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EDITORIAL

EDITORIAL

Integridade e ética na pesquisa e na publicação


científica

Miriam Ventura 1
Suelen Carlos de Oliveira 2,3

doi: 10.1590/0102-311X00283521

A integridade constitui uma recente dimensão da ética em pesquisa que orienta as boas 1 Instituto de Estudos em
Saúde Coletiva, Universidade
práticas científicas e demarca deveres profissionais relacionados a essa atividade. Nor- Federal do Rio de Janeiro, Rio
teadas por valores fundamentais da ciência e da ética em pesquisa, tais como a honesti- de Janeiro, Brasil.
2 Escola Nacional de Saúde
dade, transparência, respeito, imparcialidade, responsabilização e boa gestão da atividade
Pública Sergio Arouca,
científica, as discussões têm trazido e orientado importantes questões para o campo cien- Fundação Oswaldo Cruz, Rio
de Janeiro, Brasil.
tífico e ético.
3 Universidade do Grande
A produção científica envolve a atuação de diferentes atores e uma série de atos e com- Rio, Duque de Caxias, Brasil.
promissos baseados na confiança mútua e compartilhamento de responsabilidades, que vão
desde o planejamento da produção do conhecimento até a divulgação e o uso dos resulta-
dos pela sociedade.
No que se refere à divulgação, há uma relação intrínseca e indissociável entre integri-
dade na pesquisa e a ética em publicação científica. O processo editorial é um “lócus sen-
tinela” na identificação, na prevenção e repressão de más condutas, e elemento-chave para
o bom funcionamento do sistema de pesquisa na difusão de conhecimento científico de
qualidade e confiável 1.
Disputas de autoria e coautoria, conflitos de interesses, plágio e publicações duplica-
das, pesquisa sem consentimento livre e esclarecido, fabricação e falsificação de dados, uso
indevido de informações de banco de dados são alguns exemplos de más condutas 1,2. É
impossível ter uma publicação idônea se houver má conduta na sua realização 1. Nesse sen-
tido, o processo editorial demanda políticas e boas práticas em prol da integridade na di-
vulgação científica, possibilitando a apreciação ética das publicações, além da científica, e a
prevenção de más condutas.
A atividade científica é sempre dinâmica e ampla, reflete culturas e dinâmicas sociais
globais e locais. As normas éticas em pesquisa podem variar nos países e entre campos de
conhecimento específicos com relação às exigências para a condução dos estudos, à ne-
cessidade de prévia avaliação ética para sua prática e à forma como é institucionalizada
a revisão ética. Considerando esta diversidade das práticas científicas e institucionais e o
pluralismo ético, a comunidade internacional tem chegado a consensos em relação a parâ-
metros e diretrizes éticas que devem ser universalmente respeitados. Este contexto plural e

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença


Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodu-
ção em qualquer meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja
corretamente citado. Cad. Saúde Pública 2022; 38(1):e00283521
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EDITORIAL

dinâmico traz maior complexidade e amplia as responsabilidades de pesquisadores e edito-


res na gestão editorial científica.
Quão ativo deve ser o papel das revistas e editores na supervisão ética no processo edi-
torial? Quais os limites e as possibilidades de se apreciar aspectos relativos à ética em pes-
quisa e à integridade nesse processo? Essas são indagações que têm exigido uma reflexão
densa sobre a ética em publicações científicas.
Neste editorial, apresentaremos alguns aspectos críticos da supervisão ética no processo
de editoração com base nas diretrizes éticas nacional e internacional e deliberações do Co-
mitê de Ética na Publicação (COPE) 3. Tais diretrizes têm auxiliado as equipes editoriais na
adoção de medidas e na tomada de decisão sobre as publicações submetidas à apreciação.
O COPE recomenda que a supervisão ética deve incluir, mas não se limitar a políticas
de consentimento à publicação, cuidados em relação à conduta ética de pesquisa com seres
humanos e populações vulneráveis, manuseio de dados confidenciais e práticas éticas de
negócios/marketing. Destaca quatro critérios, além dos usualmente utilizados durante a
revisão editorial no âmbito da supervisão: (1) validade científica-metodológica e a contri-
buição do estudo para o campo de conhecimento e a sociedade; (2) ponderação de riscos
e benefícios da investigação para população participante; (3) procedimentos adotados de
mitigação/minimização de riscos e danos individuais e coletivos; (4) comprovação e análise
do cumprimento de exigências regulamentares, institucionais e/ou legais, relacionadas à
avaliação ética do estudo.
As dúvidas recorrentes sobre a supervisão ética editorial na última década levada ao fó-
rum do COPE relacionam-se à necessidade de aprovação em comitês de ética ou conselhos
de revisão institucionais, anterior ou posterior ao estudo realizado, e os encaminhamentos
relativos às diferentes normas dos estatutos éticos entre os países e campos do conheci-
mento pelos periódicos. Outro assunto recorrente é a utilização de termos de consenti-
mento e assentimento e as possibilidades de dispensa em estudos com crianças e outros
grupos vulneráveis, em estudos considerados de baixo risco, autoexperimentação e pesqui-
sas em mídias sociais.
A política editorial de revisão por pares especialistas é medida adotada largamente pelas
revistas e indispensável na análise da validade científica metodológica e contribuição do
estudo para o campo de conhecimento e a sociedade. Os especialistas pareceristas veri-
ficam possíveis vieses e cofatores não considerados que podem comprometer os resulta-
dos e a admissibilidade dos procedimentos adotados no estudo pela comunidade cientí-
fica. Com base na produção bibliográfica do campo, os revisores adensam sua avaliação e
recomendam atualizações e esclarecimentos sobre esses e outros aspectos relacionados ao
escopo da revista.
As informações metodológicas e éticas sobre o estudo realizado permitem também
apreciar os critérios de ponderação de riscos e benefícios da investigação e os procedi-
mentos adotados para a minimização de riscos e danos para a população investigada ou
coletivos. A não clareza dos procedimentos adotados justifica que editores requeiram in-
formações adicionais para seguir o processo editorial.
A exigência de avaliação e aprovação institucional prévia de estudos de pesquisas com e
em seres humanos por comitês de ética, com composição multiprofissional, já estava pre-
sente na Declaração de Helsinque da Associação Médica Mundial, em 1964, e o procedimen-
to está difundido e institucionalizado na maioria dos países. Na dúvida sobre a existência
de regulamento ético e normas específicas, como a obrigatoriedade de análise ética por

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instâncias institucionalizadas nos locais em que foram conduzidas as pesquisas, a equipe


editorial deve requerer esclarecimento dos pesquisadores e promover avaliação cuidadosa
do seu cumprimento. O processo editorial pode até mesmo não acatar avaliação ética pré-
via de comitês ou vetar a publicação caso considere inapropriada a avalição realizada ou a
ausência desta, diante da constatação de grave violação de deveres éticos estabelecidos no
contexto local e/ou internacional.
Na proteção da vida privada e dignidade das pessoas envolvidas nos estudos são exi-
gidas a declaração e a explicitação do processo de consentimento livre e esclarecido dos
participantes das pesquisas. Alguns temas são ainda objeto de dúvidas e envolvem aspectos
éticos específicos: o uso e compartilhamento de bancos de dados e os cuidados relativos
à privacidade das informações, autorização de uso e segurança, com regulamentação na-
cional e internacional específicas 4; aplicação de métodos e técnicas comumente utilizados
pelas ciências sociais e humanas na pesquisa no campo saúde 5, como estudos etnográficos,
observações participantes, interação com pessoas on-line para fins de pesquisa. Há consen-
so ético que todas essas modalidades devem ser consideradas intervenções dependentes de
aprovação ética prévia por comitês do projeto de pesquisa e devem obter consentimento
dos participantes, com possibilidades de dispensa autorizada pelos comitês e devidamen-
te fundamentadas, justificadas, com explicitação dos cuidados adicionais e a conduta a ser
adotada a posteriori 6. Tais deveres éticos estão previstos e consensuados internacionalmen-
te desde 1947, no Código de Nuremberg, e reiterados e atualizados nos diferentes contextos
sociopolíticos, campos de conhecimento e normas éticas ao longo de décadas.
O ideal seria evitar a realização de pesquisas eticamente inadequadas, mas nem sem-
pre é possível identificá-las na avaliação dos projetos pelos comitês de ética em pesquisa
e no próprio processo de supervisão ética editorial. A postura ativa, consciente e respon-
sável da rede de atores na identificação das más práticas é primordial na superação des-
sas limitações, estimulando-se o encaminhamento de objeções e comprovações aos edito-
res das más condutas observadas pelos leitores nos estudos publicados. Os editores têm
adotado medidas como a correção e retratação de artigos de acordo com a gravidade da
conduta verificada após a publicação, alertando toda a comunidade acadêmica e sociedade
sobre a ocorrência.
Medidas como a não aceitação de avaliações éticas anteriores ou a ausência destas –
quando não exigida no local do estudo ou no campo específico de conhecimento – e a
retratação e correção de artigos publicados são sempre excepcionais. Exige-se, portanto,
avaliação cuidadosa da equipe editorial em diálogo com as/os autoras/es, suas instituições
e outras partes quando cabível, zelando pelo direito ao contraditório e ampla defesa, e de-
liberações devidamente fundamentadas e orientadas pelos valores que envolvem à integri-
dade da pesquisa.
À vista dos variados interesses que permeiam as relações e atividades de pesquisa e po-
dem influenciar sua condução e o próprio processo editorial, a identificação e tratamento
de possíveis conflitos de interesses no processo editorial. Os conflitos podem ser de natu-
reza financeira, pessoal, acadêmica, relacionada à afiliação institucional, política ou mesmo
religião. Podem, ainda, ser relacionados à tecnologia utilizada na pesquisa ou na apresenta-
ção, assim como à tecnologia concorrente a essa. Há consenso sobre a importância de iden-
tificá-los e da impossibilidade de eliminá-los completamente das publicações científicas 4.
Nesse sentido, o COPE aconselha que os periódicos devem estabelecer políticas ins-
titucionais claras e objetivas que permitam a identificação e o tratamento adequado dos

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conflitos de interesses. A declaração da fonte de financiamento do estudo, dos possíveis


conflitos de interesses existentes e mesmo a natureza do vínculo entre pesquisadores e fi-
nanciadores são algumas das exigências requeridas pelos editores. É recomendado também
que os editores incluam orientações sobre o processo de tratamento desses conflitos identi-
ficados pelos autores, revisores e editores ou entre eles. Informar sobre o potencial conflito
de interesse de qualquer natureza no processo editorial e de divulgação possibilita maior
transparência e credibilidade na produção científica 3,7.
As boas práticas editoriais recomendam o fortalecimento das normas éticas consolida-
das internacionalmente e a supervisão ética cuidadosa na apreciação dos estudos para a pu-
blicação. Os editores têm legitimidade reconhecida pela comunidade científica no sentido
de exigir o cumprimento das normas consensuadas internacionalmente.
É certo que os processos de supervisão ética sempre serão limitados e para atingir es-
te valor ético da integridade cada ator deve desempenhar seu papel de forma ativa, cons-
ciente e responsável. As instituições devem estabelecer políticas para promover a integri-
dade acadêmica, investigar e resolver casos de má conduta. O pesquisador deve aderir às
boas práticas e ser responsável na realização e gestão da pesquisa e divulgação dos resul-
tados. O periódico científico deve encorajar a integridade na pesquisa e zelar pela qualida-
de e idoneidade da informação. O público deve exercer cidadania participativa e usar de
forma consciente e crítica os resultados de pesquisa e os canais disponíveis de denúncia
das más práticas.
É essencial a percepção do valor transformador do conhecimento gerado pela pesquisa,
como um direito humano e fundamental ao bem-estar e ao progresso científico. Igualmen-
te urgente a tomada de consciência ética sobre as ações de cada um nós na produção e dis-
seminação do conhecimento científico.

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EDITORIAL

Colaboradores
1. Coeli CM, Lima LD, Carvalho MS. Hipercom-
Ambas as autoras contribuíram com a concepção, petitividade e integridade em pesquisa. Cad
Saúde Pública 2017; 34:e00000718.
elaboração, redação, revisão e aprovação do manus-
2. Shinkai RSA. Ética em publicações científicas.
crito.
Dados eletrônicos. Porto Alegre: EDIPUCRS;
2018.
3. Committee on Publication Ethics. Guidance
Informações adicionais for editors: research, audit and service evalu-
ations. https://publicationethics.org/files/guid
ORCID: Miriam Ventura (0000-0001-8520-8844); ance_for_editors_research_audit_and_ser
Suelen Carlos de Oliveira (0000-0002-0090-2341). vice_evaluations_v2_0.pdf (acessado em 25/
Nov/2021).
4. Ventura M, Coeli CM. Para além da privacida-
de: direito à informação na saúde, proteção de
dados pessoais e governança. Cad Saúde Públi-
ca 2018; 34:e00106818.
5. Oliveira LRC. A antropologia e seus compro-
missos ou responsabilidades éticas. In: Fleis-
cher S, Schuch P, organizadoras. Ética e regu-
lamentação na pesquisa antropológica. Bra-
sília: Letras Livres/Editora Universidade de
Brasília; 2010. p. 25-38.
6. Conselho Nacional de Saúde. Resolução no
510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as di-
retrizes e normas regulamentadoras de pesqui-
sa em ciências humanas e sociais. Diário Ofi-
cial da União 2016; 24 mai.
7. Rêgo S, Palácios M. Conflitos de interesse e a
produção científica. Rev Bras Educ Méd 2008;
32:281-2.

Recebido em 05/Dez/2021
Aprovado em 06/Dez/2021

Cad. Saúde Pública 2022; 38(1):e00283521

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