez mais comum na produção de exposições. O que não se refletiu à época é que
caminhávamos para um modelo de exposição que seguia o paradigma pós-mo-
derno. (ABREU, 2012)
Esse paradigma consiste no uso em profusão de equipamentos multimídia;
substituição de documentos, fotografias e tridimensionais por suas representa-
ções digitais e utilização de filmes produzidos a partir dessas representações como
forma de transmitir mensagens mais objetivas ao público, dentre outras ações.
O fato é que o produto, geralmente, retira a força dos documentos da exposição
(tridimensionais, documentos escritos, fotografias etc.) em prol da espetaculari-
zação do ambiente.

155
Nesse contexto, o ressurgimento da cadeira de dentista, da máquina “pica-
-pau” e do projetor de filmes foi novamente dissociado de seus sentidos enquanto
cultura material. A perda desse sentido foi compensada pelo aparato expográfico
pós-moderno no sentido utilizado por Meneses (2005). Emerge desse, o paradig-
ma oculocêntrico. Sobre esse elemento, a reflexão de Abreu (2012) tem especial
interesse para essa abordagem. Para a autora, o oculocentrismo representa a prima-
zia da visualidade sobre os demais sentidos.

O fenômeno da proliferação dos museus-espetáculos no contemporâneo explicita uma


nova vertente. Para as grandes metrópoles do final do século XX, ao sentido oculocên-
trico, uma outra dimensão é introduzida. Agora não se trata mais de ver, admirar, levar
às últimas consequências o sentido da visão. Para o indivíduo passante circulando na
velocidade cada vez maior das cidades, é preciso também experimentar, vivenciar, usar
os demais sentidos: olfato, paladar, tato, audição. (ABREU, 2012, p. 18)

Apreendendo a exposição de 2008 pelo olhar de Abreu, percebo que uma


perspectiva oculocêntrica esteve presente. Mesmo realizada em parte, ela enqua-
drou a forma como a cadeira de dentista, a máquina “pica-pau” e o projetor de
filmes foram expostos.

Imagem 2. Memorial do Imigrante, 2008. Foto produzida pela empresa responsável pela
cenografia da exposição. Acervo pessoal

156
Nesta imagem, percebemos que, tanto a cadeira de dentista quanto a má-
quina “pica-pau” estão elevadas do piso por expositores que iluminam os equipa-
mentos de baixo para cima, numa clara tentativa de valorização dos mesmos. A
ambientação tinha o objetivo de apresentar ao visitante elementos que compu-
nham o setor de serviço médico-hospitalar-odontológico.

Imagem 3. Memorial do Imigrante, 2008. Foto produzida pela empresa responsável pela
cenografia da exposição. Acervo pessoal

Na imagem anterior, percebe-se a mesma estratégia de valorização do equi-


pamento. A máquina de projeção de filmes adentrou a exposição, compondo
uma ambientação da qual faziam parte fotografias de diversas dependências da
Hospedaria, dentre elas: refeitório, dormitório, cozinha.
Percebe-se que esses equipamentos foram apresentados ressaltando sua su-
posta dimensão aurática. Elevados do solo, iluminados a partir de baixo e des-
tacados no ambiente, a estratégia expográfica esvaziou o conteúdo documental
deles em prol de uma apresentação cuja centralidade foi o sentido estético. Nesse
caso, o discurso expositivo, baseado nas estratégias tradicionais de valoração do
artefato/documento, subsumiu ante os ditames do paradigma pós-moderno.
A exposição de 2008 teve duração de aproximadamente um ano. A mudança
da Organização Social gestora do equipamento foi seguida pelo encerramento
das atividades no espaço com vistas à reforma do edifício, em 2010.

157
Exposição “Migrar: Experiências, Memórias e
Identidades” – Museu da Imigração
A reinauguração do edifício em 2014 foi concomitante à abertura de uma
nova exposição de longa duração. “Migrar: Experiências, Memórias e Identida-
des”, que teve como objetivo discutir, num único espaço: aspectos da imigração e
da migração de trabalhadores nacionais para São Paulo; a inserção dos imigrantes
e migrantes no campo e na cidade, a partir do final do século XIX; registrar as
marcas da imigração na cidade na atualidade; apresentar depoimentos de imi-
grantes com trajetórias de sucesso na migração; discutir sentidos amplos do des-
locamento do homem por todas as regiões do planeta; apresentar a relação entre
deslocamentos populacionais e suas interfaces com a colonização do Brasil e a
escravidão.
A exposição de 2014 teve uma dimensão presentista marcante. Nos limites
deste texto, quero partir da noção de que o presentismo, de acordo com Koselleck
(2006) e Hartog (2013) busca nominar uma dinâmica particular da relação que a
sociedade contemporânea tem com o tempo social. Nela, as fronteiras entre pas-
sado, presente e futuro são abolidas, incitando-nos a viver num eterno continuum
temporal no qual esse novo presente estendido tudo comporta.
Abreu alerta para as consequências dos chamados

[...] “novíssimos museus” ou os museus-espetáculo que hoje são edificados em escala


global. Espaços enormes, edificações assinadas por renomados arquitetos contempo-
râneos, de altíssima tecnologia com realidade aumentada, HQ codes, vídeos em 3 D,
holografias, experiências midiáticas inovadoras conjugadas com propostas arrojadas de
exposição e de comunicação, polpudos patrocínios, sistemas de gestão criativos e uma
boa dose de empreendedorismo. (ABREU, 2012, p. 14)

Esses museus são produtos de um presente presentificado que, ao impor sua


velocidade, rompe as barreiras com o passado e o futuro. Dentre seus subprodu-
tos, está o que Abreu (2012) denominou como oculocentrismo. Esse se assenta na
desvalorização “da experiência, da tradição, dos elos que permitiam aos sujeitos a
articulação com múltiplas temporalidades”. (2012, p. 15)

158
Na exposição de 2014 – da qual também fiz parte e, evidentemente, possuo
responsabilidade – o alargamento do campo compreensivo da imigração/migra-
ção foi possível radicalizando a expografia pós-moderna. O discurso expositivo
só ganhou desenvoltura para abordar a profusão de questões que foram propostas
deslocando-se do plano material – território do artefato/documento – e desen-
volvendo-se com o auxílio do aparato técnico disponível.
Em outros termos, apresentar a epopeia humana pelo planeta ou conectar
colonização e escravidão como expressões particulares dos deslocamentos popu-
lacionais, a partir do século XVI, foi possível com o auxílio da criação de filmes
erigidos a partir de uma mescla de fontes documentais, manipuladas para dar
sentido à uma narrativa cuja estrutura utiliza as fontes como ilustração. O produ-
to final foi uma exposição “sem problema” ou questão central. Essa ausência foi
escamoteada por uma construção expográfica marcada pela tecnologia.
Em outro momento (PAIVA, 2015), fiz uma análise mais atenta sobre essa
exposição e não creio ser o caso aqui de retomar as considerações dessa reflexão.
No entanto, penso que o sentido do presentismo, e sua potencialidade de repre-
sentação do real no uso da tecnologia, pode explicar como o tema dos desloca-
mentos populacionais foi desenvolvido num plano que eliminou a potencialida-
de da cultura material.
Nesse contexto, a cadeira de dentista, a máquina “pica-pau” e o projetor
de filmes retornaram à cena. No entanto, como é de se imaginar, seu potencial
enquanto documento, foi esvaziado de maneira mais radical. Se na exposição de
2008 tiveram um lugar de destaque, mesmo desconsiderando sua dimensão indi-
ciária, em 2014, eles adentram o espaço, compondo apenas o cenário.
Localizados em estantes, partilhando o espaço com outros tridimensionais,
esses artefatos formam um conjunto cuja função é primordialmente estética. Há
um quê de exotismo e também de zoologização. Como animais numa jaula, sua
desterritorialização parece ter chegado ao extremo. Se cabe ao museu a guarda de
remanescentes materiais, cujos abalos na paisagem transformaram-nos em exila-
dos, a composição cênica apresentada nas fotografias que seguem não dá conta
de sua reterritorialização.

159
Imagem 4. Projetor de Filmes. Museu da Imigração, 2016.
Foto produzida pelo autor. Acervo pessoal

Na imagem acima, vemos o projetor de filmes na porção central baixa do ni-


cho expositivo. Na imagem (5) abaixo, temos a cadeira de dentista e na imagem
(6) abaixo, à esquerda, a máquina “pica-pau” encontra-se no centro. Ressalto que
a identificação desses objetos não os acompanha. Elas estão localizadas e concen-
tradas num único espaço como ilustrado na imagem (07).

Imagem 5. Máquina Pica-Pau. Museu da Imigração, 2016.


Foto produzida pelo autor. Acervo pessoal

160
Imagem 6. Cadeira de Dentista. Museu da Imigração, 2016.
Foto produzida pelo autor. Acervo pessoal

Imagem 7. Placa com o mapa de localização dos objetos e identificação deles.


Museu da Imigração, 2016. Foto produzida pelo autor. Acervo pessoal

As informações disponibilizadas ao público sobre esses artefatos na exposi-


ção são, como apontei anteriormente, bastante suscintas. No caso da cadeira de
dentista temos: Cadeira de Dentista // Ferro // Transferência – Edifício Hospe-
daria de Imigrantes // Acervo Museu da Imigração. Para a máquina “pica-pau”:
Prensa para Fabricação de Comprimidos (Máquina Pica Pau) // Metal // Doação

161
// Acervo Museu da Imigração. Por fim, para o projetor de filmes: Projetor de
Filmes // Metal // Doação // Acervo Museu da Imigração.
O ressurgimento desses instrumentos demonstrou que, embora seu manejo
expositivo tenha sofrido alterações, a narrativa que determina seu lugar na ex-
posição não leva em consideração suas potencialidades enquanto fontes para a
compreensão da história da Hospedaria de Imigrantes.

Considerações Finais
Nas últimas décadas, emergiu uma produção que associa os museus a pro-
dutos de consumo. Para autores, como Curvoa e Amorimb (2017. p. 4), “[...]
os museus são produtos da sociedade do espetáculo e da era da informação”.
Considero que as exposições, ao conterem cada vez mais aparatos tecnológicos,
respondem de várias formas aos interesses do mercado.
Entre eles, vale considerar que a inserção de tecnologias como recursos de
mídia e sonorização, por exemplo, transformam a exposição num ambiente que
consome cada vez mais produtos disponíveis no mercado de tecnologia, encare-
cendo sua manutenção. De outro modo, a produção desses ambientes responde
aos interesses de empresas que se especializam em requalificações museológicas.
Naturaliza-se a perspectiva na qual as novas gerações estão desenvolvendo
formas de relação com a realidade intermediada pela tecnologia. Ocorre que,
entre os vários produtos desse modelo de exposição, está o distanciamento dos
artefatos, sua materialidade e seus significados enquanto remanescentes de um
determinado tempo social. Ao mesmo tempo, temos sua substituição e a incor-
poração de suas representações em mídias digitais.
Analisando esta tendência, Keene (2006) aponta, entre outras questões, para
o problema da autenticidade. A reprodução infinda de entes da cultura material
em outros suportes produz um deslocamento da apreensão do representado para
sua representação, esvaziando suas possibilidades de significação e colocando a
autenticidade como algo subalterno. Evidentemente, sabemos que essa discussão
não é recente, especialmente na arte, mas o fato é que as possibilidades de mani-

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pulação dos artefatos capturados pelas mídias esvaziam seus conteúdos, particu-
larmente nos casos de instituições que contam com eles em suas reservas técnicas.
A trajetória da cadeira de dentista, da máquina “pica-pau” e do projetor de
filmes, nestas três décadas, revelou as dificuldades de colocar em prática uma
parte importante do conhecimento desenvolvido por historiadores e museólo-
gos. Pessoalmente, como integrante dessa trajetória, entendo as dificuldades que
enfrentam os profissionais da área na construção de um museu, fórum entendido
como uma forma particular da relação do conhecimento histórico com as expo-
sições museais. No entanto, as dificuldades não devem ser um ponto final, mas,
sim, um novo momento de uma trajetória que mira a recuperação do potencial
documental dos artefatos.
Por fim, vários autores, dentre eles Duncan (1995) e Meneses (2005) deram
contribuição importante ao propor a superação do museu templo pelo museu
fórum. O que procurei demonstrar com este texto é que o caminho apontado por
pesquisadores da área encontra na atualidade um desafio a mais, qual seja: como
fazer emergir o fórum num contexto em que a matriz pós-moderna se apresen-
ta como uma alternativa desejável em muitos espaços museais. Além disso, ela
expressa muitas vezes a nova roupagem do museu templo, influenciando uma
postura passiva e acrítica do visitante frente à exposição.

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