Desafios 2020
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RESUMO
Introdução: Os novos cursos de medicina demandam inovações pedagógicas e curriculares que intensificam os desafios da
prática docente. Objetivo: O trabalho objetiva apresentar os desafios da docência em um curso de graduação em medici-
na, viabilizado pelo Programa Mais Médicos, a partir da narrativa de três professores. Metodologia: Trata-se de um relato
de experiência construído a partir de narrativas reflexivas redigidas livremente por cada um dos docentes, em momento
único, no primeiro semestre de 2019. Elas foram sistematizadas e organizadas por um dos autores. Resultados: Dois dos
docentes são graduados em odontologia, com pós-graduação na área de saúde coletiva, participando dos oito Componentes
Curriculares Regulares (CCR) ligados à essa área. A terceira docente é farmacêutica, com pós-graduação em Ciências
Biológicas e compõe os componentes de Processos Biológicos III e IV e Temas Emergentes na Formação Médica 3. As narrati-
vas revelam o quanto o cenário da educação médica é singular e gerador de desafios próprios. O modelo contra-hegemônico
do referido curso de medicina gera insegurança para os atores envolvidos, sobretudo pela ausência de referencial compa-
rativo. Além disso, a construção do curso demanda energia extra, visto que se parte do zero para organização de todas as
demandas. O uso de metodologias ativas de aprendizagem constitui outro desafio, uma vez que os docentes foram formados
sob a ótica do modelo tradicional. Outro aspecto apontado como desafiador pelos três docentes – chamando atenção para o
fato de nenhum deles ser médico – é apresentar formação de graduação em outros cursos da área da saúde e o quanto isso
causa incompreensões e resistências, manifestada por estudantes e colegas docentes. Por fim, no contexto atual de exercício
da docência, o uso intenso de dispositivos tecnológicos foi apontado pelos docentes como um desafio, talvez o mais com-
plexo deles já que seu uso é massivo e é complexo “competir” e organizar uma aula que seja atrativa a ponto de fazer com
os estudantes se “desconectem” para se concentrar no que está sendo trabalhado. Conclusão: Conclui-se que a docência
em cursos de medicina, em especial naqueles orientados pelas novas DCN, apresenta desafios variados que precisam ser
compreendidos e contornados para propiciar uma prática exitosa.
Palavras-chave: Docência; Ensino Superior; Medicina; Educação Superior.
ABSTRACT
Introduction: The new medical courses demand pedagogical and curricular innovations that intensify the challenges of
the teaching practice. Objective: This work presents the challenges of teaching in an undergraduate medical course, made
possible by the Mais Médicos Program, based on the narrative of three professors. Methodology: it is an experience report
from reflective narratives written by each professional in the first term of 2019. They were systematized and organized
by one of the authors. Results: Two of the professors are graduated in dentistry, with postgraduate studies in the area of
collective health, participating in eight regular curriculum component components linked to this area. The third professor is
a pharmacist, with a postgraduate degree in Biological Sciences and composes the components of Biological Processes III
and IV and Emerging Themes in Medical Education 3. The narratives reveal how the current scenario is unique and what the
current problem is. The counter-hegemonic model of the medical course generates insecurity for the actors involved, mainly
due to the lack of comparative reference. Also, the construction of the course requires extra energy since it starts from zero
to organize the demands. The use of active learning methodologies is another challenge since the documents were formed
from the perspective of the traditional model. Another aspect pointed out as challenging by the three professors - calling
attention to the fact that none of them are doctors - is the graduation training in other courses in the health area and the
extent to which this causes misunderstandings and resistance, revealed by students and doctors. Finally, in the current con-
text of teaching, the intensive use of technological devices has been addressed by professors as a challenge, perhaps the
most complex of them since its use is massive and it is hard to “compete” with it and organize the lessons to be attractive
to make students “disconnect” from it to focus on what is being done. Conclusion: It was concluded that teaching in med-
ical courses, especially in those guided by DCN, presents varied challenges that require understanding and circumvented to
provide a successful practice.
Keywords: Teaching; Higher Education; Medicine; Education, Medical.
1
Professora Adjunta, curso de Medicina, Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Chapecó (SC), Brasil.
2
Professor Adjunto, curso de Medicina, Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Chapecó (SC), Brasil.
3
Professora Associada, curso de Medicina, Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Chapecó (SC), Brasil.
Graciela Soares Fonseca. Rodovia SC-484 - km 2, Bloco dos Professores, sala 317. CEP: 89815-899. Chapecó (SC), Brasil.
[email protected] | Recebido em: 14/07/2020 | Aprovado em: 25/08/2020
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio,
sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. https://doi.org/10.11606/issn.2176-7262.v53i4p479-489
Fonseca GS, Barbato PR, Bagatini MD
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Desafios da docência
“A docência sempre foi um de meus objetivos “Desde que iniciei minhas atividades no curso de
durante o curso de graduação, porém circunstân- medicina da UFFS, campus Chapecó, venho me
cias fizeram com que adiasse este objetivo. Após surpreendendo com a quantidade de desafios que
mais de 10 anos atuando em atendimento clínico, surgem no cotidiano da docência” (DC-02).
decidi que seria o momento de voltar a me qualifi-
car, buscando essa meta. Então, em 2010, durante “Diferentemente de escolas médicas já consolida-
meu período de doutorado, fui selecionado como das, estamos no processo da construção de um
curso de medicina novo, baseado nas mais recen- Ao encontrar a realidade de um curso com um
tes diretrizes curriculares nacionais e demandado modelo diferente, eles tendem a se frustrar e, em
pelo Programa Mais Médicos. Esse processo por si alguns casos, mostram resistência para aprendi-
é um gerador de insegurança, considerando todas zagem daquilo que, no julgamento deles, não é
as possibilidades que porventura possam influen- essencial para a prática médica.
ciar no reconhecimento do curso. Além desse
aspecto, por ser novo, tudo está por ser criado, “[...] o estudante, de maneira geral, chega à gra-
aplicado, avaliado e redefinido (caso avaliado duação com seu imaginário construído que no pri-
negativamente). E mudanças de maneira geral meiro semestre já vai estar praticando a profissão,
geram insegurança” (DC-01). acompanhando casos, realizando procedimentos,
prescrevendo, enfim, atuando como profissional.
Em consonância com as novas DCN, o Acredito que esse desafio será a perspectiva per-
Projeto Pedagógico Curricular (PPC) do curso manente do ensino na área da saúde (e por que
coloca a Saúde Coletiva, compreendida como um não nas demais). Como lidar com essa ansiedade,
campo de saberes e práticas, como o eixo trans- sem frustrar as expectativas criadas no imaginário
versal da estrutura curricular, devendo facilitar do estudante?” (DC-01).
a integração de conteúdos e temas trabalhados
no sentido de permitir que os estudantes cons- “Então, por conta disso é que vejo esse desafio
truam as competências requeridas pelo trabalho como um dos permanentes na formação universi-
em saúde na lógica da integralidade. Além disso, tária e para os docentes: mitigar a ansiedade dos
na matriz curricular, há Componentes Curriculares estudantes sem provocar desânimo ou desaponta-
Regulares (CCR) específicos para trabalhar o con- mento com a carreira escolhida” (DC-01).
teúdo formal de Saúde Coletiva, distribuídos em
todo o período de curso pré-internato (Saúde “Foi aí que os desafios começaram a aparecer.
Coletiva I a VIII)11. Sem dúvidas, o mais difícil é a resistência dos
No entanto, a despeito de toda a potenciali- estudantes. Boa parte deles entra no curso com
dade desse modelo no sentido de formar médicos o imaginário social do modelo biomédico e super-
com perfil mais próximo das demandas sociais, as valorizam especialidades, técnicas e procedimen-
narrativas dos docentes revelam os desafios e as tos. Não faz muito sentido pra eles as discussões
resistências geradas a partir dessa proposta: propostas pela saúde coletiva. Alguns entram em
sofrimento por não se identificar com o perfil do
“Quando eu li o edital do concurso da UFFS, que curso. Trabalhar nesse contexto é complicado e
selecionaria sete vagas para docentes de saúde exige criatividade para se adaptar e se reinventar
coletiva, com formações variadas, fui atraída pela com o intuito de cativar os estudantes e mos-
possibilidade de trabalho interprofissional em um trar a importância desse conhecimento para a
curso de medicina formatado a partir das novas formação” (DC-02).
DCN. Ao chegar, me deparei com um curso em
construção e muitas incertezas. Sabia que a Saúde Especificamente no que se refere aos CCR
Coletiva, como um CCR, estaria presente na matriz de Saúde Coletiva, a resistência é intensificada em
curricular da primeira a oitava fase do curso e, ao função da confusão existente entre a construção de
mesmo tempo que enxergava isso como avanço conhecimentos sobre políticas públicas de saúde e
em direção à formação coerente com as necessida- uma possível “doutrinação ideológica”. Os trechos
des sociais, me desesperava por não compreender que seguem ilustram essa colocação:
muito bem como os CRR iam funcionar” (DC-02).
“Trabalhar com a temática da saúde coletiva e
Os estudantes, em grande número, ingres- todos os aspectos complexos que a constituem,
sam no curso com o imaginário do modelo formador como dito anteriormente, pode ser mais penoso
biomédico, hiperespecializado e hospitalocêntrico12. e desafiador quando há uma descontextualização
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oportunidades de formação que me deixaram um Muitas atividades que funcionam com uma turma
pouco mais segura e fui aprendendo com a própria não funcionam com outra e essa sensibilidade é
experiência. No entanto, cabe a reflexão do quanto de fundamental importância, para não propormos
a nossa formação para o trabalho docente é inci- atividades que não atinjam seus objetivos. Os
piente” (DC-02). diferentes perfis de turma ocorrem pelas diferen-
ças de idade e também porque as turmas são for-
Outros trabalhos vêm mostrando as dificul- madas por discentes das mais diferentes regiões
dades dos docentes para se adaptar ao modelo de do país” (DC-03).
ensino ativo15,16.
Estratégias pedagógicas estruturadas em
É necessário considerar que o processo de ensi- pequenos grupos são fundamentais no sentido de
no-aprendizagem é algo extremamente complexo, viabilizar os objetivos de um ensino ativo. A apren-
possui caráter dinâmico e não acontece de forma dizagem cooperativa contribui para aumentar o ren-
linear, exigindo ações direcionadas, para que os dimento, a motivação e autoestima dos estudantes,
alunos possam se aprofundar e ampliar os sig- além de favorecer maior aceitação dos diferentes per-
nificados elaborados mediante sua participação. fis de coletas e contribuir para o desenvolvimento de
Ao apostar em uma nova concepção de ensino, interdependência positiva18. O ensino em pequenos
evidentemente, deve-se pensar em uma práti- grupos contribui para potencializar a criatividade dos
ca pedagógica capaz de garantir aos alunos uma estudantes, aumentar sua capacidade de solucionar
aprendizagem sólida, que lhes permita enfrentar problemas e desenvolver pensamento crítico19.
criticamente as mudanças da atual sociedade da Entretanto, a concretização do ensino cola-
informação e do conhecimento. Para que o estu- borativo em pequenos grupos também imprime
dante assuma uma postura mais ativa e, de fato, desafios para a prática docente:
se descondicione da atitude de mero receptor de
conteúdos e busque efetivamente conhecimen- “[...] Sendo que essas diferenças entre as turmas
tos relevantes aos problemas e aos objetivos da se refletem na competitividade que existe entre
aprendizagem, os processos educativos devem os discentes. Percebo que turmas mais competiti-
acompanhar as mudanças14, p.10. vas não trabalham bem com atividades coletivas,
como seminários e apresentação de trabalho em
Intensificando a problemática da incorpora- grupo e, portanto permanece a dúvida: devemos
ção de estratégias ativas de ensino, as turmas do mesmo assim propor essas atividades? Será que
referido curso são formadas por perfis diversifica- elas atingirão seus objetivos? Ou deveríamos
dos e estudantes. Como o ingresso na IES é reali- excluí-las?” (DC-03).
zado via Sistema de Seleção Unificada (SISU), há
estudantes de diversas regiões do país. Além disso, O estudo de Conceição e Moraes16, cujos
eles divergem em idade, objetivos pessoais e pro- participantes foram estudantes de graduação em
fissionais e alguns já tiveram experiências anterio- medicina de uma IES que adota métodos ativos de
res de formação de nível superior. O desafio se tor- ensino-aprendizagem, revelou que, apesar de reco-
na maior uma vez que “uma só forma de trabalho nhecer a presença de competitividade entre colegas
pode não atingir a todos os alunos na conquista de quando do trabalho em pequenos grupos, o senti-
níveis complexos de pensamento e de comprometi- mento de cooperação predomina em relação à com-
mento em suas ações, como desejados, ao mesmo petição. No entanto, quando a análise era restrita à
tempo e em curto tempo”17, p.37, requerendo que o turma que ingressou mais recentemente no curso,
professor tenha um conhecimento aprofundado do o sentimento de competição era prevalente.
perfil de cada turma e organize as aulas, de modo No caso específico dos CCR de Saúde Coletiva,
singular, para cada uma delas. além das atividades de grupo desenvolvidas duran-
te as aulas teóricas, parte da carga horária é desen-
“Outro ponto desafiador na prática docente é volvida com os estudantes organizados em grupos
nos adaptarmos aos diferentes perfis de turma. tutoriais, acompanhados por um docente: sãos os
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grupos de ensino com pesquisa e/ou extensão e as No que se refere às atividades práticas de
atividades práticas de integração com os serviços inserção na Rede de Atenção à Saúde (RAS), exi-
de saúde e a comunidade. gência das DCN para a graduação em medicina6,
O trecho que segue explicita os detalhes da os desafios vão além da competência pedagógica,
estratégia de ensino com pesquisa e/ou extensão demandando do docente criatividade, disposição e
e evidencia os desafios derivados da implantação abertura ao novo, capacidade de diálogo e articula-
dessa estratégia inovadora no PPC do curso: ção com a RAS e a gestão municipal de saúde, além
de preparo para lidar com imprevistos:
“Ainda compondo parte da carga horária de alguns
dos CCR de Saúde Coletiva, estão previstas ativi- “Nesse sentido, também é desafiador conseguir
dades de ensino com pesquisa ou extensão. Em envolver os estudantes nas atividades propostas
pequenos grupos, com a tutoria de um docente, na rede de saúde, onde sua imersão tem a finali-
os estudantes participam da construção e desen- dade de vivenciar as experiências do “mundo real”
volvimento de projetos de pesquisa e extensão. No articulando-as com os conceitos teóricos do com-
início, apesar de estar previsto no PPC, nenhum ponente curricular. Sair do ambiente protegido da
docente sabia muito bem como essa atividade sala de aula para um centro de saúde da família
deveria funcionar. Tudo foi se organizando com e entender a realidade pode ser algo gratificante
base em erros e acertos e, paralelamente, rece- ao extremo, ou causador de desgastes emocionais
bemos muitas críticas dos estudantes e de outros severos, uma vez que nem sempre o planejado é
colegas docentes. Conseguimos estudar, buscar possível de acontecer. A realidade cotidiana dos
experiências parecidas em outras instituições e serviços de saúde pode “engolir” o planejamento
“aprender” um pouco mais sobre essa estratégia das atividades, causando frustrações tanto nos
pedagógica sendo que, hoje, o desafio é menor, estudantes quanto no docente, restando uma sen-
mas ainda existe” (DC-02). sação de tempo perdido por parte daqueles e de
fragilidade e impotência por este” (DC-01).
Ainda, especificamente no que se refere à
organização tutorial de parte da carga horária dos “Os CCR de Saúde Coletiva desenvolvem atividades
CCR de Saúde Coletiva, há desafios que, normal- práticas em serviços de saúde da Rede de Atenção
mente, não aparecem quando se trabalha com a à Saúde (RAS) de Chapecó. Sair da protegida sala
turma completa: de aula para um espaço externo, com atores dife-
rentes, representa outro desafio. Em um serviço
“Estar inserida em todos os CCR de Saúde Coletiva de saúde real, os imprevistos acontecem o tempo
(I a VIII) também gera desafios. São atividades inteiro e é impossível controlar todas as variáveis
diversificadas que agregam uma série de temas, que podem interferir nas nossas atividades, exigin-
muitas vezes, desenvolvidas em pequenos gru- do de nós uma capacidade de adaptação, jogo de
pos, exigindo muito planejamento o que, por sua cintura, e criatividade gigantescas para lidar com
vez, demanda o tempo que não temos. Em fun- as adversidades dos espaços externos e manter a
ção da estratégia de ensino com pequenos grupos atuação docente de modo satisfatório” (DC-02).
de estudantes, preciso trabalhar em sintonia com
os demais docentes de saúde coletiva. Por sermos “Para que as atividades se concretizem, precisa-
diferentes em muitos aspectos, trabalhar em gru- mos pactuar as atividades com a secretaria de
po nem sempre é tranquilo. Toda organização que saúde, bem como planejar conjuntamente com a
temos hoje foi construída nesse grupo, com muita coordenação do serviço e “negociar” as inserções e
discussão, alguns conflitos e muita energia dispen- ações com todos os membros das equipes de saú-
sada. Quase nunca posso tomar decisões sozinha, de. Em alguns momentos, essa tarefa é difícil visto
sem a ciência ou concordância da maioria, o que, que a compreensão da formação em serviço ain-
em alguns momentos, é desgastante (CD-02). da é pequena para muitos profissionais da RAS e,
somos vistos – docentes e estudantes - como pes- “E agora? Como participar da formação de profis-
soas que atrapalham a rotina dos serviços. Apesar sionais, e acima disso, a formação de cidadãos que
de toda a potência formativa dessa prática, mediar já têm contato com todas essas tecnologias antes
a construção de conhecimentos em um contexto de nascerem ou ainda muito precocemente? Como
desses, é bem complicado” (DC-02). tornar uma aula atrativa, quando a concentração
perde todo o tempo para a necessidade da intera-
No âmbito das competências pedagógicas ção imediata com uma mensagem que chega via
para a docência na formação médica, o uso inten- aplicativos? Quando postar seu status atual é uma
so de dispositivos tecnológicos pelos estudantes foi necessidade quase vital? Não tenho respostas para
apontado pelos docentes como um desafio, talvez, estes e muitos outros questionamentos que não
o mais complexo deles já que seu uso é massivo e me ocorrem, só me parece que muitos desafios
é complexo “competir” e organizar uma aula que ainda estão por vir” (DC-01).
seja atrativa a ponto de fazer com os estudantes
se “desconectem” para se concentrar ao que está Em média, as pessoas verificam seus telefo-
sendo trabalhado. nes a cada 12 minutos e um em cada cinco adultos
passa mais de 40 horas por semana on-line. Além
“Fazer docência de modo inovador é um desafio, disso, “Smartphones, mídias sociais, videogames
pois precisamos “competir” com as mídias sociais e tempo de tela em geral têm sido acusados de
que estão presentes no dia a dia dos jovens e adul- prejudicar a memória, a atenção e a leitura, tor-
tos e muitos deles não sabem qual o momento cer- nando-nos menos sociáveis, civilizados e empá-
to de utilizar as mídias ou quanto do seu tempo ticos”. Trata-se do Homem Vitruviano moderno:
podem disponibilizar para as mesmas, sendo que totalmente conectado e ligado a diversos equipa-
cada vez mais estão inseridos e dependes das mais mentos (Figura 1)20.
diversas tecnologias” (DC-03).
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últimos anos, predominam, em todos níveis de que os estudantes apresentam resistências porque
ensino, aulas tradicionais sendo o giz, o caderno não conseguem entender como o “saber” de alguém
e a caneta substituídos por outros dispositivos que que não exerce a medicina pode ser útil para um
ocupam o mesmo papel: favorecer a transmissão futuro médico:
de conteúdo e a memorização deles pelos estudan-
tes14. As tecnologias digitais ocupam o lugar de fer- “Por fim, outro desafio que percebo no dia a dia
ramentas de suporte e devem ser inseridas em con- docente é o trabalho do professor não médico
sonância com os objetivos do processo educativo21. trabalhando com futuros médicos. Existe uma
resistência muito forte dos discentes aceitarem os
Muitos confundem a modernização com a meto- professores não médicos por acharem que falta a
dologia ativa de aprendizagem. Apesar do recurso prática clínica, entretanto, acredito que devemos
tecnológico, salas de aula com lousas eletrônicas trabalhar isso de forma efetiva para desconstruir
podem reforçar ou manter relações verticais, con- esse paradigma logo nos primeiros semestres do
tribuindo para a consagração do professor como curso. Cada docente está habilitado na sua área
um repassador (até com boas habilidades) de de conhecimento e apresenta autonomia docente
informações, mantendo o aluno na perspectiva de para trabalhar de diferentes maneiras um mesmo
memorizador e de reprodutor fidedigno de conhe- conteúdo. Mas também é recomendando o diálogo
cimento. O uso de tecnologias não é metodologia com os docentes médicos para que exista uma sin-
ativa de aprendizagem3, p.16. tonia no trabalho realizado e os discentes possam
sentir segurança em cada docente” (DC-03).
A estratégia utilizada pelos docentes tem
sido aliar as tecnologias às estratégias metodológi- “O fato de não ser médica, em um curso de for-
cas utilizadas em sala de aula: mação médica, também gera alguns dificultado-
res para minha prática docente. Para os estu-
“Na minha prática docente busco inserir o uso dantes, é “estranho” aprender com quem não
das tecnologias para discutir conteúdos, trabalhar desenvolve a mesma prática clínica que eles irão
exercícios e realizar revisões de conteúdos. Essa desempenhar no futuro. A compreensão de que
experiência tem se mostrado muito válida, pois existe uma clínica do comum e uma área de atu-
o discente trabalha determinados conteúdos de ação interprofissional na saúde ainda é distante
forma dinâmica e utilizando um dispositivo que para a maioria” (DC-02).
está adaptado que é o computador ou o telefone
celular [...]” (DC-03). “Acredito que os estudantes cheguem a um cur-
so de medicina com a imagem objetivo de um
“Nesse momento cabe ao docente usar a situação a médico bem sucedido, ultra especializado, finan-
seu favor, como estratégia de busca de informação ceiramente estável e incapaz de errar. Então,
atualizada ou utilizando ferramentas que permitam para eles (penso eu), estando diante daquele que
a interação do estudante com o material de apoio é sua imagem objetivo tudo o que um docen-
da atividade que esteja desenvolvendo” (DC-01). te médico referir passa a ser verdade absoluta.
Qualquer coisa em contrário não tem valor ou se
trata-se de questão menor. Penso que isso per-
Ser não-médico na formação médica dure até o momento em que percebem que estão
diante de um ser humano, com todas as comple-
Outro aspecto apontado como desafiador xidades inerentes a este e que também é passí-
pelos três docentes - chamando atenção para o fato vel de erro. Mas até que esse momento chegue,
de nenhum deles ser médico – é apresentar forma- ser docente não sendo médico é ser confrontado
ção de graduação em outros cursos da área da saú- (e algumas vezes afrontado em sua capacidade
de e o quanto isso causa incompreensões e resistên- profissional), considerando aspectos do conheci-
cias. Nos recortes que seguem, os docentes revelam mento que entendem ser única e exclusivamente
“É um desafio estar em um curso onde docen- “Concluo essa narrativa afirmando que os desa-
tes médicos não compreendem a importância da fios se renovam a cada dia, mas o percurso tem
formação em saúde coletiva, desqualificando a sido formativo e enriquecedor, o que me dá mais
área de conhecimento, minimizando sua impor- segurança e confiança para trilhar os próximos
tância ou ainda ridicularizando sua existência, passos” (CD-02).
visto que a formação técnica (na visão destes)
deve ser o objetivo precípuo da formação. Nesse Os desafios inerentes à docência na forma-
aspecto torna-se um desafio maior a afirmação ção médica são inúmeros e derivam, essencial-
da importância do conhecimento da determina- mente, da mudança de paradigmas na formação
ção social envolvida no processo saúde-doença e das transformações do mundo contemporâneo.
da população; da visão crítica do papel do Estado No entanto, a experiência é formativa e, por si só,
como garantidor do direito à saúde; a reflexão compreende uma prática de Educação Permanente
da vida que nos cerca e o papel do estudante, que guia e apoia os docentes na construção desse
futuro profissional, nessa sociedade desigual e curso que além de novo, é inovador.
injusta” (DC-01).
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Desafios da docência
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