193 Anne Mather - As Vinhas Do Amor (Julia 0193) - ARF
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193 Anne Mather - As Vinhas Do Amor (Julia 0193) - ARF
Anne Mather
CAPÍTULO I
Fernando tinha trabalhado muito nos últimos dias e preferia ter ficado no hotel
descansando em vez de ir àquela festa. Mas os Castana eram amigos de sua família e
não seria gentil recusar o convite de Lucie. Agora, depois de circular entre os pequenos
grupos de convidados, fazendo gracejos e conversando amenidades, ele esperava com
ansiedade a primeira chance de se retirar. Sentia-se cansado e mal humorado e os
flertes de Lucie começavam a aborrecê-lo. Aquele não era o comportamento adequado
para uma mulher casada e com um filho, alvo fácil de comentários desagradáveis.
Aparentemente, porém, Lucie se colocava acima da moral rígida de sua Espanha natal.
Como o marido estava ausente por alguns dias, numa viagem de negócios, entregava-
se à sociedade algo permissiva de Londres.
Passeou impacientemente o olhar pela sala. Entre os convidados havia
espanhóis, ingleses e americanos. As garrafas de vinho espalhavam-se pela mesa
comprida, em meio a doces e salgadinhos de todos os tipos. Uma música popular, em
volume baixo, tornava o ambiente descontraído. Mas a verdade é que Fernando,
aborrecido até a alma, trocaria com satisfação aquele convívio alegre pela solidão do
seu escritório.
— Fernando…
Lucie lhe estendeu um drinque que, polidamente, ele recusou. Quando reunia
todas as forças para desculpar-se e anunciar que estava de saída, foi interrompido por
um menino que entrou correndo na sala à procura de um rosto familiar. Afobado,
aproximou-se de Lucie e agarrou-se à sua saia, o rosto molhado de lágrimas. Os
olhares curiosos pousaram sobre o garoto de pijama, com os pés descalços.
Fernando olhou para trás e viu uma moça parada à porta. Encolhendo os
ombros e soltando um suspiro, ela caminhou em direção ao menino e a Lucie.
Enquanto atravessava a sala, deixou transparecer certo embaraço. Sem dúvida estava
consciente de que destoava dos outros no seu roupão de náilon azul. A presença
inesperada daquela mulher despertou o interesse de Fernando, que observava
atentamente seus olhos negros e os cabelos loiros e brilhantes.
— Isso são modos, meu filho? — Lucie falou em inglês, para que todos a
compreendessem. —Señorita King — continuou, voltando-se para a mulher que tinha
acabado de entrar —, Eduardo devia estar no quarto dele!
— Desculpe, señora — a jovem respondeu, tomando a mão do menino, — Ele
sentia-se indisposto e insistiu em vê-la. Disse que não descesse, que não a
importunasse, mas ele fugiu de mim.
— Como assim, fugiu de você? Pois então não consegue controlar um menino?
— Eu o estava levando para o banho. Quando me distraí um pouco, saiu
correndo. Tentei segurá-lo mas...
— Não é preciso me dar tantos detalhes — Lucie retrucou, fazendo um gesto
com as mãos. — Você sabe perfeitamente que quando o pai não está ele fica um
tanto... irrequieto.
— Acho que hoje à tarde ele comeu doce demais, señora…
— Basta señorita. Não quero mais falar sobre isso...
— Lucie, acalme-se! — Fernando interveio. — Não aconteceu nada de grave.
— Olhou para a moça e viu no rosto dela uma expressão de alívio. — Para que culpar
a señorita King? Eduardo é criança, impulsivo, e é natural que queira sua companhia.
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— Sim, Fernando, você tem razão — Lucie concordou, depois de fitá-lo alguns
instantes. Voltou-se para o filho e continuou: — Agora acompanhe a señorita King,
Eduardo. Amanhã cedo nós conversaremos seriamente sobre o que acaba de fazer...
— Mamãe, deixa eu ficar — o menino implorou, olhando para ela e para
Fernando. — Não me mande de volta para o quarto!
Fernando agachou-se ao lado de Eduardo, mostrando um sorriso confortador.
— Eduardo, a mamãe está ocupada agora, compreende? Ela precisa conversar
com os convidados. Mas amanhã será todinha sua…
— Amanhã ela vai estar cansada. E papai não vai voltar...
— Eu tenho uma ideia — Fernando continuou, perturbado pela observação —,
amanhã não vou estar ocupado e nem cansado. Que tal se eu viesse buscá-lo para um
passeio? Podemos ir ao parque ou ao zoológico...
O rostinho de Eduardo se iluminou.
— Ainda não fui ao zoológico.
— Pois então vai conhecê-lo! Passo por aqui às dez horas, está bom? —
Ergueu o olhar para a moça. — É um bom horário?
— Acho que sim — ela respondeu, buscando confirmação no olhar de Lucie.
— Fernando, você é muito gentil... Eduardo sente falta da atenção de um
homem... — Lucie sorriu, como se dissesse: eu também sinto. Mas ele preferiu ignorá-
la.
— Muito bem... Então, boa noite, Eduardo!
— Adiós, señor.
Sorridente e tranquilo, Eduardo subiu em companhia da moça, enquanto
Fernando perguntava-se por que tinha intercedido por ela...
Na manhã seguinte, lamentou ter convidado Eduardo para passear, pois temia
que Lucie imaginasse que não passava de um pretexto para vê-la. Tomou um banho
de chuveiro, vestiu-se e, enquanto saboreava o café da manhã na suíte do Hotel
Savoy, pensou em telefonar e cancelar o passeio. Mas mudou de ideia por causa do
pequeno Eduardo, que provavelmente o estaria aguardando com ansiedade. Poucos
minutos depois, desceu e tomou um táxi para Lorrimer Terrace.
Ao chegar, uma criada o recebeu. A casa estava silenciosa e o único sinal da
festa da noite anterior era o leve aroma de perfume misturado ao cheiro de fumo.
Sentado na sala ampla, ainda indeciso, esperou com impaciência.
A criada reapareceu segundos mais tarde.
— Eduardo descerá num instante, senhor. A señora Castana o convida para
almoçar com ela, quando voltarem.
Enquanto esperava pela resposta, a moça observou-lhe a boca, dizendo para si
mesma que ali estava um homem atraente, bastante diferente do patrão, o señor
Castana. Era alto, mais alto que o normal dos espanhóis, mas não tanto, a ponto de ser
desajeitado; os cabelos eram negros e brilhantes, e as roupas elegantes caíam muito
bem, acentuando as pernas fortes e o peito largo e musculoso.
— Depois que eu sair, por favor informe à señora Castana que não poderei
aceitar o convite. Eu e Eduardo talvez almocemos fora...
A criada arregalou os olhos, espantada, e Fernando imaginou que tinha sido
indelicado. Mas, de outro modo, como evitar dificuldades posteriores? Enquanto Carlos
continuasse fora, a negócios, Lucie constituía uma ameaça.
Ao ouvir ruído de passos, Fernando voltou-se. Eduardo acabava de descer
acompanhado da moça que tinha conhecido na festa e a quem chamavam de señorita
King. Inclinou a cabeça num cumprimento.
— Bom dia, Eduardo. Bom dia, srta. King.
— Está pronto, senõr? — perguntou Eduardo, inquieto.
— Vejo que você está. — Sorriu Fernando.
— Fazia horas que eu estava esperando.
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Fernando voltou-se para olhar a jovem, encantadora apesar de usar saia creme
e blusa branca, o cinto largo e preto dando à roupa um aspecto de uniforme. O corpo
dela era esguio, mas não magro, e sob o tecido da blusa ressaltavam os seios
arredondados. Num instante, desviou o olhar, ciente de que algo nele começava a
despertar. Ora, ora, Fernando, disse para si mesmo, o que significa esse moça para
você? Não vê que o olhar dela o desaprova inteiramente?
— Bom — começou, fingindo disposição. — Vamos indo, então? Enquanto a
criada se retirava, foram para o saguão. A jovem ajeitou a gola da camisa de Eduardo e
pôs-se de lado. Nisso, soou uma voz vinda do alto, uma voz que Fernando pôde
reconhecer imediatamente.
— Fernando! Ainda está aqui! Que bom encontrá-lo...
Lucie estava parada no alto da escada, o corpo envolto num roupão de tecido
delicado. A srta. King sentiu-se embaraçada e fez menção de se retirar. Mas Fernando,
percebendo a intenção dela, olhou-a com firmeza e murmurou num tom de voz
sugestivo:
— Vá buscar o casaco, srta. King. Não virá conosco? — A jovem criada fitou-o
como se o considerasse louco.
— Se me esperar, também vou com vocês — adiantou-se Lucie. — Quer dizer...
se não se importa...
Fernando enfiou as mãos nos bolsos.
— Tem certeza de que gosta desse tipo de passeio? — perguntou secamente.
— A srta. King irá nos acompanhar, como sabe...
— A señorita King?
— Não é mesmo, senhorita? — Fernando lançou o olhar para ela, percebendo
sua expressão inútil de indignação. Propositadamente, desafiava-a a não dizer a
verdade. E, para o seu alívio, ela baixou a cabeça num sinal de confirmação.
— Sim, señor; claro que sim.
Lucie esboçou um sinal de irritação, mas procurou se conter.
— Nesse caso — respondeu, suspirando fundo —, ficarei aqui esperando
impacientemente por vocês… Transmitiram-lhe meu convite para almoçar comigo,
Fernando?
— Sim, mas não posso aceitá-lo, infelizmente.
— E, por que não?
— Não é possível, Lucie. O zoológico é grande, há muitos animais que o
Eduardo há de querer ver... Não voltaremos antes das... quatro horas.
— Quatro horas?! — exclamou Lucie, furiosa, segurando a barra do roupão,
aparentemente despreocupada com o fato de o tecido ser transparente. — Bom, então
jantará conosco, não?
Fernando hesitou, certo de que continuar recusando seria prolongar aquela
conversa aborrecida.
— Talvez, Lucie, talvez — disse afinal, encolhendo os ombros. — Agora nós
vamos indo, que o táxi está lá fora…
— Até o jantar, Fernando.
— Até mais tarde, Lucie — retrucou, com um sorriso irónico.
A srta. King vestiu um casaco caqui, para combinar com a saia, e o acompanhou
até o carro. Mal entraram, ela se voltou para ele, com a voz firme:
— Eu ficaria agradecida se nunca mais me colocasse numa situação tão difícil
quanto aquela! O señor tinha convidado apenas Eduardo!
Fernando se acomodou no banco para vê-la melhor. Mal-humorada, como
agora, ela lhe parecia ainda mais feminina, e nem mesmo a roupa formal que usava
conseguia disfarçar esse fato. Como ficaria ela em roupas mais descontraídas?
Perguntava-se quantos anos ela teria…
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— Eduardo, a srta. King tem razão. Além do mais, você deve estar doidinho
para chegar em casa e contar à mamãe tudo o que viu.
— Mas você falou que a gente ia passear num outro lugar. — lembrou Eduardo,
com olhos acusadores.
— Fica para um outro dia, está bom? Quer dizer, se a srta. King permitir que
você perca suas aulas.. .
— Obrigada, señor Fernando, por nos acompanhar e pelo almoço delicioso.
— No tanto. Não foi nada… Bom, vou acompanhá-los até a casa.
— Não, não é necessário. Quer dizer… naturalmente, se quiser poderá nos
acompanhar...
— Pelo menos até a porta — ele brincou, satisfeito ao perceber que mais uma
vez a desconcertava.
Quando o carro parou diante da casa e Eduardo desceu correndo à frente, sem
se conter de alegria, Fernando deteve Susana segurando-lhe o braço.
— Senõrita, um momento...
— Sim, senõr?
Fernando ouviu a voz calma e indiferente de Susana enquanto percebia que
agora quem se embaraçava era ele.
— Eu... eu gostaria que jantasse comigo amanhã à noite, srta. King...
O olhar dela pousou sobre a mão morena que descansava sobre a luva parda.
— Sinto muito, señor, mas não posso aceitar...
— Por Dios, por que não?
— Não gosto muito da ideia e, de qualquer modo, não tenho muito tempo livre à
noite.
— Por que está se desculpando? Não confia em mim? Posso garantir que
minhas intenções são as melhores! Simplesmente gosto de conversar com você.
— Señor, preciso ir — ela disse, procurando Eduardo com os olhos. — Não seria
conveniente que a mãe do menino me visse conversando aqui fora.
— A mim não importa... Por favor, jantará comigo amanhã? — Ela lhe lançou
um olhar todo cheio de ansiedade.
— Não sei...
— Às oito — insistiu ele. — Eu estarei esperando-a no terraço.
— Mas señor...
Lucie apareceu à porta, com ar de impaciência. Fernando retirou a mão de
Susana, tomado de surpresa.
— Eis sua patroa. Vamos descer e cumprimentá-la?
Susana saiu do carro trémula e pisou em falso, perdendo o equilíbrio. Lucie,
porém, comportava-se como se não a notasse, o olhar fixo na figura de Fernando.
— Chegou cedo! — ela exclamou dispensando Susana com um gesto de
cabeça quase imperceptível. — Entre e tome um chá comigo.
— Obrigado, Lucie, mas preciso ir — argumentou Fernando. — Tenho um
compromisso com importadores às cinco horas.
— Pela manhã você não me disse nada a respeito... Cancelei meus
compromissos de hoje só para recebê-lo...
— Sinto muito. — Sorriu, desculpando-se.
Lucie permaneceu em silêncio, mordendo levemente o lábio inferior.
— Adios — Fernando se despediu secamente e entrou no táxi.
Através da janela lançou-lhe um breve olhar, o suficiente para ver que no rosto
dela estampava-se a frustração e a irritação. Ajeitou-se no banco e desejou que Lucie
não descarregasse sua ira sobre a frágil Susana King.
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CAPÍTULO II
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Como de hábito, Eduardo foi para a cama às sete em ponto. Dessa hora em
diante, Susana tinha todo o tempo à sua disposição, a não ser nas raras ocasiões em
que os Castana recebiam amigos ou davam festas, quando então ficava no quarto para
o caso de Eduardo precisar dela.
Mesmo assim saía pouco, ora para assistir a uma peça ou a um filme, ora para
um concerto. Tinha poucos amigos, todos do tempo em que estudava, um ou dois
deles já casados, e embora a apresentassem a rapazes que lhe despertavam interesse
não namorava. "Não tenho pressa para casar", costumava dizer a si mesma, recor-
dando-se do pai, que havia abandonado sua mãe tão logo a engravidou. Pelo menos
era assim que explicava a impossibilidade de ter sido criada pela própria mãe.
Naquela noite, trocou a roupa de costume pela calça de brim e uma blusa de lã
grossa e sentou-se para retomar o romance que vinha lendo há algum tempo. Os
acontecimentos do dia, porém, impediam-na de concentrar-se na leitura. Não, não,
pensou decidida, não poderia aceitar o convite de Fernando Cuevas. Sabia que se
envolver com pessoas ou amigos da família era arrumar problemas. Com a família
Taylor não tinha sido diferente.
Apesar da decisão, era incapaz de afastá-lo da mente. Como esquecer o homem
mais atraente que tinha conhecido até então? Como não ceder ao magnetismo
perturbador, aos olhos negros e profundos, ao rosto magro, aos cabelos pretos e
brilhantes? Quantos anos teria de? Trinta e cinco, quarenta anos? Não aparentava
muita idade, mas o olhar revelava intensa experiência da vida, intensa demais talvez...
E, por que a insistência em jantar com ela? Não acreditava que fosse por gostar de
conversar, e muito menos por sentir-se atraído... Bem que poderia ser uma experiência
fascinante, concluiu, mas temia ter que pagar um alto preço por ela.
No dia seguinte, ainda mais preocupada com a perspectiva do jantar com
Fernando Cuevas, ocorreu a Susana pedir o telefone dele a Lucie e ligar para
desculpar-se. Por outro lado, ponderou, seria melhor manter a discrição, para não criar
uma situação embaraçosa que apenas aumentaria a tensão entre elas.
De tardezinha, já apreensiva, imaginou que a solução seria não ir encontrá-lo,
como combinaram. Mas e se ele entrasse? Que poderia fazer? Oh, Deus!, exclamou,
como Lucie Castana ficaria irritada!
Às sete horas colocou Eduardo na cama e foi para seu quarto. O sr. Castana
chegaria de viagem no dia seguinte, e Lucie tinha lhe dito que se recolheria mais cedo.
Nada a impediria de sair, encontrar Fernando e explicar-lhe tudo, voltando sem
despertar nenhuma suspeita.
Tranquila com a nova decisão, arrumou-se discretamente. Quando faltavam
cinco para as oito, jogou uma malha de lã sobre os ombros e saiu, em direção ao
terraço. Atravessou o pequeno parque sentindo a aragem fresca da noite e ouvindo o
último canto dos pássaros. Quando chegou, tudo estava vazio. Não vendo Fernando
Cuevas, o coração começou a bater mais forte. Ora, Susana, disse para si mesma, que
importância tem ele não vir? Tanto melhor, consolou-se impacientemente. No mínimo,
poupava-lhe explicações desnecessárias.
Indo até o fim da rua, olhou de um extremo ao outro e não viu ninguém parecido
com aquele espanhol esguio e moreno. Suspirou e consultou o relógio. Oito horas em
ponto. Impaciente e intrigada, puxou a malha num gesto delicado. Sim, esperaria
apenas mais alguns minutos.
— Boa noite, srta. King!
As palavras soaram próximas dos seus ouvidos e ela se voltou surpresa.
Fernando estava tão perto, que pôde sentir o suave perfume de lavanda pós-barba.
Ambos se olharam em silêncio, como que encantados, sorridentes.
— Fica bem quando se veste com informalidade — observou ele. — Eu já a
estava imaginando com uma roupa bastante sofisticada...
— Vim encontrá-lo para... para dizer que não vou sair.
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— Como assim?
— Señor, não posso jantar… Ia lhe dizer ontem à tarde, antes de sermos
interrompidos pela señora Castana.
— Mas você veio, está pronta. Qual é o problema?
— Não, não estou pronta!
— Está perfeita! Por que veio me encontrar, então?
— Temi que me procurasse na casa — respondeu, encolhendo os ombros… —
Não quero criar problemas.
— Para a sra. Castana?
— Não importa… — Afastou-se um pouco dele. — Posso estar sendo
desagradável, mas não costumo sair com amigos dos meus patrões.
Fernando tocou-lhe o braço, como que não desejando que se afastasse dele.
— Eles a proíbem? Por acaso consideram isso uma imoralidade?
— Não é bom misturar trabalho com lazer. — Lançou um olhar para a mão que
lhe apertava o braço. — Estou sendo clara, não?
Ele sorriu de uma maneira que a abalava até dentro do coração.
— Por favor... Não desaponte um homem solitário! Acredite, não vou
comprometê-la de maneira alguma. Venha... hoje eu estou de carro. Aluguei-o
especialmente para este nosso primeiro encontro... sabe, não gosto que os motoristas
de táxi fiquem ouvindo as nossas conversas.
Num segundo, ela começou a duvidar da decisão, a cabeça girando, o coração
pulsando forte. Lentamente, deixava-se aproximar dele e, de repente, percebeu que ele
a levava em direção ao Ford Granada amarelo-ouro, estacionado do outro lado da rua.
— Gostou? — perguntou ele, abrindo-lhe a porta. — Não acha atraente o veículo
que escolhi para nós?
— Para onde está me levando? — Ela o fitou profundamente, espantada consigo
mesma.
— Entre e descubra por si própria — desafiou-a.
Depois de hesitar por frações de segundo, ela entrou e Fernando fechou a porta.
Deu a volta pela frente e sentou-se ao lado dela com um sorriso franco nos lábios. Com
uma inevitável sensação de auto traição, Susana constatou que, pela primeira vez,
consentia que um homem a guiasse livremente.
Fernando manteve-se calado, enquanto conduzia o carro por ruas
movimentadas. Susana, também calada, perguntava-se, curiosa, para onde estavam
indo. Quando saíram do centro, percorrendo agora ruas mais tranquilas de subúrbio,
ele pareceu despertar.
— Que idade tem, srta. King? — perguntou, ajeitando-se no banco.
— Você é bastante indiscreto, não?
— Hum, acho que sim. Vai me dizer?
Um calor intenso tomou conta do rosto dela, ao perceber que ele a observava
com o canto dos olhos.
— Vinte e quatro anos. E você?
— Tenho bem mais que isso, senhorita. — Sorriu.
— Isso não responde à pergunta!
— Adivinhe…
— Não sei... talvez trinta e cinco, ou trinta e seis...
— Bondade sua! — Fernando fez uma careta. — Quarenta, srta. King. Idade
suficiente para ser seu pai.
— Por que quis saber minha idade? — perguntou, baixando a cabeça.
— Eu tinha quase certeza de que você era bem mais jovem... — Apoiou o
cotovelo na janela. -— Não fosse esse coque ridículo que costuma usar, diria que tinha
vinte, no máximo.
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— Sim, señor…
— Aceitei o convite, entende? E espero que também aceite o meu convite para ir
conosco.
— Sim…
— Aceita? — Ele se levantou, apoiou as mãos na mesa e inclinou-se.
— Não sei, señor... Preciso pensar.
— Claro. Eu a estou informando com antecedência porque, conforme me disse
na nossa primeira entrevista, a senhorita já havia passado por uma situação
semelhante com uma outra família... Espero que tenha mudado de ideia durante esse
tempo. . .
— Não sei... Se fosse Franca, ou Espanha! Nova York é tão distante…
— Mas a senhorita não tem parentes aqui em Londres. Pelo menos foi o que me
disse…
— Mas tenho amigos e...
— Fará novas amizades! É uma mulher jovem, srta. King! Desculpe, mas
ninguém a pode ignorar… Sabe, percebo como os homens a olham. Não lhe faltarão
companhias...
— Bem — comecou ela, corada —, de qualquer modo, obrigada... Realmente
preciso pensar no seu convite..,
— Sem dúvida, sem dúvida. Longe de mim coagi-la. Mesmo porque não nos
mudaremos já. Espero, porém, que decida o mais rápido possível. Quero uma
governanta inglesa para Eduardo, e se não vier conosco…
— Compreendo, señor... — Levantou-se em seguida. — E obrigada por confiar
em mim.
Carlos Castana abriu-lhe a porta e, depois que esta se fechou, Susana ficou
alguns minutos parada no saguão, refletindo sobre o que tinha ouvido. Quando a criada
desceu, ainda estava ali.
— Oh, srta. King... Estava procurando-a. Chegou uma carta.
— Para mim? Onde está?
— Aqui comigo. — Tirou o envelope do bolso do avental. — Entregue em mãos.
Sabe de quem é?
Susana pegou a carta das mãos da criada e a segurou com dedos trémulos.
Seus olhos fixaram-se na letra. Só podia ser dele!
Ciente de que a criada a observava, curiosa, esperando que abrisse o envelope,
caminhou para a escada e subiu rapidamente.
— Obrigada — disse apressada, e desapareceu, certa de que aquele gesto seria
motivo para comentários e suposições na cozinha.
Foi ver se Eduardo ainda estava ocupado com as lições e depois fechou-se no
quarto. Abriu o envelope com cuidado e tirou a folha de papel transparente. Um olhar
rápido na assinatura confirmou-lhe a suspeita: era dele!
"Querida Susana", começou a ler. "Como não é do seu desejo que eu vá ate aí,
e como não posso telefonar sem revelar minha identidade, sou forçado a escrever-lhe
como única maneira viável de comunicar-me com você. Queria muito vê-la novamente.
Devo voltar a Espanha no próximo domingo e por isso gostaria de jantar com você hoje
à noite, ou então, amanhã. Talvez já tenha algum compromisso, não sei, mas o fato é
que preciso muito vê-la antes de partir. Espero sua resposta. Você me localizará pelo
endereço do hotel impresso no alto desta folha. O seu Fernando Cuevas."
Ela leu a carta duas vezes, sentada na beirada da cadeira de braços, sentindo
uma excitação absolutamente incontrolável. Exultava apenas com a ideia de vê-lo de
novo.
Guardou a carta no envelope e escondeu numa das repartições da bolsa. Em
seguida voltou a sala. Na primeira oportunidade pediria permissão a Carlos Castana
para sair à noite. Agora que ele estava em casa, ninguém iria se importar com sua
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CAPÍTULO III
Susana não conseguiu falar com Fernando: quando ligou para o hotel naquela
tarde, a recepcionista informou-lhe educadamente que ele estava fora, mas, caso
quisesse, poderia anotar o recado. Susana acatou a sugestão, uma vez que não estava
certa de que poderia voltar a telefonar.
Na manhã de sábado deu aulas ao pequeno Eduardo e, à tarde, depois que ele
saiu com os pais, encontrou um pouco de tempo para lavar os cabelos. Naquela noite,
ela os deixaria soltos.
Depois que o garoto foi para a cama, a noite, decidiu trocar-se, embora não
tivesse combinado nada com Fernando. Sairia e iria até o final da rua, onde o tinha
encontrado pela primeira vez. Permaneceu de pé no meio do quarto, perguntando-se
que roupa seria adequada para vestir. Levada por um instinto feminino, pôs um vestido
longo amarelo-âmbar, com um decote que lhe ressaltava os seios e mangas largas.
Com uma leve maquilagem, sentia-se atraente e à vontade. Para se proteger da
aragem fria da noite, jogou nas costas um casaquinho de veludo e pouco antes das oito
horas, saiu apressada.
Como da outra vez, não havia sinal do seu acompanhante. Cruzando os braços,
puxou o casaquinho sobre o peito e suspirou, desejando ardentemente que Fernando
tivesse recebido o recado.
Onde estaria ele? Já passava das oito horas... Não seria melhor procurar um
telefone público e ligar para o hotel? Talvez não tivesse recebido o recado ou então
decidira partir para a Espanha antes do dia planejado!
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Quando os dedos dele lhe tocaram a nuca, sob os cabelos, ela sentiu dificuldade
em respirar. Fernando desceu os dedos pelo pescoço e puxou a gola do casaco para
trás, sugerindo que ela o tirasse dos ombros. Depois, tentou aproximar-se, esbarrando,
contrariado, no câmbio.
Ela permaneceu imóvel, sem olhá-lo e sem fazer qualquer esforço para
encorajá-lo ou desencorajá-lo. No fundo, sequer acreditava que aquilo estava
acontecendo. Mesmo quando sentiu no braço o calor do peito dele através da camisa,
disse a si mesma que aquilo não podia ser verdade! Ao mesmo tempo sentia a pressão
da perna dele contra a sua e o fraco aroma da loção pós-barba. Sim, tudo aquilo era
perfeitamente real, tão real que o odor do corpo másculo era forte o suficiente para
inebriá-la, fazê-la estremecer... Por isso precisava se manter atenta. Necessariamente,
ele não deveria ter por ela o mesmo desejo que ameaçava dominá-la.
— Susana — sussurrou ele em seu ouvido —, olhe para mim, sim? Por favor,
olhe para mim!
Ela olhou. Ele estava muito próximo. E não era produto de sua imaginação…
Olhava-a com olhos famintos, os lábios trémulos, os dedos acariciando-lhe o queixo e
depois os lábios, abrindo-os com delicadeza. Aproximou-se lentamente e a beijou,
explorando-lhe a boca calmamente, para enfim entregar-se a uma volúpia que não
podia ser controlada. Ele a desejava, sim!
— Susana de mi alma — exclamou, abandonando os lábios dela para beijar
suavemente o colo junto aos seios. — Desculpe-me mas não consigo me controlar…
Ela tomou-lhe a cabeça entre as mãos e puxou-a, convidando-o a novos beijos,
entregando-se com abandono inocente. Apenas quando ele se moveu, ultrapassando o
câmbio, percebeu que, com aquele comportamento, estava pedindo-lhe que fizesse
amor com ela.
Com os dedos trémulos, recolheu o casaquinho, abriu a porta e saiu, batendo-a
atrás de si. Correu através do pátio, subiu os degraus da escadaria e entrou na casa
dos Castana. Da sala de estar chegou-lhe um som de música, mas não havia ninguém.
Sem esperar mais, subiu para o quarto, sentindo-se segura e aliviada apenas quando
encostou-se na porta fechada. O casaquinho escorregou-lhe da mão e caiu no
assoalho e, não podendo mais permanecer de pé, ela atirou-se na cama para chorar
incontrolavelmente...
Na manhã de domingo, doía-lhe a cabeça de tanto chorar; seus olhos estavam
vermelhos e inchados. Antes de descer, fez uma maquilagem forte que, para sua
tristeza, não impediu Lucie Castana de comentar sua aparência.
— Deitou tão tarde assim ontem à noite, señorita! — interrogou, observando as
olheiras de Susana. — Meu marido ouviu-a chegar logo depois das dez horas.
— Eu não dormi muito bem, señora. Acho que apanhei um resfriado.
— Nesse caso, espero que não transmita seus germes ao Eduardo ou a
qualquer um de nós. Se se sentir indisposta, deve ficar no quarto.
— Sim, señora — ela disse, resignada. No fundo, no fundo, era exatamente o
que queria.
— Eu e meu marido vamos sair com Eduardo para visitar alguns amigos.
— Pois não, señora.
— Sairemos dentro de uma ou duas horas. Se se sentir melhor, quando
voltarmos, gostaria que pusesse Eduardo para dormir, como de costume.
— Pois não, señora.
Depois que os Castana saíram, a casa mergulhou na calma, pois os
empregados tinham sido dispensados: a srta. Travers, a cozinheira, saiu logo após os
patrões, provavelmente para visitar a irmã em Ealing; Eleanor, a criada, foi embora um
pouco mais tarde, mas como Susana mal a conhecia, não fazia a menor ideia de onde
poderia ter ido.
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Por volta das onze horas desceu para a cozinha para fazer café. Sozinha,
impacientava-se e a cada ruído de motor de avião que ouvia pensava em Fernando,
que naquela manhã estaria a caminho de Madrid. Em que região da Espanha teria
nascido? Gostaria de saber como vivia e o que fazia! Mas isso era uma coisa que
nunca mais saberia.
Esforçou-se para pensar em outras coisas como a mudança dos Castana para
Nova York. Que faria ela: aceitaria o convite para acompanhá-los ou procuraria outra
família, em Londres mesmo? Uma outra colocação significaria uma nova rotina, fazer
novos amigos, conquistar a confiança de novas crianças e de novos patrões. O que
seria melhor para ela? Seguir o conselho de uma velha amiga de se estabelecer e
casar?
Pensando na amiga, Susana caminhou para o saguão, onde estava o telefone.
Ela e Margaret French tinham sido colegas de escola e Margaret, mal chegando em
Londres, tinha se fixado num emprego e casado. Agora era mãe de um menino de dois
anos de idade. Decidiu telefonar-lhe e avisá-la que pretendia almoçar com eles. Não os
via há quase um mês e tinha certeza de que a receberiam com alegria.
Antes que pudesse erguer o fone do gancho, o telefone tocou. Atendeu um tanto
perturbada e imediatamente a voz do outro lado da linha falou:
— Susana! É você?
Suas pernas tremeram e procurou encostar-se na borda da mesinha.
— Fernando! Onde está você?
— Oh, como é bom ouvir sua voz de novo!
— Fernando... quer dizer, señor Cuevas, de onde esta falando?
— Prefiro que me chame de Fernando — reprovou-a gentilmente. Alegrava-a o
fato de ele não poder testemunhar seu embaraço.
— Mas como é que você pode me telefonar? Não devia estar dentro de um
avião neste exato momento?
A resposta veio depois de um breve silêncio, durante o qual ela pensou que ele
fosse desligar.
— Meu avião saiu há uma hora atrás...
— O quê?
— Isso mesmo que ouviu. Agora o que interessa é que estamos conversando.
Onde estão seus patrões?
— Vão passar o dia fora. Voltarão apenas à noite...
— É mesmo? Então você está livre até lá?
— Imagino que sim…
— Você me parece cautelosa... Não quer me ver de novo depois de ontem a
noite, não é mesmo?
— Ora, Fernando! Claro que quero vê-lo! Que quer que eu faça? Ele hesitou
alguns segundos.
— Estou telefonando do Hotel Savoy. Vou apanhar um táxi e dentro de uns
quinze minutos estarei ai.
— Está certo.
Antes de colocar o fone no gancho ficou parada, o olhar fixo no assoalho, como
que encantada. Depois, plenamente desperta e excitada, correu pela escada acima até
o quarto. Diante do espelho do banheiro, examinou a maquilagem carregada e,
desgostosa, lavou o rosto, limpando-o completamente. Voltou a olhar-se e constatou
que não estava satisfeita ainda com o aspecto. Que pensaria ele ao vê-la com a pele
cansada? Estava um trapo!
No quarto, tirou a malha e a blusa e vestiu um suéter creme; passou a escova
nos cabelos embaraçados com ansiedade, como se com isso pudesse afastar um
pouco a frustração.
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Quando passava uma sombra azul, soou a campainha da porta. Olhou o relógio
e constatou que havia transcorrido dez minutos após o telefonema. Não poderia ser
Fernando! Ou poderia?
De qualquer modo, estava quase pronta para recebê-lo, embora não tivesse
passado rouge e parecesse um tanto pálida. Suspirou: não importava quem tocasse à
campainha, não era para ela.
A campainha soou novamente, com insistência, como se alguém a apertasse
continuamente, de propósito. Era preciso atender. Olhou-se pela última vez com um ar
conformado e desceu para o saguão.
A visita, ao que parecia, irritava-se com a demora.
Destrancou a porta pesada e entreabriu-a com cautela.
— Fernando! — exclamou. — Como chegou tão depressa?
Ele entrou sem dizer uma palavra sequer, o olhar luminoso expressando
ansiedade. Fechou a porta e a fitou demoradamente. Susana, incomodada com aquele
olhar, perguntou-se o que ele estaria pensando dela.
— Desculpe… achei que fosse outra pessoa..
E então viu-se nos braços dele, as mãos contra o peito forte e pulsante, os
lábios colados, pela primeira vez experimentando uma emoção tão boa. À medida que
as mãos dele desciam para seus quadris, puxando-a contra ele, sentiu a irresistível
vibração da masculinidade.
Finalmente, ele a afastou, as mãos prendendo-lhe os ombros.
— Susana! Sejamos sensatos… Quero amá-la, muito, mas não no saguão da
casa dos Castana!
— Oh, claro — respondeu, voltando a si e levando as mãos a cabeça — Devo
estar parecendo uma megera, não? Nem tive tempo de me pentear!
Fernando tirou um charuto e o acendeu com dedos trémulos.
— Não tenha pressa — observou. — E você não se parece com uma megera
coisa nenhuma. Está muy deseable, muito desejável! Mas não dormiu bem esta noite,
não é?
— É, não muito bem. ..
— Eu também não — acrescentou, tomando-lhe as mãos.
— Desculpe… vou subir um instante para terminar a maquilagem...
— Não! — ele exclamou, apertando-lhe as mãos. — Esqueça a aparência. No
importa! Só importa você!
— Eu?
— Sim! Você! Susana, não sei como, mas preciso explicar por que não viajei
esta manhã…
— Não, não precisa, não...
— Não sei o que pensa de mim, mas não sou o tipo de sujeito que gosta de se
envolver em casos passageiros… Sabe, nunca me senti atraído por isso…
— Por favor...
— Deixe-me continuar. Quero explicar o porquê do meu comportamento de
ontem à noite e de hoje pela manhã…
— Por favor, Fernando, esqueça. . .
— Não posso esquecer! No meu país, Susana, um homem não desonra uma
mulher jovem e solteira sem o sentimento de auto-recriminação...
Susana não sabia o que pensar. Não compreendia o que ele estava querendo
dizer-lhe, mas de alguma maneira intuía que toda a alegria de alguns minutos atrás
seria destruída rapidamente.
— Fernando, aqui na Inglaterra as coisas são diferentes. Nós aqui beijamos uns
aos outros sem fazer desse gesto uma questão moral.
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CAPÍTULO IV
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— Sinto muito. Não mudei de ideia, não... — Lançou um olhar impaciente para o
táxi que o esperava. — Amanhã a noite, que tal?
— Está bem — ela concordou.
— No mesmo lugar. — Sorriu. — Prometo não me atrasar. Te adoro, mi alma.
Hasta mañana.
Beijou-lhe a mão e afastou-se. O carro se pôs em marcha e ela sentiu-se
novamente sozinha.
Ela viu Fernando todas as noites da semana seguinte. Felizmente, os Castana
estavam tão envolvidos com suas próprias coisas que mal prestaram atenção ao que
ela fazia, o que a livrava de ter que dar explicações. Extremamente excitada, vivia os
dias antecipando cada noite, sempre temendo que, de repente, numa manhã qualquer,
Fernando decidisse retornar a Espanha.
O fato de que só raramente ficavam sozinhos se devia às precauções dele,
pensou Susana. Ele sabia, melhor do que ela, que o relacionamento facilmente
caminharia para uma intimidade que ele evitava, por respeitá-la verdadeiramente. Os
leves beijos de despedida já tinham sido substituídos por beijos apaixonados que
denunciavam o desejo de fazer amor. À noite, ela mal podia pegar no sono, sentindo
nas entranhas do seu corpo a fome de amor que apenas ele poderia saciar.
Mas na noite de sexta-feira, sentados num agradável e enfumaçado pub de
Chelsea, a certa altura ele a olhou bem nos olhos e disse:
— Que me diz de passarmos um fim de semana no campo?
— Um fim de semana no campo? Por quê?
Ele inclinou-se para ela, falando com voz suave:
— Um amigo meu, ou melhor, um colega de trabalho, tem uma casa num lugar
chamado Wendcombe. Conhece?
— Wendcombe? — Procurou ignorar o tremor que começava a tomar-lhe o
corpo tossiu. — Vagamente. É uma vila, não? Em Buckinghamshire?
— Si, acho que é a mesma, se me lembro bem. Bien, não gostaria de passar um
fim de semana nessa casa?
— Não sei bem o que você quer dizer com isso — retrucou, as faces ardendo.
— Não sabe? Pois eu acho que sim. . .
— Você quer dizer que passaremos sozinhos esse fim de semana?
— Minha proposta a assusta?
Ela respirou com dificuldade. Não achava assustadora, não. Mas provocativa e
perigosa. . .
Desviou o olhar do dele e fitou o copo. Que lhe responderia? Como lhe contaria
que nunca tinha feito nada semelhante antes? Talvez ele nem suspeitasse disso...
Estaria encorajando-o a fazer propostas como aquela? Eis que pela primeira vez na
vida se envolvia intensamente com um homem! Não estaria ele se apoiando no
equívoco de que todas as mulheres inglesas eram adeptas do sexo pelo sexo?
Finalmente voltou a fitá-lo. O olhar dele estava fixo no copo que segurava entre
as mãos. Em que estaria pensando? Que resposta estaria esperando?
Suspirou fundo, pensando que, durante toda aquela semana, tinha sabido muito
pouco a respeito dele. Sabia que a família dele possuía vinhedos perto de Cadiz, na
Espanha, e que estava em Londres para tratar da exportação de seus produtos. E isso
era tudo. O que dizer da vida pessoal? Talvez ele lhe tivesse contado apenas o
necessário. De uma coisa tinha certeza: sentia amor por ela. Havia amor em cada
toque, em cada beijo, em cada olhar; um amor que lhe garantiria uma completa
satisfação quando um dia se entregasse sem receio. Mas o que significava aquela
proposta naquele momento do relacionamento?
— Não posso, Fernando — respondeu finalmente, sentindo-se desconfortável
na cadeira.
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— É simplesmente lindo! Nunca imaginei que uma casinha tão modesta pudesse
ser tão confortável! A gente vê que eles conservaram a casa no que ela tinha de mais
original.
— Tem razão. É uma casinha aconchegante — ele comentou, cruzando os
braços.
— Onde fica a cozinha? Tem fome? Não quer um chá, um café?
— A cozinha fica ali — respondeu, indicando com o braço direito. — E é claro
que aceito um café. A caseira dos Cunningham, a señora Minto, virá nos preparar o
jantar.
Susana esboçou uma expressão de desapontamento.
— Oh, virá?
— Por quê essa carinha? Prefere você mesma cozinhar?
— Bom... quero dizer, ela não vai estranhar, não?
— Estranhar o quê?
— Que nós fiquemos sozinhos aqui!
— Talvez — respondeu com ar de quem se divertia. — Mas como todas as boas
caseiras, ela guardará os pensamentos para si mesma.
A cozinha, ao contrário dos outros aposentos, tinha sido reformada e equipada
com uma pia de escoamento duplo e prateleiras, em cuja parte inferior estavam uma
lavadeira, uma secadeira, um refrigerador e um lavador de pratos.
Fernando abriu um armário e apontou para o café, o açúcar e as xícaras de
porcelana, mostrando-lhe ainda os alimentos guardados na geladeira. Depois se retirou
para o andar de cima.
Susana não conseguia conter a alegria. Que importância tinha o que
pensassem? Eram dois seres adultos, livres para viver suas vidas como bem
quisessem.
Preparou a bandeja com o bule de café e as xícaras e a depositou sobre a
mesinha diante da lareira. Num impulso, subiu à procura de Fernando. A escada dava
para um corredor em que se viam quatro portas, uma delas entreaberta, deixando
entrever o quarto fronteiriço.
Ficou parada na frente da porta e então viu as duas malas aos pés de uma
enorme cama de colunas. Notou uma porta aberta que, provavelmente, era a do
banheiro contíguo. Decidiu entrar mas nisso Fernando saiu do banheiro, a jaqueta
atirada casualmente sobre os ombros. Estava sem gravata e com os dois primeiros
botões da camisa desabotoados. O olhar de Susana parou nos pelos castanhos que
emergiam e subiam até ao pescoço. Estremecendo, constatou que experimentava o
primeiro instante de intimidade entre eles.
Quando a viu, Fernando jogou a jaqueta sobre uma cadeira de braços situada
num canto e aproximou-se dela. Pressentindo o pânico de Susana, deteve-se antes de
alcançá-la.
— O café está pronto — disse ela, temendo um gesto afetuoso. — Só queria
saber onde você estava…
— Quer ver o resto da casa? — perguntou, girando em torno de si e erguendo
os braços.
— Imagino que este é o quarto principal. . .
— Correto... Há um banheiro ali, como pode ver, com chuveiro e tudo o mais. . .
— É muito bonito, confortável. . .
Ela afastou-se e ele saiu em direção ao corredor e abriu uma outra porta.
— Este é o segundo quarto — observou, com a voz fria.
— Aquelas cortinas azuis são muito elegantes… — disse ela, sentindo-se
idiota.
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— As outras portas não devem ter interesse para você. Uma dá para o banheiro,
que pode ser alcançado pelo quarto principal, a outra dá para uma espécie de
despensa.
— Sei... — Susana forçou um sorriso. — Bom, vamos descer para tomar café?
— Susana — começou ele, bastante impaciente —, o que foi que eu disse? O
que foi que fiz? Você se comporta como se estivesse com medo de mim, como se eu
fosse agredi-la! Garanto-lhe, não pretendo forçá-la a nada, absolutamente!
— Sinto muito.. .
Ele murmurou algo incompreensível e em seguida desceu a escada à frente
dela. Quando ela desceu, viu-o sentado num sofá forrado de couro, servindo as duas
xícaras com um ar sério e concentrado. Sentou-se no meio do sofá de propósito,
pensou ela, só para obrigá-la a pedir licença para sentar-se.
Ela instalou-se no braço de uma cadeira e observou-o tomar o café sem o menor
prazer. Inclinou-se e apanhou sua xícara. Aspirou o aroma e olhou-o com tristeza,
constatando que ele a ignorava, limitando-se a repor a xícara no pires. Depois,
recostou-se e estendeu os braços ao longo do encosto.
Susana terminou o café e, quando apanhou a bandeja para levá-la para a
cozinha, deteve-se ao ouvir a voz inflexível.
— Deixe-a aí. ..
— Vou lavá-las agora... não disse que alguem virá preparar o jantar?
— Eu disse para deixar aí — insistiu, o olhar frio e distante. Ela o encarou,
perturbada.
— Não sou uma criada, sabia? — E fez um gesto de quem sairia carregando a
bandeja.
Fernando pôs-se de pé e por um momento travou-se uma batalha silenciosa de
vontades. Susana desviou o olhar e rumou para a cozinha. Ele não a impediu, como
ela temia.
Uma vez na cozinha, Susana sentiu a coragem abandoná-la e, quando colocou
a bandeja sobre a mesa, estava sem forças para nada. Oh, Deus!, exclamou para si
mesma, não queria discutir ou brigar com ele. Queria amá-lo!
Demorou-se o quanto pôde para lavar as poucas louças e depois voltou para a
sala. Fernando esticara-se no sofá e lia o jornal, indiferente à presença dela. Que
poderia fazer? Lançou um olhar para a roupa que estava usando e pensou em tomar
um banho e se trocar.
Num movimento impulsivo, subiu para o quarto. Tirou uma toalha da mala e foi
para o banheiro, aliviada pelo fato de que, para sentir-se segura, poderia trancar as
duas portas.
A água quente jorrou do chuveiro e, antes de entrar no box, protegeu os cabelos
com uma touca que se achava ali para esse propósito. Ao se enxugar, lembrou-se de
ter deixado o vestido no quarto. Assim, embrulhou-se na toalha, apanhou a calça e o
suéter e encaminhou-se para a porta. Teve que deter-se: Fernando estava sentado ao
lado da cama, os cotovelos apoiados nos joelhos, o rosto enterrado nas mãos. Aquela
posição transmitiu-lhe desespero e seu coração se desfez. Evidentemente, ele não a
tinha ouvido abrir a porta do banheiro, embora pressentisse não estar sozinho. Então
ele deixou cair uma das mãos e voltou-se para ela. Em seguida levantou-se e foi a
janela, distanciando-se o quanto pôde.
Finalmente, Susana entrou no quarto, colocou as roupas sobre o encosto da
cadeira e abriu a mala. Mas seus olhos não se desviaram de Fernando, que estava de
costas, as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Daria tudo para saber o que passava
pela cabeça dele, enquanto olhava fixamente para o jardim abaixo da janela.
Deu de ombros, apanhou o vestido e voltou ao banheiro, trancando a porta por
dentro. O vestido era longo e negro, com barra branca, o que lhe acentuava a palidez
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da pele e o brilho dos cabelos. Foi de novo para o quarto e penteou os cabelos
rapidamente. Antes de colocar a escova sobre a mesa, olhou-o de novo.
— Gosta do meu vestido? — Fernando voltou-se, o rosto endurecido.
— É muito bonito. Você é muito bonita. Mas, naturalmente, sabe disso melhor do
que eu...
— Perdoe-me, Fernando — ela pediu, deixando transparecer certa angústia. —
Sou uma boba. — Não! O bobo sou eu! Errei em trazê-la para cá!
— Por quê? — Os lábios tremeram. — Não... não me quer?
— Não a quero?!!
Caminhou a passos largos, com determinação, e a tomou nos braços,
apertando-a, como que não querendo deixar nenhuma dúvida de que a desejava.
— Por Dios, Susana! — exclamou, a boca tocando-lhe o pescoço. — Eu a amo,
eu a amo, eu a amo! Nunca amei outra mulher dessa maneira.. .
Susana envolveu-o com os braços, acariciando-o, os lábios buscando-lhe o
pescoço.
— Oh, Fernando!
— Não quero magoá-la!
— Não está me magoando... apenas agora há pouco, lá embaixo, eu quis morrer
de raiva!
As mãos dele deslizaram pelas costas macias de Susana, os dedos explorando
os frágeis contornos dos ombros.
— Não quis magoá-la — insistiu. — Mas você me feriu, e eu não quis ficar
quieto. Você me pareceu tão assustada! Não tenha medo de mim. Preciso tanto de
você… Quero apenas amá-la...
Beijaram-se. Ela entregou-se, abandonou-se completamente, demonstrando que
não o temia, que, ao contrário, desejava-o ardentemente…
De repente, ouviu-se um ruído na sala de estar. Era a porta que se fechava.
Relutante, Fernando afastou-se dela.
— Deve ser a señora Minto — observou em voz baixa. — Por favor, Susana,
não me olhe assim! Tenho fraquezas como qualquer outro homem!
— Sei disso — ela respondeu com ternura.
— Pois desça e apresente-se à señora Minto — aconselhou. — Agora quem vai
tomar banho sou eu!
CAPÍTULO V
A sra. Minto não era a mulher austera que Susana tinha imaginado, mas deixou
transparecer que não aprovava a decisão dos Cunningham de emprestar a casa a um
casal solteiro.
Susana foi encontrá-la na cozinha, no exato momento em que tirava o casaco
para pôr um avental.
— Como vai, senhorita? — disse ela, sorrindo. — Sou Alice Minto. Esperavam
pela minha vinda, não?
— Olá, como vai? Sou Susana King. Foi muita gentileza sua vir preparar o jantar
para nós em pleno sábado.
A sra. Minto amarrou o avental com destreza. — É o meu serviço, senhorita.
Quando o sr. e a sra. Cunningham estão aqui, trabalho inclusive nos domingos.
— Oh! A senhora dispõe de tudo o que precisa?
— Sim, senhorita. Já liguei o forno para preparar um belo assado. Penso em
lhes fazer um pudim típico de Yorkshire. Gosta de batata assada?
— Hum! Adoro!
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A sra. Minto começou a tirar as verduras de dentro da cesta que tinha trazido.
— Foi o marido da senhora que as plantou? — perguntou Susana, vendo as
verduras frescas.
— Não, senhorita. Meu marido morreu há três anos. Se ele ainda estivesse vivo
eu não estaria trabalhando aqui. Ele não deixaria, não.
Susana ficou desconcertada e baixou os olhos. Tinha ouvido dizer que as
pessoas do interior costumavam ser francas, mas não imaginava quanto!
— Sabe, eu acho que sou antiga — disse a sra. Minto, lavando as batatas. — A
maioria dos casais de hoje não dá importância ao casamento.
— Sim, mas nem tudo é tão simples assim.
— Esses não têm a menor consciência do que é colocar um filho no mundo.
— Bom — disse Susana, virando-se para sair —, se não precisa de mim, vou
deixá-la trabalhando tranquilamente...
— Não se impressione com a minha maneira de falar. Sabe, eu não tenho nada
contra aquele homem, don Fernando... Gosto dele, porque é um perfeito cavalheiro.
Quando esteve aqui, no ano passado, ele costumava abrir as portas para mim, e dizia
obrigado para tudo. — Balançou a cabeça, lembrando-se. — Como poderia
esquecer um homem tão gentil? E olhe que esteve aqui apenas uma vez!
— Fico contente com isso, sra. Minto — murmurou, um tanto secamente.
— Sei que sou uma velha intrometida, senhorita. É o que falavam de mim... ou
falam. Minha filha tem a mesma opinião.
— Com licença — desculpou-se Susana, fazendo um gesto de cabeça, e saiu.
Parou em frente à janela da sala de estar que dava para o jardim. Que alívio
ficar longe da língua ferina da sra. Minto, pensou, ao mesmo tempo sentia-se
preocupada com o que os habitantes da aldeia estariam pensando dos hóspedes dos
Cunningham. Seria hábito dos proprietários emprestar a casa a pessoas amigas?
Tinha lhe soado estranho ouvir a sra. Minto chamar Fernando de don, no entanto
devia ser assim que o tratavam na Espanha. Sabia pouco a respeito dele, e com
certeza ele só lhe diria alguma coisa mais quando achasse conveniente. No fundo, no
fundo, o importante era estar com ele.
Passou os braços em torno do corpo e estremeceu ao antecipar os
acontecimentos da noite que se aproximava. Imaginar o clímax do amor que ele
começava a demonstrar antes da chegada da caseira significava aumentar o desejo
por ele, significava querer abrir os braços e mostrar para todo mundo o quanto se
sentia feliz! Ao mesmo tempo que pensava girou em torno de si, para, num instante de
surpresa, deter-se: Fernando descia os degraus da escada, observando-a. Os cabelos
estavam molhados e vestia uma camisa de seda branca de mangas compridas e calça
creme ajustada nas pernas, destacando a potência dos músculos das coxas.
Ele se parece mais com um pirata do que com um homem de negócios, Susana
pensou.
— Quero tomar um drinque! E você, Susana?
Ela andou devagar na direção dele e pararam junto a uma cómoda.
— Não sei — respondeu, encolhendo os ombros. — Um xerez, talvez?
— Xerez! — exclamou, fitando-a de tal modo que ela deu um passo atrás.
— Que há de errado?
— Nada, nada. Xerez, que seja!
Susana sentou-se no sofá, intrigada com a mudança de atitude dele. De repente,
notou como era sensível o comportamento dele. Sem dúvida, estava cansado, um
pouco tenso, mas.. . mas ela também estava!
Ele se juntou a Susana, levando os dois copos, um de xerez outro de conhaque.
O fato de sentar-se longe deixou-a ainda mais intrigada, mas preferiu não comentar e
limitou-se a beber.
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— A sra. Minto está preparando uma comida inglesa tradicional: assado e pudim
de Yorkshire. Espero que goste.
Fernando deitou a cabeça no encosto.
— Não estou com fome — confessou. — Mas gostaria de comer tortillas.
— Tortillas! Um tipo de panqueca?
— Não... digamos que seja uma versão espanhola de omelete de vocês, mas
muito mais picante. Nunca experimentou?
— Nunca estive na Espanha!
— Os Castana não comem comida espanhola?
— De vez em quando a sra. Travers, a cozinheira, faz para agradá-los, mas em
geral faço minhas refeições com os empregados.
— Compreendo...
— Você... você não fala muito sobre a Espanha, não é? — arriscou.
— Tem interesse pelo meu país?
— Claro que tenho.
— O que quer saber?
Ela suspirou, estranhando o tom de voz frio e impessoal com que ele tinha
falado.
— Fale-me sobre Cadiz, o lugar em que mora. Parece-me que há lá muita
influência mourisca, não?
— Os mouros influenciaram toda a Espanha. A influência em Andaluzia é das
mais fortes. Não acha irónico que uma civilização como aquela tenha ruído a partir do
seu interior?
— Que quer dizer?
Ele inclinou-se para olhá-la melhor.
— O soberano mouro se apaixonou por uma moça cristã, mas ele já era casado.
Tentou substituir a esposa, mas ela era ciumenta: fugiu do palácio com o filho e reuniu
um exército para vencer o marido. Venceu e fez do filho o rei. O conflito enfraqueceu as
forças mouriscas e tiveram que ceder à investida dos cristãos.
— Que história intrigante — ela murmurou, fascinada. Fernando estudou-lhe a
expressão por alguns segundos e depois recostou-se.
— Não é mesmo? Um dia você visitará Granada, Alhambra, e verá com os
próprios olhos o que o soberano perdeu... por amor!
— Granada! — pronunciou a palavra devagar. — Um nome muito bonito, não é?
Cadiz, Sevilha, Málaga! Sente saudade desses lugares?
— Sim, um pouco. — Fernando levantou-se rapidamente, lançando um olhar
para ela. Caminhou até à janela e ficou olhando para fora, a expressão grave.
Susana terminou de beber o xerez e colocou o copo sobre a mesinha. Não
conseguia compreender o estado de espírito de Fernando, o temperamento instável,
oscilando entre a alegria e a tristeza.
— Ouvi dizer que Andaluzia é um dos lugares mais lindos da Espanha.
Ele voltou-se, encostando-se contra a janela.
— Mas como todas as coisas lindas, existe o lado feio e negro. Existe a
crueldade ao lado da beleza...
— Só espero que não exista mais crueldade lá do que em outras partes... Este
mundo é muito imperfeito!
— Concordo — disse ele, andando pela sala. — Mas duvido que seria tão
tolerante em relação à corrida.
— A tourada?
— Si. Talvez seja o exemplo mais perfeito para descrever a natureza da nossa
crueldade.
— Quase não sei nada sobre a tourada.
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Susana chorou durante um longo tempo, o rosto enterrado nos lençóis para que
ele não a ouvisse. Mas devia ter pegado no sono, porque, num sonho horrível,
Fernando transformou-se no monstro de um filme, um maníaco matador de uma dúzia
de mulheres. Encurralada na casa de campo, perseguida por ele, escondia-se em
todos os lugares imagináveis, mas era sempre descoberta e sempre precisava fugir.
Numa das vezes, quando ela pensou que ele ia matá-la, deu-lhe as costas e se foi,
deixando-a sozinha, chorando, chorando sem parar…
— Susana! Susana mia! Acorde, Susana! Acorde! Ninguém vai machucá-la!
Ela abriu os olhos e encontrou o olhar de Fernando. Ele estava debruçado sobre
ela, sentado na cama.
— Fernando? — perguntou, soluçando, tomando consciência do suor que
escorria de suas faces. — Que horas são?
— Um pouco mais de uma hora — disse olhando o relógio de pulso. — Você
estava sonhando… chorava muito...
— Oh, foi horrível! — exclamou, lembrando-se do sonho. — Acho que foi por
causa do filme que estava passando na televisão. ..
— Sei, sei.. . — ele murmurou, levantando-se.
— Aonde vai?
— Agora você está bem. Vou voltar para o meu quarto...
— Não! Por favor, não!
— Devo ir! — insistiu, a voz inflexível.
Ela começou a chorar novamente, de uma maneira desesperada que parecia
sacudir-lhe a alma. Fernando fitou-a por um longo tempo.
— Está bem, eu fico. Mas é só isso, entendeu?
Ela ergueu o rosto molhado e o encarou, balançando levemente a cabeça. Ele
apagou a luz, deu a volta na cama e deitou-se ao lado dela. Não tirou o roupão e nem
entrou debaixo das cobertas. Não era difícil para ela compreender por quê...
Na manhã seguinte, um pouco antes de clarear, entreabriu os olhos e percebeu
que estava muito próxima de Fernando, o braço envolvendo os quadris dele...
CAPÍTULO VI
Projeto Revisroas 34
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amo-a. É porque a amo que não posso criar um relacionamento entre nós, já
ameaçado desde o início. Tenho idade demais para estar com você. Conheço muito da
vida para saber que tenho razão. Contratei um táxi que a apanhará às onze horas em
ponto e a levará de volta a Londres. Quanto a mim, a esta hora eu já terei partido.
Perdoe-me, Fernando".
Susana releu o bilhete e deixou-se cair no sofá, olhando sem ver para a boca da
lareira vazia. Ele se foi, ele se foi, repetiu para si mesma, e àquela hora talvez já
estivesse num avião. A decisão de partir teria sido planejada ou um ato de momento,
provocado pela confusão da noite anterior? Ele não tinha marcado nenhum novo
encontro, nem mesmo na próxima viagem a Londres. No entanto, sabia que ela não
acompanharia os Castana. Como a encontraria numa cidade tão grande, caso quisesse
revê-la?...
Depois de permanecer um longo tempo sentada, imersa em pensamentos e
indagações, arrastou-se até à cozinha e fez um café. Era necessário tomar alguma
atitude para sair daquela depressão, daquela apatia. Tinha que lavar-se, vestir-se,
arrumar as coisas na mala e estar pronta à hora marcada para a chegada do táxi.
Às onze horas, sem encontrar a chave para trancar a casa, saiu, bateu a porta, e
entrou no carro sem olhar para trás. Esforçou-se para trocar algumas palavras com o
motorista durante o percurso, pois ele insistia em fazer comentários sobre o clima, a
estação do ano, o time de futebol e toda a sorte de coisas que a aborreciam.
Chegou em Londres no meio da tarde e quando tirou o dinheiro para pagar a
corrida, já na porta da casa dos Castana, o motorista explicou-lhe que tinha recebido
antecipadamente.
Entrou na casa com a sensação de que estava morta e mal soube esconder o
desânimo quando a sra. Travers apareceu, vinda da cozinha.
— Voltou cedo, senhorita! — exclamou a mulher. — Pensei que chegaria à
noite.
— Tive que mudar os planos — explicou secamente. — O señor e a señora
Castana estão em casa?
— Saíram. Uma velha amiga deles, a señora Alvarez, chegou ontem à tarde e
acredito que tenham ido a algum restaurante.
— Oh, sim — observou, aliviada.
— Aconteceu alguma coisa de errado, senhorita? Parece-me indisposta. Não
tem fome? — Fez uma pausa e aguardou a resposta que não veio. — Bem, estou indo
visitar minha irmã, mas se quiser comer alguma coisa. . .
— Não, não, obrigada. Não se preocupe. Não quero estragar sua tarde. Pode ir.
É possível que eu saia novamente. . .
Teve a ideia de repente: visitaria seus amigos Margaret, Peter e Toni. Seria
confortador estar na companhia de quem se preocupava com ela. ..
— Quer dizer que... dormiu com ele? Oh, Susana! — Margaret French olhava a
amiga com perplexidade. — Que diabo fez você aceitar um convite desses?
As duas conversavam na cozinha da enorme casa de Kennington, enquanto
Peter brincava com Toni na sala de estar. Susana tinha acabado de comer um mexido
de ovos e agora tomavam café,.
— Mas já lhe contei que não aconteceu nada.
— Sim, mas e se esse tal de Fernando não fosse um cavalheiro, como você
pensava?
— Compreendo o seu ponto de vista...
— Naturalmente! Pois você conhecia o homem há apenas duas semanas!
— Amanhã ele iria para a Espanha. Era o último fim de semana em Londres.
— E daí?
— Daí que o amo, Margaret!
— Ama um estranho! Sequer tem o endereço dele!
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— Pois bem, quer ficar sózinha a vida inteira? Não quer uma família? Um lar?
— Quero. . . mas não vou casar para fugir, como uma saída fácil entre as mais
difíceis! Quero casar com quem eu ame!
— Fernando.
— Sim, Fernando.
— Logo, vai procurar outra família. . .
— Acho que sim. Não estou preocupada com isso agora.
— Nem teve tempo para isso! — Margaret observou com ironia.
— Não — Susana respondeu secamente. — Mas eu tenho a obrigação de
informar o sr. Castana de que não vou acompanhá-los. Afinal, ele precisa arranjar uma
substituta, já que quer uma governanta inglesa para Eduardo.
— Bom, pode ficar morando aqui conosco, se não conseguir uma família antes
de os Castana mudarem. Espaço não falta, e teríamos o maior prazer em recebê-la.
Ora, você sabe disso...
— Sim, obrigada.
Susana lamentou quando chegou a hora de voltar. Por algum tempo, conhecera
a tranquilidade e a amizade de um verdadeiro lar, e inquietava-se com a idéia de isolar-
se no quarto da casa dos Castana. Enquanto Peter a levava a Lorrimer Terrace,
imaginou que havia muito para pensar sobre o casamento. . .
Na manhã seguinte, conheceu a hóspede dos Castana, pois Lucie levou a
señora Mónica d'Alvarez à sala de estudos, onde ensinava a Eduardo. Para sua
surpresa, constatou que se tratava de uma americana que, conforme disse, vivia na
Espanha há muitos anos. Embora aparentasse uns cinquenta anos, Mónica vestia-se
jovialmente, Ainda assim… não era atraente, com uma falta de senso de humor que
competia com o de Lucie.
Mónica mostrou-se realmente interessada no que Eduardo estava aprendendo,
perguntando a Susana coisas sensatas e pertinentes e elogiando o menino por ler tão
bem em inglês.
— É sempre melhor ter-se uma governanta inglesa — observou Lucie,
indiretamente felicitando a eficiência de Susana. — Carlos jamais pensaria em
contratar outra.
— Está pensando em ir para Nova York? — perguntou Mónica, levantando as
sobrancelhas. — Vai gostar muito de lá! Lá os homens não são cegos como os de
onde venho.
— Oh, Mónica, os espanhóis não são cegos — retrucou Lucie. — Simplesmente
respeitam as convenções. . .
Susana esboçou um sorriso ao ouvir a frase.
— É mesmo? — disse Mónica. — Dê o nome que quiser, minha querida, mas
continuo achando que, nos Estados Unidos, não é preciso levar o cavalo até à água e
ensinar-lhe a beber!
Susana achou que aquele era o momento propício para informar Lucie de que
não iria para Nova York com eles.
— O quê? — Lucie abriu os olhos, horrorizada com o que acabava de ouvir. —
Por que não?
— Será melhor para mim procurar um novo emprego, señora.
— Meu marido já sabe disso?
— Não, señora. Ia dizer hoje, mas agora, como a senhora tocou no assunto...
— Entendo — Lucie disse, esfregando as mãos com impaciência. — Já pensou
que teremos de arranjar outra governanta imediatamente e que, tão logo o consigamos,
a senhorita será dispensada?
— Sim, señora. — Olhou triste para Eduardo.
Mónica d'Alvarez mostrou-se interessada na decisão de Susana.
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— Sim — respondeu num gesto de resignação — Não terá problemas com ela.
As meninas espanholas são criadas para serem obedientes, até demais para o meu
gosto. Por isso gostaria que a senhorita fosse professora dela. Quero que ela
compreenda que tem uma cabeça para pensar por si mesma.
— Não se esqueça, Mónica — observou Lucie —, de que moças de boa família
costumam ser educadas. Talvez não saiba disso...
— Oh, é mesmo? O que eu sei é que você está tentando fazer a srta. King
recusar meu convite!
— Mas ela sequer tomou uma decisão!
— Por você, ela nunca tomará!
— Maria se dará melhor no internato — Lucie insistiu.
— E o que será dela, no futuro? Noivado, casamento. . . e tudo o mais. Oh, não,
não, não quero isso para Maria. Detestaria que ficasse igual a mim. Ou igual a você!
Frustradas e enfastiadas da vida. Casadas com homens que nem se lembram de que
existimos! Ora, Lucie, seja honesta! No fundo, sabe que tenho razão. Você não ama
Carlos. Nunca o amou. Não se sentiria atraída por Fernando se realmente amasse
Carlos!
Fernando! O nome ecoou nos ouvidos de Susana como um estampido. Seria o
mesmo Fernando? Mas é claro, pensou ela, bastava ver a reação de Lucie diante dele!
Então Mónica também o conhecia!
— Mónica, por favor! — pediu Lucie.
Mónica suspirou e balançou a cabeça, sabendo que tinha ido longe demais.
— Está bem, eu calo minha boca! Mas você sabe que falei a verdade. —
Voltou-se mais uma vez para Susana: — Então, minha querida? Quanto tempo precisa
para pensar?
Susana estava no maior conflito. Talvez Mónica acabasse esquecendo aquela
conversa logo depois que saísse da sala. Era sua vontade ir para a Espanha? Estaria
preparada para um encontro casual com Fernando?
Bateram à porta e a criada entrou.
— Desculpe-me señora Castana, há um cavalheiro procurando pela señora
d'Alvarez.
— Ele deu o nome? — perguntou Mónica, voltando-se para a criada.
— Sim, madame. Um certo sr. Rosenberg. . .
— Max! É Max! — Mónica exclamou, radiante. — Lucie, ouviu bem? Max está
aqui! Oh, nem posso acreditar!
Enquanto ela saía correndo pela porta, Susana sentiu um alívio. Sem dúvida,
tinha todos os motivos para esquecer aquela proposta.
— Um instante — Mónica disse, voltando afobada. — Volto mais tarde para
saber de você o que decidiu, minha querida. Se o problema é dinheiro, pago-lhe o
dobro do salário atual, seja lá quanto for. E pago-lhe um mês adiantado, como voto de
confiança!
Susana fechou as mãos e deu um passo à frente.
— Não, não precisa voltar mais tarde — disse, enquanto Mónica ficava imóvel,
aguardando que ela completasse a frase. — Quer dizer, para ouvir minha decisão. Eu...
aceito ser governanta de Maria, se realmente me quer.
CAPÍTULO VII
Susana chegou em Madrid com o sol a pino, brilhando com tal intensidade e
tornando a atmosfera tão quente e abafada que até mesmo os funcionários do
aeroporto trabalhavam preguiçosamente. Quando toda a Espanha mergulhava na
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sonolência da siesta, voou dali para Sevilha. Depois dos imponentes Pirineus, ainda
cobertos pela neve do inverno, avistou a pista do aeroporto, amolecida pelo calor. Ao
descer do avião, sofreu o impacto do ar quente e seus olhos arderam com os reflexos
dos vidros do aeroporto. Mas enquanto passava pela alfândega de Sevilha, pôde sentir
a refrescante aragem da tardezinha.
Com as duas malas nas mãos, respirando com alívio, entrou no saguão e olhou
ao redor. Era inacreditável que há apenas algumas horas estava na casa de Margaret,
em Kennington. Finalmente os últimos dois meses de espera chegavam ao fim, e a luta
com a sua própria consciência parecia terminar também.
Lucie tinha feito o possível e o impossível para lhe dificultar as coisas, desistindo
de importuná-la somente quando Carlos conseguiu contratar uma nova governanta.
Mónica d'Alvarez já tinha voltado para a Espanha, deixando preparada a viagem.
Simpatizava com Mónica, embora não apreciasse de todo seu modo de falar.
Lucie considerava Mónica uma mulher famosa por desprezar as convenções
mais caras à sociedade, comprometendo-se com dezenas de casos amorosos, dos
quais Max Rosenberg era um. Tinha se valido disso para garantir que Susana não se
daria bem com ela.
Felizmente, Susana procurara ignorar todos os comentários, que, na verdade,
expressavam simplesmente o despeito de Lucie.
A ela não interessavam os casos da Señora Alvarez e não pretendia se envolver
com problemas que não lhe diziam respeito.
Quanto a Margaret, fez de tudo para dissuadi-la da ideia de se mudar para a
Espanha. Mas era tarde demais para voltar atrás. Talvez a decisão fosse impensada e
perigosa, de consequências desastrosas, no entanto queria saber por que Fernando a
tinha abandonado tão abruptamente. Suspeitava que, por algum motivo, era
conveniente para ele separar a vida de Londres e a da Espanha. Restava-lhe saber o
motivo verdadeiro...
O saguão aos poucos foi se esvaziando e Susana continuou aguardando que
alguém a procurasse, conforme o combinado.
— Señorita King? — Ecoou uma voz estranha.
Ela se virou para ver quem a chamava e deparou com um homem de estatura
média, tipicamente espanhol e vestindo uniforme de chofer.
— Sim? Sou Susana King. O senhor, quem é?
— Pedro Morales, señorita. El chofer de don Fernando Ramirez Esteban
Cuevas d'Alvarez, a su disposition.
Desconcertada, Susana apertou as alças das malas. Distinguia dois nomes
naquela enxurrada de palavras em espanhol: Fernando Cuevas! Que significava
aquilo? Seriam nomes comuns na Espanha? Ou aquele chofer trabalhava para
Fernando?
— Como vai? — disse finalmente, cumprimentando-o. — O senhor fala inglês?
— Muito mal, señorita — respondeu, abaixando-se para pegar as malas. —
Acompanhe-me, por favor.
Lá fora o sol caía implacavelmente sobre tudo e todos e Susana respirava com
dificuldade, enquanto caminhava para o estacionamento onde estava parada uma
limusine. Enquanto ele guardava as malas, ela viu um brasão na porta: era da família
Alvarez, representada por uma águia e uma romã. Afinal, que queria dizer aquilo?
Fernando seria parente da família? Sentiu-se confusa e vagamente apreensiva.
Como ela não falava bem o espanhol, conversaram muito pouco durante o
percurso até à propriedade dos Alvarez. Gostaria de perguntar ao chofer algumas
coisas sobre a família, mas talvez fosse melhor continuar sem informações detalhadas.
Era apenas uma governanta, uma contratada como Pedro Morales, e duvidava que ele
tivesse condições de falar sobre seus patrões.
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— Talvez esteja se perguntando por que lhe conto tudo isso... É porque quero
que saiba desde já que o acordo feito entre a señorita e a señora Alvarez, no que diz
respeito a mim e a meu sobrinho, não deverá durar muito tempo. Está me entendendo?
— A señora está... me dispensando, em outras palavras.
— Don Fernando, e não eu, pedira à señorita que vá embora. .. Eu
simplesmente estou me incumbindo de preveni-la. A señorita não ficará nesta casa
mais que uns poucos dias.
Susana levantou-se, repentinamente irritada.
— É tudo, señora?
— É tudo, señorita.
A mulher mantinha-se calma e segura, enquanto Susana sentia-se embaraçada,
o rosto em brasa. Sem dúvida, Mónica d'Alvarez tinha sido precipitada, contratando-a
sem considerar a situação tensa que reinava na família. Mas onde estaria ela?
— Pode se retirar, señorita. Antes de conhecer Maria, meu sobrinho gostará de
entrevista-la pessoalmente. Provavelmente, logo depois do jantar! Nós a avisaremos.
Susana não respondeu. Nada tinha para dizer. A señora Alvarez, se era aquele
o seu nome, falava de tal maneira que dificilmente poderia ser contestada.
Aproximou-se da porta e estendeu a mão para a maçaneta. Nisso a porta se
escancarou, quase chocando-se contra ela.
Repentinamente, um homem alto, esguio e moreno entrou, um homem cuja
imagem já estava impressa em sua memória. Vestido todo de preto, sua identidade não
deixava de se revelar.
Enquanto Susana ficou ali de pé, absolutamente petrificada, ele a ignorou,
encarando a velha senhora que levantou-se para recebê-lo. Percebeu então que, da
parte dele, não havia surpresa em vê-la ai: Fernando sabia de sua chegada, pois era
ele quem estivera escondido nas sombras, enquanto Pedro retirava a bagagem do
porta-malas do carro. . .
CAPÍTULO VIII
Não, aquele quarto não era lindo. Odiava-o, odiava tudo que estava dentro dele;
odiava aquela casa ostensivamente rica e acima de tudo, odiava Fernando d'Alvarez!
Impaciente, perambulava pelo aposento, incapaz de sentar-se, deitar-se,
incapaz até mesmo de pensar, de comer a deliciosa comida levada por Maria uma hora
atrás. Sentia-se vazia, um vazio da alma, mas não de corpo. ..
Como tinha sido tola! Devia ter adivinhado que havia coincidências demais para
serem apenas coincidências! Fernando era marido de Mónica.. . e pai de Maria!
Susana soluçou, apesar das tentativas de controlar-se. Lembrou-se de como
Fernando a olhou quando se viram pela primeira vez fora de Londres, apresentados
pela tia. Seu olhar era frio e selvagem, muito diferente do olhar terno que conhecera!
Exausta, tensa como nunca, deixou-se cair na cadeira e enterrou o rosto nas
mãos. Ironicamente, agradecia aquela velha senhora por não desejá-la como
governanta; agradecia a ele também, que partilhava da mesma opinião. Como poderia
viver ali, vendo-o diariamente, vendo-o no rosto da propria Mónica, da própria filha
Maria?
Não era possível permanecer sentada e encontrar a tranquilidade. No entanto,
precisava pensar, pensar! E por onde andava Mónica? Quando apareceria para poder
lhe falar?
Sobressaltou-se quando bateram a porta. Era apenas Maria, e abriu a porta
imediatamente.
— Olá, Maria, pode levar a bandeja.
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significava tanto. Mas ele havia sido sincero com Susana e não podia imaginar que não
fosse um homem livre. No entanto, desde o começo tudo indicava a existência de uma
esposa. Em primeiro lugar, falara pouco sobre si mesmo, nunca mencionando a casa e
a família, a não ser fatos do passado distante. Nunca chegara a sugerir-lhe que
escrevesse ou que o visitasse na Espanha.
Oh, por um fio não me deixei enganar completamente! exclamou para si mesma.
E pensar que, enquanto estavam na casa de campo, a esposa dele conversava com os
Castana há apenas algumas horas de distância!
Rolou na cama e enterrou o rosto no travesseiro. Felizmente ele não tinha
abusado de sua inocência, controlado pela educação rígida e pela noção de honra que
por certo herdara.
Mesmo pensando desse modo, sentiu um calor familiar percorrer-lhe o corpo e
estendeu as pernas com impaciência. Como reagiria ele se decidisse recomeçar
aquele tipo de relacionamento ali em sua casa? Talvez temesse exatamente isso, e
para evitá-lo tinha chamado Maria para ouvir toda a conversa...
E Mónica d'AIvarez? Onde estava? Sabia que Susana chegaria naquele dia,
pois escreveram-se um pouco antes. Por que teria se ausentado? Estaria na
companhia de Max Rosenberg?
Ela se agitou novamente, incapaz de voltar a dormir. Queria lembrar-se do que
Lucie tinha falado sobre o relacionamento entre Mónica e Rosenberg e não conseguia.
Mas por que querer lembrar-se disso naquele momento? Para justificar seu próprio
relacionamento com Fernando Cuevas?
Adormeceu finalmente e despertou com um raio de sol atravessando a janela e
batendo sobre seu rosto. Maria tinha acabado de abrir as cortinas e as venezianas.
— Buenos dias, señorita. São mais de oito horas e a señora Gomez pediu-me
para acordá-la.
Susana encolheu-se na cama, protegendo os olhos com as mãos.
— Oh, sim? Obrigada, queria mesmo me levantar cedo. . . — Verificou as horas
no relógio sobre a mesa-de-cabeceira e viu a bandeja com o café. — Obrigada, Maria,
pelo café.. .
— Si, señorita.
Ela sentou-se na beirada da cama e olhou novamente as horas. Oito e vinte!
— Diga-me, a que horas a señorita Maria vai para o convento?
— As aulas começam as oito em ponto, señorita, logo depois da missa.
— Oito em ponto?! E hoje ela foi para o convento?
— Não. Don Fernando disse que a señorita dará algumas aulas para ela. . .
— Oh, sim, eu acho que sim…
A criada mostrou que estava de saída.
— Outra coisa, Maria. Que devo fazer. .. depois do café? Em que sala darei
aulas para a señorita?
— Talvez use a sala da niña.
— Pode me mostrar onde é? — A criada hesitou.
— Falarei com a señora Gomez. Ela sabe o que a señorita terá que fazer.
Voltarei daqui a pouco, si?
— Você é muito gentil. — Sorriu.
— De nada. . .
Depois que Maria saiu, Susana começou a tomar o café da manhã. De alguma
maneira, sentiu que não poderia continuar inteiramente indiferente à alegria da moça,
ao sol quente que caía sobre seu corpo, ao aroma perfumado das flores que a aragem
levava para dentro do quarto.
Terminado o café, mais disposta para enfrentar o dia, tomou banho e preparou-
se para descer, tão logo Maria voltasse com as instruções.
Pouco depois, ela bateu a porta e entrou.
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olhando flores de várias espécies. Pouco depois chegaram a um grande muro que
estabelecia os limites da casa com o mundo exterior. Maria sugeriu-lhe então que
voltassem para tomar chocolate.
Enquanto saboreavam o líquido, o olhar de Susana notou a presença repentina
da sra. Alvarez, que a fitava com hostilidade. Maria, sem perceber aquela comunicação
silenciosa, cumprimentou a tia-avó, beijando-lhe a face enrugada.
— Então, señorita — disse a senhora para Susana —, convenceu meu sobrinho
a continuar aqui?
Susana levantou-se.
— Ele insistiu para que eu ficasse até à volta da señora Mónica d'Alvarez.
— E por que fez essa exigência?
— Creio que será melhor perguntar-lhe, señora — replicou Susana com uma
calma que a surpreendeu.
— Tia Amália — interveio a menina —, eu estava mostrando a casa à srta. King.
— Estava? E o que foi que seu pai combinou com a señorita King quanta a sua
educação, querida?
— Nada, tia. . . ela vai me ensinar. . .
— E quando começarão as aulas? Se andou passeando pelos arredores, não
andou estudando, não é mesmo, Maria?
Maria corou e baixou a cabeça.
— Señora — retrucou Susana —, o ensino se torna mais eficaz quando
professor e alunos se conhecem como pessoas antes de darem início a qualquer
atividade,
A señora Amália d'Alvarez lançou-Ihe um olhar frio e desafiador.
— E o que descobriu sobre a minha sobrinha, señorita?
— Prefiro não expor as minhas impressões, señora.
— Mas é sobre elas que estamos conversando, não?
Susana conteve a vontade de dizer a ela tudo o que estava pensando, apenas
para não chocar a menina, que servia chocolate a lia.
Seguiu-se um silêncio constrangedor, enquanto bebiam. O olhar de Susana
passeou pela sala e deteve-se sobre uma tapeçaria que representava duas mulheres e
um homem nos jardins de uma espécie de pagode. Sob os beirais curvos do edifício,
havia pequenas pontes sobre riachos e cerejeiras em flor. Tudo parecia real, ate
mesmo as pequenas figuras do primeiro plano, que usavam uma vestimenta muito
antiga.
Maria terminou de tomar o chocolate extremamente doce e pôs a xícara no
pires.
— Gosta de arte japonesa, srta. King?
— Gosto das coisas bonitas. Maria. E nesta casa existem coisas lindíssimas. A
menina se levantou da cadeira e foi até à lareira.
— Papai trouxe essa tapeçaria de Osaka há muitos anos atrás. Deve ter muito
valor e é muito antiga também. Talvez tenha uns trezentos anos.
— As cores são tão ricas!
— Naturalmente foi restaurado aqui na Espanha.
— Oh, sim?
— Gostou dela?
— Muitíssimo.
— Sabe o que representa? Este aqui é o Pavilhão de Prata. Vê esta figura que
está meio escondida atrás do guarda-sol? É a amante do homem. Acho que você já
compreendeu: ele é casado com esta outra mulher, que o provoca com o leque.
A explicação das imagens mexeu com as emoções de Susana. Com poucas
palavras, Maria tinha acabado de descrever a relação que existia entre ela, Fernando e
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Mónica! O tapete japonês representava, com fidelidade, o fio cruel do destino, que a
tinha colocado na exata posição da primeira mulher.. .
CAPÍTULO IX
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um charuto do estojo. O olhar dela se fixou sobre a mão morena que levava o charuto à
boca. Viu-lhe então a camisa entreaberta, o tecido tenso denunciando a rigidez dos
músculos do peito e dos ombros.
Ele acendeu o charuto com um prazer evidente e recostou-se na cadeira forrada
com couro escuro.
— Muito bem. . . por que queria me ver?
Susana baixou o olhar e estreitou as mãos nervosamente. Ali estavam as cartas
de um jogo iniciado por ela mesma!
— Queria lhe falar a respeito da pequena Maria, señor. . .
— Sim?. ..
— Sim... — repetiu, procurando mostrar a mesma frieza que ele. — Não acho
satisfatória a maneira com que estou educando Maria. . .
— Não? — Tragou o charuto e soltou uma baforada. — Por que não? A meu ver
está se saindo bem. . .
— Como pode dizer isso?
— Estou a par de tudo, señorita. Minha tia me mantém informado de seus
progressos. . .
— Acredito que ela o informe. No entanto, discordo.
— Discorda de quê? Das informações ou dos seus progressos? Susana
perturbou-se com o tom fulminante.
— Não. . . quer dizer, discordo que esse horário esteja funcionando, señor. . .
— Entendo.. . E naturalmente tem sugestões a fazer.
— Sem dúvida.
— Pois então vá em frente.
— Em primeiro lugar, Maria passa muito tempo na companhia da señora
Alvarez, sua tia. . .
— E o que isso tem a ver com os horários de estudo de Maria, señorita?
— O señor se recusa a me compreender. . .
— Recuso-me?
— Sabe que sim!
Susana tremia e arfava, encontrando dificuldade para se controlar. Não seria
bem-sucedida se não mantivesse a calma e não o impedisse de desconcertá-la.
— Maria e eu nos vemos apenas pela manhã, señor. Ao meio-dia tomamos
chocolate com sua tia e depois.. . não tenho o que fazer!
Fernando apoiou os cotovelos sobre a mesa e observou-a detidamente.
— Por acaso não está confundindo o seu aborrecimento com a qualidade da
educação de Maria?
— Não! Não estou, não! Uma governanta não se limita a dar aulas! Maria e eu
deveríamos estar juntas em outros momentos. Poderíamos sair, passear, ir ao litoral. . .
nadar! Jogar ténis! Conhecer outras pessoas!
— Maria é igual às outras meninas da idade dela e da mesma classe social. . .
— Na Espanha, quer dizer.
— Naturalmente, señorita.
— Bem. . . — suspirou — pois acho que não é natural! Viu as roupas que ela
usa? Notou quanto tempo ela se senta ao lado da señora Alvarez ouvindo-a lembrar o
passado? Isso não é saudável!
— A señorita está se esquecendo de si mesma!
Fernando estava irritado, o que para ela não fazia a menor diferença. Como ele
podia se comportar como um cego? Maria definhava naquela atmosfera pesada e sem
vida! Em pouco tempo se transformaria numa cópia da tia-avó.
— Caso puxe pela memória, señor, lembrando-se de sua própria infância, não
será impossível compreender que Maria precisa de mais liberdade! — exclamou com
uma segurança repentina. — O señor mesmo. ..
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contratar os seus serviços, por que ela desaparece durante semanas inteiras sem dizer
uma palavra sequer?
— Isso não me diz respeito. ..
— Concordo com você. Nada do que acontece lhe diz respeito. Portanto, saia!
— O que dirá a sua esposa quando voltar? Que não gostou dos meus serviços?
Ou que, como nos conhecíamos de Londres, eu estava me tornando um problema para
você?
A expressão de Fernando tornou-se ainda mais sombria.
— Mas o que está insinuando? Que contará a Mónica o que há entre nós se eu
não lhe conceder o que me pede?
Susana engoliu em seco, indignada. Encarou-o durante alguns segundos
agoniantes e percebeu que aquele pensamento não era verdadeiro. Simplesmente se
defendia dela, simplesmente desejava vencer agredindo-a como podia.
— Chama a isso de negociação barata? Você seria capaz disso!
Susana deu de ombros.
— Dê-me mais duas semanas com Maria. Duas semanas de liberdade absoluta.
Não para aulas, que continuarão normalmente. Mas para sairmos desta casa de vez
em quando!
— E se Mónica voltar?
Susana não respondeu. Mónica poderia ser um obstáculo e por alguma razão
gostaria que ela não voltasse.
Mas Fernando continuava olhando-a impacientemente à espera de uma
resposta. Se ela demonstrasse o quanto estava perturbada com aquela pergunta, poria
tudo a perder.
— Dirá a ela que estou trabalhando por um período experimental.
— Você não ignora que eu poderia reproduzir essa nossa conversa diante da
polícia, não é? O que você me propõe é chantagem!
— Não dramatize as coisas, Fernando. Afinal, que é que estou lhe pedindo?
Duas semanas de uma vida inteira!
Com um pouco de arrependimento, Susana notou que Fernando parecia
vencido. Desejou aproximar-se para confortá-lo, para lhe dizer que ainda o amava.
Não podia fazê-lo, porém, porque não acreditava mais nas palavras afetuosas
ditas por ele em Londres. Ele, que quase a tinha arruinado. Mas Maria, filha dele,
justificava sua presença ali, justificava toda aquela angústia e ansiedade.
— Muito bem, señorita — ele disse finalmente, tirando outro charuto. — Fique.
— E quanto ao que combinamos em relação aos horários?
— Morales receberá permissão para levá-las aonde quiserem ir... Mas sairão de
carro apenas na companhia dele. Caso desobedeçam, Morales receberá instruções
para me relatar tudo.
Susana suspirou aliviada. Tinha vencido, tinha vencido! No entanto, era uma
vitória absolutamente vazia!
CAPÍTULO X
Na manhã seguinte, quando Susana disse que sairiam à tarde, logo depois da
siesta, Maria arregalou os olhinhos negros.
— Onde vamos, srta. King? Às quatro horas em ponto tenho que tomar chá com
a tia Amália.
— Sei disso, meu bem. — Susana sorriu. — Mas seu pai deu permissão para
sairmos de carro com Morales. Gosta da idéia?
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ancorados. Susana avistou uma ruína que fora construída entre os séculos XVII e
XVIII, de um templo cristão num meio puramente muçulmano. Maria, que a tinha
visitado varias vezes com o pai, contou um pouco de sua história.
Eram quase sete horas quando voltaram a Casa d'Alvarez, o que não
despertava em Maria a menor apreensão. Durante o dia, tinha se tornado falante,
demonstrando uma inteligência e uma cultura que Susana ignorava. Na verdade,
aquela era a primeira oportunidade para exibir o que tinha aprendido. Susana deixou-a
inteiramente à vontade para falar, apenas de vez em quando emitindo alguma opinião.
Percebia claramente que o problema de Maria estava na falta de comunicação com a
señora Alvarez e com Fernando, o que certamente desapareceria se houvesse maior
colaboração entre os membros da família. Ansiava pelo momento de mostrar a
Fernando aquele outro lado da filha.
Na manhã seguinte, a señora Alvarez recebeu Maria com reservas,
mergulhando num silêncio que significava a recusa em permitir-lhes uma nova saída à
tarde. Ela deveria ter falado com Fernando, pensou Susana, mas não parecia disposta
a ceder às transformações. A velha señora contentava-se em olhar para Susana com
rancor.
Não levando em conta dona Amália, ambas saíram e Maria começou a revelar
sinais de um novo comportamento. Foram a Algeciras e Jerez, visitaram as vinhas e
num outro dia partiram imediatamente após o café da manhã rumo a Sevilha, para
visitarem a catedral. Não importava a Susana que os passeios fossem encarados por
Maria como uma oportunidade de lhe mostrar as belezas daquela parte do mundo.
Importava-lhe arrancá-la da apatia, transformá-la numa menina esperta e vivaz.
Susana chegou mesmo a levá-la ao seu quarto, numa tarde, e mostrou-lhes os
vestidos, sugerindo-lhe que os experimentasse. Embora Maria fosse muito jovem, era
alta e desenvolvida, de maneira que algumas roupas, com alguns acertos, lhe caberiam
maravilhosamente. Mas a intenção de Susana era mostrar a ela o quanto ficaria
atraente usando roupas mais alegres e informais.
— Papai não deixaria eu usar roupas desse tipo — a garota lamentou. — E tia
Amália jamais concordaria. . .
Susana estudou-a demoradamente.
— Se encurtássemos essa calça — murmurou, como se falasse consigo mesma
—, você poderia usá-la. Sabe, não gosto muito da cor verde. Tenho também uma
porção de suéteres como esse. Se quiser, pode ficar com eles.
— Está falando sério?
— Claro que estou. Gostou deles?
— Você sabe que eu gostei. — Ela olhou-se no espelho, encantada. — Mas o
que vou dizer ao papai?
— Diga para ele se preocupar com as coisas dele!
A voz soou alta e forte atrás delas. Ambas voltaram-se, espantadas.
— Mamãe! — Maria exclamou, horrorizada.
— Señora Alvarez! Quando chegou?
Mónica encolheu os ombros e entrou, andando preguiçosamente.
— Meia hora atrás, creio eu — respondeu, lançando um olhar para as roupas
espalhadas. — Oh, até parece um desfile de modas! Que esta acontecendo por aqui?
Maria hesitou, olhando fixamente para Susana.
— Maria estava experimentando algumas roupas minhas. Queria mostrar a ela
que roupas informais dão à gente uma sensação de liberdade.
Mónica olhou para as próprias roupas que estava usando e fez um gesto com a
cabeça.
— Há anos venho tentando dizer isso a ela!
— Sim, mas talvez ela precisasse experimentar por si mesma para se
convencer.
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— Maria era muito feliz antes de você se intrometer em coisas que não lhe
diziam respeito. Não é porque de vez em quando resolve desempenhar o papel de mãe
que deve se sentir no direito de reivindicar coisas para ela! Limite-se às coisas que
sabe fazer!
— Seu.. . seu estúpido! Um dia desses. . . um dia desses eu. . .
— Você irá embora? Sei perfeitamente disso! Mas até que este dia chegue,
deixe as questões referentes a Maria exclusivamente para mim!
Aquilo era terrível! Susana queria que o chão se abrisse e a tragasse! Não era
agradável estar ali ouvindo Mónica e Fernando comprovarem o fracasso do casamento!
Mas Fernando, sensato como sempre, resolveu pôr termo à discussão. Ele tinha plena
consciência dos efeitos nocivos que aquela situação teria sobre a personalidade frágil e
delicada de Maria.
Dando um novo golpe de chicote contra as botas. Ele ordenou:
— Maria, ponha suas roupas. Estou indo para o cortijo e pensei que você
gostaria de ir comigo.
— Oh, sim, papai — Maria respondeu, atordoada.
A menina foi para o banheiro de Susana e trocou-se rapidamente.
— Estou pronta, papai.
Fernando lançou um olhar fulminante para as duas mulheres e depois, com um
gesto quase imperceptível, pediu a Maria que saísse antes dele.
Quando elas ficaram sozinhas, Susana não sabia o que dizer e começou a
recolher as roupas, dobrando-as e empilhando-as.
— E então? — começou Mónica. — Não vai dizer nada?
— Não, senhora. Não tenho nada a ver com isso.
— Não me responda assim! A senhorita tem opiniões formadas, como todo
mundo. O que achou do meu encantador marido? Acha-o diferente de quando o
conheceu em Londres?
O rosto de Susana pareceu incendiar-se.
— Que está dizendo?
— Perguntei se o achou diferente de quando ele esteve em Londres.
— Como sabe que conheci seu marido em Londres?
Mónica apagou o cigarro e imediatamente acendeu outro.
— Lucie me contou. . .
— Lucie? Oh! — Suas pernas tremeram. — A señora Castana? — murmurou,
aliviada.
— Claro, Lucie me contou isso para impedir-me de contratá-la.. .
Susana deu-lhe as costas para que não notasse o tremor das mãos.
— E o que foi que a señora Castana disse?
— Oh, que Fernando saiu com você e Eduardo numa tarde. Foram visitar o
zoológico, não é isso?
— Isso mesmo — respondeu casualmente, guardando as roupas.
— Bem, e o que achou dele?
— De quem?
— De Fernando, naturalmente.
— Oh! Eu o achei simpático — disse, dando de ombros.
— Simpático? Eu jamais usaria essa palavra para descrever meu marido! Mas
não tem importância. . . Você deve ter percebido que a malícia de Lucie se deve ao
fato de ter sentido uma certa.. . queda por ele, não?
— É mesmo?
— Sim — Mónica respondeu, olhando para a brasa do cigarro.
— Ele esteve para casar-se com ela mas eu apareci no meio do caminho... —
Mónica levantou-se. — Muito bem. .. vou deixá-la em paz. Espero que compreenda a
complexidade do nosso relacionamento. Ficaria chocada se soubesse de toda a
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história! — Deu um sorriso malicioso. — Não me olhe com essa carinha assustada. Eu
e você faremos de Maria uma verdadeira mulher, vai ver.
Mónica saiu e Susana fechou a porta, encostando-se nela.
— Que dia! — exclamou. Exausta, atirou-se sobre a cama com a sensação de
que iria desmaiar.
Deitou-se de bruços. Como ficaria a situação a partir daquele momento, com a
presença de Mónica? Não gostaria de parecer cúmplice dela aos olhos de Fernando. E
Max Rosenberg? Qual era o papel dele? Teria contribuído para a deterioração do
casamento? Há quantos anos Mónica o conhecia? Há quanto tempo ela se comportava
tão desrespeitosamente com o marido e a filha?
Se aquele casamento era indesejável, porque não se separavam, afinal? Maria
só teria a ganhar com essa decisão! Mas, aparentemente, tinha uma resposta para
aquela pergunta. Fernando era católico. O divórcio, para ele, era inadmissível!
Sentiu uma pontada no coração ao concluir o pensamento. Não havia
escapatória para Fernando. Se a religião não exercesse tal influência sobre ele, como
seria o relacionamento seu com ele? Ou se enganava quanto aos sentimentos de
Fernando para com ela?
Havia muitas coisas para compreender! Nunca tinha imaginado que Mónica
fosse do tipo de mulher capaz de atraí-lo! Ela era tão rude, tão grosseira, tão diferente
dele! Era atraente, não podia negar, mas tinha pelo menos dez anos mais que ele e,
quando se casaram, deveria estar por volta dos trinta.
Arrastou-se pela cama e pôs-se de pé, terminando de guardar as roupas. Não
via sentido em procurar respostas para questões que não lhe diziam respeito. O melhor
talvez fosse partir o mais depressa possível. Com Mónica ali, certamente surgiriam
novos problemas e não se sentia forte o bastante para enfrentá-los.
Quando, na manhã seguinte, dava aulas a Maria, Mónica entrou na sala.
— Ontem a senhorita não jantou conosco — observou.
— Peço-lhe que me desculpe, señora.
— Eu disse que a senhorita não jantou conosco ontem a noite. . .
— Não, señora — respondeu, colocando a caneta sobre a mesa.
— Por que não? Por que voltei?
— É que costumo tomar as refeições no quarto.
— No seu quarto? Está me dizendo que durante todos esses dias tem tomado
suas refeições no quarto, sozinha?
— Sim, señora.
— Meu Deus! — Mónica exclamou, jogando a cabeça para trás. — Foram
ordens do meu marido, aposto!
— Não sei, señora. A señora Gomez disse que. . .
— Oh, a señora Gomez — ela repetiu. — Recebe ordens de dona Amalia,
naturalmente.
— Mas não tem importância, señora. . .
— Pois acho que sim.. . Uma governanta deve ser tratada como membro da
família.
— Não penso assim, señora. . .
— No futuro, srta. King, tomará as refeições junto com a família, estamos
entendidas?
— É uma ordem, señora?
— É o meu desejo, srta. King. Susana baixou a cabeça, suspirando.
— Pois não.
— Ótimo!
Depois que Mónica saiu, Susana não conseguiu mais se concentrar e Maria,
percebendo seu embaraço, mostrou-se solidária.
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— Srta. King, mamãe discorda de tudo o que papai diz. Com a minha educação
é a mesma coisa. Se fosse papai que tivesse pedido uma governanta, mamãe ia bater
o pé afirmando que o convento era infinitamente melhor.
— E você aceita isso, Maria?
A garota suspirou.
— Mamãe quase nunca está. . .
— Conversa com seu pai sobre sua mãe?
— Não, papai não permitiria, mas eu sei que as coisas não são fáceis para ele.
Susana ficou perplexa diante das opiniões de Maria e preferiu interromper a
conversa. Muita coisa ainda mudaria naquela casa, pensou. Maria, na verdade, não
estava sofrendo como no início tinha dado a perceber. Pelo contrário, talvez fosse mais
feliz do que todos os adultos juntos!
Ao meio-dia tomaram chocolate com Amália d'Alvarez, como de hábito.
— Imagino que a señorita nos deixará em breve, não? — perguntou a velha
senhora repentinamente.
— Imagino que sim, señora — Susana respondeu fria e calmamente, sem dar
atenção real ao assunto.
— Quando? Amanhã? Depois de amanhã?
— Talvez na semana que vem, señora.
— Semana que vem?! — exclamou dona Amália, pressionando uma mão
contra a outra. — Mas meu sobrinho lhe disse para ficar até à volta de Mónica!
Susana tomou um gole do chocolate quente.
— Acontece que don Fernando concordou com um período experimental,
señora — afirmou, num tom provocativo.
— Período experimental? Não me consultaram a respeito disso!
Maria sentou-se ao lado da velha senhora, no sofá.
— A srta. King vai passar a jantar conosco também, tia Amália.
— Por ordem de quem, Maria? Sua ou de Mónica?
— Não é minha vontade juntar-se à família, señora.
— Mamãe disse que na Inglaterra uma governanta faz parte da família. Nós
podemos fazer isso também!
Dona Amália levou os dedos ao colar de pérolas, girando-as impacientemente.
— Maria, estamos na Espanha, não na Inglaterra. Não desejamos adotar
costumes ingleses.
— A mamãe é inglesa, tia Amália.
— Não, niña, sua mãe é americana! Não se esqueça nunca disso!
À hora do almoço a situação foi igualmente tensa, quando Mónica d'Alvarez
entrou na pequena sala de jantar próxima do saguão.
Susana ficou angustiada ao observar os atritos entre Mónica e a señora Alvarez,
que turvaram a atmosfera sensivelmente. Fernando, como de costume, não estava em
casa. O momento da siesta veio como um alívio para Susana, que assim pôde
recolher-se ao quarto.
Mais tarde, ela e Maria saíram com Pedro para um passeio de automóvel. Por
sugestão de Maria, tomaram a estrada que levava às colinas e Susana viu o cortijo
para onde Fernando tinha levado a filha um dia antes.
— Os cortijos são uma espécie de quinta — explicou Maria. — Muitas famílias
vivem em comunidade, colaborando entre si em tudo.
— Seu pai é dono dessas terras? — Susana perguntou, sem conter a
curiosidade.
— Pertenceram a ele há muito tempo. Papai diz que um homem só devia ser
dono de si mesmo.
— Ele tem razão, Maria.
— Quase sempre papai tem razão, srta. King.
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Susana pensou muito antes de escolher a roupa que vestiria para o jantar, uma
situação que, para ela, era realmente especial. Acabou optando por um vestido negro
de jérsei, bastante informal e simples, mas ao mesmo tempo elegante.
Quando se aprontou, perguntou-se se estava realmente atraente. Quando
descesse, caso Fernando estivesse em casa, queria que a notasse de uma maneira
diferente, queria que visse nela a mesma mulher que conhecera em Londres.
Alguns momentos mais tarde, Maria entrou e, vendo-a toda arrumada, não
escondeu certa admiração.
— Vim lhe mostrar como chegar ao salon, srta. King. Venha comigo.
Susana sorriu.
— Obrigada, querida. Eu nem saberia como chegar lá.
— Também não é tão difícil assim. Esta noite vamos jantar no salon, que é a
sala de jantar principal. É mais impressionante e bonita do que aquela da hora do
almoço!
Maria olhou para o vestidinho de algodão que usava e suspirou.
— Presente da minha mãe no ano passado. De Londres... — confidenciou. —
Papai não gosta muito dele, mas eu pensei que você ia gostar.
— Você fica muito bonita dentro dele! Parece uma mocinha!
— Você também está linda! — exclamou Maria, à medida que caminhavam pelo
corredor do andar de baixo. — Aliás, não me leve a mal, mas está sempre linda! Sabe,
gostaria que mamãe fosse assim como você. Quem sabe papai se apaixonava por ela
e a gente ia ser muito mais feliz!
— Por que está dizendo isso?
— Porque é verdade. Papai gosta muito de você. E eu também gosto.
— Maria, pare de imaginar coisa! Seu pai quer que eu vá embora.
— Isso porque ele quer que eu frequente o convento. Não é nada pessoal.. .
— Como sabe?
— É verdade. Ontem à tarde, quando ele me levou para ver Juan, Carlos e Ana,
era para você ir junto.
— Era mesmo?
— Era. . . Por isso ele foi procurar a gente no seu quarto. Mas ai mamãe estava
lá, eu estava usando as suas roupas e papai ficou furioso, furioso mesmo.
— Mas não precisava ficar.
— É que papai me compra as roupas que a tia Amália escolhe. Magoei ele
quando disse que eram fora de moda.
Susana ficou calada, pensando em como aquilo era sensato. Mas tudo o que
Fernando dizia parecia sensato. Até mesmo a sugestão de passarem um fim de
semana juntos. ..
Maria a introduziu no salon, onde Fernando e señora Amália a aguardavam.
Mónica não estava presente, mas Fernando tinha uma expressão dura, agravada pelas
roupas escuras que usava. Aos olhos de Susana, parecia extremamente atraente, e
seus sentidos se acenderam à medida que os olhos dele se detiveram sobre cada
parte de seu corpo.
A señora olhou desgostosa para o vestido claro de Maria.
— Por que não está usando o vestido marrom de linho que Sophia fez para
você?
Antes que Maria pudesse responder, Fernando dirigiu-se a tia.
— Tia Amália, deixe-a em paz. Esse vestido é presente de Mónica. Cai-lhe
muito bem.
Até mesmo Maria se surpreendeu ao ouvi-lo dizer aquilo e daquela maneira,
fazendo com que a velha senhora silenciasse e baixasse o olhar. Finalmente a anciã
levantou-se para sentar-se no sofá colocado a um canto. Fernando pôs toda a atenção
sobre Susana.
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— Pode ir! — Mónica disse, observando-a com malícia. — Feche seus ouvidos
às nossas tempestades verbais! Recuse os fatos como todos desta sala!
Fernando, que estava de pé em frente à lareira, de mãos nos bolsos, aproximou-
se de Mónica.
— Mónica, Susana disse, mais de uma vez, que estava cansada! Não se
convenceu disso?
— Oh, você a chama de Susana, hein? É este o nome dela? E desde quando a
chama pelo nome, querido?
Aquilo bastou para Susana. Reuniu suas forças e andou rapidamente pelo
corredor em direção à escadaria que levava ao seu quarto. Só quando se fechou no
aposento sentiu a náusea que a dominava. Correu para o banheiro, as mãos no
estômago, a cabeça girando, indisposta e com ânsia de vómito.
Fraca ao extremo, transpirou abundantemente, a pele gelada. Arrancou as
roupas, tomou um banho frio, colocou um penhoar de seda e escovou os dentes.
Voltou ao quarto, apagou as luzes e estendeu-se na cama.
O quarto mergulhou nas trevas e ela teve a sensação de mergulhar no inferno!
Por que Fernando tinha se casado com uma mulher como Mónica? Ele a teria amado
durante todos aqueles anos? Apesar de toda a infidelidade, só o amor justificava
estarem juntos. Ainda era difícil acreditar!
Não, não importavam as razões que o tinham levado a viver com Mónica. O
casamento era um fato consumado, um fato que deveria aceitar para sempre. Iria
embora da Casa d'Alvarez! Maria voltaria para o convento e em breve a esqueceria!
A exaustão fez com que adormecesse, mas acordou sobressaltada. Abriu os
olhos e sentou-se na cama, com a impressão de que tinha ouvido um ruído. Nisso, viu
um vulto mexendo-se junto do guarda-roupa. Pensou em gritar, mas antes que o
fizesse, o vulto foi atingido por um raio de luar.
— Fernando! — ela exclamou, atônita. — Que está fazendo aqui?
CAPÍTULO XI
Fernando foi até à cama dela, com a camisa entreaberta e um pouco fora das
calças, as mangas arregaçadas, os cabelos desgrenhados. A expressão dele, de
profunda angústia, preocupou-a.
— Desculpe-me acordá-la, Susana. .. não era minha intenção.
— Mas o que veio fazer no meu quarto, Fernando? — perguntou, respirando
com dificuldade.
— Não sei — ele respondeu, negando com a cabeça. — Foi o que me perguntei
depois que entrei.
— Como assim?
Ele estava parado ao lado da cama, olhando-a estranhamente.
— Eu poderia dar muitas explicações, mas todas elas seriam desculpas. Vim
porque. .. queria vê-la. Senti necessidade de vê-la! Se não ia ficar louco!
Completamente louco!
Susana ficou boquiaberta.
— Oh, Fernando — sussurrou. — Que aconteceu com você?
Ele sentou-se na cama e procurou-lhe as mãos, prendendo-as contra as dele.
— Mónica e eu tivemos mais uma daquelas pequenas batalhas, pequena. Só
que desta vez você estava envolvida. . .
— Mas que tenho eu?
Fernando respirou fundo, inclinou a cabeça e beijou a mão dela.
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— Eu a proibi de dizer coisas a seu respeito. Você não faz parte da minha vida
sórdida. Não posso admitir que ela procure difamá-la! — Apertou as mãos dela. —
Como me arrependo de ter casado!
Susana sentiu um arrepio de frio percorrer seu corpo.
— Você a amou, Fernando. ..
— Antes a tivesse amado. . . Mónica casou comigo para que ambos nos
culpássemos por tudo. . . para que espiássemos nossos pecados.
— Não estou entendendo.
Ele a encarou um momento e baixou o olhar de novo para as mãos delicadas e
trémulas de Susana.
— Não poderia entender. . . Apenas eu e Mónica conhecemos o conteúdo
dessa longa história. . Eu devia ter lhe contado. Tive um irmão.
— Um irmão?
— Si. Ele se chamava Miguel e era um ano mais velho do que eu. Não se
parecia comigo, compreende? Ele era muito. . . obediente. Sempre fazia o que papai
mandava. Eu. . . eu não, eu preferia a liberdade.
Susana fez um sinal com a cabeça, dizendo que o ouvia e compreendia.
— Bom, Miguel vivia com papai e tia Amália em casa. Sentia-se bem. Ele era o
filho mais velho. Para mim, um dia ele tomaria as rédeas da companhia. . . eu não era
uma pessoa importante na família, Deixaram-me estudar na Inglaterra, viajar, escolher
a carreira que mais me agradava. A Companhia d'Alvarez prosperava. Papai era um
homem muito rico.
— Mas então houve mudanças, não é?
— Sim. Provavelmente você deve saber que as uvas cultivadas para a
produção do vinho precisam de um clima quente e seco. Elas precisam ser colhidas no
momento exato, quando não são nem muito doces nem muito amargas. O sol produz
açucar na uva, e uma colheita doce não resulta em bom vinho. Bom, isso é o que se
deve aprender. Uma lição que passa de pai para filho. Aliás o clima é a coisa mais
perigosa, já que não podemos ter controle sobre ele. Há dezesseis anos atrás, houve
uma estação úmida, excessivamente úmida, e as uvas foram arruinadas. A colheita foi
destruída. Todos perderam dinheiro, mas não estávamos ainda diante do grande
desastre. Todos argumentaram que no ano seguinte teriam a melhor colheita de todos
os tempos. Mas não foi o que aconteceu. Pelo menos, não para as vinhas de don
Esteban d'Alvarez. Uma doença virulenta atacou as raízes das videiras. Não pudemos
fazer nada, a não ser destruí-las. Precisávamos de novas videiras, mas já não
tínhamos dinheiro para isso.
Susana tocou a cabeça dele, alisando-lhe os cabelos. Era como se ela sonhasse
com aqueles momentos. Fernando não podia estar ali, a seu lado, relatando a situação
que tinha antecedido o casamento com Mónica!
— Miguel conhecia uma família de norte-americanos em Jerez. O nome dela
era Turner e Mónica era prima deles, na época estava viajando pela Europa. Bom, ela
tornou-se amiga de Miguel. Quando ficou claro que as vinhas dos Alvarez deveriam ser
vendidas, papai se desesperou. Pediu a Miguel para tomar providências no sentido de
recuperarmos nossa fortuna. Sabíamos que Mónica era rica. . . Papai sugeriu então
que. . . aquela era a única maneira de vermos as vinhas restabelecidas. . .
— E Miguel casou com Mónica?. . .
— Não. Miguel foi assassinado uma semana antes do casamento. Susana levou
a mão a boca, horrorizada. Começava a compreender.
Miguel morto, apenas Fernando poderia salvar a fortuna da família...
— Você casou no lugar dele?. . .
— Mónica, naturalmente, não viu a menor diferença. Pelo menos naquele
momento. Como lhe disse, eu estava fora da Espanha, e Mónica e eu não nos
conhecíamos, o que aconteceu quando voltei para os funerais de Miguel. Digamos que
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ela se sentiu fisicamente atraída por mim. Agora você pode ver claramente o dilema
que tinha diante de mim. Antes papai nunca havia me pedido absolutamente nada. Eu
simplesmente não podia decepcioná-lo. . .
— Não. . .
— E, claro, o casamento não deu certo. Tentamos, sim, mas foi inútil. Não
fomos feitos um para o outro, nada temos em comum, mas Mónica ainda insiste em
manter as aparências.
— Isso é tudo?
— Não — ele disse com a voz rouca. — Antes de conhecer você, eu não dava
importância ao curso do nosso casamento. Em Londres. . . Sabe, não devíamos ter-
nos conhecido. . .
— Contou a Mónica a nosso respeito?
— Não. Eu jamais poderia mostrar a ela que era tão inescrupuloso quanto ela!
Oh, Susana, por que veio até aqui? Quando pensei que tinha vindo para me
atormentar, precisei fingir que a odiava. Mas quando disse-me a verdade, fiquei
desesperado e preferi que fosse embora. Eu tinha medo de que essas coisas
acontecessem. . .
Ele a olhou angustiado, procurando no rosto dela algum sinal de sofrimento.
Com um gesto brusco, misto de desespero e de desejo, acariciou-lhe o pescoço e
deslizou a mão pelos ombros, tocando a alça do penhoar dela. Puxou-a contra si e a
beijou entre os seios.
Seu toque era gentil, caloroso, destruindo nela qualquer possibilidade de defesa.
Deitaram-se vagarosamente, quase inconscientes, beijando-se com ardor, com violenta
paixão. Na penumbra repleta de mistério, o peso do corpo dele sobre o dela formava
um escudo contra o mundo lá fora.
— Susana, Susana! — ele sussurrou. — Perdoe-me, mas a amo loucamente!. ..
Ela o envolveu com os braços, duvidando que estivessem ali. Os
acontecimentos do dia a tinham enfraquecido, não podia oferecer-lhe resistência.
Naqueles poucos minutos de intimidade, desapareceram todas as prevenções contra o
homem que a tinha magoado tão profundamente.
De repente, porém, a luz do quarto se acendeu. Fernando se recompôs e deu
com Mónica, que entrou calmamente, como uma serpente que se insinua para atacar o
inimigo.
— Meu Deus! — ela exclamou, incrédula, olhando-os alternadamente, —
Amália tinha razão. Então é assim, é? Meu Deus! Compreendo agora por que tanto
defendeu nossa governanta. Seu hipócrita!
— Mónica — Susana começou, desesperada.
Fernando saiu da cama e fez sinal para ela se calar. Abotoou a camisa devagar,
aparentemente indiferente à fúria estampada no rosto da esposa.
— Antes que comece com sua enxurrada de acusações, Mónica, sugiro que
continuemos a batalha num outro campo. . .
— Não vejo por que! Quer poupar sua amante dos detalhes mais nojentos?
— Susana não é minha amante!
— Não?
— Não seja desagradável, Mónica!
— Desagradável? Eu? Acabo de entrar e encontro meu marido com outra
mulher e você me chama de desagradável?!
— Cale-se! — ele gritou. — Quem a mandou aqui? Oh, sim, Amália... Só podia
ser Amália!
— Ela é uma velhota mais esperta do que você pensa! Há quanto tempo estão
juntos?
— Não se trata disso! O que acabou de presenciar é apenas o resultado de uma
situação criada por você mesma!
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Susana pegou no sono ao amanhecer, ainda assim por um curto período. Antes
de Maria lhe trazer o café, tomou banho e se arrumou. A criada se mostrou surpresa
por vê-la de pé tão cedo e, pelo comportamento dela, certamente ignorava os
acontecimentos da noite anterior.
Sozinha, serviu-se de café e com a xícara na mão deu voltas pelo quarto,
perdida em pensamentos. Inutilmente procurava soluções para os problemas que lhe
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haviam roubado o sono da noite, e finalmente decidiu ir embora dali. Era evidente que
seria tolice permanecer.
Amava Fernando, sim, mas não podia passar o resto da vida à sombra dele,
sabendo que Mónica tinha o direito de exigir dele o que quisesse. Que vida inútil era
aquela, conturbada, prejudicial à menina Maria, cada dia trazendo uma nova
experiência desagradável!
Entrou na sala de estudos às nove em ponto para informar Maria de sua partida,
mas a menina não estava lá. Esperou cerca de vinte minutos e então desceu para a
saleta em que ela costumava tomar chocolate com tia Amália. Maria também não
estava lá, apenas dona Amália, com o mesmo olhar distante.
— Oh, señorita King — observou com satisfação. — Eu a esperava.
Está procurando Maria?
— Sim, ela não apareceu para as aulas.
— Maria não estudará mais com a señorita — disse, pondo de lado o bordado.
— Voltará para o convento.
— Voltará para o convento? Quando?
— Não importa, senõrita. A decisão é do meu sobrinho.
— Compreendo.
— A senorita sabe porquê, não?
Susana corou.
— Como saberia, senõra?
— Naturalmente não poderá continuar aqui, depois dos... acontecimentos ...
Susana suspirou fundo, pensando em como era desconcertante saber que
questões tão pessoais pudessem se tornar tão públicas naquela casa!
— Exatamente por isso, senõra, queria ver Maria. .. quero dizer a ela que estou
de partida.
— Com certeza o pai dela já se encarregou disso, señorita — disse,
francamente satisfeita com sua vitória.
— Oh, sim, naturalmente. Don Fernando está no escritório, senõra?
— Meu sobrinho saiu, señorita. Voltará à noite. . .
— E a señora Mónica d'Alvarez?
— Não tenho idéia, señorita. — Por que deseja ver meu sobrinho ou Mónica?
— Devo dar satisfação aos meus patrões. . .
— Só isso? Ora, minha cara, posso transmitir-lhes suas desculpas, se é que
são necessárias…
Susana lançou um olhar desalentador para a señora Amália. Não confiava nela,
decididamente. Insistiria para ver Fernando antes de ir embora.
— Na verdade, señora, acho que. . .
Interrompeu-se ao sentir uma presença repentina. Voltou-se e deu com Mónica
parada à porta.
— Ora, ora, — ela observou com ironia. — Que é que estão conversando?
Onde está Maria? Ela hoje não vai estudar?
Dona Amália lançou um olhar fulminante para Mónica.
— A señorita King e eu conversávamos sobre um assunto particular, Mónica.
Gostaria que nos deixasse sozinhas.
Mónica ignorou o comentário da anciã.
— Onde está Maria, srta. Susana?
— Soube que Maria está de volta ao convento, señora.
— Quem disse? — ela perguntou, levando um cigarro à boca.
— Por favor, Mónica! — dona Amália exclamou, levantando-se do sofá.
— Quero saber quero deu ordens para Maria voltar ao convento. Fernando, por
acaso?
— Claro que é a vontade de Fernando — adiantou-se dona Amália.
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CAPÍTULO XII
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— O que tem para dizer? Sua esposa deixou tudo muito claro.
— Sei disso. Mas depois do que houve entre nós, pensei que. . .
— O que houve entre nós, Fernando? Mentiras, mentiras e mais mentiras!
— É o que pensa?
— É o que sei, o que senti!
— Susana, não podia falar a respeito de Mónica! Durante anos vivemos com
esse pacto. . . durante anos eu a proibi de revelar a verdade a quem quer que fosse.
Como eu poderia ser o primeiro a romper nosso acordo? Por causa de Maria fui
obrigado a silenciar!
— E, por que veio, então?
— Você não vai voltar para a Espanha?
— Voltar para a Espanha? — Ela o fitou, perplexa. — Acha que tenho coragem
de voltar para a Espanha? Não tenho a menor intenção de viver na Casa d'Alvarez
como sua amante!
Ele aproximou-se e segurou-a nos ombros.
— Não permito que fique insinuando coisas! Nunca lhe sugeri isso!
— Então por que me procura agora? Fernando, faz dois meses que cheguei!
— Os meses mais longos de toda a minha vida. . .
— Não entendo, Fernando. . .
— Ouça o que tenho para explicar — ele insistiu, apertando-a e encarando-a. —
Mónica se foi. Consenti que ela voltasse para o marido.
— O quê? Mas como? Quero dizer. . .
— Amália faleceu, Susana, um dia depois que você foi embora.
— Oh! Sinto muito. , .
— Amália não era uma pessoa agradável, mas tinha sacrificado grande parte da
vida dela pelo irmão e pela família.
— Não sabia que ela estava doente. . .
— Ela nunca foi uma pessoa forte. Por isso passava tanto tempo sentada,
bordando e conversando. . . por isso ela apreciava a companhia de uma pessoa jovem.
— Maria?
— Sim, Maria.
— Não está sugerindo que minhas saídas com Maria. . .
— Não, não, isso não a aborrecia a ponto de adoecê-la. Era ciumenta, sem
dúvida, mas só isso. Imagino que o comportamento de Mónica tenha colaborado para
isso. . . Quem sabe? Talvez tenha sido simplesmente uma questão de tempo e de
destino. . .
— O comportamento de Mónica? Só porque ela me contou. ..
— Não, não. Aos olhos de Amália, sua partida era suficiente para contornar
tudo. Foi Maria. . .
— Maria? Mónica disse a verdade a Maria?
— Sim. . . um dia depois que você partiu. Fui visitar as vinhas, perturbado com
a sua ausência, sem saber o que fazer. Quando voltei, ouvi os gritos de Mónica. Maria
ainda procurou acalmar Amália, mas foi inútil.
Susana arregalou os olhos, incapaz de dizer qualquer coisa.
— A culpa foi minha! Se eu não tivesse ido a Espanha. . .
— Não seja tola! O convite partiu de Mónica e você, ignorava que estava indo
para a minha casa. Tudo começou aqui em Londres, Susana. De qualquer modo, foi a
melhor coisa que podia ter acontecido.
— O que quer dizer?
— Maria já sabia.
Susana arregalou os olhos, incapaz de dizer qualquer coisa.
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— Ao que parece, ela ouviu uma conversa de Mónica com Max pelo telefone.
Maria é uma menina inteligente. Compreendeu logo que, se a mãe era casada com
Max, eu não poderia ser o marido dela.
— Oh, Fernando!
Ele sorriu com amargura.
— Não fique triste. Agora que Maria sabe da verdade, não há o que temer.
— Mas Mónica...
— Mónica saiu de casa depois da morte de Amália. Envergonhada, creio eu.
Mas tenho certeza de que será feliz na companhia de Max.
— E por que você andou à minha procura? — perguntou, a voz insegura.
Ele a puxou contra si.
— Que pergunta boba, amada! Sabe muito bem por quê. Quero que case
comigo o mais rápido possível.
— Eu. .. Eu. . . — ela murmurou atônita.
Beijaram-se, os corpos colados como se jamais pudessem ser separados.
— Susana mia! — Fernando sussurrou junto ao ouvido dela, o corpo trémulo
assaltado por uma emoção incontrolável. — Diga que me perdoa pelo que a fiz sofrer.
Diga que me ama, que aceita casar comigo!
— Eu o amo, Fernando! Sim, eu o amo! Caso com você quando quiser.
Beijaram-se novamente, com um ardor ainda maior. Mas finalmente ele recuou,
procurou um charuto e o acendeu.
— Como me encontrou? — Susana quis saber.
Ele a envolveu com o braço e os dois sentaram-se no sofá.
— Não sei, parece quase impossível. . .
— Entrou em contato com os Castana?
— Sim, mas eles não tinham seu endereço. Fiquei desesperado. ..
— Mas e depois?
Fernando soltou uma baforada.
— Bom, fiz de tudo. Percorri todas as agendas de emprego de Londres e nada.
Foi então que me lembrei de que você tinha estado num orfanato em Yorkshire. Eles
não conseguiram localizá-la, a princípio, mas então alguém se lembrou de que você
tinha uma amiga professora chamada French.. . e então vim parar aqui!
— Oh, Fernando! Já imaginou se eu nunca lhe tivesse falado sobre minha
infância?
— Eu teria enlouquecido! Não acha que deveríamos chamar a sua amiga e lhe
dar a notícia?
— Mas é claro! — Susana saltou do sofá, sem conter a alegria. Mas seus olhos
de repente entristeceram. — Mas, e Maria?
— Que tem ela?
— Ela poderá se opor.
— Não acredito. Ela adora você! Além disso, precisa de uma confidente.
— Mas não de uma madrasta!
— Você será mãe dela! — Fernando disse, com firmeza. — Quanta a Mónica,
quando Maria tiver mais idade compreenderá melhor o que significava para ela. Maria é
minha filha. Eu a adotei quando a verdade sobre Max Rosenberg veio à luz. A partir de
agora, ela também será sua filha.
Susana estava indecisa em sair da sala.
— Eu.. . tenho um emprego! — exclamou. — Começo numa escola na segunda-
feira que vem!
— E dai?
— Bom, imagino que posso dispensá-lo — ela concluiu, finalmente acreditando
que poderia iniciar uma nova vida.
— Acho bom. — Fernando sorriu.
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FIM
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