Requiem para D. Quixote

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 29

A Phala / 35

DENNIS McSHADE

R E QU I E M PA R A
D. QUIXOTE

A S S Í R I O & A LV I M
Dennis McShade

Após Mão Direita do Diabo, repete-se a presença de McShade na colecção Rififi. Falar
do escritor é talvez falar de Maynard. Para analisarmos a síntese do panorama caótico moder-
no e lobrigarmos a impiedosa crítica a que McShade submete o modus vivendi da nossa época,
temos de olhar Maynard. Ele é a tese do autor — sendo criminoso profissional, reduz ao zero
convenções e elogia apenas o homem em acção pela acção — e por outro lado é a antítese —
os silêncios de Peter Maynard onde há a fala alta de um orador sagrado, o sussurro de uma pre-
ce e tudo aquilo que está para lá da franja do mar. Só neste jogo a dialéctica de McShade pode
ser entendida e vamos lá, até tolerada por espíritos mais sensíveis ou menos abertos. Pela cora-
gem de McShade em nos propor esta fórmula de herói e pelo estilo em que no-lo oferece, não
podíamos deixar de lançar no mercado este seu segundo livro.
O leitor poderá apreciar e repousar — paradoxo da forma como Dennis McShade
escreve, porque o dinamismo do seu movimento literário reside tão-somente nos conceitos —
na fluência e coisa-inteira-ligada com que a trama se desenrola. Enquanto se lê Requiem para
D. Quixote tem-se a sensação preguiçosa e a um tempo deslizante do réptil sagaz, desdobran-
do-se a si próprio e ferindo súbita e implacavelmente onde deve ferir.
Entre uma cobra cuspideira e a «Beretta» de Maynard há uma ponte chamada silenciador.

nota do editor: Texto de Dinis Machado, então editor da colecção onde este livro
teve a primeira edição, acerca do seu pseudónimo Dennis McShade (n.º 71 da colecção Rififi,
Editorial Íbis, 1967).

© ASSÍRIO & ALVIM


RUA PASSOS MANUEL, 67B, 1150-258 LISBOA
© HERDEIROS DE DINIS MACHADO

EDIÇÃO 1287, OUTUBRO 2008


ISBN: 978-972-37-1384-8
Hacer bien a villanos es echar agua en la mar.
Miguel de Cervantes Saavedra
UM

— Porque não ficaste em Roma? — perguntou Johnny.


Acenei com a cabeça. Levantei-me do maple em que esta-
va sentado e fui sentar-me noutro, no canto contrário do escri-
tório. Johnny olhou para mim e passou a mão pelo queixo. Fez
rodar a cadeira e ficou de frente para a janela. As costas tinham
uma curva mais acentuada, ou pareceu-me isso.
— Peter — disse ele, como se falasse para a janela — se ti-
vesses ficado mais algum tempo em Roma, talvez isto não se
tivesse dado. Regressaste no momento nevrálgico para o Sindica-
to. Não há um caso Big Shelley todos os dias.
— É uma prova de força, Johnny. Se não fosse Big Shelley
era outra coisa qualquer.
Johnny fez rodar de novo a cadeira e fitou-me com aquela
gravidade que nele era sempre acompanhada de uma nota de
pudor.
— Sabes que as circunstâncias são muito importantes, Pe-
ter — disse ele devagar. — Isto é como a política. É verdade
que existirá sempre entre ti e o Sindicato essa espécie de fosso.
— Fosso?
— Essa tua independência. Não podes esperar que eles
passem por cima da tua recusa sistemática em entrares no qua-
dro. De qualquer modo, representas para eles uma forma de
concorrência. Não podes negar que há entre ti e eles uma per-
manente situação ambígua, inacabada.

7
— Isso já foi falado — respondi, olhando para a nesga de
sol que cortava a secretária pelo meio.
— E depois? — insistiu Johnny. — Foi falado. E que inte-
ressa que tivesse sido falado? Quando partiste para Roma dei-
xaste Charlie Di Luca em maus lençóis1. Não fosse o caso de o
Sindicato ter grandes preocupações de outra ordem e era bem
possível que não pudesses pôr mais os pés neste país. Tu sabes
isso, Peter.
Levantei-me e comecei a andar de um lado para o outro.
— No dia em que tu te cansares de me proteger, Johnny
— disse eu, enfiando as mãos nos bolsos das calças — eles tra-
tam-me da saúde. Se eu deixar, claro. Verás que as preocupa-
ções que eles tiverem não são suficientes para passarem por
cima disso.
Ficámos calados por momentos. Depois, Johnny disse:
— Há uma certa verdade nisso, mas já nem eu sei até que
ponto te posso ajudar. Enquanto estiveste em Roma, houve
grandes mexidas no Sindicato, Charlie chegou a ser pronun-
ciado por gente graúda, mas isto levou depois outra volta e ele
ficou. Se houvesse agora outro boss em Nova Iorque talvez nem
tivesses recebido esta proposta. Talvez não pudesses mesmo cá
entrar.
— Foste tu? — perguntei.
— O quê?
— Foste tu que encontraste esta meia-solução?
Johnny tirou a lima da algibeira e começou a limar as unhas.
— Não, não fui eu. É possível que Charlie tivesse encon-

1 Ler Mão Direita do Diabo, já publicado nesta colecção.

8
trado esta saída em atenção a mim e, simultaneamente, ao Sin-
dicato. Andamos todos a fazer esta espécie de jogo diplomático.
— Bem — disse eu, coçando a orelha — ele encontrou
uma forma de me humilhar. Vês tão bem como eu, Johnny,
que há nisto uma provocação. O Sindicato tem uma creche de
assassinos.
— Dizes bem, uma creche. Por isso, eles querem alguém
cheio de métier e que não esteja ligado ao Sindicato. Segundo o
que me foi possível apurar, este caso Big Shelley tem a sua im-
portância. E talvez porque tem importância, eles decidiram
dar-te esta oportunidade.
— Já percebi isso — respondi.
— Depende da maneira como tu encarares as coisas —
continuou Johnny. — O contrato é o que pagas pela liberdade.
Depois de cumprido, regressas à tua independência. É uma
troca de certo modo justa. De resto, recebes como por qual-
quer outro trabalho. Não se pode dizer que haja aqui a tal situa-
ção humilhante a que te referiste. E, como já disse, atendendo
às circunstâncias…
— Johnny — interrompi-o — é humilhante na medida
em que nunca quis trabalhar para o Sindicato e agora vejo-me
obrigado a fazê-lo. E é humilhante porque não tenho a liber-
dade de aceitar ou não a proposta. Sempre analisei os contratos
que cumpro. Este é-me imposto.
Johnny largou a lima e encostou-se para trás, meneando a
cabeça:
— E se quando tu desceste do avião, eles estivessem à tua
espera? Isso não era pior? Sabes tão bem como eu os sarilhos que

9
arranjaste. Charlie quase ficou doido quando encontraram o
cadáver de Nick Collins, andou imensa gente a apagar pistas e
o teu nome até foi citado nos altos comandos. Francamente,
cheguei a supor que estalara definitivamente a guerra entre ti e
o Sindicato. A guerra que tinhas de perder, claro.
— Já não tenho saúde para estas coisas — disse eu, falan-
do mais para mim do que para ele e continuando a andar de
um lado para o outro. — Estou pior da úlcera.
— Peter — continuou Johnny suavemente — enquanto
eu estiver no Sindicato, tudo farei para não te complicar a vida.
E quando digo tudo, é tudo. Mas tu tens de fazer um esforço
para não exagerares. Matas Big Shelley, recebes mais vinte mil
dólares, a juntar aos vinte mil que já tens, e acabou-se. O Sin-
dicato também sabe cumprir regras, quando é preciso.
— Sabe? — perguntei. E sorri.
— Sabe — insistiu Johnny com certa obstinação. — E cá
estou para lhes lembrar o que prometeram, se for necessário.
— Pois.
— Posso ainda dizer-te que este contrato deve aumentar a
benevolência do Sindicato para contigo. Havia de chegar o dia
em que era preciso dar-lhes qualquer coisa, além da recusa sis-
temática em te juntares a eles. Eles vão apreciar isso.
— São bons rapazes — disse eu.
— Se tu pudesses pensar nisto como um contrato vulgar
— observou Johnny, passando por cima do que eu tinha dito
— e não te torturasses dessa maneira, e não misturasses o or-
gulho numa questão prática, tudo era mais fácil. Há uma certa
criancice nisto.
— Johnny, estás a querer chatear-me.

10
— Rapaz, há uma certa criancice nisso. Estás a medir for-
ças com Charlie e com o Sindicato. É a velha história.
Parei em frente dele.
— Ouve — disse devagar — isto é de propósito. Tu sabes
que eles fazem isto de propósito. Por mais discursos que faças,
sabemos os dois que eles fazem isto de propósito.
— E então, Peter? — disse Johnny, levantando um pouco
a voz. — Fazem de propósito e fazem porque precisam. Seja
pelo que for. Tu és um profissional, vives no mundo em que to-
dos nós vivemos e tens de te sujeitar aos contratempos.
— Pois.
— Não digo que seja este o dia mais feliz da tua vida. Mas
é assim.
— Pois, é assim.
— É evidente que podes recusar. Mas neste caso é melhor
partires de novo. Se recusares, acabaram-se quaisquer hipóteses
de modus vivendi. Se cumprires o contrato, as relações serão
outras. Desaparece esta atmosfera envenenada. É uma porta
aberta para uma situação de compromisso. Talvez eles acabem
por te deixar sossegado. Sei lá.
Olhei para Johnny com olhos semicerrados.
— Johnny — disse-lhe — isto tem mesmo um ar político.
Estás cada vez mais diplomata.
— Está bem.
— Às vezes, ponho-me a pensar como te sentirás tu como
braço direito de Charlie.
— Sinto-me uma trampa. Estás satisfeito?
Fiquei a olhar para o chão.
— Tens visto Olga? — perguntou Johnny.

11
— Às vezes.
— Porque não ficaste em Roma?
— Pois.
Olhei para ele.
— Quem é Big Shelley? — perguntei.
— Um poderoso. A única coisa que posso dizer-te para co-
meçares, é a morada de Mildred Shelley, que foi mulher dele.
E há o irmão dele. Tiveram uma questão que foi a tribunal.
Já há muitos anos.
— Não há outra maneira de começar?
Johnny franziu as sobrancelhas e ajeitou o mata-borrão da
secretária.
— Estou muito fora disto, Peter. Sou apenas o elemento
de ligação entre ti e o Sindicato. Nem tenho de me meter nis-
so. Nem posso. O Sindicato não pode ser para aqui metido
nem achado.
— Porque quer o Sindicato eliminar Big Shelley? — per-
guntei.
— Não faças perguntas dessas, Peter. Ninguém sabe.
Meneei a cabeça e monologuei:
— Agora, vou andar para aí à caça de Big Shelley, a bater
às portas e etecetera. Tem muita graça. O amigo Charlie é um
pândego.
Ficámos calados alguns minutos. Depois, Johnny disse:
— Se calhar, nem é Charlie que tem mais que ver com
isto. Peter, sabes como estas coisas são complicadas. A verdade
é que temos de andar para a frente.
— Qual é a morada de Mildred Shelley?
Johnny disse-ma e perguntou:

12
— Vais falar-lhe?
— Acho que sim.
— Ela odeia o marido. Foi um matrimónio desastroso.
— Que pena — disse eu.
Dirigi-me para a porta.
— Peter — disse Johnny para as minhas costas — vai-me
dizendo o que se passa para eu lhes comunicar. Vou-te ajudan-
do no que puder, mas não pode ser muito. Agora, tenho uma
chatice das grandes. Procuro gerentes para três bares, mas gen-
te feita, com folha de serviços. E o Sindicato está com umas
exigências…
Cheguei à porta e voltei-me para trás.
— Sabes o que verdadeiramente me chateia nisto, Johnny?
— Sei. Já me disseste.
— Não. Não sabes. É que o raio do homem tem o nome
de um poeta.
— Poeta?
— Shelley, um poeta inglês.
Johnny encolheu os ombros.
— Está bem — disse ele.
Saí e bati com a porta.

13
DOIS

Mildred Shelley tinha trinta e cinco anos muito bem de-


fendidos por condições naturais e por cuidados próprios. Um
rosto desenhado, marcado e fino. Uns lábios esticados e curvos,
uns olhos profundos, de um tom violeta que eu não me lem-
brava de ter visto. A pele era rósea, como se fosse impossível to-
car-lhe e não ficar mancha. O cabelo era escuro e uma onda
muito larga ia morrer sobre a orelha direita. De perfil, fazia
lembrar um retrato de Modigliani, porque o pescoço prolon-
gava-se, prolongava-se. De frente, despertava sentimentos vá-
rios, de certo modo confusos. O tom violeta dos olhos é que
tinha a culpa, tão cheio de sensualidade sombria e de um poder
avaliador verdadeiramente extraordinário.
— Chamo-me Mildred Bruce. Fez mal em perguntar por
Mildred Shelley. Seria o suficiente para não o receber se esti-
vesse mais maldisposta. Shelley é um nome maldito.
— Pois — disse eu.
Vestia um tailleur cinzento, curto nas mangas, de um cor-
te severo. As mãos brancas eram muito largas, e usava um anel
de prata no dedo mínimo da mão direita. Fazia-o rodar com os
dedos da mão esquerda. Reparei que tinha as unhas cortadas
rentes e sem verniz.
— Que deseja?

15
Tinha uma voz aveludada, quase rouca, como se viesse
muito de dentro e saísse com dificuldade, envolvida em som-
bras e nevoeiro.
— Falar consigo — disse eu.
Fiquei de pé, como estava desde que entrara. O escritório
era pequeno e quadrado e havia um tom de castanho enverni-
zado por toda a parte, na secretária, nas cadeiras, na estante,
numa pequena mesa de centro, nas zonas do soalho não apa-
nhadas pela carpete, tudo a formar um conjunto de certa gravi-
dade. Faltava ali a cor violenta ou a cor clara de que as mulheres
costumam gostar. Uma vaga desconfiança começou a nascer em
mim. Uma dessas intuições maynardianas, uma das minhas
minúsculas campainhas longínquas.
— Não fique aí de pé — disse ela com a sua voz enrolada
não sei em que espécie de tecidos, olhando para mim do lado de
lá da secretária. E apontou-me uma cadeira com a mão esquerda.
— Como se chama? — perguntou de repente.
— É por causa de um inquérito que estamos a fazer — dis-
se eu, fazendo-lhe ver que ignorava propositadamente a per-
gunta dela.
— Um inquérito?
— Finanças — disse eu. E sentei-me.
Os olhos dela faiscaram e deitaram breves lâminas cor de
violeta.
— Mas de que se trata?
— Possível fuga a impostos — respondi devagar. — Bem,
temos de averiguar. Estas coisas são sempre muito lentas e te-
mos de maçar pessoas. Um processo destes compõe-se de mil
formalidades. Quaisquer informações sobre o seu ex-marido

16
poderão ser úteis. Características, hábitos, relações. Pode ser
que no fim não seja nada. Mas o Governo tem de controlar es-
tas coisas, especialmente nos casos como o do seu ex-marido.
Grande movimento de capitais e etecetera.
Mildred Bruce fazia cálculos rapidamente. Já via em mim
o aliado que caiu do céu, o anel dos Bórgias, o instrumento.
Ah, Maynard, Maynard, pombo-correio dos corações envenenados.
— Você é uma espécie de polícia, não? — atirou ela para o ar,
enquanto assentava os cotovelos na secretária e juntava as mãos.
— Diremos antes, um fiscal.
— Tem muito que fiscalizar — disse ela com um risinho
irónico. — Nunca percebi bem os negócios dele, porque aquilo
é mesmo para não se perceber. Se lhe interessa a minha opi-
nião, como marido, digo-lhe que era uma peste. Uma autêntica
peste. Sabe o que é a crueldade desnecessária?
— Pois — disse eu. (A crueldade desnecessária, Mildred
Bruce, pode ser muita coisa, incluindo o que vejo nos lampejos rá-
pidos dos teus olhos cor de violeta.)
— Mr. Shelley — disse ela com ar quase sonhador e ro-
dando o anel com os dedos — era um homem dado a cruelda-
des desnecessárias, a egoísmos odiosos. Um homem que só
pensava nele, que se servia dos outros com a maior sem-cerimó-
nia, que utilizava as pessoas como coisas. Teria de lhe falar de
algo muito privado para ter uma ideia do que quero dizer. Uti-
lizar as pessoas de uma maneira ofensiva e repelente. Percebe?
Acenei com a cabeça e ela continuou:
— Anthony Shelley é feito dessa massa asquerosa dos que
se servem sem pensar nos outros, com uma noção feudal de
posse, uma brutalidade tipicamente masculina, uma maneira

17
hábil de ofender as pessoas no que elas têm de mais vulnerável.
Um certo comportamento primitivo, se sabe a que me refiro,
está por detrás de todo aquele verniz das relações…
Percebi, finalmente, que a voz dela parecia tentar passar
por veludo. Era isso, por veludo. Era uma mulher amordaçada
por dentro, amordaçada em veludo como convém a uma frus-
tração aristocrata.
— Esses negócios em que ele anda metido, esse prestígio
de grande financeiro, tudo isso esconde um ser humano insu-
portável, tirânico, libidinoso. E foi…
Fiquei para ali a ouvir a voz prisioneira de uma mulher amar-
gurada falando de amor ao contrário, os olhos violetas repassados
de desejos inconfessáveis, das taras mais abissais, olhando para
mim sem me ver, rodando o anel da mão direita, rodando o anel,
criando uma distância absoluta entre dois seres, e nascia uma lin-
guagem desencontrada, e havia uma paixão que não tinha eco.
— Para o encontrar… — quis eu dizer.
— … Anthony Shelley é um exemplar perfeitamente obs-
ceno, deve continuar a mesma vida que tinha, o que lhe inte-
ressa é torturar as pessoas, sugá-las como um vampiro…
Ouvi não sei quanto tempo uma data de coisas sem senti-
do. Uma doença a falar, a falar. As doenças não falam, Maynard,
quem fala são as pessoas. As pessoas são as doenças. Doente já tu és,
Maynard, tens a tua cruz, a tua úlcera no estômago, a tua angús-
tia suada, cala-te, Mildred Bruce, se não te calas atiro-te com esta
jarra que está aqui à minha esquerda e que deve fazer um lindo
som de porcelana a desfazer-se na parede.
— Obrigado, miss Bruce — disse eu não sei quando.

18
Quando cheguei à rua, vinha a abanar a cabeça.
Entrei numa cabina telefónica e liguei para Johnny.
— Johnny?
— Sim — disse ele, do outro lado do fio.
— Johnny, a nossa Mildred Shelley é doida. Quanto tem-
po dizes tu que ela esteve casada com Big Shelley?
— Três anos, suponho.
— Se ele aguentou aquilo três anos é um santo.
— Bem, eles separaram-se duas vezes durante esses três anos.
— Filho, eles devem ter estado sempre separados. Toda a
gente está separada de Mildred Shelley. Ela vai acabar por an-
dar a aliciar meninas nas ruas se, antes disso, não der entrada
num manicómio.
— Não soubeste nada de útil? — A voz de Johnny era um
pouco pesarosa.
— Nada.
— E o que vais fazer agora?
— Não me disseste que havia o irmão dele, aquele que o
meteu em tribunal não sei porquê?
— E perdeu a causa. Odeia-o.
— Pois — disse eu, olhando através do vidro da cabina
para as pernas de uma mulher alta que passava.
— Roger Shelley. A indicação que tenho é que vive ou vi-
veu em Palm Beach. Vais lá?
— Não sei. Talvez vá — respondi. — Ou talvez vá a casa
de Big Shelley acabar com isto.
— Assim, sem mais, nem menos? Rapaz, ele tem guarda-
-costas, está protegido.
— E o irmão é que sabe disso? — perguntei.

19
Johnny falou um pouco alto:
— Mas sou eu que quero falar com o irmão ou és tu? Peter,
faz o possível por seres coerente.
Meti outra moeda no aparelho.
— Está lá?
— Estou — respondeu Johnny.
— Ouve — disse eu. — Não me interessa encontrar ape-
nas a maneira prática de chegar a Big Shelley. Quero saber
quem é Big Shelley. Gosto de saber quem é a pessoa que vou
matar.
— Para quê, Peter?
— Porque é absurdo, Johnny. É verdadeiramente absurdo
matar um homem só porque o Sindicato diz para o fazer. E só
porque o Sindicato me diz para o fazer, sinto imediatamente
vontade de o deixar vivo. Mas como tenho de o matar, preciso
de razões para considerar isso um acto justo. Percebes, Johnny?
— Faço o possível, Peter — disse ele mansamente.
Desliguei. Empurrei a porta da cabina e pisei o passeio.
Doía-me o estômago. Dirigi-me a uma farmácia para comprar
comprimidos. Lembrei-me da Beretta, há tantos meses a um
canto, precisava de a limpar. Estava num lastimável estado de
espírito. Não a Beretta. Eu.
A úlcera influencia a disposição, a disposição influencia a
úlcera. O todo é a soma das partes, as partes formam um todo.
E mais isto e mais aquilo. Pois.

20
TRÊS

Normalmente, o tempo para mim não é o dos relógios,


mas este tempo interior, ora esticado, ora encolhido, reflexo do
que acontece à minha volta, ou não acontece, tempo em que os
segundos se precipitam e me precipitam, ou tempo de ficar de
papo para o ar, ouvindo a quinta ou a nona sinfonia.
Tinha posto Palm Beach a um canto por uns dias. De res-
to, pus a um canto tudo quanto fosse sentido prático. Andei
atarefado, mesmo obcecado na procura de música sacra, entrei
no período do requiem, com maestros e corais escolhidos. Pas-
sou tempo, não sei quanto tempo, porque não tinha pressa, o
meu tempo interior não fazia exigências. A história de ter de
matar Big Shelley afigurava-se-me tão absurda que decidi reler
o Ulysses, de Joyce, talvez para me vingar. E cirandei pela casa,
fui duas vezes ter com Olga e trouxe o perfume dela no meu
ombro.
A certa altura, Johnny telefonou-me para me dizer que o
Sindicato me dava uma semana para resolver o caso Big Shel-
ley. Falou de pressões sobre Charlie, uma certa impaciência dos
altos comandos e etecetera. Ouvi tudo o que ele disse com uma
displicência que a mim próprio me pareceria assustadora, se
não houvesse o caso de já me conhecer relativamente bem, pelo
menos à superfície do que sou. Uma maneira de me estar nas
tintas sem realmente estar, um sinal de crise como costumo di-

21
zer para dentro de mim, um não fazer nada só porque devia fa-
zer e saborear a situação paradoxal que isso implica, uma espé-
cie de espera para desencadear a sério qualquer coisa. Às vezes,
é a úlcera que me acorda, é ela que faz entrar em jogo o factor
tempo, mas tempo real, com mostradores de relógio e pontei-
ros a girar. Nunca pode ser um Charlie a acordar-me. Quem é
Charlie? — perguntei a mim próprio sem esperar um décimo
de segundo pela resposta.
Estava neste estado de espírito e a respirar esta atmosfera
quando, numa tarde, saí de casa com intenção de comprar um
requiem, de Berlioz, e não dei mais do que dez passos no pas-
seio. Fui rodeado por três tipos de sobretudo. Um deles disse,
apontando para um carro:
— Entra, Maynard.
Tinham as mãos metidas nos bolsos e armas, decerto, den-
tro das mãos. O facto de eu morar numa zona pouco movimen-
tada, dava-lhes facilidades para o caso de me decidir a recusar o
convite. Tanto eu como eles pensámos em tudo isto ao mesmo
tempo, e tanto eu como eles sabíamos que eu só tinha um cami-
nho a seguir: entrar no carro. Entrei no carro e disse:
— Não está tempo para andar de sobretudo.
O carro rodou durante muito tempo, saímos da cidade e
reparei que o tipo que guiava era um meu velho conhecido.
Tinha sido boxeur de segunda ordem. Já não o via há muitos
anos. Reconheci-o pelo olhar bovino que me era transmitido
pelo espelho retrovisor. Continuava grande como um urso,
mas tinha as patilhas todas brancas, o nariz mais desfeito do
que antigamente e faces com o tom esverdeado da já futura de-
composição.

22
— Billy Bear — disse eu — ainda és vivo, rapaz?
Ele devia conhecer-me mais pelo nome do que pelo rosto
ou a figura. Os olhos bovinos ganharam uma surpresa repenti-
na, que desapareceu quase imediatamente. Não lhe devia agra-
dar que eu o reconhecesse. Os motivos eram vários, incluindo
a circunstância de estar a fazer de moleque dos outros dois,
principalmente o que estava a meu lado no banco de trás, que
tinha a particularidade de usar sobretudo amarelo, enquanto os
outros vestiam sobretudo escuro, tinha uma popa impossível
de desfazer por causa da brilhantina e uma maneira de pôr os
olhos azuis em cima de uma pessoa que não era lá muito certa.
O carro rodava e começaram a aparecer árvores no cami-
nho. Passarinhos cantavam nas árvores. A certa altura, Billy
Bear fez parar o carro junto a uma casa isolada, uma espécie de
mansão que parecia retirada de um livro de Edgar Poe. Fize-
ram-me sair do carro e entrar à frente deles, depois do tipo de
popa ter aberto a porta de entrada com uma chave Yale. Achei
que era uma chave pequenina para uma casa tão grande. E dis-
se para o tipo de popa:
— É uma chave muito pequenina para uma casa tão grande.
Ele olhou para mim e ficou mais estúpido. Não apreciava o
humor à Chandler. Quando já estávamos dentro de casa, Billy
Bear começou a afastar velhos sofás e velhas cadeiras para os
cantos da grande sala onde supus que iríamos instalar-nos. Hou-
ve uma espécie de mise-en-scène um pouco forçada, pois Billy
Bear cruzou as mãos à frente do corpo e ficou a olhar para mim,
enquanto o tipo de popa tirou o sobretudo num gesto de tou-
reiro que sacode a capa, olhou em volta de nariz torcido e disse:
— Esta merda está cheia de merda.

23
Referia-se, respectivamente, à casa e à poeira. Colocou o
sobretudo cuidadosamente sobre uma cadeira e lançou-me um
olhar azul de cintilações entre o sádico e o obsceno. Depois, co-
locou-se na mesma posição em que estava Billy Bear, de perfil
para mim.
O terceiro lado do triângulo, que era o que tinha vindo no
carro ao lado de Billy Bear, e no qual eu já tinha visto o inte-
lectual do grupo, sorriu-me com um sorriso muito estudado,
apertou mais nos dentes a boquilha sem cigarro na qual tinha
chupado desalmadamente durante todo o caminho, e disse:
— Maynard, está a fazer-se tarde para o que tens de tratar.
— E ajustou melhor nas mãos as luvas de camurça clara que
trazia calçadas.
— Pois.
— Nem sabemos o que é. — Tinha uma voz monótona.
— Trouxemos-te aqui para te lembrar.
Ficámos assim algum tempo, o tipo de luvas de camurça a
olhar-me nos olhos e os outros dois, um de cada lado, de mãos
cruzadas à frente do corpo. Não havia nada a dizer e passar
tempo era comigo, não tinha pressa. Até que a coisa explodiu.
Caíram-me os três em cima quase ao mesmo tempo, obrigan-
do-me a bater-lhes quase simultaneamente com os pés e com as
mãos. A minha intenção primordial era não ser agarrado. E fiz
tudo quanto pude para que isso não acontecesse.
Consegui desfazer a popa do olho-azul com uma esquerda
rápida, ao mesmo tempo que me desviei o suficiente de um
golpe de Billy Bear, obrigando-o a desequilibrar-se e a correr
pela casa fora como um toiro desembolado. O tipo de luvas de
camurça, que me tentara deitar as mãos, tinha feito uma retira-

24
da estratégica, também com uma intenção primordial: a de me
apanhar pelas costas. Entretanto, o popas e Billy Bear voltaram
à carga. Atingi o ex-pugilista com um pontapé no ventre, mas
o outro deu-me um golpe muito forte com a mão aberta no
lado esquerdo do pescoço. Fiz voar a mão direita e parti qual-
quer coisa com ela, talvez dentes. Levantei o pé esquerdo, mas
só o pousei algum tempo depois, porque alguém mo apanhou
e me fez dar duas voltas sobre mim próprio, criando-me uma
situação de muito difícil estabilidade. Finalmente, o de luvas de
camurça deve ter conseguido a sua intenção primordial, por-
que senti um braço em volta do pescoço que me obrigou a do-
brar a cabeça para trás. Fiquei com o estômago suficientemente
desprotegido para levar um soco que foi das coisas que até hoje
mais me doeram na vida.
Ainda com os braços livres consegui bater à minha volta,
mas subitamente um objecto duro, de ferro ou de aço, colidiu
com a minha omoplata direita, tornando-me mais vulnerável a
segundo soco na boca do estômago. Fingi que não senti a dor e
rodei o corpo, num impulso, obrigando o tipo de luvas de ca-
murça a entrar nos limites da minha mão esquerda. Acertei-lhe
admiravelmente num olho e ele até grunhiu. Com outro pon-
tapé afastei mais uma vez o tipo de popa, e deixei-o agarrado à
barriga alguns segundos. Mas tive um momento de relaxamen-
to que me foi fatal, pois Billy Bear aproveitou-o para se lançar
sobre mim de cabeça, projectando-me contra a parede. Caí e já
não tive tempo de me levantar. A meio da viagem, o tipo de
popa agarrou-se às minhas pernas, Billy Bear atirou-me as
mãos ao pescoço e voltei a contactar com o soalho. Fiquei de
barriga para o ar, e eles bateram-me no estômago e nos flancos.

25
Estiveram ali a martelar imenso tempo, ou pareceu-me isso, e
depois deixei-me ficar, fazendo o possível por reter a respiração
para conseguir suportar as dores. Entrei num estado de semi-
-inconsciência e, a certa altura, já não tinha bem a certeza se ti-
nha morrido. Mas não devia estar morto, por causa de súbitas
guinadas no estômago e nos flancos.
Acordei com alguém a passar-me um pano molhado pelo
rosto. Abri os olhos e vi o tipo de popa, sorrindo deleitado, a
respirar para cima de mim. Era ele que me passava o pano pelo
rosto, com ternuras de donzela, o olho azul regalado.
— Vamos, Maynard — disse a voz monótona do boquilhas.
Ele estava lá em cima, em segundo plano, de pé, atrás do
popas, e pareceu-me que tinha só um olho, que se tinham es-
quecido de lhe fazer o outro, ou que o tinha perdido, e havia
uma saliência carnívora nesse sítio. Billy Bear não estava no
meu raio de visão.
Quis levantar a cabeça, mas a dor nos flancos era muito
forte e voltei a pousá-la no chão. Continuei a respirar o menos
possível, por causa de uma espécie de agulhas que tinha dentro
de mim. Fechei os olhos e deixei-me estar.
A voz do popas disse:
— O gajo parece que está a preparar-se para outra soneca.
A certa altura, puseram-me de pé, enquanto eu fazia cui-
dadosos exercícios respiratórios para poder começar a andar.
Billy Bear apareceu no fundo da sala e perguntou para o tipo
de boquilha:
— Vamos?
O tipo de boquilha, que já não tinha boquilha e que con-
tinuava só com um olho, resmungou:

26
— Espera.
Comecei a andar devagar, de um lado para o outro, e o
tipo de popa disse com um sorriso nervoso:
— Já está bom. Daqui a meia hora já pode fazer ballet.
Fiz alguns minutos para cá e para lá, passando por cima
das dores no estômago, nos flancos e na omoplata. O de luvas
de camurça olhava para mim e lembrou-se de me dar uma es-
pécie de apoio moral:
— Isso não é nada, Maynard. Amanhã ou depois já estás
bom. Tens é de fazer aquilo que te mandaram. Já sabes como
são estas coisas.
O popas reforçou a ideia com segundo sorriso nervoso:
— Ele sabe isso. Sabe que não é nada pessoal.
Billy Bear insistiu obstinadamente.
— Vamos?
— Vai à merda, pá — disse o popas. — Vamos quando te
dissermos.
Meia hora depois, os tipos meteram-me no carro e leva-
ram-me para a cidade. Falámos pouco durante o caminho. Eles
ainda começaram umas hipóteses de conversa, mas não havia
ambiente e acabaram por se calar. Depois de um período de si-
lêncio, Billy Bear falou em qualquer coisa respeitante a apostas
de cavalos e o popas disse-lhe:
— Tu é que és um bom cabeça de cavalo.
Pararam a duzentos metros da Broadway. O tipo de luvas
de camurça, que já tinha outra vez a boquilha nos dentes, mas
que continuava a ter o olho esquerdo invisível, disse para Billy
Bear:
— Pára aí. — E voltou o rosto para mim. — Sai, Maynard.

27
Abri a porta e preparei-me para sair, quando a mão do olho-
-azul me apertou o braço e ele fez um terceiro sorriso nervoso.
— Sem rancores? — perguntou. E só agora eu percebia
que ele tinha voz de menina.
Não respondi, pisei o passeio e comecei a andar. Vi-me
numa montra e fiquei surpreendido por ter o rosto em condi-
ções verdadeiramente aceitáveis. Bem, isto significava que eles
sabiam o que tinham feito. Também eram profissionais. Dei-
xavam mossas onde não se via.
Chamei um táxi e fui para casa. Doía-me o corpo todo,
com as várias partes a puxarem cada uma para seu lado, às gui-
nadas. Tomei um duche muito quente e estendi-me na cama
completamente nu. A noite aproximava-se. Bebi alguns goles da
garrafa de leite que tinha colocado em cima da mesa-de-cabecei-
ra. Liguei para Johnny, mas ninguém respondeu. A certa altura,
as dores começaram a seleccionar-se por si próprias. Uma nódoa
negra, muito larga, insinuava-se por toda a zona do estômago e
espalhava-se pelos flancos. A omoplata também me doía muito
e havia qualquer coisa dentro de mim que parecia estar fora do
sítio, ou demasiado para dentro. Talvez o estômago colado à pa-
rede das costas. Os tipos trocaram-te o sítio dos órgãos, Maynard.
Foi uma espécie de intervenção cirúrgica. Não são maus rapazes.
Agora, devem estar é cheios de medo da Beretta. Bem, eles são duros,
mas agora andam nervosos por uns tempos.
Levantei-me e pus Bach no gira-discos. Gostaria de ter
Olga ao pé de mim, a passar-me os dedos pela testa. Mas já sei,
estou farto de saber que não se pode ter tudo. Procurei con-
centrar-me em Bach, mas Bach estava em plena fuga e reco-
nheci a minha incapacidade para o acompanhar. Agora, o

28
estômago era um tambor, alguém tocava tambor no meu estô-
mago. Deram-te na úlcera, deram-te na úlcera, os estúpidos. Come-
cei a fazer massagens, mas as dores estavam todas misturadas.
E eu não conseguia destrinçar através delas a dor autêntica,
genuína, o pulsar da úlcera. E por momentos, parecia-me que
a úlcera me fugia para a omoplata.
Tomei comprimidos para as dores, pensei em Big Shelley,
lembrei-me de uma ragazza de Roma que estava sempre a can-
tar em surdina e que gostava de me beijar a nuca, disse a mim
próprio que isto de dores no corpo tem muito que ver com o
domínio sobre a vontade, insisti em Bach, inventei uma data
de coisas, mas não consegui dormir e a manhã apanhou-me
acordado. Quando o sol me bateu no rosto, corri a cortina e fe-
chei, finalmente, os olhos por algum tempo.
Acordei subitamente com a úlcera em pé de guerra. Nem
tinha força para mexer a cabeça e ver as horas.

29

Você também pode gostar