Ebook Pragmatismo Irresponsável

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Irresponsável

POLÍTICA EXTERNA E INSERÇÃO INTERNACIONAL


DO BRASIL NO GOVERNO BOLSONARO

ORGANIZADORES:
ANA TEREZA MARRA
GILBERTO MARINGONI
GIORGIO ROMANO SCHUTTE
POLÍTICA EXTERNA E INSERÇÃO INTERNACIONAL
DO BRASIL NO GOVERNO BOLSONARO

ORGANIZADORES:
ANA TEREZA MARRA
GILBERTO MARINGONI
GIORGIO ROMANO SCHUTTE
© Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)
Editora Telha
Todos os direitos reservados.
A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de
direitos autorais. (Lei nº 9.610/1998)
Conselho Editorial
Dra. Ana Paula P. da Gama A. Ribeiro; Dra. Camila Gui Rosatti; Dra. Carolina B. de Castro
Ferreira; Dr. Daniel Moutinho; Dr. Hamilton Richard A. F. dos Santos; Dr. Jonas M. Sarubi de
Medeiros; Dra. Larissa Nadai; Dra. Ludmila de Souza Maia; Dra. Maria do Carmo Rebouças;
Dr. Nathanael Araújo da Silva; Dra. Priscila Erminia Riscado; Dr. Rafael França Gonçalves
dos Santos; Dr. Rodrigo Charafeddine Bulamah; Dra. Silvia Aguião.
Produção Editorial
Publisher: Douglas Evangelista
Gerente editorial: Mariana Teixeira
Coordenação editorial: Juliana Marinho
Revisão do texto: Claudia Figueiredo
Capa: Fernando Campos - a partir de layout de Gilberto Maringoni
Diagramação: Rebeca Silvanto Sales

Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166

O48o

Marra, Ana Tereza

Pragmatismo irresponsável: política externa e inserção internacional do


Brasil no governo Bolsonaro [recurso digital] / Organizadores Ana Tereza
Marra, Gilberto Maringoni, Giorgio Romano Schutte. – Rio de Janeiro:
Telha, 2023.

9400 Kb.;

ISBN 978-65-5412-356-3 (e-book)

1. Relações internacionais do Brasil. 2. Política. I. Marra, Ana Tereza


(Organizadora). II. Maringoni, Gilberto (Organizador). III. Schutte, Giorgio
Romano (Organizador). IV. Título.

CDD 327.81

Índice para catálogo sistemático

I. Relações internacionais do Brasil

Editora Telha
Rua Uruguai, 380, Bloco E, 304
Tijuca — Rio de Janeiro/RJ — CEP 20.510-052
Telefone: (21) 2143-4358
E-mail: [email protected]
Site: www.editoratelha.com.br
Sumário

Prefácio ..................................................................................................... 5
Irene Vida Gala

Apresentação: E a Terra volta a ficar redonda..................................... 9

América Latina: quatro anos ladeira abaixo..................................... 21

África: o retrocesso das relações e o novo cenário


no continente ................................................................................... 36

Brasil-EUA, uma relação desigual e subordinada........................... 55

Entre desarranjos e contradições: as relações


Brasil-China no governo Bolsonaro.............................................. 74

A degradação da Política Externa de Direitos Humanos no


governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).......................................... 91

Do desastre à oportunidade: meio ambiente e


política brasileira em 2022......................................................... 105

Novos caminhos para a inserção econômica no


mundo em transformação............................................................. 127

Quatro anos de Governo Bolsonaro –


Forças Armadas e protagonismo político.................................. 151

A política externa no programa dos candidatos


à presidência em 2022 .................................................................. 176
prefácio

Irene Vida Gala (1)

Recebi, com imensa alegria, o convite para prefaciar este livro.


Ao ler seus originais, imediatamente assaltou-me uma pergunta: para
quem oferecê-lo? Quem poderia melhor aproveitá-lo?
A curiosidade surgiu porque a leitura trouxe-me a nítida consta-
tação de que seus dez capítulos oferecem uma lúcida, oportuna, rica
e inequívoca interpretação de quatro anos do (des)governo de Jair
Bolsonaro, com um bônus adicional de dois anos de Michel Temer.
A bem da verdade, é mais do que uma interpretação, pois os capítu-
los, em seu conjunto, com farta base factual, oferecem as múltiplas
informações necessárias à compreensão e avaliação dos efeitos pro-
fundamente deletérios da política externa brasileira nesse período, em
particular nos anos do bolsonarismo. Foi no último quadriênio que
observamos as lideranças bolsonaristas e seus acólitos associarem-se
ou servirem a grupos econômicos e segmentos sociais bastante es-
tranhos àquilo que tradicionalmente a diplomacia brasileira poderia
interpretar como vetores do interesse nacional do Brasil.
Em todo esse período, as políticas ou os rumos adotados pelo
país no plano externo em nada serviram ao que um observador
minimamente isento pudesse entender como benéfico à grande
maioria da população brasileira. Dos dividendos exorbitantes da
Petrobrás distribuídos a acionistas em sua maioria estrangeiros, até
o desmatamento em taxas recordes na Amazônia em benefício de
poucos invasores e com prejuízos generalizados para as populações
ribeirinhas e comunidades indígenas, o que se viu, e os autores e

(1) Diplomata de carreira. Foi Embaixadora do Brasil em Gana, entre 2011 e 2017.
Atualmente é a subchefe do Escritório de Representação do Ministério das Relações
Exteriores em São Paulo.

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

autoras deste trabalho bem demonstram, é que se hipotecou o in-


teresse nacional e sequestrou-se ao brasileiro o seu projeto de um
país desenvolvido, economicamente autônomo, socialmente justo e
ambientalmente responsável.
Sendo assim, recomendo este livro à leitura de estudantes da área
internacional, dos especialistas de política externa e ao público em
geral, mas, muito especialmente, ao eleitor ou eleitora que acreditou
haver uma oportunidade para o Brasil nas mãos de Jair Bolsonaro e
o apoiaram, inclusive no pleito de 2022. Submersos em um universo
paralelo de desinformação, esses eleitores surpreenderam-se com a
derrota do projeto bolsonarista e precisam reencontrar-se com os
fatos. Terão, portanto, neste livro, a oportunidade de obter um diag-
nóstico profundo e ao mesmo tempo sucinto sobre o estado atual do
Brasil, as causas mais recentes – e certamente as consequências – de
nosso processo de isolamento internacional e, finalmente – porque é
preciso falar das flores –, sugestões de linha de ação para a política
externa do Governo Lula-Alckmin. Uma política, como mostram os
autores, destinada a reverter, tão urgente quanto possível, o curso
recente da política externa brasileira, reorientando-a no sentido de
uma política pública capaz de melhorar a inserção internacional do
país, bem como de assegurar ganhos tangíveis sobretudo às popula-
ções brasileiras mais vulneráveis. Afinal, foram essas as parcelas da
população que mais sentiram negativamente os efeitos da política
externa bolsonarista, profícua em factoides mais bem associados a
uma guerra ideológica do que ao atendimento dos interesses do povo
e Estado brasileiros.
Registre-se, nesse sentido, que as relações internacionais bra-
sileiras, nos termos do artigo 4o. da Constituição Federal, regem-se
por princípios bastante específicos, como, entre outros: a prevalência
dos direitos humanos; o repúdio ao terrorismo e ao racismo; a coo-
peração entre os povos para o progresso da humanidade; além do
compromisso com a integração econômica, política, social e cultural
dos povos da América Latina, visando à formação de uma comuni-
dade latino-americana de nações. São preceitos constitucionais que,
cada vez mais, são interpretados à luz daqueles que são os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, inscritos no artigo
3o. da Constituição, a saber:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

II - garantir o desenvolvimento nacional;


III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desi-
gualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Como fica evidente ao longo do livro, a política externa bol-


sonarista abandonou os preceitos constitucionais, não apenas ao
reter e desestimular esforços destinados, por exemplo, à integração
latino-americana, mas, sobretudo, ao esquivar-se de utilizar as ferra-
mentas e mecanismos do diálogo político para assegurar benefícios
à população brasileira. Tenha-se em mente o caso da covid-19 e da
obtenção de vacinas para imunização da população, o que poderia ter
reduzido significativamente o número de óbitos registrados no país,
assim como a ausência de uma política ambiental responsável capaz
de angariar os recursos internacionais necessários ao aproveitamento
sustentável das áreas de florestas. Ou ainda a adesão da diplomacia
bolsonarista a plataformas de diálogo internacional comprometidas
com agendas de natureza fascista, bem como a manutenção de mo-
delo econômico exportador de commodities próprio de economias
periféricas. Os exemplos abundam e estão apontados neste trabalho.
Este volume é fruto da valorosa missão do Opeb (Observa-
tório de Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil), da
prestigiosa Universidade Federal do ABC, que, com seu grupo de
pesquisadores e pesquisadoras, produziu trabalho excepcional de
acompanhamento da política externa bolsonarista. Escrito ao final do
quarto ano do mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, oferece uma
leitura retroativa do conjunto da obra, ou melhor, do conjunto do des-
monte do grande patrimônio que sempre foi a imagem internacional
do Brasil, forjada em duzentos anos de diplomacia e amadurecida,
desde o período do fim do tráfico negreiro, em um processo de busca
de autonomia, de compromisso com o multilateralismo e com a solu-
ção pacífica de controvérsias. Uma diplomacia, em última instância,
de viés inequivocamente nacionalista, pragmática e universalista.
Essa tradição diplomática sofreu grandes fissuras, sendo, talvez, a
pior delas, o rompimento de uma longa história de não alinhamento
e de previsibilidade na promoção e defesa dos interesses brasileiros.

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Mesmo em se tratando dos quatro anos da política externa


bolsonarista, o livro tem o tom otimista da mudança ensejada pela
vitória do presidente Lula nas eleições de outubro de 2022, contem-
plando, sabiamente, a percepção das dificuldades do contexto atual.
Ademais, os dez capítulos retomam sempre, de alguma forma, os
períodos das gestões Lula 1 e 2 na área de política externa, atuali-
zando análises e permitindo, tanto quanto cabível, uma proposta
comparativa para a gestão Lula 3. Sabem bem os pesquisadores do
Opeb de que não se trata de reeditar as agendas daqueles períodos.
Mudanças no cenário internacional e no próprio Brasil inviabilizam
ou até desqualificam o retorno a projetos diplomáticos dos períodos
anteriores a Jair Bolsonaro.
Esse alerta feito pelos autores é, portanto, especialmente per-
tinente e bem-vindo para sustar incautas expectativas e, ao mesmo
tempo, indicar o compromisso desses pesquisadores e do próprio Ob-
servatório em seguirem atentos à formulação e execução da política
externa brasileira ao longo dos próximos quatro anos. Nesse período,
os executores da política externa, entre os quais o próprio Ministério
das Relações Exteriores, mas não apenas ele, precisarão legitimar-se
de modo inequívoco diante do público interno, evidenciando, de
forma talvez inovadora, mas certamente necessária, a contribuição
da política externa à materialização dos direitos e garantias constitu-
cionais a que aspira corretamente toda a população brasileira.
Boa leitura.

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apresentação

E a Terra volta a ficar redonda...

Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e


Giorgio Romano Schutte (2)

Este quarto livro do Observatório de Política Externa e Inserção


Internacional do Brasil (Opeb), da UFABC, vem à luz num momento
em que o país começa a superar um período tenebroso de sua vida po-
lítica, iniciado com o golpe contra o governo Dilma Roussef, em 2016.
Ele se intensificou com o início da administração de Jair Bolsonaro.
Nosso observatório nasceu como um grupo de extensão e pes-
quisa visando acompanhar a diplomacia e inserção internacional
brasileira a partir do início de 2019, quando se aprofundou a guinada
regressiva nas bases da política externa construída, com idas e vindas,
ao longo de mais de um século. Tal mudança significou a retomada
de uma inserção subordinada a uma economia internacional pautada
pelo neoliberalismo, tônica do governo de Michel Temer e aprofun-
dada pela gestão Bolsonaro. Recordemos.
A partir da gestão do barão do Rio Branco no Itamaraty (1902-
1912), e de maneira não linear, o Brasil constituiu uma diplomacia que
buscava o status de potência regional, a hegemonia na América do Sul
compartilhada com aliados na vizinhança. Internamente, buscava-se
a materialização de um projeto de desenvolvimento nacional. Essa
política expressou a busca de autonomia econômica e a atração de
capitais externos que fomentassem a industrialização e o aumento

(2) Professora e professores do Bacharelado de Relações Internacionais da UFABC


e Coordenadores do Opeb

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

da produtividade agrícola. A formação de uma burguesia com forte


apoio estatal, a partir de 1930, deu legitimidade ao que, no início dos
anos 1960, se denominou política externa independente.
Em pelo menos dois momentos essas metas foram deixadas
de lado, em favor de uma subordinação clara a Washington. Foi o
caso dos governos Dutra (1946-1951) e Castelo Branco (1964-1967),
ambos em períodos críticos da Guerra Fria. As duas administrações
tinham em comum o fato de expressarem anseios de frações das
classes dominantes vinculadas a interesses estadunidenses diante
de períodos em que o nacional-desenvolvimentismo dava a tônica
na política econômica. Mas, mesmo essas diretrizes não chegaram
perto – no mau sentido – do que foi a política externa executada entre
2019-2022. Aqui houve uma subordinação explícita a ordenamentos
estrangeiros, em especial na economia, e a subversão de aspectos
tradicionais da diplomacia, como o universalismo, o regionalismo, o
pragmatismo, o pacifismo etc. Em síntese, elementos constitutivos de
nossa tradição externa foram de uma ou outra forma abandonados.
Retirou-se uma espécie de verniz civilizatório da diplomacia.

O abismo bolsonarista
Diante de uma política de inserção econômica pautada pelo
neoliberalismo, com a venda barata de ativos nacionais e destruição
ambiental e social, os investidores internacionais aumentaram em
peso suas apostas no Brasil, aprofundando tendências que vinham
do Governo Temer. Além disso, Bolsonaro dilapidou a imagem
internacional do Brasil e desmoralizou o ministério das Relações
Exteriores. O ex-capitão atrelou o interesse nacional aos desígnios
da extrema-direita global, cuja liderança mais expressiva nos dois
primeiros anos de seu mandato foi Donald Trump. Sua coalizão polí-
tica buscou fazer do Itamaraty um aparelho de reprodução ampliada
do negacionismo, do regressismo, e do anacronismo de uma versão
tropical de fascismo. É algo muito mais rebaixado politicamente do
que subordinar nossa política externa ao Departamento de Estado,
o que já seria escandaloso.
A política externa de Jair Bolsonaro teve duas etapas. A pri-
meira ocorreu quando o Itamaraty esteve sob a batuta de Ernesto
Araújo, entre janeiro de 2019 e março de 2021. Teríamos aí uma
espécie de bolsonarismo ideológico, construído a partir de livros e

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

cursos on-line ministrados pelo autodenominado filósofo Olavo de


Carvalho (1947-2022).
O primeiro chanceler de Bolsonaro praticou uma diplomacia
pautada por um anticomunismo simplório, preconceitos contra a
China, tentativas de intervenção na Venezuela, retirada ou redução
da participação do Brasil em diversos organismos internacionais
(Mercosul, Brics, Unasul, Celalc), conduta desastrosa na aquisição
de vacinas na fase aguda da pandemia, entre outras características
que resultaram em crescente isolamento internacional.
A perda de prestígio do Brasil em fóruns internacionais atingiu
seu auge quando Araújo pronunciou, em 22 de outubro de 2020, a
inesquecível frase: “O Brasil hoje fala de liberdade através do mundo.
Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse
pária”. A derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais de
2020 tornou sua gestão insustentável internacionalmente.
Seu sucessor, Carlos Alberto França, atuou entre março de
2021 e dezembro de 2022 e praticou o que se poderia denominar de
bolsonarismo de resultados. Sem mudar substancialmente a conduta
adotada até ali, o novo ministro buscou realizar uma política que,
embora sem brilho, reduziu os aspectos quase folclóricos de seu ante-
cessor e devolveu racionalidade às relações externas. França conteve
exageros verbais contra a China e conduziu o país a uma postura
mais equilibrada na ONU. O capítulo deste livro sobre a China de-
talha essa mudança, mas mostra ao mesmo tempo que em nenhum
momento os interesses econômicos e financeiros foram atingidos.
Pelo contrário, o comércio com a China avançou significativamente
durante o governo Bolsonaro.

A interrupção de um ciclo
É impossível entender a política externa do período sem
contextualizá-la em nossa vida política e econômica. No último dia
de 2022 saiu de cena um governo pautado pela intolerância, violência,
negacionismo, ataques à democracia e conduta genocida ao longo da
pandemia de covid-19. Se olharmos para o passado recente, podemos
dizer que o impulso que levou Jair Bolsonaro à vitória em 2018 teve
início com o golpe contra o Governo Dilma Rousseff, em 2016, e a

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dois anos depois, a


partir da grande farsa judicial representada pela operação Lava Jato.
Mas há condicionantes mais profundas na vitória obtida pela
extrema-direita. É preciso colocar nossa trajetória histórica em pers-
pectiva para termos noção do que enfrentamos.
O Brasil foi colônia por 322 anos, império por 67, república
oligárquica por 41 e enfrentou 36 anos de ditadura aberta no século
XX. Desde a invasão europeia de 1500, o país viveu apenas 56 anos
de democracia. Mesmo assim, democracia mitigada, com rarefeita
justiça social.
Somos um país pautado pelo racismo, pelo patriarcalismo, pela
profunda desigualdade e preconceito social, pela violência de classe,
por um Estado excludente e por um capitalismo de compadres. Ou
seja, o quadriênio bolsonarista tem sólidas raízes em nossa construção
nacional. Não é um raio em céu azul.
A candidatura de Jair Boslonaro em 2018 representou a segunda
tentativa em que a extrema-direita se lançou de forma aberta à cata de
votos em pleitos presidenciais democráticos. A oportunidade anterior
aconteceu nas eleições de 1955. A disputa foi vencida por Juscelino
Kubitschek (PSD, de centro-direita), com 54,1% dos sufrágios. O líder
integralista Plínio Salgado (PRP) galvanizou o ultraconservadorismo e
ficou em 4quarto lugar, obtendo pífios 8,28% da preferência dos votantes.
Nunca mais um representante desse campo obteve votação ex-
pressiva. Aliás, logo após a ditadura militar (1964-1985), ser chamado
de “direita” era quase um xingamento.
Vale perguntar: como se tornou possível que, depois de quatro
vitórias seguidas de candidatos de centro-esquerda, um defensor
da ditadura, da tortura, do racismo, da homofobia, da misoginia,
do negacionismo da vacina diante do avanço da pandemia de
covid-19(3) e avesso a qualquer avanço democrático se tornasse
Presidente da República?

(3) De acordo com o relatório final da CPI da Covid, realizado no senado em


2021, Bolsonaro “foi omisso e optou por agir de forma não técnica e desidiosa no
enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, expondo deliberadamente a
população a risco concreto de infecção em massa” (O Globo, 2021).

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

A construção da política altiva e ativa


Lula foi eleito em 2002 e reeleito em 2006 com mais de 60% dos
votos válidos, em segundo turno. Ao terminar seu segundo mandato,
em fins de 2010, sua popularidade alcançava 83% de aprovação(4).
Muito dessa aceitação deveu-se a um crescimento econômico expres-
sivo, que possibilitou um quadro de virtual pleno emprego no início
da década seguinte, programas sociais eficientes, com destaque para
o aumento real de 70% no salário mínimo, a expansão do crédito ao
consumidor, além da bem-sucedida experiência do programa Bolsa
Família. Em tempos de boom das commodities (2004-2012), foi possível
alargar o mercado interno, incluindo milhões de trabalhadores no
circuito de consumo.
Como se sabe, a primeira década do século XXI constituiu-se
num cenário atípico em termos mundiais. A chegada ao mercado
internacional de novos países fortes importadores de produtos pri-
mários – China e Índia, em especial –, um aumento significativo da
liquidez – e do crédito – internacional, combinados com taxas de juros
baixas nos países centrais, facultaram a entrada de grande volume
de capital nos países do sul do mundo.
A existência de excedentes externos expressivos ao longo do se-
gundo mandato de Lula permitiu uma ousada ação estatal durante a
crise de 2008. Ali, o governo decidiu elevar os gastos públicos em uma
direção contracíclica, mantendo o aumento real do salário mínimo,
expandindo o crédito e incentivando a população a consumir – o que
afastou os efeitos mais graves da primeira onda da crise.
A política externa dos governos Lula – encabeçada por três fi-
guras-chave da vida pública nacional, Marco Aurélio Garcia, Celso
Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães – representou a retomada da
tradição de autonomia que floresceu com vigor no Itamaraty a partir
de meados dos anos 1970. Eram os tempos da fase desenvolvimentista
da ditadura militar (1964-1985) e do chamado pragmatismo responsável,
comandado pelo chanceler Antônio Azeredo da Silveira (1974-1979).
Internamente, o Brasil dava um ousado passo para completar sua

(4) FOLHA DE S. PAULO, 28.10.2010, “Com 83%, aprovação ao governo


Lula bate recorde histórico, mostra Datafolha” (https://www1.folha.uol.com.br/
poder/2010/10/820667-com-83-aprovacao-ao-governo-lula-bate-recorde-historico-
mostra-datafolha.shtml?cmpid=menupe –Acesso em: 10 maio 2022).

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

industrialização, com o setor de bens de capital, algo até então inédito


ao sul do mundo.
A sincronização entre diplomacia e desenvolvimento do pe-
ríodo foi recuperada – sem o autoritarismo ditatorial – três décadas
depois. Amorim denominou suas diretrizes no Itamaraty de política
externa altiva e ativa.
A relativa autonomia brasileira conquistada entre 2003 e 2010,
como comentado, se deu no contexto da expansão internacional do
mercado de commodities, que gerou saldos expressivos na balança
comercial, e pelas prioridades estabelecidas pelos Estados Unidos
na chamada “guerra ao terror”. Caiam para segundo plano as inter-
venções latino-americanas da superpotência – que se desgastaram
em 2002, no desastrado golpe de Estado na Venezuela –, deixando
o caminho aberto para ousadias diplomáticas dos países da região.
No Brasil, tal quadro deu margem a uma política monetária
expansiva, com a adoção de políticas sociais focadas, elevação real
do salário mínimo e taxas mais elevadas de crescimento do PIB em
relação ao observado nos anos 1990. Aqui deve se mencionar ainda
o papel do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), do BNDES,
com o provimento de financiamento para a internacionalização de
empresas, e da Petrobras (com o novo marco regulatório do pré-sal)
como importantes indutores da economia. Ainda, houve a volta de
uma política industrial-tecnológica, com investimento nas universida-
des públicas, a partir do entendimento de que a geração endógena de
tecnologia é essencial para a soberania. Pode-se dizer que o período
marcou a volta do desenvolvimento à agenda nacional pela primeira
vez em quase três décadas.
Nessa conjuntura, a política externa adotou como duas de suas
diretrizes a busca de diversificação e a ampliação do leque de parceiros
na esfera do comércio, e destaque deve ser dado ao papel decisivo do
Brasil para a constituição do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura
e Planejamento (Cosiplan), em 2009, e, já no Governo Dilma, do Novo
Banco de Desenvolvimento (NBD), no âmbito do Brics.
Além de a China ter se tornado o maior parceiro comercial
brasileiro, houve sensível incremento de relações com o Sul Global.
Essa percepção é confirmada pelo aumento do número de postos
diplomáticos no exterior. De 150, no fim de 2002, passaram a 228,

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

em 2014. O número de diplomatas fora do país subiu de 549 para


898 no mesmo período(5).
Além disso, o Brasil teve papel relevante na inviabilização da
Área de Livre Comércio das Américas (Alca), durante a Cúpula das
Américas de Mar Del Plata (Argentina, 2005), e também assumiu o
protagonismo na transformação do Mercosul de área de livre comér-
cio em união aduaneira e bloco político. Além disso, a constituição
do G-20 em 2003 e da União de Nações Sulamericanas (Unasul) em
2008, a articulação entre Brasil, Rússia, Índia, China, que resultou na
constituição do Brics em 2009, com a inclusão da África do Sul em
2011, e as tentativas de negociação do programa nuclear iraniano
em 2010 foram resultados exitosos da diplomacia comandada por
Celso Amorim.

Havia um golpe no meio do caminho...


A política externa nos governos de Dilma Rousseff foi afetada
pela complicada conjuntura externa e problemas de política inter-
na. Ainda assim, é possível assinalar que houve continuidade de
objetivos com relação ao Governo Lula, com atuações relevantes
do Brasil, em especial para o avanço de iniciativas como o Brics e
a expansão do Mercosul.
Em termos domésticos, o país continuou seu caminho para uma
maior democratização nas políticas públicas de combate à pobreza,
de ampliação do mercado interno e de avanço de candidaturas pro-
gressistas em sucessivas eleições.
Contudo, a perda de popularidade da presidenta, que se iniciou
a partir dos protestos de junho de 2013, e a decadência econômica e
política de setores afetados pela Operação Lava Jato, criaram cenário
fértil para a mudança de configuração das forças políticas.
Reeleita em 2014, mas sem maioria no Congresso, enfrentando
pesada campanha midiática e os efeitos da Lava Jato, a presidenta
teve difíceis condições de governabilidade em seu segundo mandato,
marcado por dificuldades externas e internas.

(5) Dados do Ministério das Relações Exteriores.

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

À campanha de desgaste somou-se a difusão escandalosa por


parte da grande mídia de que o país enfrentava um dos maiores
casos de corrupção da história mundial. A campanha moralista logo
transmutou-se em abertas mobilizações golpistas. O vice-presidente
Michel Temer (MDB) assumiu o comando da sedição.

Preparando o terreno para a extrema-direita


Consumado o golpe parlamentar de 2016, o recém-empossa-
do Governo Temer aprofundou medidas econômicas recessivas e
acelerou o desmonte do Estado, prolongando a crise. Houve um
ataque imediato à Petrobras e a abertura acelerada do pré-sal para
os oligopólios internacionais. Somem-se a isso, as facilidades dadas
à entrada de mineradoras e do capital internacional até mesmo em
nas áreas de educação e saúde. Foram retomadas as negociações
com a União Europeia para um acordo com o Mercosul, pautou-se
a adesão do país a OCDE, e a entrega da base de Alcântara para os
interesses estadunidenses articulados a aliados internos – aspectos
que seriam consolidados futuramente com o Governo Bolsonaro. No
aspecto social, amplos setores populares mergulharam na pobreza,
setores que nos anos anteriores haviam experimentado algum nível
de ascensão social.
A rápida desmoralização do governo golpista, composto pelo re-
botalho do sistema político, pareceu contaminar todas as alternativas
colocadas à direita do espectro político à medida que se aproximavam
as eleições de 2018. O PMDB e o PSDB, partidos que nuclearam o
golpe, não conseguiram apresentar candidatos competitivos. Lula
despontou desde o início do ano como favorito (6). A partir daí, a
história é conhecida.
O judiciário, em ação concertada com a mídia e o grande capital,
retira Lula da disputa e o condena a nove anos e seis meses de prisão,
num processo totalmente sem provas. O conservadorismo brasileiro
– grande capital, mídia, militares e o regressismo político e religioso

(6) O Globo, 22.08.2018: “Pesquisa Datafolha: Lula, 39%; Bolsonaro, 19%; Marina,
8%; Alckmin, 6%; Ciro, 5%” (https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-
em-numeros/noticia/2018/08/22/pesquisa-datafolha-lula-39-bolsonaro-19-marina-
8-alckmin-6-ciro-5.ghtml, Acesso em: 8 jun. 2018).

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

– engajou-se na aventura de eleger um ex-militar sem apreço algum


pelo regime democrático.
A maior proeza de Jair Bolsonaro em 2018 foi impor sua agenda à
disputa. Seu programa de governo – denominado O caminho da prospe-
ridade – era constituído por um power point de 81 páginas, reunidas sem
método claro e repleto de slogans e frases típicos da extrema-direita,
como “O fruto da vida é sagrado”, “Quebrado o atual ciclo, com o
Brasil livre do crime, da corrupção e de ideologias perversas, haverá
estabilidade, riqueza e oportunidades para todos tentarem buscar a
felicidade da forma que acharem melhor”, “A nossa bandeira é verde
e amarela” e “Mais Brasil, menos Brasília”, entre outros (7).
A parte de política externa ocupa uma página e cinco parágrafos,
com mais lugares- comuns extremistas, como “Deixaremos de lou-
var ditaduras assassinas e desprezar ou mesmo atacar democracias
importantes como EUA, Israel e Itália. Não mais faremos acordos
comerciais espúrios ou entregaremos o patrimônio do povo brasileiro
para ditadores internacionais”. O capítulo deste livro denominado
“A política externa no programa de governo dos candidatos à pre-
sidência da República” contrapõe as propostas de Lula e Bolsonaro
para as eleições de 2022 e fornece importantes elementos para um
exame do bolsonarismo no poder.

Nacionalismo farsesco
Jair Bolsonaro pavimentou a vitória ao vincular sua candidatura
ao que seriam os interesses maiores da Nação. Sem propostas claras
de governo (à exceção da área de energia, que expressava a continui-
dade da política privatista e de desmonte da Petrobras do governo
Temer), bancou uma ousada disputa ideológica. Tocou fundo aspec-
tos afetivos, históricos e identitários da população. Aliás, não apenas
ele, mas a extrema-direita brasileira agiu com competência ao exibir
uma estética nacionalista, a partir das manifestações de junho de 2013.
O nacionalismo é um atributo ideológico de grande apelo. No
caso de Bolsonaro, a agenda econômico-financeira era fortemente li-
beral, globalizante e subserviente a interesses nacionais e estrangeiros

(7) Disponível em https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/


BR/BR/2022802018/280000614517/proposta_1534284632231.pdf

● 17 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

específicos. Suas linhas de força envolviam a entrega do pré-sal às


transnacionais, a venda da Petrobras, a diplomacia alinhada a Donald
Trump e privatizações no atacado. Sua política externa valeu-se de
um extemporâneo palavreado místico e anticomunista em defesa da
“civilização judaico-cristã”.
O uso do nacionalismo não se deve apenas a um comportamento
demagógico, apesar de essa característica ser evidente. O fato é que
ele foi usado como bandeira para esconder interesses particulares.
Eleito em um quadro de descrédito das instituições representativas e
com um discurso fortemente antissistêmico, o ex-militar é caudatário
de uma oportunidade histórica especial.

O ascenso da antipolítica
A vitória de Bolsonaro foi a vitória da antipolítica e de uma
rasa pregação antissistêmica. Em sua campanha, o candidato da ex-
trema-direita encontrou um terreno de desesperança e desencanto,
motivado em grande parte pela virada recessiva de 2015-2016, pela
Lava Jato e pela inclemente campanha pseudomoralista da mídia.
O negacionismo em Bolsonaro teve a função de consolidar
uma base social extremista através de um discurso que envolve a ne-
gação da ciência, da democracia e de relações pacíficas no interior da
própria sociedade. Ou seja, uma pregação autoritária, com defesa do
armamento da população, da eliminação dos diferentes – esquerda,
movimentos sociais, comunidade LGBTQI+ etc., além de aberta cam-
panha contra a vacinação da população. Por mais bizarras e ilógicas
que tais formulações sejam, elas não visam apenas convencer seu bloco
de sustentação, mas manter um permanente clima de confronto na
sociedade, e que precisa a todo momento de um inimigo visível para
seguir no poder. De forma não surpreendente, partidos políticos libe-
rais e setores econômico-financeiros estiveram dispostos a sacrificar
a democracia para segurar seus interesses e privilégios por meio do
Governo Bolsonaro. O mesmo valeu, de forma mais camuflada, para
os interesses internacionais que se aproveitaram das políticas liberais.
A extrema-direita perdeu as eleições. Embora desorganizada e
fora do poder político, essa nova versão do fascismo segue alojada
em algumas instâncias do Estado – em especial nas Forças Armadas
– e enquistada em vários setores da sociedade.

● 18 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

A virada nas eleições de 2022


A vitória de Lula não representa apenas a vitória de um candidato
ou partido. É a vitória de um amplo espectro político de forças num
país dividido ao meio. A tarefa democrática dos próximos anos é buscar
minorar nossa desigualdade social e a chaga da miséria, da fome e da
doença. É reverter a já comentada desesperança e falta de perspectivas,
que funcionam como fertilizantes do extremismo de direita.
A questão será como conciliar a necessidade de gerar mudanças
sociais progressistas e os interesses econômico-financeiros que tam-
bém estão embarcados no novo Governo Lula. Deve-se dizer também
que muitos dos interesses financeiros (“a Faria Lima”) e econômicos
(em particular o agronegócio) que apoiaram Bolsonaro o abandona-
ram ao final. Possivelmente avaliaram que ele foi longe demais na
sua pauta antidemocrática e isolacionista. Incapazes de impulsionar
uma terceira via, optaram pelo apoio a Lula no segundo turno.
Tais setores e interesses, nacionais e internacionais, pressionam
o eleito para dar continuidade às políticas econômicas ultraliberais
do período Temer-Bolsonaro. Nas palavras de um editorial da Folha
de S. Paulo (30/12/2022), “Há um legado a preservar na economia,
para o bem-estar social”. E isso se manifesta na área internacional
com pressões para uma rápida adesão à OCDE, para a ratificação
do Acordo União Europeia-Mercosul da forma como foi negociado
após o golpe de 2016, para a manutenção dos preços dos derivados
de petróleo atrelados aos internacionais, e, num plano geral, contra
o ativismo estatal na área econômica. A capacidade de mobilização
desses setores econômicos e financeiros foi testada com sucesso
antes da posse, com o apoio articulado ao candidato de Paulo Gue-
des – também apoiada por Washington – à presidência do Banco
Interamericano de desenvolvimento (BID).

Nossa contribuição
Este livro busca realizar um balanço da política externa bolso-
narista nos últimos quatro anos. Em alguns pontos, faz referências
também aos dois anos do Governo Temer. É composto por oito capí-
tulos elaborados pelos grupos de trabalho do Opeb ao longo de 2022.
Eles enfocam as relações do Brasil com a América Latina, Estados
Unidos, África e China. Volta-se também para áreas gerais, como

● 19 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Direitos Humanos, meio ambiente, inserção econômica internacional


e políticas de defesa. Um capítulo sobre os programas políticos dos
candidatos ao segundo turno do pleito de 2022 fecha o volume.
Trata-se de uma obra coletiva, elaborada por pesquisadores/
as docentes e discentes da Universidade Federal do ABC – ligados/
as ao Bacharelado de Relações Internacionais (BRI), ao Programa
de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PRI) e ao Programa
de Economia Política Mundial (EPM). Ela foi produzida num clima
estimulante de debates, paradoxalmente num período em que se
tentou abafar a saudável troca coletiva de ideias em nossa sociedade.
Agradecimentos especiais devem ser registrados à Fundação
Friedrich Ebert Stiftung Brasil (FES Brasil), por todo apoio dado ao
Opeb desde o início de suas atividades. Essa gratidão se estende
também às Pró-Reitorias de Extensão e Cultura (Proec) e de Pesquisa
(Propes), pela acolhida do projeto dentro da Universidade. E vai
além: nosso muito obrigado a todo/as os/as docentes, discentes e
monitores/as do projeto em 2022 – Bianca Peraccchi Afonso, Bruno
Fabrício A. da Silva e Nicole S. Lima – e a assessora de comunicação
Paula Vianna.
Esperamos cumprir com esse trabalho um dos papéis sociais re-
levantes da universidade pública, o de democratizar o conhecimento.
Para isso existimos e para isso trabalhamos.

● 20 ●
América Latina: quatro anos
ladeira abaixo

Ana Beatriz Aquino, Audrey Andrade Gomes, Bruno Fabricio Alcebino


da Silva, Caio Vitor Spaulonci, Felipe Teixeira, Gabriel Calil Schmidt,
Gabrielly Provenzzano da Silva, Geovanna Mirian Raimundo, Gilberto
Maringoni, Giovanna Martins de Antonio, Gustavo Mendes
de Almeida, Henrique Mario de Souza, Isabella Brandão Alcantara,
Júlia Cardoso de Magalhães, Laryssa Mendes Bastos, Laura do Espírito
Santo Silva, Melissa Souza Jorge, Tatiane Anju Watanabe,
Vinicius Silva Santos, Vitor Cristian Maciel Gomes(8)

No quente início de tarde do dia 12 de janeiro de 2023, numa


concorrida entrevista coletiva num dos salões da Casa Rosada, em
Buenos Aires, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao lado do
presidente argentino Alberto Fernández, iniciou sua fala com a frase
“O Brasil está de volta”. Ela seria repetida várias vezes nessa viagem
inaugural de seu terceiro mandato, à Argentina e ao Uruguai.
Lula rompia ali quatro anos de isolamento continental a que
o país fora submetido por seu antecessor. No dia seguinte, ele se-
ria a estrela principal da VIII Cúpula da Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que apontou a luta pela
democracia como tema central. O jornal argentino Página 12 desta-
cou a presença do ex-metalúrgico como marcante, pois “provoca
um giro político na região”.

Clima mais leve


A vitória eleitoral da ampla frente política liderada pelo presi-
dente Luís Inácio Lula da Silva, em outubro de 2022, pode realmente

(8) Pesquisadoras e pesquisadores do GT de América Latina do Opeb.

● 21 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

alterar o panorama político da América Latina e as perspectivas


para o futuro imediato. “O clima do país está mais leve”, afirmou o
vice-presidente Geraldo Alckmin, ainda antes da posse. A frase, que
guarda forte dose de subjetividade, parece se estender além-frontei-
ras. “As pessoas ao redor do mundo estão esperando que você não
apenas salve a Amazônia, mas salve o mundo”, escreveu na revista
New Yorker o jornalista estadunidense Jon Lee Anderson, ao relatar
uma conversa com o ex-presidente, logo após sua eleição.
Anderson, autor entre outros do alentado Che, uma biografia
(Editora Objetiva, 1997), não parece exagerar. Num cenário carente
de lideranças globais de envergadura, à exceção talvez de Xi Jinping,
Vladimir Putin e do Papa Francisco, independentemente da opinião
que se tenha sobre cada um deles, Lula se destaca. É o único entre os
quatro que foi eleito de forma livre e direta pela população.

O conservadorismo no mundo
O antigo sindicalista volta à presidência num quadro em que
o fascismo reassume o poder na Itália e torna-se a segunda força
parlamentar na Suécia, compondo o governo formado em outubro
de 2022. A onda ultraconservadora se consolidou também como
segunda tendência na França e avançava na Alemanha, em Portugal
e na Espanha no final do mesmo ano, além de seguir governando
Hungria e Polônia.
Diferentemente do panorama de duas décadas antes, quando
Lula chegou ao Planalto pela primeira vez, o unilateralismo de
Washington não reina absoluto frente a uma Rússia devastada pelos
anos Yeltsin e uma China que começava a se colocar como ator in-
ternacional de envergadura. A guerra ao terror desviara o foco do
Departamento de Estado para ações no Oriente Médio – Iraque e Líbia
em especial – e no Afeganistão. A América Latina, secundarizada pela
diplomacia imperial, encontrou aí a oportunidade de criar laços de
confiança entre países que elegiam governos marcados por um vago
discurso antiliberal e colocavam agendas sociais no centro de suas
ações, formando o que imprecisamente se denominou onda rosa. O
reiterado êxito eleitoral das administrações do PT, dos Kirchner, de
Hugo Chávez, de Evo Morales, de Rafael Correa e da Frente Ampla
uruguaia se deu a partir de políticas públicas tornadas possíveis pela

● 22 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

alta dos preços das commodities entre 2004-2014, o que favoreceu o


balanço de pagamentos de cada um, até a emergência da crise de 2008.
Tais administrações enfrentaram um paradoxo. Alegaram buscar
distância das diretrizes econômicas mercadistas, esboçaram maior
ativismo estatal, reafirmaram as soberanias nacionais, mas não lo-
graram alterar estruturalmente o panorama econômico e social de
seus países. Aplicaram programas pontuais de socorro à pobreza,
sem projetos estruturantes de um novo modelo de desenvolvimento.

Os primeiros governos Lula


A política externa dos dois primeiros governos Lula (2003-2011)
caracterizou-se por sua postura desenvolvimentista e multilateralista,
apesar de o projeto econômico interno não ser claramente desenvol-
vimentista. O país teve uma aproximação intensa com a África, a
Ásia e os países árabes, consolidando a universalização da política
externa brasileira.
Há duas décadas, os principais parceiros comerciais do Brasil
eram, pela ordem, Estados Unidos, Argentina e China. Os termos da
equação praticamente se inverteram e a sequência agora compreende
a primazia da China, seguida dos Estados Unidos e Argentina.
Embora sigamos com crescentes superávits na balança comercial,
há uma preponderância absoluta de commodities agrícolas e minerais
na pauta de exportações. A situação indica perda de competitividade
e consolida uma tendência reprimarizante, o que fortalece o caráter
periférico da economia nacional. A isso se soma a aprovação do teto
de gastos, em 2016, que condena o país a um ajuste fiscal permanente,
impossibilitando qualquer política desenvolvimentista consistente. O
Brasil fica aprisionado à condição de importador de manufaturados,
o que reduz os horizontes da política externa. O espectro do fazendão
de café pré-1930 se torna perigosamente real, num mundo em que
as disputas em áreas de tecnologias de ponta, com produtividade
crescente, definem o mercado global.
O Brasil exerceu nos anos Lula um papel de crescente influência
global, buscando ter voz nos organismos multilaterais e colocan-
do-se como articulador na conformação do G-20 (2008) e do Brics
(2010). Sem liderar propriamente uma tendência alternativa, o país,
no entanto, buscou ocupar os limites do sistema internacional como

● 23 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

um articulador continental decisivo e presença qualificada entre os


países do Sul Global. Apesar de ter mantido a histórica bandeira por
um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU – para o
qual as chances de êxito são reduzidas –, o país soube adaptar essa
demanda para uma justa reivindicação pela democratização das
instâncias de poder global.

O cenário do início de 2023


A situação atual é qualitativamente distinta. O mundo é pautado
por um enfrentamento entre EUA e China, que começou como guerra
comercial no governo Trump e avança para o de disputa geopolítica
de envergadura. No documento oficial Estratégia de Segurança Na-
cional (National Security Strategy), divulgado no início de outubro, a
Casa Branca demonstra que Moscou e Pequim estão cada vez mais
alinhados entre si, apesar de terem desafios distintos. Enquanto a
Rússia “desrespeita de forma imprudente as leis básicas da ordem
internacional”, a China “é [nossa] única concorrente que tem a in-
tenção de remodelar a ordem internacional, incrementando [seu]
poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para alcançar tal
objetivo”. Ou seja, de concorrente no mercado, o país asiático passa
à condição de inimigo estratégico, numa reedição torta dos termos
da Guerra Fria. Ambos os lados pressionam os países da periferia
a alinhamentos nítidos. Nesse quadro delicado, o Brasil precisará
exercer a um só tempo neutralidade e protagonismo diante do novo
conflito Leste-Oeste.

Diplomacia selvagem
Desde o golpe parlamentar de 2016, os governos que sucederam
o de Dilma Rousseff utilizaram de forma limitada a política externa
como instrumento estratégico para o desenvolvimento interno. O
que se viu, especialmente a partir de Bolsonaro, foi a subordinação
da diplomacia a acenos ideológicos à extrema direita global.
O Brasil dos últimos seis anos retraiu sua capacidade de in-
tervenção, abdicou de participar de organizações como a União
das Nações Sul-americanas (Unasul) e a Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), retraiu sua presença no
Brics e no Mercosul e criou arestas em organismos da ONU, como
a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Comissão de Direitos

● 24 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Humanos. A expressão síntese dessas iniciativas foi proferida pelo


ex-chanceler Ernesto Araújo, em 2020, ao se vangloriar de o país ter
se isolado a ponto de ocupar a posição de um pária global.
A eleição de Jair Bolsonaro, em fins de 2018, navegou nas águas
do golpe de 2016 e da farsa judicial da Lava Jato. O tom de sua política
externa foi anunciado antes mesmo da posse, em tons de ópera-bufa.
Poucos dias após a vitória, o já indicado ministro da Economia
Paulo Guedes foi interpelado por uma jornalista argentina sobre o
futuro do Mercosul. A resposta veio aos berros: “Não é prioridade!
Não é prioridade!” . O tom e o desprezo aos organismos de integração
continental tiveram ali uma prévia consistente.
Bolsonaro levou o Brasil a um alinhamento passivo e acrítico
com o Departamento de Estado da Era Trump, que compreende
agressividade diplomática para com a China, Irã, Venezuela e apro-
ximação a homólogos ideológicos como o húngaro Viktor Orbán,
o filipino Rodrigo Duterte e o polonês Andrzej Duda, entre outros.
Bolsonaro recolocou os termos da diplomacia brasileira nos mar-
cos de um período que coincide com a Guerra Fria. O alinhamento
automático com Trump acabou com o papel histórico de mediador
regional desempenhado pelo Brasil desde as gestões do barão do
Rio Branco (1902-12), patrono da diplomacia brasileira e ministro de
quatro presidentes da República.

A vaga conservadora
O extremista elegeu-se no bojo de uma vaga conservadora na
América do Sul. No final de 2018, logo após a eleição do ex-capitão,
era de se imaginar ele se somaria a uma coalizão da direita conti-
nental, da qual participariam o chileno Sabastián Piñera (2018-2022),
o argentino Maurício Macri, os golpistas bolivianos (2019-2020) e o
colombiano Iván Duque (2018-2022). O primeiro passo para isso foi
o esvaziamento dos organismos de integração, criados em décadas
anteriores – em especial a Unasul (2008) –, e o fortalecimento do Gru-
po de Lima – formado por um conjunto de governos que se opõem
ao governo de Nicolás Maduro, constituído em 2017. A integração
regional sob o controle da direita tomou seus primeiros – e únicos
– passos com a criação do Foro para o Progresso da América do Sul
(Prosul), em 2019. A iniciativa foi de Chile e Colômbia, à qual se

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

juntaram o Brasil, o Equador, a Argentina, o Peru e o Paraguai, com


o objetivo substituir a Unasul. Apesar de seus líderes pretenderem
evitar um caráter ideológico, o fórum trabalhou em pautas caras às
diretrizes de do Departamento de Estado dos EUA. O Prosul mos-
trou-se desarticulado, sem apresentar movimentações relevantes.
A ascensão da direita no continente visou a uma contraposição
aos rumos traçados pelos governos progressistas eleitos entre 1998 e
2014 e uma adesão mais clara a políticas neoliberais. Mesmo assim,
tais aspectos não foram suficientes para promoverem um alinhamento
entre os líderes da direita continental.
Lacalle Pou, eleito no Uruguai em 2019, rejeitou o apoio expres-
so por Jair Bolsonaro durante sua campanha eleitoral, declarando
que governos de outros países não deveriam interferir na eleição
local. No caso de Sebastián Piñera, a aversão ao passado ditatorial
manifestado por parcelas expressivas da sociedade chilena o afas-
tou de Bolsonaro, admirador confesso de Augusto Pinochet. Além
disso, a política ambiental brasileira acentuou discordâncias com
Iván Duque. O único tema a unir a direita sul-americana parece ser
a oposição à Venezuela.
No segundo mês de seu mandato, Bolsonaro somou-se às arti-
culações dos Estados Unidos, da Colômbia e do Grupo de Lima na
tentativa de realizar uma provocação à Venezuela. A ideia era promover
uma invasão pretensamente humanitária, a partir da cidade de Cucu-
ta, na Colômbia. O fracasso foi imediato. Bolsonaro reconheceu Juán
Guaidó, autoproclamado presidente do país, como seu representante
legal e rompeu relações com o vizinho. O resultado foi a perda de
credibilidade regional da diplomacia brasileira.
Um caso sintomático foi a eleição de Alberto Fernández à pre-
sidência da Argentina, que implicou a derrota de Maurício Macri,
em outubro de 2019. Bolsonaro não apenas não cumprimentou o
eleito, como lamentou sua vitória e ausentou-se da posse, gesto que
repetiu diante das eleições de Gabriel Boric (Chile) e Gustavo Petro
(Colômbia), em 2022. Não dirigiu a palavra uma única vez aos eleitos,
nem mesmo em conversas telefônicas. Cada vez mais, Bolsonaro atua
como agente provocador, buscando pautar a mídia e estimular os
setores extremistas que o apoiam, no Brasil e no exterior.

● 26 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

O ridículo em pauta
O ridículo também deu o tom em outra esfera da política regional,
aquela ligada às estratégias militares. Veio à público, em fevereiro de
2019, uma minuta elaborada pelas Forças Armadas brasileiras intitu-
lada Cenários de Defesa 2040 . O documento traça prospecções que se
afastam das características da política externa, principalmente as de
não intervenção e de resolução pacífica dos conflitos. O texto alude à
supostas ameaças francesas na fronteira amazônica, através da Guiana.
Faria parte de tais metas hipoteticamente traçadas a partir de fora o
apoio à emancipação dos Yanomami e até um atentado com coro-
navírus, disseminado pelo Sudeste Asiático no Rock in Rio de 2039.
Outra situação, mais concreta e posterior, foi a elaboração do
Projeto Barão do Rio Branco , que partilha ideias semelhantes. Neste,
há a visão de que ONGs, ambientalistas, indígenas e quilombolas são
inimigos do governo e do progresso na região. O que mais surpreen-
de é a ideia de que o Brasil pode ser invadido pela China através do
Suriname, sem nenhuma evidência no mundo real.
Bolsonaro assumiu as duas principais bandeiras de Trump para
o continente e fracassou. A primeira foi investir no isolamento da Ve-
nezuela na região, com o objetivo de derrubar o governo de Nicolás
Maduro. A segunda foi se somar à guerra comercial contra a China.
O fracasso em ambos os casos é evidente. A administração Ma-
duro seguia de pé no final do governo Bolsonaro e a China aumentou
sua presença na região, como atesta o documento O investimento
estrangeiro direto na América Latina e no Caribe (2021), da Cepal:
A China se situou entre os principais investidores
da América Latina e do Caribe na modalidade de
fusões e aquisições transfronteiriças: em 2020 foi o
país cujos acordos representaram o maior montan-
te. A participação das empresas chinesas no total
das fusões e aquisições da região passou de 1,7%
entre 2005 e 2009 para 16,3% entre 2015 e 2019 .

Os posicionamentos de Bolsonaro e sua postura negacionista


diante da pandemia o isolaram entre os vizinhos e frustraram
articulações que deveriam incluir o Brasil. Ao mesmo tempo,
vale reconhecer que alguns dos governos de direita no continente

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

enfrentaram derrotas eleitorais a partir de 2019, o que também inibiu


suas articulações além-fronteiras.

Dois anos e meio de pandemia


A partir de dezembro de 2019, o mundo foi colhido pela pande-
mia do novo coronavírus. A doença chegou ao Brasil em março do
ano seguinte. Uma conduta negacionista e anticientífica do Governo
Bolsonaro fez com que o vírus rapidamente se espalhasse pelo terri-
tório nacional e chegasse ao descontrole quase total.
Como resultado, 690 mil brasileiros perderam a vida até de-
zembro de 2022. Com um sistema de saúde – o SUS – em processo
de desmantelamento, o chanceler Ernesto Araújo chegou a difundir
a ideia de que o vírus seria parte de uma conspiração do comunis-
mo chinês para conquistar o mundo. Para além disso, alguns países
vizinhos, que adotaram controles mais rígidos, logo fecharam as
fronteiras ao Brasil. O espalhamento do vírus e a desastrosa política
ambiental oficial levaram o mesmo Araújo a admitir que o país se
tornara “um pária” internacional.
A pandemia da covid-19 esteve no centro das articulações entre
os países da América Latina ao longo de 2020-2021. Suas decorrências
invadiram as searas econômica, política, social e cultural. No Brasil,
o presidente minimizou desde o início a gravidade da situação,
contrariando as dinâmicas de distanciamento social e quarentena
recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), sob a
justificativa de que tais medidas prejudicariam a economia e levariam
ao caos social. A situação se agravou a ponto de o presidente da Ar-
gentina, Alberto Fernández, criticar a postura do governo brasileiro
em se opor à quarentena e a outras medidas mais severas, em 2020. Os
governos argentino, colombiano e paraguaio fecharam as fronteiras
com o Brasil. O presidente paraguaio Mario Abdo Benítez afirmou
que o Brasil era “a principal ameaça na luta contra a pandemia”.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, em um pronun-
ciamento em dezembro daquele ano, sem mencionar o Brasil, criticou
países que insistiam em negar as recomendações e alertas dados pela
Organização Mundial de Saúde. A alta comissária da ONU para Di-
reitos Humanos e ex-presidente do Chile Michelle Bachelet também
comentou a situação: “A covid-19 teve um impacto devastador no

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Brasil, (...) onde vimos um impacto desproporcional em grupos em


situação vulnerável, como pessoas vivendo na pobreza, afrodescen-
dentes, indígenas, LGBTI, pessoas privadas de sua liberdade e pessoas
vivendo em locais informais” .
Os indicadores de infecção e mortes começaram a recuar a par-
tir de janeiro de 2021, quando o Instituto Butantan (SP) começou a
aplicar as primeiras doses de vacinas, apesar da franca oposição do
chefe de governo e da lassidão, descoordenação e incompetência do
Ministério da Saúde.
O continente foi duramente atingido por mais de dois anos
de pandemia. Segundo levantamento da agência Reuters, no final
de 2021, 1,55 milhão de latino-americanos havia perdido a vida em
decorrência da doença e quase cinquenta milhões tinham sido in-
fectados. No mundo todo, os óbitos alcançaram 5,35 milhões. Com
11,7% da população planetária, a região exibia quase 30% das mortes.
No início de julho último, o total de óbitos passava de 1,7 milhão.

Passando a boiada
No mesmo 2022 em que passou a vigorar o Acordo de Escazú —
o primeiro tratado ambiental da América Latina e do Caribe que busca
promover, entre outras coisas, a proteção de ativistas ambientais –,
os brutais assassinatos do jornalista Don Phillips e do ex-servidor da
Funai Bruno Pereira, na região da Amazônia, chocaram o mundo.
O acordo foi elaborado entre 2015 e 2018 em torno de ques-
tionamentos sobre a garantia de justiça ambiental para os povos e
ativistas que vivem em ambientes ameaçados e políticas ambientais
desvinculadas do interesse do mercado. Até o final do ano, o acordo
contava com as assinaturas de 24 governantes de países latino-ame-
ricanos e caribenhos.
O governo Bolsonaro, mais preocupado em “passar a boiada”
nas questões ambientais e climáticas, naturalmente não ratificou o
acordo. De certa forma, os casos ilustram simultaneamente a postura
brasileira de (não) participação em iniciativas de integração latino-
-americanas e o descaso do governo com questões relativas ao meio
ambiente, ao clima e, especialmente, com a crescente degradação da
Amazônia e o aumento da violência na região.

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Vale destacar que, em 2022, o esvaziamento dos mecanismos de


integração e a perda de protagonismo do Brasil no Mercosul, uma
de nossas principais plataformas de inserção internacional, ficaram
evidentes na ambígua postura brasileira frente à iniciativa de liberali-
zação do bloco defendida pelo Uruguai. Na 60ª Cúpula do Mercosul,
ocorrida em julho, o país reiterou sua intenção de firmar um tratado
de livre comércio bilateral com a China, proposta que coloca em
xeque a unidade do bloco, que define que todo tratado envolvendo
os países-membros seja negociado conjuntamente.
Lado a lado com a pouca prioridade atribuída à região ao longo
dos últimos quatro anos, as menções, frequentemente distorcidas,
mostram como a América Latina passou de principal plataforma de
projeção internacional do Brasil na política externa para um mero
espantalho no discurso eleitoreiro bolsonarista de 2022, invocada,
na maioria das vezes, de forma negativa.

O recuo no comércio
No início de 2020, a Argentina anunciou seu afastamento dos
processos comerciais do Mercosul, com exceção das negociações com
a União Europeia (UE) e a Associação Europeia de Livre Comércio
(Efta). Devido a tal suspensão, o governo brasileiro sugeriu mudanças
de regras atuais relacionadas ao estabelecimento de acordos. As novas
normas foram aventadas para proteger os membros que continuam
ativos no bloco, enquanto a Argentina se mantém de fora dos novos
tratados. Porém o Brasil quer uma cláusula que permita a volta do
país vizinho às negociações caso ocorra uma mudança de governo
ou em sua política externa.
Enquanto outros blocos regionais se articulavam em torno de
iniciativas para mitigar os impactos da covid-19, o Mercosul se man-
teve inerte sobre tal questão. Demais blocos regionais como União
Africana, União Europeia e Sistema de Integração Centro-Americano
se apoiaram em seus regimes para promover uma maior integração
regional e pensar as bases de uma retomada econômica. A falta de
um protagonista tem feito com que os projetos regionais tenham se
mantido em banho-maria.
Nem mesmo o acordo Mercosul-União Europeia, a maior aposta
do bloco para o Governo Bolsonaro, avançou. O empecilho maior foi
o Brasil e sua política ambiental. O desmatamento na Amazônia, que

● 30 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

bateu recordes em relação aos últimos dez anos, e o não cumprimento


com o Acordo de Paris são uns dos pontos destacados pelos países
que se mantêm reticentes em relação à ratificação do acordo.
No segundo ano de mandato, Bolsonaro perdeu seu maior aliado
internacional. A derrota eleitoral de Donald Trump desestabilizou
a política externa oficial. O isolamento externo do país foi a marca
do governo de extrema-direita, apesar da mudança na cúpula do
Itamaraty, em março de 2021, quando sai Ernesto Araújo e Carlos
Alberto França assume o comando do Itamaraty.

Problemas no comércio intrarregional


Mais de seis décadas após os primeiros planos de integração
econômica do subcontinente, desenvolvidos por expoentes da Cepal,
como o argentino Raul Prebisch e o brasileiro Celso Furtado, que
visavam integrar e industrializar a região para se alçar o desenvolvi-
mento econômico, assistimos nos últimos quatro anos a retrocessos
nos âmbitos econômico, político e social.
Podemos observar uma redução do comércio da região, além
de um processo de desindustrialização no Brasil. Segundo dados da
Pesquisa Industrial Anual Empresa (PIA) de 2020, “em dez anos, o
setor industrial perdeu 9.579 empresas, ou 3,1% do total. Isso repre-
sentou o fechamento de 1 milhão de postos de trabalho (-11,6% do
total)” . Devido à baixa competitividade dos produtos industriali-
zados latino-americanos no mercado internacional, os mecanismos
de integração regional se apresentam como relevantes alternativas
para as trocas industriais entre os países do bloco.
Pedro Silva Barros, Amanda Harumy e Leandro Corrêa argu-
mentam que 80% a 90% do intercâmbio intrarregional na América do
Sul, nos últimos dez anos, são de produtos industrializados. Dessa
forma, um processo de revitalização regional deverá conciliar as
expectativas de retomada do desenvolvimento com o cenário atual,
majoritariamente agroexportador.
Embora o comércio mundial e o avanço nas negociações com
países asiáticos, em especial com a China, sejam benéficos para a
balança comercial brasileira, a diminuição do ritmo da integração
regional é preocupante.

● 31 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Perspectivas no Governo Lula


Quais as perspectivas para o quadriênio 2023-2026? Os sinais
regionais são dados por vitórias importantes da centro-esquerda na
América Latina, seguidas por turbulências preocupantes nas economias
locais. Em 2018, Andrés Manuel López Obrador chega à presidência
do México, seguido pelo retorno do peronismo à Casa Rosada, com
Alberto Fernández. O país enfrenta agora uma grave crise financeira,
com alta inflacionária e desaceleração econômica. As eleições pre-
sidenciais bolivianas, em outubro de 2020, na prática, reverteram o
golpe de Estado de 2019, com o êxito de Luis Arce. A essas mudanças
podem se agregar a eleição de Pedro Castillo no Peru, em junho de
2021. Castillo não obteve maioria parlamentar. Sua administração foi
acidentada, atravessando uma sucessão de crises com o Legislativo.
No início de dezembro de 2022, após uma desastrada tentativa de dis-
solver o Congresso e convocar novas eleições – expediente previsto na
Constituição –, o presidente peruano foi destituído pelo Legislativo.
As grandes mobilizações de 2019-2020 no Chile resultaram na
convocação e na eleição de uma assembleia constituinte e na vitória
de Gabriel Boric, em 2022. Dificuldades na gestão política e ofensiva
conservadora levaram o governo à derrota estratégica no plebiscito
da nova Constituição, em setembro daquele ano. Na Colômbia, quase
três meses de maciços protestos, no primeiro semestre de 2021, foram
decisivos para a surpreendente vitória de Gustavo Petro e Francia
Márquez, em junho de 2022.
O presidente Manuel López Obrador convocou em setembro de
2021 os líderes da América Latina e Caribe para buscar reorganizar
o bloco latino-americano junto à Comunidade de Estados Latino-
-Americanos e Caribenhos (Celac) e demonstrar seu poder a partir
da presidência pro tempore do organismo. A decisão também se
ligou ao cenário de questionamento sobre o papel e influência da
OEA – fortemente pautada pelos Estados Unidos –, desgastada por
acusações de envolvimento no golpe na Bolívia em 2019 e pela falta
de ações efetivas de integração.

Fator de equilíbrio
Diante desse panorama, a vitória da coalizão liderada pelo PT
pode se tornar fator de equilíbrio nas instabilidades vividas pela

● 32 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

vizinhança. Em seu discurso após vitória das eleições, em 30 de ou-


tubro, Lula afirmou: “O Brasil não vai mais ser pária da sociedade, o
Brasil vai ser protagonista internacional”. E um dos assuntos em que
o Brasil se tornou pária foi na relação com os países vizinhos. Desde
o golpe de 2016, a relação com os países da América Latina deixou
de ser prioridade do governo brasileiro, e, com isso, perderam-se
inúmeras oportunidades de desenvolvimento integrado.
A política externa do novo mandato de Lula será definida pelo
filtro da grande frente que o levou à presidência. A retomada de uma
diplomacia altiva e ativa atualizada – para nos fixarmos ao termo
cunhado pelo ex-chanceler Celso Amorim – reside fundamentalmente
na adoção de diretrizes pautadas no quarteto soberania-desenvolvi-
mento-democracia-meio ambiente.
Aqui não há invenção: tais pontos estão fixados na Constituição
de 1988. Em seu artigo 4º, a Carta define que nossas relações interna-
cionais são regidas, entre outros, pelos seguintes princípios: defesa
da paz, dos Direitos Humanos, autodeterminação dos povos, não
intervenção, solução pacífica dos conflitos, repúdio ao terrorismo e
ao racismo e a integração da América Latina. O grande tema pau-
tado pelo bolsonarismo – a entrada na OCDE – possivelmente será
colocado na geladeira, dadas as exigências econômicas e fiscais do
órgão, potencialmente restritivas à ação do Estado.
Embora nem sempre a correspondência entre desenvolvimento
interno e relações internacionais seja automática, é preciso levar em
conta as condicionantes domésticas frente a um mundo em que o
mercado de energia pode estar sofrendo uma mudança estrutural,
a partir da guerra da Ucrânia, com decorrências inflacionárias
vindas de fora e retração econômica nos países centrais a partir do
ano que vem.
A questão climática e ambiental deve entrar com peso na for-
mulação de política externa. A Amazônia possui a floresta tropical
mais extensa do mundo e faz parte de nove países diferentes (Bolívia,
Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Surina-
me e Venezuela). O território brasileiro abrange a maior parte da
Amazônia (61,8% do bioma), mas é, proporcionalmente, o que tem
menor território protegido – 42,2% da extensão nacional do bioma
são Territórios Indígenas (TIs) e Áreas Naturais Protegidas (ANPs).

● 33 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Como ponto de partida para uma política externa democrática, pode


haver uma ação conjunta de vários órgãos de governo para reconstruir
ou fortalecer instrumentos de monitoramento, fiscalização e preservação
ambiental, como o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), a CT-
NBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), a Funai (Fundação
Nacional do Índio), o Incra (Instituto Nacional da Reforma Agrária) e
outros, com participação da Polícia Federal e das Forças Armadas. Com
normas claras de preservação ambiental, o país pode negociar e interagir
com seus vizinhos nessa área, buscando ações convergentes na região.

Agendas para o futuro


A recondução do Brasil a uma posição de destaque na cena
mundial deverá envolver, entre outras, as seguintes iniciativas:

1. A construção de uma pauta convergente


para questões do clima e do meio ambiente entre
os países da América do Sul. Este poderá ser o
grande vetor de integração regional. A Amazônia
possui a floresta tropical mais extensa do mundo
e atravessa nove países (Bolívia, Brasil, Colôm-
bia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru,
Suriname e Venezuela). O território brasileiro
abrange sua maior parte (61,8% do bioma), mas
é, proporcionalmente, o que tem menor território
protegido: apenas 42,2%, divididos em espaços
indígenas e áreas naturais protegidas;

2. A integração das políticas de saúde pública


na região, que concentrou, proporcionalmente, os
mais altos índices de infecção e morte ao longo
da pandemia de covid-19;

3. O fortalecimento do Mercosul e da Celac


e a reconstrução da Unasul como instâncias
políticas, econômicas e especificamente co-
merciais. Deverão também abrir espaço para a
participação das sociedades civis de cada país
em instâncias específicas;

Os mecanismos de integração regional foram


deixados de lado ao longo dos quatro anos de

● 34 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Governo Bolsonaro, e desde o golpe de 2016


deixaram de ser prioridade, rompendo com a
tradição dos governos democráticos anteriores.
Com a vitória de Lula, espera-se que as propos-
tas de integração voltem a ganhar importância
“na medida em que são entendidas como o meio
para o fortalecimento da região, que enfrenta
desafios sociais e econômicos semelhantes, e sua
melhor inserção no sistema internacional — seja
através de iniciativas econômicas, ou a partir de
mecanismos de cooperação internacional, desen-
volvimento local e resolução de conflitos”.

4. Reatamento e reconstrução das relações


diplomáticas com a Venezuela e reintegração do
país aos organismos regionais. Não é possível que
o Brasil siga na situação de virtual rompimento
institucional com um vizinho que possui 2.200
quilômetros de fronteira;

5. A reconstrução do Banco Nacional de


Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
– esvaziado pelos governos Temer e Bolsonaro –
como ferramenta para o desenvolvimento, para
a internacionalização das empresas brasileiras e
para a retomada da Iniciativa para a Integração da
Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).

O país concentra cerca de 35% do PIB e cerca de 30% da po-


pulação da América Latina tem a chance de superar uma triste e
destrutiva quadra de sua história, vivida nos últimos seis anos. Não
é à toa que a expectativa externa com a eleição de Lula rivalize com
as esperanças domésticas. Realmente, o Brasil está de volta.

● 35 ●
África: o retrocesso das relações e o
novo cenário no continente

Flavio Thales Ribeiro Francisco(9), Mohammad Nadir (10), Heuler Costa


Cabral(11), Gabriel de Castro Soares(12) e Leticia Pereira(13)

Desde o princípio do Governo Bolsonaro havia a expectativa


negativa de que as relações Brasil-África sofreriam um profundo
refluxo. Um primeiro motivo foram as mudanças implementadas
já no governo de Michel Temer, que entendia que as agendas dos
governos do Partido dos Trabalhadores haviam investido demasia-
damente em compromissos que não tinham o retorno econômico
satisfatório para o Brasil (AZEREDO, 2018). A agenda de Temer, por
um lado, se alinhou aos países do centro, e por outro, se distanciou
das iniciativas do Sul Global. A tendência, nesse sentido, era de que
Bolsonaro acentuasse esse processo, alinhando-se principalmente
com o governo do presidente Donald Trump, pelo qual revelou
grande admiração.
Outro motivo eram os discursos racistas do deputado Jair Bolso-
naro durante a sua trajetória política e na campanha presidencial. Em
algumas vezes, não se preocupou em utilizar expressões implícitas
do racismo brasileiro, afirmando que poderia atacar os direitos de
indígenas e quilombolas no acesso a terras. O seu vice na chapa, o
general Hamilton Mourão, também ficou marcado por comentários
racistas ao se referir aos países do Sul Global como “mulambos”
(UOL, 2018). Depois da eleição de Jair Bolsonaro, a leitura dos

(9) Professor do Bacharelado de Relações Internacionais da UFABC.


(10) Professor do Bacharelado de Relações Internacionais da UFABC.
(11) Doutorando em Filosofia (PPGFIL-UFABC)
(12) Discente do Bacharelado de Relações Internacionais da UFABC.
(13) Discente do Bacharelado de Relações Internacionais da UFABC.

● 36 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

africanos era de que a relação com os brasileiros seria muito mais


complicada e não apresentaria uma agenda definida como na década
anterior. A escolha de Ernesto Araújo, que havia escrito um artigo
sobre a importância da eleição de Trump para “salvar” o Ocidente,
de maneira indireta, apontava para uma política externa voltada ao
centro e pouco engajada com a periferia do sistema (ARAÚJO, 2015).
Alguns estudiosos, como Erika Larkins e José Bacelar da Sil-
va (2019), afirmam que a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro foi
atravessada por uma antinegritude que rompeu com os códigos
racistas tradicionais, que eram mobilizados implicitamente. O bol-
sonarismo, nesse sentido, revelou uma dimensão racial que captou
o ressentimento de setores da população branca com as políticas
públicas voltadas para as minorias raciais. Já nos primeiros dias
como presidente do Brasil, Bolsonaro criticou os programas de ações
afirmativas para negros e reforçou a importância da união do povo
em torno da identidade nacional para confrontar as identidades
racializadas promovidas pelos movimentos sociais. A sua ascensão
foi acompanhada da manifestação pública de ideias racistas e an-
tissemitas, estimulando grupos de extrema-direita.

Oposição ao movimento negro


A postura do governo, ao longo dos anos, foi a de enfrentar as
organizações do movimento negro, desmobilizando o antirracismo
brasileiro. A Fundação Palmares, organização governamental chave
para a promoção de políticas para a população negra, foi ocupada por
Sergio Camargo, negro de direita que procurou justamente desvalori-
zar as conquistas do movimento. Camargo, durante o período como
presidente da fundação, propôs a mudança do nome para Princesa
Isabel, que substituiria a figura aguerrida de um personagem histó-
rico importante para o movimento por outra o qual o perfil estaria
associado simbolicamente com a harmonia racial e a despolitização
do debate sobre o racismo brasileiro. Na interpretação de Sergio
Camargo, o movimento negro não lutava por igualdade social, mas
apenas acirrava a tensão racial através de discursos vitimizadores
dos negros (PODER 360, 2022).
Como observa a diplomata Irene Vida Gala (2019), a agenda
para o continente africano durante o governo do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva contou com o apoio do ativismo afro-brasileiro,

● 37 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

que reivindicava uma relação de proximidade do Brasil com os


países africanos. Dessa forma, a política externa concebida neste
período rompeu com o discurso da democracia racial, forjada na
década de 1960, para projetar a imagem do país como promotor
de políticas sociais e antirracistas, reconhecendo o problema do
racismo na sociedade brasileira. Em uma de suas várias frentes, a
agenda para a África contou com a iniciativa para o empresariado
negro e a institucionalização da relação através da criação da Uni-
versidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
Ou seja, a concepção de uma agenda estratégica para os africanos
foi acompanhada de ações do antirracismo brasileiro.
O governo do presidente Bolsonaro fez o movimento contrário
ao se aproximar de figuras mundiais da extrema-direita, ensaiando nos
dois primeiros anos a articulação de uma internacional conservadora
liderada por Steve Bannon, ex-estrategista político de Donald Trump.
O chanceler Ernesto Araújo chegou a se encontrar com Bannon, tratado
pela imprensa estadunidense como supremacista branco. Em parte,
um dos temas mais debatidos foi o protagonismo chinês no sistema
internacional e a sua influência sobre a América Latina. No entanto,
a ênfase não foi dada sobre as relações comerciais, mas sobre difu-
são do comunismo por meio da nação asiática. A indiferença ao Sul
Global, acompanhada de um imaginário anticomunista, inviabilizou
qualquer agenda que pudesse construir arranjos que envolvessem os
países africanos como parceiros estratégicos dos brasileiros.

Os quatro anos de Bolsonaro


O protagonismo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva por
meio de uma diplomacia presidencial foi fundamental para o es-
treitamento das relações entre o Brasil e o continente africano, mas
este tipo de ação não esteve presente no período do presidente Jair
Messias Bolsonaro. O chanceler Ernesto Araújo, ao lado do depu-
tado federal Eduardo Bolsonaro, foi o responsável por reforçar os
aspectos ideológicos da política externa brasileira, rompendo com o
histórico pragmático da diplomacia brasileira. No que se refere aos
países africanos, Araújo apenas seguiu os protocolos de sua função
em eventos como o Dia da África, em que procurou ressaltar as co-
nexões entre os brasileiros e as populações africanas, retomando, em
parte, o discurso tradicional da democracia racial (BRASIL, 2019).

● 38 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Assim, a agenda para os africanos cumpriu os compromissos


de governos anteriores sem, obviamente, contar com o protagonis-
mo do presidente e do ministro das Relações Exteriores. Um bom
exemplo desse processo foi a atuação do Brasil no Congo, liderando
a Monusco (Missão das Nações Unidas na República Democrática do
Congo), consequência do engajamento brasileiro na primeira década
do século XXI. Durante o Governo Bolsonaro, esse tipo de iniciativa
não esteve atrelado a uma agenda mais ampla e não contou com
qualquer participação do presidente, se apresentando como uma
ação especificamente militar.
O novo comandante da Força, Marcos de Sá Affonso da Costa,
foi anunciado em 2021. Ele iria atuar dentro do novo mandato da
Monusco, o qual havia sido estendido até 20 de dezembro de 2021, a
partir da resolução 2556. Esse novo mandato teve como objetivo da
missão a proteção de civis e o apoio para a estabilização, fortaleci-
mento de instituições públicas e reformas nos setores de governança
e segurança. A Monusco, naquele momento, contava com cerca de
13 mil integrantes de cinquenta países diferentes, atuando princi-
palmente na parte oriental do território, onde se concentravam os
principais conflitos (ONU NEWS, 2021).
Já em maio 2022, ao retornar ao Conselho de Segurança da
ONU como membro não permanente, o representante brasileiro
na organização fez a observação de que aquele era o momento
propício para retomar uma agenda importante com os países
africanos. Segundo Ronaldo Costa Filho, representante do Brasil
na organização, o país tem como um dos seus principais objeti-
vos promover o debate sobre questões relacionadas aos países da
América Latina e da África. A reaproximação com países africanos,
após quase uma década de distanciamento, dessa vez viria a par-
tir da construção de agendas na área de segurança para resolver
conflitos no continente.
A avaliação de Costa é de que 70% de todo o trabalho que en-
volve as atividades do conselho têm relação com as nações africanas.
A experiência em missões de segurança, além da cooperação técnica
na área de segurança com os africanos, credenciaria os brasileiros a
protagonizarem as ações de pacificação e reorganização da infraes-
trutura dos países envolvidos em guerras. Entre os conflitos africanos
que aparecem no topo da lista estão os confrontos políticos na Etiópia,

● 39 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

os golpes militares no Mali, e a reconstrução da Líbia após a queda


de Muammar Khadafi (CORREIO BRAZILIENSE, 2022).

Experiência relevante
A experiência africana é de grande relevância para a com-
preensão dos conflitos contemporâneos e a formalização de saídas
diplomáticas para suas soluções. Ao longo da Guerra Fria, o continen-
te foi muito importante para a estratégia das potências do período.
Com o fim do embate, os interesses das superpotências em assuntos
da região declinaram, cortando programas de financiamentos e
parcerias e colocando os países locais em um acentuado processo
de insolvência.
Os temas da segurança e estabilidade institucional surgiram
como as principais pautas para o continente africano, com o advento
dos intensos conflitos no período de 1960-1990, em um contexto em
que os países da região não conseguiam solucionar seus conflitos
pelas vias institucionais. Como consequência de profunda instabi-
lidade, a articulação política dentro dos organismos internacionais
tornou-se uma alternativa às políticas individuais localizadas.
O A3 – bloco formado pelos três membros não permanentes
africanos eleitos para o Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU), que constitui 30% dos membros rotativos do conselho – é
um dos grandes mecanismos para a articulação regional africana,
e recentes relatórios demonstram domínio das questões africanas
sobre as discussões nas conferências (47% das reuniões, 64% dos do-
cumentos resultantes e 76% das resoluções com mandato no capítulo
VII 19 referem-se a questões de paz africana), fato que não retira a
baixa prioridade dada por essas pautas por outros integrantes do
conselho. Historicamente, os membros do A3 concentram-se quase
que exclusivamente sobre questões africanas, mas com certa inde-
pendência nacional, fator que vem mudando, pois o grupo apresenta
uma nova dinâmica, em que seus membros passaram a apresentar,
desde 2019, posições unificadas sobre tópicos africanos, posição ain-
da mais acentuada com o acompanhamento pelo Conselho de Paz e
Segurança da União Africana (UA).
A área de segurança, portanto, se apresentou como uma possibi-
lidade de reorganização da agenda brasileira para a África. Contudo,

● 40 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

a ausência de uma estratégia específica para o continente transformou


as várias iniciativas brasileiras em um conjunto de ações desordenado.
A falta de interesse da presidência obrigou alguns atores econômicos
e políticos a arquitetar os seus próprios planos para os africanos,
segmentando a agenda das relações Brasil-África. A Empresa Brasi-
leira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), por exemplo, em evento
organizado pelo Ministério das Relações Exteriores, apresentou
tecnologias sustentáveis em agricultura tropical para embaixadores
de 32 países, demonstrando várias propostas de cooperação técnica,
acadêmica, tecnológica, financeira e empresarial.
O pesquisador Alexander Amaral detalhou algumas tecnologias
que poderiam ser aplicadas para as realidades africanas, enfatizando as
vantagens da Embrapa como uma parceira internacional. Ele também
destacou o modo como a coordenação entre a Agência Brasileira de
Cooperação (ABC), a Agência Brasileira de Promoção de Exportações
e Investimentos (Apex-Brasil), além de centros de pesquisa e univer-
sidades, tem possibilitado a aprovação de 127 acordos internacionais
em cerca de cinquenta países, ressaltando que o continente africano
seria uma das prioridades da empresa. O argumento dos brasileiros é
o de que, em um contexto de recuperação pós-pandêmico, a tecnologia
brasileira seria a mais adequada para garantir a segurança alimentar
em diferentes regiões da África (EMBRAPA, 2021).
Os interesses, entretanto, vão para além da capacitação e me-
lhoria de tecnologias para a produção de alimentos; os brasileiros
tratam o continente africano como uma fronteira de investimentos
do agrobusiness brasileiro. Os africanos cada vez mais aumentam a
participação na importação de produtos agropecuários brasileiros,
– o açúcar, a soja, o trigo, o milho e a carne aparecem no topo das
preferências. A ideia, contudo, é entrar com capital e know-how para
transformar os países africanos em grandes produtores. Em parceria
feita com alemães, no ano de 2019, os brasileiros iniciaram um projeto
na Nigéria para incrementar a produção, distribuição, armazenagem,
e desenvolver a sua cadeia produtiva (ATLÂNTICO, 2019).

Agropecuária em ação
A construção de uma agenda para a África por meio da articu-
lação de atores da agropecuária brasileira não teve participação ativa
do presidente Jair Bolsonaro. Em um dos raros momentos em que um

● 41 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

tema envolvendo o continente se transformou em pauta do Planalto


foi quando membros brasileiros da Igreja Universal do Reino de Deus
(Iurd) se envolveram em um conflito com angolanos. Ao longo do
mês de maio de 2019, sob acusações dos líderes religiosos angolanos
de mau gerenciamento e crimes fiscais, diversos bispos brasileiros
foram deportados do país. A situação foi se tornando mais crítica
depois de uma sequência de conflitos sem resolução, resultando na
separação angolana dos líderes brasileiros (FOLHA, 2021).
Edir Macedo (proprietário da Iurd) declarou perseguição reli-
giosa, política e xenofobia na deportação dos missionários brasileiros.
Os pastores e bispos brasileiros que ainda se encontravam em Angola
estavam em situação ilegal, sem a renovação dos vistos de trabalho
devido ao tensionamento na Iurd, o que tornou a deportação um
processo legal e dentro das conformidades das leis internacionais.
Foram realizadas várias reuniões no Itamaraty com o ministro Carlos
França, assegurando total apoio e assistência aos compatriotas ligados
à igreja em Angola. Bolsonaro sofreu pressão do grupo religioso e
não poderia ignorá-lo, já que os neopentecostais formavam uma das
principais bases do seu eleitorado.
O caso da igreja, portanto, estava intimamente conectado com
as dinâmicas da política doméstica, e a participação do presidente
brasileiro não tinha nenhum objetivo de organizar uma agenda ou
uma ação isolada para atuação de lideranças religiosas no continente
africano. Mesmo quando teve a oportunidade de aprofundar as re-
lações com os países africanos, a incapacidade do governo em criar
e gerenciar políticas públicas acabou inviabilizando qualquer inicia-
tiva. No caso da crise pandêmica, por exemplo, o Brasil poderia se
apresentar como um ator político fundamental na disponibilização de
vacinas para os africanos, retomando as experiências de cooperação
técnica na área da saúde. No entanto, o próprio governo brasileiro
revelou uma certa resistência em mobilizar recursos para comprar
e produzir vacinas, entrando para a lista de países que conduziram
políticas desastrosas para contenção do covid-19 por conta do nega-
cionismo do presidente e de alguns apoiadores.

A ascensão da África e os atores globais no continente


A face e o destino do continente africano no século XXI estão
mudando rapidamente, e sua rede de relações exteriores está se

● 42 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

tornando cada vez mais complexa à medida que novos atores in-
teragem com os países africanos. Além das potências ocidentais,
atualmente China, Japão, Índia e Rússia, juntamente com potências
regionais do Oriente Médio como Catar, Emirados Árabes Unidos
(EAU), Arábia Saudita, Irã e Israel, buscam criar uma área de influên-
cia sobre as fontes da África, mercados ou localizações estratégicas,
oferecendo empréstimos de baixo custo, investimentos financeiros
ou produtos acabados. Assim, a África tornou-se a nova estrela das
cimeiras e fóruns que são normalmente considerados uma ferramenta
necessária para fomentar a interação com África.
Conforme indicado por acadêmicos como Pádraig Carmody
(2016), a nova complexidade dos engajamentos estrangeiros dos
países africanos pode agora ser enquadrada no conceito de “nova
disputa pela África”, semelhante à disputa colonial pela África do
século XIX, ou a “nova Guerra Fria”, semelhante à rivalidade EUA-
-União Soviética durante a era da Guerra Fria. De qualquer forma, a
realidade da atratividade da África para diferentes potências conti-
nuará sendo um fato que requer muitas discussões.
A África é um enorme continente onde as nações mais pobres
do mundo, paradoxalmente, vivem em países com recursos ricos.
O continente possui vastos depósitos de petróleo, gás, e minerais
como cobalto, ouro e diamante, além de produtos agrícolas como
óleo de palma, cacau, chá, café e baunilha, matérias-primas necessá-
rias para produções industriais. Portanto, a crescente demanda por
oferta industrial cria uma pressão extra sobre os recursos da África,
especialmente porque o intenso envolvimento de algumas potências
asiáticas com a África começou em meados da década de 1990.
Acomodando mais de 1,3 bilhão de pessoas, o continente é
muito dinâmico pela sua natureza e pelo tamanho de seu mercado,
que se expande paralelamente ao aumento de sua demografia e ao
poder de compra de suas classes médias. Nesse sentido, a percepção
pejorativa da África tornou-se mais positiva no período recente em
todo o mundo. As empresas globais procuram novas estratégias
de venda da forma que melhor se adapte ao mercado africano; e
empresas como o Google estão investindo mais na digitalização
do continente. O continente é definitivamente visto como um novo
polo tecnológico. Nesse sentido, entrar no mercado e vender mais

● 43 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

produtos aos africanos são objetivos importantes das empresas glo-


bais. À medida que o mercado africano atrai mais atenção, a África
recebe mais atores.
Seguindo tudo isso, está a narrativa “África em ascensão”, que
aponta para a crescente influência da África no cenário global em
termos de desempenho político e econômico. Para alguns, é apenas
um mito devido à realidade de que milhões de pessoas ainda lutam
contra a pobreza e a falta de serviços básicos e vivem em condições
infelizes. Mas para os otimistas, “África em ascensão” é uma realidade
e reflete a transformação do continente de forma mais positiva em
muitos níveis. No entanto, uma coisa é certa: o continente africano
exerce uma atração junto das potências globais que o utilizam para
moldar sua política externa em relação à África.
A diversidade da África em suas relações externas de alguma
forma cria perspectivas contraditórias. Por exemplo, a China é vista
como um gigante investidor; mas, por outro lado, é considerada como
uma neocolonialista que utiliza a estratégia da armadilha da dívida.
Na verdade, Angola, Etiópia e Quênia estão lutando para pagar seus
empréstimos à China. Esses países enfrentam o desafio de pagar com
petróleo ou deixar importantes portos marítimos ou aéreos para
investidores chineses. Em outro caso, para atrair mais investidores
israelenses, os países africanos parecem dispostos a desconsiderar as
políticas ilegais de Israel contra imigrantes e palestinos. No entanto,
apesar dos sérios riscos, hoje testemunhamos que os Estados Unidos,
potências europeias, Índia, China, Japão, Coreia do Sul, Taiwan,
Rússia, Brasil, Turquia, Israel, Irã, Catar, Emirados Árabes Unidos e
Arábia Saudita estão aplicando certas políticas africanas para aumen-
tar sua presença no continente, seja no comércio e nos negócios ou
nos assuntos políticos e culturais. Portanto, a presença de múltiplos
atores cria um ambiente no qual os interesses das potências asiáticas
e ocidentais às vezes entram em conflito.

Um novo cenário
Com a possibilidade de um início de novo ciclo econômico no
continente africano a partir da criação da área de livre comércio e
os investimentos na exploração de recursos naturais após a guerra
entre Rússia e Ucrânia, constituiu-se um cenário distinto da primeira
década do século XXI. Após anos de engajamento brasileiro na África,

● 44 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

como observado anteriormente, novos atores passaram a atuar no


continente com diferentes agendas estratégicas. Alguns, como o
Japão, diante da grande presença dos chineses, investiram mais de
cerca de trinta bilhões de dólares, focando na produção agrícola e na
formação de profissionais em diversos países. A Rússia, assim como
no caso dos Estados Unidos, privilegia a área de segurança com apoio
e formação, através de empresas privadas, às Forças Armadas ain-
da não estruturadas. Os russos, retomando uma tradição soviética,
também fornecem armas para os seus parceiros, tentando garantir o
próprio espaço entre os países que atuam no continente (DW, 2021).
Uma das novidades é que esse novo contexto traz também o
engajamento de potências médias ou regionais como o Brasil. Esse
é o caso da Turquia, que tem demonstrado uma atuação bastante
agressiva, com a participação ativa de Recep Tayyip Erdoğan. O
crescente volume de negócios das empresas turcas nos mercados
de construção africanos é ilustrativo do progresso que a Turquia fez
para garantir uma forte presença no continente. Embora as empre-
sas estatais chinesas (SOEs) sejam de longe as maiores construtoras
da África, as empresas de construção turcas se estabeleceram como
participantes capazes e competitivos não apenas no Magreb, mas
também, e sobretudo, nos mercados subsaarianos.
Isso se explica pela visão do Estado turco de tornar a Turquia
um ator importante no cenário global; nesse sentido, Erdoğan pre-
sidiu uma estratégia multidimensional para o continente africano
(DW, 2022). Desenvolvida no âmbito da “Política de Abertura para
a África” adotada em 1998, a estratégia visava fazer a ponte entre o
Magreb culturalmente “próximo” e a África subsaariana geografica-
mente “distante”. Liderando a campanha diplomática e comercial de
Ancara no continente africano, o presidente Erdoğan, que se refere
à Turquia como “um estado afro-eurasiano”, empregou e autorizou
pessoalmente o uso de uma variedade de ferramentas de soft power.
Logo depois, Erdoğan declarou 2005 como o Ano da África – aliás,
um ano antes de a China fazer o mesmo – e a Turquia foi admitida
como membro observador da União Africana (UA). Três anos depois,
a UA designou a Turquia como “Parceiro Estratégico”.
É sabido que os estados africanos aspiram desde muito a fortalecer
suas capacidades de defesa em um cenário de instabilidade contínua
no continente. Ciente disso, a Turquia adicionou recentemente a

● 45 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

cooperação em segurança e defesa aos seus instrumentos de soft power


existentes e lançou as bases para uma cooperação estratégica de longo
prazo com os países africanos. O aumento das vendas de drones é
uma parte importante dessa cooperação, mas não é seu único com-
ponente. Um projeto de política de exportação de armas, treinamento
militar e diplomacia de defesa que se reforça mutuamente permite
que o governo turco possa construir laços institucionais e de longo
prazo com os países africanos. Hoje, a Turquia é um entre muitos
provedores de segurança que os estados africanos podem escolher,
o que lhes permite não ficarem reféns dos tradicionais provedores,
que são a União Europeia e os Estados Unidos.
Portanto, se até recentemente o envolvimento da Turquia em
grande parte da África tinha um perfil menor, a sua intervenção militar
na Líbia e seus investimentos em larga escala na Somália mostraram
uma mutação nesse perfil. Hoje, a Turquia está aumentando seu alcan-
ce de segurança no continente. Além de várias visitas oficiais de alto
nível feitas pelo presidente Recep Tayyip Erdoğan a países do oeste
e norte da África nos últimos anos, a Turquia também alavancou a
participação nas iniciativas de contraterrorismo dos estados africanos
e aumentou sua ajuda humanitária, por exemplo, para Nigéria,
Mauritânia e Níger. Além disso, Ancara assinou novos acordos de
armas com países do norte da África, como Tunísia e Marrocos.

A nova estratégia estadunidense para África


Por outro lado, as grandes forças do Ocidente presentes no con-
tinente africano fazem ajustes em suas agendas para se adequarem
a um contexto no qual a presença chinesa é cada vez maior. Esse é
o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, que reagem aos chineses,
mas também a outros países que atuam com outras estratégias. No
dia 7 de agosto 2022, o secretário dos EUA, Antony Blinken, iniciou
uma viagem para alguns países do continente africano como a África
do Sul, República Democrática do Congo e Ruanda. Duas semanas
antes, Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia,
havia passado por países africanos como Egito, República do Con-
go, Uganda e Etiópia. Um dos objetivos que vêm sendo difundidos
sobre a visita de Blinken à África é justamente a tentativa de afrontar
a visita e o crescimento russo na região.

● 46 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

No dia 25 de julho de 2022, o presidente da França, Emmanuel


Macron, também esteve em alguns países africanos. Todas essas visi-
tas reforçam a ideia de uma nova competição das grandes potências
em exercer influência no território africano, em um momento em
que a China vem tendo destaque com seus investimentos em infraes-
trutura. Blinken não concorda com a ideia e, em entrevista à RFI de
Pretória, deixou claro que sua visita tem como objetivo estabelecer
parcerias com foco no desenvolvimento africano e buscar a paz em
conflitos como os que ocorrem entre a República Democrática do
Congo e Ruanda (RFI, 2022).
Para contornar esses novos desafios geopolíticos, os estados
unidos de joe biden lançaram, em 8 de agosto de 2022, U.S. Strategy
Toward Sub-Saharan Africa, documento publicado (agosto 2022) que
traz vários elementos da estratégia estadunidense sobre o continen-
te africano nos próximos anos. Sua leitura mostra a importância
da África subsaariana para o avanço das prioridades globais. Com
crescimento demográfico, o mais rápido do mundo, a África vai
constituir 25% da população mundial em 2050. Em termos comerciais
é uma das maiores zonas de livre comércio do mundo. Geografica-
mente, a África possui um dos ecossistemas mais diversificados,
com recursos naturais ilimitados e principalmente os minérios mais
raros. Em termos de influência política, a África representa na ONU
um dos maiores grupos, com 28% de voto e com três membros não
permanentes no Conselho de Segurança, além da sua presença
noutras instâncias internacionais, o que faz da África um player de
uma dimensão maior. Do ponto de vista geoestratégico, a África é
situada ao longo das principais linhas marítimas de comunicação e
comércio no Oceano Atlântico, Oceano Índico e Golfo de Aden. No
global, o continente africano tem todas as condições para desempe-
nhar um papel crucial no enfrentamento dos desafios, tais como: as
consequências da pandemia da covid-19; a crise climática; a maré
global de retrocesso democrático; a insegurança alimentar global; a
equidade e igualdade de gênero; fortalecer um sistema internacional
aberto e estável; moldar as regras do mundo em questões vitais como
comércio, cibernética e tecnologias emergentes; e enfrentar a ameaça
de terrorismo, conflito e crime transnacional.
No entanto, e apesar de todo o entusiasmo do presidente Joe
Biden, que quer reformular a abordagem estadunidense para a África,

● 47 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

não deixa de ser curioso que a nova estratégia americana obedeça


essencialmente aos –como sempre – interesses de segurança nacional
dos EUA, o que levanta as eternas suspeições sobre a real vontade e
objetivos de Washington nessa nova investida ao continente africano.
Seja como for, a nova estratégia norte-americana visa a quatro
objetivos principais na África subsaariana:

1. Fomentar a abertura de sociedades africanas


Com isso, os Estados Unidos querem garantir que a região
permaneça aberta e acessível a todos e que os governos e o público
possam fazer as suas próprias escolhas políticas, de acordo com
as obrigações internacionais. Essa abertura passa segundo a nova
estratégia por:
● Promoção da transparência e responsabilidade dos governos
● Aumento do foco no estado de direito, justiça e dignidade
● Ajuda aos países africanos a alavancar de forma mais transpa-
rente os seus recursos naturais para o desenvolvimento sustentável

2. Entregar dividendos democráticos e de segurança


A nova estratégia americana procura capacitar a região da Áfri-
ca subsaariana a renovar as suas democracias, bem como antecipar,
prevenir e abordar conflitos emergentes e de longa duração. Ao
abordar simultaneamente estes desafios e reafirmar que a democra-
cia oferece benefícios tangíveis, os Estados Unidos querem oferecer
escolhas positivas aos africanos à medida que determinam o seu
próprio futuro. Isso inclui:
● Trabalhar com aliados e parceiros regionais para conter a
recente onda de autoritarismo e conquistas militares
● Apoiar a sociedade civil, empoderar grupos marginalizados,
centralizar as vozes de mulheres e jovens e defender eleições livres
e justas
● Melhorar a capacidade dos parceiros africanos para promover
a estabilidade e segurança regionais
● Reduzir a ameaça de grupos terroristas

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

3. Promover a recuperação da pandemia e oportunidades econômicas


A administração Biden por meio da nova estratégia visa promo-
ver a recuperação de África subsaariana da pandemia da covid-19 e
as suas consequências econômicas e sociais. Segundo o documento,
evidencia-se uma vontade dos Estados Unidos em trabalhar com go-
vernos regionais e parceiros internacionais para construir economias
africanas mais estáveis e inclusivas por meio de:
● Políticas e programas para encerrar a fase aguda da pandemia
da covid-19 e desenvolver capacidades para aumentar a preparação
para a próxima ameaça à saúde
● Apoiar iniciativas de produção de vacinas e outras contrame-
didas médicas
● Promover uma trajetória de crescimento mais forte e susten-
tabilidade da dívida para apoiar a recuperação econômica da região,
inclusive através da Parceria para Infraestrutura e Investimento
Global (PGII), Prosper Africa, Power Africa, Feed the Future e uma
nova iniciativa para transformação digital
● Estabelecer parcerias com países africanos para reconstruir o
capital humano e os sistemas alimentares que foram ainda mais en-
fraquecidos pela pandemia e pela guerra da Rússia contra a Ucrânia
4. Apoio à conservação, adaptação do clima e a uma transição
de energia justa. Para alcançar essa meta, Washington quer:
● Estabelecer parcerias com governos, sociedade civil e comu-
nidades locais para conservar, gerir e restaurar os ricos ecossistemas
naturais do continente
● Apoiar os países nos seus esforços para minimizar e adaptar-
-se aos impactos de um clima em mudança, incluindo o aumento da
resiliência da comunidade, economia e cadeia de suprimentos
● Trabalhar em estreita colaboração com os países para acelerar
as suas transições justas para um futuro de energia limpa, acesso à
energia e segurança energética
● Buscar parcerias público-privadas para desenvolver e proteger
de forma sustentável os minerais críticos que fornecerão tecnologias
de energia limpa

● 49 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Eis os pilares da nova estratégia norte-americana para a África


subsaariana durante a próxima década. Todavia, e apesar de tudo
isso, a estratégia estadunidense tem elementos que fragilizam seus
intuitos. Entre esses elementos está a obsessão pela competição rus-
sa/chinesa no continente africano. A nova estratégia está repleta de
críticas à presença russa e chinesa no continente africano.
No documento U.S. Strategy Toward Sub-Saharian Africa (2022)
há referências claramente anti-Rússia e China de forma a descredi-
bilizar a presença ativa deles no continente. Uma das passagens do
documento diz que: “A República Popular da China (RPC) vê a região
como uma arena para desafiar a ordem internacional, promover seus
próprios e estreitos interesses comerciais e interesses geopolíticos,
minando a transparência e a abertura, e enfraquece as relações dos
EUA com povos e governos africanos. A Rússia vê a região como um
ambiente permissivo para empresas militares privadas e paraesta-
tais, muitas vezes fomentando a instabilidade para fins estratégicos
e financeiros. A Rússia usa seus laços econômicos e de segurança,
bem como a desinformação, para minar a oposição de princípios dos
africanos à invasão da Ucrânia pela Rússia”.
O que leva a concluir que os Estados Unidos procuram – não
obstante o otimismo da nova estratégia – transformar a África num
campo de batalha, e assim levar o continente africano a tomar partido
na nova guerra fria que paira no sistema internacional.
Nesse sentido, a nova estratégia estadunidense peca por que-
rer condicionar as escolhas soberanas dos países africanos de seus
parceiros políticos e econômicos segundo seus próprios e legítimos
interesses nacionais.
Para dar maior ênfase à estratégia americana, o presidente Biden
convocou as lideranças africanas para a cimeira EUA-África entre os
dias 13 e 15 de dezembro (2022), em Washington, para justamente
tentar recuperar a sua influência no continente africano.
Cerca de cinquenta delegações africanas, incluindo chefes de
Estado e altos funcionários governamentais, participaram na ci-
meira. O evento aconteceu numa altura em que a administração do
presidente Joe Biden tenta demonstrar o seu compromisso com o
continente africano. O centro da cimeira focou nos seguintes objetivos,
a saber: promover melhor o novo engajamento econômico; reforçar o

● 50 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

compromisso EUA-África com a democracia e os Direitos Humanos;


mitigar o impacto do covid-19 e de futuras pandemias; trabalhar
em colaboração para fortalecer a saúde regional e global; promover
a segurança alimentar; promover a paz e a segurança; responder à
crise climática e ampliar os laços da diáspora.
Em termos econômicos, as relações entre Estados Unidos e Áfri-
ca foram durante duas décadas orientadas pela Lei de Crescimento e
Oportunidades para África (Agoa). O programa concede isenção de
impostos e taxas aduaneiras para a entrada de mais de 1.800 produ-
tos africanos no mercado dos Estados Unidos. Todavia, a Agoa foi
ultrapassada por vários acontecimentos, nomeadamente, a influên-
cia da China [no continente] e o acordo da Área de Comércio Livre
Continental Africana (AfCFTA), operacional desde 1 de janeiro de
2021. A China lidera agora o intercâmbio comercial com África, com
quase duas vezes mais do que o investimento estrangeiro direto dos
EUA no continente. Pequim continua também a ser o maior credor
dos países africanos.
Desde junho de 2019, os EUA concluíram oitocentas transações
comerciais e de investimento nos dois sentidos em 45 países no valor
de cerca de cinquenta mil milhões de dólares, de acordo com o Serviço
de Pesquisa do Congresso norte-americano.
Os mesmos dados mostram que, só em 2020, a China realizou
negócios num total de 735 mil milhões de dólares com 623 empresas.
Por sua vez, os EUA investiram, desde 2019, 22 mil milhões de dólares
em oitenta empresas em África.
Há já algum tempo que a África olha para a China e para a
Rússia como parceiros promissores, algo que preocupa os EUA.
Seja como for e apesar dos avisos dos americanos, os africanos não
querem ter de escolher entre trabalhar com os Estados Unidos e
outros parceiros internacionais, e a China. África deve utilizar a
narrativa China-Rússia em seu benefício, no sentido de usar essa
luta geopolítica pelo continente africano como um instrumento para
atrair mais financiamento.
Em jeito de conclusão, podemos dizer que a multipolaridade
emergente na África pode ser – se for bem aproveitada – para o
continente africano uma oportunidade de desenvolver relações “es-
tratégicas e de longo prazo” baseadas em “interesse mútuo, confiança

● 51 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

e parceria” e/ou uma nova etapa de dependência e de estagnação que


poderá hipotecar o destino e o futuro do continente africano. Eis o
dilema africano no novo milênio.

Conclusão
O governo do presidente Jair Messias Bolsonaro acentua a reo-
rientação da política externa para a África que se inicia no governo
de Michel Temer, desarticulando as iniciativas para os países do
continente. A relação do Brasil com a África ao longo dos quatro
anos foi marcada por ações protocolares que deram seguimento às
políticas de governos anteriores sem avançar em nenhum aspecto.
Desde o período das eleições de 2018, Bolsonaro apontou para uma
orientação radical de direita, que o aproximaria do governo do
presidente estadunidense Donald Trump, projetando uma visão de
direita sobre o sistema internacional.
Por outro lado, enquanto o Brasil se distanciava de organizações
internacionais e quebrava acordos, o cenário africano passava por
transformações. Além do avanço chinês, potências médias criaram
suas próprias estratégias para o continente, cobiçando os recursos
naturais dos países africanos. Esse processo foi acompanhado pela
organização da Área de Comércio Livre Continental Africana (Af-
CFTA), que representou o movimento dos próprios africanos para
dinamização das economias do continente, reforçando-as frente aos
interesses econômicos de fora.

● 52 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

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embrapa-apresenta-tecnologias-sustentaveis-em-agricultura-tropi-
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● 53 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

FOLHA. Bancada evangélica vai ao Itamaraty cobrar apoio à Uni-


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-de-bolsonaro-chama-aliados-do-brasil-de-mulambada.htm. Acesso
em: 25 nov. 2022.

● 54 ●
Brasil-EUA, uma relação desigual
e subordinada

Tatiana Berriger(14), Tuany Alves Nascimento(15), Marina Tedesco Al-


varenga(16), Gabriel Horacio de Jesus Soprijo(17), Guilherme Rodrigues
Masson(18), Fernanda Antoniazzo Ribeiro(19)

A política externa do governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) teve


como característica principal a subordinação passiva explícita aos
Estados Unidos de Donald Trump (BERRINGER et al., 2021). Essa
subordinação foi impulsionada pela aliança política com a extrema
direita estadunidense em torno da agenda do chamado antigloba-
lismo. Ideologicamente, configurou-se como uma política externa
de caráter neofascista, cuja base social era a alta classe média(20),
setor que articulou e apoiou o golpe de Estado no Brasil em 2016 e

(14) Professora de Relações Internacionais da UFABC. Coordenadora do GT


Estados Unidos do Opeb.
(15) Mestranda em Relações Internacionais (PPG-PRI UFABC). Bacharela em
Relações Internacionais e em Ciências e Humanidades pela UFABC. Membro do
GT Estados Unidos do Opeb.
(16) Graduanda em Ciências e Humanidades e em Relações Internacionais pela
UFABC. Membro do GT Estados Unidos do Opeb.
(17) Graduando em Ciências e Humanidades, Relações Internacionais e Políticas
Públicas pela UFABC. Membro do GT Estados Unidos do Opeb.
(18) Graduando em Ciências e Humanidades, Relações Internacionais e Economia
pela UFABC. Membro do GT Estados Unidos do Opeb.
(19) Graduanda em Ciências e Humanidades e em Relações Internacionais pela
UFABC. Membro do GT Estados Unidos do Opeb.
(20) A alta classe média é a camada social composta por trabalhadores assalariados
do setor de serviços (engenharia, jornalismo, medicina, advocacia) e da burocracia de
Estado (em especial, judiciário). Caracteriza-se pela alta escolaridade, salários altos,
cargos de hierarquia dentro das empresas (CEO etc), e, portanto, tem tendência a se
guiar pela ideologia da meritocracia (ideia de ascensão social por esforço individual),
e é a força social de movimentos neofascistas (Poulantzas, 2021).

● 55 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

formou o movimento que elegeu Bolsonaro em 2018 (BOITO, 2020).


Além disso, a inserção internacional do Brasil esteve amparada pelo
aprofundamento do neoliberalismo, que tem como força dirigente a
burguesia associada, especialmente setores do agronegócio e o capital
financeirizado internacional.
A agenda antiglobalista pautou-se na crítica aos regimes de Di-
reitos Humanos, meio ambiente e ao multilateralismo. Refletiu, de
certa forma, uma ruptura com os chamados princípios constitucionais
e paradigmáticos da política externa brasileira. Balizada pelo ideal do
“ocidentalismo” (“Deus, Fé e Família”), o conservadorismo foi o mote da
atuação do Estado brasileiro na cena política internacional, especialmente
no negacionismo em relação à pandemia da covid-19. O obscurantismo
também é um aspecto que caracteriza a ideologia fascista.
A escolha do ministro de relações exteriores Ernesto Araújo,
autor do artigo “Trump e o Ocidente”, foi um dos principais marcos
da relação entre Brasil e Estados Unidos durante o período em que
coincidiram os governos Trump e Bolsonaro (2019-2020). O texto, pu-
blicado em 2017, dava indícios do que seria a aliança contra os regimes
internacionais adotados no marco da ONU, e ditava que os pilares da
política externa deveriam ser então aqueles que versassem sobre a
defesa da família e da dita sociedade ocidental cristã. Tratou-se, com
efeito, de um “nacionalismo às avessas” (BERRINGER et al., 2021),
uma aliança transnacional entre governos neofascistas ou de extrema-
-direita, invertendo-se a lógica do nacionalismo desenvolvimentista
e da luta pela soberania e pela autonomia de um Estado dependente.
Destacamos o conceito de “nacionalismo às avessas” porque
Bolsonaro se tornou símbolo de um movimento nacionalista que
perpetuou o ódio como mecanismo político, não o “amor à pátria”;
internamente, por meio de discursos negacionistas, xenofóbicos e
contra as populações quilombola, indígena, LGBTQIA+. Além disso,
essa postura também se manteve no contexto da política externa, por
meio de um entreguismo que não se continha de maneira discursiva,
mas em ações explícitas, como quando Jair Bolsonaro bateu conti-
nência para a bandeira dos EUA, visitou o departamento federal de
investigação estadunidense (FBI) e comemorou a independência dos
EUA na embaixada estadunidense.

● 56 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

A base de Alcântara
Uma das primeiras e mais simbólicas ações do governo Bolsonaro
a demonstrarem o caráter de subordinação consistiu na concretização
da assinatura do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas entre os gover-
nos do Brasil e dos Estados Unidos. O documento permitiu o acesso
dos EUA a uma área restrita na base de Alcântara no Maranhão, que
se encontra num local geograficamente privilegiado. Nesse sentido,
impede que o Estado brasileiro realize o controle das importações na
base, além de ter limitado a presença de funcionários do Estado e o
redirecionamento dos recursos obtidos com o aluguel para o Programa
Espacial Brasileiro. Sob essas condições assimétricas, o Brasil cedeu seu
mais importante centro de lançamentos de foguetes a outro Estado.
Sem garantir um projeto nacional de desenvolvimento tecnológico, o
acordo feriu a soberania brasileira (BERRINGER et al., 2022).
Outro fato importante foi o aceito de renúncia do Estado brasilei-
ro ao tratamento especial e diferenciado na Organização Mundial do
Comércio (OMC), em troca do apoio estadunidense no pleito à Orga-
nização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Cabe destacar, contudo, que a barganha para entrar no “clube dos
ricos” não foi nada positiva para o Brasil, uma vez que os EUA, os
quais condicionaram o pedido de apoio à abdicação brasileira, não
cumpriram com o combinado, negando(21) o apoio em outubro do
mesmo ano. E o governo Bolsonaro terminou sem concretizar a pro-
messa de adesão à OCDE. PENSAR ESCALA ENTRE AUTONOMIA E
POLÍTICA DE PRESTÍGIO
Em agosto de 2019, Donald Trump designou ao Brasil o status de
aliado militar preferencial da Otan, ou aliado extra-Otan, conferindo
ao Estado brasileiro facilidade na compra de tecnologia e armamen-
tos militares estadunidenses. Para Bolsonaro(22), a designação foi
“bem-vinda”, e parecia indicar que as relações bilaterais em defesa
seriam aprofundadas. Na realidade(23), o status não significa que o
Brasil passou a fazer parte da organização, e seu efeito prático está
ligado primordialmente à área comercial, favorecendo a indústria
de defesa dos EUA. Outro ponto que denota a subordinação do

(21) https://www.infomoney.com.br/economia/eua-negam-apoio-ao-brasil-na-
ocde-apos-endosso-publico/
(22) https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-08/bolsonaro-
designacao-do-brasil-como-aliado-extra-otan-e-bem-vinda
(23) https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49199195

● 57 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Estado brasileiro nas relações bilaterais entre os governos de Donald


Trump e de Jair Bolsonaro consistiu na pactuação da “Agenda da
Prosperidade”, em 2020. Trata-se de acordo de cooperação comercial
e econômica que incluiu três anexos que tratam dos seguintes
temas: facilitação de comércio, boas práticas regulatórias e medidas
anticorrupção (BERRINGER et al., 2020).
Jair Bolsonaro realizou quatro visitas bilaterais aos EUA durante
o período de um ano e dois meses em que Trump e Bolsonaro eram
presidentes, algo inédito na história brasileira. Desde a primeira vi-
sita, a crise da Venezuela foi tema central. O ex-presidente brasileiro
enfatizou que estava disposto a apoiar uma intervenção militar esta-
dunidense no Estado venezuelano e reconheceu de pronto o opositor
golpista Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente interino da
Venezuela em 2019. Outro episódio ocorreu em abril de 2020, quando
o Itamaraty publicou uma notificação em que solicitava a expulsão
de 34 diplomatas venezuelanos no país em meio à pandemia de
covid-19. Além disso, o rechaço à Venezuela foi uma pauta funda-
mental para a campanha eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições de
2022, dispensando tratamento hostil e pejorativo ao governo vizinho.
Seguindo Trump, a relação com o Estado chinês também se es-
tremeceu. O discurso sinofóbico, impulsionado pela guerra comercial
entre Estados Unidos e China, que acusava o Estado chinês de trazer
uma nova forma de dependência ao país e adotar práticas ilegais de
comércio, foi perpetrado pelo presidente do Brasil e pelo alto escalão
de seu governo. Essa postura foi intensificada durante a pandemia
de covid-19, através de acusações que sugeriam que o vírus havia
sido criado em laboratório chinês. A sinofobia também seguiu com a
postura negacionista de Trump e de Bolsonaro em relação às políticas
de isolamento social e sobre o grau de gravidade da doença. Nessa
seara, colocaram-se contra a compra de vacinas CoronaVac, desen-
volvidas pela biofarmacêutica chinesa Sinovac, e defenderam o uso
de medicamentos comprovadamente ineficazes para o tratamento da
doença, como a hidroxicloroquina (BERRINGER et al., 2021).
Em 2020, durante a corrida eleitoral estadunidense, o governo
Bolsonaro manifestou publicamente o apoio à reeleição de Donald
Trump, embarcando nas teses de fraudes no processo eleitoral. Joe
Biden, por sua vez, declarou, em debate contra Trump, que estaria
disposto a impor sanções econômicas ao Brasil em função da política

● 58 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

ambiental brasileira(24). Bolsonaro reagiu dizendo que se o diálogo não


funcionasse, usaria pólvora contra intervenções externas no Brasil.

A invasão do Capitólio
Bolsonaro ainda apoiou o movimento golpista que invadiu o
Capitólio em janeiro de 2021 no momento da posse de Joe Biden.
Diante de tudo isso, nos últimos dois anos, as relações entre os go-
vernos Bolsonaro e Biden encontraram pontos de atrito. Não houve
uma mudança estratégica quando se pensa na questão regional da
guerra contra o Estado venezuelano, mas a política ambiental acabou
se tornando uma questão de conflito político e econômico entre EUA
e Brasil. Além disso, Joe Biden definiu novas diretrizes para a política
externa dos EUA. O presidente reintroduziu a defesa do multilate-
ralismo, do meio ambiente(25) e deu prioridade ao combate contra
o coronavírus. Em comparação com a aproximação estabelecida
por Trump e Bolsonaro, a eleição de Biden resultou no afastamento
moderado entre os dois governos. Houve uma série de mudanças
nos quadros que conduziam as relações bilaterais: o embaixador
americano no Brasil, Todd Chapman, conhecidamente trumpista,
se aposentou, e Elizabeth Bagley foi indicada como embaixadora
interina no Brasil. Do lado brasileiro, o ministro Ernesto Araújo foi
substituído por Carlos França e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo
Salles, foi substituído por Joaquim Alvaro Pereira Leite. A gestão de

(24) https://www.poder360.com.br/internacional/em-debate-biden-ameaca-sancao-
contra-brasil-por-desmates-na-amazonia/
(25) A administração Biden colocou os EUA de volta no Acordo de Paris e,
apesar das dificuldades impostas por um Congresso dividido, conseguiu aprovar
uma legislação audaciosa no âmbito climático. Mais significativamente, em agosto
Biden assinou o Inflation Reduction Act, que destinou US$ 370 bilhões apenas para
o objetivo de combater as mudanças climáticas. Às vésperas da COP 27, os EUA
buscaram retomar algum protagonismo na agenda climática, para tornar mais realista
o compromisso das Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) – assumido
por Biden sob o Acordo de Paris –, que pretende reduzir, até 2030, as emissões de
gases de efeito estufa à metade dos níveis registrados em 2005. Paralelamente, há
um elo cada vez mais forte entre o comércio internacional e a agenda climática, que
deve elevar os custos para grandes poluidores que não reduzam suas emissões. A
discussão, nos EUA, do Clean Competition Act, que poderia introduzir um mecanismo
de “carbon border adjustment” – precificação das emissões de carbono via taxação
de importações dos setores mais poluentes – indica a proeminência que a luta contra
as mudanças climáticas deve ter na pauta para o comércio com os EUA.

● 59 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

França se mostrou menos inflamada quanto à agenda antiglobalista


defendida por seu antecessor, dando mais atenção à diplomacia
da saúde e aos pactos internacionais de defesa do meio ambiente
(BERRINGER et al., 2022), ainda que não tenha havido mudanças na
política interna nessa seara. Dessa forma, o Estado brasileiro manteve
uma subordinação passiva aos EUA, embora ela tenha se tornado
menos explícita (BERRINGER et al., 2022).
Após a aposentadoria de Todd Chapman, em junho de 2021,
a diplomata estadunidense Elizabeth Bagley afirmou ter confiança
nas instituições brasileiras e no sistema eleitoral. Ela declarou: “O
Brasil é uma democracia, tem instituições democráticas, sistema elei-
toral democrático, têm Judiciário e Legislativo independentes, têm
liberdade de expressão e de reunião. Eles têm todas as instituições
democráticas de que precisam para ter uma eleição livre e justa”. A
indicação de Bagley, no entanto, levou quase um ano e meio travada
na Comissão de Relações Exteriores dos EUA, por resistência dos se-
nadores republicanos. A nomeação se deu somente após a diplomação
do presidente Lula, após intensa movimentação dos democratas no
Senado(26). Segundo Biden, o objetivo era nomeá-la antes da posse
do presidente brasileiro.(27)

Dependência econômica
De maneira geral, podemos dizer que a subordinação passiva
do Estado brasileiro face aos Estados Unidos resultou também em
um aumento da dependência econômica. O comércio entre Brasil e
Estados Unidos teve um aumento, com exceção da queda em 2020,
em função da pandemia da covid-19.(28) Nas exportações, o aumento
foi de 29 milhões de dólares em 2019 para 31 milhões em 2021, e nas

(26) https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2022/12/senado-dos-eua-aprova-
nova-embaixadora-no-brasil-apos-meses-de-demora.ghtml
(27) https://www.bbc.com/portuguese/geral-63891834
(28) É válido relembrar a facilitação do comércio por meio de acordos da “Agenda
da prosperidade», que se colocam na área comercial e política, que contribuíram para
o comércio e a administração aduaneira, boas práticas regulatórias e anticorrupção,
com destaque ao Acordo de Cooperação Comercial e Econômica (Atec) assinado
em 2011 (atualizado em 2020), além do Acordo de Reconhecimento Mútuo (ARM)
assinado no dia 16 de setembro de 2022, entre a Alfândega e Proteção de Fronteiras
dos Estados Unidos (CBP) e a Receita Federal.
(https://br.usembassy.gov/pt/eua-e-brasil-assinam-acordo-de-reconhecimento-mutuo/).

● 60 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

importações o aumento foi de 34 para 43 milhões de dólares nos


mesmos anos, o que indica um déficit global de mais de 27% para o
Brasil, conforme gráfico a seguir.

Importação e Exportação Brasil-EUA 2011-2022 -


Milhões de dólares

Fonte: Ministério da Economia

Cinquenta e cinco por cento das exportações brasileiras para os


EUA são bens primários e serviços(29), com destaque para produtos
como madeira, carne bovina, equipamentos de engenharia civil e de
transporte, petróleo bruto, produtos do setor siderúrgico, ferro-gusa
e semiacabado de ferro. No tocante à importação, os principais pro-
dutos brasileiros importados dos Estados Unidos em 2022(30) foram:
alimentos e animais vivos; bebidas e tabaco; combustíveis minerais,
lubrificantes, óleos animais e vegetais, gorduras e ceras.
No que tange aos investimentos diretos, a diferença é enorme. O
Brasil recebeu 210 milhões de dólares e enviou apenas vinte milhões de
dólares (menos de 10% do montante que recebeu), entre 2019 e 2021.

(29) https://br.usembassy.gov/pt/dialogo-de-alto-nivel-brasil-eua-2022-
crescimento-economico-e-prosperidade/
(30) http://comexstat.mdic.gov.br/pt/comex-vis

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Fonte: Bureau of Economic Analysis - U.S Departament Commerce

Sobressaíram-se investimentos na implementação de tecnologias


de ponta, com parceiros brasileiros, visando à produção e à exporta-
ção de petróleo do Brasil.
Em 2022, no último ano do Governo Bolsonaro, as relações bi-
laterais entre Brasil e Estados Unidos centraram-se em três temas: a
posição sobre a guerra da Ucrânia, a participação do ex-presidente
brasileiro na Assembleia Geral da ONU em Nova York, e as eleições
brasileiras. A seguir detalharemos esses três assuntos, destacando
que permaneceu uma relação de subordinação passiva apesar de um
distanciamento relativo (conjuntural) entre os dois governos.

A guerra na Ucrânia e a posição do Brasil e dos EUA


A eclosão do conflito entre Rússia e Ucrânia em fevereiro de-
sencadeou mais um ponto de divergência nas relações Brasil-EUA,
após apoio aos eventos golpistas no Capitólio e divergências acerca
da política ambiental do governo brasileiro. Bolsonaro viajou para
a Rússia uma semana antes do início da guerra, quando a eclosão
do conflito ainda era incerta. O convite de Vladimir Putin ao presi-
dente brasileiro tinha sido feito em dezembro de 2021, e Bolsonaro
optou por prosseguir com a viagem apesar de haver anúncios acerca

● 62 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

do momento politicamente delicado. O objetivo era garantir supri-


mento(31) de fertilizantes, commodity fundamental ao agronegócio
brasileiro. A visita então despertou a reprovação pública dos EUA.
A postura de Bolsonaro durante a visita não seguiu a orientação
recomendada pelos EUA, na qual tratativas entre o secretário de Esta-
do estadunidense, Antony Blinken, e o ministro Carlos França pediam
que fosse entregue a Putin uma mensagem de princípios(32). Mesmo
tendo assumido o status de Aliado Prioritário Extra-Otan durante
o governo Trump, Bolsonaro, contrariamente ao título, afirmou ser
solidário à Rússia. Ele disse “somos solidários a todos aqueles países
que querem e se empenham pela paz. Temos uma colaboração intensa
[com a Rússia] nos principais foros internacionais, onde defendemos
a soberania dos Estados, o respeito ao direito internacional e a Carta
das Nações Unidas”. Além disso, declarou que a guerra na Ucrânia
seria “uma boa oportunidade para a gente”(33).
Essa declaração repercutiu de maneira bastante negativa na
imprensa norte-americana. O jornal Washington Post publicou uma
matéria sobre a declaração, em que afirmou que Bolsonaro estava
usando a guerra como uma justificativa para explorar terras indí-
genas(34). Além disso, por meio de uma nota do Departamento de
Estado, os EUA afirmaram que não haveria momento pior para Jair
Bolsonaro expressar solidariedade à Rússia, e que isso enfraquecia
a política internacional, especialmente as forças que buscam evitar
um “desastre estratégico e humanitário”.
Para a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, a visita de Bolsonaro
à Rússia fez parecer que o Brasil “está do outro lado da maioria da
comunidade global”(35). Outro porta-voz da Casa Branca afirmou que

(31) https://observatoriodamineracao.com.br/nem-guerra-nem-birra-bolsonaro-
foi-a-russia-para-garantir-o-suprimento-de-fertilizantes-e-manter-o-https://
observatoriodamineracao.com.br/nem-guerra-nem-birra-bolsonaro-foi-a-russia-
para-garantir-o-suprimento-de-fertilizantes-e-manter-o-apoio-do-agronegocio/
apoio-do-agronegocio/
(32) https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/02/18/brasil-parece-estar-do-outro-
lado-de-onde-esta-a-maioria-da-comunidade-global-diz-porta-voz-da-casa-branca-
sobre-viagem-de-bolsonaro-a-russia.ghtml
(33) https://www.bbc.com/portuguese/geral-60657268
(34) https://www.washingtonpost.com/world/2022/03/19/brazil-bolsonaro-mining-
amazon-russia-ukraine/
(35) https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/02/18/brasil-

● 63 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

“o Brasil, como um país importante, parece ignorar a agressão armada


por uma grande potência contra um vizinho menor, uma postura
inconsistente com sua ênfase histórica na paz e na diplomacia”(36).
A visita, ainda, gerou uma série de polêmicas. Houve uma
enxurrada de fake news, que foram compartilhadas, perpetuando a
ideia de que o presidente brasileiro teria evitado uma guerra entre
Ucrânia e Rússia. O ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles
foi responsável por compartilhar uma montagem falsa de uma foto
de Bolsonaro e Putin apertando as mãos com o logo da “CNN” e o
seguinte texto: “Putin sinaliza recuo na Ucrânia, presidente Bolsonaro
evita a 3ª Guerra Mundial”. Além dessa publicação, o ex-ministro
chegou a simular a capa da revista americana Time, com o seguinte
conteúdo: “Prêmio Nobel da Paz 2022: Bolsonaro, o homem que
poderá definir o futuro do planeta”. Todavia, após publicar essas
mensagens, e obter resposta negativa da CNN, que desmentiu a
notícia, Salles negou que se tratava de algo sério e comentou que era
apenas uma “brincadeirinha”(37).
O ministro do Turismo, Gilson Machado, também ajudou a com-
partilhar fake news sobre o tema em uma entrevista, na qual disse que
Bolsonaro levou uma “mensagem de paz” e impediu a guerra. Esse
pronunciamento aconteceu após Salles já ter dito que seus posts se tra-
tavam de uma mentira. Além disso, uma série de perfis bolsonaristas
criou uma montagem de Putin, em um vídeo no qual ele teria declarado
abertamente que Jair Bolsonaro o convenceu a evitar a guerra(38). Algu-
mas publicações já passam de cem mil visualizações no Facebook. No
levantamento exclusivo feito pela Quaest(39) para a CNN, foi constatado
que 22% das pessoas que tiveram alguma interação com essas notícias
nas redes sociais escreveram ou acreditaram que o ex-presidente foi
de fato responsável pelo recuo das tropas russas.

outro-lado-eua.htm
(36) https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/02/18/brasil-parece-estar-do-outro-
lado-de-onde-esta-a-maioria-da-comunidade-global-diz-porta-voz-da-casa-branca-
sobre-viagem-de-bolsonaro-a-russia.ghtml
(37) https://www.nexojornal.com.br/extra/2022/02/15/Bolsonaro-evitou-a-guerra-
Ex-ministro-diz-que-era-brincadeira
(38) https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/meme-tambem-engana-
e-falso-que-putin-tenha-sido-convencido-por-bolsonaro-a-nao-atacar-a-ucrania/
(39) https://www.cnnbrasil.com.br/politica/22-acreditam-em-noticia-falsa-sobre-
recuo-de-tropas-russas-a-pedido-de-bolsonaro-mostra-pesquisa/

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Uma vez que o cenário internacional se encontrava agitado


em relação ao conflito, o Conselho de Segurança da ONU se reuniu
para votar uma resolução que condenava a intervenção do Estado
russo. No dia 25 de fevereiro, dois dias após a invasão à Ucrânia, foi
apresentada uma resolução que foi vetada pela Rússia, único Estado
a votar contra, mas cujo voto tem poder de veto. A resolução recebeu
11 votos favoráveis, além da abstenção de China, Índia e Emirados
Árabes. O Brasil foi um dos Estados a votar a favor da condenação
à invasão russa. O embaixador brasileiro na ONU, Ronaldo Costa
Filho, afirmou que “o enquadramento do uso da força contra a
Ucrânia como um ato de agressão, precedente pouco utilizado neste
Conselho, sinaliza ao mundo a gravidade da situação”(40), e pediu a
retirada de tropas e a retomada imediata do diálogo diplomático.
Reafirmou ainda a posição do Estado brasileiro como um ator que
procura manter o espaço do diálogo, e, portanto, condena o uso da
força contra a integridade territorial de um Estado-membro. O Estado
brasileiro, até então, não havia se posicionado formalmente sobre o
conflito. Apesar de o vice-presidente Hamilton Mourão ter afirmado
que o país não era neutro, mas sim contrário à invasão, um dia antes
da votação na ONU o presidente Jair Bolsonaro, em uma transmissão
ao vivo nas redes sociais, desautorizou Mourão, argumentando que
quem se posiciona sobre tais assuntos é o presidente(41). A partir de
então, não se sabia ao certo qual seria a posição do governo brasileiro
quanto à questão, mas as pressões tanto internas quanto externas
levaram o embaixador brasileiro a se colocar contra a invasão.
Se, por um lado, o voto brasileiro pode ser interpretado como
reflexo da posição do Itamaraty, que julgou a invasão como capaz
de desestabilizar os princípios básicos do direito internacional(42),
o voto também pode ser observado sob uma perspectiva de pres-
são internacional. Justamente por ter havido um temor acerca do
posicionamento do Estado devido às recentes declarações de Jair
Bolsonaro, houve movimentações de outros Estados para garantir o
voto do Brasil em diversas ocasiões precedentes à votação no Con-
selho, como telefonemas do secretário de Estado dos EUA, Antony

(40) https://g1.globo.com/mundo/ucrania-russia/noticia/2022/02/25/russia-veta-
resolucao-condenando-invasao-da-ucrania-no-conselho-de-seguranca-da-onu.ghtml
(41) https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60532570
(42) https://br.usembassy.gov/statement-by-the-u-s-embassy-charge-daffaires-
on-russia-and-ukraine/

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Blinken, o pedido de condenação à Rússia vindo do chefe da missão


da embaixada ucraniana no Brasil, Anatoliy Tkach, e uma reunião
em Brasília com membros da União Europeia.
Ainda, no dia 16 de março, na votação da resolução contra a
Rússia analisada pela Unesco (Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura), o governo brasileiro absteve-se
junto aos demais países do Brics (China, Índia, África do Sul e, por
fim, Rússia, que votou contrariamente). Segundo Brasília, a abstenção
foi em favor de uma desescalada da tensão(43).
Essa posição mais neutra quanto à questão russo-ucraniana
se manteve também na votação de uma resolução na Organização
Internacional do Trabalho (OIT), que visava ampliar o isolamento
diplomático da Rússia, em que o Brasil mais uma vez se absteve,
acompanhado do grupo dos Brics. Essa última votação, no entanto,
mostrou que não apenas o Brasil, como demais países emergentes
e dependentes tanto da Rússia quanto dos Estados Unidos, estão
adotando uma posição de neutralidade, pois enxergam que não se-
ria benéfico para eles transformar Putin em um pária internacional.
Apesar da pressão estadunidense, uma posição assertiva contra a
Rússia poderia significar o afastamento com o principal fornecedor de
fertilizantes do Brasil, e a abstenção pode fazer parte de um jogo de
alcance de margem de manobra do Estado brasileiro em um cenário
político conturbado e de forte pressão internacional sobre a política
ambiental brasileira.

Bolsonaro e a Assembleia da ONU


Conforme tradição de mais de setenta anos, o chefe de Estado
brasileiro foi o primeiro a discursar na Assembleia Geral da ONU,
em setembro de 2022. Jair Bolsonaro foi considerado moderado em
comparação aos seus discursos nos anos anteriores, em que questio-
nava as instâncias internacionais e criticava a esquerda de maneira
mais explícita. Fez um discurso menos agressivo, focado no cenário
eleitoral brasileiro(44). O então candidato à reeleição pelo PL ocupava

(43) https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/03/17/brasil-abstencao-
russia-unesco.htm
(44) https://www.washingtonpost.com/world/brazils-bolsonaro-calls-for-negotiations-
to-end-ukraine-war/2022/09/20/f73de3fe-3901-11ed-b8af-0a04e5dc3db6_story.html

● 66 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

o segundo lugar nas pesquisas eleitorais. Sua agenda em Nova York


também segurava um encontro importante com António Guterres,
secretário geral da ONU. Um dos temas da reunião foi a reforma
do Conselho de Segurança, com participação permanente do Brasil,
tema recorrente na política externa brasileira. Contudo, Bolsonaro
não compareceu à reunião.
A visita de Bolsonaro a Nova York foi acompanhada por mani-
festantes contrários ao presidente, carregando faixas com os dizeres
“Brasileiros contra o fascismo” e “51 imóveis em dinheiro vivo”.
Imagens de Jair Bolsonaro foram projetadas no prédio da ONU, com
expressões como “Brazilian shame”, intervenção da US Network for
Democracy in Brazil, que reúne acadêmicos, organizações da socieda-
de civil e diversos ativistas. Houve, ainda, uma projeção de imagens(45)
do presidente brasileiro no topo do Empire State Building. Mas, por
outro lado, em junho de 2022, o presidente foi recebido por apoiadores
em Miami, que organizaram uma motociata. Os apoiadores vestiam
camisas da seleção brasileira e entoaram o hino nacional brasileiro.
Levaram cartazes com críticas às instituições democráticas brasileiras,
em especial, ao Supremo Tribunal Federal e seus ministros.
Na ocasião, o discurso de Bolsonaro na ONU tangenciou uma
ou outra pauta internacional e, rapidamente, listou êxitos de seu
governo. Entre as pautas internacionais, o presidente afirmou que a
agenda do desenvolvimento sustentável é impactada por ameaças
à paz e à segurança internacional, fazendo alusão ao conflito entre
Rússia e Ucrânia, que tem entre suas consequências o aumento dos
preços dos alimentos, combustível e matérias-primas no mundo todo.
Ele afirmou não acreditar que “a melhor solução é adotar medidas
unilaterais e sanções seletivas, que são inconsistentes com o direito
internacional”. Ainda alinhado com a posição do Itamaraty, disse
que a solução para o conflito na Ucrânia seria encontrada no diálogo.
A guerra, segundo o presidente brasileiro, “serve de alerta(46)” para
que haja uma reestruturação da ONU, e ao ressaltar que o Brasil já
ocupou um assento rotativo no Conselho de Segurança 11 vezes,
reforçou que o órgão precisa buscar “soluções inovadoras”. O pleito
de Bolsonaro, para que uma reforma na ONU seja feita, mostra-se

(45) https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/09/ida-de-bolsonaro-a-ny-tem-
churrasco-com-apoiadores-protestos-e-agenda-esvaziada.shtml?origin=folha
(46) https://news.un.org/en/story/2022/09/1127141

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

enfraquecido pelo descaso do presidente ao não comparecer à reu-


nião com António Guterres, reforçando o papel do Brasil no cenário
internacional como um Estado isolado.
Ao discursar sobre os feitos de seu governo, Bolsonaro incluiu
entre eles o auxílio emergencial dado à população mais vulnerável
para protegê-las das consequências econômicas decorrentes da pan-
demia do covid-19. Para isso, apresentou o dado de que o programa
beneficiou um terço da população brasileira. No entanto, por mais
que verídica, a informação é parcial, uma vez que a política do auxí-
lio emergencial só vingou por pressão da oposição. Este padrão de
meias-verdades voltou a aparecer em seu discurso ao afirmar que
“quando o Brasil se manifesta sobre a agenda da saúde pública, faze-
mos isso com a autoridade de um governo que, durante a pandemia
da covid-19, não poupou esforços para salvar vidas”. Novamente,
apesar da veracidade dos dados, o real motivo do êxito na campa-
nha e na produção de vacinas no Brasil não foi mérito do Governo
Federal, que perseguiu diretrizes negacionistas.
Além disso, ainda que não fosse seu foco, o discurso do presi-
dente brasileiro não deixou de citar elementos conservadores, que
ilustram seu caráter ideológico, defendendo que “os valores funda-
mentais da sociedade brasileira, refletidos na agenda dos Direitos
Humanos, são a defesa da família, a concepção do direito à vida e o
repúdio à ideologia de gênero”(47).

As eleições de 2022
Houve uma clara ação dos democratas, congressistas e brasi-
lianistas em relação às eleições brasileiras. Havia um temor de que
ocorresse algo similar ao governo Trump. Portanto, o senador do
estado de Vermont, Bernie Sanders, demonstrou bastante preocupa-
ção com a democracia brasileira. Sanders, que vocalizou em diversas
instâncias não gostar do tom golpista dos discursos de Bolsonaro,
mostrou-se decidido a resistir contra qualquer tentativa de golpe que
violasse as bases democráticas brasileiras (WARD, 2022). Após de-
clarações polêmicas de Jair Bolsonaro, nas quais insistiu que “apenas
Deus” o removeria do cargo, e que se fosse aplicar um golpe de Estado

(47) https://edition.cnn.com/2022/09/20/americas/unga-bolsonaro-brazil-intl-
latam/index.html

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

não diria nada, Bernie Sanders (2022, apud WARD, 2022) afirmou ser
“dever dos Estados Unidos estar oficialmente do lado dos eleitores,
independentemente de quem vença as eleições”. Sanders continuou
defendendo a democracia brasileira quando afirmou que, se ocorresse
um golpe, seria inaceitável que os Estados Unidos reconhecessem e
trabalhassem com o governo que perdeu as eleições. Para o senador,
isso seria um desastre tanto para o povo brasileiro quanto para a
imagem da força democrática perante o mundo (G1, 2022).
Com a intenção de reforçar que os Estados Unidos defendem
eleições presidenciais justas e livres no Brasil, Bernie Sanders apresen-
tou um projeto de resolução (Sense of the Senate) para que o Senado
dos Estados Unidos se manifestasse sobre o assunto. A resolução, que
foi aprovada, além de apoiar o candidato eleito legalmente, defendeu
também que os Estados Unidos encerrassem relações com o Brasil
caso o país fosse dirigido por um governo não eleito democraticamente.
“Se Jair Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva ou qualquer outro ganhar a
presidência legalmente”, disse o senador, “não há necessidade de uma
mudança na relação Estados Unidos-Brasil – afinal, seria a vontade do
povo”. Contudo, a resolução não culminou em práticas obrigatórias,
funcionando muito mais como um posicionamento da casa legislativa
dos Estados Unidos, do que como uma moção prática. Com o resultado
das eleições brasileiras dando vitória a Lula, e a situação de incerteza
em relação à posição de Bolsonaro, Bernie Sanders promoveu o Sense
of Senate como um posicionamento dos Estados Unidos em defesa
da democracia brasileira (G1, 2022).
Parte da imprensa estadunidense manteve uma postura
amigável com a eleição de Lula. The Washington Post declarou: “O
ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, um ícone da es-
querda latino-americana, derrotou o presidente Jair Bolsonaro no
domingo para conquistar um terceiro mandato liderando o maior
país da região, disse o Tribunal Superior Eleitoral, coroando um
notável retorno político menos de três anos depois que ele saiu de
uma cela de prisão”. The New York Times pontuou: “Os resultados
no domingo deixaram claro que dezenas de milhões de brasileiros
se cansaram de seu estilo polarizante e do tumulto frequente de
seu governo”. Para o jornal britânico The Guardian, foi uma virada
“espantosa” e o mais importante resultado em décadas para o Brasil
(VIEIRA, SABBAG, 2022).

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Mesmo após a derrota nas urnas, Bolsonaro teria sido aconselha-


do por Donald Trump a contestar o resultado das eleições. De acordo
com o Washington Post, o ex-presidente dos EUA teria se encontrado
com Eduardo Bolsonaro num resort na Flórida. O ex-estrategista
político de Trump, Steve Bannon, confirmou que se encontrou com
o deputado brasileiro e que teriam conversado sobre a importância
das manifestações pró-Bolsonaro e os desafios que enfrentariam dada
a vitória de Lula (BREDA, 2022).
Bolsonaro foi o presidente que mais demorou para se pro-
nunciar após uma derrota presidencial. Após mais de 44 horas de
oficializada a sua derrota, agradeceu os votos que recebeu, mas não
parabenizou o presidente Lula pela vitória (SOARES, 2022). No breve
discurso, defendeu que manifestações pacíficas eram bem-vindas e
que as suas ações estariam dentro dos limites da Constituição. Ele
destacou ainda que o seu governo superou a pandemia e as con-
sequências de uma guerra. O pronunciamento durou cerca de dois
minutos (TV BRASIL, 2022).
Com Lula eleito, a relação com o governo dos EUA se estreitou.
Mesmo antes da posse, o presidente afirmou para jornalistas em
Brasília que haveria a possibilidade de ocorrer uma visita na Casa
Branca; segundo ele, “Temos muita coisa para conversar porque os
EUA padecem de uma necessidade democrática tanto quanto o Bra-
sil. O estrago que o Trump fez na democracia americana é o mesmo
estrago que o Bolsonaro fez no Brasil”. Lula reiterou que não poderia
viajar antes da sua diplomação pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
todavia mencionou que gostaria de ir para EUA, Argentina, China e
algum país europeu (PARAGUASSU, 2022). A convite de Joe Biden,
Lula chegou a receber, em Brasília, Jake Sullivan, titular do conselho
de Segurança Nacional dos Estados Unidos, Ricardo Zúñiga, secretá-
rio-adjunto do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado, e
Juan González, diretor-sênior do Hemisfério Ocidental do Conselho
de Segurança Nacional. Segundo Lula, um dos assuntos da discussão
foi a possível visita da comitiva do PT aos EUA. Além disso, os mem-
bros do governo estadunidense reiteraram que Biden gostaria de ver
as instituições financeiras Banco Mundial e Banco Interamericano de
Desenvolvimento — cujo presidente é o brasileiro Ilan Goldfajn —,
aumentando o financiamento dos países, para lidarem com impacto
das mudanças climáticas e insegurança alimentar (MELLO, 2022).

● 70 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Apontamentos para o futuro governo Lula


A vitória de Lula e o tempestivo reconhecimento da Casa
Branca – como já era previsto, para reforçar a credibilidade interna-
cional do resultado – podem indicar o início de um novo capítulo
nas relações Brasil-Estados Unidos. Tanto Biden quanto Lula foram
responsáveis por derrotar eleitoralmente a extrema-direita nas duas
maiores democracias das Américas, dado que não é irrelevante para
tentar interpretar o futuro dessa relação bilateral. Mais do que isso,
a volta de Lula à presidência coloca na ordem do dia temas como a
cooperação climática e o “desmatamento zero” na Amazônia, o que
está em linha com a agenda prioritária do governo democrata dos
EUA e deve destravar diálogos não apenas na seara ambiental, mas
inclusive comercial.
Reposicionando o Brasil como protagonista dos acordos climá-
ticos e comprometido com metas de desmatamento zero e NDCs, o
governo Lula poderia estabelecer uma profícua e pragmática agenda
de cooperação climática com os EUA, inclusive dando vigor à cap-
tação de financiamento internacional para a proteção da Amazônia,
algo que começou a acontecer(48) espontaneamente desde sua vitória
nas urnas. Assim, esboça-se uma reaproximação com os EUA funda-
mentada sobretudo no alinhamento da agenda climática.

(48) https://www.cnnbrasil.com.br/politica/alemanha-e-noruega-estao-dispostas-
a-retomar-financiamento-do-fundo-amazonia-em-governo-lula/

● 71 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Bibliografia
BERRINGER et al. Nacionalismo às Avessas. In: MARINGONI, Gil-
berto; SCHUTTE, Giorgio Romano; BERRINGER, Tatiana (orgs.). As
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Pandemia. São Bernardo do Campo: Observatório de Política Externa
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p. 71-80.

BERRINGER et al. Relações Brasil-EUA nos governos Biden e Bol-


sonaro (2021). In: AZZI, Diego Araujo; SOUSA, Ana Teresa Lopes
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G1. O que é a resolução que Bernie Sanders pretende aprovar no


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Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/08/12/o-
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10 de dezembro 2022.

VIEIRA, Eli. SABBAG, Ricardo. “Incansável”, “ícone da esquerda”:


como a imprensa internacional retratou a eleição de Lula. Gazeta
do Povo [online], 30 de outubro de 2022. https://www.gazetadopovo.
com.br/mundo/como-a-imprensa-internacional-retratou-a-eleicao-
-de-lula/. Acesso em: 11 de dezembro 2022.

● 72 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

BREDA, Lucas. Trump, Bannon e aliados aconselharam Bolsonaro


a contestar eleição, diz jornal. Folha de São Paulo [online]. 24 de nov.
2022. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/11/
trump-bannon-e-aliados-aconselharam-bolsonaro-a-contestar-eleicao-
-diz-jornal.shtml>. Acesso em: 09 de dezembro de 2022
PARAGUASSU, Lisandra. Lula diz que pode viajar aos EUA para
encontrar Biden antes da posse. CNN Brasil [online]. 02 de dez. 2022.
Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lula-diz-que-
-pode-viajar-aos-eua-para-encontrar-biden-antes-da-posse/>.
MELLO, Patrícia Campos. C. EUA gostariam de receber Lula
na Casa Branca logo no início do governo. Folha de São
Paulo [online]. 05 de dezembro de 2022. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/12/eua-gosta-
riam-de-receber-lula-na-casa-branca-logo-no-inicio-do-governo.
shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_cam-
paign=compwa>.
TV BRASIL, #AoVivo: Pronunciamento do Presidente Jair Bolsona-
ro. YouTube, 1 nov. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=TImBnoyau00&ab_channel=TVBrasil.
SOARES, Ingrid. Após mais de 44 horas, Bolsonaro reconhece
indiretamente vitória de Lula. Correio Brasiliense [Online]. 01 de
novembro de 2022. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.
com.br/politica/2022/11/5048738-apos-mais-de-44-horas-bolsonaro-
-reconhece-indiretamente-vitoria-de-lula.html>. Acesso em: 09 de
dezembro de 2022.

● 73 ●
Entre desarranjos e contradições:
as relações Brasil-China no
governo Bolsonaro

Ana Tereza Lopes Marra de Sousa, Giorgio Romano Schutte(49), Rafael Al-
meida Ferreira Abrão(50), Luccas Gissoni(51), Filipe Porto(52), Vitor Gabriel
da Silva(53), Brenda Neris Gajus, Daniel Rocha, Emanuela
Almeida da Silva, Fabíola Oliveira, Flávia Tomi Mitake Neiva,
Kethelyn Santos, Lais Pina e Vitor Hugo dos Santos(54)

Introdução
Neste trabalho, analisamos as relações Brasil-China durante o
governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Estamos interessados em com-
preender por que mesmo diante do desejo do presidente de promover
mudanças nas relações Brasil-China – de rebaixar a importância da
potência asiática dentro da Política Externa Brasileira (PEB) –, ao fim
do seu mandato, o Brasil ficou ainda mais próximo da China, pelo
menos no que diz respeito às relações econômicas. Argumentamos

(49) Professores da Universidade Federal do ABC (UFABC) do Bacharelado e do


Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais. Coordenadores do Opeb
na gestão 2022, e do Grupo de Trabalho de China do Opeb.
(50) Doutorando em Economia Política Internacional pela UFABC. Membro do
Grupo de Trabalho de China do Opeb.
(51) Mestrando em Economia Política Internacional pela UFABC. Membro do
Grupo de Trabalho de China do Opeb.
(52) Mestrando em Relações Internacionais pela UFABC. Membro do Grupo de
Trabalho de China do Opeb.
(53) Graduado em Relações Internacionais pela UFABC. Membro do Grupo de
Trabalho de China do Opeb.
(54) Graduandos/as em Relações Internacionais pela UFABC. Membros/as do
Grupo de Trabalho de China do Opeb.

● 74 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

que dois fatores foram explicativos para as dificuldades de Bolsonaro


de promover mudanças nas relações: i) na esfera doméstica, a existência
de grupos de interesse favoráveis às relações com a China pressionou o
governo Bolsonaro a não empreender grandes mudanças de rumo e; ii)
do lado externo, a eleição de Joe Biden nos EUA – com o qual Bolsonaro
não desenvolveu boas relações –, inviabilizou a aposta no alinhamento
com Washington como alternativa para as relações com a China.
Como metodologia, este trabalho utilizou revisão bibliográfica
e levantamento de dados primários. Na segunda parte, apontamos
as contradições que marcaram o Governo Bolsonaro a respeito das
relações com a China. Na terceira, enfatizou-se a dificuldade em
promover mudanças nessas relações, com destaque para o lado co-
mercial, o financeiro e o âmbito dos Brics. Na quarta, apresentamos
nossas conclusões e perspectivas para o futuro das relações bilaterais.

A China na política externa do Governo Bolsonaro


As relações com a China, durante o Governo Bolsonaro, foram
marcadas por contradições impulsionadas pela falta de consenso,
dentro do próprio governo, sobre como o país deveria ser tratado
na PEB. De um lado, foi notável a vontade do presidente e de alguns
agentes de sua administração de reorientar a inserção internacional
do Brasil promovendo um afastamento da China e um alinhamento
com os EUA. De outro, essa diretriz encontrou uma série de constran-
gimentos para se realizar, dado que grupos econômicos e políticos
interessados em boas relações com a China moderaram os ímpetos
de mudança propostos por Bolsonaro (SOUSA et al., 2021b).
Durante o período de campanha eleitoral, em 2018, Jair Bol-
sonaro indicava que um dos objetivos na sua administração seria
diminuir o peso da China no arco das relações externas brasileiras.
Duas situações foram emblemáticas. Primeira, o pré-candidato vi-
sitou Taiwan, fato que gerou reação negativa por parte de Pequim.
Ainda, tinha feito várias declarações em tom crítico acerca das
relações bilaterais, destacando que a China estaria “comprando” o
Brasil (SOUSA et al., 2021a). Havia indicações de que, uma vez que
assumisse o governo, a PEB seria reorientada para um alinhamento
com os EUA (naquele momento governado por Donald Trump, a
quem Bolsonaro considerava um aliado) e um rebaixamento da
importância da China para o Brasil.

● 75 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Uma vez eleito, Bolsonaro indicou ao Ministério das Relações


Exteriores (MRE) o diplomata Ernesto Araújo, que enfatizava a
existência de diferenças fundamentais entre o Brasil, país Ocidental
e de cultura judaico-cristã, e a China, não Ocidental e comunista.
Advogava-se por um alinhamento do Brasil com os EUA.
Tais indicações causaram preocupação em vários setores políti-
cos e econômicos nacionais que entendiam ser um erro realizar uma
política de afastamento da China, principalmente pela importância
econômica do país para o Brasil. Como mostra a Tabela 1, medida em
termos de corrente de comércio, a participação chinesa no comércio
exterior brasileiro tem sido crescente, ampliando-se sua diferença em
relação ao segundo colocado, os EUA. Enquanto, em 2009, a razão
entre a corrente de comércio do Brasil com a China era de apenas
1,03 com relação à corrente com os EUA, em 2021 ela chegou a 1,9,
mostrando que o volume de comércio com a China alcançou quase
o dobro daquele que o Brasil manteve com os EUA.

Tabela 1 – Corrente de comércio do Brasil (valor FOB – US$)


Total
Ano EUA China
(com o mundo todo)
2009 35.626.498.970 36.899.486.628 281.189.285.709
2012 59.129.070.002 75.470.551.744 465.118.964.227
2015 50.517.834.948 65.869.412.744 359.886.614.140
2018 61.528.575.538 99.086.800.129 417.211.506.901
2021 70.530.460.054 135.558.833.366 500.222.626.640

Fonte: BRASIL (2022)(55)

Com relação às exportações, conforme ilustrado na Tabela 2, a


participação da China também tem sido crescente: mais que dobrou
entre 2009, ano em que a China se tornou a primeira parceira comer-
cial brasileira, e 2021; já para os EUA, o segundo maior parceiro, tem
havido estabilidade de participação. Os dados mostraram, portanto, a
progressiva importância da China para o comércio exterior brasileiro.

(55) Os dados foram coletados por meio da plataforma Comex Stat, disponível
em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home. Os dados de 2022 referem-se ao período
de janeiro a novembro. Todos os outros anos os dados são de janeiro a dezembro.

● 76 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Tabela 2 – Porcentagem de participação de EUA nas exportações


totais do Brasil em anos selecionados

Ano China EUA


2009 13,8 10,27
2012 17,2 11,10
2015 18,9 12,87
2018 27,6 12,37
2021 31,3 11,09
2022 27 11

Fonte: BRASIL (2022)(56)

Especificamente, para produtos como soja, petróleo, minério de


ferro e carne – respectivamente, o primeiro, segundo, terceiro e quinto
produtos mais exportados pelo Brasil em 2021 em sua pauta geral – a
China tem sido destino essencial de exportações: constitui, para eles,
o primeiro mercado. Paralelamente, tem sido fonte de importações
para setores da indústria da transformação. Este cenário, assim, mo-
bilizou domesticamente interesses diversos que defenderam uma
continuidade das relações bilaterais. Igualmente, os saldos comer-
ciais provenientes do comércio com a China, país com o qual o Brasil
realizou seu maior superávit desde 2009, tem contribuído de forma
crescente para os resultados gerais da balança comercial: enquanto em
2015 cerca de 50,24% do superávit brasileiro era proveniente da China,
em 2021 esse número chegou a 65,55% (ITC, 2022).
Adicionalmente, a China tem sido um país importante como fonte
de investimentos e recursos externos (SCHUTTE, 2020). Portanto, da
perspectiva de importantes grupos econômicos brasileiros, e de políticos
ligados a esses grupos(57) ou que simplesmente compreendiam a impor-
tância da China para o Brasil, uma PEB pautada no distanciamento em
relação ao país asiático não era adequada. Setores de dentro do próprio

(56) Os dados foram coletados por meio da plataforma Comex Stat, disponível
em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home
(57) Em destaque, aponta-se a Bancada Ruralista, a maior bancada do Congresso
Nacional, que defende interesses de agroexportadores.

● 77 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Governo Bolsonaro, como a vice-presidência da República, os Ministérios


da Economia (ME), da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), e
da Infraestrutura (MI), foram críticos da postura assumida por Araújo no
MRE, pois temiam o impacto que poderia causar nas relações econômicas.
Esses setores entendiam que uma política de maior alinhamento com os
EUA, como pretendida por Bolsonaro, não deveria prescindir de uma
maior aproximação com a China (SOUSA et al., 2021a).
Diante dessas diferenças, a PEB para a China foi marcada du-
rante o Governo Bolsonaro pela instabilidade. É possível dividir o
período de vigência do Governo Bolsonaro em três fases no que diz
respeito às relações Brasil-China, conforme a seguir.

Pragmatismo involuntário
A primeira fase compreende do começo de 2019 até março de 2020,
e foi marcada pela existência de um discurso crítico à China, mas que foi
se arrefecendo. Apesar de ter havido declarações controversas – como
quando Araújo insinuou, referindo-se implicitamente à China, que o
Brasil teria apostado nos “parceiros errados”, que não iria mais “vender
a alma” em troca do comércio de minério de ferro, e que a aposta no
“mundo pós-americano”, referindo-se aos Brics, era errada –, a percepção
era de que o risco que esse discurso produzisse impactos negativos no
plano das relações concretas era pequeno (SOUSA et al., 2021a).
A despeito de não ser uma escolha do presidente e Araújo, os
interesses econômicos e financeiros prevaleceram nas relações e foram
representados por outros órgãos no governo, como a vice-presidência
da República e, em particular, o Mapa, que chegou a montar uma as-
sessoria específica para manter relações com a China, e realizou uma
visita ao país com a clara intenção de consolidar e expandir os negó-
cios entre os países. Também o fato de a reunião do Brics naquele ano
ocorrer no Brasil, com a presença de Xi Jinping, criou a necessidade
de normalidade nas relações. Bolsonaro, inclusive, chegou a visitar a
China durante os jogos militares em 2019.

Distopia conflituosa
Já a partir do início de 2020, é possível apontar que as relações
passaram para uma fase mais conflitiva. O cenário externo, caracteri-
zado pela pandemia de covid-19 e pelas maiores pressões do governo

● 78 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Trump sobre o Brasil para que contribuísse para sua estratégia de


contenção da China na América Latina, teve impacto nas relações
bilaterais. A natureza conflitiva deu-se principalmente em torno
da rede 5G e da pandemia (SOUSA et al., 2020). No primeiro caso,
os EUA pressionaram o Brasil, da mesma forma como fizeram com
outros aliados, para que limitasse a presença da empresa chinesa
Huawei nas redes nacionais, sugerindo que sua participação no 5G
poderia limitar acordos posteriores. Em determinados momentos
de 2020, o governo brasileiro pareceu indicar que as solicitações
dos EUA seriam atendidas, como quando o Ministro da Economia,
Paulo Guedes, afirmou que a escolha sobre o 5G era uma questão
geopolítica e que o Brasil ficaria do lado dos EUA, mesmo diante
das interpelações de empresas do setor de telecomunicações e ou-
tros atores nacionais favoráveis à participação da Huawei (SOUSA
et al., 2021b).
Uma parte do bolsonarismo recorreu a declarações ofensivas
à China. O caso mais emblemático envolveu o ex-deputado federal
Roberto Jefferson, que proclamou diversas ofensas racistas contra o
então embaixador da China no Brasil, Yang Wanming. Além disso,
grupos de mensagens nas redes WhatsApp e Telegram foram uti-
lizados para disseminar teorias conspiratórias entre apoiadores de
Bolsonaro, tentando criar a imagem de existência de um inimigo
externo em torno da China (SOUSA et al., 2022).
Com relação à pandemia, Bolsonaro deu declarações nas quais
culpava a China pela covid-19 e difundia desconfiança com relação
às vacinas de origem chinesa, recusando-se, por meio do Ministério
da Saúde, a efetivar a compra da vacina CoronaVac, produzida pelo
Instituto Butantan, ligado ao governo do estado de São Paulo, em
acordo com a chinesa Sinovac (SOUSA, RODRIGUES, 2021). Se no
primeiro ano de governo, em 2019, os discursos críticos com relação à
China foram vistos como sendo de baixo risco de provocar alterações
concretas nas relações, a partir de 2020 essa percepção alterou-se, com
riscos de impactos negativos cada vez mais crescentes.
Após décadas de trabalhos bilaterais de aproximação entre os dois
países, iniciou-se nesse momento um período inédito para as relações,
marcado por conflitos diplomáticos criados pelo governo brasileiro.
Nos episódios em que foi criticada, a China respondeu de forma dura,
apesar de sempre dentro do campo retórica, sem desdobramentos para

● 79 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

as relações econômicas ou comerciais. Araújo chegou a pedir a Pequim


a substituição do embaixador da China no Brasil.

Normalidade negligente
Os impasses da segunda fase só foram superados quando os
interesses econômicos e financeiros conseguiram dominar novamen-
te a pauta das relações bilaterais. Dois movimentos paralelos a isso
foram essenciais para o contorno da situação: a influência de gover-
nos subnacionais, que passaram a pautar a atuação do Brasil junto à
China durante a crise sanitária, reconhecendo sua necessidade para
o acesso a vacinas, equipamentos e insumos farmacêuticos ativos
(IFAs); e o legislativo, mobilizado por grupos econômicos e políticos,
bem como ministérios do próprio governo, em destaque o Mapa, que
passaram a exercer forte pressão com relação ao 5G (SOUSA, 2022).
Juntamente a essas pressões, a perda do principal aliado internacio-
nal de Bolsonaro, Donald Trump, no início de 2021, colocou em xeque a
política de alinhamento do Brasil aos EUA, que passou a ser governado
a partir de então por Joe Biden, com quem Bolsonaro não criou boas re-
lações. É nesse cenário que se pode entender a saída de Araújo do MRE
e a entrada de Carlos França em seu lugar (SOUSA et al., 2022). A partir
de então, as relações começaram entrar em normalização, iniciando-se a
terceira fase, que vigorou até o final do mandato de Bolsonaro.
Tal fase foi caracterizada por uma melhora das relações diplo-
máticas e uma menor frequência e repercussão de discursos críticos
à China (SOUSA et al., 2022). Constatou-se que diante dos interes-
ses concretos dos grupos internos e da perda da alternativa de um
interlocutor externo de peso nos EUA, não seria possível mudar a
política para China e promover o distanciamento ou rebaixá-la de
importância para o Brasil. Apesar da melhora das relações, essa ter-
ceira fase tem sido marcada pela dificuldade de planejamento das
relações bilaterais, pela ausência de um plano para tratar a China e
pela negligência em assuntos não relacionados a questões comerciais.

A incapacidade da mudança diante da profundidade das


relações
Apesar dos percalços nas relações diplomáticas, principalmente
na segunda fase das relações, conforme mencionado, as interações

● 80 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

econômicas entre os países e até o uso de um instrumento que nasceu


da aproximação política durante os governos petistas, o Novo Banco
de Desenvolvimento (NBD) ligado aos Brics, foram aprofundados no
Governo Bolsonaro. No que se refere ao comércio exterior, como vimos
nas Tabelas 1 e 2, disponíveis na seção anterior, entre 2018 e 2021, o Brasil
ficou ainda mais dependente do comércio exterior com a China.
Especificamente, em 2021 a China foi responsável por comprar
69,7% do minério de ferro, 70,4% da soja, 46,6% do petróleo, e 56,2%
da carne bovina exportados pelo Brasil, consistindo-se no principal
mercado para esses produtos. No caso da soja e da carne bovina, o
Brasil figurou como o primeiro fornecedor externo para a China: 62%
de toda a soja comprada pela China originaram-se do Brasil em 2021,
bem como 44% da carne bovina. No caso do minério de ferro, o Brasil
foi o segundo maior fornecedor da China – a China comprou 28% de
suas necessidades do Brasil – e no de petróleo figurou como o sétimo
fornecedor – com 6% do total importado pela China (WATANABE;
FAGUNDES, 2022).
Assim, para além da importância geral da China para o comércio
exterior brasileiro, percebe-se que: i) a China é um mercado essencial para
alguns setores econômicos específicos no país, em destaque o setor de
energia e o agronegócio, para os quais constituem mercado principal; ii)
para alguns produtos específicos, como no caso da soja, especialmente,
não só a dependência brasileira da China é grande, mas a dependência
chinesa das importações brasileiras também é acentuada, o que mostra
uma interdependência estrutural comercial entre os países.
A política externa de Bolsonaro pouco teve como influenciar
esse fluxo que mobilizou interesses muito concretos tanto dos setores
exportadores brasileiros, como dos importadores chineses, de modo
que a dinâmica das relações comerciais conseguiu criar certa autono-
mia no que diz respeito às relações diplomáticas: mesmo que estas
estivessem ruins, não produziram efeito nas questões comerciais.
Com relação a investimentos, os aportes chineses continuaram
relevantes. Em 2019, a participação das empresas petrolíferas chine-
sas CNPC e CNOOC em leilão do pré-sal brasileiro – no qual outras
empresas estrangeiras não se interessaram em participar – em con-
sórcio com a Petrobras, rendeu um investimento de US$ 2,94 bilhões
(FREITAS et al., 2021). Em 2020, devido ao cenário de pandemia, os
fluxos chineses se reduziram; contudo, em 2021, o Brasil figurou

● 81 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

como maior destino dos investimentos chineses no mundo (GAJUS


et al., 2022). Os investimentos foram em setores variados: no auto-
mobilístico (como a aquisição de uma fábrica da Mercedes-Benz pela
montadora chinesa Great Wall Motors), em fintechs e startups como
Nubank, Quinto Andar e Cora (pela empresa de tecnologia chinesa
Tencent), companhias de transmissão de energia (pela estatal chinesa
State Grid) e investimentos em petróleo (CUCOLO, 2022).
Dentro do próprio governo, ministérios como o MI e o Mapa
atuaram para tentar atrair investimentos do país asiático. Em 2019,
por exemplo, em viagem à China, representantes do Mapa apre-
sentaram aos chineses a possibilidade de investimento em obras de
infraestrutura no Brasil, visando melhorar o escoamento de produtos
para exportação (SOUSA et al., 2021a).
Outro aspecto importante foi a incapacidade de Bolsonaro de
lutar contra a presença da Huawei no Brasil. Mesmo pressionado
pelo governo dos EUA a limitar a participação da empresa chinesa
nas redes 5G, prevaleceram os interesses econômicos e financeiros.
Em 2019, em visita à China, Hamilton Mourão, vice-presidente da
República, visitou a Huawei e garantiu que o edital nacional sobre
o 5G não iria discriminá-la. Os setores nacionais dependentes da
exportação para a China – principalmente o agronegócio e o setor
de energia –, temendo uma piora das relações bilaterais entre os
países caso o Brasil limitasse a Huawei, mobilizaram o legislativo
e ministérios, como o Mapa, para frearem uma decisão contrária à
empresa. E, sobretudo, os interesses dos grupos de telecomunicação
somaram-se a esta posição. No legislativo, foi criado, no fim de 2020,
um grupo de trabalho voltado para acompanhar a questão do 5G
que, no início de 2021, foi decidida sem que houvesse dispositivos
específicos contrários à participação da Huawei no 5G nacional
(SOUSA et al., 2021b).
Com relação aos Brics, inicialmente, em decorrência da política
de alinhamento do Governo Bolsonaro aos EUA, foi especulado que
o país pudesse diminuir o engajamento com o grupo. A despeito da
importância do Brics como elemento geopolítico de projeção para
o Brasil ter diminuído durante a gestão de Bolsonaro, por meio do
NBD notou-se que na verdade as relações constituídas via Brics tor-
naram-se muito importantes. Enquanto, até 2020, o Brasil era o país
que menos tinha acessado os recursos do banco, a partir de então, e

● 82 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

muito em função da atuação do NBD promovendo financiamentos


voltados para lidar com as situações provocadas pela covid-19, o
Brasil igualou seu acesso a recursos aos outros países do Brics. Em
especial, desde 2020 o país obteve US$ 2 bilhões que foram usados
para políticas internas voltadas ao cenário de pandemia, principal-
mente para pagar o auxílio emergencial (SOUSA et al., 2022).
Desse modo, percebe-se que, considerando o fluxo de comércio
e de investimentos entre Brasil e China, e as relações por meio do
Brics, o que houve foi um aumento da profundidade das relações
bilaterais, e não um afastamento como preconizado por Bolsonaro.

À guisa de conclusão, olhando para o futuro


Este trabalho avaliou as dificuldades de mudança na PEB vol-
tada à China, proposta pela gestão Bolsonaro. Não obstante as fortes
declarações retóricas de cunho ideológico contra a China de vários ex-
poentes do governo, inclusive do próprio mandatário, prevaleceram
os interesses econômicos e financeiros das relações. Argumentou-se
que a PEB em relação ao país asiático foi marcada por aparentes con-
tradições, as quais tiveram origem na ausência de consenso dentro
do governo sobre como abordar o país. Diante dessas contradições,
Bolsonaro não logrou êxito em diminuir a importância da China para
o Brasil. Tanto a força dos grupos domésticos favoráveis às relações
com a China, como mudanças externas – a perda do principal aliado,
EUA, com a não reeleição de Trump – contribuíram como fatores
explicativos para as dificuldades.
Apesar de não ter logrado seus objetivos de maior afastamento,
sobretudo econômico, da China, em termos políticos as heranças do
governo não foram positivas. Prevaleceu um cenário de oportunida-
des não aproveitadas, por exemplo, de maior cooperação durante a
pandemia: enquanto a China buscou soluções, inclusive trabalhando
junto ao governo de São Paulo, o Governo Federal gerava atritos
infundados. No cenário da pandemia e dos conflitos bilaterais, o
principal mecanismo de planejamento das relações, a Comissão Si-
no-Brasileira de Alto Nível de Cooperação e Concertação (Cosban),
teve sua última reunião atrasada por quase dois anos. Em termos da
atuação multilateral, o Brasil se contrapôs à China (e aos países em
desenvolvimento) em várias posições internacionais.

● 83 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Perante os conflitos, a diplomacia chinesa adotou uma posi-


ção de “paciência estratégica”, ao avaliar que o momento ruim nas
relações diplomáticas era algo passageiro e característico de uma
democracia. Prevaleceu a ideia de que as relações deveriam continuar
sendo pensadas em longo prazo, contanto que os atritos políticos
não fossem obstáculos para a ampliação das relações econômicas.
A partir do retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da
República, espera-se que a atuação internacional brasileira passe por
transformações, mas as relações com a China devem prevalecer como
um dos aspectos centrais, até porque, como analisado neste trabalho,
em termos comerciais, existe uma dinâmica de interdependência
estrutural entre os países que tem como base interesses concretos de
grupos internos, e funciona de forma quase autônoma com relação
à diplomacia. Contudo, mesmo com essa “quase autonomia” que as
relações econômicas bilaterais ganharam com relação à diplomacia,
não significa que os governos não possam, por meio de maior arti-
culação política bilateral e vontade das partes, explorar melhor as
interações em função de seus projetos de desenvolvimento.
Algumas medidas específicas, como a facilitação de proce-
dimentos aduaneiros e a adoção de soluções que simplifiquem a
integração financeira entre o Brasil e a China, podem contribuir para
redução dos custos de transações e um maior impulso das relações
econômicas. Facilitar o acesso de empresas brasileiras ao mercado
chinês, inclusive para que possam buscar financiamento em RMB,
pode contribuir para aumentar e diversificar as exportações do Brasil
para a China, principalmente de pequenas e médias empresas com
dificuldades de acessar dólares. A criação de uma clearing house de
RMB no Brasil seria um passo importante para aumentar a integração
entre os países.
Em termos qualitativos, o grau de desindustrialização do Brasil
deixou evidente a perda da capacidade produtiva e da complexidade
da economia do país. Refletindo isso, o comércio bilateral com a Chi-
na tem sido marcado pela assimetria, com um padrão Norte-Sul, no
qual o Brasil exporta produtos básicos e compra manufaturados. O
Brasil pouco tem feito para alterar isso: a despesa bruta em pesquisa
e desenvolvimento em relação ao PIB brasileiro é de 1,14%, muito
abaixo da média dos países da OCDE (2,6%) e de outros países de
rendimento médio (1,59%) como a China (2,11%) (VAZQUEZ, 2022).

● 84 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Assim, do lado do Brasil, há necessidade de investimentos para


o fortalecimento da estrutura produtiva, bem como para melhorar
a infraestrutura e capacidades de gestão, desenvolvimento tecnoló-
gico e inovação no país, de forma a recuperar o papel da indústria e
a capacidade de produção e exportação de bens de mais alto valor
agregado na pauta comercial. Gerar as capacidades para se desen-
volver, obviamente, é responsabilidade do próprio Brasil (não da
China). Lula já deu indicativos de que seu governo se preocupa com
a questão. Mas, as relações bilaterais podem contribuir.
O Brasil pode dar um grande apoio para a segurança alimentar
da China, considerando sua importância como fonte de soja e carnes
para o país, duas atividades que são ambientalmente deficitárias.
Por outro lado, ambos os países possuem uma posição central para o
mundo no que diz respeito às questões ambientais. Um dos caminhos
de cooperação que surge disso, e poderia ser mais bem explorado, diz
respeito a investimentos em tecnologias verdes e o desenvolvimento
de ciência, pesquisa e inovações conjuntas. O setor automobilístico,
por exemplo, está passando por grandes mudanças com a eletrifica-
ção, sendo o Brasil um importante mercado. Para além da produção
de veículos elétricos no país, a partir de empresas como a BYD e Great
Wall, pode-se pensar a garantia de um espaço para as empresas de
atuação nacional que fomentam com peças, equipamento e outros
componentes o setor, de forma que o Brasil fique inserido no mer-
cado global automobilístico mesmo diante de suas transformações.
Outro ponto no qual se pode avançar é nos projetos de finan-
ciamento com a China. Da América do Sul, o ingresso do Uruguai
no NBD pode contribuir para fomentar projetos regionais de in-
fraestrutura e, internamente, a retomada de um papel mais ativo
do BNDES pode ajudar a aumentar a capacidade de impulsionar
projetos e captar recursos para o desenvolvimento, não só da China
e do NBD diretamente, mas também de outras instituições como o
Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB). Seria de
grande valia para as relações bilaterais e da China com a América
do Sul que nesses projetos fosse garantido espaço para capacitação
e atuação de empresas sul-americanas. Ainda, o Fundo Brasil-China
de Cooperação para Expansão da Capacidade Produtiva, cujo valor
acordado foi de US$ 20 bilhões, até o momento em que escrevemos

● 85 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

esse texto (dezembro de 2022) não aprovou nenhum projeto. É preciso


que a iniciativa seja retomada.
A presença de empresas de tecnologia da informação chinesas
no Brasil, como a ZTE e a Huawei, nesse cenário de transição digital,
também é um aspecto que pode ser explorado para ajudar a melhorar
a produtividade da economia, promover sua digitalização, bem como
contribuir para um setor agrícola sustentável. Para a instalação de
infraestrutura voltada à economia digital, como as redes 5G –como
o é também no setor hidroelétrico, com as linhas de ultramega alta
tensão – as dimensões continentais do Brasil que se assemelham à
da China dão cenário fértil para que o país promova o teste de suas
tecnologias e dissemine novos padrões tecnológicos. Algum tipo
de cooperação tecnológica entre os países e o desenvolvimento de
projetos conjuntos poderiam contribuir para que o Brasil pudesse se
beneficiar mais dessa dinâmica. Adicionalmente, é preciso recuperar a
cooperação tecnológica bilateral em volta da construção dos satélites
sino-brasileiros (CBERS).
Do lado multilateral, a volta de Lula recoloca a importância das
relações Sul-Sul dentro da PEB, bem como das alianças de geome-
tria variável para lutar contra as distorções e assimetrias do sistema
internacional. As relações com a China – um dos países que mais
têm contribuído para a descentralização do poder da hegemonia
estadunidense – podem contribuir para esse objetivo, bem como as
articulações via Brics. O Brasil precisa, contudo, nesse mundo marca-
do por acentuada concorrência oligopolista e rivalidade interestatal,
em especial entre China e EUA, encontrar o equilíbrio entre se aliar a
iniciativas chinesas e, ao mesmo tempo, não se indispor frontalmente
com os EUA. É preciso fomentar a equidistância do conflito sino-a-
mericano enquanto se busca tirar vantagens das lacunas que ele abre.
Um aspecto que deve ser seriamente abordado é a Iniciativa
do Cinturão e da Rota (Belt and Road Initiative – BRI), projeto chinês
– que é criticado pelos EUA – voltado para o desenvolvimento de
infraestrutura em diversos continentes. Até o momento, a não ade-
são do Brasil à iniciativa não impediu que o país se tornasse um dos
maiores beneficiários de financiamentos e investimentos chineses
no mundo. Por outro lado, diversos países da região, incluindo a
Argentina, aderiram ao projeto. Diante dessa conjuntura, é preciso

● 86 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

que o Brasil discuta seriamente quais vantagens adicionais poderia


obter da China para sua adesão à BRI.
Por fim, embora as relações econômicas tenham se estreitado,
a China é um país que permanece culturalmente distante do Brasil.
Faz-se necessário, portanto, intensificar os projetos de cooperação
educacional e cultural entre os dois países, comoo Acordo de Copro-
dução Cinematográfica entre China e Brasil, firmado em 2017. Cabe
ressaltar que as universidades chinesas têm destaque nos rankings
de melhores universidades do mundo, porém a atenção dos estu-
dantes brasileiros permanece voltada principalmente para os países
de língua inglesa e europeus. É preciso políticas de incentivo para
tornar a China uma referência de intercâmbio para os estudantes
brasileiros, não só pela qualidade do ensino, mas pela necessidade
de profissionais que conheçam o mandarim. O apoio à expansão de
novos Institutos Confúcio no país, em parceria com instituições de
ensino federais, poderia ser útil neste objetivo, tanto na esfera cultu-
ral, como na capacitação de brasileiros para projetos de intercâmbio
educacional e tecnológico com o país asiático.

● 87 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

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-china-como-nenhuma-outra-grande-economia-e-isso-pode-ser-
-um-problema.ghtml

● 90 ●
A degradação da Política Externa de
Direitos Humanos no governo de
Jair Bolsonaro (2019-2022)

Ana Júlia M. D. Felizardo(58), Barbara R. de Souza(59),


Gabrielle Duarte Cunha(60), Gabrielle Lui Santana(61),
Lavínia Matos Costa(62), Lucas Lourenço Balestra(63),
Scarlett R. da Cunha(64), Gilberto M. A. Rodrigues(65)

Introdução
O governo de ultradireita de Jair Bolsonaro produziu mudanças
disruptivas na política externa brasileira (PEB), algo que os fatos, a
imprensa internacional e a literatura das Relações Internacionais e
de outros campos comprovam fartamente. Dentre as várias áreas da

(58) Estudante do Bacharelado em Relações Internacionais e em Ciências e


Humanidades da UFABC, membro do GT de Direitos Humanos e Migrações do
Opeb, membro do Gepisul e do Migrepi.
(59) Estudante do Bacharelado em Relações Internacionais e em Ciências e Humanidades
da UFABC e membro do GT de Direitos Humanos do Opeb e membro do SOOI.
(60) Mestranda em Human Rights and Multi-level Governance na Università degli
Studi di Padova e membro do GT de Direitos Humanos do Opeb.
(61) Estudante do Bacharelado em Relações Internacionais e em Ciências e
Humanidades da UFABC e membro do GT de Direitos Humanos do Opeb.
(62) Estudante do Bacharelado em Relações Internacionais e em Ciências e
Humanidades da UFABC e membro do GT de Direitos Humanos do Opeb.
(63) Estudante do Bacharelado em Relações Internacionais e em Ciências e
Humanidades da UFABC, membro do GT de Direitos Humanos e Migrações do Opeb.
(64) Mestra em Políticas Públicas pela UFABC e membra do GT de Direitos
Humanos do Opeb.
(65) Professor Associado da UFABC, onde atua no Bacharelado em Relações
Internacionais e nos Programas de Pós-Graduação em Relações Internacionais e em
Ciências Humanas e Sociais. Coordenador do GT de Direitos Humanos do Opeb e
membro da Cátedra Sergio Vieira de Mello da UFABC. Doutor em Ciências Sociais
pela PUC-SP. @gilberto_rod

● 91 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

PEB negativamente impactadas, a dos Direitos Humanos está, sem


dúvida, dentre as principais. Pode-se mesmo afirmar, como propõe
o título deste capítulo, que houve uma degradação da PEB de Direi-
tos Humanos. Dentro da metodologia sugerida do presente livro, o
capítulo está dividido em duas partes: na primeira, analisa-se a PEB
de Direitos Humanos no ano de 2022; na segunda, trata-se de realizar
um balanço mais amplo da PEB de Direitos Humanos ao longo de
todo o mandato de Bolsonaro (2019-2022)(66).

A PEB de Direitos Humanos em 2022

A guerra na Ucrânia e a resposta humanitária


No âmbito dos Direitos Humanos, a guerra na Ucrânia causou
de imediato um fluxo migratório intenso. De acordo com o Alto Co-
missariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), sabe-se
que até dezembro de 2022 havia 7,867,219(67) pessoas em situação de
refúgio na Europa, configurando a maior crise humanitária do conti-
nente desde a Segunda Guerra Mundial. Polônia, Romênia, Hungria,
Rússia, Moldávia, Eslováquia e Bielorrússia atuaram como países de
primeiro acolhimento.
Nesse fluxo migratório, duas interseccionalidades foram mar-
cantes: a violência de gênero e o racismo(68). Mulheres ucranianas são
vítimas de violência sexual(69) e, paralelamente, ativas no processo
migratório com a família, já que os homens em idade militar
foram convocados. Além disso, há relatos de comportamentos

(66) A segunda parte da obra, que abrange todo o período da PEB de Bolsonaro,
teve como principais fontes os capítulos sobre a PEB de Direitos Humanos das três
obras produzidas pelo Opeb sobre a PEB de Bolsonaro em 2019, 2020 e 2021, além
de outras fontes de 2022.
(67) UNCR. “Ukraine Refugee Situation”, 2022. Disponível em: <https://
data2.unhcr.org/en/situations/ukraine#_ga=2.13858098.403135786.1649868883-
210233248.1649868883>
(68) CORREIO BRAZILIENSE. “União africana aponta racismo contra africanos
que tentam escapar da Ucrânia”. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.
com.br/mundo/2022/03/4989334-uniao-africana-aponta-racismo-contra-africanos-
que-tentam-escapar-da-ucrania.html >
(69) BBC, “Guerra na Ucrânia: ‘Soldados russos me estupraram e mataram meu
marido’ - Disponível em: <.https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61076659 >

● 92 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

discriminatórios e racistas contra pessoas negras nas fronteiras da


Ucrânia com países vizinhos.
A PEB isolada e sem credibilidade de Bolsonaro entrou em lenta
paralisia com a guerra na Ucrânia, expondo a falta de interlocução e
de capital diplomático do Brasil para influir em possíveis negociações
para o cessar fogo e o restabelecimento da paz, papel que o país ou-
trora poderia exercer. Já no tema específico da política humanitária
e de refúgio, o Brasil manteve sua tradição de país de acolhimento
e aprovou em 3 de março de 2022 portaria conjunta dos Ministérios
da Justiça e das Relações Exteriores, concedendo visto humanitário
válido por 180 dias para pessoas refugiadas da Ucrânia, incluindo
apátridas(70), prazo que foi prorrogado por mais 180 dias por uma
segunda portaria em 30 de agosto de 2022(71). O fato de o Brasil ter
recebido pessoas migrantes da Ucrânia entre o final do século XIX
e meados do século XX, que se estabeleceram sobretudo no estado
do Paraná, onde se estima vivam quinhentas mil pessoas de origem
ucraniana, favoreceu a vinda de centenas de pessoas refugiadas
daquele país para o Brasil no contexto da guerra.(72)
Em outra vertente humanitária, houve denúncias a respeito
das armas proibidas(73) utilizadas tanto pelas forças russas quanto
ucranianas. Algumas delas se classificavam na linha de munições
cluster, repudiadas pela Convenção sobre Munições Cluster (2008)(74),
em violação do Direito Internacional Humanitário (DIH). Evidências
de massacres e possíveis crimes contra a humanidade cometidos
pelas tropas russas em território ucraniano ensejaram protestos e
desencadearam mecanismos de monitoramento de Direitos Huma-

(70) G1. “Ucranianos receberão visto de 180 dias e poderão pedir residência no
Brasil, prevê portaria do governo”, 03.03.2022. https://g1.globo.com/mundo/ucrania-
russia/noticia/2022/03/03/ucranianos-receberao-visto-de-180-dias-e-poderao-pedir-
residencia-no-brasil-preve-portaria-do-governo.ghtml
(71) G1. “Governo brasileiro prorroga visto humanitário para ucranianos”,
30.08.2022, https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/08/30/governo-brasileiro-
prorroga-visto-humanitario-para-ucranianos.ghtml
(72) OIM. Cartilha de Direitos Humanos para ucranianos migrantes e refugiados no
Brasil. 2022. https://brazil.iom.int/sites/g/files/tmzbdl1496/files/documents/cartilha-
de-direitos-humanos-para-migrantes-bilingue.pdf
(73) VEJA. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/tecnologia/as-armas-letais-
sendo-usadas-na-guerra-na-ucrania>. Acesso em: 8 jun. 2022.
(74) ICRC. “Armas”. Disponível em <https://www.icrc.org/pt/doc/war-and-law/
weapons/overview-weapons.htm>

● 93 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

nos de agências internacionais governamentais e não governamentais.


A ONU criou uma missão para investigar o ataque contra uma prisão
em Olenivka, na Ucrânia, em que cinquenta prisioneiros morreram, e
o secretário-geral Antonio Guterrez indicou o general brasileiro Carlos
Alberto Santos Cruz, ex-comandante da Minustah e da Monusco, para
liderar essa missão(75). Essa nomeação coloca o Brasil, ainda que indireta-
mente, no centro de uma apuração delicada para as partes beligerantes,
que ensejará responsabilização por eventuais crimes de guerra.

Mulheres no Irã – a PEB omissa


A repercussão dos protestos iniciados no Irã em setembro de
2022, após a morte da jovem iraniana Mahsa Amini, de 22 anos,
que por supostamente ter deixado à mostra alguns fios de cabelo
por baixo do seu véu, foi presa e violentada pela polícia em Teerã,
chamou a atenção internacional para o direito das mulheres(76).
Segundo a Iran Human Rights (IHR), desde que os protestos co-
meçaram até o fim de novembro de 2022, cerca de 380 pessoas já
morreram devido à repressão do governo, colocada em prática
através da “polícia da moralidade”(77).
Desde a Revolução Iraniana de 1979, com a adoção de um Estado
teocrático, a lei adotada no Irã passou, então, a ser a Sharia e, com isso,
as mulheres perderam alguns direitos anteriormente conquistados,
como o de assumirem determinados cargos, e tornou-se obrigatório
o uso do hijab(78). A partir de então, a questão variou ao longo de cada
governo, já que alguns foram mais liberais em relação ao uso do véu,
como Mohammad Khatami (1997-2005), e outros mais rígidos, como
o atual presidente Ebrahim Raisi.

(75) G1. https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/08/18/general-santos-cruz-do-


brasil-vai-chefiar-equipe-de-investigacao-de-ataque-na-ucrania.ghtml
(76) SOUZA, Barbara Rodrigues et al. Irã enfrente protestos com repercussão
mundial. OPEB, São Bernardo do Campo, 4 de outubro de 2022. Disponível em:
<https://opeb.org/2022/10/04/ira-enfrenta-protestos-com-repercussao-mundial/>
(77) G1. “Mortes em protestos no Irã chegam a 380, diz Iran Human Rights Watch”.
Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/11/19/tres-morrem-
durante-novos-protestos-no-ira.ghtml>
(78) MORETÃO, S. Amanda. A posição da mulher no Irã antes e depois da
Revolução Iraniana em comparação com a Turquia. Seminário Internacional Fazendo
Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017.

● 94 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

O Brasil, nos últimos anos, adotou uma postura de preocupação


em relação aos casos de violações dos direitos das mulheres no Irã(79).
Entretanto, em 2010 e na votação da resolução da ONU em 2015, que
criticava as violações dos Direitos Humanos no Irã, o Brasil se absteve,
num contexto de negociações internacionais de desnuclearização de
Teerã(80). O posicionamento do Brasil, entendido como favorável ao
governo iraniano, não contribuiu para ajudar o fomento ao respeito
dos direitos das mulheres iranianas(81). No início do governo de Dilma
Rousseff, ocorreu uma tentativa de mudança nesse tema, mas sem
avanços concretos. A PEB de Bolsonaro não teve posicionamento a
respeito do assunto.
Durante a Copa do Mundo do Qatar, entre novembro e dezem-
bro de 2022, as violações de Direitos humanos pelas autoridades
do Irã foram criticadas publicamente por jogadores e por meio das
manifestações de times, como da Alemanha. Jogadores e a torcida do
Irã protestaram pacificamente pela situação do país, ficando em silên-
cio durante o hino nacional iraniano(82); além disso, o jogador Amir
Nasr Azadani participou de protestos que começaram após a morte
de Mahsa Amini, o que resultou em sanções e em sua condenação à
pena de morte. Em relação à seleção brasileira, não se viu nenhum
gesto de solidariedade individual ou coletiva à população iraniana.

Direitos Humanos, meio ambiente e Amazônia


Em cinco de junho de 2022 foram assassinados, na Terra Indígena
do Vale do Javari, em Atalaia do Norte (AM), o indigenista brasileiro

(79) SOUZA, Barbara Rodrigues et al. Irã enfrente protestos com repercussão
mundial. OPEB, São Bernardo do Campo, 04 out. 2022. Disponível em: <https://opeb.
org/2022/10/04/ira-enfrenta-protestos-com-repercussao-mundial/>
(80) GAZETA DO POVO. “Brasil sinaliza preocupação com os direitos humanos
no Irã”. Disponível em <https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/brasil-sinaliza-
preocupacao-com-direitos-humanos-no-ira-bz568m5wnbfpyo5p36lfvuy4u/ > Acesso
em: 28 set. 2022.
(81) ESTADAO. “Brasil se abstém em votação sobre direitos humanos no Irã”
– Disponível em <https://www.estadao.com.br/internacional/brasil-se-abstem-em-
voto-sobre-direitos-humanos-no-ira/> Acesso em: 28 set. 2022.
(82) “Torcida e jogadores do Irã não cantam hino em protesto contra o governo
do país” Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/esportes/copa-do-mundo/
noticia/2022/11/torcida-e-jogadores-do-ira-nao-cantam-hino-em-protesto-contra-o-
governo-do-pais-clar72uli008501g75d4lpkj8.html>

● 95 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Bruno Araújo Pereira e o jornalista britânico Dom Mark Phillips, am-


bos associados a práticas de ativismo ambiental. A União dos Povos
Indígenas do Vale do Javari (Univaja) relatou o desaparecimento de
ambos, também divulgado pelo Observatório dos Direitos Humanos
dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI)(83). Os corpos
dos defensores ambientais foram localizados e as mortes confirmadas
após 11 dias de investigação, no dia 15 de junho(84).
De acordo com a organização Greenpeace Brasil(85), o episódio não
representa uma violência isolada, mas uma situação perene que tem
sido formalizada desde a campanha presidencial de Jair Bolsonaro e
acentuada em seus quatro anos de governo, cuja política ambiental
é incompatível com o desenvolvimento sustentável e com a preser-
vação da biodiversidade brasileira e da manutenção dos meios de
vida e cultura de populações indígenas(86). Significa, além disso, que
o Brasil se apresenta perante a comunidade internacional como um
dos países mais hostis para defensores do meio ambiente e de co-
munidades locais, uma vez que está entre os cinco países em que há
mais casos de assassinatos de ativistas, como demonstram relatórios
da Global Witness(87).
A disseminação da violência política foi institucionalizada
através do desmonte de órgãos e instituições nacionais que apoiam
populações originárias e fiscalizam e licenciam práticas ambientais,

(83) G1. Bruni Pereira e Dom Phillips: a cronologia do caso, desde o início
da viagem. 15 jun. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/
noticia/2022/06/15/bruno-pereira-e-dom-phillips-a-cronologia-do-caso-desde-o-
inicio-da-viagem.ghtml. Acesso em: 23 nov. 2022.
(84) NEIVA, Lucas. Corpos de Bruno Pereira e Dom Phillips são encontrados
na Amazônia. Congresso em Foco, [S.l.], 15 jun. 2022. Disponível em: https://
congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/corpos-de-bruno-pereira-e-dom-phillips-
sao-encontrados-na-amazonia/. Acesso em: 23 nov. 2022.
(85) GREENPEACE BRASIL. A verdade sobre a Amazônia sob o governo
Bolsonaro. Greenpeace, [S.l.], 28 out. 2022. Disponível em: https://www.greenpeace.
org/brasil/blog/a-verdade-sobre-a-amazonia-sob-o-governo-bolsonaro/. Acesso em:
23 nov. 2022.
(86) SOUZA, Barbara Rodrigues et al. O colapso da proteção dos direitos humanos
na Amazônia. OPEB, São Bernardo do Campo, 12 jun. 2022. Disponível em: https://
opeb.org/2022/07/12/o-colapso-da-protecao-dos-direitos-humanos-na-amazonia/.
Acesso em: 23 nov. 2022.
(87) GLOBAL WITNESS. Last Line of Defence. Global Witness, [S.l.], 13 set. 2021.
Disponível em: https://www.globalwitness.org/en/campaigns/environmental-
activists/last-line-defence/. Acesso em: 24 nov. 2022.

● 96 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

como a Funai (Fundação Nacional do índio), o Instituto Brasileiro do


Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ins-
tituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe), mediante um desmonte
articulado via intervenções e cortes orçamentários.
Contudo, as políticas antiambientalistas do governo de Bolsonaro
não encontraram eco em outros poderes(88). O Supremo Tribunal Federal
(STF) alinhou-se com os princípios internacionais relativos à proteção
de direitos ambientais e litigância climática, assim como à promoção
da diversidade socioambiental, no Caso Fundo Clima ou Fundo Nacional
sobre Mudança do Clima. Nessa decisão, o STF estabeleceu que o Poder
Executivo é obrigado a alocar recursos para a proteção ambiental no
Brasil, de modo que este cumpra com a Constituição de 1988 e com tra-
tados internacionais dos quais o país é signatário(89). Tal processo implica
abrangente reconhecimento de que o meio ambiente é fundamental para
a manutenção e renovação da vida humana, como evidencia a resolu-
ção A/RES/76/300 aprovada, no dia 28 de julho, pela Assembleia Geral
das Nações Unidas(90), a qual reafirma a emergência ambiental global e
defende amplamente, sem caráter vinculativo, que um meio ambiente
limpo, saudável e sustentável é um direito humano, no intuito de vincular
explicitamente Direitos Humanos e ambientais(91).

O TSE diante da ameaça à democracia brasileira


A eleição presidencial e o processo eleitoral no Brasil foram o
epicentro das atenções internacionais sobre o Brasil em 2022. Em abril
deste ano, o Comitê de Direitos Humanos da ONU concluiu que o

(88) SOUZA, Barbara Rodrigues et al. ONU reforça vínculo entre meio ambiente
e direitos humanos. OPEB, São Bernardo do Campo, 09 ago. 2022. Disponível em:
https://opeb.org/2022/08/09/onu-reforca-vinculo-entre-meio-ambiente-e-direitos-
humanos/. Acesso em: 23 nov. 2022.
(89) SARLET, Ingo; WEDY, Gabriel Tedesco.; FENSTERSEIFER, Tiago. A equiparação
dos tratados ambientais aos tratados de direitos humanos. ConJur, [S.l.], 15 jul.
2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-15/direitos-fundamentais-
equiparacao-tratados-ambientais-aos-direitos-humanos. Acesso em: 24 nov. 2022.
(90) ONU NEWS. ONU aprova resolução sobre meio ambiente saudável como
direito humano. ONU News, [S.l.], 28 jul. 2022. Disponível em: https://news.un.org/
pt/story/2022/07/1796682. Acesso em: 22 nov. 2022.
(91) ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS (AGNU). Resolution A/
RES/76/300: The human right to a clean, healthy and sustainable environment. GA
Index: A/RES/76/300, 28 jul. 2022. Disponível em: https://undocs.org/A/RES/76/300.
Acesso em: 22 nov. 2022.

● 97 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

processo criminal responsável por condenar o ex-presidente Lula a 12


anos e um mês de prisão violou seus Direitos Humanos. De acordo
com os peritos da ONU, Lula teria sido privado de “seu direito de
ser processado por um juiz imparcial, seu direito à privacidade e seus
direitos políticos”.(92) O STF já havia revertido essa decisão, gerada
pela Operação Lava Jato, sob a jurisdição do então juiz federal Sergio
Moro, em Curitiba, reconhecendo violações ao devido processo legal,
cujo desdobramento foi a nulidade de todos os processos contra Lula
e sua elegibilidade para concorrer à eleição em 2022.
A reabilitação política de Lula ocorreu em cenário de intensa e
crescente polarização política. Sob o incentivo e reiterados ataques
à integridade e legitimidade das urnas eletrônicas, Bolsonaro tratou
de influenciar a opinião pública, em vista do cenário de vitória de
Lula, antecipado por diversos institutos de pesquisa ao longo dos
meses anteriores à eleição.
O sistema eleitoral brasileiro, respeitado e admirado internacio-
nalmente por sua eficácia e credibilidade, que há décadas alimenta
a PEB de Direitos Humanos em sua vertente de cooperação interna-
cional eleitoral, via OEA e via cooperação Sul-Sul, foi desabonada e
atacada pelo próprio presidente, que mais uma vez contribui para
erodir um precioso capital diplomático e de sua PEB de Direitos
Humanos, neste caso no campo dos direitos políticos.
Então, diante da iminente ameaça à democracia brasileira,
promovida pelas declarações do presidente Bolsonaro contra as ur-
nas eletrônicas e a lisura do processo eleitoral, o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), sob a presidência do ministro Alexandre de Morais,
assumiu o papel de guardião do devido processo eleitoral e, além das
ações de controle dos desvios e atentados contra o sistema eleitoral,
promoveu intensa cooperação internacional direta com organizações
internacionais, para obter respaldo e apoio à legitimidade e validação
das urnas eletrônicas e do próprio resultado eleitoral. As ações firmes
e consistentes do TSE contribuíram para manter a confiança interna
e internacional no sistema eleitoral brasileiro, e receberam amplo
apoio de representantes diplomáticos de países e organizações inter-
nacionais, em especial após a malograda reunião em que Bolsonaro

(92) O P E B , https://opeb.org/2022/09/06/novo-alerta-internacional-de-riscos-a-
democracia-brasileira/

● 98 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

convocou o corpo diplomático, em julho de 2022, para desacreditar


as urnas internacionalmente, como forma de preparar um possível
golpe contra o resultado desfavorável das urnas (Rodrigues, 2022).

A PEB de Direitos Humanos no governo


de Jair Bolsonaro (2019-2022)
O presidente Jair Bolsonaro (2019-2023) foi o primeiro gover-
nante, desde a redemocratização, a inverter os valores construídos e
consolidados pela PEB de Direitos Humanos. O multilateralismo, o
universalismo e as políticas com enfoque em Direitos Humanos foram
abandonados e combatidos por uma política externa de ultradireita, a
partir de uma visão antiglobalista, iliberal, ultraconservadora e negacio-
nista da ciência. Essa inversão representou o afastamento do presidente
da pauta liberal e progressista dos Direitos Humanos (DH), que passou
a retroalimentar a agenda de regressividade de direitos doméstica.

O início em 2019
A desconstrução da PEB de Direitos Humanos – um legado de
mais de três décadas de diplomacia em regime democrático – tem
início logo após a posse do presidente em janeiro de 2019. Nesse pri-
meiro ano de presidência, Bolsonaro segue o roteiro de Donald Trump
e dos autocratas da ultradireita europeia, alterando radicalmente as
posições brasileiras nos foros multilaterais, incluindo o Conselho de
Direitos Humanos da ONU, a OEA e o Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, com impacto direto na proteção de minorias e
grupos vulneráveis. Bolsonaro retira o Brasil do Pacto Global para
uma Migração Segura, Ordenada e Regular. A cooperação Sul-Sul
no âmbito de Direitos Humanos – relevante para países latino-a-
mericanos e africanos – igualmente desaparece da agenda da PEB
(Rodrigues et al., 2021).
Marcado por uma política antiglobalista, o Governo Bolsonaro
instaura o discurso de reconstruir os valores nacionais sem inter-
ferências externas. Instaura-se o repúdio aos princípios universais,
globais e multiculturais e, paralelamente, valoriza-se a ideologia
conservadora cristã, com a implementação de um projeto identitário
com tendência fascista. O caráter ultraliberal é notado através das
reformas trabalhistas – com o intuito de tornar o Brasil mais atrativo

● 99 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

ao capital externo, ocorreu a intensificação do uso da mão de obra


barata, houve a internacionalização dos bens públicos e naturais,
verificoaram-se privatizações, e ocupou-se um papel secundário nas
articulações mundiais (Berringer et al., 2021).
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, atuou
ativamente nesse primeiro período da PEB e seus feitos incluem o
distanciamento e o aumento de tensões com a China, e com líderes
que questionaram a PEB bolsonarista. O reconhecimento de Juan
Guaidó como presidente da Venezuela, o apoio a uma pretensa
tentativa estadunidense de derrubar Nicolás Maduro, e o apoio ao
golpe na Bolívia contra o presidente Evo Morales demonstram uma
ruptura na PEB, violando princípios caros da diplomacia brasileira,
de cooperação, não intervenção e convivência pacífica na América Sul.

A PEB na pandemia, em 2020


Foi após o início da pandemia de covid-19 que a PEB de Bolso-
naro expôs o seu caráter mais deletério não apenas para o Brasil, mas
para as relações internacionais. Ao negar a gravidade da pandemia de
covid-19 e a importância das recomendações da Organização Mundial
da Saúde – ameaçando inclusive retirar o Brasil da organização, na
esteira da mesma ameaça feita por Trump –, Bolsonaro abre caminho
para o ataque frontal à saúde global, em um campo em que o Brasil
era até então referência global, pelo SUS e por suas posições de van-
guarda em relação ao combate ao HIV/Aids e às políticas antitabaco.
Se o foco da degradação da PEB de Direitos Humanos foi a gestão
temerária da pandemia de covid-19, a escalada de ataques do Governo
Bolsonaro aos Direitos Humanos não se limitou a ela e contou, em Ge-
nebra, com o apoio contundente de sua representante permanente junto
à ONU, embaixadora Maria Nazareth Farani. Dentre as ações apoiadas
pelo Brasil – em alinhamento com Cuba, Irã, Venezuela, China, além
da Síria – houve a aprovação de uma resolução que diminuiu o poder
de monitoramento da Comissão dos Direitos Humanos da ONU sobre
os países membros. As ausências de Bolsonaro e de autoridades de
Brasília em foros e debates importantes – como a reunião da OIT que
discutiu trabalho e covid-19 – se intensificaram.
Os descalabros do governo de Bolsonaro nas políticas de meio
ambiente e de combate à pandemia só não foram mais letais devido

● 100 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

às ações do Congresso Nacional e do STF, que impediram ou rever-


teram atos notoriamente inconstitucionais. Os governos estaduais,
amparados pelo STF, trataram de comprar máscaras, respiradores e
vacinas, em um atípico movimento paradiplomático em favor de sua
população. Igualmente importante foi a resistência da sociedade civil
organizada, responsável por realizar as primeiras denúncias contra
Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional, por crimes contra a hu-
manidade e genocídio, relacionados aos povos indígenas e à gestão
temerária da pandemia de covid-19.
A par dos problemas em torno da pandemia, o projeto de des-
monte da PEB de Direitos Humanos seguiu seu curso, com o apoio de
Bolsonaro à intervenção do secretário-geral da OEA, Luís Almagro,
que impediu a recondução do brasileiro Paulo Abrão na Secretaria
Executiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
Em Genebra, Bolsonaro alinhou o Brasil à coalizão antiaborto, e na
reunião do G-20, sediada na Arábia Saudita, Bolsonaro defendeu a
não obrigatoriedade das vacinas e a inexistência de racismo no Brasil
(Rodrigues et al., 2020).

2021, tempos de isolamento diplomático


O terceiro ano da PEB de Bolsonaro inicia com a perda de seu
principal sustentáculo – Donald Trump –, derrotado por Joe Biden,
cuja vitória Bolsonaro tardou muito para reconhecer, gerando inevi-
tável suspicácia do presidente democrata. Assim, em 2021 instala-se
na PEB uma crise sem precedentes no governo diante das ações e
posições disfuncionais de um Itamaraty conduzido por um chanceler
ideológico, e o aumento de contaminações e mortes pela covid-19,
exposto pela grave situação de Manaus, onde centenas de pessoas
morreram por falta de respiradores, causando comoção nacional e
repercussão internacional. A queda do ministro Araújo, em abril,
atribuída às pressões do Congresso Nacional, abrem caminho para
uma diplomacia mais pragmática com o ministro Carlos França, ao
menos no campo comercial, mas a PEB de Direitos Humanos segue
refém da ideologia, com Bolsonaro e a ministra Damares, muito ativa
nas pautas de “costumes” em Genebra.
No mesmo mês de abril, em que Araújo é substituído pelo em-
baixador França, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado
Federal sobre a covid-19 foi aberta, inaugurando um período de

● 101 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

revelações sobre a omissões e prevaricações cometidas pelo presi-


dente e pelos ministros envolvidos na gestão da pandemia, inclusive
na PEB, relacionados à compra e à produção de vacinas.
Após o seu quase impedimento de participar da 76ª Assembleia
Geral da ONU por não comprovar sua vacinação, Bolsonaro reiterou
com convicção o tratamento precoce contra a covid-19, sem com-
provação científica, deixou explícita a posição do governo contrária
à imunização obrigatória e disseminou mentiras sobre as vacinas
(Rodrigues et al., 2022).

2022, o déjà-vu da PEB bolsonarista


Como mencionado na primeira parte deste capítulo, à paralisia
da PEB diante da guerra na Ucrânia (apesar de manter sua política
humanitária de recepção a pessoas refugiadas ucranianas), ao agrava-
mento do desmatamento na Amazônia e à violência contra lideranças
indígenas e defensores de Direitos Humanos, ao malogro da estra-
tégia negacionista-golpista do processo eleitoral por Bolsonaro, foi
selado o déjà-vu da PEB bolsonarista, que não resistiu diante do apoio
massivo, amplo e imediato do reconhecimento da vitória de Lula –
mesmo sem o reconhecimento de Bolsonaro de sua própria derrota.
A tendência de desconstrução da PEB de Direitos Humanos con-
tinuou a se concretizar de maneira extrema ao longo do último ano
do Governo Bolsonaro. O Relatório da Revisão Periódica Universal
(RPU) das Nações Unidas indicou, pela primeira vez desde que foi
instituído em 2008, que o Brasil apresentou retrocesso em diversos
indicadores. Em 2017 o órgão realizou 246 recomendações para o país,
que deveriam ser seguidas até 2022, as quais englobavam educação,
saúde, igualdade de gênero, direitos dos povos indígenas, acesso a
espaços democráticos, trabalho, redução da pobreza, meio ambiente,
justiça criminal etc. Dessas, 80% não foram descumpridas, sendo
que 46% enfraqueceram e 17% dos tópicos foram considerados par-
cialmente cumpridos, e apenas uma recomendação foi considerada
completamente realizada.
No campo eleitoral, já mencionado, em diversas declarações, o
Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos apontou os
riscos e o clima hostil no país, e destacou o papel do Estado de ga-
rantir o direito de expressão política plural para todos os cidadãos.

● 102 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

A Missão Internacional de Especialistas que observou os dois turnos


das eleições no Brasil teve papel relevante para legitimar as urnas, e
o resultado do pleito que colocou fim ao período bolsonarista.

Considerações finais
A PEB de Direitos Humanos no governo de Bolsonaro sofreu seu
primeiro grande abalo no primeiro ano do governo, com o processo de
desconstrução dos Direitos Humanos em nível interno e internacional,
neste sobretudo no âmbito multilateral. Nos foros do sistema da ONU,
Bolsonaro trata de inverter o efeito bumerangue, que historicamente
beneficiou políticas progressistas no país, passando a utilizar os deba-
tes e posições da PEB para afirmar e reafirmar a pauta conservadora
e regressiva do governo. A pandemia de covid-19 foi um divisor de
águas na PEB de Direitos Humanos, expondo os malogros de sua
disfuncionalidade e plantando a crescente desconfiança internacional
que resultará em progressivo isolamento diplomático do Brasil na cena
internacional. A tentativa de cooptar países para as teses negacionistas
do processo eleitoral foi a gota d’água da malograda PEB bolsonarista.
Em que pese a derrota de Bolsonaro, os quatro anos que levaram à
forte degradação da PEB de Direitos Humanos deixaram marcas muito
negativas e máculas na trajetória da PEB de Direitos Humanos. Tardará
um tempo razoável para a PEB recuperar-se da degradação imposta
por Bolsonaro nesses quatro anos.

● 103 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Bibliografia
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio et al. Política externa, direi-
tos humanos e pandemia de Covid-19. In: Azzi, Diego; Rodrigues,
Gilberto M. A.; Souza, Ana Tereza. L. M. (Org.) A Política Externa de
Bolsonaro na Pandemia. São Bernardo do Campo/São Paulo: OPEB/
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RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio et al. Desconstrução dos Di-
reitos Humanos na Política Externa Brasileira. In: Berringer, Tatiana;
Maringoni, Gilberto; Schutte, Giorgio (Org.). As bases da política
externa bolsonarista. Santo André: EdUFABC, 2021, p. 89-99.
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio et al. Política Externa de
Direitos Humanos em Cenário de Isolamento Internacional do Bra-
sil. In: Azzi, Diego.; Rodrigues, Gilberto M. A.; Souza, Ana Tereza.
L. M. (Org.). Política Externa Brasileira em tempos de isolamento
diplomático. Rio de Janeiro: Telha, 2022, p. 77-95.
RODRIGUES, Gilberto Marcos Antonio. Política Exterior de Bol-
sonaro: Ideologia y Aislamiento Diplomatico (2019-2022). Analisis
Carolina, Madrid: Fundação Carolina, 2022.

● 104 ●
Do desastre à oportunidade: meio
ambiente e política brasileira em 2022

Alan Anelli, Bianca Lima, Breno Fischer, Cássia Fernandes, Cássia Lima,
Davi Silva, Catarina Vieira Bortoletto, Fernando Nascimento, Giovanna
Rossato, Laura Rivaben, Lucas Começanha, Lucas Rocha,
Luís G. Branco, Luiza Zomignan, Rodolfo Aguiar,
Sofia Spada, Tamires Teixeira; Olympio Barbanti Jr.
e Diego Azzi(93)

Desde 2019, políticas e capacidades de gestão ambiental estão


entre as áreas mais afetadas negativamente pelo Governo Bolsonaro. O
Brasil se retirou de um patamar de destacada posição propositiva em
questões ambientais nacionais e internacionais para um vergonhoso de-
sengajamento internacional e descumprimento da legislação ambiental
nacional. A diplomacia ambiental de Bolsonaro contribuiu largamente
para o isolamento diplomático do Brasil nos últimos quatro anos.
Desde a cúpula de Estocolmo em 1972, o Brasil apresentou
sistematicamente, nas conferências mundiais e nas reuniões interme-
diárias, diversas proposições que contribuíram para a formação de
conceitos e consensos na política ambiental global. Houve um ativo
engajamento internacional do país na cooperação ambiental, que,
de forma associada a um grande aprendizado, resultou em políticas
nacionais e regimes internacionais mais eficientes e eficazes.
A partir da redemocratização do país e da revisão do posicio-
namento defensivo dos governos militares sobre temas ambientais,
e com maior ênfase a partir dos anos 2000, o desmatamento caiu
abruptamente na região Amazônica, e todos os biomas ganharam
estratégias de gestão baseadas em forte conhecimento científico.
Povos e comunidades tradicionais foram reconhecidos e tiveram

(93) Pesquisadoras e pesquisadores do GT de Meio Ambiente do Opeb

● 105 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

seus meios de vida defendidos, ao passo que as agendas indígena,


quilombola e de povos e comunidades foram compartilhadas com as
respectivas áreas, elas igualmente reforçadas. Tudo isso começou a
desabar a partir do impeachment de Dilma Rousseff, e, particularmen-
te, com mais profundidade em menos de quatro anos de calamitosa
administração de Jair Bolsonaro, processo este que analisamos em
detalhe nos livros do Opeb de 2019, 2020 e 2021.
Não foram arruinadas “apenas” a gestão de políticas nacionais
e a capacidade propositiva. Ao se distanciar de fóruns internacionais,
o Brasil deixou de defender interesses relacionados a pautas que de
fato têm incidência em questões relativas à soberania nacional. As
conexões entre desmatamento e exportação de commodities agrícolas
e minerais, entre clima e meio ambiente, entre biodiversidade e pro-
dutos da floresta, e entre ecologia e Direitos Humanos são exemplos
de inúmeras interseções com complexos de regimes internacionais.
Ao se distanciar voluntariamente de atores-chave neste campo de
cooperação e conflito, o Brasil abriu mão de fazer a defesa ativa e
altiva de seus interesses soberanos, trocando sua tradicional postura
por argumentos batidos, esgarçados e já superados, em contraposição
a supostos interesses internacionais velados sobre a Amazônia e a
biodiversidade brasileira.
Neste sentido, o discurso bolsonarista de que “a Amazônia é
nossa” é legitimador da devastação brasileira sobre o bioma e pro-
duz justamente efeito oposto, dado que o afastamento do país de
práticas ambientais consagradas em regimes internacionais, inclusive
já ratificados pelo Brasil, e de normas de governança transnacional
praticadas por organizações privadas pode resultar em restrições
às exportações brasileiras. Interesses velados foram, na verdade,
aqueles descobertos após divulgação de vídeo de reunião no dia
22 de abril de 2020 entre o presidente e seus ministros. Na ocasião,
o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmou que o
governo deveria “passar a boiada” em termos de ações contrárias aos
interesses ambientalistas enquanto a imprensa e a opinião pública
estavam ocupadas com informações sobre as desastrosas e criminosas
queimadas no Pantanal e na Amazônia. Foi justamente essa “prova
do crime”, por assim dizer, que fez com que a atenção do mundo
se voltasse de forma ainda mais focada para a região (Opeb, 2020;
Alencastro; Waisbich, 2021).

● 106 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Política antiambientalista
Impactos negativos dessa política deliberadamente antiambien-
talista se estenderam ainda mais. Para além da forte deterioração
nas políticas nacionais e internacionais e do desmonte e paralisação
da gestão ambiental doméstica, o Governo Bolsonaro interrompeu
diversas ações financiadas por agentes de cooperação internacional
multilateral e bilateral, ao mesmo tempo que ofendeu líderes interna-
cionais e maculou a história da política externa brasileira. Bolsonaro
acusou, por exemplo, o presidente francês Emmanuel Macron de
adotar uma concepção colonialista ao interferir em assuntos “inter-
nos” do Brasil.
O líder francês havia denunciado os incêndios na floresta tropi-
cal em julho de 2019, que, segundo dados do Programa Queimadas,
do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), aumentaram
82% em comparação com o mesmo período de 2018. No mesmo ano,
Noruega e Alemanha cancelaram repasses para o Fundo Amazônia,
ao que Bolsonaro respondeu dizendo que a líder alemã Angela Merkel
“deveria usar o dinheiro bloqueado para reflorestar o próprio país”
(COHEN, 2022).
Diversas outras iniciativas, incluindo ações de importantes or-
ganizações não governamentais, foram igualmente paralisadas ou
tiveram que ser alteradas para um perfil de “empreendedorismo”.
Membros de ONGs foram perseguidos politicamente e diversos de-
les foram mortos. Houve aumento da invasão de terras, do garimpo
ilegal, da extração e venda de madeira ilegal e do crime organizado.
Esse quadro de caos político e institucional foi agravado pela
situação degradante em que se encontram povos e comunidades tra-
dicionais, assim como indígenas. Além da falta de demarcação de suas
terras, houve tolerância quanto à invasão das mesmas e ao assassinato
de diversas lideranças camponesas. A dimensão social relacionada à
agenda ambiental foi escanteada, e, no seu lugar, foram priorizadas
pautas como meio ambiente urbano, reciclagem, resíduos sólidos e
outros temas distantes das questões centrais da biodiversidade dos
biomas brasileiros e de suas populações.
Pode-se dizer com segurança que a questão ambiental foi co-
locada como dimensão subalterna a interesses do chamado “setor
produtivo”, em especial de grupos que representam uma fração da

● 107 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

pecuária e do agronegócio e de setores da indústria e de serviços


relacionados. Assim, propostas desta fração do agro, como a de um
mercado de metano, foram apresentadas como iniciativas represen-
tativas da área de meio ambiente como um todo.
Entretanto, a fração bolsonarista na agricultura e indústria, assim
como nos serviços, não é formada por um setor produtivo moderno,
ligado a cadeias, critérios e instrumentos de financiamento interna-
cionais. De fato, a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), que
apoiou a candidatura vitoriosa de Luís Inácio Lula da Silva, expressou
que uma diferença fundamental da mesma para com outros setores
do agro reside nos critérios ambientais e sociais praticados interna-
cionalmente aos quais as empresas modernas estão expostas.
Ao longo de 2022, os trabalhos do Opeb na área ambiental
procuraram identificar os elementos centrais dessa dupla realidade:
a devastação e a oportunidade. O que se torna patente por meio de
manifestações e ações públicas logo após a eleição de Lula para um
novo mandato presidencial é que a dimensão de oportunidade volta
a ser estruturada com rapidez e a partir de novos patamares. Atores
nacionais e internacionais possuem uma visão clara da necessidade
do desenvolvimento sustentável e mobilizam-se em conjunto, (re)
formando alianças que estavam esfaceladas e criando novas agendas.
Diversos estudos vieram à tona, mostrando que, ao longo dos anos,
o desmonte protagonizado pelo bolsonarismo foi monitorado de
perto. Há, pois, conhecimento sobre o que deve e pode ser revertido.
Nesse contexto, os textos do GT Meio Ambiente do Opeb bus-
caram identificar e analisar os desafios colocados para a diplomacia
ambiental do Brasil. Olhando para as ligações entre conservação, uso
sustentável e aspectos produtivos e comerciais, este capítulo costura
os elementos de uma realidade complexa, que se deslinda a seguir.

Caos na Amazônia e destruição da gestão ambiental


Os problemas da região amazônica transcendem, e muito, a
dimensão do meio ambiente, e a configuram como uma “região-pro-
blema”. A soma de problemas é de tal forma alarmante, que uma
análise rigorosa sobre a região poderia conduzir a restrições inter-
nacionais ao Brasil, seja pela ausência de proteção ambiental, mas
também pela ausência de proteção social e de crescentes violações aos

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Direitos Humanos. Esses problemas não são novos e nem exclusivos


do período bolsonarista. Mas, certamente, agravaram-se em demasia,
retrocedendo durante a gestão de Bolsonaro.
Argumenta-se, pois, que as questões ambientais são, também,
interligadas a outros fatores, em uma constante espiral negativa que
faz da Amazônia uma questão central da inserção internacional do
país e para a integração regional. Assim, ela se torna atualmente
um grande desafio para o desenvolvimento do país Brasil segundo
padrões de sustentabilidade, e abre, no contexto internacional, possi-
bilidades de questionamento sobre a capacidade de o país controlar e
desenvolver a região com respeito aos regimes internacionais por ele
ratificados, e até mesmo com respeito à própria legislação nacional.
Ao longo das diversas negociações multilaterais ambientais
nas últimas três décadas, assim como por meio da cooperação in-
ternacional em matéria de meio ambiente, o Brasil se consolidou
como importante ator na área. Porém, o constante solapamento
da política ambiental nos últimos anos, que interage com perdas
significativas de direitos sociais, teve efeito ainda mais perverso na
Amazônia, devido à presença insuficiente do Estado brasileiro na
região. A chamada Amazônia Legal é formada por cinco milhões de
quilômetros quadrados de área, o que representa 59% do território
brasileiro. Fazem parte desta região (criada em 1966) os estados do
Amazonas, Acre, Pará, Amapá, Roraima, Rondônia, Mato Grosso,
Goiás e Tocantins, e parte do Maranhão. Há uma elevada taxa de
urbanização e um número reduzido de pessoas nas zonas rurais, que
são formadas por 775 municípios. Belém, capital do Pará (PA), possui
1,5 milhão de habitantes, e Manaus, capital do Amazonas (AM), soma
aproximadamente 2,55 milhões. Juntas, as duas cidades concentram
a maior parte da população na Região Norte.
Apesar de o Governo Bolsonaro ter agido para evitar o moni-
toramento de queimadas, prática realizada pelo Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, o desmata-
mento e as queimadas seguiram sendo observados por satélites e
registrados pelos sistemas públicos e de outras instituições públicas
e privadas, nacionais e estrangeiras. Assim, sob grande atenção no
contexto doméstico e internacional, o desmatamento na Amazônia
veio crescendo em ritmo alarmante. Em 2019, foram observados
eventos marcantes, por exemplo, o chamado “Dia do Fogo”, quando

● 109 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

fazendeiros em diversos pontos da região realizaram queimadas de


maneira coordenada na região amazônica da rodovia BR-163, no
trecho da mesma, no estado do Pará.
O desmatamento na Amazônia em 2021 teve um aumento de
29% com relação a 2020, o que significou um salto de destruição
de 8.096 km² para 10.362 km², segundo dados da organização não
governamental Imazon. Segundo dados da ONG global União In-
ternacional para a Conservação da Natureza (IUCN), com base na
análise do período de 1985 a 2020, 26% da Amazônia já foram des-
matados ao ponto de “não retorno”, dos quais 20% estão sujeitos a
mudanças irreversíveis do uso do solo e 6% caracterizam-se como
extremamente degradados. Os efeitos do desmatamento são sistê-
micos: com menos árvores há menor retenção de gás carbônico da
atmosfera e, assim, maior aumento do aquecimento global, dentre
outras consequências.
Soma-se a isso a perda de biodiversidade e, consigo, a perda de
oportunidades de avanço científico e econômico, como o desenvol-
vimento de fármacos e alimentos. Ademais, o desmatamento afeta o
regime de chuvas que irrigam plantações pelo Centro-Oeste e Sudeste
do Brasil e contribuem para o fornecimento de água para consumo
humano e dessedentação de animais. Tais mudanças também afetam
países vizinhos, como Paraguai e Argentina, e causam anomalias em
correntes marítimas no Oceano Atlântico, determinantes na dinâmica
climática do Hemisfério Norte.

Modelo exportador de commodities


A degradação ambiental tem por base o desastroso modelo de
“economia de fronteira” que predomina na região. Isto é, um modelo
basicamente voltado para a exportação de commodities agropecuárias
e minerais, caracterizado pela produção e exportação em larga escala
e que não pode ser considerado como formado por produtos típicos
da floresta. Os dez produtos mais exportados por cinco estados –
Pará, Mato Grosso, Maranhão, Tocantins e Rondônia – concentraram
97% das exportações para o ano de 2020, sendo que os dois primeiros
representam 44,5% e 39,4%, respectivamente, do total exportado
(VEIGA, RIOS, 2021).

● 110 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

As características que chamam mais a atenção na evolução do


período 2010-2020, segundo os autores, são: (i) crescimento de 10%
desses produtos top 10 na cesta total; (ii) crescimento da participação
dos produtos agropecuários (de 33% para 41%) atribuível a soja,
milho, algodão e carnes de bovino desossadas; (iii) mudanças na
composição das commodities minerais, com ganho de participação
do óxido de alumínio e ouro em detrimento dos minérios de ferro
aglomerados e alumínios; (iv) perda de participação de Amazonas
na composição da cesta explicada pela redução dos valores abso-
lutos de produtos manufaturados, o que sinaliza com a tendência
de desindustrialização registrada no Brasil; (v) a China como prin-
cipal destino das exportações da AL (de 26% para 42%); (vi) EUA,
Austrália e países sócios do Mercosul aparecem como os principais
concorrentes da AL. Com isso, esta última característica chama muito
a atenção para o problema da integração regional e do contrassenso
para a região que pode significar um acordo do tipo desenhado entre
Mercosul e União Europeia.
Uma alternativa para diversificação da pauta exportadora da
AL poderia estar nos produtos florestais, conforme assinalado por
Veiga e Rios (ibid.), e proposto por Costa et al. (2021). No entanto,
tais produtos enfrentam obstáculos como alta concorrência com
países asiáticos e latino-americanos, tarifas de importação elevadas
e dificuldade de acesso aos mercados demandantes. A ausência de
alternativas para o dinamismo econômico da Região Norte é uma
preocupação expressa por Oliveira e Silva (2021) num estudo sobre
o estado do Pará, onde quatro quintos da pauta exportadora estão
concentrados na exportação de minérios, tendo o minério de ferro
participação de 83% desse total.
Ou seja, a Amazônia pode ser a base para uma economia ver-
de brasileira, ajustando o país aos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS), das Nações Unidas, o que tornaria a região mais
próxima das recomendações ambientais preconizadas pela OCDE.
Como visto, a economia degradante de fronteira, além de ambien-
talmente hostil, também ocasiona fome e crime.
No entanto, a corrida para exploração de minérios, como para
outras atividades, acarretou no crescente aumento das atividades
ilegais, notadamente o garimpo. Uma das consequências indiretas é
o aumento brutal da violência e da situação delicada da segurança

● 111 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

pública na região. O assassinato brutal do indigenista Bruno Pereira


e do jornalista britânico Dom Philips ilustra a situação da falta de
segurança e da falta da presença do Estado na floresta amazônica.

Crime, violência e pobreza nas fronteiras


Essa situação de insegurança é refletida, também, na presença de
cartéis internacionais que atuam em paralelo, ou em conjunto, com
vinte organizações criminosas identificadas na região, além de duas
outras organizações nacionais: o Primeiro Comando da Capital (PCC)
e o Comando Vermelho (CV). Tais organizações recrutam mão de obra
que é mantida em condições péssimas de trabalho, muitas vezes em
situação análoga à escravidão. Muitas vezes, organizações criminosas
de atuação nacional cooptam indígenas e populações fronteiriças para
servirem de “mula” no transporte de produtos ilícitos entre os países.
Essas organizações disputam o domínio das principais rotas nacionais
e transnacionais de narcotráfico e biopirataria, administrando, assim,
a economia, os territórios e as vidas das pessoas.
Como ficou explícito no Anuário Brasileiro de Segurança Pública
(ABSP), entre 2020 e 2021 Manaus teve um aumento de 48,9% no nú-
mero de mortes violentas (ABSP, 2022). Além disso, é nos municípios
da Amazônia Legal que a violência letal é 38% superior às demais
regiões do país (ABSP, idem). Sejam legais, sejam ilegais, essas ativi-
dades causam vítimas, as quais continuam sendo principalmente as
populações tradicionais da Amazônia. Como divulgado pela Comis-
são Pastoral da Terra (UOL, 2022), 77% das mortes por conflitos no
campo nos últimos dez anos no país se deram na região amazônica.
Dentre as atividades criminosas presentes na região, destaca-se tam-
bém o tráfico humano, cujos fins variam desde exploração laboral,
sexual ou até a venda de órgãos. Por trilhas, estradas ou rios, há na
Amazônia o trânsito de toda espécie de ilegalidade, que atravessa
as fronteiras do Peru, Bolívia, Venezuela e Guiana.
Como se não bastasse a violência causada pelo crime e pelas
condições degradantes de trabalho, a pobreza leva a condição de
vida das populações nortistas ao ápice da insalubridade e da misé-
ria. Isso é evidente com o estado precário do saneamento básico das
cidades, da infraestrutura urbana, da alimentação humana, dentre
outros fatores que revelam a precariedade da vida na região. De
acordo análise de rendimento médio mensal per capita, conforme o

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

estudo “Vulnerabilidade social, fome e pobreza nas Regiões Norte e


Nordeste do Brasil” (Aracaty et al., 2020), ambas as Regiões – Norte
e Nordeste – “apresentam os menores rendimentos do país e uma
elevada concentração de renda que é mensurada pelo Índice de
Gini”. “Além disso”, segue o estudo, “a renda dos 40% mais pobres
e dos 10% mais ricos apresenta valores inferiores à média nacional”
(ARACATY et. al, 2020).
Esse cenário caótico ganha uma dimensão ainda pior ao ser
acometido pela fome e insegurança alimentar. A presença da flores-
ta mais biodiversa do mundo não garante à região uma segurança
alimentar. Na verdade, a Região Norte é aquela “que possui o maior
porcentual de famílias em situação de fome no Brasil, com cerca de
26% dos lares sendo classificados em insegurança alimentar gra-
ve, isto é, com restrição muito grave de alimentos”, ao passo que
“as Regiões Sul e Sudeste somadas possuem 11,7% dos lares em
insegurança ambiental”, segundo o “II Inquérito Nacional sobre
Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no
Brasil” (II Vigisan, 2022).

Escassez de fertilizantes

No entanto, a imprevista escassez de fertilizantes em decorrência


da guerra entre Rússia e Ucrânia trouxe a oportunidade de produção
de bioinsumos – o que revela como o uso sustentável dos recursos
da biodiversidade e ganhos econômicos podem andar em conjunto.
Em tal perspectiva, que pode ser chamada de bioeconômica, essa in-
tegração torna-se evidente na iniciativa Amazônia 4.0, que tem entre
os propositores Carlos Nobre, um dos principais cientistas climáticos
do Brasil. A proposta preconiza que o grande potencial econômico da
floresta está em mantê-la “em pé”. Com investimento estatal e não
estatal e emprego da mão de obra das populações locais, a proposta
visa explorar o potencial econômico da Amazônia por meio da in-
trodução de tecnologias de ponta no interior da Amazônia a fim de
agregar valor a produtos típicos da floresta e fomentar a economia
e o desenvolvimento local.
Mas a realidade ainda está muito distante dessa possibilidade.
Segundo a pesquisa do II Vigisan, 71,6% da população da Região
Norte estão em situação de insegurança alimentar leve, moderada

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

ou grave, sendo que somente 28,4% estão em situação de segurança


alimentar, frente a 41,3%, quando se considera a média da população
brasileira. A pesquisa agrega que também a taxa de famílias que se
enquadram ao mesmo tempo em situação de insegurança alimentar
e insegurança hídrica chega a 48,3%.
A Amazônia é, portanto, uma oportunidade que está em chamas:
ao mesmo tempo que é a chave para a reinserção do Brasil no cenário
internacional e para a promoção do desenvolvimento econômico e
social para o país, a fome, o crime, o desmatamento e a pobreza não
apenas seguem assolando a região, como se expandiram durante a
última gestão federal. A derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022
abriu condições para que o presidente eleito possa alterar essa triste
realidade. Desde sua campanha, Lula tem manifestado a intenção de
colocar prioridade na promoção da sustentabilidade para a região,
além de apagar o fogo que queima não apenas a própria floresta ama-
zônica, como também a imagem do Brasil no cenário internacional.

Questão indígena e a tempestade perfeita


da destruição socioambiental
Essa conjuntura local de problemas e desafios circunda a reali-
dade dos Territórios Indígenas (TI), em particular a Terra Indígena
Yanomami – localizada em uma área com mais de nove milhões
de hectares entre os estados do Amazonas e Roraima –, que vive
a realidade do aumento dramático de conflitos socioambientais
na região. Entre os problemas críticos está o garimpo ilegal, que
opera com amplo apoio econômico empresarial e mobiliza mais de
vinte mil garimpeiros que trabalham ilegalmente no interior da TI.
Destacam-se, também, o aumento do desmatamento na TI, além de
formas extremas de violência – como o abuso sexual enfrentado por
mulheres e crianças.
Para além disso, há uma grande carência na prestação de serviços
de saúde pública, cujas consequências são agravadas por doenças
(como a malária) trazidas pelos garimpeiros. Ademais, o garimpo de
ouro leva à contaminação da água e da terra por materiais pesados,
como o mercúrio (SOCIOAMBIENTAL, 2022). O Governo Bolsonaro
ainda tentou favorecer a ação garimpeira ao dar à atividade amparo
legal por meio de Projeto de Lei (PL 191/2020), que tem como principal
objetivo regulamentar a exploração de recursos minerais, hídricos e

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

orgânicos em terras indígenas. Em 16 de dezembro de 2022, a duas


semanas de seu término, o Governo Bolsonaro aprovou uma flexibi-
lização da extração de madeira dentro de terras indígenas – medida
que integrantes do futuro Governo Lula afirmaram, no mesmo dia,
que iriam reverter de imediato após a posse.
A legalização das atividades extrativistas é um antigo intuito
do Exército Brasileiro. A visão dos militares para a Amazônia está
fundamentada na percepção da região como detentora de valiosa
riqueza natural, ao passo que corresponde a um grande vazio de-
mográfico isolado do restante do país. Isso representaria, nesta visão
militar, um risco à soberania e à segurança nacional, já que a presença
indígena não é vista como garantidora do domínio nacional sobre a
região – pelo contrário.
Contrariando a ideia de que a sociodiversidade é tão preciosa
quanto a biodiversidade (CUNHA, 1994), a lógica militar acredita que
sociedades indígenas devam ser integradas à cultura Ocidental de
imigrantes de origem europeia, dentre outras, que vieram ao Brasil.
Não admitem a argumentação antropológica de que povos indígenas
devem ter sua cultura e identidade reconhecidas e respeitadas.
Uma análise histórica da doutrina militar (MARQUES, 2007),
presente nas diretrizes do Exército Brasileiro, mostra que a instituição
esteve preocupada em promover um tipo de integração espacial da
Amazônia que tem por base extrair ao máximo sua riqueza material.
Essa perspectiva também identifica a presença de outros agentes so-
ciais na geopolítica regional, ressaltando uma preocupação em relação
ao papel de “atores transnacionais públicos não estatais” — assim
como as organizações não governamentais (ONGs). Quer dizer, a
leitura de que ONGs possuem uma missão estranha aos interesses
patrióticos não é uma novidade da história recente, possui um rastro
na doutrina militar brasileira.
Trata-se, pois, de uma “tempestade perfeita” da insustentabili-
dade no uso do meio ambiente brasileiro, em especial na Amazônia.
Há destruição ambiental em paralelo à falta de ação de um governo
que atuou de forma a solapar a capacidade de ação dos órgãos pú-
blicos, e o fez a partir de uma visão militarista que atribui ao meio
ambiente e às populações amazônicas caráter subalterno a um padrão
de exploração econômica para o qual a Amazônia é uma fronteira do
desenvolvimento, uma região fornecedora de recursos extrativistas.

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Esta postura encontrou apoio no ambiente político do Congresso


Nacional, onde a liberação de verbas para parlamentares fluiu com
extensão e constância caudalosa nos anos entre 2019 e 2022. Também
teve apoio de uma fração do agronegócio, e de políticos da região,
interessados em ganhos imediatos.
Entretanto, o caráter global dos danos ambientais na Amazônia
encontrou resistência na crescente preocupação com impactos climá-
ticos derivados das emissões de carbono na atmosfera. Nesse sentido,
as queimadas na floresta representam uma dimensão importante do
debate, não apenas pelo volume das emissões, mas também porque
são emissões associadas a formas de exploração economicamente
arcaicas, ambientalmente insustentáveis e socialmente injustas.

Condicionantes ambientais para adesão do Brasil à OCDE


Mesmo no contexto da degradação do meio ambiente, que co-
meçou a se instalar em 2015, o Brasil formalizou, em 2017, durante o
governo de Michel Temer, sua candidatura a membro pleno da Orga-
nização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A
instituição considera que o Brasil já se enquadra em muitas das suas
exigências nas dimensões econômico-financeiras, e, na área ambiental,
haveria aprovação quanto a aspectos técnicos da legislação atual. En-
tretanto, a OCDE adota como parâmetro para suas políticas ambientais
o conceito de crescimento verde, o qual visa manter a produção e ser-
viços em favor do crescimento econômico, sem, no entanto, esgotar a
base de recursos naturais. Deste modo, o Brasil deverá reavaliar seus
modelos produtivos se quiser ser membro da OCDE.
As regras ambientais também se fizeram sentir nos setores in-
dustrial e de serviços financeiros, que passaram a ser normatizados
por regimes internacionais, ao mesmo tempo que diversos de seus
atores aderiram a normas de governança socioambiental criadas
no contexto de responsabilidade corporativa. Nos últimos anos,
entretanto, a implementação das leis foi mais tímida na agricultura,
repercutindo nos elevados níveis de desmatamento e emissão de
gases do efeito estufa (GEE) por queima de madeira, em especial na
Amazônia, durante os Governos Temer e Bolsonaro.
A proposta de crescimento verde dialoga com o objetivo correlato
de promover estudos e orientações políticas em prol da Agenda 2030
de Desenvolvimento Sustentável da ONU. De fato, a OCDE possui

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

cartas de recomendações e decisões para cada um dos Objetivos de


Desenvolvimento Sustentável (ODS). Por esses critérios, as decisões
devem ser seguidas por seus membros e têm caráter jurídico vincu-
lante, possuindo implicação de cumprimento legal. Essas restrições
se relacionam principalmente com aspectos técnicos, como disponi-
bilização e compartilhamento de informações a respeito de produtos
químicos. Já as recomendações da OCDE possuem apenas a força moral
da revisão mútua dos pares para promover a adesão e implementação
voluntárias. Destarte, não possuem caráter de obrigatoriedade, além
de serem mais extensas e serem capazes de englobar todos os ODS.
O desempenho do Brasil, no entanto, foi muito insatisfatório em
termos de alinhamento de práticas econômicas às recomendações e
orientações ambientais da Organização, o que pode, em contrapar-
tida, tomar outros rumos, a depender da gestão do Governo Lula.
A partir do relatório lançado pela OCDE em 2021, que avalia o pro-
gresso do Brasil na implementação das recomendações e requisitos
básicos na área ambiental, ficou evidente que, dentre todas as lacunas
apontadas, o desmatamento e a má gestão dos recursos hídricos são
os pontos mais críticos de negligência do Estado brasileiro. Já o setor
energético foi mais atento às recomendações da OCDE e mais bem
avaliado, em função da capacidade brasileira de geração hidrelétrica.
De outro lado, a OCDE dá ênfase à implementação de reco-
mendações (sem o caráter vinculativo das decisões), o que se explica
pela busca da organização pelo consenso sobre a necessidade de
uma economia verde. Desse modo, para se alinhar aos requisitos da
OCDE, o Brasil deverá promover uma economia verde para a floresta,
com observância das demais dimensões sociais, socioambientais e de
gestão – a exemplo da referida proposta Amazônia 4.0.
Porém, a adesão do Brasil a uma economia verde no contexto
dos ODS dependerá de uma forte alteração de rumo a ser alcançada
pelo novo Governo Lula, em comparação com o período Temer-
-Bolsonaro. Segundo análise de entidades como o OECD Watch,
Conectas e FIDH, as falhas da governança ambiental no Brasil –
que “vão desde leis ou regulamentos ruins, subfinanciamento de
ministérios ou políticas-chave, falhas na execução e na responsabi-
lização, falha na transparência e na participação social, a repressão
a críticas – estão causando graves danos ao Estado de Direito, aos
direitos humanos e ao ambiente”.

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

A má gestão ambiental promovida pela administração Bol-


sonaro pode, para além de comprometer a entrada do Brasil na
OCDE, também prejudicar o acordo Mercosul-União Europeia, o
qual deverá ser revisado pelo novo governo eleito. Em dezembro
de 2022, o Parlamento Europeu aprovou o Projeto de Regulação nº
2021/0366 (COD), que tem como objetivo rastrear as práticas de due
dillegence nas cadeias produtivas de sete commodities agropecuárias
(soja, carne bovina, óleo de palma, madeira, cacau, café, borracha ou
mercadorias que contenham esses produtos, como móveis, couro ou
chocolate). Ao fazer tal demanda, a entidade visa promover o combate
ao desmatamento e o respeito aos Direitos Humanos, em especial
de povos originários. A nova regulação, mais rígida, permitirá que
a UE aplique multas de até 4% do valor transacionado e possa até
mesmo banir exportadores brasileiros que não cumpram os requisitos
socioambientais (CONSULTOR JURÍDICO, 2022).
No contexto de uma economia verde, é preciso compreender al-
guns movimentos do período Bolsonaro, que parecem contraditórios
com o laissez-faire socioambiental de seu governo. Um dos casos de
movimento contraditório que chamou a atenção em 2022 foi o fato
de o ex-presidente ter ratificado em março de 2021 o Protocolo de
Nagoya, que há muito aguardava a aquiescência do governamental.

Nagoya para quem?


O Protocolo de Nagoya é um acordo internacional suplementar
à Convenção Internacional da Diversidade Biológica (CDB), um dos
principais resultados da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida como Rio-92.
A CDB tem por objetivo geral a proteção da biodiversidade de forma
a garantir que até 2050 a natureza e o ser humano possam viver em
harmonia. Na linguagem da CDB, trata-se de viver com a natureza, e
não apesar dela. Ou seja, manter a base de recursos da qual depende
a vida do homem na Terra. O Protocolo foi aprovado na cidade de
Nagoya, Japão, durante a reunião da CDB realizada no ano de 2010.
Desde então, aguardava a ratificação do governo brasileiro, passando
pelos governos de Lula, Dilma e Temer.
O Protocolo se coloca no sentido de estabelecer as bases para
que atividades produtivas envolvendo recursos da biodiversidade
possam coexistir, mantendo-se a preocupação com justiça social.

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Dessa forma, o texto de Nagoya regulamenta o chamado “Acesso a


Recursos Genéticos e à Repartição Justa e Equitativa dos Benefícios
Advindos de sua Utilização” (termo conhecido em inglês como
Access and Benefit Sharing). Segundo a Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz, 2022), o Protocolo “estabelece as diretrizes para as relações
comerciais entre o país provedor de recursos genéticos e aquele que
vai utilizá-los, abrangendo pontos como pagamento pela utilização
dos recursos (algo semelhante a “royalties“), o estabelecimento de
joint ventures, assim como o direito à transferência de tecnologias e
capacitação”. Em outras palavras, trata-se da definição de condições
para que países, empresas, grupos sociais e até mesmo indivíduos
possam reclamar direitos de propriedade sobre conhecimentos de
possibilidades de uso econômico de componentes da biodiversidade.
Apesar de o Protocolo ter sido assinado pelo ex-presidente
Bolsonaro, sua aprovação se deve não a um alinhamento da sua ad-
ministração às pautas ambientais – o que de fato não existiu. Mas,
sim, pela forte pressão vinda do exterior, assim como por interesses
nacionais manifestados por atores centrais, como a Confederação
Nacional da Indústria (CNI), por frações do agronegócio e por uma
parte da comunidade empresarial interna. Esse interesse se expli-
ca pelo fato de o Protocolo demandar regulamentação nacional
adicional. Trata-se da necessidade de definição de quais recursos
são “nacionais”, e, portanto, sobre quais recursos os Estados têm
soberania. Em paralelo, o conhecimento sobre recursos diz respeito
a outra dimensão fundamental, qual seja, coletar e tornar disponível
informações genéticas.
Sobre o primeiro tópico, um ponto central reside no fato de que
tanto a Convenção quanto o Protocolo asseguram que os países têm
soberania sobre seus recursos genéticos, ou patrimônio genético, cujo
acesso por outros Estados somente pode ser possível mediante o con-
sentimento prévio concedido pelo país soberano. Como consequência,
tem-se a necessidade de definir se informações genéticas devem ser
repartidas livremente. O método científico de levantamento destas
informações é conhecido como Informações de Sequências Genéticas
Digitais (sigla DSI em inglês).
Atualmente, o compartilhamento de DSI ocorre devido a um
pacto não formal de colaboração entre cientistas, em especial quan-
do é necessário acelerar as pesquisas, assim como se deu no caso da

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

covid-19. Entretanto, enquanto países em desenvolvimento (prove-


dores de recursos genéticos) entendem que a definição de “recursos
genéticos” inclui, também, DSI, países industrializados (que detêm
tecnologia, mas não biodiversidade) argumentam o contrário.
A legislação brasileira engloba DSI dentro do conceito de patri-
mônio genético da biodiversidade e prevê repartição de benefícios
pelo seu uso econômico e conhecimentos tradicionais associados. A
defesa do Brasil nas negociações sobre o Protocolo de Nagoya está
baseada na argumentação de que, “como houve utilização de uma
amostra física para acessar esse tipo de informação, sua aplicação
subsequente e comercialização deve ser repartida de forma justa e
equitativa”. Pela Lei Brasileira da Biodiversidade, quando houver
possibilidade de identificação de atores no contexto de Acesso e
Repartição de Benefícios (ABS, em inglês) deverá ser recolhida ao
Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB) a quantia cor-
respondente a 1% da receita líquida anual (exceto no caso de redução
de até 0,1% por acordo setorial), segundo o Portal da Indústria (2022).
O ponto central do interesse na ratificação de Nagoya por Bol-
sonaro reside justamente no fato de que seu governo poderia facilitar
a apropriação privada de ganhos derivados do acesso a recursos
genéticos, bem como sobre o acesso às, ou controle privado das,
informações de sequência genética digital pelo grande capital, em
detrimento de direitos de grupos sociais que, de forma patente, não
representaram qualquer prioridade em seu governo.
“A digitalização de sequência genética de organismos, espécies
vegetais e animais em um ‘banco’ digital” pode gerar uma série de
consequências como a ampliação do desenvolvimento de organismos
artificiais e sintéticos, a apropriação privada do patrimônio genético
dos povos e a dificuldade de repartição dos benefícios de biologias
sintéticas que derivam de dados de espécies desenvolvidas por povos
indígenas e comunidades tradicionais” (TERRA DE DIREITOS, 2018).
Assim, o uso dos recursos e os direitos a ele associados e a
conservação da biodiversidade são questões correlatas, pois sem
biodiversidade não há recursos a serem explorados. Nesse sentido,
os prejuízos das queimadas na Amazônia podem ser mais bem
compreendidos: para além da emissão de gases de efeito estufa,
eles trazem consigo a perda da biodiversidade. Até que ponto as
negociações climáticas podem trazer um caminho para a superação

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

desta dupla perda? Quais demandas se colocam para a diplomacia


brasileira neste contexto?

COP27: financiamento climático e a diplomacia brasileira


O calendário ambiental de 2022 terminou juntamente com o
Governo Bolsonaro. Realizada entre 6 e 18 de novembro em Sharm
el-Sheikh, no Egito, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudan-
ças Climáticas (COP27) testemunhou uma inusitada situação para a
delegação brasileira: a de um governo derrotado e mal visto na área
ambiental tendo que aceitar a presença bem recebida de um presiden-
te eleito – e comprometido com questões ambientais e sociais. Foi na
ocasião uma oportunidade para o futuro Governo Lula anunciar o seu
realinhamento às políticas ambientais internacionais, em particular
sobre o assunto principal da COP: o financiamento relacionado às
ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, sobretudo
para as nações mais vulneráveis.
As discussões giraram em torno da elaboração de um rol de
ações destinadas à prevenção, ao combate e à adaptação às mudanças
climáticas. No entanto, o mecanismo de financiamento ainda necessita
de negociações adicionais. A principal medida que emergiu dessa
COP foi a criação do fundo para reparar Perdas e Danos Climáticos,
destinado a prestar assistência a países pobres acometidos por de-
sastres climáticos. Resta, entretanto, delimitar nas próximas COPs
como se dará o aporte e funcionamento desse novo mecanismo, o
que deixa nebuloso os parâmetros concretos para sua efetivação.
O desenvolvimento e a maturação do mercado de créditos de
carbono também estão entre os temas prioritários. As críticas a esse
mercado, no entanto, são diversas, e partem do entendimento de que
o ato de precificar serviços naturais esvazia a natureza de seu “valor”
intrínseco, reduzindo-a a um valor de mercado. Além disso, há duas
modalidades de mercado de GEEs. O mercado regulado – entre esta-
dos nacionais – e o mercado voluntário – entre atores privados. Logo,
uma segunda crítica se faz a partir do fato de que negociações entre
os países ocorrem de maneira desigual e não há uma clara priorização
de financiamento aos países em desenvolvimento.
Ademais, a Conferência produziu o Plano de Implementação
de Sharm el-Sheikh, documento recebido sem entusiasmo dado o

● 121 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

descompromisso das partes em assumir suas próprias metas a fim de


manter o aquecimento global ao nível de 1,5°C. Não houve, tampouco,
menções de recomendação para o fim do uso do carvão, além de outros
combustíveis fósseis como fonte de energia, a não ser um chamado pela
“eliminação gradual dos subsídios aos combustíveis fósseis ineficientes”.
No entanto, o termo “ineficientes” traz incerteza ao não explicitar se se
trata de ineficiência econômica ou relativa à sustentabilidade.
O Brasil se enquadra no grupo dos países em desenvolvimento,
o que o coloca como apto a receber recursos para as medidas de adap-
tação e mitigação das mudanças climáticas. De outro lado, o país tem
grande responsabilidade pela emissão de GEE em função das queima-
das na Amazônia e das emissões derivadas da pecuária. Há grandes
chances de que o país se torne o centro das discussões na mesa da
diplomacia ambiental global, tendo como foco a questão amazônica,
em um esforço de ressignificar a sustentabilidade e o desenvolvimento.
Trata-se de uma oportunidade para o Brasil investir em um projeto
bioeconômico de desenvolvimento regional, valorizando produtos
tipicamente brasileiros, gerando emprego e renda para as comunidades
nos territórios, além, é claro, de preservar o meio ambiente.

Considerações finais
A trajetória da diplomacia ambiental brasileira nos últimos
quatro anos pode ser resumida na passagem da condição de país
referência à condição de pária na comunidade ambiental internacio-
nal. Nos últimos quatro anos, uma política explícita de extrativismo,
negacionismo e autoritarismo constituiu traços marcantes da agenda
(anti)ambiental-climática do Governo Bolsonaro, remetendo o Brasil
de volta a posicionamentos dos anos 1970 que vinham sendo pro-
gressivamente superados no período pós-redemocratização.
Sobretudo, enquanto o presidente dos Estados Unidos foi Do-
nald Trump, o Brasil deixou de cooperar como Estado-promotor da
agenda ambiental e climática para atuar como Estado-veto nessas
negociações, frequentemente chantageando de forma constrangedora
os demais países pela obtenção de recursos financeiros em troca de
promessas de ações de proteção ambiental que, afinal, não se con-
cretizaram no período bolsonarista. A partir de 2021, a vitória de Joe
Biden nas eleições dos Estados Unidos mudou significativamente
o cenário para a diplomacia ambiental brasileira e para as políticas

● 122 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

domésticas de conservação e preservação ambiental. Diante da


maior pressão internacional em direção a uma “recuperação econô-
mica verde” pós-pandemia, a estratégia de Bolsonaro (coincidindo
com as saídas forçadas de Ernesto Araújo e Ricardo Salles) foi de
ajustar o tom negacionista e antiglobalista do discurso diplomático
brasileiro para uma abordagem mais pragmática, buscando auferir
possibilidades de negócios verdes para setores da base de sustenta-
ção do governo, frequentemente denunciados por organizações da
sociedade civil como tentativas de greenwashing de práticas nocivas
ao ambiente (Opeb, 2022).
Passada a hecatombe ambiental bolsonarista, o novo governo
do presidente Lula tem uma oportunidade renovada para recuperar
o protagonismo internacional brasileiro. Na tradição democrática de
nossa diplomacia ambiental, a defesa da soberania não coincide com
o negacionismo climático, a busca pelo desenvolvimento não implica
ignorar os imperativos da sustentabilidade, e assumir responsabili-
dades multilaterais não significa estar oprimido pelo poder de forças
globalistas (Opeb, 2021). É, portanto, plenamente possível retomar o
trabalho em cooperação com os demais países para encontrar o equi-
líbrio possível em cada tema, sem renunciar aos interesses do Brasil.
Em simbólico contraponto à decisão de Bolsonaro de não se-
diar a COP25 em 2019, Lula já colocou o Brasil à disposição para ser
a sede da COP30, em 2025. Como demonstração de compromisso,
Lula anunciou propostas e metas de seu governo, como zerar o des-
matamento ilegal em todos os biomas até 2030, combater atividades
ilegais na Amazônia, fortalecer os órgãos de fiscalização ambiental
e criar um Ministério dos Povos Originários. Além disso, o novo
presidente brasileiro também cobrou dos países desenvolvidos o
aporte de recursos financeiros prometidos, fazendo referência aos
cem bilhões de dólares da meta de financiamento que haviam sido
acordados pelos países doadores ainda na época de realização da
COP15, em Copenhague, no ano de 2009.
Existem oportunidades concretas para que nos próximos quatro
anos o Brasil se engaje na direção de uma transformação produtiva e
industrial rumo a uma economia verde de baixas emissões. Para isso,
no entanto, será necessário superar os entraves de caráter neoliberal
instalados no país desde 2016, notadamente a limitação da capacida-
de de investimento do Estado brasileiro. Destravado o potencial de

● 123 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

investidor do setor público, será possível pensar de fato no financia-


mento do desenvolvimento sustentável no Brasil aos moldes de um
Green New Deal brasileiro, que promova junto com o setor privado
uma modernização ambiental e produtiva, tecnológica e social.
Nas análises realizadas pelo GT Meio ambiente do Opeb desde
2019, tornou-se possível compreender e identificar a agenda de de-
vastação do Governo Bolsonaro, e os atores e interesses por trás dela.
Nosso trabalho buscou contribuir com a construção de conhecimento
sistematizado que auxilie na possibilidade de se recuperar – ainda que
não totalmente – as perdas da degradação. É fato conhecido a ânsia da
comunidade internacional para avançar e ampliar a cooperação interna-
cional com o Brasil em temas de desenvolvimento sustentável, mudança
do clima e meio ambiente, com especial interesse pela Amazônia.
Caberá agora à dinâmica política das forças domésticas direcio-
nar o sentido e a intensidade das mudanças, mostrando que o Brasil
está de volta como nação protagonista da cena ambiental multilateral.

● 124 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

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● 126 ●
Novos caminhos para a inserção
econômica no mundo em transformação

Bruna Belasques, Bruno Castro Dias da Fonseca,


Dante Spinelli Apolinario Montes, Gabriel, Santos Carneiro,
Giorgio Romano Schutte, Isabela Temístocles Gomes,
Leonardo Poletto Di Giovanni, Natália Martinho,
Pedro Vahamonde (94)

Introdução
O Governo Temer marcou um período de inflexão na estratégia
de inserção econômica internacional do Brasil, em que a atuação altiva
e ativa, característica dos Governos PT, foi substituída por um autoisola-
mento diplomático fundamentado em princípios da economia ortodoxa.
O Governo Bolsonaro representou uma exacerbação completa dessa
agenda, combinada com a ausência de qualquer visão de longo prazo
para a inserção econômica internacional do país e, por vezes, uma su-
bordinação dos assuntos externos de um lado para ganhos financeiros
para alguns grupos específicos, e, de outro, ganhos políticos eleitorais
(SCHUTTE; FONSECA; CARNEIRO, 2019). Em geral, o país deixou de
pensar no futuro e promoveu uma liberalização irrestrita, perdendo diver-
sas oportunidades e provocando um retrocesso de desenvolvimento em
função da inação e, em vários casos, desestruturação do Estado brasileiro.
Há um tripé de princípios que constituem as atuações dos Go-
vernos Temer e Bolsonaro que é composto por: uma crença convicta
nos princípios da economia liberal, privatização e desnacionalização
de ativos estratégicos, e a falta de um projeto de inserção econômica
internacional soberana e de longo prazo (SCHUTTE et al., 2022).
Enquanto se viu o aumento da riqueza dos milionários, as promessas
da agenda embasada por esse tripé nunca se concretizaram para a

(94) Pesquisadoras e pesquisadores do GT de Inserção Internacional do Opeb

● 127 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

grande maioria dos brasileiros. A insegurança alimentar aumentou,


a desigualdade cresceu e a destruição do meio ambiente se acentuou,
ao mesmo tempo que a bolsa de valores bateu recordes de pontos,
dividendos bilionários foram repartidos a acionistas, com destaque
para as da Petrobras (R$ 180 bilhões só em 2022!), e as exportações
do agronegócio bateram recordes. Como resultado, o Brasil apro-
fundou a sua inserção econômica internacional com base no modelo
agroexportador, renunciando a uma maior sofisticação dos produtos
produzidos nacionalmente e acentuando o processo de reprimarização,
desindustrialização prematura e perda de complexidade econômica.

Grande transformação
Nesse meio tempo, o mundo está passando por grandes trans-
formações. A concorrência oligopolista e a rivalidade interestatal se
acentuaram e os países voltaram-se para uma nova corrida tecnológica
em torno da quarta revolução industrial-tecnológica, também conhe-
cida como a Indústria 4.0. Os efeitos das crises climáticas se tornaram
mais latentes, e planos de transição ecológica que incorporam novas
tecnologias verdes, sobretudo reorganizando o setor energético, estão
avançando. Além disso, o planeta foi acometido pela pandemia de
covid-19, que matou, até o momento, mais de seis milhões de pessoas
no mundo todo. A resposta dos países avançados a esses três desafios
passou por um mesmo fio condutor: o forte investimento público e a
volta do planejamento estatal na condução da economia.
O Brasil, contudo, não trilhou esse caminho. A condução do combate
à pandemia realizado pelo Governo Bolsonaro foi inepta e pífia, marcada
pelo negacionismo com relação à gravidade da catástrofe sanitária e pela
inércia frente aos deletérios efeitos socioeconômicos. A aprovação de in-
suficientes auxílios emergenciais representou, em um primeiro momento,
o resultado de pressões da sociedade civil, e, posteriormente, integrou
parte da estratégia eleitoral de reeleição de Bolsonaro. Ao fim, mais de
680 mil brasileiros morreram de covid-19 até o momento e a economia
nacional ainda cambaleia para se recuperar. Ficou evidenciada a impor-
tância do Sistema Único de Saúde (SUS) e seu potencial de alavancar um
complexo industrial de saúde com políticas tecnológicas.
Em termos da corrida tecnológica, o Brasil se afastou das frontei-
ras de inovação tecnológica da Indústria 4.0 e perdeu oportunidades
de atuação estratégica em um mundo em transformação. Nenhum

● 128 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

grande pacote de estímulos econômicos ou inovação tecnológica foi


aprovado nos últimos anos e a política fiscal foi colocada dentro de
uma camisa de força com a implementação do teto de gastos em 2017,
com efeitos dramáticos inclusive para o financiamento de universi-
dades públicas e instituições de pesquisa.
O caso da corrida por vacinas contra a covid-19 é exemplar para
ilustrar o quadro de oportunidades perdidas pela economia brasileira.
O Governo Temer abandonou os esforços do Governo Dilma de cons-
trução de um complexo industrial de saúde, impulsionado por uma
inteligente identificação do poder de compra do SUS e pela pactuação
com farmacêuticas internacionais para transferência tecnológica, im-
pulsionando empresas nacionais e potencializando a capacidade de
pesquisa e desenvolvimento de institutos como o Butantan e a Fiocruz.
Com isso, o Brasil ficou longe de participar no desenvolvimento de
tecnologia, vacinas e métodos de combate ao covid-19, algo que nem
foi cogitado de se alcançar pelos mandatários de plantão.

Sustentabilidade e transição ecológica


Com relação às questões de sustentabilidade e transição eco-
lógica, o Brasil, histórico líder global do assunto, também perdeu
diversas oportunidades. Por um lado, o país registrou recordes de
desmatamento da Amazônia e passou a ocupar posição de figurante
nas conferências globais sobre o clima. Por outro, o país carece de uma
visão estratégica, em particular transformando a Petrobras em uma
empresa de energia que possa ocupar um papel de destaque interna-
cional na bioenergia, energia solar, eólica offshore e hidrogênio verde.
Mas nem tudo está perdido. Com a eleição de Luiz Inácio Lula
da Silva para mais um mandato a partir de 2023, o Brasil terá chances
de colocar em prática uma nova estratégia de inserção econômica
internacional ativa e soberana, baseada em um projeto de desen-
volvimento sustentável pautado na redução de desigualdades e na
reindustrialização do país em novas bases tecnológicas e ambientais.
Temas como segurança alimentar e segurança energética deverão in-
tegrar essa nova agenda, bem como a proteção dos biomas nacionais.
O presente capítulo tem por objetivo contribuir para a constru-
ção desse novo projeto de inserção econômica internacional soberana
ativa. Dessa forma, o capítulo faz uma avaliação crítica das trajetórias

● 129 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

dos Governos Temer e Bolsonaro em determinadas áreas temáticas e


apresenta possíveis caminhos a serem seguidos. Em primeiro lugar,
serão abordados os limites do modelo que prioriza a expansão agroe-
xportadora e seus efeitos sociais e ecológicos nocivos em vistas ao
processo de desindustrialização da economia brasileira. Em seguida
é abordado o distanciamento do país, nos últimos anos, da agenda
de sustentabilidade. O texto segue discutindo as possibilidades
de transição energética e de reindustrialização do país. Por fim, as
imbricações entre as desigualdades, o capital financeiro e a política
cambial são abordadas, seguidas pelas considerações finais.

O beco dourado, mas sem saída


O debate acerca da inserção produtiva do Brasil na economia
mundial volta à tona com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva para mais um mandato. A existência de interesses de na-
tureza conflituosa resulta em uma disputa política, entre diferentes
setores da sociedade brasileira, em torno da escolha do projeto de
desenvolvimento nacional. Dentre esses interesses, destacam-se os
do setor agrário-exportador e do potencial industrial-tecnológico.
De um lado há uma dependência de trajetória de país periférico
que direciona as estruturas produtivas para uma pauta exportadora de
commodities, levando-o a ser uma “fazenda do mundo”. De outro lado,
o país passou por esforços vitoriosos de montar um parque industrial
diversificado, sonhando com a possibilidade de criar uma base endó-
gena de inovação tecnológica. O Brasil chegou, no passado, a passar a
produzir bens com maior valor agregado, tornando-se uma insurgente
potência industrial na região. Contudo, a conjuntura internacional nas
últimas décadas provocou uma constante desindustrialização, dando
um papel de liderança ao setor primário exportador, processo revertido
de forma parcial com políticas direcionadas durante os Governos Lula,
em particular com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Desde meados da década de 1980, o país vem perdendo participação
da indústria no seu PIB. Em 1985, a indústria manufatureira representava
24,5% do PIB e declinou até chegar a 11,30% em 2020 (ALVARENGA,
2022). Isso se deve a políticas econômicas adotadas ao longo dos anos
favoráveis, à redução do papel do Estado e ao mercado autorregulador.
A taxa de investimento brasileira (Formação Bruta de Capital Fixo/PIB),
por exemplo, está atrás da média mundial nas últimas décadas. Entre

● 130 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

os anos 2011 e 2015 a taxa média de investimento foi de 15,4% e em 2018


foi de mais de 10 p.p menor que a média mundial – apenas 19 países
ficaram atrás do Brasil (BALASSIANO, 2019).
A falta de investimento gera deficiência em médio e longo
prazo, diminuindo os postos de trabalho de qualidade e oportuni-
dades promissoras entre os jovens. Em suma, essas políticas vêm se
mostrando ineficazes para lidar com os problemas, e até mesmo o
FMI – historicamente a porta-voz de políticas liberalizantes – tem
recentemente colocado em discussão a importância do Estado para
fomentar a industrialização e a inovação. Em um de seus working papers,
destaca-se que os países que se industrializaram por meio da direção
estatal apresentam menor desigualdade de renda que economias
avançadas pautadas no livre mercado (CHERIF & HASANOV, 2019).
Assim, o Brasil voltou a se inserir na economia mundial como
exportador de produtos primários (principalmente soja, minério de
ferro e petróleo), como se pode observar na Tabela 1. A principal
produção e exportação do Brasil atualmente é a soja não processada,
que tem como maior importador a China.

Tabela 1 - Composição da Matriz Exportadora Brasileira em 2020

Categoria: Parcela da Matriz Exportadora:

Produtos agrícolas 39,36%

Minerais 23,47%

Serviços 12,18%

Produtos químicos 5,20%

Metais 4,68%
Veículos 4,04%
Outros 11,07%

Fonte: The Growth Lab at Harvard University (2020)

A escolha por esse tipo de inserção acarreta consequências, já que


o setor primário exportador gera pouco emprego e promove maior
concentração de renda se comparado a setores industriais. Esse setor

● 131 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

também possui pouca capacidade de encadeamento devido ao baixo


valor agregado nesses produtos e uso de tecnologias específicas. A
maior parte das exportações primárias é feita em seu estado natural,
quase sem nenhum processamento.
Ademais, a corrida pelo lucro fácil, desvinculado de um projeto
de desenvolvimento sustentável, junto com a crescente demanda por
produtos agrícolas, provocou uma expansão descontrolada das áreas
cultiváveis e o uso de recursos hídricos. Com o progressivo aprofun-
damento das crises climáticas, o aumento do estresse biótico e a maior
incidência de períodos de seca, aumenta-se a imprevisibilidade das
safras e dificulta-se a produção. A adoção de métodos agrícolas inten-
sivos com o uso excessivo de fertilizantes e a destruição da vegetação
nativa por meio da expansão da fronteira agrícola – e o consequente
impacto no ciclo da água –, degradam os solos de maneira irreversível.
Com isso, o modelo agroexportador representa uma ameaça para os
biomas e ecossistemas brasileiros e sua expansão coloca em xeque a
sua própria viabilidade a médio-longo prazo.
Além de corroborar com a degradação ambiental, tal modelo
de inserção agroexportador também contribui para a recorrência de
crises hídricas por meio da retirada da vegetação nativa. O Instituto
de Pesquisa Ambiental da Amazônia (2021) publicou que, nos anos
de 2019 a 2020, com o aumento do desmatamento foi visto um cenário
incomum de seca e queimadas.

O abandono da agenda de sustentabilidade


O período dos Governos Temer e Bolsonaro também é marcado
pela perda de protagonismo e liderança do Brasil na defesa e avanço
de pautas ambientais. O país, que vinha se fortalecendo em visibili-
dade no tema desde que sediou a II Conferência das Nações Unidas
sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio-92), presenciou
uma ruptura em sua política externa a partir de 2016, quando enfra-
queceu sistematicamente o avanço de ações de proteção à fauna e
flora nacional, assim como de populações que sofrem consequências
diretas da superexploração da natureza (tais como as indígenas,
ribeirinhas, seringueiras, quilombolas, dentre outras).
Do início do Governo Bolsonaro a julho de 2022, foram 42 mil
km2 desmatados nos biomas brasileiros, área equivalente ao estado

● 132 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

do Rio de Janeiro (VERENICZ, 2022). Em um processo constante de


deslegitimação das legislações e instituições ambientais existentes, a
ideologia neoliberal e bolsonarista passou a priorizar, principalmente,
a monetização da floresta – tal qual foi defendido por Ricardo Salles,
então ministro do Meio Ambiente, na COP25.
Além disso, a falsificação da realidade foi marcante nos últimos
anos, a partir de falas que atribuíram, por exemplo, incêndios flo-
restais a indígenas e caboclos, e que defenderam que os indígenas
não deveriam ter “nem mais um centímetro de terra”. A incoerência
deste discurso, porém, é facilmente comprovada: congressistas da
Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) foram importante apoio
de Bolsonaro durante as eleições de 2022 – justamente porque re-
presentam um dos setores mais beneficiados durante este período.
Sérgio Souza, presidente da FPA, declarou: “Nós não poderíamos
tomar outra decisão”.
Outro exemplo é o abandono dos compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil em torno dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) no âmbito da Agenda 2030 da ONU. Isso tem
motivos óbvios: os Governos Temer e Bolsonaro atrasaram o Brasil
na erradicação da pobreza (ODS 1), na defesa do trabalho decente
(ODS 8), na redução das desigualdades (ODS 10) e com relação à
participação da indústria de maior intensidade tecnológica, inovação
e infraestrutura (ODS 9). Para não dar visibilidade a esses retrocessos,
o Governo Bolsonaro simplesmente paralisou a Comissão Nacional
para os ODS (CNODS) que estava acompanhando a implementação
destes compromissos (VAZQUEZ, 2022).
Entretanto, a eleição de Lula abre as portas para a reversão desse
cenário. A construção de uma nova inserção econômica internacional
do Brasil pautada na transição ecológica e no protagonismo do país nas
pautas ambientais passa fundamentalmente pela transição energética
em direção à produção e adaptação da economia a fontes de energia
renováveis e sustentáveis. Nesse sentido, repensar o papel da Petrobras
oferece grandes oportunidades, conforme explicado a seguir.

Petrobras e a transição energética soberana


A Petrobras é uma empresa de economia mista e controle estatal.
A União é detentora de um terço do capital social da empresa, mas é

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

acionista controladora por deter mais de 50% das ações com direito
de voto, tendo, em tese, poder de orientar as políticas da empresa.
A trajetória da Petrobras ilustra muito bem o caminho trilhado pelo
Brasil nos últimos seis anos nos três âmbitos trabalhados neste capí-
tulo: desindustrialização, total descaso com a transição energética e
foco na lógica financista de curto prazo, e poucos beneficiários.
Em 2014, os investimentos do setor de Petróleo e Gás (P&G)
representaram 36% dos investimentos industriais brasileiros e 10%
dos investimentos totais do país (SCHUTTE, 2016). A partir de 2016 a
situação passou a ser muito diferente. No governo de Michel Temer foi
iniciada uma política de desinvestimentos (privatizações) que atendeu
aos interesses do mercado financeiro, empresas estrangeiras e acionis-
tas privados nacionais e internacionais. A organização “do poço ao
posto”, construída ao longo de setenta anos a partir de esforço público
e privado, foi liquidada (RAMALHO, 2021), restando uma política
petrolífera brasileira à mercê das flutuações dos preços internacionais.
Uma das primeiras ações tomadas contra a Petrobras foi o fim
da exigência de que ela fosse a operadora única dos blocos de explo-
ração do pré-sal – juntamente com o fim da participação mínima da
empresa nos leilões dos blocos. Duas medidas que visavam diminuir
a participação e comando da empresa na exploração do pré-sal.
A privatização da BR Distribuidora foi iniciada no Governo
Temer e concluída em duas etapas no Governo Bolsonaro. Com isso
o país perdeu o potencial de gestão soberana do abastecimento de
derivados, o que deveria ser considerado um bem de interesse pú-
blico. Somando as três fatias da empresa vendidas pela Petrobras, a
venda somou um total de R$ 24 bilhões. Já sob o nome Vibra Energia
– mas com o direito de uso da respeitada marca de postos BR – a
empresa privatizada teve lucro líquido de R$ 2,49 bilhões no ano de
2021. Isso sem entrar nos méritos do valor de toda a estrutura física
que pertencia à BR Distribuidora.
No Governo Bolsonaro, o processo de liquidação da Petrobras
continuou. No Plano de Negócios da empresa para o período 2020-
2024, estava prevista a venda de oito das 13 refinarias, o equivalente a
50% da capacidade de refino do país. A RLAM (Refinaria Landulpho
Alves), segunda maior do país, foi a primeira a ser vendida a um
fundo de investimento estatal de Abu Dhabi (Mubadala). A venda

● 134 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

foi por um valor 45% menor do que o seu valor de mercado e hoje é
a refinaria que pratica os preços mais altos de combustíveis do país.
No âmbito da transição energética, a Petrobras foi, novamente, na
contramão dos seus pares internacionais mais avançados. Em vez de
investir pesadamente nas fontes energéticas renováveis, como a energia
solar, eólica e na fronteira tecnológica do hidrogênio verde, caminhando
para se transformar numa empresa de energia, e não apenas de produção
de petróleo, a Petrobras não realizou grandes investimentos neste setor.
Pelo contrário, vendeu a PBio (Petrobras Biocombustíveis), que produzia
biodiesel, e limitou a maior parte dos seus investimentos na exploração
de petróleo, na contramão da tendência mundial.
A política de Preços de Paridade de Importação (PPI) adotada
pela Petrobras desde 2016 no início do Governo Temer ilustra a
lógica financista de curto prazo e benefícios para poucos (inclusive
estrangeiros) às custas do conjunto da sociedade brasileira. Sob a PPI,
os combustíveis nas refinarias da Petrobras são vendidos por preços
altos o suficiente para tornar viável a operação de importação – por
empresas privadas, sobretudo estrangeiras. Na prática, essa política
faz com que os preços de derivados de petróleo no Brasil sejam os
mesmos de uma situação hipotética na qual o país não tivesse petróleo
com custo operacional de extração baixo, capacidade de refino, nem
uma empresa estatal estruturada neste setor.
Com a continuidade da política de PPI, sob o pano de fundo
do aumento do preço do barril de petróleo com a retomada da ati-
vidade econômica pós-pandemia e o início da guerra da Ucrânia, a
Petrobras registrou recorde de lucratividade. O Brasil não seguiu as
políticas aplicadas em outros países (até no Reino Unido) de, diante
dos superlucros das petrolíferas, introduzir impostos específicos
(windfall profit tax). Pelo contrário, a empresa anunciou R$ 180 bi-
lhões de dividendos em 2022, valor ainda maior do que o lucro no
período, representando uma alocação de caixa bastante questionável.
A Petrobras deve fechar o ano de 2022 como a segunda maior paga-
dora de dividendos do mundo em valores absolutos. Vale lembrar
que dois terços desse montante vão diretamente para os bolsos dos
acionistas privados, dos quais metade são estrangeiros. Uma política
extremamente regressiva, concentradora de renda e sem nenhuma
visão estratégica de médio e longo prazo.

● 135 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

A retomada de uma Petrobras que esteja alinhada à inserção in-


ternacional soberana brasileira é fundamental. O primeiro passo para
isso é deixar de lado a PPI e a política de desmonte dos parques de
refino. Por ser atrelada ao dólar, a PPI manteve, de forma artificial, os
preços dos combustíveis no mercado interno em reais elevados, sem
considerar o custo de produção nacional. O fim da PPI representaria
um forte combate à desigualdade, uma vez que ela pressiona a renda
das famílias com os altos preços (a alta dos preços dos combustíveis
foi uma das maiores responsáveis pela inflação dos produtos básicos)
e distribui os superlucros para poucos acionistas. Além disso, teria
um efeito generalizado de redução dos custos de transporte de todas
as cadeias produtivas nacionais, tornando-as mais competitivas.
Para poder superar o atrelamento aos preços internacionais, é
fundamental que o Brasil volte a investir em capacidade de refino
e saia da situação atual na qual exporta cada vez mais petróleo cru,
mas continua dependendo de importação dos derivados (majorita-
riamente dos EUA).
É preciso também pensar na Petrobras em médio/longo prazo
como uma empresa de energia, seguindo a estratégia praticada por
outras empresas internacionais do setor energético, inclusive no pró-
prio Brasil. A Shell, por exemplo, prioriza o pré-sal, mas ao mesmo
tempo tem investido pesadamente em energia renovável (fotovoltaica
e eólica) por meio da marca Shell Energy, possuindo seis projetos de
geração de energia eólica offshore no Brasil já autorizados pelo Ibama.
Outro exemplo é o da Total, outra empresa que atua na exploração
de petróleo e gás no pré-sal, mas ao mesmo tempo, por meio da sua
subsidiária TotalEnergies, começou a explorar a oportunidade para a
implantação de projetos para produção de hidrogênio verde no Ceará.
O Brasil, como um país que possui grande incidência solar ao longo
do ano todo e também grande capacidade de geração eólica – inclu-
sive offshore –, tem um elevado potencial na área de hidrogênio verde
(que basicamente permite transformar essas fontes em combustíveis
que possam ser estocados e transportados).
O Brasil deve aproveitar a chance de promover (ou devolver)
o protagonismo também na transição energética com suas próprias
empresas, desenvolvendo capacidade tecnológica endógena e reconhe-
cendo os diferenciais e as vantagens do país para a produção de fontes
de energia renováveis (bioenergia, solar, eólica e hidrogênio verde).

● 136 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Todos estes setores nos quais a Petrobras precisa voltar a atuar


(expansão do parque de refino) e começar a atuar (energias renová-
veis) representam uma grande quantidade de investimentos a serem
realizados. Junto com a retomada da política de conteúdo local, isso
pode significar um grande impulso para uma reindustrialização
brasileira sob novas bases – sustentabilidade e transição energética,
tecnologia de ponta e geração de empregos de qualidade.

Por uma reindustrialização sustentável


Um projeto nacional que visa combinar desenvolvimento redu-
tor de desigualdades e transição ecológica é tão necessário quanto
complexo porque aponta para a necessidade de mudanças estrutu-
rais, a começar com diversificação de atividades econômicas. Nesse
processo, empregos são destruídos nos setores de alto carbono e
criados nos novos setores de baixo carbono. Frente a esse desafio é
preciso, como primeiro passo, retomar e expandir a capacidade de
planejamento e execução de políticas do Estado brasileiro em estreita
articulação com os setores privados nacionais e internacionais. Para
tanto, é necessário pensar em um programa industrial-tecnológico
que contempla objetivos de curto, médio e longo prazo. A questão
do financiamento é chave.
Uma janela de oportunidade profícua que se desdobra a partir
da transição energética é a inserção do Brasil no mercado de carros
elétricos, dada a centralidade que os automóveis possuem tanto na
sociedade quanto na emissão de gases estufa. Aqui está-se diante de
uma revolução na tecnologia para transporte individual motorizado
que combina investimentos em tecnologia para disputar mercados
com soluções que contribuem para alcançar a meta de zero-emissão.
Dados recentes demonstram que o comércio desse segmento
já representa 9% de todo mercado global de carros novos em 2021
– quatro vezes mais que em 2019. Países como a China triplicaram
seus números em comparação a 2020, chegando a 3,3 milhões após
anos de estagnação (IEA, 2022). A Europa aumentou em dois terços
ano a ano e, juntamente com a China, já representam 85% da venda
global do ano passado. Mesmo os Estados Unidos, que detêm só
10% do mercado, ultrapassaram o dobro de vendas em relação a
2020, chegando a 630 mil unidades. Inevitavelmente, todos esses
países supracitados têm empreendido profundos investimentos no

● 137 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

segmento, mobilizando vultuosas políticas industriais e tecnológicas


tanto para o desenvolvimento do mercado interno quanto para a par-
ticipação na disputa internacional. Nesse sentido, torna-se premente
para qualquer país que pretenda ampliar seus graus de soberania
econômica e internacional a participação ativa nessa disputa.
Contudo, enquanto o mundo se prepara para tornar a produzir
carros com emissão zero, inclusive com projeções para a futura proibi-
ção de venda de carros a combustão, o Brasil ainda não possui grandes
incentivos para o desenvolvimento nacional deste mercado. Com isso,
o país fica à mercê das decisões das montadoras, empresas multina-
cionais que tomam suas decisões a partir das suas estratégias globais.
Essa situação consiste numa grave subutilização das condições
brasileiras, na medida em que o setor automobilístico brasileiro repre-
senta 22% do PIB industrial, está entre os dez maiores mercados do
mundo e possui uma posição dominante no mercado sul-americano
(NOVO VAREJO, 2020). Ademais, a América do Sul possui aproxima-
damente dois terços das reservas de lítio do mundo, que é o principal
material para a produção das baterias de eletrificação, que poderiam
ser aproveitadas para fomentar cadeias produtivas regionais.
Apesar de o país atrair grandes quantidades de capital financei-
ro externo, esses apresentam movimento muito instável em função
de sua natureza de curto prazo, que visa a lucros imediatos. Por
outro lado, os investimentos internacionais produtivos das mul-
tinacionais não contribuem automaticamente com o aumento da
capacidade industrial-tecnológica endógena. Os centros decisórios
de investimentos e o uso dos lucros gerados estão fora do Brasil, e
não necessariamente levam em consideração a necessidade do de-
senvolvimento e os interesses nacionais.
Nos últimos 15 anos, o país foi um dos principais receptores de
investimentos das empresas multinacionais, chamados de Investi-
mentos Externos Diretos (IED), que se diferenciam dos investimentos
financeiros por, em tese, terem maior compromisso com o país onde
investem. Entre os países de origem desses IED despontam os euro-
peus, EUA, Japão e, cada vez mais, a China. Essas empresas vêm para
o Brasil para se aproveitarem das oportunidades, o que pode ou não
coincidir com os objetivos de desenvolvimento do país. Há, portanto,
uma margem de políticas governamentais muito importante, a exem-
plo da própria China, que avançou tecnologicamente exigindo formas

● 138 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

de transferência tecnológica dessas empresas. Há uma oportunidade


desperdiçada de articular e pactuar com essas empresas uma contri-
buição mais direta ao desenvolvimento tecnológico e agregação de
valor nas cadeias produtivas. Ou seja, o que falta ao Brasil, que já é
um grande receptor desses investimentos, é buscar uma integração
entre os IED e políticas para Pesquisa & Desenvolvimento (P&D).
Acordos comerciais e econômicos, como o que está sendo firmado
com a União Europeia, deveriam incluir mecanismos e compromissos
de desenvolvimento conjunto de tecnologia que acelerem o catching
up tecnológico do Brasil e garantam que o país não fique atrás na
corrida pela quarta revolução industrial-tecnológica em curso. E isso
deve ser articulado ainda com incentivos a investimentos em setores
com potencial de maior ganho de complexidade econômica.
O desafio, então, é procurar articular esses investimentos em
torno de prioridades que atendam aos desafios do país em curto, mas
também em médio/longo prazo. Isso só daria certo se houvesse esforço
estatal mobilizando e ampliando capacidades nacionais, pactuando
simultaneamente com diversos setores da sociedade. O Brasil, em um
novo governo, tem potencial e espaço para isso, podendo fazer políticas
expansionistas, como: uso proativo de compras públicas, linhas de cré-
dito para setores estratégicos e a reativação do papel de bancos públicos
como o BNDES – cuja missão principal ligada ao desenvolvimento foi
desarticulada nos últimos seis anos – e a Caixa Econômica Federal, em
particular na área de habitação de interesse social, entre outros. Além
disso, ainda há grupos de fomento como o Sistema Nacional de Fomento
(SNF), em que coexistem agências de fomento, bancos comerciais com
carteiras de desenvolvimento e bancos corporativos. Somam-se ainda
os investimentos em universidades e institutos federais para a formação
de mão de obra qualificada e geração de pesquisa aplicada.
Há saída para a situação que o país se encontra, mas é necessá-
rio o retorno do papel do Estado como planejador. Isso não significa
um Estado grande, mas sobretudo ágil e com elevada capacidade de
execução. Esses novos investimentos devem atender aos objetivos
de redução das desigualdades e de transição ecológica por meio
da industrialização do país com tecnologias verdes no plano da
Indústria 4.0. O fortalecimento de empresas nacionais de ponta é
parte da retomada das políticas industriais dos países centrais e não
há por que insistir em somente facilitar a entrada dessas empresas

● 139 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

internacionais no Brasil. Essas políticas são essenciais para garantir


que o Brasil participe da inovação global.
Para além dos aspectos ecológicos e tecnológicos, um novo
projeto soberano de inserção econômica internacional deve também
favorecer a população brasileira. Dessa forma, o combate à desigual-
dade, a redução da pobreza e o aumento do bem-estar são objetivos
essenciais de um novo projeto. Como será destacado a seguir, no pe-
ríodo dos Governos Temer e Bolsonaro, a implementação da agenda
econômica ortodoxa liberal apenas acentuou desigualdades no país e
proveu altos retornos ao capital financeiro nacional e internacional.

A agenda ortodoxa e o aprofundamento das desigualdades


No início da invasão russa à Ucrânia, o Brasil foi alvo do “roteiro
de carteira” dos investidores internacionais que buscavam oportuni-
dades de lucrar sem grandes riscos geopolíticos ou de instabilidade
política. Com uma taxa básica de juros da economia (a Taxa Selic) em
11,75% ao ano no mês de abril de 2022, de acordo com levantamento
realizado pela Infinity Asset, o Brasil apresentava naquele momento
a segunda maior taxa de juros real – quando a inflação é descontada
– do mundo, ficando atrás apenas da própria Rússia.
Observa-se que a inflação, desde o começo dessa guerra, vem
aumentando ao redor do mundo, inclusive no Brasil, em função da
disrupção de cadeias produtivas e insuficiências do lado da oferta.
Assim, o aumento dos juros, que explodiu de 2% ao ano em fevereiro
de 2021 para 13,75% ao ano em setembro de 2022, mais do que atrair
capital estrangeiro especulativo, segue cegamente o roteiro ortodoxo
de combate à inflação.
Desde a derrubada da presidente Dilma, em 2016, há um pro-
cesso de aprofundamento da agenda neoliberal que atingiu ápice
com o ultraliberalismo do ministro da Economia Paulo Guedes. Em
2017, no Governo Temer, o Brasil realizou reforma trabalhista com a
promessa de que a redução dos custos para os empregadores eleva-
ria os postos de empregos no Brasil. Mas não foi isso que aconteceu
de fato. Na prática, os trabalhadores perderam uma parte de seus
direitos, a terceirização tornou-se possível para serviços fins e não
apenas para serviços meio (ou seja, até então não era possível em-
pregar um funcionário terceiro em um posto na produção de uma

● 140 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

empresa, apenas em cargos como segurança e limpeza), os sindicatos


foram enfraquecidos e a pejotização também se expandiu. A despeito
disso, o desemprego não sofreu redução: ele estava em 11,5% em
2016, encerrou 2017 em 12,7% e 12,3% em 2018, de acordo com a
PNAD Contínua. É verdade que a pandemia do covid-19 impactou
no aumento do desemprego e da informalidade, contudo é verdade
também que a reforma trabalhista realizada, via desoneração do se-
tor privado, não foi capaz de criar novos postos de trabalho, menos
ainda em setores qualificados, conforme prometido.
Além disso, as taxas referidas anteriormente podem estar su-
bestimadas, sobretudo, após a reforma trabalhista ter sido aprovada.
Isto porque uma parcela da população brasileira encontra-se em
desalento, isto é, quando desistem de procurar emprego e, por isso,
deixam de ser classificadas como desempregadas. Há também uma
parcela que possui postos de trabalho, mas encontra-se em situações
precárias. É o caso dos entregadores de aplicativos de refeição: eles
não possuem locais para refeição, direito a férias, assistência médica,
e costumam realizar longas jornadas de trabalho. Mas, dada a ausên-
cia de postos de trabalhos formais, a informalização via aplicativo
torna-se cada vez mais uma alternativa. Assim, os empregos criados
nos últimos dois anos do Governo Bolsonaro foram com menor sa-
lário real e menos direitos. E isso em um contexto no qual em vários
países, inclusive nos EUA de Joe Biden, mas também na Espanha e
no México, começou-se a questionar o impacto da receita neoliberal
sobre o mundo de trabalho e os efeitos negativos para a coesão social
da contínua precarização das relações de trabalho.
Os resultados das políticas de liberalização que seguem o roteiro
ortodoxo são bem claros já em 2022. De acordo com o Global Wealth
Report 2022, relatório do insuspeito Credit Suisse sobre a riqueza glo-
bal, o número de milionários brasileiros vai crescer em mais de 100%
nos próximos cinco anos. Esse número contrasta fortemente com o
2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da
Pandemia da Covid-19 no Brasil, feito pela Rede Brasileira de Pesquisa
em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e
pelo Instituto Vox Populi, que destaca que o número de pessoas que
vivem com fome no Brasil chegou a 33 milhões em junho de 2022.
De acordo com o relatório ‘’Pobreza e Prosperidade Comparti-
lhada 2022’’, do Banco Mundial, em 2020, ano do início da pandemia,

● 141 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

1,9% da população brasileira estava em situação de extrema pobreza,


dado menor que o de 2019, que aponta 5,4% da população nessa
situação. O que ocasionou tal mudança foram justamente as políti-
cas públicas orientadas ao combate à pandemia, e que impactaram
a distribuição de renda no país, como os auxílios emergenciais.
Contudo, em 2021, o indicador novamente piorou e chegou a um
patamar mais alto que em 2019, atingindo 5,8% da população. Em
2022, mesmo frente a uma nova rodada de auxílios do Governo Bol-
sonaro aprovados com o objetivo de angariar apoio eleitoral, longe
do nível atingido em 2020, a previsão é de 5,1%.
Assim, nota-se em curso, no Brasil, um processo de aumento das
desigualdades, manutenção de altos níveis de pobreza, deterioração
das normas e condições de trabalho. Por mais que a pandemia de
covid-19 tenha atingido seu pico durante os anos do Governo Bolso-
naro, isso não é justificativa para tamanha deterioração das condições
sociais, fruto, em grande medida, da aplicação do receituário liberal
ortodoxo, da insuficiência de resposta do governo aos efeitos da
pandemia, e da ausência de políticas públicas voltadas às parcelas
mais pobres da população brasileira.
Paralelamente a isso, no mesmo ano de 2017, o Governo Temer
encaminhou uma solicitação formal para a entrada do Brasil na
OCDE, movimento este em consonância com a agenda liberal levada
a cabo por seu governo. Em certa medida, as reformas trabalhista e
da previdência, assim como o teto de gastos (que entrou em vigor
no mesmo ano), são políticas implementadas que se alinham com as
“boas práticas” preconizadas por esta organização (conhecida como
o “clube dos ricos”) e que supostamente reduzem o chamado “custo
Brasil” e atraem capitais estrangeiros.
Dois instrumentos legais adotados pela OCDE que ilustram
bem tais políticas e boas práticas são o Código de Liberalização de
Operações Correntes de Intangíveis (OECD/LEGAL/0001) e o Código
de Liberalização de Movimento de Capitais (OECD/LEGAL/0002).
Como o nome sugere, os Códigos têm como objetivo a eliminação de
restrições às transações e transferências de invisíveis, denominadas
operações de intangíveis, e a liberalização do movimento de capitais
entre os membros.
Um objetivo central para se querer agilizar a entrada do Brasil
na OCDE é justamente para condicionar futuros governos a essas

● 142 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

diretrizes do pensamento econômico liberal, que tomariam a forma


de obrigações assumidas pelo Estado brasileiro.
Diante desse cenário, é necessário pensar formas de retomar
a participação do Estado no desenvolvimento e no combate às de-
sigualdades, de forma a criar e fomentar políticas que sirvam aos
interesses da população e não mais entreguem riqueza fácil nas mãos
do capital financeiro, em associação passiva ao sistema financeiro in-
ternacional, de forma a perpetuar a condição de subdesenvolvimento
do Brasil. Alianças com outros países, organizações e movimentos
internacionais que buscam priorizar o desenvolvimento e a justiça
social fazem parte desse esforço para se contrapor a pressões externas
articuladas com os interesses financeiros internos. É preciso inovar e
ousar também nas políticas econômicas internacionais que impactam
na realidade econômica e social nacional.

Uma inserção internacional em prol


da redução das desigualdades
Os interesses financeiros não podem ficar fora dessa discussão
e envolvem também atores internacionais. O caso dos dividendos
da Petrobras, apresentado anteriormente, mostra a perversidade
e regressividade da lógica atual. É preciso que o Estado assuma a
sua responsabilidade e introduza impostos específicos sobre lucros
extraordinários, ainda que introduza taxação sobre os dividendos
pagos aos investidores. No caso, o Brasil é um dos poucos países no
mundo onde isso não acontece.
Da mesma forma, está na hora de a sociedade brasileira discutir
a taxação sobre exportações de commodities, como petróleo, minério
de ferro e soja. Essas exportações garantem um expressivo superávit
na balança comercial, mas essa riqueza é concentrada e convive com
preços altos desses mesmos produtos para a população local. Até
quando há de se aceitar que é “responsável” que um setor minoritário
ganhe bilhões com a exportação do agronegócio atendendo mercados
internacionais em todos os cantos do mundo, enquanto no próprio
Brasil milhões passam fome?
A potência de produção agrícola do Brasil deve atender também
a essa demanda. Uma taxação sobre a exportação é parte do esforço
de reverter essa lógica perversa. Ela diminui os superlucros sem

● 143 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

repasse ao consumidor interno. Pelo contrário, ao se reduzir o lucro


na atividade de exportações, reduz-se o patamar do lucro exigido para
abastecer o mercado interno, e logo os preços se tornam acessíveis a
maior parte da população, possibilitando que o trabalhador possa “sa-
borear uma picanha” no churrasco em família. Há de se lembrar que,
da mesma forma que os investidores financeiros na bolsa de valores
não pagam impostos sobre seus ganhos (os dividendos), também os
setores extrativo e agropecuário são menos tributados que os demais.
Daí que vem o entusiasmo desses setores com os governos neo e ultra-
liberais que se instalaram depois da derrubada da Dilma. Observa-se
aqui que a lógica é socializar os ganhos extraordinários que derivam
das riquezas do Brasil, e não colocar em risco a produtividade desses
setores. É preciso enfrentar os interesses nacionais e internacionais que
conspiram contra a justiça e a progressividade tributária.
Outra frente a ser explorada é questionar a completa liberdade
do capital de curto prazo entrar e sair do país a seu bel-prazer, sem
se preocupar com as consequências econômicas, e, sobretudo, sociais.
Os setores financeiros internacionais sempre defendem a política a
do câmbio flutuante como “a melhor”, com a menor intervenção
possível sobre a volatilidade do dólar, situação evidenciada a partir
da adoção da lei sobre a autonomia do Banco Central e do Novo
Marco Cambial, no início de 2021. O estabelecimento deste último
transferiu ao Bacen diversos poderes do Conselho Monetário Nacio-
nal, como a regulação de operações de câmbio, contratos futuros de
câmbio, organização e fiscalização de corretoras de valores, bolsas
e de câmbio, e deu também ao banco a possibilidade de determinar
as condições para se manter moeda estrangeira no país.
Essa forma de tratar a política de câmbio, somada a uma taxa
de juros estruturalmente elevada e a uma excessiva desregulamen-
tação do mercado de câmbio, deixa o país vulnerável à especulação
financeira, particularmente nos períodos de desaceleração econômica
(ROSSI, 2016). O câmbio tem impacto direto no dia a dia de toda a
população, uma vez que sua taxa afeta o nível de preços, o controle
de estoques e as expectativas dos investimentos.
Políticas cambiais mais ativas, que reduzem a volatilidade da
flutuação do câmbio, vêm sendo cada vez mais reconhecidas em
âmbito internacional e têm se mostrado eficazes para combater a
vulnerabilidade e realizar o manejo da inflação em tempos de crise.

● 144 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Uma solução contra essas restrições do balanço de pagamentos


e os malefícios dos movimentos do capital, especulativos ou não, tem
sido a acumulação de reservas internacionais por parte dos países
em desenvolvimento. O Brasil começou a montar essa muralha de
defesa no segundo Governo Lula (2017-2010). Atualmente, o Brasil
conta com uma reserva de aproximadamente US$ 326 bilhões. Esses
são estocados basicamente na forma de títulos de dívida pública
estadunidense, o que garante alta liquidez. A contrapartida é que,
por serem investimentos de baixíssimo risco, estes títulos também
apresentam baixa rentabilidade.
A experiência internacional mostra que grande parte dos paí-
ses que possuem reservas internacionais voluminosas, como as do
Brasil, busca diversificar sua aplicação por meio de Fundos Sobe-
ranos que operam internacionalmente. Caso da Noruega, China e
Abu Dabi, entre outros. Está na hora do Brasil reativar o seu antigo
Fundo Soberano do Brasil. Os objetivos desse fundo poderiam ser
diversos, desde o mero aumento do rendimento das reservas para o
combate às crises cíclicas do capital até uma atuação ativa financian-
do investimentos produtivos em USD de interesse para a economia
brasileira, por exemplo, os projetos de infraestrutura sul-americanos
em cooperação com os bancos de desenvolvimento que operam na
região. Quando inaugurado em 2008, pelo presidente Lula, o antigo
Fundo Soberano do Brasil também contava com a participação de
empresas que podiam destinar recursos ao fundo, mas infelizmente
este projeto foi extinto por medida provisória em 2018, ilustrando
novamente o caráter liberalizante das políticas do Governo Temer.
Além disso, destaca-se que as reservas poderiam ser mais di-
versificadas em termos da distribuição por moedas, uma vez que,
atualmente, 80,34% das reservas estão em dólares. Considerando
que a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil há mais
de uma década, o candidato natural seria o renminbi. A isso pode se
juntar o uso das moedas nacionais nas transações comerciais entre
o Brasil e a China por meio da atualização do acordo de Swap. Um
estudo do Centro Empresarial Brasil-China mostra que isso leva a
uma redução dos custos, o que facilita também o acesso de empresas
brasileiras ao mercado chinês e abre espaço a empresas brasileiras
que hoje não exportam para a China (CEBC, 2021).

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Dessa forma, uma política cambial mais ativa e a alocação das


reservas para um uso mais estratégico em um fundo soberano são po-
líticas que contribuem para combater a desigualdade, controlar lucros
exorbitantes do setor financeiro e proteger o país de vulnerabilidades
advindas dos movimentos voláteis do capital. Contudo, elas devem
compor apenas uma parte de um projeto maior de desenvolvimento
e combate às desigualdades. Uma inserção econômica internacional
redutora de desigualdades e promotora da transição ecológica só
obterá sucesso se estiver alinhada a um conjunto de políticas públicas
nacionais que visem ao mesmo objetivo.

Considerações finais
A inserção do Brasil na economia mundial seguiu, nos últimos
seis anos, a lógica neoliberal que orientou os Governos Temer e
Bolsonaro em sua política interna e teve como ponto de partida o
documento “Ponte para o Futuro”, apresentado em 2016, pelas forças
antipopulares. Para implementar essas políticas, era precisa derrubar
o Governo Dilma, democraticamente eleito.
A característica principal dessa inserção era que o Estado de-
veria abdicar de qualquer política para influenciar ou, ainda menos,
contrapor-se às forças e interesses do mercado. Essa liberdade para
o capital internacional, produtivo e financeiro, em sintonia com os
interesses financeiros nacionais, implicava até impunidade em rela-
ção ao uso selvagem das riquezas naturais do Brasil, em particular
da floresta amazônica.
Organismos estatais como o BNDES foram desvirtuados e
perderam seu caráter desenvolvimentista. Suas operações internacio-
nais foram até criminalizadas, para felicidade de seus concorrentes
internacionais. A Petrobras, com grande potencial para impulsionar
investimentos produtivos e contribuir com a transição energética, foi
subordinada a uma lógica de ganhos financeiros de curto prazo, em
especial para seus acionistas privados, que controlam dois terços do
capital social da empresa.
Quem ganhou com essa política foram os setores financeiros
e aqueles ligados aos setores primários, exportadores e o capital
internacional, que aproveitou as oportunidades criadas para lucrar.
Não se trata de questionar a contribuição que o capital produtivo

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

internacional possa dar ao desenvolvimento do país, mas na ausência


de um programa e de planejamento, estes operam unicamente dentro
da sua busca de maior rentabilidade, de acordo com suas estratégias
elaboradas internacionalmente, que não necessariamente coincidem
com objetivos de desenvolvimento sustentável do país.
A total falta de preocupação com a sorte das massas populares
faz que com o país venha acumulando paradoxos inaceitáveis e in-
sustentáveis. Por exemplo, ser um grande produtor e exportador de
alimentos e ter mais de trinta milhões de pessoas passando fome. Ou,
sendo um grande produtor e exportador de petróleo cru, importar
derivados de petróleo e submeter-se à flutuação de preços interna-
cionais em dólar, sem considerar os baixos custos operacionais do
pré-sal, o que levou milhões de pessoas a trocar gás por lenha.
Para agradar os interesses financeiros e “melhorar o ambiente
de negócios”, assistimos nesses anos a ataques aos direitos sindicais e
trabalhistas. Como consequência, houve uma queda não só real, mas
até nominal dos salários e um aumento da já chocante desigualdade
de renda, o que vai gerando mais desigualdade de riqueza.
Essas políticas todas destoam inclusive de algumas tendências
internacionais que possam servir de inspiração para o novo governo.
Em primeiro lugar, há uma corrida nos países industrializados para
não ficar atrás diante da quarta revolução industrial-tecnológica,
também conhecida como Indústria 4.0, com mobilização de investi-
mentos públicos articulados aos do setor privado. No mundo inteiro
há uma revalorização da necessidade de ter uma base manufatureira
forte e um consenso de que a desindustrialização foi longe demais
e atendeu sobretudo a interesses financeiros. No Brasil, os liberais
ficaram com uma visão do mundo da década de 1990, achando que
a desindustrialização é “moderna”. Ainda há a experiência chinesa,
que está sendo reproduzida, de pactuar com as empresas multina-
cionais investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação que
possam impulsionar capacidades endógenas. No caso do Brasil, isso
deveria ser pensado para o setor automobilístico, que está passando
por uma revolução tecnológica ligada diretamente aos objetivos de
zero-emissão. A América do Sul detém grandes reservas de vários
insumos estratégicos, como o lítio. Há de se pensar formas de apostar
em capacidade industrial para participar não só como consumidora
dessas inovações.

● 147 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Há também um crescente questionamento do impacto de


quarenta anos de neoliberalismo sobre a coesão social, com a preca-
rização da mão de obra e a crescente desigualdade. Isso se expressa
em mudanças em legislação trabalhista pró-trabalhador, aumento
do salário-mínimo e avanço de propostas tributárias progressivas,
inclusive no âmbito internacional, com impostos sobre multinacio-
nais. Outra tendência relevante para pensar saídas para o Brasil é a
transformação das petrolíferas em empresas de energia. A Petrobras
foi justamente na contramão, por ter sido submetida a uma lógica
financeira de curto prazo. E, no caso brasileiro, há um mundo a
conquistar, com a abundância do potencial de energias renováveis,
etanol, eólica, solar e o hidrogênio verde em particular. Essa riqueza
poderia ser apropriada em benefício do desenvolvimento sustentável
e tecnológico do Brasil.
A retomada de políticas industrial-tecnológicas precisa estar
em sintonia fina com medidas macroeconômicas, por exemplo, no
que diz respeito a políticas cambiais mais ativas e de crédito que es-
timulem investimentos e inovação. E ainda um uso mais inteligente
das reservas internacionais, seguindo a experiência internacional
com Fundos Soberanos. Em um novo projeto para o Brasil, há sem
dúvida espaço importante para o agronegócio, mas submetido a
rígidas exigências ambientais e de saúde pública. Inclusive pode-se
aproveitar mais a pujança desse setor para estimular encadeamentos
industriais, até na indústria naval, e incentivar a formação de traders
brasileiros capazes de concorrer internacionalmente, por exemplo.
Os desafios são muitos e passam por uma reconexão com o que
há de mais positivo nas experiências e iniciativas internacionais. E
também por uma retomada da integração regional para aproveitar
melhor os recursos disponíveis e otimizar negociações com interesses
extrarregionais. O importante é priorizar, dentro de um planejamento
que liga o curto ao médio/longo prazo e olhar para tod@s, não so-
mente para interesses de grupos privilegiados.

● 148 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Bibliografia
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mais participação no PIB e agronegócio ganha protagonismo. G1.
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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

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Acesso em: 17 nov. 2022.

● 150 ●
Quatro anos de Governo Bolsonaro –
Forças Armadas e protagonismo político

Flávio Rocha, Anna Bezerra, Diego Jatobá, Felipe Lelli,


João de Oliveira, Julia Lamberti, Lais Surcin, Larissa Gradinar,
Lucas Ayarroio, Roberto Silva, Tarcízio Melo, Vinícius Bueno (95)

Introdução
Em quatro anos de existência, o Governo Bolsonaro testemu-
nhou um avanço sem precedentes das Forças Armadas sobre a
máquina pública governamental. Os militares literalmente exerceram
uma prática de ocupação de espaços de poder, dirigindo ministérios
estratégicos, as estatais mais importantes e preenchendo cargos de
segundo e terceiro escalão. Como se não bastasse, o presidente tratou
de veicular uma ideologia de extrema-direita e contou com o silêncio
cúmplice do estamento militar.
Exército, Marinha e Aeronáutica foram interlocutores cons-
tantes do poder executivo com o congresso e o judiciário. Desde o
primeiro dia da presidência de Jair Bolsonaro, os militares estiveram
no centro das decisões e articulações políticas. Foram instrumentais
em negociações com os parlamentares, especialmente no período em
que ocuparam a chefia da Casa Civil com os generais Walter Braga
Netto e Luiz Eduardo Ramos.
Na economia, não houve nenhuma grande contraposição com
o grande empresariado. Pelo contrário, os oficiais generais trataram
de azeitar as relações do governo com o grande capital. Dois exem-
plos são a política de preços da Petrobras, quando essa foi presidida
pelo general Silva e Luna, e a defesa dos interesses do agronegócio,
dentro e fora do Brasil, como pode-se observar de várias declarações

(95) Pesquisadoras e pesquisadores do GT de Segurança e Defesa do Opeb

● 151 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

do vice-presidente, o general Hamilton Mourão, ou de estudos e


documentos produzidos com o patrocínio dos próprios militares e
que defendiam a visão do setor agroexportador. Não houve nenhu-
ma declaração mais nacionalista dos militares na defesa de estatais
brasileiras, ou uma ação contra as privatizações efetuadas sob o co-
mando do ministro Paulo Guedes, algo que simboliza a adesão das
três Forças Armadas ao credo ultraliberal.
Nas tarefas mais propriamente “militares”, ou seja, a execução
das funções relativas à defesa nacional, houve um insulamento buro-
crático quase que total. O estamento militar simplesmente excluiu a
supervisão política civil sobre as suas atuações, a começar pelo firme
comando que exerceram no Ministério da Defesa. Desde o último
ano do Governo Temer, foi um general que comandou a pasta, o
que acentuou ainda mais a militarização do setor securitário, algo
que foi na contramão do que se pratica em democracias liberais que
são, elas mesmas, potências militares, como os EUA, a França ou o
Japão. Não houve nenhuma grande discussão pública no Congresso
Nacional, na academia e no sistema político brasileiro sobre projetos
nacionais na área de defesa.
Esse insulamento militar na área da defesa, bem como a pro-
funda participação do elemento fardado no governo da república,
teve impactos na política externa e na política doméstica brasileira.
O alinhamento do Governo Bolsonaro com os Estados Unidos,
país presidido por Donald Trump, contou com um apoio forte,
quando não entusiasmado, do alto comando das Forças Armadas.
Dois exemplos: o acordo de cooperação exclusiva com os EUA para
a exploração da base de Alcântara, que contou com o aval da FAB,
e os frequentes os encontros e discussões de cooperação entre os
militares brasileiros e suas contrapartes norte-americanas. A maior
parte desses encontros aconteceu no âmbito do Comando Sul dos
Estados Unidos (U.S. Southern Command), onde há, desde 2019, um
general brasileiro em posto de comando e subordinado a autorida-
des estadunidenses). Além dos contatos, manobras conjuntas foram
realizadas tanto em território estadunidense como em território
brasileiro. Na política doméstica, foi fortalecida a percepção de
que as Forças Armadas estavam exercendo um histórico poder de
tutela sobre o poder civil, algo que gera dúvidas sobre a solidez da
democracia no Brasil nos anos vindouros.

● 152 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Quando Donald Trump foi derrotado pelo democrata Joe Biden,


o presidente Bolsonaro tomou decisões desastradas contra o vitorio-
so, lançando dúvidas sobre a lisura das eleições norte-americanas. O
esfriamento da relação entre os governos brasileiro e estadunidense
foi uma consequência natural, mas simplesmente não houve nenhum
reflexo negativo na cooperação entre as Forças Armadas de ambos os
países. Do lado de Washington, fazia todo o sentido manter a ligação
com os militares brasileiros, especialmente por conta do acirramento
da competição com a China e a Rússia, enquanto do lado das Forças
Armadas a lógica estava em reforçar seu poder doméstico e sua in-
fluência sobre o próprio Governo Bolsonaro.
No capítulo que se segue, será feita uma síntese da atuação das
Forças Armadas brasileiras no Governo Bolsonaro. Ela está dividida
em duas partes: na primeira, há uma discussão sobre os militares
na política doméstica, que leva em conta a participação na direção
do estado e em momentos importantes na história nacional recente,
como a pandemia do covid-19 e as eleições presidenciais de 2022. Na
segunda, há uma análise dos militares no âmbito da política externa
e da política de defesa, e que também leva em conta eventos impac-
tantes como a guerra da Ucrânia. Ao final, uma breve conclusão feita
de modo a amarrar as discussões.

Militares e política doméstica


Os militares são atores presentes na vida política brasileira
desde o Império. Segundo FUCILLE (2019), “foi a partir da guerra
do Paraguai, ainda no século XIX, que as Forças Armadas brasileiras
passaram a ter crescente importância política e militar.” Em diferentes
momentos, os militares interferiram no cenário político nacional. CAR-
VALHO (2019) destaca que “as forças armadas intervêm em nome da
garantia da estabilidade do sistema político; as intervenções dificultam
a consolidação do sistema político”. Na redemocratização, as Forças
Armadas mantiveram influência sobre os governos civis, e se posicio-
naram estrategicamente a manter o seu status e a tutela da vida política
do país. Segundo ZAVERUCHA (1994), “os militares abandonam o
governo, mas continuam mantendo áreas autônomas de poder político
(enclaves autoritários) à margem da fiscalização democrática. Resulta
daí que os governos civis devem continuamente medir a reação dos
militares às suas decisões”. Portanto, os militares continuaram gozando

● 153 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

de autonomia nas áreas de segurança e defesa, além de influência e


importância política (VASCONCELOS FILHO, 2021).
Durante o segundo governo da presidenta Dilma Rousseff, vo-
zes militares como as dos generais Eduardo Villas Boas e Hamilton
Mourão passaram a falar e interferir abertamente na política nacional.
Nas eleições de 2018, defenderam a candidatura de Jair Bolsonaro e
houve a pressão, por parte de Villas Boas, sobre o Supremo Tribunal
Federal (STF) para que inviabilizasse a candidatura de Luiz Inácio
Lula da Silva. A ascensão do candidato militarista foi oportuna para
a caserna. Para OLIVEIRA et al. (2019), os “militares apoiaram Bol-
sonaro porque vislumbraram uma possibilidade de voltar a atuar
diretamente no governo, e por suas considerações corporativas como
soldos, previdência e seus interesses em termos de política externa”.
Após a eleição de Bolsonaro, os militares preencheram mais de
seis mil cargos civis, em dados de julho de 2020 (SCHMID, 2022), e
se beneficiaram de outras benesses do governo federal, como aumen-
tos de soldo e uma preservação de seu sistema de aposentadoria. O
papel das Forças Armadas no Governo Bolsonaro foi o de preservar
o status quo vigente para que não ocorressem mudanças políticas e
sociais que pudessem colocar em risco seus interesses, que podem ser
sintetizados em obtenção de prebendas, aumento do orçamento para o cum-
primento da sua função institucional e, principalmente, a manutenção do seu
histórico poder político de tutela sobre os governos civis. Nesse processo,
também procuraram uma articulação com os interesses de parcelas
mais conservadoras e ricas da sociedade, como o agronegócio.
No contexto interno das três forças armadas, o Exército (EB)
se provou o ator mais influente com a ocupação de vários cargos
na administração pública. A importância do exército denota o peso
majoritário da força nas decisões governamentais. Pode-se auferir
empiricamente este fato com a ocupação do Ministério da Saúde,
com o general Eduardo Pazuello, durante a expansão da epidemia
do coronavírus. De modo geral, a mídia cobriu pouco a atuação e
opiniões da Marinha e Aeronáutica durante o mandato de Bolso-
naro. Esse fato – predominância da força terrestre sobre as demais
instituições militares – pôde ser verificado nas especulações acerca
da escolha dos futuros comandantes pelo presidente Lula: há mais

● 154 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

interesse sobre quem comandará o Exército do que sobre os futuros


dirigentes da Marinha e da FAB(96).
Além dos cargos nos ministérios, militares também ocuparam
as estatais, sendo emblemético o caso da Petrobras. A companhia
sofreu fortes pressões políticas em razão dos sucessivos aumentos
dos preços dos combustíveis. Em 2021, o Senado Federal já questio-
nava o presidente da estatal, general Joaquim Silva e Luna, sobre a
política de preços da empresa. O general também tratou de distribuir
militares pela administração da estatal(97). O general Silva e Luna
acabaria por ser demitido do comando da empresa. Entre indecisões
no perfil do presidente da estatal que deveria substituir Silva e Luna
– um militar ou um civil –, Bolsonaro terminou responsabilizando o
então ministro das Minas e Energias, o almirante Bento Albuquerque,
pela situação indefinida da presidência da Petrobras. A presidência
da petroleira terminou ficando com o ex-secretário do Ministério das
Minas e Energias, José Mauro Coelho. Apesar de o novo dirigente ser
oriundo do mercado, os militares tiveram influência em sua escolha.
Ainda na economia, e com repercussões na política externa, houve
a ameaça do embaixador norte-americano contra o Brasil caso fosse
permitida a participação da Huawei no leilão do 5G(98). O vice-pre-
sidente, Hamilton Mourão, entrou em cena afirmando não temer
tais consequências e que a empresa chinesa já atuava fortemente na
rede nacional de 4G(99).
Outro momento que demonstra a centralidade do dispositivo
militar para a própria existência do Governo Bolsonaro foi a proposta
de orçamento que deixaria o Ministério da Defesa com mais verba
que o MEC(100). Pela proposta, a área de defesa teria um acréscimo
de 48,8% do orçamento em relação ao ano de 2019. O aumento do
orçamento da defesa em conjunto com a redução dos recursos para o

(96) https://g1.globo.com/politica/blog/valdo-cruz/post/2022/11/29/ministro-da-defesa-
e-comandantes-das-forcas-armadas-devem-anunciados-na-proxima-semana.ghtml
(97) https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/09/01/silva-e-
luna-militariza-cupula-da-petrobras.htm
(98) https://oglobo.globo.com/economia/embaixador-dos-eua-alerta-que-se-brasil-
permitir-chinesa-huawei-no-5g-enfrentara-consequencias-24555785
(99) https://www.istoedinheiro.com.br/brasil-nao-teme-consequencias-em-
disputa-por-5g-diz-mourao/
(100) https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-da-defesa-deve-ter-
mais-dinheiro-do-que-a-educacao-em-2021,70003401862

● 155 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

MEC gerou desgaste dos militares junto a parcelas da opinião pública


e de outras áreas da burocracia federal. Nesse sentido, entende-se que
as partes polêmicas contidas nos documentos da Estratégia Nacional
de Defesa, lançados em sua versão inicial em 2020 e que apontavam
para a possibilidade de conflitos na América do Sul, foram feitas
para justificar a reivindicação de mais verbas para o setor militar(101).
A pasta da defesa não era mais controlada pelos civis, logo houve
pouca, ou nenhuma, supervisão do poder civil.
Dentre os setores que sofreram profundas influências militares
está a Inteligência de Estado. No Governo Bolsonaro, o setor cresceu
em importância sob a liderança do general Augusto Heleno, do GSI
(Gabinete de Segurança Institucional). O Sisbin (Sistema Brasileiro de
Inteligência) atingiu o seu auge no atual governo com 48 órgãos(102). O
objetivo era manter uma ampla estrutura de informações estratégicas,
ocupar cargos da administração pública com oficiais de inteligência,
além de investigar desafetos políticos de Bolsonaro e familiares. Com
a vitória do candidato do PT nas eleições de 2022, setores do novo
governo discutem a possibilidade de, em algum momento do futuro,
desvincular a área de inteligência da influência dos militares, mas
não há nada certo quanto a isso, além, é claro, do fato de que várias
instâncias do partido querem reduzir, ao máximo, qualquer possibi-
lidade de choque com os fardados. A Abin vive em constantes atritos
internos entre setores civis e militares na gestão do órgão.
Durante a pandemia de covid-19, a gestão do combate à doença
sofreu todo tipo de interferência política e militar do Governo Bolso-
naro. As recomendações do primeiro Ministro da Saúde, Henrique
Mandetta, colidiram com a postura negacionista do presidente Jair
Bolsonaro. Os militares buscaram intermediar a relação entre ministro
e presidente com a formação de um grupo interministerial, o Centro
de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19. O
grupo era formado essencialmente por militares, comandados pelo
então chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto. A imagem
de bons gestores dava lugar a uma briga de egos, autoritarismo

(101) Governo Federal, Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de


Defesa. https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/copy_of_estado-e-defesa/
pnd_end_congresso_.pdf
(102) https://veja.abril.com.br/coluna/jose-casado/em-expansao-abin-incorpora-
servidores-e-dados-de-48-orgaos-federais/

● 156 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

velado, posturas anticientíficas e indícios de corrupção em plena


pandemia(103). O resultado negativo foi a imediata saída de Mandetta,
seguida pela rápida passagem de Nelson Teich e a consolidação do
general Eduardo Pazuello no cargo de Ministro da Saúde. A formação
militar de Pazuello agradou as Forças Armadas e Bolsonaro, mas foi
desastrosa na condução da crise. O general não tinha experiência com
saúde pública, era muito dependente dos militares do alto comando
e simpático à postura negacionista do presidente(104).
Na gestão Pazuello no Ministério da Saúde, dos 25 cargos ocu-
pados por militares, 21 não possuíam experiência na área (SOUZA,
2020). Souza (2020) evidencia o compromisso da gestão militarizada
do Ministério da Saúde com as pautas negacionistas do Governo
Bolsonaro. O envolvimento militar na má gestão da pandemia do
Sars-covid-2 afetou a distribuição de insumos aos hospitais e a aqui-
sição de vacinas, além de elevar a produção de hidroxicloroquina no
laboratório químico- farmacêutico do Exército. A contratação dos
militares para substituição de servidores foi iniciada na gestão Teich,
e teve continuidade com o general Pazuello (SODRÉ, 2020). Além das
críticas ácidas feitas no âmbito da sociedade civil, a gestão passou
a receber pressão velada dos próprios militares. Após ser alvo de
críticas de generais e coronéis(105), Pazuello é exonerado do cargo. A
pandemia avançava ferozmente, o presidente perdeu o protagonismo
para os governadores estaduais, e a oposição instalou a CPI da covid
para apurar as responsabilidades governamentais(106). O Governo
Bolsonaro atravessou a CPI da covid com a imagem arranhada, e a
aura de competência dos militares sofreu um abalo(107).
Os militares não se “limitaram” a intervir na administração
pública. Em maio de 2022 é lançado o “Projeto de Nação”, docu-
mento que estabelece diversas diretrizes a serem implementadas

(103) https://oglobo.globo.com/epoca/denis-r-burgierman/coluna-o-que-vai-
sobrar-do-exercito-brasileiro-24522401
(104) https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/07/11/
gilmar-mendes-exercito-esta-se-associando-a-genocidio-na-pandemia.htm
(105) A reforma ministerial no campo da “segurança” e suas consequências
(diplomatique.org.br)
(106) https://veja.abril.com.br/politica/cpi-embate-com-militares-elevou-a-
temperatura-politica-a-niveis-perigosos/
(107) Coronéis pedem saída de Pazuello da Saúde e criticam Bolsonaro - Política
- Estadão (estadao.com.br)

● 157 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

até 2035 com base em um cenário fictício de um Brasil futuro que


sofreu diversas mudanças tanto no Estado como na sociedade(108). O
documento foi produzido por think tanks de orientação conservadora
e “recheados” de militares entre os seus membros. O lançamento
do documento contou com a presença de oficiais da reserva e de
membros do Governo Bolsonaro(109). O Projeto de Nação chama a
atenção para planos futuros dos militares. Fica patente o abandono
de pretensões que apostem numa industrialização contemporânea e
no domínio das tecnologias mais estratégicas na atual fase do capita-
lismo. Ao mesmo tempo, há uma preocupação muito forte em manter
o modelo de exportação de bens primários, cujo maior exemplo é a
forte defesa, no documento, dos interesses do agronegócio.
Ao final do governo, Bolsonaro investiu contra as urnas eletrôni-
cas. A caserna foi estimulada a questionar a segurança do processo
eleitoral e até mesmo a realizar auditoria das urnas durantes as elei-
ções. O relatório do Exército sobre a eleição afirma que não foram
encontrados indícios de fraudes, porém destaca que não foi capaz
de fazer uma investigação completa por falta de acesso aos dados
necessários(110). O eleitorado bolsonarista sentiu-se estimulado a
pensar em um possível acobertamento do processo eleitoral. Porém,
segundo o próprio TSE, as Forças Armadas compõem a Comissão
de Transparência Eleitoral desde 2021 e tiveram a oportunidade de
participar das cerimônias de preparação das eleições. Além de ins-
pecionar o código-fonte(111), o Tribunal destacou que o acesso ficou
aberto durante um ano, porém as Forças Armadas só pediram aces-
so uma semana antes do fim do prazo. Por fim, as Forças Armadas
também tiveram a oportunidade de participar do Teste Público de
Segurança, porém não compareceram ao evento(112).

(108) https://opeb.org/2022/07/12/o-que-o-projeto-de-nacao-dos-militares-diz-
sobre-geopolitica-mundial-e-amazonia/
(109) https://opeb.org/2022/06/14/documento-indica-formula-militar-para-
fortalecer-poder-e-visao-de-mundo-na-ditadura/
(110) https://www.gov.br/defesa/pt-br/centrais-de-conteudo/relatorio-das-forcas-
armadas-nao-excluiu-a-possibilidade-de-fraude-ou-inconsistencia-nas-urnas-eletronicas
(111) https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Agosto/forcas-armadas-
inspecionam-codigos-fonte-da-urna-161670
(112) https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ministerio-da-defesa-deve-
questionar-ao-tse-seguranca-da-urna-eletronica/

● 158 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Durante as eleições, não faltaram candidatos militares(113). Ao


final do processo, 87 deles acabaram eleitos, o maior número já re-
gistrado em uma eleição(114). Desse total, 48 deles são deputados, um
aumento de 35,7% em relação à eleição de 2018(115). A eleição desses
candidatos (incluídos aí Forças Armadas e PMs) demonstrou alinha-
mento ideológico entre setores militares, policiais e, também, grupos
armamentistas. Esse resultado sinaliza a possibilidade de uma ação
de lobby das Forças Armadas, junto com setores da segurança pública,
no poder legislativo a partir de 2023.
Após as eleições, o relatório final dos militares sobre a segurança
das urnas eletrônicas foi instrumento da retórica bolsonarista. O do-
cumento acabou sendo apresentado primeiramente para o presidente
após o fim do primeiro turno, mas divulgado publicamente somente
após o final do segundo turno. O relatório final não demonstrou ne-
nhuma inconsistência ou indício de fraude, apesar do fato que o MD
emitiu uma nota dúbia atestando que o “relatório das Forças Armadas
não excluiu a possibilidade de fraude ou inconsistência nas urnas
eletrônicas”(116). A participação e o alinhamento das Forças Armadas e
suas forças auxiliares no processo eleitoral não foram bem recebidos
pela oposição e o TSE. Conclui-se que as Forças Armadas tiveram
acesso transparente ao processo eleitoral, porém a publicação do re-
latório mencionado serviu como instrumento de inflamação popular
e corroborou para a continuação das manifestações antidemocráticas
organizadas por setores de extrema-direita.
Desde a vitória de Lula nas eleições presidenciais, os protestos
antidemocráticos movimentados por bolsonaristas espalharam-se
por todo o país, tendo iniciado menos de 24 horas após a divulgação
dos resultados das urnas. Essas manifestações clamavam por uma
possível intervenção militar e se apoiavam, precariamente, no artigo
142 da Constituição Federal, que discorre sobre as atribuições das
Forças Armadas. Tal artigo já tinha entrado em destaque na política
nacional em 2020 quando o então presidente, Jair Bolsonaro, se reuniu

(113) https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2022/eleicoes-2022
(114) https://diplomatique.org.br/bancada-da-bala-foram-eleitos-48-deputados-
policiais-e-militares/
(115) https://diplomatique.org.br/bancada-da-bala-foram-eleitos-48-deputados-
policiais-e-militares/
(116) https://www.gov.br/defesa/pt-br/centrais-de-conteudo/relatorio-das-forcas-
armadas-nao-excluiu-a-possibilidade-de-fraude-ou-inconsistencia-nas-urnas-eletronicas

● 159 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

com o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto,


o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo
Ramos, e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional,
general Augusto Heleno, e anunciou a possibilidade de intervenção,
referindo-se ao STF.
Argumentos antidemocráticos foram utilizados ao longo dos
anos de Governo Bolsonaro. A utilização de sites conservadores ou
de notícias militares ajudou a difundir os argumentos radicais e fake
news do presidente Bolsonaro, como supostos planos da esquerda
brasileira(117) para tomada do poder e ataques contra instituições
como o STF e o Congresso(118). Devido aos incentivos do governo e
dos militares, os próprios eleitores se apoiam nesses discursos numa
justificativa vazia de intervenção(119). As manifestações pós-segundo
turno reuniram, em frente aos quartéis, várias pessoas na esperança
da colaboração dos militares em um hipotético golpe, chamado eu-
femisticamente de “intervenção federal”.
Durante o período de transição, dos diversos grupos de trabalho
organizados (GTs de transição) pelo vice-presidente eleito Geraldo
Alckmin e que começaram a ser instalados no dia 1º de novembro de
2022, chamou a atenção a ausência do GT responsável pelo setor de
defesa. Ressalte-se que eram esperadas, desde o início, dificuldades
na retomada das relações do novo Governo Lula com os militares(120).
Oficiais da ativa e da reserva confirmaram a resistência interna pre-
sente no interior das Forças Armadas ao presidente eleito(121). O nome
do possível ocupante do cargo e todas as especulações levantadas na
imprensa apontavam para uma conclusão: o novo ministro, ainda que
civil, deveria ser do agrado das Forças Armadas, e não uma escolha
exclusiva do presidente Lula e de sua equipe de governo(122).

(117) https://www.defesanet.com.br/gi/noticia/41629/Gen-Ex-Pinto-Silva---
Investidas-Comunistas-para-Tomada-do-Poder-no-Brasil/
(118) https://www.defesanet.com.br/tfbr/noticia/41732/Comentario-Gelio-
Fregapani----No-return-point/
(119) https://istoe.com.br/milhares-protestam-contra-resultado-da-eleicao-no-pais/
(120) https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/11/14/como-ficam-
os-militares-depois-da-vitoria-de-lula.htm
(121) https://www.gazetadopovo.com.br/republica/lula-enfrenta-dificuldades-
para-dialogar-com-militares-na-transicao-entenda-os-motivos/
(122) https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/forcas-armadas-aceitarao-
com-naturalidade-civil-na-defesa-diz-deputado-general/

● 160 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

O novo presidente terminou nomeando um civil, José Múcio


Monteiro, para o cargo de Ministro da Defesa. Múcio foi Secretário de
Relações Institucionais do segundo governo Lula e, também, membro
do TCU(123). A escolha do novo ministro, todavia, disparou uma série
de alertas. Além de não ter feito carreira na área de defesa, ele tem uma
origem política que remonta ao partido que deu sustentação ao Regi-
me Militar, a Arena. No momento da indicação, ele é filiado ao PTB,
partido do controverso Roberto Jefferson. Ele também foi próximo de
Bolsonaro, que chegou a elogiá-lo publicamente. E o ponto mais con-
troverso: foi elogiado pelos atuais comandantes das Forças Armadas e
pelo próprio Mourão, e isso antes do anúncio oficial da nomeação(124).
Toda a discussão pública acerca da nomeação de Múcio é um
indicador de que o presidente Lula não pretende abrir uma frente
de confrontação pública com os militares. Com desafios gigantes em
todas as esferas da vida nacional, o presidente optou por escolher
alguém de perfil discreto e, ao mesmo tempo, que sinalizasse para
as Forças Armadas que o novo governo deseja relações normais.
Resta saber se o novo ministro terá a força política necessária para
implementar medidas que levem, finalmente, ao controle civil sobre
Marinha, Exército e Força Aérea, ou se o que existe é apenas um
período de acomodação que não reduzirá o poder que o estamento
militar tem sobre o sistema político brasileiro.

Militares – política externa e política de defesa


Durante o Governo Bolsonaro, a política externa brasileira tam-
bém se consagrou como um polo central de influência dos militares,
atuando como forças singulares, em setores como a Secretaria de
Assuntos Estratégicos e, também, no próprio Ministério da Defesa.
Nesse sentido, a relação Brasil-Estados Unidos se afirma desde o
início do mandato de Jair Bolsonaro como uma relação fundamental,
formando uma espécie de alinhamento automático e que contou com o
aval dos militares. Foram assinados acordos com Washington, como
o de aluguel e cooperação em torno da Base de Alcântara, que con-
firmaram o alinhamento(125).

(123) https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63912906
(124) https://www.bol.uol.com.br/noticias/2022/12/09/indicacao-lula-jose-mucio-
ministerio-da-defesa.html
(125) https://nuso.org/autor/flavio-rocha-de-oliveira/

● 161 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Em 2020 foi assinado o acordo RDT&E (abreviação inglês para “Pes-


quisa, Desenvolvimento, Testes & Avaliações”) com o objetivo de facilitar
as trocas de informações sobre os aparatos de defesa e conhecimento
geoestratégico entre Brasília e Washington. Evidentemente que para os
militares e para as indústrias brasileiras interessava o intercâmbio de
tecnologias e know-how; no entanto, é válida a crítica de que tal acordo é
mais um instrumento de controle estadunidense dos avanços que o Brasil
possa desenvolver nesse setor. Também vale lembrar que um acordo entre
dois países com tanta disparidade em termos de tecnologia e capacidade
industrial termina servindo para que o parceiro mais avançado procure
vender seus sistemas de armamentos para o mais atrasado.
O RDT&E visa aproximar a defesa e as tecnologias brasileiras
dos critérios estabelecidos por Washington e pela Otan, enquanto
mantém as informações relevantes sobre tecnologias estadunidenses
em sigilo. Nesse sentido, vale questionar se o reconhecimento da assime-
tria, o pragmatismo e a cautela política se fizeram presentes no Governo
Bolsonaro e entre os próprios militares ou se o alinhamento direto,
feito durante o Governo Trump, mergulhou o Brasil em submissão
disfarçada pela classificação de “aliado preferencial fora da Otan”.
Todavia, esse alinhamento ganharia uma condicionante com a
eleição de Biden. Em julho de 2021, William Burns (diretor da CIA –
Agência Central de Inteligência) fez uma visita ao presidente Bolsonaro
cujos tópicos da conversa teriam sido divulgados apenas em maio de
2022: eleições e a aproximação Brasil-China. Burns teria recomendado
que Bolsonaro não descredibilizasse o processo eleitoral brasileiro.
Enviado por Biden como porta-voz discreto da Casa Branca, a visita de
Burns serviu de aviso ao presidente brasileiro: ele não poderia contar
com o apoio de Washington para questionar a democracia.
A iniciativa foi repetida na visita do ex-embaixador dos EUA no
Brasil, Thomas Shannon, que reforçou a postura do governo e dos
militares estadunidenses nesse cenário de polarização política. Ele
afirmou que a parceria entre militares dos EUA e do Brasil dependia
de um compromisso comum com os valores e práticas democráticas.
E também por Lloyde Austin, secretário de Defesa dos EUA, na 15ª
Conferência de Ministros de Defesa das Américas (CMDA), que en-
fatizou a necessidade de os militares estarem sob firme controle civil.
Um balanço do Governo Bolsonaro quando se pensa em mi-
litares e política externa ficaria incompleto sem um olhar para a

● 162 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

administração de Ernesto Araújo como ministro de Relações Exte-


riores (2019-2021), especialmente pela relação de proximidade que o
governo buscou com os EUA nesse período. Pela forte presença das
FAs em diversas instâncias estatais, bem como os interesses dos mi-
litares em aumentar a relação com suas contrapartes estadunidenses,
é indissociável que a gestão do ex-ministro tenha tido algum impacto
no âmbito militar, especialmente nos aspectos negativos. Ao longo
do período houve momentos de discordâncias entre as duas partes,
o que poderia indicar um certo desalinhamento entre o ministro e
os militares – que não foram o único grupo a indicar que a gestão de
Ernesto Araújo era, no mínimo, controversa.
Um dos capítulos dessa história está intrinsecamente ligado
com o alinhamento automático, promovido também pelo ex-minis-
tro, mas que pareceu causar um ruído na relação entre Itamaraty e
Defesa, quando Ernesto Araújo apoiou as propostas do “irmão do
Norte” em relação à Venezuela, ainda em maio de 2019. Na ocasião,
os militares pareciam, no mínimo, incomodados com a posição as-
sumida, pois viam o caso com cuidado e a cautela era a tática vista
como ideal para ser usada em relação a Caracas. O vice-presidente,
o general Mourão, pronunciou-se, nesse período, em favor da manu-
tenção do equilíbrio regional. Vale ressaltar que essa estabilidade era
uma visão consensual dentro do estamento militar, que não apoiava
ações de maior contundência, por poder provocar desdobramentos
indesejados – apesar de caminharem para uma aproximação cada
vez maior com os EUA.
Coincidência, ou não, a saída de Ernesto Araújo do MRE se deu
no mesmo período em que o general Fernando Azevedo e Silva(126)
foi demitido do Ministério da Defesa, assim como os comandantes
do Exército, Marinha e Aeronáutica(127). Um momento de aparente
“limpa” no governo, em que curingas da campanha de Bolsonaro e

(126) O Globo. Com demissões de Ernesto e Azevedo e Silva, Bolsonaro já


mexeu em mais da metade dos ministérios em dois de mandato; saiba quem saiu.
Disponível em https://oglobo.globo.com/politica/com-demissoes-de-ernesto-
azevedo-silva-bolsonaro-ja-mexeu-em-mais-da-metade-dos-ministerios-em-dois-
anos-de-mandato-saiba-quem-saiu-24946220.
(127) ALESSI, Gil. Comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica deixam o
cargo após a queda de ministro da Defesa. Disponível em https://brasil.elpais.com/
brasil/2021-03-30/comandantes-do-exercito-marinha-e-aeronautica-deixam-o-cargo-
apos-queda-de-ministro-da-defesa.html.

● 163 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

componentes da “ala ideológica” saíram do palco principal da po-


lítica, após pouco mais de dois anos ocupando altos cargos dentro
da máquina estatal, o que abriu caminho para o chamado Centrão.
Um outro aspecto que singulariza a Política Externa do Brasil
em 2022 está relacionado à atuação do país às vésperas da guerra da
Ucrânia, que eclodiu oficialmente em 24 de fevereiro. Na iminência
do conflito, o presidente Jair Bolsonaro decide fazer uma viagem à
Rússia em um momento considerado diplomaticamente inoportuno.
A viagem foi iniciada dia 14 de fevereiro, dez dias antes do início
oficial da guerra, e chamou atenção não só pelo momento, mas também
pela comitiva que acompanhou o presidente. Segundo o site Brasil de Fato,
a comitiva da viagem à Rússia contou com 32 militares, entre eles, vários
de alto escalão e ocupantes de posições de confiança do presidente, como
o candidato a vice-presidente general Walter Braga Netto. Outros nomes
de destaque na comitiva incluíam o atual ministro das Relações Exteriores
que sucedeu Ernesto Araújo, Carlos França, e o general Augusto Heleno,
do Gabinete de Segurança Institucional.
A lista também inclui 27 militares da ativa das Forças
Armadas, todos alocados em cargos de confiança
na Presidência da República durante o governo
Bolsonaro. Entre eles, 18 são vinculados ao Exército,
sete à Aeronáutica e dois à Marinha. Ainda no grupo
dos fardados estão quatro militares cedidos pelo
Governo do Distrito Federal à União.(128)

Um outro integrante da comitiva de Bolsonaro que chamou


atenção foi o almirante Flávio Rocha, Secretário Especial de Assuntos
Estratégicos, que esteve na Rússia também ao final de 2021 para acer-
tar os termos do encontro entre os presidentes. A atuação de Flávio
Rocha no Governo Bolsonaro adquiriu grande notoriedade pela quan-
tidade de compromissos internacionais realizados por este. Segundo
levantamento de “O Globo”, de abril de 2021, a aproximadamente
junho de 2022, Flávio Rocha participou de 21 viagens internacionais,
um número maior do que as viagens do chanceler Carlos França, que

(128) MOTORYN, Paulo. Comitiva de Bolsonaro na Rússia teve 32 militares e


custo de até R$ 37 mil por pessoa. Brasil de Fato, 2022. Disponível em: <https://www.
brasildefato.com.br/2022/03/02/comitiva-de-bolsonaro-na-russia-teve-32-militares-
e-custo-de-ate-r-37-mil-por-pessoa>

● 164 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

contabilizam 19 no mesmo período de tempo.(129) Funcionários do


Itamaraty afirmaram que a cooperação de tecnologias militares era
um dos grandes âmagos da viagem e, por esse motivo, uma grande
parcela de oficiais esteve presente(130). De acordo com a BBC News:
As questões militares e diplomáticas estarão, de
fato, na pauta da comitiva brasileira em Moscou.
Pela primeira vez, está prevista a realização de um
encontro conhecido no meio diplomático como
“dois mais dois”, em que se reunirão os ministros
das relações internacionais e da defesa dos dois países.(131)

Para muitos especialistas, a ida de Jair Bolsonaro à Rússia em


um momento tão delicado mirava no processo eleitoral de 2022. O
presidente tentava, ali, mostrar que não estava internacionalmente
isolado, uma percepção que estava se tornando consensual dentro e
fora do Brasil. Não se pode excluir, também, um interesse concreto
da economia brasileira: o agronegócio é fortemente dependente dos
fertilizantes importados da Rússia e a viagem de Bolsonaro tratou,
especificamente, dessa pauta.
Durante muito tempo, os militares brasileiros e o Governo Bol-
sonaro deixaram claro seu interesse em tornar o Brasil um parceiro
estratégico importante da Otan. Considerando-se o alinhamento
automático com os Estados Unidos, buscado na primeira metade de
sua administração, a visita do presidente Bolsonaro e seu encontro
com Vladimir Putin foram vistos como algo estranho por Washington.
O Brasil é hoje um aliado americano militar extra-
-Otan – título concedido ao país ainda na gestão
de Donald Trump – e, no ano passado, recebeu

(129) GULLINO, Daniel; OLIVEIRA, Eliane.’Chanceler paralelo’, almirante


assessor de Bolsonaro tem mais viagens ao exterior que Carlos França e gera
incômodo no governo. O Globo, 2022. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/
politica/noticia/2022/06/chanceler-paralelo-almirante-assessor-de-bolsonaro-tem-
mais-viagens-ao-exterior-que-carlos-franca-e-gera-incomodo-no-governo.ghtml>
(130) MOTORYN, Paulo. Comitiva de Bolsonaro na Rússia teve 32 militares e custo
de até R$ 37 mil por pessoa. Brasil de Fato, 2022. Disponível em: <https://www.
brasildefato.com.br/2022/03/02/comitiva-de-bolsonaro-na-russia-teve-32-militares-
e-custo-de-ate-r-37-mil-por-pessoa>
(131) PRAZERES, Leonardo; KOSLOV, Petr; KHINKULOVA, Katheryna. Como
visita de Bolsonaro a Putin é vista na Rússia. BBC News Brasil, 2022. Dispoível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60368563>

● 165 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

endosso dos Estados Unidos para se tornar um


parceiro global da aliança militar, o que expandi-
ria ainda mais acessos brasileiros a armamentos
e treinamentos militares conjuntos.(132)

À BBC News Brasil, o governo dos Estados Unidos declarou


que era responsabilidade de Bolsonaro confrontar Putin sobre a
questão da Ucrânia: “O Brasil tem a responsabilidade de defender
os princípios democráticos e proteger a ordem baseada em regras, e
reforçar esta mensagem para a Rússia em todas as oportunidades’’ (133)
A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, declarou:
(...) eu diria que a vasta maioria da comunidade
global está unida em uma visão compartilhada,
de que invadir um outro país, tentar tirar parte
do seu território, e aterrorizar a população, cer-
tamente não está alinhado com valores globais e,
então, acho que o Brasil parece estar do outro lado
de onde está a maioria da comunidade global.(134)

Assim, se torna notável a posição de instabilidade diplomática


que o Brasil se colocou na ocasião. Todavia, um dado permaneceu
inabalável: a cooperação entre os militares brasileiros e os militares
norte-americanos não foi interrompida ou enfraquecida, mas, antes,
continuou acontecendo com várias visitas de alto nível e treinamentos
conjuntos em solo brasileiro e nos Estados Unidos(135).

(132) SANCHES, Mariana. EUA dizem que Bolsonaro tem ‘responsabilidade’ de


confrontar Putin sobre Ucrânia. BBC News Brasil, 2022. Disponível em: <https://
www.bbc.com/portuguese/geral-60178149>
(133) SANCHES, Mariana. EUA dizem que Bolsonaro tem ‘responsabilidade’ de
confrontar Putin sobre Ucrânia. BBC News Brasil, 2022. Disponível em: <https://
www.bbc.com/portuguese/geral-60178149>
(134) ‘Brasil parece estar do outro lado’, diz porta-voz da Casa Branca sobre viagem
de Bolsonaro à Rússia. G1, 2022. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/
noticia/2022/02/18/brasil-parece-estar-do-outro-lado-de-onde-esta-a-maioria-da-
comunidade-global-diz-porta-voz-da-casa-branca-sobre-viagem-de-bolsonaro-a-
russia.ghtml>
(135) Um dado curioso: com o início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia – e que
pode ser vista como uma guerra por procuração entre a Otan e a Federação Russa
ocorrendo em território ucraniano –, o EB fazia um acompanhamento público desse
conflito através do Centro de Doutrina do Exército. Porém, rapidamente o acesso foi
restringido ao público externo sem maiores explicações, o que chamou a atenção de
vários observadores do conflito e da atuação da própria força terrestre.

● 166 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Aquisições de defesa
As expectativas no início do Governo Bolsonaro para aquisição
de equipamentos de defesa eram altas (OLIVEIRA et al., 2021, p.
111). Tal otimismo era devido ao passado militar do presidente e sua
frequente exaltação das Forças Armadas (FAs). Assim, se pensava
que acabariam os históricos congelamentos e cortes nos programas
das FAs, que têm como consequências as dificuldades no fluxo de
caixa para a Base Industrial de Defesa (BID). Pode-se afirmar que
as expectativas não foram cumpridas, porém o setor não chegou a
sofrer a catástrofe verificada em outras áreas, especialmente tendo
em perspectiva os anos de pandemia e a forte contração econômica
que se abateu sobre o país. Ou seja, não é a situação imaginada, mas
poderia ser ainda pior, tendo em perspectiva que historicamente em
crises econômicas a defesa sofreu pesados cortes.
Algo que aconteceu em praticamente todos os programas de
defesa foi o prolongamento de prazos, muitas vezes com a estagnação
ou redução das encomendas (Ibid., p. 112), com exceção notável do
programa de aviões de caça FX-2, que além da encomenda de mais
quatro jatos Gripen, negociou-se a aquisição de mais, com lote de
quarenta desses vetores (Nunes, 2022). Nenhum programa que se
encontrava em um estágio mais avançado de execução foi cancelado,
e alguns relevantes começaram a sair do papel (como as fragatas e
navio antártico para a Marinha), mas o mesmo não se pode dizer de
novas iniciativas, como as variantes nacionais dos blindados Guarani
ou novos modelos de aviões militares da Embraer (que quase foi
vendida para a norte-americana Boeing). O saldo para a área ao fim
desses quatro anos é um misto de boas e más notícias, conforme será
apresentado em relação a cada uma das Forças Armadas.

Exército
O Exército Brasileiro (EB) teve como prioridades nos últimos
anos a renovação da sua cavalaria e artilharia, com resultados mis-
tos. Na cavalaria, um escândalo – surpreendentemente de pouca
repercussão – foi a redução da encomenda de blindados Guarani,
de 2.044 unidades para 1.580 unidades, com o prejuízo total de 273
milhões de reais aos cofres públicos, com punições ínfimas para os
responsáveis pelo superdimensionamento do projeto (Neves, 2021).
O programa então passou por uma grande reestruturação, variantes

● 167 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

nacionais do blindado foram canceladas, sendo adquiridos modelos


do exterior desenvolvidos pelas italianas Iveco e Oto Melara, os
modelos Lince(136) (veículos de tração 4×4, sendo 32 unidades no pri-
meiro lote) e Centauro(137) (veículos 8×8, num total de 98 unidades),
além de kits de engenharia adquiridos do Reino Unido(138). As boas
notícias para o programa foram as primeiras exportações substanciais
do Guarani para Gana(139), num total de 11 unidades, e Filipinas(140),
com a venda de 28 veículos. Todavia, cabe uma importante ressalva:
os dois acordos de exportação foram feitos pela Elbit Systems e pelo
governo de Israel dentro de um pacote mais amplo, sendo o Brasil
apenas o fornecedor dos veículos blindados.
Enquanto o Exército Brasileiro compra blindados desenvolvidos
no exterior, na área de mísseis e foguetes a situação é mais delicada.
O programa do sistema Astros 2020 fez avanços, mas também sofreu
atrasos em relação ao cronograma inicial. Uma situação mais grave é a
situação da principal empresa responsável pelo programa, a Avibras,
que está em processo de recuperação judicial e perdendo ou demitin-
do um número relevante de funcionários(141). A extensão dos impactos

(136) CAIAFA, Roberto. Brasil assina com Iveco a compra de 32 LMV blindados
4x4. Infodefensa, [S. l.], 13 nov. 2019. Disponível em: https://www.infodefensa.com/
texto-diario/mostrar/3127282/brasil-assina-com-iveco-compra-32-lmv-blindados-
4x4. Acesso em: 1º dez. 2022.
(137) CAIAFA, Roberto. Brasil selecciona al Centauro II como su nuevo vehículo
de combate sobre ruedas 8x8: El blindado italiano supera al LAV 700 AG de General
Dynamic Land Systems y al ST1-BR de la china Norinco. Infodefensa, [S. l.], 25 nov.
2022. Disponível em: https://www.infodefensa.com/texto-diario/mostrar/4086633/
centauro-2-ganador-licitacion-vbc-cav-8x8-ejercito-brasileno. Acesso em: 1º dez. 2022.
(138) CAIAFA, Roberto. Brasil avalia as capacidades da versão Engenharia da
armadura Guarani: Esses veículos blindados permitirão a execução de obras de
engenharia técnica em apoio às Brigadas Mecanizadas do Exército Brasileiro.
Infodefensa, [S. l.], 20 set. 2022. Disponível em: https://www.infodefensa.com/
texto-diario/mostrar/3893526/brasil-realiza-testes-integraco-e-funcionalidade-do-
guarani-6x6-engenharia. Acesso em: 1º dez. 2022.
(139) BASTOS JR., Paulo Roberto. Anunciada exportação do Guarani para Gana.
Tecnologia & Defesa, [S. l.], 6 jul. 2021. Disponível em: https://tecnodefesa.com.br/
anunciada-exportacao-do-guarani-para-gana/. Acesso em: 1º dez. 2022.
(140) BASTOS JR., Paulo Roberto. Entregues os primeiros Guarani para as Filipinas.
Tecnologia & Defesa, [S. l.], 30 jun. 2022. Disponível em: https://tecnodefesa.com.
br/entregues-os-primeiros-guarani-para-as-filipinas/. Acesso em: 1º dez. 2022.
(141) FONTES, Stella. Avibras busca saída para dívidas de R$ 640 milhões. Valor
Econômico, São Paulo, 22 mar. 2022. Disponível em: https://valor.globo.com/
empresas/noticia/2022/03/22/avibras-busca-saida-para-dividas-de-r-640-milhoes.

● 168 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

desse problema no desenvolvimento do míssil de cruzeiro AV-MTC


300 ainda é incerta, mas mesmo no melhor dos casos devem ocorrer
mais atrasos. Outro revés foi o cancelamento da industrialização do
foguete guiado SS-40 G, devido à falta de perspectiva no mercado
para o produto(142).

Marinha
A Marinha do Brasil (MB), na área de submarinos, embora ainda
padeça da extrema lentidão e falta de transparência do seu programa
nuclear (dentro daquilo que pode ser publicamente informado numa área
tão estrategicamente sensível, como a nuclear), realizou a incorporação
do primeiro submarino convencional da classe Scorpenè(143), rebatizado
no Brasil como Classe Riachuelo ao serviço ativo, enquanto o segundo
está em testes de aceitação. Não obstante, preocupa a falta de novas enco-
mendas brasileiras. A se manter essa situação de falta de novas compras
desses vasos de guerra, a sustentabilidade financeira de toda a estrutura
técnica e industrial para a manutenção do programa ficará insustentável.
Iniciou-se a construção da primeira de quatro novas fragatas
leves encomendadas junto à alemã ThyssenKrupp Marine Systems
(TKMS), baseadas na classe MEKO A-100, e batizadas pela Marinha
de Classe Tamandaré(144), e foi fechado o contrato para a construção
de um novo navio de apoio antártico(145), além da aquisição de equi-

ghtml. Acesso em: 1º dez. 2022.


(142) CAIAFA, Roberto. Gen. Paixão (Brasil): “Com o míssil AV-MTC 300, o Exército tem
uma arma eficaz e a Avibras um excelente produto” (1). Infodefensa, [S. l.], 7 nov. 2022.
Disponível em: https://www.infodefensa.com/texto-diario/mostrar/4055237/comandante-
da-artilharia-do-exercito-fala-infodefensa. Acesso em: 1º dez. 2022.
(143) WILTGEN, Guilherme. Itaguaí Construções Navais e Marinha do Brasil realizam
Cerimônia de entrega do Submarino ‘Riachuelo’: A Cerimônia de Mostra de Armamento
do Submarino Riachuelo marcará a integração do 1º navio do PROSUB à Força de
Submarinos. Defesa Aérea & Naval, [S. l.], 31 ago. 2022. Disponível em: https://www.
defesaaereanaval.com.br/naval/itaguai-construcoes-navais-e-marinha-do-brasil-realizam-
cerimonia-de-entrega-do-submarino-riachuelo. Acesso em: 1º dez. 2022.
(144) WILTGEN, Guilherme. Iniciada a construção da Fragata ‘Tamandaré’
(F200). Defesa Aérea & Naval, [S. l.], 8 set. 2022. Disponível em: https://www.
defesaaereanaval.com.br/naval/iniciada-a-construcao-da-fragata-tamandare-f200.
Acesso em: 1º dez. 2022.
(145) WILTGEN, Guilherme. Iniciada a construção do Navio de Apoio Antártico
(NApAnt). Defesa Aérea & Naval, [S. l.], 15 set. 2022. Disponível em: https://www.
defesaaereanaval.com.br/naval/iniciada-a-construcao-do-navio-de-apoio-antartico-

● 169 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

pamentos para os fuzileiros navais(146), como blindados e caminhões


(todos importados dos EUA e Europa).

Força Aérea
A Força Aérea Brasileira (FAB), apesar dos avanços nos programas
FX-2, com o recebimento dos primeiros caças e a encomenda firme de
mais quatro junto ao lote inicial de 36, sofreu um substancial recuo em
outras áreas. Um exemplo é a redução, por parte da FAB, da encomenda
de cargueiros KC-390 de 28 para 19 aeronaves(147). Todavia, a Embraer
conseguiu exportar a aeronave para Hungria (dois aviões), Portugal (cin-
co aviões) e Holanda(148) (cinco aviões). A encomenda por três membros
da Otan é um forte sinal de reconhecimento das capacidades do vetor
brasileiro, em que pese o fato de ele não ter se tornado um campeão de
vendas no mercado internacional. Outros pontos de descontinuidade
entre a FAB e a Embraer foram os rompimentos da cooperação com a em-
presa para desenvolver novas aeronaves de transporte leve e drones(149).

Considerações finais
No Brasil, as Forças Armadas são um desafio para o governo
civil. Esse desafio aumenta ainda mais se o governo é de esquerda,
dado a histórica combinação entre conservadorismo e poder de tutela
sobre os poderes civis da república.

napant. Acesso em: 1º dez. 2022.


(146) PADILHA, Luiza. Marinha do Brasil adquire novas viaturas para o Corpo de
Fuzileiros Navais. Defesa Aérea & Naval, [S. l.], 3 dez. 2020. Disponível em: https://
www.defesaaereanaval.com.br/naval/marinha-do-brasil-adquire-novas-viaturas-
para-o-corpo-de-fuzileiros-navais. Acesso em: 1º dez. 2022.
(147) REDAÇÃO FORÇAS DE DEFESA. Novo acordo entre Embraer e FAB reduz
encomendas do KC-390 de 22 para 19 aeronaves. Poder Aéreo, [S. l.], 21 out. 2022.
Disponível em: https://www.defesaaereanaval.com.br/naval/marinha-do-brasil-
adquire-novas-viaturas-para-o-corpo-de-fuzileiros-navais. Acesso em: 1º dez. 2022
(148) WILTGEN, Guilherme. Holanda escolhe o C-390 Millennium para substituir
o Hércules, [S. l.], 16 jun. 2022. Disponível em: https://www.defesaaereanaval.com.
br/aviacao/holanda-escolhe-o-c-390-millennium-para-substituir-o-hercules. Acesso
em: 1º dez. 2022.
(149) VIANA, Pedro. FAB decide cancelar os projetos do STOUT e de novo drone.
Aeroflap, [S. l.], 25 maio 2022. Disponível em: https://www.aeroflap.com.br/fab-
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● 170 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

No Governo Lula, que se inicia em 2023, o desafio já está colocado,


como se depreende da discussão acerca do ministro da defesa escolhido
pelo presidente. Além do elemento doméstico – pôr um fim à tutela mili-
tar sobre a política nacional – o Governo Lula tem uma tarefa de alinhar
as Forças Armadas com um projeto de recuperação da imagem externa
do Brasil, que passa pela discussão de temas caros aos militares, como a
questão ambiental e a Amazônia. Seguramente, o próximo governo não
realizará um alinhamento automático aos Estados Unidos, e isso terá
impacto sobre a relação dos generais brasileiros com as Forças Armadas
norte-americanas, refletindo-se em uma sinalização importante na de-
cisão do presidente eleito em manter ou não um general brasileiro na
estrutura do Comando Sul dos EUA.
Uma busca por uma reinserção qualitativa do Brasil na política
internacional contemporânea passa pela atual fase de competição entre
as grandes potências, protagonizada pela disputa hegemônica entre
Estados Unidos e China e com o intercurso de potências mais fracas,
mas extremamente importantes, como a Rússia, Japão, Índia e países
da União Europeia. Se levarmos em conta as declarações do presidente
Lula durante a campanha presidencial de 2022, o Brasil não irá procurar
nenhum alinhamento com os lados em disputa, mas buscará um bom
relacionamento com os dois gigantes geopolíticos contemporâneos.
Essa “neutralidade estratégica” poderá ter um impacto direto
sobre as pretensões das Forças Armadas. Elas buscaram, e conse-
guiram, uma aproximação muito forte com os Estados Unidos. Se o
Governo Lula resolver seguir em outra direção, ele deverá fazer valer
a sua posição de comandante das Forças Armadas e ordenar que elas
diminuam o entrosamento com as suas contrapartes estadunidenses.
Haverá resistências dentro da caserna, numa profundidade que ainda
fica difícil de ser avaliada.
Enfim, tempos interessantes se abrem em relação ao Brasil e às
suas Forças Armadas em 2023. Conduzi-las a um papel restrito de
defesa nacional, neutralizar o seu poder de tutela, e iniciar um proces-
so de controle civil sobre as suas atividades e, finalmente, integrá-las
num projeto nacional de desenvolvimento e inserção soberana do país
na política internacional contemporânea, estão entre os desafios mais
importantes para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

● 171 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

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● 175 ●
A política externa no programa dos
candidatos à presidência em 2022

Tatiana Berringere Ana Tereza L. Marra de Sousa(150)

Para entender a proposta de política externa dos candidatos à presidência


da República através da leitura dos programas de governo apresentados,
temos de prestar atenção aos seguintes pontos: 1) análise da estrutura e da
conjuntura internacional e papel do Brasil diante desses dois elementos; 2)
o principal objetivo traçado para a política externa; 3) como esses elementos
estão conectados com o programa de desenvolvimento e soberania nacional.

O plano de Bolsonaro
O programa do candidato Jair Bolsonaro (PL) está dividido em
quatro grandes seções, nas quais apresenta valores e princípios do
seu governo, fundamentação estratégica, plano de governo e conclu-
sões. Apesar de aspectos relacionados a política externa e relações
internacionais aparecerem em vários momentos do texto, é na seção
3.6, “Segurança e Geopolítica”, que existe um tópico exclusivo para
política externa e defesa nacional.
O plano parte de uma análise da conjuntura internacional em
que se destaca a crise inflacionária e energética, especialmente face
aos impactos da guerra da Ucrânia e da pandemia, e um cenário no
qual as necessidades de desenvolvimento sustentável, em que se
conecta preservação do meio ambiente e crescimento econômico, são
consideradas tendências. O diagnóstico de como o Brasil encontra-se
nesse cenário, contudo, é fantasioso. A avaliação exposta no progra-
ma é de que tanto as políticas domésticas como as internacionais
perseguidas por Bolsonaro no 1primeiro mandato fortaleceram o
Brasil diante desse cenário.

(150) Professora de Relações Internacionais da UFABC e coordenadora ajunta


do Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (Opeb.org)

● 176 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

O programa avalia que o perfil internacional do Brasil na defesa


de uma política externa baseada no direito internacional, na atuação
em organizações internacionais, com vocação universalista e capa-
cidade de projetar o país com base em ativos como a democracia,
o agronegócio, a produção de alimentos, a matriz energética limpa
e as riquezas naturais foi bem-sucedido. Ignora-se que a realidade
da atuação internacional do Brasil tenha sido marcada, nos últimos
anos, pelo desgaste de imagem externa do país devido a violações
ambientais e no campo dos Direitos Humanos, bem como pelas amea-
ças à democracia patrocinadas por Bolsonaro, e pela volta da fome.
Para os próximos anos, as ideias sobre política externa e relações
internacionais, conforme expostas no documento, propõem políticas
de orientação neoliberal, mas que são contraditórias com outros com-
promissos assumidos no programa. Vejamos. O primeiro ponto a se
destacar é o foco na aproximação do Brasil com países capitalistas
desenvolvidos. Apesar de se falar na defesa da multipolaridade e da
busca em manter o máximo de parceiros possíveis ao país de forma
pragmática, o principal objetivo da política externa é a entrada do Bra-
sil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) e na Área de Livre Comércio Europeia (Efta), dois espaços
integrados e dirigidos por Estados imperialistas. Pressupõe-se então
que ou há uma percepção de que Brasil faça parte desse grupo de
Estados, ou aceita-se uma posição subalterna em relação aos mesmos.
Ressalta-se no documento, ainda, uma visão pouco crítica da
ordem internacional. Mesmo quando se coloca em destaque a atua-
ção do país em organizações internacionais (como a ONU) e outros
grupos como G20 e Brics, não se evidencia que a ação histórica do
Estado foi muitas vezes crítica às assimetrias de poder do sistema
internacional. No plano de Bolsonaro, estas atuações são destacadas
apenas como fato de conformidade do Brasil com a ordem externa,
que aparece no documento como uma realidade dada, a qual o Estado
brasileiro deve se submeter e perseguir políticas – pagando os custos
– visando melhorar sua posição. O documento não atribui papel de
importância à relação do Brasil com os Estados dependentes.
O programa reforça como positivo o fato de que a incorporação
do Brasil à OCDE está ligada à adoção de novas práticas e condutas
internas, isto é, as reformas neoliberais. O que inclui, além do aprimo-
ramento do sistema previdenciário, uma reforma administrativa e do

● 177 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

sistema tributário, um plano de desestatizações e desinvestimentos


de empresas estatais. De tal modo, o programa de desenvolvimento
mostra preocupação com as credenciais externas do país, vislum-
brando a aceitação do Brasil na OCDE como sinal de legitimidade do
governo. A continuidade de políticas liberalizantes com a proposta
de “deixar a cargo do Estado somente aquilo que ele pode realizar”,
“concentrando seus esforços em exercer sua função estabilizadora por
meio de ações imediatas”, pressupõe que o plano de desenvolvimento
nacional está ligado à atração de investimento externo, especialmente
para a área de infraestrutura, visando à melhoria do transporte de
commodities, e o fortalecimento do agronegócio e da mineração, des-
tacando a possibilidade de o Brasil se tornar também um exportador
de energia, mas sem perspectivas para a superação do papel agrário
exportador que o país assumiu nas últimas décadas.
Uma contradição que aparece no programa é com relação às
propostas voltadas para Direitos Humanos e Meio Ambiente. Ambos
os temas são caros para a conformidade do Brasil com instituições
internacionais – algo que o plano parece considerar importante –;
no caso da OCDE, por exemplo, a temática ambiental é relevante.
É sabido também que as políticas adotadas pelo Brasil nesse setor
têm gerado críticas dos Estados Unidos e da União Europeia. Deve-
-se dizer que considerando o que está escrito, há compromisso no
programa com a sustentabilidade e a respeito de minorias (cita-se
indígenas, quilombolas e mulheres, não se fala em outras minorias
como LGBTQIAPN+), contudo a realidade das políticas nos últi-
mos anos fala mais alto do que as propostas do plano de governo,
apontando-se então para um paradoxo que pode inviabilizar a con-
formidade internacional que Bolsonaro quer vender como solução
para os problemas domésticos.
O segundo eixo a partir do qual é possível ler as propostas de
política externa de Bolsonaro é o campo dos valores, no qual há uma
contradição entre, de um lado, o compromisso assumido por uma vo-
cação universalista e pragmática, e, de outro, o foco em fundamentar
as relações externas com base em valores que são excludentes a vários
países, inclusive a China, principal parceira comercial do Brasil. O
programa deixa claro que o Brasil privilegiará o desenvolvimento
de relações com países capitalistas desenvolvidos que possuem va-
lores semelhantes ao país: “Para o próximo mandato, será buscada

● 178 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

interação ainda maior com países que defendam e respeitem valores


que são caros aos brasileiros e se encaixem no ambiente democráti-
co, como eleições livres e transparentes; liberdade de associação; de
opinião e de imprensa; segurança jurídica; igualdade e respeito aos
poderes constituídos e sua independência constitucional”. De forma
contraditória, contudo, há de se apontar que nos últimos anos, Bolso-
naro, isolado após a eleição de Joe Biden, colocou o Brasil em alianças
com países conservadores, entre os quais vários que desrespeitam os
valores assumidos por ele como importantes.
No documento, aparece ainda uma menção ao Oriente quan-
do se afirma que é o fato de “a população do Oriente estar saindo
da miséria” que está “pressionando o crescimento e os custos no
Ocidente”, o que indica, de um lado, que há um pensamento que
divide o mundo entre Ocidente e Oriente, e coloca o Brasil naquele
espectro, e de outro, que o Oriente é visto de forma desatualizada
de suas potencialidades, ainda pela ótica da pobreza, contribuindo
para a visão – clara no documento – de que o Brasil deve focar suas
relações externas em aliados ocidentais e em países desenvolvidos.
O terceiro eixo das propostas de política externa de Bolsonaro
diz respeito à defesa nacional. De forma mais ampla, o texto chama
atenção para o risco de o Brasil ficar dependente de certos recursos
essenciais, o que deve ser evitado. Citam-se as dificuldades que
se passou durante a pandemia, com a carência de insumos, equi-
pamentos etc., necessários para o sistema de saúde, e a carência
de fertilizantes no contexto da guerra da Ucrânia. Assume-se que
é necessário que o país estude o que é estratégico e promova um
plano para diminuir a dependência daquilo que dessa forma for
considerado. Contudo, o único setor para o qual o documento colo-
ca propostas é para o desenvolvimento de uma Base Industrial da
Defesa, o que evidencia uma estratégia de soberania calcada em uma
política de defesa ativa, com aumentos em investimentos militares,
especialmente em salários e remuneração das Forças Armadas, e na
busca pelo envolvimento desses setores na segurança doméstica (o
que, inclusive, é uma clara ameaça à democracia). O plano assume
ainda que o desenvolvimento da indústria da defesa deve ter papel
na mediação da relação do Brasil com outros países, através da troca
e aquisição de conhecimentos, bem como a participação do Brasil na
OCDE deve facilitar acordos.

● 179 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

O plano de Lula
O programa de governo do candidato Luís Inácio Lula da
Silva (PT) é bem sucinto e não possui seção específica para abordar
a política externa e relações internacionais, apresentando suas
propostas para estes temas de forma interligada aos desafios mais
gerais do desenvolvimento nacional.
Por sua vez, as ideias de política de desenvolvimento nacio-
nal expostas no programa partem da premissa de necessidade de
conciliação entre crescimento econômico e respeito a questões so-
cioambientais, com reconhecimento da necessidade de combater as
mudanças climáticas e o aquecimento global, bem como respeitar
os Direitos Humanos. Parte-se da pressuposição, conforme expõe-se
no programa, de que a conjuntura internacional atual tem sido ca-
racterizada pela transição energética e digital e pela emergência de
novas formas de produção e consumo mais social e ambientalmente
sustentáveis. O programa identifica que o Brasil, por sua importância
no cenário internacional, considerando seu histórico de protagonismo
em negociações ambientais e na política multilateral, bem como sua
articulação junto a Estados dependentes, pode dar grande contribui-
ção nessa conjuntura. Contudo, destaca-se que o Governo Bolsonaro
tem atuado na contramão dessas tendências internacionais e mitigado
o papel que o Brasil pode ter nesse cenário.
Para corrigir esses rumos, é possível perceber no programa três
linhas de ação. A primeira relaciona-se ao combate das assimetrias
estruturais do sistema internacional. Considera-se que é necessária
uma política que lute por uma nova ordem global comprometida
com “o multilateralismo, o respeito à soberania das nações, a paz,
a inclusão social e a sustentabilidade ambiental, que contemple as
necessidades e os interesses dos países em desenvolvimento, com
novas diretrizes para o comércio exterior, a integração comercial e
as parcerias internacionais”. Ao citar esses elementos, o programa
deixa implícita a avaliação de que o sistema atual não está com-
prometido com eles. No entanto, a proposta de Lula não detalha
como o Brasil atuará para mudar isso, nem menciona sobre a par-
ticipação do país em organizações internacionais (como a ONU e
a OMC, por exemplo).
A segunda linha de ação externa, que complementa essa primei-
ra, é a retomada da política externa altiva e ativa, que pressupõe o

● 180 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

protagonismo internacional do Brasil, a partir de uma priorização do


multilateralismo e das relações Sul-Sul, destacando-se a importância
estratégica de África, dos Brics e, de forma especial, da América La-
tina e Caribe como possíveis parceiros internacionais. No programa,
destaca-se que há prioridade conferida às relações com a América
Latina através do Mercosul, Unasul e Celac, que devem receber
destaque como plataformas para a inserção internacional brasileira
e serem recuperados sob um novo Governo Lula. Destaca-se ainda
a necessidade de o Brasil contribuir para a articulação (e, por que
não, liderar) de um desenvolvimento integrado, pautado pela com-
plementariedade produtiva entre os países da região.
Um aspecto relevante do programa que certamente impacta na
possibilidade de retomada de uma política altiva e ativa, bem como
para que o país possa se projetar externamente com legitimidade na
luta contra assimetrias do sistema internacional, é a preocupação
com o desenvolvimento de uma política de Direitos Humanos que
seja compatível com o respeito, proteção e incentivo a minorias, e
que afirme proteção à liberdade religiosa e de culto, bem como de
imprensa. Atenção também é dada para as políticas ambientais, afir-
mando-se não só o cumprimento dos compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil na Conferência de 2015 em Paris, bem como
a necessidade de proteção e recuperação das áreas devastadas,
com respeito às comunidades locais. Destacam-se ainda políticas
voltadas à soberania alimentar (a partir da compra e regulação
de estoques, e incentivos a agricultura familiar), visando garantir
com que não haja fome em um país como o Brasil, que é potência
do agronegócio. Deve-se lembrar que áreas como meio ambiente e
Direitos Humanos, e também o combate à fome, foram importantes
ativos da projeção externa do Brasil nos governos do PT, mas foram
destruídas pelo Governo Bolsonaro.
Outro elemento essencial que impactará a viabilidade da polí-
tica altiva e ativa, a qual o programa se preocupa, é a recuperação
da atuação do Estado como ator capaz de induzir e coordenar o
desenvolvimento. Para tanto, o programa pressupõe papel ativo do
Estado com uso estratégico do investimento e de compras públicas
para exercer papel contracíclico e o incentivo do crescimento eco-
nômico. Projetam-se investimentos em infraestrutura, a retomada
do investimento público em Ciência & Tecnologia, a busca pelo

● 181 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

fortalecimento da indústria e agricultura, um plano de estatização de


setores estratégicos (colocando-se abertamente contra a privatização
da Petrobras, Eletrobras e Correios), e uma política energética que
gere fundos para o investimento em políticas públicas, destacando-se
a retomada do papel da Petrobras na exploração, produção, refino e
distribuição, bem como sua atuação “nos segmentos que se conectam
à transição ecológica e energética, como gás, fertilizantes, biocombus-
tíveis e energias renováveis”. No comércio internacional, propõe-se
que haja um aperfeiçoamento da tributação no qual produtos com
maior valor agregado e tecnologia embarcada sejam progressiva-
mente desonerados. O plano deixa explícito que tais políticas visam
“superar o modelo neoliberal que levou o país ao atraso” (assume-se
compromisso ainda com a revogação do teto de gastos e da reforma
trabalhista, bem como a proposição de uma reforma tributária que
aumente tributo para os mais ricos).
A terceira linha de atuação que percebemos no programa,
relacionada a política externa e relações internacionais, foca em
segurança e defesa. Em uma dimensão mais ampla, o programa
articula segurança e defesa não só a ação das Forças Armadas, mas
a recuperação da soberania do Estado, a qual as políticas propostas
que citamos até agora devem ter o papel de contribuir para fortalecer,
em especial as políticas que visam ao desenvolvimento de C&T, à
soberania alimentar e energética e à recuperação e modernização da
indústria nacional, em especial em setores estratégicos.
Já em uma dimensão mais específica, o programa conecta a
defesa da soberania nacional à “integração da América do Sul, da
América Latina e do Caribe, com vistas a manter a segurança regio-
nal”, reforçando a recuperação da prioridade da região na política
externa a partir de uma visão multidimensional e não apenas econo-
micista. O programa destaca ainda a necessidade de o Brasil investir
na indústria de defesa, promovendo o seu desenvolvimento como
elemento ligado à própria soberania e como estratégia dissuasória.
Quanto às Forças Armadas (FAs), a proposta destaca que seu papel
é garantir a soberania territorial, aérea e marítima, “cumprindo
estritamente o que está definido pela Constituição”. Sem citar di-
retamente as FAs, o programa defende que é “necessário superar o
autoritarismo e as ameaças antidemocráticas” e repudia “qualquer
espécie de ameaça ou tutela sobre as instituições representativas”.

● 182 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Os planos de Ciro e Tebet


O programa do candidato Ciro Gomes (PDT) é o mais difícil
de ser lido da perspectiva de proposição de políticas voltadas es-
pecificamente às relações internacionais brasileiras. O candidato
apresentou um programa enxuto, dividido por temas, no qual a
política externa e de defesa nacional não aparecem, bem como não
há nenhuma informação sobre que tipo de leitura se parte sobre a
conjuntura internacional.
De forma bem geral, afirma-se que as negociações econômicas e
diplomáticas seguirão os princípios da defesa dos interesses nacional e
da soberania do país. Para isso, aposta-se em um programa nacional de
desenvolvimento pautado no investimento público em políticas sociais
(educação, saúde etc.), no papel ativo do BNDES, além de visar alterar a
composição tributária do país e a política de preços da Petrobras (todos
pontos também citados por Lula). Pauta-se ainda o combate à fome e à
desigualdade. Defende-se também a ideia de se colocar a cultura como
afirmação da identidade nacional, alterando a estética internacional
do país e valorizando os costumes locais através de novas linguagens
que podem ser potencializadas com o uso de tecnologias, e a busca por
novas simbologias e uma unidade em torno da ideia de nação.
Já o programa da candidata Simone Tebet (PMDB/PSDB) ressalta
que o país precisa de uma reconstrução ampla e abrangente, que passa
por mudança estruturais. A avaliação de conjuntura que consta do
plano é de que o Brasil tem um governo instável, pouco convidativo
ao investimento, e que a democracia e economia nacional atravessam
momento difícil. Assume-se ainda que o país é atualmente um vexa-
me mundial, em especial pela política ambiental adotada, baseada
na destruição do ecossistema nacional, principalmente Amazônia e
Pantanal, que causa vergonha internacional e isola o país.
A diretrizes de desenvolvimento estão divididas em quatro ei-
xos: combate às desigualdades, compromisso com a economia verde,
construção de um governo parceiro da iniciativa privada, e combate
ao preconceito e discriminação. Não existe uma seção exclusiva a
política externa no documento, mas propostas para o setor surgem
em vários pontos do texto. Assume-se como primordial que o Brasil
busque por protagonismo e relevância internacional e abandone
políticas que o isolam do mundo. Destacamos três frentes principais
das propostas de Tebet.

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Em primeiro lugar, defendem-se políticas voltadas para a consa-


gração das mudanças estruturais neoliberais que o país vem adotando
desde a gestão Temer. O texto contempla uma visão do Estado como
ator que deve “propiciar melhores condições para o investimento
privado acontecer, com estabilidade e responsabilidade. O governo
tem que possibilitar ambiente estável, previsível, pacífico, com segu-
rança institucional, jurídica e regulatória”. Nessa toada, defende-se a
continuidade da política de concessões, privatização e desestatização.
Argumenta-se ainda pelo investimento em infraestrutura logística,
mas a partir da suposição de que haverá grande contribuição da
iniciativa privada e investimentos externos. Nesse sentido, o papel
do BNDES é pensado a partir da restauração de sua atuação dentro
do Programa Nacional de Desestatização.
Em termos comerciais, o plano avalia que há necessidade de
“ampliar o grau de abertura comercial e de internacionalização da
economia brasileira”, inclusive para potencializar a participação do
Brasil nas cadeias produtivas globais. Para tanto, deve-se implemen-
tar um plano de redução gradual de tarifas aduaneiras, eliminar
medidas não tarifárias e fomentar “negociações comerciais, com
ênfase em acesso a mercados”. Assume-se que o país deve “negociar
novos acordos comerciais e buscar maior participação no comércio
internacional”, citando-se explicitamente que o “custo Brasil” é um
dos principais fatores que limitam a atuação econômica do país no
cenário externo. Para combatê-lo, seria necessário o aprofundamento
das reformas liberalizantes as quais seriam consagradas com o avanço
no acesso à OCDE, “concebido como oportunidade para revisão geral
das políticas públicas nacionais, visando ao seu aperfeiçoamento à
luz das melhores experiências e práticas”. Tais medidas restaurariam
a confiança dos investidores no país, essenciais para que a política
proposta seja colocada em prática.
A segunda frente das propostas de Tebet para as relações
internacionais brasileiras foca na busca de um protagonismo
internacional para o país por meio da agenda internacional de
sustentabilidade, baseado na economia verde e em um mercado
de crédito de carbono estruturado e bem desenvolvido. Para isso,
deve-se combater a agenda de desmatamento e buscar novas me-
didas de desenvolvimento sustentável. Cita-se a importância da
retomada do Fundo Amazônia e fortalecimento de sua governança,

● 184 ●
Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

bem como o papel que o país pode ter na transição energética por
possuir uma matriz limpa, renovável, segura e barata. Uma con-
tradição, contudo, é a premissa assumida pela candidata de que
o “setor produtivo brasileiro – e o agro em particular – já produz
com sustentabilidade e responsabilidade”, o que se choca com a
realidade brasileira.
A terceira frente das propostas da candidata destaca a integra-
ção regional e o multilateralismo como aspectos estratégicos para
a inserção internacional brasileira. Assume-se o compromisso de
“reforçar a integração latino-americana, aprofundando acordos
já existentes e negociando novos acordos”, com destaque para a
necessidade de promover “a integração física e os investimentos
em infraestrutura na América do Sul”. Contudo, não se apontam
formas de fazer isso, lembrando-se que o papel do BNDES, que
poderia contribuir para financiar essa proposta, não contempla
tais atuação no plano de Tebet. Sobre o Mercosul, é perceptível
que é entendido como aspecto importante para o Brasil que deve
ser consolidado e aprofundado a partir de “ações voltadas para a
liberalização do comércio de bens e serviços e dos movimentos de
pessoas e de capitais entre os sócios do bloco”.
Com relação ao multilateralismo, o texto destaca a impor-
tância da atuação do Brasil na OMC para fomentar um “sistema
multilateral de comércio mais aberto e menos discriminatório”, a
necessidade de o país “engajar-se nas discussões de grupos pluri-
laterais dos quais o Brasil participa, tais como G-20 e Brics, com
vistas ao fortalecimento do multilateralismo”, e elenca-se ainda a
urgência de o país “recuperar o prestígio da diplomacia brasileira
nos diversos foros internacionais, intensificando a participação do
país nos trabalhos das Nações Unidas”, com destaque para ações
que visem “ (1) mitigar as mudanças climáticas; (2) promover o
desenvolvimento sustentável; (3) garantir a paz e a segurança
internacionais; (4) combater o tráfico de armas e de drogas, a cor-
rupção, o terrorismo e a guerra cibernética, entre outras questões
globais; e (5) reformar a Carta da ONU e ampliar seu Conselho de
Segurança”. Em tais ações propostas fica patente o entendimento
de que o Brasil deve focalizar sua vocação universalista da PEB e
de defesa do multilateralismo.

● 185 ●
Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Outros pontos
Um aspecto que chama atenção em todos os planos de governo é
que os quatro assumem que é possível superar a dicotomia que opõe
o crescimento econômico à proteção do meio ambiente e Direitos
Humanos. Todos os candidatos apresentam propostas que pressu-
põem ser possível, de um lado, respeitar minorias e comunidades
locais, e recuperar e preservar ecossistemas, e de outro, promover o
crescimento econômico e a exploração de minérios, agropecuária e de
outros recursos naturais, bem como o desenvolvimento da estrutura
produtiva industrial. Contudo, nenhum candidato – para além de
afirmar que é possível essa conciliação – de fato diz como vai fazer.
Esse é um ponto importante, pois na proposta de todos os candidatos
se percebe que há a expectativa de se explorar internacionalmente o
papel que o Brasil pode ter para a mudança energética e como líder
em negociações ambientais.
Outro ponto que falta no plano dos candidatos é especificar a
forma como o Brasil deve atuar com relação a parceiros específicos.
Em especial, nota-se que o plano de nenhum dos quatro candidatos
tratou das relações Brasil-China, que são tema de debate e embate no
país, sendo esta o principal parceiro comercial, pois tem uma forte
presença na América Latina hoje, competindo com produtos e empre-
sas brasileiras e avançando em investimentos em setores estratégicos
como o setor de energia e infraestrutura. É mister pensar em como
lidar como esse Estado, que a despeito desse quadro desvantajoso, é
um parceiro importante na defesa do multilateralismo e na construção
de uma ordem multipolar, especialmente porque pode contribuir no
sentido de a América do Sul alcançar maior margem de manobra em
relação aos Estados Unidos.
De modo geral, as candidaturas de Jair Bolsonaro e de Simone
Tebet apostam em um programa neoliberal, pautado na desesta-
tização e no acesso do Brasil à OCDE, cuja meta (já frustrada nos
anos 1990 e desde 2016) é atrair investimento externo via acordos
comerciais (desvantajosos), assumindo-se que o papel do Estado é
de mero coadjuvante do desenvolvimento. Tebet diferencia-se de
Bolsonaro por defender o desenvolvimento sustentável de maneira
mais inovadora e profunda, e pelo fato de que contra os planos de
Bolsonaro pesa a descrença, com base na realidade de seus quatro
anos de governo, de que sairão minimamente do papel.

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Pragmatismo irresponsável: Política externa e inserção internacional do Brasil no Governo Bolsonaro

Já Lula e Ciro Gomes parecem se aproximar na estratégia de


desenvolvimento nacional pautada em investimentos públicos,
política sociais e defesa da soberania nacional. Ciro não dá grande
destaque à política externa, enquanto Lula enfatiza a retomada da
política externa altiva e ativa que gerou tantos louros no seu governo.
Em especial, defende o multilateralismo e a busca por cooperação
e complementariedade produtiva na América do Sul, aspectos que
também são destaque no programa de Tebet. A diferença é que Lula
parece enxergar a cooperação regional a partir de uma perspectiva
mais multidimensional (incluindo questões de segurança) que Tebet,
que tem um foco mais econômico. Com relação ao multilateralismo,
o reconhecimento que Lula faz da existência de assimetrias estrutu-
rais no sistema internacional é maior do que o de Tabet, que parece
– como Bolsonaro – resignar-se com o fato de que o Brasil deve
atuar em conformidade com esse sistema, arcando com os custos de
adequação pelo menos no que diz respeito à integração econômi-
ca internacional. No campo político, contudo, Tebet descola-se da
conformidade perseguida por Bolsonaro ao defender abertamente
a reforma do CSONU.

Considerações finais
O centro da questão é a percepção ajustada das realidades locais
e internacionais e o papel no Brasil nesse contexto. É possível imaginar
duas estratégias que se localizam em campos opostos: de um lado,
uma de subordinação e alinhamento ao imperialismo seguindo as
diretrizes internacionais; de outro, a busca por autonomia, protago-
nismo e investimento na construção de uma nova ordem internacional
na qual Brasil e a América do Sul podem ocupar outro papel. Olhando
para a estratégia dos candidatos, a de Lula e talvez a de Ciro (o julga-
mento de sua estratégia é prejudicado pela falta de informações sobre
o que pretende fazer em termos de relações internacionais) – estariam
mais próximas de uma busca de autonomia. Ambos vislumbram a
recuperação do papel do Estado, de seus mecanismos de intervenção
pública, das empresas estatais e setores estratégicos que podem atuar
para diminuir a vulnerabilidade e a necessidade de subordinação do
Estado aos interesses estrangeiros, pelo menos à medida que isso for
possível para um país dependente como o Brasil. Lula, em especial,
pretende usar o multilateralismo e as relações Sul-Sul como forma
de contornar as assimetrias internacionais.

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Ana Tereza Marra, Gilberto Maringoni e Giorgio Romano Schutte (Organizadores)

Já os planos de Tebet e Bolsonaro estariam localizados em maior


medida na vertente da subordinação e alinhamento ao imperialismo.
Ambos possuem uma visão de Estado pautada no neoliberalismo e
que internacionalmente visa agir em conformidade com o sistema
internacional vigente. Merece menção, contudo, o fato de que o plano
de Tebet prevê menor conformidade internacional do que o de Bol-
sonaro, ao propor uma atuação do Brasil como liderança na agenda
ambiental, multilateral e na América do Sul.
Por fim, cabe salientar que a política externa não deve ser vista
como uma área secundária dentro dos programas de governo, apesar
de ocupar pouquíssimo espaço neles, pois ela se conecta intimamente
às demais políticas (econômica, social e ambiental) e se pauta por
uma visão estratégica de inserção internacional, de soberania e de-
senvolvimento do país.

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O
Observatório de Política Externa e Inserção
Internacional do Brasil (OPEB) configura-se
como um projeto de extensão da Universida-
de Federal do ABC (UFABC) e nasceu em 2019 como
fruto de um esforço conjunto de docentes, discentes e
militantes da área de Relações Internacionais. Seus ob-
jetivos são analisar e debater, de forma democrática,
crítica e sistemática, as variadas faces das relações do
Brasil com o mundo. O OPEB publica quinzenalmente
uma newsletter com reflexões sobre o tema, e sua assi-
natura pode ser solicitada em opeb.org
ISBN
ISBN978-65-5412-318-1
978-65-5412-356-3

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