Conimbriga Anejos
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Conimbriga Anejos
Compreender a gestão dos resíduos de uma cidade Por outro lado, um esquema simplificado do sis-
romana é um exercício difícil, pois requer um con- tema de drenagem urbano romano deve considerar
junto de informação que, na maior parte dos casos, três ambientes fundamentais: público, privado e in-
nos chega demasiado fragmentada. Em primeiro lu- dustrial.
gar, desconhecemos, via de regra, a totalidade das A drenagem das águas pluviais pode realizar-se
infra-estruturas que existiram numa qualquer cidade; directamente para a rede de colectores; ou entrar num
em segundo lugar, o conhecimento teórico que dete- esquema misto, reaproveitando essas águas para ou-
mos sobre os sistemas e políticas locais de gestão dos tros fins e juntando-se posteriormente à rede de co-
resíduos urbanos durante o período imperial é escasso. lectores das águas impróprias, permitindo a sua reu-
Todavia, a cidade lusitana de Conimbriga ofere- tilização. Esta, por norma, é para limpeza de latrinas
ce um desses raros exemplos nos quais podemos es- ou de outras estruturas, transformando-se por fim em
tudar uma parte significativa das infra-estruturas de águas negras, que vertiam então para o receptor fi-
gestão dos resíduos e a sua evolução e adaptação ao nal - o rio ou as áreas extra-urbanas.
devir da própria cidade. Não existem registos, em Conimbriga, de redes
de colectores nas vias públicas dedicados exclusiva-
mente às águas pluviais; na grande maioria dos exem-
1. SISTEMAS DE DRENAGENS URBANOS: plos faz-se a junção, num mesmo colector, de águas
UMA VISÃO GLOBAL impróprias, negras e pluviais; daí a denominação de
sistema misto. Este sistema devia apresentar nume-
Como elemento essencial da gestão de resíduos rosas desvantagens, designadamente o facto de epi-
considerar-se-á aqui o sistema de drenagem constru- sódios torrenciais com elevados níveis de precipita-
ído em Conimbriga de finais do séc. I a. C. até aos ção excederem rapidamente os níveis de capacidade
meados do séc. II d. C. de escoamento das redes de colectores, com efeitos
Nada sabemos das lixeiras que certamente exis- poluentes generalizados de grande periculosidade.
tiram fora dos limites urbanos, com especial desta- Talvez por este motivo se encontrem algumas solu-
que para o vale do Rio de Mouros, sumidouro natu- ções ad hoc de melhoria dos sistemas de escoamen-
ral da cidade, pelo que se limitará o conceito de to, como a duplicação de colectores, ou a ampliação
«resíduo» às águas residuais das actividades priva- de galerias.
das, públicas e industriais, e às águas pluviais. No que Ao considerarmos os volumes e sistemas utiliza-
diz respeito à qualidade da água consideramos: dos para drenagem das águas utilizadas em meio
urbano, devemos tomar em linha de conta um outro
A) águas pluviais: águas não utilizadas nem con- factor de elevada importância: o espaço urbano re-
taminadas, reutilizáveis; presenta uma vasta área impermeabilizada. As cons-
B) águas impróprias: águas já utilizadas mas não truções, com as suas coberturas e pátios pavimenta-
contaminadas e reutilizáveis; dos, as praças lajeadas e as ruas pavimentadas
C) águas negras: águas contaminadas, não reuti- oferecem uma superfície que condiciona a absorção
lizáveis. das águas pluviais impondo novos percursos no seu
escoamento natural. Independentemente dos níveis de
***
CEAUCP, Universidade de Coimbra. permeabilidade de uma determinada pavimentação
***
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universida-
de Nova de Lisboa. (uma rua lajeada tem um comportamento diferente de
***
Museu Monográfico de Conimbriga. uma rua em terra batida).
182 Maria Pilar Reis, Adriaan de Man, Virgílio Hipólito Correia Anejos de AEspA LX
As construções respeitam a orientação desta rua meira análise, se poderiam associar a uma incipien-
e o escoamento das águas pluviais far-se-ia livremen- te malha de escoamento. Estas valas foram identifi-
te, sobre o pavimento. Umas destas casas conserva cadas a norte do espaço 6, atravessando o espaço entre
uma abertura rectangular de 0,30 m por 0,38 m5 que 1 e 2, bem como no espaço 138 das estruturas meri-
abre directamente para a rua; em nenhum trecho foi dionais da palestra e estão talvez relacionadas com
possível localizar um sistema de canalização das o escoamento de resíduos líquidos do interior das
águas domésticas ou pluviais, confirmando-se, nes- habitações em direcção ao extremo do planalto, de-
te caso como noutros aglomerados contemporâneos saguando inevitavelmente no vale do Rio de Mouros.
do oppidum de Conimbriga, a utilização da rua como É difícil definir o momento de construção destas
escoadouro natural dos resíduos líquidos domésticos valas; contudo, o seu contexto pré-imperial não dei-
e canalização aberta das águas pluviais. xa margem para dúvidas.
Neste núcleo do oppidum, uma segunda rua de
eixo norte-sul cruza obliquamente a rua principal,
sendo a sua largura inferior (3 m). 1.2.2. A cidade de Augusto (Fig. 2)
Esta segunda rua conserva, em melhor estado que
a anterior, o pavimento original formado por casca- a. Os monumentos públicos
lho, fragmentos de cerâmica cinzenta e alguns ossos
animais.6 A sua pavimentação apresentava-se sólida, A planificação das novas estruturas públicas da
bem executada e corresponde, sem dúvida, a uma cidade a partir de cerca de 15-10 a. C. centra-se em
acção de impermeabilização do espaço de circulação, dois pontos fundamentais: uma praça, que desde esse
o que talvez justifique a ausência de soleiras ao momento constituiria o ponto central do aglomera-
mesmo nível, mas sim a uma cota mais elevada, evi- do, e a construção de umas primeiras termas públi-
tando assim que, em momentos de elevada pluviosi- cas. O projecto inicial para o forum respeitou alguns
dade, se inundasse o interior das habitações. A cota dos limites impostos pela malha pré-existente, mas
desta rua (104,98 m) é ligeiramente superior à ante- impõe uma ligeira torção, provavelmente condicio-
rior (104,71 m), indicando que o escoamento se pro- nada pelas ruas existentes que conferiam uma plan-
cessava de norte para sul, dirigindo-se provavelmente ta trapezoidal aos quarteirões pré-imperiais.9 O pri-
para a zona oriental da cidade, talvez em direcção às meiro edifício termal público é um projecto unitário
portas do oppidum. que nasce num dos quarteirões meridionais. Apesar
Noutro ponto da cidade, na área a sul das termas, da proximidade do forum, não se localizava na sua
foram detectadas algumas construções atribuíveis à envolvente imediata, mas sim no limite do planalto.
época pré-imperial. Este núcleo não apresentava a A facilidade no escoamento das águas armazenadas
mesma coerência urbana que o anterior, o que tem na natatio poderá ter sido um argumento a favor desta
vindo a ser encarado como uma diferenciação cro- localização, mas não terá sido o único. Na topogra-
nológica entre ambos.7 Aqui a estruturação das ha- fia do planalto este local formava uma pequena de-
bitações apresenta-se de forma menos ordenada, sen- pressão, com cotas inferiores em relação a outros
do mais difícil identificar o traçado dos possíveis pontos da cidade, aproximadamente 3,30 m de dife-
eixos viários pré-imperiais. Todavia a topografia do rença em relação ao pavimento augustano da praça
planalto apresentava aqui um declive forte, ao qual do forum. Esta implantação facilitava a chegada de
se adaptaram as construções que respeitavam vaga- água e evitava a necessidade de altear a canalização
mente a orientação dos pontos cardeais, mas não do aqueduto, o que teria obrigado o arquitecto a pro-
definiam arruamentos, deixando tão só espaços irre- jectar um aqueduto aéreo e não subterrâneo, com
gulares galgando o desnível; esta situação colocou todos os constrangimentos implícitos pela construção
certamente, desde um primeiro momento, problemas de uma conduta sobre arcos, ou sobre um muro, no
na gestão das águas pluviais. Tal como na área do centro de um aglomerado urbano.
forum, não existe uma rede de escoamento estrutu- Na área urbana de Conimbriga não existem fon-
rada e adaptada ao traçado viário. Todavia, existe um tes naturais, nem poços, pelo que a construção des-
conjunto de valas escavadas no tufo que, numa pri- te edifício termal, com uma área útil de 1.372,25 m2,
implicava um abastecimento por aqueduto que repre-
5
R. Étienne e J. Alarcão descrevem esta abertura como
uma conduta de águas pluviais, sublinhando a inexistência de
8
soleiras abertas para esta rua (Etienne e Alarcão 1977, 18) O conjunto de valas escavadas no tufo é registado em
6
Étienne e Alarcão 1977, 19. Étienne e Alarcão 1977, 22.
7 9
Étienne e Alarcão 1977, 22. Correia e Alarcão 2008, 41-42 Est. VIII.
Anejos de AEspA LX
CONIMBRIGA
185
sentavam um consumo estimado de 192,01 m3 ras que abasteciam o alveus do caldarium. Neste es-
(considerando a natatio com uma capacidade máxi- quema de escoamento, apenas uma conduta segue no
ma de 173,35 m3, um pediluvium, com 1,75 m3 e um sentido este, vinda provavelmente das coberturas e
alveus no caldarium do qual não sabemos a profun- canalizando estas águas para sul. Por outro lado, não
didade mas ao qual atribuímos um valor hipotético temos qualquer indício de existirem umas latrinas
de 1 m, perfazendo 13,55 m3 de capacidade máxima). neste primeiro edifício, embora a sul da natatio exista
A estes valores deve somar-se o débito representa- um espaço atravessado por duas condutas de escoa-
do pelo labrum existente no frigidarium e um pos- mento que poderia ter tido essa função.
sível segundo labrum no caldarium, ainda que o la- A construção de dois colectores exteriores clara-
brum do frigidarium possa ser atribuído a um período mente não é uma obra menor. Ambos situados no
posterior e, que o existente no caldarium não seja exterior do edifício, seguem em espaços que seriam
confirmado por qualquer evidência para além de uma ocupados por vias. Infelizmente não nos foi possível
ábside situada no lado oposto do alveus. documentar o ponto em que o colector desaguava.
Sem a rigidez e precisão que os cálculos de dé- Será que este apenas se limitava a contornar o espa-
bito exigiriam, o débito calculado para o aqueduto de ço que mais tarde será destinado a um horreum si-
Conimbriga (0,217 m/segundo) diria que se poderi- tuado a sul do edifício termal?12 Ou irá recolher
am encher os três tanques termais em pouco mais de outras águas provenientes da zona ocidental do op-
15 minutos, mas convém sublinhar que o cálculo do pidum até desaguar no limite do planalto? Só traba-
débito do aqueduto admitiu,10 a nosso ver, parâme- lhos arqueológicos fora do perímetro da muralha
tros demasiado elevados, visto considerar quase todo permitirão dar respostas a estas questões.
o volume da canalização do aqueduto como canal de O forum augustano representa um maior desafio
débito. Os nossos cálculos, que diminuem esse vo- de interpretação. A sua demolição até às fundações
lume, apontam para metade dos valores anteriormente para dar lugar em época flávia ao novo forum, dei-
estimados. xou poucas evidências a par de uma controversa se-
Para além deste abastecimento pontual periodica- quência cronológica dos edifícios que o compuseram.
mente renovado, havia um consumo contínuo de água: Do sistema de escoamento das águas pluviais apenas
o labrum (um ou dois), estaria(m) em débito cons- recolhemos a indicação de uma canalização, constru-
tante; o pediluvium, que na verdade era uma fonte ída em alvenaria e com tampas em tijolos pedales13
com espelho de água, também poderia funcionar situada no extremo sul da praça. O pavimento da
permanentemente. A gestão dos consumos devia tam- praça seria em terra batida.14
bém levar em conta que o aqueduto não aportaria um A praça, de contornos trapezoidais, que antece-
volume constante de água e que, em períodos esti- dia o acesso sul ao forum era percorrida transversal-
vais, esse volume poderia atingir valores bastante mente pelo cano do aqueduto no sentido NE/SW, mas
reduzidos. existiria um esquema que assegurava a recolha das
Quanto aos escoamentos, o sistema debitava inte- águas pluviais, provenientes do forum e das áreas
gralmente em direcção oeste. Toda a água utilizada no envolventes, de que nada, ou muito pouco, restou. Por
edifício termal, e as águas pluviais das vertentes oci- um lado teríamos a rua a oeste do forum, que já nesta
dentais das coberturas, era canalizada em direcção a fase devia apresentar duas pendentes, permitindo o
uma conduta, abobadada e construída em alvenaria, escoamento para norte e sul, por outro, a zona a ori-
em sentido NE/SW.11 A esta mesma conduta se jun- ente do forum manteria o mesmo esquema de esco-
tavam as águas remanescentes do aqueduto, tal como amento superficial de época pré-imperial.
indica a existência de uma conduta, semelhante em
dimensão e técnica de construção, que deriva do ra-
mal do aqueduto imediatamente antes deste entrar no b. Os espaços privados
edifício. Neste último ponto existem alguns vestígi-
os de uma estrutura, revestida a opus signinum, situ- A intervenção augustana tocou também constru-
ada a 36 cm abaixo da cota do aqueduto que poderá ções privadas da cidade. A evolução urbana da cidade
ter funcionado como um pequeno ninfeu ou fonte propõe, para o período augustano, a manutenção dos
associada ao abastecimento da natatio. Talvez exis-
tisse aqui um reservatório que alimentava as caldei- 12
Se assim for esta canalização seria de construção poste-
rior ao período augustano, pois o horreum é um edifício clau-
10
Utilizamos aqui os valores publicados por R. Étienne e diano (Correia, 2004)
13
J. Alarcão (1977, 58-60). Étienne e Alarcão 1977, 39, n.p. 62.
11 14
Étienne e Alarcão 1977, 48-49. Étienne e Alarcão 1977, 38, n.p. 53.
Anejos de AEspA LX CONIMBRIGA 187
bairros pré-imperiais existentes no interior do perí- Conimbriga, o braço do aqueduto, que da torre de
metro urbano, e uma ampliação da área residencial água (erroneamente denominada como castellum
através da construção de novas insulae ao longo do aquae17) se dirigia directamente às Termas Sul, é
eixo sudeste. Aqui surgem a insula do Aqueduto e a desactivado como conduta de água limpa. A torre de
Casa dos Repuxos (1ª fase) e, a sul, a insula depois água é reestruturada e a nova rede de abastecimento
ocupada pela Casa de Cantaber e o edifício designado passaria a funcionar a uma cota mais elevada; na
como Lojas a Sul da Via. verdade assenta, no início do seu percurso, no extra-
Das condutas de escoamento pertencentes a estas dorso do aqueduto. Esta alteração importa por duas
quatro estruturas pouco podemos dizer: a Casa dos razões: em primeiro lugar porque, não havendo um
Repuxos vertia águas residuais para norte, em direc- aumento efectivo do caudal do aqueduto, há um au-
ção a uma linha de água depois ocupada por um rua mento de consumo - a água é transportada para ou-
importante; a ínsula da Casa de Cantaber e as lojas tros pontos da cidade e são construídas fontes públi-
a sul da via escoavam para norte, a primeira incom- cas18 (uma delas junto à rua a norte do fórum) e, para
pletamente e as segundas de maneira informal (sem além da nova rede de abastecimento das Termas Sul,
canalizações). outras insulae, como as situadas na vertente sul,
Contudo a Ínsula do Aqueduto, que encosta toda poderão ter sido abastecidas de «água corrente»; em
a fachada norte à estrutura do aqueduto, escoava para segundo lugar este aumento exponencial de consu-
este, em direcção a uma rua onde existe um colector mo privado originou um aumento considerável dos
de secção rectangular que conduz as águas para nor- caudais de água residuais e novos problemas na ges-
te em direcção à linha de água estruturante do sector tão dos resíduos.
Nordeste. Esta ínsula, estrutura única deste género na Desconhecemos qual a dimensão total desta rede
cidade, tem uma implantação muito especial em rela- de abastecimento, mas ela poderá ter-se limitado às
ção ao aqueduto. A altura do edifício ultrapassava o zonas novas da cidade, ou seja, as domus de maio-
topo do aqueduto, opção extravagante se atendermos res dimensões que, mais tarde, integraram zonas ajar-
à legislação que impedia a construção de edifícios dinadas com repuxos e novos edifícios termais situ-
privados paredes meias com os aquedutos. Poderá ter ados neste mesmo contexto urbano, e aos dois espaços
havido uma solução de compromisso, como sempre públicos mais exigentes em questões de abastecimen-
acontece nas soluções de excepção à regra da lei, e to: as termas e o forum. Sendo assim, as reestrutu-
sabemos que estes edifícios augustanos, construídos rações dos escoamentos poderão ter-se limitado a
sobre criptopórticos, representaram um papel na es- estas áreas, isto é, aquelas onde a implantação da nova
truturação urbana tão especial que terem sido, noutros rede de abastecimento exigia a priori uma reestru-
campos também, alvo de um tratamento diferenciado, turação da via, que poderá ter procedido simultane-
não deve causar especial estranheza. amente à colocação das canalizações em chumbo e
à construção de uma rede de escoamento.
Tal sucedeu na praça a sul do forum. A 10 m a
1.2.3. O projecto Claudio-Neroniano (Fig. 3) este do limite do forum flaviano, o cano do aquedu-
to augustano conserva um poço de acesso ao interi-
No período Cláudio-neroniano destaca-se a cons- or, pertencente à primeira fase de construção. Um
trução de um conjunto importante de obras públicas, metro a montante foi aberto, num momento posteri-
como o anfiteatro, o horreum a sul das termas sul e or, uma nova caixa de acesso ao specus, talvez para
a basílica de três naves no forum.15 É também neste receber as águas pluviais ou provenientes de uma
mesmo período que se introduz uma nova tecnolo- construção ainda não escavada e situada a sul. O tra-
gia que revolucionará os sistemas de abastecimento çado do aqueduto, agora transformado em cloaca,
da cidade, com a paulatina substituição das redes segue em direcção sudoeste, mas a análise da estru-
urbanas de abastecimento. As tradicionais condutas tura permite verificar a existência de um conjunto
em alvenaria são readaptadas ou integralmente subs- de cortes e novos acrescentos ao specus original.
tituídas por canalizações em chumbo.16 No caso de Uma segunda canalização, bastante danificada pela
construção do forum flaviano, foi parcialmente de-
15
Correia 2004, 268-273. molida na área de acesso a este. Esta segunda ca-
16
Em Ostia a mais antiga fistula com inscrição remonta a nalização, com orientação nordeste-sudoeste, pode-
Calígula, em Roma a Tibério (Ricciardi e Scrinari 1996). Em
Conimbriga não conservamos nenhuma fistula com inscrição
17
e as cronologias por nós sugeridas baseiam-se na sua contex- Reis e Correia 2006.
18
tualização arqueológica. Reis 2009.
188 Maria Pilar Reis, Adriaan de Man, Virgílio Hipólito Correia Anejos de AEspA LX
rá coincidir com o traçado original do aqueduto au- desactivava o aqueduto e permitia a sua transforma-
gustano, parcialmente demolido e reajustado às re- ção em cloaca.
modelações do sector monumental, pois este troço
corresponde à orientação do aqueduto na Rua das
Termas, neste momento já transformado em cloaca. 1.2.4. A revolução flaviana (Fig. 4)
A torção da canalização, consequência da alteração
da sua natureza, inicia-se no ponto onde referimos a O último quartel do séc. I d. C. será um momen-
existência de duas caixas de acesso, uma original au- to vital da remodelação urbana de Conimbriga. A de-
gustana e outra posterior, e coincidem com o ponto molição do centro monumental augustano e as sub-
onde foram implantadas as fistulas públicas que, neste sequentes reestruturações cadastrais e viárias, a
exacto local, se subdividem em duas canalizações. construção de um grande edifício termal com planta
Infelizmente não se conservou a respectiva caixa de de marcada inspiração imperial, que implicou tam-
derivação. bém a demolição das primeiras termas públicas de
A remodelação do sistema e a construção de no- Conimbriga, e todas as intervenções ocorridas na
vas cloacas na praça a sul forum deverá ser enqua- arquitectura privada, deram à cidade uma nova ima-
drada nas suas obras flavianas. gem e reconfiguraram a sua morfologia urbana.
A rua entre o Edifício da Pátera Emanuel e a Casa Entre o momento de construção do forum flavia-
de Andercus não teve uma cloaca central profunda, no e das novas Termas Sul, são edificadas umas no-
mas apenas esgotos superficiais, junto aos muros dos vas termas públicas no vicus novus, encaixadas en-
edifícios. Atendendo às pendentes da via as águas tre a Casa de Tancinus e a Casa dos Esqueletos.
teriam sido canalizadas nesta rua em direcção ao li- Talvez neste mesmo intervalo um outro edifício ter-
mite sul do planalto, só o extremo norte da rua tinha mal, de menores dimensões, ocupa uma antiga pra-
pendente para a praça a sul do fórum, mas o caudal ça junto ao aqueduto, na proximidade da via que
seria diminuto e confundir-se-ia com outros débitos conduzia a Aeminium.
aí reunidos. A arquitectura privada assume maior exuberância.
Desta praça a sul do fórum, o aqueduto transfor- Os tanques que adornam os peristilos recebem fon-
mado em cloaca, prosseguia pelo centro da rua a norte tes de arquitectura complexa nos quais a introdução
das termas, entre a ínsula do Vaso Fálico e a ínsula de um novo sistema de distribuição de água em fis-
a norte das Termas, recebendo todos os escoamen- tulae de chumbo permitirá a criação de jogos de
tos da ínsula situada a norte, área em que se identi- água.20 Mas quais as verdadeiras implicações de to-
ficaram numerosas estruturas relacionadas com a das estas reformas na gestão do crescente volume de
pequena industria urbana entre as quais uma possí- consumo em solo urbano? Corresponde esta fase a
vel fullonica. Da insula a sul (insula a norte das Ter- uma revolução nos sistemas de escoamento?
mas) apenas recebe um escoamento superficial e um A resposta é desconcertante: Não.
segundo, mais tardio, que atravessa longitudinalmente Seria expectável que no projecto flaviano tives-
as construções ocidentais, reunindo-se à cloaca no se sido introduzida uma rede de cloacas públicas que
ponto em que esta inflecte para sul em direcção às desse vazão a um aumento da produção de resíduos
Termas do Sul. (não só líquidos), mas tal não se verifica.
Não é muito claro como se operou a transforma- É neste mesmo período que Conimbriga assiste
ção do aqueduto em cloaca na área das Termas do Sul. à construção de latrinas públicas e privadas, à insta-
Se admitirmos que em época claudiana as Termas Sul lação de fontes públicas e prováveis ninfeus, e à ar-
são objecto de algumas transformações, com a remo- quitectura aquática dos jardins privados, mas verifi-
delação do frigidarium e a eventual construção do ca-se que as quatro redes de cloacas identificadas, e
denominado pediluvium, pode admitir-se que, no que já estariam em funcionamento em época flávia,
ponto onde o aqueduto entrava no edifício termal, foi se estruturam através de colectores de dimensões e
construído um novo ramal da cloaca, contornando técnicas construtivas díspares. O que encontramos são
exteriormente a fachada ocidental do edifício e con- soluções definidas para cada sector, resolvendo pro-
duzindo todas as águas negras em direcção sul. É blemas específicos, mas sem coerência entre os di-
visível no levantamento gráfico das escavações luso- ferentes sectores.
francesas a existência do negativo da fistula em chum- Os três sectores que funcionaram de forma inde-
bo sobrepondo-se ao antigo aqueduto19, fistula que pendente são os seguintes:
19 20
Étienne e Alarcão 1977, Planche III. Reis e Correia 2006.
190 Maria Pilar Reis, Adriaan de Man, Virgílio Hipólito Correia Anejos de AEspA LX
A) O forum e as Termas Sul: o escoamento das Nesta secção da fachada do forum, os dois colecto-
águas pluviais do forum, seja das coberturas dos res norte/sul que referimos permitem a circulação da
pórticos, seja da praça, foi desenhado em dois sen- água através dos colectores este/oeste situados sob a
tidos divergentes.21 As vertentes das coberturas do fachada do átrio foral. A estruturação dos colectores,
templo e do pórtico que envolve o temenos desagua- a sua monumentalização exterior através de arcos e
vam através de um colector situado no ângulo noro- o circuito existente entre ambos (sendo que o situa-
este em direcção à rua a norte do forum. Uma cana- do no ângulo sudoeste desaguava no colector da Rua
lização situada na base da esplanada do templo a norte das Termas) e a existência de um maciço as-
funcionava como colector de superfície da praça cujo sociado ao colector da Rua da Pátera Emanuel (que
lajeado apresentava uma pendente sul/norte. Esta se destaca do alinhamento), poderá indiciar a existên-
canalização, de secção rectangular, desembocava nas cia de um ninfeu, ou fonte monumental,24 situada na
ruas laterais do forum,22 prosseguindo através de fachada do átrio foral, entre o quadrifronte da entrada
colectores situados ao longo das fachadas laterais, e o templete oeste. Desta forma estaria justificada a
reunindo-se no ângulo exterior noroeste do monumen- existência de duas fistulae de chumbo, de que se con-
to, juntando-se aqui ao colector das coberturas. Des- servaram os negativos de assentamento e um troço de
conhecemos o percurso desta canalização para nor- aproximadamente 20 cm.25 Uma destas fistulas de
te, mas certamente seguiria por uma das ruas a norte chumbo era destinada ao abastecimento das Termas
do forum (em direcção ao anfiteatro?). Sul; a segunda abasteceria esta fonte pública.
Diferente tratamento recebeu a zona meridional do A relação topográfica entre a praça a sul do fó-
forum. Aqui estava localizado o seu único acesso rum e estes colectores é claramente desnivelada. A
directo, ornamentado com um arco tetrapylon, pro- rua apresenta um desnível de 1,5 m ao longo dos 48
vavelmente ladeado por dois templos in antis junto m de fachada do fórum, descendo para oeste.26
aos quais se associaram dois tanques, ou fontes.23 A O ninfeu, ou fonte, estaria colocado no eixo da
zona que medeia entre o acesso ao forum e a praça, Rua da Pátera Emanuel, o que lhe dava alguma jus-
propriamente dita, tinha no seu subsolo uma rede de tificação arquitectónica (substituindo a entrada do
colectores que garantiam a circulação das águas re- forum augustano como foco visual), insuficiente,
siduais provenientes de outros pontos da cidade, in- todavia, para eliminar a estranheza que causa um
tegrando a cloaca proveniente de este. É controver- tratamento tão desigual e desequilibrado da fachada
sa a proposta de funcionamento desta rede de do forum. Mas faria sentido, desta forma, a existên-
colectores. Um colector setentrional que recebia os cia de um colector, de grandes dimensões, que não
escoamentos de águas residuais provenientes da zona pode ser relacionado com a condução de águas resi-
oriental da cidade foi readaptado (reutilizando em duais da rua Pátera Emanuel, a qual tem uma pen-
parte o antigo aqueduto augustano) e redireccionado dente contrária, em direcção a sul, em quase toda a
de acordo com a nova fachada do forum, mantendo sua extensão.
a pendente este/oeste. Um segundo colector é cons- Um outro elemento se destaca nesta área do fo-
truído paralelamente ao colector setentrional, apresen- rum. Um maciço rectangular (2,50 m por 1,70 m) si-
tando a mesma pendente, recebia as águas pluviais do tuado no interior do pórtico sobrepõem-se aos colec-
tetrapylon, as transportadas por um terceiro colector tores meridional e setentrional; a sua função é
(também ele paralelo à fachada) e do colector do desconhecida, mas poderá estar relacionada com uma
extremo norte da Rua da Pátera Emanuel. Estes flu- torre de água27 pertencente ao sistema de abasteci-
xos reunidos eram canalizados através de um quar- mento deste sector da cidade, e especificamente à
to colector, com direcção e pendente norte/sul. A li- alimentação dos vários elementos do monumento que
gação entre os dois colectores (meridional e indicam o armazenamento e utilização de água.
setentrional) e este último era em ângulo recto, so- Em contrapartida, as Termas do Sul apresentam
lução que apenas pôde corresponder a colectores de um esquema de evacuação das águas residuais uni-
escoamento, nunca a aduções pensadas como tal.
24
Junto a um destes colectores existe uma pequena pia es-
21
Étienne e Alarcão 1977, 100. cavada num bloco de calcário que poderia relacionar-se com
22
Esta canalização tem pendente dupla, seja para oeste, um salientes publici.
25
seja para este. Étienne e Alarcão 1977, 109.
23 26
É controversa a reconstituição da zona sul do forum. As Correia 2004.
27
propostas mais recentes (Correia 2004) apontam para a exis- Ou torre de pressão (note-se que uma das fistulas se di-
tência destes dois templos situados sobre a plataforma sobre- rige para este local). Uma significativa percentagem de torres
levada, todavia não é muito clara a relação entre as cobertu- de pressão em Pompeia surgem associadas às fontes públicas
ras do pórtico e o arco de acesso ao forum. (Dybkjær-Larsen 1982).
192 Maria Pilar Reis, Adriaan de Man, Virgílio Hipólito Correia Anejos de AEspA LX
32
Étienne e Alarcão 1977, 149.
33
Reis 2009. Fig. 6. Foricae das Termas Sul.
194 Maria Pilar Reis, Adriaan de Man, Virgílio Hipólito Correia Anejos de AEspA LX
Um dos acessos (a Sul) a estas latrinas é posteri- são construídas no fundo de uma escada que dava ao
ormente eliminado, passando estas a ser servidas exterior da domus, no que era parte do sistema de
exclusivamente pelo acesso norte. caves e criptopórticos da primeira fase da casa, quase
Por fim, encontramos as pequenas latrinas da completamente amortizado em época hadriânea, com
Casa dos Repuxos, que são as mais bem conserva- esta excepção. O colector das latrinas é alimentado
das da cidade (Fig. 9). De planta quadrangular, com por uma canalização proveniente do impluvium do
3 m de lado, foram construídas na segunda fase da peristilo. A canalização de abastecimento, constru-
casa, presumivelmente no momento em que a remo- ída com tijolos lydion (de 51 cm por 31 cm de lado),
delação se concentrou no eixo principal da domus desembocava no interior da latrina directamente para
com a criação de um impluvium ajardinado e a cons- o colector que lhe percorre três das suas paredes, de-
trução da entrada monumental, datável genericamen- saguando por fim através duma abertura na parede
te da primeira metade do séc. II d. C.35 As latrinas norte, supomos em direcção a uma cloaca situada na
rua a norte da domus. Um canaliculus, esculpido nas
35
Oleiro 1992. lajes que cobrem o pavimento, era por sua vez ali-
196 Maria Pilar Reis, Adriaan de Man, Virgílio Hipólito Correia Anejos de AEspA LX
mentado por uma segunda canalização, presumimos 2. GESTÃO DOS RESÍDUOS SÓLIDOS:
em chumbo, proveniente do andar superior. Da fis- CONTEXTOS PÓS-IMPERIAIS
tula de chumbo apenas ficaram as concreções cal-
cárias. No canaliculus que bordeja os assentos são Se para a gestão dos resíduos líquidos da cidade
visíveis as marcas dos grampos que suportavam as imperial encontramos um conjunto numeroso de da-
placas dos assentos. O rebordo superior dos assen- dos, o mesmo não podemos afirmar sobre o destino
tos dá-nos 48 cm de altura em relação ao pavimen- de um conjunto de resíduos sólidos que garantidamen-
to. Internamente a latrina estava decorada com pin- te não poderiam ser integralmente evacuados pela
tura mural representando uma decoração geométrica rede de cloacas urbanas. Supomos que o vale do Rio
em espinha de peixe, com tons ocres, motivo comum de Mouros seria um dos destinos do considerável
neste tipo de ambientes. A porta de acesso às latri- volume de resíduos sólidos urbanos, mas provavel-
nas, que conserva na soleira as marcas do sistema mente existiram zonas de deposição de lixeiras loca-
de fecho, tinha uma janela anteposta que permitia lizadas no exterior da muralha augustana, zona onde
o seu arejamento. As exíguas latrinas da Casa dos contamos com escassas intervenções arqueológicas.
Repuxos são uma prova arquitectónica do engenho Um pouco diferente se nos afigura o panorama bai-
com que se reaproveitavam as águas em ambiente ur- xo-imperial da cidade.
bano. Encontram-se hoje razoavelmente documentadas
diversas transformações urbanas ao longo do século
V, reflectindo um câmbio social provocado pela ac-
1.4. A MURALHA BAIXO IMPERIAL (Fig. 10) ção de actores exógenos, mas acima de tudo uma
evolução interna que se encontrava já em marcha em
A construção da muralha36 nas últimas décadas 409, até então contida a custo através de legislação
do séc. III d. C. talvez terminada nos inícios do teodosiana e honoriana. Seria inútil reflectir de for-
séc. IV, impôs algumas alterações no sistema de es- ma contrafactual sobre a evolução urbanística ociden-
coamento da zona oriental da cidade. A demolição tal sem invasões germânicas, mas aceita-se uma ten-
dos sectores urbanos situados no exterior da cintura dência clara para a autarcia económica e acima de
defensiva ter-se-á reflectido no abandono dos colec- tudo para improvisações motivadas por interesse
tores associados às casas da Cruz Suástica dos pessoal e não público. Apesar da heterogeneidade
Esqueletos e das Termas da Muralha, e forçado a interna de cada cidade, aquilo que se constata numa
readaptação do colector proveniente do balneário grande maioria de casos são as graves alterações to-
da Casa de Cantaber e da Casa de Tancinus e a pológicas, bem como as adaptações na arquitectura
anulação de uma possível cloaca situada na rua e função de unidades residenciais. Em particular na
das Termas da Muralha, abolida pela construção da cidade de Conimbriga, foram criados depósitos de
muralha. detritos em estruturas negativas, que nos primeiros
Todavia, a área compreendida entre a Casa de anos daquele século V dificilmente teriam podido
Cantaber, Ínsula e Termas do Aqueduto não reflecte existir nas localizações em questão. Trata-se quase
qualquer alteração no sistema de cloacas. Bem pelo invariavelmente de covas abertas em contextos do-
contrário, o colector situado junto às Termas do mésticos tardo-romanos, e surgem dispersas por toda
Aqueduto, mantém-se em funcionamento após a cons- a área escavada, baseando-se o seguinte raciocínio
trução da muralha baixo-imperial, que encontrou uma apenas nos casos seguramente datados pelo radiocar-
solução para o seu atravessamento (como também bono.37 A primeira e mais evidente causa para a apa-
aconteceu, aparentemente, com o sector este da casa rição massiva deste género de estruturas negativas
de Cantaber e na área da casa do Tridente e da Es- dever-se-á às limitações gerais da administração lo-
pada). Mas não se conhece o modo de resolver a ma- cal, um fenómeno com amplas repercussões urbanís-
nutenção das cloacas direccionadas para o limite norte ticas, não apenas a nível da gestão de resíduos.
do planalto. Um exemplo elucidativo da amplitude de tais efei-
Com os dados de que dispomos é difícil delinear tos é a já bem conhecida instalação de um forno
o reajustamento das cloacas e colectores públicos da metalúrgico dentro da casa de Cantaber, apenas con-
cidade decorrido nos finais do baixo-império e até que cebível num contexto de desarticulação funcional. A
ponto a vitalidade urbana de Conimbriga impôs a desconexão da domus e, para o efeito, da generalidade
manutenção de uma rede de escoamento. das insulae, é uma acção degenerativa do ponto de
36 37
Correia 1997; De Man 2009, 741-748. De Man e Soares 2007, 285-294.
Anejos de AEspA LX
CONIMBRIGA
197
vista puramente romano, contudo não o é necesari- de depositar resíduos, nada tendo pois a ver com al-
amente na perspectiva alto-medieval. O fenómeno é terações arquitectónicas, como é o caso em Coles de
recorrente em cidades tardo-antigas, mas o que in- Samuel. Aponte-se, porém, a fraca concentração de
teressa em particular a este texto é a abertura de uma fauna e cerâmica, e as dimensões relativamente redu-
estrutura negativa para lidar com um problema ime- zidas, não ultrapassando o metro de diâmetro. Pon-
diato, o do despejo de escória de ferro e de cinza. De do de parte o caso da produção metalúrgica, não fica
facto, o conteúdo reflecte diversos momentos de lim- por isso evidente que tenha existido um real proble-
peza do forno, e a única fauna, em quantidade mui- ma de tratamento de lixo doméstico, questão que já
to reduzida, é avícola. Na prática, terá sido assada e viria a pôr-se dois séculos mais tarde.
consumida uma ave num dado momento, aproveitan- De facto, as lixeiras de época alto-medieval dis-
do-se o forno, mas sem que esse comportamento fosse tinguem-se não apenas pela irregularidade e pela
recorrente. Outra estrutura próxima, sem ligação à maior dimensão, mas acima de tudo pelo seu conteú-
estrutura de combustão, continha igualmente alguns do: passa a haver acumulações massivas de fauna
ossos, bem como uma peça de cerâmica, e também porcina, bovina e malacológica, com proporções
se encontra numa divisão romana. muito mais modestas de cerâmica. Um caso extremo
Na casa do Tridente e da Espada, uma escavação desta realidade é a estrutura que foi escavada na casa
em curso de José Ruivo identificou uma série de covas do Mediano Absidado. Trata-se de um único depó-
semelhantes, três das quais foram datadas, sendo sito de fauna porcina e bovina, dentro dos limites da
todas atribuíveis ao século V. A hipótese de se situ- casa romana. Só foram recolhidos uns vinte fragmen-
arem num pórtico anulado, ideia preliminar avança- tos de cerâmica muito fragmentada, bem como uma
da noutro lado, veio a ser rebatida muito recentemente lâmina de ferro. Em termos práticos, está-se peran-
pelo avanço dos trabalhos arqueológicos, sendo a te três ou quatro despejos num curto espaço de tem-
extensão da casa para oeste mais ampla do que se po. Uma razão para este processo de despejo pode ter
supunha. Em todo o caso, documenta-se uma modi- a ver com motivos de conservação, ou então de ac-
ficação no tratamento de resíduos domésticos em tividade comercial. Abater o menor número de cabe-
diversas estruturas romanas habitacionais que, do ças de gado que se calculava não ser possível alimen-
ponto de vista cronológico, vai a par da desconexão tar durante o Inverno, e conservar a respectiva carne
política imperial. Caso o lixo se concentrasse em é um hábito medieval documentado. No segundo caso,
particular em espaços públicos, o processo seria ra- teríamos de admitir a existência de um talho ou lo-
zoavelmente compreendido, mesmo através de me- cal de venda de carne nos arredores.
ros argumentos historiográficos. O que salta à vista, Por fim, os depósitos medievais do anfiteatro,
porém, é uma alteração súbita nos modos de vida entre os séculos IX e XII, são muitíssimo mais amplos,
domésticos, talvez no espaço de apenas uma geração. mais irregulares e cortam-se mutuamente de forma
Como é sabido, existem equivalências interessan- sucessiva. O maior de todos corresponde a uma gran-
tes em contexto rural. Muitas villae tardias são aban- de vala, ainda nem sequer completamente escavada,
donadas ou contraem seriamente a sua actividade no e que corta todos os níveis islâmicos, visigóticos e
mesmo período de tempo. Apontando apenas um caso tardo-romanos, até se deter, precisamente, na base do
no território conimbrigense, Coles de Samuel revela anfiteatro demolido. Tratando-se de uma constatação
ocupações de cronologia imediatamente pós-romana, muito localizada, não se pretende identificar uma
com depósitos de lixo doméstico associados a um regra com base nas dimensões ou no conteúdo, por-
espaço com um buraco de poste perfurando o opus que nada impede que no futuro seja definido um gran-
signinum. Ou seja, este género de continuidade, já de depósito tardo-romano no interior da cidade. Em
adaptativa, vai a par de soluções de tratamento de todo o caso, não se conhece por ora uma lixeira de
detritos análogas às urbanas. No entanto, a origem tal tamanho que possa corresponder a épocas mais
desta lixeira pode estar na espoliação de pedra reu- antigas, e é quase obrigatório reconher um sistema
tilzável: a cova situa-se directamente sobre o negativo edilício de recolha e evacuação de lixo para as fases
do cruzamento de dois muros, situação que se vai imperiais. Julga-se razoável apontar uma tendência
repetindo de modo mais ou menos claro noutras partes segundo a qual, em Conimbriga, as lixeiras intra-
da villa. Mas no interior de Conimbriga, as casas de muros da Tardo-Antiguidade se resumem a fenóme-
Cantaber e do Tridente e da Espada evidenciam um nos domésticos específicos, enquanto no período
período bem definido, entre os finais do século V e medieval existe muito menos pudor em abrir grandes
os inícios do VI, durante o qual foram perfurados valas, mais ou menos comunitárias, para despejo de
pavimentos internos e externos, com o único intuito todos os restos da vida quotidiana.
Anejos de AEspA LX CONIMBRIGA 199
tribuição ostiense era assegurada até época de Tibério As soluções da rede de drenagem ostiense, com
(14-37 d. C.) pelos numerosos poços privados e pú- o seu imponente reaproveitamento das águas pluvi-
blicos, a par de um expressivo número de cisternas ais, conduzem-nos a uma outra questão.
que eram em muitos dos casos duplamente alimen- O estudo da transformação urbana, ocorrida em
tadas pelas águas pluviais e pelo lençol freático, este território lusitano entre os finais do séc. I a. C. e os
último a escassos 2 m de profundidade. É só em inícios da nova era, tem-se pautado por uma aborda-
época de Tibério que o volume de consumo aumenta gem «monumentalista» que assume a arquitectura
significativamente com a construção de um aquedu- pública augustana como prova irrefutável da aplica-
to.45 É após a sua construção que a cidade é dota- ção prática das políticas no reordenamento económi-
da por numerosos edifícios termais, com especial ên- co e administrativo, das recém-criadas províncias
fase durante o reinado de Adriano, responsável por hispanas. Mas, no difícil diálogo entre o cosmopo-
uma visão mais completa do urbanismo ostiense ba- litismo romano e a rusticidade lusitana49 prevalecem
seada num conceito de «serviço ao cidadão».46 Este os ensaios excessivamente concentrados na análise
aumento de edifícios termais, a par das surpreenden- dos centros monumentais, em detrimento de uma
tes 180 fontes, das quais 31 públicas e 28 ninfeus, visão global do aglomerado urbano, na qual deverí-
entre os quais se contabilizam 10 públicos, represen- amos assumir, a par das revolucionárias políticas de
tavam um elevado volume de água que alimentava Augusto e de um conceito de «espaço público» que
a rede de esgotos da cidade. A estes dados, impres- transformará a forma de pensar a cidade, a persistên-
sionantes pelo seu número, devemos acrescentar as cia de conceitos, estruturas e filosofias urbanas pré-
características freáticas do local, como referimos romanas.
com um lençol freático a escassos 2 m de profun- Nas primeiras décadas que medeiam o final do
didade, cuja existência não permitia a construção de séc. I a. C. e os inícios do séc. I d. C. há, sem dúvi-
fossas para deposição dos dejectos e resíduos líqui- da, um projecto político de mutação dos territórios
dos produzidos por uma população que está calcu- indígenas e da sua «poliadisation»,50 assente em prin-
lada em 50.000 habitantes.47 Este facto motivou, cípios claros e simples.
certamente, uma utilização sistemática da rede de A cidade é cabeça deste processo romanizante,
esgotos como meio de evacuação de todo o tipo dotada de estatuto jurídico e de infra-estruturas que
de lixo produzido pelos seus habitantes, à luz do asseguravam a aplicação dessa nova dinâmica polí-
qual se entende a preocupação em canalizar para a tica. Neste cenário não será difícil entender a cons-
rede de esgotos grandes percentagens das água plu- trução de projectos urbanos coesos mas com carac-
viais, bem como as reservas acumuladas e não uti- terísticas muito específicas, fruto da readaptação de
lizadas das numerosas cisternas públicas e privadas.48 um «plano base» às condicionantes locais, sejam elas
Estas águas, pluviais e sabão, asseguravam uma lim- de natureza geográfica, ou relacionadas com a natu-
peza eficaz da rede de esgoto, obviamente comple- reza e composição das comunidades que ocuparão as
tada pelos trabalhos de limpeza manuais, possíveis «novas cidades».
através das caixas de visita existentes nas principais Não é difícil imaginar que questões prima facie
vias da cidade. Ao contrário de Pompeia e Hercu- «menores», como a construção de uma rede de es-
lano, Ostia não utiliza a rua como colector, existindo coamento, acompanhassem a mecânica do desenvol-
inclusive sumidouros e sarjetas que permitiam a en- vimento urbano, permitindo a sua utilização pelo
trada directa nos esgotos da chuva acumulada nas arqueólogo hodierno como argumento caracterizador
ruas. das diferentes etapas que compunham a construção
da cidade, mas a questão final que importa ressaltar
45
A cronologia tiberiana do aqueduto de Ostia é discutida é a ausência de coerência fundamental entre desen-
por alguns autores, que sugerem a sua construção apenas em volvimento urbano e implantação de estruturas de
época de Trajano (Calza et al. 1953, 123) utilizando como gestão de resíduos, que tanto se apresentam sobre-
argumento uma inscrição funerária (CIL XIV, 4326) na qual
se refere um operário que possivelmente trabalhou na Aqvae dimensionadas como se suspeitam gravemente abaixo
Traianee, todavia esta obra de Trajano deve corresponder à
49
remodelação e ampliação do aqueduto até novas áreas urba- Assumir a rusticidade da sociedade lusitana pré-imperial
nas (Ricciardi e Scrinari1996, 247-261). Note-se que a mais corresponde, na verdade, a uma visão distorcida de uma rea-
antiga fistula com inscrição remonta a Calígula. lidade, difícil de apreender no curso actual da investigação
46
Ricciardi e Scrinari 1996, 254. por ausência de dados e de projectos de investigação sobre as
47
Ricciardi e Scrinari 1996, 266; G. Jansen apresenta um últimas fases dos aglomerados urbanos da II Idade do Ferro
número significativamente inferior de 20.000 habitantes (Jan- e da sua transformação em oppida ou municipia de direito
sen 2000, 45). romano.
48 50
Jansen 2000, 46-47. Le Roux 1995.
Anejos de AEspA LX CONIMBRIGA 201
do desempenho necessário, indicando-nos que esta não casual, é coincidente com um conjunto de fac-
«matéria escatológica», importante como necessari- tos históricos de primeira importância para a vida da
amente não pode deixar de ser, não esteve no centro cidade e do mundo onde ela se inseriu, o que só pode
das preocupações da gestão urbana. ser tomado na justa medida de um sintoma, porven-
Por outro lado, a questão da gestão dos resíduos tura menor (na óptica dos coevos), de uma evolução
sólidos mostra uma cesura que, certamente de forma muito significativa.
ÍNDICE DE ABREVIATURAS
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