Edu Medi 0

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 6

ARTIGO DE PERSPETIVA

Educação Médica no Século XXI:


O Desafio da Integração
da Tecnologia e Humanidades
Medical Education for the XXI Century:
The Challenge to Integrate Technology and Humanities
Maria Amélia Ferreira1

Autor Correspondente:
Maria Amélia Ferreira [[email protected]]
Alameda Hernâni Monteiro, 4200-319 Porto, Portugal

RESUMO
Os recentes debates sobre o papel da Medicina na Sociedade, têm evidenciado uma grande complexidade na ade-
quação das novas referências no Ensino Superior à formação dos futuros profissionais de saúde. O quadro interna-
cional de referência da educação médica tem sido alvo, nos últimos anos, de uma (re)estruturação que se pretende
compatibilizar com a evolução das tecnologias na área da saúde e com os novos referenciais de formação integral
dos futuros profissionais, onde emerge a necessidade de abordagem da área das humanidades.
Como paradigma de referência para a educação médica do século XXI é hoje amplamente adotado o modelo de
competências. O modelo pedagógico deve ser inovador sendo: (a) inspirado no modo como trabalham os grupos de
investigação; (b) fortemente assente em práticas de colaboração; (c) baseado na cultura profissional; (d) potenciado
pela valorização das dimensões experienciais.
Apresenta-se um cenário de novas estratégias educativas, a redefinição do perfil do docente e a nova revolução da
Medicina, com a dualidade da tecnologia e das humanidades como um recurso atitudinal na educação profissional
em saúde, para a aquisição de competências transversais e “transferíveis”, competências humanísticas, capacidade
de autoconhecimento e competências de reflexão crítica e profissional.
PALAVRAS-CHAVE: Currículo; Educação Médica; Ensino/métodos; Humanismo; Modelos Educacionais; Responsa-
bilidade Social; Tecnologia

ABSTRACT
The recent discussions on the role of Medicine in society, have shown a huge complexity in adequating the new references
of Higher Education to medical education. The international paradigms for medical education are being remodeled in order
to fit the huge technological development with the requirements for global education of health professionals, where the area
of humanities is progressively growing.

1. Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Porto, Portugal; Professora Catedrática da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Departamento de
Ciências da Saúde Pública e Forenses e Educação Médica, Porto, Portugal; Diretora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Porto, Portugal.
Recebido: 24/11/2016 - Aceite: 30/11/2016

156 · GAZETA MÉDICA Nº4 · VOL. 3 · OUTUBRO/DEZEMBRO 2016


ARTIGO DE PERSPETIVA

As a new paradigm for medical education for the XXI century, the model of competences is showing as the more adequate.
The pedagogical model has to be innovative and (a) inspired in the work model of research groups; (b) strongly based in col-
laborative practice; (c) based in professional culture; (d) enhanced by valuing experiential dimensions.
This work presents the perspectives of new scenarios of educational strategies, the (re)definition of teacher roles and the new
revolution in Medicine, focusing the duality of technology and humanities as an attitudinal resource in professional educa-
tion towards the acquisition of soft skills and transversal competences (humanistic, self-knowledge and critical professional
reflection).

KEYWORDS: Curriculum; Humanism; Medical Education; Models, Educational; Social Responsibility; Teaching/methods;
Technology

ATUALIDADE O currículo expressa a representação das componentes


filosóficas, administrativas e pedagógicas consideradas
NA EDUCAÇÃO MÉDICA essenciais num determinado programa educacional.9
Os recentes debates sobre o papel da Medicina na So-
A orientação para o modelo de competências, a adoção
ciedade, têm evidenciado as complexidades, pressões e
dos créditos ECTS (sigla inglesa do Sistema Europeu de
constrangimentos com os quais hoje se confrontam as
Transferência e Acumulação de Créditos) e o respei-
Instituições de Ensino Superior responsáveis pela for-
to por uma sequência lógica de conteúdos para atingir
mação dos profissionais de saúde, designadamente pela
objetivos conducentes à aquisição e demonstração de
formação de médicos.1
competências, que devem ser alvo de avaliação espe-
O quadro internacional de referência da educação médi- cífica, são pontos a respeitar na organização curricular.
ca tem sido alvo, nos últimos anos, de uma reestrutura- Assim, a reformulação do curso de Medicina no âmbito
ção que se pretende compatibilizar com a evolução das do Processo de Bolonha5 obrigou a repensar os atores
tecnologias na área da saúde e com os novos referenciais intervenientes no processo de reorganização curricu-
de formação global dos futuros profissionais.1-3 A ques- lar e introduzir na formação médica áreas de conheci-
tão que se coloca é se estarão as escolas médicas efeti- mento que, habitualmente, eram abordadas em termos
vamente a preparar os estudantes de hoje para serem os marginais na formação médica. De entre estas, as que
médicos de amanhã? conferem competências transversais na formação nas
áreas da saúde são hoje reconhecidamente as que mais
O desenho dos curricula deve definir a aprendizagem
enriquecem os curricula atuais na formação dos profis-
que deve ter lugar num curso ou programa de estudos
sionais de saúde.10-17
em termos de conhecimentos, habilidades e atitudes;
deve especificar os principais métodos de ensino, apren- Nas áreas das Ciências da Saúde em geral e na Medicina
dizagem e avaliação, e dar uma indicação dos recursos em especial, a evolução dos conhecimentos e o contexto
requeridos.4 No caso de um currículo destinado à forma- de mudança que enformam os cursos de Medicina, tor-
ção médica, esta definição tem sofrido alterações rele- nam ainda mais crítica a decisão sobre a seleção e modo
vantes nos últimos anos. A Declaração de Bolonha5 veio de organização de um conjunto de conteúdos e do modo
evidenciar a necessidade da construção de um espaço do seu desenvolvimento que assegurem a formação nu-
europeu de conhecimento como forma de a Europa se clear da educação médica pré-graduada.
assumir como uma economia competitiva. Destes pressupostos emerge o enorme desafio para as
Entre vários objetivos fundamentais para a construção Instituições de Ensino Superior e para as suas afiliações
deste espaço europeu de conhecimento,5 existem aspe- na área da Saúde, de resposta aos desafios atuais da
Educação nas Ciências da Saúde.
tos que se apresentam como fundamentais: a alteração
do paradigma pedagógico em vigor no Ensino Superior,
a aposta nas metodologias ativas na definição de obje-
DESAFIOS ATUAIS
tivos de aprendizagem e na aquisição e demonstração
de competências.6-8 Os modelos de organização cur- DA EDUCAÇÃO MÉDICA
ricular na educação médica proliferaram nos últimos Nos últimos anos as referências de desenvolvimento da
anos, na tentativa de operacionalizar as estratégias das educação médica têm sido condicionadas por diferentes
instituições e a adequação aos meios materiais, finan- fatores, que se mantêm atuais no que concerne a proble-
ceiros e humanos com que as instituições contam para mática atual de formação na área das Ciências da Saúde:
o desenvolvimento do modelo pedagógico que adotam. (1) inovação e mudanças tecnológicas; (2) globalização e

GAZETA MÉDICA Nº4 · VOL. 3 · OUTUBRO/DEZEMBRO 2016 · 157


ARTIGO DE PERSPETIVA

explosão da informação; (3) internacionalização; (4) acele- REFERENCIAL DE MUDANÇA


ração da investigação biomédica; (5) crescente incorpora-
ção da tecnologia na prática clínica; (6) novas referências
NA EDUCAÇÃO MÉDICA
nos sistemas de saúde; (7) transições epidemiológicas; (8) Como paradigma de referência para a educação médica
novos perfis dos estudantes (“millenial generation”).18 do século XXI para os profissionais de saúde é hoje am-
plamente adotado o modelo de competências. Este mo-
Estes desafios exigem a revisão do modo de cumprir com
delo, escolha indiscutível face ao contexto internacional
a definição do perfil do profissional de saúde do século
das mais diferentes propostas de formação médica, tem
XXI, no sentido do formar profissionais competentes,
como base, em Portugal, o documento do Perfil do Gra-
não só técnica e cientificamente nas áreas específicas,
duado Médico em Portugal21 (2005). Este documento
mas que também demonstrem competências pessoais,
constitui ainda hoje um valioso documento orientador
de comunicação e organização, ao lidar com os doentes,
das competências que o estudante deve adquirir e de-
com os pares e com a sociedade em geral.1
monstrar no final do curso.
Esta constatação está integrada nos mais recentes e
Em termos de orientação estratégica atual, é de adotar as
paradigmáticos documentos orientadores da educação
diretivas do documento que é hoje orientador da educa-
médica pré-graduada a nível internacional. Deste modo,
ção dos profissionais de saúde para o século XXI “Health
é a adoção destes princípios adequados à realidade or-
professionals for a new century: transforming educa-
ganizacional das instituições, que orienta a presente vi-
tion to strengthen health systems in an interdependent
são de preparação dos futuros profissionais de saúde.
world”,1 onde é proposto que “all health professionals in
É nuclear introduzir a promoção do pensamento cientí- all countries should be educated to mobilise knowledge
fico aos futuros médicos15-17 através do desenvolvimen- and to engage in critical reasoning and ethical conduct
to das competências nucleares (gestão da informação, so that they are competent to participate in patient and
competências de comunicação, pensamento crítico). population-centred health systems as members of lo-
cally responsive and globally connected teams.”1
De acordo com as recomendações emanadas em docu-
mentos internacionais,6-8 implementaram-se os pressu- Seguindo a evolução das reformas na educação dos pro-
postos da aprendizagem ativa centrada no desenvolvi- fissionais de saúde, a nova abordagem do processo de
mento de competências. Isto pressupõe a adoção de um ensino-aprendizagem tem que estar orientada para a 3ª
modelo pedagógico student-centered,19,20 onde a monito- geração “baseada nos sistemas de saúde”.1 Deve ter ain-
rização da aprendizagem é feita pelo próprio estudante. da em conta a evolução dos níveis de aprendizagem, sen-
do que a aprendizagem transformativa conforma a visão
De modo muito inovador é de atender à criação das con-
atual da educação dos profissionais de saúde, apresen-
dições que permitam ao estudante a exploração de áreas
tando como objetivos o desenvolvimento de atributos
de interesse individual, possibilitando a construção do
de liderança e como resultados da aprendizagem, tornar
seu próprio percurso educativo, contribuindo para a
os profissionais de saúde agentes de mudança.1
aprendizagem da tomada de decisão segura e conscien-
te. Esta dinâmica de mudança para o modelo educacio- Nesta conceção, os objetivos e resultados da aprendiza-
nal por objetivos, orientado para as necessidades da prá- gem constituem-se como orientadores nova abordagem
tica profissional, tem reunido aceitação internacional.6-9 da formação dos profissionais de saúde18 porque docu-
mentam o que é suposto cada estudante compreender
As escolas médicas portuguesas têm respondido ao
e demonstrar, tornando o processo de ensino-aprendi-
desafio colocado pelo novo referencial para formar um
zagem mais transparente e objetivo. Acresce ainda que
profissional crítico, capaz de aprender a aprender, de
permitem mapear o currículo, identificando lacunas e so-
trabalhar em equipa, de estar atento à realidade social
breposições, desenvolvem as linhas de orientação para o
para prestar cuidados de saúde humanizados e de qua-
processo de ensino-aprendizagem, facilitam o processo
lidade. As mudanças necessárias são profundas porque
de avaliação e identificam claramente os resultados e
implicam a transformação de conceções, práticas e rela-
permitem a quantificação da carga de trabalho dos es-
ções de poder nos espaços das universidades, bem como
tudantes.
nas suas relações com as instituições de saúde (públicas
e privadas) e com a sociedade. É possível identificar Nesta conceção, o modelo pedagógico deve ser inova-
mudanças profundas no âmbito da organização institu- dor sendo: (a) inspirado no modo como trabalham os
cional, das conceções e das práticas, bem como das re- grupos de investigação (descoberta, experimentação,
lações na academia (entre docentes e estudantes) e nas criação); (b) fortemente assente em práticas de colabo-
suas relações com a população. ração (trabalho em grupo, diálogo, redes); (c) baseado

158 · GAZETA MÉDICA Nº4 · VOL. 3 · OUTUBRO/DEZEMBRO 2016


ARTIGO DE PERSPETIVA

na situação (disponibilidade para a mudança) e cultura INTEGRAÇÃO E COORDENAÇÃO


profissionais; (d) potenciado pela valorização das dimen- DE CONTEÚDOS
sões experienciais (dentro e fora da instituição – estudo, Se assumirmos que a doença é um fenómeno complexo,
reflexão, individualização). cuja compreensão pressupõe conhecimentos de várias
áreas da saúde teremos que assumir que, no processo de
ensino-aprendizagem, quanto mais isoladamente forem
NOVAS ESTRATÉGIAS apresentados os saberes (em áreas de conhecimento
EDUCATIVAS independentes), mais difícil será para o estudante perce-
As estratégias educativas que devem ser adotadas para ber a forma como os mesmos se conjugam, de forma a
o modelo curricular que irá formar o profissional de saú- poderem entender e lidar com o “processo” da doença.
de do século XXI, deverão ter em conta os seguintes A integração deve promover a necessária coordenação
entre as áreas científicas, visando a diminuição da dis-
pressupostos, contemplados na proposta de reforma
persão e da repetição do conhecimento.
curricular em curso na Faculdade de Medicina da Uni-
versidade do Porto.18 PERSONALIZAÇÃO DO PLANO CURRICULAR
- UNIDADES CURRICULARES OPTATIVAS
ABORDAGEM CURRICULAR ORGANIZADA
O protagonismo do estudante significa também que se
POR OBJETIVOS E RESULTADOS DE
tenha de assumir como autor do seu processo educativo.
APRENDIZAGEM
A formatação individual de cada currículo é algo que vem
De um modelo pedagógico mais tradicional e centrado
a anteceder a educação personalizada, que será uma das
no processo, adota-se um modelo “centrado no estu-
grandes conquistas da formação dos profissionais de
dante”19,20 (centrado nos resultados, no que é suposto
saúde. Esta irá contribuir para a redução de conteúdos
o estudante saber, compreender, ser capaz de fazer e
que compõem o currículo, permitindo o ensaio de dife-
demonstrar quando terminar o curso). Os objetivos e rentes papéis, contribuindo desta forma para uma toma-
resultados de aprendizagem devem incluir as ciências da de decisão profissional segura e consciente.
básicas da saúde e as ciências clínicas, assim como as
contribuições das ciências humanas e sociais (psicolo- INTEGRAÇÃO DA COMPONENTE
gia, sociologia, bioestatística, epidemiologia, ética, etc.). DE INVESTIGAÇÃO E DO TRABALHO
Esta dinâmica de mudança para um modelo educacional EXPERIMENTAL
por objetivos, orientado para as necessidades da prática Pretende-se que, desde o início do programa curricular
profissional, tem reunido aceitação internacional. e transversalmente ao longo do curso, sejam contempla-
dos espaços e tempos formais de investigação e traba-
APRENDIZAGEM ATIVA VERSUS PASSIVA lho experimental.15-17 Pensar cientificamente é uma das
De acordo com as recomendações emanadas nos docu- competências nucleares da formação dos profissionais
mentos do General Medical Council,8 propõe-se a im- de saúde.
plementação dos pressupostos da aprendizagem ativa.
MAIOR FORMAÇÃO PRÁTICA,
Esta assume:
LIGAÇÃO À COMUNIDADE E VARIEDADE
• menor ênfase na tríade transmissão-memorização-re- DE CENÁRIOS PRÁTICOS
produção de conhecimentos e maior ênfase na esti- Pretende-se que exista uma diversidade de cenários
mulação, no envolvimento ativo, na apropriação autó- formativos que permitam aos estudantes a integração
noma dos conhecimentos, na resolução de problemas progressiva nos Hospitais afiliados à FMUP - públicos
e no treino de habilidades; e privados - e Unidades de Saúde, e que a maior parte
do tempo de contacto do estudante seja despendido em
• maior perceção de como os conhecimentos teóricos
formação prática nestes locais.
e a prática se integram e menos ênfase na aceitação
passiva dos conhecimentos; As atividades práticas não se devem circunscrever aos
Hospitais, e nestes não apenas nas enfermarias, mas nas
• menor ênfase na memorização e maior ênfase no de-
suas diferentes vertentes. Devem também ocorrer em
senvolvimento da reflexão e do pensamento crítico.
Centros de Saúde, ou em outras instituições e estrutu-
A aquisição e desenvolvimento de atitudes e comporta- ras onde se prestem cuidados de saúde ou se desenvol-
mentos, assim como das aptidões e habilidades, pressu- vam programas de saúde como por exemplo: as prisões,
põem que a aprendizagem seja tutorada e que os docen- os centros de acolhimento de idosos, as escolas, organi-
tes se assumam como “modelos” dos estudantes. zações não-governamentais de saúde. Este alargamento

GAZETA MÉDICA Nº4 · VOL. 3 · OUTUBRO/DEZEMBRO 2016 · 159


ARTIGO DE PERSPETIVA

é fundamental para ir de encontro à proposta de identifi-


cação da 3ª geração de reforma curricular “baseada nos MEDICINA
IA TECNOCOSMO CI
sistemas de saúde”.1 TÓR PESSOAL DE CLO
HI S DA A V ID
IN A
DIC
É ainda necessário implementar um programa estrutu- ME

IN ENTO -
rado para desenvolvimento das habilidades ao longo do

L
V IM ENVO

C AD U C AÇ Ã
E E ÉDIC
D
PE S TE R-

ÁV E O
M
L
curso através dos recursos de um Centro de Simulação

DES

S OA

R
A
Biomédica, para a integração das metodologias do en-

ANTROPOLOGIA
sino por meio de simuladores, no processo de ensino-
HUMANIDADES

PROFISSIO-
MÉDICA

NALISMO
-aprendizagem.
EM MEDICINA
ENSINO INTERPROFISSIONAL
É fundamental criar pontes de aprendizagem entre as di-

INV
É TI TI G AÇ

OS S
O
CRÍ V ENTO
D E E S TÃ
ES
CA
ferentes profissões na área da saúde, de modo a contem-

TIC
N A ÃO

G
E
plar aprendizagens de trabalho em equipa e de aprendi- INT
E
AC A G R ID
zagem em contextos multiprofissionais. Esta é a visão de DÉM ADE O
IC A ERR
CULTURA
futuro de formação dos profissionais de saúde. E SEGURANÇA
DO DOENTE

O “NOVO” PERFIL DO DOCENTE FIGURA 1. Representação do conteúdo programático das Hu-


manidades em Medicina (Plano Curricular do Ciclo de Estudos
A formação no novo perfil dos profissionais de saúde Integrado do Mestrado em Medicina da FMUP).
exige também a transformação do tradicional perfil do
docente, com características distintas daquelas pura- é posta em causa pelos avanços tecnológicos que, cada
mente de formação técnica.3,22,23 É necessário um pro- vez mais, priorizam a atuação médica.
fissional com conhecimentos e habilidades, valores e
A introdução de áreas de reflexão e discussão dos pro-
cujas atitudes com estudantes, doentes e com a socie-
blemas da humanidade, do pensamento sobre o homem
dade demonstrem compromisso com a transformação
e sobre o ser-se humano, é hoje um componente crucial
social e que, portanto, sirvam de modelo para os estu-
nas propostas de reforma do ensino médico em todo o
dantes. É necessário proporcionar uma educação com
mundo.
reconhecimento da atividade e interatividade nos pro-
cessos do conhecimento, e da perspetiva interdisciplinar Na recente proposta de reforma curricular da Faculdade
como pressuposto nuclear. É preciso propor mudanças de Medicina da Universidade do Porto,18 a introdução
ao modelo dominante de ensino desenvolvido dentro de de uma área de abordagem nuclear de Humanidades em
uma visão tecnicista e propor experiências novas com as Medicina, inovou a abordagem da nova formação médi-
ações inovadoras, que procuram explorar novas possibi- ca (Fig. 1).
lidades no âmbito das contradições. Esta inovação processa-se com o reconhecimento do
Como valores institucionais e das «pessoas» salientam- papel instrumental das humanidades médicas como um
-se a diversidade e excelência no ensino, a investigação recurso atitudinal na educação profissional em saúde,
de nível superior e inovação no contexto académico para a aquisição de competências transversais e “trans-
(como princípio dinamizador dentro dos mais elevados feríveis”, competências humanísticas, capacidade de
padrões internacionais), trabalho colaborativo, interdis- autoconhecimento e competências de reflexão crítica e
ciplinaridade, profissionalismo, criatividade, ética, res- profissional (Ficha da Unidade Curricular, 2016).
ponsabilidade social e ambiental, promoção do conhe- Os conteúdos programáticos (Fig. 1) inserem-se no mo-
cimento e do enriquecimento profissional e capacidade delo integrativo de ensino-aprendizagem, permitindo a
para enfrentar desafios. abordagem da complexidade da Medicina24 numa pers-
petiva global e com a visão da ciência, arte e profissão.
A referência dos conteúdos é acompanhada pela análise
A NOVA REVOLUÇÃO crítica de ideias. Os conteúdos têm em conta a importân-
NA MEDICINA cia para a prática da Medicina e desenvolvimento da na-
A Medicina, como ciência que reflete sobre o ser huma- tureza dos problemas médicos e do profissionalismo. O
no (particularmente em situação de fragilidade) tem re- programa permite enriquecer a visão do que é ser huma-
lação muito próxima com as humanidades. Esta relação no e da prestação humanizadora de cuidados de saúde,

160 · GAZETA MÉDICA Nº4 · VOL. 3 · OUTUBRO/DEZEMBRO 2016


ARTIGO DE PERSPETIVA

através da comunicação interpessoal, análise e interpre- 8. General Medical Council. Tomorrow’s doctors: Outcomes
and standards for undergraduate medical education. Man-
tação de informação. A espiritualidade na prática médi- chester: General Medical Council; 2009.
ca é abordada ao longo dos temas, na sua integração na
9. Swanwick T. Understanding medical education: Evidence,
prática profissional. theory and practice. London: John Wiley & Sons; 2010.

Nas perspetivas mais recentes da educação médica - em 10. Bardes C, Gillers D, Herman A. Learning to look: develo-
ping clinical observational skills at an art museum. Med Edu.
confronto com os elevados indicadores de certezas da- 2011;35:1157-61.
dos pelos avanços tecnológicos - é de relevar a grande
11. Driessen E, Tartwijk J, Dornan T. The self critical doctor: hel-
importância da incerteza.25 Embora os profissionais de ping students become more reflective. BMJ. 2008;336:827-
saúde reconheçam a incerteza como parte integrante da 30.
sua atividade, a cultura da Medicina dificulta a aceitação 12. Wear D, Bickel J. Educating for Professionalism. Creating a
culture of Humanism in Medical education. Des Moines: Uni-
desta incerteza. Hoje, o reconhecimento e aceitação da
versity of Iowa Press; 2000.
incerteza é essencial para cada um dos profissionais de
13. Ellaway RH, Pusic MV, Galbraith RM, Cameron T. Developing
saúde, para os doentes e para o sistema de saúde.25 É the role of big data and analytics in health professional educa-
este o novo desafio da educação médica para o século tion. Med Teach. 2014;36:216-22.
XXI! 14. Bachmann C, Abramovitch H, Barbu CG, Cavaco AM, Elorza
RD, Haak R, et al. A European consensus on learning objecti-
CONFLITOS DE INTERESSE: Os autores declaram a ine- ves for a core communication curriculum in health care pro-
xistência de conflitos de interesse na realização do tra- fessions. Patient Educ Couns. 2013;93:18-26.

balho. 15. Ribeiro L, Severo M, Pereira M, Ferreira MA. Scientific skills


as core competences in medical education: What do medical
FONTES DE FINANCIAMENTO: Não existiram fontes ex- students think? Intern J Sci Educ. 2015;37:1875-85.
ternas de financiamento para a realização deste artigo. 16. Barbosa JP, Magalhães SC, Ferreira MD. Call to publish in an
undergraduate medical course: dissemination of the final-year
research project. Teach Learn Med. 2016;1-7.
REFERÊNCIAS
17. Ferreira MA, Barbosa J. Inovar no binómio académico—pe-
1. Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T et al.
dagógico. A operacionalização das competências transversais
Health professionals for a new century: transforming educa-
na UC Dissertação/Monografia do Mestrado. Educ Soc Cult.
tion to strengthen health systems in an interdependent world.
2015;46:85-107.
Lancet. 2010;376:1923-58.
18. Ferreira MA. Proposta da Reforma Curricular do Curso de
2. Ten Cate O. What is a 21st-century doctor? Rethinking the
Mestrado Integrado em Medicina (MIMED) da Faculdade de
significance of the medical degree. Acad Med. 2014;89:966-
Medicina da Universidade do Porto. Porto: FMUP; 2013.
69.
19. Spencer JA, Jordan RK. Learner centred approaches in medi-
3. Aretz TH. Some thoughts about creating healthcare pro-
cal education. BMJ. 1999; 318:1280-83.
fessionals that match what societies need. Med Teach.
2011;33:608-13. 20. Ten Cate O, Snell L, Mann K, Vermunt J. Orienting teaching
toward the learning process. Acad Med. 2004;79:219-28.
4. Aretz TH, Armstrong EG. Undergraduate medical education.
In: Kieran Walsh, editor. Oxford Textbook of Medical Educa- 21. O Licenciado Médico em Portugal. Core Graduates Learning
tion. Oxford: Oxford University Press; 2013.p. 327-39. Outcomes Project. Lisboa: Faculdade de Medicina da Univer-
sidade de Lisboa; 2005.
5. Bologna Declaration. 1999. The European higher educa-
tion area. [accessed September 2016] Available from: http:// 22. Rosenthal DI, Verghese A. Meaning and the nature of physi-
www3.uma.pt/jcmarques/docs/info/bologna_declaration. cians’ work. N Engl J Med. 2016;375:1813-15.
pdf.
23. Dath D, Lobst W. The importance of faculty development in
6. Cummings A, Ross M. The tuning project for medicine: Lear- the transition to competency-based medical education. Med
ning outcomes for undergraduate medical education in Euro- Teach. 2010;32:683-86.
pe. Med Teach. 2007;29:636-41.
24. Fraser SW, Greenhalgh T. Complexity science: coping with
7. Frank JR. The CanMEDS 2005 physician competency fra- complexity: educating for capability. BMJ. 2001;323:799-
mework: Better standards, better physicians, better care. 803.
Ontario: Royal College of Physicians and Surgeons of Canada;
2005. 25. Simpkin AL, Schwartztein RM. Becoming a physician. Tolera-
ting uncertainty – the next medical revolution? N Engl J Med.
2016;375:1713-15.

GAZETA MÉDICA Nº4 · VOL. 3 · OUTUBRO/DEZEMBRO 2016 · 161

Você também pode gostar