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TRANSTORNOS MENTAIS NAS REDES SOCIAIS:

Da Invisibilidade à Superexposição

Camila Fortes Monte Franklin1


Resumo

Os dramas e as preocupações de hoje não são os mesmos de 100 anos atrás.


A forma com que a sociedade lida com as questões do mundo foi se
modificando de acordo com o tempo e, assim, a cada época, existe a sua
maneira de lidar com os sofrimentos da mente. As redes sociais se tornaram
uma válvula de escape, identificação e, ao mesmo tempo, um campo de
reconhecimento de si através do olhar do outro. O presente artigo tem como
objetivo refletir sobre como os transtornos mentais saíram do campo da
invisibilidade para uma superexposição em rede, considerando as
transformações do sofrimento psíquico e as redes sociais como um campo de
interação. Através de uma revisão bibliográfica do pensamento e dos conceitos
dos seguintes autores, esta pesquisa visa identificar como se deu esse
processo de transformação ao longo das décadas e como as redes sociais
atingiram esse processo. São eles: o sofrimento psíquico por Sigmund Freud
(1930) e Christian Dunker (2015), o circuito dos afetos por Vladimir Safatle
(2015), a cultura do narcisismo em Christopher Lasch (1979) e, por fim, as
redes sociais como ferramenta de aproximação com Rodriguez (2015).

Palavras-chave: Sofrimento. Afetos. Redes Sociais. Tecnologias midiáticas.

MENTAL DISORDERS IN SOCIAL NETWORKS:


From Invisibility to Overexposure

Abstract

Today's dramas and worries are not the same as 100 years ago. The way in
which society deals with the issues of the world has been changing according to
time, and thus in every age there is its way of dealing with the sufferings of the
mind. Social networks have become a valve of escape and identification and, at
the same time, a field of self-recognition through the eyes of the other. This
article aims to reflect on how mental disorders have moved from the invisibility
field to a network overexposure, considering the transformations of psychic
suffering and social networks as a field of interaction. Through a bibliographical
review of the thinking and concepts of the following authors, this research aims
to identify how this transformation process took place over the decades and

1
Jornalista. Mestranda em Comunicação na Universidade Federal do Piauí. Bolsista da
Fundação de Amparo a Pesquisa do Piauí (FAPEPI).
Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.10, n.1, p.141-162, 2019.
how social networks reached this process. They are: psychic suffering by
Sigmund Freud (1930) and Christian Dunker (2015), the circuit of affections by
Vladimir Safatle (2015), the culture of narcissism in Christopher Lasch (1979)
and, finally, social networks as a tool of approximation with Rodriguez (2015).

Keywords: Suffering. Affections. Social networks. Media technologies.

Introdução

As novas definições de sujeito contemporâneo exigem uma construção


de identidade particularmente impecável. As obrigações sociais se desdobram,
a visibilidade em marcha se torna um fenômeno cotidiano, capaz de
transformar a vida das pessoas de modo bastante influente. O surgimento das
tecnologias midiáticas, principalmente das redes sociais, proporcionou na
sociedade contemporânea o que podemos denominar como um cenário de
manifestações individuais. A liberdade de expressão dentro dessas tecnologias
permitiu a expansão de diversas questões, como o discurso de ódio, o
cyberbulling e as fakenews, mas também abriu portas para novos diálogos
sobre questões coletivas antes vistas como individuais.
O sofrimento humano é uma dessas questões, e a forma como a
sociedade contemporânea lida com os sentimentos de angústia, medo,
ansiedade, estresse, depressão, bipolaridade está diretamente ligada á forma e
a frequência com que esses assuntos são discutidos dentro dos espaços de
interação social. É fato que a participação dessas novas tecnologias no
cotidiano, principalmente dos adolescentes e jovens, tem provocado efeitos de
cobrança social e, consequentemente, atuam como pontapé ou mesmo como
um acelerador desses sintomas. É importante destacar que essas cobranças
sociais não são novidade na sociedade, contudo, acontecem hoje sob novos
moldes – onde antes havia uma pressão social, agora também há uma
cobrança virtual.
A possibilidade de um espaço de interação e compartilhamento de
subjetividades, como as tecnologias midiáticas, ser útil para o acesso à
informação de qualidade sobre questões individuais\coletivas é de grande
importância para sociedade contemporânea. A partir dos compartilhamentos
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Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.10, n.1, p.141-162, 2019.
desses sintomas é que esses meios digitais também atuam como ferramenta
de compartilhamento de realidades e, podem ser potenciais instrumentos de
quebra de preconceitos e estereótipos.
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre de que modos os
transtornos mentais saíram do campo da invisibilidade para uma
superexposição nas redes sociais, considerando as transformações do
sofrimento psíquico e essas tecnologias digitais como um campo de interação,
bem como compreender quais aspectos históricos foram pontapé inicial para a
compreensão de comportamentos contemporâneos e quais aspectos evolutivos
são potenciais para esses comportamentos.
Para isso, fazemos um breve histórico do sofrimento psíquico e suas
variáveis ao longo das décadas a partir do pensamento de Freud (1930),
percebendo panoramicamente como a diagnóstica da loucura e os conflitos
individuais do homem contemporâneo estão estreitamente ligados; em seguida,
fazemos um paralelo entre o campo dos afetos desenvolvido por Freud (1930)
e o circuito dos afetos desenvolvido por Safatle (2015), identificando as
possíveis delimitações do Eu em relação ao mundo externo e em como são
potenciais barreiras condicionantes para o controle das subjetividades dos
sujeitos.
Seguimos no outro tópico desenvolvendo o pensamento sobre a cultura
do narcisismo desenvolvida por Lasch (1979), percebida como uma cultura do
Eu que reflete uma busca fanática pelo sucesso e por um reconhecimento do
Outro para que o indivíduo pode se reconhecer como é ou como quer ser. Por
fim, a partir do pensamento de Rodriguez (2015), refletimos sobre como as
tecnologias digitais, especialmente as redes sociais, são ferramentas de
aproximação e identificação social, seja para um reconhecimento de si ou uma
possível libertação de si.
Nesse sentido, percebemos uma cronologia entre o sofrimento psíquico
e seus primeiros indícios e as formas contemporâneas de lidar com a
realidade, considerando, numa sequência lógica, a maneira com que a
sociedade age e reage as questões cotidianas.

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O Sofrimento Psíquico e suas Variáveis

Durante toda a história da humanidade, o homem se deparou com


situações de mal-estar. As inquietações e angústias fizeram parte do homem
primitivo e fazem parte do homem contemporâneo, contudo, aconteceram de
maneiras distintas ao longo dos séculos. O sofrimento dos sujeitos foi se
modificando a partir de cada época, e em suas variáveis, o homem busca
formas de afastar, amenizar ou ignorar esses sofrimentos. Sigmund Freud em
“O mal-estar na civilização” (1930) identifica a experiência do sofrimento
psíquico a partir da subjetividade dos sujeitos, e não apenas como uma
questão médica – referente à fisiologia humana – ou moral – no que se refere á
correção e educação –, como era vista anteriormente aos seus estudos.

A vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós, traz
demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para
suportá-la, não podemos dispensar paliativos (...). Existem três
desses recursos, talvez: poderosas diversões, que nos
permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações
substitutivas, que a diminuem, e substâncias inebriantes, que
nos tornam insensíveis a ela. (FREUD, 1930, p. 20)

Se por um lado nos apoiamos na ideia do autor que afirma que o


sofrimento foi se modificando ao longo do tempo através do sentido da
experiência da dor psíquica e que também afirma que existem três pilares
básicos para o homem suportar o sofrimento, é importante perceber como
determinados estados de ser que derivam de um sofrimento independem do
modo e do tempo nos quais são descritos, bem como compreender como
essas transformações foram acontecendo dentro e a partir desses três
recursos trabalhados por Freud.
Para o autor, o conceito de Unbehagen in der kultur – traduzido do
alemão para o português como mal-estar na sociedade, utilizando a ideia de
desabrigo, de um ambiente hostil –, é o paradigma da psicanálise que descreve
o indivíduo desabrigado que vive em um mal-estar em civilização. Christian
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Dunker em “Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil
entre muros” (2015) traz uma tradução livre do conceito desenvolvido por
Freud.
O problema para traduzir Unberhagen é, portanto, encontra
uma palavra que responda tanto à série do desprazer-
insatisfação quanto à série do infortúnio-infelicidade, de tal
forma que contenha a experiência de mundo como espaço,
lugar ou posição. O mal-estar não é apenas uma sensação
desagradável ou um destino circunstancial, mas o sentimento
existencial de perda de lugar, a experiência real de estar fora
de lugar. (DUNKER, 2015, p. 41)

Essa noção de mal-estar abarca o que consideramos como angústia,


embora não se limite apenas a isso. Ainda em “Mal-estar, sofrimento e sintoma:
Uma psicopatologia do Brasil entre muros”, Dunker traça três noções de
sofrimento a partir da psicanálise. Na primeira, o sofrimento se sustenta em
uma estrutura narrativa. O acontecer do sofrimento se dá em um momento da
história, e como funções básicas da linguagem, são as narrativas com as quais
o ser humano se depara e sofre. A segunda noção de sofrimento é transitivista,
considerada compartilhada e coletiva, como por exemplo, em um diálogo onde
as pessoas envolvidas comparam qual sofrimento é maior, quem é a maior
vítima – como uma competição. O sofrimento trasitivista também se dá
considerando que ao ver uma pessoa em sofrimento, o meu Eu também sofre,
pois se solidariza com o sofrimento alheio.
O terceiro traço da noção de sofrimento é a de que depende de atos de
reconhecimento. É o caso de sofrimentos legítimos e ilegítimos – por exemplo,
considerar que um sujeito não deveria sofrer de uma determinada maneira e
sim de outro modo, desconsiderando seus contextos pessoais, culturais,
históricos, sociais etc. Assim, o modo como escrevemos as narrativas dos
discursos de sofrimento transformam nossa experiência de sofrimento. Ainda
segundo Dunker (2015), historicamente, a partir dos anos de 1940, surgiram as
neuroses de caráter e as personalidades narcísicas do pós-guerra, bem como
os quadros de histeria e agressões físicas. Eram neuroses que afetavam mais
as pessoas em volta do que o próprio indivíduo. Já nos anos 50, a ansiedade e

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a depressão se consolidam, bem como surgem novas diagnósticas que
circulam em torno do mal-estar na civilização. Eram as neuroses narcísicas,
ligadas a um vazio existencial, a uma inadequação.

(...) a partir dos anos 50, o grande quadro clínico, o paradigma


fundador da psicanálise, a saber, a histeria, teria se
“desmanchado no ar”. As histerias de conversão, com seus
ataques corporais e dissociações de consciência, entraram em
rarefação. No lugar da “boa e velha histeria” surgem
personalidades infantilizadas e dependentes, tipos ansiosos e
caracterizados por depressões narcísicas, formas
psicossomáticas marcadas por adoecimentos crônicos e, para
completar, loucuras histéricas, insubmissas e boderline.
(DUNKER, 2015, p. 63)

No Brasil, entre as décadas de 50 e 70, “surge um gosto pela


patologização das formas impuras e transitórias”. Os diagnósticos se limitam
entre o positivo e o negativo, como entre o “discriminado-indiscriminado,
confuso-organizado, unitário-fragmentário”, bem como questões de “baixa
autoestima” e “problemas de comunicação”. Um marco importante no avanço
dos diagnósticos e de um olhar direcionado ao que ainda se denominava
“doenças mentais” foi que no final da década de 70, a Reforma Psiquiátrica no
Brasil ganha força ao criticar o modelo asilar de assistência em saúde mental,
bem como a mercantilização da loucura.

Os diagnósticos litorâneos captam novas formas de sofrimento,


conferindo-lhes nomeações nas quais o mal-estar pode ser
reconhecido. Elas se distinguem dos diagnósticos murados,
que justificam intervenções químicas e demais contenções
regulativas. (DUNKER, 2015, p. 99)

Já nos anos 80, surgem os pacientes limítrofes, quadros boderlines –


pacientes em estados limites, ou seja, pessoas que tem dificuldade em aceitar
o laço com o outro, pois existem demandas, expectativas etc e se caracterizam
por humor, comportamentos e relacionamentos instáveis. As terminologias
relacionadas à saúde mental se modificam, ocorrendo uma despatologização
da “doença mental”, que veio a se tornar “transtorno”, “desordem” ou
“dificuldade” (DUNKER, 2015). Profissionais da saúde mental se mobilizavam

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para denunciar os maus tratos acometidos dentro das instituições psiquiátricas
e para se auto organizarem nos movimentos sociais de saúde. Nos anos 90, se
instala um sistema baseado na medicalização maciça e de modo
institucionalizado, a mercantilização da loucura passa a fazer parte dos
protocolos da razão diagnóstica, dando suporte à psiquiatria brasileira.

Os usuários, antes chamados pacientes, agora são geridos à


base de contratos terapêuticos, cuja métrica de resultados
baseia-se indiretamente na redução dos custos, do empenho e
do retorno do investimento das cooperativas que se incubem
dos equipamentos de saúde. (DUNKER, 2015, p. 54)

Nos anos 2000, surgem os pânicos e as disfunções alimentares, como


anorexia e bulimia. As políticas de saúde mental se direcionam a uma
substituição das práticas clínicas através de intervenções farmacológicas, a fim
de desenvolver um novo mecanismo e assistência que seja econômica,
acessível e prática, baseada em protocolos simples de diagnóstico e
medicalização dos usuários.
Com base nesse breve histórico do sofrimento psíquico e suas variações
ao longo das décadas, é possível perceber que a ideia de sofrer demonstrava
fraqueza e incapacidade de lidar com a realidade. Seja as neuroses ou os
sintomas de sofrimento cotidiano, o indivíduo da era industrial que manifestava
sinais de loucura, era também acompanhado pelo estigma e preconceito social.
A ideia de indivíduos considerados normais pela sociedade necessitar de
medicalização e acompanhamento médico-psicológico quebrou barreiras em
relação a esses estigmas. A partir disso, se inicia uma multiplicação de
entidades diagnósticas e o surgimento crescente de novas formas de
medicalização, com mais eficácia, menos efeitos colaterais e maior poder de
combinação entre medicamentos. O “sistema de negócio” da saúde em geral,
mas especificamente da saúde mental, se desenvolve em grandes proporções
e transforma a medicalização em válvula de escape do indivíduo angustiado.
Fazemos aqui uma reflexão: até que ponto esse “sistema de negócio”
condiciona o indivíduo a depositar suas insatisfações e as variáveis do mal-
estar cotidiano na medicalização? É preciso considerar cada novo sofrimento

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como resposta às transformações do mundo e de suas épocas. Isso não
significa que cada época determina e produz os sintomas dos indivíduos, mas
sim, de que em cada época há novas formas de lidar com o sofrimento e o mal-
estar cotidiano. Freud introduz uma teoria sobre a noção de mal-estar que
contempla os sintomas e outras formas de sofrimento.

Já demos a resposta, ao indicar as três fontes de onde vem o


nosso sofrer: a prepotência da natureza, a fragilidade de nosso
corpo e a insuficiência das normas que regulam os vínculos
humanos na família, no Estado e na sociedade. No tocante às
duas primeiras, nosso julgamento não tem por que hesitar: ele
nos obriga ao reconhecimento dessas fontes do sofrer e à
rendição ao inevitável. Nunca dominaremos completamente a
natureza, e nosso organismo, ele mesmo parte dessa natureza,
será sempre uma construção transitória, limitada em
adequação e desempenho. (...) Temos outra atitude para com
a terceira fonte de sofrimento, a social. Esta não queremos
admitir, não podendo compreender por que as instituições por
nós mesmos criadas não trariam bem-estar e proteção para
todos nós. Contudo, se lembrarmos como fracassamos
justamente nessa parte da prevenção do sofrimento, nasce a
suspeita de que aí se esconderia um quê da natureza
indomável, desta vez da nossa própria constituição psíquica.
(FREUD, 1930, p. 29-30)

Desse modo, podemos compreender determinadas questões como


chaves para o entendimento e como propulsores do sofrimento psíquico: o
mundo exterior, como espaço e território que ocupamos, responsável pela
nossa construção como ser vivo, comunidade, indivíduo em sociedade etc; o
nosso corpo, como matéria que se dissolve com o tempo e se torna suscetível
à dor; e por fim, as relações e vínculos que construímos ao longo do tempo e
que nos faz entrar em contato com outras realidades e percepções. Um outro
ponto importante para a compreensão do sofrimento são os avanços das
pesquisas e a facilidade de acesso aos meios. As variáveis compreensões do
sofrimento psíquico se construíram e desconstruíram, transformando a
experiência individual em experiência coletiva.

A experiência individual no sofrimento singular se expressa em


falas únicas, de preferência em primeira pessoa. Por isso é
importante jamais separar o sofrimento dos movimentos sociais

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que lhe deram origem. O sofrimento individual, aliás, é ele
mesmo um efeito social bem delimitável por sentimentos que
lhe seriam atinentes: piedade e culpa, vergonha e desamparo,
indiferença e ressentimento. (DUNKER, 2015, p. 26)

É o que a tese desenvolvida por Vladimir Safatle em “Grande Hotel


Abismo: por uma reconstrução da teoria do reconhecimento” (2015) afirma ao
apontar que patologias sociais e individuais não são opostas somente pelos
sujeitos do sofrimento, mas sim por haver de opor o sofrimento vivido por um
indivíduo e o sofrimento de “ter que ser um indivíduo” que segue normas, que é
cobrado socialmente e que sofre por perda de domínios (ou poder) ou por não
suprir determinadas expectativas.

A patologia do social se mostra primeiro como sofrimento,


depois como sintoma. O sofrimento, por sua vez, mostra-se
sempre ou como sentimento de perda de poder
(impossibilidade de fazer reconhecer o próprio desejo) ou como
expectativa irrealizada de liberdade (impossibilidade de
reconhecer o próprio desejo). Portanto, o sofrimento não
constitui uma resistência social por si; ele só se torna um fator
político quando se conecta com a experiência de perda de
identidade, dando, assim, ensejo a práticas de reconstituição
ou suspensão da lei. (DUNKER, 2015, p. 38)

O sofrimento advindo desse sentimento de perda de poder ou de


expectativa irrealizada de liberdade é definido pelo que Freud denomina de
discomfort, no português, desconforto. É o peso existencial da angústia – mas
que não é apenas angústia –, do ser estranho e ao mesmo tempo familiar –
denominado por Freud como Unheimlich – e que se qualifica como sentimento
torturante.
Ora, o mal-estar está tanto em uma vida feita de cercamentos
determinados (construções culturais, leis, formas sociais e
condomínios) quanto na experiência do aberto, indeterminado,
como no deserto (nossa errância desencontrada, familiar-
estrangeira, esquizoide). (DUNKER, 2015, p. 43)

Assim, essa angústia que se repete, que se mantém constante, sem


causa ou razão específica, pode ser compreendida como mal-estar. Para
Dunker, a noção de mal-estar é apresentada como dificuldade de nomeação,
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quando não se percebe a culpa que a experimentamos como um mal-estar.
Esse sofrimento advindo da sensação do mal-estar e da angústia se modifica
de acordo com a época em que se manifesta, definindo qual sofrimento se
enquadra como sendo do cotidiano e suportável e qual sofrimento se enquadra
no patológico.
Desse modo, percebemos uma construção histórica da noção de
sofrimento, que se modifica de acordo com os anos e que, embora se atualize
a cada época, ainda se mantém como uma questão facilmente identificável em
um não-reconhecimento de si e de um reconhecimento no outro e,
principalmente, no sofrimento do outro. Esse reconhecimento se dá não
apenas para o outro, mas depende do olhar do outro para que olhar do
indivíduo sobre si mesmo seja legítimo – visto que o Eu que se relaciona
comigo mesmo se diferente do Eu que se relaciona com o outro. No que se
refere a um campo dos afetos, essas questões tomaram grandes proporções e
fazem parte da vida cotidiana.

Campo dos Afetos

A vida moderna colocou o homem como centro do universo e medida de


todas as coisas, o que desencadeou uma corrida em busca da felicidade
comprovada. A necessidade de existir intensamente aos olhos do outro fez
com que a sociedade moderna exaltasse permanentemente os espaços, as
formas, os contextos, os cenários, as falas, os posicionamentos dos indivíduos,
mediante o olhar do outro, condicionado àquilo que o outro vai admirar.
Sigmund Freud, ainda em “O mal-estar na civilização” (1930), nos apresenta as
inúmeras variáveis da delimitação do Eu em relação ao mundo externo.

A patologia nos apresenta um grande número de estados em


que a delimitação do Eu ante o mundo externo se torna
problemática, ou os limites são traçados incorretamente; casos
em que partes do próprio corpo, e componentes da própria vida
psíquica, percepções, pensamentos, afetos, nos surgem como
alheios e não pertencentes ao Eu; outros, em que se atribui ao
mundo externo o que evidentemente surgiu no Eu e deveria ser
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reconhecido por ele. Logo, também o sentimento do Eu está
sujeito a transtornos, e as fronteiras do Eu não são
permanentes. (FREUD, 1930, p. 12)

Em 1930, Freud já antecipava o que viria a ser sociedade atual: de um


lado, uma sociedade que incita os indivíduos ao extremo, a viver sem limites, a
ultrapassar as barreiras, e que em uma espécie de imperativo do gozo, os
indivíduos que convivem em sociedade precisam dar provas de que são bem
sucedidos. Potencialmente dependente, esses indivíduos esperam do mundo
uma aprovação sobre si mesmo. Do outro lado, em contrapartida, temos uma
sociedade que reproduz gerações cada vez menos impelidas a pensar em
como são sujeitos responsáveis por suas vidas e capazes de mudanças, a
achar que sua participação no mundo fará pouca diferença e que o nível macro
de possibilidades e opções transforma sua identidade em algo micro. Essas
situações, ocorrendo mutuamente, são potenciais gatilhos para grandes
conflitos existenciais.
Seja para si, para o mundo ou para o outro, o que todo indivíduo procura
é a felicidade (FREUD, 1930). A busca pela felicidade também tem dois lados:
a vivência de fortes prazeres que proporcionem satisfação repentina e do outro,
a ausência de dor e desprazer. Aplicando na realidade moderna, não bastaria
dizer que não está triste, mas dizer e provar que se está feliz.

Aqui podemos transitar para o caso interessante em que a


felicidade na vida é buscada sobretudo no gozo da beleza,
onde quer que ela se mostre a nossos sentidos e nosso
julgamento, a beleza das formas e dos gestos humanos, de
objetos naturais e de paisagens, de criações artísticas e
mesmo científicas. Essa atitude estética para com o objetivo da
vida não oferece muita proteção contra a ameaça do sofrer,
mas compensa muitas coisas. A fruição da beleza tem uma
qualidade sensorial peculiar, suavemente inebriante. Não há
utilidade evidente na beleza, nem se nota uma clara
necessidade cultural para ela; no entanto, a civilização não
poderia dispensá-la. A ciência da estética investiga as
condições em que o belo é percebido; sobre a natureza e
origem da beleza ela nada pôde esclarecer; como de hábito, o
insucesso é escondido numa prodigalidade de palavras
altissonantes e pobres de sentido. (FREUD, 1930, p. 27)

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Desse modo, tanto a felicidade quanto o sofrimento se tornam refém do
olhar do outro, onde, se o outro não reconhece a minha felicidade, ela não é
suficiente; e onde se o outro não reconhece meu sofrimento, eu entro em um
estado de patologia de mim mesmo. Experiências cada vez mais comuns nos
dias atuais, onde sensibilidades são reprimidas em prol de velocidade e
efetividade. Percebemos que uma forma de organização política, econômica e
social alimenta e condiciona um certo ritmo de nossos desejos, nossas alegrias
e das nossas formas de sofrer.
Um campo de afetos se naturaliza e condicionados aos mesmos afetos
de sempre, os indivíduos não são mais capazes de criar novas formas de laços
sociais e os elos cotidianos vão se tornando cada vez mais frágeis. Vladimir
Safatle (2015) desenvolve o pensamento de transformação dos afetos como
forma de transformação política - enquanto prática fundamental de
produtividade social. Para Safatle, há um momento em que, de uma certa
maneira, a consciência humana precisa se angustiar2. Isso se faz necessário
para que essa consciência consiga redimensionar o campo da sua própria
experiência.
O autor compreende que os afetos que nos transformam têm
características de afetos ambivalentes, e que a angústia que acomete os
indivíduos pode ser compreendida como desamparo.

(...) o desamparo (Hilflosigkeit) tem algo de desabamento das


reações possíveis, de paralisia sem reação (...) ou mesmo de
extrema vulnerabilidade vinda do fato de se estar fora de si,
mas agora dependendo de um Outro que não sei como
responderá. (SAFATLE, 2015, p. 52)

Ou seja, o desamparo acontece quando o indivíduo não sabe como o


Outro reage em relação a algo ou como lidar com determinado fato. Há um
Outro involuntário que escraviza a vida do indivíduo e condiciona os afetos, e
isso faz com que essa situação se torne tão angustiante a ponto do indivíduo

2
Safatle (2015) utiliza a tradução do termo angústia trabalhado e desenvolvido por Sigmund Freud
(1930) como desamparo.
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ter como principal objetivo, cessar esse sentimento e se livrar dessa servidão.
Para Safatle, o desamparo não pode ser produzido apenas pela consciência da
vulnerabilidade do indivíduo em sua relação com o outro, “mas também pela
própria ausência de resposta adequada às excitações pulsionais internas”, ou
seja, para o autor, há uma articulação que ocorre duplamente entre fontes
internas e externas, e é isso que se configura como traumático para o
indivíduo.
Tal inadequação entre minha capacidade de reação, de
controle, em suma, de representação sob a forma de um
objeto, e a magnitude do que tenho diante de mim, dá à
situação um caráter traumático. (SAFATLE, 2015, p. 62)

Para o autor, dois afetos limitam os indivíduos em sociedade. São eles:


o medo e a esperança.

Medo e esperança são, a sua maneira, dois afetos


complementares, pois estão vinculados em sua dependência
mútua em relação à temporalidade da expectativa,
temporalidade do acontecimento por vir, seja ele positivo ou
negativo. É tal temporalidade que o desamparo elimina,
desprovida de expectativa, que se expressa em um caráter
fundamental de indeterminação. (SAFATLE, 2015, p. 64)

De um lado, o medo se associa à situações de perigo, à indeterminação


de um objeto que potencialmente geraria um evento traumático, então à
expectativa de um mal por vir. Do outro lado, a esperança se associa à uma
expectativa de um bem por vir. Essa expectativa faz com que o indivíduo se
programe em relação ao futuro, com o que está por vir. E diante essa
expectativa do Outro, surge como um agir por demanda, que condiciona o
indivíduo a agir sob aprovação desse Outro, numa busca de confirmações e
potências de si, para que este seja amparado – no sentido de conforto, de lugar
de reconhecimento, um lugar narcísico.
Ao longo dos anos, novas estrutura de expectativas vão surgindo, e o
Outro antes visto como uma instituição de poder, um chefe ou uma figura
consideravelmente distante da realidade do indivíduo, agora se aproxima e
acomete um vizinho, um colega de trabalho, um parente, entre outros, onde

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novas formas de reconhecimento de si através do olhar do outro, vão se
emancipando e originando novas formas de disputa. É o que Freud (1921)
denomina de narcisismo das pequenas diferenças.

Toda vez que duas famílias se unem por casamento, cada uma
delas se acha melhor ou mais nobre que a outra. Havendo
duas cidades vizinhas, cada uma se torna a maldosa
concorrente da outra; cada pequenino cantão olha com
desdém para o outro. Etnias bastante aparentadas se repelem,
o alemão do sul não tolera o alemão do norte, o inglês diz
cobras e lagartos do escocês, o espanhol despreza o
português. Já não nos surpreende que diferenças maiores
resultem numa aversão difícil de superar, como a do gaulês
pelo germano, do ariano pelo semita, do branco pelo homem
de cor. (FREUD, 1921, p. 43-44)

Assim, o olhar do Outro se torna parâmetro para o sucesso e satisfação


do indivíduo contemporâneo, que busca a todo momento provar para o Outro e
se reconhecer no Outro para enfim, se realizar subjetivamente.
O mundo contemporâneo exige que a humanidade acompanhe a
velocidade das tecnologias, que quanto mais produz, mais deve ser
consumido; quanto mais se cria, mas se quer construir, e assim, aumentam-se
as variáveis e possibilidades de escolhas. Essas possibilidades carregam
consigo o peso da liberdade desregulamentada, como se o fato de ser livre
para a escolha fosse angustiante o suficiente e fizesse o indivíduo se ver preso
em outras questões que lhe dê algum norte. Então temos um mundo altamente
tecnológico, veloz, frágil e excessivo, e que carrega consigo uma cultura
narcisista, onde o indivíduo não busca apenas mostrar para o outro o seu
sucesso, seu êxito, sua felicidade, mas mostrar pra si o quanto é capaz de se
superar. É o que trabalharemos melhor no próximo tópico.

Cultura do Narcisismo

Além da angústia, um outro sentimento vem sendo desenvolvido quando


se trata sobre os modos de relacionamento com o Outro. A ideia da indiferença
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surge com grandiosa força, principalmente a partir do século XXI, onde a
sociedade contemporânea vem se desenvolvendo e se construindo sob a ótica
do ser indiferente em relação ao outro (DUNKER, 2017). A indiferença se
apresenta como defesa para aquilo que o Outro provoca no indivíduo como
algo que o próprio indivíduo não consegue admitir, nem reconhecer, nem lidar
e nem mesmo gostar.
Essa indiferença se dá através de um estranhamento do outro que
acontece por inúmeras questões: distanciamento de realidades, aversão,
constrangimento, embaraços, zonas de conforto, entre outros fatores que
realocam essas unidades para uma zona de indiferença. É sobre o que
desenvolve Christopher Lasch em “A Cultura do Narcisismo” (1979):

O enfraquecimento dos vínculos sociais que têm origem no


estado predominante do bem-estar social, ao mesmo tempo
reflete uma defesa narcisista contra a dependência. Uma
sociedade hostil tende a produzir homens e mulheres que são
basicamente anti-sociais. Não deveria, portanto, surpreender-
nos que, embora o narcisista concorde com as normas sociais,
por medo de represália externa, ele pensa, com frequência,
sobre si mesmo como um fora-da-lei e vê os outros, da mesma
maneira, “como basicamente desonestos e pouco confiáveis,
ou somente confiáveis por causa de pressões externas”.
(LASCH, 1979, p. 38)

Aqui percebemos, sob a ótica da indiferença, as possíveis e reais


influências no cotidiano contemporâneo. Pessoas que compartilham as
mesmas realidades físicas mas que seus laços e relações são estreitos e
fracos, sensíveis a qualquer estranhamento quiçá, participação. Assim, a
indiferença vai se tornando não apenas um efeito de distanciamento físico e de
realidades e nem mesmo apenas uma incapacidade que de pensar no outro e
se por em seu lugar, mas sim de uma política, uma atitude em enfrentar e lidar
com conflitos e diferenças, onde o indivíduo enfrenta obstáculos pelo método
da esquiva e do silenciamento; por um método da transformação da realidade
ao invés da transformação do indivíduo.

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Para Lasch, existe um histórico na qual a humanidade se manifesta
narcisicamente, porém, as formas, categorias, urgências e necessidades é que
se modificaram ao longo dos anos.
Os homens sempre foram egoístas, os grupos sempre foram
etnocêntricos, nada se ganha em se atribuir a essas qualidades
um rótulo psiquiátrico. Contudo, a emergência das desordens
do caráter como as mais proeminentes formas de patologia
psiquiátrica, junto com a mudança na estrutura da
personalidade que este desenvolvimento reflete, derivam-se de
mudanças bem específicas em nossa sociedade e cultura – da
burocracia, da proliferação de imagens, de ideologias
terapêuticas, da racionalização da vida interior, do culto do
consumismo e, em última análise, das mudanças na vida
familiar, assim como de padrões variáveis de socialização.
(LASCH, 1979, 27-28)

Assim, encontramos uma sociedade que busca cada vez mais se poupar
de determinados conflitos para que não haja nenhum tipo de desgaste físico ou
mental e para que não haja nenhum tipo de sofrimento. É importante destacar
que esse processo ocorre tanto de um indivíduo para com si mesmo, como de
um indivíduo para com outro indivíduo, como é o caso de pais super protetores
que não querem que seus filhos vivenciem momentos de conflitos internos e
externos.
A ética da autopreservação e da sobrevivência psíquica está,
então, radicada, não meramente nas condições objetivas da
guerra econômica, nas elevadas taxas de crimes e no caos
social, mas na experiência subjetiva do vazio e do isolamento.
Ela reflete a convicção – tanto uma projeção de ansiedades
interiores, como uma percepção de como são as coisas – de
que a inveja e a exploração dominam até mesmo as relações
mais íntimas. (LASCH, 1979, p. 38)

A sociedade contemporânea foi buscando novas formas de se


relacionar, novas mudanças nos espaços e possibilidades de interação
expressão e comunicação. A introdução de novas mídias – principalmente as
tecnologias digitais – no cotidiano da sociedade atual, fez com que uma rede
de pessoas viessem a se conectar em qualquer parte do mundo,
proporcionando uma autonomia do campo das mídias e que, por sua vez,
impõe transformações nos contratos e vínculos sociais.

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Rev. Episteme Transversalis, Volta Redonda-RJ, v.10, n.1, p.141-162, 2019.
A possibilidade de interação rápida e eficiente fez dessas tecnologias –
sobretudo das redes sociais – uma válvula de escape que permitia a existência
de uma grande rede de conexão. Essa grande rede possibilitou inúmeras
aproximações, mas também, reforçou um desligamento com a realidade, na
qual as pessoas optavam por viver o mundo digital ao invés do mundo real.
Escolher com quais pessoas conviver, com quais conflitos lidar, fizeram do
indivíduo contemporâneo um sujeito cômodo. Deletar uma postagem,
adicionar, curtir, excluir ou bloquear alguém, se tornaram as novas formas de
ação e reação humana.

Por intermédio da família, os padrões sociais reproduzem-se


na personalidade. Os arranjos sociais subsistem no indivíduo,
sepultados na mente, abaixo do nível da consciência, mesmo
após haver eles se tornado objetivamente indesejáveis e
desnecessários (...). A percepção do mundo como um lugar
perigoso e repulsivo, embora tenha origem em uma
conscientização realista da insegurança da vida social
contemporânea, recebe reforço da projeção narcisista de
impulsos agressivos. A crença de que a sociedade não tem
futuro, embora se baseie em certo realismo sobre os perigos
do devir, também incorpora uma incapacidade narcisista de
identificar-se com a posteridade ou de sentir-se parte do fluxo
da história. (LASCH, 1979, p. 38)

As redes sociais, em sua beleza e perfeição, expunha apenas o lado


positivo da realidade e, em contrapartida, se tornava um campo de
manifestação de angústias e sofrimento. A dicotomia entre a visibilidade
proporcionada pelas redes sociais e a solidão da angústia, vivenciada pelos
mesmos indivíduos, são potenciais fatores dos conflitos internos atuais.
As tecnologias midiáticas permitiram das redes sociais se tornarem um
campo avançado de interação social, mas também abriram portas para os
indivíduos em rede criarem uma sociedade do espetáculo3 que busca a todo
momento exaltar e reforçar indícios de felicidade e satisfação plena. Contudo,
para além do que já sabemos, essa mesma sociedade busca formas de se
reconhecer e se manifestar, diante as angústias e sofrimentos individuais que,

3
Guy Debord, ASociedade do Espetáculo, 1967.
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em rede, se tornam compartilhados, abrindo o campo – embora de outra
maneira –, da identificação e pertencimento dos sofrimentos psíquicos.

Redes Sociais: Identificação e Aproximação Social

Enquanto campo de interação, as redes sociais proporcionaram a


existência de um espaço de compartilhamento de pensamentos, ideias e
posicionamentos. Assim como espaço de aproximação social onde indivíduos
se conhecem e interagem virtualmente por questões de identificação – seja por
locais compartilhados, amizades em comum, gostos familiares –, isso também
acontece com um sofrimento que é refletido e identificado no outro, ou seja, o
sofrimento de um indivíduo é comum ao sofrimento de outro e isso permite que
também haja uma espécie de identificação.
Determinados comportamentos, atitudes, pensamentos, que antes eram
adotados como obrigações sociais, hoje são pautas para discussões e quebra
de paradigmas, estereótipos, espaços de auto-ajuda e diálogos abertos, bem
como para manifestações de solidariedade e empatia a partir de algum laço em
comum socialmente. Questões como o machismo, o racismo, lgbtfobia,
gordofobia, se tornaram assuntos facilmente debatidos e desconstruídos no
espaço das redes sociais, considerando o empoderamento e o fortalecimento
das relações construídas entre os indivíduos que compartilham das mesmas
experiências.
Uma outra questão desconstruída dentro das redes sociais e dos
espaços das tecnologias digitais, se refere à medicalização cotidiana para
pessoas ansiosas, depressivas, bipolares, que antes eram vistos como loucos,
e que no espaço das tecnologias digitais e das redes sociais, abriu-se a
possibilidade para ver que a loucura não se trata apenas de uma pessoa
potencialmente agressiva e incapaz, como se costuma ver nos discursos
estereotipados, mas de toda uma fragilidade emocional em lidar com
determinadas situações cotidianas.

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Assim, um indivíduo que na sociedade contemporânea se utiliza de
remédios controlados para se manter convivendo em harmonia, já não causa
nenhum tipo de estranhamento social, pois dificuldades em lidar com
determinadas questões e realidades é algo comum a todo indivíduo que
compartilha espaços, reflexões etc. Como citamos anteriormente, a forma com
que um indivíduo fala do seu sofrimento, altera e modifica a forma com que ele
vê o próprio sofrimento.

Se antes o diagnóstico psicopatológico podia significar uma


temível, às vezes irreversível, inclusão jurídico-hospitalar ou
exclusão moral educativa, agora ele parece ter se tornado um
poderoso e disseminado meio de determinação e de
reconhecimento, quando não de destituição da
responsabilidade de um sujeito. Instrumento útil para a
articulação de demandas e direitos, em certas circunstâncias,
ter um diagnóstico significa cruzar a tênue linha que pode nos
separar do acesso à cidadania. Isso decorre do fato de que ter
um sintoma é participar de uma exceção, e ser uma exceção
nomeável que responsabiliza e implica os dispositivos de
subjetivação como o hospital, o direito, o Estado, a escola.
(DUNKER, 2015, p. 24)

Falar sobre angústias, medos, ansiedades, dificuldades – questões


socialmente consideradas como fraqueza emocional –, altera a forma de lidar
com essas questões, e quando um indivíduo vê nas redes sociais uma
oportunidade e espaço para compartilhar seus testemunhos e experiências, e
outro indivíduo vê e se identifica com esses testemunhos, por sua vez, também
se modifica a forma de lidar com essas experiências. Pablo Esteban Rodriguez
em “Espetáculo do Dividual: Tecnologias do eu e vigilância distribuída nas
redes sociais” (2015) apresenta um entendimento de transformações
individuais a partir do conceito de vigilância de si.

A imagem mesma de uma interioridade privada, íntima, é uma


construção moderna; mas, aliás, se a vida social consiste,
como mostra Goffman, num teatro onde se brinca com a
criação de um “si próprio”, é preciso salientar que não são as
redes sociais que levam a intimidade a se divulgar, mas sim
que os dispositivos que cuidavam dessa intimidade se
encontram entrelaçados com outros que a usam como valor de
exibição. Assim, as redes sociais seriam, em todo caso, o
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cenário onde se expressa essa mudança nas condições de
criação de subjetividades, e pelo qual fica claro que a imagem
na construção do eu, essa imagem tão desdobrada pela
psicanálise, em especial na versão de Jaques Lacan, não se
encontra no interior nem na superfície do indivíduo; se encontra
mais bem difusa no curso da ação social. (RODRIGUEZ, 2015,
p. 61)

Assim, podemos compreender que as novas experiências midiáticas não


podem ser consideradas fatores principais para os novos entendimentos e
diálogos sobre questões íntimas que, na sociedade contemporânea, vieram à
luz. Mas sim sob a ótica de cenário, como um campo de troca de experiências
e vivências individuais e coletivas que pode proporcionar novos entendimentos
e formas de subjetivação.
Esses novos entendimentos abrem portas para compreendemos, como
sociedade, a importância do compartilhamento de informações de modo
inteligente, colaborativo, integrado, que busque dividir experiências e permita
minimizar os efeitos de opressão e suas variáveis existentes.

Considerações Finais

Como resultado da presente pesquisa, compreendemos três etapas do


processo de transformação, onde os sofrimentos psíquicos saíram do campo
da invisibilidade para uma superexposição em rede. A primeira premissa se
configura nas redes sociais como ferramenta de aproximação, como um
espaço de compartilhamento de ideias, onde há um campo de interações e
construção de subjetividades em território compartilhado. São os afetos
compartilhados que acontecem de modo simultâneo e recíproco, capaz de
construir, sucessivamente, as experiências individuais, coletivas e digitais.
Como segunda premissa, identificamos as redes sociais como
ferramenta de compartilhamento de questões consideradas íntimas ou
pessoais, como é o caso de conflitos internos, sentimentos de angústia,
cansaço, preocupação com a própria imagem, sofrimentos em geral. Agora as
redes sociais saem do campo do perfeccionismo e passam a um campo mais
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real e subjetivo, capaz de refletir um Eu que sofre, se angustia, se preocupa,
enfim, não tão perfeito como se é refletido nos primórdios das redes sociais.
Agora existe um indivíduo que se identifica e se reconhece no sofrimento do
Outro. Nessa premissa podemos identificar também um indivíduo que sente a
necessidade do diálogo e do pertencimento, mesmo que não seja por um
perfeccionismo, mas por compartilhar as mesmas questões de sofrimento e
angústia e perceber que isso é inerente ao homem contemporâneo.
Aqui os indivíduos dialogam sobre essas questões e encontram espaço
para refletir de modo subjetivo sobre suas angústias e sofrimentos. Aqui
entramos com a terceira premissa, onde as redes sociais atuam como
ferramenta de diálogo sobre o sofrimento individual, onde além do
reconhecimento e do pertencimento coletivo, existe novas formas de lidar com
essas questões e as subjetividades como modo de ser e estar no mundo.
A autonomia do campo das mídias impõe transformações nos contratos
e vínculos sociais. A forma com que a sociedade contemporânea tem
dialogado sobre as questões do sofrimento da mente, refletem diretamente na
percepção dos indivíduos sobre como lidar com essas questões. O sofrimento
humano está sujeito a alterações, e essas alterações só são possíveis a nível
de mudança de mundo ou mudança de indivíduo, ou seja, só pode ser alterado
mudando o mundo ou mudando a nós mesmos. As narrativas desses
sofrimentos em relação à experiências do real é que são capazes de
transformar a forma com que a sociedade vê as questões do sofrimento
individual e conseguir resignificar suas potencialidades. Desse modo, a
construção das narrativas dos sentimentos e sofrimentos é de extrema
necessidade para que a sociedade saiba como lidar com as questões
subjetivas cotidianas.

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Referências

DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do


Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

_________________. Reinvenção da intimidade: políticas do sofrimento


cotidiano. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

FREUD, Sigmund (1930). O mal-estar na civilização. In: Obras psicológicas


completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro:
Imago, 1996

LASCH, Christopher (1979). A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago,


1983.

RODRIGUEZ, Pablo Esteban. Espetáculo do Dividual: Tecnologias do eu e


vigilância distribuída nas redes sociais. In: Revista Eco Pós/Tecnopolíticas e
Vigilância, v. 8, nº 2, 2015, Rio de Janeiro, p. 57-68.

SAFATLE, Vladimir. Grande Hotel Abismo: por uma reconstrução da teoria do


reconhecimento. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.

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