Tecendo Afetos o Contador de Historias Urbano
Tecendo Afetos o Contador de Historias Urbano
Tecendo Afetos o Contador de Historias Urbano
TECENDO AFETOS:
O CONTADOR URBANO E O ARVORECER DO ECOH –
ENCONTRO DE CONTADORES DE HISTÓRIAS DE LONDRINA
Londrina
2021
SÔNIA REGINA BISCAIA VEIGA
TECENDO AFETOS:
O CONTADOR URBANO E O ARVORECER DO ECOH –
ENCONTRO DE CONTADORES DE HISTÓRIAS DE LONDRINA
Londrina
2021
SÔNIA REGINA BISCAIA VEIGA
TECENDO AFETOS:
O CONTADOR URBANO E O ARVORECER DO ECOH –
ENCONTRO DE CONTADORES DE HISTÓRIAS DE LONDRINA
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof. Orientador Frederico Garcia Fernandes
Universidade Estadual de Londrina
__________________________________________
Prof.ª Maria Carolina de Godoy
Universidade Estadual de Londrina
__________________________________________
Prof.ª Vera Lúcia Cardoso Medeiros
Universidade Federal do Pampa
RESUMO
ABSTRACT
This research deals with the ECOH - Encontro de Contadores de Histórias de Londrina
(Londrina Storytelling Festival) and the impacts that this festival has brought for the city and
its region. The investigation was developed based on the concepts of narrator and experience
by Walter Benjamin (1987), crossed with the relation of Etnotext by Jean-Nöel Pelen (2001)
and the contemporary storyteller proposed by Gislayne Avelar Matos (2014). To these concepts
were added the contributions of oral culture by Ong (1998), performance and oral poetry by
Zumthor (2018, 2010) and the phenomenon of festivals in the contemporary world of
Montagnani, Morganti and Muti (2011) and Milicent Weber (2018). Dialoguing with these
theorists, the theoretical and methodological strength of the research is found, however, in the
interviews conducted with the festival's coordinators as well as with participants, from both
storytellers and audience. This material allowed a better understanding about who this
storyteller is and the dimension reached by the festival, in what concerns how it has contributed
to an improvement of society, to the cultural memory of the city and to the formation of
individuals. Being divided into two parts this research aimed to answer who this urban
storyteller is and how they affect others and even themselves through their words and how a
festival that occupies the city with artistic manifestations takes on the importance of orality in
the construction of world reading, the cultural public policies, the valorization of the artist and
the continuous work for the existence and expansion of the rights to culture. Thus, in addition
to understanding and theorizing about the storytellers and the affective potency of their stories,
this research looked at these two materials inside a festival, tracing a new look at the affective
geography created in the urban space during and after its realization. From this perspective, this
research seeeks to answer how a festival contributes to a cultural and social dynamics in the
city, by forming professional networks and networks of affection and creating spaces of
reconciliation, understanding that when a story is told, others are awakened.
1
Para o djéli griot, de Burkina Faso, Toumani Kouyaté (2015) djéli, que significa sangue, é o mestre da
palavra, são filósofos, psicólogos, historiadores, cientistas, geógrafos, enfim, possuem o conhecimento da sua
comunidade. Sua palavra é a mais importante dentro da sociedade, acima de reis e presidentes. Já o griot é o artista
que conta as histórias, aprendidas com o djéli. Kouyaté expõe ainda que a palavra griot veio do pesquisador francês
Alexis de Saint-Lô, que juntou as palavras “djéli”, do Império Mandinga, “gerwal”, do povo wolof e “criado” do
português, pois observou que essas três nomenclaturas em três países diferentes, possuíam a mesma função do
narrar e divertir por meio de histórias e músicas.
12
2
Pandemia da COVID-19, uma doença infecciosa causada por um coronavírus recém-descoberto. O
decreto de isolamento iniciou-se na terceira semana de março de 2020.
13
Em torno dos anos 1970, vários países foram surpreendidos por um fenômeno
urbano, no mínimo curioso, numa sociedade essencialmente tecnológica: a
volta dos contadores de histórias. Em fevereiro de 1989, um colóquio
internacional foi realizado no Musée National des Arts et Traditions
Populaires, de Paris. [...] O objetivo do colóquio foi avaliar o impacto social e
cultural da volta dos contadores de histórias nos países em que este fenômeno
se manifestara com maior vigor.
Esse retorno do contador de histórias chega com uma nova perspectiva, além de buscar
a experiência tradicional por meio da palavra oral, o contador ressurge não como um sábio da
comunidade, um ancião ou algum detentor da palavra, que mantém uma relação de identidade
e autoconhecimento com a sua comunidade, mas surge por meio de uma performance artística.
O contador de histórias contemporâneo assume as narrativas ou a experiência como
matéria da sua atividade, conforme aponta Benjamin, mas sem uma relação de Etnotexto, termo
empregado por Jean-Nöel Pelen, (2001), que compreende o narrador que narra considerando a
comunidade em que está inserido, o discurso que uma comunidade tem dela mesma. Segundo
Pelen há dois tipos de etnotexto. O Etnotexto com E maiúsculo, que compreende o narrador
que narra e legitima as histórias dentro de sua comunidade e o etnotexto com e minúsculo, que
seria a história que traz significados para a comunidade narrativa, mas que ao ser retirada dela
por contadores ou pesquisadores se ampliam em interpretações fora de seu contexto de origem.
O contador olha as narrativas por um viés artístico. Esse profissional artista trabalha
contando histórias longe de comunidades narrativas, mas ressignificando-as no espaço urbano,
sem necessariamente ter um vínculo com esse espaço, carregando assim uma relação de
etnotexto. Quando Benjamin (1987) retrata a figura do narrador, ele coloca dois tipos de
narradores: o que vive na comunidade e tem uma experiência sedimentada de vida e o viajante
que ao retornar narra as histórias ouvidas e vividas durante sua jornada. Em ambos os casos a
comunidade para qual está sendo narrada a história é a mesma, a diferença são as origens das
histórias. O contador urbano é também um viajante, mas a relação é inversa, enquanto o viajante
de Benjamin conta para sua comunidade as histórias de suas viagens, o contador contemporâneo
viaja para contar suas histórias para outras comunidades.
Seria então esse contador de histórias o ressurgimento do narrador proposto por
Benjamin? Para Matos (2014, p. 100): “ao transformar em arte sua palavra, os novos contadores
aproximam-se dos contadores tradicionais. Eles reaparecem numa sociedade industrial
avançada, numa sociedade engajada no que alguns sociólogos chamam de ‘a lógica do
efêmero’”. Sendo assim, esse retorno dos contadores de histórias chega, mesmo que de maneira
diferente dos detentores da palavra de uma comunidade narrativa, como um novo olhar para as
14
experiências tradicionais e essa prática de saberes. Para Praline Gay-Para (apud MATOS, 2014,
p.130), “os novos contadores não são filhos da tradição. Eles não são um elo natural na cadeia
de transmissão, mas, por meio de suas palavras, sua sensibilidade, seu olhar de hoje, eles
tomaram para si a responsabilidade de novamente dar vida a essa ‘palavra’ que se apagava.”
O contador do meio urbano, quando bebe da tradição oral, ele não vive a história, ele
a intermedeia. Muitas vezes, o contador urbano é um andante solitário, como uma das
participantes entrevistadas do ECOH se intitulou. Ele não conhece a história de cada cidade
para onde viaja para realizar seu trabalho. Diante da plateia, cada um receberá a história de um
jeito. Uma parte do público pode ter uma identificação com a história que está sendo contada,
mas não há, por parte do contador, uma obrigatoriedade com o autoconhecimento. O contador
de histórias é um artista, ele também pode encantar, trazer uma sensação de deslumbramento,
provocar o prazer, a reflexão, o afeto, mas, ao tecer sua história, não tem a ideia do se espelhar,
de se decifrar, se reconhecer nessa relação que há entre o narrador e a comunidade oral.
Hoje há diversos trabalhos publicados teorizando a contação de histórias enquanto
linguagem artística, com estudos que tecem uma análise sobre a importância das narrativas,
para além da promoção da leitura do literário para a infância, não descartando a importância
dessa nesse sentido. Devem ser levadas em conta as contribuições de algumas contadoras de
histórias com uma carreira e prestígio na área, como Gislayne Avelar Matos, Gilka Girardello,
Benita Prieto, Regina Machado, Bia Bedran, Cléo Busatto, Ana Luísa Lacombe e Fabiano
Moraes, que colaboram para a pesquisa na área de narrativa oral, criação do imaginário,
performance do contador de histórias, tradição oral e a contação de histórias como uma arte da
palavra e da escuta. Além desses autores, destacam-se livros organizados sobre o tema como:
“Contação de histórias: tradição, poéticas e interfaces” (MEDEIROS; MORAES, 2015),
“Contar histórias: uns passarão e outros passarinhos” (MEDEIROS; MORAES; VEIGA, 2015)
“Narra-te cidade: Pensamentos sobre a arte de contar histórias hoje” (TIERNO, ERDTMANN,
2017), “O contador de histórias: um exercício para muitas vozes” (PRIETO, 2011) e “A arte de
encantar: O contador de histórias contemporâneo e seus olhares” (MORAES; GOMES, 2012).
É a partir da leitura dessas contribuições e de minha trajetória com as letras e a contação de
histórias, que objetivo estudar essa prática dentro da área de estudos literários com o intuito de
compreendê-la enquanto experiência poética e afetiva, pensando o estudo da literatura para
além de uma escrita canônica. Assim, a ideia aqui não é fazer uma análise literária das narrativas
orais, mas compreendê-las enquanto poiesis, que subentende aquilo que é produzido a fim de
criar uma construção poética do mundo para o sujeito. Assim, a literatura está num lugar que
vai além da cultura grafocêntrica. Dessa forma, é necessário pensar a performance desse
15
preservam muito da estrutura mental da oralidade primária” (1998, p. 19). Nesse sentido, Ong
afirma ainda que “a expressão oral pode existir – e na maioria das vezes existiu – sem qualquer
escrita; mas nunca a escrita sem a oralidade” (1998, p. 16), isso porque “a escrita nunca pode
prescindir da oralidade” (1998, p. 16). Mesmo quando a estrutura original da comunidade oral
primária deixa de existir, para carregar consigo também um conhecimento da escrita, ela
continua carregando uma poesia formular, isto é, as expressões, frases e narrativas que são
contadas e recontadas diversas vezes. Isso não é algo que se perde da noite para o dia, pois “o
pensamento e a expressão formular orais percorrem as profundezas da consciência e do
inconsciente e não desaparecem assim que alguém que a eles se habituou pega em uma caneta”
(1998, p.35).
As narrativas orais foram por muito tempo compreendidas como “as histórias daqueles
que não sabem ler nem escrever”, como definiria Paul Sébillot para o conceito de literatura oral.
Ou compreendidas apenas como folclore, engaioladas num âmbito fechado, como genuínas
expressões da humanidade, colocando a narrativa num degrau imutável. O folclorista é um
colecionador de histórias e, dependendo da linha de pensamento que este siga, pode definir o
texto oral como uma produção finalizada e que é lida distante do seu espaço da performance.
E, ao se tornar parte de um acervo ocorre uma cristalização da narrativa, deslocando esse texto
do tempo e da voz em que ele é contado. Comparar as versões dos textos orais ao longo do
tempo e das localidades, há nisso um trabalho de grande valia para a percepção de como o ofício
de narrar histórias está atrelado à vida humana e de como as histórias se mantêm e se espalham
porque falam sobre aquilo que é necessário ouvir. Mas, considerando que o objeto dessa
pesquisa é o encontro, é a afetação provocada por meio da história, no momento da
performance, entendo que é necessário olhar a poética oral no presente, a maneira de como essa
poética que se faz na hora da performance do contador de histórias chega até o ouvinte. Assim,
compreendendo que a narrativa não é uma ação acabada, mas que está em constante fazimento.
Dentre os contadores de histórias que já passaram pelo encontro, a maioria deles não
tem uma relação de enraizamento com comunidades orais, mas sim de um desenraizamento,
isto é, que não está vinculada a uma comunidade narrativa. Mas muitos desses contadores,
mesmo desenraizados, buscam em suas práticas as histórias da tradição oral.
Assim, esta pesquisa busca entender também o impacto da existência de contadores de
histórias nos ambientes urbanos, visto que a narração de histórias, desde tempos ancestrais, é
vivenciada em comunidades orais. Mas qual a importância hoje de estar crescendo o número
de contadores enquanto profissionais? Nem todo mundo que conta histórias ou que vai buscar
uma formação nessa área é um profissional, no sentido de viver desse ofício, pois é uma
17
atividade que existe em diferentes esferas do cotidiano, formais e informais. Por conseguinte,
o número de pessoas interessadas pela contação de histórias vem crescendo, o que pode ser
percebido nos vários festivais de contadores de histórias surgidos no Brasil. O público destes
festivais compõe-se tanto de expectadores interessados em ouvir histórias como contadores
profissionais, que vivem de suas apresentações.
Sobre essa profissionalização do contador de histórias, Felícia Fleck (2009)
desenvolveu sua dissertação de mestrado, entrevistando contadores de histórias de várias
regiões do Brasil, buscando responder se contar histórias pode ser visto como uma profissão.
Em seu estudo ela aponta que contar histórias não é uma profissão devido a essa ação estar
presente em muitas conotações e nem todos os contadores serem remunerados para isso.
Entretanto, a maioria dos seus entrevistados alegou trabalhar com essa arte, recebendo
remuneração por meio desse ofício, sendo então profissionais da arte de contar histórias. Assim,
contador de histórias não é uma profissão regulamentada, mas muitos contadores de histórias
hoje são profissionais, pois investem tempo e estudo nessa linguagem artística, recebendo por
meio dela um retorno financeiro.
Essa foi também uma discussão em 2017, quando foi lançado o projeto de lei
7.232/2017 que regulamenta a profissionalização do contador de histórias, em quem muitos
contadores foram contra, por estar redigido no projeto como obrigação desse profissional ter
formação na área, possuir cursos, graduações, pós-graduações na arte de contar histórias. Dessa
forma excluía os narradores de comunidades tradicionais e mesmo contadores urbanos, mas
que vieram de comunidades narrativas e aprenderam esse ofício na vida e não em uma escola.
Assim, levando em conta essas questões, o projeto de lei foi arquivado. Mas há que se pensar
ainda nessa profissionalização, visto que há um número significativo de profissionais nessa
área.
Um festival também de qualquer área, mas aqui especificamente de contadores de
histórias, propicia um encontro com pessoas interessadas na mesma área artística e, a partir
disso, a transmissão de novas experiências e olhares para essa arte. De acordo com Falassi (apud
WEBER, 2018, p.6):
3
Este e os demais textos em inglês têm a tradução de minha responsabilidade: A festival is an event or
series of events that is celebratory in nature; it is organised and structured, frequently containing elements of ritual;
18
it happens over a designated period of time and is generally recurrent; and it is produced by and for a community
that recognises a particular shared purpose or interest.
4
Programa criado a partir da Lei Municipal n º 8.984, de 06 de dezembro de 2002, junto com o Fundo
Especial de Incentivo à Cultura (FEPROC).
19
[...] Eu acho que tem uma coisa política duma definição como linguagem
artística. Na hora que você fala que é uma cidade que tem um festival de dança,
um festival de música, um festival de teatro e um festival de narração de
histórias, você fala isso aí é uma linguagem artística, não é uma ferramenta
educativa. Não que não é, que eu estou negando que exista, que a gente dança
em casa, a gente dança na balada, a gente dança no palco e a gente dança na
rua. Não que essas coisas não existam, mas acho que grande parte da nossa
dificuldade como artistas hoje está em fincar o pé na narração como linguagem
artística. E não precisa ajudar ninguém, não é para ajudar a educação, não é
para ensinar nada. Se fizer melhor, tá vindo com brinde, mas aí pra gente é
muito difícil porque a gente cresceu num país com a arte muito desvalorizada.
Algumas coisas específicas são valorizadas, mas a gente não tem mais a
cultura do assistir, de ver.
Ciotti traz a ideia de fincar o pé enquanto linguagem artística e não de ser utilizada a
serviço de algo, em prol da leitura de livros ou em prol da discussão sobre alguns temas. A ação
de contar histórias pode incentivar a leitura literária, pode abrir portas para discussões de temas
específicos, pode ajudar a educação, aspectos esses que de fato ela propicia. Mas colocá-la
como um instrumento que tem que estar a serviço de algo é um equívoco que se repete no
âmbito pedagógico. Ou ainda somente como promotor literário, colocando a palavra oral como
um serviço e incentivo para a palavra escrita. A contação de histórias sendo uma arte, não tem
que servir para algo, mas como diz Ciotti “se fizer melhor, tá vindo com brinde”. As histórias
orais trazem questionamentos e afetos que vão muito além de marcas literárias.
20
[...] É uma super importância, porque não só você está transmitindo uma
cultura e, no nosso caso, em especial, isso é fundamental porque infelizmente
a gente tem pouca memória. Então a oralidade traz essa função também, no
meu ponto de vista, de transmitir a nossa cultura, de transmitir a nossa
identidade, transmitir o nosso conhecimento, mesmo por meio das histórias.
Ou melhor, as histórias são o melhor meio de fazer isso. Então, o evento de
contadores de histórias reúne o que tem de mais especial. Eu sempre digo que
como seres humanos, precisamos de algumas coisas fundamentais para viver:
ar, água, alimento e história. Se você tirar todo o resto, você vive sem. Então,
inclusive, a gente tem essa necessidade de ouvir e de ser ouvido, para
manutenção, de como eu disse antes, da nossa memória, compreensão e
construção da nossa própria identidade. [...] A gente se entende como coletivo
e como individualidade quando a gente conta histórias e quando a gente ouve
histórias. Então em um encontro como esse você está construindo, reforçando,
relembrando o que a gente tem de mais especial como seres humanos, como
comunidade, como coletivo e como individualidade também. Então acho que
é super importante, é essencial, é fundamental.
Maia expõe a ideia de além de proporcionar o encontro de pessoas que pensam sobre
a mesma área, ocorre a interação entre seres humanos, ressaltando a força que a palavra exerce
tanto no coletivo, como de maneira individualizada. E essa palavra contada pela voz e corpo do
performer é como aponta Zumthor (2010) um sopro criador que emana no corpo e que a cada
performance é diferente. Como ressalta Matos “Uma mesma performance é vivida de forma
diferente para cada um. ‘Contar história é oferecer o mesmo pão, mas não o mesmo pedaço’,
diz o ditado”. (2014, p.80). Assim, a história é ouvida coletivamente, mas é recebida
individualmente. A partir disso, trago aqui a reposta à pergunta sobre a importância de festivais,
do contador de histórias e palhaço londrinense Luís Henrique Silva (2020), que conta histórias
como Palhaço Arnica:
[...] Mas acho que a importância do evento em si, do festival, eu acho que é
esse momento de aglutinação de todos que estão unidos num grande objetivo,
de dividir informações, dividir histórias, as histórias pessoais e a história de
cada história, porque cada história tem uma história. Porque quando você
conta história nunca é igual, cada lugar é um lugar, cada público é um público,
cada dia é um dia. Então as histórias vêm, elas têm toda uma sequência, todo
um roteiro, toda uma estrutura, mas o jeito que ela acontece em cada lugar
acaba sendo diferente pela peculiaridade de cada público, de cada lugar que
você vai contar a história. [...] porque nunca é igual e o legal é não ser igual
mesmo, é renovar e testar aquilo que a gente tá querendo e apostar naquilo que
a gente viu que funcionou em um lugar, ah vou fazer de novo porque acho que
rolou.
21
Para Zumthor (2010, p. 31), “a performance é a ação complexa pela qual uma
mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida”. Quando há um
contador contando suas histórias, seja numa praça, num teatro ou numa escola, ele pode já ter
contado essa história várias vezes, mas a performance dele é única em cada momento, em cada
lugar. Porque a performance não tem uma forma, ela existe e ela é exclusiva do momento em
que ocorreu, com todas as interferências que o ambiente teve com ela. Ela se cria ali, o que é
diferente da leitura solitária. Por mais que o contador tenha retirado sua história de um livro, o
texto escrito não é capaz de dizer o que é vivenciado no momento da recepção, com todos os
fatores e linguagens que estão unidos no momento da contação. A transmissão gera e afeta a
recepção e isto também faz parte da performance e mais ainda, o modo como o contador se
deixa afetar diante da recepção simultânea de seus ouvintes mescla-se a ela. Pois, conforme nos
aponta Francisco de Assis Lima (1985, p.55):
cada um carrega de vivências dentro de si, as emoções presentes nesse eu, que por vezes não
são respeitadas pela imposição de uma ideia de racionalidade. O afeto não ocupará
necessariamente um lugar amável, às vezes pode ocorrer o inverso, pode entrar nos lugares mais
íntimos e dolorosos do ser humano.
O afeto é compreendido aqui em movimento, como uma experiência do afeto. A
conceituação de afeto já foi teorizada por diversos pensadores, das mais diversas áreas. Desde
a ideia de Spinoza (2009) que dirá que afeto é aquilo que move nossa alma, como ainda de
estudos que mostram como os afetos são capazes de suscitarem certas reações emotivo-
cognitivas, pois aquilo que os olhos humanos não conseguem ser indiferentes, aquilo que
necessitam de ajuda para olhar5 são os afetos que criamos. O afeto se dá do particular para o
geral, assim é necessário olhar para as diferentes maneiras de afetação criadas entre contadores,
produção e público, para se compreender o geral, isto é, a dimensão do festival.
Assim, o trabalho está dividido em duas partes, nomeadas de rodas de histórias, na
primeira será abordada quem é esse contador urbano, no que ele se diferencia do narrador
tradicional, para que se contar histórias, qual o repertório desse contador, como se dão as
performances presentes nesse Encontro, como iniciaram as trajetórias na contação e a relação
de identidade e cura que as narrativas podem proporcionar. Esses tópicos são construídos
usando como fontes entrevistas realizadas com contadores de histórias participantes do ECOH.
A segunda roda de histórias focará no Encontro em si e no que ele gera, as maneiras
de funcionamento, por meio de políticas públicas culturais e a importância delas, o histórico do
encontro, o hibridismo de linguagens que compõe o fazer de um festival e da arte de contar
histórias, a descentralização da arte durante sua realização, que se expande por todos os cantos
da cidade, os impactos culturais, sociais e educativos, bem como as sementes espalhadas pelo
ECOH, ao longo de seus dez anos de duração, analisados também a partir das entrevistas feitas
com os contadores e com o público do festival.
A pesquisa utiliza-se de estudos realizados por Walter Benjamin (1987), Paul Zumthor
(2010, 2018), Walter Ong (1998), Francisco Assis Lima (1985), Jean-Nöel Pelen (2001),
Milicent Weber (2018) e Gislayne Avelar Matos (2014). No entanto a força teórica-
metodológica está nas fontes entrevistadas, daqueles que vivenciam na prática o assunto em
questão, isto é, a escuta dos protagonistas da ação. A estrutura do trabalho foi elaborada a partir
das falas dos depoimentos das entrevistas. Ao todo foram 32 entrevistados6, sendo uma da
5
A função da arte 1, de Eduardo Galeano, em O Livro dos Abraços.
6
Este projeto foi submetido à análise da Plataforma Brasil, com parecer de aprovação número
4.068.576, vinculado ao Comitê de Ética em Pesquisas Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de
23
coordenação geral, uma do parceiro de criação, 18 dos contadores de histórias, sendo que alguns
destes atuam também como produtores do ECOH, uma da fotógrafa do encontro, uma da
intérprete para Libras e 10 de adultos que acompanham o ECOH como público, sendo que
alguns deles também atuam como contadores. As entrevistas foram realizadas com alguns
participantes da 9ª edição do Encontro em Londrina, em 2020 e do itinerante de 2019.
O roteiro inicial para os contadores de histórias baseou-se nas perguntas: como chegou
à contação de histórias, que histórias conta, como seleciona o repertório, se participa de uma
rede de contadores de histórias, por que se contar histórias, qual o impacto que um festival de
contadores de histórias exerce para a sociedade e qual a importância do ECOH para Londrina,
para os contadores daqui e como conheceu o ECOH, para os contadores de fora.
Para a coordenação, o roteiro de perguntas baseou-se em como surgiu a ideia da criação
do ECOH, como é pensado o festival de Londrina e o itinerante, como é feito o processo de
seleção dos contadores de histórias, se existe alguma temática para edições e material gráfico,
sobre se há interferência do poder público para utilização dos espaços, sobre os editais de
financiamento do festival, qual o impacto que um festival de contadores de histórias exerce para
a sociedade e o que o ECOH tem gerado para Londrina.
Já para o público, o foco foi perceber suas impressões sobre as performances assistidas
e sua relação com o festival: se ouviam histórias em suas casas, na infância, se sim, quais e
contadas por quem, se acompanham o ECOH já em edições anteriores, o que mais gostam do
festival, se há alguma sugestão de melhoria, o que acharam das apresentações que assistiram,
se há alguma história ou fala em oficina que tenha marcado, qual tem sido para Londrina a
importância/impacto do ECOH e para os professores: se costumam levar as crianças para o
ECOH e se há uma repercussão das histórias ouvidas na escola depois.
Londrina. As entrevistas são todas datadas de 2020, momento em que os entrevistados assinaram os termos de
consentimento de uso da fala.
24
redondas no Encontro Internacional Boca do Céu sobre ser essa a conceituação que deveria ser
utilizada.
Há ainda quem defenda o uso do verbo ao invés do substantivo. A arte de contar
histórias, não a contação ou narração de histórias. Nomenclatura essa também defendida por
Regina Machado e por outros contadores, como exposto na página do facebook do Encontro
Internacional Boca do Céu (2020), em que foi postado na página um texto de autoria de Lu
Mendes, em que segundo ela essa denominação é mais apropriada porque verbo é ação, é
passagem, é a experiência que vive na impermanência, na respiração da palavra. Falar que
haverá uma contação é como dar um objeto dado, é ter uma programação a ser seguida. Com o
verbo, contar histórias é um convite, um chamar para ouvir.
Etimologicamente, as palavras narrar e contar significam práticas distintas. Narrar
vem de dar a conhecer, enquanto contar vem de dar um contorno, uma forma. Mas a língua é
viva e hoje elas são, neste meio, utilizadas como sinônimos. Mesmo havendo divergências entre
os principais contadores de histórias do país sobre o termo a ser empregado, utilizarei aqui
desses conceitos para me referir ao narrador, como aquele que em sua comunidade oral dá a
conhecer o mundo aos membros de sua comunidade e contador como aquele que dá uma forma
às histórias, ao transformar a tradição oral, literária ou mesmo pessoal em uma apresentação
artística. Essa escolha também se dá pois como estamos nos referindo à contação enquanto
linguagem artística, como arte falamos de uma forma, a qual o contador por meio de sua
expressão trará à tona.
É difícil se visualizar nas falas de alguns contadores de histórias, onde acaba uma ideia
sobre a figura do narrador tradicional e onde começa a desse contador urbano até porque às
vezes não há realmente essa quebra. Parece unânime nas falas dos contadores entrevistados que
estamos falando de um contador de histórias dentro de uma linguagem artística, e que
vivenciam esse ofício também como uma fonte de renda. No entanto, há contadores de histórias
que atuam nas cidades, mas que não vieram de um lugar de formação artística, da maneira que
entendemos, sobre o contar histórias. Ouviram essas narrativas dentro de suas comunidades
orais, onde aprenderam esse ofício, saíram dela e levaram esse saber para o contexto urbano.
Então posso trazer aqui essa diferenciação compreendida entre o contador e o narrador, mas há
casos em que essa diferenciação não se aplica. Há pessoas que vivem desse ofício, que são,
dentro desses conceitos do narrar e do contar, narradores e contadores ao mesmo tempo.
Mas se entendermos narrar como estar ligado ao Etnotexto e contar o dar forma a
essas histórias sem vínculo com o ambiente em que está contando, ou seja, o etnotexto, esse
narrador seria narrador apenas dentro de sua comunidade? E ao adentrar o espaço urbano, em
26
que mesmo trazendo suas histórias, elas não fazem parte da vivência local, essa figura passaria
então nesse momento a ser um contador de histórias? Essas nomenclaturas na vida desse sujeito
pouco importam, assim como nos encontros e festivais, em que há a presença desse contador
urbano, mas também há o narrador da nação indígena, há o griot, há o narrador/contador da
comunidade narrativa, o narrador tradicional presente no interior do Brasil a fora, e esses
participantes todos não serão chamados por nomes diferenciados, serão todos contadores de
histórias ou serão todos narradores orais. Essa nomenclatura trata-se, então, de uma
preocupação do âmbito teórico, mas não se aplica ao prático.
Começa-se a falar dessa contação de histórias, em contexto urbano enquanto
linguagem artística, no Brasil, nas décadas de 80 e 90. De acordo com o grupo Morandubetá
(PRIETO, 2011, p. 51) quem amplia essa ação no país é o PROLER, Programa Nacional de
Incentivo à Leitura, criado em 1991, por Eliana Yunes e coordenado por Francisco Gregório
Filho. Programa vinculado à Fundação Biblioteca Nacional, quando Affonso Romano de
Sant’Anna era o então presidente e sediada desde 1993, na Casa da Leitura, no bairro das
Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Além do PROLER, o grupo de contadores de histórias
Morandubetá, formado por Benita Prieto, Eliana Yunes, Lúcia Fidalgo e Celso Sisto, falam que
eles próprios tiveram um trabalho assíduo na formação de contadores de histórias.
Uma das principais bandeiras do PROLER foi, desde sua criação, a desescolarização
da leitura e, a partir disso fez da contação de histórias um destaque em sua proposta pedagógica.
Ao valorizar as narrativas orais e literárias, mas tirando-as do suporte livro, recuperando um
contato com a oralidade, começou-se a ter contações de histórias dentro da Biblioteca Nacional,
o que de imediato não foi visto com bons olhos, pois muitos associavam a biblioteca como um
lugar da Academia Brasileira de Letras e não um lugar para se ter aquilo que não sabiam bem
o que era, como recorda Francisco Gregório Filho. Uma das principais ações do programa foi
investir em cursos formativos para novos contadores de histórias. O programa entendia que:
Para se erradicar a ausência do hábito de ler, não basta colocar o sujeito diante
do livro. Essa mudança se processa de maneira muito mais complexa.
Caminha por questões relacionadas tanto ao campo afetivo quanto às questões
de ordem política. Transita pelo universo da interdisciplinaridade, indo da
pedagogia à sociologia, da linguística à psicologia, passando pelas letras,
comunicação e diversas áreas das ciências humanas. Atento a essas questões,
o Proler foi pensado para ser um programa de estímulo à leitura que não se
limitasse à criação de bibliotecas e à distribuição de livros. Implantou uma
nova visão sobre a leitura e voltou suas ações para a capacitação de recursos
humanos, formando uma rede nacional de mediadores de leitura. (COELHO,
2011, p. 11 e 12)
27
Coelho expõe ainda que quando da sua criação, Affonso Romano de Sant’Anna conta
como foi difícil desenvolver um trabalho como esse dentro da Biblioteca Nacional, em que os
funcionários estavam unicamente preocupados com o acervo, que não compreendiam como era
possível formar leitores e mais, não compreendiam que a leitura não estava restrita ao livro,
pois o PROLER sempre levantou a bandeira da leitura de mundo. De acordo com Coelho
(2011), depois da criação do programa no Rio de Janeiro, houve uma expansão de ações em
todas as regiões do Brasil e, em 4 anos de funcionamento, o PROLER já havia criado 40 comitês
interinstitucionais, atuando em 18 estados brasileiros. Sua concepção teórica fugia de conceitos
tradicionais de leitura, baseavam-se na ideia de Paulo Freire de que "a leitura do mundo deve
preceder a leitura da palavra" afim de provocar uma ampliação do olhar enquanto sujeito do
mundo.
João Batista Coelho (2011) ressalta ainda que devido ao orçamento sempre restrito,
foi primordial estabelecer parcerias para o PROLER se expandir. “Importante foram as
participações da Fundação Lesen (Alemanha) e da Fundação van Leer (Holanda) e as parcerias
estabelecidas com o FNDE, CAPES, CNPq, Finep, FAPERJ, prefeituras, Petrobras, SESI e
SESC, entre outros.” (COELHO, 2011, p.49). O que resultou também em um maior alcance de
suas ações, ampliando a ideia da contação de histórias, com a participação de outras instituições
que promoveram ações muito importantes nessa área, como o SESC e o SESI. Para Francisco
Gregório Filho, primeiro coordenador do PROLER Nacional, já havia algumas pessoas que
pensavam a contação de histórias no Brasil, mas foi a partir das ações do PROLER que algumas
coisas se amplificaram, como uma maior presença do contador de histórias no meio urbano.
Nesse pensar das formas de ampliação da formação de leitores não apenas literários,
mas de mundo, foram, nas últimas décadas, surgindo muitos eventos que priorizam essa ideia,
sendo um deles o ECOH. No Diário de Londrina, de 21 de outubro de 2011, durante o 1º
Encontro de Contadores de Histórias, a coordenadora do Encontro, Claudia Silva expõe que “o
ser humano é narrativo por natureza. Ele sempre quer contar e ouvir histórias, reais ou
inventadas. [...] Contar histórias é o primeiro passo na formação do leitor. Nossa preocupação
a médio e longo prazo é formar leitores e de todas as maneiras possíveis, que vão além de uma
biblioteca equipada”. Silva que antes da criação do ECOH já desenvolvia um trabalho nas
bibliotecas de Londrina, coloca desde a 1ª edição do Encontro, essa preocupação de que a
formação leitora da criança não pode se restringir às paredes das bibliotecas e, mesmo essas
podendo assumir uma grande importância nesse sentido, a biblioteca por si só não forma
leitores.
28
Para adentrar o tópico seguinte sobre quem é esse contador de histórias, recordo-me
da história O alfaiate desatento, recontado dessa forma por Regina Machado (2005, p. 25-29):
Era uma vez, a menos de mil quilômetros daqui, um alfaiate viúvo que vivia com a
filha pequena. Apesar de ser um ótimo artesão, era uma pessoa que não prestava atenção em
algumas coisas. Assim, costumava sair à rua com a mesma roupa velha, todas esfarrapadas,
que usava o dia in-teiro dentro de casa.
As pessoas comentavam: “Um homem que anda tão mal vestido não pode ser um
profissional competente. Esse alfaiate não deve ser bom”.
Os comentários se espalhavam, e ninguém mais encomendava roupas para o alfaiate,
que foi ficando pobre. Um dia, sua filha disse: “Pai, não temos quase nada para comer. O
senhor precisa fazer alguma coisa, senão vamos morrer de fome”.
O alfaiate foi até o sótão da casa, onde fazia muito tempo guardava coisas que
considerava sem utilidade. Ao remexer nas pilhas empoeiradas, descobriu que entre elas havia
objetos de valor. Ele nem se lembrava mais quando os tinha posto ali, nem por quê. Juntou
uma porção desses objetos num carrinho e foi vendê-los no mercado da cidade. Com o dinheiro
que recebeu, comprou comidas deliciosas para ele e para sua filha.
No caminho de volta para casa ele viu, pendurado na porta de uma tenda, um tecido
magnífico, como nunca tinha visto. Era inteiro bordado com fios de todas as cores do arco-
íris, formando várias figuras distintas. Nele também havia padrões ornamentais com fios de
ouro e prata entrelaçados que brilhavam à luz do sol. O alfaiate, maravilhado, resolveu
comprar aquele tecido com o dinheiro que havia sobrado.
Assim que chegou em casa, esticou o tecido sobre a mesa, pensou um pouco, e depois
cortou e costurou um belíssimo manto que quase arrastava no chão
Quando saiu à rua com aquele manto, as pessoas o rodearam e perguntaram:
– Onde foi que você comprou este manto? No Oriente, na ilha de Java?
– Não – respondeu o alfaiate. – Eu mesmo o fiz.
– Então, nós também queremos um manto lindo como este.
E foram levar tecidos para ele, formando uma fila à porta de sua casa. Eram tantas
pessoas, e tantos mantos ele fez, que acabou ficando rico.
Mas ele era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas. Ele não tirava
seu manto: costurava com ele, fazia comida, cuidava do jardim.
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Passou-se muito, muito tempo. O manto ficou velho e estragado. As pessoas, vendo-o
tão mal vestido na rua, começaram a achar que ele não devia ser um bom profissional. E
deixaram de fazer encomendas. E ele ficou pobre outra vez.
Certo dia, não tendo nada para fazer, o alfaiate ficou observando o manto e descobriu
que ainda havia um pedaço do tecido que não estava estragado. Pôs o manto sobre a mesa,
cortou as partes rasgadas, desmanchou as costuras, pensou um pouco e fez um lindo casaco,
com uma gola enorme.
Quando saiu com o casaco, as pessoas queriam saber:
– Onde foi que você comprou este casaco? Na Austrália, no Polo Norte?
– Não, eu mesmo o fiz.
E foram tantas encomendas de casacos, que o alfaiate ficou rico outra vez.
Mas continuava sendo aquele homem que não prestava atenção em algumas coisas. A
qualquer tipo de comemoração – casamento, batizado, enterro, festa de aniversário - lá ia ele
com o casaco.
Passou-se muito, muito tempo. E o casaco ficou todo esburacado, cheio de manchas.
Ninguém mais fazia encomendas. Ele ficou pobre.
Percebendo que o casaco ainda tinha um pedaço bom de tecido, o alfaiate o
desmanchou e fez um colete tão lindo que todos na rua lhe perguntavam:
– Onde foi que você comprou este colete? No Afeganistão? Na Terra do Fogo?
– Não, eu mesmo o fiz.
E com tantas encomendas de coletes, o alfaiate ficou rico. Mas, não sei se já lhes
contei, ele era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas. Não tirava o colete
para nada, nem mesmo para tomar banho.
Passou-se muito, muito tempo. E o colete ficou em petição de miséria. Pobre mais uma
vez, o alfaiate aproveitou o pequeno pedaço de tecido do colete que ainda estava perfeito e
sabem o que ele fez? Uma gravata-borboleta. Mas não era uma gravata qualquer. Era tão
linda e brilhava tanto, que todos queriam gravatas como aquela.
Depois de muito trabalhar, ele acabou ficando rico. E não deixava de ser aquela
pessoa que Não P… A… em A … Coisas7. Nem para dormir ele tirava a gravata.
7
Na versão transcrita da história, sendo essa uma história de repetição, aparece apenas as iniciais das
palavras quando da utilização de frases que já apareceram antes. Aqui percebe-se a presença do fator lúdico na
contação de histórias, ao propor uma interação com o ouvinte/leitor atento para que continue sozinho a frase. Essa
questão da presença do lúdico na contação de histórias será abordada mais para frente.
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Ao fim dessa história, Regina Machado escreve que fica a critério da imaginação de
cada um, no que aquele pedaço minúsculo de tecido se transformou. No entanto, quando ouvi
essa história na voz de outra contadora, ela disse que o que tinha sobrado foi só um fio. O fio
da história que tinha em mãos, que lhe permitia estar ali contando-a.
31
Antes de dar início ao trabalho, o tecelão deve tocar cada peça do tear
pronunciando palavras ou ladainhas correspondentes às forças da vida que elas
encarnam. O vaivém dos pés, que sobem e descem para acionar os pedais,
lembra o ritmo original da Palavra criadora, ligado ao dualismo de todas as
coisas e à lei dos ciclos. (AMADOU HAMPÂTÉ BÂ)
Existe um fio infinito ao redor de todo o mundo. Esse fio não é inteiro do mesmo
material e nem da mesma cor, não tem início, nem fim. Aqueles que o enxergam, por vezes
pegam um pedaço para si e o tecem e a essas tecelagens vão se dando a forma de textos. Para
Ong: ““Texto”, cuja raiz significa “tecer”, é, em termos absolutos, mais compatível
etimologicamente com a enunciação oral [...]. O discurso oral tem sido geralmente considerado
em ambientes orais como tecer ou alinhavar” (1998, p. 22). A relação entre histórias e a urdidura
não é algo recente e nem relacionada a apenas uma localidade. Muito comum dentre as
narradoras do passado era essa narração ganhar voz no momento em que elas estavam tecendo
ou costurando. Justamente por ser um trabalho exaustivo e repetitivo, ocupavam a memória e a
voz ao mesmo tempo que as mãos. Dentro do universo das histórias narradas, temos a
personagem arquetípica europeia Mamãe Gansa, que ficou associada à mulher que fiava um
fio, ao pé do fogo, enquanto contava histórias. Não é à toa que Charles Perrault utilizou-se dessa
personagem para ser o título de seu livro “Contos da Mamãe Gansa”, lançado em 1697, na
França, colocado muitas vezes como o primeiro livro de contos de fadas lançado pensado para
um público infantil8. Assim como a aranha Anansi, um personagem de cultura africana, que
segundo contam, se torna detentor do baú que contém todas as histórias do mundo e, como
aranha, ele tece todas as teias de todas as histórias que até hoje existem. Esse fio infinito já foi
avistado diversas vezes, por diversos olhos e já esteve presente em muitas narrativas, desde o
fio de Ariadne que ajuda Teseu a vencer o Minotauro ao fio tecido e destecido de Penélope na
espera que seu amado Ulisses retornasse da Guerra de Tróia.
O narrador tradicional, assim como o contador urbano é aquele que não apenas tece
esse fio, mas que ao tecer o transforma em diferentes tecidos-histórias. É aquele que sabe
conduzir o fio poético do texto até o ponto a ser costurado em seu ouvinte. E ele só atinge isso
8
Perrault foi um escritor dentre muitas escritoras de sua época. Para começo, antes de Perrault podemos
citar a obra O conto dos Contos – Pentameron ou o Entretenimento dos pequeninos, de Giambattista Basile,
publicado na Itália, em 1634, dois anos após a morte do autor. E ainda, há nas últimas décadas pesquisas sendo
feitas sobre autoria feminina dos contos de fadas, que devido ao machismo estrutural caíram no esquecimento,
mas existindo uma vasta produção nesse sentido. De acordo com Ventura e Leslie, entre 1690 e 1715 foram
lançados, na França, 114 contos de fadas, em livros escritos individual ou coletivamente. E dentre esses 114, 74
foram escritos por mulheres que se reuniam em um grupo pejorativamente chamado à época de As Preciosas.
32
na execução de sua performance, pois como ressalta Zumthor (2010, p. 55-56) “o conto para
aquele que narra (como a canção para aquele que a canta), constitui a realização simbólica de
um desejo; a identidade virtual, que na experiência da palavra se estabelece entre o narrador, o
herói e o ouvinte, cria, segundo a lógica do sonho, uma fantasmagoria libertadora”. E essa
liberdade é sentida no ponto costurado do ouvinte, naquele lugar e naquele momento. Assim,
temos aqui os elementos que compõe a performance, o lugar: o aqui, o tempo: o agora, as
pessoas envolvidas: o contador e o público e a mensagem poética: a história contada. Isso
porque de acordo com Ong (1998) a narrativa oral é resultado da interação entre o contador de
histórias, o público presente e as recordações da experiência que o contador possui, conquistada
por meio das narrativas ouvidas em sua trajetória.
Ao entender a experiência como um conhecimento que é acumulado, que já está
sedimentado e é repassado para as gerações posteriores, é possível dizer que há poucos lugares
no mundo em que no século XXI é percebida essa experiência em uma escala maior, ou seja,
grupos que vivem em comunidades de oralidade primária. Os griots africanos, as lideranças
indígenas ou narradores em comunidades pelo interior do Brasil e mundo a fora, assumem um
papel muito importante em suas comunidades: o papel do narrador de histórias. Estas
comunidades veem o narrador como o detentor do conhecimento, da autoridade ou da sabedoria
que são passadas oralmente de geração em geração. É por meio delas que o conhecimento chega
até as pessoas. É a pessoa que tem a função de narrar as histórias que assume a importância de
manter viva a experiência e o elo com a tradição.
Para Benjamin (1987, p. 198), “a experiência que passa de pessoa a pessoa deve ser a
fonte a que todos os narradores devem recorrer”, isto porque “o narrador retira da experiência
o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos seus ouvintes” (1987, p. 201). Benjamin expõe que essa narração de
histórias está em vias de extinção, mas talvez seja justamente pelo entendimento da falência da
experiência que esteja existindo um retorno, de maneira leve, mas gradual, da presença do
contador de histórias no meio urbano. Essa presença se faz hoje bastante necessária, em um
mundo em que a palavra oral e a experiência vêm perdendo seu valor. Essa presença surge para
que haja um processo de retomada da humanidade, em que o fazer individual não se sobressaia
sempre ao fazer coletivo.
A fala de Benjamin não se caracteriza como uma mensagem saudosista pela figura do
narrador, mas ele traz um alerta para a perda dessa experiência de vida tradicional e o que isso
acarreta no presente, pois a não compreensão da experiência faz com que ciclos sejam mantidos
e a experiência opressiva do passado, revivida. O contador urbano tem uma preocupação com
33
a forma, no entanto ele se vale dessa experiência tradicional do narrador em sua prática e traça
um paralelo dessa experiência com as exigências da contemporaneidade. Contar histórias é,
então, o tecer do fio que nos preserva desse esquecimento e, consequentemente desse ciclo
histórico destrutivo.
Quando se conta uma história, se mantém um elo com a tradição e a ancestralidade, o
tempo e o espaço são evocados. A história vinda da oralidade é uma prática que recorrentemente
está vinculada à memória, a oralidade por si só é um manancial de memória coletiva. O tempo
do contador de histórias é o tempo da memória. O era uma vez presente em toda narrativa,
explícita ou implicitamente, é um propulsor da memória. Nessas palavras há a presença de um
deslocamento espaço-tempo, assim o ouvinte da história pode conservar dentro de si a
experiência acumulada do contador de histórias, que foi repassada naquela contação e a partir
dela pensar o seu lugar, no seu local e momento de vida. Nesse sentido, de acordo com Yohana
Ciotti (2017, p. 103):
Para Benjamin (1987, p. 205), “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo,
e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais
fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais
profundamente se grava nele o que é ouvido”. Isso desencadeia a impressão de que quando se
perde a própria história, perde-se também a identidade cultural e a memória. E já aqui Benjamin
coloca a importância do tecer e do ouvir como matérias interligadas, o cruzamento entre o fio
da linha e o fio da história.
Então, se o número de narradores de histórias tradicionais tem diminuído, gerando uma
falência da experiência, como expõe Benjamin, trato aqui sobre esse retorno do contador de
histórias. O qual se apresenta não mais como um tradicionalista, mas um novo contador de
histórias, dentro de um ambiente urbano, que com uma linguagem contemporânea pode vir a
propiciar um olhar para essa experiência tradicional. Isto porque a narrativa poética hoje liga
as complexidades da tradição com as complexidades do contexto urbano contemporâneo,
ressignificando-as. Para Giuliano Tierno (2017, p. 20-21), contador de histórias e coordenador
da pós-graduação em narração artística d’A Casa Tombada, em São Paulo, o contador de
histórias:
34
Um novo condenado chegou ao presídio. Ele não conhecia os hábitos do lugar e nada
sabia de seus colegas presidiários. Num determinado horário, todos foram conduzidos a um
auditório. Pareceu-lhe que algo muito interessante iria acontecer, pois todos aguardavam
35
ansiosos por esse momento. Lá chegando, os prisioneiros subiam ao palco, um a um, e disseram
um número. Os demais riam às gargalhadas.
O novo prisioneiro aproximou-se de um colega que lhe parecia mais aberto ao contato
e perguntou-lhe o que significava tudo aquilo. O outro respondeu:
- No presídio temos uma biblioteca, mas na biblioteca só há um único livro: de piadas.
As piadas são numeradas e todos já decoramos o livro, pois é o único que temos para ler.
Então, em vez de contarmos a piada toda, dizemos apenas o número que lhe corresponde. Se a
piada correspondente ao número é boa, todos rimos muito.
O novo presidiário, que deveria passar um bom tempo de sua vida naquele lugar,
decidiu enturmar-se logo. Foi à biblioteca, retirou o livro e começou a decorá-lo. Sentindo-se
pronto, inscreveu-se para subir ao palco. Lá chegando, disse “345”, mas ninguém riu. Ele
desceu envergonhado do palco, foi ter com seu novo amigo e lhe perguntou:
- Mas por que não riram se a piada é tão boa?
- O problema não é a piada, é o jeito de contá-la.
Contar não é só repetir uma história. É dar vida a ela, dar uma forma. É saber ordenar
as vivências e experiências, transformando o contado em sentido. Por isso para bem contar uma
história, ela necessita ter sentido para o contador, ninguém conseguirá tocar o outro, se antes
não tiver sido tocado. Na 9ª edição do ECOH, ocorrida em março de 2020, a contadora de
histórias Kiara Terra, contou em sua apresentação O lugar-casa e outros mares azuis, histórias
que misturam a sua vida pessoal, contos que ouviu oralmente e o livro Quarto de Despejo, de
Carolina Maria de Jesus. Com 22 anos de experiência como contadora de histórias, Kiara Terra
é hoje um dos principais nomes da contação de histórias profissional no Brasil, tendo obtido
reconhecimento na área e bom retorno financeiro por meio do seu trabalho. Já esteve presente
em seis, das nove edições presenciais do festival. Em sua apresentação há um misto de trajetória
pessoal, histórias tradicionais e literárias. Há a presença, de maneira suave e gradativa, de uma
preocupação com temas sociais e políticos da contemporaneidade. Em entrevista, Kiara Terra
(2020) expõe que:
[...] Eu acho que a gente deixou de falar muito porque achava que estava jogo
ganho, sabe? É muito triste perceber que porque a gente não ter dito certas
coisas, de não ter insistido, de não fazer um trabalho de formação de base, a
gente chegou nesse lugar em que a gente tá. Muito duro. Então agora não dá
mais para não falar, não dá mais para deixar para depois, não dá mais para
achar que tem outras prioridades. A prioridade é sim falar das coisas mais
abertas possíveis.
36
Aqui é possível perceber o valor político que o contar histórias também recebe, na
oficina Paixão pela Palavra, ministrada pela contadora nesta mesma edição, ela tratou sobre as
maneiras excludentes de criação de meninos e meninas, violência contra mulher, o resultado
das últimas eleições presidenciais, a política atual brasileira e métodos positivistas ainda
presentes no ambiente escolar, que não permitem a existência de novas formas de aprendizagem
se não a lógica cartesiana. A contadora foi expondo esses assuntos aos poucos dentro das
histórias contadas. Assim, ela provoca inicialmente o riso, o que vai ganhando a atenção do
público, formado majoritariamente por professoras e professores da rede municipal de Londrina
e, gradativamente, vai trazendo as reflexões que deseja expor dentro de um ambiente já
abraçado pelo afeto.
Kiara Terra utiliza-se de uma linguagem particular para contar histórias, o que ela
chama de História aberta, a contadora vai fazendo perguntas para o público e vai conduzindo
sua apresentação a partir das respostas obtidas. No início de sua contação, no 9º ECOH, ela
conseguiu despertar muitas risadas do público, formado por pessoas de todas as idades,
conforme pode ser observado na figura 1.
não choram”, o que vai enclausurando os meninos, que são impedidos de falar de sentimentos,
que vivem uma vida com medo de se exporem, o que faz com que na fase adulta, de cada 10
lares no Brasil, 8 são sustentados apenas pela mulher, sem a presença de um pai e ainda como
acabam morrendo 30 anos antes do que as mulheres, por guardarem tudo dentro de si. Essas
reflexões são falas dela e ocorrem durante a apresentação.
Em meios às suas falas que se mesclam às histórias, foi possível ver no público essa
transformação da densidade do fio narrativo, que culminou em alguns, uma mudança da risada
ao choro. No final da apresentação um menino de já seus 16 anos, levantou chorando e foi
abraçar seu pai. Ficou alguns minutos dentro daquele abraço, até passar o choro. Algo foi
despertado nele. E nesse sentido foi possível ver as diversas maneiras do afetar presentes na
performance da contação de histórias.
O contador de histórias é essa figura. Ele tem um fio e consegue ver o que esse fio já
foi e no que esse fio ainda pode se transformar. Ele toca, ele afeta e o público se deixa afetar
porque antes o contador foi também afetado e soube preparar esse cenário. Entre os
entrevistados do ECOH, surgiu a ideia de afeto como esse impactar e a importância de
proporcionar momentos de afetividade. Nesse sentido, para Luís Henrique Silva (2020) “é essa
marca que o ECOH deixa na cidade, tanto na cidade de Londrina como por onde passa, é isso.
É perceptível como as pessoas gostam, elas participam, nas escolas, o trabalho dos educadores,
as oficinas. Como todos são afetados pelo projeto, por essa ideia bacana do ECOH”. Já para
Josiane Geroldi (2020), no ECOH:
[...] A gente vai criando não é uma rede profissional, mas o mais bonito da
arte é que você vai criando redes de afeto. Tem hora que você nem quer saber
qual é o trabalho, você quer voltar para encontrar. Você quer saber qual é o
trabalho, mas é naquele sentido não importa o que seja, estamos juntos,
estamos chegando aí e vamos fazer o que tiver que fazer.
[...] O cenário não é só o objeto que eu trago, mas o cenário passa a ser o
coletivo, quando eles fazem o mar, eles viram a paisagem. E o objeto é um
39
conector de perguntas, é algo que faz com que o seu repertório venha à tona.
Quando eu pergunto pra você o que é isso aqui, automaticamente eu ativei
todo o seu repertório a respeito e você quando me traz o seu repertório,
automaticamente, a gente se conectou. É um conector de possibilidades e vem
muito da performance. E se a gente pode ressignificar uma coisa concreta,
cotidiana, pode ressignificar tudo, pode olhar com outros olhos tudo. Então o
objeto é muito importante nesse sentido de ser conector. O objeto nunca é, “oi
eu sou essa peneira”, como um fantoche. Não, é esse objeto do jogo aberto
assim.
Após a leitura, Claudia pergunta aos participantes da mesa suas opiniões sobre a
resposta, assim Gislayne Matos (2020) complementa que:
Ao tecer tantos fios, um liga-se ao outro, um começa a fazer parte do outro e ao se ter
um tecido inteiro muitas vidas foram entrelaçadas. As histórias que nos afetam continuam a
borbulhar no corpo até muito tempo depois de tê-las escutado, nos acompanham e em
momentos oportunos entram em ebulição para nunca deixar que esqueçamos da necessidade de
humanidade.
9
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TPvJ_XBwBEw
10
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ooBaxXLT--0&t=4811s
41
Houve certa vez no Egito, um rei chamado Thanus. Certo dia o deus Theut veio até
ele. Theut era o divino inventor, responsável pelo cálculo, a astronomia, a astrologia e até pelo
jogo de dados. Mas agora ele acabara de criar a sua mais gloriosa obra: “contempla meu
invento, Thanus”, clamou ele. “É um método que aguçará sua memória, chama-se escrita. O
que você acha?” Thanus considerou a nova tecnologia por um tempo. Até que finalmente
respondeu: “Superestima a tua própria criação, Theut. Na realidade ela há de ter um efeito
oposto ao que tu pretendes. Se o povo do Egito vier a usar a escrita, terá a sua memória
debilitada e não fortalecida. Ninguém mais recordará das coisas, chamando-as de dentro de
si mesmos, mas só através das marcas externas. Tu não inventastes uma receita para a
memória, apenas uma técnica de lembrete.”
Theut acabou ganhando a discussão, é claro, e o mundo inteiro adotou seu engenhoso
método. Mas Thanus tinha razão e sua profecia realizou-se. Quanto mais fascinados ficamos
com as “marcas externas” – seja a palavra impressa ou microcircuitosa com informações –
menos nós recordaremos as coisas chamando-as de dentro de nós mesmos.
Essa é uma história que Platão atribuiu a Sócrates, tendo ele contado a Fedro, essa
versão é recontada pelo contador de histórias canadense Dan Yashinsky (1985), num artigo de
jornal intitulado Isto me lembra uma história. Nosso pensamento hoje se dá a partir da escrita,
quando pensamos nas palavras, nós a visualizamos, prova disso é quando surge uma dúvida
ortográfica, nós escrevemos a palavra para ver como fica melhor aos olhos. Thanus, nessa
história não só tinha razão sobre a memória ficar debilitada com a escrita, como a escrita foi
muito além. O escrito ganhou um peso muito maior do que o oral. Hoje, a garantia da validade
de uma palavra é se ela foi escrita e assinada. O oral passou a ser visto como de menor
importância ou autenticidade. Assim, a oralidade ficou associada ao popular e a escrita ao
erudito e as narrativas orais foram minimizadas às sociedades que não tem conhecimento
alfabético. De acordo com Havelock (1996), os primeiros indícios da escrita estão localizados
em 4000 anos a. C., na Mesopotâmia. O alfabeto, tal qual utilizamos hoje, teve sua origem por
volta de 700 a. C., na Grécia. E mesmo diante dessa invenção, podemos voltar poucas décadas
para estarmos em um período em que o conhecimento tinha seu espaço maior na oralidade do
que na escrita, visto que por muitos anos o uso da escrita ficou centrada apenas numa elite.
Quando da descoberta que Ilíada e Odisseia, os grandes clássicos da literatura ocidental, tiveram
sua criação pela palavra oral, para só mais tarde serem transcritos, houve quem quis provar o
42
contrário, como se algo só tivesse valor pelo registro da escrita, como se o pensamento escrito
fosse superior ao pensamento oral.
Mesmo sendo a oralidade a raiz da verbalização, para Ong (1998, p. 16-17) “o estudo
científico e literário da linguagem e da literatura, durante séculos e até épocas muito recentes,
rejeitou a oralidade. Os textos exigiram atenção de um modo tão ditatorial que as criações orais
tenderam a ser consideradas variantes das produções escritas”. Isso pode ser perceptível
também nas fontes dos repertórios contados pelos contadores de histórias. Muitas das histórias,
mesmo tendo sua raiz na oralidade, chegam, em sua maioria, pelo livro. São diversos hoje os
livros com contos coletados de todos os lugares do mundo e são esses muitas vezes o local onde
o contador de histórias irá buscar seu repertório. Dentre os contadores de histórias participantes
e entrevistados do ECOH, Josiane Geroldi e Yohana Ciotti, disseram terem ouvido elas próprias
algumas das histórias contadas. Geroldi tem algumas das histórias que fazem parte de seu
repertório criadas a partir de um trabalho de escuta em uma comunidade de caboclos de sua
cidade, Chapecó/SC. Essa escuta de histórias resultou em alguns trabalhos, como o espetáculo
Foi coisa de Saci, que circulou pelo ECOH itinerante em 2019 e já apresentado também no
ECOH de Londrina. Já Ciotti tem um trabalho junto à Casa Tombada, situada no bairro de
Perdizes, em São Paulo, em que ela junto com Giuliano Tierno e Letícia Liesenfeld, que
também estiveram presentes no 9º ECOH, além de outros parceiros da Casa Tombada, fizeram
um trabalho de coleta de histórias sobre o bairro em que estão situados e junto com alguma
histórias pessoais e familiares resultou no trabalho que apresentaram nessa edição do festival.
Pensando nessa ideia da história escutada no encontro, de maneira oral, mas que
chegou ao repertório do contador a partir de um livro impresso, entra o conceito do que Ong
chama de cultura oral secundária, que seria a “atual cultura de alta tecnologia, na qual uma nova
oralidade é alimentada pelo telefone, pelo rádio, pela televisão ou por outros dispositivos
eletrônicos, cuja existência e funcionamento dependem da escrita e da impressão” (1998, p.19)
Assim, o narrador tradicional está inserido numa ideia de cultura oral primária,
enquanto que o contador urbano pertence à cultura de oralidade secundária. Quando Benjamin
escreve sobre o narrador que está deixando de existir, ele refere-se a um narrador tradicional,
considerado o sábio da comunidade:
Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar
conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos,
como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que
não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência
alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por
ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira.
43
O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir
completamente a mecha de sua vida. (Benjamin, 1987, p. 221)
O narrador da comunidade oral vive uma relação diferente com as histórias do que o
contador urbano. Ao pensar nas contribuições de Jean-Nöel Pelen (2001), com seu estudo sobre
o Etnotexto, a narrativa que está sendo direcionada para a comunidade que está sendo narrada,
é possível afirmar que o narrador da comunidade mantém essa relação, ele conhece sua
comunidade, conhece a ancestralidade daquele povo, que é também o seu povo. O narrador vive
aquela história, nela está presente uma relação de identidade, de autoconhecimento, de
encantamento. Ele sabe o que cada um precisa ouvir, pois os conhece e faz parte de suas vidas.
Nesse sentido, recordo-me de uma pequena história contada por Dan Yashinsky (apud
MACHADO, 2015, p. 57):
Uma vez um antropólogo chegou numa tribo africana no mesmo dia em que
uma televisão foi levada para aquele lugar. Todos os habitantes de aldeia
passaram três dias em volta do aparelho, assistindo a todos os programas com
grande interesse. Depois, abandonaram a televisão e não quiseram mais saber
dela. O antropólogo perguntou-lhes se não iam mais assistir aos programas.
- “Não” – disse um deles -, “preferimos o nosso contador de histórias.”
- “Mas a TV” – retrucou o antropólogo – “não conhece muito mais histórias
do que ele?”
- “Pode ser” – respondeu o homem -, “mas meu contador de histórias me
conhece.”
Essa relação não se dá com o contador urbano que viaja de cidade a cidade para realizar
o seu trabalho, sem ter um vínculo com a comunidade para qual está apresentando seu trabalho
artístico. Mesmo o narrador viajante, ao qual Benjamin se refere, viaja para depois contar para
sua própria comunidade as histórias da viagem.
O artista tem, de acordo com Byung-Chul Han (2019), uma fome, uma necessidade de
nutrir-se do mundo. Sua arte vem da relação que ele estabelece com o mundo. O prazer que ele
sente não está apenas no comer, mas no sentir fome, ou seja, no incômodo para criar essa arte
e não somente no resultado já finalizado. O artista assume hoje muitos papeis, o contador de
histórias procura a história, a prepara, ensaia, apresenta, mas também ele pesquisa, se produz,
lida com edital, com burocracia. Ele precisa se fazer visível. E a fome é esse incômodo de estar
nesse lugar da preparação, do durante, do como encontrar esse alimento para ter subsídios para
chegar ao resultado pronto, o estar saciado. Dessa forma, o contador de histórias urbano está
num lugar diferente do narrador da comunidade oral, apesar de ambos serem iguais no
pensamento da manutenção da necessidade de contar e escutar. Há um vínculo que une o
44
contador e o narrador. Talvez a principal diferença está no fato do contador urbano ter uma
consciência performática e artística do seu ofício, enquanto o narrador narra porque entende
que é necessário narrar. Isto porque, na comunidade narrativa a arte não se desvincula da vida,
uma está ligada à outra, não se nomeiam artistas propriamente porque para eles, vida é arte. É
uma relação oposta à nossa, em que nossa concepção de arte não está atrelada à concepção de
vida. Em nosso contexto, infelizmente, ocorre inclusive o oposto, comum é ouvirmos dizeres
em desprestígio à arte. Muito embora esteja cada vez mais visível que o ser humano necessita
da arte, da poética, para respirar e ser abraçado diante do aprisionamento comum do cotidiano.
No artigo “Ensaio com a praça pública ou Sobre o conto nas cidades complexas”, de
Giuliano Tierno, ele expõe a fala de uma contadora de histórias alemã que conheceu em um
seminário em São Paulo: “Julia relatou que os alemães voltaram a contar histórias somente a
partir de meados da década de 1980. Isso porque a contação de histórias esteve associada desde
o final do nazismo à ideia de eloquência, persuasão e manipulação retóricas presentes nos
Estados totalitários.” (TIERNO, 2017, p. 22). O narrador e o contador urbano mantêm uma
relação diferente com a comunidade enquanto origem, identidade e espelhamento, entretanto
suas relações com a palavra oral fazem com que esses conceitos se misturem, sendo possível
ver resquícios desse narrador oral no contador urbano, como o olhar para experiência, o
entendimento de manter a palavra oral viva e a compreensão da força poética e afetiva que ela
possui.
Muitos são os motivos apontados para esse retorno do contador de histórias, não como
sábio detentor da tradição, mas como um artista urbano. Seja por ter tido muitos revisitamentos
às histórias de tradição oral, com coletas e estudos, seja pelo surgimento de leis e programas de
incentivo à leitura, tal qual o PROLER, ou pelo pensamento do artista em novas formas de se
narrar uma história, além do teatro tradicional ou mesmo por questões financeiras, em que se
torna mais fácil circular com um espetáculo de maneira solo ou com menos pessoas.
Benjamin coloca que a experiência é a fonte de onde bebem os narradores e isso se
mantém hoje, mesmo com os contadores urbanos. O contador de histórias continua tecendo esse
fio ancestral. Ele não é filho da tradição, mas recorre às narrativas e aos mitos no seu contar e
como a palavra é viva, a isso vai se mesclando novas narrativas, de acordo com as demandas
do presente. Assim, por mais que tenha no foco de sua ação a divulgação da palavra oral, ele é
um artista buscando o seu alimento. Sobre essa tradição oral ser viva, em entrevista com Kiara
Terra (2020), ela aponta:
45
[...] Porque tem uma gente com uma linha de “ai, você mudou a história”, tem
que respeitar a tradição oral, aí você conta aquela história em que um autor
branco, homem, que foi lá no sertão pegar a história da pessoa e escreveu
numa linguagem USP, aprovou e tá ganhando grana com isso, sabe? Aí você
vai respeitar esse autor, mandar todo mundo ficar quieto e respeitar essa
sabedoria oral. Aqui oh. Então chama a mulher do sertão, pra ela eu me calo,
mas aí eu não preciso contar a história dela, ela conta. A tradição não quer ser
respeitada, ela quer ser beijada na boca. Ela quer fazer sentido, quer chegar
nas pessoas. As histórias carregam urgências. E o ambiente urbano é cheio de
urgências, só são outras urgências, porque ele é inconciliável, o capitalismo é
inconciliável, viver na cidade é inconciliável.
Nesta fala, Terra expõe a questão dos estudos já realizados, com coletas de narrativas
por folcloristas que foram até as comunidades orais e transcreveram as versões ouvidas, fazendo
circular essas histórias pelo Brasil, por meio dos livros. Livros estes encarados como o
patrimônio oral do Brasil que deve ser respeitado e seguido. Não que não façam parte desse
patrimônio, muitas dessas histórias estão nas bocas dos contadores de histórias, e o fazem muito
bem. A questão que a contadora traz é que essas narrativas são uma versão desse patrimônio
imaterial. E, muitas vezes, uma versão influenciada pelo local de fala de quem a registrou. Ao
pensar sobre essa visão de mundo que aquele que escreve carrega e de como isso se sobressai
nessa desoralização do texto, pode-se pensar nos irmãos Grimm, que bastante divulgadores do
Cristianismo e de um pensamento nas raízes alemãs, modificaram alguns elementos dos contos
de fadas que acharam que melhor se adequariam a esses valores. Como no caso da utilização
da madrasta má em oposição a mãe boa e carinhosa. Na primeira versão dos contos de fadas
dos Grimm, em 1812, ainda não há a presença da madrasta em algumas histórias. É a mãe de
Branca de Neve que lhe dá a maçã envenenada. Os contos publicados na última versão de 1857
são, no entanto, modificados pelos irmãos Grimm, expondo os valores que eles consideravam
mais adequados e acessíveis às crianças da época. Nesta edição, por exemplo, as mães malvadas
foram modificadas pelas madrastas, pois consideraram que manter uma imagem negativa da
figura da mãe feria a bondade de Nossa Senhora, colocando em seus contos a imagem
maniqueísta, presentes em muitos contos, mesmo de outros escritores e que se mantém até hoje.
Nesse sentido, para Fernandes (2017, p. 68): “Não é possível ignorar nesse fenômeno
de transitoriedades a figura do acadêmico, intérprete do texto poético oral, que contribui
também para constituir transições, ao organizar a ordem dos textos numa cadeia de gêneros ou
tipologias.”. E ressalta ainda (idem):
de entrada para outro lugar, território de uma experiência diversa, que se abre
para um mundo deslocado da prática cotidiana. Nessa perspectiva, a poesia
caracteriza-se, também, como um trânsito para as mudanças de práticas (ou
seus deslocamentos), atitudes, comportamentos, pensamentos engendrados
num processo histórico.
Para além disso, Terra (2020) coloca a importância desse olhar para a performance,
que se subentende o agora, o olhar a narrativa pelo viés sincrônico. Isso porque falar desse texto
oral da tradição, no presente, já é uma atualização.
Muitas das histórias coletadas em uma região apresentam versões semelhantes em
outras localidades, que vão sofrendo alterações de acordo com as necessidades e os aspectos
culturais da cidade. E com essas mudanças em suas transmissões ao longo do tempo, não é
possível saber qual seria a versão original da história, o que também não se faz necessário para
a compreensão da narrativa, pois elas mudam também de acordo com as necessidades de sua
comunidade. Assim para a compreensão de como se deu o desenvolvimento das narrativas e
das comunidades narrativas, o essencial não é procurar “[...] explicar como esta forma original
teria surgido [...]” (LIMA, 1985, p.13), mas o que importa é “o processo de transmissão e o
desenvolvimento evolutivo, o que implica a evidência de que o conto sofre variações à medida
em que é transmitido” (LIMA, 1985, p.13). Não é possível falar em “conto original”. Os contos
são como camaleões que vão se adequando melhor aos relevos, às cores e às geografias afetivas
de cada local por onde passa.
As histórias coletadas dos livros trazem significados mesmo hoje, mas isso também
trazem as versões modificadas com as urgências do mundo contemporâneo. A tradição oral
quer ser valorizada, como aponta Terra, mas não ser colocada em um pedestal de canonização.
A mulher do sertão ao contar histórias, conta a sua história, ela é a narradora do Etnotexto.
Kiara Terra é uma performer urbana que trilhou sua trajetória profissional ao lado das narrativas
e que, com o seu trabalho, com as Histórias abertas ouve as urgências do seu ouvinte e coloca
essas urgências como parte da história que está sendo contada. Ela valoriza a cultura oral ao
perceber o poder que essa palavra exerce no ouvinte de hoje. Em sua performance, concilia uma
relação interativa entre ela, o ouvinte e a mensagem poética. Sua proposta é que a tradição oral
não seja colocada num nível imutável, mas adaptada de acordo com as “inconciliações”, como
ela aponta em sua fala, da contemporaneidade. A partir disso, para a pesquisadora Edil Costa
(2015, p. 37):
Longe de atrapalhar o caminho da tradição oral, as adaptações e novas
linguagens e suportes reforçam o sucesso das boas narrativas no mundo
contemporâneo. [...] As relações intertextuais, no sentido amplo do termo,
47
Ciotti traz nesse pensamento uma questão importante nessa relação do contador urbano
e do narrador tradicional. A presença de uma sabedoria que faz sentido dentro do Etnotexto,
mas que se perde na performance urbana, dentro de uma linguagem artística, em que o contador
não vive aquilo como uma verdade de sua comunidade e que dentro da cidade se ramifica em
diversos caminhos de interpretações.
Ciotti aponta essa ideia de se colocar a arte em um lugar de sabedoria. A arte dentro
da cidade pode provocar afetações e até mesmo trazer conhecimentos, mas aí ter um lugar
enquanto sabedoria é outro passo, que talvez, realmente não se aplique. Essa questão esbarra
no conceito de preservar a experiência de Benjamin, pois se a experiência é originada de uma
sabedoria acumulada e o narrador mantém vivas essas histórias, esse narrador tradicional
assume um papel de sábio. Mas dentro da cidade, que é um lugar marcado pela efervescência e
dispersão, com pessoas vindas de diversos lugares de todos os continentes, essa verdade se
11
Sotigui Kouyaté, de Mali/ Burkina Faso. Membro da linhagem Kouyaté, de djélis griots.
48
perde, pois não há uma verdade universal. O contador urbano traz novos sentidos para essa
experiência tradicional, com adaptações para o hoje, mas sua performance é antes de outra
coisa, uma manifestação artística, e enquanto arte, ela pode provocar, mas não trará uma
verdade, mas sim nos fazer refletir sobre distintas crenças que cada um carrega em sua bagagem
individual. Para Candido (2006), enquanto seu lugar na sociedade, a narrativa oral “comporta
o papel que a obra desempenha no estabelecimento de relações sociais, na satisfação de
necessidades espirituais e materiais, na manutenção ou mudança de uma certa ordem na
sociedade.” (2006, p.54). O que faz sentido para a relação entre narrador e sua comunidade,
mas se perde na cidade, pois não há uma necessidade espiritual e material que será sanada com
a história contada, para todos que a ouvem.
Quando se fala na narrativa oral, Ong (1998) expõe que para nos aproximarmos dessa
narrativa é necessário estudar a voz, perceber o som. O sentido da audição se torna o mais
importante, pois a oralidade atravessa toda forma de conhecimento. Havelock (1996), ao
abordar o papel das musas na Grécia antiga, expõe como lançavam suas belas vozes que
estavam “sempre presentes na consciência dos homens, preenchendo tanto as horas de sono
quanto as de vigília” (p. 172-173). Assim, ao analisar essa poesia oral do contador de histórias,
é necessário também ater-se ao som, a sua voz durante a performance. Ela conduzirá o público
para a compreensão da narrativa que está sendo contada e trilhará caminhos para o afetar-se
individual e coletivo. A voz não é apenas um recurso biológico, ela é discurso, é ideologia, é
movimento, é uma forma de cuidado e não deve ser compreendida separada do corpo. A voz
está presente na gestualidade, ela é um “corpo comunicante”, segundo Zumthor.
Para Ong, “as culturas orais produzem realizações verbais impressionantes e belas, de
alto valor artístico e humano, que já não são sequer possíveis quando a escrita se apodera da
psique. Contudo, sem a escrita, a consciência humana não pode atingir o ápice de suas
potencialidades” (1998, p. 23). A palavra oral é natural, espontânea, uma vez dita não há como
voltar atrás. A escrita é artificial, pensada, apagada e refeita. Nesse sentido, para Matos (2014,
p.158) “compreende-se melhor a cultura escrita a partir dos estudos sobre oralidade. Os
processos de pensamento na cultura escrita não nascem de capacidades meramente naturais,
mas da estruturação dessas capacidades, direta ou indiretamente, pela tecnologia da escrita”.
Mas mesmo as histórias escritas pedem a presença de uma voz.
Sem a existência da escrita, as palavras não são perceptíveis visualmente. Quando se
atem a uma página de um livro, é possível perceber as letras e seus significados, ao se congelar
uma imagem, é possível vê-la com mais detalhes. Mas se um som, uma voz é congelada, ela
não existe mais. Não há como deter ou possuir o som. Quem reina é o silêncio. Para Fernandes
49
(2017, p. 74): “a voz não é um corpo perene, no sentido de que não deixa resíduos materiais no
tempo, como ruínas ou estilhaços do que outrora representaria a materialidade de uma cultura.
Da voz pode resultar apenas uma memória”.
Assim, a narrativa oral só pode ser vivenciada no presente. A voz do contador e do
narrador é uma expansão de seus corpos e é por meio dela que nos é transmitido e significado
o mundo, num acontecimento oral e gestual.
50
Figuras 3 e 4: Sábado em Casa: À volta da Casa – Encontro com Giuliano Tierno, Letícia Liesenfeld e
Yohana Ciotti
Sobre essa mesma linha de pensamento, na 10ª edição do ECOH, na “mesa quadrada”
Coletivo cada um no seu quadrado, citada anteriormente, Alice Cântia ao responder sobre a
missão do contador de histórias, cita uma frase de Maya Angelou: “Não há maior agonia do
que uma história presa dentro de você”. Assim, contar histórias é olhar e escutar as palavras
que gritam para serem lançadas ao vento.
O pensar sobre esses questionamentos vão ao encontro do pensamento sobre o porquê
se contar histórias hoje. O que ocorre entre contador e ouvinte durante a performance é o que
51
faz ser importante manter as narrativas orais vivas, as que já existem e as que passam a existir
no momento da contação. A ideia da contação de histórias ser uma ação que ocorre tanto pela
palavra quanto pelo silêncio pode ser percebida na fala da contadora Josiane Geroldi (2020):
[...] Eu tenho contado muito e tenho sentido que cada vez mais a gente conta
para botar um ponto de suspensão de tempo na vida das pessoas, sabe? Cada
vez que a gente conta histórias, a gente possibilita que todo mundo que tá na
plateia descanse um pouco o pensamento e olhe para si. Toda história tem a
capacidade de fazer com que quem ouve se veja no que está sendo narrado.
De alguma maneira as pessoas se reconhecem ou buscam suas referências
naquilo que está ouvindo. E quando eu conto história para crianças e para
adultos também eu tenho me arrepiado muito com o silêncio, sabe? Às vezes
a gente aposta, a gente pensa que contar de histórias é a arte da palavra, mas
na verdade é muito mais a arte do silêncio, que é quando a gente silencia que
você olha no olho da pessoa e você vê que ela tá continuando a história dentro
dela. Então tem hora que eu penso que contar história é uma grande arte de
produzir silêncios nas pessoas. Quando todo mundo para pra ouvir assim, é
isso que a gente está precisando muito. A gente precisa muito ouvir. E as
pessoas, a gente está tão, parece até uma coisa de senso comum, a gente tá tão
acelerado, mas tá mesmo né. A gente tá muito barulhento. E acho que a
narração tem esse papel nas comunidades todas e em todas as civilizações,
fazer com que as pessoas silenciem.
A essas ideias expostas por Geroldi são atribuídos sentidos numa percepção de
identidade, de olhar para si. Contar uma história para produzir silêncios no ouvinte, para que
este olhe para sua própria história e conte ela para si, para que possa continuá-la dentro da sua
vivência pessoal, num olhar para dentro buscando quantas vezes o silêncio contou sua história
e quantas vezes ela conseguiu ser expressa em palavras. Na visão de Geroldi, a contação pode
proporcionar esse olhar para nós mesmos com mais frequência. É necessário respeitar o tempo
desses afetos, das vivências todas que ocorrem dentro de cada um e que muitas vezes, como diz
a contadora, o barulho que todos produzimos escondem as palavras necessárias de serem ditas.
Nesse sentido, cabe aqui a contribuição de Yohana Ciotti (2020) com sua resposta para essa
pergunta, contar histórias hoje, para quê?
[...] Eu acho que a gente conta histórias para ouvir histórias. Acho que a gente
contou histórias e as pessoas ficaram com vontade de dizer que elas tinham lá
um trechinho, um pedacinho pra dividir com a gente. Então acontece alguma
coisa que as pessoas valorizam suas próprias histórias, que elas passam a olhar
para ela como uma fonte importante para ser mantida, de perpetuação de
coisas. [...] Eu venho bem interessada nessas histórias que não estão nos livros,
então no que é que a gente precisa contar hoje, eu vejo colegas fazendo
narração sobre literaturas maravilhosas, sensacionais, mas que eu não transito
muito bem assim. Então, eu acho que é para contar o que não existe ainda, as
histórias que não existem, e mesmo que elas estejam no livro, a gente conta
52
de outro jeito então elas passam a existir só naquela hora. E também para as
pessoas terem coragem de olharem para as histórias delas e fazerem história
assim.
12
Essa ideia será melhor abordada no item 6 dessa primeira roda de histórias.
53
vai passar. Sabe, tem coisas que a gente passa, é difícil, a gente enfrenta medo,
a gente enfrenta tristezas, a gente tem que ter coragem, a gente tem alegrias.
E a vida tem esses ciclos. E as histórias mostram esses ciclos dentro delas. Por
mais simples que seja, por mais que eu pense no lobo mau e os três porquinhos,
entendeu. Imagina o que é você ter um lobo enorme na sua frente, soprando a
sua casa. Quanto a casa significa pra gente? Desde ser um local, que se chover
você tem, que está te abrigando. Um local que você volta, que você descansa.
E se você perde tudo isso? Aí constrói outra de novo, vai pra outra, e se perde
a outra, então, a vida não é fácil, entendeu? Mas a gente tá junto, a gente se
encontra e é incrível quando a gente dá uma peneirada nas histórias, peneirar
no sentido de encontrar uma essência, do que aquela história fala. Então seu
eu te falar assim e você começar a pensar no seu medo, no seu lobo, o que que
te dá medo, mesmo você adulto, mudar de emprego, arrumar um casamento,
ir morar em outra cidade que você não conhece nada, alguém muito querido
que morreu, que você sente a falta e, que está na tristeza. Então tem muitas
coisas, que você fala nossa, deixa eu me reerguer. Pode cair de novo? Pode,
mas deixa eu me reerguer, porque é aqui que tá a vida. Uma vez eu ouvi de
um mestre, onde ele falou assim, ele é griot, então ele leva todas as histórias.
Com ele eu descobri que um griot não é só um contador, mas ele faz todas as
cerimônias e ele disse: quando a mulher perde um filho, eu vou visitar ela, que
histórias eu levo para essa mulher que perdeu um filho, que vai acalentar o
coração dela. Então até hoje fico pensando, meu, que história eu contaria para
uma mulher que perdeu um filho. Mas eu acho que a história atua nesse local
da emoção, é uma experiência humana. Tanto que quando a gente põe bicho,
seja fábula, seja o que for, você leva experiência humana. E a gente reconhece
as coisas da natureza, mas que falam sobre a gente, para a vida continuar.
Acho que essencialmente histórias, contar histórias, falam sobre a gente, para
continuar a vida.
Nesta fala, Fioruci aborda várias questões sobre o contar histórias. Traz a ideia de
Barros sobre a história poder falar sobre temas difíceis, atingindo o ouvinte de uma forma que
talvez só palavras de consolo não alcançassem o mesmo resultado. Isto porque, ao seu ver, as
histórias da tradição podem tocar nossos medos, nossas alegrias ou emoções, elas explicam
aspectos da vida e fazem-nos compreender seus ciclos, acalentando e dando coragem nos
momentos difíceis para se reerguer. E que mesmo as histórias em que as personagens são
animais ou seres inanimados podem falar mais sobre a vida humana e suas emoções do que de
imediato pode parecer. O que traz novamente a ideia da produção de afeto pela subjetividade
da história.
Em sua fala, Fioruci corrobora a ideia de Aguiar, de que o retorno à experiência tem o
papel de não deixar que o vivido até hoje, pelos que vieram antes de nós, seja esquecido. Ao
abordar essas questões, Fioruci faz uma relação de aproximação entre o contador urbano e o
narrador tradicional. O griot que ela cita ter escutado utiliza-se de sua sabedoria e experiência
acumulada para contar histórias que falam sobre a humanidade, sobre como continuar a vida.
A sensação de encanto produzida ao escutar esses mestres da palavra não se dá de forma igual
54
ao escutar o contador urbano que possui uma ligação muito diferente com a palavra e com o
conhecimento. O que nos traz a proposição de Ciotti, vista no item anterior, da diferenciação
entre o contador e o narrador, quando a contadora diz não achar que o contador urbano faça
parte desse lugar da sabedoria. O contador pode contar uma história que ouviu de um griot ou
mesmo buscar uma história que tente acalentar a mãe que perdeu um filho. As histórias têm
essa potência. Mas as nossas referências, urbanas e ocidentais, são outras. A cultura do país
africano em que esse griot está inserido e a conexão com as histórias e a oralidade que esse
lugar possui é diferente do olhar que um público urbano brasileiro terá ao ouvir a mesma
história. Elas também podem nos afetar, mas alguns símbolos presentes nas histórias não
permeiam as nossas referências culturais e sociais. O contador, ao escolher essas histórias, pode
valorizar a palavra do griot, mas fora do ambiente do Etnotexto, o simbólico pode se ampliar
em diversas interpretações, que podem não ser as mesmas que a comunidade oral teria, fazendo
com que cada ouvinte se afete a partir do lugar em que vive, do lugar em que veio. Assim, na
ideia de Fioruci, escutar as histórias desses narradores tradicionais e pensar no que ela própria
contaria para a mulher que perdeu um filho, não está em um lugar de equiparação com esse
narrador, mas de pensar no poder das histórias e como em seu papel de contadora urbana pode
também afetar o outro por meio da palavra.
Fioruci apresenta ainda a ideia de que a contação de histórias não deve estar associada
ao serviço para alguma coisa, ter as histórias como utilitárias para o acesso ao livro ou aos
estudos, ela justifica esse pensamento pelo fato de já se narrarem histórias desde muito antes
do surgimento da imprensa. Em sua fala percebemos a potência que as histórias têm, no sentido
de como ela aborda, poder continuar a vida, tendo um papel muito além de promotor do livro,
mesmo sendo inegável sua contribuição para isso. Nesse sentido, traz novamente essa relação
comparativa da ideia do narrador tradicional e a do contador urbano. Ela aponta que o contador
urbano continua o trabalho desse narrador como o propagador das narrativas e das experiências
de mundo. Nesse contexto, o contador urbano estaria nesse lugar do retorno do narrador de
Benjamin, exposto aqui na introdução. Em relação a esse pensamento de produzir experiência
humana, a fala da Daniela Landin (2020), que contou histórias junto com Natali Conceição, da
Cia. Pé de Cura, de São Paulo, vai ao encontro dessa ideia benjaminiana:
[...] Sempre que eu penso nisso, tem uma séria de respostas já manjadas né, a
gente entender a nossa história... manjadas, mas super importantes. A gente
entender que a nossa vida faz parte de uma história, entender que enquanto
humanidade estamos dentro de uma história maior. Mas eu acho que tem uma
coisa desse lugar da experiência, quem é uma coisa bem Walter Benjamin, né.
Acho muito importante essa questão do encontro, acho muito importante a
55
gente se encontrar. Mas a gente pode se encontrar para fazer qualquer outra
coisa, jogar, fazer uma brincadeira, contar piada, comer junto. Mas acho que
a história tem esse valor muito significativo de valorizar a vinculação de uma
experiência a partir de um lugar de fala. Se você for me contar uma experiência
você vai me contar a partir da sua experiência cultural, com as suas palavras,
a partir da sua visão de mundo. Se eu for contar essa mesma história ela vai
ser diferente porque vai passar a partir da minha experiência. Então eu acho
isso tudo muito rico. Então eu acho que é esse encontro que alguém comunica
um tipo de experiência a partir de um lugar de fala. Não usando lugar de fala
como esse conceito que vem sendo falado muito, que também é importante,
que faz a gente repensar uma série de coisas, mas nesse sentido.
[...] Venho me perguntando isso com frequência também. Acho que conto
histórias porque isso me dá voz, me dá lugar de fala enquanto mulher artista,
porque contar história toca o outro numa dimensão que não fazemos ideia. É
o que me move... esse encontro, que tanto o teatro quanto a contação e posso
56
dizer que a arte de uma forma geral provoca, é minha luz e minha força todos
os dias.
A partir disso, a autora continua trazendo a ideia de que a contação de histórias “[...]
pode ser uma ferramenta maravilhosa para o exercício da voz da mulher, voz tantas vezes
caladas, tantas outras, arrancadas de nós. Entre outras coisas porque é possível aqui expandir
os limites de gênero. É possível não interpretar nenhum personagem, assim como todos eles.”
(2017, p. 112). A mulher pode, ao contar histórias, ser quem ela quiser na história e ao mesmo
tempo não ser nenhuma das opções dadas, ser apenas aquela que conta. Essa ideia de dar voz à
mulher e mais ainda, à mulher artista está presente na fala de Campagnolo, e mais a importância
disso na luta pelo rompimento com os ideais ainda vigentes da mulher como o segundo sexo, o
sexo frágil. O que me faz aqui voltar à pergunta que abriu esse item, a força que a contação de
histórias pode ter para liberar essas palavras por séculos engolidas.
Ao abordar o sobrepor da voz do homem sobre a da mulher, é interessante pensar que
entre os “autores” muito lidos, pesquisados e contados por esses artistas da voz hoje, estão os
irmãos Grimm e todas as variações que esses contos já sofreram, além de as histórias recolhidas
por Câmara Cascudo, no Brasil. E, nesse sentido, Cléo Busatto (2012) lembra sobre uma fonte
dos contos recolhidos por Wilhelm e Jacob Grimm ser a voz de uma camponesa chamada
Katherina Wieckman. Segundo Busatto muitos dos contos do primeiro volume dos Contos
57
maravilhosos, infantis e domésticos foram narrados por Katharina. Marina Warner (1999)
coloca também como grandes narradoras para as histórias dos Grimm, Dorothea Wild, sogra de
Wilhelm, além de três irmãs do cunhado dos Grimm e as irmãs poetas Annette e Jenny von
Droste-Hülshoff. Assim como muitos dos contos tradicionais do Brasil que ganharam
notoriedade pela caneta de Luís da Câmara Cascudo vieram, segundo Busatto, da voz de sua
esposa, Luiza Freire, apelidada de Bibi, com quem Cascudo conviveu por 38 anos até a sua
morte. Dessa forma, é possível afirmar que por séculos a voz do homem se sobressaiu à da
mulher, mas que ele sempre necessitou dela para que o conhecimento presente nessa voz não
morresse. Nesse sentido, Warner (1999) cita ainda um grupo de damas que seriam as narradoras
de Straparola13, um grupo de “velhas encurvadas e enrugadas” a quem Basile apresentou como
fonte de suas histórias e os “contos de velhas senhoras”, mencionados por Perrault. Assim, a
autora coloca que “um aspecto importante da transmissão dos contos de fadas não foi
examinado atentamente: o caráter feminino do narrador” (p.41). E expõe ainda que: “embora
os escritores e colecionadores do sexo masculino tenham dominado a produção e a
disseminação dos contos maravilhosos populares, estes frequentemente eram transmitidos por
mulheres no ambiente íntimo e doméstico” (p. 43).
Campagnolo (2020) aborda ainda a questão do tocar o outro de uma forma que não
conseguimos ter ideia do alcance. Essa é uma questão importante dentro da análise dos impactos
de um festival de histórias. Serão abordadas aqui algumas repercussões que o ECOH teve na
cidade de Londrina, a multiplicação do olhar para essa linguagem, o surgimento de novos
contadores e a maneira como algumas pessoas foram afetadas. Apesar disso, mensurar todo o
impacto afetivo gerado nos últimos dez anos de festival é tarefa impossível. Há pessoas que
podem ter sido afetadas pela história, terem sido tocadas de alguma forma, mas ninguém além
delas sabe o que se passou dentro delas mesmas. É por esse viés que se entende a contação de
histórias como uma prática que atribui sentidos ao que ouvimos, contamos e vivemos. Assim,
para Kiara Terra (2020):
[...] Nossa, dificílima pergunta. Por que contar histórias? Porque a gente vai
morrer e a nossa capacidade narrativa é a mesma capacidade de atribuir
sentido ao que a gente vive. De algum modo lá em última instância é análoga
à nossa capacidade de ser feliz, de conseguir atribuir sentido às coisas que nos
acontecem. E ao longo da vida ganhar o lugar de ser narrador da sua própria
história, assim se apropriar de quem você é, do lugar de onde você veio, das
suas memórias, das suas escolhas em relação a sua origem. Acho que narrar
histórias é uma maneira de exercitar essa capacidade de atribuir sentido às
13
Gianfrancesco Straparola, escritor italiano, que em 1550 lança o livro de contos maravilhosos Noites
prazerosas.
58
coisas. Por isso eu gosto muito de fazer com escuta porque acho que fazemos
isso melhor coletivamente. Acho que a gente entende o mundo melhor quando
a gente entende por outros olhares, a gente se surpreende muito com o jeito do
outro de ver, então é um jeito de fazer que privilegia ou deseja muito se
aproximar disso.
Uma questão interessante de observar é que dos três homens entrevistados, um, Bruno
Dutra, atua na Cia. Benedita na Estrada como músico, ele conta a história por meio da música,
mas quem expõe a palavra oral é sua parceira de cena, Mirna Rolim. E os dois contadores que
trabalham solo, Luís e Rafael. Ambos entraram na linguagem da contação de histórias a partir
do trabalho que já exerciam como palhaços. Nesse sentido, são duas linguagens que se
mesclam. Ser palhaço já carrega um profundo olhar para si mesmo. O palhaço abandona a
concepção do ridículo, não tem medo de mostrar o que pode ser considerado feio ou fora do
padrão em seu corpo. Somos um corpo e isso é o instrumento do trabalho do palhaço. O seu
jeito de ser e se vestir põe em evidência o fora do padrão. O palhaço representa a sociedade em
toda sua imperfeição, sem julgamentos e sem esconder o que não julga belo. Coloca-se a
máscara de palhaço para tirar as máscaras sociais.
Ao contar histórias como palhaço Arnica, ele traz nessa espontaneidade e ludicidade
que essa figura carrega, o encontro com a narrativa. E essas duas linguagens trabalham juntas
reforçando essa ideia da presença e importância do jogo lúdico. Ele ressalta em sua fala como
a paternidade, o convívio diário com crianças vai trazendo novos significados sobre essa
ordenação das vivências pessoais com sua prática enquanto palhaço e contador de histórias.
Fala também sobre a importância da troca de saberes, informações e sensações, que vem ao
encontro dessa ideia da experiência e de afetividade.
Muitas das respostas dadas pelos contadores, por mais que venham de cidades
diferentes ou que tenham na origem do olhar para essa linguagem, distintos caminhos e
formações, se entrelaçam. A Cia. Kiwi de Jaqueta, de Londrina, integrada por Renata Santana,
Laís Marques e Ana Karina Barbieri responde em conjunto a essa pergunta:
E a troca de energia entre quem está ouvindo com quem está contando é
sempre importante. As pessoas vivendo uma experiência juntas, quem está
contando e quem está escutando. (Ana Karina Barbieri)
[...] Olha, eu não sei, eu falo que parece que a gente não dá conta da vida se
não for um pouco com ficção, né, pra gente projetar nossas ideias e as coisas
que a gente sente, pra gente brincar um com o outro, pra gente rir dos próprios
problemas, sabe? Normalmente eu conto histórias, claro porque eu me
identifico com elas de alguma forma. Então eu acho que todas as coisas ruins
da vida e as coisas boas estão ali, mas num universo que a gente pode brincar
e dar risada e fazer um jogo de palavras, aí parece que o mundo faz mais
sentido.
61
Esta fala traz a presença da ficcionalidade como uma necessidade para se lidar com a
vida real. A ficção está presente na vida de todas as pessoas, seja por histórias, pelos livros,
filmes, séries, novelas ou mesmo sonhos. Sentimos necessidade em alguns momentos desse
contato com o não real. E isso se tornou ainda mais evidente nessa sociedade pandêmica, em
que as pessoas têm recorrido ao trabalho desses artistas para poder lidar com o isolamento
social. Seja filmes, séries, lives, vídeos, youtube. Prova disso que já no início da quarentena, a
rede Netflix anunciou um aumento de 16 milhões de assinantes da plataforma. A vida sem ficção
seria insuportável. Para Nakadomari, olhar para essa ficção pode trazer uma força para
olharmos a realidade, além de expor que contar histórias é uma forma de olhar para si e perceber
novas formas de responder a esse olhar. Para a contadora de São José/SC, Fabrícia Brito (2020),
contar histórias serve:
[...] Pra gente se manter vivo. Eu acho que a história que nos mantém, nós
contamos histórias todos os dias. Desde que a gente acorda, a gente conta
histórias, acho que é isso que nos mantém vivo. Desde a hora que a gente
acorda, se atrasa que a gente tem que ligar pra alguém pra dizer que se atrasou,
a gente está contando uma história, está ali já narrando o que está acontecendo.
Acho que é pra nos manter vivo. [...] Eu acho que a história transforma. São
transformadoras. Acho que é o momento que a pessoa está ali e te escuta. A
gente quase não ouve hoje em dia. A gente conversa, mas a gente não se ouve
e a gente não ouve o outro. É tudo muito momentâneo. Quando a pessoa se
prende a uma história e ela consegue ouvir aquela história aquilo transforma.
Eu acho que é um momento de transformação.
[...] Para viver. Eu acho que a gente conta histórias para viver. É essencial
assim, ninguém consegue, mesmo quem diz, ah nunca contei uma história,
mentira pura, porque você chega no final do dia, ou às vezes até mesmo você
chega no trabalho já contando alguma coisa, você conta história para você
mesma, então assim, história é vida, não dá para viver sem contar história.
Então no meu ponto de vista, você conta histórias para poder viver.
Ambas trazem a ideia do todo mundo conta histórias, de que todas as pessoas
transformam suas vivências diárias em narrativas e que isso é necessário para nos manter vivos.
E que quando essas narrativas são contadas para um público, há nisso um poder transformador,
que vem do afeto. Há muitas abordagens e linguagens do contar histórias e justamente por essa
questão que o trabalho de Fleck (2009) mencionado na introdução é importante para lucidar
essa questão. Contar histórias não é uma profissão regulamentada, mas há quem se utilize dessa
linguagem para viver profissionalmente. Todos contamos histórias que se passaram conosco, o
tempo inteiro, mas há uma diferença nesse todo mundo conta história e nesse contador urbano
62
que olha para a linguagem, busca repertórios, ensaia e apresenta essas histórias enquanto
linguagem artística, enfim nesse sujeito que se auto nomeia contador de histórias. Nesse sentido,
no caderno de programação do 1º Encontro, em 2011, Claudia Silva escreve:
Neste contexto, trazendo aqui a epígrafe desse trabalho de Marie-Claire Polla, que
conheceu o ECOH em sua 9ª edição e viu ali os caminhos para contar sua própria história, é
possível ver que a pergunta feita por Claudia no início de tudo não só foi respondida como vem
ganhando novas respostas a cada edição do encontro.
Para a contadora de histórias pernambucana, residente atualmente no Rio de Janeiro,
Kika Farias (2020): “com as histórias podemos compreender as profundezas de ser humano. As
histórias acalantam o coração e a alma e ficam registradas em nosso corpo ao longo do tempo.
A gente precisa se alimentar não somente de comida, mas de arte, de histórias!”. O jeito suave
e poético que Kika Farias conduziu sua performance durante sua apresentação no 9º ECOH
mostra essa sua relação com a produção de afetos, com o acalentar. A professora Suzue que
atua na educação básica de Londrina e acompanha o ECOH já desde o início disse ser essa
apresentação que mais lhe foi marcante: “A história que mais me marcou foi a recente: Dona
Mocinha no vaivém da vida com Kika Farias (Figura 5). O jeito manso de contar, precisamos
dessa calmaria! Desacelerar a vida que passa efêmera! Amei!”. A arte e as histórias que são
tecidas com esse fio invisível que nos cerca produzem o deslumbramento, o reconhecimento e
uma pausa do barulho que produzimos.
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A partir de tudo isso, trago por fim, a resposta da Mirna Rolim (2020), que conta
histórias junto com o músico Bruno Dutra, na Cia. Benedita na Estrada:
[...] Acho que são tantas as respostas possíveis para essa pergunta. Mas eu
acho que começa com essa reflexão assim do quanto eu acredito que a história
contada, falada, mais do que escrita, eu tenho a sensação que ela de fato amplia
mundos internos e eu acho que a gente está num momento muito necessário,
porque enquanto a história amplia esse mundo interno, porque a partir do
momento que eu crio a imagem do que está sendo contado pra mim, aquela
imagem, ela passa a me povoar e aí eu passo a ter esse lugar dentro de mim.
Eu acho que a informação, aquela dualidade que o Walter Benjamin faz no
livro do Narrador, a informação ela comprime esse espaço interno, porque a
gente vai sendo bombardeado, ah coronavírus aqui, ah Bolsonaro aqui, a
maneira como este conteúdo é apresentado pra gente, de uma maneira muito
pragmática e muito reducionista, pronto, é isso. Isso vai nos espremendo no
meio disso, a gente não tem espaço no meio dessas informações. Elas estão à
revelia de nós. E elas nos são apresentadas dadas e pronto. O mundo vai
ocupando um espaço e você já não cabe mais. E eu acho que a história faz o
movimento contrário. Esse mundo que é trazido, ele é trazido com tanto
espaço entre as palavras, mesmo que as palavras sejam apresentadas uma atrás
da outra, mas cada palavra tem tanta coisa por baixo dela que esse mundo
interno vai se ampliando. E eu acho que nesse momento em que a gente está
vivendo, eu acho que em todos os momentos da humanidade, isso foi sempre
muito necessário, porque isso é uma maneira da gente construir nossa
identidade pessoal em meio ao coletivo e quanto essas identidades pessoais
elas se permeiam. Acho que a história faz isso, que uma imagem interna de
um indivíduo permeie a imagem interna de outro indivíduo e a gente crie essa
rede. Mas assim, sempre foi necessário, mas agora acho que mais do que
nunca, porque é isso, a gente tá comprimido, em meio a muita informação, em
meio a uma relação com o mundo imediatista. Eu acho que quanto mais a
gente conseguir ampliar nosso espaço interno, ampliar o espaço de relação
com o outro e ampliar o tempo, eu acho que mais a gente vai se salvar um
pouquinho.
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É possível perceber que as ideias presentes nos ensaios de Benjamin estão bastante
presentes em muitas concepções desse fazer artístico por vários contadores. E de como essa
ideia de estarmos comprimidos diante da era da informação, o que vem causando a falência da
experiência, molda o pensamento sobre a importância da prática dessa linguagem. Em sua
resposta Rolim fala sobre a ampliação de mundos internos e que dessa ampliação individual
vem um pensamento coletivo e empático e que isso se torna necessário na contemporaneidade.
E essa tentativa de rompimento da relação benjaminiana do estar comprimido, sem conseguir
manter uma experiência comunicável, vem por meio do afeto e do lúdico que a narrativa e a
troca de energias e de olhares da performance proporcionam.
Visto isso, muitas são as respostas para essa pergunta, no entanto, alguns elementos
são repetidos em várias dessas falas. Posso aqui perceber essas ideias em quatro eixos
principais: como forma de olhar para sua identidade, pelo produzir afetos, como uma prática de
saberes e experiências e pela importância do lúdico.
Sobre a presença dessa ludicidade na contação de histórias, para a pesquisadora
Monica de Souza Massa (2015, p.126) pode se falar do lúdico por um enfoque objetivo e por
um subjetivo:
No enfoque objetivo, percebemos a ludicidade como um fenômeno externo ao
sujeito, construção social, cultural e histórica. É a análise do conjunto das
experiências lúdicas dentro de um contexto social. Portanto, depende do
tempo, do espaço geográfico e do grupo social. No enfoque subjetivo, a
ludicidade é “sentida” e não “vista”. É ação, emoção e pensamento integrados.
É um estado interno do sujeito, não perceptível externamente, que é único. É
através da vivência da ludicidade, da experiência do lúdico, que o indivíduo
se constitui.
a esse contexto. Nesse sentido, Rafael de Barros (2020) aponta isso como também uma
importância de se estar abrindo um caminho para essa linguagem em Londrina:
[...] E vejo que também vai passando esse preconceito, desse lugar que
colocaram o contador de histórias, que também colocaram o palhaço, que é
uma coisa somente infantil, sabe? Eu percebo que quando as professoras vêm,
os adultos vêm e percebem que nossa é uma coisa bacana né. Porque esse
infantil que colocaram também é pejorativo, né. Porque é um infantil que não
valoriza a inteligência infantil.
Nessa perspectiva, ao abordar que a contação não é apenas para a criança, não trato
aqui apenas das contações realizadas pensando no público adulto, o que também tem seu lugar
dentro do ECOH, com performances com um jogo de linguagens e temas que possuem um
enfoque para uma faixa etária maior. Mas que mesmo as contações realizadas para as crianças
trazem reflexões e afetos comuns a todas as idades. O olhar que se terá a partir da performance
caminha ao lado da vivência e do repertório de imagens que se possui, assim o olhar da criança
não será o mesmo olhar do adulto, mas em ambos poderão ser despertados afetos. O lúdico está
presente na vida do sujeito ao longo de toda a vida, pois a nossa percepção do mundo está em
permanente construção. E isso pode ser percebido no ECOH, em que diante de uma contação
com a faixa etária livre, há um público misto de crianças e adultos recebendo a performance e
despertando emoções. Sobre isso Daniella Fioruci (2020) diz que: “por mais que eu fale de
medo, que eu fale de experiências, tá sempre num jogo lúdico. O homem ele é lúdico. Não só
quando é criança. Então essa questão de como eu vou ouvir, de como eu vou entrar, ela é
diferente, porque a palavra vem de um jeito que é gostosa, que é lúdica, que é brincante”.
Nesse sentido, pensando no público que é destinado o festival, em entrevista dada ao
jornal Tarobá News, em 1º de agosto de 2016, a coordenadora Claudia Silva ressalta que:
Assim, o ECOH vem se espalhando por muitos pontos da cidade e região, aumentando
os contadores e apreciadores de histórias e, consequentemente, gerando muitos ouvintes. E
dentro dessa diversidade de locais, de públicos, de contadores e de histórias vem se respondendo
dentro de cada um a resposta de por que se contar histórias.
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O contador de histórias vai tecendo o fio narrativo. Como escolher o que tecer? Tem
histórias que entram no repertório que são costuradas fio a fio, o contador escolhe como tecer
e sabe como será o tecido final. Mas há também aquelas histórias que vão sendo tecidas, com
um fio entrelaçando-se ao outro e que só se descobrirá o que irá sair dali, quando o tecido estiver
pronto. Isso ocorre quando são as histórias que escolhem o contador, quando elas gritam que
precisam ser contadas. Dessa forma, numa contação de histórias o foco deve estar na palavra
oral e não numa ideia de soberania do contador. Para entrar nessa ideia sobre o repertório, trago
aqui a história intitulada “O melhor contador de histórias”, um conto de tradição africana,
recontado pela contadora Inno Sorsy (MATOS; SORSY, 2009, p.38-39):
Era uma vez um rei. Não era um rei feliz. Ele notou que seus súditos não prestavam a
menor atenção em seus decretos e mandatos. Percebeu também que eles se aglomeravam e
sentavam aos pés dos contadores de histórias na praça do mercado, nas casas de chá ou nas
pousadas.
O rei decidiu aprender o segredo dos contadores de histórias. Convidou-os ao palácio
com essa finalidade. Alguns disseram que era a linguagem, outros que era a experiência,
outros, ainda, que era a imaginação.
Cansado de ouvir tantas opiniões, o rei despediu-se deles pedindo que se dedicassem
a escrever artigos sobre as qualidades de um bom contador de histórias.
Os contadores voltaram após cinco anos com milhares de papeis escritos. Mas, de
novo, o rei ordenou que voltassem com uma informação mais condensada de tudo aquilo. Cinco
anos se passaram quando voltaram trazendo um livro bastante pesado. O rei não tinha tempo
para ler, pois estava muito ocupado com as questões políticas do reino. Pediu-lhes então, que
fizessem um resumo de uma página com o essencial daquelas informações.
Os contadores passaram mais cinco anos trabalhando na essência do assunto.
Finalmente, apareceram com uma folha de papel e entregaram-na ao rei.
O rei pensava que, de posse desse conhecimento, poderia tornar-se o único contador
de reino. Aqueles eram seus rivais, obviamente. Mesmo tendo trazido seu precioso
conhecimento sobre como se tornar o melhor contador, ainda assim eles seriam competidores,
e o rei queria ser o melhor deles. Inevitavelmente, se o rei se livrasse de todos eles, não haveria
como não se tornar o único e melhor contador do reino.
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Assim, o rei anunciou que iria agradecer pessoalmente a um por um o trabalho. Afinal,
anos de dedicação haviam tornado possível aquele projeto.
Assim foi feito: ele recebia cada um, oferecia-lhe um prêmio e apontava-lhe a porta
de saída. Do outro lado, porém, encontrava-se o carrasco esperando para executar o pobre
infeliz, mandando-o para o outro mundo.
Depois que o rei finalmente ficou sozinho, com suas mãos trêmulas, abriu o papel
preparado para ele. Lá estava escrita somente uma frase:
“O melhor contador de histórias é aquele cujas histórias são lembradas muitos e
muitos anos depois que seu próprio nome tenha sido esquecido.”
Esse conto traz a ideia de como a narrativa é o mais importante numa contação de
histórias. O foco está na história que quer ser contada, não na figura do contador. E aquele que
entende isso, dando evidência à palavra oral, consegue assim se tornar um bom contador de
histórias. Esse conto traz um olhar para uma relação do que chamo aqui de narrador, visto que
essa figura está focada em transmitir a experiência para os membros de sua comunidade e
manter essa palavra viva é mais importante do que o dono da voz que a está narrando. O que
não acontece de todo com o contador, que é um artista e busca um reconhecimento. Isto porque
embora a histórias sejam maiores que o contador, ela passa pelo corpo de quem a conta. E esse
corpo pode dizer muito sobre a história. Apesar disso, o princípio dessa ideia também se aplica
ao contador urbano, as histórias vivem por mais tempo do que quem as conta. Aqui recordo-me
de uma das primeiras vezes que vi uma contação de histórias, em um evento escolar quando eu
estava nas séries iniciais. Minha mãe também estava presente. Anos mais tarde, eu já cursando
o fim do ensino médio, o contador de histórias que realizou essa performance se tornou uma
pessoa bastante próxima, tendo entrado em minha família, sem eu saber que ele era esse
contador. Em determinado momento minha mãe comentou de uma história que tinha escutado
em minha escola e perguntado o ano e o lugar, descobrimos ali que era ele o contador da minha
infância. A história havia permanecido.
Não que ao trazer essa ideia para o contador urbano, este não deva ser lembrado ou ter
seu nome e trabalho reconhecido, deve, e se ele for bom e se mantiver atuando nessa área isso
acontecerá naturalmente. O que me refiro aqui, é que às vezes o que ocorre é a história ser
colocada em segundo plano, colocando o teatral em primeiro: o figurino, os adereços ou a
música, deixando a história perdida no meio a tantos elementos. Aqui cabe uma diferenciação
entre o teatro e a contação de histórias, sem o objetivo de separar tudo em caixas isoladas, mas
dentro do ofício do ator subentende-se a interpretação, o ser um personagem da história, com
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um trabalho de mimese corpórea e vocal que será utilizada durante todo o processo em que se
está dando vida a esse personagem. O contador de histórias intermedeia a história, pode até
interpretar as personagens, dando vozes diferentes para cada uma, mas aquele que conta está
ali o tempo todo. A história está ali o tempo todo, em primeiro plano, porque o contador a
escolheu motivado por algum afeto que deseja propiciar a outros olhares e ouvidos.
Se o contador urbano é um divulgador das narrativas e traz nessa sua prática, um
retorno para o pensamento da experiência proposta por Benjamin, que experiência é essa? Que
histórias o contador urbano conta hoje? Há realmente um pensamento nessa manutenção da
experiência dentro da escolha do repertório do contador? O contador urbano antes de estar
diante de um público precisa dar forma a uma ou mais histórias e para isso é necessário
compreender o sentido das palavras que sairão por meio de sua voz e corpo.
Dentre os participantes entrevistados do ECOH, surgiram muitas respostas para essa
pergunta de como se dá a escolha do repertório. Alguns pelo viés da oralidade, por meio da
escuta, como o caso de Rafael de Barros (2020):
[...] O jeito que eu aprendo é de ouvir e contar. As do Chico Pedrosa foi tudo
assim também, eu vi alguém contar e falei: nossa. Aí, uma vez eu estava no
Acre, tava lá no Acre, uma menina contou um poema e eu falei: nossa, esse
cordel é muito bom, vou aprender. Aí, eu fui ver e o cordel era do Chico
Pedrosa também. Então, eu tenho muito isso, eu ouço contando, aí eu gosto,
aí eu vou contar também. É muito por aí que eu escolho.
outros suportes e colocadas, às vezes tal qual foi narrada, às vezes a partir dos olhares de quem
as escreveu.
Nesse sentido de o repertório prezar por uma tradição de oralidade, mas vir dos livros,
Edna Aguiar (2020) expõe que:
Essa personagem não foi criada à toa, ela não está ali apenas para se caracterizar com
um figurino. Nela está a presença da lembrança de sua infância, da raiz de sua vivência sobre o
contar histórias, do contato com a oralidade que vivenciou quando criança:
[...] Minha vó olhava a porteira e dizia: Lá vem vindo a nega do leite, o que
significava isso, que estava chegando uma mulher que falava muito. [...] Pra
nós crianças isso sempre era bom porque uma nega do leite sempre significava
que lá vinha história. A nega do leite funcionava meio que uma rádio, ela tinha
a função de carregar notícia pelas fazendas, ela tinha essa função. É por isso
que inclusive eu brinco com a personagem, com essa história, eu estava
passando ali na casa da Dona Maria, cê sabe o que aconteceu, é uma
brincadeira consciente que eu faço, mas cê não tá sabendo não? [...] As negas
do leite literalmente existiram na minha infância. [...] Elas iam de um lugar
pro outro. Nunca era alguém que estava vindo para casa da minha avó, era
alguém de passagem.
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Seu repertório e seu modo de contar surgem a partir de sua vivência e da lembrança que
marcou sua infância: as poéticas orais na voz nômade. Para Fernandes “o ser nômade configura-
se pela “voz” que faz circular a poesia por uma linguagem hipercodificada (voz, gesto,
entonação, expressões faciais, silêncios e outros ruídos...) e por pessoas.” (2007, p. 24). As
Negas do Leite, que passavam pela fazenda em que seus avós eram caseiros e que Edna era
mandada para passar as férias escolares, eram mulheres que carregavam as notícias e contavam
histórias sobre o que viam em suas andanças. Aguiar conta que a Nega do Leite não era uma
mulher, mas várias, que eram muito populares na cultura do local, das fazendas situadas no
interior do Paraná. Nesse sentido, Fernandes continua: “A mobilidade que confere à poesia o
aspecto nômade é uma característica própria da cultura oral. A voz nômade é, essencialmente,
uma poesia oral.” (2007, p. 24). E a contadora hoje se utiliza dessa oralidade nômade que
marcou sua infância para a constituição da sua personagem contadora de histórias, juntando
suas vivências com as histórias da tradição oral que retirou de suportes escritos.
Há ainda dentro dessa tradição oral transcrita em livros, um leque enorme de histórias,
de muitos povos e de muitas versões. E há os contadores que dentro desses contos, procuram
temas ou tipos específicos de narrativas, como Fabrícia Brito (2020):
[...] Eu não gosto muito das histórias óbvias, aquelas histórias que a gente já
sabe que vai ficar tudo bem no final. Na verdade, eu gosto das histórias que
assim, que alguém morre, e aí morreu, acabou. Sabe, histórias que levam a
uma tragédia que a pessoa fica “meu Deus”. Eu gosto de causar um certo
desconforto. Não gosto muito das histórias muito óbvias, não. Eu acho que as
histórias também nos encontram, elas nos pegam, nos buscam. Então
geralmente os livros que caem na minha mão, as biografias que eu pesquiso,
são sempre, tem essa coisa meio de morte, meio sarcásticas. É nesse sentido.
E os contos africanos que são uma das vertentes que eu estudo, eles têm essa
coisa assim meio, digamos assim, meio misteriosas, sabe assim um universo
cheio de mistério, tem isso. Eu gosto. Então eu parto sempre desse princípio.
Quase nunca eu conto uma história assim muito “Aww”, que as pessoas fazem
“Aww” no final. Elas ficam me olhando com uma cara assim, meu Deus o que
essa mulher fez. Até pra criança também eu gosto de contar esse tipo de
história. Adoro história de assombração também, coisas assim desse naipe.
Trazer histórias que causem incômodos e falem de temas densos, mas naturais da vida,
se faz muito importante no processo de desenvolvimento da criança. Repertoriar a criança
apenas com o viveram felizes para sempre já não é mais cabível. Se os contadores expõem a
ideia de que contar histórias é uma forma de abordar temas difíceis, de produzir afetos e de
olhar para sua identidade, por meio do lúdico e do imagético criado, é preciso abordar temas
que façam parte do cotidiano da criança, como a morte, as diferentes concepções de família, a
71
depressão, violências. E o contador de histórias que coloca seu pensamento voltado à criança
saberá tecer esse fio de maneira sensível e delicada, mas sem enganar ou subestimar a infância.
Há muitos contos de fadas que tratam sobre a morte, o abandono, o medo, mas os
contos que se mantiveram no imaginário coletivo urbano são também bastante restritos. Dos
mais de 200 contos recolhidos pelos Grimm, talvez uns 15 ou 20 tenham se mantidos vivos no
Brasil. Além de ser frequente a presença de atualizações equivocadas, retirando a natureza da
história. Os contos de fadas são tecidos-histórias bastante significativos para adentrar a criança
no mundo do imaginário e do imagético, recheados de metáforas que são necessárias para o
amadurecimento da criança. Mas contar é também saber atualizar. Fechar o imaginário apenas
dentro de uma bolha, sem contrapor com as urgências da contemporaneidade não fará com que
surja um sentimento de identidade, pois existirá apenas o acesso a um mundo que parecerá
muito distante do seu, criando para si ideais inatingíveis. A ideia de atualização aqui não é
retirar a essência dos contos de fadas, como em algumas propostas contemporâneas em que
foram retiradas as bruxas e os elementos de maldade e medo presentes nos contos, mas saber
mediar as histórias tradicionais, contrapondo o contado com as urgências do hoje, pois se estes
contos estão no imaginário coletivo há tantos séculos é porque continuam trazendo afirmações
importantes sobre a natureza humana. E ao mesmo tempo, ideias presentes em algumas
narrativas, como a princesa servil à espera de seu príncipe encantado já não são aspectos que
se encaixem no pensamento contemporâneo. Mas nesse sentido é interessante pensar também
nas histórias que permaneceram no imaginário coletivo. Quem determinou quais histórias
continuariam a ser contadas no decorrer dos anos? Os Grimm têm contos em que são as
mulheres que precisam salvar os príncipes, mas por que apenas um tipo de história permaneceu?
Sobre esse lidar com o tema da morte para crianças, em conversa com o público que
acompanha já o festival desde o início, houve uma fala de Adriana Siqueira (2020) sobre um
episódio com seu filho depois de ter assistido o trabalho Esticando as canelas (figura 7), da
contadora Josiane Geroldi:
A morte é uma fase natural da vida e é importante que a criança consiga lidar com isso
desde pequena. E trazer histórias sobre essa temática auxilia no entendimento da vida. A
performance de Geroldi afetou essa criança e trouxe sentido para ela, fazendo uma conexão
com a morte de seu gato. E isso marca tanto a criança e a mãe, quanto a contadora, que vai
ganhando repertório de histórias e de afetos.
As histórias da tradição oral são repletas de contos que retratam esses aspectos naturais
da vida, a morte e os incômodos, justamente por virem de comunidades narrativas em que se
narra aquilo que se vive, que se quer trazer um aprendizado ou uma reflexão sobre assuntos
urgentes do momento. Isso desde sempre, mesmos nos contos de fada, como Chapeuzinho
Vermelho que circulava como uma história de alerta para o abuso sexual infantil, mas hoje com
outras conotações que foram surgindo no decorrer das versões, faz parte do conhecimento
infantil de todas as gerações. A oralidade se manifesta de muitas formas, e como diz o ditado
quem conta um conto aumenta um ponto, a história vai sendo atravessada pelo corpo de quem
a conta, pelo tempo e período histórico, pela crença, bagagem e experiência de quem a conta.
Assim, posso trazer Perrault, com a primeira versão escrita de Chapeuzinho Vermelho, em
1697, em que a história acaba no momento em que o lobo devora a Chapeuzinho. E somente
anos mais tarde, na versão dos irmãos Grimm, em 1812, que surge em sua forma escrita, a
versão mais conhecida, com a figura do caçador que abre a barriga do lobo, retira as duas de
dentro dela e a enche de pedras.
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Esse vivenciar a oralidade in loco, mas como externa, interagir com os narradores, mas
não sendo um deles, há nesse movimento muitas questões importantes. No sentido de ouvir e
conhecer as histórias do lugar onde vive e a cultura ribeirinha que se mantém mesmo diante da
urbanidade e colonização que foram se alastrando. Bem como por conhecer e expandir essas
histórias, visto que elas surgem muitas vezes em seus suportes escritos com uma visão do
colonizador, do homem branco de classe média, que ao transcrever as histórias reescreve-as a
partir do seu lugar. Dessa forma, escutar essas histórias tem função também de tirá-las do lugar
eurocêntrico que por vezes as mantêm. É importante questionar os registros escritos e ouvir a
voz dos narradores que vivenciam o que narram. Nesse aspecto para Fernandes: “a cultural oral
é mais complexa do que a poesia oral que dela brota. O narrador é também parte dessa cultura.
Ele colabora para a sua manutenção à medida que a pratica. Também, através dela, ele ordena
seu modo de ser e de transformar as coisas do mundo” (2007, p.142-143)
Além dos repertórios formados por histórias coletadas com os narradores orais, há quem
vem realizando um trabalho de escrita de histórias próprias e as anexando a sua contação, como
Kika Farias (2020):
[...] Eu tenho buscado histórias que tocam o meu coração. Faço o meu roteiro
de histórias baseado numa escuta íntima. Averíguo dentro de mim o que eu
quero falar para o mundo. E essas histórias vão mudando comigo ao longo do
tempo. Algumas não conto mais, pois não faz mais sentido pra mim. Outras
eu conto desde o início e a cada vez que conto ela se torna mais viva. No
decorrer desta experiência como contadora de histórias comecei a escrever
pequenos contos e aos poucos tenho inserido as histórias em minhas
apresentações.
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[...] Eu criei a personagem a partir de minha bisa, ela era Pernambucana. [...]
Eu cresci com os meus familiares me falando que eu parecia com a bisa Josefa
conhecida como “Dona Mocinha”. Quando eu estava fazendo as minhas
vivências nas brincadeiras da cultura tradicional, eu decidi criar uma
personagem meio palhaça e meio mambembe e batizei ela com o mesmo nome
da bisa. [...] Quando eu despertei para a importância de coletar as memórias
de minha família, eu passei a escrever para registrar e fui colocando aos
poucos no roteiro. Ainda tem muitas histórias que ainda não sei como vou
contar, mas que estão ali guardadas para a hora certa.
como o palhaço Arnica, que é um personagem que já existia e foi ampliando seu fazer artístico,
mas ao contar histórias, traz narrativas que fazem relação com o universo do palhaço.
Como abordou Farias, o repertório de um contador não é algo fixo, ele vai se
modificando, à medida em que seu ofício vai se aprimorando e vai se compreendendo que tipo
de contador quer ser, que tipo de histórias quer pesquisar, quais ainda fazem sentido contar e
quais não mais. Neste contexto, Yohana Ciotti conta que no início procurava histórias que a
divertiam, depois começou a pensar em assuntos que a interessavam. A contadora conta que
tendo ela vindo da área do direito ficava “muito curiosa para entender como é que são essas
relações dos direitos humanos, como a relação da propriedade aparece nos contos e
principalmente a relação com as mulheres”. A partir desse pensamento, ela começa uma
pesquisa de como as mulheres contam histórias e de histórias com protagonismo de mulheres.
Ciotti (2020) expõe:
[...] Então esse cruzamento das mulheres, dos direitos humanos e a emoção
que estar naquele lugar me traz [...] E aí, a outra coisa que é uma obsessão
mesmo, eu tenho essa coisa com as peles e a mulher foca, principalmente que
eu vou colecionando versões, muitas versões, muitas versões [...] E essa coisa
da pele das mulheres, do trocar de pele, que tem que ir se cobrindo, que tem
um cruzamento, no meu ponto de vista, com a natureza, porque tem um certo
abuso da mulher, como se tem da natureza, acho que aí então tem um lugar do
corpo da mulher que está sendo sempre violado, se tem a mesma visão de que
se tem com o meio ambiente. [...] Aí os mitos iorubás, essas coisas que vão,
eu tenho muito medo dos mitos, não sei se eu sei contar, eu também tenho
muito medo da coisa da religião. A gente tá vivendo um momento muito
difícil, é uma coisa, eu estava falando com a Claudia, é uma revolução
protestante isso o que a gente tá vivendo? E ela falou: não é uma revolução. É
uma espécie de dominação lenta e perigosa mesmo. [...] Mas eu tenho bastante
receio, eu estudo, é muita reverência.
Ao pensar em quais histórias hoje são importantes contar, quais são aquelas que gritam
para serem contadas diante de séculos de silenciamento, que se volta o olhar de algumas
contadoras de histórias. Nessa perspectiva encontra-se também a fala de Bruna Campagnolo
(2020), ao dizer que ao longo do seu pensar sobre as histórias “muitas janelas foram abertas,
entre elas, e talvez a mais forte, tenha sido a de contar histórias de mulheres como protagonistas.
Então, é este o critério que utilizo pra escolher meu repertório. Além de claro, escolher histórias
que me tocam como mulher”.
É possível perceber que o protagonismo feminino é hoje um tema de grande procura e
pertinência, justamente por essa questão do silenciamento imposto por tantos anos, bem como
a partir do lugar que as mulheres vêm tomando na sociedade, no soltar dessas vozes até então
sufocadas. E, nesse sentido, os repertórios não são constituídos apenas de histórias da tradição
oral, mas também pessoais, abordando o protagonismo da mulher e de literaturas de autorias
femininas. Assim, há quem transite também pelas histórias literárias e, dentro desta literatura,
busca temas que sejam do seu interesse, como Vanessa Nakadomari (2020):
[...] Vai muito de um gosto pessoal, até difícil definir assim, especificamente,
porque não tem uma única linha de história que eu gosto, tem muito a ver,
normalmente, é que depende do público, né, o Aguaceiro é mais para um
público mais adulto, são histórias que abordam questões mais adultas e eu
optei por contar a partir de uma perspectiva do sagrado feminino. Agora,
quando eu vou contar infantil, aí normalmente tem a ver com histórias que
misturam as histórias tradicionais com uma linguagem um pouco mais
contemporânea, que brinca mais com as referências tradicionais com as
crianças e traz mais para o entendimento delas de agora.
Ao contar histórias de uma nação indígena pode se lidar com elementos simbólicos
que não fazem parte do cotidiano da sociedade urbana. Sobre as poéticas da oralidade, para
Antônio Candido (2006, p.54), “a função total deriva da elaboração de um sistema simbólico,
que transmite certa visão do mundo por meio de instrumentos expressivos adequados. Ela
exprime representações individuais e sociais que transcendem a situação imediata, inscrevendo-
se no patrimônio do grupo”. Assim, a visão de mundo transmitida dentro da nação indígena cria
78
esse patrimônio do grupo, mas que pode se dissolver em muitas interpretações ao sair do
Etnotexto.
Há quem conte histórias indígenas e o faz muito bem, de forma a valorizar a cultura
daquele povo. O primeiro passo para levar sua história ao público é ter segurança no ato de
contar. Contador e história precisam ter uma ligação, no sentido de já se ter de antemão um
conhecimento da origem da história, se é autoral, se é inspirada em algum fato real e se é
indígena, de qual nação. E nessa pesquisa já se mostra uma preocupação com o respeito pela
origem das histórias. Cada um conta o que dá conta de contar.
Sobre essa relação do poder contar essas histórias, em conversa informal com o escritor
e contador de histórias indígena Cristino Wapichana (2020), ele expõe que:
Histórias são histórias. E todas elas têm significados, tem razão. Elas
justificam tudo que existe no mundo. Tudo que existe é justificado pelas
histórias. Eu acho que as histórias que não mexem diretamente com o sagrado,
que não tem influência, um contador que não seja pejorativo, ofensivo àquela
história que está contando, não sei por quais razões seria crime fazer. Insultar
é uma coisa, agora você contar simplesmente a história, isso é válido. Não
fosse isso a gente não conhecia história de outros países, de outros povos, não
conhecia nem a do judeu lá, que é mais conhecida, a bíblia né. Então histórias
são histórias. Esse papo de santificar tanto as histórias, que tem isso e aquilo,
algumas que são exceções, mas o resto são histórias. Elas só justificam as
coisas. É importante que as pessoas conheçam. É importante que as pessoas
conheçam esse povo da qual a história pertence e o que ela significa para o
povo. Isso não é nenhum crime, não é uma ofensa, não é nada não. Esse
papinho de santificar as coisas, eu não acho isso bacana não, sabe? Acho que
é mais uma jogada mais comercial do que de fato. Eu nunca vi um indígena
proibindo de contar. Eu sou de Roraima e lá eu conheço minha gente. Eu tô
em São Paulo hoje e só vi por essas bandas, aqui do sudeste, sul, essas paradas,
que os indígenas tem algumas ondas, sabe? Mas acho que é mais onda mesmo
do que fato. Então histórias são histórias. Histórias são para ser contadas, pra
ser falada, pra ser analisada. Elas que trazem magia, que trazem milagres pra
gente, que trazem ensinamento. Então por mim, conte. Conte. Desde que você
não ofenda o povo e diga de quem é a história. História é para ser contada e
às vezes você vai contar bem melhor do que eles contam. Não é ofensa não.
Alegra o mundo. O mundo tá precisando disso.
Para Wapichana contar histórias indígenas não apenas não se configura como uma
ofensa, como ele incentiva que esse repertório esteja na boca dos contadores de histórias, para
que os não indígenas tenham acesso a esse conhecimento e a essas histórias, bem como para
diferenciar um povo do outro. O Brasil hoje conta com 305 nações14 indígenas que falam
línguas diferentes, têm costumes diferentes, crenças, culturas, valores e histórias diferentes.
14
Dados do censo de 2010.
79
Cada uma dessas nações apresenta significados distintos e possuem diferentes crenças sobre as
histórias que permeiam nosso universo, como a criação do mundo, das pessoas, dos animais.
Cada nação indígena possui uma história sobre a criação da humanidade, a partir da sua visão,
das suas justificativas e significados. E o escritor coloca que é importante conhecer essas
histórias e dizer a qual nação pertence, mostrando a infinidade de histórias existentes que falam
sobre um mesmo momento. E quando reconhecemos as diferenças e complexidades de cada
povo e divulgamos esse conhecimento por meio das histórias, estamos colaborando para que
preconceitos tão arraigados no sistema social que estamos inseridos, sejam aos poucos
erradicados. Wapichana fala ainda sobre histórias serem histórias e que ninguém é obrigado a
crer nelas, mas é importante conhecê-las e respeitá-las. E assim como as históricas bíblicas não
fazem sentido dentro de suas crenças da nação Wapichana, os distintos mitos de origem também
não farão para o povo cristão, mas para conhecer e respeitar a história do outro, não é necessário
ter aquilo como verdade para si.
A partir desse pensamento, a contadora de histórias Cristiana Ceschi que na 4ª edição
contou histórias indígenas das nações Xavante e Karajá, junto da jornalista Angela Pappiani, a
qual tratou sobre a atmosfera desses contos, colocou em entrevista publicada no Jornal de
Londrina, em 15 de agosto de 2014, que não era só simplesmente estudar a narrativa e recontá-
la, mas era necessário entrar dentro da história, perceber também os traços e trejeitos desse
contador ancião indígena. “Foi uma das coisas mais desafiadoras que já fiz, porque é um texto
com palavras, tradições e ancestralidade que, se deixadas de lado, fica uma história vazia. [...]
Foi um exercício de entrar em contato com a cultura”.
Sobre essa ideia de Mirna Rolin, Yohana Ciotti também expõe sobre as histórias que
os contadores marcados pela urbanidade contam e as diferenças de algumas histórias contadas
na voz de quem está apenas contando algo que não faz parte de sua vivência cotidiana e a
contação na voz daqueles que vivenciam em seu dia a dia o que estão contando. Nesse sentido,
Ciotti (2020) traz:
[...] Tentando descobrir qual era o meu jeito, eu já estava mais velha também,
com experiência na casa dos 40 anos, então eu já tinha, sei lá, um outro olhar
sobre o que podia fazer, com que recursos eu fazia. Aí foi isso, muito do
trabalho do Giu e da Letícia que tem uma influência de entender a cidade, de
entender que eu não vou contar, eu particularmente, pela minha história, não
ter uma ligação com a tradição. Eu vejo no Oralidades15 por exemplo, eu via
as amigas lá do Nordeste, que elas entram cantando em cena com uma
desenvoltura, uma coisa, aí você vai jantar com elas e elas entram cantando
no jantar, com aquela desenvoltura e reclamando que no restaurante não tem
15
Oralidades - Simpósio Nacional de Contadores de Histórias, ocorrido no SESC Santos/ SP.
80
No cotidiano dos contadores que vivem essa ação como trabalho, isso pode ser um
aspecto recorrente, há quem é contratado para apresentar em centros de educação infantil ou
em festas de aniversários e são requisitadas algumas temáticas específicas. No entanto, nem
81
sempre fazem sentido, colocando a história como uma obrigatoriedade na discussão de alguns
temas, como por exemplo histórias para mostrar às crianças que é importante escovarem os
dentes ou histórias de aniversários de 1 ano. Desse modo, para Praline Gray-Para (apud
MATOS, 2014, p. 125):
O ter que lidar com esse tipo de explicação é uma questão que muitos contadores já
vivenciaram. A contadora Dani Fioruci (2020) expõe que essa prática também está presente na
constituição de seu repertório:
[...] Eu gosto de ampliar bastante meu repertório. Acho que tem uma coisa que
é essencial é que você tem que gostar da história. É fundamental, gostar da
história que você conta. Quer que eu seja bem sincera? Muitas vezes
comercialmente também. Não vou dizer comercialmente, mas muitas vezes
tem história também que é encomendada, nesse sentido. Acaba fazendo parte
do seu repertório, eu passo a gostar da história. [...] Tem encomenda, isso
acontece, bastante. Mas tem algumas histórias que você fala: eu gosto. [...] [A
encomenda se dá] por exemplo, ah vou contar histórias para pequenos, e a
pessoa diz quero que traga histórias tradicionais, contos dos irmãos Grimm.
Ah, queria que trouxesse... já aconteceu de livros também assim, a escola vai,
olha a gente e quer essa leitura, quer que esse livro se transforme numa
contação de histórias. Dia dos pais, por exemplo, algo temático. Isso acontece
também.
Mesmo tendo histórias que não entraram no repertório por escolha própria, muitos
contam histórias a pedidos de escolas, eventos ou em aniversários e mesmo às vezes não sendo
o ideal que se quer, esbarra na questão financeira, se sua fonte de renda vem desse trabalho.
Assim, o repertório é constituído de muitas formas e a partir de distintos olhares, que
variam de acordo com a abordagem que cada contador tem diante dessa linguagem. Há dentro
dessa escolha de repertório muitos aspectos, como o repassar uma prática de saberes, dar voz a
narrativas até então silenciadas, falar sobre temas difíceis ou sobre quem já passou por algumas
situações incômodas e seguiu adiante. Dessa forma, dentro da ação de contar histórias está
imbricada a preocupação com quais palavras se quer lançar ao vento, que fio precisa ser tecido
nesse momento, e quais que mesmo já tendo sido tecidos no passado, precisam hoje ganhar um
novo visual, marcando as urgências da contemporaneidade e das cidades.
82
A definição de performance que é adotada aqui é o conceito proposto por Paul Zumthor
(2010, p. 31): “A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é
simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, circunstâncias
[...] se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis”. A performance é o fator principal
que constitui a contação de histórias. Quando o contador de histórias se coloca diante de seu
público com uma história para contar, vai se tecendo o fio narrativo ali, naquele instante e o
texto, a mensagem poética, vai surgindo. É durante essa comunicação poética, por meio da voz,
do corpo, dos gestos e dos elementos que o contador pode carregar, como objetos ou
vestimentas, que o público enxerga o fio que está sendo tecido.
As circunstâncias do espaço e do público fazem parte do que constitui a performance.
Nesse sentido, dentro do ECOH, é possível ver como a interação desses aspectos são
fundamentais para que a mensagem poética seja tecida da maneira como é. Com as contações
do festival ocorrendo em vários pontos da cidade, percebe-se também as diferenças na
performance quando ocorrem no teatro, no pátio ou na sala de aula de uma escola, ao ar livre
ou numa praça. As características do espaço são determinantes na performance.
Quando se conta em uma praça se está sujeito às efervescências do espaço, a todo tipo
de intempérie. A rua é um lugar de passagem, o que pode fomentar a dispersão. Mas a
compreensão das interferências da cidade pode ser revertida para à performance. Pensar uma
contação em um ambiente aberto é pensar e levar em conta antecipadamente o contexto deste
espaço. Nesse contexto, para Daniela Landin (2020):
São muitos os aspectos do espaço que são necessários de se levar em conta, por isso
se torna bastante importante poder conhecer o espaço antes da apresentação. Fator esse que é
levado em conta pela produção do ECOH que sempre busca, seja na praça ou na escola,
determinar com antecedência em qual parte do local a apresentação será mais adequada.
Aspectos estes que não ocorrerão dentro de um teatro, em que todo o público está ali
presente com o mesmo objetivo de assistir àquele momento artístico. No entanto, a apresentação
dentro do teatro também é analisada diante das várias possibilidades de se utilizar esse espaço,
nesse viés Daniela Landin (2020) expõe ainda:
Além do fator espaço que traz mudanças no pensar o momento da contação e onde
pode surgir interferências não previstas, há no ECOH a participação de aspectos que mesmo
antes combinados se mesclam à performance da contadora, e que vai acontecendo ali, naquele
instante, como ter uma tradutora para LIBRAS, como ocorre em algumas apresentações. A
tradução que durante o 9º ECOH ocorreu em seis apresentações foi feita por Gabi Abreu
(figuras 9 e 10). Para ela a experiência de “dividir o palco com os contadores foi um presente
que somou em sua caminhada” e ressaltou como traduzir as histórias de um festival artístico é
bastante diferente de traduzir outro tipo de fala.
Sobre sua experiência com tradução de contação de histórias no 9º ECOH, Abreu
(2020) diz que:
[...] Namoro com o ECOH há muitos anos, ajudando na produção e na
divulgação. No 6º ECOH participei da Oficina do Grupo Mãos de Fadas e eles
começaram a incentivar a continuar investindo justamente para parte de
interpretação de contação de História. Continuei estudando Libras, sou aluna
eterna do curso de Letras Libras em Maringá [...]. Os textos foram passados
com antecedência, na verdade o vídeo da apresentação dos contadores.
Quando comecei a estudar os textos, tive acesso aos grupos que iriam se
apresentar, para tirar dúvidas, conversar sobre os personagens. Eu, Gabi, vejo
uma grande diferença entre tradutor intérprete de Libras para palestras, do
teatro em si, e notei essa diferença quando fiz a Oficina, e nos anos seguintes
84
acabei ficando amiga da Thalita que era a TILS16 contratada no ECOH. Porque
a interação do Contador de História e o Intérprete faz toda diferença para em
alguns momentos não tirar o foco do contador e horas unir os dois. No
primeiro eu tava super nervosa, mas mesmo a Fabrícia invertendo a ordem das
histórias, como eu tinha estudado tanto, eu tinha praticamente decorado as
falas dela (por nervosismo), foi tranquilo e combinei com ela as partes
"coreográficas" de fazer junto. Foi um espetáculo que me marcou muito. Nos
outros fui ficando mais tranquila, conversava antes, e no máximo pesquisar
um sinal que não conhecesse, ou combinar um "sinal" para os personagens.
Alguns o próprio grupo me colocou nas dinâmicas (Benedita na Estrada) ou a
Kika que procurou entender melhor como seria. O único texto que tive de
última hora, foi da História da Gralha azul. Eu vejo esse diferencial pra atuar
na área da cultura. Não é só "traduzir e interpretar a Libras", inclui interagir
com o a apresentação mesmo. Talvez o que me ajude é ter feito parte de grupos
de pantomima no passado e ser bailarina também no passado.
Gabi Abreu aborda a questão de ter atuado em grupos de pantomima e como bailarina,
o que traz uma grande contribuição para a tradução de uma apresentação artística. Ela não é
apenas uma intérprete, mas é uma intérprete com conhecimentos na área artística, o que traz
bastante diferença para a sua performance. Nas apresentações, ela não era apenas uma tradutora,
mas ela também contava as histórias, por vezes havendo uma interação entre ela e os contadores
que se apresentavam. Ela fazia parte da cena.
Outro fator que se mesclou à performance da contadora foi em uma das apresentações
de Kika Farias, intitulada Dona mocinha no vai e vem da vida, durante a 9ª edição, em que
ocorreu a participação do Instituto Roberto Miranda, uma escola para cegos de Londrina. Neste
dia, o público pôde conhecer cada instrumento que a contadora carrega e que fazem parte de
sua apresentação, bem como os vários objetos que a personagem Dona Mocinha vem
16
Tradutor Intérprete de Língua de Sinais (profissional), que exige uma avaliação e bancas de
aprovação, atualmente da FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos) e do CAS/PR
(Centro de Apoio ao Surdo e aos Profissionais da Educação de Surdos do Paraná).
85
colecionando de suas andanças. O público pôde segurar, sentir o peso, o formato e a textura em
suas mãos e tocar os instrumentos em conjunto com a contadora, conforme pode ser visualizado
nas fotos 11 e 12.
[...] Um dos momentos mais incríveis que eles e elas proporcionaram foi com
uma instituição de pessoas com deficiência visual. Não sabíamos como ia ser,
como iríamos agir e todo mundo junto foi descobrindo o jeito de dialogar.
Pude apresentar os brinquedos e instrumentos. O público pôde sentir com as
suas próprias mãos o que a Dona Mocinha leva consigo: a roupa que veste, a
touquinha do seu cabeça, os detalhes de sua roupa. Foi muito emocionante!
A interação tátil fez parte de sua performance e a participação do público que pôde ver
com as mãos os objetos e instrumentos da contadora, se mesclou à sua performance, trazendo
novos significados e sentidos diferentes de suas apresentações ocorridas em outros horários do
festival sem a interação desse público.
A maneira como o contador tece a história, a voz, a entonação, os gestos, os olhares,
o uso do corpo, tudo implica na ideia de provocar reações do público. Para Zumthor (2010), é
por meio do corpo, na performance, que o contador é o tempo e o lugar e é por sua voz que tudo
isso emana. E diante dessa implicação de propor reações no público surgem diversas maneira
do fazer artístico com as histórias, existindo assim diferentes linguagens na performance de
cada contador. Zumthor traz a ideia de auscultar o texto, isto é, trazer a narrativa para próximo
do ouvido, a fim de compreender os sentidos do texto, na sua relação com o outro.
86
Quando a história é contada, é pela manifestação da voz que surge o afeto. A palavra
falada surge no interior humano e entra nos interiores de outros seres humanos. Isso ocorre
porque a voz está viva junto com a presença do corpo, o público pode ouvir e ver na hora em
que a comunicação está acontecendo. O corpo traduz em forma de gestos o discurso que está
sendo oralizado, mas sem cair no ilustrativo da fala, com gestos óbvios e redundantes. O corpo
diz o metafórico, exprime as palavras que a voz não diz, o gesto acompanha o enunciado,
suprindo a palavra.
Há um fio que liga o ser humano à poesia. Para Zumthor (2010) a poesia é aquilo que
é recebido pela voz e corpo no momento da performance, mas essa recepção é um ato único,
irreversível e individual. A performance em sua recepção irá unir, mas também unificar. O
ouvinte não recebe a mensagem poética passivamente, ele é um ouvinte-coautor. Isto porque
há uma reciprocidade entre contador, o fio poético que está sendo tecido e o público, o que gera
87
a sociabilidade humana. Para Matos (2014, p. 85) é nisso que se encontra o “fator essencial à
coesão dos grupos e à continuidade de uma história construída por muitas vozes, a muitos
gestos, a muitos textos”. Quando o contador conta a história para o público, ela passa também
a habitá-lo e nessas transmissões, as histórias vão se modificando, às vezes radicalmente, como
aponta Zumthor (2010), mas é assim que as tradições vão se transformando e se enriquecendo.
A interação do público também se torna aspecto fundante da performance. O modo
como este recebe, a participação, as respostas que vão dando à narrativa sendo contada, sendo
em palavras ou por olhares. Há um fio condutor durante toda apresentação, mas a performance
vai ganhando novas potencialidades com as respostas obtidas que o público vai proporcionando.
Sem o público não existe performance. Em algumas apresentações isso pode se tornar ainda
mais evidente como na de Kiara Terra que faz perguntas específicas para o público e espera
respostas para continuar, mas em todo trabalho de contação de histórias é possível visualizar
esse aspecto. Isso porque nessa linguagem, por mais que o contador se coloque à frente do
público para sua apresentação, o olho no olho é a vida da performance, as energias, as trocas, a
recepção simultânea. Mesmo com a contação ocorrendo em um palco, diferente do teatro
tradicional, não existe a quarta parede e, no momento em que há essa quebra, o contador está
sujeito às energias e olhares que a plateia emana e isso interfere diretamente na continuação da
performance.
A junção de todos esses elementos, o público, o espaço, a contadora, a intérprete, a
história contada e a interação que há entre todos eles no momento da performance é que formará
o aspecto único de cada apresentação e por meio disso a possibilidade do despertar de afetos.
Nesses tempos de sociedade pandêmica, no entanto, em que a recepção das histórias
se dá a distância, pela tela, com contações gravadas ou mesmo em lives17, mas sem a
visualização do olho no olho tão importante da performance, essa ideia do encontro, da
interação, do olhar, da troca de energias se amplia em muitos questionamentos. Pode se chamar
de contação de histórias, que é a arte do encontro, que se faz pensando em todos esses elementos
da performance, as gravações disponibilizadas no youtube, em que o contador não conta para
ouvintes, mas para uma câmera, pressupondo que haja ouvintes? A história chega, talvez não
da mesma forma que ao vivo, mas a essência dela está ali. Afetos mesmo nesse ambiente
também são produzidos. Se isso é uma contação de histórias ou é uma outra linguagem híbrida
ao audiovisual, se será passageira ou a partir de agora permanecerá, é o que vamos descobrindo
vivendo daqui em diante.
17
Live é uma transmissão ao vivo de vídeo em tempo real, podendo ser feita e transmitida em diversas
plataformas.
88
narrativa; mais tarde, quando esta se robustecia, ele era minado e lançado ao
precipício do esquecimento. (1987, p. 109)
As histórias que ele ouvia de sua mãe, como descreve no decorrer do texto, o fez
conhecer seus ancestrais, suas origens. Mas Benjamin estava inserido em uma cultura com
acesso às letras. No ambiente das cidades, há aqueles que quando crianças, não tiveram acesso
a livros, mas não há quem não teve contato, já na infância, com histórias que vieram da cultura
oral, seja por personagens bíblicos, religiosos, arquétipos ou contos de fadas. A poesia da
oralidade é a primeira a se instalar na memória da criança, ela se faz presente mesmo antes da
alfabetização. Para Meireles (2016, p. 50), “por esse caminho, recebe a infância a visão do
mundo sentido, antes do explicado; do mundo ainda em estado mágico. [...] Vagarosamente
elaborada, pela contribuição de todos, essa literatura possui todas as qualidades necessárias à
formação humana.” A oralidade sempre surge antes da escrita, o que infelizmente acontece
quando se chega à fase adulta é que a escrita assume valor muito mais importante do que a
palavra dita. Pode haver ainda analfabetos no mundo, mas muitos destes possuem grande
conhecimento de mundo. O conhecimento não é, nem nunca foi, privilégio dos estudados. Essa
cura não é algo didatizado “vou te contar uma história e você estará curado de seus males”. Mas
é um acolher, um abraçar pela palavra, percebendo o poder que as histórias têm para acalentar
e dar forças para continuar, ao perceber que outros já passaram pelo mesmo que se está
passando.
Esse trazer a sabedoria oral a partir da voz de narradores de comunidades narrativas,
entrelaçando esse conhecimento de mundo com a ideia de pertencimento e identidade, teve
também seu lugar no 7º ECOH, em fevereiro e março de 2018 com a participação dos indígenas
Kaigang, Geni Grã To Ko e João Maria Tapixi, (figuras 13 e 14) da Terra Indígena
Apucaraninha, que narraram suas histórias, sobre a infância na cultura Kaigang, como era a
comunidade há 30 e 40 anos atrás e as diferenças para como é hoje. Trouxeram ainda histórias
de seus avós, causos e cantos indígenas.
91
se divertiram com o jeito suave e lúdico que ela tem de contar, quanto no público adulto em
que foi possível perceber memórias e sentimentos despertados de identificação e empatia.
Dentre as pessoas do público, há um misto de histórias e lugares de origem, em que
muitos são migrantes e as histórias contadas no festival, mesmo sendo de outras cidades e
estados podem ter relação com vivências e recordações de suas terras natais e da herança
cultural que carregam. Nesse sentido, no 9º ECOH, numa apresentação de Fabrícia Brito na
biblioteca do CEU (figura 15), na Zona Oeste de Londrina, a professora da rede estadual, Maria
Moreira, levou seus alunos e, em conversa ao fim da apresentação entre contadora, professora
e alunos foram criados momentos de bastante afeto. Brito que criou seu repertório a partir
também de histórias vividas e ouvidas no tempo em que morou na Bahia, despertou um
sentimento de identidade para a professora, que nordestina de Pernambuco e estudiosa de
histórias da cultura afro-brasileira pôde reconhecer ali, lembranças do vivido. Sobre essa
apresentação, Moreira (2020) expôs:
Por fim, nesse contexto posso citar ainda Clarissa Pinkola Estés (2018, p. 516), ao
colocar que:
Apesar de algumas pessoas usarem as histórias apenas para diversão, no seu
sentido mais antigo as histórias são uma arte medicinal. Existem os que foram
convocados por essa arte medicinal; e os melhores, na minha opinião, são os
que se deitaram com a história e descobriram dentro de si mesmos e em
profundidade todas as partes que se harmonizavam.
Muito foi exposto até aqui sobre os impactos que a performance da contação de
histórias exerce sobre seu público. O deixar-se afetar, o olhar para si e para o outro, a prática
de saberes, o conhecimento, o entretenimento por meio do lúdico, a troca de energias que há
nesse olho no olho entre contador e público, o perceber quais são as perguntas e as respostas
que carregamos. Essas questões surgiram a partir do observado durante o ECOH, bem como
pelas entrevistas com alguns dos participantes do Encontro. E a partir da costura de todos esses
fios e para adentrar especificamente a trajetória que o ECOH tem na cidade de Londrina e região
e os impactos que tem gerado nesse ambiente, é que inicio a segunda roda de histórias.
97
“no que diz respeito à estrutura, devemos dizer que um festival é um produto complexo: é o
resultado de um processo criativo baseado em conceito (ou seja, a ideia inicial), envolvendo
aspectos artísticos e de gestão”18. Nesse sentido, temos a linguagem artística como a ideia
inicial, no caso do ECOH, a contação de histórias, mas que só é possível de existir pela junção
do trabalho feito a muitas mãos. Há uma coordenação geral, no caso do ECOH, marcada pela
liderança de Claudia Silva, mas que só alcança sua dimensão com o trabalho dos produtores,
dos parceiros da comunicação, do design, da fotografia, da filmagem e dos artistas que
apresentam seus trabalhos no festival.
Como características dos festivais artísticos, Montagnani; Morganti & Muti abordam “a
alta concentração de performances em um espaço e tempo específicos, a dimensão ao vivo, a
habilidade de criar fortes relações entre territórios, fundir a comunidade e a identidade cultural
e a promoção da arte que mistura cultura e entretenimento”19 (2011, p. 1). O ECOH acontece
durante duas semanas do ano e durante esse tempo específico há performances nos três períodos
do dia em diversos pontos da cidade, gerando uma geografia afetiva das histórias. Em algumas
localidades, principalmente em escolas e bibliotecas, essa comunidade já espera o momento do
festival, mantendo-o como uma atividade já programada do ano. Nessa perspectiva, as autoras
apontam ainda a importância do envolvimento do público, pois um festival é feito a partir da
participação de pessoas: o público, os artistas e os seus operadores. A partir dessa ideia, as
contribuições de Milicent Weber (2018) tratam sobre as diferentes e individuais formas da
experiência do público diante da performance e que isso é fundamental para compreender a
linguagem artística. Essas experiências individuais são as redes de afeto que vão se formando,
que fazem ser possível visualizar uma dimensão do festival.
Diante de uma cidade em que há dez festivais de várias áreas artísticas, como apontado
por Claudia Silva, ter um festival de contação de histórias é, além de importante para a
ampliação da cultura, um ato político de demarcação dessa linguagem enquanto arte e de
valorizar o artista que emprega seu trabalho nessa área. O festival então, aumenta o olhar para
essa linguagem, proporciona contatos, amplia repertórios e propicia a visão ao vivo do trabalho
de artistas consagrados da área. Montagnani; Morganti & Muti (2011) expõe ainda sobre a
intenção dos festivais de organizarem suas ações como uma forma de oportunizar os artistas a
exibirem os seus trabalhos e, nesse sentido, propiciar um compartilhamento de ideias entre eles,
18
As far as the structure is concerned, we must say that a festival is a complex product: it is the result
of a creative process based on concept (i.e., the initial idea), involving artistic and management aspects.
19
The high concentration of performances in a specific space and time, the live dimension, the ability
of creating strong relationships among territory, casting community and cultural identity and the promotion of art
mixing culture and entertainment.
99
Como qualquer outro projeto, os festivais precisam ter uma sólida base
financeira para existir. Tendo em vista que os custos aumentam à medida que
os eventos se tornam mais complexos e elaborados em seu programa, é
necessário buscar uma ampla gama de recursos para captar os fundos
indispensáveis.20 (2011, p. 6)
20
As any other project, festivals need to have a solid financial base to exist. Bearing in mind that the
costs increase as the events become more complex and elaborate in their program, it is necessary to seek a wide
range of resources in order to raise the indispensable funds.
100
Como apontaram Montagnani; Morganti & Muti (2011), pensar um festival hoje sem
uma sólida base financeira se torna uma tarefa impossível. E, neste aspecto, torna-se necessário
tratar sobre as formas de financiamento cultural do país e as políticas públicas existentes para
a cultura.
Políticas públicas se caracterizam como um conjunto de ações e programas
desenvolvidos pelo poder público que têm como função assegurar que os direitos à cidadania,
educação, saúde e cultura, determinados pela Constituição, sejam seguidos e respeitados.
Podem ser políticas pensadas para toda a sociedade ou de forma específica para alguma
comunidade ou campo.
Dentro dessas ações encontram-se as políticas culturais que contribuem para valorizar
a produção nacional e democratizar o acesso à cultura, além de gerar empregos e renda. Em
tempos em que a desvalorização da cultura é tão perceptível e há críticas movidas pelo
desconhecimento das formas de funcionamento das políticas de financiamento à cultura, é
importante salientar a importância da cultura e os modos como o capital é destinado a ela. Junto
a esse repassar do dinheiro destinado às ações culturais, há a necessidade, por parte de quem
recebe, de comprovar com o que está sendo gasto essa verba, por meio de relatórios, prestações
de contas, informando quanto gastou, no que gastou e o público atingido nessas ações. Dessa
forma, a circulação de ideias equivocadas, mas infelizmente tão presentes hoje, sobre o artista
querer se enriquecer com verba pública, pode ser facilmente averiguada.
O ECOH de Londrina é financiado por meio de políticas públicas municipais, o
PROMIC, que se articula como um instrumento de fomento à cultura bastante importante para
cidade e garante a realização de projetos nos mais variados setores e linguagens artísticas, com
ações de circulação, formação, produção, pesquisa e a existência de festivais. O PROMIC
possibilita a expansão das ações culturais para todos os bairros do município, inserindo assim
a cultura artística no espaço público.
Criado inicialmente com uma proposta de renúncia fiscal, em que era possível repassar
os impostos para um projeto cultural, foi com o aprimoramento do tempo, se fazendo um
desenho de uma outra proposta em que se criaria o Fundo Especial de Incentivo à Cultura. De
acordo com Valdir Grandini (apud TEIXEIRA, no prelo) “o PROMIC foi esse desenho. Um
desenho que também ajudou muito o produtor cultural, porque não precisavam mais gastar 50%
do tempo dele correndo atrás do empresário [...]. Agora você pode se concentrar na sua
atividade.'' E continua: “o PROMIC foi criado para oferecer cultura como uma política pública,
101
ou seja, foi criado para que se ofereça cultura como um direito, em primeiro lugar, da
população”. É importante pensar essa relação da cultura como direito humano e dela ter um
lugar junto às demais necessidades humanas, nos projetos de políticas públicas. Valdir Grandini
(apud TEIXEIRA, no prelo) expõe ainda que o PROMIC:
Aguiar, Malagueta e Arnica, Tião Balalão21, Grupo Fio de Meada, Edgar de Abreu, Meninas
do Conto, Tapetes Contadores de Histórias, Ana Luiza Lacombe, Paulo Freire e Kiara Terra.
Contou ainda com três palestras com Giba Pedroza, Rovilson José da Silva e Sueli Bortolin e
Elena Maria Andrei. Oficinas com Mauro Rodrigues, Meire Valin e Kiara Terra. Além de 5
sessões de cinema com filmes que se utilizam da narrativa para contar histórias, propondo após
as exibições dos filmes uma discussão sobre a relação narrativa-contação-cinema.
21
Das 3 apresentações que constavam na programação do festival, Tião Balalão realizou apenas a
primeira, pois durante esse período, o contador londrinense teve um aneurisma cerebral, precisou ser internado e
faleceu três dias depois.
106
religiosa, cultural e ativista negra, que foi morta meses antes do Encontro. A homenagem
ocorreu por meio de palestras e histórias. Sobre essa homenagem no site oficial do ECOH22,
consta que:
Pela primeira vez, fizemos uma mesa redonda para contar uma história de
vida. Yá Mukumbi, nossa querida Dona Vilma, tinha sido assassinada em um
crime que abalou a cidade. Ainda estávamos atônitos com a perda desta
querida e importante figura tanto para o movimento cultural da cidade, como
para o Movimento Negro e também para as pessoas ligadas ao candomblé. A
mesa chamava-se Yá Mukumbi – cotidiano, cultura e religiosidade.
Participaram dela Fábio Lanza, professor de História da UEL e autor da
biografia de Dona Vilma; Dona Cida-Tussulê Genan, ekedi que trabalhava
com ela no terreiro, e o jornalista Mário Fragoso. A mediação foi da jornalista
Patrícia Zanin. Foi um momento delicado e importante, um misto de
homenagem e também processo de elaboração da perda para os presentes.
Falamos sobre Yá Mukumbi para que ela ficasse conosco através de suas
histórias.
22
Em novembro de 2020, o ECOH lançou seu site oficial com a programação do10º Encontro, com a
história das edições, contadas por meio de textos e imagens e várias informações sobre suas ações. Disponível em:
https://ecoh.art.br/ Todas as páginas e redes sociais do ECOH estão referenciadas ao fim do trabalho.
107
Dessa forma, devido à dificuldade de se lidar com algumas questões que os editais
colocam, como a licitação de trabalhos artísticos e com o intuito de ampliar a diversidade dos
repertórios do festival, com uma maior democracia nas escolhas dos participantes, optou-se por
a partir da 4ª edição se criar um edital de inscrição.
Assim, no 4º encontro, ocorrido de 5 a 18 de agosto de 2014, estiveram presentes: Cia.
Arte Negus, Gislaine Tenório, Cia. Boi Voador, Edna Aguiar, Rafael de Barros, Fio da Meada,
Famiglia Coisa Fina, Chico dos Bonecos, Cinthia Siqueira, Irene Tanabe, Josiane Geroldi/Cia.
Contacausos, Paulo Henrique Sant’anna, Angela Pappiani e Cristiana Ceschi, Kiara Terra e
Grupo Pé de Maravilha. Além de oficinas com Lydia Hortélio, Meire Valin, Famiglia Coisa
Fina, Elena Andrei e Cristiano Meirelles. Contou ainda com uma palestra de Lydia Hortélio e
um lançamento de livro de Ana Roxo. Além da exposição do projeto Costurando Histórias,
projeto da Escola Municipal Arthur Thomas, em que os alunos e alunas criaram tapetes para
contar histórias.
108
Dinah Feldman, Grupo Mãos de Fada, Cia. Contacausos/Josiane Geroldi e Paulo Freire, Cia.
Malas Portam, Vanessa Nakadomari, Núcleo Ás de Paus, Gilza Santos, Andrea Pimenta e
Daniella Fioruci, Edna Aguiar, Gisa Oliveira, Cia. Os Palhaços de Rua, Exército Contra Nada/
Rafael de Barros, Cia. Kiwi de Jaqueta, Cia. Carona Pra Contar, Flávia Wolffowitz, Grupo
Makunaícontos e os narradores indígenas Geni Grã To Ko Fidencio e João Maria Tapixi. Quatro
oficinas com Danilo Furlan/ Cia. Manipulando, Meire Valin, Flávia Wolffowitz e Grupo Mãos
de Fadas, sendo esta última a oficina mencionada por Gabi Abreu no item 5 da primeira roda
de histórias, em que a proposta dos oficineiros era trabalhar a contação de histórias em LIBRAS,
momento que foi discutido e ensinado esse contar histórias na modalidade visual. O encontro
contou ainda com brincadeiras e cantorias ao ar livre.
Rosazul, Edna Aguiar, Palhaço Arnica, Yohana Ciotti, Cia. Zoom/ Patrícia Maia e Dovinho
Feitosa e Viviane Feitosa com contações de histórias. Quatro oficinas com Flávia Angelo
Verceze e Vivian Karina da Silva, Renato Forin Jr., Kelly Orasi e Eric Chartiot/O
Magicontador. Além de uma participação na V festa do EMI, na terra indígena Barão de
Antonina, com a oficina de Flávia Verceze e Vivian Silva.
Em 2019, também por atraso da verba do PROMIC, não ocorreu a edição do festival.
Assim, a 9ª edição ocorreu de 03 a 14 de março de 2020 e contou com a presença dos contadores
Edna Aguiar, Cia. Curumim Açu, Gisa Oliveira, Cia. Koi, Cia. Cosmicômica/Bruna
Campagnolo, Diego Loman e Thainara Pereira, Vanessa Nakadomari, Tricantumconto,
Fabrícia Brito, Emilie Andrade, Giuliano Tierno, Letícia Liesenfeld e Yohana Ciotti, Cia. Pé
de Cura, Palhaça Malagueta, Cia. Zoom/Patrícia Maia, Benedita na Estrada, Kika Farias e Kiara
Terra. Teve ainda três oficinas com Giuliano Tierno, Letícia Liesenfeld e Yohana Ciotti, Emilie
Andrade e Kiara Terra. Nesta 9ª edição começou-se uma parceria com a Casa dos Jornalistas,
antiga sede do sindicato dos jornalistas de Londrina, no intuito de transformá-la na Casa do
ECOH.
112
Dentro dessas apresentações ao longo das nove edições presenciais, muitas maneiras
diferentes de se contar histórias foram vistas. O festival é marcado por um hibridismo de
linguagens que se unem e que se mesclam à arte de contar histórias. Os critérios de seleção para
a participação no ECOH são construídos visando a diversidade. Nesse sentido, não apenas as
maneiras diferentes de contar, mas nos repertórios que abrangem histórias de vários povos e
temáticas.
Já passaram histórias dos sertões brasileiros, causos contados e cantados na viola,
cantigas, parlendas, contos caipiras, contos de morte, histórias de assombração, contos
nordestinos, mineiros, contos de fadas clássicos e revisitamentos, fábulas, histórias africanas e
dos orixás, histórias de mulheres e com protagonismo feminino, mitologias de vários lugares
do mundo, histórias pessoais, de avós e da infância, histórias indígenas, contados tanto por
artistas urbanas como pela participação de indígenas.
A décima edição do ECOH aconteceria em agosto de 2020, mas devido à pandemia do
Covid 19, precisou ser adiada. Para os artistas se manterem nesse período é necessário pensar
novas formas de ação. Dessa forma, mesmo nada substituindo a presença física que é o
113
encontro, como décima edição e comemoração dos 10 anos do festival, suas ações ocorreram
de forma remota, entre 31 de outubro a 30 de novembro de 2020.
A 10ª edição contou com lives com apresentações de Canastra Real, François Moïse
Bamba e Laura Tamiana, Toni Edson, Tapetes Contadores de Histórias, Coletivo cada um no
seu quadrado – Warley Goulart, Daniella d’Andrea, Gislayne Avelar Matos e Aline Cântia.
Uma conversa com Frederico Fernandes. Três rodas de histórias com Keu Apoema, Luciene
Souza e Toni Edson, com mediação de Frederico Fernandes; Cia. malas Portam, Maria Coelho,
Drika Nunes e Zé Boca; e com Edna Aguiar, Emilie Andrade, Leonel Ferreira, Letícia
Liesenfeld e Paulo Bi. Um projeto de entrevistas feito por Josiane Geroldi, conversando com
Paulo Freire, Emilie Andrade e Aline Cântia. Um projeto de Aline Cântia chamado Contos com
Vinho, entrevistando Sebastião Farinhada. Uma oficina-oráculo com Danielle Andrade. E
oficinas com Toni Edson, Sandra Lessa, Ana Luísa Lacombe, Daniella D’Andrea, Pamela
Salles e Yohana Ciotti. Com exceção das oficinas (menos a do Toni Edson, que foi transmitida
ao vivo), toda a programação de lives estão disponíveis no youtube e facebook do ECOH. Além
dessas apresentações ao vivo, durante todos os dias desse um mês de evento foi lançado às 10
horas, durante os dias de semana e às 10 e às 17 horas, aos fins de semana, um vídeo já gravado
de diversos contadores, de diversas localidades do país. Todo esse material está disponível nas
redes sociais do festival.
Todos os anos foram feitos materiais gráficos de divulgação, contendo toda a
programação e informações sobre as histórias e contadores. Essas artes foram criadas: na 1ª
edição por Rodolfo Ribeiro e Hermano Pellegrini, na 2ª pelo Grafatório, na 3ª pelo BRtipo, na
4ª por Bernardo Faria, na 5ª e 6ª por Ronnan Moraes, na 7ª e 8ª por Fernando Ito e Enoki e na
9ª e 10ª por Fernando Ito.
Foto: Minha
Durante esses dez anos de encontros foram poucas as vezes em que não houve uma
plateia cheia. De acordo com relatório do festival, fornecido pela coordenadora do evento, as
seis primeiras edições tiveram em torno de cinco mil pessoas cada, sendo a 6ª edição com 5.517.
Nas edições posteriores a coordenadora ressalta que devido a verba ter diminuído, diminuíram
por consequência o número de apresentações em escolas, tendo assim no 7º ECOH, 3.210
pessoas de público, no 8º, 3.122 e no 9º, 2.742 ao vivo mais 1.042 de público online nos vídeos
soltados no início da pandemia do Covid 19. Por fim, a 10ª edição, ocorrida inteiramente online,
teve um total de 11.852 visualizações dos vídeos lançados, transmissões ao vivo e oficinas.
Como o teor pedagógico do ECOH é bastante presente, no intuito de pensar a
importância de levar as histórias até as crianças e adolescentes, grande parte do festival é
pensado para as escolas, tendo apresentações que vão até a escola e apresentações em que os
alunos são levados até o teatro. Nesses tempos pandêmicos, em que as sementes estão sendo
plantadas por via remota, a forte presença do ECOH nas escolas e essa preocupação pedagógica
do festival não deixou de estar presente. Na 10ª edição, o festival criou o ECOH Pedagógico.
Sobre esse projeto, no site do ECOH é exposto:
115
Pamela Salles coloca como o ECOH abriu um caminho em sua vida, que o visto ali
desde 2011 não ficou apenas na efervescência do momento, mas que levou para a vida, inclusive
acadêmica e profissionalmente. Em sua fala é visível como a principal ideia que se tem da
contação de histórias ainda está apenas no campo da mediação de leitura, mas que apesar da
importância dela nesse sentido, ela vai muito além. Em sua oficina ela comentou que quando
ouviu o Véio contando pela primeira vez, ela ficou maravilhada e perguntou ao seu marido:
“você está vendo o que está acontecendo aqui?”. Ali, com tudo o que ela já vinha se alimentando
desde a primeira edição do ECOH, que o seu pensar sobre a força das narrativas se ampliou,
tendo a certeza dessa compreensão de que a contação é também a força da oralidade, é cultura
popular, é uma forma de discussão e ampliação de experiências. E com esse seu relato, volto à
ideia que o que separa o contador artista e o narrador tradicional é a consciência performática.
O narrador narra aquilo que conhece, aquilo que viveu, aquilo que ouviu. O contador conta o
que ouviu, o que leu, o que vivenciou, pensando junto com a história as maneiras de como ela
chegará até seus ouvintes. Há uma preocupação a mais com a utilização de recursos cênicos,
técnicas vocais, expressões corporais e faciais ou em jogos lúdicos, mas eles são iguais na
manutenção da necessidade de contar.
117
mesclam várias linguagens, que colocam diversos elementos em suas performances ou ainda os
que tratam a linguagem de forma idealizada ou servil.
São muitas as formas de contar histórias hoje, em ambientes informais ou os que
pensam essa área enquanto profissão, apresentando-se em festivais, encontros, escolas e
eventos variados. Dentro desse caminho, há muitas maneiras de trabalho, tem os que carregam
apenas a bandeira do enfoque ao incentivo à leitura literária, há os que querem desassociar essa
linguagem como ferramenta literária e difundi-la como um tipo de manifestação artística e há
ainda quem não compreenda as potencialidades dessa linguagem e trate como “uma coisinha
boba para entreter as crianças”. E olhar para todos esses pensamentos sobre o contar de histórias
hoje e perceber como essa linguagem vem ganhando cada vez mais visibilidade é o papel
desempenhado pelo contador urbano, que investe seu trabalho nessa área. Um trabalho que
exige uma relação com a palavra falada, mas também com a escuta e de como essa relação é
norteada pela memória dos saberes e experiência. Nesse sentido, recordo-me da história “A
fábula das três irmãs”, recontada por Fabiano Moraes (2012, p. 54-55).
Contam que em um castelo viviam três irmãs: Fala, Escuta e Memória. Fala gostava
de aparecer, por isso usava lindos vestidos e estava sempre à frente do castelo querendo
sobressair-se entre as irmãs. Escuta era a mais a calada de todas. E como as duas primeiras
irmãs não se davam muito bem, era comum que Escuta permanecesse escondida enquanto Fala
aparecia e só desse as caras quando a mesma silenciava sua voz e se ocultava em seus
aposentos. Então, Escuta saía e prestava bastante atenção a tudo que ocorria de mais
interessante e curioso ao redor. Depois corria para um dos quartos do castelo para contar tudo
o que vira para Memória, a terceira irmã e a mais caseira. Memória não perdia tempo,
registrava em um dos seus muitos cadernos o que Escuta lhe contava. Quando encontrava algo
que considerava muito interessante, Memória, que era a única irmã que se dava bem com as
outras duas, ia até onde estava Fala e lia para ela um trecho do seu caderno. Fala prontamente
colocava o mais lindo vestido e se dirigia a uma das sacadas do castelo, de onde anunciava
aos quatro ventos o que Memória lhe havia lido. Assim viviam as três irmãs.
Mas Memória às vezes se cansava de guardar, organizar e catalogar tantos cadernos,
e então jogava alguns de seus escritos em uma lixeira. Essa lixeira, por sinal, tinha um nome
bastante curioso, chamava-se Inconsciente. E, nos momentos em que a Memória dormia ou se
ausentava de seu quarto, uma de suas amigas, chamada de Criatividade, surgia voando pela
janela, feito um anjo, e em silêncio buscava algo que achasse interessante em meio aos velhos
escritos jogados por Memória na lixeira do Inconsciente.
121
E contam que, quando encontrava algo que lhe encantava, Criatividade voava até a
fala e sem ser notada sussurrava com suas próprias palavras aquilo que havia recolhido no
Inconsciente. Pois dizem que era justamente nesses momentos que Fala se tornava mais bela e
encantadora.
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Viver as cidades. Aquela em que vive e as por onde passa. Bruno Dutra que conta
histórias com a música, junto com Mirna Rolim, na Companhia Benedita na Estrada, fala sobre
ser um contador de histórias nômade. Os dois têm um projeto de contar histórias, em que
circulam pelo Brasil, viajando de bicicleta. Iniciaram a circulação com uma kombi, mas aos
poucos foram percebendo que com bicicletas era possível e com custos muito menores. Dutra
(2020) expõe: “É um trabalho de desapego. [...] O primeiro dia que saímos de bicicleta foi uma
sensação de liberdade. [...] Viajar assim é interessante, ficar um tempo, é bom, mas chega uma
hora que quer sair, não exatamente voltar para casa, mas às vezes faz falta uma rotina, a falta
de ter uma coisa minha”. Nessa jornada, eles contam que vão “com os ouvidos, o coração e o
corpo abertos, disponíveis para escuta”, e que é gratificante porque veem “muita beleza, o
mundo tá um caos, mas vemos tanta gente, tantas manifestações de cultura que já resistiram por
tanta coisa, golpes, ditadura, descaso, e continuam aí” e que isso vai se agregando ao modo de
pensarem a oralidade, a tradição e o contar histórias na cidade. Bem como as diferenças que
vão encontrando, cidades em que o acolhimento é mais frio e outras que acabam ficando mais
tempo que o inicialmente pensado, pois vão surgindo novos convites dentro da cidade e, assim
vão levando as histórias a todos os cantos.
Uma das ações importantes do ECOH é a descentralização da arte e a utilização do
espaço público. Ação essa que já é uma preocupação do próprio PROMIC também. Dentro do
festival em Londrina, ocorre uma circulação das apresentações, levando-as para todas as regiões
da cidade, em teatros, bibliotecas, escolas, praças e na nova parceria do ECOH, a Casa dos
Jornalistas. E além disso, há o itinerante, que surge como um braço do festival de Londrina que
abraça as cidades ao redor, em que as contações de histórias chegam em cidades pequenas onde
não há grande circulação de atividades culturais e artísticas, como os habitantes das cidades
comentaram em conversa durante o encontro. Essas cidades também se mobilizam para a
chegada do ECOH e as praças enchem de famílias, pais, professores e crianças.
Sobre essa descentralização do ECOH em Londrina, para Laís Marques (2020),
integrante da Cia. Kiwi de Jaqueta:
[...] Eu acho que o ECOH está numa crescente, hoje em dia a cidade, a região
sabe do ECOH, depois de nove anos de história. É importante essa parte da
descentralização e também do alcance do público porque existem espetáculos
que chegam nas escolas, as crianças estão na escola, o grupo vai até lá e conta
uma história. Então, às vezes, é um grupo que não vai ao teatro, o teatro vai
até a escola. Ao mesmo tempo tem uma programação que não é destinada para
123
as escolas, ela é geral, tem para o público adulto também, então quem é artista
na cidade também tem acesso. E as oficinas, tem aí uma parte formativa para
os contadores de histórias também. Então contempla essa parte da
programação artística, mas também tem uma função pedagógica, acho que
isso é também importante ressaltar. E agora num crescente do ECOH chega
nesse momento da itinerância, que é o ECOH saindo de Londrina e levando o
trabalho de Londrina e também de outros lugares, né, a Josi que é de Chapecó,
é uma parceira do ECOH e que vem também para mostrar um pouco dessa
mostra também em outros lugares, difundir mais ainda pelo Paraná, um dia
chega em outros lugares também.
A contadora expõe que depois de nove anos de história (agora dez) a cidade já conhece
o ECOH. Josiane Geroldi (2020) ressaltou que o ECOH “tem uma mobilização de plateia muito
grande, então não me lembro de ter ido em uma apresentação que não tivesse plateia sempre
lotada e lotada de crianças e de adultos e muita gente assim”. No entanto, é perceptível também
que esse festival se torna mais conhecido entre os já interessados por essa manifestação artística
e entre os trabalhadores da área da educação básica, principalmente pedagogos e professores
das Ciências Humanas. Marie-Claire Ribeiro Polla, professora universitária aposentada da área
de matemática, acompanhou grande parte da 9ª edição do ECOH e conta que, antes de 2020,
não lembra de ter ouvido falar sobre esse festival alguma vez anteriormente. Isso mostra que
mesmo tendo já um grande público, em que muitos participantes disseram ser o ECOH um
momento esperado do ano, esse público atingido se mostra dentro de áreas específicas. Mas que
gradualmente vai atingindo outros públicos que veem no festival um momento de afeto e
entretenimento para todos os tipos de público.
E ao levar as apresentações para diferentes espaços da cidade, o público atingido vai
também se ampliando, não se restringindo apenas a pessoas que já possuem o hábito de
frequentar teatros. Assim como, por meio das oficinas que ocorrem em todas as edições do
festival, há um aumento do número de pessoas que vêm se tornando interessadas nessa área,
gerando também mais contadores de histórias para a cidade. Sendo que alguns contadores de
histórias que hoje atuam no ECOH começaram a olhar para essa linguagem e se nomearem
contadores e histórias a partir desse encontro. Nesse sentido, Edna Aguiar, atriz já com uma
longa trajetória no teatro de rua, começou a conhecer essa linguagem artística e a ser também,
além de atriz, contadora de histórias por meio do ECOH. Ela assim se intitula: “filha do ECOH”.
Com relação à itinerância e o circular do ECOH por várias cidades e regiões de
Londrina, a companheira de Cia., de Laís Marques, Renata Santana (2020), completa:
[...] O itinerante eu acho muito importante porque chega em cidades que não
tem acesso quase nenhum a esse material artístico, às vezes a nenhum material
artístico. Já aconteceu também no ECOH de Londrina de a gente ir em escola
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Pontos importantes ressaltados pela contadora são, além de difundir as ações artísticas
em lugares que normalmente não chega esse acesso, é a ampliação do olhar para a linguagem
artística da contação de histórias e das linguagens artísticas de modo geral. Em conversa com
uma moradora de Jaguapitã, cidade que o ECOH fez sua circulação em novembro de 2019, ela
alegou nunca ter visto na cidade algo parecido com que era feito ali, um dia na praça com
manifestações artísticas e recreativas, e que não costumava ver a praça com tantas pessoas, que
era comum as crianças brincarem ali, às vezes, ou ter casais de namorados, mas tantas famílias
juntas não havia nunca presenciado sem ser alguma festividade da Igreja.
Santana aborda ainda como o PROMIC tem também sua importância nas ações
descentralizadas na cultura de Londrina e que mesmo existindo críticas é um modelo que
funciona, constituindo-se como um programa avançado de financiamento de cultura. As ações
decorrentes desse programa de financiamento se tornam ricas para uma ação formativa cultural,
sendo importantes ao propiciar esse olhar para públicos que normalmente não têm acesso a esse
tipo de inserção cultural e artística, ampliando, assim, as possibilidades de leituras de mundo.
Ainda sobre ocupar o espaço público e os lugares abertos, para Rafael de Barros
(2020):
[...] Essa coisa da praça é muito bacana também, usar o espaço aberto. Aí a
gente cai na questão da ocupação do espaço público, de as pessoas acharem
que eu posso vir pra praça ler um livro, trocar uma ideia, vir tocar uma música.
Eu estava ouvindo um cara outro dia de planejamento urbano, que ele fala que
no Brasil, a gente tem cidades hostis, então a pessoa vê a casa como um lugar
de proteção contra a violência. A gente então fazer isso é um jeito também de
dizer oh, venham pra praça. É um contra fluxo da violência. Eu acredito nisso.
Ocupar a cidade, tirar a máscara hostil que a cobre, isso demonstra uma ideia que o
festival é para todos, porque está sendo na praça, na rua, na cidade, em lugar aberto, é só chegar
e se aproximar. Isso é bastante perceptível no itinerante em que acontecem atividades na cidade
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por três dias seguidos. Sendo quinta e sexta-feira com idas às escolas e no sábado, tendo sido
feito um convite à comunidade, crianças, pais, professores e famílias, passam uma tarde na
praça com atividades culturais e recreativas. As ações iniciam-se com uma contação de histórias
e terminada a performance há momentos com brincadeiras, barracas de leitura, contações com
bonecos, pintura, música, em que é possível visualizar a comunidade local, com crianças e
adultos brincando juntos. No final da tarde, para fechar o momento cultural, há um segundo
contador de histórias que executa sua performance.
Além de ocupar a praça com os contadores e as atividades, ela é preparada para receber
a comunidade, com a brincadeira de cama de gato entre as árvores, com um caminho passando
por tecidos coloridos, com poemas amarrados nas árvores e postes, barracas e tapetes, conforme
figuras 46, 47, 48 e 49.
encontro. Na 9ª edição, essas apresentações ocorreram na Casa dos Jornalistas, em que está se
criando uma parceria para ser ali a nova casa do ECOH. Mas em todas as edições anteriores já
havia essa proposta, tendo ocorrida em vários lugares da cidade de Londrina, como: no Aterro
do Lago Igapó, na Praça Vila Industrial, na Praça Alvaro Cretã, na Praça do Monumento à
Bíblia, no Zerão, na Praça Pindorama, na Vila Cultural FLAPT e na rua Luiz Moro Neto,
utilizada durante o encontro como uma rua das brincadeiras e histórias. Esse espalhar do ECOH
pela cidade pode ser percebido na figura 50.
Foto: Minha.
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Nesta imagem consta alguns dos lugares abertos ao público em geral por onde o ECOH
passou ao longo de suas edições. Mas para além destes ambientes, há uma ampla programação
voltada ao público estudantil, nos CEMEIs e escolas de todas as zonas de Londrina. A
programação que dura duas semanas é normalmente dividida em uma semana com idas até as
escolas e uma semana com apresentações nos teatros e vilas culturais. A programação ao ar
livre ocorre aos fins de semana.
Essa ocupação do espaço público e a diversidade de público em diferentes locais são
aspectos interessantes para se observar quem são os participantes que frequentam uma
apresentação nas praças, que não são muitas vezes os mesmos que veriam aquela apresentação
num teatro. A sala de teatro ainda é vista como um lugar para um público que já se situa no
ambiente das artes ou da educação, para uma “classe intelectualizada”. Há uma separação que
mesmo não imposta, é existente. E ao propor apresentações em lugares abertos, mas também
em teatros, cria-se um estímulo para frequentar as salas de teatros, mesmo em outros eventos e
apresentações, desassociando a ideia da existência de uma “alta cultura” e de que a sala de
teatro seria o local que essa classe frequenta. Um encontro que ocorre na cidade, na praça, na
rua, na área pública, aproxima mais a ideia que a arte é pública. E vai além, o propagar das
ações ajuda a criar o hábito de frequentar outros lugares artísticos e consumir mais arte, pois
uma vez visto, vai se quebrando rótulos impostos. O mesmo ocorre ao levar o público da escola
para o teatro ou levar a contação de histórias até a escola, em que além de propiciar aos alunos
um maior contato com as artes, é possibilitado vivenciar uma compreensão do processo
educativo que vai muito além da sala de aula e do ambiente escolar.
Se o ECOH ocupa a cidade, como então o público chega até as apresentações? A
imprensa local tem dado uma boa cobertura, mas também não é um meio que chega a todos. As
redes sociais hoje são imprescindíveis para a divulgação de eventos, mas mais uma vez elas vão
chegar até aqueles que seguem a página, que se interessam pelo assunto ou que tenham nos
contatos pessoas interessadas que compartilham as postagens. Mas se há um objetivo de que a
população da cidade saia de suas casas para ir à praça ver uma apresentação, nem sempre isso
será o suficiente. O público que ocupa a praça junto com o ECOH é quem está passando por ali
naquele momento, são as pessoas que moram perto e são movidas pela curiosidade, indo atrás
do som que ecoa da praça, é a família dos estudantes que receberam o ECOH em suas escolas
e onde foram divulgadas as demais ações, além do público cativo que já acompanha o festival.
Mesmo assim nem sempre o público vem ocupar a rua junto. Mas o contador sabe seu ofício, o
leva consigo e o espalha. Sobre essa situação, no site oficial do ECOH, consta sobre um
episódio ocorrido na 4ª edição:
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Kiara Terra e sua História Aberta volta a Londrina. E mais uma vez, nos
surpreende. Este ano, resolvemos levar a Kiara para o União da Vitória, um
dos bairros com um dos menores IDH de Londrina. E lá fomos nós, com tudo
organizado para realizar a apresentação no Viva Vida. Para nossa tristeza, não
apareceu quase ninguém, apesar do nosso esforço de divulgação. Mas foi aí
que a Kiara nos surpreendeu. Desânimo? Parece que isso não faz parte do
vocabulário dela. Pusemos a caixa com o microfone no carro e saímos pelo
bairro. Ela ainda descia do carro e batia de porta em porta, convidando todo
mundo para vir ouvir a história. E Valeu a pena! Aos pouquinhos as pessoas
começaram a chegar. Não lotou, mas tivemos ouvidos ávidos naquele dia. Para
completar, vieram também pessoas de Arapongas, fãs da artista. Foi um dia
de muitos aprendizados para nós. No dia seguinte, tínhamos cerca de 300
pessoas para assisti-la na Praça do Monumento à Bíblia. Foi um dia muito
especial.
Na primeira roda de histórias, no item entre a cidade e a tradição, expus a fala de Kiara,
sobre ser o ambiente urbano, o capitalismo e o viver nas cidades inconciliáveis. Mas então onde
são esses espaços dentro do ambiente urbano em que é possível criar essa conciliação? O
contador de histórias cria esses espaços em lugares que antes não diriam ser possível. A crença
na força que as narrativas carregam, que tanto Kiara quanto a organização do ECOH possuem,
foi o suficiente para que ali se criasse um momento de conciliação. E se de início não havia
tantos ouvidos dispostos a sentirem esse afeto, a crença no poder da palavra não apenas ampliou
o número de ouvintes, como chegou até eles trazendo sentido.
Pensando nos lugares em que se cria essa conciliação onde antes só havia urgências
não atendidas, não posso deixar de destacar a participação do ECOH junto a um importante
lugar cultural de Londrina. O Canto do MARL – Movimento dos Artistas de Rua de Londrina,
hoje uma Vila Cultural. Durante a 6ª edição, o ECOH atuou junto à ocupação do prédio
abandonado há então 10 anos, com o intuito de transformá-lo em um Centro Cultural. Várias
das ações da 6ª edição foram nesse prédio (figuras 51 e 52) e, nas edições seguinte, a parceria
continuou, com atividades também ocorrendo no espaço do MARL. Em fevereiro de 2020, o
Canto do MARL passou a ser uma Vila Cultural, uma conquista bastante grande para os artistas,
pois essa mudança amplia as condições de funcionamento e a possibilidade de atividades
desenvolvidas.
129
“Pati (boneca) - Tava abandonado. Patrícia - Tava sim, né, esquecido, deixado pra lá. Pati
(boneca) – Aí, os artistas vieram e ocuparam e agora aqui tá acontecendo um monte de coisa
legal” (2020). Em sequência no mesmo vídeo, Kiara Terra (2020) expõe que:
Ocupar o espaço público com palavras, ideias e histórias, transformar o espaço público
abandonado em local de produção de cultura, retirar a máscara hostil da cidade por meio da arte
e da palavra, olhar para a rua como um lugar de todos: o caminho possível é o coletivo.
131
ECOH. Outro aspecto abordado por Silva é a Casa dos Jornalistas, antigo sindicato dos
jornalistas, localizada em uma chácara que contém um grande espaço com área aberta, situada
no início da zona sul de Londrina. Há a ideia de, depois de revitalizá-la, torná-la a sede do
ECOH, fazer lá a Casa dos Contadores de Histórias, com diversas atividades, oficinas e eventos
durante o ano e não apenas durante as semanas do festival. Na 9ª edição já aconteceram algumas
apresentações na chácara.
Na fala dos contadores é possível visualizar essas dimensões que as ações vêm
recebendo. Bruna Campagnolo (2020) ressalta, como importância do ECOH, a movimentação
artística na cidade:
Campagnolo traz a ideia da geração de emprego, aspecto esse muito importante, dentro
de um país que coloca a cultura em lugar de desprestígio, ao divulgar ideias equivocadas sobre
a utilização do dinheiro investido em cultura e desconhecendo o valor da cultura para a
sociedade.
Aborda também a importância de criar a cultura do hábito de assistir. Traz a atenção
para pais e professores preocupados em propiciar o acesso à cultura e à contação de histórias
para as crianças, ao saírem de suas casas para prestigiarem os trabalhos dos artistas. E de que
por meio disso vai aos poucos desmistificando a ideia de que as histórias só agradam as crianças.
Durante o Encontro, é possível ver também muitos adultos que vão assistir por desejos deles,
não estando necessariamente acompanhados de crianças.
Traz também a questão de além do público ir até os artistas, a importância do processo
inverso, levar para a periferia as apresentações do festival, onde o acesso a esse tipo de material
cultural é escasso. Essa ação coloca a presença de uma discussão sobre a leitura literária, quando
o contador expõe o livro de onde tirou a história e de tantas outras leituras de mundo
proporcionadas pelo olhar para as narrativas da oralidade. A presença do olhar artístico e
cultural em comunidades marginalizadas se caracteriza como um ponto importante da dimensão
que o ECOH atinge.
133
[...] Eu acho também que você fortalece, quando você faz uma concentração
de grupos e de eventos junto, você traz, você deixa a contação de histórias
mais expressiva. Através de uma divulgação, você movimenta a agenda
cultural da cidade, você traz pessoas, você chama a atenção das pessoas
através disso. Você promove para a cidade uma troca com artistas de outros
lugares, às vezes, com artistas que eles não conhecem. A cidade respira mais
a contação de histórias naquele momento e uma troca entre os artistas também,
nos festivais os artistas se encontram, se conhecem, um vê o trabalho do outro
e acho que esse intercâmbio cultural que acontece entre os artistas e o público
é muito importante.
Sobre ser referência já no país na área de contação de histórias, que Luís Silva expõe,
é um processo que vai se ampliando, com ajuda das redes sociais que proporcionam um maior
alcance da divulgação e como apontado por alguns contadores, o “famoso boca a boca”, pois
alguns relatos dos participantes são sobre a forma acolhedora que o ECOH é constituído, em
que quem participa tem vontade de vir novamente e faz uma divulgação positiva para as suas
redes de contato. Nesse sentido, a contadora paulista Yohana Ciotti (2020) quando perguntada
como conheceu o ECOH e o que estava achando sobre o que tinha encontrado em Londrina,
colocou:
[...] O ECOH tem uma fama maravilhosa, porque quem vem se apaixona. E
as pessoas já tinham falado aqui e ali, e eu vi o edital do 8, me inscrevi, não
conhecia, não tinha assim uma grande indicação. As pessoas mais próximas
ainda não tinham vindo, quem tinha vindo eram as pessoas sumidades, essas
pessoas que a gente fala assim nossa, né, estão nesse barco aí há muito tempo.
Aí, eu falei, ah vou arriscar, vou arriscar e aí arrisquei, e aí ano passado eu
vim, ano passado não né, no outro. E aí me apaixonei perdidamente assim,
pela estrutura, pelas pessoas que fazem, pela cidade, pelo jeito de acontecer a
coisa, numa seriedade descontraída, num jeito de fazer amigas assim
próximas, que vai acontecendo assim sem grande... na verdade deve acontecer
um monte de stress que a gente nem fica sabendo, que produção é sempre uma
loucura, um monte de gente para chegar, chegando, gente que chega com um
cenário enorme, gente que não chega na hora, mas acho que tem essa estrutura
do ECOH firmada nas pessoas e a figura da Claudia é, parece um pilar aí, de
sustentação, dessas pessoas todas que têm, que transmitem um gosto muito de
estar aqui, de saber o quanto isso é um privilégio nosso, poder fazer isso. E a
gente fica aqui com essa certeza de nossa como eu sou privilegiada, eu tô aqui,
nós estamos aqui juntas nessa hora falando sobre isso, que privilégio é esse.
linguagem. Assim, gera-se um encontro feito por pessoas que sabem o que estão fazendo,
entendem o poder da palavra, das histórias, da oralidade e da formação cultural na vida das
pessoas. Nem todos da equipe do ECOH são contadores de histórias, mas são ouvintes. É
possível visualizar que criaram um olhar para essa área e abraçaram essa linguagem criadora
de tantos afetos. Esse afeto que faz nós olharmos para nós mesmos e para os outros, que nos
propicia trocas e intercâmbios, que instigam o imagético e a imaginação, que nos fazem
perceber nossos privilégios e pensar coletivamente. O afeto é a força poética desse encontro,
um encontro intimista, do olho no olho, do estar presente.
A relação de como olhar para a contação de histórias faz pensar o seu próprio lugar é
perceptível na fala da fotógrafa do encontro, Valéria Félix, que conta a história do Encontro por
meio das imagens desde a 1ª edição e, cujo processo de pensar seu trabalho artístico veio do
entendimento da arte vivenciada ao longo desses dez anos. Para Félix (2020):
[...] ECOH pra mim é afeto, é encontro da potência da troca, por meio da
oralidade, de vivências humanas, das narrativas, do lúdico e do ser criativo.
Lembro que na primeira edição já contou com a presença esfuziante da Kiara
Terra, escritora e contadora de histórias que estimula o público a participar
junto com ela da história. Desde então, percebi que o público não era somente
mero expectador e sim ele faz também parte da Contação. Com isso, levei para
meu trabalho essa percepção e gosto muito de registrar ao longo desses anos
a plateia e suas reações. A plateia tem olhares diversos e vão se deixando levar
em momentos curiosos dependendo do clima podendo ser de tensão, alegria e
surpresa. Tudo pra mim é imageticamente potente. Crio também a minha
forma de contar o Encontro. Sigo conforme a programação, como há dias que
recebemos as crianças dos colégios no Teatro e há também a ida até eles nos
diversos colégios municipais da cidade. Isso é muito rico, pois a cidade toda
é comtemplada assim como locais públicos e abertos, praças e parques.
Aprendi também que a Contação não se resume apenas para público infantil e
ao longo desses anos vejo a seriedade que é tratada os temas, estudos e
pesquisas por professores e pessoas interessadas que participam também das
oficinas e cursos que o ECOH oferece juntamente na programação.
O trabalho artístico de Félix reconta o encontro por meio das expressões, dos
sentimentos evocados que ela poeticamente captura. Félix, que faz parte da equipe do ECOH
desde o início, está presente em todas as ações do encontro, indo em todos os locais que o artista
vai. Ela ressalta como esse envolvimento modificou seu pensamento sobre a contação de
histórias, que a partir do momento em que começou a ter contato com a linguagem, seu modo
de pensá-la se modificou e hoje ela utiliza desse envolvimento poético que o ECOH lhe
proporcionou no seu trabalho artístico com a fotografia. Assim, mesmo depois de acabar o
Encontro, é possível sentir a potência e a força poética presente nele, por meio da beleza de seu
trabalho fotográfico exposto nas redes sociais do ECOH.
136
Félix aborda ainda como é rico para a cidade, levar esse olhar para além de uma “classe
intelectualizada” que normalmente são os frequentadores dos teatros, mas de ver e viver a
cidade durante as ações. Ao democratizar o acesso das histórias a todos os cantos da cidade
cria-se também uma cultura do assistir, do ouvir. A contadora, produtora e coordenadora com
as escolas Dani Fioruci (2020), ao ser perguntada como vê os impactos do ECOH em Londrina,
expõe:
[...] Pra mim é bem visível. Que nem eu te falei essa coisa de que muita gente
procura a gente. Quando a gente começou com o ECOH, pouca gente contava
histórias, assim enquanto eu vou contar histórias, aí você vê vários artistas que
começaram a trabalhar com isso, não só artistas né, mas várias pessoas que
foram para essa linha de contar história, aumentou. A gente tem contato com
muitas professoras, sabem aquelas pessoas que querem melhorar mesmo, que
vão nas oficinas, que vão assistir. [...] Ele mostra muitas possibilidades pra
todo mundo que quer contar histórias, porque quando você vê, porque quando
a gente vê uma coisa muito simples e o simples não é fácil, mas quando a
gente vê uma coisa muito simples, a gente fala eu quero. E tudo que é simples
abraça pela primeira vez, acolhe. Eu acho que o ECOH foi direto nisso, a
questão de ir até onde as crianças estão e de fazer esse festival uma parte no
teatro, outra de ir pras escolas, aí a gente vai em locais com crianças que não
saem nunca, entende, professores que às vezes não iam ter contato nenhum,
então, que não ia no teatro, no centro, então ir até lá é muito legal. E história
a gente aprende a ouvir. Vai uma vez você não está acostumado, mas vai uma
vez e volta e volta e eles aprendem a ouvir. E aprender a ouvir como diz o
Rubem Alves, todo mundo quer fazer curso de oratória, mas ninguém fez de
escutatória, mas para você falar, você tem que aprender a ouvir também. Então
eu acho muito legal, a gente se ouve. [...] A história tem disso, de acalantar o
coração.
Sobre esse aprender a ouvir, isso é perceptível no público escolar. Nem sempre a
contação para o público infantil ocorre da maneira esperada. A criança se distrai com facilidade.
E uma coisa que é visível nas escolas em que o ECOH já participa durante várias edições, é
essa cultura da escuta. É perceptível a diferença da receptividade das crianças que já criaram o
hábito de ouvir histórias e daquelas não acostumadas com essa prática. Sobre isso, Maria
Moreira (2020), professora da rede pública de Londrina reiterou:
[...] Quando levei alunos da escola municipal Reverendo Odilon para assistir
a uma história no gramado do monumento bíblico, eram crianças agitadas, em
situação de vulnerabilidade social. Logo que chegamos, notamos que
havíamos assistido a mesma apresentação alguns meses antes na escola.
Fiquei preocupada que eles se dispersassem e começassem a andar ou
atrapalhar a atividade. Mas, ao contrário, vários se animaram dizendo: eu já
ouvi essa história, é muito massa! Sentaram e participaram de toda a contação.
137
[...] Eu por exemplo, sou, costumo dizer, filha do ECOH, pois só me assumi
artista contadora de histórias, depois do ECOH acontecer pela primeira vez.
O ECOH deu luz/vez a essa linguagem de forma nunca antes feita por aqui,
por causa do ECOH, hoje temos o dobro, com certeza mais do que isso, do
que tínhamos antes das suas edições. Eu por exemplo, sou filha do ECOH.
Aspecto semelhante sobre o acolher do ECOH foi levantado por Mirna Rolim, da Cia.
Benedita na Estrada, que esteve pela primeira vez no ECOH na 9ª edição, em 2020.
Montagnani, Morganti & Muti (2011) colocam que um festival se caracteriza também
como um intercâmbio de ideias e práticas, trocas de saberes e experiências, não apenas entre
artistas e público, mas entre artistas e artistas. Esse foi um ponto levantado por algumas das
entrevistadas, em ter um tempo durante o almoço ou pós atividades do dia, em que há tempo
hábil de convívio entre os contadores participantes e de como essa participação é tão importante
quanto a apresentação. Um encontro que não é pensado na rapidez, chegar na cidade, apresentar
e ir embora, mas há a criação de laços e afetos que transformam o ECOH nesse arvorecer dentro
de cada um, nesse tempo dilatado. Com alguns contadores é de fato um chegar, apresentar e
precisar voltar para sua cidade, inclusive com alguns participantes dessa edição não houve
tempo de entrevistas justamente por essa questão, pois nem a todos é permitido ficar mais tempo
além de sua apresentação, mas mesmo diante de um tempo mais escasso, o retorno que é dado
posteriormente é positivo, mostrando o desejo de poder ter permanecido por mais tempo.
A partir das questões levantadas, observo como essas contribuições culturais tangem
a sociedade, pois além de proporcionar um entretenimento e meios de afetação pela palavra
oral, esse impacto social aparece de várias formas ao trazer reflexões para a sociedade e sobre
a sociedade. No festival, há a presença de discussões com temas sociais e de inclusão, por meio
das histórias, percebendo o poder que as narrativas também têm em balançar nosso universo
140
sobre o calar das mulheres e celebrando esse romper do silêncio por meio das histórias. Por fim,
na 9ª edição, Bruna Campagnolo, da Cia. Cosmicômica trouxe histórias sobre a fome e o
protagonismo feminino. Fabrícia Brito em sua contação Quatro Marias apresentou o universo
e a força das mulheres, com um convite ao encantamento com essas mulheres fortes que
permeiam nosso imaginário e nos inspiram a enfrentar o cotidiano. Kika Farias também abordou
o papel da mulher andarilha que cata e conta histórias do povo para o povo. E, por fim, Yohana
Ciotti, em sua apresentação junto a Giuliano Tierno e Letícia Liesenfeld, abordou novamente o
silêncio imposto às mulheres.
Essas são algumas das apresentações que esse olhar para a figura da mulher fica mais
evidente. No entanto, muitas outras histórias foram contadas em que as personagens
protagonistas eram mulheres e meninas. Edna Aguiar em seus trabalhos como Nega do Leite,
ou ainda Risoflora, apresentada em outras edições do ECOH, também carrega a força dessa
mulher narradora. A escolha dessas contadoras por escolherem essas histórias para construírem
seus repertórios, bem como a escolha da coordenação por achar que essas histórias deviam estar
presentes na programação do festival, dentre tantas inscrições que são recebidas todos os anos,
mostra como tem sido necessário olhar para a falta de protagonismo feminino durante tantos
séculos e do resgate e da luta das mulheres pelo rompimento do silêncio. As histórias e as
palavras têm sido importantes nessas conquistas.
Seja pela palavra oral ou escrita, a luta feminina está muito atrelada ao contar e
escrever histórias, como aponta Constância Lima Duarte (2011), ao traçar um paralelo entre as
quatro ondas do feminismo no Brasil e a escrita literária e jornalística, de como a emancipação
da mulher se dá pela palavra que dela emana. Isso é uma luta contínua, em que dezenas de vozes
ancestrais encontram-se conectadas à palavra da mulher, traçando uma cura pelo pensar o
coletivo e a sororidade. Sobre esse pensar as vozes que somam na construção de nossa voz,
Bruna Campagnolo (2020) fala sobre o simbólico da saia (figura 53) que utiliza como figurino:
Eu sempre quis ter uma colcha de retalhos, acho lindo como vários pedacinhos
se juntam pra formar algo tão maior. E então, certo dia, Inês, minha primeira
diretora de teatro, aquela responsável por todo o meu início na arte, foi me
visitar em Londrina e, entre tantos presentes, lá estava ela. Nunca usei a colcha
na cama porque ela não cabia, e também porque não era pra caber mesmo, era
pra virar figurino, e virou! Vocês entendem o quanto isso é simbólico? Nesses
retalhos de tecido existe a força de diversas mulheres, a força da Inês, a da
mãe da Inês que deu a colcha pra ela, a da minha mãe, a da mãe da minha mãe
e de TANTAS outras que passaram e deixaram seu retalho comigo de alguma
forma... E nesse ano mais do que nunca tô entendendo a força e a importância
que isso tem. Eu nunca contei história sozinha, todas elas sempre estiveram
comigo, todas as mães, avós, tias, primas Ineses, Alines, Lenises, Lucianas,
142
Somos porque fomos. O impacto que as histórias trazem, que um encontro que celebra
a diversidade, a oralidade, a cultura popular e a junção de todas as vozes que têm muito o que
dizer, isso é visível no ECOH.
Outra preocupação presente no ECOH é as apresentações ter a presença da tradução
para LIBRAS. Não há a presença da intérprete em todas as apresentações, mas em muitas delas
é possível receber as histórias por meio de duas línguas. Apresentação muito importante
também foi a de Vinícius de Oliveira e Thalita Passos, do Grupo Mãos de Fadas, na 6ª (figuras
54 e 55) e 7ª edições, com contações de histórias contadas na LIBRAS, com tradução para o
português. O que é uma ação muito interessante porque o espetáculo é pensado de forma
diferente. Não é como ocorre em muitas apresentações artísticas em que há uma tradução para
LIBRAS, a fim de que a comunidade surda participante possa entrar no universo que está sendo
apresentado em português. Nesta proposta ocorre o oposto, o ouvinte se adequa ao universo do
surdo, o que possibilita repensar seu lugar na sociedade. E o público não apenas recebe a história
traduzida, mas é colocado em um lugar de pensar a vida da comunidade surda. Logo que entram
na sala de teatro, “o público é convidado a observar suas mãos e a perceber as múltiplas
possibilidades de seu uso”, conforme exposto no folder do 7º Encontro. Desse modo, trazendo
assim mais do que uma proposta de inclusão da pessoa surda, mas um repensar a sociedade para
o ouvinte. Proposta essa que foi ampliada com a realização da oficina “Contando histórias em
143
Libras”, do Grupo Mãos de Fada, na 7ª edição em que foi possibilitado ao público utilizar a
gestualidade e a construção imagética das histórias contadas na LIBRAS.
vozes é uma preocupação que não se encontra apenas na escrita do projeto, mas que se vê
aplicada na prática, nas ações do festival, nas apresentações e nos tratamentos dados aos
participantes e na convivência extraoficial.
A discussão de temas sociais foi também percebida nas oficinas de Kiara Terra, que
como já mencionado anteriormente, a contadora vai gradativamente colocando as ideias
políticas e sociais no meio das histórias. Terra (2020) coloca que seu “desejo é fazer a oficina
mais no amor possível, para quando chegar esses questionamentos, as professoras ao invés de
ficarem refratárias pensarem: poxa, é verdade. Abrir o coração o máximo possível”. Assim, a
contadora vai preparando o terreno para lidar com assuntos políticos e sociais que causam tantas
divergências hoje, mas necessários de se estarem presentes dentro da escola. É necessário que
os professores saibam conduzir ao invés de calar, todos os questionamentos que os alunos
trazem, vivenciam e veem na mídia todos os dias.
Outro fator importante muito abordado no ECOH é a importância da cultura da
infância e do brincar. Participantes do Encontro que abordaram muito essas relações foram o
Chico dos Bonecos e a Lydia Hortélio, ambos participaram da 4ª edição do ECOH, em 2014.
Hortélio trouxe em sua fala, imagens da cultura infantil através dos tempos, traçando um
paralelo com o Brasil contemporâneo. A brincante de 82 anos, como foi chamada na Folha de
Londrina, de 12 de agosto de 2014, expõe nesta mesma matéria que: “é preciso investir nesse
resgate (do brincar). Cuidar das nossas crianças, proporcionar a elas o contato urgente com a
natureza”. Já Chico dos Bonecos apresentou o trabalho intitulado Muitos dedos: Enredos – Um
rio de palavras deságua num mar de brinquedos, com uma contação que abarca histórias e
brincadeiras com as palavras e com brinquedos criados por ele, estimulando as crianças a
conhecerem novas possibilidades do brincar.
Por fim, após essas contribuições sociais, chego nos aspectos educativos alcançados
pelo ECOH e, neste sentido, é importante esclarecer que ideia de educação é essa que está sendo
trazida, um conceito que vai muito além do ambiente escolar. É uma ideia de ampliação não de
conhecimento de ensino, mas de conhecimento poético. Durante o Encontro, a preocupação
com o papel educativo está presente nas ações e é perceptível sua visualização dentro da sala
de aula, inclusive porque metade do festival é feito na/para a escola, mas o impacto educativo
da palavra dita pelo contador não está necessariamente localizado na escola.
Nesse sentido, visualizo um olhar diante de três pilares dentro da dimensão educativa,
o papel educativo dentro das escolas; a formação do olhar para essa linguagem, formando novos
contadores e, consequentemente novos ouvintes e o impacto educativo enquanto ser humano,
da educação humana que compreende a coexistência e aceitação do outro. Dessa forma,
146
arte da palavra deve estar presente, mas é necessário pensar formas de aproximação com a
palavra contada e escrita. E levar histórias até a escola e a escola até as histórias se mostra como
uma ação eficiente nesse sentido.
Sobre essas ações, o educador Valdir de Oliveira (2020), público do ECOH desde a 1ª
edição e que leva seus alunos todos os anos, expõe:
Há uma repercussão na escola daquilo que foi visto e ouvido, as crianças interagem e
sentem o desejo de expor aquilo que sentiram, que gostaram. O professor trazendo aqui uma
visão sociointeracionista, de Vygotsky, ressalta como a criança após ter contato com as
narrativas cria papeis sociais, representando outras funções, por meio da brincadeira, ampliando
seus repertórios e desenvolvendo assim sua formação e sua linguagem. Aspecto esse primordial
na vida da criança desde os anos iniciais. A criança necessita do contato com a fabulação, com
a imaginação. Para a professora Maria Moreira (2020), a repercussão com seus alunos também
foi positiva “as histórias contadas foram lindas, da cultura afro-brasileira e, no bate papo com
a artista, todos nos emocionamos. Os relatos dos alunos foram lindos, de satisfação pelo esforço
e encantamento pelas histórias ouvidas”.
Fator essencial também é ter uma coordenação pedagógica na escola que entenda a
importância da contação de histórias, da leitura, da oralidade e da arte no processo educativo
do estudante e que a educação vai para além dos muros da escola. Quando não há um mesmo
pensamento entre professor e gestão, mesmo o professor querendo proporcionar ao aluno acesso
a outra forma educacional, nem sempre se torna possível, o que impossibilita essas
reverberações na vida da criança e do adolescente. Nesse sentido, a professora Suzue (2020),
que também acompanha o ECOH desde o início, expõe que:
[...] Levo meus alunos e filha de cinco anos e sobrinho adolescente. Os frutos
colhidos são fantásticos. O interesse pela leitura aumenta, a vontade de se
expressar e embarcar nesse universo de narrativas. As trocas e inferências
ocorridas são minuciosamente registradas como avaliação pedagógica e
individual. As crianças apreciam e a cada evento mostram mais e mais
interesse. Não vejo mais nossa cidade sem o ECOH. Nosso coordenador
pedagógico e também contador de histórias Valdir nos proporciona uma
148
[...] Bem bacana assim. Ela chamou muita a atenção da gente. A gente é
jovem, não é muito ligado a essas coisas de contação de histórias e tal. Eu
achei bem importante. Ela conseguiu fazer a gente prestar atenção nela. Ela
conseguiu chamar nossa atenção e a gente comentar sobre isso depois.
(SANTOS, 2019)
onde o público pode criar redes com os demais profissionais que possuem afinidade e sintonia,
dentro de sua própria cidade. Para Josiane Geroldi (2020), “essa formação que acontece com
os professores também é muito importante para que haja novos narradores de histórias e para
que essa linguagem aconteça dentro das escolas também”.
Muitas são as contribuições que o ECOH tem gerado, mas mensurar os impactos de
dez anos de trajetória é uma tarefa complexa e de maneira alguma completa. É possível
visualizar uma dimensão do festival, a partir dos olhares de alguns dos participantes, produtores
e público presente, o que se caracteriza como uma parte dos afetos gerados juntos aos milhares
que já foram criados enquanto público e contadores. Nesse sentido, sobre os impactos que o
ECOH tem gerado, a contadora Patrícia Maia (2020) expõe que:
[...] Eu acho que o impacto é bem mais profundo do que a gente consegue
mensurar. Agora no ECOH itinerante a gente consegue ver isso ainda com
mais clareza. Porque a gente tem um contato mais próximo e por mais tempo
com a comunidade, assim uma comunidade fixa. [...] Mas assim, a gente vê as
pessoas saindo do encontro, encantadas, e quando você volta depois, elas
comentam e aí elas falam nossa como isso mudou minha vida, como foi legal
ouvir isso, isso me fez tão bem, eu estava precisando ouvir isso. Então aquilo
que eu falei na outra resposta, nós precisamos e às vezes a gente não para pra
fazer isso, pra ouvir e ser ouvido. Para falar e ser ouvido, na verdade né. Então
é muito importante, acho que tem uma, como falei, acho que a gente não tem
como medir, vai muito além assim, acho que toca as pessoas de tal forma que
a gente nunca vai conseguir, na verdade. Não vai ter nem um equipamento que
vai conseguir mensurar isso de forma precisa assim e nem sei se de forma
superficial, porque acho que o impacto é muito grande. Não dá pra medir. A
gente tem uma ideia, como te falei, por alguns retornos, pelo olhar das pessoas,
de como elas saem das sessões e tal, da alegria que você vê, da energia que
aquilo gera. Então aí você tem uma ideia de quanto aquilo mexe. Em algumas
cidades que a gente foi, por exemplo, na hora de ir embora, as pessoas que
estavam ali ajudando a organizar, da secretaria e tudo, vinham abraçar a gente
chorando, né, assim, emocionados, ai muito obrigada, não acredito que vocês
já vão embora. Então você vê que aquilo mexeu com a cidade toda. Então, eu
acho que não dá pra medir.
Saber olhar para a sua história, para a do outro e para o meio que estão inseridos e ver
nesse olhar harmonia, ver continuação, ver identificação, esse é o impacto educativo que a
contação de histórias exerce, que se mostra também numa melhoria social. Isso se dá todos os
dias em várias escolas do Brasil, mas um encontro que se lança a essa preocupação e
proporciona o contato de vários artistas com diversas crianças, adolescentes e adultos em seus
processos formativos, apresenta uma preocupação com uma sociedade que valoriza o ser
humano e as distintas vozes que dela emanam.
150
De cidade em cidade, as histórias vão sendo contadas, saber uma origem, uma data,
uma autoria não é possível e nem necessário para compreender as poéticas do agora. O que se
é exposto é que as histórias caminham junto com a humanidade e por onde mulheres e homens
se espalham, as histórias se espalham com elas e eles. Esse pensamento é exposto por Yohana
Ciotti (2020):
Essa história similar com o conto da mulher foca, já mencionado anteriormente, que
Ciotti expõe, é a história de Iansã, que costumava andar pela Terra, vestida em sua pele de
búfalo, até um dia que a tira, sob a vista de Ogum que, encantado com a beleza da mulher,
rouba-lhe sua pele e ela passa a morar com ele. Ao pensar um espalhar das histórias em
diferentes localidades do mundo e observar a semelhança delas, nota-se como alguns temas são
tão frequentes e tão necessários de serem debatidos em muitas regiões do globo, como a ideia
dessa superioridade masculina que vê a mulher como uma posse, obrigando-a a viver a seu
modo de vida, sendo impossibilitada de ser o seu eu verdadeiro. E se estas histórias
permaneceram em distintas versões e localidades é porque as sociedades viram significados e
sentidos relacionados com suas vivências. Sobre a circulação das histórias é possível verificar
em muitos contos, que apresentam distintas versões, de acordo com o país, que há um fio
condutor muito semelhante entre eles.
E nesse espalhar das histórias, em cada ponto que esse fio é tecido, afetos vão se
formando. Um dos depoimentos que foi muito significativo da 9ª edição foi o de Marie-Claire
Polla (2020), professora de matemática, que até março de 2020 desconhecia a existência desse
festival. Polla conta como conheceu, porque decidiu participar ativamente das ações do ECOH
e como ele a afetou:
151
A partir da fala de Polla, trago novamente a ideia, mencionada por Ciotti, de que as
pessoas contam histórias para ouvir outras histórias. A participação dela nas apresentações e
nas oficinas lhe trouxe um novo olhar para dentro dela mesma. Ao mencionar que o ECOH
mostrou os caminhos para dar voz as suas próprias histórias, traz uma dimensão bonita e
gratificante para a coordenação e demais parceiros atuantes do ECOH, que veem nesse trabalho
um retorno visível. O ECOH mostrou o caminho para contar sua própria história, tal é o poder
das histórias, das poéticas orais. Nessa sua fala, Marie Polla, uma mulher já aposentada, que
trabalhou durante toda a vida na área das exatas, da lógica matemática, mostra a potência das
histórias, da oralidade e os afetos despertados em qualquer fase da vida, mesmo, em pessoas
que atuam em áreas não diretamente ligadas às Ciências Humanas. Sobre suas impressões a
partir do que assistiu e vivenciou, Polla (2020) observa:
[...] Eu adorei o Festival e as apresentações que assisti. Até fiz duas vezes a
oficina da Kiara, pois sei que para públicos diferentes, as interações são
diferentes também. A mesma história pode ter outras cenas. A história de
Dona Certeza, da Kiara... quantas vezes a gente age como ela, quer, não quer,
planeja, adia e quando vai, acha que tomou a decisão mais acertada do mundo.
Acho que sou um pouco assim, talvez seja mais corajosa e destemida que ela.
Tenho feito coisas que "até Deus duvida", como diz Ivan Lins na música
152
[...] Foi em março de 2020, que eu participei pela primeira vez do Encontro
de Contadores de Histórias de Londrina (nono encontro). O meu interesse por
este evento surgiu num momento de buscas de caminhos, entre eles, o resgate
das memórias de minha mãe, uma mulher da zona rural mineira, que encantou
a minha infância com as belas histórias que contava, herdadas de seus
ancestrais. Estava buscando um novo projeto de vida, pois em 2019,
conquistei a tão sonhada aposentadoria, após vinte e seis anos atuando como
assistente social no campo da proteção social especial, responsável pelo
atendimento a pessoas em situação de risco social por violação de direitos. Era
preciso repensar o novo caminho. Alguns amigos/as que já conheciam o
ECOH, me estimularam a participar, inclusive informando sobre uma pós em
contação de histórias. Mergulhei de corpo e alma. O ECOH ampliou meus
horizontes e continua nutrindo o meu projeto de dar sequência a semente que
minha mãe cultivou em mim. No ECOH tive a oportunidade de conhecer
153
Essas duas mulheres aposentadas, Marie e Sandra, que conheceram o ECOH no ano
de 2020 colocaram como a narrativa se faz presente na vida humana, a força dessa voz da mãe,
da mulher narradora de histórias e de como esse Encontro foi um divisor de águas, não apenas
por voltarem sua atenção a essa linguagem, mas por a partir dela, terem a percepção de como a
vida delas foi fortemente marcada por essa figura da narradora e pelo poder das histórias.
Ambas ainda colocaram que a partir desse 9º Encontro foram atrás de cursos, de pós-
graduações, de leituras, de oficinas, tendo despertado o desejo de continuar trilhando por esse
caminho. E que mesmo tendo conhecido o encontro apenas na 9ª edição, o desejo agora é estar
presente em todas as edições futuras.
A sensação da força que é esse encontro e do desejo de manter esse contato é perceptível
não apenas no público, mas também na fala dos artistas. Kiara Terra (2020), que das artistas de
fora de Londrina, é a contadora que mais esteve presente no ECOH, apresentando-se em seis
das dez edições, fala sobre como foi chegar em Londrina para a 1ª edição, em 2011.
Ao longo dos dez anos de trajetória, muitas foram as apresentações que causaram
afetos, que trouxeram um pensamento sem estar a serviço do tempo. Alguns dos participantes
que acompanham como público desde as primeiras edições, falam sobre as apresentações que
lhe marcaram. Para o professor londrinense Valdir de Oliveira (2020):
[...] ECOH é paixão tal qual FILO pra mim. Acompanho desde sempre. Amo
as novidades trazidas com intercâmbio literário de outros artistas de diferentes
regiões desse Brasil maravilhoso e até internacionais. Amo todas as histórias
e artistas, mas me marcou muito Vinícius Mazzon e Cia. porque bate com
minha herança caipira dos avós e familiares. Amei os contos mineiros, poxa
foram tantos contadores maravilhosos que passaram por aqui que fico
emocionada. Kiara Terra, Kelly Orasi, Benedita da Estrada, Marcelino Xibil,
Simão Cunha, querido falecido amigo... Dani Fioruci linda amiga que amo,
Nega do Leite nos tocou profundamente com acolhida e interação com as
crianças do CMEI, foi maravilhoso. Amo quando o ECOH prestigia nossos
artistas locais. A história que mais me marcou foi a recente: Dona Mocinha
no vaivém da vida com Kika Farias. O jeito manso de contar, precisamos dessa
calmaria! Desacelerar a vida que passa efêmera! Amei! Oficinas não consegui
participar por incompatibilidade de horários. Mas Kiara Terra é maravilhosa
e meu sonho é fazer oficina com ela.
Muitos nomes foram trazidos como falas marcantes, tendo em vista isso, em entrevista
com o público, foi questionado sobre os impactos visíveis dessa trajetória do ECOH, na cidade,
por quem acompanha as apresentações desde o início. Muitas foram as respostas recebidas, com
falas afetuosas e que trazem a importância da circulação de trabalhos culturais e artísticos pela
cidade:
[...] ECOH traz uma nova identidade para Londrina. Uma cidade que precisa
combater as novas diretrizes nacionais de um país seco, mercenário, sem
cultura. ECOH traz reflexões, entretenimento, interação, trocas dum universo
intelectual que São Paulo e Rio de Janeiro apresenta maior, felizmente. Recife,
Ceará, nossa própria capital... ECOH nos traz um intercâmbio único que nos
une dentro desse resgate da mediação da leitura. Nos leva para novos olhares
tão necessários. Mescla conhecimento com prazer e fruição. Não há quem não
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brilhe os olhos quando ouve uma boa história. Precisamos desse DETOX
digital! (Suzue, 2020)
Suzue expõe a ideia de mesclar conhecimento com prazer e fruição, dessa poética oral
como uma verdade, uma prática de saberes, mas que vem atrelada ao lúdico e ao sentimento do
prazer pelo texto e de como isso é relevante para uma cidade do sul do país longe dos grandes
eixos culturais. Já Adriana coloca o pensamento de que as histórias nos reconectam às nossas
raízes e de que mesmo tendo um grande público, ainda é um público específico, de quem busca
uma aproximação com essa manifestação artística, mas que para grande parte de Londrina esse
festival é ainda desconhecido.
Esses impactos são observados também pelo público infantil, que são grande parte do
público a que o ECOH se destina. Esse olhar e as reverberações que são manifestadas na criança
foram trazidas por algumas mães e pais que fazem questão de levar todos os anos seus filhos e
filhas para terem uma imersão cultural e artística com as histórias. Sobre a relação de como o
ECOH é vivenciado na infância, duas mães expõem a interação de seus filhos com as histórias:
[...] Como disse, frequentamos desde a primeira edição! O Diego tem alma de
artista, de artista cênico, especificamente. Então, em toda a história a que
vamos assistir, ele faz questão de se sentar na "fila do gargarejo", fica muito
atento e vai incorporando músicas que ouve, trejeitos de um ou outro contador,
além de ir construindo um repertório de histórias, de fazer conexões entre elas,
de trabalhar a memória... (Adriana Siqueira, 2020)
[...] Minha filha falou que é muito bom participar desses encontros, assim ela
tem mais experiência, aqui em casa amamos tudo a que se refere a cultura, e
ter um festival como esse, gratuito, é maravilhoso, volto para casa às vezes
imitando os personagens, rindo. Minha filha gosta de ler, contar histórias e
hoje ela faz teatro, e isso tem relação com que ela vive, e o ECOH faz parte
da história dela, minha e da minha família, fico esperando o ECOH todo ano!
(Viviane Feitosa da Silva, 2020)
157
[...] Aos poucos eu vou percebendo que eu gosto desse movimento se separar
os fios. Pegar o conto e dizer, ah essa partezinha tem aqui, essa partezinha tem
lá naquele outro conto, e essa partezinha tem lá... é quase como separar esses
fios, afrouxar esses fios, deixar o ar passar. E depois você junta de novo, você
tece e desmancha, e essa imagem tá sempre muito associada à escrita e ao
narrar. E simbolicamente eu achava que não precisava falar sobre isso, então
de algum jeito, eu não cantava, não tocava nenhum instrumento, então eu
comecei a explorar essa coisa de fazer um tricô de dedo, de mão, sem agulha,
enquanto eu tô recebendo as pessoas, que é esse amarrado do fio, que vem
vindo. E eu dou um nó e puxo, vou laçando, vou fazendo e,
surpreendentemente não é que isso funciona? Eu tô lá fazendo esse negocinho
e tal e as pessoas perguntam: o que é que você está fazendo? Eu digo, pois é,
tô fazendo tricô de dedo, sem agulha, olha só. E nisso já começa um puxar de
um fio que a minha mãe fazia, que a minha avó fazia, eu estava pensando
vendo vocês conversando e a experiência daqui tem sido marcante nesse
sentido, que eu acho que a gente conta histórias para ouvir histórias.
E foi tecendo uma partezinha com outra partezinha, nessa colcha de tecidos-histórias
ouvidas e vivenciadas durante as ações do Encontro, que tantas histórias foram ecoadas e
provocadas para ganharem voz, que chego ao fim dessa roda de história. Semente é potência.
As histórias são nossa linguagem primária. Em 2011 foram plantadas as primeiras sementes e
desde então a cada encontro elas são germinadas. Já são visualizados majestosos arvoreceres e
158
afetuosas colheitas já foram realizadas, mas sem nunca deixar de fazer novos plantios e regar a
cada edição à semente plantada no encontro anterior. Se fosse essa uma história tradicional, um
conto de fadas clássico, eu terminaria aqui agora com um e viveram felizes para sempre, mas a
realidade das cidades é um pouco mais complexa que isso. Esse é um encontro que se faz e se
refaz. Às suas performances estão atreladas muitas formas de resistência. O sentimento que fica
pós finalização de um Encontro é um viver feliz, mas no manter desse viver está o pensar a
cultura e principalmente o trabalhador da cultura, está na constante luta pelos direitos, nos
embates com os governos, nas cobranças, em que não se pode baixar a guarda, para garantir
que o direito à cultura assegurado na Constituição seja mantido e ampliado. E ainda mais nesse
período, em que o 9º ECOH finalizou-se no final de semana anterior ao início do decreto do
isolamento social e o 10º foi realizado de forma virtual, é necessário ressignificar essa cultura
e pensar ainda mais na sobrevivência desse trabalhador artista. Assim, não termino aqui com
viveram felizes para sempre, mas com viveram felizes na luta do eterno devir da cultura, da
sociedade e da educação.
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Ao longo deste trabalho foi demostrado como as histórias são capazes de produzir
afetos e de como festivais de contadores de histórias são potentes para estabelecerem um
território cultural e uma geografia afetiva da cidade. Muito já foi teorizado sobre quem é esse
contador urbano de histórias e sobre o valor significativo dos contos tradicionais para o
desenvolvimento humano, mas busquei aqui olhar essas duas matérias: o contador e a história
dentro de um encontro de contadores de histórias e o que isso gera para a cidade. O ECOH,
com sua trajetória de dez anos na cidade de Londrina, já alcançou uma boa repercussão,
principalmente entre educadores e artistas da cidade, mas é perceptível como esse tipo de
cultura ainda é centrado neste público específico. E neste aspecto é importante a contribuição
desse encontro ao pensar as apresentações em bibliotecas, escolas, praças e teatros de diferentes
regiões, assim espalhando histórias e gerando afetos pela cidade.
A escrita foi eleita como forma privilegiada de comunicação e, ao fazer isso, outras
formas de manifestações poéticas ficaram à margem, colocando a escrita como criadora da
história, a impressão como dona da propriedade privada das palavras e a oralidade inserida no
limbo do analfabetismo. As narrativas presentes no encontro não foram olhadas aqui como um
documento, mas como potência poética e afetiva. Um festival que tem como preocupação dar
voz a essas poéticas, se mostra como um resgate e apreensão de humanidade. E a apreensão da
humanidade gera um se espalhar da humanidade. Aspecto esse tão urgente em nossos tempos
num contra fluxo às ideias retrógradas e de repetições do passado, colocando a experiência
como matéria do diálogo.
O festival se articula na criação de um território cultural, à medida que fortalece as
relações territoriais da cidade, por meio de uma intervenção consentida, isto é, uma intervenção
que sente com o outro. E nisso há uma intervenção política, o afeto produz o político, viver e
ocupar a cidade, pensar a relação do eu com o outro são atos políticos. A rua assume uma função
social que gera interferências para a performance do contador, pois ela favorece espaços de
relação entre o outro e o eu. Nós construímos a cidade a partir de nossos hábitos e ações.
Os contos circulam em um caráter de movência e jamais se preenchem por completo,
eles são ressignificados à medida que são contados e que permanecem nos repertórios dos
contadores. Se tantas histórias são repetidas ao longo das gerações, isso não se dá por uma mera
curiosidade sobre o passado, mas porque elas continuam a fazer afirmações significativas para
o presente. A oralidade atravessa toda forma de conhecimento, nós construímos cultura por
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meio da voz. O nosso corpo é atravessado pelo tempo em que vivemos, assim como a história
é atravessada pelo corpo de quem a conta. As narrativas mais conhecidas surgem muitas vezes
pelo olhar do colonizador, homem, branco, heterossexual e, um encontro que tem como objetivo
dar voz a uma diversidade de histórias e de localidades, coloca-se num lugar importante ao tirar
as narrativas do viés eurocêntrico.
Por que afinal contar histórias? Kiara Terra, em entrevista ao Jornal de Londrina, de
24 de outubro de 2011, responde essa pergunta, destacando que: “é uma pergunta difícil, porque
a contação de histórias está no lugar das coisas que não tem função. Serve para ajudar a existir,
achar um lugar no mundo. Ler um livro, ler o mundo, entender de onde vim, para onde vou.
[...] Descobrir um lugar no mundo da qual você pertence”. A contação de histórias está no lugar
das coisas que não tem função e justamente por isso, ela pode servir para tantas coisas. Muitas
respostas foram dadas a essa pergunta no decorrer deste trabalho, mas nenhuma fechada em si.
O contador de histórias é aquele que sai da sua zona de conforto e propicia ao público
que também saia, e nisso há poderes curativos, reflexivos, o olho no olho que só é possível
quando se afeta e se deixa afetar, criando novas possibilidades de existência. E nisso entra a
resistência, na ruptura com o campo político e os poderes atuais. Contar e ouvir histórias são
então a possibilidade de se criar, de se existir, de resistir, de descobrir e pertencer ao seu lugar
ou a muitos lugares. É a percepção de como a abordagem lógica do mundo não dá conta da
realidade e de como o referencial simbólico é necessário para a construção e o desenvolvimento
humano. E se tudo isso não serve como funcionalidade prática para a lógica capitalista, o
contador de histórias serve então para incomodar essa lógica.
O Encontro de Contadores de Histórias estabelece uma relação com o íntimo, ao estar
na mesma onda vibratória afetiva dentro de uma rede com seus afins, público e artistas. Esse
afeto não se dá da mesma maneira para cada um, eles são criados a partir da relação estabelecida
entre a história escutada com as vivências que cada um tem dentro de si. O Encontro auxilia no
entendimento que é necessário respeitar os tempos dos nossos afetos, visto que diante da
pressão do mundo pós-moderno, não costumamos deixá-los se comunicarem conosco. Saber
olhar para nós mesmos, com mais frequência, não numa visão individualista, mas de olhar para
dentro, sem a tendência frequente da racionalidade que nega as percepções do eu, é um exercício
que não apenas produz uma melhor vivência consigo mesmo, como as histórias são uma ótima
ferramenta para isso.
161
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Entrevistas
ABREU, Gabi. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
AGUIAR, Edna. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
BARROS, Rafael de. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
BRITO, Fabrícia. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
CAMPAGNOLO, Bruna. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
CIOTTI, Yohana. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
COELHO, Sandra. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
FARIAS, Kika. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
FÉLIX, Valéria. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
FIORUCI, Daniella. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
GEROLDI, Josiane. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
LANDIN, Daniela. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
OLIVEIRA, Valdir de. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
MAIA, Patrícia. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
MOREIRA, Maria. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
NAKADOMARI, Vanessa. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
POLLA, Marie-Claire Ribeiro. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
ROLIM, Mirna; DUTRA, Bruno. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
SALLES, Pamela. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
SANTANA, Renata; MARQUES, Laís; BARBIERI, Ana Karina. Entrevista concedida a Sônia Regina
Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
SILVA, Claudia. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
SILVA, Luís Henrique. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
SILVA, Rovilson José. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
SILVA, Viviane Guilhermino Teixeira Feitosa da. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga,
Londrina, 2020.
SIQUEIRA, Adriana Maria Motta de. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga,
Londrina, 2020.
166
SUZUE, Renata. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
TERRA, Kiara. Entrevista concedida a Sônia Regina Biscaia Veiga, Londrina, 2020.
Páginas do ECOH
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