Marcello Miolo TOTAL

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O autor escreve

segundo o anterior
Acordo Ortográfico
Coordenação editorial
João Pombeiro
Revisão
João Alexandre
Capa e paginação
PixelReply.pt
Fotografia de capa
Lusa

RETRATOS POLÍTICOS
Breves Biografias de Políticos Portugueses
é uma série editada pela Reverso em exclusivo
para a revista SÁBADO.
© Reverso, 2024 | Medialivre, 2024
Reservados todos os direitos de acordo
com a legislação em vigor.
Depósito legal: 529811/24
ISBN: 978-989-9080-31-7
Impresso em abril de 2024 na Jorge Fernandes.
UMA VIDA
PORTUGUESA
MARCELLO

ÍNDICE
09  INTRÓITO
13  INFÂNCIA E JUVENTUDE
27  NOS ALVORES DO ESTADO NOVO
41  ENFIM, MINISTRO: OS TEMPOS ÁUREOS
69  TRAVESSIA DO DESERTO
77  SUCESSOR DE SALAZAR
89  PRIMAVERA E OUTONO
119  EXÍLIO E FIM
131  CRONOLOGIA
137  PARA SABER MAIS

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INTRÓITO

N o final da manhã de 26 de Outubro de 1980, domingo,


por volta das 12h30, enquanto lavava as mãos na casa de
banho do seu apartamento na Rua Cruz Lima, n.º 8, no bair-
ro do Flamengo, Rio de Janeiro, aguardando que a irmã Olga
o chamasse para o almoço, Marcello Caetano foi acometido
de uma violenta dor no peito, que em minutos o matou.
Faleceu de crise cardíaca, a derradeira de outras que antes
sofrera, a última das quais na véspera, na casa de um amigo
carioca, o advogado e bibliófilo Plínio Doyle, que aí organi-
zava uns famosos saraus literários, os «sabadoyles», aos quais
compareciam escritores e intelectuais de renome, como Car-
los Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos ou Pe-
dro Nava.
Chamado um médico, este disse tratar-se de uma crise pas-
sageira, recomendando apenas imediato repouso. À noite, já
em casa, o doente parecia ter recuperado: jogou uma partida
de cartas com a irmã, despediu-se dela com um sorriso, di-
zendo «Durma bem e peça a Nosso Senhor por mim», ao

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que Olga replicou «Peça antes o mano por mim, porque eu
preciso mais.»
Na manhã seguinte, estava morto. O corpo seria velado no
salão da biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura,
ao qual afluiu uma multidão de gente: familiares vindos de
Lisboa, amigos brasileiros e portugueses, autoridades civis,
os habituais curiosos. Na segunda-feira seguinte, dia 27 de
Outubro, realizou-se o enterro. Coberta pela bandeira na-
cional portuguesa, a urna foi transportada em carro aberto
do Corpo de Bombeiros, encabeçando um cortejo estimado
em cerca de 300 viaturas. Depois, foi colocada na Quadra 43,
n.º 18339A do Mausoléu dos Imortais, no Cemitério de São
João Batista, em Botafogo, que a Academia Brasileira de Le-
tras mandara construir em 1962 para reduzir o custo que
tinha com os sepultamentos dos seus distintos membros e,
caso estes o quisessem, das respectivas mulheres. Na cerimó-
nia do adeus discursaram dois académicos de peso, o jorna-
lista e professor Austregelésio de Athayde (1898-1993) e o
historiador Pedro Calmon (1902-1985), amigos e admirado-
res do falecido.
No Rio permanecem os seus restos mortais. Exilado no
Brasil desde 1974, nunca perdeu a amargura e o desalento
com o seu país e, pouco antes de morrer, dissuadia os esfor-
ços de amigos seus, como Joaquim Veríssimo Serrão (1925-
2020), que tentavam obter de um seu antigo discípulo, Frei-
tas do Amaral (1941-2019), então vice-primeiro-ministro da
Aliança Democrática, a autorização para que, se o quisesse,
pudesse vir passar o Natal a Lisboa.
Do Brasil, escrevia missivas ácidas, nas quais verbera-
va Ramalho Eanes e Mário Soares (1924-2017), seu antigo
(e mau) aluno, ou manifestava um enorme e confrangedor

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desânimo: «Envelheci. E tenho pena.», escreveu numa mis-
siva. E noutra: «Chego ao fim da vida tendo perdido a Pátria,
valores morais e materiais, sonhos, ideais, aspirações… Que
poderia querer mais? Morrer…»
Tinha 74 anos.

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INFÂNCIA
E JUVENTUDE

N uma existência que cobriu praticamente todo o século


XX português, Marcelo José das Neves Alves Caeta-
no, que a dada altura da vida passou a grafar o nome como
«Marcello», nasceu dois anos antes do regicídio de D. Carlos
– mais precisamente, em 17 de Agosto de 1906 – e morreu
em 26 de Outubro de 1980, nas vésperas da tragédia de Ca-
marate, que vitimou o então primeiro-ministro Francisco Sá
Carneiro, seu antigo aluno.
Viu a luz no 3.º andar do n.º 45 da Travessa das Mónicas,
no popular Bairro da Graça, em Lisboa – e foi baptizado, com
seis meses de vida, na Igreja da Graça, sendo seus padrinhos
José Marcelino Carrilho e sua mulher Josefina –, a dois pas-
sos daquela que, muitos anos depois, seria a morada de So-
phia de Mello Breyner (1919-2004) e de Francisco de Sousa
Tavares (1920-1993), dois conhecidos opositores ao regime
do Estado Novo, no qual Marcello ocupou diversos e altos
cargos, com destaque para o de Presidente do Conselho de
Ministros, entre 1968 e 1974.

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RETRATOS POLÍTICOS

Destino surpreendente, ao menos em parte, em face das


suas origens modestas, não pobres, é certo, mas da classe mé-
dia mais baixa. O seu pai, José Maria Alves Caetano (1863-
1946), era funcionário das Alfândegas e um empenhado mi-
litante católico, irmão da Confraria do Senhor dos Passos e
membro da Conferência de São Vicente de Paulo, e sua mãe,
Josefa Maria das Neves (1859-1917), era doméstica, tendo
falecido subitamente, de ataque cardíaco, quando Marcello
tinha apenas nove anos, facto que, como é natural, o abalou
profundamente, com reflexos no seu aproveitamento escolar
e, inclusive, no surgimento de uma doença não especificada,
provavelmente do foro psicossomático. Escassos seis meses
depois de enviuvar, José Maria, então com 53 anos, voltou
a casar, com Maria da Encarnação Barata, natural de Sobral
Valado, freguesia e concelho de Pampilhosa da Serra, o mes-
mo que o seu. Deste novo casamento nasceram mais quatro
filhos, com os quais Marcello e as suas irmãs sempre manti-
veram cordiais relações.
Nas raízes do futuro governante, um retrato do país: o pai
nascera em 1863 na freguesia de Pessegueiro, concelho da
Pampilhosa da Serra, cumpriu doze anos de serviço militar
obrigatório em Artilharia Um, em Lisboa, para onde veio
tendo percorrido grande parte do caminho a pé; depois con-
seguiu transitar do Exército para a Guarda Fiscal e a seguir
para as Alfândegas, onde trabalhou até à aposentação. Nunca
perdeu, porém, as ligações à sua terra, tendo fundado e sido
presidente da assembleia-geral e presidente honorário da
Liga de Melhoramentos da Freguesia de Pessegueiro, além
de colaborador regular e muito assíduo do jornal A Comarca
de Arganil. Na capital, tornou-se um provedor dos seus pa-
trícios ou, como recordaria o filho em Minhas Memórias de

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MARCELLO

Salazar, «eram numerosos os conterrâneos que, ao chegarem


a Lisboa para por lá ganharem a vida, começavam por procu-
rar o Sr. Alves Caetano, a fim de que os orientasse, apoiasse e
encaminhasse no trabalho. A ele traziam depois alguns deles
os cobres poupados, pedindo que lhos guardasse para quando
regressassem ao torrão.»
A mãe, por seu turno, era natural do Colmeal, freguesia
do concelho de Góis e, numa evocação do conselheiro José
Dias Ferreira (1837-1907), Marcello recordou a viagem que
com ela fez, aos seis anos, até Pombeiro da Beira, no ano
de 1912: apanharam o comboio para a Lousã na estação de
Coimbra, numa madrugada gélida, a tiritar de frio, e dali se-
guiram de diligência, por uma estrada miserável («era cada
solavanco, meu Deus!») que os levou até Olho Marinho,
onde os aguardavam duas mulas para completar o trajecto.
Voltaria àquelas bandas em 9 de Novembro de 1968, já na
qualidade de Presidente do Conselho, naquela que foi a sua
primeira deslocação à província, que designou de «acto de
devoção filial», visitando os concelhos de Arganil, de Góis e
da Pampilhosa da Serra.
A humildade das origens, o catolicismo ardente, forjado
nos tempos agrestes da Primeira República, e o professorado
jurídico são traços comuns a Salazar e Caetano, que levaram
alguns a aproximá-los por essa via. Marcello, contudo, era, ao
contrário de Salazar, uma personalidade profunda e medular-
mente urbana, nada e criada em Lisboa, com uma ligação re-
mota à província, que mesmo seu pai só visitava de longe em
longe. Muitos anos depois, gabar-se-ia, aliás, de ter conhecido
a sua cidade a fundo, na trepidação das suas gentes e nos mo-
vimentos do século: «Rapaz, palmilhei a cidade inteira, em
tempos de ruas calmas e de trânsito pacato, percorrendo mais

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RETRATOS POLÍTICOS

os bairros velhos do que as avenidas novas. Vivi os sucessos


do tempo, misturado na multidão, fossem os grandes incên-
dios, fossem os solenes festejos, as manifestações, os cortejos,
os cataclismos, as revoluções. Andei no povo curioso e versá-
til, vibrei com as suas cóleras e os seus entusiasmos, corri os
seus riscos e participei nas suas exaltações.»
Em Lisboa, seu pai tivera várias moradas, todas na mesma
zona: primeiro no Largo das Olarias, depois Rua da Verónica,
a seguir na Travessa das Mónicas, e por fim na Rua Palmira,
junto à Almirante Reis, havendo também notícia de que a
família terá residido na Rua de S. Gens. Em resultado disso,
ou por outras vicissitudes, Marcello fez a instrução primária
em diversos estabelecimentos de ensino: aprendeu a ler e a
escrever numa escola particular da Rua da Graça, transitou
a seguir para a Escola n.º 4, do Campo de Santa Clara e, de-
pois, com a mudança da família para a Rua Palmira, passou
para a Escola n.º 1, no Campo Santana, e depois ainda para a
Escola n.º 68, à Penha de França, onde concluiu a instrução
primária, sempre com boas notas. Em 15 de Agosto de 1916,
realizou o exame do 2.º grau com a classificação de «aprova-
do com distinção.»
O sucesso nos estudos, fruto de uma inteligência vivaz e de
uma curiosidade intelectual insaciável, que manteve até mor-
rer, reflectia também, ou sobretudo, um profundo apego ao
trabalho, a ética do «subir a pulso» que já marcara o seu pai,
e que levará este último a promover, com êxito, que todas as
irmãs mais velhas de Marcello Caetano – Arminda, Emília,
Olga e Lucinda – tenham concluído o curso do magistério.
Como o próprio dizia, a grande preocupação dos seus pais
«foi educar e instruir os filhos, dando cursos às filhas no tem-
po em que raras mulheres o faziam.» Entre as suas leituras

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MARCELLO

da infância, Marcello recordaria De Angola à Contracosta, dos


exploradores africanistas Capelo e Ivens, e a funda impressão
que causou, no seu imaginário de criança, aquela narrativa de
ambientes e lugares exóticos, povoados de «homens esquisi-
tos, leões ferozes, crocodilos inesperados, zebras, antílopes,
elefantes.» Não adivinhava, por certo, que um dia viria a ser
ministro das Colónias e, mais ainda, chefe do último governo
do império português em África, ou do que dele restava.
Estudar, aprender, tirar um curso e, com sorte ou empe-
nhos, obter um lugar no Estado, na segurança do funcio-
nalismo público, constituía o sonho e o ideal de vida para
todos os que, como José Maria e Josefa, vinham fugidos do
Portugal profundo, daquilo a que, anos mais tarde, o bispo
D. António Ferreira Gomes chamaria a «miséria imereci-
da do mundo rural». A acrescer ao medo da pobreza, outro
pavor se juntava, o da doença. A mãe de Marcello morrera
quando este era criança, o mesmo sucedendo a um seu irmão
mais velho, João Maria, falecido em tenra idade. Não muito
depois, acompanhando o Padre Pereira dos Reis, conhecerá
de perto o flagelo da pneumónica, visitando os infectados dos
bairros mais pobres da capital. Como se não bastassem a pe-
núria e a doença, as turbulências políticas, com a instauração
da República e, depois, com as suas muitas voltas e reviravol-
tas (entrada de Portugal na Grande Guerra, o consulado de
Sidónio, a «Noite Sangrenta», as carestias dos anos 20), terão
agudizado no espírito do jovem Marcello uma profunda ne-
cessidade de ordem e de segurança, conquistadas através do
trabalho e do estudo, de um emprego estável e certo, de pre-
ferência no Estado, de um núcleo familiar coeso, sedimenta-
do em princípios e em valores simples, inquestionáveis, e nas
verdades da Igreja.

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RETRATOS POLÍTICOS

Formado na fé católica dos seus pais, a religião consti-


tuiu para o jovem Marcello um refúgio e um porto seguro
para as ansiedades do mundo. Muito novo, integra-se nos
escuteiros, onde chega a obter diploma de escuteiro-chefe na
primeira escola de chefes realizada em Portugal, seguida do
primeiro campo de aperfeiçoamento, o qual lhe permitiu o
uso da «insígnia de madeira» (woodcraft).
Em 1917, a chegada à paróquia dos Anjos de monsenhor
José Manuel Pereira dos Reis (1879-1960) tem nele o efei-
to de uma revelação. Conheceu-o ainda menino, na sede da
Juventude Católica de Lisboa, na Rua de Santo António dos
Capuchos, onde o seu pai o levava. Logo então ficou mar-
cado pela personalidade carismática daquele «padre jovem e
impecavelmente elegante, de sobrecasaca e de chapéu alto»,
que nos anos vindouros será responsável por uma profun-
da transformação litúrgica nas missas da Igreja dos Anjos e,
sobretudo, acima de tudo, pela afirmação de um catolicismo
militante, seguro de si, disposto a enfrentar as perseguições
da República ou a contorná-las com audácia e inteligência:
quando a nova sede da Juventude Católica, agora instalada na
Rua das Pedras Negras, junto à Sé, foi assaltada e encerrada,
Pereira dos Reis passou a reunir-se com os jovens crentes
nos bancos da Avenida da Liberdade, em encontros do qual
se lavrava inclusive uma acta, terminada invariável e ironi-
camente com um agradecimento à Câmara Municipal de Lis-
boa pela cedência das instalações…
Marcello seria um dos seus acólitos, ajudando-o antes de ir
para o liceu, nas missas das sete ou das oito da manhã. Mais
importante do que isso, acompanhava-o nas suas voltas pela
cidade, junto dos mais carenciados e, como se disse, dos fla-
gelados pela pneumónica, entre os quais a vidente Jacinta

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MARCELLO

Marto, falecida no Hospital da Estefânia e velada na Igreja


dos Anjos. Apesar disso, Pereira dos Reis não seguia nem
permitia o culto à Senhora de Fátima, ainda não oficializa-
do pela Igreja. Mas, sempre que podia, desafiava o anticleri-
calismo da República, por vezes com gestos ousados, como
naquela ocasião em que, na companhia de Marcello Caetano,
andou pela Baixa e atravessou o Rossio em vestes talares, en-
tão proibidas pelas autoridades.
«Fora da minha família nenhuma influência recebi que se
possa comparar à dele», dirá Marcello Caetano muitos anos
depois, confessando que, na juventude, e por influência de
Pereira Reis, chegou a ponderar seguir a via do sacerdócio:
«atravessei naturalmente as fases de piedade pelas quais, nos
verdes anos, uma sólida educação religiosa faz naturalmen-
te passar. Mentiria se negasse ter surgido no meu espírito a
ideia de seguir na esteira desse homem admirado que mais
que nenhum me impressionou. Mas não senti afinal esse
chamamento interior que se chama vocação. E não atravessei
o limiar de um seminário.»
No Liceu Camões, que frequentou entre 1916 e 1922 e
onde fez todo o secundário, tem como colega Henrique de
Barros (1904-2000), também seu companheiro nos escutei-
ros. Vai estudar com frequência a sua casa, na Avenida 5 de
Outubro, e aí contacta um meio muito diferente do seu, quer
em termos sociais, o da família Queirós de Barros, quer em
termos políticos, pois Henrique era filho de João de Barros
(1881-1960), destacado poeta, pedagogo e político republi-
cano, que havia sido iniciado na Maçonaria em 1910 e que
em 1924-1925 será um dos últimos ministros dos Negócios
Estrangeiros da Primeira República, no «governo canho-
to» de José Domingues dos Santos. Na casa de Henrique de

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RETRATOS POLÍTICOS

Barros, Marcello conhece a irmã deste, Teresa, da qual se


torna amigo e, mais tarde, namorado, sem que as diferenças
sociais entre ambos tenham motivado oposição por parte da
família da sua futura noiva e mulher.
Escolheu o curso de Direito quase por acaso ou, pelo me-
nos, sem grande consciência dessa opção. Pensava, de resto,
seguir Ciências, aspirando tornar-se médico. No entanto, no
liceu começara a destacar-se em Letras, gostava de literatu-
ra, era notado nas aulas de português, conhecia os autores
e as escolas literárias. No final do 5.º ano, quando teve de
optar, os colegas disseram-lhe, sem apelo nem agravo: «Tu
vais para Letras!» «Para Letras? O meu desconhecimento das
coisas práticas era quase total. Sim, está bem… eu gostava de
Letras, iria então para a Faculdade de Letras. Aqui intervie-
ram outros mais esclarecidos: não, não caias nisso! O curso
de Letras só dá para professor do Liceu! Vamos para Direito!
Que ser advogado rende muito dinheiro! Bom, irei com vo-
cês para Direito… – acabei por condescender.»
Condescendeu, foi. Tornou-se um dos mais importantes
juristas portugueses do século XX, que apreciava dizer que
tivera como alunos os dirigentes de todos os grandes parti-
dos políticos do pós-25 de Abril: Mário Soares, Sá Carneiro
(1934-1980), Álvaro Cunhal (1913-2005), Freitas do Ama-
ral. O gosto pela História, porém, nunca o abandonou e, não
por acaso, um mês depois do seu falecimento, foi publicada
mais uma obra sua, o primeiro volume de História do Direito
Português.
Trabalhou enquanto estudava, dando explicações, primei-
ro a alunos de liceu e depois a colegas seus em Direito, e co-
laborando em diversos jornais. Não estava ali por vocação,
tendo dito mais tarde «não me venham falar em vocações.

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MARCELLO

Deve havê-las: nunca as conheci em mim. Jeito para ensi-


nar, sim, escolhi e amei a profissão. Mas vocação…». Nas pri-
meiras aulas a que assistiu, tudo lhe pareceu «ininteligível»
e muito distante das suas preocupações. Ponderou desistir,
porventura mudar de curso. No final, acabou por licenciar-se
em 1927, com a classificação de «Muito Bom com Distinção»
(18 valores), tendo feito um exame de grande brilhantismo,
que seria saudado, inclusive, nos jornais onde escrevia, como
o católico A Voz, que lhe chamou um «espírito dos mais cul-
tos da sua geração, estudante que soube impor-se a professo-
res e condiscípulos com raríssimas qualidades de trabalho.»
A par dos estudos e das explicações, Marcello manteve-se
um activo militante católico, sendo nessa altura que, pro-
vavelmente na redacção do jornal A Época, conheceu Pedro
Theotónio Pereira (1902-1972), estudante de Matemáticas
Superiores na Faculdade de Ciências e já então fervoroso
partidário do Integralismo Lusitano, de quem se tornará
amigo próximo e companheiro de lutas diversas. Participou
então no levantamento dos estudantes católicos contra o que
diziam ser uma vaga de imoralidade que assolava o país ou,
mais precisamente, Lisboa, patente na publicação de obras
tidas por obscenas, com destaque para Canções, de António
Botto, Sodoma Divinizada, de Raul Leal, e Decadência, de Ju-
dith Teixeira, mas também em bailes suspeitos, como um,
realizado no bairro da Graça por alturas do Carnaval, ao qual
acorreram só homens, muitos dos quais «em trajes femini-
nos, ostentando decotes e enfeites próprios de mulher.»
Indignados, os estudantes católicos prometem «uma obra
de higiene moral e social», reúnem-se com o governador ci-
vil de Lisboa, dão à estampa um inflamado «Manifesto dos
Estudantes das Escolas Superiores de Lisboa», anunciam

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RETRATOS POLÍTICOS

que iriam fiscalizar as livrarias da cidade à caça dos «livros


torpes», da pena dos «poetas de Sodoma» e dos «artistas de-
cadentes». Nas páginas da Ordem Nova, Marcello falou em
«arte avariada», atacando a «opinião pública» que, segundo
ele, defendia «que cada qual tem o direito de escrever o que
lhe apetece», coisa que tinha por inconcebível ante a degra-
dação dos costumes.
É neste contexto que, insatisfeitos com os rumos da Ju-
ventude Católica, Theotónio Pereira e Marcello Caetano
decidem criar o Instituto dos Estudantes Católicos de Lis-
boa, para o qual solicitam a bênção do cardeal-patriarca. Em
Março de 1924, vemo-los em Coimbra, como representantes
dos estudantes católicos da capital, no congresso fundador da
União Católica dos Estudantes Portugueses.
Marcello tinha então «um grande desejo de acção.» Nun-
ca o perderá até ao fim dos seus dias, podendo dizer-se, sem
margem para dúvida, que nutriu ambições políticas desde os
tempos de estudante. Em 1926, poucos dias depois do golpe
de 28 de Maio e da instauração da Ditadura Militar, destacou-
-se nos protestos dos estudantes de Direito contra a exigência
de um estágio de 18 meses para aceder à carreira de advogado
na Ordem dos Advogados, que havia sido criada em 12 de Ju-
nho daquele ano, por iniciativa de Manuel Rodrigues (1889-
1946), ministro da Justiça. O movimento, que contemplou até
uma greve aos exames, acabou por ser pacificado e, concluído
o curso, Marcello ingressou na Ordem dos Advogados, após
ter feito o competente estágio de seis meses.
No verdor da juventude, Marcello Caetano não foi apenas
um militante católico que esteve na primeira linha dos com-
bates pela reafirmação do papel da Igreja na sociedade portu-
guesa, passada que fora a vaga laicista e anticlerical que mar-

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MARCELLO

cou os alvores da Primeira República e a Lei da Separação do


Estado das Igrejas, de 20 de Abril de 1911. Foi, também, um
colaborador assíduo da imprensa das direitas, que se iniciou
no jornalismo em 1925, ainda estudante, como secretário da
revista Nação Portuguesa, ligada ao Integralismo Lusitano, re-
dactor do jornal A Ordem, cronista do católico A Voz e de Ideia
Nacional, director da revista Ordem Nova. Por influência de seu
pai – e, muito provavelmente, de Pedro Theotónio Pereira –,
torna-se integralista, leitor compulsivo de António Sardinha
(1887-1925), defensor da Monarquia e da Tradição, sempre
grafadas com maiúsculas. Entendia, porém, como deixou es-
crito logo no primeiro número de Ordem Nova, de 1926, que
a mudança de regime pressupunha a existência de «um escol
capaz de impor à Nação os princípios salvadores.» E ele, claro,
entendia fazer parte dessa elite, desse «núcleo central», dessa
«minoria inteligente e activa», nem que para isso fosse ne-
cessário escrever artigos de surpreendente violência, em que
atacava D. Manuel II, «rei de opereta», e a Causa Monárquica,
em que se insurgia contra os intelectuais, «burocratas do pen-
samento», em que polemizava com a Sociedade Histórica da
Independência de Portugal, em que se afirmava um ardente
defensor das virtudes do império e da raça, dizendo, entre o
mais, que a perda das colónias ultramarinas «seria o caos», e
que Portugal tinha «direito a ser considerado uma grande po-
tência europeia» e «um dos grandes educadores dos povos».
Noutros textos, não hesita mesmo em louvar Mussolini e o
fascismo italiano, afirmando que «é, na Itália, a verdadeira
Contra-Revolução» e que o fascismo criara uma «moral, uma
disciplina, um ideário e um estilo.»
O encerramento da Faculdade de Direito pela Ditadura
Militar, imposto em Abril de 1928, obrigou-o a adiar o so-

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RETRATOS POLÍTICOS

nho de uma carreira académica. Decidiu concorrer ao cargo


de conservador do Registo Civil de Óbidos, que acumulou
com o de subdelegado do Procurador-Geral da República de
Caldas da Rainha. Enquanto estudante da Faculdade, publi-
cara já alguns trabalhos, como Frei Serafim de Freitas, de 1925,
e Legislação Civil Comparada, do ano seguinte, e a passagem
por Óbidos deu-lhe ensejo de dar à estampa, em colabora-
ção com o tenente-coronel Luís de Freitas Garcia, uma breve
e deliciosa monografia sobre a história daquela localidade,
onde não faltam referências a Maurice Barrès e a António
Sardinha.
Por lá esteve escassos meses, em 1928 e 1929, mas ain-
da teve tempo de acompanhar o administrador do concelho
nas acções de campanha por Óscar Carmona (1869-1951),
que lhe permitiram conhecer de perto o caciquismo local que
desde sempre caracterizava a política portuguesa. Com a rea-
bertura da Faculdade de Direito e com o convite de Theotó-
nio Pereira para chefe de contencioso da companhia de segu-
ros Fidelidade, não hesita em regressar a Lisboa, mantendo,
contudo, o lugar em Óbidos e as tardes reservadas à prepara-
ção do seu doutoramento.
Marcello Caetano conquistara um nome e um lugar: for-
mara-se em Direito, aspirava ao doutoramento, inscrevera-
-se na Ordem dos Advogados, acumulava a chefia do conten-
cioso de uma empresa seguradora com um almejado cargo no
Estado. Acima de tudo, destacara-se na imprensa, marcara
uma posição política, podia chegar mais longe.
Em 1929, conheceu Salazar.

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MARCELLO

TORNOU-SE UM DOS MAIS IMPORTANTES


JURISTAS PORTUGUESES DO SÉCULO XX,
QUE APRECIAVA DIZER QUE TIVERA
COMO ALUNOS OS DIRIGENTES DE TODOS
OS GRANDES PARTIDOS POLÍTICOS
DO PÓS-25 DE ABRIL: MÁRIO SOARES,
SÁ CARNEIRO, ÁLVARO CUNHAL,
FREITAS DO AMARAL.

25
NOS ALVORES
DO ESTADO NOVO

D ecididamente, estava-se em plena Revolução!»


Foi assim, entre o entusiasmo e o espanto, que Marcello
Caetano descreveu a sua tomada de posse do cargo de auditor
jurídico do Ministério das Finanças, o mais importante de
toda a Administração Pública portuguesa.
A cerimónia teve lugar em 13 de Novembro de 1929, pe-
rante o secretário-geral do Ministério, um velho conselhei-
ro vindo dos tempos da Monarquia, com barbicha branca e
impecável fraque, que ficou boquiaberto ao deparar com o
jovem empossado. Marcello tinha 23 anos.
O insólito acontecera por uma circunstância fortuita: o ti-
tular da pasta das Finanças, Oliveira Salazar, pedira para que
Pedro Theotónio Pereira analisasse um conjunto de diplo-
mas em matéria de seguros; Theotónio Pereira, por sua vez,
solicitara o auxílio jurídico do seu amigo Caetano que ia as-
sinalando as suas dúvidas, sugerindo correcções pontuais até
ao dia em que Salazar introduziu uma emenda que o jovem
jurista considerou ser contrária à lei. Quando Theotónio Pe-
reira explicou ao ministro quem fora o jurista que detectara

27
RETRATOS POLÍTICOS

o erro, Salazar disse tão-só: «Mande-o a minha casa amanhã


às dez da manhã!»
No dia seguinte, Marcello foi à casa do ministro, então
junto à Avenida Duque de Loulé. Recordaria mais tarde esse
primeiro encontro:

«Entrei para uma sala pequena onde pouco depois


chegou o Ministro: um homem novo – ainda não fi-
zera 40 anos – alto, magro, de feições angulosas, com
um aspecto bem diferente do que depois veio a ter.
Os olhos frios e percucientes destacavam-se no rosto
austero. Iniciou a conversa felicitando-me pelo meu
trabalho nos diplomas sobre seguros e perguntou-me
o que estava fazendo.
Respondi-lhe que preparava o acto de Doutoramen-
to em Direito, tendo escolhido o ramo das Ciências
Político-Económicas. Justamente a dissertação que
estava escrevendo versava sobre um tema económico:
a estabilização da moeda…
– Faz muito bem. Estou convencido de que é no
campo dos estudos económicos que neste momento
e por muitos anos se poderá ser útil ao País.»

Depois, sem mais delongas, convidou-o para auditor jurí-


dico do seu Ministério. Marcello ficou «atordoado», alegou a
sua extrema juventude, tentou argumentar com a preparação
do doutoramento, mas, segundo ele, «Salazar era indiferente
às situações particulares quando queria alguma coisa de al-
guém.»
Quatro dias depois, estava nomeado. Tomou posse pouco
depois, mas, ao contrário do que Marcello julgava, o cargo

28
MARCELLO

só tinha a importância que o ministro lhe desse. E Salazar,


ao que parece, pouca importância lhe deu. E ele ressentiu-se
disso: «Auditor Jurídico do Ministério, recebia por terceiras
pessoas o encargo de tratar disto ou daquilo, e às vezes queria
falar com o Ministro para colher um esclarecimento ou dar
uma sugestão: a barreira do silêncio tolhia-me o entusiasmo.
Continuo convencido de que poderia ter sido um colabora-
dor mais útil e menos burocrático. Mas até com os ministros,
seus colegas, ele era assim.»
Até à queda de Salazar da cadeira, em 3 de Agosto de 1968,
será este o padrão das relações entre ambos. Andaram quase
quarenta anos nisto. Marcello, que nunca teve problemas de
autoestima no plano intelectual, julgava que Salazar não o
aproveitava nem valorizava como devia, e até, muitas vezes,
que o punia pelo desassombro das suas opiniões. Em público
e em privado, na correspondência que manteve com o Presi-
dente do Conselho, gostava de marcar a sua independência,
por vezes em tom contundente, e até nas raias do escândalo.
Nunca foi, porém, um outsider e, menos ainda, oposicionis-
ta – desde logo, e acima de tudo, porque, à semelhança de
Salazar, não confiava na democracia como modelo de gover-
nação dos povos ou, melhor dito, do povo português. As-
sim, no que de essencial era o Estado Novo – antiliberalismo,
antiparlamentarismo, desprezo pelos partidos, corporativis-
mo, nacionalismo, opção ultramarina –, nunca houve uma
divergência de fundo entre os seus dois chefes do governo.
Daí que as críticas que Marcello dirigia ao regime e aos seus
rumos fossem sempre feitas a partir «de dentro», numa pers-
pectiva de correcção e reforma, nunca, jamais, de alteração
da substância e, menos ainda, da instauração de um regime-
-outro, distinto daquele que Salazar criara.

29
RETRATOS POLÍTICOS

Meses antes de tomar posse no Ministério das Finanças,


Marcello era ainda um jovem nacionalista radical, que, em
Abril de 1929, participou no assalto à sede da Maçonaria, na
Rua do Grémio Lusitano. No ano seguinte, já auditor nas Fi-
nanças, parece ter acalmado: casou com Teresa Teixeira de
Queiroz de Barros (1906-1971), colaborava com Salazar, que,
na sequência da «crise dos sinos», em Junho de 1929, da que-
da dos governos de José Vicente de Freitas (1869-1952) e de
Ivens Ferraz (1870-1933), consolidara extraordinariamen-
te o seu poder no seio do executivo presidido pelo general
Domingos de Oliveira (1873-1957), mas, na prática, lidera-
do pelo «mago das Finanças». Marcello pertencia agora ao
núcleo restrito de jovens talentos que Salazar ouvia com re-
gularidade, menos do que eles desejavam, é certo, mas ainda
assim o suficiente para se sentirem próximos do poder e do
seu chefe. Apesar de manter um estilo de vida austero e fru-
gal, vivia agora nas Avenidas Novas – primeiro, na Avenida
Barbosa du Bocage, depois na Rua Luís Bívar e, enfim, na Rua
Fernão Lopes –, numa geografia bem distinta da do Bairro da
Graça ou dos Anjos, onde nasceu e cresceu. Com Teresa terá
um casamento feliz, do qual nasceram quatro filhos – João,
José Maria, Miguel e Ana Maria –, e, apesar das divergências
políticas, manteve sempre um relacionamento muito próxi-
mo com o sogro («não passava um dia sem que fosse à minha
casa») e com a sogra, Raquel Teixeira de Queiroz.
Em 1931, concluiu a sua dissertação de doutoramento, in-
titulada «A Depreciação da Moeda depois da Guerra», que
irá discutir em árduas provas públicas, em Junho desse ano.
O exame, realizado ao longo de vários dias, foi sendo acompa-
nhado pelos jornais, que iam dando conta do andamento dos
debates. Mais tarde, Marcello dirá que o República, desafecto

30
MARCELLO

à «Situação», «procurava achincalhar o candidato, insinuan-


do a sua ignorância ou estupidez.» No júri, Albino Vieira da
Rocha não poupou nas críticas, acusando a tese de falta de
originalidade, dizendo que ela não passava do «trabalho de
um repórter», digno de «economistas de café». O candidato
defendeu-se como pôde e, no final, acabou aprovado com 18
valores, para gáudio dos jornais que lhe eram mais próximos,
como o Diário de Lisboa, que se referiu ao «brilhantismo das
provas» e a outro dado significativo: antes dele, a Faculdade
de Direito de Lisboa só tinha concedido quatro doutoramen-
tos, o último dos quais a Armindo Monteiro (1896-1955),
em 1921, ou seja, dez anos antes.
Na tese, são vários os elogios a Salazar e à sua obra O Ágio
do Ouro, apelidado de «admirável livro» e de «estudo meti-
culoso.» E, como referem os seus biógrafos, Marcello, gra-
ças ao seu sogro, começou então a escrever regularmente
no Jornal do Comércio e das Colónias, uma publicação com um
perfil muito distinto do das folhas panfletárias onde antes co-
laborara. Aí, fará a defesa empenhada de Salazar e do Estado
Novo («um governo presidido pelo economista eminente
que tem revelado ser o dr. Oliveira Salazar e onde não faltam
inteligências lúcidas e vontades firmes»), mostrar-se-á um
ardente partidário do projecto imperial português, materia-
lizado no Acto Colonial de 1930, e advogará as virtudes do
corporativismo ante, por um lado, as doutrinas e os prin-
cípios oriundos da Revolução de 1789 e, por outro, o bol-
chevismo emergente, caracterizado pelo «uso do poder como
instrumento de domínio da classe proletária por um escol – o
partido comunista.»
Oliveira Salazar chamá-lo-á para secretariar o grupo res-
trito que elaborava o projecto de uma nova Constituição.

31
RETRATOS POLÍTICOS

Terminaram os trabalhos em Maio de 1932 e a experiência


aproximou-o ainda mais daquele que, em Julho desse ano,
assumiria a chefia do governo da nação: «As sessões de tra-
balho na sua residência, já então na Rua do Funchal, aquan-
do da elaboração do projecto da Constituição, aproximaram-
-nos mais. Algumas vezes me reteve para almoçar com ele e
num dia de Maio de 1932 em que concluímos a revisão final,
almoçámos e jantámos juntos. Nos intervalos conversáva-
mos sobre os problemas nacionais, as perspectivas políticas,
o modo de ser dos militares, as reformas que projectava e
as dificuldades com que lutava», escreve Caetano em Minhas
Memórias de Salazar.
Mantinha-se, porém, o jogo de encontros e desencontros
que caracterizou o relacionamento entre ambos ao longo de
quatro décadas. Salazar escolhe Theotónio Pereira para escre-
ver o «relatório» do projecto de Constituição – isto é, o texto
explicativo com que o mesmo foi publicado nos principais
jornais de Lisboa e Porto e submetido a plebiscito popular –,
o que deixa Marcello desconcertado. E, talvez por razões
de idade, mas não só, Marcello não fará parte do Conselho
Político Nacional, um órgão criado em 1931 e que, de certo
modo, antecedeu o Conselho de Estado, competindo-lhe dar
parecer sobre «todos os assuntos de política e administração»
e, em particular, sobre os projectos de Constituição Política,
dos Códigos Administrativo e Eleitoral e da organização do
regime corporativo do Estado.
A discussão do projecto constitucional evidencia a ruptura
dos integralistas com Salazar e Marcello, chamado a tomar
partido, não hesita em abandonar as antigas simpatias de ju-
ventude, colocando-se firmemente ao lado do novo regime.
Nos anos vindouros, não deixará de o lembrar ao ditador e

32
MARCELLO

aos seus próximos: «deixei em 1929 os meus amigos, quebrei


as minhas ligações de juventude para o seguir a si», afirmou,
pesaroso, ao Presidente do Conselho. E, em carta a Fernando
dos Santos Costa (1889-1982), de Agosto de 1965, escreverá
que «ingressado na juventude em determinado grupo, aban-
donei tudo para acompanhar o dr. Salazar na sua declarada
intenção de ensaiar o Estado Novo.»
O novo chefe do governo, porém, não se deixou impres-
sionar por tanta dedicação e, nos anos vindouros, oferecerá
a Caetano algumas sinecuras prestigiantes, mas de pouco
relevo, como um lugar na Junta Consultiva da União Nacio-
nal, criada em 1932 (mas não na Comissão Central, o órgão
mais importante, para o qual Quirino de Jesus chegou a pro-
por o seu nome, sem sucesso). Alegando compromissos aca-
démicos, pois encontrava-se prestes a prestar provas para
professor na Faculdade, Marcello recusou o cargo de Sub-
secretário de Estado das Corporações e Previdência Social.
Ao sondá-lo, Salazar ter-lhe-á dito que existem outros dois
candidatos – João Lumbrales (1905-1975) e Pedro Theotó-
nio Pereira – e Marcello, como sempre, ficou melindrado,
declinou o convite, que acabaria sendo aceite por Theotó-
nio Pereira. Se descontarmos alguns episódios pretéritos,
de bem menor relevância, este foi, muito provavelmente, o
primeiro grande ponto de dissídio entre Salazar e Caetano,
ou vice-versa.
Não muito depois, novo convite, novo atrito: em Outubro
de 1933, Salazar pede-lhe que aceite ser membro da Comis-
são Executiva da União Nacional, criada no seio da Comissão
Central. Marcello não pôde esquivar-se e, aparentemente,
estava esperançoso nas suas novas funções. Simplesmente,
passaram-se semanas, passaram-se meses, entrou um novo

33
RETRATOS POLÍTICOS

ano, e o Presidente do Conselho tardava em conceder a au-


diência que solicitara, para lhe apresentar um plano de ac-
tividades, marcado pela realização de um Congresso, para
o qual Marcello já tinha, inclusive, elaborado o respectivo
regulamento. Em Janeiro de 1934, sem que viessem notícias
da audiência, Marcello Caetano, despeitado, apresentou a
sua renúncia. Pior ainda, fê-lo quando Leal Marques (1880-
1969), o chefe de gabinete de Salazar, lhe comunicara que a
audiência estava finalmente agendada, que o Presidente do
Conselho iria recebê-lo. Na sua reminiscência, «quando Leal
Marques me telefonou, açodado, a dizer que o Sr. Presidente
me ia receber, respondi-lhe que era tarde: todo o cronogra-
ma que projectara estava prejudicado e não sabia trabalhar
assim. Acabou desse modo a minha participação na Comis-
são Executiva da União Nacional.»
Em face disto, acrescenta, «Salazar não levou a bem que
eu tivesse procedido como procedi e eu fiquei agastado com
a falta de interesse dele. Houve um arrufo entre nós que iria
durar anos.» Em privado, segundo se diz, o ditador chama-
va-lhe um «vidrinho», já cansado dos seus muitos melindres
e caprichos, certamente agudizados pelo facto de, entretanto,
ter consolidado a sua carreira académica – alcançou o profes-
sorado em Junho de 1933 – e a sua vida profissional – como
advogado e, sobretudo, como jurisconsulto – ou seja, por
dispor agora de condições materiais que lhe permitiam não
depender da política nem dos favores do regime.
Não deixou, todavia, de colaborar com o Estado Novo, fa-
zendo-o a títulos diversos, fosse como autor do Código Ad-
ministrativo de 1936, fosse como director cultural do Cru-
zeiro de Férias à África Ocidental Portuguesa, entre Agosto
e Outubro de 1935 – a primeira vez que visita as colónias –,

34
MARCELLO

fosse como procurador à Câmara Corporativa, vogal do


Conselho do Império Colonial ou, enfim, director do Insti-
tuto de Alta Cultura, entre 1936 e 1940.
Em todos estes lugares deixou a marca da sua vasta cultura
humanística e do seu saber jurídico, mas também o rasto de
uma personalidade angulosa, muito ciente de si e do estatu-
to que entendia merecer, como ficou patente, entre outros
exemplos, na elaboração do Código Administrativo: Salazar
incumbiu Fezas Vital, um colega seu dos tempos de Coim-
bra, da redacção do projecto, dizendo-lhe para solicitar o
contributo de Caetano. Este, claro, ficou melindrado por não
ter sido contactado directamente pelo chefe do governo e di-
-lo a Domingos Fezas Vital (1888-1953). Dias depois, quan-
do Salazar os recebe a ambos, estava «carrancudo» com ele
e, na conversa, dirigiu-se sobretudo ao seu antigo colega de
Coimbra, que se mostrou hesitante, colocando uma série de
dúvidas. Marcello, ao invés, mostrou-se seguro, afirmou que
«para mim a tarefa não era difícil» e logo se comprometeu a
redigir «umas bases» e a discuti-las com Salazar na semana
seguinte. Não contente, escreve um artigo na Revista Nacio-
nal a proclamar a necessidade de um novo Código Adminis-
trativo, assenhoreando-se, portanto, da autoria dessa obra.
Oliveira Salazar, obviamente, não podia aceitar este desafio
à sua autoridade e, pondo Marcello na ordem, não só passou
a tratar dos assuntos relativos ao código exclusivamente com
Fezas Vital como irá excluir Caetano das listas de deputados
da União Nacional nas eleições legislativas de Dezembro de
1934, fazendo-o, para suma humilhação do excluído, através
do envio de um simples cartão, que terminava com uma alfi-
netada assassina: «gostava de dizer-lhe isto mas é-me difícil
recebê-lo neste momento.»

35
RETRATOS POLÍTICOS

Anos depois, Marcello reconheceu que à época era um


«jovem impertinente que se permitia atitudes rebeldes» e,
sobre as críticas que fez ao Código Administrativo, diz: «re-
conheço que não tinha um feitio cómodo e que eram muitas
as verduras da mocidade…» O episódio fixa, no entanto, um
padrão que se manterá nas décadas vindouras: segundo al-
guns, como Vasco Pulido Valente, Oliveira Salazar receava
Marcello e, por isso, tinha o cuidado de o manter próximo,
mas à distância; noutra formulação, que parece mais ajusta-
da à realidade, o que pode dizer-se é que Salazar, consciente
do valor de Marcello Caetano, procurou mantê-lo por perto,
utilizando-o como um dos mais promissores quadros do Es-
tado Novo, mas, em simultâneo, sentiu necessidade de apla-
car a sua enorme ambição, pouco condizente com a idade e
com o estatuto que então detinha. De resto, o ditador não o
tratou de modo diferente de aos outros todos, com distância
respeitosa e a clara sinalização de quem mandava. Marcel-
lo esperaria outras intimidades, talvez mais consideração e
atenção, no que foi o primeiro dos muitos equívocos que po-
voaram a sua relação com Salazar e o seu regime.
Participou, como se disse, no I Cruzeiro de Férias às Coló-
nias, em Agosto-Outubro de 1935, de onde regressou, como
sempre sucederá nas suas deslocações a África, firmemen-
te convicto da razão de ser da presença portuguesa no ul-
tramar: «por toda a parte encontrámos a maior dedicação,
o maior apego a Portugal, e só se ouviram protestos de eter-
na fidelidade. De muitos colonos escutei a afirmação de que
Angola se manteria portuguesa contra tudo e contra todos.
Só pediam, como Albuquerque, verdade e espadas largas.
Os portugueses de oiro estão lá, são os portugueses de Ango-
la», escreveu, entusiasmado, no Diário da Manhã.

36
MARCELLO

Pouco depois, em Novembro de 1935, iniciou funções


como procurador à Câmara Corporativa, a que pertencia por
inerência, na qualidade de presidente da direcção do Grémio
dos Seguradores. Naquela que será uma constante da sua vida
– raramente ou nunca concluiu um mandato até ao fim –,
abandonará a Câmara pouco depois, por ter terminado fun-
ções no Grémio dos Seguradores.
Por convite de Armindo Monteiro, integrou, como vogal,
o Conselho do Império Colonial, órgão onde permaneceu
oito anos, que lhe permitiram conhecer de perto muitos dos
problemas das nossas colónias. Assinalam os seus biógrafos
que se destacou como opositor à política centralizadora do
Estado Novo perante as colónias e que, noutra ocasião, de-
fendeu o abandono da distinção entre indígenas e cidadãos,
propondo a criação de uma nova categoria – os «semiassi-
milados» – para os que, sendo negros ou mestiços, tivessem
adquirido «um verniz de civilização», ainda que não tendo
assimilado ainda «as concepções fundamentais da moral e da
técnica do colonizador».
Ascendeu a catedrático em Abril de 1939, com apenas 32
anos. Para muitos dos seus alunos, e não só, era já apontado
como o sucessor natural de Salazar. Naquela época, porém,
não ocupara ainda funções de especial relevo, sobretudo na
comparação com outras figuras, como o seu amigo Pedro
Theotónio Pereira, que se destacara no lançamento do Es-
tado corporativo e como embaixador em Madrid. Marcello
contava com outros trunfos: o prestígio académico que ia
conquistando graças a uma impressionante capacidade de
trabalho – em 1937, foi publicada o seu opus magnum, o Ma-
nual de Direito Administrativo –, a rede de sociabilidades tecida
com os seus discípulos de várias gerações, os contactos privi-

37
RETRATOS POLÍTICOS

legiados na imprensa e na academia, muitos dos quais forja-


dos aquando da sua passagem pelo Instituto de Alta Cultura,
entre 1936 e 1940.
Em 1940, aceitou o convite do ministro da Educação, Car-
neiro Pacheco (1887-1957), para desempenhar as funções de
comissário nacional da Mocidade Portuguesa. Como sempre,
pôs entraves, desta feita relacionados com o facto de o lugar
ser pro bono, o que, segundo ele, lhe dificultava muito a vida,
baseada na «advocacia de três ou grandes empresas.» Tam-
bém como sempre, Salazar mostrou-se insensível a esse ar-
gumentário. O cargo na Mocidade terá sido, provavelmente,
aquele em que Marcello foi mais feliz, mesmo tendo-o exer-
cido numa conjuntura particularmente exigente e difícil, em
plena Segunda Guerra, na qual as organizações de juventude
daquela natureza eram fatalmente associadas aos regimes na-
zi-fascistas, em larga medida com razão. Por isso, o novo co-
missário procurou que a Mocidade Portuguesa se distanciasse
das suas congéneres alemã e italiana, tentando, do mesmo
passo, não alarmar a Igreja com uma organização juvenil con-
corrente às dos católicos. O seu modelo eram os escuteiros,
que conhecia bem desde criança e aos quais estará sentimen-
talmente ligado até ao fim da vida. Não conseguiu evitar, to-
davia, que, por vezes, o associassem ao fascismo e à Juventude
Hitleriana – e até que o caricaturassem fardado à maneira de
um Hitler ou de um Mussolini, com a suástica no braço.
O comissariado da Mocidade, além do contacto com a ju-
ventude e com as futuras elites da nação, deu-lhe mundo,
trouxe-lhe convites para ir ao estrangeiro – como um, em
1941, integrado na delegação que foi ao Brasil agradecer a
participação na comemoração dos dois centenários –, em
suma, consolidou a sua longa marcha em direcção ao poder.
Em finais de 1944, é convidado para ministro.
38
MARCELLO

MARCELLO CAETANO, QUE NUNCA TEVE


PROBLEMAS DE AUTOESTIMA NO PLANO
INTELECTUAL, JULGAVA QUE SALAZAR
NÃO O APROVEITAVA NEM VALORIZAVA
COMO DEVIA, E ATÉ, MUITAS VEZES,
QUE O PUNIA PELO DESASSOMBRO
DAS SUAS OPINIÕES.

39
ENFIM, MINISTRO:
OS TEMPOS ÁUREOS

V ocê vai ser chamado; quase todos os que foram ouvidos


até aqui consideraram necessária a sua entrada para o
Governo», avisou-o Pedro Theotónio Pereira, que, vindo de
Madrid, se avistara com Salazar em Lisboa.
E, de facto, no dia 2 de Setembro de 1944, quando passa-
va férias com a família em São Martinho do Porto, Marcello
Caetano recebeu a aguardada chamada telefónica do Presi-
dente do Conselho, convocando-o a São Bento.
No dia seguinte, depois da missa, tinha a esperá-lo o peque-
no Fiat da Presidência do Conselho, onde Salazar o aguardava
pelas 11 horas. Um percalço no caminho: passada a povoação
do Cercal, quebrou-se o cardan da viatura e, em tempos de
guerra e de falta de peças, o conserto levou longas horas. Mar-
cello conseguiu, ainda assim, avisar que iria chegar atrasado,
muito, e já passavam das quatro da tarde quando atravessou
os portões de São Bento. O chefe de governo tivera de se au-
sentar para a habitual audiência dominical com Carmona,
mas deixara instruções a Dona Maria (1894-1981) para que
recebesse o convidado, que se sentou na sala de estar do rés-

41
RETRATOS POLÍTICOS

-do-chão e, obviamente, pegou num dos livros acabados de


chegar, Le monde est un, a tradução francesa de One World, o
best-seller de Wendell Willkie, que advogava a necessidade de
um entendimento com os soviéticos no pós-guerra e a par-
ticipação da América numa organização supranacional que
garantisse a paz.
Chegado Salazar, inicia-se o pas de deux, dos muitos que
ambos mantiveram ao longo de décadas de convívio ora
próximo, ora distante, jamais íntimo. Depois de um longo
excurso, o Presidente do Conselho convida Marcello para a
pasta da Justiça, mas foi logo adiantando que ele «teria que
se resignar à gestão corrente do Ministério», como Marcello
anotou nas suas Memórias de Salazar, onde escreve, logo a se-
guir, «vejo nitidamente onde quer chegar: neutralizar a pes-
soa incómoda, fazendo-a entrar no Governo numa posição
subalterna onde não faça dano nem lhe dê trabalho.»
Intuindo a manobra, Marcello escusou-se com os encargos
de família, o trabalho na Universidade, o compromisso assu-
mido com a Mocidade Portuguesa – de resto, a título gratui-
to… Mas, no decurso da conversa, foi alvitrando que gostaria
de liderar um Ministério da Assistência Social, ao que Salazar
respondeu que, acima de tudo, gostaria de tê-lo no Conselho
de Ministros, a discutir e analisar os altos assuntos de Estado.
Caetano, sempre mordaz e cortante, objectou dizendo que
Salazar quase nunca reunia o Conselho, preferindo trabalhar
com um ou dois ministros em simultâneo. É então que o di-
tador lhe dá uma resposta que ficou para a História, ao dizer
que o seu método de governação era o do «trabalho irradia-
do», com a sua pessoa no centro: «é um trabalho irradiado e
que vai de mim para cada ministro ou de cada um deles vem
para mim, sem os unir a todos nas deliberações.» E, ao dizer

42
MARCELLO

isto, espalmou a palma da mão esquerda, abrindo os dedos


e com o indicador da mão direita percorreu cada um deles,
numa imagem bem sugestiva do que pretendia afirmar, isto
é, que, fiel à máxima divide et impera, era ele, ao cabo e ao
resto, o fulcro de toda a acção governativa.
Marcello sugeriu-lhe que tivesse, para o efeito, um «mi-
nistro coordenador», deixando subentendido que se via a si
próprio nessa função, de quase vice-chefe do governo. Sala-
zar, naturalmente, passou à frente e acabou oferecendo-lhe a
pasta das Colónias, que Caetano aceitou com gosto («Ah, isso
é outra coisa!»), não sem antes perguntar se seria para pros-
seguir a política centralista até então vigente, nomeadamente
sob a égide do Acto Colonial, ou se era para mudar de rumo,
a caminho de uma maior autonomia, algo com que Salazar
concordou.
Ao fim de hora e meia de conversa, estava o negócio fecha-
do. Regressou a São Martinho ainda esse dia, sendo informa-
do que tomaria posse dois dias depois.
Ocupou a pasta das colónias durante um período relativa-
mente longo – de Setembro de 1944 a Fevereiro de 1947 –,
o que lhe deu ensejo de trabalhar mais de perto com o Pre-
sidente do Conselho, ao qual tinha acesso sempre que soli-
citasse, coisa que só acontecia com um escasso número de
ministros (Colónias, Finanças, Negócios Estrangeiros, Eco-
nomia). Desse convívio reteve a memória de um homem
que, ao contrário da imagem feita de ditador, «gostava de
ouvir opiniões alheias, de consultar pareceres autorizados,
mas não tinha paciência para escutar palavreado retórico e
vazio, as dissertações vagas, as ideias confusas, as opiniões
estúpidas ou levianas, queria factos precisos, deduções cla-
ras e conclusões concretas.» Um apontamento do quotidiano

43
RETRATOS POLÍTICOS

do ditador: começava a trabalhar por volta das 10 da manhã,


com o despacho do gabinete, lia a correspondência e fazia
telefonemas até ao meio-dia, hora a que começava as au-
diências, uma ou duas, não mais, até às duas e meia da tarde;
depois, ia almoçar, descansava até às cinco e meia, lendo jor-
nais, informações, um livro ou outro, e a seguir tomava um
chá, lia os jornais da tarde, acabados de chegar, e recomeçava
as audiências às seis, que iam até às nove ou mais. Jantava
e, à noite, lia e descansava. Apesar de raros e espaçados, os
Conselhos de Ministros iniciavam-se às seis e meia, sete da
tarde, e prolongavam até às nove, dez da noite, às vezes mais.
Marcello Caetano iniciou funções ainda durante a guerra
e cessou funções poucos meses antes de a Índia proclamar a
independência, a 15 de Agosto de 1947. Assistiu, pois, sen-
do ministro, ao despontar dos movimentos independentistas
de África e da Ásia e ao nascimento das Nações Unidas, em
24 de Outubro de 1945. Foi no seu tempo que se iniciou o
litígio com a União Indiana, a propósito da questão de Goa
ou, como dizia Nehru, sobre «as condições deploráveis da
Índia portuguesa e a necessidade de a integrar na mãe-pá-
tria.» O seu consulado seria marcado, no plano legislativo,
pela criação de um Fundo de Povoamento e de um Gabinete
de Urbanização Colonial, pela reorganização dos serviços de
saúde do Ultramar Português e pela reorganização da Escola
Superior Colonial. De todas, a alteração mais relevante foi,
sem margem para dúvidas, a revisão da Carta Orgânica do
Império Colonial Português, no sentido de reforçar a des-
centralização e a autonomia das colónias.
Mas, muito provavelmente, a grande mudança foi no esti-
lo de fazer política e de governar, mais atento à importância
da opinião pública e da imprensa – e prenunciando, no fun-

44
MARCELLO

do, o que Marcello fará como ministro da Presidência e, mais


tarde, como sucessor de Salazar. Deslocou-se pessoalmente
às colónias, num longo périplo de 155 dias pelos cinco ter-
ritórios africanos – Cabo Verde, São Tomé, Guiné, Angola
e Moçambique – acompanhado da sua mulher, do chefe de
gabinete e de dois secretários, um deles o jovem licenciado
Joaquim Moreira da Silva Cunha (1920-2014), futuro minis-
tro do Ultramar e, mais tarde, da Defesa Nacional. Nessa via-
gem, e como nota o seu biógrafo Luís Menezes Leitão, fez-se
rodear de grande aparato mediático e, sintomaticamente,
não se limitou a fazer os discursos da praxe nos palácios dos
governadores, antes optou por comunicar com a população
através da rádio.
Também sintomaticamente, quando se encontrava em
África é surpreendido pela notícia de que a Assembleia Na-
cional fora dissolvida e que se iriam realizar eleições den-
tro de 40 dias, a prova provada de que, por mais que tives-
se acesso directo a Oliveira Salazar, não integrava o inner
circle com quem este discutia, e mesmo assim muito pou-
co, as grandes opções políticas do Estado Novo. De Lisboa
vinham ecos longínquos do discurso histórico do chefe do
governo, no qual este insinuou a hipótese de abandonar o
poder. Com base num telegrama da Reuters, um vesperti-
no de Luanda anunciava mesmo, em letras garrafais, que
Salazar casara com a aristocrata Carolina Asseca, mais um
indício da sua iminente renúncia. «Tudo isto provocou um
verdadeiro levante em Angola: o sobressalto dos amigos, o
entusiasmo dos adversários, a hesitação dos tíbios», escreve
Marcello Caetano, para dizer, logo a seguir, que, a partir dos
seus contactos com Lisboa, recebera a notícia tranquilizado-
ra de que não só era falsa a notícia do casamento como, fiel

45
RETRATOS POLÍTICOS

aos seus hábitos, Salazar partira para Santa Comba, como


sempre fazia nessa altura do ano. O regime podia ficar des-
cansado. Quanto a Caetano, é possível, até provável, que ti-
vesse alimentado, logo nessa ocasião, o sonho de ascender à
chefia do governo, pela qual teria ainda de aguardar muitos
e muitos anos.

***

A proximidade de Marcello Caetano a Oliveira Salazar,


e ao contrário do que este poderia supor, não o fez diminuir
a intensidade e a frequência das críticas que dirigia ao Estado
Novo, críticas que, bem entendido, não visavam a instaura-
ção de um regime alternativo, mais aberto ou mais demo-
crático, mas a renovação de um modo de fazer política que,
estando excessivamente personalizado em Salazar, corria o
risco de soçobrar com ele.
Fruto da sua ambição pessoal e dos seus indiscutíveis dotes
intelectuais, e da experiência acumulada na Universidade e
em vários lugares do Estado, Marcello sentia-se no direito de
aspirar à sucessão de Salazar e até, muito provavelmente, jul-
gava-se mais habilitado do que ele a governar o país no novo
ciclo iniciado no pós-guerra. Ficara impressionado com cer-
tos gestos do ditador, como o ter ordenado que as bandei-
ras dos edifícios públicos fossem colocadas a meia-haste por
ocasião da morte de Adolf Hitler, e não perdia uma ocasião
para apontar os erros e os desvios que, em seu entender, o
regime ia cometendo. Nunca ou quase nunca teve a ousadia
de os atribuir directa e pessoalmente a Salazar, mas, atenta a
natureza do Estado Novo, os seus reparos, por vezes cáusti-
cos, tinham um e só um destinatário, o Presidente do Con-

46
MARCELLO

selho, que o ouvia algo agastado, mas que jamais lhe cortou
a palavra.
Com o tempo, claro, deixou de ser um conselheiro útil,
para se tornar um elemento incómodo, excessiva e declara-
damente incómodo, papel que, de resto, Marcello tinha evi-
dente gosto em desempenhar, com isso ganhando fama de
«independente» e, mantendo-se sempre dentro das linhas
do regime, pavimentando o caminho para uma sucessão há
muito ambicionada.
Por outro lado, e contrariando a imagem transmitida pela
propaganda, o regime vivia em permanente sobressalto, seja
por sucessivas ameaças de golpes, seja pelas tensões verifica-
das em cada período eleitoral, seja, enfim, pelas disputas e das
rivalidades internas, processadas ao mais alto nível, longe dos
olhares da opinião pública, mas nem por isso menos intensas
– e, de resto, muito típicas dos regimes autoritários e forte-
mente personalizados. Salazar, de seu lado, alimentava esse
teatro de sombras, gerindo as proximidades e as distâncias
através de pequenos gestos (por exemplo, a demonstração de
afecto por Marcello, aquando do falecimento do pai deste,
em Janeiro de 1946) e testando a fidelidade alheia através de
um jogo a que se entregava desde que viera de Coimbra, o da
insinuação de que iria abandonar o governo a breve trecho,
nem que para isso fosse necessário revelar urbi et orbi os seus
achaques de saúde, o seu cansaço físico e emocional, o seu
profundo desapego a um fardo a cada dia mais pesado.
É sobretudo a partir desta fase, do pós-guerra em diante,
que se começam a formar «partidos» ou «facções» no inte-
rior do regime: Marcello encabeçava os «liberais», desejosos
de mudanças, mesmo sem saber-se qual o sentido das mes-
mas; Santos Costa representava a fidelidade castrense ao Pre-

47
RETRATOS POLÍTICOS

sidente do Conselho, a defesa à outrance de Salazar e do seu


legado. E, de permeio, conflitos em surdina, que o chefe de
governo arbitrava a seu favor, sobretudo porque, de dia para
dia, Óscar Carmona definhava, até em termos físicos e men-
tais, o que implicou que, desde o fim da guerra até 1951, data
da morte do velho marechal, o regime deixou de contar com
uma instância arbitral e de controlo que, no passado, foi mais
importante do que geralmente se pensa.
Em finais de 1946, as relações entre Marcello e Salazar ti-
nham chegado a um ponto de não retorno: o primeiro, in-
tuiu que a sua posição política, até na corrida para a sucessão,
seria reforçada se abandonasse o governo, com isso marcan-
do a sua «independência» e estando naturalmente mais livre
para formular críticas e alvitrar caminhos alternativos; para
Salazar, por sua vez, era excessivo – e perigoso – o peso que
Marcello estava a adquirir no seio do regime, fosse com a sua
triunfal viagem pelas colónias, fosse pela alocução que pro-
feriu na Conferência da União Nacional, em Novembro de
1946, fosse, enfim, pela promoção dos seus próximos a im-
portantes lugares do Estado e pelas inúmeras quezílias com
outras figuras de primeiro plano, com destaque para Luiz Su-
pico Pinto (1909-1990) e Fernando Santos Costa.
Em Janeiro de 1947, numa das suas habituais jogadas de
mestre, Salazar surpreende tudo e todos com uma remodela-
ção ministerial em que sacrifica o seu ministro das Colónias,
oferecendo-lhe em troca a presidência da Comissão Executi-
va da União Nacional (UN). Marcello aceitou sem pestanejar.

***

48
MARCELLO

Nos alvores de 1947, Marcello Caetano retomava a re-


gência de Direito Administrativo na Faculdade de Direito e,
como ele refere, com indisfarçável prazer, «voltei aos livros
para me actualizar.» Politicamente, a presidência da Comis-
são Executiva da União Nacional tanto poderia ser uma sine-
cura honorífica e irrelevante como um dos lugares-chave na
arquitectura do regime, tanto mais que 1949 iria ser ano de
eleições, uma oportunidade para o Estado Novo exibir a sua
força e a sua capacidade de adaptação às novas circunstâncias
do mundo do pós-guerra.
Os problemas, contudo, começaram antes sequer da toma-
da de posse da nova comissão executiva, ou antes por cau-
sa dela: agendada a cerimónia para Évora, a 4 de Março de
1947, dois antes realizou-se nessa cidade uma homenagem
a Botelho Moniz (1900-1970), num claro condicionamento
dos novos dirigentes da União Nacional. Para mais, nessa
homenagem falou Santos Costa, eterno rival de Caetano, e
em termos que este considerou contrários à nova orientação
política que a UN deveria assumir. Marcello, claro, queixou-
-se em carta a Salazar, que, como sempre, tentou aplacar a
contenda, reservando para si o papel de árbitro entre o «par-
tido militar», personificado em Santos Costa, e a formação
político-civil de apoio ao regime.
Pode dizer-se, sem receio de exagero, que a presidência
da Comissão Executiva da União Nacional foi, de todos os
cargos que Marcello Caetano ocupou até à morte de Salazar,
aquele que mais dissabores lhe trouxe e aquele onde foi me-
nos feliz, desde logo porque todos os outros ora apelavam ao
seu espírito «fazedor» (ministro das Colónias, ministro da
Presidência), ora reclamavam a intervenção dos seus dotes
de jurista e de académico (presidência da Câmara Corporati-

49
RETRATOS POLÍTICOS

va). A liderança da União Nacional era um cargo eminente e


exclusivamente político, no qual Marcello não poderia fazer
valer as suas credenciais universitárias, nem, do mesmo pas-
so, mostrar «obra feita», realizações concretas e palpáveis.
Tal não significa, obviamente, que desdenhasse a política,
bem pelo contrário, nem tivesse altas aspirações nesse domí-
nio. Simplesmente, Salazar confiou-lhe a chefia da UN mas
não lhe deu nem os meios nem a liberdade de acção corres-
pondente a um lugar que, em teoria, era de importância po-
lítica crucial, mas que, na prática – ou, se quisermos, na visão
do ditador –, era predominantemente honorífico e de gestão
corrente das abundantes quezílias e pequenos atritos entre
caciques locais e outras figuras de segundo plano.
Não admira, assim, que, ao fazer o balanço do seu manda-
to, Caetano haja escrito, pesaroso: «os dois anos, contados
quase dia a dia, durante os quais estive à testa da União Na-
cional, constituem um período difícil da minha vida pública,
que preferia não recordar…». Mais adiante, escreve:

«Eu aceitara a presidência da Comissão Executiva da


União Nacional, com todos os seus encargos e incon-
venientes, no desejo de prestar um serviço ao regime,
em cujas fileiras militava, e ao dr. Salazar. E aceitara-a
convencido de que encontraria condições de trabalho
para prestar esse trabalho, sobretudo através de assí-
duo contacto com o Governo que me permitisse opi-
nar sobre as mais importantes providências políticas e
estar informado das orientações adoptadas, de forma
a cumprir a dupla missão de que me julgava investido:
representar a opinião do País junto do Governo, escla-
recer essa opinião sobre os actos deste.

50
MARCELLO

Mas a breve trecho compreendi que seria afastado


da vida governamental. Salazar recebia-me pouco.
O Ministro do Interior, meu querido amigo, homem de
grande nobreza de carácter e puro idealista, depressa se
sentiu solidário com a hierarquia das autoridades ad-
ministrativas locais que ou tinham na sua dependência
as comissões da União Nacional ou combatiam encar-
niçadamente qualquer tentativa de autonomia de acção
delas, originando a formação de grupos situacionistas
que dividiam nas localidades os amigos do regime. (…)
O meu papel reduzia-se, pois, a receber todos os dias
influentes políticos da província que me vinham ex-
por pequenas questões locais ou solicitar a minha in-
tervenção para obterem o deferimento pelos ministros
de pretensões por eles apadrinhadas e outras pessoas
igualmente portadoras de pedidos para este ou aque-
le. Uma vez traduzi esta situação a Salazar dizendo-lhe
que, assim como havia em Lisboa um "Agente Geral
das Colónias" para receber e encaminhar os assuntos
do Ultramar na Metrópole, o presidente da União Na-
cional era uma espécie de agente geral da Província em
Lisboa…»

A decepção começara logo no primeiro dia, quando en-


trou no gabinete onde iria trabalhar, na sede da UN, ao Lar-
go Trindade Coelho, em Lisboa. Estava uma tarde triste e
chuvosa, o secretário-geral da organização apresentou-lhe
os escassos funcionários da mesma, habituados a pouco ou
nenhum trabalho, salvo nos períodos eleitorais. «Entrou-me
na alma uma melancolia que era quase desânimo. Como ia eu
pegar naquela organização tão pouco organizada?»

51
RETRATOS POLÍTICOS

Aos conflitos com o «partido militar» cedo se juntaram


outros atritos, designadamente com o ministro da Educação,
Pires de Lima (1906-1970), sobre o qual Marcello não pou-
pa as palavras, na sua eterna animadversão a Coimbra e aos
seus doutores: «conhecia mal o meio de Lisboa, tinha uma
inteligência mediana e aos defeitos característicos dos lentes
conimbricenses juntava um feitio pessoal talvez demasiado
tímido, que dificultava a sua aproximação das outras pessoas
e o fazia reagir mal em muitos casos em que o diálogo fran-
co poderia conduzir a soluções aceitáveis.» Em causa estava
uma greve académica decretada em Maio de 1947, que le-
vara a uma intervenção policial excessiva na Faculdade de
Medicina, com agressões a torto e a direito, o que provocou
natural comoção em toda a Universidade. À semelhança do
que ocorrerá anos depois, Marcello colocou-se do lado dos
estudantes, queixou-se ao ministro e a Salazar, mas não teve
ganho de causa, o mesmo sucedendo quando, pouco tempo
depois, viu o professor Celestino da Costa (1884-1956), seu
amigo, ser afastado compulsivamente do ensino devido ao
seu desalinhamento com o regime.
Em Julho de 1947, escrevendo a partir da Suíça, onde se
deslocara como chefe da delegação portuguesa à Conferência
Internacional do Trabalho, Marcello queixava-se a Salazar,
dizendo que «o Governo tem orientado a sua política inter-
na sozinho e continua a ser a única realidade política activa,
apoiado no aparelho administrativo e nas polícias.» Desilu-
dido, achava-se marginalizado, menorizado, ou, nas suas pa-
lavras, «reduzido a servir de intermediário entre a província
e o Ministério do Interior para a escolha de governadores
civis e de presidentes das câmaras, e para a transmissão de
pretensões de filiados da União Nacional: não é, realmente,

52
MARCELLO

um brilhante papel!» Em resultado disso, comunicava a Sala-


zar a intenção de sair.
Já em Lisboa, o ditador convenceu-o a ficar mais uns tem-
pos, desde logo porque se aproximava uma eleição presi-
dencial e era necessário contar com a acção da UN. Marcello
anuiu.
Com a chegada ao fim de mais um mandato de Óscar Car-
mona, o presidente da comissão executiva da UN seria um
dos que sugeriu que Oliveira Salazar fosse elevado à chefia do
Estado, o que teria desimpedido o caminho para São Bento e
antecipado, em vários anos, o problema da sucessão do Presi-
dente do Conselho. Percebendo a manobra, Salazar natural-
mente declinou a oferta da Presidência da República e acabou
por impor a recandidatura de Carmona.
Terminada a campanha e feita a eleição, com a previsível
vitória do candidato do regime, Marcello forçou a nota, pu-
blicando nas páginas de A Voz um artigo ferozmente crítico de
um decreto do ministro da Educação, que Salazar interpretou,
e bem, como uma despedida das funções que exercia na UN:
«creio que terá sido seu intento marcar uma atitude que não
lhe permita desistir do pedido da presidência da Comissão
Executiva da União Nacional (…) E assim não me parece pos-
sível insistir mais: direi para a imprensa que foi aceite o pedi-
do de demissão e solicitarei ao Ulisses Cortês [1909-1975] e
ao Vigon que continuem a assegurar o expediente enquanto
se não reorganiza a Comissão Executiva. O desgosto com que
lhe escrevo esta carta não diminui em nada o reconhecimento
que lhe devo pela sua dedicação pessoal e pelos serviços pres-
tados à frente da Comissão Executiva da UN.»
Marcello estava de novo livre. Por pouco tempo.

53
RETRATOS POLÍTICOS

***

Em Novembro de 1949, por interposta pessoa, Salazar


sondava-o se aceitaria regressar à Câmara Corporativa, onde
estivera nos seus alvores, na década de 1930. E, mais ainda,
se aceitaria ser o próximo presidente da mesma. Surpreen-
dido, aceitou – e, no dia 25 de Novembro de 1949, era eleito
pelos procuradores, por larga maioria, para substituir José
Gabriel Pinto Coelho (1886-1978) na presidência da Câmara
Corporativa.
Começava, assim, a desenhar-se um padrão nas relações
entre Marcello Caetano e Oliveira Salazar e, em consequên-
cia, na evolução da trajectória do primeiro no seio do regi-
me: querendo tê-lo por perto, fosse porque confiava no seu
talento e nos seus dotes, fosse porque não pretendia deixá-lo
à solta, Salazar convidou-o para sucessivos cargos, que Mar-
cello ia aceitando com entusiasmo moderado, quase a con-
tragosto. Mais ainda: percebendo o intuito do Presidente do
Conselho, Caetano nunca se inibiu de, no exercício de várias
funções, expor as suas críticas, marcar distâncias, mostrar
que era uma «voz independente» no seio do Estado Novo.
Em privado, escrevia amiúde a Salazar, com queixas várias,
críticas de fundo e de circunstância. E, em público, opina-
va nos jornais, proferia palestras em estilo mais ou menos
contundente, sentindo que tinha direito a fazê-lo, mesmo no
quadro de uma ditadura, e percebendo que essa era a melhor
forma de firmar a sua posição perante o regime e perante o
país. Além de cálculo político, essa era a atitude que melhor
correspondia à imagem que Marcello tinha de si próprio, a
de alguém que, pelas suas qualidades intelectuais e pelo tra-
balho, chegara aos mais altos cumes, na Universidade e na

54
MARCELLO

política, na vida pública do país, a isso juntando uma cultura


humanística, sobretudo no domínio da História, e uma ex-
periência que o fizeram conhecer, como poucos, os vários
domínios da acção do Estado: as instituições do poder, cuja
arquitectura ajudara a delinear na génese da Constituição
de 1933; a máquina da administração, cuja disciplina jurí-
dica concebera seja como professor de Direito Público, seja
como coautor do Código Administrativo; as colónias ultra-
marinas, de que fora ministro; a Universidade e a cultura,
sobretudo no campo da investigação científica; a política, ao
nível nacional e local, com que lidara enquanto presidente da
Comissão Executiva da União Nacional. Se a isso juntarmos
uma vasta rede de sociabilidades, tecida ao logo de anos, e a
sua proximidade à imprensa escrita, bem como à Igreja e aos
seus organismos, concluiremos que poucos, talvez nenhuns,
estavam tão apetrechados como Marcello Caetano para aspi-
rarem à sucessão de António de Oliveira Salazar.
Contudo – e daí o seu drama –, enquanto Salazar perma-
necesse em funções, atento e actuante, o máximo que alguém
como Marcello poderia ter eram cargos cimeiros do Estado,
cimeiros decerto, mas comprometedores da sua independên-
cia e das suas aspirações. Em face disso, procurou situar-se
numa posição difícil, de equilíbrio instável, a qual era não pro-
priamente a de um oposicionista, mas a de um crítico a partir
de dentro, o que, como é natural, implicava uma permanente
insatisfação, no plano pessoal, e gerava cíclicos e recorrentes
atritos com a «Situação» e o seu principal protagonista, que
decerto deve ter notado que, de todos os que se reuniam à
sua volta, Marcello era um dos mais bem preparados para lhe
suceder – o que, por isso mesmo, obrigava a cuidados redo-
brados e a periódicas medidas correctivas ou disciplinadoras.

55
RETRATOS POLÍTICOS

Assim, e em suma, surpreende, por um lado, a variedade


de cargos que Caetano sucessivamente desempenhou e, por
outro, o escasso período em que os ocupou, bem como a for-
ma abrupta e desiludida com que sempre terminou funções,
nunca ou raramente exercendo um mandato até ao fim.
Na presidência da Câmara Corporativa, não tardou muito
tempo a que surgisse um incidente que de novo toldou as
suas relações com o chefe do governo. Em causa esteve uma
conferência proferida por Marcello no início de 1950, com o
título «Posição actual do corporativismo português», muito
crítica da anunciada criação de um Ministério das Corpo-
rações, que ele, numa boutade que fez época, afirmou fazer
tanto sentido num Estado corporativo como a criação de um
Ministério da Liberdade num Estado liberal.
Entrado depois em funções, novos motivos de crítica, sen-
do o principal o facto de os deputados da Assembleia Na-
cional e os ministros pouco ou nada ligarem aos pareceres
da Câmara Corporativa, de irrepreensível qualidade técnica
e elaborados por personalidades eminentes nas suas áreas de
especialização. Marcello, no fundo, fazia a mesma queixa que
antes formulara a propósito da Comissão Executiva da União
Nacional, a de que a Câmara era um órgão de primeiro pla-
no no travejamento da Constituição de 1933, mas que, na
prática, era menosprezada pelos restantes poderes do Estado.
A um institucionalista como Caetano decerto deve ter im-
pressionado tamanha discrepância entre a fachada do texto
constitucional e a prática do regime, mas o facto é que foi
esse o desígnio de Salazar na concepção da Lei Fundamental
do Estado Novo.
Ainda assim, no tempo da presidência de Marcello Cae-
tano, a Câmara Corporativa foi chamada a pronunciar-se,

56
MARCELLO

entre o mais, sobre a revisão constitucional de 1951, que in-


tegrou, modificando-o, o Acto Colonial no texto da Consti-
tuição (Marcello foi o autor do extenso parecer da Câmara
sobre o tema, num sentido claramente contrário ao da pro-
posta governamental, o que abriu um novo foco de tensão
com Salazar.) E, noutro plano, participou activamente no
melindroso jogo político desenrolado após a morte de Óscar
Carmona, em Abril de 1951. Teve, então, uma das suas mais
importantes intervenções políticas de sempre, ao afirmar-se
como o principal rosto da oposição àqueles que, como Mário
de Figueiredo (1890-1969), Santos Costa, João Lumbrales,
Cancela de Abreu (1895-1965) e outros, viram no inespe-
rado falecimento do velho marechal o pretexto há muito
aguardado para a restauração da Monarquia em Portugal –
ou, pelo menos, para o lançamento das bases para que ela
viesse a ocorrer a prazo.
Na contenda então travada, Marcello contou com um alia-
do de peso, o próprio Salazar, para qual a questão monárqui-
ca não deveria colocar-se, ao menos naquele momento, e foi
com o incentivo deste que Caetano proferiu em Coimbra um
discurso celebérrimo em que deitou por terra as aspirações
restauracionistas. Antes disso, tentou, uma vez mais – e uma
vez mais sem sucesso –, que Salazar se candidatasse à Presi-
dência da República, dizendo que o fazia de forma totalmente
desinteressada, e que, caso Salazar aceitasse o repto, não acei-
taria quaisquer funções de governo. Perante a intransigência
do ditador, escolheu-se Craveiro Lopes (1894-1964), com
quem Marcello irá ter afinidades políticas ditadas, em larga
medida, pelo facto de ambos serem dois dos principais repre-
sentantes do «partido republicano» contra os que, como se
viu, almejavam restaurar a Monarquia.

57
RETRATOS POLÍTICOS

Essa atitude valeu-lhe, segundo conta em Minhas Memórias


de Salazar, uma «persistente campanha, em que não faltavam
as insídias e desconsiderações pessoais», promovida pelos
sectores monárquicos. Em Julho de 1952, Craveiro Lopes
recompensou os seus serviços à causa republicana e, muito
provavelmente por iniciativa de Salazar, ou certamente com
a anuência deste, nomeou-o membro vitalício do Conselho
de Estado.
Mais tarde, quando Craveiro Lopes e Salazar discutiam
uma remodelação ministerial, na qual o nome de Marcello
Caetano era um dos falados para ocupar o cargo de minis-
tro da Presidência, travaram ambos um interessante diálogo,
descrito em Minhas Memórias de Salazar:

«-Este [Marcello Caetano] é o melhor de todos! Este


é que convinha que estivesse junto do senhor Presi-
dente para recolher os seus ensinamentos!
Salazar respondera:
– Sem dúvida. Mas com certeza não aceitará. Dada a
situação que tem, a vinda para o Governo representa-
ria para ele um enorme transtorno.
Ao que Craveiro Lopes replicara:
– Pois olhe que tenho razões para crer que se V. Ex.
o convidar ele não lhe dirá que não…
Salazar olhara por cima dos óculos, com o papel na
mão, e perguntara:
– Seria então o delfim…?
– E porque não – disse Craveiro Lopes.»

Não muito depois (domingo, 26 de Junho de 1955), Sala-


zar ligou-lhe, pedindo para passar em São Bento. Recebeu-o

58
MARCELLO

na companhia de João Lumbrales, e convidou-o para regres-


sar ao Governo, dando-lhe a escolher a pasta da Presidên-
cia ou a das Corporações. Marcello afirmou que o serviria
em qualquer lugar, mas foi adiantando que tinha «bastan-
te personalidade» e «uma posição marcada demais para ser
o colaborador ideal de V. Ex.» Aludiu também ao risco de
a nomeação como ministro da Presidência ser um sinal de
eventual sucessão, com isso acicatando a hostilidade dos mo-
nárquicos. Indiferente a tais argumentos, Salazar terminou a
conversa com um irrespondível «o assunto está arrumado» e
Marcello acabou ministro.
Sintomaticamente, naquilo que foi um padrão seu, de-
finidor de uma conduta, de um modo de estar na política,
mas também de uma personalidade, confessou, muitos anos
depois, que, nesse dia, quando chegou a casa, «deveria ter
escrito uma carta a recusar pura e simplesmente o convite
recebido.» O remate é elucidativo: «Não escrevi a carta…
Deixei-me assim enlear num enredo que ia amargurar-me a
vida por bastantes anos.»

***

Marcello Caetano foi ministro da Presidência durante três


anos, sensivelmente, de 1955 a 1958, podendo dizer-se que
a infelicidade que então viveu na política (o tal «enredo que
ia amargurar-me a vida por bastantes anos») não tem corres-
pondência com as realizações que logrou enquanto ministro.
Pode afirmar-se, sem exagero, que foi como ministro da
Presidência, tanto ou mais do que como chefe de governo,
que Marcello pôde evidenciar-se como político cosmopolita
e como governante modernizador e reformista, assim mar-

59
RETRATOS POLÍTICOS

cando claramente uma diferença – a sua diferença – em rela-


ção a Salazar e ao seu estilo.
À entrada para o Governo, obtém logo uma importante vi-
tória, ao conseguir colocar no novo executivo personalidades
que lhe eram próximas, como o ministro da Educação, Fran-
cisco de Paula Leite Pinto (1902-2000) – ademais, em subs-
tituição do coimbrão Pires de Lima –, e o das Corporações
e Previdência Social, Henrique Veiga de Macedo (1914-?)
– em substituição de Soares da Fonseca (1908-1969), seu
inimigo político1. Além destes, o seu grande amigo Balta-
zar Rebelo de Sousa (1921-2002) é nomeado subsecretário
de Estado da Educação e José Guilherme de Melo e Castro
(1914-1972) entra para a subsecretaria de Estado da Assis-
tência Social.
Na época, a maior proximidade a Salazar – no fundo, o
grande barómetro da vida política no Estado Novo – deu en-
sejo, inclusive, a uma anedota de café, que Marcello conta nas
suas Memórias: a pretexto de um dos filmes da altura, Marce-
lino, Pão e Vinho, dizia-se que «o Marcelo agora é Marcelino,
Pão e Vinho», «porquê?», «então não vês que fala todos os
dias com o ‘Senhor’?»
Confirmando o dito, Marcello recorda, com gosto, que era
raro o dia em que não se encontrasse com Salazar ao final
da manhã e, com frequência, também à tarde, para reuniões
do «conselho privado» que o Presidente do Conselho ouvia
regularmente.

1 Na biografia de Marcello Caetano da autoria de Luís Menezes Leitão (Marcello Caetano.


Um destino, Lisboa, 2014) afirma-se que «na pasta da Economia, [Marcello Caetano]
colocou outro amigo seu, Camilo de Mendonça» (p. 359), mas trata-se de um evidente
lapso, porquanto Camilo de Mendonça (1921-1984) nunca exerceu funções governa-
tivas e a pasta da Economia foi ocupada por Ulisses Cortês, que a vinha exercendo, de
resto, desde 2 de Agosto de 1950, data em que substituiu Castro Fernandes (1903-1975).

60
MARCELLO

E, além do aumento do peso político, a pasta da Presidên-


cia permitiu também que o seu titular evidenciasse os seus
inegáveis talentos de «fazedor», desmultiplicando a sua ac-
ção por inúmeros e bem complexos assuntos, mobilizando
e coordenando equipas, chamando os técnicos mais com-
petentes, quase sempre sem grandes considerações sobre
as suas opções políticas. Vivia-se então, por toda a Europa,
a moda do planeamento económico, encarado como alterna-
tiva ao capitalismo desenfreado e à planificação estatista dos
países de Leste, cabendo ao ministro da Presidência liderar
a execução do I Plano de Fomento e coordenar a elaboração
do II Plano, para 1958-1964. Competiu-lhe, também, chefiar
as delegações ministeriais permanentes aos conselhos de mi-
nistros da Organização Europeia de Cooperação Económi-
ca (OECE), futura OCDE, e da NATO, de que Portugal foi
membro fundador.
Graças ao contexto da Guerra Fria, Portugal conseguiu
vencer o ostracismo internacional que, em princípio, a na-
tureza do seu regime deveria provocar entre as nações de-
mocráticas do Ocidente, as quais se mostraram dispostas a
tolerar um governo autoritário do Sul da Europa desde que
isso contribuísse para fazer face à ameaça vinda de Leste.
Marcello Caetano foi, em larga medida, o rosto dessa aber-
tura ao mundo (coube-lhe, por exemplo, superintender a re-
presentação portuguesa na Exposição Internacional de 1958,
em Bruxelas), que a breve trecho seria posta em causa pela
invasão de Goa pela União Indiana e, acima de tudo, pela
irrupção dos movimentos independentistas africanos.
Sob a sua alçada encontrava-se igualmente o Secretaria-
do Nacional de Informação, o que lhe deu o ensejo de ser o
introdutor da televisão em Portugal, facto que recorda com

61
RETRATOS POLÍTICOS

agrado nas suas memórias e que, anos vindouros, já na chefia


do governo, lhe permitiu protagonizar as célebres «Conver-
sas em Família», porventura o instrumento de propaganda
mais poderoso do marcelismo.
Além da participação portuguesa na NATO e na OCDE,
da coordenação dos planos de fomento, da organização da
participação portuguesa na Exposição de Bruxelas, Salazar
confiou-lhe outras importantes missões, que Marcello cum-
priu com indiscutível brilho, como a concretização da von-
tade testamentária de Calouste Gulbenkian, com a aprova-
ção, pelo Decreto-Lei n.º 40.690. de 18 de Julho de 1956, dos
estatutos da fundação com o seu nome, e a organização da
histórica visita da rainha Isabel II a Portugal, em Fevereiro
de 1957. É, por isso, manifestamente exagerado o juízo nega-
tivo que faz sobre o seu consulado ministerial, sobre o qual
afirmou que, das poucas ocasiões em que teve «a alegria de
fazer alguma coisa de concreto e útil», foi quando, em articu-
lação com o ministro das Obras Públicas, Arantes e Oliveira
(1907-1982), concretizou o plano de destruição das «ilhas»
do Porto, na Primavera de 1956.
Aos poucos, ia agregando em torno de si um conjunto de
personalidades que, nos anos vindouros, virão a constituir o
«partido marcelista». A lista é extensa: Silva Cunha, Baltazar
Rebelo de Sousa, César Moreira Baptista, Manuel de Andra-
de e Sousa, Correia de Campos, Clemente Rogeiro, Esteves
da Fonseca, Mário de Oliveira, Carlos da Silva Gonçalves,
Pedro Guimarães, Francisco Vale Guimarães, Bernardino
Pereira Bernardes, Almeida Cotta, Daniel Barbosa, Camilo
de Mendonça, Gonçalo Mesquitela, Correia de Barros, Euri-
co Serra, Jaime Rodrigues Loureiro, Manuel Nunes Barata,
João Dias Rosas, Lopo Cancela, Fernando Rogeiro, Afonso

62
MARCELLO

Marchueta, Moreira Ribeiro e Alberto Lemos Mesquita.


Com o tempo, o núcleo dos seus apoiantes passará a ser co-
nhecido como «grupo da Choupana», em São João do Esto-
ril, e, além do aconselhamento e do suporte político, o con-
vívio com estes próximos terá servido de lenitivo a Marcello
Caetano numa fase em que a doença psíquica da sua mulher
dava sinais de agravamento.
A aproximação de um novo ciclo eleitoral – com legisla-
tivas em 1957 e presidenciais em 1958 – intensifica a activi-
dade política e, com ela, a teia de intrigas, rumores e boatos
que recorrentemente atravessavam o Portugal paroquial do
salazarismo. Marcello aproxima-se de Craveiro Lopes, ou
vice-versa, desde logo na animosidade contra Santos Cos-
ta. E Salazar, de seu lado, por certo não terá gostado que se
pensasse na sua sucessão, designadamente após o Presidente
da República lhe ter falado em Caetano como seu eventual
«delfim.» Quando o chefe do governo reúne o seu «conselho
privado» para discutir o nome do candidato da UN às pre-
sidenciais de 1958, Marcello Caetano e Trigo de Negreiros
(1900-1973), ministro do Interior, pronunciam-se a favor da
reeleição de Craveiro Lopes, contra o parecer de João Lum-
brales, Albino dos Reis (1888-1983) e Mário de Figueiredo.
Mais decisivamente, no dia em que a Comissão Central da
União Nacional se reúne para ratificar a escolha de Américo
Thomaz (1894-1987), Marcello Caetano prima pela ausência,
num gesto prenhe de significado, que não deixará de marcar
para sempre o relacionamento entre ambos, seja na etapa fi-
nal no Estado Novo, seja no exílio no Brasil, após 1974.
Por trás da fachada propagandística de um país sereno e
ordeiro, o regime de Salazar deixara-se enredar num am-
biente de permanentes quezílias e rivalidades intestinas, com

63
RETRATOS POLÍTICOS

a formação de grupos e subgrupos, que o ditador alimentava


e geria até certo ponto, mas que começavam a escapar-lhe
ao controlo. O «terramoto Delgado», nas eleições de 1958,
desnudara os conflitos do regime, pondo em causa a ima-
gem de um apoio incondicional e unânime ao Presidente do
Conselho: Humberto Delgado (1906-1965) tinha sido, até há
pouco, um dos mais fervorosos partidários do Estado Novo
e do seu chefe e, com a sua candidatura, não só mostrara que
Portugal estava dividido, cada vez mais dividido, como ex-
pusera as suas debilidades no plano político, mas também,
ou sobretudo, no plano social, com a persistência de atrasos
e bolsas de pobreza e de miséria inconcebíveis num país que
pretendia projectar-se como europeu e moderno.
No início de Agosto de 1958, o Presidente do Conselho
convoca o ministro da Presidência para uma das suas habi-
tuais conversas a dois. O tema era a remodelação governa-
mental. Ao fim de duas horas de diálogo, Salazar referiu a
necessidade de ver-se livre de Santos Costa, Marcello negou
encabeçar um «partido» e, menos ainda, que este rivalizasse
com o do ministro da Defesa. Dias depois, a 14 de Agosto, o
Diário do Governo publica os decretos com a exoneração de
ambos, sendo Marcello substituído pelo seu velho amigo Pe-
dro Theotónio Pereira, agora colocado no lugar de «delfim»
e, por isso, posicionado como candidato à sucessão do Presi-
dente do Conselho.
Nesse mesmo dia, meia-hora antes da tomada de posse
do novo governo, Marcello apresenta a Américo Thomaz
a sua renúncia de membro vitalício do Conselho de Estado
e, depois da posse, escreve a Salazar uma emotiva carta de
despedida, na qual dizia que, naquele dia, terminava a sua
vida política, cessando o exercício de todos os cargos que

64
MARCELLO

detinha: membro da Comissão Central da União Nacional,


membro do Conselho de Estado. «Nunca o esquecerei e re-
cordarei sempre com orgulho a colaboração que tive a honra
de lhe prestar», dizia, acrescentando: «Escuso de lhe dizer,
Sr. Presidente, quantas felicidades lhe desejo: não são apenas
os sentimentos do amigo, que obscuramente continuarei a
ser; são também as conveniências, os interesses, os anseios de
português que me ditam esses votos sinceríssimos.»
Era, a partir de então, um homem livre de compromis-
sos com o Estado Novo, excepto os que resultavam da sua
ambição de nele continuar a ter um lugar de relevo, mesmo
que, por ora, afastado da política activa e do seu cortejo de
intrigas. Regressado à Universidade, começou a sua travessia
do deserto.

65
MARCELLO

PODE DIZER-SE, SEM EXAGERO,


QUE FOI COMO MINISTRO DA
PRESIDÊNCIA QUE MARCELLO PÔDE
EVIDENCIAR-SE COMO POLÍTICO
COSMOPOLITA E COMO GOVERNANTE
MODERNIZADOR E REFORMISTA,
MARCANDO UMA DIFERENÇA EM
RELAÇÃO A SALAZAR E AO SEU ESTILO.

67
TRAVESSIA
DO DESERTO

A década da travessia do deserto, entre a demissão como


ministro da Presidência e a chegada à chefia do Governo
– ou seja, de 1958 a 1968 –, poderia ter sido das mais ventu-
rosas da vida de Marcello Caetano, não fora a grave doença
de Teresa. «A minha actividade repartiu-se, nesses dez anos,
entre os cuidados a proporcionar a um ente querido e os tra-
balhos profissionais», escreveu em Depoimento, publicado no
Brasil.
«Apeguei-me como nunca à Faculdade de Direito, às au-
las, ao estudo, a escrever ou reescrever os meus livros (…).
Solicitado frequentemente a emitir o meu parecer sobre pro-
blemas jurídicos, foi esse decénio também muito fecundo em
trabalhos de jurisconsulto. Daí me provinham, aliás, os ren-
dimentos necessários para fazer face às despesas da doença
devastadora que assolava a minha casa.»
Após o 25 de Abril, gostava de recordar que os dirigen-
tes dos quatro principais partidos haviam sido seus alunos:
um, Álvaro Cunhal, seu inimigo político, outro, Freitas do
Amaral, seu discípulo dilecto e sucessor na cátedra de Admi-

69
RETRATOS POLÍTICOS

nistrativo; Sá Carneiro, mais distante, chegou a ser deputado


durante o seu consulado, para resignar ao mandato, desilu-
dido como tantos outros; com Mário Soares teve relações
difíceis, pois considerava-o um «medíocre advogado de Lis-
boa» e, nessa medida, um político impreparado para assumir
a chefia do governo. No passado, enfrentaram-se como ad-
vogados, num conflito que opôs os herdeiros de Alfredo da
Silva (1871-1942), do grupo CUF, e que seria saldado por um
acordo quando Mário Soares já se encontrava em São Tomé,
deportado por Salazar na sequência do caso «Ballet Rose».
Soares impugnou essa medida junto do Supremo Tribunal
Administrativo e, para o efeito, solicitou um parecer ao seu
antigo professor na Faculdade de Direito, que declinou o pe-
dido, considerando que a decisão de deportação não violava
a Constituição. Ainda assim, acrescentou que a lamentava,
a título pessoal, e que desejava um rápido regresso do seu
antigo aluno à Metrópole. Quando ascendeu à Presidência
do Conselho, a revogação do exílio de Soares foi das suas
primeiras e mais emblemáticas medidas, sinal da «Primavera
marcelista» que a breve trecho redundaria em Outono.
Apesar de afastado de funções governativas, Marcello não
abandonou a política, longe disso. Transferiu-a, isso sim,
para outros lugares e ambientes, nomeadamente o universi-
tário, por um lado, e o conspirativo, por outro. O seu desejo
de permanecer na ribalta é patente, desde logo, no facto de
ter aceitado o convite do ministro da Educação, Francisco de
Paula Leite Pinto, para ser reitor da Universidade de Lisboa,
por morte de Vítor Hugo de Lemos (1894-1959), catedrático
de Matemáticas. Não tardou muito, porém, a que se desen-
tendesse com o ministro – e seu amigo – num episódio que
diz muito sobre a sua personalidade: numa cerimónia públi-

70
MARCELLO

ca, Leite Pinto concedeu primazia protocolar ao director-


-geral do Ensino Superior, uma vez que este era o presidente
da secção de ensino superior da Junta Nacional de Educa-
ção, da qual os reitores eram meros vogais. Caetano sentiu-se
ofendido, uma vez que tinha sido ministro da Presidência e
continuava a ser conselheiro de Estado, dado que o decreto
da sua demissão nunca fora publicado pela Presidência da Re-
pública. Em resultado disso, cortou imediatamente relações
com Leite Pinto, naquilo que a uns parecerá apenas uma pe-
tite histoire, mas que revela bastante sobre a personalidade de
Marcello, a quem Salazar, ao que parece, gostava de chamar
«um vidrinho», tais eram as susceptibilidades e os melindres
a que frequentemente se entregava, fruto de uma elevadís-
sima autoestima, em parte justificada, dada a inquestionável
superioridade do seu intelecto, mas em parte causadora de
sucessivos conflitos que, com frequência, tinham motivações
do foro pessoal, e não estrita ou necessariamente político.
Não por acaso, um ano depois de assumir funções reito-
rais iria protagonizar um confronto de grandes proporções
com a Universidade de Coimbra, da qual sempre tivera, de
resto, uma péssima impressão. Em causa estava uma questão
de elevado simbolismo, suscitada no âmbito das comemora-
ções do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique. Para
marcar posição, e num gesto com o seu quê de provocatório,
Marcello mandou inscrever no programa das comemorações
a celebração de uma missa na Igreja da Graça, em Lisboa, a
dois passos da casa onde ele próprio nascera, em memória
do «Protector da Universidade», um dos títulos do Infante.
Com isso, naturalmente, pretendia significar que, em termos
de antiguidade histórica, a Universidade de Lisboa detinha
primazia sobre Coimbra. Esta, como é óbvio, reagiu e, em

71
RETRATOS POLÍTICOS

conflito aberto, os senados das duas universidades aprova-


ram moções inflamadas, cada qual reclamando para si o título
de academia mais antiga da nação.
Marcello procurou envolver Salazar na querela, mas este,
obviamente, escusou-se, alegando que não lhe competia di-
lucidar «o mérito da questão histórica» e adiantando que, se
o fizesse, daria primazia a Coimbra, e por uma questão pu-
ramente pragmática: Lisboa era o futuro e, dentro em breve,
seria muito mais relevante do que a Lusa Atenas, pelo que,
a título de compensação, deveria poder gozar «intactos os
pergaminhos da sua antiguidade e mesmo do prestígio que
alguma vez alcançou dos seus professores e do valor dos es-
tudos ali preparados.»
Não se dando por vencido, o reitor de Lisboa voltaria à
carga e, em Novembro de 1960, na oração inaugural do ano
lectivo, proferiu um discurso duríssimo sobre o «deplorável
incidente», falando de uma «campanha multiforme, desen-
volvida em larga extensão, contra esta Universidade.» Aludiu
a «factos históricos irrecusáveis», demonstrativos da maior
antiguidade dos estudos superiores lisboetas, e concluiu di-
zendo que o progresso da Universidade de Lisboa era de tal
forma imparável e pujante que poderia ser «retardado por
artifícios», mas jamais detido ou posto em causa. «Cedo ou
tarde a realidade se imporá», rematou, premonitório.
Os seus antigos alunos recordam-no quase unanimemen-
te como um professor excepcional, que aliava um profun-
do conhecimento das matérias que leccionava – e uma acri-
solada paixão pela História – a raros dotes pedagógicos e a
uma clareza expositiva cristalina, cartesiana. São frequentes,
também, as referências ao seu carácter distante e exigente no
trato com os alunos, para os quais reservava uma manhã por

72
MARCELLO

semana para esclarecimento de dúvidas relacionadas com a


matéria da cadeira ou quaisquer outras que entendessem co-
locar. Nos exames, tinha fama de difícil, o que lhe valeu a
alcunha de «Abominável Homem das Neves» e ainda hoje
são recordadas algumas suas observações misóginas, através
das quais, segundo se diz, dava a entender que Direito era um
curso vocacionado para homens e que as mulheres deveriam
preferir os estudos de Letras.
Observava a política à distância, tendo o cuidado de não se
deixar envolver em excesso no golpe que Botelho Moniz en-
saia em 11-12 de Abril de 1961. Ainda assim, e ao que parece,
chegou a ser convidado por uma personalidade próxima dos
conspiradores para ser o chefe do governo, caso tivesse êxito
o plano de convencer Américo Thomaz a exonerar Salazar.
A 22 de Abril, poucos dias depois de o golpe abortar, Oliveira
Salazar convoca Marcello Caetano e oferece-lhe a pasta da
Economia, sabendo, muito provavelmente, que este recusa-
ria. A remodelação ministerial subsequente levou à saída de
duas personalidades próximas de Caetano – Leite Pinto e, so-
bretudo, Baltazar Rebelo de Sousa – e à ascensão de três dos
seus inimigos políticos: Adriano Moreira (1922-2022), para
a pasta do Ultramar; José Gonçalo Correia de Oliveira (1921-
1976), nomeado ministro de Estado adjunto do Presidente
do Conselho; e Franco Nogueira (1918-1993), novo ministro
dos Negócios Estrangeiros.
O isolamento de Marcello Caetano era agora maior e,
como já notaram alguns dos seus biógrafos, o seu nome che-
gou a ser apontado, ao lado do de Craveiro Lopes e de Bo-
telho Moniz, como um dos suspeitos do «golpe de Beja», na
viragem de ano para 1962. Conotado com a «ala esquerda»
do regime, era visto como um alvo a abater pelos «ultras»

73
RETRATOS POLÍTICOS

da direita, fractura que, vinda de trás, se aprofundará dra-


maticamente quando assumiu o pesado encargo de substituir
Salazar na chefia do governo, sendo este um dos principais
escolhos que teve de enfrentar no seu trágico consulado.
Por Amor da Juventude era o título do livro que publicara
em 1944, recolhendo intervenções e reflexões como comis-
sário da Mocidade Portuguesa. Agora, à frente da Reitoria da
Universidade de Lisboa, Marcello sabe que tem diante de si
o futuro escol da nação, como habitualmente lhe chamava,
e que a juventude era, ou poderia ser, um dos seus princi-
pais aliados políticos. Mantinha, por isso, relações excelentes
com os dirigentes académicos, a quem convidava frequen-
temente para almoçar na Reitoria, então ainda instalada no
Campo dos Mártires da Pátria. E, por outro lado, não deixará
de capitalizar um dos momentos altos da vida universitária
de então, a inauguração, em Dezembro de 1961, do novo e
imponente edifício da Reitoria, enquadrado na nova e mo-
derna Cidade Universitária, para onde foram transferidas as
Faculdade de Direito e de Letras.
Logo a seguir, na crise académica de 1962, motivada pela
proibição das comemorações do Dia do Estudante, ditada
por uma decisão desastrada do ministro da Educação, Lopes
de Almeida (1900-1980), o reitor coloca-se ao lado dos alu-
nos, discordando aberta e frontalmente quer da decisão do
ministro da Educação, quer, sobretudo, da ordem dada pelo
ministro do Interior, para que a PSP ocupasse a Cidade Uni-
versitária. Ao fim de alguns dias de tumultos, e tendo Salazar
avalizado a decisão de Lopes de Almeida através de uma nota
oficiosa publicada nos jornais, Marcello Caetano acaba por
demitir-se. Uma vez mais, não tanto por uma questão po-
lítica de fundo e de substância, já que não nutria quaisquer

74
MARCELLO

simpatias pela realização do Dia do Estudante e até entendia


que as comemorações não ocorressem. O que pesou, como
sempre, foi ter-se sentido ferido no seu pundonor e no seu
orgulho pessoais, já que o ministro não lhe concedera a au-
diência que tinha pedido e conduzira todo o processo sem o
consultar, pelo menos nos termos em que Marcello conside-
rava exigíveis.
«Foi uma experiência apaixonante, mas de que saía mais
decidido ainda a remeter-me exclusivamente à vida privada»,
diria anos depois, num balanço breve do que seu breve reito-
rado. Agora, de facto, estava inteiramente livre de ligações ao
regime, dedicando-se por inteiro às aulas e aos pareceres de
Direito, que lhe permitiam ter uma existência mais confor-
tável. Em 1960, mudara-se para uma moradia na Rua Duarte
Lobo, em Alvalade, onde pôde, enfim, instalar a sua vasta
biblioteca e ter um escritório de trabalho, o que lhe permitiu
acompanhar de perto a evolução da doença da mulher, que
morrerá em 1971, um drama doméstico de enorme impor-
tância para o desenlace do seu consulado como Presidente do
Conselho, mas a que não se tem dado o devido e merecido
relevo.
Por um singular paradoxo, é quando Marcello Caetano
se encontra mais longe do poder que mais se aproxima dele.
Além dos fiéis do «grupo da Choupana», e da fama de «libe-
ral» que conquista aos olhos do país, tece uma densa e exten-
sa rede de contactos nos meios académicos, em Portugal, mas
também no Brasil e em Espanha2, e nos meios económicos e
2 Assim, por exemplo, em 1963, foi convidado para o corpo docente da Faculté Interna-
tionale pour l´Enseignement du Droit Comparé, com sede em Estrasburgo, e começou
a reger um curso no 3.º ciclo. Em 1964, organizou em Lisboa um curso da Faculda-
de de Direito Comparado (179 estudantes inscritos de 31 nacionalidades diferentes).
No final, o Conselho da Faculdade – onde havia professores ingleses, americanos, fran-

75
RETRATOS POLÍTICOS

empresariais, a juntar aos que já detinha na política, na im-


prensa e nas forças armadas.
Por muito que desagradasse aos «ultras», era um nome in-
contornável para a sucessão de Salazar, a qual se tornava cada
dia mais próxima e provável, fosse pelo avançar da idade,
fosse pelos sucessivos sobressaltos que o regime ia vivendo,
sobretudo desde o annus horribilis de 1961, com duas tentati-
vas sérias de golpe militar, a humilhante invasão de Goa e o
início das guerras em África.
Agora, era só uma questão de tempo.

ceses, italianos, jugoslavos, canadianos, gregos, belgas, suíços, polacos, alemães, espa-
nhóis, austríacos, soviéticos, suecos, checoslovacos, etc. – elegeu-o, por unanimidade,
seu vice-presidente.

76
SUCESSOR
DE SALAZAR

T antas opiniões díspares! Cada cabeça sua sentença! Fi-


ca-se aturdido», desabafou Américo Thomaz na sua
agenda, a 19 de Setembro de 1968. Por esses dias, o vene-
rando almirante auscultava dezenas de personalidades – mais
de quarenta! – sobre um problema que nunca pensara vir a
enfrentar, a escolha do nome para suceder a António de Oli-
veira Salazar na presidência do Conselho de Ministros.
«Sinto-me embraçado e perplexo, no meio de tantas opi-
niões desencontradas quanto ao que deve fazer-se», anotou
Thomaz no dia seguinte, desalentado, confundido.
No início de Agosto, Salazar tivera um acidente doméstico
no Forte de Santo António, no Estoril: ao sentar-se numa
cadeira de lona, esta cedeu e o ditador acabou por embater
com violência nas lajes do terraço do forte onde veraneava.
Só dias depois é visto pelo seu médico assistente, Eduardo
Coelho, que recomenda vigilância. De permeio, em finais
do mês, ainda efectua uma profunda remodelação governa-
mental, substituindo os titulares das pastas do Interior, das
Finanças, do Exército, da Marinha, da Educação Nacional,

77
RETRATOS POLÍTICOS

das Comunicações e da Saúde e Assistência, mas no início de


Setembro, como o seu estado de saúde se agravasse, dá entra-
da no Hospital de São José e no Hospital dos Capuchos para
a realização de exames. Daí seria transportado para o Hospi-
tal da Cruz Vermelha, onde, na madrugada de 7 de Setem-
bro, foi sujeito a uma intervenção cirúrgica para remoção
de um hematoma intracraniano. O paciente recupera bem,
entra em convalescença – e ao hospital acorre um infindável
cortejo de individualidades, todas querendo marcar presença
perante o país inteiro, que acompanhava pari passu, através
dos jornais e da televisão, o desenrolar dos acontecimentos.
Marcello, claro, não deixou também de ir à Cruz Vermelha,
pese encontrar-se afastado da vida política há cerca de dez
anos (e, note-se, fazendo-o só depois de saber que a trom-
bose que afectara Salazar era irreversível). Com esse gesto,
entre tantos outros, sinalizou o desejo claro de se posicionar
na corrida à sucessão do único homem político a quem reco-
nhecia superioridade, como referiu o seu filho, Miguel Cae-
tano, o qual reconhece o óbvio, que o pai «era um homem
ambicioso: tinha ambição social, tinha ambição política, ti-
nha ambição profissional», à qual sempre juntou um enorme
«espírito de missão.»
A 16 de Setembro, Salazar sofreu uma hemorragia inter-
na no hemisfério cerebral direito, que lhe provoca um grave
acidente vascular cerebral que o faz entrar em coma profun-
do e com respiração assistida por um ventilador. «Agravou-
-se inesperadamente o estado de saúde do Prof. Salazar»,
anunciou O Século, escrevendo o Diário de Notícias: «Horas
de emoção – Salazar piorou.» Sintomaticamente, o oficioso
Diário da Manhã não deu qualquer notícia do agravamento
do estado de saúde do Presidente do Conselho.

78
MARCELLO

No dia seguinte, informado de que o estado de saúde Sala-


zar era irreversível, Américo Thomaz reúne o Conselho de
Estado, ao qual comparecem todos os membros, excepto o
Procurador-Geral da República, Manso Preto (1924-1993),
ausente de Lisboa, incluindo Marcello Caetano. O apare-
cimento deste na reunião causou enorme surpresa entre
os conselheiros de Estado, especialmente entre os que lhe
eram mais hostis. Era público que Marcello se demitira do
Conselho em 1958 e, mesmo que Thomaz nunca tivesse ofi-
cializado a exoneração, o certo é que, em dez anos, nunca
comparecera a qualquer reunião daquele órgão, do qual se
considerava desvinculado «de facto.» Alegou que ali estava,
por insistência de amigos seus, os quais sustentavam a «tese
de que não deveria naquele gravíssimo momento deixar de
dar todo o seu concurso ao Chefe do Estado.»
Por aqui se vê até que ponto Marcello Caetano, como
qualquer jurista hábil, sabia usar e manipular o Direito para
servir os seus intentos: umas vezes, proclamava que regres-
sara por inteiro à vida privada, tendo abandonado todos os
cargos que detinha no Estado Novo, inclusive o de membro
do Conselho de Estado; mas, neste momento crucial e decisi-
vo, reassumiu o lugar de onde estivera ausente durante uma
década, apegando-se ao argumento formal de que o decreto
da sua exoneração nunca fora publicado no Diário do Gover-
no. No fundo, pretendia conciliar o inconciliável: transmi-
tir ao país uma ideia de desapego e indiferença pelo poder,
numa linha desde sempre cultivada por Oliveira Salazar, com
isso pretendendo dissimular a sua indómita vontade de ser
chefe de governo.
Reunido os conselheiros de Estado, todos confiaram em
Thomaz a decisão final a tomar, o que, além de óbvio, por-

79
RETRATOS POLÍTICOS

quanto o Conselho não tinha funções deliberativas, era uma


forma de demonstrar apoio ao Presidente da República, cuja
relevância subira exponencialmente naquele momento, e,
por outro lado, de endossar-lhe a responsabilidade última
pela opção que viesse a ser tomada, a qual, naquele concreto
circunstancialismo, iria ser fatalmente controversa e contes-
tada pela facção vencida.
Se houve unanimismo quanto a este ponto, o mesmo
não se dirá sobre um outro, mais sensível. Aí, o Conselho
dividiu-se, com uma maioria – Mário de Figueiredo, Pires
de Lima, Furtado dos Santos (1912-1987), Santos Costa,
Theotónio Pereira, Antunes Varela (1919-2005) e Soares da
Fonseca – a pronunciar-se contra a substituição em vida do
Presidente do Conselho, mesmo que, do ponto de vista clíni-
co, fosse praticamente garantido que Salazar jamais poderia
reassumir funções. Supico Pinto referiu, então, a possibili-
dade de uma substituição interina, com isso querendo iludir
aquela dolorosa verdade. Em face disso, Marcello ensaiou a
quadratura do círculo: começou por dizer que a sua «sensi-
bilidade» o aconselhava a que não se substituísse Salazar em
vida deste, mas que «a vida corrente do país» e os «numero-
sos problemas» da governação implicavam que se designasse
um chefe do governo. Se acaso este fosse nomeado a título
interino, tratar-se-ia de uma solução provisória e a escolha
do nome deveria recair sobre alguém que já fizesse parte do
gabinete. Ou seja, e em suma, de uma forma engenhosa, mas
perceptível para os seus pares, Marcello Caetano descartou,
em primeiro, a tese de que Salazar não deveria ser substituí-
do fosse a que título fosse, e, depois, colocou Américo Tho-
maz perante um cenário difícil, se não mesmo impossível:
se acaso quisesse nomear um interino, deveria fazê-lo entre

80
MARCELLO

os membros do executivo em funções, o que limitava signi-


ficativamente a margem de acção e de escolha do almirante.
Na aparência, Marcello punha-se fora da disputa pela su-
cessão de Salazar, mas, na prática, afunilava a seu favor as
soluções ao dispor do Presidente. Este decide nada decidir
por ora, e, sabiamente, nada desvenda sobre qual entendia
ser a melhor opção a tomar, desde logo quanto à questão da
substituição, ou não, do Presidente do Conselho. Num ex-
pediente clássico nestas ocasiões, procede então a um vas-
to conjunto de audições, mais de quarenta individualidades,
entre as quais, note-se, os próprios conselheiros de Estado,
agora ouvidos a sós e em privado, o que dá bem a ideia do
nível de desconfiança mútua – e de intriga – que dilacerava as
elites do Estado Novo nesta fase. Ausente aquele que, duran-
te décadas, fora o árbitro incontestado dos vários grupos e
facções, aquele cuja palavra última dirimia e resolvia os con-
flitos, Thomaz via-se inesperadamente investido num papel
que a prática da Constituição de 1933 não lhe atribuía e para
o qual, como é evidente, não estava preparado.
Em Últimas Décadas de Portugal, as suas memórias do final
do regime, o almirante justifica a escolha de Marcello de-
volvendo a responsabilidade pela mesma às individualidades
que ouviu, as quais se inclinaram indubitável e maioritaria-
mente para o nome de Marcello Caetano. E, prosseguin-
do no mesmo registo autojustificativo, sublinha a pressão
exercida pelos «simpatizantes» do seu nome: «criara-se um
ambiente que o grupo de amigos e adeptos ia alimentando
e ateando quanto podia e cada vez mais, não só no interior
do País, como até no exterior. A ponto de ir tornando, qual-
quer outra solução, não só mal compreendida, como até mal
recebida.»

81
RETRATOS POLÍTICOS

Na sua biografia de Marcello Caetano, o historiador José


Manuel Tavares Castilho contrasta as narrativas divergentes
de Marcello e de Thomaz, com este a afirmar que o primeiro
estava «ansioso» por ascender à Presidência do Conselho e
por duas vezes solicitara a luz verde do almirante para co-
meçar a formar governo. Caetano, mais evasivo, diz que se
limitou a dar a sua «opinião» e que, dias volvidos, voltou a
ser chamado a Belém, tendo Thomaz dito que mais de no-
venta por cento das pessoas que ouvira haviam indicado o
seu nome e que «era também seu desejo nomear-me para a
Presidência do Conselho.»
É possível, até provável, que Thomaz o fizesse a contra-
gosto, fosse porque se lembrava de que, em 1958, Marcello se
pronunciara a favor da reeleição de Craveiro Lopes, faltan-
do até à reunião da Comissão Executiva da União Nacional
que ratificou o seu nome como candidato presidencial, fos-
se porque sentia a pressão de alguns dos seus próximos para
não indigitar Caetano, fosse, enfim, porque duvidava que um
«liberal» como Marcello estivesse à altura do legado imorre-
douro de Oliveira Salazar.
Existiam, é certo, nomes alternativos, que não deixaram
de ser ponderados, como os de Franco Nogueira, de Supico
Pinto, de Antunes Varela, de Gomes de Araújo (1897-1982),
de Adriano Moreira e de Correia de Oliveira. Contudo, por
uma razão ou outra, todos eles tinham handicaps, políticos
ou pessoais, como potenciais sucessores de Salazar e o único
nome que poderia ombrear com o de Marcello, em termos
de experiência e de projecção – e de antiguidade no contacto
com o ditador – era o do seu velho amigo Pedro Theotónio
Pereira, cuja doença degenerativa de que padecia o afastava
automaticamente da corrida.

82
MARCELLO

Assim, Marcello Caetano era, de longe, o mais bem posi-


cionado, podendo até dizer-se, sem receio de exagero, que se
afigurava verdadeiramente como o único candidato possível
e credível, quer pela longevidade da sua colaboração com o
regime, quer pelo prestígio que acumulara nos cargos que
exercera e na Universidade, quer pela projecção que detinha
no país e no estrangeiro, quer pela rede de fiéis e de apoian-
tes que tecera ao longo de décadas. Para os seus adversários
– ou, melhor dito, inimigos –, nada disto possuía especial re-
levância ante a trajectória passada de Caetano, marcada por
constantes gestos de desalinhamento e ruptura com Salazar,
e, bem assim, ante a fama de «esquerdista» que granjeara até
a suspeita de que conspirara contra o Presidente do Conse-
lho.
No espírito de Thomaz, e dos «ultras» que o rodeavam, o
maior receio prendia-se com o futuro do Ultramar. É essa, e
só essa, a garantia que o Presidente pretende obter antes de
o nomear, alegando que as Forças Armadas lhe tinham pos-
to como condição, para aceitarem a designação de Marcello,
que não só se mantivesse a política de defesa do Ultramar
– leia-se: a guerra colonial em curso – como se evitasse qual-
quer veleidade de experimentar uma solução federativa.
Colocado perante esta imposição, Marcello terá tentado
aumentar o seu espaço de manobra, dizendo que as próximas
eleições de 1969 seriam «a oportunidade de deixar a Nação
exprimir o seu ponto de vista quanto ao Ultramar.» O diálo-
go a seguir travado, de acordo com a recordação de Caetano,
foi assaz eloquente:

«-Se a votação fosse favorável à política de Defesa


que estava em curso, muito bem… Se não…

83
RETRATOS POLÍTICOS

– Se não, as Forças Armadas intervirão, interrom-


peu o Presidente da República.»

O psicodrama da sucessão de Oliveira Salazar acabou por


ser um elucidativo retrato do jogo de simulacros e oculta-
ções que, por obra do ditador, sempre caracterizou o Estado
Novo. Marcello procurou esconder à outrance o seu velho
desejo de alcançar a chefia do governo, mostrando-se desa-
pegado pelo poder, chegando a dizer, em carta a Santos Cos-
ta, «não sou candidato, não dei um passo, não embaracei o
caminho a ninguém, e sinceramente peço a Deus que inspire
bem quem tenha de escolher e o faça desviar os olhos para
outro.» Thomaz, de seu lado, relata os factos, já após o 25 de
Abril, como se tivesse tido um papel secundário no processo
de escolha, sendo tudo responsabilidade alheia: na sua versão
dos acontecimentos, foram as personalidades por si consul-
tadas, não ele, quem elevou Caetano ao governo, do mesmo
passo que foram as chefias militares, não ele, quem impôs a
continuidade da política ultramarina. O que pode dizer-se, e
não é pouco, é que, não sendo o ideal, Marcello era, de todos
os candidatos, o mais certo e seguro, aquele que, na pers-
pectiva de Thomaz, dava mais garantias de ser capaz de, em
simultâneo, conquistar o apoio do país e prosseguir a obra
do antecessor.
Em face disto, de pouco serve especular, ao modo da «His-
tória virtual», como teriam sido as coisas se acaso tivesse sido
outro o escolhido. É muito provável, quase certo, que ne-
nhum dos candidatos alternativos teria sido capaz de evitar
a queda do regime. Desde logo, porque nenhum deles pre-
tendia, ao menos a breve trecho, pôr termo à guerra de Áfri-
ca, o nó górdio do Estado Novo. E, mesmo que o quisesse,

84
MARCELLO

dificilmente teria margem para tanto, como o exemplo de


Marcello Caetano exuberantemente mostrou.
A exiguidade do espaço de acção deste último – e do esta-
do de espírito de Américo Thomaz quando o nomeou – fica
bem patente na comunicação que o Presidente faz ao país, no
dia 26 de Setembro de 1968. Nela, Thomaz passa em revista o
processo clínico de Salazar, a intervenção cirúrgica a que foi
sujeito, a «grave enfermidade que o prostrou em estado de
coma», a ansiedade que tudo causou no coração de milhões
de portugueses. Também ele falava aos seus compatriotas de
peito aberto, confessando-lhes que, naqueles dias, vivera di-
lacerado entre a emoção e a razão, o afecto e o dever: «tem-se
debatido o chefe do Estado, há dez dias, entre os seus sen-
timentos afectivos e de gratidão que, quanto maiores mais
honram o homem, e aqueles que a razão e o dever impõem
neste momento crucial da vida da Nação.»
Os superiores interesses do país impediam que se adiasse
mais a resolução do problema, mas a sombra de Salazar era
tão forte e intensa que Thomaz chega mesmo a convocar a
sua vontade presumida, dizendo saber que, se acaso tivesse
podido pronunciar-se, Oliveira Salazar teria dado o seu pleno
acordo à solução encontrada. Resta saber, porque o almiran-
te optou por um registo críptico e não o disse expressamente,
em que concordava Salazar ao certo, se na sua substituição, se
na escolha de Marcello Caetano.
Quanto a este, o decreto de designação limita-se a referir
o seu nome, sem mais considerandos, ao passo que Salazar é
louvado como «Português inconfundível no pensamento e na
acção» e «Benemérito da Pátria», que serviu durante mais de
quarenta anos, de tudo abdicando, «numa renúncia completa
e única em toda a nossa História de mais de oito séculos.»

85
RETRATOS POLÍTICOS

Bastaria este confronto – de um lado, um génio, do outro,


um homem vulgar – para percebermos que, por muito que
Marcello se esforçasse, só podia correr mal. E correu.

86
MARCELLO

«NÃO PERCEBO PORQUE É QUE ME


FORAM BUSCAR. ISTO NÃO TEM SAÍDA.
PORQUE É QUE NÃO FORAM BUSCAR
O [ANTUNES] VARELA OU O FRANCO
NOGUEIRA, ESSES SABEM O QUE
É QUE QUEREM FAZER…
ISTO NÃO TEM SOLUÇÃO.»

87
PRIMAVERA
E OUTONO

P or uma cruel ironia, Marcello Caetano almejou o poder


durante décadas, mas acabou por recebê-lo numa altura
em que pouco ou nada conseguiria fazer com ele.
Ironia tanto maior – e mais cruel – quanto tinha sido um
dos primeiros e mais sonoros críticos dos rumos que o Es-
tado Novo vinha levando, nomeadamente quanto à perda
da vitalidade das organizações e das forças que lhe serviam
de suporte. Na presidência da Comissão Executiva da União
Nacional, pôde aperceber-se, desolado, que ela não passava
de uma organização sonolenta, só desperta nos períodos elei-
torais, limitando-se no resto do tempo a ser um entreposto
de cunhas e favores entre os caciques da província e o poder
central. A juventude, que conhecia de perto das aulas e das
funções de reitor da Universidade de Lisboa, perdera há mui-
to o entusiasmo pelo regime e agora, com o eclodir da guer-
ra, passara-se toda ou quase toda para o lado da oposição,
exceptuando um punhado de radicais, mais salazaristas do
que Salazar. A candidatura de Delgado, em 1958, bem como
as sucessivas tentativas de golpe militar – da Mealhada, em

89
RETRATOS POLÍTICOS

1947, até à Abrilada de 1961, e à revolta da Sé, do mesmo ano


– mostraram que o Exército não era uma força monolítica,
inteiramente alinhada com o regime. E, ao contrário do que
sucedera nos anos 30, não existiam nem uma «doutrina» nem
um conjunto de princípios capazes de mobilizar as massas, as
quais, cumprindo o desiderato de Salazar, se limitavam a vi-
ver habitualmente, o que poderia garantir a ordem nas ruas e
a tranquilidade nos lares, mas que não era, de forma alguma,
um programa ou uma fórmula política capaz de resistir aos
embates do século, agora patentes nas novas independências,
na mudança de atitude da administração americana, após a
ascensão de Kennedy à Casa Branca, nas transformações ve-
rificadas no seio da ONU, na sequência da entrada das jovens
nações africanas e asiáticas. Até a Igreja mudava, com o Con-
cílio Ecuménico do Vaticano II, de 1962-1965, e os pontifi-
cados de João XXIII e de Paulo VI.
No meio de tudo isto, o Portugal de 1968 debatia-se com
uma guerra travada em três frentes, a milhares de quilóme-
tros de distância, e em territórios onde existiam comunida-
des numerosas de etnia branca, com raízes na Metrópole (em
1974, havia 600 a 700 mil brancos em Angola e 350 mil em
Moçambique). Além da manutenção do território, e da pre-
servação da presença portuguesa em África, o destino dos
que aí viviam foi uma das maiores preocupações de Marcel-
lo, talvez mesmo a maior, sobretudo após o seu périplo pelas
colónias, em 1969, de onde regressou com a firme e inabalá-
vel convicção de que não poderia deixar aqueles portugueses
abandonados à sua sorte.
Enquanto isso, milhares e milhares de outros portugueses
abandonavam o país, em busca de melhor sorte. Calcula-se
que 1,43 milhões de pessoas terão deixado o país nos anos

90
MARCELLO

1960-74, tendo mais de 40% saído de Portugal ilegalmente.


«Números incríveis» na expressão de Maria Filomena Móni-
ca; tão incríveis que algumas personalidades não acreditaram
neles. Alfredo de Sousa contava, a este propósito, um episó-
dio curioso: em 1970, a população de Portugal era menor do
que em 1960 e o almirante Américo Thomaz, ao saber das
estatísticas, disse que o censo estava errado e que tinha de se
fazer um outro…
Num sentido inverso, a década de 1960 é marcada por um
surto sem precedentes do sector do turismo. Como César
Moreira Baptista (1915-1982) fez notar no I Congresso da
Acção Nacional Popular, entre 1968 e 1972 o número de es-
trangeiros que entraram na Metrópole subiu 56%, tendo as
dormidas em hotelaria de estrangeiros aumentado, no mes-
mo período, 68%.
Emigração e turismo eram, como então dizia Mário Soa-
res, dois factores de «suma importância de consciencialização
popular», ao implicarem uma abertura ao mundo que o salaza-
rismo tanto temera, mas que, agora, surgia como imparável.
Os meios de comunicação de massas e a difusão planetária de
novos estilos de vida e padrões de consumo de raiz america-
na, mas também de referenciais ideológicos (Gandhi, Luther
King, Mao Zedong, Che Guevara, Fidel Castro), operaram
transformações profundas na sociedade portuguesa, sobre-
tudo entre as camadas mais jovens, num movimento que o
Estado Novo, naturalmente, foi incapaz de conter e, em larga
medida, compreender.

***

91
RETRATOS POLÍTICOS

É frequente dizer-se que o consulado de Marcello Caeta-


no – de Setembro de 1968 a Abril de 1974 – foi marcado por
dois tempos, um allegro primaveril, prenhe de expectativas e
optimismo, e um adagio outonal, carregado de desilusões e de
sombras. A expressão «Primavera marcelista» foi, de resto,
cunhada e amplamente utilizada para caracterizar os primei-
ros tempos de Caetano, que uma idosa de província, depois
de ser cumprimentada por ele numa das suas incursões pelo
país, terá dito, expressivamente, «este Salazar é mais simpá-
tico do que o outro!» Afirmação que, na sua ingénua sabe-
doria, acabava por resumir o drama de Marcello, pois, reco-
nhecendo a sua maior simpatia, acabava por revelar que, no
imaginário do país, do povo e das elites, era tal a marca e a
carga de Salazar que o nome deste se confundia com a pró-
pria ideia de governo da nação.
Entre um e outro, sem dúvida, existiam fundas semelhan-
ças, e não menos afinidades electivas, a maior das quais terá
sido, porventura, o modo como ambos encaravam a demo-
cracia, considerando-a imprestável para servir de modelo de
governo aos povos latinos e, em particular, ao português.
Mesmo os seus mais próximos, incluindo os filhos, não hesi-
tam em afirmar que Marcello Caetano nunca foi democrata
ou crente nas virtudes do sufrágio universal. Mas, mesmo
nesse traço de união entre Salazar e o seu sucessor, talvez
possa dizer-se, simplificando, que aquele era antidemocrata
por ser reaccionário, enquanto Marcello o fazia por ser eli-
tista, profunda e medularmente elitista. Apesar da diferença
geracional que os separava, a grande experiência política que
ambos conheciam – no caso de Marcello, a única – era a da
Primeira República, com o seu cortejo de governos atrás de
governos, greves e caos nas ruas, carestias e perseguições à

92
MARCELLO

Igreja. Salazar fora saneado em 1919, Marcello andou pelos


bairros pobres de Lisboa a visitar os desvalidos da pneumó-
nica, eram ambos católicos – ou, melhor dito, militantes ca-
tólicos – e a repulsa que ambos tinham pela democracia e
pelo liberalismo político muito deve à trajectória biográfica
de um e doutro.
De igual sorte, eram ambos conservadores, quer no pla-
no da moral e dos costumes, quer na visão que tinham do
mundo e dos homens, marcada por um evidente pessimismo
antropológico, talvez mais acentuado no caso de Salazar do
que de Caetano. Ainda assim, o conservadorismo de Salazar
era profundamente rural, ou ruralista, enquanto Marcello
era um homem nado e criado na cidade – na cidade de Lisboa
– e, como tal, eminentemente urbano. Salazar formara-se no
seminário, Marcello crescera no ambiente fervilhante dos
cafés e das redacções de jornais, do associativismo católico,
dos grupos radicais de estudantes.
Além disso, um mar de diferenças: Marcello tinha mu-
lher e filhos, uma família de quem era próximo, gostava do
confronto de ideias, convivia com sogro republicano e apre-
ciava liderar e coordenar equipas, mobilizar a «juventude»,
em claro contraste com o seu antecessor, um solitário que
raramente convocava conselhos de ministros, preferindo
trabalhar tête-à-tête com um ou dois interlocutores, no máxi-
mo. Governava o país a partir do seu gabinete em São Bento,
com horários seguidos ao milímetro, num culto da previsibi-
lidade que levara Cerejeira a dizer-lhe, quando eram ambos
estudantes, «és um animal de hábitos!» Marcello, ao invés,
gostava de se projectar como um governante cosmopolita e
moderno, como um «fazedor» reformista, que viajara pelas
colónias, que se deslocava com frequência ao estrangeiro

93
RETRATOS POLÍTICOS

para reuniões internacionais ou colóquios académicos, que


se deslocava pelo país inteiro, apreciando o contacto directo
com as populações.
Porventura, a maior diferença entre os dois chefes de
governo do Estado Novo decorre de um factor político es-
sencial, o tempo. Oliveira Salazar é designado Presidente do
Ministério com 43 anos, Caetano foi nomeado com 62 anos
e, obviamente, em circunstâncias políticas muito diversas:
Salazar no rescaldo das confusões da Primeira República e
da Ditadura Militar, numa altura em que o país ansiava por
ordem e paz nas ruas e em que se iniciava um regime novo,
dotado de uma Constituição e de instituições criadas ab initio
pelo ditador, enquanto Marcello recebe o poder em condi-
ções muito mais adversas, ademais das mãos de um Presi-
dente hostil, com três frentes de guerra sem fim à vista, um
regime desgastado e com evidentes sinais de cansaço, uma
sociedade civil a cada dia mais desalinhada com os rumos do
Estado Novo, ora rebaptizado de «Estado Social». Também
o contexto internacional era muito diverso – e muito mais
desfavorável a Marcello Caetano: Salazar subira ao poder na
«era das ditaduras», um tempo em que os regimes e os go-
vernantes «fortes» de direita eram aclamados pelos seus cida-
dãos ou tolerados pelas democracias da Europa e da América
como um antídoto possível contra o bolchevismo e o caos;
Marcello toma posse no ano do Maio de 1968 em Paris, da
ofensiva do Tet, no Vietname, dos assassinatos de Luther
King e de Robert Kennedy, do esmagamento da «Primavera
de Praga» pelos tanques soviéticos, da eleição de Nixon para
a Casa Branca. Na frente interna, e como se não bastasse a
guerra, um surto de greves e protestos laborais, conflitos na
Universidade de Coimbra, o ascenso da luta armada, com a

94
MARCELLO

operação «Montes Hermínios», da LUAR, na cidade da Co-


vilhã.
Em face de tudo isto, a Marcello faltou, acima de tudo,
espaço e tempo políticos para definir e pôr em prática um
«programa» coerente, capaz de superar os muitos bloqueios
do regime herdado de Salazar. Além da aceleração do tem-
po, motivada pelo avançar da guerra e por uma conjuntura
internacional cada vez mais adversa, o novo chefe do gover-
no defrontava-se com uma progressiva compressão do seu
espaço político. Sendo inteligente e sagaz, é provável que
tenha tido consciência de que não dispunha nem de tempo
nem de espaço para reformar o regime. Sintomaticamente,
pouco antes de tomar posse confidenciou a Miguel Galvão
Teles, seu assistente na Faculdade de Direito: «não percebo
porque é que me foram buscar. Isto não tem saída. Porque é
que não foram buscar o [Antunes] Varela ou o Franco No-
gueira, esses sabem o que é que querem fazer… isto não tem
solução.» Américo Thomaz, pelo contrário, não parecia ter
idêntica consciência do ocaso do regime a que presidia e, ao
que parece, terá dito a pessoas próximas, justificando a es-
colha de Caetano, «o primeiro é para queimar», como se o
Estado Novo ainda tivesse tempo e espaço políticos para en-
saiar mais duas ou três alternativas políticas. Outro equívoco
foi ter julgado, ao que parece a conselho do seu amigo Duarte
Amaral (1909-1979), que, se acaso as coisas corressem mal
a Marcello, só este seria responsabilizado, ao passo que, se
tivesse escolhido um outro nome, ele próprio seria culpado
pelo desastre. Que um chefe de governo fosse nomeado com
base num pressuposto tão pessimista – o de que, fosse qual
fosse o escolhido, existia uma elevada probabilidade de um
desenlace fatídico – diz-nos muito sobre o estado a que o Es-

95
RETRATOS POLÍTICOS

tado Novo chegara, bem como sobre o estado de espírito das


suas principais elites. É significativo, também, que Thomaz
tenha alimentado a ilusão de que poderia resguardar-se de um
eventual mau resultado de Caetano, com isso mostrando não
ter sido capaz de ler a lógica do sistema de governo inscrito na
Constituição de 1933, que claramente apontava para uma co-
-responsabilização dos chefes de Estado e de governo e, pior
ainda, mostrando que não sabia ler os sinais do tempo, que
inequivocamente apontavam para que, falhando Marcello,
todo o regime soçobraria.
Ainda assim, este dispôs de um amplo, amplíssimo, capi-
tal político quando ascendeu ao poder. De todos os possíveis
candidatos à sucessão de Salazar, era o que contava com o
maior apoio dos grandes grupos económicos, designada-
mente do grupo Espírito Santo e a sua chegada ao poder foi
recebida com jubilosa esperança pela opinião pública, inclu-
sive entre personalidades ou sectores desde sempre críticos
do Estado Novo. Vasco da Gama Fernandes (1908-1991),
José Ribeiro dos Santos, Raul Rego (1913-2002), Abranches
Ferrão (1908-1985), António Alçada Baptista (1927-2008) e
até Mário Soares encararam com benevolente expectativa a
abertura ensaiada por Marcello, que recorreu a uma fórmu-
la compósita e equívoca – a da «renovação na continuida-
de» – que pretendia congregar o maior número de apoios,
num arco que ia desde os herdeiros de Salazar até aos que o
combateram desde longa data. O tempo, porém, era de ra-
dicalização crescente e, como tal, prestava-se pouco a estas
quadraturas do círculo.
Do consenso inicial em torno de Marcello Caetano afas-
taram-se, em curiosa convergência, quer os «ultras» do sa-
lazarismo, quer o Partido Comunista Português, nenhum

96
MARCELLO

deles dando crédito ao novo Presidente do Conselho. Por


tibieza ou falta de espaço político, este dá dois sinais que, na
altura, não foram devidamente avaliados ou, talvez melhor,
que acabaram submergidos pelo eufórico «estado de graça»
que rodeou a sua ascensão política. Salazar, recorde-se, fize-
ra uma importante remodelação em Agosto de 1968 e, to-
mando posse no mês seguinte, Marcello acabou por manter
quase todos os ministros, inclusive José Hermano Saraiva
(1919-2012) na Educação, Correia de Oliveira na Econo-
mia e até Franco Nogueira nos Negócios Estrangeiros (este,
aliás, só aceitou permanecer no governo por pressão do pró-
prio almirante Thomaz). Continuaram Gonçalves Rapazote
no Interior, Dias Rosas nas Finanças, Bettencourt Rodri-
gues no Exército, Pereira Crespo na Marinha, Silva Cunha
no Ultramar, Canto Moniz nas Comunicações e Gonçalves
Proença nas Corporações e Previdência Social. Rostos no-
vos, trazidos por Marcello, eram apenas os de Alfredo Vaz
Pinto (Presidência), Sá Viana Rebelo (Defesa Nacional),
Cancela de Abreu (Saúde e Assistência). Rui Sanches (1919-
2009), antigo subsecretário de Estado das Obras Públicas,
era elevado a ministro desta pasta, mas, num cômputo glo-
bal, este era muito mais um executivo de Salazar do que de
Caetano, que, logo ao iniciar funções, deu um sinal inequí-
voco de que, pelo menos nesta fase, preferiu claramente uma
linha de continuidade a uma ideia de renovação, mesmo que
isso o forçasse a abdicar de nomes que pretendia ter no seu
executivo, como Rogério Martins (1928-2017) nas Comu-
nicações, Venâncio Deslandes (1909-1985) na Defesa e, se-
gundo alguns, Francisco Pereira de Moura (1925-1998) na
Indústria, como refere Luís Menezes Leitão na sua biografia
de Marcello Caetano.

97
RETRATOS POLÍTICOS

O outro sinal revelador foi o discurso de tomada de pos-


se como novo Presidente do Conselho, no qual Marcello se
diminuiu em termos absurdamente excessivos perante o seu
antecessor, avisando que, desaparecido um «homem de gé-
nio», o país deveria habituar-se a ser governado por «ho-
mens como os outros.» Para além disso, e mais importante
do que isso, todo o discurso é construído em tons pessimistas
e sombrios: em lugar de anunciar ao que vinha e qual o seu
programa, o novo governante optou por falar das «dificul-
dades desta nova fase da vida constitucional», das «pesadas
funções do Governo», do «esmagador encargo» que pesava
sobre os seus ombros, do «inimigo insidioso» que nos es-
preitava nas selvas de África, da necessidade de «cerrar fi-
leiras aquém e além-mar», dos «ciclópicos trabalhos» que o
aguardavam. Para o futuro próximo, prometia «assegurar a
normalidade da vida nacional» e «garantir a continuidade da
administração pública», bem como «reduzir os factores de
crise.» Timidamente, foi dizendo que mesmo Salazar mudara
por vezes de rumo, fizera ensaios de reformas, e, por isso,
não poderia o país – e os «ultras» – julgar que a continuidade
significava «apego obstinado a fórmulas ou soluções» do pas-
sado. Haveria renovação, portanto, mas no devido tempo e a
prazo. Por ora, e procurando tirar partido do seu «estado de
graça», Marcello dizia que vivíamos em «situação de emer-
gência» e, como tal, pedia sacrifícios a todos, «inclusivamen-
te nalgumas liberdades que se desejaria ver restauradas.»
Nesta peça oratória, e como se vê, uma tentativa de aplacar
em simultâneo os receios de salazaristas e de liberais: quan-
to aos primeiros, garantindo o esforço militar e diplomático
na defesa de África e a continuidade do legado político de
Salazar, para os segundos, pedindo paciência e tempo, com

98
MARCELLO

a vaga promessa de que algumas liberdades iriam ser «res-


tauradas» (o uso desta expressão é, de resto, extremamente
singular e curioso, porquanto pretende significar, ao menos
implicitamente, que existiu um feixe de direitos e liberdades
fundamentais que a República consagrara e o Estado Novo
pusera em crise.) Simplesmente, enquanto a garantida de
continuidade era actual e imediata, a promessa de liberdade
ficava remetida para um futuro incerto e sempre duvidoso.
E, mais grave do que isso, Marcello abdicava de anunciar o
seu programa político, não indo além de um enunciado de
ideias vagas e nebulosas, o que permite concluir que, muito
provavelmente, iria ter um programa aberto e aproximativo,
moldado segundo as circunstâncias do momento e o que es-
tas lhe permitissem fazer.
Assim, e contrariamente à ideia de dois tempos – o pri-
maveril e o outonal –, ou em paralelo com ela, o momento
inicial de Marcello é, sobretudo, o de compromisso com o
passado salazarista, talvez porque pressentisse que era daí, do
lado dos «ultras», que vinham as maiores ameaças, enquanto
os «liberais» se encontravam, por ora, em lua-de-mel com a
sua chegada ao governo.
O modo precário como esta se processara inviabilizou
que pudesse apresentar-se com uma linha de acção defini-
da e com um elenco governativo da sua confiança, podendo
dizer-se que esse «pecado original» do marcelismo não só
marcou o seu código genético como se prolongou até à ren-
dição do Quartel do Carmo, no dia 25 de Abril. Ao contrário
do que uma visão excessivamente personalizada pode levar a
crer, atribuindo a derrocada do regime à «indecisão hamle-
tiana» de um intelectual devorado pelos seus fantasmas,
o problema essencial de Marcello Caetano foi a ambiguidade

99
RETRATOS POLÍTICOS

de propósitos, a nebulosa que alimentou sobre o que verda-


deiramente pretendia em torno de questões essenciais, com
destaque para o futuro do Ultramar. É pouco credível que
visasse ser o patrono de uma transição para um regime de-
mocrático, como é pouco credível que pensasse numa futura
independência de «novos Brasis»3. Se tudo isso acontecesse,
não seria sob os seus auspícios, e menos ainda enquanto che-
fiasse o governo.
As mudanças que operou – como a conversão da União
Nacional em Acção Nacional Popular ou da PIDE em Direc-
ção-Geral de Segurança – não seriam, no seu espírito, mera-
mente onomásticas ou cosméticas, ao contrário do que logo
disseram os seus adversários políticos. É legítimo supor que,
até pela experiência decepcionante que tivera na presidência
da Comissão Central da UN, Marcello pretendesse criar uma
organização mais sólida e actuante para apoiar o regime, fa-
zendo-o evoluir para uma autocracia mais soft e, sobretudo,
com maiores liberdades em certos domínios ou, mais preci-
samente, com maiores garantias jurídicas contra os excessos
e os abusos do poder.
Antes mesmo de ser nomeado, no diálogo que travou em
Belém com Thomaz, afirmou que as eleições de 1969 iriam
ser «a oportunidade de deixar a Nação exprimir o seu pon-
to de vista quanto ao Ultramar.» Não muito depois, numa
carta ao seu amigo Baltazar Rebelo de Sousa, dirá substan-
cialmente o mesmo, afirmando que aquele sufrágio iria ser
«o plebiscito do regime e a sanção da política ultramarina.»
3 Num famoso «Memorial», escrito em 1962, Marcello ousara propor uma federação
de «Estados Portugueses Unidos» entre Portugal, Angola e Moçambique e, na revisão
constitucional de 1971, conseguiu que os territórios ultramarinos tivessem o estatuto
de regiões autónomas, o qual, todavia, era conceptualmente difuso e, em rigor, nunca
saiu do papel: cf. António Duarte Silva, O Império e a Constituição Colonial Portuguesa
(1914-1974), Lisboa, 2019.

100
MARCELLO

Porém, e uma vez mais, tratava-se de um projecto ambíguo,


de contornos nebulosos, uma vez que, não sendo as eleições
livres (Marcello pretendia apenas que fossem «correctas»),
delas jamais poderia resultar um sinal credível, transparente
e autêntico, do que pensavam os portugueses sobre a política
ultramarina seguida pelo governo, eufemismo para a guerra
colonial então em curso. Por outro lado, e em bom rigor, os
que eram chamados às urnas não sabiam ao certo que política
estava em causa, então e nos anos vindouros: manutenção
a todo o custo do statu quo? Transição para uma maior au-
tonomia? Possível independência a médio ou longo prazo?
E, como se não bastasse, Américo Thomaz avisara, sem ter-
giversar, que, se acaso os resultados eleitorais fossem des-
favoráveis ao regime, as Forças Armadas interviriam para
repor as coisas no devido lugar, ou seja, o da manutenção à
outrance do esforço de guerra. No dia 26 de Outubro de 1969,
quando se dirigiram às urnas, os portugueses, muito prova-
velmente, ignoravam esta chantagem, mas Marcello tinha-a
bem presente, facto que, entre tantos outros, terá condicio-
nado significativamente a sua conduta política.
Como se esperava, os resultados foram esmagadoramente
favoráveis à Acção Nacional Popular (ANP), que arrecadou
88% dos votos, contra 10% da Comissão Democrática Elei-
toral (CDE), próxima do PCP, 1,9% da Comissão Eleitoral
de Unidade Democrática (CEUD), embrião do Partido So-
cialista, e 0,8% da Comissão Eleitoral Monárquica. Ainda
assim, a oposição triunfou em algumas freguesias de Alma-
da, do Montijo, de Palmela e do Seixal e, em Setúbal, a CDE
conquistou 34,7% dos votos. As eleições – ou, melhor dito,
a campanha que as precedeu – permitiram à oposição, mais
do que difundir as suas ideias e os seus programas, implantar

101
RETRATOS POLÍTICOS

as suas estruturas no terreno, criar redes capazes de durarem


para além do período eleitoral. Mais decisivamente ainda,
o suposto efeito legitimador ou plebiscitário que Marcello
Caetano almejava era posto em causa seja pela reduzida di-
mensão do corpo eleitoral (entre os 9,5 milhões de habitan-
tes de Portugal Continental e Ilhas, só existiam 1,8 milhões
de recenseados, o que correspondia a 29% da população com
mais de 21 anos), seja, acima de tudo, pela elevada taxa de
abstenção, que atingiu os 38,4% (há quem fale em 42%), isto
é, 18,4% da população recenseada maior de idade no Conti-
nente, nos Açores e na Madeira.
Os resultados decepcionantes da CEUD de Mário Soares,
com 1,9% dos votos, tiveram um outro efeito, profundo e re-
levantíssimo: para as elites do regime, mesmo as mais avan-
çadas – e para Marcello Caetano, em particular –, o sufrágio
de 1969 inculcava a ideia de que era inviável uma alternativa
moderada ao Estado Novo; ou seja, caso este falhasse, vi-
riam os comunistas e o caos, razão que por certo terá pesado,
e muito, no espírito do Presidente do Conselho, que saiu
desta refrega eleitoral sentindo-se ainda mais isolado e contra
mundum – mas tendo sobre os seus ombros a hercúlea tarefa
de impedir a derrocada do regime e o triunfo dos esbirros de
Álvaro Cunhal. É então que promove encontros informais
com os seus colaboradores na Faculdade de Direito – Diogo
Freitas do Amaral, André Gonçalves Pereira (1936-2019),
Miguel Galvão Teles (1939-2015) – e outros quadros, como
João Salgueiro, Caetano de Carvalho, Jorge Tavares Rodri-
gues, Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004) ou o jovem
Marcelo Rebelo de Sousa, nos quais ouviu, com inteira aber-
tura, críticas à actuação da PIDE e da Legião Portuguesa no
acto eleitoral que acabara de findar, bem como uma transfor-

102
MARCELLO

mação histórica do regime através da institucionalização de


partidos políticos, rumo a uma democracia de tipo ocidental,
projecto que Marcello tinha por inviável, ao menos enquan-
to fosse ele a mandar.
Uma das grandes novidades das eleições de 1969 fora o
aparecimento, pela mão de José Guilherme de Melo e Cas-
tro, presidente da ANP escolhido por Caetano, de um gru-
po de jovens deputados, logo denominados de «ala liberal»,
muitos dos quais viriam a ter uma carreira política de relevo
no pós-25 de Abril, como Francisco Sá Carneiro, Francis-
co Pinto Balsemão, Joaquim Magalhães Mota (1935-2007)
ou João Bosco Mota Amaral. Não é claro se era com base
neles – e dos «tecnocratas», como Rogério Martins ou João
Salgueiro – que Marcello pensava reformar o regime, desde
logo porque não é claro em que termos, e sobretudo a que
ritmos, pensava ele proceder a essa reforma. Os jovens «libe-
rais» serviam-lhe, isso sim, para contrabalançar o poder dos
«ultras», para transmitir ao país e ao estrangeiro a ideia de
que o regime tolerava uma «oposição semilegal» no seu seio,
sendo esse outro dos equívocos do marcelismo, o de supor
que o Estado Novo era passível de se renovar a partir de den-
tro, quando a questão ultramarina inviabilizava por inteiro
tal hipótese, como, de resto, Thomaz e os «ultras» bem intuí-
ram: para estes, manter a guerra não visava apenas conservar
as colónias ultramarinas e a presença portuguesa em África,
mas também, ou sobretudo, garantir a sobrevivência do re-
gime na Metrópole.
Quanto aos «liberais», cedo se tornou evidente que não
estavam em São Bento para defender a política de Marcello,
mas para concretizar o seu próprio programa, o qual passava,
naquela fase, por um incremento das liberdades e garantias

103
RETRATOS POLÍTICOS

fundamentais, em domínios como a imprensa, as garantias de


defesa em processo criminal e a situação prisional do país. A
morte do seu líder, José Pedro Pinto Leite (1932-1970), num
trágico desastre de avião na Guiné-Bissau, em Julho de 1970
(a juntar à morte de Melo e Castro, por doença, em 1972),
bem como os sucessivos desaires averbados nas diversas ba-
talhas políticas que então travaram, com destaque para a da
Lei de Imprensa e para a da revisão constitucional de 1971,
agudizaram o desencanto destes «jovens turcos», que ora se
demitiram dos seus lugares (casos de Sá Carneiro e Miller
Guerra, no início de 1973), ora não integraram as listas para o
sufrágio de Outubro de 1973, naquele que foi um insofismá-
vel sinal, mais um, do fechamento e do bloqueio do regime.
Às tantas, Marcello passou a considerar que os «liberais» o
tinham traído, um sentimento que diz muito sobre o seu esta-
do de espírito nos anos finais do regime e que evidencia uma
realidade nua e crua: apesar de ter contado, no momento da
sucessão, com um amplo leque de apoios, e apesar de conti-
nuar a ter uma invejável popularidade entre vastas camadas
da população portuguesa, patente nas frequentes visitas que
fazia pelo país, o facto é que não existia um «partido marce-
lista», pelo menos em número e intensidade suficientes para
lhe permitirem vencer o fantasma de Salazar e da sua sombra.
Quanto a este, curiosamente, Marcello foi implacável,
mostrando uma capacidade de decisão e um espírito florenti-
no que devem surpreender os seus críticos. Além de ordenar
que os jornais não dessem notícias sobre melhorias do estado
de saúde de Salazar, o seu biógrafo Luís Menezes Leitão ga-
rante que, ao deslocar-se ao hospital, para visitar o ditador em
agonia, Caetano terá dito ao pessoal clínico que não deveria
sacrificar o cuidado a situações mais urgentes em benefício

104
MARCELLO

de doentes moribundos e, num assomo de maquiavelismo,


terá promovido, através de Ramiro Valadão (1918-1997),
presidente da RTP, uma entrevista a Salazar, em Abril de
1969, por ocasião do seu 80.º aniversário, a qual demonstrou
urbi et orbi, e em termos patéticos, a decrepitude física e men-
tal do ditador, que será confirmada não muito depois, numa
outra e famosa entrevista, esta concedida ao jornalista Ro-
land Faure, do L’Aurore. Nela, Salazar falava como ainda fosse
Presidente do Conselho, até porque ninguém se atrevera a
comunicar-lhe que fora exonerado e substituído por Mar-
cello, e, quanto a este, deixou afirmado que era «um homem
que gosta do poder pelo poder. Nestas condições, considerei
que não podia ficar ao meu lado.» Falando sem inibições nem
filtros, Salazar exprimia agora o que verdadeiramente pensa-
va – e, provavelmente, pensava há muito – do seu sucessor,
num retrato impiedoso, mas não inteiramente destituído de
fundamento: «Ele gosta do poder: não para retirar quaisquer
benefícios pessoais ou para a família, é muito honesto. Mas
gosta do poder pelo poder. Para ter a impressão exaltante de
deixar a sua marca nos acontecimentos.»

***

«É uma pena que, se calhar, mudem lá para baixo. O sr.


Prof. é um bom freguês…» – dizia Alfredo Marques Ribeiro,
padeiro, entrevistado à porta da moradia de Marcello Cae-
tano, na Rua Duarte Lobo, bairro de Alvalade, quando aí se
deslocou para entregar a habitual encomenda de carcaças.
Como nota Luís Menezes Leitão, o facto de um jornal
como o Diário de Lisboa fazer uma reportagem sobre o dia-a-
-dia do novo chefe do executivo e, mais ainda, o facto de este

105
RETRATOS POLÍTICOS

se dispor a desvendar o seu quotidiano de modo tão franco e


tão aberto eram indício de um novo estilo de governação, em
claro contraste com a «retórica da invisibilidade» (José Gil)
que caracterizara o consulado de Salazar.
Marcello deixava-se fotografar em casa, na companhia dos
filhos e dos netos, sabia lidar com a imprensa, gracejava com
os repórteres e, ao contrário do antecessor, viajava amiúde
pelo país, onde era alvo de oportunos banhos de multidão,
uma tarefa que, até então, estava reservada ao chefe do Es-
tado. Muito provavelmente, Thomaz terá pressentido que
Caetano lhe disputava o terreno, no qual, aliás, se mostra-
va muito mais à-vontade do que ele, famoso pelos seus ine-
narráveis discursos, que os jornais do «contra» publicavam
na íntegra e sem comentários, como que a evidenciar que
o almirante morria pelas suas próprias palavras… E, sobre
Thomaz e os seus escassos de oratória, Marcello tinha outra
vantagem, o uso da televisão para regulares «Conversas em
Família», nas quais, em tom professoral e pedagógico, expli-
cava aos portugueses os rumos da acção governativa.
Seis meses depois de ter tomado posse, e após ter convi-
vido com um executivo em larga medida ditado por Salazar,
Marcello procedeu, enfim, à formação do «seu» governo,
para o qual entraram Dias Rosas para a pasta da Economia
(em substituição de Correia de Oliveira), Alberto de Oliveira
para as Comunicações (em lugar de Canto Moniz), Rogé-
rio Martins como secretário de Estado da Indústria, Xavier
Pintado como secretário de Estado do Comércio e João Sal-
gueiro (1934-2023) como subsecretário de Estado do Planea-
mento Económico4. Juntava-se a este trio Joaquim Silva Pin-
4 Na biografia Marcello Caetano – Um Destino afirma-se que João Salgueiro foi designado
subsecretário de Estado das Obras Públicas, quando o foi como subsecretário de Estado
do Planeamento Económico, funções que exerceu até 30 de Outubro de 1971.

106
MARCELLO

to (1935-2022), subsecretário de Estado das Obras Públicas,


num conjunto de jovens «tecnocratas» com os quais Marcello
pensava imprimir uma nova dinâmica à governação do país.
Curiosamente, Franco Nogueira mantém-se nesta remode-
lação de Março de 1969, só sendo exonerado em Outubro
desse ano – e substituído interinamente por Caetano até Ja-
neiro de 1970, data em que tomou posse Rui Patrício (1932-
2024). Esta não será a última remodelação governamental do
marcelismo, mas, mais do que elas, o que importa assinalar é
que, à semelhança dos deputados da «ala liberal», também os
«tecnocratas» abandonarão o executivo, com João Salgueiro
a sair em 1971, Alexandre Vaz Pinto em 1972, José Luís No-
gueira de Brito em 1972, Valentim Xavier Pintado em 1972,
Silva Pinto em 1973. Para um regime que prezava a ordem
e a estabilidade, os governos de Marcello tiveram uma com-
posição volátil, outro sinal bem expressivo da crise que os
atravessava.
Ainda assim – e esse é, porventura, o ponto mais positi-
vo que podemos creditar-lhe –, Marcello Caetano revelou-
-se, uma vez mais, um notável «fazedor», legando uma obra
que impressiona pela quantidade de realizações e, sobretudo,
pela diversidade dos domínios por que se espraiou. Na rea-
lidade, e seja qual for o juízo que façamos sobre a sua perso-
nalidade política, é facto indesmentível que Marcello deixou
marca em todos os cargos que desempenhou. Nas Colónias,
em tempos idos, e como sublinha Vasco Pulido Valente no
ensaio que lhe dedicou, reviu o Acto Colonial num sentido
«liberalizante», criou a Hidroeléctrica do Revué e o Fundo
de Fomento de Angola, ajudou a formar a Agência Lusitânia
e a estabelecer voos regulares da TAP para África, aboliu o
«imposto de mulher» em Moçambique, entre outros feitos.

107
RETRATOS POLÍTICOS

Como ministro da Presidência, acompanhou os planos de fo-


mento, promoveu a criação da RTP, foi participante activo
em cimeiras da NATO e da OECE, entre outras.
Agora, na chefia do governo, fez um notável esforço de
modernização, ainda que talvez seja exagerado dizer-se que
«Marcello tirou o país do passado», como afirma Vasco Puli-
do Valente, antes de enumerar as muitas realizações alcança-
das: acabou com o «condicionamento industrial», primeiro
na prática, e depois, em 1972, na lei; conseguiu para Por-
tugal o estatuto de membro associado do Mercado Comum
(acordo de 1972, tratado de 1973); organizou as contas das
sociedades anónimas e a profissão de revisor oficial de con-
tas; combateu os «monopólios de facto», designadamente o
dos cimentos; lançou os projectos de Sines (presumindo a
existência de petróleo em Angola) e do Alqueva; inaugurou
uma política de combate aos «desequilíbrios regionais» e de
valorização do interior, através dos denominados «pólos» de
desenvolvimento – Nordeste Transmontano, Cova da Beira,
bacia do Mondego, Sines; estabeleceu um novo quadro legal
para as cooperativas agrícolas e atribuiu-lhes benefícios fi-
nanceiros.
No plano social, reformou o ensino num sentido democra-
tizador e estendeu a previdência aos rurais (abono de famí-
lia; assistência e subsídio na doença; subsídio de casamento
e por cada filho que nascia; subsídio de aleitação; e subsídio
de enterro) e, mais tarde, às empregadas domésticas, naquela
que foi uma das obras mais emblemáticas do seu consulado.
Prosseguindo, escreve Vasco Pulido Valente:

«Também a abolição do "imposto de pescado" (cau-


sa de antiquíssimo ressentimento) permitiu que se

108
MARCELLO

melhorassem os "benefícios" dos pescadores e se crias-


sem, enfim, "pensões de sobrevivência" para as viúvas.
Os funcionários públicos tiveram a ADSE, que, devi-
damente financiada, de uma dezena de milhar de ins-
critos em 1968 chegou aos quatrocentos mil em 1973.
E, para acabar este inventário resumido e simplificado,
falta apenas falar da "lei dos solos" (1970), que permi-
tia a expropriação por grosso dos solos urbanos (para
restringir as actividades especulativas) e da política de
habitação social, de resto falhada, de que restam alguns
horríveis bairros-dormitórios e alguns organismos
inúteis, que a Esquerda desde o princípio influenciou.»

No plano político, o seu governo começou por dar alguns


sinais de continuidade, patentes na manutenção do elenco
ministerial herdado de Salazar e no discurso de tomada de
posse, mesclados com gestos renovadores, como a transfor-
mação da União Nacional em Acção Nacional Popular (e no-
meação de Melo e Castro para seu presidente), a autorização
do regresso de Mário Soares e do bispo do Porto, D. Antó-
nio Ferreira Gomes (1906-1989), a abertura manifestada nas
eleições de 1969, às quais concorreram listas de diversos par-
tidos, que, e ao contrário do que era prática, decidiram levar
as suas candidaturas até ao fim.
Noutro domínio sensível, remodelou a polícia política,
agora transformada em Direcção-Geral de Segurança, e fez
alterações no «Exame Prévio». Em ambos os casos, porém, as
mudanças foram meramente cosméticas, ou quase, e, sobre-
tudo na fase final do regime, regressaram os métodos da velha
PIDE e os brutais atropelos à liberdade. Às tantas, diziam os
críticos, em jeito de graça, que, na condução dos destinos do

109
RETRATOS POLÍTICOS

país, Marcello fazia pisca para virar à esquerda, mas acabava


sempre voltando à direita. No pós-25 de Abril, culpabilizou
a «ala liberal», argumentando que fora forçado «a procurar
apoio na ala conservadora da Assembleia», facto da maior im-
portância, «de que os liberais foram os únicos responsáveis»,
como se não tivesse sido ele o responsável último pela decisão
que sinalizou a clausura do regime e a sua incapacidade de re-
forma e de evolução: o apoio à reeleição de Américo de Deus
Rodrigues Thomaz nas presidenciais de 1972.
Os «liberais» e não só pretendiam que Marcello se candi-
datasse, ele próprio, à chefia do Estado e chegaram a sondar
alternativas, como António de Spínola. Outros defendiam
a candidatura de Caetano, como João Salgueiro, Luís Fon-
toura, Marcelo Rebelo de Sousa e José Manuel de Mello. No
final, a ANP acabou por propor o nome do almirante, o qual,
apesar da idade – 78 anos –, se mostrou não só disposto a per-
manecer em funções como totalmente interessado em con-
tinuar a exercê-las. O que mostra, no fundo, que Marcello
e Thomaz se consideravam, cada qual à sua maneira, os guar-
diões do regime ante a ameaça do comunismo e da anarquia.
Neste contexto, sufragar a candidatura presidencial do almi-
rante, ademais para um mandato longo de sete anos, repre-
sentava um triunfo claro, e irremediável, da linha «ultra» e
integracionista, visceralmente avessa a quaisquer reformas
do regime instaurado por Salazar e a uma solução pacífica da
guerra de África.
Tem-se especulado muito sobre o que terá levado Mar-
cello Caetano, neste momento decisivo e fulcral, a apoiar a
reeleição de um Presidente que, ao invés dos seus anteces-
sores, intervinha activamente na vida política e tinha ideias
muito próprias sobre os rumos da governação, quase sempre

110
MARCELLO

contrárias às do chefe do governo. Afirma-se que Marcello


foi fiel ao legalismo de jurista, cumprindo as formas e as prá-
ticas inscritas na Constituição de 1933 (que, todavia, Salazar
violara, ao não propor a reeleição de Craveiro Lopes). Diz-
-se, por outro lado, que na sua decisão – ou indecisão – pe-
saram razões pessoais, como o facto de entender que o chefe
do Estado deveria ter uma primeira-dama para o apoiar nas
suas funções de representação, e que ele, sendo viúvo, não
poderia candidatar-se (o certo é que, em diversas ocasiões,
com destaque para a tumultuosa visita que fez a Londres, em
1973, fez-se acompanhar, e com muito sucesso, pela sua filha
Ana Maria). Além disso, uma questão ética ou de lisura de
comportamento: fora Thomaz a escolher e a indigitar Cae-
tano para chefe do governo, este não iria atraiçoá-lo naquela
hora tão decisiva. E apontam-se, por fim, mas não por últi-
mo, motivos de ordem política: Marcello não se achava ta-
lhado para o cargo de Presidente da República e sabia que,
na lógica da Constituição de 1933, a chave do poder residia
em São Bento, não em Belém. É provável, também, que en-
tendesse que a sua candidatura à Presidência iria criar um
sério problema no regime, ao deixar vago o cargo de chefe do
Governo, para o qual, muito possivelmente, não considerava
ter ninguém à altura. Falara-se nos nomes de Baltazar Rebelo
de Sousa ou de Veiga Simão (1929-2014), mas qualquer deles
era demasiado próximo da sua pessoa para que os «ultras» o
permitissem. Restava o problema das Forças Armadas: como
iriam os militares aceitar, para mais estando o país em guer-
ra, que em quase 50 anos fosse eleito um civil para o mais alto
cargo do Estado?
Neste cenário, o almirante era, apesar de tudo, quem me-
nos sobressaltos causava. Com um Kaúlza de Arriaga (1915-

111
RETRATOS POLÍTICOS

2004) ou um António de Spínola (1910-1996), por exemplo,


havia o risco do desconhecido e, pior ainda, a quase certeza de
que os conflitos seriam ainda mais graves e intransponíveis.
Como conservador que era, e atormentando perante o des-
concerto do mundo, Marcello terá escolhido a solução mais
segura e fiável, aquela que, à excepção do ocorrido em 1958,
Salazar sempre trilhara. Há nisso, sem dúvida, uma certa de-
sistência quanto à possibilidade de renovação do regime, mas
o certo é que, naquela fase, após o desaire das eleições de 1969
e da revisão constitucional de 1971, e sentindo-se atraiçoado
pelos «liberais» e por muitos dos seus próximos, Marcello
Caetano se conformara a uma via de «continuidade», menos
audaz e ousada, sem dúvida, mas mais previsível e segura.
A política dos pequenos passos parece ter sido o grande pro-
jecto de Marcello, rumo a uma transformação do regime num
sentido modernizador e liberalizante, mas não democrático.
Num primeiro momento, resignou-se a surgir como o her-
deiro de um «homem de génio», esperando que as eleições
de 1969 o consagrassem como o incontestável líder do regi-
me e o impusessem em definitivo a Américo Thomaz e aos
nostálgicos do salazarismo. O elevado nível de abstenção
evidenciou que o regime, mesmo com o tímido aggiorna-
mento trazido pelo novo Presidente do Conselho, já não ge-
rava particular entusiasmo, mesmo entre o número restrito
daqueles que podiam votar. Marcello poderia contar ainda,
é certo, com a maioria silenciosa dos portugueses, mas aí resi-
dia o problema: poderia ser uma maioria, mas era silenciosa
– e silenciosa em gritante contraste com o ruído criado pelos
estudantes rebeldes, como ficou patente na crise académi-
ca de 1969, pelos trabalhadores em greve e pelos grupos de
luta armada, que na altura intensificaram as suas actividades:

112
MARCELLO

a LUAR, de Palma Inácio (1922-2009), a ARA, ligada ao PCP,


e as Brigadas Revolucionárias, de Carlos Antunes (1938-2021)
e Isabel do Carmo. À semelhança do que sucedera em França,
onde De Gaulle também beneficiou do apoio de uma maioria
silenciosa no rescaldo dos acontecimentos do Maio de 1968,
para acabar vitimado pelo uso plebiscitário que fez do insti-
tuto do referendo, Marcello acabou sendo vítima da intenção
plebiscitária que colocou nas eleições de 1969, que não tratou
como uma mera escolha de novos deputados, mas como um
instrumento de consagração da sua pessoa e da sua posição
política perante a oposição e, sobretudo, perante os «ultras»
do Estado Novo. Falhado esse intento, ficou num limbo, sen-
tindo-se desamparado pelos «liberais» e pelos «tecnocratas»
que levara para a Assembleia e para o Governo.
Curiosamente, tudo isto se processou numa conjuntura de
«milagre económico». Como disse um seu próximo, Valen-
tim Xavier Pintado, «não há números como os de Marcello»:
de 1968 a 1973, Portugal cresceu a uma estonteante média
de 7,4%, contra 4,7% do conjunto dos países industrializa-
dos. E, além da sempre falada extensão da previdência aos
trabalhadores rurais, o bem-estar e a elevação dos padrões
de consumo começavam a chegar a amplas camadas da po-
pulação, o que torna ainda mais singular o bloqueio que, ao
nível político, o regime foi incapaz de ultrapassar, em larga
medida devido à questão ultramarina, mas também quanto
aos problemas que persistiam na Metrópole: ausência de li-
berdades e de respostas para os anseios de uma juventude
cada vez mais activa e exigente, uma imagem de um regime
gerontocrático desfasado do tempo e da História.
A par disso, um drama pessoal, a morte da sua mulher, em
Janeiro de 1971, que terá abalado Marcello profundamen-

113
RETRATOS POLÍTICOS

te, a ponto de, segundo alguns, ter sofrido uma grave crise
cardíaca em meados desse ano. Depois, tudo se precipitou:
a audiência de Paulo VI aos líderes dos movimentos de li-
bertação africanos, em Junho de 1970, enfurecera-o até ao
limite, adensando sentimentos de desconfiança na Igreja que,
anos volvidos, o levarão, segundo se diz, a afastar-se da fé
católica. O apoio à reeleição de Thomaz fez com que Rogério
Martins e Xavier Pintado abandonassem o Governo, num
claro sinal de que deixou de poder contar com o apoio dos
«tecnocratas». A revisão constitucional de 1971, por outro
lado, assinalara a ruptura dos «liberais» com o regime, cul-
minando, no início de 1973, com os pedidos de demissão de
Miller Guerra (1912-1993) e de Sá Carneiro, na sequência
dos acontecimentos da Capela do Rato, onde a polícia en-
trou e evacuou à força um grupo de crentes e não-crentes aí
reunidos para debater a guerra colonial. Sintomaticamente,
Soares regressará ao exílio, desta feita em Paris, de onde só
voltará após o 25 de Abril, enquanto a polícia política in-
tensificava a sua acção repressiva, como sempre sucede no
estertor dos regimes autoritários. A crise petrolífera de 1973,
em resultado da guerra do Yom Kippur, interrompeu a ex-
pansão económica em curso e o espectro da inflação voltou
a ensombrar o dia-a-dia dos portugueses. Em África, a situa-
ção militar arrastava-se sem fim à vista, e com um enorme
custo diplomático para a imagem de Portugal no estrangeiro
e, em especial, no seio das Nações Unidas. Não por acaso,
a visita de Marcello a Londres, em Julho de 1973, seria en-
sombrada pela revelação dos massacres de Wiryamu, e, nesse
mesmo mês, o «Encontro dos Liberais», reunido em Lisboa,
mostrou que começava a ensaiar-se um pensamento alter-
nativo ao do regime – de resto, já desenvolvido no âmbito

114
MARCELLO

da SEDES – que não só não passava por Marcello e pela Ac-


ção Nacional Popular como claramente os dispensavam. Em
resultado de tudo isso, e muito mais, poucos se admiraram
que as eleições de 1973, bem como a remodelação ministerial
subsequente, não tivessem alcançado qualquer revitalização
do marcelismo, evidenciando, pelo contrário, o seu cansaço
profundo – e o do seu principal governante.
Em Fevereiro de 1974, Portugal e o Futuro, de António de
Spínola, converteu-se num best-seller e, não muito depois, o
seu autor e o general Costa Gomes (1914-2001) acabariam
exonerados dos dois principais cargos de chefia das Forças
Armadas. Marcello pede a demissão a Thomaz, este recusa-
-se a conceder-lha. Em Março, uma tentativa de golpe mili-
tar oriunda das Caldas da Rainha dá o primeiro sinal do que
viria a seguir. Na tarde de 25 de Abril de 1974, na sequência
de um levantamento militar vitorioso, Marcello Caetano en-
trega o poder nas mãos de Spínola, num gesto que, importa
dizê-lo, impediu que o país assistisse a um banho de sangue
pelas ruas de Lisboa. Na verdade, se acaso fosse outro o che-
fe do Governo, como um Kaúlza de Arriaga ou mesmo um
Franco Nogueira, é possível, até provável, que o 25 de Abril
não tivesse sido saudado em todo o mundo como a «Revo-
lução dos Cravos», pacífica e em festa. Em contrapartida, e
na mesma linha, o novo poder permitiu que os dirigentes
do anterior regime, ao invés de serem julgados, seguissem o
rumo do exílio. Primeiro, Madeira; depois, Brasil.

115
MARCELLO

MARCELLO PODERIA CONTAR AINDA,


É CERTO, COM A MAIORIA SILENCIOSA
DOS PORTUGUESES, MAS AÍ RESIDIA
O PROBLEMA: PODERIA SER UMA
MAIORIA, MAS ERA SILENCIOSA.

117
EXÍLIO
E FIM

O s juristas que fizeram as primeiras leis do pós-revolu-


ção gostavam de contar que, nos dias seguintes ao 25
de Abril, andaram por Lisboa com os livros e os manuais de
Marcello Caetano debaixo do braço, receosos de que, com
esse gesto, fossem vistos como saudosistas do antigo regime
e, logo, alvo de represálias pela populaça em festa.
O ex-Presidente do Conselho também apreciava dizer que,
pese a sua tonalidade marxista e revolucionária, a Constitui-
ção de 1976 denotava um apuro técnico-jurídico que acusa-
va a marca dos juristas formados na Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, ou seja, por ele próprio…
E, noutras ocasiões, fazia questão de lembrar, como atrás
se disse, que os líderes dos quatro maiores partidos do novo
regime – Soares, Sá Carneiro, Cunhal, Freitas do Amaral –
tinham sido todos seus antigos alunos, pese terem trilhado
caminhos políticos muito distintos do seu.
O maior sinal de continuidade terá sido, porém, o facto de
o novo primeiro-ministro, Adelino da Palma Carlos (1905-
1992), seu colega na Faculdade de Direito, lhe telefonar pra-

119
RETRATOS POLÍTICOS

ticamente todos os dias, procurando auscultar a sua opinião


sobre os rumos de uma governação a cada dia mais incerta,
que culminará na queda do executivo por si dirigido em 18 de
Julho de 1974, escassos 56 dias após ter tomado posse. Além
disso, e num gesto típico de solidariedade académica – e de
prova de que a Universidade vincava a sua autonomia face ao
que sucedia na esfera política –, foi Adelino da Palma Carlos
que, na qualidade de director da Faculdade de Direito, comu-
nicou a Marcello Caetano que o Conselho Escolar da Facul-
dade decidira, por unanimidade, recordar os altos serviços
prestados e formular «o sincero voto de que regresse o mais
cedo possível ao exercício das suas funções universitárias.»
Motivos de regozijo para alguém que passou os últimos
de existência mergulhado num profundo desalento, o qual,
todavia, não nascera com a revolução de Abril, ainda que se
tenha agravado com ela. Na verdade, e em bom rigor, Mar-
cello sempre encarou com pessimismo o mundo e o tempo
em que vivia, mesmo nos momentos em que acreditou que
era possível mudar alguns aspectos da realidade que o envol-
via, fosse através do vigor da sua inteligência, fosse através
da sua infatigável capacidade de trabalho. É muito provável
que, em 1968, quando foi chamado a substituir Salazar na
chefia dos destinos do regime, já tivesse perdido há muito os
rasgos de esperançoso optimismo com que abraçara a pasta
das Colónias e, em certa medida, a da Presidência.
Num primeiro momento, os dirigentes do regime deposto
foram enviados à faute de mieux para a ilha da Madeira, en-
quanto se aguardava a sua transferência em definitivo para o
Brasil. No Funchal, à guarda de Carlos Azeredo (1930-2021),
comandante daquela região militar, Américo Thomaz, Mar-
cello Caetano, Joaquim da Silva Cunha e César Moreira Bap-

120
MARCELLO

tista foram colocados em prisão domiciliária no Forte de São


Lourenço, com um regime obviamente aberto e por óbvias
razões de salvaguarda da integridade das suas pessoas. Dias
mais tarde, a mulher e a filha de Thomaz, Gertrudes e Na-
tália, juntar-se-iam ao grupo dos exilados, para tormento de
Marcello Caetano, já que o almirante e a mulher não per-
deram ocasião para o acusar pela derrocada do regime e, no
caso de Thomaz, por ter entregado o poder nas mãos de Spí-
nola sem sequer o consultar.
O «Venerando Chefe do Estado», como era chamado na
linguagem do Estado Novo, foi, na verdade, completamen-
te posto à margem dos acontecimentos de Abril: no dia da
revolução, a sua captura não constava sequer dos planos ini-
ciais dos capitães, que só irão detê-lo no dia 26, na sua re-
sidência no Restelo, um facto assaz ilustrativo da (escassa)
relevância política que, no imaginário colectivo da época, se
atribuía ao Presidente da República. Por outro lado, e mais
decisivamente, a circunstância de Marcello Caetano não ter
sequer comunicado a Thomaz que iria render-se no Quartel
do Carmo mostra, em primeiro, que o professor de Direito
não era, afinal, tão legalista como isso, sobretudo numa si-
tuação de estado de necessidade como era manifestamente
aquela; e evidencia, em segundo lugar, que, de certo modo,
houve dois interessantes golpes no dia 25 de Abril, o desferi-
do pelos capitães contra o regime do Estado Novo e o pratica-
do pelo chefe do Governo contra o Presidente da República.
Será do domínio da especulação, mas não é descabido supor
que, se acaso Américo Thomaz tivesse estado envolvido nas
negociações do final de regime, é provável que as coisas não
tivessem tido o desenlace tão pacífico e tão rápido como ti-
veram. Marcello certamente terá pressentido que o risco de

121
RETRATOS POLÍTICOS

haver veleidades de «resistência», como as que ocorreram na


sede da PIDE/DGS, era tanto maior quanto Thomaz fosse
sendo informado pari passu da evolução dos acontecimentos
e pudesse actuar sobre eles. Será exagero dizer-se que Mar-
cello foi o responsável por uma revolução sem sangue, mas é
indubitável que, para este desfecho, muito contribuiu a for-
ma como decidiu operar a transição do poder, mesmo sujei-
tando-se ao ódio dos «ultras» do salazarismo e do próprio
Presidente da República.
Nos anos vindouros, os sectores de extrema-direita iriam
culpabilizar Marcello Caetano pelo fim do Estado Novo,
verberando-o como «coveiro do Império» e do regime que
o suportava, como sucedeu com Eduardo Freitas da Costa
em Acuso Marcelo Caetano, publicado em 1975, e já antes, em
1974, com Antonino Cruz e Vitoriano Rosa, As Mentiras
de Marcelo Caetano. E, mesmo de uma forma mais velada, é
também esse o registo de Thomaz no seu livro de memórias,
Últimas Décadas de Portugal.
Marcello defender-se-ia dos ataques que sofria à direita e
à esquerda através de Depoimento, um livro autojustificativo
publicado no Brasil poucos meses depois de aí ter chegado e,
mais tarde, em Minhas Memórias de Salazar, que a Verbo edi-
tou entre nós em 1977, a sua obra que mais se aproxima de
uma autobiografia e que constitui, ainda hoje, um dos mais
importantes livros sobre a história do Estado Novo.
Marcello Caetano não desperta hoje particulares emoções
ou interesse. Curiosamente, os nostálgicos desse período,
muitos dos quais não o viveram, dizem sentir saudades de
Salazar, não de Caetano, preferindo, pois, uma ditadura hard,
mais musculada, àquilo que julgam ser uma versão ou cópia
adulterada do original e, e não por acaso, num controver-

122
MARCELLO

so programa da RTP, emitido em 2007, foi Salazar o eleito


como «maior português de sempre», numa votação em que,
ao que parece, Marcello nem sequer constava da lista dos
«Grandes Portugueses.» Essa ausência constitui, porventura,
a maior homenagem póstuma que lhe poderiam prestar.

***

No dia 20 de Maio, pelas 16h45, Marcello, Thomaz, Ger-


trudes e Natália aterraram no aeroporto de Viracorpos, em
São Paulo, daí seguindo para o Hotel Hilton. Seis dias depois,
a 26, Marcello deslocou-se para o Rio de Janeiro, onde ficou
hospedado no Mosteiro de São Bento. Aí, foi contactado por
um antigo aluno, Francisco Mauro Dias (1932-2011), que o
convidou a leccionar na Universidade Gama Filho.
Este será o lugar de trabalho de Marcello Caetano até mor-
rer, ao qual doaria a sua vasta biblioteca, que só foi transfe-
rida para o Brasil em Junho de 1977 e que hoje se encontra
instalada no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de
Janeiro.
Privado da biblioteca e dos seus papéis, não deixou de se
entregar afanosamente à escrita e ao ensino. Os seus tem-
pos de exílio em muito se assemelham aos da travessia do
deserto na década de 50/60, já que Marcello regressou, uma
vez mais, àquilo que mais gostava e melhor fazia, a docên-
cia e a escrita, a investigação jurídica e sobretudo histórica.
Nas biografias que lhe têm sido dedicadas, o período final do
Brasil é retratado em breves páginas, como um tempo pou-
co interessante do ponto de vista da sua trajectória de vida,
sobretudo em confronto com a fase em que chefiou o último
governo do Estado Novo. Por outro lado, a etapa do exílio é

123
RETRATOS POLÍTICOS

descrita como um tempo de amargura e derrota, registo para


que o próprio muito contribuiu, seja através dos livros atrás
citados, seja através da correspondência que manteve com
um punhado de fiéis, com destaque para o historiador Joa-
quim Veríssimo Serrão, o qual, além de ter publicado Marcel-
lo Caetano – Confidências no exílio, deu à estampa as missivas
que ambos trocaram (Correspondência com Marcello Caetano,
1974-1980) e prefaciou a obra Marcello Caetano no Exílio – Es-
tudos, Conferências, Comunicações, resenha do intenso labor do
antigo Presidente do Conselho.
No Brasil, Marcello considerava-se atraiçoado por tudo e
todos, sobretudo por aqueles que com ele colaboraram mais
proximamente. Portugal, quanto a ele, era um caso perdido,
sem solução à vista. Mais do que rancor, era a amargura o
sentimento que o dominava, pelo menos a crer nas cartas que
enviava para Lisboa ou nas conversas que tinha com quem
o visitava no Rio. Ainda assim – e apesar das saudades dos
filhos e dos netos e da irreprimível sensação de que falhara
na sua missão histórica de salvar o regime de si próprio –, os
tempos do exílio e do fim não foram inteiramente infelizes
e, menos ainda, improdutivos. As aulas na Gama Filho da-
vam-lhe rendimento suficiente para arrendar um modesto
apartamento, para onde se mudou logo em Junho de 1974,
onde teria a companhia da sua irmã Olga. Entre a colónia dos
expatriados de Abril, dos portugueses há muito instalados no
Brasil e, sobretudo, de colegas académicos que o veneravam,
Marcello não viveu só: a ligação ao meio universitário e os
múltiplos contactos que aí fizera ao longo de décadas, bem
como o imenso prestígio de que aí gozava, permitiram-lhe
ter uma existência preenchida e intelectualmente estimulan-
te, muito mais, parece, do que um Américo Thomaz ou um

124
MARCELLO

Henrique Tenreiro (1901-1994), com os quais praticamente


cortou relações.
«Eu tive a sorte de, aos 68 anos, encontrar trabalho em
terra alheia e em termos de me permitir viver independente.
Isso obriga-me a um esforço de reintegração nas matérias de
que andava afastado e de organização de meios de acção, bem
como ao estabelecimento de relações no meio cultural local
onde tenho sido excelentemente acolhido», escreveu a Jorge
Tavares Rodrigues, em 16 de Agosto de 1974, a prova pro-
vada de que, apesar da «nostalgia» e da «saudade», mescla-
das com «náusea» e «indignação», Marcello Caetano soube
adaptar-se bem, e na medida adequada à circunstância que
então vivia, ao país que o acolheu, onde o seu temperamento
convivial e gregário encontrou eco em velhos e novos ami-
gos, como Pontes de Miranda (1892-1979) ou Pedro Calmon.
Os rumos que o país tomava, com a sucessivas quedas de
Palma Carlos e de Spínola, as turbulências do PREC, a perda
das colónias de África e, sobretudo, o drama dos retornados
eram por si encarados como a confirmação dos seus piores
receios nos tempos de governante e, logo, da justeza da linha
de rumo que então seguira. Pouco dado a autocrítica, e não
podendo recorrer ao expediente de Thomaz, que o culpabi-
lizou a ele e à sua tibieza, Marcello fazia um juízo natural-
mente parcial e comprometido sobre a queda do regime e a
revolução em curso. Sentia-se um injustiçado, o que não era
verdade: à parte uma ou outra brutalidade castrense na forma
como foi tratado antes de embarcar para a Madeira, o novo
regime tratou-o, e a Thomaz, com relativa benevolência – e
a sensatez de evitar que fosse julgado num processo que teria
sido traumático para ambas as partes. No calor da revolu-
ção, seria demitido da função pública, ao fim de 41 anos de

125
RETRATOS POLÍTICOS

serviço, e até alvo de uma lei rectroactiva que o condenava


a 12 anos de prisão, que Marcello classificou, com mágoa e
exagero, «a lei mais monstruosa de toda a História do Direito
português», a qual, no seu caso, nunca saiu do papel. Com-
parado com o destino de outras figuras menores do regime,
como os antigos dirigentes e simples funcionários da PIDE/
DGS, o tratamento que lhe foi dado não pode considerar-se,
de modo algum, demasiado abrasivo ou desumano. Estabili-
zado o processo político, foi-lhe dada, inclusive, a possibili-
dade de regressar a Portugal, que Thomaz aproveitou, mas
que Marcello obviamente declinou.
No Brasil da ditadura militar, recebeu convites atrás de
convites para proferir palestras por todo o país. Desmulti-
plicou-se em deslocações a Curitiba, Porto Alegre, Minas
Gerais, Belém do Pará, etc., onde sempre foi recebido com
extremo desvelo e carinho, por vezes em termos apoteóticos.
E, em acumulação com dezenas de conferências e viagens,
além do trabalho lectivo, manteve um impressionante rit-
mo de publicação de livros: em 1974, Depoimento; em 1977,
Princípios Fundamentais de Direito Administrativo e Minhas
Memórias de Salazar; em 1978, dois livros jurídicos, Direito
Constitucional, em dois volumes, e Constituições Portuguesas –
Edição revista e aumentada com a análise da Constituição de 1976;
em 1980, terminou o 1.º volume, monumental, de História
do Direito Português (1140-1495), que seria publicado postuma-
mente, em 1981.
Além de evidenciar a sua enorme capacidade de trabalho,
a vasta obra que produziu no Brasil é, porventura, um indí-
cio eloquente do seu estado de espírito, que no intelecto en-
controu um refúgio e um porto seguro ante o que sentia ser o
seu destino trágico. Diz-se que terá perdido a fé católica e, de

126
MARCELLO

facto, em algumas missivas confidenciou ter-se tornado ag-


nóstico. Com a classicista Maria Helena Prieto (1928-2013),
professora da Faculdade de Letras, manteve uma amitié amou-
reuse epistolar, obviamente platónica, que a sua interlocutora
revelaria em A Porta de Marfim: Evocação de Marcello Caetano,
publicado em 1992. Em 1985, já após a sua morte, causou
sensação a publicação, em dois volumes, de Cartas Particula-
res a Marcello Caetano, organizadas por José Freire Antunes
(1954-2015), uma resenha da correspondência que com ele
mantiveram altas figuras do antigo e do novo regime.
Ao contrário do salazarismo, o marcelismo morreu com
ele e, à parte meia-dúzia de fidelíssimos – Veríssimo Serrão,
Baltazar Rebelo de Sousa, Jorge Tavares Rodrigues, Pedro
Feytor Pinto, Rui Sanches –, poucos ou nenhuns reclamaram
o seu legado. Este tem sido alvo da atenção de historiadores e
juristas, que já dedicaram a Marcello Caetano três biografias
de vulto, bem como do cuidado dos seus filhos ou familiares
mais chegados. A biblioteca, como se disse, está hoje no Rio
de Janeiro, após a Universidade Gama Filho ter entrado em
falência, mas o seu arquivo encontra-se na Torre do Tom-
bo, em Lisboa, podendo ser consultado em regime livre, com
excepção dos documentos considerados privados, que só po-
dem ser vistos mediante autorização da família, actualmente
representada por Miguel Caetano. Além de um ensaio inter-
pretativo da autoria de Vasco Pulido Valente, inicialmente
publicado na revista Kapa (Marcelo, as desventuras da razão),
e de um estudo monográfico de Luís Reis Torgal (Marcelo
Caetano, Marcelismo e «Estado Social», 2013), o seu período de
governação já foi alvo, pelo menos, de dois colóquios, que
resultaram na publicação de outros tantos livros, A Transição
Falhada – O Marcelismo e o Fim do Estado Novo, coordenado

127
RETRATOS POLÍTICOS

por Fernando Rosas e Pedro Aires Oliveira, e Marcelo Cae-


tano: Tempos de Transição – Depoimentos sobre Marcelo Caetano
e o seu Governo, 1968-1974, organizado por Manuel Braga da
Cruz e Rui Ramos.
Do ponto de vista político, e como se disse, não existem
hoje partidários ou seguidores do legado de Marcello Caeta-
no, desde logo porque aquele surge ensombrado pela marca
da perda e da derrota, mas também, e talvez mais decisiva-
mente, porque, em bom rigor, Marcello não conseguiu defi-
nir uma «doutrina» original capaz de o diferenciar da pesada
herança do corporativismo salazarista. Por outro lado, num
tempo cada vez mais radicalizado e polarizado, a mensagem
conciliatória do marcelismo, condensada na fórmula da «re-
novação na continuidade», dificilmente encontrará seguido-
res, mesmo entre os nostálgicos do regime anterior.
Recentemente, foi contestada a existência, na Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa, de uma sala evocativa
de um dos seus mais distintos professores, com objectos e pa-
péis cedidos a título de empréstimo pela família. Felizmente,
a controvérsia teve pouca ou nenhuma expressão, devendo
dizer-se tão-só, a este propósito, que não só Marcello Caeta-
no foi um dos mais importantes e marcantes professores da
referida Faculdade como, se não fosse a sua acção, esta, muito
possivelmente, nem sequer existiria nos moldes e no lugar
que hoje ocupa. A este propósito, e como o próprio Marcello
gostava de recordar, no tempo do Estado Novo a Faculdade
de Direito de Lisboa não retirou da parede o quadro a óleo
que retrata Afonso Costa, justamente porque tal constitui
uma evocação de um seu antigo professor, como mandam
as boas regras da autonomia e da independência académicas.

128
MARCELLO

***

No final da manhã de 26 de Outubro de 1980, domingo,


por volta das 12h30, enquanto lavava as mãos na casa de ba-
nho do seu apartamento na Rua Cruz Lima, n.º 8, no bairro
do Flamengo, Rio de Janeiro, aguardando que a irmã Olga o
chamasse para o almoço, Marcello Caetano foi acometido de
uma violenta dor no peito, que em minutos o matou.
Assim se extinguiu uma existência, uma vida portuguesa
começada 74 anos antes na Travessa das Mónicas, ao bairro
da Graça, em Lisboa, num prédio que hoje ostenta os dizeres
«Ampliação c/Demolição.»

129
CRONOLOGIA *

1906 Nasce em Lisboa, na Travessa das Mónicas,


no bairro da Graça, em 17 de Agosto de 1906.

1916 Estudante do Liceu Camões.


1922

1917 Inicia-se no jornalismo, como militante


do Integralismo Lusitano.

1927 Licencia-se em Direito pela Faculdade de Direito


da Universidade de Lisboa, com a classificação
de «Muito Bom com Distinção».

1928 Oficial do Registo Civil no município de Óbidos


e subdelegado do Procurador-Geral da República
na comarca das Caldas da Rainha.

* Baseada no «Curriculum Vitae de Marcello José das Neves Alves Caetano», elaborado
por Miguel Caetano e publicado in Arganilia. Revista Cultural da Beira-Serra, II Série, n.º 21,
2007, pp. 39-58.

131
RETRATOS POLÍTICOS

1929 A convite de Pedro Theotónio Pereira, torna-se chefe


do contencioso da Companhia de Seguros Fidelidade.
Conhece Salazar.
Nomeado para o cargo de auditor jurídico
do Ministério das Finanças, que acumula com
o de Subinspector da Inspecção de Seguros.

1930 Acompanha Salazar nos trabalhos de elaboração


do projecto de uma nova Constituição política.
Casamento com Teresa Teixeira de Queiroz de Barros.

1931 Doutoramento em Direito, com a tese


A Depreciação da Moeda depois da Guerra.

1932 Nomeado vogal da Junta Consultiva da União Nacional.

1933 Nomeado vogal da 1.ª Comissão Executiva da União


Nacional.
Aprovado como professor auxiliar da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa.

1934 Incumbido pelo Governo de preparar o projecto de um


novo Código Administrativo. Convidado para director
da Companhia de Seguros Fidelidade, qualidade em que
assume a presidência da direcção do Grémio
dos Seguradores.

1935 Director pedagógico e cultural do I Cruzeiro de Férias


às Colónias.

1936 Vogal do Conselho do Império Colonial.


Eleito membro do Instituto Internacional de Ciências
Administrativas (Bruxelas).

132
MARCELLO

1937 Nomeado presidente da Comissão Revisora do Código


Administrativo.
Agraciado com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo.
Académico titular fundador da Academia Portuguesa
da História.
Membro da direcção do Instituto para a Alta Cultura.

1938 Integra a missão do Instituto de Alta Cultura a Roma.

1939 Professor catedrático provisório.

1940 Nomeado comissário nacional da Mocidade Portuguesa,


cargo que exerce até 1944.

1941 Participa na Embaixada especial ao Brasil, sob a chefia


de Júlio Dantas.

1942 Nomeado professor catedrático da Faculdade de Direito


da Universidade de Lisboa, com a titularidade da
cátedra de Direito Administrativo.
Professor, em acumulação, do Instituto Superior
Técnico.
Eleito 2.º Vice-Presidente da Câmara Corporativa na III
Legislatura (1942-1945).

1943 Professor-fundador do Instituto de Serviço Social,


de Lisboa.

1944 Nomeado Ministro das Colónias, cargo que exercerá


até 1947.

1945 Visita S. Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique


e União Sul Africana.

133
RETRATOS POLÍTICOS

1946 Reeleito vogal do Conselho do Império.

1947 Participa em Genebra na Conferência Internacional


do Trabalho.
Nomeado Presidente da Comissão Executiva da União
Nacional, cargo que exerce até 1949.

1948 Eleito administrador do Banco Nacional Ultramarino.

1949 Presidente da Câmara Corporativa, funções que


exercerá até 1955.

1951 Nomeado membro vitalício do Conselho de Estado.

1953 Vice-Presidente do Conselho Ultramarino, funções


que exerce até 1958.
Designado membro da Corte Permanente
de Arbitragem, de Haia.

1955 Ministro da Presidência, funções que exercerá até 1959.

1959 Reitor da Universidade de Lisboa, cargo que exercerá


até 1962.

1962 Eleito administrador da Companhia de Seguros


Bonança.

1963 Professor e vice-presidente da Faculdade Internacional


de Direito Comparado.
Eleito Presidente da Direcção da Associação Fiscal
Portuguesa.

134
MARCELLO

1968 Nomeado Presidente do Conselho de Ministros,


funções que exerce até 1974.

1970 Presidente da Comissão Central da Acção Nacional


Popular, cargo que exercerá até 1974.

1974 Exílio no Rio de Janeiro, no Brasil, onde leccionou


1980 na Universidade Gama Filho.

1980 Falecimento no Rio de Janeiro, em 26 de Outubro


de 1980.

135
PARA SABER MAIS

S endo esta uma obra de divulgação vocacionada para o


grande público, o leitor que pretenda conhecer melhor a
personalidade de Marcello Caetano tem ao dispor três bio-
grafias de grande qualidade, nas quais este livro em muito
se apoiou: José Manuel Tavares Castilho, Marcello Caetano
– Uma Biografia Política (Almedina, 2012); Luís Menezes Lei-
tão, Marcello Caetano – Um Destino (Quetzal Editores, 2014);
Francisco Carlos Palomanes Martinho, Marcello Caetano –
Uma Biografia, 1906-1980 (Objectiva, 2016). A estas, deve jun-
tar-se, até pela sua riqueza iconográfica, a fotobiografia or-
ganizada por Joaquim Vieira, Marcello Caetano – Fotobiografia
(Temas e Debates, 2004).
Sobre os antecedentes familiares, são muito interessantes
e informativos alguns textos publicados em Arganilia – Revis-
ta Cultural da Beira-Serra, II Série, n.º 21, 2007, e, bem assim,
Horácio Moura, Marcello Caetano – Um Filho da Nossa Serra
(Comunidade Distrital de Coimbra, 1969). Os textos e as in-
tervenções do seu pai encontram-se reunidos em O Apostolado

137
RETRATOS POLÍTICOS

Cívico pela Escrita – José Maria Alves Caetano (1863-1946), com


organização e notas de António Alves Caetano e de Miguel
de Barros Alves Caetano (Lisboa, s.n., 2013). Não tendo
Marcello Caetano escrito uma autobiografia, o que mais se
aproxima desse registo é a obra Minhas Memórias de Salazar
(Verbo, 1977).
A bibliografia de Marcello Caetano é muito extensa, de-
vendo realçar-se, no plano político, e entre tantos outros,
Perspectivas da Política, da Economia e da Vida Colonial (s.n.,
1936); O Sistema Corporativo (s.n., 1938); Problemas da Revolu-
ção Corporativa (Editorial Acção, 1941); A Missão dos Dirigentes
– Reflexões e Directivas (Comissariado Nacional da Mocidade
Portuguesa, 1942); Por Amor da Juventude (s.n., 1944); Alguns
Discursos e Relatórios (Agência Geral das Colónias, 1946); Po-
sição Actual do Corporativismo Português (Editorial Império,
1950); A Legitimidade dos Governantes à Luz da Doutrina Cristã
(Bracara Augusta, 1952); Portugal e a Internacionalização dos
Problemas Africanos – História duma batalha – Da liberdade dos
mares às Nações Unidas (Ed. Ática, 1963); A Opinião Pública
no Estado Moderno (s.n., 1965); Juventude de Hoje, Juventude de
Sempre (s.n., 1967); Ensaios Pouco Políticos (Verbo, 1971); Pá-
ginas Inoportunas (Bertrand, s.d.); Sobre o seu reitorado, Pela
Universidade de Lisboa! – Discursos e orações (Reitoria da Uni-
versidade, 1974). Para uma resenha das principais interven-
ções, Princípios e Definições – Textos de 1936 a 1967, compilação
de António Maria Zorro (s.n., 1969) e Razões da Presença de
Portugal no Ultramar – Excertos de discursos proferidos pelo Pre-
sidente do Conselho de Ministros, Prof. Doutor Marcello Caetano
(Secretaria de Estado da Informação e Turismo, 1973). A sua
dissertação de doutoramento está publicada: A Depreciação da
Moeda Depois da Guerra (Coimbra Editora, 1931).

138
MARCELLO

Para a reconstrução do seu tempo como governante são


essenciais, além do livro-entrevista com António Alçada
Baptista, Conversas com Marcello Caetano (Moraes, 1973), os
diversos volumes dos seus discursos, dados à estampa pela
Editorial Verbo (v.g., Pelo Futuro de Portugal, 1969; Mandato
Indeclinável, 1970; Progresso em Paz, 1972; As Grandes Opções,
1973), bem como as resenhas anualmente publicadas pela Se-
cretaria de Estado da Informação e Turismo. Sobre a televi-
são e as «Conversas em Família», cf. Francisco Rui Cádima,
Salazar, Caetano e a Televisão Portuguesa (Presença, 1996) e,
em termos mais amplos, Ana Cabrera, Marcello Caetano –
Poder e Imprensa (Livros Horizonte, 2006). Sobre a censura,
Cândido de Azevedo, A Censura de Salazar e Marcelo Caeta-
no – Imprensa, Teatro, Televisão, Radiodifusão, Livro (Editorial
Caminho, 1999), e Alberto Arons de Carvalho, A Censura à
Imprensa na Época Marcelista (Minerva, 1999). Sobre os meios
económicos e empresariais, Filipe S. Fernandes, Os Empresá-
rios de Marcello Caetano (Casa das Letras, 2018). Sobre a «ala
liberal», a obra fundamental é de Tiago Fernandes, Nem Dita-
dura, Nem Revolução – A Ala Liberal e o Marcelismo (1968-1974)
(Assembleia da República, 2006), devendo ainda consultar-
-se, para o caso de Sá Carneiro, Joana Reis, A Transição Impos-
sível – A Ruptura de Francisco Sá Carneiro com Marcello Caetano
(Casa das Letras, 2010). Sobre a revisão constitucional de
1971, cf. Revisão Constitucional – 1971 (Secretaria de Estado
da Informação e Turismo, 1971) e Rita Almeida de Carva-
lho, «O marcelismo à luz da revisão constitucional de 1971»,
Anuário Português de Direito Constitucional, vol. III, 2003, pp.
191-276.
São muito interessantes as missivas reunidas por José Frei-
re Antunes in Cartas Particulares a Marcello Caetano, em dois

139
RETRATOS POLÍTICOS

volumes (Publicações Dom Quixote, 1985), bem como, natu-


ralmente, do mesmo autor, Salazar e Caetano – Cartas secretas,
1932-1968 (Círculo de Leitores, 1993). Também interessante,
ainda que num plano distinto, a obra de Paulo Miguel Mar-
tins, Cartas entre Marcello Caetano e Laureano López Rodó (Alê-
theia, 2014).
O mais conhecido ensaio interpretativo sobre Marcello
Caetano é da autoria de Vasco Pulido Valente, Marcello Cae-
tano – As Desventuras da Razão (Gótica, 2002), devendo tam-
bém consultar-se a monografia de Luís Reis Torgal, Marcello
Caetano, Marcelismo e «Estado Social» – Uma Interpretação (Im-
prensa da Universidade [de Coimbra], 2013).
Para a sua análise do período final do Estado Novo e do 25
de Abril, deve ler-se A Verdade sobre o 25 de Abril (s.n., 1976),
O 25 de Abril e o Ultramar – Três Entrevistas e Alguns Documen-
tos (Verbo, 1974), e Depoimento (Record, 1974), os quais me-
recem ser cotejados com a obra de Américo Thomaz, Últimas
Décadas de Portugal, em quatro volumes (Fernando Pereira,
1980). No pós-25 de Abril, e num tom crítico, cf. Eduardo
Freitas da Costa, Acuso Marcelo Caetano (Liber, 1975), Anto-
nino Cruz e Vitoriano Rosa, As Mentiras de Marcelo Caetano
(s.n., 1974), Silvino Silvério Marques, Marcello Caetano, An-
gola e o 25 de Abril – Uma Polémica com Veríssimo Serrão (Edi-
torial Inquérito, 1995).
Para uma visão de conjunto sobre o seu governo são fun-
damentais os livros A Transição Falhada – O Marcelismo e o
Fim do Estado Novo (1968-1974), coordenado por Fernan-
do Rosas e Pedro Aires Oliveira (Editorial Notícias, 2004),
e Marcelo Caetano – Tempos de Transição – Depoimentos sobre
Marcelo Caetano e o seu Governo, 1968-1974, coordenado por
Manuel Braga da Cruz e Rui Ramos (Porto Editora, 2012).

140
MARCELLO

São igualmente importantes o livro de memórias de Pedro


Feytor Pinto, Na Sombra do Poder (Publicações Dom Quixo-
te, 2011), Marcelo Rebelo de Sousa, Baltazar Rebelo de Sou-
sa – Fotobiografia (Bertrand, 1999), Paulo Marques, Marcello
Caetano – Ideólogo ou «enfant térrible» do regime? (Parceria A.
M. Pereira, 2008) e, bem assim, José Pedro Castanheira, Os
Últimos do Estado Novo (Tinta-da-china, 2023).
Sobre o exílio no Brasil, consulte-se Joaquim Veríssimo
Serrão, Marcello Caetano – Confidências no Exílio (Verbo,
1985) e, do mesmo autor, Correspondência com Marcello Cae-
tano, 1974-1980 (Bertrand, 1994), bem como Marcelo Caetano
no Exílio – Estudos, Conferências, Comunicações (Verbo, 2006)
e, ainda, Maria Helena Prieto, A Porta de Marfim – Evocação de
Marcello Caetano (Verbo, 1992). Sobre a questão da perda da
fé católica, Manuela Goucha Soares, Marcello Caetano – O Ho-
mem que Perdeu a Fé – Biografia (A Esfera dos Livros, 2009).
Sobre a sua filha, Ana Maria Caetano, cf. Orlando Rai-
mundo, A Última Dama do Estado Novo e Outras Histórias do
Marcelismo (Temas e Debates, 2003). Recentemente, e entre
outras intervenções suas, foi dado à estampa um livro-entre-
vista com Miguel Caetano: José António Saraiva e José Ca-
brita Saraiva, O 25 de Abril Visto do Outro Lado – Conversas com
Miguel Caetano (Gradiva, 2023), tendo José António Saraiva
publicado também Salazar e Caetano – O tempo em que ambos
acreditavam chefiar o governo (Gradiva, 2020).
Existe um inventário do arquivo de Marcello Caetano:
António Frazão e Maria do Céu Barata Filipe, Catálogo do
Arquivo Marcello Caetano, 2 volumes (Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, 2005).

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António Araújo (Lisboa, 1966), jurista e historiador, licen-
ciado e mestre em Direito e doutorado em História Contem-
porânea, é autor de diversos livros e artigos sobre Direito
Constitucional, Ciência Política e História Política, como
Jesuítas e Antijesuítas no Portugal Republicano, A Lei de Salazar
– Estudos sobre a Constituição de 1933, Sons de Sinos – Estado e
Igreja no Advento do Salazarismo, Matar o Salazar – o Atentado
de 1937 ou «Morte á PIDE!» – A Queda da Polícia Política do Esta-
do Novo. É administrador-executivo e diretor de publicações
da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Colabora regu-
larmente com a imprensa escrita portuguesa.

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