O Andar Do Sol

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30 ANTÓNIO VAZ CARNEIRO GE Vol.

15

Conferência / Conference
COMO AVALIAR A INVESTIGAÇÃO CLÍNICA.
O EXEMPLO DA AVALIAÇÃO CRÍTICA DE UM ENSAIO CLÍNICO
ANTÓNIO VAZ CARNEIRO

Resumo Summary

O papel da ciência na prática clínica é, hoje em dia, absolu- The role of science in medical practice is nowadays absolute-
tamente insubstituível. A publicação permanente de estudos ly irreplaceable. The continuous publication of studies and
e ensaios clínicos produz evidência (prova científica) de boa clinical trials produces evidence of good quality, based on
qualidade, sobre a qual é possível o médico tomar decisões which physicians can base their decisions, even in a uncer-
sólidas, mesmo que num contexto de incerteza e risco. Para tain and risky environment. Moreover, the combination of
além disso, a combinação entre a gestão de recursos cada rare and expensive resource management with professional
vez mais escassos e dispendiosos por um lado, com respon- accountability of doctors in efficacious and cost-effective
sabilização dos médicos por parte da sociedade na prestação care creates new rational needs and demands. Nowadays,
de cuidados eficazes mas custo-efectivos, por outro, cria no- scientific research from clinical studies can be looked upon
vas exigências de rigor e racionalização da prática médica. from three standpoints of view (as opposed from 30 years
Hoje em dia, a evidência científica proveniente de estudos ago): 1) there is a much bigger number of studies; 2) their
clínicos pode caracterizar-se – em relação à existente diga- quality is higher and 3) they can be located easily (through
mos há 30 anos atrás – em três pontos: 1) existe muito maior search of electronic databases). So the question is not “Is the-
quantidade de estudos; 2) a qualidade destes é muito me- re an answer to my questions?” (most of the time the answer
lhor; e 3) estes podem pode ser rápida e eficazmente locali- will be yes), but “Are these data I locate reliable?”. For these
zados (através de meios informáticos que pesquisam as (and other) reasons, is absolutely mandatory that doctors
grandes bases de dados biomédicas). Portanto a questão não know how to critically appraisal the clinical evidence from
deverá ser “Existe uma resposta para a minha questão?” (a studies.In this paper we present a scheme of critical apprai-
resposta será na maior parte dos casos afirmativa), mas sim sal of clinical trials, as an example of evaluation of clinical
“Estes dados que encontrei são fiáveis?”. Por estas (e outras) research.
razões, torna-se absolutamente fundamental que o médico
saiba analisar a qualidade metodológica dos artigos que se-
leccionou para ler.
Neste artigo apresentamos, como exemplo de avaliação da
investigação clínica, um esquema de análise crítica de en-
saios clínicos. GE - J Port Gastrenterol 2008; 15: 30-36

INTRODUÇÃO tomar decisões sólidas, mesmo que num contexto de in-


certeza e risco (1).
A prática clínica no início do terceiro milénio é complexa e Para além disso, a combinação entre a gestão de recursos
incerta, e o médico prático é posto em confronto com pro- cada vez mais escassos e dispendiosos por um lado, com
blemas de conhecimentos diariamente. Os novos avanços responsabilização dos médicos por parte da sociedade na
diagnósticos e terapêuticos em medicina processam-se a prestação de cuidados eficazes mas custo-efectivos, por
um ritmo acelerado, criando problemas de actualização e outro, cria novas exigências de rigor e racionalização da
aplicação prática a quem tem a responsabilidade da assis- prática médica (2).
tência médica a doentes internados em hospitais, observa- Na base da resolução dos problemas acima apontados
dos em consultas ou avaliados em serviços de urgência (1). encontra-se a necessidade de obtenção e síntese de infor-
O papel da ciência na prática clínica é, hoje em dia, abso- mação clínica válida e relevante que sirva de base à acti-
lutamente insubstituível. A publicação permanente de es- vidade do médico que procura resolver os problemas
tudos e ensaios clínicos produz evidência (prova científi- clínicos que se lhe colocam diariamente. A questão es-
ca) de boa qualidade, sobre a qual é possível o médico sencial é então a de saber como podem os médicos apren-

Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, Faculdade de Medi-


cina de Lisboa, Portugal.
Janeiro/Fevereiro 2008 COMO AVALIAR A INVESTIGAÇÃO CLÍNICA 31

der as inovações e dominar a informação de modo a e esta diferença for estatisticamente significativa, será
introduzir (eventuais) mudanças na sua prática que, em clinicamente significativa isto é, será suficientemente im-
última análise, irão beneficiar os seus doentes. portante para ser recomendada? E se um teste diagnósti-
A investigação clínica define-se como sendo aquela que co for tão complexo de aplicar que só possa ser feito em
é realizada em doentes (ou pacientes), com intervenções hospitais terciários, será possível disseminá-lo em todo o
que são relevantes para aqueles, em condições que pos- sistema de saúde (aplicabilidade)?
sam ser realizadas no dia-a-dia e cujos resultados se des- Poder-se-á perguntar porque é que necessitamos de uti-
tinam a servir de base à decisão de diagnosticar, tratar ou lizar um critério de avaliação tão rigoroso, em vez de nos
prognosticar as patologias humanas. fiarmos na nossa intuição. A resposta advém do facto da
As questões que a investigação procura responder são maior parte da investigação publicada (de grandes di-
instrumentais na base do desenho dos estudos que as irão mensões) possuir pouco rigor metodológico e por vezes
tentar esclarecer: para questões sobre a eficácia de uma ser também pouco relevante em termos da sua utilidade
intervenção terapêutica, o desenho ideal é o ensaio clíni- prática. Daí a necessidade de um processo de avaliação
co aleatorizado, prospectivo e controlado; mas se procu- crítica muito rigoroso (12).
rarmos definir as características diagnósticas de um novo Neste artigo iremos dar o exemplo da avaliação de um
teste (em comparação com o gold standard para aquela ensaio clínico (randomized controlled trial – RCT), devi-
patologia) então deve-se utilizar um estudo seccional do à importância deste tipo de estudo na literatura bio-
cruzado; para o prognóstico, um estudo prospectivo de médica.
coorte, para a etiologia, um estudo caso-controlo, e assim
por diante.
A avaliação crítica da evidência científica consiste em AVALIAÇÃO CRÍTICA DE UM ENSAIO CLÍNICO
analisar e classificar os estudos em termos da sua vali-
dade, da sua importância e da sua aplicabilidade clínica, As questões (há quem lhe chame “guias”) a que um en-
para a inclusão (ou exclusão) da informação assim obti- saio clínico deverá responder para ser correctamente
da como complemento na decisão final sobre o doente avaliado estão descritas no Quadro I. Estas são
(dependendo do grau de confiança que se deposita na questões metodológicas, que procuram analisar a vali-
estrutura metodológica dos estudos). A necessidade da dade do estudo (isto é, se o seu desenho permite res-
utilização de um critério de avaliação rigoroso advém do ponder à questão colocada), a importância dos resulta-
facto da maior parte da investigação publicada (de gran- dos (isto é, se são clinicamente – para além de estatis-
des dimensões) possuir pouco rigor metodológico e por ticamente – significativos) e a aplicabilidade dos acha-
vezes ser também pouco relevante em termos da sua uti- dos a outros doentes que naturalmente não participa-
lidade prática. ram no estudo (13).
A avaliação crítica da evidência consegue-se através das Em termos práticos, cada questão é classificada em 4
respostas a um conjunto de questões e regras predefi- hipóteses:
nidas. Embora lógicas, nem todas estas são auto-expla- • resposta afirmativa = sim (codificada com 2)
natórias, pelo que necessitam de instruções detalhadas • pouco claro/possivelmente (codificada com 1)
para uma aplicação correcta a estudos terapêuticos ou de • resposta negativa = não (codificada com 0)
prevenção (3-5), diagnósticos (6-8), de iatrogenia (9), de esta- • não aplicável
belecimento de prognóstico (10) ou de revisão (11), para ape- No final de responder às 20 questões, obtém-se a soma de
nas citar alguns tipos. Por exemplo, uma questão me- todas as questões individuais e calcula-se um score final,
todológica fundamental na validade de um ensaio clínico segundo o esquema:
é a de saber se os doentes nos grupos experimental ou de • Score total (soma dos scores atribuídos) _______ [A]
controlo foram nestes incluídos através de um processo de • Nº de questões aplicáveis (máx. 20) ___________ [B]
aleatorização devidamente implementado. Mas se olhar- • Score máximo possível (2 x B) ______________ [C]
mos para um estudo diagnóstico, então o que é importante Os ensaios clínicos classificados com uma pontuação de
é ver se todos os doentes fizeram ambos os testes em com- 75% ou mais são considerados de boa qualidade. Todos
paração. E num estudo prognóstico, há que analisar se o os outros são - em princípio - excluídos, já que não se
grupo (coorte) que se pretende seguir no tempo possui revelam como tendo qualidade suficiente para serem con-
doentes com todas as gamas de gravidade de doença. siderados para a prática clínica.
E estas são apenas questões sobre a validade. Se pensar- O restante deste artigo irá descrever e justificar (de ma-
mos na importância e aplicabilidade dos resultados, então neira sucinta) cada uma das questões a que um ensaio
as questões serão outras. Por exemplo, se uma interven- clínico deverá responder na sua avaliação crítica, para
ção terapêutica reduz a mortalidade de 12,3% para 11,2% poder ser considerado válido ou não.
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Quadro I - Grelha para avaliação crítica de um artigo descrevendo um ensaio clínico.


VALIDADE DOS RESULTADOS S ? N n/a
1. a gama de doentes foi bem definida? 2 1 0 n/a
2. os critérios de inclusão e exclusão são lógicos e claros? 2 1 0 n/a
3. o diagnóstico da doença estava bem caracterizado? 2 1 0 n/a
4. os doentes foram aleatorizados? 2 1 0 n/a
5. o método de aleatorização foi explicado? 2 1 0 n/a
6. a distribuição foi ocultada? 2 1 0 n/a
7. os doentes foram analisados nos grupos para os quais tinham sido aleatorizados inicialmente
2 1 0 n/a
(intenção-de-tratar)?
8. a dimensão da amostra foi estatisticamente calculada? 2 1 0 n/a
9. os doentes nos grupos em comparação eram semelhantes em termos dos seus factores de prognósti-
2 1 0 n/a
co conhecidos?
10. com excepção do tratamento em estudo, todos os doentes foram tratados da mesma maneira? 2 1 0 n/a
11. foi ocultado aos doentes o grupo a que pertenciam? 2 1 0 n/a
12. foram ocultados aos investigadores os grupos em estudo? 2 1 0 n/a
13. foram ocultados aos analisadores dos dados os grupos em estudo? 2 1 0 n/a
14. o seguimento (follow-up) final foi superior a 80%? 2 1 0 n/a
IMPORTÂNCIA DOS RESULTADOS
15. a dimensão do efeito terapêutico (RRR, RRA, NNT) foi importante? 2 1 0 n/a
16. a estimativa do efeito é suficientemente precisa (IC)? 2 1 0 n/a
17. esse efeito tem importância clínica? 2 1 0 n/a
APLICABILIDADE DOS RESULTADOS
18. os doentes do estudo são semelhantes aos da prática clínica do médico individual? 2 1 0 n/a
19. foram considerados todos os resultados clínicos importantes? 2 1 0 n/a
20. os benefícios do tratamento sobrepõem-se aos potenciais riscos e custos da sua implementação? 2 1 0 n/a

Validade dos Resultados mensão), então é necessário definir quais serão os doen-
tes que irão constituir a amostra. Isso consegue-se através
A gama de doentes foi bem definida? da definição de critérios de inclusão e exclusão.
Os critérios de inclusão incluem tipicamente o grupo
A importância da determinação cuidadosa da gama de etário dos doentes, o seu sexo, o diagnóstico clínico e co-
doentes de um RCT constitui um passo absolutamente morbilidades (doenças concomitantes). Os critérios de
crucial para análise da respectiva validade. Especial- exclusão definem características dos doentes que preclu-
mente no que se refere ao seu risco de base (i.e. gravi- dem, por questões de segurança, a sua inclusão no estudo
dade da doença), esta análise permite definir que repre- (por exemplo existência de insuficiência renal, idade su-
sentatividade é que esta amostra possui em relação à po- perior a 75 anos, alergias conhecidas, etc.) (14).
pulação em geral. Por exemplo: num ensaio clínico de
um novo medicamento para a hepatite C, será necessário O diagnóstico da doença estava bem caracterizado?
garantir que a amostra possui doentes com um quadro
assintomático, mas também com insuficiência hepática (e A definição precisa do diagnóstico é de central importân-
todos os estádios intermédios). Só deste modo podere- cia nos ensaios clínicos. Com efeito, para podermos apli-
mos analisar o impacto da nova droga no prognóstico car aos nossos doentes os achados dum RCT (a sua vali-
destes doentes. dade externa), é absolutamente necessário que o diagnós-
É claro que se pode seleccionar um grupo de doentes tico definido no estudo seja claro e não ambíguo, já que
muito homogéneo – por ex. infectados com HCV e com pode atingir o seu poder estatístico (15).
determinadas alterações morfológicas na biopsia hepáti- Nalgumas situações, os critérios de inclusão e exclusão
ca – e estudar apenas esses. A utilidade da informação quase definem o diagnóstico, especialmente se forem mui-
sobre este subgrupo específico contrastará com a menor to específicos, mas seja como for, se existir alguma a in-
generalização dos resultados a todos os infectados com certeza sobre o diagnóstico, esta deverá sempre ser cla-
hepatite C (5). ramente indicada.

Os critérios de inclusão e exclusão são lógicos e claros? Os doentes foram aleatorizados?

Um RCT destina-se a estudar uma intervenção numa Num ensaio clínico válido, os doentes devem ser dis-
população determinada. Como não é habitualmente pos- tribuídos pelos grupos de análise (experimental/ais, con-
sível estudar a totalidade da população (devido à sua di- trolo) baseados num processo aleatório imprevisível. Por
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outras palavras, na distribuição aleatória cada partici- a intervenção efectivamente cada doente recebeu, para a
pante tem uma probabilidade conhecida de receber um análise final ele deverá ser incluído no grupo para que
dos tratamentos em estudo antes de ser incluído no grupo inicialmente foi aleatorizado (19).
respectivo, mas o tratamento que vai receber é determi-
nado pelo acaso e não deve ser previsto antes (16). A dimensão da amostra foi estatisticamente calculada?
A principal vantagem da aleatorização é a distribuição
dos factores de confundimento desconhecidos: por exem- A dimensão de uma amostra de um ensaio clínico não
plo, a genética parece desempenhar um papel importante pode ser definida de qualquer maneira, na base de con-
na incidência de doença inflamatória do intestino (sabe- vicções e crenças dos investigadores. Por razões clínicas
se que os nórdicos têm uma incidência aumentada da e estatísticas, a dimensão amostral deve ser calculada
doença). Num estudo multicêntrico sobre uma nova te- com rigor, para que o estudo possa provar o que se pro-
rapêutica para a colite ulcerosa ou doença de Crohn, é pôs e, se o resultado final for negativo, não ter sido por
fundamental que o risco genético de base seja o mesmo um problema de a amostra insuficiente.
entre os grupos em estudo, pelo que só a aleatorização é Os factores que entram em conta no cálculo da amostra
que pode garantir (mesmo que não em 100% dos casos) são: 1) a percentagem de outcomes esperado em cada
um número análogo de doentes de ascendência nórdica grupo; 2) o erro tipo I (nível ¬); 3) o erro tipo II (nível ß);
entre os grupos. e, para outcomes contínuos, 4) o desvio padrão.

O método de aleatorização foi explicado? Os doentes nos grupos em comparação eram seme-
lhantes em termos dos seus factores de prognóstico co-
O método de aleatorização clássico elege o doente indi- nhecidos?
vidual como unidade e procura distribuir cada um deles
de per si, isto é, cada novo doente que é recrutado tem Em todos os artigos reportando ensaios clínicos deverá
exactamente as mesmas hipóteses de ser incluído num existir um quadro que descreve, lado a lado, as caracterís-
dos grupos em estudo. Existem no entanto técnicas de ticas demográficas, clínicas, laboratoriais, etc. dos gru-
aleatorização designadas como restringidas, que se desti- pos em estudo. Idealmente aquelas serão sobreponíveis
nam a manter um determinado equilíbrio entre os grupos, nos dois (ou mais) grupos, isto é, a média de idades será
em termos de dimensão ou características específicas. a mesma, a percentagem de homens idem, as caracterís-
Designa-se por blocos, estratificada e minimizada. ticas da doença também, etc. Isto é necessário para po-
Qualquer que seja o seu tipo, o método aleatorização de dermos assacar as eventuais diferenças nos benefícios e
deve sempre ser descrito (17). riscos do tratamento unicamente à intervenção (e não a
um prognóstico de base diverso) (23).
A distribuição foi ocultada? É claro que, mesmo com uma aleatorização competente-
mente desenhada e implementada, pode acontecer que –
Após uma aleatorização bem sucedida torna-se neces- por pura má sorte – os grupos não estejam equilibrados.
sário garantir que a distribuição dos doentes pelos grupos Neste caso, dever-se-á analisar se as diferenças são sufi-
para que foram inicialmente aleatorizados é feita sem cientemente importantes para anular os resultados ou se,
erros. O ideal é que a distribuição seja feita num centro pelo contrário, não influenciam a alocação de causali-
distante do qual se processa o estudo (contactando o dade dos resultados.
investigador por exemplo pelo telefone quando quiser
saber que tratamento irá aplicar) (18). Isto é necessário para Com excepção do tratamento em estudo, todos os
garantir que a aleatorização é respeitada. doentes foram tratados da mesma maneira?

Os doentes foram analisados nos grupos para os quais ti- Um dos aspectos essenciais na análise da eficácia de uma
nham sido aleatorizados inicialmente (intenção-de-tratar)? intervenção é que ela possa ser inequivocamente respon-
sabilizada pelas alterações medidas. Se por acaso o trata-
A abordagem intuitiva em relação aos doentes que não mento concomitante que os doentes sempre têm que fazer
seguiram as instruções de tratamento que lhe foram indi- diferir entre os grupos, então torna-se muito difícil iden-
cadas, é de os retirar da análise final. Parecendo certa, es- tificar a causa do benefício demonstrado: será pela nova
ta decisão é fundamentalmente errada, já que subverte a droga, ou pelas alterações instituídas na terapêutica de
vantagem da aleatorização, impede uma visão mais realis- base? É esta a razão porque há que garantir que os trata-
ta do impacto da nova droga e permite a introdução de mentos não experimentais são análogos nos grupos em
viéses no estudo. Assim, independentemente de qual foi estudo.
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Foi ocultado aos doentes o grupo a que pertenciam? alterava-se substancialmente em relação à primeira ava-
liação (25).
A razão porque é necessário que os doentes de um ensaio
clínico não saibam o que estão a tomar (placebo ou subs- O seguimento (follow-up) final foi superior a 80%?
tância activa) é porque essa informação pode alterar a sua
percepção de efeito da intervenção. Se, por exemplo, es- É inevitável que alguns doentes não terminem o estudo,
tamos a testar um medicamento para o colesterol, essa in- especialmente se a sua duração for longa. Se o número
formação poderá não ser muito relevante para o doente dos que saem (drop-ou rate) é muito elevado, então isto
(afinal estamos a medir uma substância no soro que, em constitui um problema, já que se sabe que os doentes que
princípio, não será influenciada pelo conhecimento do saem têm um prognóstico diferente dos que permanecem
que o doente está a tomar – o chamado hard endpoint). no estudo.
Mas se estivermos a estudar um novo medicamento para Se as razões para o abandono não se relacionarem com o
a depressão, por ex., então se o doente souber que está a prognóstico, então estas saídas poderão não influenciar
fazer uma substância activa poderá referir superiores os resultados por aí além (para lá da perda de poder e pre-
melhorias do que se lhe for dito que está a fazer um cisão). O contrário verifica-se se elas forem devidas a falta
placebo - uma substância inerte (a melhoria da depressão, de eficácia do medicamento, a um perfil de efeitos secun-
medida por uma escala validada, constitui um chamado dários muito desfavorável ou uma adesão particularmente
soft endpoint). deficiente ao esquema de tratamento, por exemplo (19).
Um estudo em que apenas os doentes não sabem o que Qual é a dimensão da taxa de abandonos a partir da qual o
estão a tomar designa-se por “com ocultação simples” (24). estudo fica comprometido? Não existe uma resposta simples
A ocultação destina-se a evitar os erros sistemáticos para esta pergunta, quanto mais pequena melhor. De qual-
(viéses) de um estudo. quer maneira, aceita-se que uma taxa superior a 20% é ge-
radora de viéses e indica problemas importantes do estudo.
Foram ocultados aos investigadores os grupos em es-
tudo? Importância dos Resultados

Os investigadores, por seu turno, devem ser ocultados A dimensão do efeito terapêutico (RRR, RRA, NNT) foi
aos tratamentos que administram para evitar o viés de importante?
performance. Isto é fundamental, porque muitas vezes o
conhecimento prévio de qual tratamento (ou não) o doen- A apresentação de resultados de ensaios clínicos deve ser
te irá receber altera o comportamento do investigador feita de modo standard: nos RCTs, os autores habitual-
responsável por implementar o estudo (14). Por ex: se a- mente apresentam proporções (ou taxas, ou percenta-
quele souber que o doente irá receber um placebo, poderá gens) de eventos (cirrose, hemorragias gastrointestinais,
ter a tentação de aumentar a terapêutica concomitante morte) em cada grupo de estudo: experimental ou de con-
que o doente está a fazer, deste modo alterando os resul- trolo. Estes eventos são habitualmente dicotómicos, isto
tados do ensaio. Um estudo em que os doentes e os inves- é, caracterizam-se por estarem ou não estarem presentes.
tigadores não sabem o que estão a tomar designa-se por A relação entre uma intervenção e o seu resultado é cap-
“com dupla ocultação” (24). turada por um conjunto de medidas – designadas como
de associação – que incluem o risco absoluto e redução
Foram ocultados aos analisadores dos dados os grupos do risco absoluto, o risco relativo e redução do risco re-
em estudo? lativo, o odds ratio e o número necessário tratar. A sua
definição consegue-se através da construção das chama-
Se a interpretação sobre a evolução dos outcomes que das tabelas de contingência 2 x 2. Um exemplo esque-
estiverem a ser medidos for algo subjectiva, então os mático é o do Quadro II.
analisadores de resultados não poderão saber quem fez o A apresentação dos resultados de uma intervenção num
placebo ou a substância activa. Existem estudos que de- RCT deverá incluir, pelo menos, a RRR, a RRA e o NNT.
monstram que cardiologistas encarregados de analisar a Se por exemplo só tivermos informação sobre a RRR,
evolução da função ventricular esquerda de doentes com então não poderemos conhecer o risco de base (o risco
insuficiência cardíaca de um ensaio clínico, conhecedo- absoluto): uma RRR de 33%, por exemplo, pode repre-
res da terapêutica de cada doente, classificaram consis- sentar uma redução do risco de mortalidade de 15% para
tentemente como mais melhorada a função ventricular 10% (uma RRA de 5%, em que só temos de tratar 20
esquerda dos doentes a fazer terapêutica activa… Quan- doentes para evitar um evento - NNT=20) ou de 45% pa-
do ocultados para essa informação, a sua classificação ra 30% (uma RRA de 15% e em basta tratar 7 – NNT=7).
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Quadro II - Uma tabela 2 x 2 e seus resultados derivados.


dados. Muitas vezes o nosso doente tem atributos ou ca-
Resultado (outcome) racterísticas diferentes dos que participaram no ensaio,
SIM NÃO
pode apresentar diferenças - por exemplo, relativamente
Exposição SIM A b
NÃO C d
à idade, doenças concomitantes, gravidade da doença de
base, terapêuticas prévias - que o tornariam inelegível
Risco Relativo. RR = [a / (a + b)] / [c / (c + d)] para o estudo, mas que poderão não impedir que os resul-
Redução do Risco Relativo. RRR = [c / (c + d)] - [a / (a + b)] / [c / (c + d)]
tados do estudo lhe sejam aplicáveis.
Redução do Risco Absoluto. RRA = [c / (c + d)] - [a / (a + b)]
Número Necessário Tratar. NNT = 1 / RRA
Se o doente fosse elegível para o estudo, ou seja, se o
Odds Ratio. OR = [(a/b) / (c/d)] = ad / cb doente preencher todos os critérios de inclusão e não
violar nenhum dos critérios de exclusão, pode-se con-
siderar com razoável confiança que os resultados lhe
Finalmente, na definição da importância dos resultados, são aplicáveis. Se não é isto que acontece, é neces-
haverá que não esquecer que existe uma distinção entre a sário estabelecer um julgamento para este doente es-
significância estatística e a significância clínica. Como já pecífico (26).
foi discutido, pode existir um resultado estatisticamente
significativo que não tem significado clínico. Foram considerados todos os resultados clínicos impor-
tantes?
A estimativa do efeito é suficientemente precisa (IC)?
Em condições ideais, ao tomar decisões sobre trata-
Na prática, nunca teremos a certeza absoluta de qual é mentos devem-se procurar ensaios clínicos metodolo-
precisamente a redução do risco provocada por uma in- gicamente fortes, que examinem o impacto da terapêu-
tervenção. O que podemos esperar são estimativas pro- tica sobre resultados importantes para o doente, como
babilísticas determinadas pelos ensaios clínicos – as cha- qualidade de vida ou resultados objectivos (hemorragia
madas estimativas pontuais – que, por definição, nunca gastrointestinal, recidiva de úlcera péptica ou morte,
são exactas (12). por ex.).
Existe um processo de determinar qual é a precisão dos O que é importante para os doentes são os resultados
resultados, que é calcular os intervalos de confiança (IC). que signifiquem vantagens clínicas: a mortalidade, a
Como se define um IC? É o intervalo dentro do qual se qualidade de vida, os efeitos secundários, etc. Mas
espera que o valor real de uma medida estatística se situe; é muitas vezes utilizam-se nos ensaios clínicos os chama-
geralmente acompanhado por uma percentagem (quase dos marcadores substitutos (surrogate end points), que
sempre 95%) que define o nível de confiança respectivo: em se definem como uma medida laboratorial ou fisiológi-
95% das vezes o valor estará dentro dos limites definidos. ca usada como um substituto de um resultado que mede
Quanto menor for o IC, mais precisos são os resultados. directamente como o doente se sente, funciona ou so-
Para obtermos um IC com limites estreitos, haverá que brevive. Os investigadores muitas vezes recorrem a es-
aumentar o nº de eventos estudados, que é como quem tas variáveis substitutas porque lhes permitem fazer
diz, o nº de doentes estudados. Deste modo, quanto maior ensaios clínicos em menos tempo e com menor número
for a amostra, mais preciso é o IC. de doentes (logo, menos dispendiosos). No entanto, só
se pode considerar que um marcador substituto é con-
Esse efeito tem importância clínica? sistentemente seguro quando há uma relação causal
entre a alteração desse resultado e a alteração do resul-
A resposta a esta questão implica uma avaliação clínica tado clinicamente importante. O marcador substituto
algo subjectiva, que tem a ver com o peso da patologia em deve estar integrado na sequência de causalidade do
questão, o impacto da terapêutica seleccionada, as prefe- processo patológico, e o efeito de uma intervenção so-
rências clínicas, etc. Trata-se acima de tudo de uma abor- bre o resultado clínico de interesse deve ser capturado
dagem de raciocínio e não estatística ou metodológica. na sua globalidade por uma alteração do marcador subs-
tituto.
Aplicabilidade dos Resultados
Os benefícios do tratamento sobrepõem-se aos poten-
Os doentes do estudo são semelhantes aos da prática ciais riscos e custos da sua implementação?
clínica do médico individual?
Um elemento chave na decisão de escolher a terapêutica
Um dos aspectos mais importantes dos ensaios clínicos é para um doente é a determinação do risco de um evento
o da sua aplicabilidade a outros doentes que não os estu- adverso nesse doente na ausência de tratamento. As-
36 ANTÓNIO VAZ CARNEIRO GE Vol. 15

sumindo que a RRR é constante ao longo de toda a gama Cardiol 2002; 21: 613-626.
de susceptibilidades, para qualquer dada RRR, quanto 5. Soares I, Carneiro AV. Princípios básicos da análise metodológica de
ensaios terapêuticos. Parte III - Aplicabilidade dos resultados ao
mais alta for a probabilidade de que um doente experi- doente individual. Rev Port Cardiol 2002; 21: 783-795.
mente um resultado adverso se não for tratado, maior a 6. Carneiro AV. Princípios básicos de selecção e uso de testes diagnós-
probabilidade do doente beneficiar do tratamento e me- ticos: análise dos resultados dos estudos diagnósticos. Rev Port Car-
nor o número de doentes análogos que necessitamos de diol 2001; 20: 1135-1139.
7. Carneiro AV. Princípios básicos de selecção e uso de testes diagnós-
tratar para impedir esse resultado. ticos: propriedades intrínsecas dos testes. Rev Port Cardiol 2001; 20:
O cálculo do NNT específico do doente (ver acima) é 1267-1274.
uma ajuda importante no processo de pesar os benefícios 8. Carneiro AV. Princípios de selecção e uso de testes diagnósticos:
e os prejuízos associados com as opções de tratamento, aplicabilidade prática ao doente individual. Rev Port Cardiol 2002;
21: 75-79.
mas temos ainda de perceber se a sua implementação é 9. Levine M, Walter S, Lee H et al. Users' guides to the medical lite-
muito complexa (e como tal viável) e qual o seu custo rature. IV. How to use an article about harm. JAMA 1994; 271:
real. 1615-1619.
10. Carneiro AV. Avaliação crítica de artigos sobre prognóstico: regras
práticas. Rev Port Cardiol 2002; 21: 891-900.
11. Oxman AD, Cook DJ, Guyatt GH, The Evidence-Based Medicine
CONCLUSÕES Working Group. Users' guides to the medical literature. VI. How to
use an overview. JAMA 1994; 272: 1367-1371.
A análise crítica da evidência científica constitui um pas- 12. User´s Guides to the Medical Literature. A Manual for Evidence-
Based Clinical Practice. 1st ed. Chicago: JAMA & Archives
so fundamental na (indispensável) utilização da ciência Journals AMA; 2001.
como base de decisão para a prática clínica. Isto conse- 13. Greenhalgh T. How to read a paper. 3d ed. London: BMJ Books;
gue-se através da análise estruturada das publicações, uti- 2006.
lizando as respostas a questões metodológicas específi- 14. Altman DG, Schulz KF, Moher D et al. The revised CONSORT
statement for reporting randomized trials:explanation and elabora-
cas (as chamadas “guias”) aplicadas a cada estudo, e que tion. Ann Int Med 2001; 134: 663-694.
são diferentes conforme o tipo de desenho de base da 15. Carneiro AV. Cálculo da dimensão da amostra em estudos clíni-
investigação analisada. cos:princípios metodológicos básicos. Rev Port Cardiol 2003; 22:
Os ensaios clínicos, como instrumentos de determinação 1513-1521.
16. Matthews JNS. Introduction to randomized controlled trials. 2nd ed.
do benefício e risco de intervenções terapêuticas (farma- Boca Raton: Chapman & Hall/CRC; 2006.
cológicas ou outras), constituem peças de evidência abso- 17. Fletcher RH, Fletcher SW. Clinical epidemiology. 4th ed.
lutamente fundamentais para a prática clínica, necessi- Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins; 2005.
tando por isso de uma abordagem sistematizada da sua 18. Schulz KF, Grimes DA. Allocation concealment in randomised
trials: defending against deciphering. Lancet 2002; 359: 614-618.
qualidade metodológica e prática. 19. Simon SD. Statistical evidence in medical trials. 1st ed. Oxford:
O esquema apresentado neste artigo poderá ser de grande Oxford University Press; 2006.
utilidade para quem queira, de modo individual, analisar 20. Lang TA, Secic M. How to report statistics in medicine. 1st ed.
e aplicar os dados da investigação na terapêutica. Philadelphia: ACP; 1997.
21. Straus SE, Richardson WS, Glasziou P, Haynes RB. Evidence-based
Medicine. How to practice and teach EBM. 3d ed. Edinburgh:
Elsevier; 2005.
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2. Wright J, Hill P. Clinical Governance. 1st ed. Edinburgh: Churchill 24. Schulz KF, Grimes DA. Blinding in randomised trials: hiding who
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terapêuticos. Parte I - Validade dos resultados. Rev Port Cardiol cripts. Control Clin Trials 1996; 17: 285-290.
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