ec683d80-a0e5-46a2-a376-a6582d4f1b86

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 380

NINA MARIA KENNETT

AS FILHAS DE GUENDRI
ADARIS LIVRO I
Copyright © 2024 by Nina Maria Kennett

All rights reserved. No part of this publication may be reproduced, stored or


transmitted in any form or by any means, electronic, mechanical,
photocopying, recording, scanning, or otherwise without written permission
from the publisher. It is illegal to copy this book, post it to a website, or
distribute it by any other means without permission.

This novel is entirely a work of fiction. The names, characters and incidents
portrayed in it are the work of the author’s imagination. Any resemblance to
actual persons, living or dead, events or localities is entirely coincidental.

Nina Maria Kennett asserts the moral right to be identified as the author of
this work.

Nina Maria Kennett has no responsibility for the persistence or accuracy of


URLs for external or third-party Internet Websites referred to in this
publication and does not guarantee that any content on such Websites is, or
will remain, accurate or appropriate.

Designations used by companies to distinguish their products are often


claimed as trademarks. All brand names and product names used in this
book and on its cover are trade names, service marks, trademarks and
registered trademarks of their respective owners. The publishers and the book
are not associated with any product or vendor mentioned in this book. None
of the companies referenced within the book have endorsed the book.

First edition

ISBN: 9798326820211

This book was professionally typeset on Reedsy.


Find out more at reedsy.com
Agradeço e dedico este livro à minha mãe e pai Nilda & Valdir Monteiro, minha
irmã Danila (minha eterna rocha), seu marido Danilo e meus sobrinhos Samuel &
Olivia, meu irmão Thiago e a Alessandra, a meu marido Gary Langley pelo apoio
incondicional e carinho, e a família que ganhei através dele, meus sogros Patricia
& Brian, and all my amazing in-laws.

Também agradeço de coração a Thalita Naine pelo apoio incondicional.

E a meu filho Thomas pelos sorrisos matinais mais lindos que já vi.
Considerações Inicias

Olá!
Bem vindo(a) ao meu primeiro livro:
ADARIS
Uma obra de fantasia urbana

• É minha primeira obra e conta com três personagens principais,


cada uma delas com sua própria narração em primeira pessoa, indicados
no início de cada capítulo.

• A história começa devagar, com um clichê aqui e outro acolá. Para


quem não conhece o subgênero fantasia urbana, é uma mistura de
seres mágicos e humanos, contada de forma contemporânea em tempo e
lugares atuais.

• Neste livro, você encontrará uma tapeçaria única de narrativas, onde


velhos mitos são revividos, criaturas lendárias ganham nova vida e
histórias conhecidas são reinventadas a partir de uma perspectiva
totalmente nova. Aqui, não há limites para a imaginação, e o familiar
se transforma em algo estranhamente novo e empolgante. Ou seja, será
uma SOPA de mitos e seres em uma nova perspectiva.

i
• Eu entendo que nem todo mundo que começa a leitura, a termina. De
qualquer forma, já agradeço a você por ter dado uma chance a minha
obra. Espero que as páginas te prendam a leitura num metafórico mata-
leão, e que de forma sufocante não te deixe largar o livro. E que os
personagens falem com você como falaram comigo, que plot e os arcs
sejam surpreendentes e que acima de tudo você se divirta lendo, assim
como eu me diverti escrevendo.

• Essa é uma obra de ficção e tudo nela deveria continuar assim; Por
nenhum motivo o que se passa ou é dito no livro é um direto ou indireto
endosso, ou uma lição pessoal sobre o que é certo ou errado.

Beijos, Nina Kennett.

ii
Conteúdo

1. Se Você Não Voltar, Eu Te Busco


2. Eu Quero Ficar Aqui
3. No Coração Da Cidade
4. Bauer Inc.
5. Cobras, Jaquetas e Prédios
6. Paulista vs. Pamplona
7. Lar Doce Lar
8. Sempre Tem Uma Festa
9. ETOH
10. Obrigada, Privada
11. Estranhas
12. Verdades Em Pequenas Doses
13. Intromissões Vizinhas
14. Céu e Peito Aberto
15. Deportiva Cali
16. O Vestido
17. Águas Rasas
18. A Vista Mais Linda
19. O Lírio Da Rua Augusta
20. Abra Sua Mente
21. Milissegundo
22. Essências E Discordâncias
23. Acerte o Tempo No Escuro
24. Maestral
25. Outras Formas de Heroísmo

iii
26. O Doutor
27. Psicologia Avançada
28. Seus Sinais
29. Língua No Pescoço
30. Defina “Sorte”
31. Flores
32. Contra a Parede
33. Veni, Vidi, Vici
34. Nunca Mais Eu Bebo
35. Marcas Em Sangue
36. Número Errado
37. É De Minha Natureza
38. Você Parece Com Ela
39. A (F)Utilidade da Resistência
40. Eureka!
41. Resoluções Noturnas
42. Não Há Como
43. Quando o Chão Se Abre
44. Temos Companhia
45. Ele
46. Despedace-me
47. Perdoe-me a Interrupção
48. Predador & Presa
49. Zero Absoluto
50. Toda Maldita Vez
51. Quem é Você?
52. Você é Meu… Fim

EXTRAS: Aesthetics - Mapas - Referências e Playlist

iv
1

Se Você Não Voltar, Eu Te Busco

E
stou há um tempo parada, observando minhas pífias manipulações
mágicas e seus míseros resultados.
Preciso, a pedido de meu Regente, de elixires curativos para sua
guarda real. Sou a melhor no quesito em meu mundo Adaris.
Mas sem fluída e contínua magia, não há muito que eu possa fazer. Combino
elementos escassos, mas sem seu agente coligativo, no caso a magia que todos
nós dividimos, não há muito que eu possa fazer.
O barulho parecido com um tecido se rasgando em baixo volume a meu lado
chama minha atenção. Sem tempo para entender a fonte do ruído, assusto-me
ao ver algo vaporoso e escuro surgir e crescer a minha frente.
Reflexos rápidos não são necessariamente minha maior qualidade, e numa
lenta tentativa de me afastar, acabo por cair de costas no chão.
— Caliandrei… — o vulto me chama sem boca, mas com clareza. — Não
tenha medo, fada de Adaris. Não lhe farei nenhum mal. — antes que eu possa

1
AS FILHAS DE GUENDRI

dizer qualquer coisa, a feminina voz oferta. — Acredite, venho até você pois
quero o seu bem.
— M-meu bem? — sussurro, sem pensar. Curiosidade e medo dando as
mãos dentro de mim. Minha magia, mesmo fraca já coça em minhas palmas,
fingindo-se pronta para ser usada em minha defesa.
Mas eu bem sei que mesmo se eu a tentasse usar, não faria nada efetivo
contra quem quer que fosse.
— A magia que tem agora correndo em ti não me fará nada. Não é suficiente.
— a sombra invasora sabe, e sua afirmação me faz ouvir meu coração bater
mais forte em resposta. Ainda assim, não abaixo a mão. — Sua reles magia
tem raízes nesta terra, não? Olhe a sua volta. Te parece esta uma terra forte?
Mesmo sabendo que a resposta é não, olho pela abertura que uso como
entrada. Daqui de cima de meu leito-árvore, uma de muitas aqui em meu
mundo, posso claramente ver: Adaris é a mais pura decadência. Fraca,
instável, sem cor, sem vida.
Nossa magia morre e desaparece aos poucos.
Esse é meu mundo. Eu sei bem onde vivo. Mas não entendo por qual
motivo esse ser decidiu vir até mim constatar coisas que ambas sabemos e
estou um tanto estupefata para interrompê-la.
— Acreditaria se eu dissesse que nem sempre Adaris foi assim? — ela retoma
minha atenção.
— Quem é você? — apesar de meu receio, a pergunta finalmente sai.
A Sombra se aproxima, movendo-se sinuosamente. Os efeitos do pavor me
dominam mas não fujo, fico aonde estou.
— Mesmo que eu lhe responda, você não entenderia. E não posso lhe
mostrar minha face neste momento. Deve saber que minha magia, assim
como outras deste tipo são proibidas em Adaris. Não quero que Garou saiba
que estou aqui. Mas se ouvir o que tenho a dizer, prometo que me conhecerá
em breve.
Temor e interesse dançam dentro de mim. Sinto que meus dedos querem
tocar a movente Sombra a minha frente, e vejo meu braço se estender
lentamente, sem esperar minha autorização. O vapor escuro envolve minha
mão lentamente, formando círculos sobre minha pele. Um ar quente e vivo,

2
SE VOCÊ NÃO VOLTAR, EU TE BUSCO

lateja minhas veias e se eu a deixar por mais tempo, me queimará.


Retraio minha mão. Jamais vi ou senti algo assim.
— O que você quer? — o breve calor me acorda do estupor.
— Te ajudar. Te ensinar o que precisa saber para recuperá-la. — eu não digo
nada e ela continua. — És tão jovem, Caliandrei. É também uma das poucas
fadas de Adaris que ainda vivem aqui, correto? E se eu disser que houveram
muitas outras como você? Que Adaris era uma terra fértil e deslumbrante,
berço de criaturas fantásticas e suas magias? Não somente a coletiva que
dividem, mas únicas ás suas especies também. Talvez eu deva te mostrar…
Fumaça fumega rente a meu rosto e meus olhos se fecham contra minha
vontade. Dentro deles, vejo o mesmo lugar aonde estou, mas absolutamente
diferente.
O horizonte não é mais roxo escuro, mas verde claro e laranja em diferentes
e brilhantes tons. Flores, plantas, árvores, pedras, água! Todos os elementos,
seus sons, odores e essências pintam e cantam a paisagem harmoniosa de
Adaris. Há Fus, Ndales e Herberas aos montes, assim como Tátires e Elfos.
E fadas! Com suas asas coloridas pairam no ar, cultivando os grandes lírios
onde se formam e nascem! Eu nunca vi um desses lírios vivos antes, apenas
ouvi falar que existiram, pois não mais se cria fadas, já que se precisa de magia
e esta nos é escassa no momento.
Eu sempre senti essa verdade dentro de mim. A de que meu mundo fora
sim diferente em algum ponto de nossa história. Mas jamais imaginei que
essa Adaris realmente existiu pois nasci um pouco antes da escuridão tomar
conta.
As cores e o calor da visão quase me cegam.
Por mais lindo que seja, não posso me deixar iludir. Relutantemente, me
nego a olhar mais. A imagem se desfaz e quando os abro novamente, o mundo
no qual vivo está como sempre esteve.
Sem vida.
— Isso foi real, Caliandrei. Esta era Adaris antes de Garou se apoderar dela.
Guendri…
— Você o conhece? — a corto.
Há muitas perguntas relativas a esse nome em minha mente. Guendri, o

3
AS FILHAS DE GUENDRI

gerador de Adaris e todas as espécies que aqui vivem, é alguém que só ouvi
falar o nome. Infelizmente nunca o vi, apesar de ter ouvido que era costume
vê-lo apreciando o mundo que criou, confraternizando com sua criação. Mas
ele desapareceu. E até mesmo para quem o conheceu, é difícil saber quando
voltará; Para muitos que nunca o viram, é mais difícil ainda acreditar até
mesmo que existiu.
Mas não para mim.
— Como sabe, sua magia precisa passar por ele para renovação, redireção,
refortalecimento. E por isso, antes de Guendri partir, ele teceu e formou uma
de suas maiores criações para que protegessem Adaris e mantivessem seus
eixos mágicos quando partisse.
— Garou é a maior criação de Guendri? — ele é quem está nessa posição
desde quando saí de meu lírio.
— Não. A Última Ordem Regencial de Adaris é matriarcal. Guendri deixou
fadas que criou com seu próprio sangue para proteger seu reino e as chama
de Filhas. Não um elfo. E você precisa encontrá-las…
Ouvi rumores das Filhas de Guendri uma única vez em toda minha
existência. Nunca pude confirmar pois ninguém que restou em Adaris as
viram para saber se é verdade. Fadas mais fortes que a própria guarda de
Adaris composta por valquírias, criadas pelo próprio Guendri para substituí-
lo em uma possível ausência.
Mas até então nunca passaram disso: lendas.
— Garou sempre foi nosso líder, todas as valquírias o seguem e obedecem
suas ordens. Elas não fariam isso se ele não fosse o escolhido Regente.
— Engana-se. Se Garou fosse o Regente, Adaris não estaria nesta situação
precária, nem a magia tão fraca que seus habitantes mal podem sentir ou
praticá-la. — diz a Sombra.
— Nosso Regente diz que estamos assim por causa do descaso de Guendri,
que nos abandonou e não deveríamos esperar por ele, pois se foi para criar
um novo mundo e levou a magia com ele.
— Garou mente.
— E você não?
— Me arrisco e muito ao vir até você, pequena. Certamente, nunca viu algo

4
SE VOCÊ NÃO VOLTAR, EU TE BUSCO

como eu. Sabe qual é a punição para intrusos, não? Ademais, não há mais
tantas fadas ou outros seres restantes para quem eu possa oferecer ajuda. Ou
mais importante, que seriam capazes de cumprir com os passos necessários
para a mudança. Mas vejo em você, Caliandrei, uma oportunidade de colocar
tudo em seu lugar. Se não acredita em mim, pode me testar.
— Como?
— Pode começar por exemplo, com o que sei sobre Garou. Sabia que ele
conhece pessoalmente uma das filhas de Guendri? Não só a conhece como a
mantém viva aqui mesmo, em Adaris.
Meu choque é audível. Isso é uma absoluta insanidade! Garou jamais faria
isso, jamais mentiria para nós.
E ainda assim…algo dentro de mim me instiga a querer saber mais.
— A-aonde?
— Você o serve na corte, não? — indaga e eu me pergunto como ela sabe
tanto sobre mim. — Elfos de Adaris tem variados níveis de poderes telepatas.
E é assim que ele a esconde de todos. Sozinha, desmemoriada e sem razão
para sua existência além de agradá-lo. É provável que ao tentar se livrar das
Filhas, Garou se apaixonou por uma, apagou sua memória e a manteve para
si.
— Então, se ele a tem aqui em Adaris como você diz, por quê os eixos
mágicos ainda estão desalinhados?
— Porquê a que ele mantém em cativeiro não foi a escolhida por Guendri
para Regenciar. Quando ele as criou, as fez diferente para que pudesse
escolher ao longo de seus treinamentos a mais capaz de coordenar a magia de
seu mundo. E mesmo ele não a escolhendo para ser Regente, ela foi treinada
para liderar a guarda regencial, possui excelentes habilidades de combate e
muita força. Para provar que digo a verdade, te direi aonde encontrá-la. Mas
com uma condição.
Uma súbita vontade de saber se essa é mesmo a verdade, me toma, não
consigo evitar.
— Qual seria a condição?
— Após encontrar essa Filha, você precisa interpelar pela outra. Seu mundo
não voltará ao normal se você não encontrá-las. E não será tarefa fácil pois

5
AS FILHAS DE GUENDRI

terá que procurar em um outro mundo.


— Não podemos sair de Adaris, é proibido.
— Ainda quer seguir as regras de quem mente para você? Talvez precise
mesmo da prova concreta que te ofereço para acreditar em mim. Encontre
a que Garou esconde e eu voltarei até você. Quando entender que digo a
verdade te darei o necessário para encontrar a outra. — sem saber se hesito
ou não ela reforça a oferta. — Mais uma prova que lhe darei para que acredite
em mim: nas costas da fada que encontrar haverá uma marca incandescente
entre suas asas. É uma marca de Guendri e somente suas filhas a possuem.

Depois que a Sombra partiu, eu debati várias vezes se deveria mesmo


procurar.
Nos dias seguintes, vasculhei entre as grutas escuras ao extremo nordeste
de Adaris, atrás do castelo e corte de Garou, sem deixá-lo saber que eu o fazia.
Eu conheço bem as outras partes de Adaris, menos aquela por serem redomas
reais. Pela lógica, se ele esconde algo, deve ser ali.
Demorei dias mas por fim, encontrei uma gruta paradisíaca, com lago de
águas verdes coberto por muita névoa e envolto por pontiagudas pedras. Um
lugar frio e escuro, em um cortante silêncio.
E para minha surpresa, eu encontro uma fada despida de vestimentas
e memórias, o corpo perfeitamente esculpido de uma amazona, de pele
ricamente negra e olhos tão verdes como as águas onde nadava.
Entre suas também verdes asas, a marca brilhando a única luz daquele lugar.
Por Guendri. A Sombra fala a verdade!
Com determinação e pressa, me aproximo dela cautelosamente e tento
conversar. Por sorte, não quis me atacar, mesmo tendo sido criada para isso.
Ela não sabe nem seu próprio nome, mas de acordo com a Sombra, Guendri
lhe nomeou Alexandrai. Eu lhe disse isso e muito mais: tudo sobre mim, sobre
Adaris, o pouco que eu sabia sobre Guendri e sua irmã, e a mais importante
verdade sobre o elfo que na verdade a aprisiona ali, Garou.
E após alguns outros breves encontros entre nós, ela passa a confiar em
mim. Assim como eu confio nela, resolvendo assim também acreditar na

6
SE VOCÊ NÃO VOLTAR, EU TE BUSCO

Sombra.
Convencida e revigorada com a possibilidade de uma nova Adaris onde
todos possam viver livres em sua magia, ao me reencontrar com a Sombra,
concordo em fazer o necessário para recuperar a verdadeira Regente.
Ela repete que a Regente está no mundo humano. Eu sei que existem outros
mundos, mas nunca estive em nenhum deles.
— Não tenha medo, pequena. — move-se com vigor, sua fumaça formando
runas e círculos diferentes com a empolgação da minha aceitação. — Os
humanos são seres peculiares, mas amigáveis em sua maioria. Há também
outros seres de Adaris vivendo normalmente lá após terem fugido antes do
fechar completo de suas portas e portais. — a Sombra tenta me encorajar com
a possibilidade de encontrar mais conterrâneos lá fora. Admito, ela consegue.
— Se não fosse capaz de fazer o que proponho Caliandrei, eu não viria até
você. Apenas peço que mantenha meu nome e a magia que te emprestarei
sob o mais absoluto segredo. Como já te disse, corro riscos ao vir até você.
Mas se fizer tudo como digo, dará tudo certo.
E assim aceitei.
Ela estava certa também quanto a isso. Eu sou sim capaz de cumprir essa
missão. Eu sempre soube dentro de mim que sempre houve algo melhor para
Adaris e agora eu sei que é verdade. E nem mesmo quando entendi o quanto
poderia me custar resgatar a regente pensei duas vezes.
Eu preciso de magia, pois a minha é pouca. Aceito dela uma da qual mal
entendo a respeito, mas abrirá os necessários portais, entre outras coisas. E,
eventualmente acabará.
Eu também preciso enganar Garou. Isso não será nada fácil mas não
importa. O futuro de Adaris não tem preço. Alguém precisa fazer algo
e esse alguém sou eu.
Mesmo que isso custe a minha vida.
E se esse é o preço… eu não tenho medo de pagar.

7
2

Eu Quero Ficar Aqui

O
lho para Jaqueline, a terceira garota que trouxemos para ter sua
mente lida pelo elfo.
Ela está desmaiada, de cara na mesa redonda de vidro na qual
todos estamos sentados ao redor.
— Por que a mente humana é tão bagunçada? — Igor levanta da cadeira,
ainda com a peruca e maquiagem de seu show drag queen como Madonna. — É
informação inútil demais. Como guardam tudo isso num espaço tão pequeno
sem explodir? — pega um frasco de comprimido atrás de si e chacoalha uma
boa quantidade deles para dentro de sua boca.
Para encontrar Mabelai, uma das ideias que tivemos veio do elfo que
conhecemos aqui. Ele sugeriu usar seus poderes para fuçar mentes humanas
atrás de pistas do paradeiro dela.
Que é exatamente o que fazemos aqui agora na casa de Igor.
E pela primeira vez, conseguimos algo concreto. Igor, elfo de Adaris e

8
EU QUERO FICAR AQUI

telepata, viu resquícios de Mabelai através dos olhos da humana Jaqueline e


pôde senti-la perto. Nem eu sei como funciona direito mas Igor desenvolveu
uma técnica onde consegue localizar alguém através do que se vê sobre ela
na mente dos outros. Depende do tipo de memória, quantidade e mais
importante, a conexão entre o dono da memória e o desaparecido. Ah,
e também dos muitos cristais diferentes ao nosso redor também, todos
recebendo e refletindo a magia um do outro, como bússolas, ou localizadores
de latitudes e longitudes. “Aprendi a com uma fada de outro mundo que
conheci aqui.” ele nos explicou. Impressionante, devo admitir.
Após tomar remédio para a dor de cabeça, ele apaga nós três e tudo o que
contamos a ela da memória da garota. Igor sempre o faz após ler a mente de
nossos voluntários.
Posso ver em sua face que nem ele esperava encontrar a informação que
encontramos hoje. E diferente de nós dois, Cali está em absoluta empolgação
com a confirmação da presença próxima da Regente, sorriso de orelha a
orelha.
Entendo seu estado, já faz alguns meses que, sem muito sucesso, procu-
ramos evidências mais concretas da existência dela…
Minha irmã.
Ainda não consegui me acostumar com a ideia de que tenho uma.
Há alguns meses humanos atrás, tudo o que eu tinha era um lago, um ser
que me visita ás vezes, e nenhuma noção de quem eu era. Eu não sabia nem
que eu tinha um nome, ao menos ele -que agora sei que se chama Garou-
nunca me chamara por um específico. Apenas me chamava de minha bela e
me fez crer que éramos os únicos seres no universo.
No primeiro momento em que Cali me encontrou e me disse quem eu era,
não acreditei. E por quê acreditaria?
Eu não era ninguém, eu não tinha nada. Em minha obediente e focada
natureza, qualidades existentes em mim mesmo sem eu saber quem era,
Garou era tudo para mim.
Mas quando ouvi a palavra “Adaris” pela primeira vez através da boca de
Caliandrei, algo dentro de mim decidiu sem pensar duas vezes dar uma chance
ao que ela me dizia. Algo dentro de mim acordou e entendeu que havia muito

9
AS FILHAS DE GUENDRI

mais além daquele lugar aonde Garou me escondia.


Sou uma fada de Adaris. Uma Filha de Guendri.
E eu precisava descobrir o que isso significa.
Ainda não me lembro de absolutamente nada, nem de como ou quem eu
era, aonde estive ou o que fiz. Não lembro de Guendri, de Mabelai, ou de
Adaris. Creio que minhas memórias nunca mais serão recuperadas pois já
tentamos de magia, as leituras de Igor e seus cristais e nada funcionou.
Infelizmente, não posso conhecer ou andar por Adaris para entender mais
de onde venho. Não posso arriscar ser vista fora de onde ele me esconde e
pôr tudo em risco, alertando Garou que sei mais do que ele me faz acreditar.
Minha vontade é de chegar quebrando seus ossos um por um, tomar Adaris
de uma vez só. Mas segundo Cali, ele tem todos os habitantes restantes a
seu lado. Por medo, ou simplesmente adoção de sua causa, como a guarda
real de valquírias que o defendem como se ele fosse realmente o Regente. É
difícil entender isso, mas como outrora eu mesma acreditava nele piamente,
imagino que outros também o fazem.
Então por enquanto finjo que ainda sou apenas quem ele me fez ser.
Quando pisei no mundo humano e encontramos outros como nós, entendi
que nunca mais poderia ser a mesma. Não poderia mais me esconder numa
lapa fria e sombria, comendo as balelas oferecidas por um falso deus que
nunca me dirá a verdade.
Alexandrai, me nomearam. Quem nomeou? Não lembro. Quando Igor
nos conheceu, passou a chamar Caliandrei de Cali e a mim de Alexis. “Muito
humanos se chamam por apelidos, fica mais prático” nos explicou.
Aderimos.
Apesar de ainda aprender e não entender muito sobre a cultura humana,
as poucas similaridades que temos entre nossas espécies acaba me fazendo
sentir normal quando estou aqui. E para ser honesta… eu adorei esse mundo.
Quero recuperar Adaris apesar de nunca ter conhecido nada lá além de
minha gruta e lago. Entendo e aceito minhas supostas ligações com o lugar.
E assim como Cali e Igor, também quero encontrar minha irmã.
Mas gosto de andar entre humanos e quando resolvermos tudo, eu quero e
vou ficar aqui.

10
EU QUERO FICAR AQUI

Nosso plano tem funcionado. Escapamos as vezes, escondemos nossos


rastros com magia. Garou não suspeita de nada, nem de que Cali e eu nos
conhecemos e não estamos mais a mercê de seu controle, nossas mentes
blindadas de seu poder telepático invasivo.
Cali arranjou uma forma de fazer isso. Só que esse tipo de magia não
pertence à fadas. Nossa magia é baseada em Guendri e tem raízes nos lírios de
Adaris e por isso não podemos praticá-la, já que Adaris está fraca e decadente.
Também não podemos praticá-la no mundo humano a não ser que usemos
um condutor, algo que humanos gostam de chamar de “varinha de condão”.
Cada fada tem a sua e não são necessariamente varinhas. De acordo com Igor,
cada fada transfere seu poder para o objeto que quiser e assim o utiliza em
qualquer outro mundo. Ele faz algo semelhante com seus cristais.
Nem Cali nem eu usamos nada, já que assim como eu, ela também não usa
seus poderes de fada. Ela utiliza o poder que uma tal Sombra lhe deu para que
encontremos Mabelai.
Cali diz ser temporário.
Tem funcionado então não reclamo.
— Realizou o deseja da menina, Cali? — Igor pergunta, atraindo minha
atenção novamente para a sala onde estamos e a garota de cara na mesa a
qual sentamos.
— Quando ela acordar vai ver o que nos pediu. Apagou a gente da memória
dela?
— Sim. Quem é a próxima garota da lista que ele te deu? — ele me pergunta.
— Ainda temos que contactá-la. Mas acho que seu nome é Venérea…
— Verena. — Cali me corrige com um sorriso.
Me levanto. Já está tudo feito e não devemos demorar aqui. Minha parte
é levar Jaqueline para sua casa com segurança, antes que ela acorde e nos
apagar de sua mente não tenha servido de nada.
Coloco a garota em meu ombro com facilidade. Uma das coisas que aprendi
sobre mim é que sou forte. Bem forte. E que sei lutar. Uma das pessoas que
nos ajuda me faz praticar. Ou como ele diz “reaprender”, já que de acordo
com ele, as filhas de Guendri são formidáveis guerreiras.
Saio pela porta de trás da casa de Igor, olhando a parte traseira do

11
AS FILHAS DE GUENDRI

estabelecimento que fica ao lado. “O Lírio” pertence a Igor: uma casa de


shows Drag Queen bem famosa na Rua Augusta, cidade de São Paulo. Ele a
inaugurou quando saiu de Adaris por não concordar com as ditatorialísticas
regras de seu velho mundo e conseguir fugir a tempo. Assim como muitos
outros, ele escolheu o mundo humano como novo lar.
Assim como eu pretendo fazer.
É tarde da noite e eu observo alguns dos bêbados e seus amigos frequen-
tadores do Lírio darem altas risadas que ecoam entre os outros barulhos
da Rua Augusta, o que sempre me faz sentir o quanto aprecio esse lugar. É
interessante, sonoro, caótico… vivo.
Foi aqui que aprendi a dançar. Não sei exatamente por que mas eu gosto
disso. Talvez minha natural inclinação para dança me faça predisposta a
parecias atividades físicas que requerem coordenação; Pode ser, é apenas uma
teoria. Nunca pensei muito a respeito. Não o faço muito, pois não nos sobra
muito tempo. Aqui é também aonde ouvi musica pela primeira vez.
A partir dali a vida humana começou a me interessar mais que a de fada.
Após meia hora andando furtivamente pelos becos ainda escuros da cidade
com uma garota no ombro, encontro a casa de Jaqueline. De asas brevemente
abertas entro pela janela e a deixo em sua cama.
A agradeço mesmo sem ela poder me ouvir. Imagino que tenha sido difícil
para ela acreditar no que contamos sobre fadas; e ainda assim, ela aceitou nos
ajudar. É claro que a pequena bebida que Cali oferece a quem precisa nos
ouvir antes de falarmos ajuda qualquer um a acreditar em qualquer coisa.
A baixinha entende de potentes misturas e isso deixa tudo bem mais fácil.
Ainda assim, é admirável dar uma chance ao desconhecido.
Eu mesmo ainda tenho minhas dúvidas. Mesmo depois de hoje confir-
mando que sim, Mabelai existe e está nessa cidade ou próxima a ela, ainda
não quero elevar minhas esperanças além do racional. Admiro o otimismo
de Cali, mas infelizmente ainda partilho do receio de Igor.
Volto depressa. Igor me avisa que Cali já voltou para Adaris.
Do alto do pequeno terraço de sua casa, observamos a Rua Augusta, calados.
Preciso voltar, mas assistir o sol do mundo humano nascer é um imperdível
espetáculo, admito.

12
EU QUERO FICAR AQUI

Igor coloca seu braço sobre meu ombro.


— Anda, fada. Sei que você tem seu jeito caladão, mas vai… fala comigo.
— Confirmar que ela existe é tão… surreal.
— É como me senti ao te ver pela primeira vez. Se eu soubesse que as filhas
de Guendri não eram só lendas, eu as teria procurado desde quando aquele
desgraçado do Garou tomou Adaris. — Igor respira fundo. — Espero que
mais pessoas tenham conseguido fugir antes de tudo se fechar. Quem sabe
talvez até procuram o mesmo que nós?
A ideia já tinha me ocorrido. Procuram em outro mundo enquanto eu
estava logo ali.
— Não imagino que me encontrariam. Acredita que em todo esse tempo
com ele eu nunca tinha visto outra pessoa?
Pesaroso, Igor me oferece um sorriso fraco. — Em nome de minha espécie,
mil perdões. Nós elfos não somos todos assim como Garou. — e realmente,
ambos seres são completamente opostos. — Por Guendri, as vezes eu até
duvido que ele seja mesmo um de nós. — Igor sussurra para si mesmo e eu
não absorvo essa informação, pois honestamente não fará nenhuma diferença
se ele é ou não.
No momento certo, sua cabeça irá rolar independentemente.
Assisto humanos aproveitando as últimas horas de suas noites de sábado.
Eu queria ser como eles. Sinto uma pontada de inveja da liberdade que possuem
de ir e vir para onde querem e quando bem entendem.
Igor me observa. Não precisa ler minha mente para saber como me sinto
no momento. Posso ver seu sorriso triste sob os primeiros raios solares que
nos atingem e me lembro que é por isso que não gosto de dizer muito o que
penso ou sinto. Detesto os olhares de dó ou o sentimento de pena que causo
nos outros. Me irrita.
— Em breve, amiga. — ele coloca uma mecha de meu curto cabelo preto
atrás de minha orelha e deposita um beijo afetuoso em minha têmpora. —
Em breve estaremos livres. E você não terá mais que servi-lo. — um tempo
passa e Igor finamente solta a pergunta que com muita cautela, faz de tempos
em tempos. — Ele não te machuca, né?
Ninguém além de mim sabe exatamente o que ele faz comigo. E nem

13
AS FILHAS DE GUENDRI

saberão. Não há por quê. Como sempre, guardo tudo dentro de mim pois
essa parte é minha e apenas minha farda para carregar. Aplico um sorriso
comedido em meu rosto e o ofereço a Igor.
— Não se preocupe comigo. O que faço é por Adaris. Por você, por Cali.
Ela merece isso mais do que ninguém. — suspiro, cruzando os braços e
propositalmente desviando o foco. — Ela se sacrifica demais e não devia…
— Cali é mais forte do que você pensa, Alexis.
— Gente forte também se machuca, Igor. — rechaço. — Não a acha jovem
demais para tudo isso? — a conheço a pouco tempo, e surpreende até a mim
o quanto já me importo com ela. Apesar de dever muito a ela e a sua coragem,
não posso deixar de reparar o quão mais nova, otimista e talvez ingênua ela é,
comparado a todos envolvidos nisso; sem contar na tal magia emprestada. —
Tenho a impressão de que esse tipo de magia que ganhou da Sombra não é
compatível com seu corpo… e se Garou a pegar…
— E por isso protegemos um ao outro. — sorri. — Talvez não se lembre
mas isso o que está sentindo é uma coisa boa: você tem afeição pela Cali,
preocupação. É normal sentirmos isso por quem nos importamos. Mas,
lembre-se: Cali é inteligente e sabe o que faz. E se não fosse seu otimismo não
estaríamos aqui agora. Com você a seu lado eu acredito que vamos conseguir
libertar nosso mundo. — se põe a minha frente e me abraça. Assistimos o
resto do acordar do Sol em silêncio. E assim que o claro se faz completo, nos
despedimos. — Agora vai. Antes que Garou te procure e não te encontre.
Concordo com ele apesar de que se Garou me procurar, eu saberei. Por
algum motivo bizarro posso sentir quando ele me quer.
Relutantemente, me despeço de Igor. Olho uma última vez para as pessoas
na rua e o céu agora azul-claro, guardo a imagem como uma obra de arte em
minha mente.
Em breve você também será livre, Alexandrai. Em breve.

14
3

No Coração Da Cidade

J
ogado no sofá vermelho da recepção do escritório onde trabalho está
Flávio, dispensando minha ladainha com “aham”, cara colada em seu
celular.
Não importa quão importante o que eu conto é, seus grupos de WhatsApp
parecem mais urgentes neste momento.
Conheci o gigante magricelo de dezoito anos, com carinha de menininho e
vozerão de homem quando o vi substituir seu pai, o sorridente Sr. Jair, na
portaria do prédio onde trabalhamos aqui na Avenida Paulista. Começamos
com ele tirando sarro da minha cara no dia em que vim fazer entrevista, e
depois quando ele me pagou uma coxinha de almoço, acabamos jogando
conversa fora sobre video games e música, daí descobrimos que dividimos o
mesmo senso de humor besta para memes idiotas e em pouco tempo, mesmo
com a diferença de idade de cinco anos, conectamos numa amizade talvez
improvável, mas que segue firme.

15
AS FILHAS DE GUENDRI

Se ele está aqui no prédio onde trabalho, é assim que passamos nosso
horário de almoço: juntos, na maioria das vezes fazendo nada.
— E então, Magrelo? — pergunto novamente, chamando sua atenção
usando o apelido que coloquei nele.
— Então o quê? — ele nem olha para mim.
— O que você acha do meu sonho?
— Ah, isso. — Flávio finalmente me fita por um segundo, celular ainda na
mão. — Todo mundo sonha esquisitice, Magrela.
Alguns minutos atrás quando fomos almoçar, eu contei a ele como acordei
hoje suando e tremendo violentamente.
De novo.
Não é uma esquisitice “normal”. Meus sonhos estão ficando mais longos,
vívidos, impossivelmente altos em volume, literalmente fazendo meus
tímpanos doerem. Não é comum sonhar com som. Chegou ao ponto de
dificultar meu dormir. E a frequência entre um e outro está aumentando.
Sonhava um ou outro assim enquanto crescia. Durante a adolescência, eles
se tornaram mais longos, mas ainda assim eram raros. Agora adulta com
vinte e dois anos, acontecem quase todo mês. Não são necessariamente cenas
de terror, por isso não os chamo de pesadelos.
São apenas… intensos.
Flávio repara que sua explicação não desfaz minha cara de preocupação e
tenta novamente.
— Já procurou na internet? — indaga.
— Sim. Encontrei muitas explicações. Posso ter de gripe suína a câncer
terminal. — a internet é cruel com quem pode estar doente. Sério, jamais
procure nela qualquer coisa relacionada a sua saúde, ou senão vai piorá-la.
— Mas poucas fazem sentido. Psico somas não são particulares de nenhuma
doença específica.
Ele me olha divertido, acha engraçado quando uso jargões médicos.
— Não sei, Verena. — em raras vezes ele me chama por nome. — Acho que
você devia ir no médico se as dores estão te preocupando. Tem alguns aqui
no prédio, mas o Doutor Gregório é o melhor. A agenda dele como sempre
está lotada mas posso falar com ele por você. O Dimmy te dá seguro de saúde,

16
NO CORAÇÃO DA CIDADE

não? Usa lá. — Flávio sugere.


A sugestão de ir no Doutor Gregório me dá um frio na barriga. Ter que
ir ao médico por causa de dores causadas por sonhos parece exagerado e
assusta um pouco… e se tiver mesmo algo de errado comigo? “Vou morrer
por que não tenho dinheiro para pagar um tratamento”, rio por dentro para não
chorar por fora.
— Você não é o garoto prodígio estudante de medicina? Tô me consultando
contigo agora, oras.
— Não é você que quer ser psicóloga? Tudo que envolve a mente é tua área.
— ele retruca. — Ainda tô no meu primeiro ano, e apesar de não precisar de
um diploma para saber que você é meio louca, preciso de um para oficializar.
— sorri.
Ô moleque abusado. Sem resposta apenas fico com a face da mais pura
anedonia e decido mudar de assunto antes que eu mande ele ir para aquele
lugar.
— A que horas será seu jogo amanhã?
— Não vai mais ser amanhã.
— Como não? Não é todo sábado?
— O nosso querido prefeito vai usar a quadra amanhã para um evento.
Anteontem anunciaram que o jogo seria sexta-feira, ou seja… — Flávio levanta
e vem até minha mesa, se escorando na mureta de mármore branco a frente
dela. Por ser muito alto, daqui onde sento ele parece um coqueiro. — Hoje á
noite. Você vai, né?
— Hoje não dá. — torço meus lábios. — Não te disse há vinte minutos atrás
que vou trabalhar até tarde e depois vou à festa do Lucas?
— Que Lucas?
— Meu vizinho. — sorrio. E muito.
— Ah… o boneco.
Como sempre falo de Lucas e seu imaculado corpo, rosto e cabelo, segundo
Flávio, parece que estou afim de um boneco Ken da Barbie.
— Começou… — reviro os olhos.
— Ué, você não fica falando que o cara é sarado, perfeito, lindo, blá, blá, blá?
Então. Boneco.

17
AS FILHAS DE GUENDRI

Flávio adora causar comigo. Ele não devia falar nada de ninguém pois é
uma gracinha, magrelo do tipo esportivo, certamente tem várias menininhas
correndo atrás dele o que faz dele um Ken em potencial. Além da carinha fofa,
sua altura e talento no basquete também são notáveis. E é um super CDF.
Tirava as melhores notas na escola. Mas mesmo tendo a inteligência, não
tinha o dinheiro para estudar na faculdade em que passou no vestibular com
êxito. E por isso meu chefe que coincidentemente é padrinho de Flávio, paga
sua mensalidade entre outras coisas como transporte, livros, etc.
Flávio merece tudo isso pelo seu trabalho duro. Ele é dedicado e eu o tenho
para mim como um irmão, mesmo sendo um baita dum mala sem alça ás
vezes.
— Desde quando o boneco te convida pra festinha?
— Me convidou hoje de manhã quando eu estava saindo para trabalhar.
Lembra que depois da coxinha parei pra comprar aquele vestido hoje? Foi lá
que te disse que ia sair á noite. Se você não estivesse com a cara no celular,
saberia.
— Ah é, pode crer. Ha, olha só a Magrela, comprou até vestido novo pra
pegar o cara. Dedicada, hein.
— Não comprei vestido pra pegar ninguém. — mentira, comprei sim. Mais
ou menos. Mesmo assim pego uma caneta da minha mesa e jogo nele pelo
abuso de falar alto minhas segundas intenções. Ele desvia a tempo. — Eu não
tinha roupa pra sair, ia comprar roupas novas de qualquer jeito.
Pela cara dele, sei que não acredita.
— É, você tá quase um personagem de desenho animado, usando a mesma
roupa todo dia, mesmo comprando roupa nova. — joga na minha cara.
Penso em responder, mas… ele tem razão. Quando me mudei para São
Paulo, não trouxe muitas roupas comigo. Nunca tive muito dinheiro, tempo
ou saco para ir comprar mais roupas. Até gasto algumas horas nos site
chineses mas no fim não dou checkout e fica por isso mesmo. E também
para quê compraria se nunca tive muitos lugares para exibi-las? Além de
quê, onde vivi lá em Cunha, interior de São Paulo, enquanto crescia não
podíamos usar nada além de uniformes lindíssimos de tactel providos pela
escola estadual, e que mais pareciam sacos de batata com o slogan do governo.

18
NO CORAÇÃO DA CIDADE

Acabou virando meu uniforme também fora da escola.


Agora adulta continuo simples: me dê uma camiseta, uma calça jeans e
meu fiél All Star branco, e eu estou pronta para o que der e vier. E aqui no
escritório, calça escura e camisa de botão.
Conforto e estilo, quero mais o quê?
E cá entre nós, Flávio não tem moral nenhuma para me acusar.
— Quê que você tá falando, sua vara de pescar? Eu só te vejo com regata do
Chicago Bulls e não falo nada, seu projeto de Michael Jordan. — ele faz uma
careta torta para me zoar. Ignoro. — Enfim magrelo, não vai ficar bravo se
eu não for nesse jogo de hoje, né?
— Fiquei bravo quando você não foi nos outros? — Flávio entende. Ele
sempre joga em quadras diferentes, as vezes longe demais e eu vou só nos
mais perto. Ele olha no celular. Nosso horário de almoço acabou. — Beleza
magrela, vou voltar pra portaria. — levanto para ele me dar o abraço de
despedida de sempre. Por um raro momento me sinto baixinha entre seus
longos braços, acompanhados por um beijo na testa. O cabeçudinho é
carinhoso que só. — Aproveita lá na festa e não vai pagar mico, hein?
— Que festa? — uma voz grave nos corta me assustando, e eu me pergunto
por quê raios eu nunca o ouço entrar…

19
4

Bauer Inv.

A
voz que quebra nosso abraço é reconhecida por nós dois.
Ambos viramos para o dono dela.
Dimitri Bauer.
Meu patrão. À porta, esperando uma resposta a sua pergunta. Uma mão no
bolso da calça social azul escuro, a outra segurando seu celular.
— A festa que a magrela vai hoje pra pegar o vizinho dela. — Flávio já vai
me dedando ao se dirigir à porta e eu fico absolutamente sem jeito. Antes de
sair da minha sala de recepção, ele se vira para Bauer. — Você vai ver meu
jogo hoje né, Dimmy?
Mesmo tentando me recompor da momentânea vergonha, acho engraçado
como Flávio chama Dimitri de Dimmy. Não vejo ninguém mais se dirigir à
ele desta forma, provavelmente por isso acho engraçado.
Por quê? Bem, Bauer, não parece ser do tipo que encoraja tais intimidades.
Na verdade, acho que encoraja exatamente o contrário. Pelo menos em mim.

20
BAUER INV.

O homem de cabelos incrivelmente negros é sério demais, muitas vezes até


mal humorado. Sempre foi respeitoso, nunca o ouvi elevar a voz. Mas por
outro lado, nem precisa. Já me intimida com sua voz baixa mesmo. Fato é
que o normal do meu patrão são duas expressões: cara de nada ou cara de
quem está extremamente puto com algo.
É a feição natural dele.
Conclui há algum tempo que esse seu jeito carrancudo de ser deve tê-lo
ajudado em sua carreira. Bauer é um bem sucedido investidor. Mas não
esses investidores de instagram, coach maluco de internet que fica imitando
animal e dando palestra babaca. Não, ele está no mercado há anos, tem sócios
espalhados por aí e adora escolher propostas promissoras, jogar umas notas
de dinheiro nelas e receber o quíntuplo de volta. Quando vi o quanto de
sonhos ele financia de pessoas que outrora não teriam o capital para iniciar
seus projetos, passei a realmente admirar Bauer e seu semblante fechado.
E sim, é assim que o chamo: Bauer. Pelo sobrenome. Profissional. O
chamaria de “senhor” se ele não fosse tão jovem e quando eu o fiz ele ficou me
olhando com cara de quem quis me demitir na hora. E em nome dos meus
boletos, desisti de chamá-lo assim de novo. Faz sentido, acho que Bauer tem
trinta e poucos anos e talvez não se sinta ainda um “senhor”. Sei lá, estou
esperando ele sorrir para eu perguntar.
Acho que vou morrer sem saber.
Aqui no escritório da Bauer Investimentos somos três: eu, ele e Lena. Mas
a maravilinda Lena passa mais tempo fazendo as viagens que Bauer não quer
fazer, cuidando de seus investimentos e promovendo mais negócios em seu
nome ao redor do país, então é difícil vê-la. Nos falamos ao telefone boa parte
do tempo.
Lena é o tipo de mulher que eu gostaria de ter crescido por perto. Ela é
esperta, rápida e eficiente. Me conta que assim que juntar dinheiro o suficiente
se aposentará num sítio em seu estado natal Mato Grosso do Sul. Ela está
sempre me mostrando terrenos á venda, contando quantas cabeças de gado
quer ter. Eu a admiro por seu profissionalismo e competência. E o chefe
confia cem por cento em sua capacidade de fazê-lo mais rico.
Bauer também passa mais tempo fora do escritório que dentro e quando

21
AS FILHAS DE GUENDRI

está aqui, raramente sai de sua sala.


Já eu, fico aqui o tempo todo.
Mas o tempo todo mesmo.
Bauer não brincou quando disse que precisava de alguém com muito tempo
livre. Ele usa todo o espaço da agenda da minha vida. E como paga bem por
ele, não reclamo. Minhas contas estão em dia e eu estou até começando a
guardar dinheiro para a faculdade e talvez um carro, o que é um milagre nessa
economia.
— Seu jogo não era amanhã? — Bauer pergunta sobre a Flávio, voltando
minha atenção a eles.
— Era. Mas passaram pra hoje porquê usarão a quadra amanhã. — Flávio
parece se lembrar de algo. — Espera, você não tem aquele jantar amanhã? —
meu chefe assente. — A Verena vai, né?
— Vou aonde? — me intrometo.
Bauer vira para mim. — Já explico. — para Flávio, responde: — Não
prometo, mas vou tentar.
Um sorriso se abre no rosto de Flávio com a possibilidade. O que é
engraçado pois Bauer vai em quase todos os jogos dele. Ele realmente
acompanha de perto a vida do Magrelo. Ver como ele gosta de seu padrinho
me faz sorrir para mim mesma. Bauer é uma das poucas presenças positivas
na vida dele. Gosto de ver a proximidade dos dois e o carinho que o zé carranca
aqui tem com ele. Pensando bem, isso até confirma que Dimitri Bauer é um
ser humano e não um robô. O que ás vezes duvido.
Flávio se despede e sai. A sala de repente parece menor do que é, o que
acontece sempre que o chefe de qualquer pessoa está presente no trabalho.
E com Bauer, essa sensação piora.
— Jantar? — questiono tímida e novamente.
— Meus sócios estão na cidade e é costume que minha secretária os conheça.
Aff… não dava para nos apresentar aqui mesmo? Nomes, apertos de mão,
eu sirvo um cafezinho e pronto?
Penso em dizer não. Penso em uma boa desculpa para acompanhar esse
“não.” Já estou tão acostumada a uma vida social lenta e não existente que o
prospecto de dois eventos com pessoas que não conheço em menos de vinte

22
BAUER INV.

e quatro horas já me dá urticária.


Por outro lado… não foi para isso que vim para a cidade? Para expandir
meus horizontes? Viver aquele filme anos 90? Não posso me acostumar a
ficar mofando em meu apartamento.
Me convenço a aceitar o convite com um humilde, mas corajoso sorriso.
Ver Bauer fora de nosso ambiente de trabalho vai ser estranho, sem sombras
de duvida. A única vez que nos vimos assim foi na minha segunda semana de
trabalho há uns meses atrás, em um dos jogos de basquete de Flávio. Sentamos
em lados opostos da quadra. Quando o vi, acenei entusiasmadamente,
sorriso de orelha a orelha. Ele apenas me olhou, apertou os olhos tentando
me enxergar e reconhecer, lançou um rápido sorriso em resposta que mal
consegui ver, e depois ignorou minha presença por completo.
— Esteja pronta às seis da tarde. Mandarei um uber te buscar.
— Aonde vamos? — preciso saber o que vestir. Por algum motivo não nos
imagino indo a uma barraquinha pegar um pratão de yakisoba. O que seria
delicioso, aliás.
Ele pensa por um momento.
— Surpresa. — alega, do nada.
???
— Mas o que devo…
— Pergunte a Lena, ela sabe. — Bauer me corta. — Algum recado pra mim?
Passo os seis recados deixados nesta manhã. Ele ouve atentamente.
Deixo um recado específico para ser dado por último.
— Alina ligou. E ela me perguntou por quê você não atende seu celular. Eu
disse que não sabia, que só cuido do telefone do escritório. Ela começou a
chorar e me perguntou se você está saindo com alguma… “piranha vagabunda”.
— falo essas palavras fazendo as aspas com as mãos. Tento com todo meu
esforço fazer essa mensagem sair como qualquer outra mensagem de trabalho.
Ele precisa saber o que tive que ouvir aqui por causa dele.
Mas só tenho a impressão de que Bauer quer rir com isso.
Alina é a terceira mulher que corre atrás de Bauer desde quando entrei aqui.
No entanto, é a primeira que chora e me faz perguntas sobre ele das quais
não sei responder. “Por que ele não gosta de mim?” e “Ele tem outra? É aquela

23
AS FILHAS DE GUENDRI

decoradora cretina?” estão fora da minha competência como secretária.


Honestamente, não sei nem o que veem nele.
Okay, okay, ele até que é charmoso e tem dinheiro. Algums de nós mulheres
gostamos disso (eu também, poxa. Não sou de ferro). MAS, ele parece ser o
tipo mais frio de homem para se ter ao lado. O tipo mais chato. Mais difícil
de agradar. Pelo menos é essa a impressão que tenho.
Não sei qual tipo de mulher gostaria de mantê-lo para si, especialmente
depois das botas que ele as dá. Também não o imagino sendo romântico ou
atencioso passado aquela fase inicial da paixonite aguda. Aliás, o pensamento
em si é quase impossível de se formar.
De qualquer forma, quanto mais ele ignora, mais apegadas elas ficam, mais
elas ligam para mim tentando me transformar em algum tipo de aliada para
espiá-lo e reconquistá-lo.
Tô fora.
— E o que você respondeu? — pergunta, mãos nos bolsos do desinteresse.
— Eu disse que não sabia aonde você estava nem quando voltaria. Ela
chorou e falou umas coisas que não consegui entender e desligou na minha
cara. Foi muito agradável. — relembro sarcasticamente.
O canto da boca de Bauer segura a risada que ele quer soltar ao ouvir isso.
Ás vezes ele quer rir das coisas que falo e o pego se segurando, quase evitando
parecer que se diverte ao meu redor. Me pergunto por quê.
— Deve ser divertido trabalhar pra mim. — escora as costas na porta de
sua sala, cruzando os braços.
— Se quero ser psicóloga, essas ligações são um ótimo treino. — e se ele
continuar nesse ritmo, eu só tenho a ganhar nessa carreira.
Bauer resfolga.
— Não ofereça consultas de graça, Morales. — ele também me chama pelo
sobrenome. Nossa pequena idiossincrasia. — Na próxima vez que ela ligar,
sinta-se a vontade pra não atender. E se atender, pode desligar na cara. Não
há nada entre nós e já deixei claro que não quero que me ligue. Especialmente
aqui, no trabalho. Se ainda liga, o problema é dela e não seu.
Minhas expressões faciais não conseguem esconder o que penso.
— Mas, Bauer… não posso fazer isso. — não que eu não queira desligar na

24
BAUER INV.

cara delas, só que ainda tenho o pouco de educação que me foi dada e isso
dificulta e muito ser uma fdp.
— Pode sim. — entra em sua sala. — Vai facilitar muito sua vida. E a minha
também. — e tranca a porta.

25
5

Cobras, Jaquetas e Prédios

CINCO MESES ATRÁS

P
ode ser frustrante tentar aprender algo novo. Especialmente quando seu
próprio corpo vai contra a nova arte que sua mente procura absorver e
dominar. Você quer praticar, melhorar, domar algum ofício, mas tudo
dentro de você luta contra isso.
Esse é meu caso com a magia que a Sombra me dá.
Ela me fez uma oferta da qual eu provavelmente deveria recusar. Ou ao menos
pensar bem mais a respeito.
Mas se eu começar a hesitar e filosofar no que é bom ou não para mim ao invés
de agir, isso significa que eu não estou pensando em Adaris. E é por isso que Adaris
sofre, porquê todos que dizem amá-la colocam suas egoístas vontades à frente do
bem de nossa terra.
— Eu aceito a magia. — digo com precisão à Sombra. Ela sempre se move com

26
COBRAS, JAQUETAS E PRÉDIOS

mais intensidade quando parece satisfeita com minhas respostas.


Se Adaris estivesse nos eixos e eu tivesse meus poderes naturais em máxima
potência, talvez não precisaria recorrer a outras magias. E apesar deste não ser o
melhor método, concordei com ele. A mística e vaporosa Sombra tem seus mistérios,
mas não esconde de mim as consequências das decisões que me leva a tomar.
Essa é uma delas.
A temperatura aumenta a minha volta. Do centro da sombra, algo mais sólido
toma forma e lentamente rasteja em minha direção. Suas múltiplas pontas acabam
se fundindo em duas, e duas se tornam uma, que se ergue e para à alguns centímetros
de meu rosto.
Uma cobra.
A cega serpente parece saber exatamente onde estou. Com exatidão, coloca suas
geladas narinas contra a pele de minha face e posso ouvi-la inspirar fundo.
— O que ela está fazendo?
— Te conhecendo. Ela gosta de sua pureza, Caliandrei. Você lhe cheira bem.
Todas as fadas de Adaris exalam umas das mais puras e doces olências entre todas as
criações. — explica a Sombra. — Esta cobra é uma de minhas formas. Seu veneno
lhe injetará minha magia, o suficiente para iniciar sua busca. Poderá abrir portais
para o mundo humano sem ser detectada por Garou. Basta pingar algumas gotas
de seu sangue e direcionar com o pensamento aonde quer ir. Suas poções também
serão mais efetivas e potentes entre outras coisas, como por exemplo blindar sua
mente para elfos.
A naja ainda me fareja, sua língua bifurcada dança por onde passa sobre minha
pele. Seu couro liso e gelado causa arrepios contra minha carne quente.
— Quão mal a injeção de magia me fará? — pergunto, já que a forma de injetar
por si só não parece das mais benevolentes.
— Em poucas doses… não muito. Contudo, pode ser viciante e potencialmente
nociva, como já lhe expliquei. Mas se você seguir minhas direções e mantê-la sob seu
total controle, não terá problemas pois ela se esvairá com o uso. Agora, se você não
a controlar, ela usará qualquer coisa negativa dentro de você para se multiplicar e
te dominar. Compreende?
Meneio minha cabeça positivamente.
— E quanto tempo durará?

27
AS FILHAS DE GUENDRI

— Te darei o suficiente para algumas jornadas ao plano humano, mas depende


de quanto usar. Portanto, seja sábia. — a cobra desce até meu pulso direito e de
boca aberta novamente respira fundo contra minha pele, soltando aquele estranho
som de chocalho. — Prepare-se. Obviamente, vai doer.
Segurei o grito na garganta.
A mordida foi tão profunda, que achei que suas presas atravessariam meu pulso.
Sinto cada pingo de magia sendo depositado em minhas artérias, correndo abundante
e se misturando a meu sangue ao longo do caminho que percorre dentro de mim.
Dentro de alguns minutos, um gosto metálico toma meu paladar, secando minha
boca e levando êxtase á minha mente, seguidos por uma incrível náusea.
Eu sinto a vontade imediata de vomitar, mas seguro.
— Continue praticando parcimônia. — a Sombra diz quando me recupero do
torpor. — Somente com prática e meditação poderá dominar minha magia. Enfatizo
que sem praticar mantras de controle, ela dominará você.
A cobra retrai rapidamente. Uma cabeça se torna duas, duas se transformam em
múltiplas, múltiplas se tornam milhares de partículas vaporizadas que se unem a
forma da sombra.
— Nos encontraremos em breve. Boa sorte, Caliandrei.
Nos dias seguintes a náusea e o mal estar inicial foram diminuindo, dando lugar
à força que a magia oferecia. Dia e noite, noite e dia praticando, meditando e
dominando os encantos, poções. Cuidadosamente, eu a acomodo em minha mente e
corpo o novo poder, afinando-os numa só harmonia.
Estou certa de que está e ficará sob meu controle.

DIAS ATUAIS

— Acho que gosto dessa, Cali. — comenta Alexis ao pegar um cabide e analisá-
lo.

28
COBRAS, JAQUETAS E PRÉDIOS

Estamos numa loja comprando roupas humanas que escondam nossas


costas, e consequentemente, nossas asas. Reparo que roupas humanas são as
únicas coisas que verdadeiramente distraem ou colocam o que parece ser um
sorriso no rosto de Alexis e por isso, compreendo o interesse em refletir um
pouco de si ao vestir-se dadas as circunstâncias em que se encontra quando
não estamos aqui.
Me alegra vê-la assim.
Vivendo no mundo humano aprende-se rapidamente, por exemplo, que tipo
de roupa usar para se parecer como uma daquelas humanas bonitas nas
grandes fotos das avenidas.
Em Adaris, vestidos que deixem minhas asas sempre expostas e batendo me
bastam. Mas por insistência de Igor, no mundo humano uso uma blusinha
branca sob uma “jardineira” preta estampada, e eu gosto de sua estampa
pois amo flores. Ele diz que a simplicidade combina comigo e meu jeito de
menininha. Até hoje não sei direito o que quis dizer com isso. Nos meus pés
coloco um negócio chamado tênis. Pareceu-me estranho no começo, mas já
me acostumei até mesmo com o fato de que aqui tenho que andar e não voar.
O tênis ajuda nisso.
Com dinheiro dado por Igor, Alexis compra um par de calças jeans verde
escuras, botas de cano baixo, regata branca e jaqueta de couro, que não usa
muito já que aqui é bem quente.
É incrível como toda e qualquer roupa lhe cai bem. Alexandrai de Adaris
é belíssima, sempre vejo muitos humanos e humanas pararem e olharem
admirados para ela. Altura que a destaca na multidão, um corpo esguio
mas forte, pele negra, olhos verdes extremamente vivos, rosto de traços
impecáveis. É visível a diferença entre ela e outras fadas que já conheci, pois
não são muito altas, muito menos fisicamente fortes. Bem, na verdade, eu
mesma sou fisicamente diferente das fadas que conheço, então é possível que
existam ainda mais diferentes espécies entre nós.
Expandir meu mundo assim de repente foi um baque. E não tive ainda
muito tempo de processar isso, apenas aceitar e tentar ao máximo assimilar
aonde quer que eu pise. Vir para um mundo sem magia me confunde um
pouco, e entre eu e minha ainda sem memória parceira de missão, acho que

29
AS FILHAS DE GUENDRI

estamos fluindo bem na direção certa, apesar dos obstáculos.


Sinto uma mistura de admiração toda vez que olho para ela. É obvio ao
observá-la que Guendri criou suas filhas para perdurar intensas batalhas.
O que me faz questionar… como é que suas lendárias amazonas foram tão
facilmente derrotadas?
O pensamento em si me causa um arrepio. Deve ter sido algo muito…
poderoso. É uma pena Alexis não lembrar o que aconteceu. Quem sabe Mabelai
tem a resposta.
Compras feitas, estamos a caminho de outra pessoa que pode nos ajudar a
encontrar Mabelai. Andamos até lá sob sol humano e poluição da cidade, e
em meio a muitas pessoas atravessamos uma tal de Avenida Paulista.
Quanto barulho. E quanta gente.
O imenso mar de carros e prédios me deixa confusa por um momento,
então recorro a minha magia para saber qual é exatamente o lugar aonde
devemos ir.
E por sorte precisamos apenas atravessar a avenida.
É um gigante prédio de esquina com espelhadas janelas que refletem o céu
azul e os outros prédios ao redor. Entramos nele após atravessar imensas
portas de vidro. Na portaria, um garoto de pele morena quase tão escura
quanto a de Alexis. O rosto dele é bonito e seu sorriso convidativo. Está com
aquelas duas coisas sobre seus ouvidos que vários outros humanos usam para
ouvir música… como é mesmo o nome? Ah, fones de ouvido. Ele os tira para
nos atender. Como já é de costume, Alexis deixa a conversa para mim e se
afasta.
Eu pigarreio e a inicio.
— Boa tarde. — falo alto e sorrindo.
— Boa tarde. — o garoto franze o cenho diante minha empolgação. — Em
que posso ajudar?
— Bem… — humanos gostam de ser chamados pelo nome, então o leio em
seu peito. — Jair, estamos procurando uma pessoa que trabalha aqui neste
prédio.
Ele ri e eu não sei exatamente por quê.
— Desculpa, Jair é meu pai; Estou cobrindo pra ele hoje e o uniforme já

30
COBRAS, JAQUETAS E PRÉDIOS

vem com o nome.


— Ah, sim… — sorrio, também convidativa. — Então qual é seu nome?
— Só digo depois que você disser o seu. — ele levanta da cadeira e inclina-se
na mureta de entrada que está entre nós, e eu vou inclinando minha cabeça
para encará-lo, elevando meus olhos para fitá-lo. Ele é bem mais alto do que
eu pensei. Tento esconder minha surpresa.
— Meu nome é Caliandrei. Mas pode me chamar de Cali. — engulo em seco,
me sentindo encabulada sem nem saber por quê. Mesmo assim, estendo-lhe
minha mão, já que aprendi que humanos apertam mãos ao se conhecerem
pela primeira vez.
Mas ele olha para minha mão e franze o cenho novamente, divertido. Após
estudar a cena, por fim a aperta.
— Muito prazer, Cali. — seu aperto é forte, e eu tento devolver a firmeza.
Não descolamos nossas mãos. A sensação é quente e eu gosto dela. — Você
pode me chamar de Flávio. Qual o nome da pessoa que procura?

31
6

Paulista vs. Pamplona

C
ai a noite na cidade, e mesmo com a vidraça fortemente temperada
do nono andar, acho que ainda posso ouvir o caótico trânsito de
buzinas e xingamentos dar ritmo à noite paulista.
Bauer foi ao encontro de um cliente no finzinho da tarde e agora eu estou
sozinha, frente ao espelho do pequeno banheiro do escritório, experimen-
tando o vestido que comprei na hora do almoço para ir a festa de Lucas hoje
á noite.
É um vestido preto, com mangas três-quartos e saia rodada. Até que gostei,
a única coisa que não curti muito foi o decote. Não estou acostumada com
meus peitos tentando saltar para fora do que estou vestindo.
Olho o decote novamente e tento cobri-lo mais, puxando o tecido para
cima, pelo menos até a hora de encontrar Lucas. Mas por ser alta, a saia
sobe e daí minha bunda ganha visão panorâmica. Que maravilha! Por que
não fazem roupas para pessoas altas que tapem duas partes do seu corpo ao
mesmo tempo?

32
PAULISTA VS. PAMPLONA

Solto meu cabelo da costumeira trança embutida em que o coloco todos os


dias. É a única forma que consigo controlá-lo no lugar. Gosto do meu cabelo,
apenas gostaria que fosse… menos, sabe? São longos e negros, começando
ondulado na raiz e terminando em grandes e definidos cachos. Quando digo
que gostaria que ele fosse menos me refiro a seu volume e quantidade. Eu
tenho cabelo para dar e vender, e ele se arma muito dadas condições climáticas
um pouco mais úmidas que o normal.
Decidindo como usá-lo hoje a noite, sou interrompida pelo barulho da porta
da frente do escritório. Fico apreensiva, já que não espero ninguém a essa
hora. Clientes raramente aparecem aqui depois do expediente, especialmente
numa sexta-feira a noite.
Penso em trocar de roupa para ir lá ver quem é, mas por não ter espaço aqui
no mini banheiro para fazer isso confortavelmente, me troquei na minha sala
- a recepção - e deixei minhas roupas sobre minha mesa.
Droga.
Me ocorre que pode ser um ladrão. O pensamento me paralisa por um
segundo, mas suspiro aliviada quando reconheço a voz que monótona, ecoa
meu sobrenome.
— Morales?
Pisando descalça no chão frio, vou até minha mesa e lá encontro um
Bauer confuso com minha calça social preta em mão, a observando de cenho
franzido como se fosse um objeto alienígena.
Quando me vê de volta na sala ele me olha de cima abaixo, e me faz preferir
por um momento que fosse mesmo um ladrão ao invés dele.
Em um segundo, de confuso ele passa a surpreso.
— Olá moça, você viu minha secretária por aí? — olha para os lados a minha
procura. Agora quem franze o cenho sou eu. Quando volta seu olhar a mim,
seu sorriso curva um lado de seus lábios. Acho que Bauer fez uma piada. —
Acho que vou despedi-la e contratar você.
Colocando o cotovelo sobre a mureta a frente de minha mesa, ele descansa
a cabeça sobre sua mão. Seus olhos pousam em meu decote, enquanto os
meus reparam que a gola de sua camisa está desabotoada, e a gravata que
ele usava mais cedo sumiu. Sua expressão é mais leve que de costume, sua

33
AS FILHAS DE GUENDRI

postura mais solta. Parece cansado, mas de bom humor.


Digerindo a rápida informação visual me pergunto se é impressão minha
ou Bauer está… bêbado?
E ainda mais estranho que bêbado … de bom humor...
De qualquer forma, acho que o vestido está aprovado. Se conseguiu tirar
um meio sorriso da carranca de Bauer, vai fazer Lucas se apaixonar por mim.
— Sério Morales, não sei o que bebi, mas estou vendo você de vestido e
cabelo solto. — brinca, confirmando o que pensei e eu sorrio sem querer. Ele
observa minha reação. — Acho que vou beber mais vezes.
Um calor me sobe ao ouvir isso. Não sei receber elogios. Nem sei se isso
foi um elogio. Tudo o que consigo dizer é:
— Lena ligou. Ela me passou alguns dos valores dos rendimentos da Forge
Importados, e pediu para que eu enviasse documentos que redigi hoje por e-
mail assim que você aprovar. Eu ia te enviar, mas já que você está aqui… ela vai
ligar novamente em alguns momentos para confirmar a extensão do contrato
em mais nove ou doze meses, caso não consiga ligar no seu celular.
O que não vai conseguir pois ninguém consegue ligar no celular de Bauer.
Não sei nem para que ele o têm. Provavelmente só para ter o prazer de ignorar
ligações e mensagens dos outros.
É a cara dele fazer isso.
Ainda falando coisas que nem eu sei mais, percebo que começo a tagarelar.
Sempre faço isso quando alguém me olha demais e eu começo a ficar nervosa,
exatamente o que reparo Bauer fazendo agora. Mas, trabalho. Falemos de
trabalho. Lembremos que com ou sem o etílico nas veias do chefe, precisamos
ser profissionais.
Sento a minha mesa e procuro pelo documento no tablet que Bauer deve
analisar e assinar eletronicamente para que eu possa enviar a Lena.
Quando olho para cima para lhe entregar o aparelho e s pen, percebo que
coloquei a mim e meu decote bem embaixo dos olhos de Bauer, que ainda
inclina-se a mureta. Levanto e chacoalho o objeto na sua frente, tentando
redirecionar sua atenção. Funciona, e ele finalmente assina.
— Você é muito eficiente, Morales. Fiz uma boa escolha ter te contratado.
— me devolve a caneta eletrônica. — Mas sinceramente, não entendo por quê

34
PAULISTA VS. PAMPLONA

estou segurando suas calças. Por quê resolveu tirar suas roupas? — eu tento
pegá-las, mas ele as tira do meu alcance. Faz isso duas vezes. De repente,
somos crianças num recreio de escola: ele as erguendo toda a vez que tento
pegá-las. — Responde primeiro.
Bauer brincalhão. Essa é nova e de boas, não estou acostumada.
— Eu comprei esse vestido pra sair hoje á noite. — me dando por vencida,
respondo. — Não sabia que hora sairia daqui, e não achei que você voltaria
hoje, então decidi experimentá-lo.
— Hum. É bonito. — comenta, me devolvendo as calças. — Pensa em
usá-lo no jantar de amanhã? — não devia, mas explico que perguntei isso a
Lena durante a última ligação e que ela disse para encontrá-la aqui, amanhã
á tarde para buscar o vestido que devo usar. E que este que visto agora é
somente para hoje à noite. — Ah sim… a festa do seu vizinho. Você deve
gostar bastante dele. — ele olha para meu decote novamente e eu prefiro
não entender o que ele quis dizer. De repente, Bauer parece ter uma ideia e
procura por algo em seus bolsos. — Você tem a chave extra da minha sala?
Acho que deixei a minha no carro.
O escritório começa pela porta de madeira que dá direto na recepção onde
tem dois sofás vermelhos, uma mesinha de café e uma mureta de mármore
onde os clientes se escoram para me ver. A direita da minha mesa, uma
passagem para um curto corredor. Paralelo a recepção, do outro lado do
corredor, ficam duas salas: a maior que é de Bauer, e a menor, de Lena. No fim
esquerdo do corredor tem um pequeníssimo almoxarifado e do lado direito, o
banheiro. Adjacente a recepção, fica uma moderna minicozinha, com frigobar,
outra cafeteira, uma pequena mesa embutida na parede, armário, pia e um
micro-ondas onde re-esquento algumas marmitas.
E eu tenho chaves para todos esses lugares. Menos para a sala de Bauer que
aliás, ele costuma trancar quando sai.
E quando não sai também.
— Tenho a chave da sala da Lena. — que uso quando ela liga e sempre pede
papéis que estão lá. — Não da sua.
Assente e cruza os braços. — Já tentou a chave dela na minha porta?
— Não. — nunca tentei nem nunca me ocorreu tentar. Pego a chave em

35
AS FILHAS DE GUENDRI

minha segunda gaveta, levanto e vou até sua porta. Para minha surpresa,
quando viro a chave ouço-a destrancar. Por que nunca me disse isso antes?
Quando me viro para dizer que funcionou, dou de cara com Bauer que está
bem atrás de mim.
Eu não percebi que estava tão próximo, nem ao menos ouvi seus passos ao
se aproximar de mim. Ele tem disso, move-se tão silenciosamente que me
pega de surpresa direto.
Tento andar para trás para recriar a saudável distância que está SEMPRE
entre nós, mas minhas costas já estão contra a porta da sala dele.
Bauer cheira bem e a essa distância, cheira melhor ainda.
Engulo em seco.
— Acho que esqueceram de te avisar. — esqueceram? Esqueceu. Ele quem
me contratou e nunca disse nada. — Você já tinha a chave. É a mesma
fechadura. — olha em meus olhos e eu tô estranhando muito o quão próximo
ele está, mas não consigo não olhar dentro dos dele. Eu estou um pouco
embasbacada, mas meu cérebro está atento. E constatou algo esquisito que
eu não reparei antes: o tal do CEO do ombro largo existe mesmo. E está aqui
na minha frente. — Deve saber que como minha secretária, pode entrar na
minha sala sempre que precisar. — sua fala retorna minha atenção para o
momento.
Honestamente, como toda a assalariada, não gosto de entrar da sala do chefe
nem quando preciso. Mas um “tá” sai da minha boca num sussurro rápido.
De repente sua mão toca minha cintura e eu arregalo os olhos. Quando ouço
a porta abrir atrás de mim, percebo o que ele tentava fazer: girar a maçaneta
que está as minhas costas.
— Entra. — Bauer diz inclinando a cabeça levemente, e desconfio que ele
está me prendendo entre ele e a porta de propósito. Seu divertimento com
meu encabular está estampado em seu rosto.
Entro em sua sala e ele logo em seguida, vai até um gabinete de madeira
escura que fica atrás da sua gigante mesa e cadeira. Enquanto isso, olho
pela sua imensa janela. Gosto da vista da sala de Bauer e a observo todas
as raras vezes em que entro aqui. As grandes vidraças dão de cara para o
cruzamento da Avenida Paulista com a Pamplona e todas as luzes dessa cidade

36
PAULISTA VS. PAMPLONA

que parecem se encontrar aqui todas as noites, num fogaréu infinito e de tirar
o fôlego.
E sempre que entro aqui me lembro do dia da minha entrevista, há cinco
meses atrás.
Como eu estava nervosa! Sentada lá fora, esperando a minha vez com algumas
outras garotas que pareciam bem mais preparadas que eu. Quando entrei
aqui e conheci Bauer pela primeira vez, ele ficou olhando para minha cara
como quem viu um fantasma e por isso não achei que me daria o emprego.
O que me deu um certo pânico, já que precisava do dinheiro imediatamente
para poder continuar na cidade.
Eu devia estar com sorte naquele dia, uma raridade naquele mês pois depois
de vários “nãos” de outros empregadores, ele me contratou. E com o tempo,
vi que ele fazia essa cara de mal humor normalmente.
— Gosta de cachaça, Morales?
— Gosto de caipirinha. De preferência, de maracujá.
Ele pega dois shot cups de seu gabinete e também duas garrafas iguais,
colocando-os sobre sua mesa e abrindo uma delas.
— Lena vai fechar este investimento para nós em breve. — ele enche os
pequenos copos com o líquido transparente. — Cachaça artesanal. — Bauer
me oferece um shot e um sorriso brilhante, sentando-se sobre sua mesa a
minha frente.
Quando eu aceito o copo, ele brinda o dele contra o meu e o bebe. Eu o
copio e me arrependo. Não sei bem o que estava pensando para virar cachaça
pura goela abaixo de uma vez só.
Dou algumas tossidas com o fogo queimando minha garganta.
— Gosto bem leve, não é?
Levíssimo, parece gasolina. Não estou acostumada a beber.
— Meu Deus, que delícia. — digo com dificuldade e sarcasmo, o gosto forte
ainda na minha língua e minha careta contorcendo meu rosto.
Bauer ri, e alto. Depois começa a explicar como é o processo dessa
cachaçaria que ele visitou semana passada, no interior de Minas Gerais.
Achou que seria um bom investimento, já que o mercado de bebidas artesanais
está em alta no Brasil.

37
AS FILHAS DE GUENDRI

— Leva essa garrafa para a sua festinha. — ele me dá a que ainda está fechada.
— Me diz o que acham dela.
— Poxa, Bauer! Sério mesmo? — exclamo e pergunto, surpresa. —
Obrigada!
Eu seguro a garrafa e a estudo. Ela tem um rótulo bonito. “Barrilha” é o
nome. Bauer explica que este é o sobrenome da família dona da destilaria de
médio porte e eu o observo falar. Sem aquela carranca costumeira e afim de
conversar, seus olhos ficam até mais azuis e seu rosto mais iluminado.
— Me agradeça quando seu namorado gostar. — arregaça as mangas da
camisa e entorna mais um shot. Lucas, meu namorado. Rio para mim mesma.
Bem que eu queria, chefe. Quem sabe, no futuro… — Mais uma?
— Não, obrigada. — a que tomei já está fazendo efeito, minha mente
começa a turvar. — Ainda estou em horário de trabalho, chefe. — Brinco
com a verdade. Lena ainda ligará novamente e eu preciso enviar e depois
imprimir para arquivo físico o documento recém assinado por Bauer, motivo
pelo qual eu ainda estou no escritório. Não creio que eu bêbada serviria
alguma assistência à ela.
Ele vira a dose que pôs em seu copo e o enche novamente.
— Está dispensada por hoje. Se Lena ligar eu atendo. — garrafa sobre meu
copo, ele olha para mim. — E então, mais uma?
Comemorando ser dispensada, eu concedo e aceito mais uma dose.
Brindamos, bebemos. Estamos frente a frente, álcool queimando minha
boca novamente, me deixando mais a vontade à sua volta. Mas quem tagarela
agora é ele. Presto atenção, nunca ouvi tanto sobre a minuciosa arte e química
da destilação e infusão de cachaça na minha vida.
Se ele não me reconheceu por causa do vestido, eu não o reconheço por
causa da postura descontraída.
Na verdade, parece que acabamos de nos conhecer.
Nossa conversa ao redor de preferências e conhecimento sobre bebidas
desenrola naturalmente, uma novidade entre nós. Talvez estamos bêbados
demais para perceber o quão próximo estamos e ao mesmo tempo não estamos
bêbados o suficiente para nos aproximar ainda mais.
Quando a gente para de falar, as palavras que preenchiam o espaço entre

38
PAULISTA VS. PAMPLONA

nós deixam um vazio desconfortável quando acabam.


Pigarreio.
— Tem certeza de que posso ir? Certeza que não precisa de mim? —
pergunto rapidamente.
Ele cruza os braços e respira fundo. Do nada, parece ainda mais cansado
do que quando entrou. Ainda assim se segura firme e altivo em sua pose,
semissentado á sua mesa. Olha-me novamente de cima a baixo e parece
querer dizer algo, mas desiste, virando o rosto para o lado.
— Pode ir, Morales. Divirta-se. — diz secamente. Ignorando o retorno de
sua acidez normal, deixo uma nova onda de empolgação tomar conta de mim
assim que lembro que vou passar a noite com Lucas. Quase corro para minha
sala e mesa, pego meu celular e chamo um Uber. — Transfira as ligações para
o meu ramal. — ouço sua voz vindo de sua sala.
Feliz, eu vou até sua porta me despedir.
— Obrigada por me liberar, chefinho. — percebo que é a primeira vez que o
chamo de chefinho e me pergunto porque raios resolvi chamá-lo assim. Ele me
encara sem expressão quando ouve isso. Finjo que não disse nada e termino
de me despedir. — Boa noite!
Agora sentado em sua cadeira de couro preto, ele coloca os pés sobre sua
mesa, cruza os braços sobre o peito e fecha os olhos. Depois de um breve
silêncio, os abre novamente, notando que como uma pessoa normal eu estou
a espera de um “boa noite” de volta.
— Vai logo antes que eu me arrependa de ter deixado você ir.
Mas é só isso que ele me diz.
E sem pensar duas vezes, pego minhas coisas e sumo do escritório.

39
7

Lar Doce Lar

T
ecnicamente, moro próximo ao trabalho. Mas, devido ao
maravilhoso sistema de transporte público paulista e o trânsito,
sempre demoro mais que o necessário para chegar em qualquer
lugar.
Como não tenho carro ainda, se é muito tarde, estou atrasada ou preciso
fazer compras, pego um uber: um dos benefícios que a Bauer Investimentos
me dá. Ele se propôs a pagar por qualquer viagem, relacionada ao trabalho ou
não. Não me parece tão difícil aguentar aquele jeitinho grosso de ser todos
os dias com algumas dessas regalias que ele me oferece.
Aceitando sua proposta, minha conta está vinculada ás contas do escritório,
assim como a conta do meu celular. Quando Bauer ofereceu, não pensei duas
vezes. Ligações, mensagens de texto, internet ilimitada. Nem preciso colocar
wi-fi no meu apartamento ou roubar mais da padaria no andar de baixo. E
eu não abuso do pacote de dados, uso somente quando necessário.

40
LAR DOCE LAR

O que pode ou não ser o tempo todo.


O uber me deixa em frente ao meu apartamento que fica no segundo andar
de um prédio antigo de esquina de três andares, sobre uma loja que é padaria
de dia e de noite vira bar. Quando me mudei, imaginei que o barulho seria
um grande problema, mas felizmente estava enganada. É apenas um lugar na
parte antiga da Barra Funda para pais de família que trabalham em alguma
fabrica de dia e querem assistir jogos de futebol com os amigos a noite.
Meu apartamento é de um quarto: um ovo com espaço suficiente para uma
pessoa, talvez duas. O aluguel é meio salgado, mas com o salário que Bauer
me oferece dá para pagar. Eu gosto daqui, apesar dos pesares. O prédio é
bem velho, poderia usar de uma renovada na pintura por dentro e por fora, e
também de umas portas e janelas novas, pois emperram toda vez que tento
abrir ou fechá-las.
Chegando aqui, subo as duas escadarias e sigo pelo corredor até minha
porta vermelha, que fica quase frente a frente a de Lucas. E por falar nele, já
ouço vozes e música vindos de seu lado do prédio.
Tomo um banho rápido, o que minimiza os efeitos da cachaça que bebi
com Bauer. Recoloco o vestido preto e penso no que fazer com meu cabelo
molhado, e não confiando que seu volume não vai crescer exponencialmente
enquanto seca, faço uma trança lateral. Aplico um pouco de base para
esconder as olheiras e espinhas que a vida me deu e, lançando um sorriso
satisfatório a minha imagem no espelho, decido que estou pronta.
Cachaça Barrilha na mão, tranco minha porta e bato na dele.
— Tá aberto! — ouço alguém dizer. Contenho o frio que surge na minha
barriga e abro a porta dele.
— Vizinha! — Lucas me cumprimenta com entusiasmo, sentado no braço
de seu sofá conversando com dois caras. Ele levanta e vem em minha direção.
— Uau! — sibila e eu acho que vou morrer por um momento.
Ele parece gostar do meu vestido. Sorrio timidamente, mas já me achando.
Ele coloca o braço sobre meus ombros e me apresenta aos presentes na sala.
— Pessoal, essa é minha nova vizinha, Verena. — alguns dizem “oi” de volta,
alguns ignoram. Ele não me solta e meu coração bate mais rápido. — O que
você quer beber, Vê?

41
AS FILHAS DE GUENDRI

“Vê”. Detesto quando me chamam de “Vê”. Já estamos íntimos assim ou ele


está bêbado? Não importa. Vindo dele, posso aprender a gostar.
— Eu trouxe isso. — mostro a garrafa que Bauer me deu.
Ele estuda o rótulo e me agradece. Seu braço sai de meus ombros mas
sua mão segura a minha e me puxa para a cozinha, passando por ainda mais
pessoas. Não sei como ele consegue enfiar tanta gente neste cubículo, mas
tento sorrir para todas com as quais troco olhares.
Na cozinha, ele começa a preparar uma caipirinha.
— Que bom que veio! Eu achei que não viria de novo. — ele comenta e eu
não respondo. Já dei alguns bolos por pura jequice. E, se ele não fosse lindo
assim eu não viria de novo. Agora apenas o olho, tentando entender como
alguém é tão lindo amassando limões. — Quase desisto de te convidar de
novo. Você tá sempre trabalhando, raramente te vejo. — se explica.
— Tenho que ralar né, não é barato morar aqui. — sou honesta.
— Não é mesmo. Mesmo caindo aos pedaços cobram até as cuecas de
aluguel por aqui ultimamente. Era menos caro antes da pandemia… — ele me
dá a caipirinha e aponta para os lados. — Aqui tem pizza e aqui… — levanta
a tampa de uma caixa de papelão. — Esfihas. Pegue o que quiser, beleza?
Mas diz aí… — ele brinda sua garrafa de cerveja contra meu copo plástico de
caipirinha e se escora contra a pia. — Tá gostando da cidade?
— Amando. É tudo o que eu esperava e mais um pouco. — conversamos
sobre alguns pontos turísticos que ainda quero visitar e ele me indica outros
menos conhecidos.
— E o trabalho? Você é secretária, certo?
— Sim, de um empresário na Avenida Paulista. — isso arranca uma curta
expressão dele que não sei dizer o significado. — É uma pequena empresa de
investimentos comerciais. Nada demais, mas toma bastante do meu tempo.
Eu gosto de lá.
— E do chefe? — inclina a cabeça e ri. — Fala sério né, ninguém gosta do
chefe. — concordo mais ou menos dando de ombros com um sorriso educado.
— Que bom que achou emprego Vê, eu lembro a primeira vez que te conheci
você ainda tava procurando. Fico feliz que finalmente encontrou porque não
tá muito fácil pra ninguém. — sua voz agora é alta pois a música e as vozes

42
LAR DOCE LAR

começam a tomar conta do espaço. — Daniel! Chega aí! — chama por alguém
atrás de mim quando o vê na entrada da cozinha. — Vou te apresentar meu
amigo.— Lucas avisa e um cara barbudo tatuado se junta a nós. — Verena,
Daniel. Daniel, Verena. Sua nova vizinha e seu novo vizinho.
— Ah, você quem tá no apartamento da chata da Dona Helena agora. Até
que enfim aquela velha dos infernos deu o pé daqui. — nos cumprimentamos
e ele vira para Lucas. — Que que tem pra beber, Alemão?
— Breja na geladeira, a Laís trouxe umas cinco vodcas e a nossa nova vizinha
aqui trouxe essa cachaça de rico. — Lucas dá a garrafa a Daniel.
Daniel arregala os olhos. Eu não sabia que é cachaça de rico. Eu devia ter
prestado mais atenção no que Bauer dizia sobre a bebida ao invés de quão
próximos estávamos.
— Posso experimentar? — Daniel pergunta.
— Claro! Me diz o que acha.
Daniel vira uma dose e parece gostar.
— De-lí-ci-a! Aonde você achou essa aqui?
— Pesquisa de mercado. Meu patrão pensa em investir nela.
— Pode dizer pra ele que tá aprovado. — Daniel bebe mais uma dose e
depois abre uma cerveja. — Que sorte que a nossa, Alemão. Nos livramos da
velha chata e no lugar conseguimos uma gostosa com pinga boa de graça. —
suas cervejas brindam e eu engasgo com o comentário. O ríspido elogio veio
do nada e me coloca a tossir.
Lucas pergunta se eu estou bem. Faço que sim com a cabeça e me pergunto
se ele concorda com Daniel ou não. Gostaria de saber…
— Ela era chata assim, é? — redireciono a conversa.
— Dona Helena era uma peste. — Daniel responde. — Reclamava de tudo.
Meu apartamento é embaixo do seu, então você ouve o que faço e eu posso
ouvir você. Ela reclamava do meu vídeo game, mas eu tinha que gostar do
forró que ela botava pra tocar alto todo fim de semana.
Não sei se é por quê passo mais tempo fora de casa ou por que sou meio
surda, mas não ouço nada vindo do apartamento de baixo. E agradeço por
isso. Ninguém respeita o ouvido alheio em cidade grande.
— Verdade. — Lucas confirma o relato de Daniel. — Ela já chamou a polícia

43
AS FILHAS DE GUENDRI

em duas das minhas festas. E olha que eu não deixo passar das dez da noite,
normalmente vamos pra alguma balada ou barzinho, em respeito a todos os
vizinhos. Já ela ficava no forró e quando se arrependia, colocava música de
igreja.
Eu gargalho naturalmente. Em Cunha tem alguns desses.
— Eu não conheço os outros vizinhos. — acabo de reparar.
— Tem um casal ao lado do meu apartamento e o outro está vazio. A
galera muda daqui o tempo todo. A gente não muda por que o preço é bom
comparado com o resto da Barra Funda e é perto do nosso trampo. — Daniel
comenta. — E já acostumamos com o cheiro de mofo.
Sabe que eu também?
— Vocês dois trabalham aqui perto?
— Sim. E no mesmo lugar. Eu e esse moleque aqui tamo junto desde o
primário! — Daniel me responde. — Morávamos juntos também, mas mudei
antes que a gente acabasse se matando. Faculdade junto, trabalho junto. Tudo
junto. Vamos acabar casando, né, meu amor?
— Vai se ferrar, Daniel. — Lucas ri e ouvimos alguém o chamar da sala. —
Já volto, okay? Não some, Vê. — diz para mim e eu sorrio de acordo.
— Lucas me falou que você é de Cunha? — Daniel continua a conversa
depois que Lucas sai.
Respiro fundo antes de responder.
Está chegando aquela inevitável parte do dialogo quando conhecemos novas
pessoas, a parte onde nos enchemos de perguntas sobre onde viemos, nossa
família, ou onde crescemos.
A parte que eu não gosto muito de falar sobre porquê não há muito para se
falar.
E isso me incomoda.
Como falar do seu passado quando você meio que não tem um?

44
8

Sempre Tem Uma Festa

M
inha vida foi sempre tão monótona e solitária. Sinto que não
tenho uma história para contar.
Eu nasci na pequena cidade de Cunha, no interior de São
Paulo. Morei com a minha avó Dona Lurdes durante minha vida inteira.
Não conheci meus pais. Apenas tenho uma foto deles.
Tudo o que sei é que minha mãe me deixou com ela quando nasci e nunca
mais voltou. E só. Eu não sei exatamente o que aconteceu com ela ou com
meu pai, nem se estão vivos ou não. Nunca houve nenhum tipo de contato
entre nós. Minha avó sempre cuidou muito bem de mim, mas evitava falar
deles a qualquer custo.
E com o tempo, fui parando de perguntar.
Quando fiz dezenove anos, recebi a noticia médica de que minha avó tinha
uma forma de demência agressiva. E em poucos anos, a saúde mental dela
foi deteriorando, avançando rapidamente e consumindo sua mente. Após
pouco tempo, ela já não falava coisa com coisa. Isso quando falava. Ás vezes

45
AS FILHAS DE GUENDRI

ficava semanas sem falar, olhando para o nada. Sem nenhum outro parente
para ajudar, e apenas uma aposentaria mirrada todo mês para pagar as contas,
meu tempo era dividido entre meu trabalho e cuidar dela.
Na época, eu trabalhava num tipo de lojinha mais conhecida como um e
noventa e nove. Se deixasse o emprego, não poderia cuidar de nós. Fiz o
impossível, quase me dobrei em duas para estar presente em ambos lugares.
Ninguém sabe o que passei, mas cuidei dela.
Foi como lhe paguei a dívida em meu coração por sempre ter cuidado de
mim.
Era frustrante, cansativo, às vezes revoltante. Eu assisti uma mulher forte e
sensata se transformar em uma criança novamente ao longo de alguns anos.
Imaginei que a frustração que tive quando perguntava aos céus “Por quê eu?
Por que comigo?” deve ter sido como ela se sentiu quando me abandonaram
com ela.
Não desistiria dela. Ela não desistiu de mim.
Nos raros momentos em que tinha tempo para mim, eu achava consolo e
amizade no meu velho video game, presente dado a mim por ela. E quando
ela se foi… eu chorei. Por uma semana inteira, foi só o que fiz, só o que as
forças que me sobraram podiam fazer.
Então, além do sobrenome, alguma mobília, o dinheiro que ela escondi-
damente reservou para mim enquanto ainda sã, e suas lições que moldaram
meu caráter, eu não trouxe mais nada de Cunha comigo.
E nunca mais quero voltar para lá.
Queimei a foto dos meus pais num ato rebelde e ritualístico. Essas pessoas
não existiram para mim, como eu não existo para elas. Evaporaram-se com as
chamas. Daí, fiz um pacto comigo mesma. Não importa de onde vim. Apenas
o que acontece daqui para frente.
Eu mereço um novo início. E eu decido quando e qual é o fim.
Agora, vai explicar isso para quem não me conhece sem acabar com o
clima da conversa e receber um monte de olhares tristes acompanhados pelo
desconforto de quem me ouve.
Dispenso.
Então desvio graciosamente de perguntas desse tipo. Minha sorte é que

46
SEMPRE TEM UMA FESTA

ninguém me enche delas e a maioria desiste de perguntar quando percebe


que não quero falar sobre isto.
Assim como Daniel. Ele desiste rápido, logo após a primeira tentativa de
saber sobre meus pais.
Pessoas vem e vão da cozinha, assim como Lucas, que como anfitrião
recebe a nova galera que chega. E chegam bastante. O espaço está ficando
significantemente pequeno. Estou cada vez mais claustrofóbica e irritada que
Lucas não tem tempo de parar e dar atenção a mim. Mas tudo bem, a festa
está legal. A música é ótima. Não conhecia essa banda que toca no bluetooth
da sala, “Scalene”. Certamente vou procurar mais músicas deles.
O clima da conversa melhora quando Daniel e eu começamos a conversar
sobre video games. Ele está desenvolvendo um jogo com um outro grupo de
amigos. Achando isso sensacional, agora é minha vez de lhe fazer um monte
de perguntas.
— É de luta. Ainda estamos criando os personagens. A animação é um pé
no saco, processo longo.
Lucas e Daniel trabalham com computadores, na mesma empresa. Lucas
com hardware, suporte técnico e PCUs personalizados, Daniel com softwares,
web design e afins, se dedicando ao jogo em seu tempo livre.
Após conversar sobre alguns de nossos jogos favoritos como Outlast 2,
Resident Evil 7 e o maravilhoso Red Dead Redemption 2, somos interrompi-
dos por Lucas que chega com uma loira debaixo do braço, assim como me
segurou quando cheguei.
— Vê… — ele me chama, e eu o olho com um sorriso que brilha mais que
faról. — Essa aqui é a Sara. Minha namorada.

…..
Minha face congela no sorriso e eu não consigo piscar.
Eu ouvi direito?
Eu ouvi direito.
Sinto-me perder o chão e o ar.
Namorada?

47
AS FILHAS DE GUENDRI

— Tem certeza de que é esse o lugar? — Alexis me pergunta.


— Sim. — respondo, desviando de pessoas no movimentado corredor.
Mais adiante, entramos pela porta aberta.
Gente.
Muita gente.
E música.
Além das celebrações que Garou dá para si mesmo, como o Torneio das
Valquírias, não há festas em Adaris. Também pudera, não há exatamente
o que se comemorar. Me pergunto se houveram tempos nos quais nos
divertíamos assim, nos quais fadas e elfos e todos os outros seres se uniam e
comemoravam… e mesmo sem razão para comemoração, apenas sentávamos,
juntos como bons vizinhos, e compartilhávamos bebidas, risadas, histórias…
Todos dizem que humanos são puramente violentos em sua natureza. Não
vejo neles nada que não exista em outras espécies. Na verdade, creio que
humanos são tão capazes de bem ou mal quanto as outras espécies que
conheço.
E capazes de muito mais além disso.
A neutralidade em minha espécie por exemplo, me incomoda. Suportamos
tudo. Mas não por resiliência, mas por que não importa.
Somos mortais como humanos, mas duramos mais que eles. O tempo não
é nosso inimigo, e podemos viver longas vidas que atravessam séculos. E
ainda assim, aprendi com humanos que viver longamente não significa viver
verdadeiramente.
Alexis gosta daqui. Alguém a oferece uma garrafa e ela aceita. Dois humanos
a param para iniciar uma conversa dizendo-a que ela parece uma cantora
famosa, e ela pausa por um momento, curiosa com a interação. Não quero

48
SEMPRE TEM UMA FESTA

interromper Alexis. Mas, ao mesmo tempo que não quero interrompê-la,


precisamos continuar com nosso objetivo.
Apesar de parecer complicado encontrar alguém específico num lugar cheio
de pessoas, sabemos por quem procuramos, então não será tão difícil assim.
Humanos estão mais propensos a conversar com estranhos quando estão
em festas, aliás me disseram que é por isso que vão á elas, para conhecer
outros estranhos, o que facilitará e muito a nossa aproximação.
O plano é perfeito.
Conhecer Verena, conversar com Verena, convencer Verena.
Eu deixo Alexis para trás socializando e vou atrás da garota morena de pele
oliva e cabelos pretos compridos e cacheados. Ela vai estar de vestido preto,
saia rodada. Apesar de ser quase impossível ver o que pessoas estão vestindo
aqui já que o espaço entre uma e outra é mínimo e o escuro não contribui,
não desisto. Confesso que gostaria de ser alta como Alexis nesse momento,
assim teria uma visão mais ampla.
— Ei menina, quantos anos você tem? — acho que ouvi alguém me
perguntar, mas ignoro. Sei que pareço nova, especialmente comparado a
Alexis ou a todo mundo aqui, mas não ligo. Se precisar, mostro o R.G. falso
que Igor me deu. Nele diz que tenho dezenove anos, apesar da maioria que
conheço me dizer que aparento ter dezesseis, seja lá quanto tempo humano
isso é.
A sala esvazia um pouco, ouço pessoas combinarem de se encontrarem
em uma balada em alguns minutos. Assim que se movem, vejo alguém que
se parece com a descrição física que me deram. Apesar de que certamento
muitas garotas aqui se parecem com ela, já que é o biotipo dos humanos
brasileiros. Mas até a roupa é a mesma que nos falaram, então a observo
dançando sem ritmo com uma garota loira. O cabelo está numa trança, o que
me deixa um pouco em dúvida, apesar de ter alguns cachos soltos batendo
para lá e para cá, conforme se move.
Ela sussurra algo à garota loira e sai. Eu tento segui-la, mas para isso preciso
de Alexis.
Olho na direção na qual a deixei, e ela não está mais lá.
Para onde Alexis foi?

49
9

EtOH

N
amorada?
Lucas tem uma droga de uma namorada?
Desde quando? Ele nunca me disse nada! Nenhum comentário,
nenhum sinal de que era comprometido.
ELE FLERTA COMIGO!
Ou pelo menos achei que o fazia…
Para mim, o tempo para e eu me sinto enjoar. Eu não esperava por essa e
não estou sabendo lidar.
— Oi. — consigo com esforço cuspir as letras para a menina a minha frente.
— Prazer. — tenho ciência de que não soo natural e espero que todos ponham
a culpa disso no segundo copo de caipirinha que estou tomando no momento.
A brisa que a bebida me dá de repente não é suficiente para me ajudar a
lidar com o banho de água fria que Lucas acabou de jogar em mim.
Aqui estou eu, infantilmente cultivando sentimentos por um cara que mal
conheço, que apenas vejo de vez em nunca e ás vezes paro para conversar.

50
ETOH

Conversas tolas e sem substância que eu levei a sério. A sério o suficiente


para cultivar uma crush ferrada no cara.
Para que ele me convidou? Não… a pergunta certa é: para quê eu achei que
ele tinha me convidado? Por estar afim de mim?
Eu sou uma criançona mesmo. Ninguém pode me dar atenção que eu me
apego como carrapato.
Olho para Sara de cima abaixo. Uma garota bonita de longos cabelos loiro
escuro e olhos verdes. Ela parece aquelas modelos de instagram. Não parece
real, feita de carne, osso e celulite como eu, e isso faz com que eu queira
enfiar um garfo no meu olho, pois não posso odiá-la, apesar de esse ser meu
primeiro instinto.
Ela não me fez nada de errado. Lucas não me fez nada de errado. Droga,
não posso odiá-los! Mas tenho que odiar alguém, e neste momento esse
alguém sou eu. Por entender tão pouco sobre homens, flertes e essa droga
toda que é se apaixonar…
Sara me convida para dançar. Até agora só fiquei na cozinha conversando
com Daniel, e quando ela me pega pela mão e me arrasta atrás dela, percebo
que tem ainda mais gente aqui que outrora.
E me admiro que caibamos todos.
Na sala, ela mostra que dança bem. Sorrindo para mim, me incentiva
a copiar seus movimentos, e na tentativa de dissipar o choque, eu tento
acompanhá-la. Mas eu não sei dançar, sou uma negação para isso e das
mais diabólicas. Sem contar que a noite acabou para mim, não tenho mais
condições de me divertir.
Eu não sabia que a crush que cultivava por Lucas estava forte assim, e
descobrir isso desse jeito me assusta.
Depois de duas músicas, o máximo que poderia dançar agora, tento me
desvencilhar dela sutilmente. Quando ela percebe, segura a minha mão, me
puxando para o centro da sala novamente.
Penso numa desculpa para sair fora imediatamente. Com a música alta, não
creio que ela possa me ouvir, então apenas gesticulo que já volto.
Passando por uma barreira de múltiplas pessoas, volto à cozinha. Daniel
não está mais lá, nem Lucas. Atrás de um casal que parece flertar está a pia, e

51
AS FILHAS DE GUENDRI

sobre ela enumeras garrafas e copos. Peço licença e pego a cachaça que eu
trouxe. Ainda bem que ela estava escondida entre as outras garrafas, ainda
não acabou.
Sem pensar duas vezes, acho que a Barrilha pode ser uma boa anestesia
para o que sinto agora. Viro o líquido e o sinto queimar absolutamente tudo
em mim. Dou quantos goles consigo, tossindo quando pauso. Não demora
muito e a sujeita já está indo do meu estômago para minha cabeça.
Eu claramente não sei o que estou fazendo mas em poucos minutos…
Me sinto leve…
Me sinto melhor.
Decido procurar por Daniel e continuar conversando com ele. Pergunto
ao casal que está a frente das garrafas se eles o viram.
— Acho que ele está no quarto. — mal consigo ouvi-los falar e decido
ignorar a risadinha que vem com a resposta.
Me sinto andando na lua. Dando trépidos passos, vou até o quarto que deve
ser no mesmo onde é em meu apartamento. Viro a bebida novamente e dessa
vez, minha goela arde menos.
Que gosto horrível!
Olho para o lado e vejo que Sara ainda dança na sala. A festa começou
com um rock nacional e agora toca funk proibidão e eletrônica, e a rebolação
come solta.
Que seja.
Ao olhar para a porta de entrada, vejo Lucas trazendo mais caixas de cerveja.
Antes que ele passe por mim, entro rapidamente no quarto, fechando a porta
atrás de mim e me escondendo.
E sim, encontrei Daniel aqui.
Com mais duas garotas.
Ele está sem camisa e eu descubro que as tatuagens que começam em
seu braço, terminam em suas costas. Eu acho o design interessante, mas
provavelmente não deveria me concentrar nisso agora. Em qualquer outro
dia, essa cena a minha frente me chocaria. Eu nunca estive tão bêbada, mas
tenho certeza de que não estou alucinando.
Que péssimo filme americano adolescente essa noite virou.

52
ETOH

Ele não me viu, nem as senhoritas. Ele parece bem dotado… digo, ocupado.
Não acho que está afim de conversar comigo agora. E nem percebe que estou
aqui.
Em silêncio, me retiro do quarto.
A bebida está batendo mais forte, ficar em pé está ficando difícil. Tentando
me manter contra a parede, vejo Sara ainda dançando, mas agora, Lucas esta
assistindo. É visível que naquele momento, nada mais existe para ele. Sinto
meus olhos que estão secos devido a fumaça de cigarros no ar, queimando
com lágrimas que se alinham para cair.
Penso em ir para meu apartamento, mas além das lágrimas sinto outra coisa
vindo rápido e que também esta difícil de segurar. Vou para o banheiro, que
como em meu apartamento, é a próxima porta ao lado do quarto.
Tem gente dentro, duas garotas fumando um baseado e trocando carícias.
O cheiro de gambá não me ajuda em nada. Não dá tempo de pedir licença ou
agradecer por não trancarem a porta.
Me dirijo até a privada e começo a vomitar.
Felizmente para mim, cheguei na hora certa. Infelizmente para elas, na
hora errada. As ouço reclamarem e saírem do banheiro. Quando penso que
terminei, me arrasto até a porta e a tranco.
Me inclino sobre a pia, abro a torneira e molho meu rosto. Tinha me
esquecido do lápis que passei no olho até olhar meu rosto no espelho. Pareço
estar frente a frente com um fantasma, minha pele morena agora pálida, olhos
escuros.
Me sinto fraca e triste. E me arrependo.
De ter vindo. De ter bebido. De cultivar paixonite besta no meu vizinho
sem base nenhuma.
Eu tenho vinte e dois anos mas agora me sinto como uma criança. Estou
agindo como uma também. Percebo que estou chorando, e me ver assim me
irrita tanto que daria um soco em minha própria cara se pudesse.
Decido ir para casa, sem me despedir de ninguém. Procuro por meu celular
que guardei em meu sutiã, já que o vestido não tem bolsos. Não o encontro e
não consigo lembrar onde o deixei. Deve ter caído do meu decote enquanto
esbarrava nas várias pessoas ao tentar me mover por aqui. E por algum

53
AS FILHAS DE GUENDRI

motivo não me importo. A noite acabou para mim, e da ultima forma que
imaginei que acabaria.
Ao tentar me erguer e ficar em pé sem o apoio da pia, uma nova jorrada me
sobe pela garganta e a privada me chama pelo nome.
E de joelhos, eu a atendo.

Converso com dois humanos e uma humana. Bebemos “cerveja” e eles falam
sobre várias coisas que nunca ouvi falar a respeito. Eu tento rir quando eles
riem, bebo quando bebem. Tento copiar todos seus movimentos e palavreado.
Eles sabem muitas coisas. Humanos são assim, tem várias informações sobre
coisas diferentes. E parecem tão entusiasmados sobre as coisas que falam.
Eles estão tão bêbados que não percebem o quão peixe fora d’água sou. Mas
me aceitam. Não me ignoram, ainda conversam comigo.
Futebol… o que é isso? Tem times, uma bola, e juiz que eles realmente
não gostam. E filmes… esses eu sei o que são, já vi partes de alguns na casa
de Igor e contemplei maravilhada. Extremamente engenhoso e complexo,
aparentemente tudo falso. Gostaria de assistir um completo mas o pouco
tempo que tenho quando estou por aqui deve ser utilizado da melhor forma.
Sei que devo prestar atenção na nossa missão mas eu quero aproveitar os
raros momentos que tenho de liberdade.
Eu e o grupo de humanos saímos para fora do apartamento. O barulho e a
quantidade de pessoas nos forçam. Mesmo com a conversa continuando e o
vai e vem de pessoas, algo aqui no corredor me chama a atenção.

54
ETOH

Eu me sinto estranha. Algo ao meu redor parece não estar… bem? É… é isso.
Algo ou alguém, perto ou dentro da festa está me afetando negativamente,
a clareza desse entendimento me atinge junto com o sentimento. Mas no
outro lado do corredor em que estamos, algo também me chama atenção e
fixo meu olhar nela.
Uma porta.
Algo nela me intriga, não sei dizer exatamente o que é.
Mas vou até lá. Chegando a porta vermelho-escuro, a toco. Nada de
anormal nela, nada de único. É uma porta como a do apartamento da festa,
como todas as que já vi na vida. Mas ao tocá-la sinto algo sob minha mão,
algo que nunca senti antes. Não sei por que ela me interessa. Só sei que há
algo aqui.
— Alexis? — Cali me chama, me causando um sobressalto. — Estava te
procurando. —ela nota meu interesse na porta. — Está tudo bem?
— Sim. Eu só queria saber quem mora aqui.
— A Verena. — um humano loiro segurando uma grande caixa cheia de
cervejas como a que eu bebo, responde.
— Verena! — Cali exclama ao ouvir o nome e se vira para quem o disse. —
Você a conhece?
— Sou vizinho dela. Moro naquele apartamento ali. — ele aponta com a
cabeça para a festa. — E vocês?
— Somos…
— Primas dela. — corto Cali, soltando a resposta ensaiada. — Chegamos
agora de viagem mas ela não atende. Sabe onde ela está?
— Última vez que a vi ela estava na minha cozinha. — ele anda a nossa
frente, em direção da festa. — Vem, pode entrar.

55
10

Obrigada, Privada

A
cho que apaguei por alguns minutos.
Alguém me cutuca o ombro e eu ouço uma voz feminina me
chamar pelo nome. Enfrento uma bêbada preguiça para responder.
Meus olhos estão fechados, minha boca seca e minha cabeça girando.
— Ela tá bem?— uma outra voz pergunta. — Foi isso aqui que ela bebeu? —
vejo pela pequena fresta que abro em meus olhos que a dona da voz segura
minha cachaça de rico.
Pouco a pouco recobro a noção de onde estou.
Em um banheiro, sentada no chão, usando uma privada como travesseiro.
Refecho os olhos pois não estou afim de acordar.
— Verena? — a voz e a mão me cutucam de novo e eu respondo com um
grunhido.
Lentamente abro os olhos, me acostumando novamente a luz que violenta-
mente os invade. Estou completamente mole.
Tudo dói, dentro e fora, e não quero me mover, por mais nojenta que essa

56
OBRIGADA, PRIVADA

privada possa estar. Mas desabraço a privada para ver quem tenta me acordar.
Deve ser algumas das pessoas que me foram apresentadas hoje. Embora eu
não lembre seus nomes ou rostos, elas lembram o meu.
A que me cutuca é altíssima, ou parece ser daqui do chão. Tem a pele negra,
cabelos pretos num corte bob perfeito, que contornam seu rosto perfeitamente.
Ela se esquiva sobre mim, tentando avaliar minha situação.
Quer saber? Eu conheço esse rosto.
— Rihanna?— pergunto.
Isso! Ela é a cara da Rihanna.
— Todo mundo diz a mesma coisa, que você parece com essa tal de Rihanna.
— a que está atrás dela diz e eu finalmente olho para ela por completo também.
Uma menina que não aparenta ter mais de dezesseis anos, talvez nova demais
para estar numa festa dessas. Um rosto de traços finos, delicados. Pálida
demais, parece que nunca viu um sol. Seus cabelos loiros quase brancos lhe
dão um ar ainda mais juvenil.
— Verena, você está bem? — a sósia da Rihanna pergunta com firmeza,
estudando meu rosto. Ela se vira para trás e pega a garrafa das mãos da outra
garota e chacoalha na minha frente. — Foi isso que você bebeu?
Como se fosse Todinho.
Só de olhar a garrafa, já quero vomitar novamente. E quando acho que já
não sobrou mais nada para botar para fora, meu estômago me surpreende.
— Isso é normal né, Alexis? — a menina loira parece preocupada comigo.
— Se ela bebeu isso, sim. — a tal Alexis responde.
Quando termino de gorfar, tento me levantar para lavar o gosto terrível
em minha boca. Acho que calculei mal, pois perco meu centro de apoio e dou
de cara no box do chuveiro.
A Alexis me segura, virando-me de frente para ela e apoiando minhas
costas contra o box. Minha cabeça dói mais ainda e eu balbucio algumas
profanidades, me perguntado por quê raios tive a idiota ideia de enfiar o
pezão bem no meio da jaca logo aqui na festa.
— Ei, Verena.— Alexis me sacode na esperança de me fazer abrir os olhos.
Funciona.— Meu nome é Alexis. Essa é Cali. — ela aponta para a baixinha. —
Precisamos da sua ajuda. É muito importante… — eu apago de novo e ela me

57
AS FILHAS DE GUENDRI

sacode novamente. — Eu preciso da sua ajuda para encontrar uma pessoa. A


minha irmã.
Que tipo de idiota pede ajuda para encontrar alguém à alguém na minha
condição?
Eu mal sei aonde EU estou, querida! Vou lá saber onde está sua irmã?
— Ela deve tá ai na festa. — arrastando as palavras, tento ser simpática. —
Eu não conheço ninguém aqui, pergunta pro Lucas.
— Não, você não entendeu. — ou ela é bem forte ou eu estou muito
fraca, pois a forma como suas mãos se fecham ao redor de meus braços
está começando a doer. — Minha irmã, desapareceu e… — ela vira para a
loirinha. — É inútil. Como ela está agora não vai poder nos ajudar.
Ela me solta, e eu deslizo para baixo pela porta de vidro do box parando
sentada no chão.
— Esse é o mesmo veneno que servem aonde Igor trabalha? — a loira segura
a garrafa novamente e a estuda, curiosa.— É estranho como humanos gostam
de se envenenar.
— As vezes o fazem para socializar, Cali. Eu estava bebendo um veneno
humano agora, só que menos potente. Se beber pouco não faz mal. E no meu
caso, não faz absolutamente nada.
De olhos fechados, as ouço conversar um papo estranho de veneno de
humano.
Luto contra as ondas de sono que vem e vão. Mesmo a um segundo de cair
num sono profundo, não estou afim de dormir aqui no banheiro de Lucas.
Já passou da hora de ir para casa.
Essa festa foi um fiasco. Não quero que a cereja nesse bolo de merda que
foi minha noite seja passar vexame na primeira festa que me convidam.
Não que eu tenha intenção de vir na próxima. Mas dignidade é tudo.
— Vem, Cali. Vamos levá-la daqui.
A Rihanna me levanta sem nenhum esforço, e quando estou de pé me pega
em seus braços estilo noiva.
Como assim? Ela é muito mais forte do que aparenta.
Mesmo assim, nego a ajuda.
Ela não me ouve.

58
OBRIGADA, PRIVADA

— Opa, epa, péra, péra… tão me levando pra onde? — quem são essas
garotas e por que estão me carregando?
— Vamos te levar para o seu apartamento. — Alexis diz.
Começo a entrar em pânico porquê sim. Eu não as conheço. Mas elas
aparentemente não só me conhecem como também sabem onde moro.
Seriam amigas de Lucas? Aliás, onde está Lucas, ou Sara, ou Daniel? Será
que deram conta que desapareci por alguns momentos?
— Quem são vocês? Me coloque no chão! — não estou disposta a pagar o
micão de ser carregada para fora da minha primeira festa com vizinhos que
acabei de conhecer. — ME PÕE NO CHÃO AGORA, faz favor. Eu posso
andar!
Imagina só o quanto zoarão com a minha cara no futuro se verem isso!
Começo a me debater pois quero que ela me solte imediatamente, mas ela é
estranhamente forte para alguém de seu porte.
— Verena, pára! — ela me dá a ordem, mas eu não paro até ela me por no
chão.
— Verena, calma! — a loirinha admoesta amigavelmente.
— Que calma, o quê!? Quem são vocês e por quê tão me carregando? Cadê
o Lucas?
Sei que ele tem sua preciosa namorada e que esqueceu da minha existência
assim que ela começou a rebolar, mas como convidada de sua festa e nova
vizinha que está morrendo de coma alcolico em seu banheiro, achei que ele
procuraria por mim em algum ponto da noite.
Mano do céu, como sou iludida!
Alexis finalmente me põe no chão e eu vou cambaleando até a parede mais
próxima.
— Lucas nos convidou para entrar mas alguém o chamou. — Alexis
responde a minha pergunta.
Lucas ocupado com a festa. EU SOU MAIS IMPORTANTE. Ou deveria
ser.
— Cadê o Daniel? Sara? — nenhuma das duas parecem reconhecer os
nomes que eu disse.
Pensando bem, reparo que não me foram apresentadas hoje a noite. Eu

59
AS FILHAS DE GUENDRI

repararia. Especialmente na Rihanna aqui na minha frente. Ninguém tão


exótica e com essa cara bonita é esquecida facilmente.
Entro em pânico novamente quando Alexis tenta me carregar de novo
assim que vê que não estou conseguindo lidar com minhas próprias pernas
que de repente resolveram ficar moles.
— Verena, nós não estamos aqui para te machucar. — a baixinha diz. — Só
precisamos da sua ajuda para encontrar…
— Amiga, quem tá precisando de ajuda sou eu. — rio sozinha. Meu senso
de humor enquanto bêbada não é dos melhores, admito. — Não sei quem é
sua irmã, minha filha, agora me deixa em paz, beleza?
Me segurando na parede tento sair do banheiro, mas Alexis segura meu
ombro e perco o equilíbrio, quase caindo.
Fico irritada.
Por quê essas duas não largam do meu pé?
— Mas que mer…
Me viro para reclamar mas, um soco bem no meio do meu nariz que eu
nem sei de onde veio faz minha cabeça rodar mais ainda, me derrubando
num nocaute imediato.
Caio no chão feito um saco de batatas, e me desligo da realidade.

60
11

Estranhas

N
ão tive escolha.
Eu tive que fazer o que fiz.
Tive que nocauteá-la.
Cali parece se surpreender com o soco que viro na cara de Verena, pois dá
um pulo para trás e segura o grito na garganta.
— Quê? — pergunto a Cali. — Ela estava ficando histérica. — justifico.
— Foi bem… forte. Não acha? Tenho certeza de que quebrou o nariz dela.
— Da próxima vez, usarei menos força. Prometo. — Cali pisca confusa,
provavelmente esperando que não houvesse uma próxima vez. — De qualquer
forma, o elixir a curará. Vamos antes que ela acorde.
Pego Verena no colo. Ela é bem mais leve do que parece. Cali vai na frente
pedindo para as pessoas da festa liberarem a passagem.
— Meu Deus!! Ela tá bem? — Lucas nos avista de longe e pergunta gritando.
— Ela tá ótima. Só precisa descansar! — grito de volta, carregando Verena

61
AS FILHAS DE GUENDRI

o mais rápido possível, antes que ele se aproxime o suficiente para ver o
tamanho do estrago que fiz na cara dela.
Magicamente, Cali abre a porta do apartamento de Verena. Procuro seu
quarto e a coloco em sua cama.
— E agora? — indago.
Ela respira fundo e cruza os braços, torcendo os lábios.
— Não sei. Esperava conversar com ela hoje á noite. Quando será que ela
vai acordar?
Não sou expert em bebedeira humana, especialmente bebedeira acompan-
hada de soco, mas se não me engano só amanhã.
— Têm algum… feitiço para acordá-la? — ofereço a ideia já sabendo a
resposta.
— Não, Alexandrai. — Cali diz firmemente. — Não vou usar nenhuma
magia em alguém sem autorização dessa pessoa.
— Mas nesse caso é diferente, Cali. Vai ajudá-la.
— Mesmo assim. — Cali analisa a dorminhoca na cama, que agora faz um
barulho, mais conhecido por humanos como ronco. Se respira, sobreviveu
ao murro. Nem foi tão forte mas mesmo assim ganhou um pouco da minha
admiração. — Não é certo.
Esse código moral que Cali têm é derivado de seu pouco tempo entre
humanos. O que é estranhíssimo pois Igor nos diz que “ Na selva de pedra é
cada um por si. Com o tempo vocês aprenderam o jeitinho brasileiro. É impossível
sobreviver aqui sem.” Por outro lado, não muito diferente do que aprendi
sobre nossa espécie com Igor, fadas não esperam permissão e também não
seguem regras éticas que não condizem com nossa magia ou as leis que as
regem. Nem todos os parâmetros morais humanos se aplicam em elementos
extraterrestriais.
— Sei o que está pensando. — a voz de Cali é séria, mas doce.
— Então não precisamos mais de Igor. — sou sarcástica.
Ela inclina a cabeça levemente, frustrada com minha resposta.
— Está impaciente.
Não precisa ler mentes para ver isso. Estou cansada desse vai e vem entre
mundos. Dessa busca da qual não sei onde vai dar. De respirar liberdade e

62
ESTRANHAS

ter que voltar a ficar sem ar em meu cativeiro. Toda vez. Estou cansada deste
inferno e de não saber o que fiz para merecê-lo.
— E você não? — pergunto.
Cali está em silêncio, provavelmente escolhendo as palavras certas para
usar comigo. Não gosto quando ela faz isso, quando me trata como realeza.
Não tenho reino, não me lembro de jamais tê-lo tido e honestamente, nem
quero ter.
— Eu sei que você se pergunta o por quê disso tudo. — Cali diz isso tão
baixo, eu mal a ouço. — Estou certa? — sinto uma pontada do medo que ela
sente em me fazer essa pergunta.
Me ira.
Sim. Já me perguntei o por que disso tudo. Acha que sei? Acha que sei por
quê nem eu ou minha irmã conseguimos defender Adaris como supostamente
fomos criadas e treinadas para fazer?
Estou pagando por um erro que não lembro nem ao menos se realmente
o cometi. A cada vez que penso nisso me sinto mais fraca do que quando
comecei essa busca.
O passado é algo irritante: ou lembra-se dele tortuosa e repetidamente ou
não se faz ideia de como ele foi e consequentemente, do por que tudo é como
é.
— Não digo isso para fazê-la sentir-se culpada. — Cali se aproxima de mim,
colocando a mão sobre meu braço. — Mas para lembrar que precisamos
encontrar uma resposta. Um motivo. Uma maneira de assim que a verdadeira
Regente estiver em seu lugar e Adaris voltar ao normal, nada disso aconteça
novamente.
— Você acha que foi nossa culpa? Culpa das “Filhas de Guendri”? — preciso
ouvi-la dizer. Cali é um dos poucos seres de Adaris que conheço. Será que
é isso que pensam? Que as filhas são as culpadas pela atual situação? Ao
menos os que acham que nós existimos, pois aparentemente muitos acham
que somos apenas rumores.
— Não é isso que penso. Na verdade, nem sei o que pensar a respeito. E
isso não importa agora. — ela evita minha pergunta e eu já sei que é isso
que acha. Mais um motivo pelo qual não quero viver em Adaris. — O que

63
AS FILHAS DE GUENDRI

importa agora é que lutamos por justiça. E se fizermos injustiças ao lutar por
ela, certamente não a alcançaremos. Sei que quer sua liberdade Alexis, mas
precisamos ter fé e paciência. Não faço isso só por mim, mas por você, por
sua irmã, e por toda Adaris.
— E você, Cali? Já se perguntou se vale a pena? Se vale a pena fazer isso
por mim? Por Mabel? Será que Adaris vale a pena? — não tive a intenção de
soar tão amarga. Mas saiu.
Me levanto. Será que eu pensava assim de Adaris antes de ter minha
memória apagada? Será que meu leve desdém por minha terra é antigo
e nos levou a atual situação? Já amei meu mundo alguma vez?
Imagino que nem todo mundo ama o mundo em que nasce.
Respiro fundo, olhos fechados. Passo as mãos em meus cabelos, buscando
paciência e candura. Quando finalmente olho para Cali, vejo que minhas
palavras a magoaram.
— Eu… eu não quis dizer isso. — para minha surpresa estou fazendo aquilo
que já vi alguns humanos fazerem. Estou me desculpando.
— Tudo bem, Alexis. Eu sei que você quer o bem de Adaris. Você é o que
mais me deu esperanças de lutar por mudança e não o contrário. Quero que
saiba disso.
— Você é mais corajosa, amorosa e paciente que eu, Cali. Se Guendri queria
alguém para proteger Adaris, não deveria ter me criado, deveria ter procurado
por fadas como você.
Ela me abraça de repente e eu não sei exatamente como retribuir.
E entre seus braços reparo que a cada palavra trocada com ela, percebo que
algo dentro de mim muda. Cresce. Nasce. Aparece.
Ela me talha a cada interação. Juntas descobrimos quem sou.
E o que realmente quero.
Até hoje, já aprendi muito com a pequena Caliandrei. Seu jeito suave e
altruísta ainda me é um enigma. Mas uma coisa sobre ela me é bem clara.
É por ela e por todas as outras que perderam muito em Adaris que ela luta.
Com unhas e dentes. Com tudo o que tem.
Provavelmente, eu deveria aprender isso com ela também pois as Filhas de
Guendri já falharam a todos uma vez.

64
ESTRANHAS

Não posso falhar novamente.

Acordei há um tempo.
Minha cabeça ainda dói. Estou horrível, minha boca azeda e me sinto… seca.
Seca feito reserva de água paulista em meio ao outono. E por algum motivo,
não sinto parte de minha face e respiro pela boca.
Apesar da fraqueza e desconforto, estou tentando entender a situação em
que me encontro. Recostada em minha cama, silenciosamente estudo as duas
garotas a minha frente.
A modelo de passarela é Alexis. Esguia, de beleza intrigante e presença
marcante. Está recostada em meu armário, blasé.
A baixinha é Cali. Carinha fofa de adolescente que nunca se rebelou contra
os pais em pé ao lado da minha cama, me oferecendo uma bebida esquisita
dentro de um vidrinho verde com um sorriso educado.
E eu, considerando a possibilidade de estar em um de meus vívidos sonhos,
embora este seja completamente diferente de todos os outros.
Por que somente assim isso tudo faria sentido.
— E isso é uma… “poção mágica”? — pergunto, sem esconder o sarcasmo.
Rio, sem humor.
Opa, tem outra possibilidade: a de que isso é um sequestro e que estou em
cativeiro, raptada por duas garotas malucas que dizem ser… eu não consigo
nem repetir tal loucura.
— Vai te ajudar a sentir melhor. — Cali diz.
Aham. Eu respiro fundo.
Estamos em meu quarto há um tempo. Elas tagarelaram sobre um lugar

65
AS FILHAS DE GUENDRI

blá, blá, blá, uma regente de não sei o quê e eu só as ouvi, fazendo cara de
paisagem. Agora estamos todas em silêncio, nos entreolhando, como em
stand off de filmes de bang bang.
— Um banho e uma aspirina vão ajudar e são, sem ofensa, mais confiáveis.
— respondo à Cali.
Alexis revira os olhos. Cali abre espaço para eu sair da cama e me arrependo
de me mover assim que começo a fazê-lo. Todas as dores agora competem
para ver qual me mata primeiro.
Com dificuldade, me dirijo ao banheiro.
Me preocupo em deixar as duas estranhas em meu apartamento, mas fora
meu video game, não tenho nada de valor. E se quisessem roubar algo, o
teriam feito enquanto eu dormia. De qualquer forma, eu preciso de um banho
imediatamente. Eu dormi com vômito no cabelo e no vestido. Perdi uma das
sapatilhas ontem, mas uma delas ainda esta em meu pé. O pé sem sapatilha
está mais encardido que a sapatilha no outro pé.
Mas que beleza.
Tranco a porta do banheiro, só para garantir. Olho no espelho e solto um
ecoante grito de espanto ao ver meu olho roxo, nariz literalmente torto e
sangue seco em volta dele.
— Desculpa… — ouço Alexis gritar em resposta.
Ela tinha me avisado que devido a cena que eu comecei em meio a festa, a
única forma de me tranquilizar foi essa. Um belo de um murrão na minha
fuça. Ela tinha se desculpado antes, mas eu não tinha visto o tamanho do
estrago.
Não tem banho nem aspirina que conserte isso, cara.
Cali jura que a tal bebida vai consertar tudo, me deixar novinha em folha.
Mas acho que menos de uma cirurgia corretiva não fará tal milagre.
Ligo o chuveiro e espero a água esquentar. Tiro o vestido e piso debaixo
d’água, sentindo dor e alívio ao mesmo tempo. Ao lembrar da privada que
abracei, me lavo mais uma vez por inteiro, esfregando com mais força, só
para garantir.
Ao terminar me sinto um pouco melhor.
Enrolada na toalha, vou até a cozinha e bebo bastante água. Mas bastante

66
ESTRANHAS

água mesmo. De volta a meu quarto, minhas intrusas não parecem cansadas
de esperar.
— Vocês se importam? — indico que quero privacidade para trocar de
roupa e elas seguem até a sala, sentando-se em meu sofá.
Calça de moletom e camiseta, vou a frente de meu espelho que era de minha
avó (e muito bonito, diga-se de passagem) e desembaraço meus cachos. Antes
de voltar para as sequestradoras, tento recapitular todas as insanidades que
me foram ditas por elas desde quando acordei.
Alexis e Cali precisam de mim.
Elas tem nomes compridos e procuram por uma pessoa com um outro
nome exótico.
Eu posso ajudá-las a encontrar essa pessoa.
Que é irmã de Alexis.
Ela desapareceu há algum tempo.
Alexis não sabe dizer exatamente quanto tempo, pois tem algum tipo de
amnésia.
Até então, tudo bem. Pessoas desaparecem, infelizmente esse tipo de coisa
acontece. E se eu puder ajudar alguém a ser encontrado, será um prazer. Mas
eu não conheço essas pessoas, nunca as vi na vida, já expliquei que sou nova
nessa cidade e praticamente não conheço ninguém.
Agora, o que faz toda esta história ainda mais bizarra, é o que me disseram
depois disso.
O que as duas garotas são.
Fadas.
Elas duas são fadas.

67
12

Verdades Em Pequenas Doses

A
dor de cabeça piora quando tento computar nela essa loucura.
Fecho meus olhos e rio de nervoso. Não quero sair do meu quarto,
não quero falar com ninguém. E tentando entender tudo, á tona me
vem a memória o que descobri ontem sobre Lucas. Sua perfeita namorada e
a cara de cachorro que caiu da mudança que ele faz quando olha para ela.
Que bela forma que minha cabeça encontrou de melhorar uma manhã que
já está uma porcaria.
Me levanto, relutantemente vou até a sala. Não quero pensar em Lucas e
essa é provavelmente a melhor forma de evitar: tentando me livrar da dupla
de piradas em meu apartamento.
— Está pronta para continuar a conversa, Verena? Sente-se melhor? —
Cali me pergunta e parece preocupada com meu estado. Também pudera, eu
estou com cara de quem irritou um faixa preta de MMA ontem a noite, meu
olho roxo e nariz torto são provas disso.
Me sento na poltrona ao lado do sofá onde elas sentam lado a lado.

68
VERDADES EM PEQUENAS DOSES

— Não. Minha cabeça ainda dói. E nada disso faz sentido.


Estou tentando ser educada aqui. Mesmo tendo levado um soco da Rihanna
de plantão, não sinto nenhuma hostilidade vindo delas e não quero instigar
tal sentimento.
Um olho inchado é suficiente.
— Tome isso, por favor. — Cali me oferece o frasquinho de vidro de novo.
— É o nosso pedido de desculpas.
Não sou a maior fã de medicina alternativa. Mas, com a prerrogativa de
que o que não mata engorda, posso dizer que neste momento eu não estou afim
de engordar, se é que me entendem.
Pego o frasco e bebo o líquido numa tacada só.
Aos poucos, minha cabeça para de doer. Minhas pernas e costas sentem-se
como novas. Eu toco meu rosto na esperança de que o inchaço diminuísse.
Melhor que isso: ele desaparece por completo. Me sentindo estranhamente
disposta, corro até o espelho do quarto. O nariz desentortou. O roxo sumiu.
As olheiras também. Na verdade, olhando de perto, até as espinhas que me
apareceram esta semana sumiram.
E eu me sinto… Feliz? Por um momento, não me importo com nada que
me aconteceu ontem á noite ou hoje de manhã.
Eufórica, sorrio.
— O que foi isso que tomei? — pergunto ao voltar para a sala, me sentindo
tão energizada que não quero nem sentar. Sinto como se tivesse tomado
cafeína pura intravenosamente.
— É uma mistura de flores de Adaris e magia. Invenção minha. — Cali
responde orgulhosa de sua própria composição.
— Adaris? É alguma loja? Onde fica? — preciso saber pois definitivamente
me tornarei uma cliente.
— É de onde somos, Verena. — Cali responde e eu mal dou atenção. Estou
andando de um lado para o outro, quase explodindo de inquietação. — Você
vai se sentir um pouco… agitada por uns momentos, mas logo passa.
— Isso não é anfetamina, né? Vocês não me deram nenhuma droga não, né?
— eu provavelmente deveria ter perguntado isso antes de beber o troço.
— O que é anfetamina? — Cali pergunta.

69
AS FILHAS DE GUENDRI

— Isso aqui vicia? — pergunto de volta, ainda segurando o frasquinho.


— Não que eu saiba.
Resposta boa o suficiente.
— Tem mais?
— No momento, não. Eu fiz apenas uma pequena dose, sempre carrego
comigo. Pensei em oferecer para seu rosto. De quebra, a bebida ajuda outras
dores também. Em humanos, age como um potente elixir.
Humanos. Ah, sim. Tinha me esquecido.
— E agora? Será que dá pra gente conversar? — Alexis finalmente fala.
— Claro! — minha resposta saiu mais entusiasmada do que eu quis. Sento-
me novamente. — Então quer dizer que vocês são fadas? — a formalidade
com a qual digo isso surpreende até a mim mesma.
— Exato. — Alexis parece relaxar. — Agora você acredita?
— Não. — respondo depressa demais. — Digo, como vou saber se é verdade?
É claro que não acredito. Fadas não existem. Mas me conte mais sobre a sua
irmã e como você acha que posso ajudar.
— Como vou contar, se você não acredita?
— Eu acredito que sua irmã tenha desaparecido. Só não acredito no resto.
Alexis respira fundo, ficando ainda mais impaciente.
— Verena… — Cali coloca a mão na perna de Alexis, numa tentativa de
acalmá-la. — Alexis e eu somos fadas, de um mundo diferente. Essa é a
verdade. Tente abrir a mente por um segundo, e pense da seguinte forma:
quantas várias outras novas espécies de animais são descobertos aqui na sua
terra diariamente? Não é só por quê não sabia de suas existências que elas
não existiam. Não saber da existência de algo não faz desse algo menos real.
Vários mundos e criaturas existem. Também não sabíamos da existência de
humanos antes e aqui estamos.
Faz sentido. Acho.
— E por que vocês parecem humanas?
— Posso te perguntar a mesma coisa: por que os humanos parecem fadas?
— Cali sorri com o que diz. — Acho que nossos criadores usaram moldes
similares para nos fazer. — ela aponta o dedo em nossa direção, nos incluindo
num grupo imaginário.

70
VERDADES EM PEQUENAS DOSES

Não sei se é o argumento ou se é a bebidinha mágica que me convence mas


é, admissivelmente, isso também faz sentido.
— Tá então, agora me conta de novo sobre Adaris. — cruzo minhas pernas
sobre a poltrona, ainda extremamente inquieta. — Manda aí um resumão,
por favor.
— Adaris é um mundo formado por Guendri, criador de todas as espécies
que lá vivem: fadas, elfos, pixies, héberas, ndales, etc. E, para “cuidar” desse
mundo em sua ausência ele criou duas irmãs: Alexandrai e Mabelai, suas
filhas, duas fadas. E antes de partir, deixou Mabelai como Regente. Adaris
precisa dessa Regente. Quando Guendri está entre nós, é ele. Sem ele, alguém
com seu sangue deve ficar em seu lugar.
— Primeiro, desculpa… mas que nominhos, hein? — sério, essa bebida está
me deixando sem freios. Jamais apontaria quão ridículo o nome de alguém é
assim na caruda. Até mesmo por que o meu não é um dos mais populares. —
Alexandrai, Mabelai… Caliandrei?
— Os sufixos de nossos nomes representam nossas classes. Nomes
terminam em “ai”, ou “ei”, e assim por diante.
Então tá.
— Aham… Falando de Adaris, pra quê precisa de Regente? São uma
orquestra ou alguma coisa do tipo?
Cali segura uma risada.
— Regentes de orquestras controlam a harmonia de diversos elementos
para que seu equilíbrio produza um som agradável, certo? A mesma coisa
com nossa Regente, mas ao invés de música, é magia. — explica Cali.
— E por que vocês falam português? — disparo perguntas, está difícil
controlar minha boca.
— Por que você fala português?
— Colonização. Vocês também? — cara, os portugueses foram longe, hein…
— Não… — ela franze o cenho, brevemente confusa. — De volta a Adaris:
quando Guendri se foi, por algum motivo suas filhas desapareceram. Garou,
um dos elfos de Adaris, decidiu se tornar nosso líder e isso desajustou os eixos
mágicos de nosso mundo. Adaris está em ruínas e ao invés dele fazer o que é
certo, ou seja, procurar a verdadeira regente, ele quer ficar no poder. E por

71
AS FILHAS DE GUENDRI

isso nos aprisiona em nosso próprio mundo.


— Okay, espera. — interrompo. — Se Mabelai está desaparecida, por que
ele é o líder sendo que Alexis está aqui e também é filha do tal Guendri? É
só passar o poderzinho aí pra ela, certo? — eu pareço acreditar nessa loucura
toda, mas é mais a poção falando do que eu.
— Ele escolheu Mabel antes de partir e deu apenas á ela a condição de
Regente. — Cali diz com precisão. — Quanto a Alexis… Garou apagou todas
as suas memórias e a mantém num cativeiro em segredo de todos nós. E após
tomar Adaris, expulsou alguns enquanto outros fugiram por serem contra
ele. Por fim, a fraca magia acabou eliminando a possibilidade de nascerem
outros. Eu sou uma das poucas fadas que sobraram. — Cali suspira, tomando
folego para continuar a falar. — Enfim, Alexis não lembra de nada até eu
encontrá-la. E por enquanto finge ainda não saber, até que concretamente
encontremos Mabelai. Esse é o plano por agora.
Estou com a boca aberta. Que história!
Isso, se verdade, é terrível. Olho para Alexis. Sem querer, sinto uma
enorme revolta… mesmo essa história sendo absurda, a possibilidade de
ter tido sua identidade apagada de sua mente para virar bonequinha de um
megalomaníaco soa horrível.
— E você não se lembra de nada, nadinha? — pergunto a Alexis. Ela hesita
em responder. Vejo em seus olhos que entende todo o absurdo da situação
de como recebo a história que despejam em mim.
— Não. Nada. — responde, finalmente. — Nem sei como Mabel é. —
Alexis levanta. — Assim como você, também duvidei quando ouvi sobre ela
ou sobre como em algum passado eu era livre. Não tive outra opção a não
ser acreditar.
Suas palavras me dão um frio na espinha. Esta manhã, tive a impressão de
que Alexis era mal humorada, indignada, sem paciência. Se essa história for
verdade… não é difícil de entender o porquê. Não deve ser fácil não saber
quem se é. Ou pior, só se conhecer como refém de alguém.
— E como você escapa pra vir pra cá? — estou genuinamente curiosa.
— Ele não está a minha volta o tempo todo. Sei lá, acho que os muitos
problemas de Adaris o deixam bem ocupado. Além do quê, por algum motivo

72
VERDADES EM PEQUENAS DOSES

posso senti-lo. Sei quando devo voltar.


Eu engulo em seco.
— Como eu disse, não há muitas de nós fadas sobrando. Eu sou uma das
poucas que serve Garou em sua corte, que um dia foi de Guendri. Antes de
saber da verdade, eu o servia cegamente. Assim como todos de Adaris pois
ele nos convenceu que fomos abandonados e precisamos dele. — Cali têm
toda minha atenção. — Adaris era poderosa, autossuficiente, pacífica. Mas
agora é quase uma terra deserta. Não há confiança entre nossas espécies, e
todas enfraquecem mais e mais. Por isso eu e Alexandrai estamos aqui.
— Para encontrar Mabelai que está entre humanos. — completo a frase
para ela. Gente, acho que estou mesmo acreditando nisso tudo.
Ha, preciso beber mais daquele negocinho verde. Se continuar assim, mais
um gole daquilo e eu passo a crer que a terra é plana.
— E como é que eu… — tomo coragem para perguntar. — Como acham
que posso ajudá-las?

73
13

Intromissões Vizinhas

E
ssa é a parte mais difícil. A parte em que explicamos tudo para os
humanos que tiveram contatos com Mabel.
É a quarta vez que conto nossa história. Quinta, se você contar a
vez em que o cara não quis ouvir e nos mandou embora. É cansativo explicar
tudo, mas é honesto.
Uma vez, Alexis disse que seria mais fácil nocautear as pessoas, trazê-las
até Igor sem que soubessem, ler suas mentes e devolvê-los a segurança de
suas vidas sem desconfiarem de nada.
Não acho que Alexis tenha sugerido isso por maldade, mas praticidade. Eu
apenas não acho isso certo. Não se constrói um mundo melhor deixando
vítimas para trás. Não se luta por liberdade promovendo violência contra
indivíduos. Não se busca a verdade contando mentiras.
Uma coisa é me machucar. Este é o preço que EU resolvi pagar. Outra coisa
é machucar outras pessoas. Então com dificuldades, convencemos pessoas a

74
INTROMISSÕES VIZINHAS

nos ouvirem e ajudar. Até agora funciona.


Quando conhecemos a primeira pessoa que encontrou Mabel, ela sentia
dores no corpo devido a feridas de uma queda de moto. Com intenção de
ajudar, ofereci o elixir. Imediatamente ela se sentiu melhor e estranhamente
disposta a nos ouvir.
Comecei a suspeitar dos efeitos colaterais da bebida quando a segunda
pessoa não foi tão mente aberta até aceitar beber o elixir. O mesmo com
Jaqueline.
E agora com Verena.
Não acho imoral, pois esse efeito não era a intenção inicial.
E apesar de Verena estar sob ele, ela ainda parece bem cética.
— Antes de Adaris ter suas portas fechadas, todos de lá visitavam outros
mundos livremente, incluindo o mundo humano. — explico o que me foi
contado por palavras, mostrado por meio de visão. A verdade é que eu mesma
não vivi essa época. — Por sermos espécies parecidas, certamente viu alguma
fada mas não reparou. Fadas tinham o costume de visitar alguns humanos,
até mesmo ajudá-los realizando pedidos ou com poções. Discretamente, é
claro. É aí que você entra. — a cara de Verena é um ponto de interrogação.
— É possível que você tenha conhecido Mabel, que ela tenha te ajudado. —
continuo. — Se nossas fontes estão certas, você viu Mabel quando era criança
e ela pode ter te ajudado com magia, de alguma forma. E podemos localizá-la
assim. Já a encontramos na mente de outra pessoa. Mas como a interação
entre ela e Mabel não foi significante, não podemos localizá-la no agora.
— Eu não conheço nem conheci nenhuma fada. Pode ter certeza que se
alguém fizesse algum tipo de urucubaca magica na minha frente eu lembraria.
E tem mais. — Verena se levanta. — Que fontes? Quem sabe isso aí de mim?
Seja lá quem for, mentiu pra vocês.
— Jaqueline também não lembrava e confirmamos a existência e aparência
de Mabel através dela. — Alexis explica.
— Quem é Jaqueline?
Droga. Alexis deixou o nome escapar. Não deveria ter falado sobre ela.
— Não importa agora. — Alexandrai corta Verena, com aquele jeito delicado
que só ela tem. — Apenas saiba que humanos podem nos ajudar através de

75
AS FILHAS DE GUENDRI

Igor, um ex-habitante de Adaris que agora mora aqui entre vocês. Ele pode
entrar na sua mente, encontrar resquícios anímicos de Mabel e rastreá-la
com isso.
Caímos em silêncio, mas posso ver que a mente de Verena está a mil por
hora.
— Olha, eu sei que parece que eu acredito nisso tudo,ou que aceito que
vasculhem minha mente com magia… mas como vou saber que vocês são
mesmo o que dizem ser? Que isso tudo não passa de uma pegadinha ou de
um truque para vocês me levarem para algum lugar e roubarem meus órgãos?
Arregalo os olhos com a pergunta. Isso é comum entre humanos? Roubar
órgãos alheios?
— Eu posso tentar te convencer. — Alexis se levanta e vira de costas. Ela
tira a jaqueta e a regata branca. Em suas costas, os dois cortes diagonais
começam a se mover e abrir. Desses cortes brotam suas asas, que tomam
forma exibindo cores vibrantes. — Isso parece mentira pra você?
Verena congela, assistindo atentamente. Nem pisca. O primeiro instinto é
sempre proteger-se do desconhecido. Ela anda para trás numa tentativa de
se distanciar.
— Não tenha medo, Verena. — encorajo ao ver quão pálida fica. Vou até
ela. — Vem, toque nelas.
— To-tocar?
— Isso. — pego em sua mão e a guio. Ela reluta mas por fim me segue.
As asas de Alexandrai são realmente muito exuberantes. Certamente
desenhadas por seu próprio pai, tão verdes e brilhantes quantos seus olhos,
reagem ao toque de Verena, agitando o ar a nossa volta.
— Gente, eu acho que vou desmaiar. — Verena diz, hipnotizada. — Meu
Deus, o que é isso? Que viagem, cara! Como isso pode ser possível? Como?
Você também tem isso? — me pergunta.
Respondo que sim com um sorriso.
— Não… isso não é possível! Eu vou coringar, meu Deus. — ela ri
histericamente. — Eu devo estar alucinando. Isso. Estou alucinando com a
bebidinha de Adaris.
Batidas na porta nos interrompem, fazendo com que nós três nos entreol-

76
INTROMISSÕES VIZINHAS

hemos.
— Verena? — a masculina e abafada voz responsável pelas batidas chama lá
de fora.
— Guarde as suas… — Verena sussurra e aponta para as asas de Alexis. —
E não esquece sua blusa. — assim que Alexis termina, Verena abre a porta. —
Daniel.
— Vizinha! — ele a cumprimenta com um beijo na bochecha. — Vim ver
como você está. Nós ficamos preocupados ontem.
— Preocupados por quê?
— Bem, você apagou. O Lucas me disse que sua linda prima aqui… — ele
aponta para Alexis com a cabeça. — Teve que te carregar.
— Minha… prima? — Verena olha para nós sem entender.
Daniel vem nos cumprimentar e perguntar nossos nomes. Sua barba faz
cócegas contra meu rosto e as tatuagens em seu braço chamam minha atenção.
— Vocês moram aqui também? — ele pergunta enquanto para de frente a
Alexis. Só falta babar nela.
— Não. — Verena responde rapidamente. — Só vieram me visitar.
Ele assente, tira algo do bolso e dá a Verena.
— Meu celular! Obrigada. Tinha até esquecido que o perdi ontem.
Daniel sorri. — Também te trouxe um remédio pra ressaca. — sacode a
caixinha de comprimidos. — Mas vejo que você já está bem melhor.
— Obrigada mesmo assim. — Verena conecta o celular num cabo grudado
a parede. — Droga. — pragueja ao ligar o aparelho.
— Algo errado com o celular? — Daniel pergunta.
— É que eu esqueci que tenho que ir ao escritório hoje. Já estou atrasada.
— Trabalhar de sábado é osso. — ele comenta.
— Sim, mas hoje só tenho que buscar um vestido pra um jantar com os
sócios do meu chefe mais tarde.
— Bem, então não vou te atrasar mais. — ele se dirige a porta. — Vou dizer
para o Lucas que você sobreviveu. — vira para Alexis. — Eu vou ver você de
novo, Alexis?
Alexandrai se surpreende com a pergunta. Verena tira os olhos do celular e
olha para ele, assim como eu. Alexis apenas dá de ombros e ele sorri para ela,

77
AS FILHAS DE GUENDRI

fechando a porta atrás de si.


— Que safado. — Verena diz mais para ela do que para nós. — Ele estava
com duas ontem. Fala sério. — respira fundo, larga o celular carregando e
após alguns momentos andando para lá e para cá, ajeitando suas coisas para
sair de casa, finalmente fala conosco de novo. — E então, caso eu decida
ajudar, como funcionaria? Vai doer? Vou ficar retardada?
Não consigo evitar um sorriso.
— Nós vamos até Igor. Ele mora e trabalha aqui em São Paulo, na Rua
Augusta. — Alexis diz.
— Não se preocupe. Não dói nem irá mexer com a sua cabeça. Você sairá
de lá da mesma forma que entrou. Eu prometo. — respondo.
— E… o que eu ganho em troca? São fadas, não? Tipo, fadas madrinhas? —
ela franze o cenho.
Já esperava essa pergunta. Nada mais justo do que querer algo em troca.
Um dos usos da magia da Sombra é de agir onde meus poderes de fada não
podem.
— O que gostaria? — ofereço.
— Que dessem um sumiço mágico na Sara. — ela fala tão baixinho que mal
escuto.
— Como?
— Nada não. Olha, eu ajudaria sem nada em troca mas é que estou meio
desesperada então… que tal me fazer passar no vestibular? — antes de eu
perguntar o que é vestibular, ela explica e fazemos o acordo. — E quando
encontro Igor?
— O mais rápido possível. Nos dê o número de seu celular. Entraremos em
contato assim que pudermos. — Alexis Responde. — Eu preciso voltar para
Adaris agora, mas a noite tentarei voltar aqui. Eu entrarei em contato, okay?

78
14

Céu e Peito Aberto

É.
Está tudo acabado mesmo.
Fadas. Fadas!
Existem.
Com asa, varinha e tudo. Bem, eu não cheguei a ver a varinha. Mas existem.
Andando por aí, entre nós. Como nós. Com jardineiras e botas de couro.
Meu Deus… o que mais não-humano será que existe em nosso meio? O que
fazem? O que querem? E mais importante…
Por que querem vir para um mundo como este?
Também não sei.
Como é que não estou mais em choque com isso? Como aceitei ajudar duas
garotas que nunca vi em minha vida que me contaram uma história insana e
nessa cidade gigante cheia de tudo que é gente louca?
E aquelas asas… se falsas, são os efeitos especiais mais bem feitos que já vi.
E ao vivo.

79
AS FILHAS DE GUENDRI

No caminho para o escritório, tento por meus pensamentos em ordem.


Começo a duvidar que o tal elixir me fez mais disposta a dar-lhes ouvidos.
Elas me dão um soco, me convencem que a bebidinha é só para me curar e
pronto: um plano perfeito para me drogar e me fazer alucinar aquelas asas. E
assim, roubarem meus órgãos. Ou qualquer outra coisa terrível que pessoas
fazem quando sequestram alguém. “Mulher é encontrada em pedacinhos na
cidade de São Paulo após acreditar em duas mulheres que diziam ser fadas. Põe na
tela, produção!” Vai ser a chamada no Balanço Geral.
Mesmo assim… eu acredito.
Pelo menos por enquanto.
Sei que é loucura. Mas agora, acredito em Cali e sua busca pela correção da
ordem de seu mundo e sua determinação em salvar sua espécie.
E a dor e solidão que vi em Alexis… pareceu com a minha. No começo,
tinha confundido com arrogância e impaciência. Ela é prisioneira de alguém.
Seu pai a abandonou, sua irmã desapareceu e com eles todas suas memórias
de tempos melhores… tudo o que conhece agora é um ditador. Claro que faz
sentido ela ser assim.
Um calafrio me sobe. Sei bem o que o abandono de um pai ou mãe podem
fazer com você. Nada supera, nada substitui. É difícil uma árvore manter-se
de pé quando não se tem raízes.
Ao chegar no prédio do trabalho, passo pelo Sr. Jair na portaria e seu
sorriso simpático. A semelhança entre ele e Flávio é gritante. E eu não gosto
de reparar nisso, pois me pergunto se sou parecida com minha mãe ou com
meu pai. Olhei a foto deles tão poucas vezes, que a grande verdade é que não
me lembro.
Não é tão difícil me ver por aqui ao sábados. Por outro lado, é raro ver por
aqui aos fins de semana quem está com o Sr. Jair: Doutor Gregório, o clínico
geral que tem uma sala aqui no prédio, alguns andares a baixo do meu. Ontem
considerei marcar uma consulta com ele a conselho de Flávio, explicar as
dores que sinto quando acordo. Acabei esquecendo e neste momento me
sinto tão bem, mas tão bem, que acabo deixando para lá.
Talvez não precise mais me preocupar com as dores. Talvez peça mais
alguns vidrinhos de elixir Adariano para Cali e tudo ficará bem.

80
CÉU E PEITO ABERTO

Dr. Gregório é, ao menos nas vezes em que o vi, bem mal-humorado.


Seu Jair é o único que o aguenta em todo o prédio e em troca, ele passa
horas na portaria conversando com ele. Ele é um médico extremamente
bem conceituado. Deve ter uns cinquenta anos, mas exala jovialidade. Acho
suas escolhas de vestimentas interessantes para um doutor. Camisas do Kiss,
Rolling Stones, entre outras bandas antigas de rock, sempre combinados com
um par de calças jeans. Barba sempre por fazer e quase descabelado, nunca,
nada que o faça parecer um médico de confiança. Por causa de um infarto
no músculo da perna, anda de bengala. Muitas vezes, ele ajuda Flávio com as
matérias da faculdade de medicina, e por isso os dois também são próximos.
Eu raramente paro para conversar com Sr. Jair quando Dr. Gregório está
a seu redor. Prefiro reservar minha paciência para lidar com este tipo de
homem todinha para Bauer.
Ainda assim ofereço um sorriso à Gregório também, mas ele não sorri de
volta, apenas me olha confuso, como se estivesse vendo alguém com duas
cabeças.
Então tá.
Passo meu crachá na catraca e apresso para o elevador. Quando tento abrir
a porta do escritório com minha chave, vejo que está destrancada. Lena deve
estar aqui.
Sobre a mureta de mármore a frente de minha mesa, dentro de uma longa
sacola de plástico transparente, vejo o vestido de cor vermelha vibrante.
— É pra você. — Lena surge no corredor, óculos na ponta do nariz e papel
em mãos.
— É lindo, Lena. — sorrio. — Obrigada.
— Tem sapatos de salto alto?
Nego com a cabeça. Ela vai até sua sala e volta com uma caixa na mão.
Quando os abre me impressiona quão altos são. Aliás, nunca tinha visto
sapatos tão bonitos em toda minha vida.
Pretos, salto agulha, sola vermelha.
— Experimenta. — se escora na mureta a frente de minha mesa e me espera
calçá-los.
Rapidamente troco meu fiél escudeiro all star branco pelo par luxuoso, que

81
AS FILHAS DE GUENDRI

por um acaso é meu exato número.


— Nunca andei de salto, Lena. — sou honesta. Tenho 1.75 cm de altura, já
me sinto um poste.
— Ande até o sofá. — a baixinha parruda comanda e eu obedeço. Vou
trotando desgraçadamente até o sofá vermelho, me jogando sobre ele ao
alcançá-lo. Lena põe o papel que segura sobre minha mesa e vem até mim
em seus próprios saltos com classe. — Dobre um pouco os joelhos, Verena.
— ela é forte, me segura pelos braços e me ergue do sofá, pega minhas mãos
e anda à minha frente, guiando-me. — Solte os quadris. Você está muito
dura. — obedeço e damos duas voltas completas na recepção. — coloque o
calcanhares no chão primeiro quando pisar, não a frente do pé.
Andamos mais três voltas e sinto que melhorei.
— É tão desconfortável. — reclamo.
Ela concorda com uma careta, esticando a mão para alcançar meu cabelo.
— Para hoje a noite faça um coque lateral. Vai ficar lindo. — ela observa
meus cachos que hoje não estão em uma trança. — seu cabelo é muito bonito,
mas infelizmente não sabe usá-lo. — ela diz mais para si do que para mim e
ignora quando murmuro um agradecimento ao meio elogio meio ofensa.
Por um segundo me pergunto se é assim que se sente ser cuidada por uma
mãe.
— Aonde vamos, Lena?
— Dimitri não te disse? — respondo que não com a cabeça. — Então eu é
que não vou estragar a surpresa.
— Surpresa? — me pergunto por que insistem nessa palavra. — Você vai
também, né?
Ela gargalha. — Não mesmo. Dispenso o clube do bolinha do chefe sempre
que posso. E quando não posso também.
— Eu vou ficar sozinha com eles? — minha esperança era de que ao menos
Lena me ajudasse com a socialização.
— Não se preocupe, Verena. Parece que sim, mas o Dimitri não morde.
— ela pega novamente o documento que deixara na minha mesa. — E com
certeza não vai deixar ninguém te morder. — pisca para mim e não sei o que
quer dizer com isso. — De qualquer forma, divirta-se. — dá um pequeno

82
CÉU E PEITO ABERTO

sorriso e sai, se trancando em sua sala.


Não entendo o por quê de tanto segredo, ou por que o tal jantar seria uma
surpresa para mim. Mas tudo bem. Já estou tão acostumada com essa gente
enigmática que prefiro não perder muito tempo tentando entendê-los.
Chamo e espero pelo uber para voltar para casa. Finalmente começo a
sentir fome. Fuço na ultima gaveta da minha mesa, procurando pela melhor
fruta do mundo: mexericas. E quando as acho já vou engolindo uma.
— Não sabia que viria trabalhar hoje.
O susto quase me faz engasgar no que como. Bauer aparece na porta
de entrada com camisa, gravata e cabelos impecáveis, silencioso feito um
predador. E como de praxe, tem que me assustar.
— Vim buscar o vestido. — esquecendo a educação, digo com a boca cheia
de mexerica mesmo, apontando para as belezuras doloridas em meus pés. —
E sapatos.
Ele os olha. Por alguns segundos, vejo a aprovação em seu rosto vencer sua
costumeira cara séria. Depois de ontem, cheguei a conclusão de que Bauer é
menos intimidante quando sorri.
Mais bonito até.
— Lena está na sala dela? — pergunta assim que para de olhar meus saltos
e o sorriso se esvai.
— Sim. Ela me deu isso. — pego o vestido ainda no plástico e mostro a
ele. — Mais bonito do que o vestido que usei ontem. — digo, na tentativa de
fazê-lo responder positivamente e sorrir novamente.
— Que vestido usou ontem? — o cenho franzido retorna.
— O preto… — ofereço, caso tenha mesmo esquecido.
— Não lembro. — ele diz calmamente indo até sua sala, parando na porta.
— Esteja pronta ás cinco. Não se atrase.
Ás vezes acho que Bauer é bipolar. Mas pela cara dele e tom de voz, concluo
que ele é apenas um sádico sarrista mesmo, gosta de tirar uma com a minha
cara e ver no que dá. Como assim ele não lembra? Ele estava bêbado mas nem
tanto. Eu também enchi a cara ontem e infelizmente, ainda consigo lembrar
de cada detalhe da noite que tive…
Lucas. Um dos caras mais lindos que já vi. E também, mais compromissados.

83
AS FILHAS DE GUENDRI

Aí, ó. Lembro de tudo.


Acho que os efeitos do tal elixir estão passando. Sinto fome, irritação. Dores
nos pés estão piorando, e agora a memória de Lucas e Sara me bate na cara
de novo de mão cheia.
Suspiro. Troco sapato por tênis e deixo o escritório assim que meu uber
chega.
Ao passar pela portaria novamente, Dr. Gregório que ainda assiste ao jogo
com Sr. Jair, parece me chamar.
Viro para ele.
— Verena? — pergunta, como se quisesse confirmar meu nome.
— Isso. — respondo, espantada por ele lembrar meu nome e confusa do
por quê ele o chamou. — Posso ajudá-lo, doutor?
Dr. Gregório ainda está com aquela mesma cara que tinha quando passei
mais cedo, cara de quem está tentando decifrar alguma coisa. E essa alguma
coisa está no meu cabelo, ou em volta dele, pois é exatamente onde não para
de olhar.
Quis perguntá-lo se ele me olha assim porque me estão nascendo chifres,
mas estou com medo dele responder que sim, já que tudo de muito esquisito
anda acontecendo comigo.
— Tome isso. — ele tira um cartão do bolso e o põe em minha mão. —
Marque uma consulta para você o mais rápido possível.
E assim, sem mais nem menos ele volta para a frente da TV da portaria ao
lado do Sr. Jair que após xingar um gol perdido acena para mim se despedindo,
ao contrário de seu amigo que me deixou sem nem dizer um tchauzinho.

84
15

Deportiva Cali

— Pode trazer a garota hoje á noite. — diz Igor. — Tenho apenas um show e
assim que terminar posso atendê-la. Avise a moça.
— Alexis ficou com o número de contato de Verena. — aviso a Igor. — Ela
fará a ligação assim que voltar.
Estamos sentados em sua varanda que fica ao lado de sua pequena casa de
shows, que a esta hora da tarde está vazia. Sem aquele barulho que treme as
paredes todas as sextas e sábados á noite, sua casa parece um lugar diferente.
Mesmo com Igor instalando isoladores de som, ás vezes ainda é possível
sentir a construção sacudir um pouco nas noites mais badaladas. De qualquer
forma, gosto de sentar aqui com ele e tomar sol. Guendri definitivamente
deveria ter criado um desses para nós em Adaris.
Esse calorzinho é delicioso.
— Não preciso usar minha telepatia para saber que tem algo que não sai de
sua mente. — Igor dá um trago em seu cigarro. — Ande, conte-me: quem é?

85
AS FILHAS DE GUENDRI

Não escondo minha surpresa. Está tão na minha cara assim?


— Nem se quisesse usar telepatia poderia ler minha mente. — aponto para
minha testa, brincalhona. — Está bloqueada para elfos.
— Não mude de assunto, pequena. Qual o nome da criatura?
Ao mesmo tempo que quero falar dele o tempo todo, não quero contar para
ninguém. Mas me abro, embora hesitante.
— Flávio. — olho para o chão, sem graça.
Em resposta, Igor dá um gritinho ardido de empolgação.
— Que gracinha! Você tem um crush! — Igor sorri de orelha a orelha. —
Pois é Cali, garotos humanos são uma perdição. — olha para cima e se abana
com suas lembranças. — Quando conheceu esse aí?
— Um dia desses… mas não importa. Adaris é meu único foco agora.
— Querida, certamente pode fazer os dois.
— Não. — respondo firmemente, colocando uma mecha de cabelo atrás de
minha orelha. — Todos os responsáveis por Adaris acharam que poderiam
fazer outra coisa além de cuidar dela. E olha onde estamos.
Igor respira fundo. Sua feição agora preocupada, amassa seu cigarro no
cinzeiro e pega uma de minhas mãos.
— Caliandrei, você não tem que se punir por coisas que não fez. — Igor
vira meu queixo para que eu olhe dentro de seus olhos. — Você nem sabe o
que aconteceu de verdade com Guendri, com suas filhas… se “focaram em
outra coisa” ou não. Ainda assim, não é sua cruz pra carregar. — a voz de
Igor é séria e grave. Quando ele menciona a palavra cruz me lembro de seu
significado. Um símbolo religioso humano de paz e esperança. Interessante.
É exatamente essas duas coisas que quero trazer para Adaris. — Já põe sua
vida em risco. Não te condeno por fazer isso. Mas te condenarei se não
aproveitá-la enquanto vive, nem um pouquinho que seja.
— Aproveito quando terminar o que comecei.
— Cali… — insiste. — Por favor. A vida é curta, menina. Bem talvez não a
sua, mas a dos humanos é! Então, se ele for humano, te aconselho a ser rápida.
— Igor ri e relaxa um pouco. — Sabe como quero te ver feliz né, pequena?
— E o que quer que eu faça? — honestamente sem saber por onde começar.
— Exatamente o que você quer fazer. — o sorriso sugestivo que me dá é

86
DEPORTIVA CALI

contagiante.
— Quero muito vê-lo novamente. — a verdade sai antes que eu possa
segurá-la. — Não faço ideia de como. Não sei nada sobre ele. Mas tenho essa
vontade, cresce todo dia e nem sei de onde vem.
Igor gargalha.
— Não há mundo ou criatura que saiba. Aqui chamam de “amor”… — Igor
pega um novo cigarro. — Pra sua sorte, você conhece alguém que magicamente
pode encontrá-lo.

Baixei minhas guardas mágicas mentais para que Igor pudesse encontrar
Flávio através de minha mente, do mesmo jeito que estamos fazendo para
encontrar a Regente de Adaris.
E aqui estou, numa parte da cidade de São Paulo que nunca estive antes
e bem diferente de outras partes que já conheci. É um pequeno parque no
meio de casebres com frontes e derredores simples.
Através de uma fina malha de metal enferrujado, assisto Flávio jogar uma
bola em direção a um poste com um círculo no topo. Ele corre para lá e para
cá, controlando-a com batidas rápidas contra o chão. Quando ele pula, coloca
a bola dentro do círculo e a espera cair, recuperando-a e fazendo tudo de
novo. Seus movimentos são precisos, seu corpo é ágil e brilha quando o sol
bate contra o suor de sua pele.
Gosto de assisti-lo. Me faz sorrir.
Devagar, passo a cerca de metal e entro na quadra. Percebo que ele está
sozinho e que eu estou nervosa. Algo dentro de mim quer se aproximar dele
mas não sei como.
Por Guendri. Salvar meu mundo da mais completa ruína arriscando minha
vida parece ser mais fácil que falar com um garoto humano.
Enquanto debato como chegar nele, o destino é mais rápido que eu: sua

87
AS FILHAS DE GUENDRI

bola vem quicando em minha direção. E olhando o objeto se aproximar como


se fosse uma bomba, acabo me abaixando para pegá-la.
— Ei! Obrigada. — Flávio vem atrás de sua bola. Quando se aproxima o
suficiente de mim, para uns minutos e observa meu rosto atentamente. —
Peraí… você… — diz surpreso, parecendo lembrar de mim. Meu coração
está batendo rápido e eu não sei por quê. Ainda seguro a bola, paralisada,
pensando no que dizer. — Cali! Lembrei. Seu nome é Cali. — diz após
alguns momentos e minhas palmas suam. — Que surpresa ver você por aqui.
— procurando palavras, não as encontro. — Lembra de mim? — se lembro?
Ultimamente, é o que mais faço. — Sou Flávio, da portaria daquele prédio da
Paulista. — se explica.
— Ah. Claro… Flávio! Nossa, estou surpresa em te ver aqui também! —
minto, completamente sem graça e sem saber o que fazer. — A-aqui está sua
bola. — ergo o objeto em sua direção.
— Ela não te acertou não, né? — ele a pega de minhas mãos.
— Não, não me acertou. — tentando secar minhas palmas suadas contra
minha jardineira, penso em algo para falar. — O que você faz por aqui?
— Só treinando.
— Treinando o quê?
— Basquete. Gosta?
Não sei nem o que é. Mas se entendi direito pelo que vi, ele tem que acertar
a bola no círculo. Parece interessante. Certamente com minhas asas ele as
acertaria com mais facilidade. Um voo estático parece menos trabalhoso que
pular incessantemente.
— Nunca treinei basquete.
— Você quer aprender? — pergunta, incerto de minha resposta.
Eu abro o maior dos sorrisos e ele pega minha mão, me guiando para perto
da cesta.
Nossa diferença de tamanho é visível. Aliás, todas as nossas diferenças
físicas são óbvias. Meus cabelos são loiros quase brancos, lisos e longos. Ele
tem o cabelo escuro e raspado. Sou baixinha, ele é gigante. Sou branca e
pálida, já sua pele é negra como a de Alexis, parece bronze brilhando sob o
sól.

88
DEPORTIVA CALI

Flávio se posiciona atrás de uma risca em frente ao círculo vermelho, me


colocando ao seu lado.
— Você tem que acertar a bola na cesta. Não pode passar dessa linha. — ele
mira pacientemente e joga, acertando. — Sua vez. — recupera a bola e a joga
para mim.
Parece fácil. Mas só parece. Erro e erro feio.
— É… tá bom pra quem nunca jogou. — tenta me consolar.
— A bola não foi nem na direção da cesta !— admito enquanto ele corre
atrás da bola novamente.
— É verdade, foi ridículo. — Flávio gargalha. — Mas tenta de novo, uma
hora você acerta. — ele me passa a bola.
Eu tento de novo. E de novo. E de novo. E não acerto nenhuma.
Que jogo difícil é esse?
— A tal hora em que eu acerto é hoje ou amanhã? — estamos rindo da
minha falta de talento para o basquete. Mirar é algo complicado do qual eu
nunca precisei fazer antes.
O sol se põe por entre os casebres mas nem percebemos o tempo passar.
Ele tenta me ensinar outros truques com a bola, mas estabelecemos que o
jogo não é para mim, embora eu esteja me divertindo muito com ele.
— Você faz isso parecer tão fácil. — reclamo. — Aliás, não é justo: você está
de shorts, e eu de saia. — a modéstia humana me contagiou, estava tentando
ao máximo manter a saia rodada da minha jardineira abaixada. — Além de
estar bem mais perto da cesta do que eu. — com minha mão, indico nossa
diferença de altura.
— Que culpa eu tenho que você é baixinha! — Flávio ri vindo até mim,
agarrando minhas pernas pelos joelhos e me erguendo.
Grito e rio ao mesmo tempo. Por um momento estou mais alta que ele.
Flávio me leva até a cesta, e chegando nela, finalmente acerto meu primeiro
ponto.
Ele me põe no chão e reparo como gostei de sentir seus braços ao meu
redor, suas mãos em mim. O calor da proximidade lentamente silencia nossas
risadas. Por um momento me sinto hipnotizada com seu rosto tão perto do
meu.

89
AS FILHAS DE GUENDRI

— Eu acho que eu gosto de basquete. — sussurro sem querer, e ao ouvir,


Flávio sorri para mim.
Um sorriso que me faz esquecer por um momento de que tenho um mundo
inteiro para salvar.

90
16

O Vestido

E
sse vestido é maravilhoso!
Vermelho, longo, estilo sereia. Não tem mangas, apenas duas tiras
que abraçam meus ombros justamente e que estão conectadas ao
vestido pelo decote em formato de coração. Está me dando cintura e quadris
que nem eu lembrava que tinha.
Vestidos de gala são sensacionais.
Sigo o conselho que mais parecia uma ordem de Lena e coloco meu cabelo
em um coque lateral, com algumas mechas ao redor de meu rosto. Segui um
tutorial de Youtube para fazer a maquiagem e mesmo ignorando a maioria
dos passos complicados, não ficou de todo o mal.
De volta aos sapatos doloridos, decido praticar um pouco mais o andar.
Após alguns momentos, confiro meu celular para ver que horas são. Nenhuma
ligação perdida, apenas uma mensagem de texto de Flávio perguntando como
foi ontem a noite. Resolvo responder depois por não ter tempo agora, nem
vontade de lembrar.

91
AS FILHAS DE GUENDRI

Decido esperar o uber na porta de entrada lá embaixo.


Lena colocou uma pequena bolsa de mão junto ao vestido e após certa
dificuldade de colocar nela meu celular, identidade e faca de bolso (não vou a
nenhum lugar nessa cidade sem ela), consigo fechar o pequeno trinco.
Como sempre, encontro dificuldade ao trancar minha pesada e sempre
emperrante porta. E para ajudar, no corredor de nosso prédio sou abordada
por quem menos queria.
— Vizinha, que bom te ver acordada! — Lucas brinca, e eu imagino que
também me viu ser carregada ontem á noite por Alexis. — Uau! — exclama
me olhando de cima abaixo. Se fosse qualquer dia antes de ontem, eu adoraria
vê-lo me olhar assim. Provavelmente usaria isso para fomentar ainda mais
meus sentimentos bobos por ele. — Você está linda! — continua e eu o ignoro
pelo bem da minha própria sanidade.
— Vou a um jantar de negócios. — não é verdade, mas também não é
mentira. Aliás, quando falo assim, soa tão importante quanto eu me sinto
nesse vestido.
— Ah, entendi. Bem, não quero te atrapalhar, só vim te devolver isso. — em
sua mão está um de meus sapatos que perdi na festa, outra decadente sombra
de meu vexame de ontem a noite. Será que se eu contar que apaguei por que
uma fada com uma força sobrenatural me nocauteou ele daria um desconto
nesse micão que paguei a vista?
Não posso deixar de notar a ironia da situação: meu não-príncipe encantado
trouxe meu sapatinho de cristal. Seria eu a Cinderela? Já tenho fada-madrinha.
Que me dá um soco quando não fico quieta.
— Obrigada. — agradeço com um sorriso amarelo, pego o sapato e jogo
dentro de meu apartamento, o trancando novamente.
— Beleza Vê, a gente se fala. Divirta-se! — Lucas me dá um rápido beijo na
bochecha e entra em seu apartamento, sem a mínima noção de como faz eu
me sentir. E que bom. Pois como canta Lulu Santos, meu crush “é uma idéia
que existe na cabeça e não tem a menor pretensão de acontecer.”

92
O VESTIDO

Há duas formas de perceber quão grande a cidade de São Paulo é: uma é


divertida, e a outra nem tanto.
A divertida é vendo a cidade de cima. O que já vi através de fotos, como
a do fundo de tela em meu computador no trabalho. A outra é a como
estou desvendando agora: em um carro, serpenteando por suas ruas; umas
extremamente longas e largas, outras curtas e cheias de carros estacionados,
dificultando a passagem ainda mais.
O trânsito é um teste diário a paciência e sanidade do ser paulistano.
Mas deixar a cidade ninguém deixa. Nem eu.
Quarenta e cinco minutos depois, chego no que parece ser uma área bem
chic da cidade, aonde claro, nunca estive antes. O carro para em frente a um
prédio gigante e meu silencioso motorista múrmura que chegamos. Agradeço
com um sorriso educado e saio do carro, boca aberta com meus arredores.
Admiro a arquitetura da capital paulista com olhos dos fãs de Da Vinci
quando veem Monalisa. Cidades são minha obra de arte favorita, pintada
por milhões de mãos diferentes, com cores criadas pela orgânica forma que
somente vidas difundidas em um grande polo social podem formar.
O motorista se manda. Estou sozinha e me sinto perdida com tanta coisa
acontecendo ao meu redor. Olho a minha volta e vejo outras mulheres com
vestidos tão ou mais elegantes que o meu. Carros caríssimos que eu nem sabia
que ambulam por São Paulo param, e assim que seus passageiros descem, são
levados por valetes. A larga rua têm diversos salões e restaurantes, e pessoas
se dispersam entrando em cada um deles.
Algumas se dirigem ao prédio em que desci em frente e que rouba toda
minha atenção no momento. Uma elegante obra de arte arquitetônica
contemporânea de concreto que se mantém imperiosamente perante mim.
Eu acompanho sua altura com meus olhos. O azul marinho profundo da
noite envolve sua ponta, mas posso ver daqui as luzes incandescentes que
brilham nela.

93
AS FILHAS DE GUENDRI

— Chama-se Edifício Serrato e foi projetado em 1974 por Roberto Pontes


Gastanhos, que quis prestar homenagem a era Art Deco da arquitetura
brasileira. — a voz de Bauer por trás de mim me surpreende.
O susto que eu levo.
Será que eu sou muito distraída ou ele faz isso para me assustar de
propósito? Detesto quando ele aparece do nada. Mesmo com interessantes
curiosidades sobre construção civil da cidade.
— Oh! Chefe! — respondo, levando uma mão ao peito e a outra a boca.
Ele parece sorrir com meu susto.
— Parece surpresa em me ver, Morales. Esperava outra pessoa? — ele olha
a sua volta sarcástico e eu não me dou o trabalho de responder.
Trocamos longos olhares, um analisando o que o outro está vestindo. Se
pensamos em elogios, não os dizemos.
— Onde estão seus sócios? — o nervosismo de estar sob o olhar dele me
faz perguntar.
— A caminho. Pronta? — ele ergue seu antebraço e espero que não queira
que eu segure nele. Errei feio, errei rude: cansado de esperar, ele pega minha
mão e a coloca na parte de dentro de seu braço erguido.
Passamos pela entrada. Ele conversa algo que eu não consigo ouvir com
o animado porteiro que parece feliz em revê-lo e seguimos para o elevador,
onde Bauer diz “Altar” e o ascensorista aperta o botão do vigésimo quinto
andar. Outras pessoas entram e o espaço entre Bauer e eu fica forçosamente
menor. As portas se fecham e ele se posiciona atrás de mim.
Posso ver sua elegante imagem nos espelhos que acompanham a madeira
escura do cubículo.
— Concordo com você, Morales. — assisto seu reflexo ao sussurrar isso em
meu ouvido. O sucinto gesto arrepia a pele de minha nuca, mandando um
calafrio por todo meu corpo. Nossos olhares se cruzam no espelho a nossa
frente enquanto seus lábios se movem próximos demais de minha orelha. —
Esse vestido é ainda melhor que o de ontem.
Que droga, Bauer, isso faz cócegas!
Então ele lembra… por que disse que não lembrava quando mencionei meu
vestido mais cedo no escritório? De qualquer forma, não consigo segurar

94
O VESTIDO

um sorriso antes que se forme em meus lábios. Gostei do elogio e me nego


a reagir de qualquer outra forma. Ele sorri de volta. Poderia jurar que com
uma certa malícia.
Começo a ter a impressão de que Bauer gosta de me provocar, tirar reações
de mim. Deve ser divertido, pois não tenho a tal da poker face para escondê-las.
O elevador começa a esvaziar. Ele se posiciona ao meu lado e coloca minha
mão em seu antebraço novamente. Assim que as portas de metal se abrem,
me deparo com um dos lugares mais lindos e elegantes que já vi em toda
minha vida.
Tento meu melhor para esconder o quão impressionada estou, mas está
difícil. É um espaçoso e extremamente elegante restaurante. Mesas redondas
cobertas em branco e dourado, luxuosos talheres e taças. Ao redor do salão,
grandes vidraças de onde dá para ver lá fora. O bar se estende por toda a
lateral direita do lugar, com inúmeras garrafas num display fascinante. As
luzes quentes dos lustres de cristal dão um toque aconchegante ao local.
Por dentro eu estou histérica, mas tento firmemente conter. Bauer contrasta
comigo. Apesar de nós dois estarmos igualmente elegantes, ele tem sua
normal expressão rabugenta estampada em seu rosto. Já eu, tenho certeza
que o resto da minha cara está sendo engolida pelo meu sorriso.
Após conversar com a hostess que nos dirige á nossa mesa, somos abordados
por um senhor de cabelos e blazer brancos.
— Dimitri Bauer! Que prazer recebê-lo novamente! — os dois trocam um
efusivo aperto de mão. — Quem é essa bela moça?
— Verena. Verena, este é Lazaro, dono do Altar.
Lazaro segura minha mão entre suas duas e a beija. Eu sorrio. Nunca vi
ninguém fazer isso comigo. Digo um “Prazer, Sr. Lazaro. Seu restaurante
é muito lindo!” em alto e bom som e ele começa a conversar comigo ainda
segurando minha mão, numa tentativa de me guiar pelo lugar com ele. Bauer
me puxa levemente de volta para seu lado, colocando seu braço ao redor de
minha cintura e eu não sei se me desvencilho devagar ou mando me soltar.
Agora ele conversa com o dono do lugar e deve ter percebido minha ligeira
tentativa de escapar, pois reforça ainda mais seu braço a minha volta.
— Sigam-me, por favor. Preparei a mesa que pediu, Dimitri. E Verena,

95
AS FILHAS DE GUENDRI

fique a vontade para pedir o que quiser. Estou ás suas ordens. — Lazaro tenta
pegar minha mão novamente, mas antes que eu possa responder qualquer
coisa, Bauer se coloca a minha frente e agradece em meu lugar.
Contornamos algumas mesas seguindo a Lazaro. Eu nem ligo para o que
Bauer fez pois quando chegamos ao outro lado do salão, o dono do Altar abre
uma porta de vidro para o terraço, e eu reparo que não estou preparada para
o que vejo.
Eu não acredito que Bauer fez isso…

96
17

Águas Rasas

D
e volta a Adaris, retiro minhas roupas e as escondo sob
uma das grandes pedras que rodeiam meu cativeiro. Meus
olhos rapidamente se ajustam à escuridão, meus passos seguem
hesitantes o já conhecido caminho de minha prisão.
Posso senti-lo se aproximar.
Aprendendo sobre quem sou não vem apenas do que Cali me conta. Aos
poucos descubro também como meu corpo funciona. Uma de minhas
habilidades é o que chamo de absorver a presença de quem conheço. Minha
teoria é de que quanto mais significativa minha conexão com a pessoa, mais
posso pressentir sua presença. Não preciso vê-la para saber que está perto.
Um dia espero encontrar alguém que saiba me dizer se estou certa ou errada.
Não acontece com todos que conheço, mas é o que acontece com Garou.
Sua pré-presença tem um efeito estranho em mim do qual tenho dificuldades
em decifrar o que significa.

97
AS FILHAS DE GUENDRI

Não suporto mais o frio após ter descoberto o que é o calor. A ira que
isso me causa literalmente me esquenta. Numa tentativa de acalmar meu
corpo, mergulho em minha pequena lagoa gélida. O negro e sedoso líquido
me engole por inteiro, e o único som que se pode ouvir são os de meus braços
e pernas ao mover-me contra a coesão das águas.
Garou está aqui.
Ele murmura algo que não ouço direito. Algo numa língua antiga da qual
não fui exposta ainda. Mas mesmo sem entendê-lo ás vezes, sempre sei o que
ele quer de mim.
Mantendo apenas minha cabeça fora da água, viro-me de frente a ele.
Não sinto nada por Garou além da raiva que me consome em brasa toda
vez que perguntas sobre o por quê me mantém prisioneira surgem em minha
cabeça.
Ele me enoja. Mas não posso demonstrar.
O fito na esperança de que meu olhar transmita o que meu corpo não sente.
Não sei se isso é inteligente, mas tento o melhor que posso. Atuar não é meu
forte e meu receio é de que não o faço perfeitamente, já que fica mais e mais
difícil de voltar aqui depois de saber o que sei, ver o que vejo.
Enquanto eu agir como antes, ele não desconfiará de nada do que faço com
Cali.
Há algo de novo nele, de diferente. Desde a primeira vez em que o vi,
Garou mudou e ainda muda. A cada vez que entra em minha presença parece
maior, mais forte, mais assustador. Seu corpo parece passar por uma estranha
evolução, suas medidas já estão além do normal de outros elfos, me fazendo
questionar se ele é mesmo um deles.
No centro de seu largo peitoral, seu mediastino está quase visível, veias
largas cintilantes brilham como lava, algo que nunca percebi antes.
Sua feição de repente muda. Deve ter visto algo diferente em minha
expressão. Droga. Meu rosto me trai, dedura meus pensamentos. Tento
controlar minha face, limpar minha mente. Parecer o mais vazia possível.
Do jeito que ele gosta.
Sem o que sei pairando por meus pensamentos, sem minha sede de liberdade
que me faz lutar e seguir em frente, o que sobra em mim é o silencioso

98
ÁGUAS RASAS

momento em que encontro.


Garou se abaixa próximo a beira de meu lago. Num sussurro, chama por
mim. Mesmo baixa, a força de sua voz comove até as águas, provocando
pequenas ondas que me acertam uma por uma.
Calmamente, nado até ele. Posso senti-lo tentando entrar em minha mente.
Também posso senti-lo não encontrando nada, graças à Cali. Seja lá o que ela
fez, funciona, e meu coração desacelera um pouco toda vez que passo esse
teste.
Saio da água e sento-me a beirada delas, dando-lhe minhas costas. Fico em
silêncio. Eu nunca falo uma única palavra quando estou com ele. Apenas o
ouço com fingido exclusivo interesse.
— Sente minha falta assim como senti de seu corpo? — murmura
contra meu ouvido enquanto seu dedo delicadamente toca meu pescoço,
vagarosamente descendo por meu ombro. Um toque tênue que manda
calafrios por todas as direções em que passa, numa linha ardilosa e lenta
indo até o simbolo no meio de minhas asas.
E queima.
Seja lá qual tipo de magia ou veneno corre em suas veias, transforma seu
toque em ferro quente, e ali ele me marca como sua propriedade.
Engulo o ódio e a breve dor.
— Sua beleza me fascina. — o repugnante elogio vem com um beijo em meu
pescoço. — Mostre-me suas asas, minha bela. — Garou sussurra o comando
contra meu ouvido. Obedeço, desdobrando-as delicadamente.
Ele exala, sinto a aprovação que está em sua respiração evanescer contra
minha pele.
Garou entra no lago e as águas respondem ao forte movimento do gigante
corpo com audíveis ondas que batem seguidamente em meus joelhos. Ainda
estou sentada e ele posiciona-se á minha frente.
— Sei que não entende minhas palavras, minha bela. — eu bem gostaria de
não entender. Face a face, sua mão lentamente acaricia meu rosto, forçando
meus olhos a fitarem os seus ao segurar meu queixo. Seu dedo dança por
meus lábios. Tenta disfarçar e ser gentil mas não me engano, isso é um ato de
dominação. — Mas sei que sabe que me pertence, não é mesmo?

99
AS FILHAS DE GUENDRI

Aquiesço, sendo isso parte de meu ato de traição. Tudo o que sei sobre nós,
coloco de lado. Agora eu preciso que ele me queira. Quero que quando eu o
destronar, seu desejo se transformem em decepção. Olho no olho, quero que
reconheça minha face em seu momento mais alto de prazer como também
seu momento mais baixo de derrota. Somente a sua morte será meu prazer.
E ninguém vai roubar de mim esse momento.

100
18

A Vista Mais Linda

P
aralisada pela beleza da vista, vou o mais próximo que consigo da
beirada da imensa sacada e quase perco meu ar…
É exatamente a vista da foto que tenho como fundo de tela do meu
computador do escritório!
— Surpresa. — Bauer anuncia timidamente ao juntar-se a mim.
E como uma criança que acabou de ganhar aquele presente por qual esperou
tanto, ajo impulsivamente e dou um apertado abraço em quem me presenteou,
surpreendendo-o.
— Foi do topo deste prédio que tiraram aquela foto que colocou no
seu computador. — Bauer certamente está desconcertado com minha
demonstração de gratidão. Ele não me abraça de volta mas eu não me importo.
— Achei que gostaria de ver o lugar em pessoa. — explica.
— Nossa, obrigada. Isso é lindo! — Bauer sabe do meu amor por essa
cidade, em especial por aquela foto pois lembro-me quando perguntou sobre
meu fundo de tela no escritório.

101
AS FILHAS DE GUENDRI

Era isso que planejava?


O solto tão repentinamente quanto o agarrei e volto a namorar a paisagem.
O Altar faz de suas sacadas individuais áreas reservada. Nessas áreas tem
mesas decoradas tão exuberantes quanto as de dentro. Então daqui de cima
encaro a vasta floresta de concreto que é a cidade de São Paulo a minha
frente. Sei lá, me emociona. Representa para mim um novo começo, uma
oportunidade para felicidade, uma chance de ter minha vida escrita de uma
forma melhor e mais feliz.
E é por causa de Bauer e da oportunidade de emprego que me deu que posso
ficar aqui nela. Estou tão emocionada! Além de minha avozinha, ninguém
nunca fez nada do tipo por mim.
O agarro pela segunda vez e quase o derrubo. Sei que uma vez é suficiente
mas eu não sou do tipo que segura o que sente por dentro. E agora só queria
abraçá-lo com muita força em agradecimento.
Sinto seu corpo enrijecer contra o meu, me surpreendendo com o quão
tenso ele fica de repente comigo agarrando ele.
— Se soubesse que ficaria assim, teria te trazido aqui antes, Morales.
Ignoro o que ele disse. Sei que já deveria tê-lo soltado, mas não o faço. Para
minha surpresa, estou gostando de abraçar Bauer. Ele é muito… abraçável.
— Desculpa te abraçar tanto assim chefe, mas nunca ninguém foi tão legal
comigo. — digo contra seu ouvido, meus braços em volta de seu pescoço. De
salto alto agulha, fico quase de sua altura. E meu Deus, como ele cheira bem.
— Verena, nossa companhia chegou. — agora ele sussurra contra minha
orelha. — Mas se quiser me abraçar mais, pode fazer isso mais tarde. —
começo a soltá-lo, mas de repente Bauer coloca um de seus braços em volta
de minha cintura, prensando meu busto contra seu peitoral, me prendendo
contra si e me surpreendendo. O ato é levemente bruto, dificulta meu respirar
e movimento por um momento. — Mas sem o vestido. — diz.
Com olhos arregalados e engolindo em seco o que ele disse, não tenho
tempo de digerir o que me foi sugerido. Nem sei o que dizer. Ao soltar-me,
ouço Bauer cumprimentar outras pessoas e me viro para ver quem são.
Dois homens juntam-se a nós, e tímida pois não sei se viram minha
agarração com Bauer, os cumprimento também.

102
A VISTA MAIS LINDA

Sou apresentada a Teodoro Vilas e Afonso Santoro.


Trocamos apertos de mãos e Bauer puxa uma cadeira para que eu me sente.
Ele pode não ser um doce de pessoa mas sempre foi educado. Eu agradeço, e
todos sentam-se somente após eu sentar.
Observo meus companheiros de mesa. Teodoro, parece não ser mais velho
que eu. Amigo há muitos anos de Bauer e companheiro de negócios, tem um
escritório com funções similares as nossas em Porto Alegre. Tem a pele negra,
e é sorridente, falador e charmoso, e também minha companhia favorita na
mesa.
Afonso, que aparenta ser o mais velho dos três, é loiro, bronzeado e grande
não só de altura, mas como também de largura. Parece que seus músculos
saltarão de seu terno a qualquer momento. Tem olhos castanhos que me
olham as vezes diretamente carregados de algo que não sei dizer mas não me
parece muito positivo, mudando de direção quando eu olho de volta. Seu
escritório fica no Rio de Janeiro, mas pensa em mudá-lo para o o Nordeste.
— Eu sempre quis conhecer o Rio de Janeiro. Deve ser lindo mesmo. Quem
sabe um dia… — comento.
— Com certeza Afonso adoraria te receber lá. — Téo brinca e Afonso apenas
o olha sem humor.
Afonso resmunga num dos raros momentos em que ouvi sua voz hoje á
noite. — É perigoso. — tomo isso como um fora educado e resolvi ficar
quieta.
Daí começam a conversar sobre a situação política e econômica do país, e
como tudo isso afeta imensamente seus negócios. Eu ouço interessada, apesar
da comida bonita no meu prato me interessar bem mais.
— Não há país que aguente um governo tão gigante e inútil. — Bauer conclui.
Uma opinião sua que não só já o tinha ouvido dizer, como eu também partilho
dela.
Enquanto eu vou comendo e olhando a cidade com um sorrisão que não me
larga nem a pau, eles discutem como já pensaram em mudar para outro país,
mas gostam demais daqui para deixar para trás. A conversa agora toma um
tom mais pessoal. Toda vez que Téo tenta contar alguns de seus momentos
engraçados como amigos, eu sinto que Bauer fica desconcertado, lançando

103
AS FILHAS DE GUENDRI

olhares coléricos a ele. Apesar disso, eu não mais vejo o patrão mal-humorado
de sempre, mas vejo o Bauer que conheci ontem á noite, menos estressado e
deveras comunicativo.
Estou gostando de ouvir as histórias sobre ele. Notei que nunca tinha
parado para pensar como ele é fora do escritório, de onde veio ou aonde
esteve. Eu sei pouco sobre Bauer e nunca tive curiosidade de saber mais.
Bom, provavelmente para não quebrar aquela barreira do profissionalismo,
não criar nenhum tipo de situação que possa turvá-la.
Tenho para mim que é melhor assim.
Mas agora sei de algumas dessas histórias sobre quando por exemplo, os
três viajaram pela América do Sul. Ou sobre o acidente de carro de corrida
que Bauer sofreu no velocímetro de São Paulo, sendo correr um de seus
hobbies favoritos.
E também aprendo sobre como conheceu sua ex namorada: a defendendo-a
contra assaltantes.
— Assaltantes? Parece perigoso. — observo. Sei que Bauer tem uma arma
no escritório, mas nunca o vi usá-la.
— Não foi bem assim, Téo tem a tendência de exagerar as coisas. — Bauer
responde e muda de assunto. Algo me diz que ele não quer falar dela.
Antes que mais informações sobre a dita cuja apareçam, um novo assunto
surge e um novo prato chega. Apesar da multitude de talheres e copos
diferentes, eu tento copiá-los a cada entrada, cinco pratos ao todo. A comida
é deliciosa, leve ao paladar e desmancha na boca.
Quando estou para dar aquela baita bocanhada na minha comida, sinto
minha bolsa tremer. Meu celular, recebendo uma ligação.
— Com licença. — me levanto e eles se levantam também, me fazendo
achar o cavalheirismo engraçado.
Demoro um pouco para achar o banheiro mas quando acho, atendo.
— Verena? É a Alexis.
A fada.
— Pode falar.
— Igor pode nos atender hoje. Você pode nos encontrar? — ouço a
esperança em sua voz. Me olho no espelho do banheiro, observando minha

104
A VISTA MAIS LINDA

leve maquiagem ainda intacta. Não sei o que responder. Não posso deixá-la
na mão depois de ter-lhe dito que ajudaria. — Verena? — indaga após meu
silêncio.
— Aonde quer que eu te encontre? — respondo sem muita convicção. É
melhor fazer isso logo, me livrar dessas duas e por um fim nisso. Verão
que não tenho nada a ver com fadas, nem Adaris ou Mabelai, seja lá quem
ela for ou onde estiver. Me deixarão em paz e caso não deixem, mudo de
apartamento, ou de cidade. Estou precisando de novos vizinhos mesmo. Não
é uma má ideia.
— Na Rua Augusta. O lugar se chama “O Lírio”. É a boate dele. Estarei lá
hoje a noite. Me encontre na porta, pode ser?
Meu Deus, que pepino fui arrumar.
— Pode. Te vejo lá. — faço uma nota mental do nome do lugar. A Augusta é
próxima de onde trabalho e fico aliviada que nos encontraremos em um local
movimentado, menos possibilidades de ser sequestrada e ter meus órgãos
roubados.
De volta a mesa, jantares terminados, recebemos nossas sobremesas assim
que chego. Bauer coloca seu braço em volta de minha cadeira e aproxima seu
rosto de mim.
— Está tudo bem, Morales? — pergunta num sussurro a meu ouvido,
provavelmente se referindo a minha ligação. Xereta.
— Tudo certo. Uma amiga ligou querendo marcar de sair hoje á noite e eu
aceitei. — Bebo meu vinho, querendo terminar a inquisição e afastá-lo.
Bauer estreita seus olhos e me encara por um segundo. Eu encaro de volta,
ainda bebericando minha taça. E assim ficamos trocando olhares até que Téo
quebra nosso pequeno momento.
— Verena, se estiver pensando em mudar-se de São Paulo, considere Porto
Alegre. Mais calma, mais vazia, mais limpa. — Dimitri lança um olhar
fulminante à Téo, que sorri cinicamente em resposta. — E eu sou bem mais
legal que seu atual chefe. E seja lá o que ele estiver te pagando, eu dobro.
Eita. Sorrio com a proposta de Téo que eu não sabia dizer se a fez de verdade
ou para provocar Bauer. Mas caso fadas continuem me perseguindo, partiu
Porto Alegre.

105
AS FILHAS DE GUENDRI

Agora quem troca olhares são Bauer e Téo enquanto eu só bebo mais vinho.
Os dois tem esse ar brincalhão que deixou a mesa mais divertida, o que fez a
noite passar em um piscar de olhos.
À frente do prédio me despeço dos dois sócios de Bauer. Téo me dá um
abraço demorado enquanto encara Bauer, depositando um beijo em minha
bochecha. Afonso apenas me dá um breve aperto de mão e antes de partir me
lança um olhar que me dá um frio na espinha. Posso jurar que ele não gostou
muito de mim.
Que seja, não dá para agradar todo mundo.
— Vem. — direciona Bauer, com um gesto. — Eu te levo pra casa.
— Obrigada, mas eu não estou indo pra casa.
Frente a frente e sozinhos, nos encaramos.
— Ah, é? — Bauer cruza os braços — E aonde pretende ir?
— Parece curioso. — provoco, colocando minhas mãos nas minhas costas.
— Não, apenas pareço querer te dar uma carona. — retruca. — Pra onde?
— Não se preocupe comigo, Bauer.
— Morales. — ele fecha os olhos, respira fundo e os abre novamente. —
Por mais que goste dessa cidade, caso não saiba ela é bem perigosa. E antes
que eu precise contratar uma nova secretária, um processo deveras irritante,
deixa de ser teimosa e me diz. Aonde. Devo. Te. Levar. — ele enuncia cada
palavra e eu sorrio com sua irritação.
É Bauer, não é tão divertido ser provocado, uh?
O valet aparece dirigindo uma Mercedes Classe A, pára ao nosso lado e dá a
chave a Bauer que lhe dá uma gorjeta, um obrigado e um boa noite.
— O Mercedes não vai me convencer. — brinco. Aliás, estou brincando
demais com ele e ele comigo. Resultado do whiskey dele e meu vinho. Pelo
bem do nosso profissionalismo, não deveríamos brincar um com o outro
assim. Mas confesso, é divertido.
— Que bom, pois não o comprei pra te convencer. — rebate Bauer, mãos
nos bolsos. — Apesar de já ter convencido outras mulheres. — um sorriso
aparece em um lado de seus lábios. Reviro meu olhos. Que convencido. — É
impressão minha ou está com medo de entrar em meu carro, Morales? —
Bauer dá dois passos em minha direção, seus ombros num perfeito quadrado

106
A VISTA MAIS LINDA

e seu tom inquisitório. — Está com medo de ficar sozinha comigo?


— Claro que não. — automaticamente, eu dou dois passos para trás. —
Apenas não quero abusar da sua boa vontade. — ele ri e cruza os braços. — É
sério! Você já me trouxe aqui nesse super restaurante que provavelmente é o
lugar mais legal que já estive na minha vida. Não quero te fazer de chauffeur
também. Além de quê, não dá pra ir pra balada com um vestido de gala. Tenho
que ir pra casa, me trocar… certamente não tem um vestido no carro, né?
— E se eu tiver? — ele dá de ombros.
— Não… não acredito. — eu fico curiosa. — De quem?
— É de uma… conhecida. Está no carro pois prometi devolvê-lo, mas sempre
acabo esquecendo. Tenho certeza de que ela nem lembra que o esqueceu
comigo. — Bauer diz isso como se fosse a coisa mais normal do mundo
esquecer vestidos e sair pelado por aí.
Ele vai até o porta-malas e volta com uma sacola de papél branco.
Apesar de curiosa, juro que não quero saber como ela “esqueceu” o vestido
com ele. Eu o retiro da sacola, e sem ter muita escolha, aceito a oferta.
Ele abre a porta do carro e espera do lado de fora. Os vidros são escuros o
suficiente, não dá para ninguém ver eu me trocando. Alguns minutos depois,
saio do carro.
É um vestido bandeau, com alças e busto estilo balconette também vermelho,
justo e curto demais para o meu gosto. Esse decote é muito baixo. Quem usa
vestidos assim? Mas impressionantemente, cabe perfeitamente. Dou um giro
completo em frente ao carro tentando ver meu reflexo nele.
O pouquinho que vejo… nada mal.
Solto meu cabelo do coque lateral e a cascata de cachos pretos até que esta
comportada.
— E aí, o que achou? — olho para Bauer, que não diz nada. Na verdade seu
rosto está petrificado, nem pisca. Talvez seja o decote. Não sei, então dou
dois pulinhos para ver se tudo se ajeita naturalmente no lugar. Peitos grandes
dá nisso.
Olho de novo para ele e arrisco dizer que está até bravo de me ver no tal
vestido.
— Desculpa, não quero estragar o vestido da sua am…

107
AS FILHAS DE GUENDRI

— Ficou… — ele finalmente resmunga, parecendo procurar palavras, todo


o ar brincalhão de outrora desaparecera. — Bom. Entre no carro.
Ignoro o repentino mal humor. Olho que horas são em meu celular. Não
sei exatamente qual lado da cidade estou, então coloquei no GPS. Saindo
daqui agora chegarei lá em quarenta e cinco minutos.
Desisto. Respiro fundo. Entro no carro.
— O nome do lugar é “Lírio”, chefe. Fica na Rua Augusta.

108
19

O Lírio Da Rua Augusta

A
s luzes neon brilham em silêncio, atraindo a mim e guiando todas
as pessoas que aqui se encontram ao tipo de noite que procuram.
A Rua Augusta tem de tudo.
Ando por ela a caminho do Lírio em um dos vestidos que as humanas usam
para dançar em noites assim. Elas sabem se vestir e eu gosto de copiá-las.
Verde escuro e justo, de alças e sem frescuras. Assim me misturo aos locais
perfeitamente.
Quando chego na porta do Lírio vejo Verena conversando com a hostess
Tiffany, que lhe promete uma noite e tanto.
— Já me convenceu. — digo, surpreendendo as duas.
— Alexis! — Tiffany, assim como Igor, é uma drag queen famosa de São
Paulo. E assim como Igor, ela também não é humana. Quando me vê me
cumprimenta com dois beijos e um abraço.
— Essa é a Verena, Tiffany. — a apresento formalmente e algo parece

109
AS FILHAS DE GUENDRI

clicar em sua mente, provavelmente entendendo que Verena é mais uma das
humanas que trazíamos ultimamente.
— Ah, por isso ela perguntou por Igor. — Tiffany disse mais para si do que
para nós. — Prazer em conhecê-la, Verena. — seu sorriso brilha tanto quanto
seus paetês. — Enfim meninas, a noite é uma criança e eu preciso trabalhar.
Divirtam-se!
Tiffany graciosamente se despede e nos deixa para entregar flyers promo-
cionais do Lírio á outras pessoas.
Fico sozinha com Verena.
Por um momento me sinto insegura com ela, percebendo que Cali fora
em grande parte um conector entre nós esta manhã. A personalidade aberta
da pequena fada nos conduziu a pacientemente ouvir uma a outra. Agora,
estamos em silêncio, apenas esperando na fila para entrar.
— Gostei do seu vestido. — Verena finalmente diz alguma coisa.
— Igor me deu este vestido algum tempo atrás. Gosto de roupas humanas.
—respondo, monótona. — Seu vestido também é bonito.
— Nem queira saber onde achei esse aqui. — ela aponta para o vestido nela
e revira os olhos. — Eu não sou muito de usar vestidos, sabe. — assenti e após
outro silêncio estranho, ela começa a falar de novo. — Como você conheceu
Igor?
— Através da Cali. Ela o conheceu primeiro quando chegou no mundo
humano e acabamos virando bons amigos. Você vai gostar dele.
A fila começa a andar e logo é nossa vez de entrar. Após mostrar minha
identidade, Verena mostra a dela. Antes que perguntasse algo, sussurro que é
falsa e que não é difícil conseguir uma.
O Lírio está mais ou menos cheio, musica eletrônica alta e todo tipo de
pessoa entrando. Uma pista quadriculada no meio, uma cabine de DJ a
esquerda, um palco á frente e um bar a direita.
E toda vez que entro nesse lugar, meu humor melhora cem por cento.
Pareço surpreender Verena ao pegá-la pela mão e guiá-la para o bar.
— Quero te dar meu veneno humano favorito como forma de agradeci-
mento. — explico, contendo um sorriso.
O bartender mal me vê e já sabe o que preparar. Em momentos, coloca a

110
O LÍRIO DA RUA AUGUSTA

nossa frente os dois drinks coloridos.


— Sex on The Beach. — sorrio e dou um copo à Verena.
— Que delicia! — ela diz após bebericar.
— Nunca bebeu essa antes?
Ela nega e eu contemplo a ironia de apresentar coisas humanas à humanos.
Nos levo até uma mesinha alta e redonda em um canto, passando por várias
pessoas, observando o lugar encher.
Musica humana é magia em si própria. Contagiante, começo a dançar como
se não pudesse me controlar, apenas me render à batida.
Foi assim que descobri algo certeiro sobre mim. Eu gosto de me mover.
Dançar é como um diálogo silencioso entre meu propósito e o ritmo do
universo. Quando me entrego aos movimentos, sinto-me envolvida por
uma energia que transcende o tempo e o espaço, uma conexão profunda
com minha essência mais pura. Cada passo, cada giro, sinto que é uma
expressão autêntica do meu ser. No movimento, encontro liberdade, alegria
e uma sensação de plenitude gosto de acreditar possa estar conectado a quem
realmente sou. É como se cada movimento fosse uma pincelada no quadro
da minha existência, colorindo-a com vitalidade e paixão. Em cada batida,
descubro uma nova dimensão de mim mesma, e é nesse fluxo de movimento
que encontro um pedacinho da minha identidade.
Verena já é mais tímida, apenas assiste com um mega sorriso constrangido
no rosto. A chamo com a mão e ela não vem. Após a terceira vez, ela
finalmente se junta mim. Agora, somos só duas garotas seguindo o ritmo. Ao
dançarmos juntas, toda a estranheza entre nós some. Nos conectamos sem
palavras. Se eu estava preocupada com isso antes, aqui e agora já não estou
mais.
Me sinto livre. Momentos atrás estava nos braços de meu detentor, aquele
que me encapsula com a prepotente mentira do inexorável significado da
minha existência. Com ele aprendi a viver no silêncio. Com ele desaprendi
a falar e conversas pessoais me deixam desconfortável, como se houvesse
algum pecado nato em minha voz.
Por sorte, não preciso de palavras para dançar.
Aqui nessa pista não sou realeza, não sou monarquia, nem o peso de minha

111
AS FILHAS DE GUENDRI

lenda. Sou apenas mais uma pessoa querendo seguir o som e ver onde vai
dar.
Há beleza intrínseca nisso.
— Alexis… — Verena me cutuca uma, duas, três vezes. Abro os olhos saindo
de meu transe. — Suas… asas estão…
Verena parece assustada e faz sinais confusos, apontando para minhas
costas. No meio da excitação, baixei minhas guardas e literalmente, quase
coloquei minhas asinhas para fora do vestido de alças.
Constrangida, volto à nossa mesa e Verena me segue.
— Ei, não fique assim. Acontece. — ela tenta me consolar.
— Acontece? — pergunto, desacreditando.
— É, acontece. Sabe por que não gosto de roupas curtas assim? Uma vez eu
estava dançando e te juro, paguei o famoso “peitinho” e nem tinha reparado.
Dá vergonha, mas acontece. Nada mais humano que pagar peitinho, calcinha,
asinha… — sem querer eu rio. Sinto-me grata pelo senso de humor de Verena
e por ela tentar me animar. — E você dança muito bem! Onde aprendeu?
— Não faço ideia. — dou de ombros, honestamente.
— Bem, de qualquer forma, só tem cara lindo babando em você.
E eu não sei por quê isso acontece. Cali e Igor dizem a mesma coisa.
Outros acham isso admirável, eu não. Por ser desejável, fui guardada por um
megalomaníaco longe de tudo como um brinquedo pessoal que só ele pode
tocar.
Não quero saber de caras, nem de garotas, nem de ninguém dessa forma.
Então, mudo de assunto.
— Você sai bastante?
— Não, eu trabalho muito. — Verena se justifica. — E também não tenho
muitos amigos pra sair assim.
— E aquelas pessoas de ontem á noite?
— Bem… eu meio que acabei de conhecê-los. Eu sou nova aqui em São
Paulo. Cheguei há uns cinco meses vindo do interior.
— Eu amo essa cidade. Aliás, esse mundo. — não escondo isso de ninguém.
Verena concorda. Nossa conversa continua fluindo naturalmente.
— Sabe Alexis, quando falamos de sua família hoje mais cedo, vi como

112
O LÍRIO DA RUA AUGUSTA

se sentiu. — ela percebe meu desconforto, mas apressa em explicar-se. —


Digo isso pois sinto o mesmo, sabe…. Também não conheço meus pais. Na
verdade, nem tenho família. Eu era muito pequena quando meus pais foram
embora e me deixaram com a minha avó. Então sei bem como é.
Sem querer, esta informação acende o meu olhar em interesse. Engraçado
como a dor é um sentimento que ultrapassa todas as barreiras, até as
dimensionais. Não está reservada apenas para humanos, ou fadas. E sim
para qualquer um que esteja em seu caminho, experimentando seu amargo
gosto.
— Sinto muito que isso aconteceu com você. Parece ser comum entre
humanos, não? — já conheci outros com problemas similares.
Ela faz que sim com a cabeça, e posso ver o pesar em sua feição.
— Não gosto de falar isso com ninguém. — ela continua. — Rejeição é um
tópico difícil, sabe. — sorri, sem humor.
Trocamos um familiar olhar, silencioso assentir de nossas condições,
conectando-nos na infelicidade. O que sentíamos nesse momento é um
mutuo alívio de que, mesmo que por um segundo, não estamos sozinhas em
nossa solidão.
— Quantas outras pessoas você trouxe aqui? — Verena muda de assunto
assim que um novo silêncio se instala entre nós. Posso ver que na verdade
queria perguntar: “Quantos outros loucos arrastaram pra cá?”
— Você é a quarta pessoa que eu trouxe para Igor. — ela estuda meu
rosto e antes que pergunte, respondo. — Não, nem todos que conversamos
acreditam. Houve um que quase chamou a polícia. Tento não tomar isso
como uma ofensa.
— É meio que assustador. — Verena explica. — Humanos não podem voar
sem ajuda da tecnologia moderna ou abrir portais entre mundos. Muitas
vezes somos uns grandes filhos-da-mãe, por isso temos problemas em confiar
uns nos outros. — concordo com ela balançando minha cabeça. — Vocês tem
idade como humanos ou não? Eu e você parecemos ter a mesma, mas Cali
parece ter uns dezesseis anos.
— Em Adaris, Cali existe há bem mais que dezesseis anos humanos. Mas sim,
ela é bem jovem. Jovem e impulsiva. Se arrisca sem pensar nas consequências.

113
AS FILHAS DE GUENDRI

Me calo. Não gosto de falar de Cali dessa forma, como uma criança
desatenta pois é a última coisa que ela é. Mas as vezes me pego me
preocupando com seu bem-estar.
— Posso perguntar como é onde você fica? — Verena é cuidadosa com suas
palavras.
— É frio. Escuro. Silencioso. Uma alcova no meio do nada. Tem um lago.
Garou gosta de me assistir nadar. Aqui é o completo oposto de onde vivo.
— E como você está… digo, em relação ao descobrir o que o cara fez com
você… imagino que desmemoriada, você nem deveria saber muito sobre ele…
É uma pergunta interessante da qual não ouço muito. Existem detalhes da
minha existência naquele lugar que serão esquecidos eternamente por mim
assim que eu sair de lá. Não vou levar nenhum pedaço daquela masmorra
comigo quando estiver completamente livre. Não haverá espaço, não fará
sentido.
— Eu não sentia nada por ele. O conheci e ele me fez crer que o mundo era
ele. E sair dali, falar ou fazer qualquer coisa que não fosse de seu agrado era
um erro crasso. Imagino que Guendri me criou para obedecer, pois isso o
fiz sem questionar. — confesso com uma certa vergonha, já que cedi e me
concedi a um completo crápula. Eu deveria ter sido melhor que isso. Nasci
para lutar e não ofereci resistência nenhuma a quem devia.
— Ei… não é sua culpa que um megalomaníaco fez. Você foi a vitima. Não
sei quais são as leis de Adaris mas aqui neste mundo esse cara iria direto pra
cadeia. — Verena se apressa a dizer assim que reconhece em meu rosto a
vergonha do que não é meu erro, mas não consigo não sentir como se eu não
tivesse algum tipo de culpa.
O assunto pesa o ar que era para estar leve. Tento retomar o clima de antes.
— Não se preocupe, assim que encontrarmos Mabelai, serei livre. E com sua
ajuda, será em breve.
— E onde você acha que ela pode estar? Ou por que não voltou para Adaris
por si só?
Dou de ombros. — Ás vezes acho que está por ai como eu, sem lembrar
de quem é ou de onde é. Outras vezes penso que não quer voltar, não quer
a responsabilidade. Que como eu, não saberia como reger Adaris. Mas só a

114
O LÍRIO DA RUA AUGUSTA

encontrando para saber.


Reparo que não tenho problemas em dizer o que realmente penso com
Verena. Sou tão franca com ela que até eu me assusto. Então me levanto.
Chega de conversa, estamos em uma balada e a ordem é dançar. Para que
falar de prisões quando estamos aqui, livres para fazermos o que quisermos?
Além de quê, após essa noite Verena nem lembrará de minha existência.
Preciso de mais uma bebida. Não que façam o mesmo efeito em mim que
fazem em humanos, mas pego Verena pela mão e a convido para dançar a
próxima música comigo.
Ela levanta e me segue sem hesitar. Envolvidas pela música, ela dança
comigo até o show de Igor começar.

115
20

Abra Sua Mente

O
DJ termina seu set, a pista cheia bate palmas quando ele anuncia
que o show vai começar.
— E agora com vocês, Madonna!
— É o Igor. — Alexis cochicha em minha orelha.
No palco, uma drag queen vestida de rosa como Madonna em “Material Girl”
interpreta a música ao lado de dois musculosos homens que a carregam para
lá e para cá. Todos na plateia acompanham, cantando a letra empolgadamente.
Pela primeira vez vejo Alexis cantando junto. Imagino que já deva ter visto o
pequeno show algumas vezes.
Após quatro outras músicas o set termina e Igor deixa o palco após
cordialmente agradecer os aplausos da plateia. Alexis me arrasta pelo braço
até os bastidores, sem precisar convencer o cara da porta a nos deixar passar.
Este também já a conhece.
Passamos pelo pequeno corredor que conecta a porta, o palco e um quarto
que serve de camarim. Nele tem três espelhos contornados por luzes e dezenas

116
ABRA SUA MENTE

de maquiagens a frente deles. Do lado esquerdo da sala, uma arara coberta


de roupas.
Entramos após Alexis bater e chamar por Igor, que abre a porta e nos
cumprimenta com abraços e beijos.
— Vocês estão lindas! Estão se divertindo? Gostaram do show? — ele
pergunta, empolgado. Respondemos que sim, aliás eu me diverti como não o
fazia há tempo.
Igor retira a peruca e senta-se na cadeira em frente ao espelho, removendo
sua maquiagem e tagarelando sobre as mudanças que fez no show desta noite.
Deixo os dois conversarem. Quando ele termina, vai até atrás da arara e após
alguns minutos volta com um roupão e sem a touca que fica sob a peruca.
— Então meninas, vamos aos negócios? — seguimos Igor pelo mesmo
corredor que entramos e ao fim dele, descemos escadas escuras que acabam
em um portão que sai na parte traseira da Rua Augusta. Dando de frente
a rua de paralelepípedos, passamos por outro portão, subimos outra peça
de escadas e chegamos em seu apartamento. — Bem vinda a meu boudoir,
Verena.
— Bem ao lado de sua balada. — comento sobre onde ele mora assim que
entramos. — Que maravilha não ter que enfrentar trânsito pra ir trabalhar.
Igor sorri após acender a luz. Estamos em uma pequena sala de estar, mas
continuo o seguindo até sentarmos em uma mesa redonda numa pequena
área de jantar. A sala contém interessantes objetos em suas paredes. Me
perguntei quem pendura um negócio tão feio, pois se for para decoração, não
parecem servir o propósito.
— É para proteção. Não quero que possíveis outros seres saibam que uso
minha magia aqui. — disse Igor. Droga, ele deve ter lido a minha mente para
ter respondido sem eu perguntar. Ele pega uns cristais de dentro de uma
gaveta na cristaleira atrás de nós e os coloca sobre a mesa na minha frente. —
E isso irá nos ajudar com o que faremos agora.
Ao sentar-se a meu lado, Igor me oferece uma mão.
— Como vai funcionar? Você pode ler minha mente só de mãos dadas? —
pode-se ouvir o receio em minha voz.
Igor pacientemente confirma que sim, embora já pudesse ouvir alguns de

117
AS FILHAS DE GUENDRI

meus pensamentos.
— Desculpa a invasão de privacidade Verena, mas ás vezes não posso evitar.
Obviamente ainda não acredito cem por cento, mas não peço provas para
não parecer rude.
— Não é rude pedir que eu prove minhas habilidades, Verena.
— Bem, acho que agora nem preciso mais pedir. — concluo, impressionada.
Igor explica que ao darmos as mãos, abro mais portas para que tenha mais
acesso á partes mais profundas em minha mente. O papel e caneta a sua frente
são para anotar o que quer que veja.
Alexis, que está sentada a meu lado, coloca sua mão sobre a minha.
— Não tenha medo, Verena. Eu prometo que nada ruim acontecerá. Estarei
aqui o tempo todo.
— Enquanto posso ouvir pensamentos mais a superfície de sua mente,
vou precisar que você se concentre em alguns pensamentos do seu passado,
começando pela infância. E assim continuaremos, passando por épocas
diferentes. Acredite é mais fácil do que parece. Até encontrarmos resquícios
de Mabelai e assim tentarmos localizá-la do passado no agora. — ele sorri
delicadamente.
É pensamento demais. Mas é melhor pensar aqui agora do que pensar para
fazer o vestibular da faculdade, que como parte do acordo com elas, é o desejo
que me concederão.
— Espera. — ainda tenho perguntas. — Você já encontrou algo sobre
Mabelai? Digo, na mente das pessoas que Alexis trouxe aqui? Como sabe por
quem estão procurando?
— Bem… eu nunca a vi pessoalmente. Não acho que ninguém em Adaris
as viram, apenas ouviram falar das Filhas. O que até umas semanas atrás me
era mais lenda que verdade. Quanto a quem procuramos, sabemos de uma.
Mas tenho pra mim que Guendri possa ter criado duas, como também pode
ter criado dez. — Igor dá de ombros. — Só o que sei mesmo é que Guendri
quis dar um tempo de Adaris e as criou, treinou e daí resolveu desaparecer.
Grande criador o nosso! — ele zomba. — Seu grande plano falhou assim que
ele sumiu. Ou antes. Honestamente, não sei direito, pois sai assim que a nova
“administração” tomou conta do negócio.

118
ABRA SUA MENTE

Igor cruza os braços. Posso ver em seu rosto que só de relembrar a história
já fica mais cansado do que com o show.
— Não quis ficar com Garou lá? Mas você não é como ele?
— Além de sermos da mesma espécie… não, definitivamente não sou como
ele. Expulsou vários outros, alguns vieram para o mundo humano, uns
foram para outros mundos. Abri o Lírio com a ajuda de um outro humano.
Meu verdadeiro ganha-pão. Faço os shows de Madonna por quê me divirto
imensamente com a música humana. — Igor me oferece algo para beber, mas
nego. Após sair para buscar uma água, volta com um copo cheio e continua a
explicar. — Temos ideia da aparência de Mabel. Cabelos longos, vermelhos,
pele clara. Vagamente a vi na mente da última pessoa que Alexis trouxe aqui.
— lê minha mente novamente e já vai respondendo. — Ah, não me pergunte
por que ela é fisicamente diferente de Alexis, não sei o que Guendri pretendia.
— E mesmo assim não conseguiram encontrá-la, já que a viram na mente
de Jaqueline? Viram o que mais e na mente de mais quem?
Quero entender como isso funciona! Como que entre milhões de pessoas,
Alexis, Cali e Igor especificamente sabem quem pode ou não ter encontrado
Mabel?
Igor lança um olhar afiado a Alexis e curva a cabeça sarcasticamente, vendo
que a regra de anonimidade fora quebrada, já que eu sabia o nome da última
voluntária.
— Sinto muito Verena, mas não podemos revelar o nome de todas as pessoas
envolvidas. Já quebramos as regras ao te dizer o nome de Jaqueline. É melhor
mantermos todas as identidades em segredo.
Me indigno. A ideia de que seu nome está numa suposta lista de pessoas
que encontraram seres de outros mundos é muito estranha. Me sinto como a
CIA/FBI que manda seus agentes atrás de pessoas que supostamente foram
abduzidas por aliens.
Será que existe uma agência brasileira para aqueles que encontram fadas?
Curupiras? Sacis? Chupacabras?
Como é que eu não vou ficar curiosa para saber quem sabe de mim, da
minha infância ou o que possa ter ou não ocorrido nela? Será que também
sabiam sobre meus pais?

119
AS FILHAS DE GUENDRI

Ou será que Igor poderia, não sei, talvez ver minhas memórias sobre eles?
Alguma imagem guardada em meu subconsciente da qual não tenho acesso
da forma convencional?
Nunca tive muito interesse em saber sobre aqueles que me abandonaram
friamente mas uma oportunidade única surge aqui.
— Então você pode ver qualquer pessoa desaparecida em minhas memórias?
— estar em listas de estranhos é péssimo sim, mas no momento tenho interesse
em saber o que pode ser encontrado em minha mente sobre meus pais.
Igor assente lentamente. Alexis parece não saber aonde quero chegar.
Esclarecendo meus pensamentos que neste momento estão a mil por hora:
não, eu não acredito cem por cento na existência de Adaris ou em fadas, elfos
leitores de mentes, Regentes de magia e afins, apesar do que ocorre.
Aliás, apenas estou aqui por que bebi aquele troço e acabei dando esperanças
a quem não devia. E também estou testando meu lado aventureiro, saindo
da minha zona de conforto, atentando contra a loucura para ter algumas
histórias para contar. “Meu, teve uma vez que eu fui num cara que jurava que
podia ler minha mente… mó doideira.” Foi para isso que vim aqui, para isso me
mudei para São Paulo. Pela aventura! E por mais maluco que isso aqui seja,
ainda parece mais interessante que os vários nadas que eu já fiz na minha vida
até agora, desde… desde sempre.
Na melhor das hipóteses, formo uma nova amizade ou três. Na pior, volto
a estaca zero e não servindo como compasso para encontrar uma fada, eles
me deixam em paz e partem para a próxima pessoa.
Sei que existem mais possibilidades, mas não tenho tempo de contar todas
elas. A hora é agora e para falar a verdade, não quero estender essa baboseira
mais que o necessário.
— Posso pedir algo em troca? Digo, mais alguma coisa? — indago. Em
silêncio, continuam me ouvindo. — Quero saber o que pode encontrar aqui
dentro. — aponto para minha cabeça. — Sobre meus pais. Qualquer coisa.
Pode ser?
Não que eu vá acreditar de cara. Mas no caso de encontrarem Mabel no
mundo real, a possibilidade do que ele disser sobre meus pais ser verdade
aumenta significantemente.

120
ABRA SUA MENTE

— É justo. — Igor concorda. — Está pronta?


O lado meu que não acredita em nada disso não quer me ver dizendo que
sim.
Mas fecho os olhos e lhe dou a minha mão mesmo assim.

121
21

Milissegundo

V
erena fecha seus olhos e dá sua mão á Igor. Este prepara-se para
escrever, papel e caneta á postos.
E eu… apenas espero. E assim que a sessão acabar e Verena estiver
inconsciente, eu a levo para sua casa. Como com todos os outros voluntários.
Os dois agora se encontram em um transe e minha curiosidade sempre
atiça nessas horas. Tento imaginar o que Igor vê na cabeça das pessoas. Deve
ser um lugar bem insano a cabeça de outrem. Com o pouco de memórias que
tenho, sei que a minha é.
Verena está imóvel, parece uma estátua de cera. Nem parece respirar.
Minha paciência é testada durante essas sessões. Duram de trinta minutos
a uma hora, e como não gosto de quebrar promessas, fico ao lado de Verena.
Mas uns cinco minutinhos longe não farão diferença. Vou até o pequeno
quarto que Igor usa como escritório, onde mantém papéis relacionados ao
Lírio.

122
MILISSEGUNDO

Como dono, é um bom administrador.


Me impressiona como humanos gostam de papéis e de anotar, ou de assinar
isso e carimbar aquilo. Parece infernal essa tal de burocracia.
Ao lado da montanha de documentos, pego algumas revistas de fofocas. É
assim que aprendo mais sobre humanos e a cada interação com eles pareço
mais normal pois entendo mais do que estão falando.
Voltando para minha cadeira à mesa onde a sessão continua, começo a
folhear uma revista, tentando absorver o máximo de informação possível
para quando eu morar nesse mundo.
Tempo se passa e Igor começa a escrever algo de olhos fechados. Eu o
observo por alguns minutos até que ele para. E isso se repete. De novo. E de
novo. E de novo. Não quero me mover muito, o magnetismo a sua volta é
força e não quero perturbá-lo.
Paro de prestar atenção nele e perco a noção do tempo ao ler qual
celebridade está vestindo o quê. Moda é intrigante pois muitas dessas
“celebridades” aparecem em fotos apenas por estarem bem vestidas e pessoas
gostam de olhar para elas. Uma imensidão de cores, tecidos e estilos. É
criativo, devo admirar.
Tentando buscar dentro de mim mais relevância as mundices que leio,
acabo não encontrando muito além de algumas duvidas que tenho quanto ao
meu futuro pós volta de Mabelai.
Dividida entre Adaris e o mundo humano, me pergunto se poderei tomar
uma decisão sobre onde quero ficar.
Mas ultimamente quando me questiono sobre isso, o que de fato me
incomoda não é não ter resposta.
O que me incomoda é a insuprimível responsabilidade e encargo que sinto
mais e mais quanto a meu desconhecido mundo.

123
AS FILHAS DE GUENDRI

Sabe quando você dorme de noite e acorda de manhã, de forma que oito horas
de sua vida se passaram no que pareceu mais um piscar de olhos?
É exatamente isso que acaba de acontecer comigo.
Assim que fecho meus olhos, já sou obrigada a base de violentos chacoalhões
a abri-los novamente.
O faço com certa dificuldade.
— Verena! VE-RE-NA!
A voz, ou melhor dizendo, os gritos de Alexis invadem meus ouvidos e me
assustam. Não entendo por que ela grita nem por que me chacoalha. A lanço
um olhar confuso, vendo confusão também em sua face.
De início não entendo as coisas que diz, como se o português me tivesse
escapado. Também não entendo o que vejo quando olho para Igor.
A sala se torna fria, minha visão um pouco turva. Estou trêmula, o ar
rarefeito dificulta minha respiração.
Tudo está em câmera lenta.
Há algo de errado. Muito errado.
— Verena… o que foi que você fez?
Como assim o que fiz? Que tipo de pergunta é essa?
Saindo aos poucos de meu estupor, consigo ouvir claramente Alexis e
entender o pânico em sua voz.
A nossa frente está Igor, líquido verde e espesso lhe escorrendo pelos
ouvidos, nariz e olhos. Parece inconsciente, jogado pesadamente sobre sua
cadeira. Entro em pânico junto à Alexis que desesperadamente tenta acordá-
lo. Me levanto sem saber exatamente o que fazer.
Desespero se alastra pela sala como fogo em incêndio.
Com a mente ainda turbulenta, minha primeira ideia foi oferecer chamar
uma ambulância.
Ela me impede.
— Verena, ele não é… hospital não vai ajudar! — ela responde.
Bem, com certeza ficariam curiosos em relação a natureza do líquido verde.
Certamente se tornaria um grande enigma médico. Mas minha cabeça em
alarde não consegue pensar em mais nada. Ver Igor daquele jeito está me
deixando nauseada. Sinto que vou vomitar.

124
MILISSEGUNDO

— Alexis, o que aconteceu? — minha voz é fraca. — Foi tudo tão rápido!
Eu apenas pisquei, não sei como…
— Apenas piscou? — ela me olha incrédula. — Verena… estamos aqui há
cinco horas.
CINCO HORAS!? Como eu nem percebi? Há quanto tempo Igor está
sangrando, se é que isso é sangue?
— Temos que ajudá-lo, tenho que buscar Cali. — conclui. — Talvez ela
possa fazer algo. Preciso voltar para Adaris imediatamente.
Alexis pega o papel em que Igor escreveu e o guarda no bolso antes que eu
possa ver o que está escrito. Em uma demonstração impressionante de força,
ela pega Igor que é provavelmente três vezes mais pesado que ela e o coloca
sobre seu ombro, levando-o até uma cama num quarto ao lado.
— O que você quer que eu faça? — ofereço, tentando conter minhas próprias
lágrimas e confusão no calor do momento.
O olhar que Alexis me lança é impreciso, como se tentasse entender algo
sobre o que vê: eu. Parece me julgar. Sem querer, isso me machuca. Eu não
sei o que aconteceu e não tenho certeza se ela sabe disso, mas gostaria que
soubesse. Só ela viu o que aconteceu e não entendo por quê parece me culpar.
— Vá para casa, Verena. — Alexis ordena friamente. — Eu cuido disso.
— Mas, Alexis… — insisto.
— Por favor! — ela fecha os olhos, impaciente. — Eu preciso ir agora, antes
que seja tarde demais. — Alexis passa a mão pelos cabelos com força. — Isso
nunca aconteceu antes… — murmura, passando por mim e caminhando em
direção a porta com passos firmes e rápidos.
A sigo até a saída do apartamento e no portão dos fundos por onde entramos,
abro a boca para falar algo. Mas Alexis nem tenta me ouvir, apenas tranca
o pequeno portão assim que saio e corre escada á cima para dentro do
apartamento.
No limite de meu próprio mal estar e estresse, vomito na rua, o que só faz
minha barriga e cabeça doerem mais.
Sozinha, olho meu celular. São quase seis da manhã, já posso ver o sol
nascendo, suas primeiras luzes alcançando as partes mais escuras do beco no
qual me encontro. Algumas pessoas andam calmamente, ainda vestidas em

125
AS FILHAS DE GUENDRI

seus trajes de balada, a procura de modos de voltar para suas casas ou café da
manhã.
Eu aciono um uber e o espero desolada, ruminando dentro de minha cabeça
tudo o que aconteceu, de novo e de novo. Tento fazer sentido do que se passou.
Nem senti Igor dentro de minha mente, e de todos os cenários que imaginei
como consequência da decisão de ajudá-los, machucar alguém não foi um
deles.
E Alexis me culpara por isso, ao menos momentaneamente.
Mas eu não fiz nada…
Estou cansada. Mental e fisicamente drenada. Tive um longo dia e noite.
Quero ir para casa, dividida entre tentar entender o que aconteceu ou esquecer
completamente que estive aqui com estas pessoas.
Mas algo me diz que nenhuma das duas opções será tão fácil assim.

126
22

Essências E Discordâncias

— Eu preciso de mais. — peço quase aos prantos para a Sombra.


Ela move seu corpo vaporoso em dissipáveis círculos, sua fumaça consis-
tente em cor e temperatura. Não tem olhos, mas parece me analisar.
— O que aconteceu?
— Meu amigo… ele… — hesitantemente conto. — Precisa de ajuda.
— Não foi para isso que lhe dei poderes, pequena. Já deve ter reparado que
minha magia não é necessariamente curadora. — ela se aproxima de mim. —
Quem é este amigo?
— Ele está nos ajudando a encontrar Mabelai, como você pediu. Mas… algo
aconteceu na última vez que nos ajudou.
A Sombra agora parece mover-se em câmera lenta. Ela não tem rosto, não
posso ler sua expressão. Mas se pudesse, diria que ela está intrigada com o
que acabei de dizer.
— E como ele ajuda?

127
AS FILHAS DE GUENDRI

— É um elfo. Saiu de Adaris há muito tempo atrás… ele lê mentes. — disse


o que ela já sabe sobre elfos. Meus pensamentos estão confusos. Já quebrei a
regra de dizer nomes de quem nos ajuda e não sabia o que dele contar.
Estou piorando uma situação já terrível.
— Minha pequena, não tenha receio e conte-me o que aconteceu exata-
mente.
— Eu não sei… — minhas lágrimas querem ser mais rápidas do que posso
pará-las. — Eu não estava lá. Só o encontrei depois que tudo aconteceu.
Igor é persona non grata em Adaris, como ele mesmo diz. Um termo humano
para exilados. Só de ter contato com ele me põe em grande risco.
E ele ter contato comigo o pôs em grande risco. E agora… isso.
Igor não responde a nenhum tipo de estímulo, parece estar em algum tipo de
coma. Quando Alexis me buscou para ajudá-lo, mal conseguia explicar o que
aconteceu. Talvez por estar em choque, talvez por não entender exatamente
como tudo ocorreu.
Quando cheguei em seu apartamento, seu corpo estava pálido e sua
respiração fraca. Sangrava pelas narinas e ouvidos. Para mantê-lo ao menos
vivo, acabei usando o pouco de magia negra que me restava.
E preciso de mais magia para que possa curá-lo totalmente. Ou ao menos
tentar. Não tenho certeza se funcionará, mas é a única coisa que me resta
fazer.
Por isso invoquei a Sombra.
— Por Guendri, nunca imaginei que isso aconteceria. Como pude colocar
outros em risco? Jamais me perdoarei por isso. São meus amigos! Deveria
protegê-los!
— Acalme-se, Caliandrei. Sei que é mais forte que esse contratempo. Deve
continuar sua procura.
Cair no choro diante desse ser um tanto quanto macabro não foi uma das
minhas mais bem pensadas atitudes, mas não dá para fazer outra coisa quando
se tem alguém importante nessas condições.
Tento me acalmar.
— Apenas estou preocupada, só isso.— limpo minhas lágrimas. — Não
perdi meu rumo, ainda sei o que está em risco. Apenas não quero que outros

128
ESSÊNCIAS E DISCORDÂNCIAS

paguem o preço por mim.


— E como exatamente isso é sua culpa? O que foi que você fez? Atacou seu
amigo?
— Não! Nunca faria isso, não sei nem por que me pergunta tal coisa!
— Pergunto, minha cara, pois te avisei que minha magia tem efeitos
colaterais. E disse claramente que se não a dominasse, ela te dominaria.
Lembra-se?
— Sim, eu me lembro. — respiro fundo, me recomponho.
— Assim é melhor. Seja a fada forte que eu escolhi para essa busca. — a
Sombra se posiciona a minha frente e já posso sentir a pele de seu réptil gelada
e úmida contra a minha.
Uma mordida crava meu pulso. Dói tanto quanto ver Igor naquele estado.
Em poucos momentos, sinto o entorpecer do líquido negro que começa a
correr em minhas veias.
— Agora, conte-me. Preciso saber exatamente como isso aconteceu com
seu amigo.
Não quero. Não devo. Mas confiei na Sombra antes e ela não me falhara.
Acho que posso confiar nela com isso também.
— Estávamos com um dos humanos que viram Mabelai e Igor ficou assim
ao ler sua mente.
— Humanos que viram Mabelai… — a Sombra repete, lentamente. — Esse
humano, tem nome?
Quando a Sombra me deu a missão e seus poderes, eu tive que me virar
para conseguir o resto. Isto envolve tratos e contratos com pessoas. Uma das
cláusulas verbais é o anonimato de todas elas. Já a quebrei duas vezes ao falar
de Jaqueline para Verena, e agora de Igor para a Sombra.
Meu castelo de cartas parece desmoronar.
— Se pudesse entrar em contato com humanos que sabem sobre a regente,
eu não te daria poderes para fazê-lo por mim. — diz a Sombra, tentando
me convencer que é de total confiança e que dar essa informação não seria
prejudicial.
Penso a respeito e chego a conclusão de que faz sentido. Creio que seus
nomes não farão nenhuma diferença para ela, apesar de não entender porquê

129
AS FILHAS DE GUENDRI

faz questão de sabê-los.


— Verena. — digo, assim que tomo mais confiança. — Ela estava com ele
quando tudo aconteceu, era a mente dela que ele lia. Ela é uma pessoa boa,
não acho que é responsável por isso, mas…
A Sombra parece agitar-se. Gradualmente, cresce em tamanho fumegando
e se movendo mais e mais.
— Certamente ela não é. — ouço sua voz entre os círculos que forma ao meu
redor. — Caliandrei, quero que me ouça e guarde minhas palavras: não culpe
esta humana por isso. Tudo voltará ao normal. Prometo que seu amigo ficará
bem. Se ainda respira, pode curá-lo. Agora, precisa continuar sua procura.
Está mais perto de encontrar Mabelai do que imagina.
E antes que eu possa dizer qualquer coisa, a sombra evanesce.
Cheia de magia negra percorrendo meu corpo, decido não ligar para nada
além de meu amigo.
Corro até Igor e tento fazer o que posso para acordá-lo.

Meu olhar vazio mira o nada escuro a minha frente. Minha solidão, minha
única companhia.
Tento entender o que aconteceu com Igor.
Ele lia a mente dela e tudo ia como sempre até que… começou a agonizar e
afogar-se em seu próprio sangue verde-escuro.
Me espanto quando lembro da cena. Como pode ser culpa de Verena se ela
não fez nada? Estava imóvel, nem notou quando Igor começou a passar mal.
Tive que arrancá-la de seu transe.
Após levar Cali até Igor, voltei para meu cativeiro. Despi-me e antes de

130
ESSÊNCIAS E DISCORDÂNCIAS

entrar no lago, li o papel em que Igor escreveu. Não faz nenhum sentido.
Normalmente suas anotações são claras, precisas. Com Jaqueline, anotara
as características físicas de Mabel. Mas nesse papel deixou apenas um
emaranhado de rabiscos difíceis de ler.
Desistindo de tentar entender, escondi a folha no bolso da minha calça
humana e a coloquei sob a pedra de sempre.
Sem sinal de Garou nem de Cali por um tempo, minha mente começa a dar
voltas no mesmo lugar.
É difícil saber minutos, horas ou dias aqui. Nada muda. A escuridão é
sempre a mesma. Entediada, deito-me de lado no chão seco, um braço sobre
minha barriga, outro estendido a minha frente.
Não há nada para fazer, ninguém com quem falar. Meu tédio parece brincar
cruelmente com minha imaginação pois por um momento, acho ter visto
meu poder em forma de uma cristalina poeira se expressar na palma de minha
mão, fazendo-a formigar.
Eu jamais fiz uso do meu poder.
Olho novamente, esperando algo acontecer. Eu confesso que não sei nem
como minha magia se manifesta ou se isso é mesmo uma manifestação dela.
Enquanto tento entender o que acontece, um abrupto barulho de passos
me faz sentar para ver se há algo ou alguém ali. Tento afinar minha audição
já que não posso ver muita coisa.
O movimento pára e eu fico à postos. Quando começa novamente, como
em um bote animalístico, agarro no pescoço de meu intruso e o prendo contra
as grandes pedras que cercam meu esconderijo. Minha magia pode estar fraca,
mas todos os meus sentidos são e estão extraordinários tais quais os de um
predador.
— Alexis… — minha vítima tenta falar em meio a pressão que aplico em
seu pescoço.
— Cali! — assim que reconheço a voz, a solto. — Me perdoe, não pensei
que fosse você.
Cali tenta retomar sua respiração, sem entender porquê a ataquei. Além
dela e Garou, não sei mais quem poderia ser ali. Mas quero saber por que não
reconheci Cali. Recentemente comecei a sentir quando ela se aproxima, o

131
AS FILHAS DE GUENDRI

que me indica que a conexão entre eu e ela está aumentando e consolidando.


Sem surpresas.
— Por quê não achou que fosse eu?
— Não sei… mas minha magia… — algo se esclarece em minha mente.
Penso um pouco, e admito que faz sentido. — A tal da Sombra te deu mais
poderes?
— Como sabe?
— Não pude reconhecer sua presença. E se este poder estiver mudando
você, Cali? Só de estar próxima a mim fez com que minha magia reagisse de
forma defensiva há alguns momentos atrás…. isso não deve ser bom.
Será que Garou sentirá que usei minha magia? Não sei como isso funciona,
mas nunca faço uso dela para que nem ele nem ninguém a detecte e não
desconfie de nada.
— Eu tive que pedir mais, Alexis. Não há outra forma de recuperar Igor! —
ela se defende.
— Recuperar Igor e sacrificar você?
Cali não responde, mas sei que essa magia a corrói por dentro.
— Vim aqui para conectar o portal no fundo de seu lago ao espelho de
Verena. — ela se explica, evitando minha pergunta. — Mesmo com o plano
em pausa, acho que devemos vigiá-la, protegê-la. Seja lá o que deu em Igor,
pode dar nela também. Sem contar que sua mente não foi apagada, ela ainda
sabe de nossa existência. Eu cuido dele. Você cuida de Verena, está bem?
— E você acha que algo “deu” nele?
— Você acha que poderia ser alguma outra coisa? Humanos não são capazes
de magia para fazer algo assim.
Sem provas maiores por enquanto concedo e concordo.
Lembro que fui um pouco grossa com Verena na última vez em que a vi.
Também pudera, a situação me deixou com os nervos a flor da pele. Não disse
em voz alta mas a culpei pelo ocorrido. De qualquer forma, concordo com a
ideia de protegê-la.
Cali mergulha, passando um tempo embaixo da água e retornando assim
que a conexão está feita.
— Você a viu? — perguntei.

132
ESSÊNCIAS E DISCORDÂNCIAS

— Sim. Conectei o fundo de seu lago ao espelho do quarto dela. Está


trançando seus cabelos. — Cali muda de tom. — Antes de eu partir, me diz
como você está Alexis.
A pergunta me surpreende. Nem eu sei a resposta. Mas suspiro e finjo um
sorriso educado para não preocupá-la.
— Cali. — a chamo quando ela está para ir embora. — Preciso de um favor.
Sei que ela não vai concordar com minha proposta, mas preciso fazê-la de
qualquer forma. Esta ideia está dançando em minha cabeça há algum tempo
e decidi executá-la.
— Favor?
— Isso. — me aproximo dela no escuro e ela me encara. — Preciso que me
ajude a participar do Torneio das Valquírias.

133
23

Acerte o Tempo No Escuro

U
m soco contra a pedra.
O tempo passa, e eu me irrito com o fato de que agora que sei
o que é o tempo, e que também não posso controlá-lo.
Outro soco contra a pedra.
Não vejo nada além da escuridão que me sufoca, rodeando-me em absoluto.
Meu algoz, silencioso companheiro. Um carrasco maldito. Me assiste, me
ignora, me completa, me devora. Um infinito universo que me faz sentir
pequena e fraca.
Mais um soco contra a pedra.
Ouço-a partir em pedaços assim como as outras. Essa era a maior de todas,
pensei que ofereceria mais resistência contra minha força. Sem muito para
fazer, tudo o que me resta é treinar. Sou uma guerreira, uma amazona criada
para combate por Guendri.
É hora de aceitar que é isso o que sou.

134
ACERTE O TEMPO NO ESCURO

Meus planos para viver entre humanos precisariam ficar para depois.
Não quero mais fugir de mim mesma. Estou cansada de sentir como se não
pertencesse á lugar algum pois pertenço. Apenas não queria aceitar isso.
Quero participar do Torneio de Valquírias, um tipo de combate amistoso
da guarda regencial de Adaris para o entretenimento de Garou. O plano que
formulei para isso é fácil: já que Cali conhece o castelo, vai lá e arranja uma
armadura Valquíria para que me cubra de cima abaixo e fique irreconhecível,
apenas mais uma delas.
Não posso afirmar com certeza, mas creio que esse festival não acontecia
quando Guendri estava aqui. Não me parece de seu feitio, apesar de eu saber
nada sobre ele. Só sei que tinha as valquírias como sua proteção pessoal e de
Adaris. Um tipo de fada sem magia, mas com forças gladiadoras que protegem
nosso mundo.
Como surgiu tal prática?
Que tipo de reinado meu pai tinha antes de me criar?
É só isso o que sei: perguntas e mais perguntas. E por agora, me é o
suficiente como resposta entender que valquírias são verdadeiras traidoras,
já que seguem Garou ao invés de negar servir o falso Rei ou ir á procura de
Guendri ou suas filhas.
Sem vitais informações, tento construir a história de meu povo com o
pouquíssimo que sei sobre ele.
Por que Valquírias se submetem a Garou? Em algum momento se rebelaram
ainda com Guendri aqui? Ou eram as guerreiras preferidas de Guendri até o
instante em que ele nos criou?
Não sei quantas são mas imagino que muitas. Cali me diz que são
extremamente similares em suas armaduras metálicas e espada-lanças. Estão
por todo canto de Adaris, mantendo a ordem que Garou impôs e impedindo
portais de serem abertos.
Malditas sejam por isso. O braço que reforça a tirania injustamente imposta
é tão corrupta quanto quem a coordena. Para isso treino. Vencer-las-ei em
seu próprio jogo traidor. Se forem mesmo parte deste complô contra mim,
minha irmã ou meu pai…
Respiro fundo. Penso nele.

135
AS FILHAS DE GUENDRI

Meu pai, Guendri.


O vazio que acompanha este nome me assola. Não me significa nada. Estou
jurando vingança por uma pessoa que nunca conheci. Ele me criou de seu
próprio sangue e eu não sei nada sobre ele, quem foi, quem é, o que fez, por
que me fez, aonde está… nada!
Como pode?
Será que não se lembra de mim como também não me lembro dele?
Meto outro soco ainda mais forte na pedra já quebrada. As juntas de meu
punho sangram, mas minha pele rapidamente se cura, reconectando as fibras,
retornando-as ao perfeito estado em que estavam.
Cerro meus dentes, minha mandíbula trincada de raiva.
As vezes odeio quando meu corpo retorna ao normal pois é a óbvia diferença
de minha mente. Eu me machuco, de novo e de novo e tudo retorna ao estado
inicial. Esse é meu estado físico. Mas minha cabeça… não muda, não retorna.
Não há conserto. E tudo o que eu quero é lembrar de Guendri.
Por que não volta?
Por que me abandonou, papai? Por que não volta?
Sei que te falhei pai, sei que… não, esta não é a verdade.
A verdade é que não sei quem você é nem o que aconteceu. Se voltasse e
me pedisse uma explicação do porquê falhei suas ordens, não saberia nem o
que lhe dizer. Não poderia olhar em seus olhos e procurar neles algum tipo
de conforto que adoraria ter agora.
Como posso saber dentro de mim que existe? Te sinto em meu sangue, Guendri.
Se existe alguma forma de contactá-lo, por favor, eu preciso saber como… eu
preciso encontrá-lo!
Me sinto exausta. É raro e não vem de esmurrar pedras o dia inteiro. É
algo que vem de dentro. Me toma de súbito e me força ao chão. Sento-me e
abraço minhas pernas na esperança de que isso me traga algum consolo.
Eu só queria poder lembrar.
Uma única lembrança dele, ou dela. Uma única memória, visual ou som,
qualquer coisa me salve dessa agonia que me engole por inteiro dia após dia,
dessa solidão que como onda se quebra sobre minha cabeça me afogando em
mil incertezas.

136
ACERTE O TEMPO NO ESCURO

Percebo lágrimas em meu rosto. As limpo o mais rápido que posso com as
palmas de minhas mãos. Tenho vergonha de chorar, é tão vulnerabilizante.
Tento me controlar pensando em algo que gosto. Uma música humana me
vem a minha mente, volume baixinho, mas alta o suficiente para me fazer
ouvir a letra.
Não sei quem toca seus instrumentos, mas sei que aprendi a lingua após
ouvi-la para poder entender o que falava. “My love, my life, my drive, it came
from pain […] you made me a believer… ”
Fecho meus olhos e me deleito no som, abraçando-o como um velho amigo
que sabe todos os meus segredos e não julga nenhum. As notas embalam meus
pensamentos. De repente, a dor começa a tomar uma nova forma, através
de uma dança lenta e rítmica coreografada pela esperança que timidamente
começa a retomar o palco dentro de mim.
Nunca se esqueça do equilíbrio das coisas. Não há fraqueza sem força. Não há
medo sem coragem.
Não há vitória sem luta.
Se eu não consigo me lembrar de quem eu era… é por que só preciso de
quem sou agora.
Meu passado não pode me ajudar.
Eu sou meu presente.
Meu momento.
Esse momento.
Meu tempo. Posso controlá-lo se eu puder me controlar.
Me levanto. Seco meu rosto e tomo uma nova estância de combate,
endurecendo meus músculos. Formo uma sequência de socos e chutes no ar.
Não poderei atingir meu potencial sem treinar, não poderei cumprir minha
missão sem melhorar minha capacidade de lutar.
O passado não vai voltar.
Meu futuro é agora e não posso deixar que nada me derrote.

137
24

Maestral

C
om Igor ainda inconsciente em seu quarto, decidi lhe fazer o favor
de verificar como andam seus negócios no mundo humano.
Já se passaram alguns dias. Ele não melhora mas também não
piora, e acho que de alguma forma isso já é bom.
O apartamento de Igor está intacto. Lavei a louça suja que tinha deixado
antes daquela noite de sábado, tirei o lixo para fora, apanhei suas cartas
e alimentei seu gato. Procurei por seu telefone por toda a parte e não o
encontrando, usei de magia para fazê-lo tocar.
Seguindo o som, o encontrei dentre o vão dos assentos do sofá da sala.
Sem bateria, lembro como se faz para recarregar. Assim que conecto o
aparelho ele liga, me assustando ao tremer repetidamente em minha mão.
Após alguns minutos, ligo para um de seus funcionários do Lírio e disfarço
minha voz magicamente, transformando-a na de Igor. Digo que estou em
uma importante e urgente viagem e que voltarei em breve. Peço para que

138
MAESTRAL

cuide de tudo enquanto eu não voltar. O funcionário entende e aceita sem


muitas perguntas e eu desligo. Não gosto de mentir, mas não tem outra saída.
Um problema a menos.
Vou até a sacada, fecho os olhos e deixo o sol tocar minha pele. Penso em
Igor e em todas as vezes que sentamos juntos aqui neste mesmo lugar, sob
este mesmo sol.
Não saber se seu melhor amigo vai ficar bem ou não é uma desolação
terrível. Até o sol perde o calor quando se está sem aqueles que se ama ficar
perto. Tento não chorar ao lembrar da última vez em que estive aqui. Igor
me convenceu naquela vez a “viver um pouco”. Esse é o espírito dele, sempre
aproveitando tudo o que a vida élfica ou humana tem de bom. Ele quer isso
para mim também. Mas meu objetivo me cegou um pouco, não aproveitei
meu tempo com ele como devia.
Por causa dele e de seu conselho, fui atrás de Flávio naquele dia e me senti
imensamente bem após fazê-lo.
Flávio.
Antes de nos despedirmos naquela tarde no parque jogando basquete,
Flávio quis me dar o número de seu celular para que eu ligasse ou mandasse
mensagens de texto. Como eu não tenho um aparelho desses, ele acabou
anotando uma sequência numérica na palma da minha mão usando uma
caneta que fazia cócegas, pedindo para que entrasse em contato assim que
tivesse um telefone.
Seguir o conselho de Igor é como se ele estivesse aqui, não é?
Ouvindo meu melhor amigo e suas ordens para aproveitar minha vida
ecoar em meus pensamentos, magicamente recupero o número já apagado
em minha mão, assistindo a tinta da caneta retornar ao poucos à vibrante e
visível existência.
Tomo coragem para fazer algo que sei que trará algum conforto a meu
coração agoniado.

139
AS FILHAS DE GUENDRI

— Achei que não ligaria. — diz Flávio, me cumprimentando com um beijo


fofo na bochecha.
Eu não deveria ter ligado mas queria tirar os pensamentos negativos de
minha cabeça por um instante que seja, então usei o celular de Igor para
contactar Flávio que pareceu feliz ao ouvir minha voz.
Combinamos de nos encontrar e agora estamos em frente a sua faculdade,
pois hoje ele estuda para as provas de sua longa semana de exames de medicina
e anatomia humana.
— Desculpe-me se te atrapalho, sei que está ocupado.
— Cali, você nunca me atrapalha. — Flávio estuda meu rosto. — Aconteceu
alguma coisa? Você parece triste.
Penso por um momento no que dizer.
— Um amigo está doente e eu estou preocupada, só isso.
Sua feição muda drasticamente. Ele coloca uma mão em meu ombro.
— Sinto muito, Cali. Você quer conversar sobre isso?
Aceito o convite. Com humanos aprendi isso: falarmos sobre nossos
problemas na esperança de resolvê-los. Também fiz isso quando encontrei a
Sombra e chorando, contei o que aconteceu. Humanos sabem resolver certas
coisas melhores que nós fadas. Sou adepta do que funcionar, não importa de
que mundo venha.
Atravessamos a rua e entramos numa lanchonete. Ele pergunta se quero
algo para comer. Comida humana tem gosto de nada para mim e certamente
não tem o que como no cardápio, então respondo que não e agradeço. Ele
compra um sanduíche para si e insiste que eu ao menos aceite algo para
beber. Escolho uma lata vermelha brilhante e gelada, daí nos sentamos a mesa
redonda de ferro pintada de branco do lado de fora.
— Eu tô morrendo de fome. Tô há um tempão estudando e até esqueci de
comer. — comenta Flávio.
Observando-o arrancar uma bela mordida de seu sanduíche, uma ideia
estranha me ocorre: todas as vezes que vejo Flávio, entre outros humanos, eles
usam roupas diferentes. Eu não. Nunca pensei em mudar minha jardineira e
camiseta branca. Igor as lava para mim, pois não as levo para Adaris. Será
que ele acharia isso estranho? Diferente de mim, Alexis gosta de comprar

140
MAESTRAL

roupas. Já eu poderia conseguir roupas novas num passe de mágica, apenas


nunca me importei em fazê-lo.
— Que foi? — ele pergunta me trazendo de volta para a realidade. — Tá
me olhando com uma cara engraçada.
— Sua camiseta. — sorrio timidamente. — É bonita.
— Você achou? É do Los Angeles Lakers. — vendo minha cara de paisagem,
ele completa: — Um time de basquete. Time atual do Lebron James. Gosta
dela? — ele me pergunta e eu respondo que sim. — Quer uma?
— Preciso de roupas novas… — digo mais para mim que para ele.
— É, você tá parecendo uma amiga minha lá do prédio onde trabalho. Ela tá
sempre com a mesma roupa. — ele ri e procura na sua mochila verde-escura
por algo. Quando encontra, oferece a mim. — Essa aqui é do Chicago Bulls.
Da época do Michael Jordan. Eu lavei ontem então tá bem limpa. Em você vai
ficar um vestido mas acho que vai gostar. — aceito o presente com um baita
sorriso e imediatamente a visto por sobre meu vestido mesmo. Realmente
está gigante mas eu adoro. Agradeço e ele sorri, alegre por eu gostar do
presente. — Ficou ótimo, melhor em você do que em mim, Cali. — ele volta
a comer seu sanduíche. — Agora me diz o que tá acontecendo com o seu
amigo.
Por onde começar? Meu amigo foi ler a mente de alguém e acabou em coma.
Para ajudá-lo, deixei uma cobra injetar magia em meus pulsos. Coloco minhas
mãos sobre seu peitoral sempre que posso, tentando manter o funcionamento básico
de seu corpo. E ele melhorou um pouco, mas ainda assim…
— É complicado explicar, ninguém sabe o que ele tem. Não sei se ele vai
ficar bem ou quando. — fecho meus olhos e viro o rosto, não quero chorar
na frente de Flávio.
— Ei… — ele estende sua mão e a coloca sobre meu ombro. — Vai ficar
tudo bem. Seu amigo vai sair dessa. — de alguma forma, a compaixão em
suas palavras me confortam. Ele me assiste em silêncio por um tempo. —
Posso perguntar uma coisa? O que é isso no seu braço?
Flávio aponta para meu pulso recém mordido pela cobra da sombra.
Percebo pela primeira vez que ao redor dos dois furos minhas veias estão
escuras. Contra minha pele branca formam um complexo desenho de linhas

141
AS FILHAS DE GUENDRI

negras, que se estendem por parte de meu antebraço.


Eu nem tinha reparado isso. Escondo meu braço dele numa reação
automática. Não consigo pensar numa resposta e Flávio percebe meu
desconforto com a pergunta.
— Desculpa, eu não quis xeretar… Chame isso de curiosidade médica. Ou
pré-médica, já que ainda não me formei.
— Médico… é isso que quer ser? — mudo de assunto, curiosa por descobrir
mais dele.
— Desde pivete. Sempre fui curioso em relação a anatomia, fisiologia. É
uma profissão legal, onde eu posso lidar com o que gosto e de quebra ajudar
pessoas. Quero ser médico desportivo. — ele morde o sanduíche de novo. —
Mas isso no seu braço… é alguma alergia? — fala de boca cheia.
Disfarço um sorriso e o agradeço em minha mente por inventar uma
desculpa para mim.
— É, é isso. Alergia. — seja lá o que isso for. — Não é nada demais. — bebo
o líquido da latinha vermelha. Eeeergh! Que gosto estranho tem isso!
— Não gosta de Coca? — Flávio pergunta.
Eu devo ter feito uma careta ao beber.
— De quê?
— Seu refrigerante. — ele indica com a mão e eu olho a lata vermelha.
Tento fingir que gosto. Tenho que lembrar que preciso parecer humana. —
Tudo bem se você não gostar, Cali. — Flávio ri, amigável. — Não sabe o que
é basquete, não tem celular, não gosta de coca cola… tô começando a achar
que você é de outro mundo.
Arregalo meus olhos e abro minha boca para começar a me explicar mas
palavras me escapam.
— É que…
— Calma, foi uma brincadeira. — com aquele belo sorriso, ele se explica. —
Você é diferente, só isso. — você acha? espera só até você ver minhas asas, Flávio.
— Você é única. Jamais conheci alguém como você, sabia?
Não consigo segurar o sorriso bobo. Soa como uma coisa boa o jeito que
ele diz isso.
— E isso é bom? — sei que há seres que não gostam de coisas fora de um

142
MAESTRAL

certo padrão.
— Se você é feliz assim e não tá machucando ninguém, pra mim tá ótimo.
Após o término do lanche, nos levantamos e seguimos de volta para sua
faculdade. Na entrada já vejo que é um prédio enorme. Estudantes vem e
vão pelos grandes portões de ferro, alguns carregando livros e conversando
com amigos, outros focados em seus celulares. Como é de praxe, me senti
deslocada por um momento.
Eu gosto daqui. Mas por mais que eu tente, não acho que o mundo humano
é para mim. Não sou como Alexis que adora esse lugar, até mesmo mais que
Adaris.
Todos que passam por nós cumprimentam Flávio e o parabenizam pela
última vitória no jogo de basquete. Quando um grupo de meninas humanas
o pára para conversarem, me sinto mais deslocada ainda. Ao ver isso, um
sentimento negativo tenta tomar conta de mim e me recordo de que tenho
mais o que fazer do que estar aqui.
Adaris precisa de mim.
Adaris é meu lugar.
Nunca me sentirei deslocada lá.
Com meu povo, em minha terra.
Também sinto minhas veias queimarem um pouco mais, onde as marcas
que Flávio me mostrara mais cedo estão.
Respirando fundo decido sair de fininho, já que Flávio parece ocupado com
as elas.
Meu plano desaba quando ele nota que tento escapar e me puxa de volta
pela mão, me apresentando ao trio de meninas de corpos e roupas bonitas,
rostos perfeitos e sorridentes.
— Essa aqui é a Cali. — ele ás diz, segurando minha mão.
Elas me olham, curiosas.
— Oi, Cali. Nossa, seu cabelo é tão loiro, quase branco! É natural? — a do
meio pergunta esticando a mão e tocando meu cabelo.
Confusa por um momento, respondo que sim. Que tipo de pergunta é essa?
Será que ela acha que eu uso perucas como as de Igor?
— Adorei seu vestido. — diz outra.

143
AS FILHAS DE GUENDRI

Agradeci, mesmo tendo a impressão de que ela não queria dizer o que disse.
Não sei, alguns humanos tem disso. As vezes, não são sinceros em seus elogios
e eu nem sei então por que perdem tempo dizendo-os.
Por trás do grupo, percebo que uma outra estudante passa carregando uma
caixa cheia das melhores coisas no mundo humano: flores.
Adoro flores!
Olho para a caixa com intenso interesse e quando Flávio vê isso, interrompe
sua conversa com as garotas, corre atrás da estudante com a caixa e fala com
ela.
— Mas são para meu projeto de ecologia! — ouço-a dizer a ele.
Flávio insiste um pouco e ela cede uma delas a ele, que vêm até mim e me
oferece a flor.
— Pra você, Cali. — por Guendri, que gentil da parte de Flávio fazer isso!
O cheiro, a cor… meu coração toma um ritmo acelerado e sinto meu rosto
corar.
— Obrigada, Flávio! — sorrio em agradecimento, e por um momento
esqueço que estou em frente á quatro humanos e faço o que sempre fiz com
flores.
Sem pensar duas vezes, arranco pétala por pétala da flor e começo a comê-la
ali mesmo.

144
25

Outras Formas de Heroísmo

A
s meninas se despedem e rindo, se vão.
O rosto de Flávio demonstra claramente sua confusão ao me ver
comendo a flor que me deu.
Tento sorrir coçando minha nuca, sem graça.
— É que… é normal de onde venho sabe? — é o melhor que consigo pensar
para dizer.
— Tudo bem. Hmmm… de onde você é mesmo? — Flávio pergunta e por
algum motivo, isso me faz sentir estranha de novo.
E mais fora do lugar assim.
Não sinto vergonha de ser quem sou nem de vir de onde venho. Mas não
estou aqui no mundo humano para isso e dividida entre mentir ou expôr uma
já frágil Adaris, prefiro ir embora.
— Desculpa, Flávio. Eu não deveria estar aqui. — devolvo-lhe o que restou
da flor e começo a partir.

145
AS FILHAS DE GUENDRI

— Como assim? Cali! Aonde você vai? — Flávio corre atrás de mim e
mesmo eu tentando ser mais rápida, cada passo seu dá dois do meu. Ele me
alcança rapidamente, entra na minha frente e me para na calçada do lado de
fora de sua faculdade. — Hey! — Flávio me segura pelos ombros. — Por que
tá fugindo?
— Flávio, eu não sou daqui, você não entenderia. Eu não sou como vocês e
não deveria nem estar aqui! — a salada de palavras começa a sair. — Eu tenho
outras coisas pra fazer e não deveria me distrair. Aqui não é o meu lugar!
— Como assim, Cali? Por que tá falando isso?
— Por que você é daqui e eu não! Entende? — extravaso sem querer,
embalada pelo pequeno vexame que dei ao comer a flor na frente deles.
Não tenho nada contra humanos nem contra seu mundo. Mas não sou
daqui e nem sou como Alexis ou Igor, que se adaptaram tão facilmente. Já
está quase impossível para mim distingui-los de humanos,
Não sou boa em fingir ser algo que não sou. Não quero esconder-me! E
assim que cumprir minha missão, para Adaris voltarei e lá ficarei!
— Claro que entendo! Acha que eu nunca achei o mesmo? Olhe a sua volta!
—relutantemente eu o faço, sem entender aonde ele quer chegar. — Carrões,
celulares caros, laptops do último tipo. Bairro e universidade de rico! Você
lembra onde me encontrou jogando basquete?
Era certamente uma parte diferente da cidade de São Paulo das quais já
estive. Mas não entendo o por quê. O que significa ser “de rico”?
Seja lá o que for, pela entonação de Flávio já entendi que é algo que ele não
é.
— Lembro. O que tem?
— É lá onde moro, Cali. — continua Flávio. — Na periferia. E quando
entrei nessa faculdade, de cara pensei que não pertencia aqui, com esse bando
de boyzinho e patricinha. A maioria deles nunca nem se quer chegou perto
de onde eu moro. Eu não tenho nem metade do dinheiro que o menos rico
daqui tem, não poderia nem pagar pra passar na porta de entrada daqui.
Flávio parece um pouco exasperado. Devo ter cutucado algo que ele guarda
em si á sete chaves.
Ele se sente diferente dessas pessoas por ser de um lugar diferente delas?

146
OUTRAS FORMAS DE HEROÍSMO

Oh.
… Exatamente como me sinto.
— Mas que se dane, por que eu estou aqui. E fiz por merecer pra estar
aonde estou. Estudei, trabalhei, treinei. E mesmo assim, não sou melhor
nem pior que ninguém! Se eu moro na periferia, se de onde você é as pessoas
comem flores… não importa!
O que importa é quem a gente é. — ele fala com convicção. — A gente merece
tá aqui nesse lugar tanto quanto qualquer outra pessoa.
As palavras de Flávio, combinadas com a verdade e fogo em seus olhos,
acendem algo dentro de mim.
Eu não entendo o que quero fazer.
Mas o faço, por que eu sou assim.
Eu o beijo por que quero.
Nele se refletem tudo o que tenho em mim: minha ânsia por melhora, meu
desejo incontrolado por lutar por uma melhor realidade, a diária batalha
que é manter uma jovem mente focada numa missão, especialmente no meio
dessa vida tumultuosa e interdimensional de paixões imediatas e intensas.
Eu nunca beijei ninguém antes.
Aliás, desde quando vi a prática pela primeira vez achei estranhíssima. O
que dá em um ser para que quisesse colar sua boca na de outra pessoa?
Agora eu sei.
A princípio, apenas forço meus lábios contra os dele. Depois de alguns
segundos estou imóvel, daí me afasto.
Ele não fala nada, só me olha em silêncio, feição indecisa.
— Desculpa, e-eu não sei o que… — tento me explicar, mas não sei nem o
que dizer, mil palavras dançam em minha boca e nenhuma faz sentido. — É
que me deu vontade e eu fiz o beijo.
Flávio franze o cenho de leve e acaba por rir um pouco.
— Cali, acho que você “fez o beijo” errado.
— Como assim? O que fiz de errado?
— O que fez de errado foi parar de me beijar. — Flávio delicadamente
coloca uma mão em cada lado do meu rosto, e me beija novamente. Me
surpreendendo, lentamente adiciona sua lingua e a faz explorar minha boca.

147
AS FILHAS DE GUENDRI

Desordenadamente, sinto a vontade de fazer o mesmo. O calor em seus lábios


passam para os meus e vice-versa. Não há nada a se pensar, nem a se dizer.
Vejo seus olhos fechados, e tento copiá-lo. Explorando mais e mais esse ato
do qual nunca tinha partilhado.
Ali, na calçada em frente a sua faculdade, ficamos a nos beijar, sem se
importar com onde estamos. Afinal, isso não importa. Assim como não
importa de onde somos. O que importa é quem somos e o que fazemos.
Um beijo.
Delicado e avassalador.
Dois mundos literalmente colidindo.
Que tipo de magia é essa?

Após mais alguns beijos e risos, Flávio me pega pela mão e tenta me fazer
segui-lo.
— Aonde está me levando? — pergunto.
— A biblioteca. Vou pegar uns livros e a gente pode sair daqui, ir pra outro
lugar… que acha?
— Não sei… — digo, torcendo meus lábios, indecisa. Ele para e me olha,
sem entender minha hesitação. — É que preciso voltar pra casa. — Flávio
parece chateado com o que digo. — Se pudesse eu ficaria. E faria muito mais
beijos com você.
Ele ri novamente. Não sei do que exatamente.
— Olha Cali, antes que você vá, quero te perguntar uma coisa. — com
um sorriso, o encorajo a continuar. — É que… vai ter uma função aqui na
faculdade…
— Uma… função? — pergunto, sem saber o que é isso.
— É… — ele desvia o olhar, acanhado como nunca o vi ficar. — Uma parada
tipo bailinho, sabe? — ainda estou confusa e Flávio percebe. — Mulher vai de

148
OUTRAS FORMAS DE HEROÍSMO

vestido longo, homem de gravata… aquela coisa.


Entendo. Mais ou menos. Sorrio porquê pela primeira vez Flávio parece
tímido.
— E?
— E gostaria de saber se você quer ir comigo… é em algumas semanas e eu
queria ir com alguém especial. Eu quero ir com você.
Não sei porquê, mas aquilo me alegra. E muito.
— Aceito! — sorrio.
— Sério? — ele parece surpreso e aliviado. — Nossa, eu achei que você ia
me dar um fora!
Flávio me beija novamente e eu devolvo. Quando nos soltamos, reparo que
tem alguém perto da gente. A garota da caixa de flores aparece novamente e
abre o carro estacionado próximo aonde estamos na calçada. Ela tem ainda
mais caixas com flores de todas as cores dentro do veículo, e meu estômago
já fica feliz quando as avisto.
— Eu acho que aquela garota precisa de ajuda, Flávio. — comento,
percebendo a dificuldade dela em carregar as múltiplas caixas. — Devíamos
ajudar.
— Precisa de ajuda, Taís? — Flávio pergunta a menina depois de concordar
comigo.
— Se preciso! — a menina larga a caixa no chão e bufa, limpando o suor
da testa. — Era pra ser um projeto em grupo mas pra variar, só tem folgado
no meu. Tá todo mundo atrasado já faz uma hora e a trouxa aqui tem que
carregar vinte caixas sozinha! Bando de filho da…
— Okay, okay. — Flávio a corta e olha para mim. — Nós te ajudamos.
Carregando caixas de deliciosas flores humanas para dentro da faculdade
movimentada de Flávio, transformamos sua sala de aula em um pequeno
jardim.
— Muito obrigada aos dois! Pago vocês em coxinhas que tal? — oferece
Taís. Flávio parece gostar da ideia, já eu…
— E o que você vai fazer com tudo isso de flor? — Flávio pergunta.
— Bem, o projeto é de ecologia. Tá todo mundo com nota baixa, então
meu grupo propôs deixar aquela parte perto da quadra mais atrativa para

149
AS FILHAS DE GUENDRI

polinizadores por uns pontinhos extras. Vamos plantar as flores lá.


— E como você faz isso? — me ocorre uma ideia. Uma ideia que pode
ajudar Adaris.
— Plantar? — pergunta Taís, aparentemente confusa com o fato de que não
sei como se “plantam” flores.
Se eu soubesse, não haveriam tão poucas em Adaris, e todos teriam muito
mais para comer ou fazer poções e encantos. Um dos problemas de minha
acomodada espécie é que sem nossa magia, não procuramos outras maneiras
de fazer as coisas.
Essa pode ser uma das formas de ajudar meu mundo enquanto não encontro
nossa Regente.
— Bem… — Taís começa a explicar e vai até uma das cômodas cheias de
livros no fim da sala. Pega um de capa verde e o entrega a mim. — Não é
difícil. Se tiver o tipo de solo correto para a espécie de planta, é melhor. Vai
precisar de algumas ferramentas. Talvez algum fertilizante, mas pode fazer o
seu próprio. E de muito sol e água.
Ela continua falando e eu vou prestando atenção nela, e Flávio em mim.
Parece curioso no meu interesse em plantar flores, mas prefiro explicar depois
e aprender agora.
Taís pega cinco pequenos pacotinhos na primeira gaveta da grande mesa
de madeira onde seu professor se senta e me entrega.
— O que é isso? — pergunto sem medo de me acharem estranha por não
saber.
— Sementes, Cali. — Flávio sorri paciente, provavelmente já conformado
com minhas diferenças.
As guardo com todo o cuidado.
— Aqui, leva uma dessas que já estão grandinhas. As sementes vão demorar
para crescer. Temos muitas aqui para o projeto do departamento de Biologia
da Faculdade, o “Polinizadores em Ação”, alias distribuir sementes das flores
nativas de São Paulo pela cidade faz parte de ganhar uns pontinhos extras.
Já vou te colocar na nossa lista. Nosso professor vai ficar feliz. — Taís me
dá um pequeno pote com flores amarelas e me dá também o nome de lojas
humanas onde posso comprar tudo o que preciso.

150
OUTRAS FORMAS DE HEROÍSMO

É isso!
Além das poucas flores que uso para fazer o elixir que ofereço á humanos,
é difícil crescer qualquer coisa na terra seca de Adaris. Além de quê, nossas
plantas são um pouco diferentes das daqui.
Mas estou feliz de saber que há outras formas de crescer mantimentos para
o meu povo! Vou arranjar flores no mundo humano, crescer essas que Taís
me deu, e levá-las para Adaris.

151
26

O Doutor

E
stou quase caindo no sono quando a voz da enfermeira me acorda.
— Verena Morales?
Eu olho para mulher de uniforme branco e recebo seu sorriso.
Ela espera em frente a porta da sala do consultório do Doutor Gregório.
Deixando a pequena sala de espera, digo um quase mudo “obrigada”antes da
enfermeira fechar a porta atrás de mim.
É a primeira vez em muito tempo que venho a uma consulta. Consulta esta
que marquei após o estranho pedido do doutor a minha frente, que se senta
com as mãos atrás de sua cabeça, vestindo uma camiseta do Rush, barba por
fazer, sem jaleco branco e com cara de deboche.
— Vai se sentar ou…? — o doutor indaga por que ainda estou de pé.
Não gosto de estar aqui. O ultimo médico que vi me disse que minha avó
estava doente e que seu prognóstico não era dos melhores. Desde então, não
fiquei muito afim de encontrar outro doutor tão cedo.
Especialmente se ele vai me dizer que existe do lado da família da minha

152
O DOUTOR

vó algo genético que a levou e agora se manifesta em mim.


Respiro. Por fim, sento.
Ele me estuda em silêncio enquanto eu olho em volta de seu consultório.
Estou admirada. Diversos tipos de premiações, alguns diplomas, artigos de
jornais e revistas enquadrados e pendurados na parede atrás dele. Já na mesa,
bonecos de filmes como Star Wars e Hellraiser descansam decorativamente
sobre ela, assim como uma porrada de papéis bagunçados e canetas.
Olho a seu lado e vejo sua bengala contra a parede.
O Dr. começa a olhar minha ficha.
— Vejamos… Verena Morales, vinte e dois anos, sexo biológico feminino…
— ele olha para mim como se estivesse perguntando. Faço que sim com a
cabeça. — É profissional confirmar. — explica, e continua. — Um metro e
setenta e cinco de altura, cinquenta e três quilos, nenhuma alergia significante,
nem histórico de doenças respiratórias ou outras. — ele continua olhando
o questionário que respondi junto a enfermeira, onde ela tirou meu peso e
altura, pressão sanguínea, testou minha visão e pediu para eu esperar minha
vez. — Histórico familiar?
Dou de ombros. Ele franze o cenho, confuso.
— Minha avó foi diagnosticada com demência. Faleceu alguns anos depois,
aos setenta e cinco.
— Eu sei, você escreveu isso aqui. Quero saber de relativos diretos. Seus
pais ou irmãos.
— Não sei se tenho irmãos e não sei nada sobre meus pais.
Sem cerimônias, ele risca um grande X no papel onde tais opções aparecem.
— Não tem filhos… há a possibilidade de estar grávida ou já esteve grávida
alguma vez?
— Não e não.
— Ah, aqui… marcou que não tem vida sexual ativa. — ele olha para mim
em minha amassada camisa jeans, calça preta e all star que já foi mais branco,
me medindo da cabeça aos pés. — Faz sentido. — murmura.
Ele pergunta se uso drogas legais e/ou ilegais.
— Nada além de álcool, e bem pouco.
— Deve ter uma vida bem interessante. — não entendo o comentário, mas

153
AS FILHAS DE GUENDRI

ele não para. — Bem, Verena, quando Flávio me pediu para te consultar…
— Flávio te pediu pra me consultar? — interrompo, sem pensar. O
linguarudo é fã do doutor Gregório, aliás diz o tempo todo que gostaria
de ser tão “top” quanto ele. Deve ter falado de mim como um caso médico a
ser estudado.
Filho da mãe.
— Foi o que eu disse. Ele falou que você tem problemas ao dormir e que
acorda com dores em lugares exatos onde algo acontece em seus “sonhos”.
Correto? — ele faz o sinal de aspas no ar e eu tenho que dizer, nunca vi um
doutor ser tão sarcástico.
Se eu não estivesse tão cansada e me sentindo tão fraca, responderia á
altura.
É sexta feira de manhã, quase uma semana desde que vi Igor, Alexis e Cali.
Desde o que aconteceu com Igor, nenhum deles entrou em contato comigo.
Eu não faço a menor ideia do que ocorreu naquele sábado a noite com ele,
nem ao menos se já melhorou. O tempo todo me lembro de seu corpo pesado
sobre a mesa, da gosma verde e que não parecia respirar.
Mas ele não foi o único afetado naquela noite.
Dormir se tornou praticamente impossível para mim. E quando é possível,
cenas bizarras de imagens mal formadas e gritos melancólicos infestam meus
sonhos. Tenho a sensação de estar caindo constantemente e acordo num
impulso. Não tenho fome, mal tenho sede e meu nível de atenção também
decaiu. Minha sorte é que esta semana no trabalho foi lenta.
Eu não ia marcar a consulta com Doutor Gregório, mas eu preciso dormir,
comer… voltar ao normal.
O que está acontecendo comigo?
Seja lá o que for espero que Doutor Gregório possa me ajudar. Conto a ele
tudo isso, deixando de fora a sessão de leitura mental dinâmica envolvendo
um elfo e uma fada que aconteceu semana passada. Se eu contar essa parte,
certamente não me dará um remédio, me dará um ticket para um sanatório.
— Infelizmente insônia e dores musculares não são incomuns em indivíduos
da sua idade. E também não são sintomas de uma doença única. Pode ser
estresse, pode ser peste bubônica… ou qualquer outra condição entre as duas.

154
O DOUTOR

— meu olho arregala no “peste bubônica”. — O que quero dizer é que existem
várias possibilidades. Vamos fazer alguns testes. Vou precisar de amostras de
sangue e urina. A enfermeira colherá os dois. Por enquanto, tome isto. — ele
rabisca uns garranchos e me dá a receita. — O de cima vai te ajudar a dormir.
O outro é para abrir o apetite.
Agradeço e guardo a receita em minha bolsa. Me levanto e quando lhe
estendo a minha mão para me despedir, o pego estudando meu cabelo da
mesma forma estranha que o fez no sábado passado, expressão de desagrado.
Antes de apertar minha mão, ele também a estuda. Ao apertá-la, a vira dos
dois lados, analisando-a.
Mesmo achando sua atitude estranha, deixo para lá. Cheguei a conclusão
de que Doutor Gregório não é uma pessoa normal, e desde que o que quer
que tenha me receitado funcione, sua nonsense não me importa.
— E Verena… — ele me chama quando eu abro a porta para sair de sua sala.
— É melhor deixar sua mente descansar por esses dias, não deixar o estresse
do trabalho te afetar; tente descansar em paz.
O que pensar quando um médico te diz para “descansar em paz”? Ele parece
se divertir com seu trocadilho. Deixo sua sala e a enfermeira me direciona a
sala dela para fazer as coletas.
Eu a sigo com uma estranha sensação de que já ouvi o Dr. Gregório dizer
aquilo antes.

Eu subo para meu andar e abro a sala do escritório vazio.


Quando mandei uma mensagem a Bauer ontem a tarde avisando que
começaria a trabalhar assim que terminasse minha consulta, o que seria
provavelmente após as dez da manhã, ele não respondeu, apenas visualizou.
Entendi aquilo como um “tudo bem” por que este é Bauer.
Eu estranharia se ele tivesse respondido.

155
AS FILHAS DE GUENDRI

Não sei quando ele volta, nem onde está. Ele cancelou a maioria de seus
compromissos, não sei como e nem quando, o que fez a semana ficar mais
lenta e as horas demorarem para passar. As únicas ligações que atendi foram
de novos clientes e de Lena, que parece trabalhar em dobro para compensar
a ausência de nosso chefe. E o faz sem reclamar.
Na segunda-feira quando cheguei no escritório, sobre minha mesa havia
apenas um recado:
“Tive que fazer uma viagem urgente. Voltarei em breve.”
Dizia o papel, sem assinatura nem nada.
Bauer poderia ter me ligado, me mandado um e-mail, até uma mensagem
de texto está valendo para dizer para onde foi ou quando exatamente volta.
Sou sua secretária e nossa comunicação é… falha, estranha.
Me perguntei o por quê de me avisar de sua ausência dessa forma. Será
que aconteceu algo sério com algum familiar? Ele não ligou a semana inteira.
Nenhum tipo de interação se deu entre nós, o que só me faz pensar que
aconteceu algo ruim. Tento lembrar o que exatamente sei de Bauer, se
conheço seus pais, irmãos… não é casado, não tem filhos, e nunca o ouvi falar
de seus familiares.
E nunca perguntei. Provavelmente por que não queria que perguntasse
sobre os meus. E também por que apesar de nossas ultimas interações terem
sido mais abertas, antes delas eramos estritamente reservados profissionais.
Resolvi que não vou me preocupar. Aliás, já tenho algo me preocupando,
tornando minha semana mais miserável a cada dia que passa. Estou
fisicamente afetada pela minha falta de sono que já era um problema antes de
sábado a noite, e agora piorou de vez.
Não sei se foi algo que Igor fez. Não sei nem se Igor fez algo, pois não me
lembro de nada. Cinco horas? Em um segundo? Não é possível…
O que será que descobriram?
E Igor? O que aconteceu com ele?
Estou perdendo as esperanças de reencontrar Alexis ou Cali novamente. De
inicio, eu queria que elas desaparecessem após eu concordar com a proposta
maluca que elas me fizeram. Mas agora… estou morbidamente curiosa e acho
justo saber no que deu. Elas tem meu telefone, sabem onde moro.

156
O DOUTOR

Custa entrar em contato?


No fundo, no fundo sou grata por Bauer não estar aqui. Estou tão
avoada nesses últimos dias, que certamente essa semana meu desempenho
o desapontaria. Meu humor também não está dos melhores, e para ajudar
estou naqueles dias.
A cereja neste bolo de bosta é aquela voz no fundo de minha consciência
que me relembra a existência de Lucas como o vi hoje cedo, sem camisa e
voltando de sua corrida matinal. E quando a memória me traz um sorriso,
minha mente é cretina o suficiente para me lembrar também da existência de
sua namorada Sara, a seu lado e sorridente.
Reviro os olhos.
Nem vi Flávio essa semana. Apenas trocamos algumas mensagens de texto.
Ele está ocupado com a semana de provas na faculdade e eu não quero
atrapalhar seus estudos.
É, estou tão sozinha. Ninguém para conversar. Minha vidinha de cidade
pequena se repete na cidade grande.
Respiro fundo.
Quando penso que dá para cortar o infinitamente entendiante silêncio com
uma faca, ouço o inconfundível barulho de toques desordenados na porta do
escritório e alguém tentando abri-la com força.
Entrando de sopetão, uma mulher me assusta. Parece eufórica, seu rosto
tão vermelho quanto seu cabelo.
— Aonde está Dimitri? Ele está aqui? É você que é a secretária dele,
Verena? — arregalo os olhos, me levanto e respondo que sim. — Ele está
aqui? O cretino, mentiroso, safado não me atende! — ela está prestes a
chorar caminhando em direção a porta da sala de Bauer, se deparando com
ela trancada.
Descobri semana passada que tenho a chave, mas achei melhor não revelar
esse detalhe a ela.
— Normal, as vezes ele não aten… — comecei a falar mas parei assim que
ela começa a estapear a porta dele.
— Dimitri! DI-MI-TRI! ABRA IMEDIATAMENTE! — ela grita contra a
porta fechada.

157
AS FILHAS DE GUENDRI

— Desculpa moça, meu chefe não se encontra no momento. — eu devia ter


dito isso antes. Não sei exatamente o que fazer e na verdade, o jeito como ela
bate na porta está começando a me assustar. Ela é magrelinha, mas a raiva
que parece dominá-la compensa.
Dá para entender o por quê Bauer nunca quis nada com ela.
— Eu sei que ele já voltou de viagem! Eu sei que ele está se escondendo de
mim! — ela para de tentar virar a maçaneta da porta da sala do Bauer e tira o
celular da bolsa. — Olha isso!
Ela procura algo no aparelho e o oferece a mim.
O aplicativo é o Instagram e a foto na tela é de Bauer com uma outra
ruiva, mas com cabelos mais escuros. Os dois em trajes de banho, numa
praia ensolarada. A legenda diz “Buzios” com um mar de emojis, postada
recentemente.
Enquanto eu olho a barriga interessantemente definida do meu chefe na
foto, a moça ruiva ainda está brava.
— É A MINHA IRMÃ! — ela grita. — O DIMITRI ESTAVA NA PRAIA
COM A MINHA IRMÃ!

158
27

Psicologia Avançada

A
pós acalmá-la com um copo de água com muito açucar, estamos
sentadas no sofá da recepção, eu tentando convencê-la de que Bauer
não aparece aqui desde segunda.
— Como pode, Verena? Ele não atende minhas ligações mas vai viajar com
a minha irmã, duas semana depois de ter ficado comigo? — ela chora e eu
sinto pena dela. Mas eu não sei o que dizer, então continuo ouvindo. —
Desculpa por entrar assim e te assustar, mas é que eu não sei o que fazer, me
subiu a cabeça, sei lá. Minha própria irmã! — a garota seca as lágrimas com a
mão. — Ela vive roubando meus namorados. Eu não sei porquê ela faz isso
comigo. Ela sabe que eu sou louca por ele!
E põe louca nisso. Foi uma cena e tanto.
Deus que me livre chorar ou fazer barraco por causa de homem. Nunca o
fiz e nunca o farei. Ainda mais por homens como Bauer, que são a síntese da
dor de cabeça feminina.
— Não esquenta, Alina. — eu a conforto. Ela é maluca e barraqueira, mas

159
AS FILHAS DE GUENDRI

parece ser gente boa. — Essa semana foi bem parada. Um momentinho
emocionante na sexta-feira não é nada. — tento uma piada para elevar o
humor. Alina ri. — Mas por que você achou que Bauer estaria aqui?
— Por quê a cretina da minha irmã já voltou de lá.
Não sei de quem é a culpa desse fuzuê todo, de Bauer ou dela, o que também
não me importa, não tenho intenção nenhuma de me meter… mas não posso
ignorar a dó que dá ver uma moça de coração tão quebrado. Qualquer ser
humano normal teria compaixão.
— Olha, eu não vou te dizer que o Bauer tá errado, ou que é um canalha. Ou
que a culpa é sua, apesar dele ter deixado claro que não queria nada sério… —
Alina olha para mim, provavelmente se perguntando como é que eu sei disso.
— Não cabe a mim e não vou tomar lados. Mas acho sinceramente que você
não merece se deixar passar por isso, sabe. Eu posso te dizer várias coisas do
tipo, “ah, ninguém merece suas lágrimas, blá blá blá”. Mas a verdade é que
dói. Pra caramba. E quando dói, a gente chora e perde a noção. — ela presta
atenção. — Dói ser traída pela irmã, dói gostar de alguém que não gosta de
você, dói ver quem se gosta feliz com outra pessoa. E você tenta não pensar
nele, e quanto mais você tenta, menos consegue. — eu já nem estou mais
olhando para ela. — Chega uma hora que você começa a duvidar de si mesma,
da sua inteligência, por que não consegue entender que esta pessoa não te
quer e você não consegue parar de querer ela. Mas todo dia, tem que dizer
pra si mesma que vai passar. Que você não precisa correr atrás de ninguém.
Quem te quer e te merece, nunca vai te fazer sofrer assim. E essa é a verdade.
Não parece, mas amanhã vai doer menos. Um dia, você não vai se lembrar de
como se sente agora. Não parece mas esse dia vai chegar.
Ela me assiste calada e atenciosa.
É claro que eu estou falando isso mais para mim que para ela.
Um dia ouço meu próprio conselho.
— Eu não sei por que minha irmã é assim. Ela sabe como me sinto em
relação ao Dimitri. Pra te falar a verdade, eu não sei se ele sabe que ela é minha
irmã… Mas ela sabe dele! E de qualquer forma ele devia ficar só comigo! —
a sua voz falha quando tenta dizer isso. — Ele devia dar uma chance pra eu
mostrar o quanto o amo, Verena.

160
PSICOLOGIA AVANÇADA

É.
Parece até que eu não falei nada.
Ás vezes quis ter uma irmã. Sempre imaginei que esse tipo de ligação com
alguém é única, mas já vi que aparentemente, nem sempre…
Checo meu relógio e vejo que é meu horário de almoço. Eu não estou com
fome, nem minhas amadas mexericas me interessam no momento, mas eu
tenho que tentar comer algo.
— Desculpa pela cena, Verena. — Alina se levanta e limpa seu rosto com as
mãos. — E obrigada pela água e por… tudo.
— Sem problemas. Desculpa, não olhei no relógio pra te dispensar, é que
é meu horário de almoço. — comento, tendo uma ideia. — Tem uma ótima
pizzaria aqui na Pamplona. Tá afim de ir lá comigo?

Meu almoço com Alina foi mais descontraído que nosso encontro inicial.
Tentamos não conversar sobre Bauer ou a irmã dela. Ela me contou sobre
estar no ultimo ano da faculdade de direito e algumas de suas viagens ao
exterior. Contei a ela sobre minha vontade de entrar na faculdade em breve e
algumas histórias minhas de Cunha. Não tenho muitas, mas ela ouviu mesmo
assim.
Para alguns nossas experiências não se comparam, mas demos boas risadas
e ela pareceu interessada. Nós duas tagarelamos comendo uma super
pizza quatro queijos e suco de laranja bem gelado, fazendo a hora passar
rapidamente.
Eu precisava disso. E acho que ela também.
Antes de voltar para o escritório, trocamos números de telefone e prome-
temos manter contato. Nos despedimos e subo para minha silenciosa sala
vazia, feliz por ter socializado.

161
AS FILHAS DE GUENDRI

Agora estou imersa em meu mundinho vendo memes imbecis de internet


e seguindo fios no twitter de exposeds de pessoas que nem sei quem são,
exercendo meu senso de humor cretino. Já cansada disso, começo a assistir
uns vídeos no Youtube, como faço às vezes.
E para variar, nem o ouvi entrar.
— Oi, chefe! — exclamo surpresa e fechando o vídeo que não devia estar
assistindo em horário de trabalho.
Notei que ele está bem bronzeado. Resolvi não comentar sobre isso e fingir
que não sabia da foto, nem de onde esteve ou com quem. Nem que Alina veio
aqui e após dar um pequeno chilique, almoçamos juntas. Ou até mesmo dizer
que mereço um bônus por acalmar uma fera.
Acho estranho que ele tenha voltado da praia hoje, sexta-feira. Quem não
aproveitaria também no final de semana já que passou a semana toda lá?
— O que você tem? — sem dizer oi e pulando direto para a inquisição, me
encara com uma mão no bolso da calça e outra dedilhando meu balcão de
mármore.
Demoro um pouco para entender a pergunta de Bauer.
— De recados? Espera, tem uns desde segunda…
— Você disse que precisava ir ao médico. — Bauer diz, impaciente. — O
que é que você tem?
Eu jurava que ele perguntou sobre trabalho. Mas não, aparentemente o
foco aqui é minha saúde.
Ha.
— Tirei sangue para alguns exames e…
— Está pálida e parece cansada. — me corta antes que eu diga que também
fiz xixi num copinho. — É grave?
Estranho. Ele me corta e suas palavras são de preocupação, mas ele não
parece nem um pouco preocupado, e sim irritado.
E, aliás, me desculpe por parecer pálida e não ter ido a praia me bronzear
como você. Quis dizer a ele, mas fiquei calada. Minha pele é naturalmente
morena. Mas acho que uma semana de má alimentação + insônia pode dar
uma aparência semicadavérica a qualquer um.
— Não, nada grave. — respondo. Essa conversa é surreal. — Apesar de que

162
PSICOLOGIA AVANÇADA

Doutor Gregório disse que pode ser peste bubônica. — brinco.


Paro de falar e pigarreio. Ele não sabe se ri ou se leva a sério.
Pois é, eu também não sei.
— Vá para casa e descanse. Use o final de semana para se recuperar. Esteja
melhor na segunda-feira. — ele diz como se fosse uma ordem que eu pudesse
cumprir, escolher quando ficar boa.
Não quero ir embora. Quero ficar e trabalhar. Quero meu salário completo
no fim do mês e melhor ainda, não quero voltar para casa e ficar olhando
para o teto, sendo atormentada por múltiplos pensamentos negativos.
— Eu estou bem, Bauer. Não se preocupe. — tento mudar de assunto. —
Como foi sua viagem?
— Morales. — ele fecha o olho e respira fundo, impaciente. — Por que é
sempre tão teimosa? Sua mensagem de ontem já tinha me preocupado. Daí,
entro aqui e você parece não dormir há uma semana. — como ele adivinhou?
— Como é que não vou me preocupar?
Para quem visualizou a mensagem e não respondeu, não imaginei que
estivesse preocupado.
— Eu só avisei porque não abriria o escritório na parte da manhã e não
queria que você achasse que eu estava faltando ao trabalho por que você não
estaria aqui.
— Eu jamais acharia isso. Mas por quê marcou um exame tão em cima da
hora? Só pode ser uma emergência, não?
Não sei dizer se ele estava calmamente discutindo comigo por estar
possivelmente espalhando peste bubônica no escritório, ou por tê-lo feito
terminar sua viagem mais cedo.
Huh… Deve ser isso.
— Desculpa Bauer, não quis te deixar preocupado comigo. — sorrio sem
querer, me achando muito importante por um segundo. — Se você voltou
mais cedo da sua viagem por minha causa…
— Fico alguns dias fora e você adoece. Isso tudo é saudades de mim,
Morales?— a mudança drástica do tom da nossa conversa me deixa confusa e
acaba com meu sorriso. — Imagina se eu ficasse mais tempo longe. Acabaria
internada. — com um sorriso de lado, ele cruza os braços. Eu ignoro a piada

163
AS FILHAS DE GUENDRI

e apenas o encaro, olhos estreitos, ouvidos incrédulos. — Vá para casa. —


ergue a mão quando vê que vou responder. — E não discuta. — comanda,
mas desta vez o faz suave e seriamente. — Descanse. Preciso de você inteira
semana que vem.
Reviro os olhos, vencida.
Contra minha vontade e em absoluto silêncio, desligo meu computador e
vou embora.

Falei que não queria ir para casa e não vou.


Não me apresso para pegar o ônibus, nem chamo um uber. Ao contrário,
ando pela Avenida Paulista bem lentamente. É tarde de sexta e ela está cheia.
Em suas calçadas, pedestres dividem espaço com músicos, barraquinhas de
quitutes e vendedores diversos.
De onde estou, a Avenida parece infinita. Prédio após prédio, numa linha
reta formada por concreto. Meu olhar não alcança seu término e isso me
fascina. Todos os barulhos se misturam numa caótica e harmoniosa sinfonia,
dando a mais movimentada Avenida da América Latina sua identidade única.
Me junto a algumas pessoas que estão paradas em frente à um musico
tocando guitarra, acompanhado por outro em um teclado. Seus talentos lhe
garantem múltiplas gorjetas, inclusive a minha.
Lembro da receita do Dr. Gregório e decido ir até uma farmácia comprar
os remédios. Com as pequenas caixinhas em mãos, continuo andando e me
deparo com uma roda de pessoas que assistem a outro ato musical. Fico
ali por alguns minutos e me impressiono com o talento dos participantes.
É algum tipo de break dance com três adolescentes e uma criança. A cada
movimento perigoso, a audiência segura a respiração e aplaude quando vê
que a execução foi perfeita e que ninguém quebrou o pescoço.
Continuando minha peregrinação após a dança terminar e a galera dis-

164
PSICOLOGIA AVANÇADA

persar, sou abordada por uma mulher que oferece ler minha palma. Recuso
educadamente e continuo meu caminho, só que não percebi que ela ainda
segura minha mão e com um retranco me puxa de volta.
— Ai! — me viro para ela. É uma senhorinha baixinha que não parece
passar dos sessenta anos de idade. Me deu um puxão bem forte para seu
tamanho e idade.
— Minha filha… — sua voz é rouca e sua longa unha vermelha como suas
vestes, dança sobre a palma de minha mão. — Não quer saber o que o destino
lhe reserva?
— Obrigada minha senhora, mas hoje não. — tento puxar minha mão mas
ela a segura firmemente.
— Sua vida vai ser longa… vejo um belo rapaz interessado em você!
— Ora, não me diga! — não quero ser sarcástica mas a tiazinha está pedindo
por isso. Tenho a impressão de que toda quiromântica diz isso.
— Digo sim! E por dez reais te digo tudo sobre ele! Já posso vê-lo aqui na
sua linha do coração… bem aqui! — ela enfia a unha pontiaguda na minha
palma com tanta força que eu dou um grito, puxando minha mão de volta
para mim.
— Sua velha louca! — a pontada dói e eu reclamo, olhando para ela
indignada. — Pra quê fez isso?
Olhei para minha mão e a marca vermelha em minha palma. A velha maluca
não parece se importar com o que fez, apenas me olha sem expressão. Eu me
afasto. Ela parece dizer algo, mas não paro para ouvir o que é.
Sei que tem todo tipo de louco em cidade grande, mas nunca achei que uma
senhorinha com cara de uva passa seria um dos meus problemas.
Minha mão queima e muito. A vermelhidão da unhada em minha palma se
espalha um pouco. Quero gritar de raiva pelo susto. O pouco de bom humor
que eu tinha acabara de ir para o saco. Que droga! O destino está tirando a
semana para me sacanear.
Quer saber? Bauer está certo.
Hora de ir pra casa e não sair de lá nunca mais.

165
28

Seus Sinais

M
inhas primeiras mudas e sementes estão plantadas em fileira
num pequeno canteiro artificial que criei na varanda de Igor,
seguindo as instruções do livro que Taís me deu. Elas precisam
de água e sol, então espero que as chuvas de São Paulo regue-as quando eu
não puder, e que o sol empreste um pouco de seus raios em minha ausência.
Sorrio para minha futuras plantinhas, satisfeita com as horas de trabalho
que tive em comprar, organizar e plantar tudo.
Gosto de me manter ocupada, trabalhando por um objetivo.
De acordo com o livro, elas levarão algum tempo para crescer. Mas tudo
bem, pois reparei que existem muitas flores no mundo humano, espalhadas
pelo chão por toda parte.
Andando por um grande parque próximo a casa de Igor chamado Ibirapuera,
eu arranco e recolho todas as que vejo. Algumas pessoas me olham feio e não
entendo exatamente por quê.

166
SEUS SINAIS

Volto ao apartamento de Igor e retiro minhas roupas humanas, abrindo


minhas asas e voltando as minhas vestimentas adarianas, que consiste em um
simples vestido branco e prata.
Igor está mais corado que antes. Parece até dormir, o que tomo como um
bom sinal. Coloquei sobre seu criado-mudo a flor que Taís me deu. Num ato
de boa fé, espero que seja essa a primeira coisa que ele veja caso acorde se eu
não estiver aqui. Junto à planta, um bilhete meu brevemente explicando o
que aconteceu com ele e que eu voltarei em breve.
Me ajoelho a seu lado. Coloco uma mão sobre sua testa e outra em seu
peito. Uso minha magia para tentar curá-lo, manter as funções básicas de seu
corpo ativas. O que não parece muito, mas tenho fé. Também fecho meus
olhos, faço uma prece para Guendri e outra para o Deus que rege o mundo
humano, pedindo para que ele olhe Igor por mim.
Não sei se funciona, mas não custa nada tentar.
Com uma sacola bem cheia de flores, uso o espelho de Igor como meu
portal para Adaris.
Chegando em meu lar, checo os arredores para ver se está tudo bem. Não
tenho paredes de concreto ou teto de telha como no mundo humano. Moro
na parte de dentro no topo de uma árvore, localizada na parte centro-oeste de
Adaris. É uma das poucas áreas ainda habitáveis para seres da minha estatura,
apesar de que aqui também morre aos poucos.
Todas as árvores dessa parte de Adaris são grossas como prédios humanos,
embora secas. Ocas por dentro, servem como ótimas casas para os poucos de
nós que sobraram.
Sem perder tempo sigo para o lado Norte, o qual sei que necessita de
mais mantimentos. Normalmente não ando muito por essas bandas, mas
misturando voar e correr, chego nela em poucos momentos.
O céu aqui tem uma cor diferente. É neon, de cor púrpura. É uma terra
vasta e seca, com uma parte mais baixa e uma área alta como uma montanha.
Aros, pixies, lories e tarsos vivem aqui. Pixies são pequenas do tamanho de
vaga-lumes do mundo humano e brilhantes, vivem em bandos e se escodem
por boa parte do tempo em pedaços secos de madeira que caem das árvores.
Tarsos e lories gostam de viver nas profundas crateras e corredores

167
AS FILHAS DE GUENDRI

subterrâneos que cavam. Eles os cobrem com malhas de metal adariano


e pedaços de madeira. Existe toda uma cidade deles lá embaixo, da qual
raramente deixam outros de outras espécies entrarem.
Aros se transformam em qualquer coisa que possam emular então é difícil
saber onde vivem exatamente. São extremamente antissociais, preferindo
ficar aqui neste lado de Adaris com os outros seres de estatura menor que
gostam de se esconder.
O lado Norte é o mais silencioso. Passo pela maioria dos lugares que posso,
reconhecendo onde cada espécie poderia estar e ofereço à eles as flores. Ao
que sei, a grande maioria de Adaris come flores, ou as usa para suas magias.
E não comemos com a mesma frequência ou voracidade que humanos, então
não precisamos de muito para sobreviver, usando o resto para poções.
Grupos de pixies se unem tentando carregar em conjunto algumas flores
para si, agradecendo em um milhão de pequenas vozes que juntas parecem o
som de chuva. Tarsos e lories abrem suas cobertas crateras aceitando minha
oferta, pedindo para que eu jogue as flores de onde estou. Timidamente
agradecidos, voltam à se esconder.
Foi difícil encontrar um Aro, mas após um ver que eu tinha flores em mãos
ele volta a sua forma original, me assustando. São como os camaleões do
mundo humano, mas à base de magia. São seres bem desconfiados, e os
três que encontrei me encheram de perguntas sobre minhas intenções e a
procedência das flores. Após um breve interrogatório que julguei ser uma
interação normal com a espécie já que eu estou acostumada com eles assim,
cada um pegou algumas pétalas para si, agradecendo rapidamente e voltando
à copiar alguma coisa na paisagem a nossa volta.
De mãos vazias e com um grande sorriso no rosto por ajudar outros, lembro
que antes de voltar para casa preciso fazer o que Alexis me pediu.
A princípio achei uma ideia descabida e até mesmo perigosa. Mas entendo
o que Alexis quer fazer. O que ela precisa fazer.
Participar do Torneio das Valquírias para provar para si que pode ser quem
Guendri quer que ela seja.
Não a julgo. Pensei em tentar fazê-la desistir da ideia por quão perigoso
poderia ser, mas não posso tirar isso dela. Se ela sente que precisa fazer isso,

168
SEUS SINAIS

devo apoiá-la.
Ela quer se encontrar em nosso mundo, e devo ajudá-la nessa busca pessoal.
Minha parte do trabalho é lhe arranjar uma armadura da guarda real, uma
armadura de valquíria.
E eu sei exatamente onde encontrar uma.

— Bom trabalho, Cali.


Olhando a armadura prata com detalhes desenhados em branco, agradeço
a Cali por ter conseguido uma para mim. Honestamente, meu desdém por
elas quase não me deixa apreciar o conjunto metálico a minha frente.
Hora de confirmar mesmo se sou ou não a lenda que dizem que as Filhas
de Guendri são.
O capacete também metálico ocultará meu rosto parcialmente, deixando
apenas minhas narinas e boca para fora e reservando minha identidade. O
resto de meu corpo estará parcialmente coberto e isso ajudará e muito a me
misturar as Valquírias para que eu possa competir sem problemas.
Confesso que estou radiante.
Não sabia que o prospecto de lutar era tão excitante. Me pergunto se isso
faz parte de quem eu era, ou de quem eu sou agora.
— E Igor? — lembro-me de perguntar, imaginando que a loirinha esteve
no mundo humano há pouco tempo.
— Tinha mais cor em sua face hoje. — o sorriso de Cali tem uma pontinha
de esperança, que logo se apaga. — Mas ainda não acordou.
— Sei que ele vai melhorar, Cali. — tenho que acreditar nisso ou vou acabar
enlouquecendo. E acho que Cali também pensa como eu.

169
AS FILHAS DE GUENDRI

Pensamentos negativos são as piores pedras que podemos prender à nossos


tornozelos. A realidade do presente já é terrível o suficiente. Não há
necessidade de também adicionar fantasmas ao futuro que ainda nem chegou.
— Antes de te ajudar a vestir a amadura, quero que faça uma coisa…
Cali vai até uma das grandes pedras que despedacei e a reconstrói. Ao
terminar, sobe em cima dela, ficando uns dois metros acima do chão e cruza
as pernas em borboleta. Com sua magia acende pontos de luz, que como velas
iluminam uma área quadrada a nossa volta.
Uma das raras vezes em que posso ver tudo de onde vivo.
— O que está planejando, Cali?
— Muito bem. Alexandrai, Filha de Guendri! — Cali brada de forma altiva.
— Antes de te mandar para o campo de batalha, vou testar sua habilidade
aqui!
— Como assim?
Posso ver os olhos de Cali se tornarem negros. A meu lado surge uma
valquíria. Imóvel, armadura completa, de minha altura e que me encara. Eu
sei que não é real, mas… parece. É a primeira vez que vejo uma tão de perto.
— Mostre-me do que é capaz, alteza.
Com sua magia negra, Cali controla a falsa valquíria que começa a me atacar
assim que a baixinha diz aquilo. Desvio de seu golpe e de muitos outros. Ela
é agressiva em seus movimentos, certeira e extremamente hábil.
Meus primeiros momentos de luta não são os melhores. Uma coisa é ser
forte e esmurrar pedras inanimadas. Outra é responder á um ataque.
Ou a vários ataques em sequência.
Descobri que não sei ler meu oponente.
Mas aprenderei.
Agora.
Aos poucos vou me acostumando com o estilo dela de luta. A falsa Valquíria
me ataca sempre empunhando sua lança espada pela direita, e toda vez que
a ponta desta passa perto de minha pele, minha mente registra os poucos
segundos que eu tenho para desviar-me.
Em pouco tempo, eu me torno tão belicosa quanto a minha oponente. Mais
ataco que me defendo.

170
SEUS SINAIS

— Bravo! — Cali aplaude quando tenho minha oponente sob meu controle.
Sem demoras ela já gera duas outras mais que aparecem de lados opostos, e
já se põem a me atacar. O exercício se repete, um loop violento que requer
minha completa força e atenção.
Não só para a luta em si mas também sobre o que ela me ensina a respeito
de quem sou.
Minha sede por sangue é uma das coisas sobre mim das quais não sabia. E
quanto mais luto, mais descubro que essa me é uma sede impossível de saciar.

Vinte e duas valquírias depois e um certo cansaço, pergunto à Cali se isso é o


suficiente para ela, com um sorriso vitorioso em meus lábios e um mar de
corpos de mentiras espalhados pelo chão à minha volta.
— Suficiente, Alexis!? — a voz de Cali é de orgulho e admiração. — Você é
fenôme….
— Espera Cali… — a interrompo, sentindo uma coisa esquisita dentro de
mim de repente e tentando entender o que era.
Cali tenta ler minha expressão, nós duas em silêncio.
Sem fazer barulho, Cali evapora no ar os corpos falsos com sua magia. Em
segundos estamos sozinhas novamente. Ela desce da pedra e se aproxima de
mim.
— O quê foi, Alexis? — sussurra. — É Garou vindo pra cá?
— Não sei bem e você vai achar isso estranho mas… acho que tem algo de
errado com a Verena.
Não entendo porquê acho que estou recebendo sinais negativos de Verena.
Será que ter um portal para seu quarto aberto tão perto de mim cria essa
conexão entre nós?
Não sei. Só sei que preciso ir até ela agora mesmo.

171
AS FILHAS DE GUENDRI

Sem pensar duas vezes removo a armadura, vou até minhas roupas
escondidas e as visto. Antes de eu partir, Cali me pára e me oferece um
vidrinho com elixir.
— Leve um caso ela precise.
Coloco o vidrinho no bolso da calça e mergulho em meu lago indo até o
fundo dele. Cruzo a fina abertura entre Adaris e o mundo humano, saindo
exatamente no espelho do quarto de Verena…
… e me surpreendendo com o que vejo ao chegar.

172
29

Lingua No Pescoço

A
pós tomar o remédio receitado, não deu nem meia hora eu caí no
sono. E durmo até que bem se não fossem os pingos que caem sobre
minha face, me acordando.
— Uh? — balbucio, voltando a realidade.
Quando outro pingo cai, toco meu rosto. Seja lá o que pingou é mais espesso
que água. Não está chovendo, então por quê está pingando no meu quarto?
Será algum vazamento?
Maravilha. Meu senhorio vai adorar isso.
Sentando, ligo a luz do meu abajour e analiso o pingo enquanto outro me
cai no topo da cabeça. Olho para cima e o que vejo… me faz congelar.
— Hssssssssssssssss.
Uma criatura verde que parece uma mistura de jacaré com macaco está
pendurada em meu teto rosnando para mim, sua língua bifurcada para fora e
seus olhos extremamente coléricos.
Outro pingo cai agora em minha testa e percebo com certo nojo e medo

173
AS FILHAS DE GUENDRI

que é baba vindo de sua língua.


— Meu Deus! — é tudo o que consigo dizer antes que a língua do bicho me
alcança.
Num movimento causado por instinto me jogo no chão, desviando-me
dela.
O QUE RAIOS É ISSO?
Estou sonhando?
Alucinando, efeito colateral do remédio?
Não dá para pensar muito, o bicho pula em cima de mim e com seu peso
me prende no chão.
Nunca nenhum de meus sonhos se passam em meu quarto, são sempre em
algum lugar fantasioso, esquisito, desconhecido por mim. Ao acordar, eu
abro os olhos e a certeza de ver meu conhecido apartamento me faz sentir
segura. Mas agora? Minha sensação de segurança acabou. O pesadelo agora
toma vida na minha realidade e não há beliscão que me faça acordar.
O bicho tem olhos verdes como a sua pele, sua íris muda de forma conforme
aproxima seu rosto do meu.
— O que você fez com ele? — o bicho diz de repente. Me surpreendo com
o fato de que sabe falar e que o sabe fazer sem mexer a língua, que começa a
se enrolar em volta de meu pescoço. — Você o matou!! — sua voz ecoa em
minha mente.
— Eu não sei do que está falando! — com muita dificuldade terminei a frase,
sua língua dando mais uma volta ao redor de minha garganta, me asfixiando.
Me esforço para me livrar dele mas o bicho é bem mais forte e prende meus
braços no chão com suas escamosas mãos.
Não consigo respirar, nem me mover. Não sei de quem a criatura fala, mas
ela não parece interessada em conversar, apenas em me acusar. Está aqui
para me matar e está conseguindo.
Eu já não sinto minhas pernas e meus braços também começam a formigar,
seu peso estancando vitais artérias em meu corpo, impedindo sangue de
chegar propriamente a meus membros. A criatura rosna e baba em minha
face, seus olhos ávidos por vingança. Minha cabeça dói e logo perco a força e
a vontade de lutar pois é impossível mover-me.

174
LINGUA NO PESCOÇO

Eu nunca pensei muito sobre morrer. Não por ter a audácia de achar que
não aconteceria comigo, mas… mais para evitar mesmo. Sempre quis viver
e nunca pude. Mas viver, mesmo. Experimentar tudo a meu redor, brincar
com esse mundão a fora cheio de pessoas interessantes, conversas para ter,
músicas para ouvir, lugares para conhecer, histórias para dividir, livros para
ler…
E agora. Não só sou obrigada a pensar na morte, como já começo a encará-
la.
Oh céus… Eu não quero fechar meus olhos, mas eles já começam a se fechar
sozinhos. Que fim patético o meu! Até na hora de minha morte só sinto pena
de tudo o que não vivi.
Alguns chamariam isso de desistir. Motivação não é uma força sobrenatural
que vai te fazer viver só por que você quer. Nenhum dos meus esforços para
me livrar da besta verde funcionam.
Eu já não posso mais evitar…
Até que um barulho alto me força a reabrir os olhos.
A criatura já não está mais sobre mim. Eu não posso vê-la, mas aos poucos
eu recupero meu ar e com ele meus sentidos. Ainda no chão coloco a mão no
pescoço e tento sentar-me para ver o que aconteceu.
A criatura fora jogada contra a parede do outro lado do meu quarto e
agora se encontra no chão. Com a fraca luz de meu abajour posso ver meu
salvador… ou melhor, salvadora.
— Alexis! — tento exclamar mas minha voz quase não sai.
— O que faz aqui? Quem te mandou? — a fada interroga, pegando a criatura
pelo pescoço e a suspendendo contra a parede. Estou embasbacada com a
força dela! A criatura é grande e ela a segura com uma mão só sem dificuldades.
Fico impressionada com mais essa demonstração de força herculana da fada
que mais parece uma modelo da Victoria Secret’s do que uma lutadora de
UFC. — RESPONDE LOGO! Quem te mandou? — pergunta novamente por
entre os dentes, apertando mais a garganta do bicho enquanto eu quero saber
por que Alexis acha que alguém mandou aquilo vir aqui atrás de mim.
O pensamento me dá um nó na garganta que já dói.
— Ela matou Igor! — a criatura responde sem mover a boca. Ouço sua

175
AS FILHAS DE GUENDRI

resposta em minha cabeça e creio que Alexis ouvira também.


Eu matei Igor?
EU MATEI IGOR?
A acusação me põe em outro choque, a revelação caindo sobre mim como
um balde de água fria.
Eu matei alguém… não! Não pode ser!
— Quem te disse isso? — Alexis aperta mais seu pescoço.
— Eu a vi com você na casa de show! Depois que Igor a viu, ele morreu! —
Alexis arregala os olhos e enquanto minha cabeça gira com a informação.
— Tiffany? É você?! — Alexis pergunta, sua voz pingando decepção ao
reconhecer quem me ataca. — Foi Garou quem te mandou? — o bicho
não responde e o consequente soco que Alexis dá nele faz barulho de ossos
quebrando.
— Não! — ele responde apavorado. — Não foi ele, eu juro! Por favor, me
solte! Eu a deixo em paz, não voltarei a atacá-la eu prometo! Me perdoe,
Alexis! Eu quis saber onde o corpo de Igor está e só me contariam se eu viesse
aqui até a humana!
— Eu não acredito que fez isso! — Alexis chama Tiffany pelo que penso
ser seu nome quando fora da roupa de drag queen. — Você poderia ter vindo
até mim ou a Cali. — Alexis está tão raivosa, rosna mais que ele e não solta o
pescoço do bicho nem por um segundo. — Agora diz quem te mandou aqui!
— Nássera! — a criatura rosna em resposta depois de um tempo decidindo
se deveria dizer ou não. Aposto que o outro murro que recebeu de Alexis o
ajudou na decisão.
Quem é…
— Quem é Nássera? — Alexis faz em voz alta a pergunta que fiz em minha
mente mas o bicho está quase apagando. Ela o solta e ele cai pesadamente no
chão. Ele não responde e ela o chuta.
— Eu juro que não sei! Não pude vê-la! Por favor, acredite em mim!
Me pergunto se meus vizinhos podem ouvir esses barulhos ou se algum
deles já está a chamar a polícia.
— Alexis, meus vizinhos! — exclamo sem pensar duas vezes, suplicando
em meus olhos que ela não matasse esse bicho aqui, por quê do jeito que ela o

176
LINGUA NO PESCOÇO

trata agora, é isso que parece querer fazer. Mas creio que a ultima coisa que
ela quer é atrair atenção desnecessária, deixá-lo ir é mesmo a melhor solução
apesar de ser também a mais perigosa.
Alexis olha para mim e entende o recado.
— Da próxima vez, não terei misericórdia. — ela o chuta na barriga. —
Desapareça daqui e nunca mais chegue perto dessa humana, entendeu?!
A criatura concorda exasperada e sai o mais rápido possível pela minha
janela que só agora percebo que está aberta. Imagino que seja por ali que ele
entrou.
Ainda em choque, continuo no chão sem acreditar no que acabou de
acontecer.
— Você está bem? — Alexis me ajuda a levantar.
— Não sei. — digo tremendo ao finalmente aceitar que não estou em um
sonho. — O que é aquilo, Alexis?
— Um elfo. A mesma espécie de Igor e Garou, mas um tipo um pouco
diferente. Por isso achei que ele o mandou. Por um lado é bom que não tenha
sido Garou mesmo.
Sentamos na beirada da minha cama. Alexis estuda meu pescoço e os
vergões deixados pelo ataque.
Nada grave.
— E pelo outro lado? — eu não vejo nenhum lado bom em ter sido atacada
por uma das criaturas mais esquisitas e bizarras que já vi, mas pergunto
mesmo assim.
— Não sei o que é aquilo que ele disse. Ou quem. — ela respira fundo. —
Mas agora o que importa é que você está bem.
Estou tremendo violentamente, com uma baita dor de cabeça e uma dor
pior ainda na garganta, causada por um negócio que eu nem sabia que existia,
mas que esteve ativamente tentando me matar.
Eu já estava ótima, agora estou perfeita.
— Como você chegou aqui a tempo? — pergunto quando percebo o
momento deus ex machina.
— Eu não devia ter vindo ao mundo humano, mas senti que você estava
em perigo. — ela levanta depressa. — Reagir foi mais forte que eu. — parece

177
AS FILHAS DE GUENDRI

querer fugir da conversa. Ou de mim. — Preciso ir agora.


— Alexis! Espera… é que… fiquei preocupada com você! Você desapareceu
depois de sábado. — não é hora de conversar sobre isso mas antes que ela
desapareça novamente, quero saber por que fui acusada de matar Igor. — Por
favor, me diz que não machuquei seu amigo…
— Foram dias difíceis, Verena. — responde com a voz baixa. — Para todos
nós. E não, você não matou Igor, mas ele ainda está inconsciente. Cali tenta
acordá-lo, sem muito sucesso.
— Me perdoe, por favor. — me apresso em dizer. Estou com esse pedido
de desculpas entalado na garganta há algum tempo apesar de não achar que
fiz algo de errado. — Eu nem sei como foi que tudo aconteceu…
— Não se preocupe. — ela se reaproxima de mim. — Ele vai ficar bem.
O que aconteceu não foi sua culpa. — sorri uma linha reta. — Como a
tratei… não foi certo.
Suspiro aliviada. Por algum motivo isso importa para mim. Importa ela
saber que não quero seu mal nem de seus amigos e não tive culpa do que
aconteceu.
— O que aconteceu naquela noite, Alexis? Eu não me lembro de nada.
— Vocês ficaram em silêncio por muito tempo. Daí, ele começou a rabiscar
incoerentemente enquanto você parecia uma estátua. E ficaram assim por
longas horas. E de repente, Igor começou a convulsionar, a sangrar, gritar e
apagou. Você nem se moveu.
Então foi isso. Aliviada por finalmente confirmar que não fui diretamente
culpada pelo que aconteceu, ainda me sinto mal. Seja lá o que deu em Igor,
espero que se recupere.
— Novamente, peço perdão. Se houver qualquer coisa que eu possa fazer…
— Eu sei, Verena. Acredito em você. — Alexis sorri fracamente. — Por
enquanto não há muito a se fazer. Só esperar.
Sorrio de volta, aliviada e grata.
— Que informação tem no que Igor escreveu?
Ela o retira do bolso da calça e me entrega um pedaço molhado de papel e
só agora reparo que a fada está meio molhada.
Observo nas anotações de Igor círculos e mais círculos de vários tamanhos.

178
LINGUA NO PESCOÇO

Um desenho esquisito de uma torre, com o que parece ser um relógio em seu
topo. Algumas combinações de letras podem ser lidas, mas não entendidas.
No topo, pode-se ler “P A R A N A” mesmo com bastante espaço entre as letras.
No rodapé, no mesmo padrão “A B A”.
— Você sabe o que é “Parana”?
— O estado que faz fronteira sul com este. — respondo, pensando a respeito.
Será que isso é alguma pista que Igor encontrou em minha mente? Será que
é lá onde Mabel está? Por qual outro motivo Igor encontraria “Paraná” na
minha cabeça? Eu nunca fui lá. Pode ser por outras razões mas agora só faz
sentido uma delas: a possibilidade de que pode ser relacionado a Mabelai.
Os olhos de Alexis se acendem com o que digo.
— Isso é o mais próximo de uma pista que já tivemos. Se for mesmo um
lugar pode ser onde Mabelai está.
— E o que é isto? — pergunto apontando com meu dedo. — Este monte de
letras “T” aqui neste canto?
Alexis não diz nada, apenas dá de ombros.
Suspiro e lhe devolvo o papel sem mais saber o que decifrar ali. Percebo
que minha tremedeira para lentamente e o efeito do remédio para dormir
passara.
— Verena, não me leve a mal, mas você não parece nada bem.
— Pois é. — me levanto para fechar a janela. — Não ando dormindo
bem, sabe. Desde sábado. Nem comido. Nem muita coisa. Sei lá o que está
acontecendo comigo. E ainda pra ajudar, alguém tentou me matar hoje.
Ela pára por um momento e pega algo de seu outro bolso. Ela me entrega
uma jarrinha verde e eu já sei o que é.
Abro e bebo, num gole só.
O elixir lentamente conserta cada canto do meu corpo. Logo me sinto
impossivelmente bem e levemente frenética.
— Sente-se melhor? Já não está tão acabada.
— Obrigada? — sarcasticamente, agradeço a desnecessária sinceridade
da fada. — E quais sãos seus próximos planos? — quero saber se estes me
incluem. Não que eu me importe mas no fundo, no fundo, gostaria de saber
há quantas anda sua busca.

179
AS FILHAS DE GUENDRI

— Vou dizer a Cali o que significa Paraná e veremos o que faremos a partir
dai. É uma pista e mesmo não sendo tão direta, é o que temos. Assim que
Igor acordar, perguntaremos a ele o que mais ele viu.
— Quando acha que ele acordará?
— Não sabemos. Mas Cali está trabalhando nisso.
— E aquele troço verde? Tem certeza que não vai voltar? Aliás, quem é
Nássera e como sabe onde moro? — lembrar disso me causa uma leve euforia,
que provavelmente seria desespero caso eu não estivesse sob o efeito da poção
de Cali.
— Honestamente, nunca ouvi esse nome. Existem vários outros seres de
outros mundos no mundo humano Verena, e creio que são tão capazes de
espalhar fofocas e mentiras quanto os desse mundo aqui. Mas tenho certeza
que esse elfo não voltará a te perturbar.
— Certeza como?
— Porquê estarei por perto e ele sabe disso.
Ela sorri me tranquilizando e pára em frente ao grande espelho de minha
avó em meu quarto. Alexis se despede e entra nele, desaparecendo numas
ondas mágicas circulares que me impressionam por um segundo, já que eu
nunca vi um portal para outro mundo. Se aquela bebidinha maravilhosa não
fosse tão potente, eu provavelmente daria um mega chilique ao ver isso.
Mas mesmo com coisas fantásticas e impossíveis acontecendo a minha
volta, só o que quero fazer mesmo é me jogar na cama e finalmente dormir
uma boa noite de sono.

180
30

Defina “Sorte”

A
pós a energia inicial do elixir dissipar, dormi tão bem que acordei no
dia seguinte as duas da tarde com disposição para dar uma corrida.
Fones de ouvido com o volume no máximo e pé no asfalto, percorri
ao todo quatro quilômetros. Sei que parece pouco, mas para quem corre de
vez em nunca está ótimo.
Atravessando ruas, calçadas, pessoas, carros e bikes que perambulam pela
Barra Funda e que fazem dela uma pequena cidade em si dentro da cidade
de São Paulo, aproveito para ver mais do bairro em que vivo e acabo me
apaixonando ainda mais, me sentindo sortuda por morar aqui.
De volta a minha rua sem saída e vazia, tiro minha regata ensopada. Nunca
tinha usado esse sutiã esportivo antes e essa fora uma ótima estreia.
Mesmo me sentindo ótima ainda tenho em mente o fato de que alguém
tentou me matar ontem. Não é algo fácil de se processar, mas fico feliz que
Alexis me salvou. Eu não contava com isso. Achei que nunca mais ouviria
falar dela. Ou de Cali. Ou de ninguém na verdade, já que estava para morrer…

181
AS FILHAS DE GUENDRI

E ao invés de ficar brava com a invasão de privacidade sobrenatural no


espelho do meu quarto, decido que ter uma conexão com o lago de uma fada
extremamente forte não é uma má ideia.
Mas… quem é Nássera? E o que quer?
Como sabe o que aconteceu com Igor ou onde moro?
A pergunta sem resposta me dá um frio na espinha. Alexis acha que é só
uma fofoca boba e sem fundamento, que acabou dando a Tiffany alguém
para culpar e descontar sua raiva. Novamente, agradeço a Deus o fato de
meu apartamento estar conectado á Alexis, mas ao mesmo tempo… se algo
acontecer comigo quando eu estiver fora de lá… danou-se.
O sol da manhã paulista começa a bater ainda mais forte em meus ombros
enquanto eu tento recuperar o ar que perdi com a corrida e o pânico dos
pensamentos negativos. Procuro refúgio embaixo dos galhos da grande árvore
que toma parte da calçada, cujas raízes destruíram grande parte do piso rústico
que a cobre, no que considero um grande dedo do meio da natureza a nós
humanos.
— Vizinha! — Daniel me chama enquanto estaciona e desce de sua moto.
— Tudo bem? — digo enquanto me alongo antes de subir para meu
apartamento. Ele tenta me cumprimentar mas o evito, mostrando que estou
toda suada. Ele não liga e coloca seu braço tatuado ao redor de minha cintura
me apertando contra si ao deixar um beijo em minha bochecha, o que não
me faz reclamar nem um pouquinho, para ser honesta.
— Tudo certo, e você?
— Semana corrida. Chefe viajou e largou tudo na minha mão. — comento,
lembrando a semana doida que tive. — Me diz uma coisa Daniel, você ouviu
alguma coisa ontem no prédio? Alguns barulhos no meio da noite?
Jogo um verde para colher maduro. Ninguém veio reclamar do barulho ou
perguntar se estava tudo bem e como o apartamento de Daniel é logo abaixo
do meu, resolvo investigar.
— Não dormi aqui ontem, tô chegando agora da casa de uma amiga. — ah,
entendi por quê ele não ouviu nada. Dormiu na casa de uma “amiga”. — Por quê,
aconteceu alguma coisa?
— Não! Nada… — mudo de assunto. — E seu trabalho, como anda?

182
DEFINA “SORTE”

— Também trabalhei que nem um condenado essa semana. — ele recosta


no muro pintado com uma velha propaganda política atrás de nós. — Mas
por outro lado, eu e meu grupo terminamos a primeira fase daquele jogo que
falei pra você. Eu vou testar ele agora, tá afim de jogar?
— Que legal. Quero jogar sim mas preciso tomar um banho primeiro, tô
suando bicas.
Ele gargalha.
— Eu não ligo se você quiser vir toda molhadinha jogar comigo, vizinha. —
inclino a cabeça e contenho o riso da piada besta. — Mas beleza. Já sabe onde
eu moro, né? — ele entra e da escadaria grita. — Não demora!
Antes de subir para meu apartamento, entro no bar/padaria/mercearia
que fica no térreo do nosso pequeno e antigo prédio, compro uma caixa de
cervejas e alguns salgados para levar comigo a nossa tarde de video games.
Seria bom sentar e não me preocupar muito com nada. Nem com fadas,
nem chefes, nem com seres verdes de outros mundos que querem me matar
a mando de outros que nem conheço.
Hora de exercer minha especialidade: evitar problemas ao não pensar neles.
Tomo meu tempo para banhar-me, lavar o cabelo, me vestir. Shorts jeans,
camiseta branca e havaianas por que o calor hoje está de quebrar o cidadão
no meio. Desço as escadas e no andar de Daniel, presto atenção a porta de
vizinhos que não conheço. Nenhum movimento. Debato em minha mente se
devo ir lá e me apresentar, ou pedir desculpas pelo possível barulho de ontem,
mas prefiro deixar quieto.
Com cerveja e comida em mãos, bato á porta de Daniel. Ele abre e
agradece, me dando outro abraço apertado e desnecessário, até mesmo porque
acabamos de nos ver na entrada do prédio.
Abrimos uma garrafa cada um e passamos o restante da tarde de sábado a
jogar video games, beber e falar besteiras.
Tudo o que eu preciso no momento.

183
AS FILHAS DE GUENDRI

Meu celular toca e eu pauso o jogo.


— Alô?
Inesperadamente, recebo uma ligação de Alina me convidando para sair
hoje á noite, ir à um barzinho ver uma banda de seus amigos.
Fico feliz e surpresa que tenha ligado. Achei que nossa troca de números
fora completamente inútil. Aqueles números que você pega só por educação,
sabe?
Hesito. Quero ir. Mas não sei se aceito. Não conheço os amigos de Alina
mas pelo pouco que sei dela, devem ser boyzinhos riquinhos dos quais não sei
se seriam a galera que combinaria comigo para fazer um rolê, já que não sou
da high society. Não quero ser a Jenny Humphrey dessa Gossip Girl paulista.
Mas por outro lado, preciso de algo normal. Sem asas ou pele verde. Além de
quê, não quero ficar hoje á noite em casa esperando outro ataque. E quem
sabe Alina tem um amigo bonito e solteiro dando sopa…
— Claro! — aceito, perguntando o endereço do lugar e á que horas devo
encontra-la lá.
— Qual é a boa? — Daniel pergunta sentado a meu lado no sofá, assim que
desligo o celular.
— Uma colega chamou pra sair hoje a noite. Tá afim? — jogo ainda pausado,
beberico minha cerveja e reafirmo internamente que cerveja não é para o
meu paladar. Só vou terminar por que gastei meu dinheiro nessas garrafas.
Sou dessas.
— Opa, pra onde?
— O lugar se chama “Alto e Bom Som”. Conhece?
— Conheço, todo mundo conhece! É da hora lá. Vamos sim, demorou.
Para falar a verdade não estou afim de ir sozinha, chamaria Flávio mas ele
está enrolado com provas e treino, além de não ser muito fã de baladas; então
fico feliz que o vizinho pegador aceitou.
Antes de des-pausarmos o jogo, Daniel tira a camisa e eu engulo em seco.
Do nada. Minha Nossa Senhora, para quê fazer isso assim na minha frente, sem
prévio aviso? Logo comigo. Tento não secá-lo, mas Daniel não é nada feio. E
no estado em que estou na minha vida, isso é como pôr um copo de água na
frente de alguém perdido no deserto. Mas não estou afim de me enrolar com

184
DEFINA “SORTE”

alguém já enrolado. Aliás, isso não é nem um convite dele, apenas é um dia
quente e seu apartamento ferve.
O celular de Daniel toca e quebra minha admiração pelo dorso tatuado do
meu companheiro de jogo.
— Fala, Alemão!
Se este “alemão” for quem eu estou pensando… já sinto o frio na barriga
e paraliso. E tornando o frio na barriga em nevasca no corpo todo, o ouço
convidar o tal “Alemão” para sair conosco.
— Peraí. — ele tira o celular do ouvido. — Posso chamar o Lucas pra ir
também, né?
Você já chamou!
Contra minha vontade e tentando segurar a careta, concordo lentamente.
Ótimo.
A noite que eu teria para me distrair agora viraria a noite em que eu teria
que assistir o Casal 20, Lucas e Sara, se esfregarem um no outro bem na minha
frente.
Que sorte a minha, meu Deus.
Ele confirma o convite e Lucas confirma a presença.
— Coitado do Alemão. — Daniel diz após desligar. Coitada de mim! — Ele
tá precisando sair. Não dá pra ficar todo dia com cara de bunda por causa de
mulher.
— Como assim? — a estranha constatação chama minha atenção.
— Ele e a Sara tão dando um tempo.
O frio na minha barriga vira um calor intenso. Tomo minha breja para
disfarçar o sorriso que se abriu em meus lábios que se abriu mais rápido e
largo que buraco na BR-153.
Que notícia maravilhosa!
— Sério? Que triste. — bebo mais a minha cerveja para evitar sorrir da
desgraça alheia. — O que aconteceu?
— Sei lá, mas não é a primeira vez. Ela apareceu no escritório na quarta
feira, eles conversaram, ela saiu gritando, ele ficou irritado e eu nem precisei
perguntar. E também nem quero saber. Gosto dos dois, mas se meter em
briguinha de casal só dá confusão, Verena.

185
AS FILHAS DE GUENDRI

— Poxa, espero que se resolvam.


Na verdade, não. Mas não vou dizer isso em voz alta. Sara é legal, mas
QUERO QUE ELA SE DANE. E quero agarrar o Lucas. De preferência,
pelado. Então quanto mais longe ela ficar dele, mais perto eu fico de fazer
isso.
Ainda bem que Daniel está com a cara no jogo, pois não estou conseguindo
conter minha alegria em ouvir que Lucas está solteiro no momento.
Podia sair sambando por aí neste exato minuto. E olha que eu nem sei
sambar.
De repente, o prospecto de uma boa noite me faz esquecer a semana cagada
que eu tive. As miseráveis noites mal dormidas, a tentativa de assassinato, a
acusação de ter quase matado alguém, e todo tipo de coisa ruim que acontece
e se acumula na minha vida.
Lucas e eu, sozinhos. Sem Sara nenhuma para se enfiar no meio.
Se eu não pegar ele eu não me chamo Verena.
Mas do jeito que sou sortuda, já vou pensar em um novo nome.
Meu Deus. Eu quase morri ontem a noite e do nada é como se isso não
importasse. Literalmente. Tudo o que importa é que tenho uma chance com
Lucas.
Prioridades, sabe?

186
31

Flores

A
masso algumas flores que colhi aqui mesmo em Adaris para retirar
delas seus extratos. Após saber do ataque a Verena decidi estocar
o elixir.
Nem reparei que estou amassando com tanta força. O estresse e a pressão
dos acontecimentos recentes subiram a minha cabeça. Parece que quando
dou um passo a frente, o jogo muda e eu tenho que retornar dez outros passos.
Por quê atacaram Verena? Alexis disse que um tal de “Nássera” mandou.
O que é isso e de onde? E mais importante, como é que sabe do que
aconteceu com Igor? Quem mais sabe do que fazemos no mundo humano?
Isso é péssimo, uma vez que há possibilidade de Garou acabar descobrindo
também…
Fecho meus olhos, frustrada. Esse é um dos motivos de deixar todos os
voluntários no anonimato.
Falhei! Mais uma para minha lista… não consigo proteger nem as poucas

187
AS FILHAS DE GUENDRI

pessoas a minha volta, como é que vou salvar Adaris? Chuto a pequena
mesinha de madeira a minha frente num ataque de raiva, minhas flores e seu
extrato neon se espalham pelo chão.
— Não consigo fazer nada direito! — grito comigo mesma, arfando e
sentindo meu sangue esquentar, queimar sob minha pele. Estou fora de mim
e em meus ouvidos só retumbam ecos de minha revolta com minha própria
incompetência.
Eu nunca me senti assim.
Olho para meus punhos. Estão cerrados, minhas unhas fincando minhas
palmas. Minhas veias pulsam visivelmente sob minha pele. Negras, formam
o mesmo intrínseco desenho de antes mas agora maior, se espalhando pelos
meus dois braços.
Isso… não é normal… essa… não sou eu.
Tento me acalmar. De súbito me lembro das palavras da Sombra: “Ou eu
domino a magia ou ela me domina.” É isso o que está acontecendo? A magia está
me mudando, me deixando mais insegura, mais irritada? Não que a situação
não ajude a me frustrar, mas nunca perdi minha calma assim. Me sento ao
chão pois preciso me controlar.
Essa magia deve exponenciar o que sinto de negativo, se aproveitando
desses sentimentos ruins e os reforçando, usando-os para crescer dentro de
mim. Quanto mais odiosa eu estiver, mais controle de mim essa magia terá.
E quanto mais controle de mim ela tiver, mais revoltada eu vou ficar.
Nunca tive que me “controlar”. Eu não sei nem por onde começar, mas
preciso me acalmar. Não tenho medo de me perder, mas não vou me perder
sem antes conseguir o que quero.
Não antes de encontrar Mabelai.

Há quem diga que caridade e benevolência fazem bem para quem as pratica.

188
FLORES

É o que tento exercer agora com mais flores do mundo humano, trazidas
de minha ultima rápida viagem ao Parque do Ibirapuera, de onde enchi duas
sacolas. Mas só de pétalas dessa vez, que são as partes mais comestíveis.
Decidi voar até a parte Sul de Adaris, onde o céu é laranja e grande colinas
escondem pequenos vales. Aqui é bem maior e mais populoso que o Norte,
provavelmente por que é mais claro e mais fértil no quesito magia. Vendo
daqui de cima concluo que certamente não conseguirei cobrir a área toda em
apenas uma viagem. Ainda assim tenho que tentar o máximo que posso.
Distribuí todas as flores de uma sacola entre Fus, Ndales e Héberas. Eles
sempre me recebem muito bem em seu pequeno condado. Me oferecem chás
e os mais velhos me convidam para sentar e conversar. Falamos sobre a seca
de Adaris e da dificuldade de cultivar a magia que estão em suas famílias a
gerações. Infelizmente não posso dizer que estou tentando mudar isso, não
posso arriscar ser descoberta. Então apenas os ouço, tento fazê-los entender
que apesar de nós fadas sermos uma grande maioria de Adaris (ou melhor
dizendo, um dia fomos), nos importamos com todas as espécies e estamos
disponíveis com o que pudermos ajudar.
Preciso continuar minha jornada, e mesmo com o delicioso tempo que
passei com eles, não posso ficar mais.
Me despeço e sigo alguns metros adiante, passando por baixo de três
Barlosas. Barlosas são como pássaros do mundo humano mas com longas,
longuíssimas pernas. Eles podem mudar as cores de sua penugem e eu acho
lindo quando vejo o momento raro. Mas precisam de magia para isso e sem
ela, suas penas são pretas. Bicam o topo de uma colina provavelmente a
procura de alimento.
É patético oferecer pequeníssimas pétalas para seres tão gigantes, mas não
quero que se sintam excluídos.
Eles não me veem, então bato minhas asas até a frente da face de um deles.
Seus gigantes olhos se ajustam para me ver quando chego tão próxima de seu
rosto. Agora que tenho sua atenção, tomo a liberdade de sentar em seu bico.
Eles não são muito de conversa, mas aceitaram minha pequena oferta de bom
grado. Depositei duas mãos inteiras de pétalas em suas bocas, voando entre
uma e outra. Eu prometi voltar com mais assim que pudesse. Assim que os

189
AS FILHAS DE GUENDRI

deixo, voltam a bicar as colinas.


Com apenas o conteúdo da metade de uma sacola sobrando, consigo chegar
no grande e quase vazio montanhoso território de Tátiras.
Tátiras são guardiãs de tesouros contidos nos Alpes de Adaris. Cristais
preciosos de valor imensurável a todos os mundos, canções de criação forjadas
em solo antigo, ritos mágicos e raros. Fêmeas em sua maioria, usam seus
cabelos longos como escudos e muros, pois são feitos de um raríssimo e
fortíssimo material que amolece ou endurece a seu comando. Os cabelos de
uma tátira são tão fortes que estes ao cobrir algo, torna impossível este algo
de ser visto ou alcançado.
Existiam muito mais tátiras em Adaris, pois também haviam muito mais
tesouros e muito mais de todos nós. Muitas delas se mudaram para outros
mundos como vários outros.
Converso com as poucas que ficaram e ofereço as flores. Elas desarmam
seus cabelos assim que informo o que quero por essas bandas, me deixando
passar.
Ao conversar com duas delas, sinto alguém cutucar minha perna.
— Você é uma fada? — diz uma pequenina tátira que já tem os cabelos mais
longos que o próprio corpo.
Fico feliz por ver um jovem ser. Dessas minhas idas e vindas não encontrei
ninguém jovem, nenhum sinal de nova geração das espécies que visitei.
— Sim! Sou uma fada. — mostro-lhe minhas asas, batendo-as duas vezes.
— Nossa! Olha mamãe, que lindas! — a pequena sorri até com o olhar e eu
me abaixo até ela, deixando-a tocar em minhas asas. — Eu nunca vi uma fada
antes. — agora ela passa a pequena mãozinha em meu cabelo. — Vocês tem o
cabelo curto!
Eu rio.
Meu cabelo na verdade vai até minha cintura, ele só é curto em comparação
ao dela e os de sua espécie.
— Vou deixar meu cabelo crescer pra ficar forte que nem o seu. — brinco.
— Isso! Assim você pode se defender e guardar tesouros nele! Eu também
vou tentar crescer asas quando eu crescer. — suas bochechas ficam ainda
mais rosadas enquanto ela me conta seus planos. Não creio que ela crescerá

190
FLORES

asas, mas não vou dar essa notícia a ela.


Na verdade, a encorajo.
— Isso mesmo. Se você quer asas não desista, não importa o que te digam.
Dou á mãe dela o restante de minhas flores e sigo em frente após receber
um convite para voltar em breve. O pequeno grupo acena em despedida e eu
aceno de volta depois de prometer voltar assim que puder.
Fico feliz que ninguém tenha perguntado de onde as flores vieram. Ou,
até imagino que já saibam. Mas de qualquer forma, não tenho medo que me
entreguem para Garou.
Não posso negar que o encontro com a pequena tátira me inspirou a
continuar meu plano de encontrar Mabel. É pelo futuro desses seres que me
sacrifico.
Mas agora preciso fazer outra viagem. Com asco, sigo até o ultimo lugar
do dia.
O castelo que Garou apossou.
O Torneio das Valquírias está para começar e preciso ver Alexis de perto.

Quando chego na edificação onde Garou recebe a todos, procuro por Alexis
com meu olhar. Sem encontrá-la, imagino que ela já está provavelmente na
concentração do subsolo com todas as outras Valquírias.
O salão no qual me encontro contém uma decoração nova, com algumas
plantas carnívoras nativas de Adaris e outros displays de imagens e objetos por
mim desconhecidos. Parece mais sofisticado que de costume, definitivamente
contrasta com o resto de nosso mundo. Comes e bebes em um canto,
convidados diversos de dentro e de fora perambulam e socializam, convidados
estes que entram e saem pelo mesmo único portal que Garou permite abrir
apenas para esse evento, ambos evento e portal monitorados pesadamente
por ele e sua guarda.

191
AS FILHAS DE GUENDRI

Mas um grupo com ares de aristocracia se destaca e chama minha atenção.


Riem entre si em voz alta. Não são de Adaris. Ao menos nunca os vi aqui ou
ouvi falar deles.
São seres pálidos com vestes brancas e detalhes prateados. No centro do
grupo, um homem quase albino tem todas as atenções. É o único que veste
preto, tem um rosto delicado, elegante. Uma beleza gélida, olhos azuis vivos
e cabelos brancos penteados para trás. Porte autoritário acompanhado por
trejeitos e maneirismos que te convidam a admirá-lo. Parece jovem, mas se
conduz com o perigo e a confiança de quem já andou por essa terra e outras
por muitos e muitos anos.
Quem é ele? Não consigo parar de observá-lo. Aliás, a maioria aqui presente
parece hipnotizada por sua presença, e eu me pergunto se isso lhe é algo
natural ou mágico. Impressionada com ele, me aproximo de sua caravana
que o cerca, composta por pessoas tão pálidas quanto ele.
Me pego querendo ouvi-lo, conhecê-lo. Aos poucos, chego perto dele.
Só parei por que o vi entrar….
Garou.
Bate duas palmas lentas firmemente que ecoam pelo salão. Todos param o
que fazem e lhe pagam os devidos respeitos, curvando nossas cabeças. Não sei
por que, mas imagino que seja resquícios do respeito que Adaris naturalmente
recebe, já que é um grande mundo, apesar da recente delinquência.
Garou fez o impossível: roubou toda a atenção dada ao belo indivíduo no
meio do salão. Uma presença marcante por si só, Garou satura qualquer lugar
onde esteja com seu imponente físico.
Observo seu corpo, lembrando que já faz algum tempo que não o vejo.
Ele está severamente maior desde a última vez que o encontrei. Mas como?
Músculos cobertos por um fino robe preto e dourado. Seus longos cabelos
negros contrastando com seus olhos cinza claro. Ele caminha pelo salão,
um anfitrião recebendo seus convidados. Seu peitoral brilha em dourado e
vermelho, como lava. Algo novo proveniente dessa possível mudança, nunca
reparei isso nele antes.
Galanteador. Conquista a seus convidados, belo e maldito. Quando ele
pára perto de meu objeto de curiosidade, tento esconder-me atrás de um pilar,

192
FLORES

agradecendo por minha presença ser insignificante pois não quero chamar a
atenção de nenhum dos dois.
— Herdeiro de Guendri! — o aristocrata diz. — É uma honra estar aqui.
— É nossa honra recebê-lo, Lorde Vór.
Ao menos agora sei seu nome.
— É meu imenso prazer ver as criações de Guendri em ação. Tudo o que
Guendri cria ecoa fama por todos os povos que conheço e ser um dos poucos
a presenciar essa fama de perto é um convite irrecusável.
Que maravilha! Garou transformando Adaris em circo para entreter outros
mundos. É isso que somos para ele: bonequinhas para seu deleite. Não me
importa se as Valquírias aceitam isso. Essa certamente não é a função delas.
O pensamento faz as veias negras de meu braço se estenderem ainda mais.
As sinto queimar em mim uma nova extensão e eu tento de tudo para controlar
a raiva e não deixá-la dominar-me. Por Guendri, a última coisa que preciso
aqui é uma exibição física de magia não permitida em Adaris, e bem na frente
de Garou.
Ele, o Lorde e sua caravana seguem para a pequena arena assim que ouvimos
o anúncio do início do torneio.
Me viro de costas a todos e respiro aliviada quando penso que não fui
notada.
Ledo engano.
— Caliandrei.
Garou me surpreende, partindo-me ao meio entre a vontade de mandá-lo
para bem longe no universo e a necessidade de ser cordial.
— Regente. — abaixo a cabeça em sua presença. Decoro, minha odiosa
aliada.
— Vejo que finalmente resolveu aceitar meu convite. — ele comenta. Garou
convida a todos que o servem para apreciar o torneio, é daqueles que crê em
manter amigos perto, e inimigos mais perto ainda. Obviamente, nunca tive
curiosidade de vir.
— Obrigada por me receber, Regente. — forço minha voz a sair e escondo
meus braços e suas marcas. — É muito generoso de sua parte.
Garou se aproxima de mim e eu sinto o calor de seu corpo emanando de

193
AS FILHAS DE GUENDRI

seu peitoral em radiantes ondas. Eu já me sinto pequena perto de Flávio, mas


de frente a Garou eu me sinto menor ainda. Se eu não soubesse quem ele é,
provavelmente acreditaria mesmo que é uma divindade.
Por algum motivo, sinto o perigo sucintamente circular no ar. Deve ser
minha paranoia. Se houvesse a possibilidade de Garou saber o que eu ando
fazendo, eu não estaria aqui agora…
— É sempre bem-vinda em minha presença Caliandrei, espero que saiba
disso. — ofereço um humilde sorriso como resposta. Ele me ronda e fico
mais nervosa ainda. — Não te vejo tanto aqui com outrora ficava. Há algum
motivo específico para isso?
Engulo em seco. Caliandrei, está tudo sob controle.
— Estou estudando novas poções, Regente. — a mentira sai coberta de
doçura e inocência. — Isso requer prática, e prática requer tempo.
Ele assente, parecendo aceitar minha resposta.
— É de fato a melhor que temos em Adaris neste ramo. — Garou para atrás
de mim e sinto seu calor quase me queimar. — Tão jovem… e tão sagaz. —
coloca a mão em meu ombro e tento não sobressaltar sob seu toque pesado.
Ergo minha cabeça.
— Agradeço aos elogios, Regente.
Garou remove a mão de meu ombro e se coloca a meu lado.
— Como oferta a única presente de sua espécie, gostaria de convidá-la a
sentar-se a meu lado essa noite. — um ato de politicagem e das mais baratas.
O herdeiro de Guendri precisa ser visto por visitantes ao lado dos habitantes
locais para parecer legítimo.
“Única presente de minha espécie”. Que audacioso. Por sua causa sou quase a
última de minha espécie.
— Seria uma honra sentar-me a seu lado. — meus lábios formigam de ódio
ao dizer isso.
Ao me ouvir aceitar seu convite, Garou ergue sua mão cordialmente para
mim.
Imaginando sua cabeça numa estaca e surpresa pela violência do meu
próprio pensamento, respiro fundo. Colocando minha mão dentro da enorme
palma dele, o sigo em silêncio pelo salão até a arena onde as lutas já estão

194
FLORES

para começar.

195
32

Contra a Parede

C
hapinha no cabelo, preso na parte de cima e solto na de baixo,
ganhando alguns centímetros a mais quando liso. De roupa, escolhi
um short shorts vermelho-escuro de cintura alta, camisa justa de
seda branca por dentro do shorts, e sapatilhas pretas. É a mesma resgatada
por Lucas semana passada. Apenas um irônico trocadilho a lá Cinderela.
Sinceramente, estou uma boneca. Prontissima para sair, linda, leve, solta
e… não, peraí, leve, linda, livre… louca, leve, livre… Como é que é mesmo?
O uber deixa Daniel e eu bem á porta do Alto e Bom Som, que já tem uma
enorme fila á sua frente, um pequeno fuzuê que momentaneamente me faz
desejar ter vindo mais cedo.
Logo avisto Alina. Mais alta impossível em seu super sapato de salto
combinado com sua estatura natural, num vestido de glitter dourado. Está
estonteante. Ela parece bem feliz ao me ver e após nos cumprimentarmos,
ela nos coloca á sua frente na fila V.I.P o que encurta e muito o tempo que
passamos na entrada. Ela nos apresenta a seus dois amigos. Eu a apresento á

196
CONTRA A PAREDE

Daniel.
Para minha sorte, Alina e Daniel parecem clicar de imediato.
Quer que eu seja sincera? Minha preocupação seria Lucas querer trocar
uma loira por uma ruiva. Daniel estando aqui, já o ofereço para a fera ferida.
Ferida, aliás, por Bauer. Se ela gosta de morenos com tendências a darem dor
de cabeça na mulherada, ninguém melhor que Daniel.
Para o que não presta, sou uma estrategista.
Por um segundo pensei que talvez Bauer se importasse se Alina ficasse com
algum amigo meu, mas daí lembrei que é de Bauer que estou falando e não,
Bauer não se importa com ela nem um pouquinho.
Estou quase uma vilã de novela com tudo calculado. Enfim, não sou idiota.
Já marquei as cartas desse jogo e não vou perder. Ainda bem que Lucas só
pode aparecer mais tarde, até lá com sorte Alina e Daniel estarão se pegando.
Entramos.
A casa de show é de médio porte. Mesas, um palco na parte de baixo e uma
baita pista de dança no andar de cima. A vibe do lugar te deixa empolgado
para a noite por vir com uma decoração contemporânea e divertida, um luxo
em néon rosa e verde.
Assim que entramos, Alina nos apresenta a mais dois amigos que entraram
antes para preparar seus instrumentos para começarem a tocar. A vocalista
da banda é uma menina baixinha e muito simpática, e após uma conversa
rápida, lhes desejei um bom show. Deixamos os integrantes da banda para
trás e nos dirigimos ao bar, tentando conversar mesmo com a música alta
atrapalhando.
Embora estou jogando uma boa conversa fora com Alina, seus amigos e
Daniel, não consigo parar de olhar para a porta de entrada esperando ver
Lucas chegar.
E momentos passam e nada de vizinho gostoso.
Não consigo me divertir completamente.
Sabia que ficaria encanada com isso.
A banda, chamada Ramona Rox, começa a tocar e a noite vai rolando com
o lugar bombando de gente. Estou impressionada com a voz da vocalista e
até aprecio uma das canções, com um título que aliás parece rir da minha

197
AS FILHAS DE GUENDRI

cara, chama-se “Não vou te deixar dormir” e fala do vai-não-vai de um crush


complicado.
Huh.
.
Já estou no terceiro drink. Todos estão curtindo a banda e quando Alina e
Daniel começam a se pegar, eu solto um “Aleluia” pois agora sim posso sair de
perto sem que me percebam. E mesmo um bom rockzinho sendo meu estilo
favorito eu estou inquieta, então decido ver como está o eletrônico do andar
de cima.
A pista está lo-ta-da e as luzes dos globos pendurados no teto dão ao lugar
aquele estilo anos 70 modernizado. Para tentar desencanar da frustração,
fecho meus olhos e começo a dançar sozinha.
Já estou na inferno. Hora de abraçar o capeta.
Não conheço essas músicas mas danço assim mesmo. Pessoas vem e vão,
esbarrando em mim quando passam. Alguns semelhantes e consecutivos
tunts-tunts-tunts musicais depois, alguém me cutuca e eu abro os olhos.
Um lindo sorriso acompanhado pelo mais belo par de olhos está bem a
minha frente. Pensei que fosse alucinação, mas não é.
— Lucas! — exclamo, provavelmente contente demais. — Finalmente!
Tenho que conter meu entusiasmo, mas como já estou mais ou menos
grogue da bebida, vai ser difícil.
Ele quer conversar, eu quero dançar. Ele entende a mensagem e se junta a
mim. Lucas é tão desengonçado quanto eu, mas a pista está tão cheia que não
importa muito pois mal dá para ver qualquer coisa nessa escuridão.
Nos divertimos assim mesmo.
Uma, duas, três músicas depois, quero outro drinque e vou até o bar. Ele
me segue e oferece pagar para mim, pedindo um para si.
— Que bom que veio! — sorrio bem arreganhada. — Daniel está lá embaixo.
— aviso, esperando que responda que não veio para ver Daniel.
— Eu já o vi. Falei com ele e ele disse que você estava aqui em cima. —
então ele queria mesmo me ver… num joguinho de xadrez na minha cabeça,
aproximo minha torre do bispo. Brindamos assim que pegamos nossos
drinques. — Eu não ia vir, sabe. Ainda bem que não desisti. Esse lugar

198
CONTRA A PAREDE

tá demais! — ele olha a nossa volta. — E você tá linda! — me fita de cima


abaixo e eu só falto derreter.
— Ah, pára. — “Não, não para, continua!” É o que eu queria dizer na verdade.
— Por que quase desistiu?
— Saí com a minha mãe hoje e tô cansado pra caramba. Fui ontem visitá-la
em Santo André e hoje de manhã fomos de lá para Paranapiacaba. Ela queria
revisitar a cidade depois das últimas renovações que fizeram por lá. É meio
longe por isso cheguei tarde aqui.
— Paranapioquê? — nome exótico. — Onde fica?
— Umas três horas daqui. E com trânsito, cinco dias.
Eu rio muito de sua piadinha.
Sem dar a mínima para Paralasialaba, mudo de assunto.
— Quer descer? Ir com Daniel e a Alina?
Agora quem ri é ele.
— Tá querendo se livrar de mim, Vê? — eu? Jamais! Mesmo com você me
chamando de “Vê”. — Não, eles parecem bem ocupados. A gente pode ficar
aqui se você quiser. Te sigo aonde você for.
Quando ele diz isso eu quase caio do meu banquinho.
Minha torre engole o bispo.
Dois shots de tequila depois, voltamos para a pista que está uma explosão
de cores e ritmos. Claro que a bebida faz tudo ficar melhor. Lucas e eu, mais
chapados que qualquer coisa, dançamos no mesmo ritmo em bêbados abraços
e agarrações.
Estamos nos divertindo, olho no olho, risadas sem motivo. Paramos para
beber mais, e conversar mais. Depois voltamos a dançar, descoordenados e
tarados um pelo outro.
Meu bispo se aproxima da dama…
A noite passa muito rápido quando você está se divertindo, quando não se
está prestando atenção. Já é bem tarde e eu nem vi a hora passar. Essa noite
aqui com Lucas me ajuda a esquecer tudo o que me acontecera na última
semana. Neste momento, eu e tudo em minha vida é normal.
Normal e humano.
Quase quatro horas da manhã, uma parte da galera já vazou. Realmente

199
AS FILHAS DE GUENDRI

perdemos noção de tudo. Menos da partilhada vontade de ir ao banheiro


esvaziar o tanque.
A fila do banheiro de cima é longa e eu não estou afim de esperar. Lá
embaixo, a mesma coisa. Deve ter algum outro banheiro numa balada desse
tamanho e eu me ponho a procurar. Indo mais e mais para o fundo da casa
no andar térreo, vejo ao lado esquerdo um corredor mais ou menos escuro,
onde mais cedo um segurança parecia estar de guarda mas que agora está
vazio. Seriam banheiros para quem trabalha aqui?
Hora de descobrir.
Num canto do corredor quase escuro demais para ver o que está escrito
nas portas, Lucas e eu abrimos a primeira que vemos. Dentro, apenas caixas
e mais caixas de bebidas entre outras coisas. Fechamos essa e continuamos
nossa procura. Abrimos a porta no outro lado e… a mesma coisa.
— Sem sucesso. — digo a Lucas que está pertinho de mim e tão bêbado
quanto eu.
Paramos por um momento. O corredor vazio nem parece fazer parte do
resto da casa. Ali a única coisa que nos alcança é a música em baixo volume.
Estamos literalmente sozinhos num corredor remoto dessa casa de show. Olho
para Lucas com a ideia de aproveitar o momento e beijá-lo transparecendo
em meu olhar.
Minha rainha se prepara para devorar o rei. (Ao invés de defendê-lo. É, eu
não sou nenhuma grã-mestre de xadrez.)
Lucas devolve o mesmo olhar. Envolvidos pela semiobscuridade, ali naquele
lugar, ele se aproxima de mim e coloca uma mão em meu rosto, pousando
seus lábios sobre os meus.
Xeque-mate.
Lucas me beija. A princípio foi confuso, o gosto de nossos drinques se
misturando a nossa saliva. Mas foi melhorando, esquentando, e começo a
me perder naquele momento, me deixando levar, inspirada por sua boca que
sempre me provocou e foi por um tempo tudo o que eu podia pensar e que
agora me pertence, e a cada segundo exige mais e mais da minha.
Finalizamos o que começamos na pista de dança. Quando as coisas
ficam um pouco mais… intensas, Lucas me ergue contra a parede com mãos

200
CONTRA A PAREDE

firmes em meus quadris, meus braços ao redor de seu pescoço tentando me


equilibrar.
Faz muito tempo que eu não beijo alguém. Mas é como andar de bicicleta,
uma arte que nunca se esquece. Sei que estou bêbada mas faço de tudo o
que posso para me concentrar no momento e lembrar cada segundo, cada
mordiscada gostosa que Lucas me dá nos lábios, cada viagem que minha
língua faz dentro de sua boca.
Nada nesse momento importa. Pertencemos a esse beijo, com gosto de
vodca e tequila. Eu o beijo de volta com tudo o que tenho, prendendo sua
língua contra a minha, mantendo seu corpo contra o meu.
Nesse momento, Lucas é meu. Eu o quis, eu o consegui. O prazer de
conquista que isso me dá não tem tamanho. Dane-se que estamos em público,
não acho mesmo que ninguém possa nos ver e por mim, aqui não fica só no
beijo…
Eu quero Lucas e posso sentir contra meus quadris que ele me quer também.
Nada vai me parar, e já coloco minha mão na barra de sua calça assim que o
sinto colocar sua mão pelo meu shorts.
O momento é esse e ninguém pode nos interromper.
Ninguém.
Exceto…
— Morales.

???

Não.

Não.
Eu devo estar alucinando. Talvez ouvindo coisas, vozes do além.
Vozes do além pigarreiam? Pois é o que ouço na semi escuridão.
— Mo. Ra. Les.
Uma voz grave que a sinto vibrar em mim enuncia cada sílaba de meu
sobrenome.
Que voz é essa? Você me pergunta.

201
AS FILHAS DE GUENDRI

A única voz nesse infinito universo que me chama assim.

202
33

Veni, Vidi, Vici

S
ozinha, sentada num mal iluminado cubículo com paredes feitas de
um material que nunca vi, me escoro contra uma delas. Lança-espada
e escudo no chão a meu lado, faço meu melhor para controlar minha
respiração.
Estou pronta para a batalha.
Estou pronta para qualquer coisa.
Acima de mim, passos vem e vão. Alguns pesados, alguns arrastados. Mal de
estar no subsolo de uma arena quase cheia. Ouço vozes ao longe e tento meu
melhor para mantê-las distantes para me concentrar. Antes que eu reclame da
demora para iniciarmos, um estranho silêncio toma conta do ar, logo sendo
substituído por uma voz. A mesma voz que ouço gemer e rosnar indecências
em meus ouvidos.
— Sejam bem vindos a minha casa. Bem vindos a Adaris. — anuncia Garou,
ecoando em todos os cantos da redoma. — É com prazer que os recebo para

203
AS FILHAS DE GUENDRI

prestigiar a pequena demonstração de força e coragem de minhas guerreiras.


As famosas valquírias da Guarda Regencial de Adaris.
“Minhas guerreiras.” Canalha. O povo bate palmas e eu reviro os olhos.
Ás vezes me pergunto o quanto de esforço Garou fez ou faz para apagar
completamente a existência das Filhas de Guendri da história de Adaris.
Me pergunto se fora ele mesmo quem nos derrotou, ele e esse exército de
traidoras. Sem querer, também me pergunto se seus convidados sabem de
nossa existência, as verdadeiras herdeiras de Guendri.
Mas calo todo esse questionário em minha mente. Essa não é a hora de
filosofar.
— Raramente divido o prazer de assistir minhas amazonas. Mas desta vez
convidei vocês -a dedo- para prestigiar esse singular evento comigo. Espero
que o apreciem, assim como eu. — mais uma onda de aplausos. — Sem mais
delongas caros amigos, que comece o Torneio!
Aplausos ecoam de cima abaixo, um som que se assemelha a uma tempestade
no mundo humano. De onde estou posso ver aonde a batalha ocorrerá.
Creio que a minha “cela”, por falta de um nome melhor, é uma entre dezenas
de outras dispostas ao redor da arena. Por trás das grades metálicas que
me separam do palco do torneio, observo a primeira dupla de Valquírias
adentrarem assim que as grades de suas celas se abrem, chamando-as para o
combate.
A temperatura sobe, mas minha pele é firme e fria. Estudo minhas
oponentes, assistindo-as gladiar á minha frente. A batalha não dura o quanto
deveria durar. Uma das Valquírias acaba com a cara no chão de areia cristalina
com a pesada botina metálica da outra sobre suas costas. A arena responde
com palmas que param assim que a próxima guerreira já entra correndo
quando a grade a sua frente se abre.
A escolha de quem é a próxima entrar parece ser aleatória, o que só me põe
mais tensão.
Não haverá avisos de quando minha hora chegar.
A participante que vencer deve continuar a luta. Já entendo como funciona,
um tipo de batalha onde quem durar mais, ganha. Um verdadeiro teste de
força e estamina.

204
VENI, VIDI, VICI

Valquírias lutam com pressa. Elas mal esperam para atacar, posição
defensiva lhes parece ser uma fraqueza. Ouço os sons que suas lança-espadas
fazem ao acertar o escudo ou a arma alheia se misturar aos gritos e rosnados
de esforços das mesmas. É intenso e voraz.
Em compensação, o silêncio dos olhos famintos pela violência demonstrada
é ativo, só quebrado quando mais uma Valquíria cai e outra entra em seu
lugar.
Algumas delas agem como animais enjaulados, batem suas espadas contra
a grade e urram num agressivo sinal de adrenalina acumulada em quem mal
pode esperar sua vez.
Eu não faço nada. Não me movo nem reajo, não deixo nenhum pensamento
que não seja o de batalha entrar em minha mente. Não preciso de nada me
atrapalhando neste momento.
Observo que as Valquírias caídas não estão mortas. Feridas sim, mas não
mortas. Já imaginava que elas não matariam umas as outras. Não, isso seria
extremamente imbecil. Que pena, pois eu realmente queria enfiar a espada no
coração de uma, ou algumas essa noite. O pensamento em si me faz sorrir
de soslaio. Tudo bem, me contento com a vitória e alguns pingos de sangue para
provar que sou melhor que vocês.
Num contra-ataque impressionante, a recém chegada Valquíria vence a
outra que já tinha ganhado das cinco anteriores. Alguns aplaudem, alguns
vaiam.
A nova Valquíria agora urra para a plateia, provavelmente para quem a
vaiou. Balança sua lança-espada no ar e é estupidamente pega de surpresa
pela próxima Valquíria que entra na arena e já lhe amontoa nas costas. Para
se defender, ela gira algumas vezes e tenta bater a grande amazona que tenta
lhe enforcar contra as paredes de concreto.
Perdendo o ar ela cai no chão. A que lhe montava agora celebra a vitória
após chutar o imóvel corpo no chão, tirando-o de seu caminho.
A multidão vai a loucura.
Que chatice. Em minha um singular e aparentemente muito natural
pensamento.
Qual é a graça de ganhar e não poder remover a cabeça de seu oponente como

205
AS FILHAS DE GUENDRI

um troféu de sua vitória?

Garou não vibra com as vitórias, nem se impressiona com as batalhas.


Estou sentada á duas cadeiras da dele, com alguns seres de outras espécies
de Adaris e outros mundos. Parece ser um lugar exclusivo e com a melhor
vista este em que estamos.
E todo mundo reage ao espetáculo de uma forma ou de outra.
Menos ele.
Eu confesso que viro meu olhar quando os ataques se tornam mais fortes.
Não sou fã disso. Socos, chutes, espadadas, ouvir ossos quebrando, gritos de
dor… realmente, não fui feita para isso. Na verdade, fico feliz de saber que
isso ainda não mudou em mim, mesmo com essa estranha magia correndo
em minhas veias.
De qualquer forma aqui estou, esperando Alexis entrar. Enquanto ela
não entra, observo meus arredores. Garou e Lorde Vór conversam entre si,
mas por causa do barulho na arena não posso ouvir o que falam. E não sei
exatamente por quê, mas gostaria.
Quero saber do que falarão quando for a vez de Alexis.
Mais uma batalha ocorre. Quando seu fim se dá após uma Valquíria bater a
cabeça da outra repetidamente contra a parede da arena, Lorde Vór se levanta
empolgado pelo que viu e bate firmes palmas com um sardônico e brilhante
sorriso no rosto. Copiando sua ação, sua caravana de pálidos e magérrimos
seres se levantam e também aplaudem.
Garou o acompanha, e para não chamar a atenção também o faço. Uso
o pequeno espaço de tempo para me aproximar mais deles, que trocam

206
VENI, VIDI, VICI

comentários entre o alto som de ovação.


— Se fosse escolher uma agora, essa seria minha. — ouço Lorde Vór dizer.
Escolher uma agora? O que quer dizer com isso?
— Certamente, amigo. Eu lhe disse que elas são formidáveis. Mas terás
muitas opções, e como prometido poderá levar a que quiser.
— A que vencer já me basta, Garou. De todas as fadas de outros mundos
que conheço, nenhuma é como as de Adaris. Você cumpre sua parte do trato
e eu cumprirei a minha.
Não… eu não ouvi isso…
Garou prometeu dar a vencedora para Lorde Vór? Entendi corretamente?
Que tipo de promessa é essa? De que trato falam? As Valquírias sabem disso,
sabem que são um prêmio para algum aristocrata de outro mundo? Para quê
Lorde Vór quer uma valquíria?
A revelação me põe em alerta, fazendo um frio correr minha espinha, e
como uma faísca me faz arder em preocupação.
Alexis!
Preciso avisá-la imediatamente! Ela não pode vencer esse torneio de jeito
nenhum!
Suando frio com o perigo que Alexis corre e com o pânico fluindo dentro de
mim tão rápido como meu sangue, penso em uma forma de avisar Alexandrai.
Mas antes que eu consiga agir, mais uma oponente entra na areia da arena.
Eu olho para baixo. Eu reconheço aquele andar, aquela estância imponente
é a mesma que vi atacar as Valquírias falsas que fiz com magia para que ela
pudesse treinar.
Por Guendri… É Alexis. Sua hora tinha chegado.
E se a conheço bem, nada a impediria de lutar com tudo o que tinha.

207
AS FILHAS DE GUENDRI

Diferente das outras, eu não corro. Apenas caminho passos fortes até minha
oponente que está exaltada devido sua ultima vitória. Aliás, todos dentro e
fora desta arena estão eufóricos demais.
Menos eu.
Meus olhos estão focados, meu rosto relaxado. Meus punhos seguram
minha lança-espada e escudo firmemente. Se por um momento me preocupei
que alguém me reconheceria como não-Valquíria, até agora não o fizeram.
Isso por si só já me deixa mais tranquila. Na minha mente não tem mais
espaço para intromissões, dúvidas, nem nada além daquela amazona a minha
frente.
Cercada pelos corpos das perdedoras, respiro o odor de suas derrotas. Me
enoja apesar de eu gostar da adrenalina que começa a me consumir por estar
aqui e do que vou fazer.
Dou uma rápida olhada na direção de Garou. Ele está de pé e aplaude. Um
homem igualmente imponente mas não tão grande quanto ele está a seu lado,
sorriso e olhar notoriamente glaciais. Aquele tipo de olhar de quem admira
lutas, mas prefere ver a carnificina entre outros. Parece conversar com Garou,
mas este não tira seus olhos de mim.
Assista Garou e preste bem atenção, pois você será o próximo.
1…2… 3….
As palmas se acalmam e minha oponente avança contra mim. Desvio sem
dificuldade. Ela é barulhenta, exagerada em seus movimentos. Deveria se
economizar. Não retalio, apenas desvio de seus óbvios ataques. E assim
continuamos, numa dança onde ela conduz. Quero me poupar, elas perdem
por quê se cansam fácil e abrem espaços onde não devem. Querem mostrar
quão viscerais e perversas podem ser, aplausos são seus combustíveis e
objetivo. Não o meu. Não quero ser aplaudida, admiração de nenhuma dessas
pessoas me importa.
Como previsto, ela já se cansa. Essa luta me entedia. Seus movimentos
são repetidos, atingem apenas o ar e ao invés de mudar o repertório, ela
continua com mais e mais força. Me ocorre que todo esse evento é combinado,
roteirizado por elas. Não é possível que a segurança deste mundo está em
mãos tão incompetentes. Se for o caso, adorarei alterar seus planos.

208
VENI, VIDI, VICI

Sem paciência e já querendo a próxima, me desvio de sua última empunhada,


giro em meus calcanhares para o lado direito de seu corpo e acerto a base
lateral de seu pescoço com uma cotovelada certeira. Giro novamente e a
acerto sua fronte em cheio com meu escudo.
Depois de voar por alguns momentos, ela cai. Vou até ela e a reviro com meu
pé. Meu contra-ataque nem foi tão forte, mas ela não parece querer reagir.
Sem dar chance para tal, enterro minha espada em seu ombro, tentando me
manter entres as bobas regras desse combate para não levantar suspeitas.
Posso machucá-la, não posso matá-la.
Caída no chão ela grita por entre os dentes e depois que giro minha espada,
ela uiva de dor e apaga. Retiro a ponta da minha lâmina dela, levando-a até
minhas narinas. Fecho os olhos, inspiro fundo e regozijo na essência, o cheiro
de seu sangue me dá prazer.
Hmmmm… agora sim.
Passo o dedo no espesso líquido roxo e o uso para marcar um risco em
meu rosto, procuro por baixo do capacete que levanto um pouco, um espaço
embaixo de um olho. Ideia que acabar de surgir forte em minha mente, uma
forma pessoal de contar quantas dessas malditas eu vencerei.
Os presentes vão ao delírio, palmas e aplausos enchem a arena. Mas isso
não me importa. Não comemoro com eles. Na verdade, eu gostaria que
calassem suas bocas, não estou fazendo isso para o entretenimento deles.
O faço por mim e já espero minha próxima oponente.

209
34

Nunca Mais Eu Bebo

M
e desfaço do beijo para olhar quem me chama. Lucas continua
descendo sua boca por meu pescoço. Focando meus olhos,
encontro uma figura parada na semi-escuridão da entrada
do corredor, refletindo luz o suficiente para confirmar minha primeira
impressão.
— Bauer? — pergunto sem acreditar.
O que raios Bauer faz aqui?
Copo em uma mão e a outra no bolso da calça, as mangas da camisa azul-
claro dobradas e sua figura imponente impedindo o pouco de luz de entrar
no corredor.
Não sei se paro ou se continuo. Lucas parece não ter visto que temos
companhia, pois ainda me beija vigorosamente assim como suas mãos ainda
apertam minha bunda, me segurando contra a parede.
— Essa área é restrita, Morales.
Mas será o Benedito? Que que é? Bauer faz bico de segurança aqui agora?

210
NUNCA MAIS EU BEBO

— O que você tá fazendo aqui? — pergunto.


Lucas me ouve conversando com alguém e finalmente pára de me beijar,
me soltando no chão. O que é bom pois está muito estranho conversar com
meu chefe enquanto Lucas aperta minha bunda.
— Nada demais. Só sou um dos donos do lugar. — bebe um líquido marrom
claro e aponta para o teto. — Da câmera de segurança vi pessoas entrarem na
área obviamente restrita e resolvi intervir. Imagine a minha surpresa quando
descubro que é minha própria secretária.
— Secretária? — Lucas múrmura, bêbado e confuso. — Ah, você é o chefe
da Verena? — é óbvio. Lucas estende a mão a Bauer. — Sou Lucas, vizinho da
Vê.
Dimitri olha para a mão de Lucas, depois olha para mim e mesmo na
escuridão posso ver que mudou de sarcástico para completamente puto em
questão de segundos. Posso até ver o músculo de seu maxilar se mover,
enrijecendo.
Tudo isso por que entrei na “área restrita”?
Depois de um tempo fuzilando Lucas com o olhar, ele finalmente aperta
sua mão.
— Dimitri. — resmunga.
E eu não sei onde enfiar a cara.
Após balbuciar que precisa ir ao banheiro e que já volta, Lucas se retira me
deixando sozinha com a última pessoa no mundo que eu queria estar nesse
momento.
Bauer acende a luz do corredor e meu olho queima de leve. Vejo a câmera
no teto e fecho os olhos. Impaciente e sem acreditar no meu azar, massageio
minhas têmporas, arrependida de não ter achado qualquer outro lugar para
beijar Lucas sem ser interrompida. Esperaí… se ele assistiu tudo pela câmera,
será que me viu com a mão na calça do…
Para. Não quero nem pensar.
Quando abro os olhos novamente, vejo o olhar de Bauer na altura do meu
decote. Quando olho para baixo descubro o por quê: nem vi quando Lucas
desabotoou a minha blusa até a minha barriga expondo meu sutiã. Abotoo
novamente o mais rápido possível, meu rosto queimando de vergonha.

211
AS FILHAS DE GUENDRI

— Alina me convidou, eu não sabia que você era dono daqui. — se soubesse
tinha pedido desconto na entrada, pois foi caríssimo. Completamente sem graça,
me sinto na necessidade de explicar a incrível coincidência de estarmos ambos
hoje a noite no mesmo lugar e sem combinar.
Por um breve momento Bauer parece se divertir com a situação.
— Eu a vi. Ela fez questão de me mostrar seu amigo. Qual é o nome dele
mesmo?
— Daniel.
— Isso, Daniel. Você tinha que ver, ela quase o engoliu na minha frente. —
Bauer ri e me circula, parando atrás de mim. — Interessante ela te convidar…
são amiguinhas agora? — diz com um tom de deboche.
— Melhores amigas, Bauer. — respondo com igual sarcasmo, tentando sair
de sua presença. Mas como uma boa bêbada clichê, tropeço. Para exponenciar
minha frustração, Bauer me segura. — Onde está Alina?
— Já se foi com o seu amigo.
— Pode me soltar, Bauer.
— Pra você cair e me processar por ter se machucado em meu estabeleci-
mento?
— Isso acontece?
— Mais do que você imagina.
— Que tipo de gente faz isso?
— Bêbados desastrados. Vem. — com um braço colado na minha cintura,
andamos até o bar mais próximo onde ele deixa seu copo de bebida e pede
uma água à bartender. Tenta me fazer beber o líquido gelado, mas não quero.
Aviso que preciso ir ao banheiro. Ele pede a bartender para que me leve até o
toalete feminino do staff, e ela o faz, me espera até eu sair do banheiro, onde
um braço do nada me prende pela cintura, de novo.
— Meu Deus Bauer, você vai deslocar minhas costelas se continuar me
apertando assim. — protesto.
— Vou te levar para casa. Onde está seu vizinho? — Bauer olha a nossa
volta. — Eu o levo também.
— Que caridoso. Mas não precisa! A gente chama um tax…
— Morales; — me corta— Se você acha que vou deixar um cara te levar

212
NUNCA MAIS EU BEBO

bêbada e sozinha daqui, você está delirando. — ele avista Lucas. — Vamos,
seu amigo está na entrada.
Que situação ridícula! Meu chefe aparece do nada no meio da noite e
acaba com o meu clima! Se eu soubesse que esse bar é dele ou que ele estaria
aqui hoje á noite, eu jamais viria. Alina deveria ter me avisado. Será que ela
estava me usando para falar com ele de novo? Ou não me contou por quê
provavelmente eu não viria se soubesse - quem quer encher a cara usando
roupas curtas ao redor do chefe? Ou talvez ela achasse que eu já sabia… Claro!
Ele é meu patrão, eu deveria saber!
Ele me coloca no banco da frente de seu carro, ajusta meu cinto de segurança
e tranca a porta. Lucas senta no banco de trás.
— Eu quero ouvir musica. — digo folgada e procuro no mar de botões
aonde liga o rádio do carro.
— Cuidado, vai acordar seu namoradinho. — Bauer liga o motor.
Olho no banco de trás. Lucas já está roncando.
— Ele não é meu namorado. Ele já tem namorada. — solto uma risada
maliciosa. — Mas eles estão dando um tempo.
— Hum. E você não perdeu tempo.
Sorrio tortamente, mesmo ele dizendo isso com uma pontinha de maldade.
Meu sorriso morre. Verdade seja dita.
É meio falta de caráter de minha parte ficar com um homem semi-
compromissado, concordo. Mas o que é caráter quando temos a oportunidade
de beijar um cara lindo desses?
Vou me importar com isso quando minha cabeça não estiver rodando.
Enquanto faço auto-observações a respeito de minha breve falta de caráter,
pego Bauer analisando minha vestimenta de soslaio.
— Estranho te deixarem entrar em meu bar usando apenas essa calcinha. —
Bauer olha para minhas pernas. — Está um pouco curta demais, não acha?
Vai contra os códigos de vestimentas no meu estabelecimento.
— De calcinha? — encaro meu short shorts cor vermelho sangria. — Eu
não tô de calcinha! — me defendo.
— Perdeu na balada ou já veio sem?
— Chefe! Eu tô de calcinha sim, mas isso aqui é shorts! Short shorts!

213
AS FILHAS DE GUENDRI

Nunca viu um? — não vou deixar meu short shorts ser ofendido dessa forma.
Comprei numa promoção e não é de todo o mal. — Nem todo mundo quer
andar por aí de Armano, Bauer.
— Armani, Morales. E esse daqui é um Ferragamo.
— Que seja. Aliás, desde quando você é dono de balada?
— Relutante dono de duas e sócio de algumas outras, então depende de
qual delas estiver falando.
— Ai, que metido! — zombo. — Me dê uma lista de nomes pra eu evitar
esses lugares.
— Não se preocupe, a partir de hoje seu nome já está na lista de pessoas
banidas em todas elas. Não conseguirá entrar nem com ou sem calcinha. —
ele tenta segurar a risada que minha silenciosa indignação o causa, mas acaba
rindo baixinho de uma forma que me faz subir um calor que não sei dizer
se é raiva ou vergonha. O fuzilo com meu olhar. — O quê? — ele me encara
de soslaio. — Deixar você entrar e começar uma briga por beijar namorados
alheios? Não mesmo. Isso acaba com a reputação de qualquer lugar.
— Essa foi a única vez! Sabe há quanto tempo eu quero beijar esse cara?
Ele não responde.
Aliás, ele acelera.
Quase achei que ia meter o carro num poste em vários momentos. Quero
gritar com ele, perguntar se esta ficando louco. Quis me dar uma carona para
me manter segura ou me matar ele mesmo?
Ao chegarmos em frente a meu pequeno prédio, acordo Lucas que com
certa dificuldade sai do carro, meio perdidamente se despede e sobe para seu
apartamento. Já eu…
Resultado da pinga + Bauer dirigido feito um louco, começo a vomitar na
beira da calçada, pensando na minha oportunidade perdida de dormir na
cama do meu lindo vizinho.
Bauer segura meu cabelo. Ah, nunca mais eu bebo.
— Vou processar o dono do Alto e Bom Som por deixarem me embebedar
tanto. — brinco depois da desconcertante cena. Bauer ri e pega uma
garrafinha de água em seu carro para que eu lave minha boca.
— Consegue subir as escadas sozinha?

214
NUNCA MAIS EU BEBO

— Mas é claro! Eu to bêbada, não aleijada! Tchau, obrigada pela carona e


até segunda, chefinho querido! — beijo a palma da minha mão e jogo ao ar de
forma dramática, mantendo em mente que se eu subisse rápido o suficiente
ainda poderia pegar Lucas entrando em seu apartamento e continuar o que
começamos na balada.
Ligeiramente, degrau por degrau, eu vou que vou. Dei um pequeno
tropeço… nada mal, nada demais. Ainda consigo subir as…
— Chefe! — exclamo surpresa assim que Bauer rapidamente me agarra, me
carregando estilo noiva. — Nossa, como você cheira bem… — droga, eu falei
isso em voz alta? Não, não era isso que eu queria dizer. — Me põe no chão. —
exijo.
Antes que termine de reclamar, já estamos em frente a minha porta e ele
me coloca no chão. Ele é rápido. Ou eu que estou bem lenta. Consigo virar a
chave mas a porta emperra como sempre. Eu explico que é normal mas ele
acha que não consigo abrir por quê estou bêbada. E nem estou mais tão ruim
assim, apenas meio zonza. Entramos, ele encontra as luzes e as acende. Eu
vou até a parede mais próxima, coloco minhas costas contra ela e deslizando
vou, até acabar sentando no chão da minha sala.
— ChefinhoOoOo, — cantarolo. — Você quer tomar alguma coisa, talvez
um cafezinho?
Ele me ignora, se abaixa a minha frente e tira minhas sapatilhas para mim.
Quando vê que estou para gorfar novamente, ele me carrega até meu banheiro.
Bauer liga o chuveiro enquanto regurgito. Quando acabo, com a porta do
box meio aberto e meio fechado, com destreza me coloca embaixo da água fria
cara virada para o azulejo. Reclamo quando sinto o choque térmico contra a
minha pele quente, me afastando da ducha e batendo minhas costas contra o
peitoral dele. Bauer me segura no lugar e diz que a água gelada vai me ajudar.
— Você é forte hein, chefe! — me apoio com as mãos no azulejo. — Meu
Deus, parece até que eu bati as costas numa parede. Além de quê, você me
carrega pra lá e pra cá como se eu fosse uma boneca… e olha que eu peso uns
trezentos quilos, hein… — água caí no meu rosto me atrapalhando a falar e
ensopando toda minha roupa.
— Está reclamando ou me elogiando, Morales?

215
AS FILHAS DE GUENDRI

Nem eu sei, então não respondo.


Bauer me solta, sai do banheiro por uns momentos e volta com uma
camiseta, uma calça e um par de calcinhas. Com a bebedeira passando e
ficando só o cansaço, eu começo a fechar os olhos e quando ele me vê caindo
contra a porta do box, entra novamente de corpo inteiro no chuveiro comigo
e me segura pelos meus braços embaixo da água e de frente para ele.
Mesmo com água atrapalhando minha visão eu o observo.
Ele tira o cabelo de minha face e agora posso ver seu rosto ficando molhado
também.
— Vai acabar molhando sua camisa.
— Isso parece uma sugestão para que eu a tire, Morales. — seu tom é brando,
não parece irritado por ter que cuidar da minha bebedeira.
A ideia de vê-lo sem camisa…
— Não quero que você estrague seu Fegoramo por minha causa.
Bauer ri.
— Pode deixar, vou descontar do seu salário. — ele retira o cabelo que
voltou a cair em meu rosto e o coloca atrás de minha orelha novamente. O
ato parece estranhamente carinhoso por um momento.
Coloco meus braços sobre cada um dos confortáveis ombros de Bauer
assim que sinto meu corpo ficar mais mole e pesado.
— Tô me pendurando em você pra eu não cair. — me explico com um
sorriso leso e ele faz uma cara de quem acredita, mas não muito. Com minha
nova posição, ele segura minha cintura firmemente. — Chefinho, sabia que
quando você fica bravo, essa parte do seu rosto… — coloco meu dedo em seu
maxilar. — Se mexe?
Uma de suas sobrancelhas se ergue.
— Não… — ele diz após um momento, delicadamente retirando meu dedo
que pressiona o tal músculo em seu rosto e beijando a palma da minha mão
devagar. Apenas olho, esquecendo de entender o fofo ato em si, pois o gesto
me manda reconhecíveis arrepios que acordam boa parte do meu corpo. Ele
solta minha mão e coloca a dele novamente sobre minha cintura. — E por
quê reparou nisso?
— Porquê mexeu e muito quando o Lucas tentou te cumprimentar hoje.

216
NUNCA MAIS EU BEBO

Mesmo no escuro deu pra ver.


— É bem atenciosa quando está bêbada, Morales. No que mais reparou
essa noite?
Paro e penso.
— Quando bati de costas em você reparei que tem algo duro no bolso da
sua calça. — digo preocupada. Bauer franze o cenho e abre a boca para dizer
algo, mas eu o corto. — Tô falando do seu celular! Estamos embaixo da água e
ele vai acabar molhando e quebrando. Bauer me lança o olhar mais ranzinza
e divertido que já vi, enquanto tira o celular do bolso da frente e o coloca no
bolso de trás. — Também reparei que seu carro tem um cheiro amadeirado
tipo pinheirais assim como a sua sala, que você até que fica bem de azul claro
e que seu cabelo já tem alguns fios brancos.
Ele ri e o som é uma delícia.
— Os fios brancos começaram a aparecer assim que contratei minha nova
secretária. Precisa ver como ela me tira do sério. — Bauer brinca e eu fico
feliz em saber que estou fazendo algo que outrora achei impossível: tirá-lo
do sério. — Especialmente quando ela me chama de chefinho.
Depois de rirmos juntos, ficamos quietos ao mesmo tempo. Mas dessa vez
não é estranho. É um complemento necessário e o fazemos com sorrisos
velados, olhos colados um no outro num silêncio que é bem recebido por nós
dois, acomodado em nosso meio como a água que nos cobre.
— Você quer que eu pare de te chamar assim? — pergunto com voz fofa.
Achei que eu não estou mais tão bêbada, mas já vi que me enganei.
Bauer respira fundo e estuda meu rosto. Após alguns momentos, finalmente
responde com voz calma e um sorriso modesto.
— Não.
Bauer mantém seu rosto perto o suficiente para que eu possa observar mais
detalhes… Gosto dos olhos dele a essa distância. A água dá mais destaque
aos cílios negros, deixando os azuis mais profundos. E tem uns pinguinhos
pretos em volta da íris e …
— Pensei ter te dito pra ficar em casa e descansar nesse final de semana,
Morales. — ele me lembra. — Mas vejo que sua teimosia falou mais alto.
— Eu me sentia bem melhor esta manhã.

217
AS FILHAS DE GUENDRI

— É mesmo? — questiona sarcástico.


— Verdade! Por isso saí e dancei a noite toda.
— Com o namorado de outra garota. — rebate. Cerro meus olhos o julgando
por um momento. Ele repara. — O quê?
— Você viajou com a irmã da Alina duas semanas depois de ficar com ela.
— vejo em sua expressão que não sabia que eu sei. — O sujo falando do mal
lavado.
— Deixei clara minhas intenções com Alina e ela as aceitou. Nunca a
enganei, por mais que ela queira me culpar. Além de quê, eu não tenho
namorada, Morales.
— Nem eu.
— Ah, então é assim que funciona? Se a namorada não é sua então não
importa? — dou de ombros e sem querer rimos juntos de nossas imperfeições.
Uma rara feição de Bauer que domina por completo minha curta atenção.
O assisto, encantada. Descubro que gosto e muito de fazê-lo rir. — Você
é impossível, Verena. — Bauer conclui dizendo o meu nome, um som que
não me lembro de já ter ouvido sair de sua boca mas acho que gosto de
ouvi-lo. Novamente, ele ajeita meu cabelo atrás de minha orelha. Quando
termina, passa seus dedos pela maçã do meu rosto, me fitando de uma forma
enigmática.
Eu acolho seu toque quando percebo que gosto de senti-lo. Mas de repente
ele para de sorrir, se recompõe e imediatamente sai do chuveiro, secando seu
rosto com uma das minhas toalhas.
— Troque de roupa. Rápido. Não me faça esperar, nem ter que te despir e
vestir também, pois o desconto no seu salário será ainda maior.
Bauer fecha a porta do banheiro. Me sinto melhor, a náusea passou apesar
de ainda estar tonta. Termino meu banho sem cair. Deixando minhas roupas
de balada no chuveiro e vestindo as que ele trouxe, penteio meu cabelo
tentando desfazer o máximo de nós que consigo em meus retornados cachos
e finalizo com uma trança bem da mal feita.
Me arrasto para fora do banheiro.
Bauer vem da minha cozinha com um copo de água e dois comprimidos.
Eu os tomo e ele coloca o copo de volta na minha pia. Acho engraçado como

218
NUNCA MAIS EU BEBO

ele parece encontrar tudo sem dificuldade, como se já estivesse aqui antes.
— Vai me levar pra cama também, Bauer?
Ele parece confuso com a minha frase.
— Morales, você acabou de beijar outro cara e agora está dando em cima
de mim? — cruza os braços sobre a camisa molhada. — Sinto muito mas não
me aproveito de mulheres bêbadas.
— Não assim! Me levar pra cama no sentido de me carregar como me
carregou até agora!
Ele respira fundo virando a cabeça por um momento. Sem esforço ou aviso,
me ergue pelos joelhos, e dessa vez me põe sobre seu ombro. Chegando em
meu quarto, literalmente me joga na cama.
— Pronto. Satisfeita?
— Meu Deus, é assim que você trata seus funcionários? Jogando eles na
cama desse jeito? — reclamo ao bruto.
— Não, Morales, só você. Na próxima vez que eu te jogar na cama, prometo
que você não vai reclamar.
— Pois espero mesmo, hein. — não, espera… — Sua camisa me deixou toda
molhada. — foco em reclamar e outra expressão de quem se delicia com a
minha confusão aparece em seu rosto. — Molhada no sentido de que você tá
todo molhado e me colocou no seu ombro. — me apresso em explicar.
— Tenho certeza de que não é a primeira vez que te deixo assim. — mete
essa e sem hesitar ou tirar os olhos dos meus, Bauer abre sua camisa num
puxão só e a tira, e por tudo que há de mais sagrado na terra eu perco meu
ar por um momento e não consigo responder o que ele disse. Você começou
sua carreira como gogoboy no clube das mulheres? É o que eu quero perguntar
mas meu queixo continua caído, me impedindo a fala. De olhos arregalados
apenas fico em silêncio. Okay, eu não esperava por essa. — Pode me emprestar
uma toalha?
— E-eu acho que tenho uma toalha e uma camiseta grande o suficiente pra
você naquela gaveta ali. — nem sei para o que estou apontando porque não
consigo parar de olhar para ele.
— Só preciso da toalha. — Bauer acha uma numa de minhas gavetas e
começa a se secar. Quando termina, se aproxima de mim mesmo sem camisa

219
AS FILHAS DE GUENDRI

e tudo o que posso ver é o dorso definido que cobre toda a minha visão assim
que ele começa a me cobrir com as cobertas; eu tento soltar a respiração que
reparo que ainda seguro. — Agora procure descansar.
Eu ia começar a falar algo, mas Bauer me interrompe.
— Shhhh. Dorme agora.
Uma simples ordem em duas palavras e eu apago imediatamente. E acho
que já começo a sonhar logo em seguida pois posso jurar que sinto Bauer
beijar minha testa.

220
35

Marcas Em Sangue

C
omeça a ficar chato o jeito com o qual eu venço.
Eu não me canso por que não me esforço muito. É essa a tão
impressionante Guarda Regencial de Adaris?
Ser agressivo não significa saber lutar. Confesso que se uma dessas
empaladas que elas dão me acertasse em cheio, provavelmente eu perderia
muito sangue. As armas brancas são extremamente bem talhadas, afiadas em
perfeição. E apesar de ter recebido alguns dos socos e chutes, me recupero
com mais rapidez que elas. Um pequeno detalhe de minha anatomia da qual
ninguém aqui sabe e que apesar de ser uma vantagem, autocura não é algo
que eu possa controlar, já que esta funciona como bem entende.
A dor física me atinge sim, mas não me afeta na mesma proporção que
parece afetar as valquírias. Na verdade só me deixa mais alerta, mais
rancorosa. Tento não transparecer nada disso. Não emito nenhum “a” além
do necessário nessa arena, nenhuma interação com a plateia. Nem ao menos

221
AS FILHAS DE GUENDRI

olho para ela, apesar de ouvi-la fervorosa a cada empunhada de minha espada,
cada defesa de meu escudo.
Gritam tanto por mim. Ganhei a arena em duas lutas. Aqueles que me
observam são mais sanguinários que eu. A sina dos covardes: apenas assistem
o que não são capazes de fazer.
Essa Valquíria tenta me passar uma rasteira. Dou espaço, e ergo minha
perna o suficiente para deixar a dela se posicionar sob meu pé. Após a quebrar
o joelho com uma pisada, pego-a pela mesma perna recém-quebrada e a
arremesso alguns metros.
Estou perdendo espaço em meu rosto para uma nova risca de sangue. Já
perdi a conta de quantas abati. A pilha na arena está ficando maior, o espaço
para lutar diminuí. Seja lá quando for que essas valquírias acordem, me
pergunto o que farão quando descobrir que a vencedora não está entre elas.
Porque eu vou vencer.
Espero que a duvida as corroam por dentro.
Depois de ter dado uma joelhada na cara da nova combatente quebrando
seu nariz, a seguro pela mandíbula, parte da minha mão dentro de sua boca.
Ela tenta morder, óbvio. A posiciono de frente a mim e firmemente puxo-a
contra minha espada. Eu a deslizo em minha lâmina sólida, atravessando seu
ombro sem encontrar dificuldades ou barreiras. Minha espada agora ocupa
suas entranhas. Ela perde força e fôlego após murmurar alguma coisa contra
minha orelha, seu corpo pesado contra o meu.
Após ouvir seu ultimo soluço, a jogo para longe retraindo minha espada no
processo. De minha lâmina retiro a viva e ainda quente tinta que vai pintar
em meu rosto mais uma marca.
Oh, Guendri. Se você pudesse me ver agora. O pensamento é inato, e não me
lembro de já te-lo tido.
Após mais uma irritante onda de aplausos, Garou se pronuncia. Quero
olhar para ele mas apenas me ajoelho e abaixo a cabeça, como imagino que
uma maldita valquíria faria. Quando sua voz começa a ecoar estrondosa,
todos correm para se silenciarem e ouvi-lo.
Covardes.
— Bravo! Magnificente! — ele aplaude firmemente. — Jamais vi tão grande

222
MARCAS EM SANGUE

talento para as artes de combate. — mesmo não achando que Garou reconheça
minha voz pois não a ouve muito, espero que ele não espere uma resposta de
minha parte. — Pois bem, valquíria, chegamos a última etapa. — não posso
vê-lo pois ainda olho para o chão, mas imagino que tem suas mãos nas costas
e um ar prepotente. — Espero que tenha nos guardado algo especial para seu
último desafio: uma convidada de muito longe. Abram os portões!
Ele ordena e o fazem. Quando ouço atrás de mim algo pesado abrir e fechar
lentamente, me preparo para o que possa ser.

Não, não, não!


Alexis está vencendo uma por uma.
Droga!
Estou paralisada. Preciso avisá-la dos planos de Garou mas não sei como.
Antes quando pensei em ir até ela, não tive tempo pois já havia entrado. Não
há nada que eu possa fazer para alertá-la.
Eu sofro em silêncio, cada vitória de Alexis uma pontada maior em meu
coração. Ela é majestosa, cruel, meticulosamente boa em luta. Parece deleitar-
se com a vitória, não de um jeito vão, mas de uma forma pessoal, um orgulho
mudo que só quem sabe quem é ela pode entender.
Eu mal tinha percebido, mas meu pânico fez com que a magia alastrasse
ainda mais em minhas veias, visivelmente subindo por meus braços. Eu
preciso respirar e me conter.
Eu observo Alexandrai marcar seu rosto com um pouco do sangue de suas
oponentes, um gesto incrivelmente delicado, mas significantemente violento.
Garou se levanta. Aquela expressão de tédio passou. Ele agora está

223
AS FILHAS DE GUENDRI

extasiado, ébrio com o banho de sangue, seus olhos brilham e não há nada
que Lorde Vór diga que o faça desgrudar os olhos da arena, de Alexis. Se
ergue e congratula a vitoriosa “valquíria”, lhe anunciando um ultimo desafio.
Congelo em meu assento quando vejo alguém desconhecido entrar. Não é
uma valquíria e não é de Adaris. Parece com uma das pessoas da caravana de
Lorde Vór, pálida com armadura toda azul-escuro e visivelmente superior a
da guarda Regencial de Adaris.
Alexis está de joelho fronte a Garou. Se levanta assim que ouve sua nova
oponente entrar e eu sei que ela vai para cima dessa combatente com o mesmo
vigor com o que lutou até agora. E que vencerá.
Não posso deixar isso acontecer. Preciso fazer alguma coisa!
Tenho uma ideia… é a única que tive, mas preciso tentar. Ao ve-la lutar,
Começo a entender quem ela era, quem ela é. Por isso, se funcionar, não sei
se Alexis vai me perdoar por isso…

Minha nova oponente me circula tentando me transformar em um tipo de


presa. Observo sua armadura. É bonita, brilhante, entalhes detalhados, com
algumas medalhas pratas espalhadas e presas ao metal de seu peito.
Não a acompanho com meu corpo, apenas com o olhar. Alguns seres verdes
parecidos com Tiffany em sua forma natural entram e rapidamente retiram
os inconscientes corpos de valquírias do chão, puxando-os rapidamente e
sem cuidados para fora da arena.
Já era hora.
Quase não a vi se mover. Rápida como uma lince, ela me ataca pela lateral
esquerda. Percebo que sua velocidade é sobrenatural. Eu já devia estar

224
MARCAS EM SANGUE

preparada para isso. Obviamente me estudou durante todo o percurso do


Torneio e já que não é uma valquíria, usará de truques diferentes. Talvez até
regras diferentes.
E essa daqui a minha frente parece não seguir muitas dela.
O nível de dificuldade certamente aumentou. Mas tudo bem, descubro
agora que desafios me excitam. Respondo á risca, cada ataque com um
contra-ataque. A defesa é um luxo reservado para apenas certos momentos.
Duraremos mais do que gostaríamos que durássemos, já que nenhuma das
duas parece querer ceder.
Mas é aqui que algo estranho começa a acontecer.
Minha espada lança e meu escudo parecem não querer me obedecer.
Eu empunho minha espada de um lado, ela vai para outro. Acho estranho
mas relevo. Quando acontece de novo, e de novo, e de novo… me pergunto
se o uso de magia é permitido.
Não é. Pois valquírias são um tipo de fada que não tem magia.
Maldição! Será que é a nova combatente exercendo esse poder? Só pode,
pois nada do tipo aconteceu até agora.
Não conheço a minha o suficiente para saber como utilizá-la. E se a utilizar,
serei descoberta.
Sinto magia retirar-me a espada e o escudo e assim que acontece, minha
oponente me encurrala e meu desespero começa a ficar visível. Meu coração
que até então esteve sob controle dispara, elevando consigo também minha
respiração. Minha rival lê isso e aproveita para atacar-me ainda mais
viciosamente.
Não que eu precise de acessórios para vencer, mas desespero é pior que
não usar armadura nenhuma, e descobrir que usam de magia em mim nesse
momento tirou minha concentração e controle.
Tem sempre um momento em que desviar é impossível. Aqueles segundos
entre você e a espada, um encontro nada agradável. E para variar, para deixar
tudo ainda mais malditamente emocionante, não consigo me mover.
É claro que minha oponente tira proveito disso.
Literalmente de costas para a parede, quase vi a ponta afiada da espada de
minha inimiga perfurar meu olho. Me movo o mais rápido possível mesmo

225
AS FILHAS DE GUENDRI

contra a força da magia que me segura, parando tão próxima de sua lâmina
que posso sentir o cheiro do metal.
Arfando, tento controlar minha mente. Estive à dois segundos de perder
meu olho e talvez a batalha. Ela retrai a espada e avança novamente, dessa
vez, bem no meio do meu rosto…
— De novo. — ele ordena, sua costumeira calma inabalada.
— Não consigo! — dou um soco nervoso no chão, indignada com o fato de que
não consigo fazer o que ele pede. — Me perdoe, mas não consigo. — não quero me
levantar. Não quero olhar para ele. Tenho vergonha de minha ineficiência.
Ainda no chão, o observo dar alguns passos para minha direita. Estamos num
lugar semiescuro, a mesma sala feita de grandes pedras de concreto onde minhas
lições ocorrem de forma privada para que eu possa melhorar minhas fraquezas.
De minhas irmãs e eu, sou a única impedida de possuir esse defeito.
— Levante-se. — não o faço. — É uma ordem!
Bufo. Obedeço. Me erguendo, fico a sua altura. O observo. Tem sobre si simples
vestimentas claras, que combinam com sua barba, pele e cabelos igualmente brancos.
Está próximo mas eu não posso ver muito além de sua silhueta.
— Vinte e cinco eras, Alexandrai. Vinte e cinco. — sua voz é suavemente rígida
contra o silêncio entre nós. — Acha isso pouco?
Ele se refere a meu tempo de treino. E não, não é pouco, mas eu não consigo.
É quase impossível acertá-lo, quase impossível vencê-lo. Não tem como, já estou
tentando desde que ele me deu direito a existência.
Não o respondo.
Num piscar de olhos, ele me cola na parede de pedras com sua espada dourada
contra meu pescoço.
— Assim como sua irmã, sua língua é sua maior fraqueza. — respirar é
complicado, pois qualquer movimento de minha garganta resultará em um corte.
Ainda assim, presto atenção em suas palavras. Elas me marcam mais que sua
espada. Mal parece o amoroso, orgulhoso e doce pai que é. Ele muda completamente
quando estamos aqui. — Não respondem quando lhes faço uma pergunta, mas
falam quando nada lhes fora perguntado, com a convicção de um tolo.
Estou trêmula sob a ponta de sua espada, brava comigo mesma por concordar
com o que ele diz. Engulo em seco e o movimento de minha garganta faz com que

226
MARCAS EM SANGUE

eu me corte.
— Vê isso? — ele passa o dedo numa gota de meu sangue que agora esta na ponta
de sua lâmina. — Seu sangue. Meu sangue. — ele passa o dedo manchado em meu
rosto, lentamente formando uma linha. Sinto o molhar do espesso líquido. — É
essencial que faça com que o sangue em seu rosto seja de seus inimigos, minha filha.
Não o nosso.
Sinto vergonha. E fraqueza. Ele vê isso nos meus olhos e a sensação só piora.
Isso o enfurece. Ele diz que quando fazemos isso durante nossos treinos, estamos
subconscientemente apelando por sua pena, pedindo para que ele seja brando. E ele
não pode ser. Deve nos treinar, deve nos fazer capazes de proteger nosso mundo.
— Precisa saber o que fazer quando houverem apenas dois segundos entre você e
a espada. — fala por entre os dentes semicerrados, retirando sua lâmina de meu
pescoço. — Jamais diga que não consegue. Você é minha melhor criação. E essa
não é a resposta que te criei para dar. — ele se aproxima e vejo meu reflexo em
seus olhos escuros. — Te dei meu sangue. Te fiz a partir de mim. Quem sou eu,
Alexandrai?
Com dificuldade lhe respondo.
— Guendri.
— E quem é você?
— Sou… Alexandrai de Adaris. Filha de Guendri. — ergo meu trêmulo queixo.
— Sua filha.
— E jamais se esqueça disso. — a precisão com a qual diz isso abala todo o meu
ser e a sala a minha volta. Olhando em seus olhos, eu juro ali mesmo obedecê-lo.
E jamais esquecer quem sou.
Dois segundos.
Dois segundos entre eu e a espada. Dois segundos entre eu e a derrota.
Dois segundos entre eu e o mundo.
Dois segundos entre eu e Guendri.
Extasiada.
Delirante.
Estática.
Todos os mundos param de rodar para mim nesse momento. A espada de
minha oponente acerta em cheio meu ombro pois em dois segundos desvio

227
AS FILHAS DE GUENDRI

minha face de seu ataque.


Os dois segundos mais importantes de minha existência. Pois se não fosse
por eles, eu morreria com uma espada atravessando minha cabeça.
Desarmada, ferida e sangrando muito, caio de joelhos no chão. Minha
mente correndo lembranças a mais de mil por hora enquanto meu corpo
lentamente desfalece.
Eu acabo de me lembrar… de ter uma memória. Uma memória de meu pai,
Guendri.
Não sei de onde veio nem para onde foi, mas nesse momento me sinto
renascida, um novo ser com um propósito. Foi pouco mas foi suficiente. Eu vi
seu rosto e isso me dá tudo o que me faltava. Agora tenho direção, sangue e
um nome.
Tenho referência e ela é Guendri.
Infelizmente ou felizmente, esse é o momento errado para se ter essa
realização. Ainda de joelhos, minha oponente agora me ataca por trás.
Embora numa área não vital, sua espada atravessa minhas costas eficazmente,
deslizando por minha carne, perfurando tudo o que encontra.
Dói?
Não sei, não presto atenção. Isso não significa nada agora. Eu sorrio, quiçá
até gargalho ao cair de cara no chão ouriçando a poeira da arena.
Mesmo com a evidente derrota para todos que me assistem, para mim eu
não perdi.
Não…
Essa é minha maior vitória até agora.

228
36

Número Errado

C
om a ressaca passando e a noite de domingo caindo, eu passei o dia
todo moscando no sofá, fazendo maratona de um dos meu shows
favoritos e trocando mensagens de texto com alguns amigos.

229
AS FILHAS DE GUENDRI

Pois é amigo, você só se dá bem nos nossos rolês enquanto eu só me ferro. Já


é a segunda vez: 2x0 para você! Fico feliz que ele não falou de Lucas. É
melhor deixar quieto mesmo.

230
NÚMERO ERRADO

Flávio, meu querido Flavinho. Merda já deu.

231
AS FILHAS DE GUENDRI

Não me importo. Só não se apegue tanto dessa vez tão depressa. Não quero
te ver chorar de novo nem vir bater na porta do meu vizinho me assustando
mais uma vez.

232
NÚMERO ERRADO

É Lena. Já tô sabendo que o chefe voltou de viagem. Se eu te contasse que até


no chuveiro eu fiquei com ele… enfim. Mais cedo? Vou dormir no escritório
então.

233
AS FILHAS DE GUENDRI

Nada.
Lucas não me mandou nenhuma mensagem até agora. Eu quero mandar
uma mas acho melhor não. Não quero que pense que estou desesperada.
Vira e mexe penso na noite passada. Não só na pista de dança com Lucas,
mas em Bauer virando minha babá. Na verdade, pensar em Bauer como um
todo no momento é complicado. Por que raios não me conta que é dono, ou
sócio de outros lugares? Por quê não falou que ia viajar? Ou por que não me

234
NÚMERO ERRADO

fala nada de nada? Sou sua secretária , eu deveria saber dessas coisas mais do
que qualquer outra pessoa.
Bauer, Bauer… quando não está sério, está com cara de que vai matar
alguém, ou que acabou de matar. Ás vezes flerta, e muitas outras vezes nem
nota minha presença. Nunca imaginei que ele seria quem seguraria meu
cabelo enquanto gorfo as biritas extras.
Meu reservado patrão, com senso de humor estranho e os olhos mais
bonitos que já vi. É, acho que fiquei com ele em baixo do chuveiro perto
demais e por tempo demais. Tenho em minha memória o desenho exato de
sua íris.
E por falar no diabo…

Tá, tá, não me atrasarei. A Lena já pediu.


Fuço meu celular de novo. Nenhum sinal de Lucas. Nada, em nenhum
outro app, insta, twitter, face, nada! Será que ele se arrependeu e por isso não
entrou em contato?

235
AS FILHAS DE GUENDRI

Confesso que não sei o que fazer, não sei qual é a norma. Eu sei que o jeito
como engatamos as coisas não foi o melhor. Bêbados no escuro, com ele
dando um tempo de sua namorada. Mas acho que ele provavelmente teria
entrado em contato comigo até agora depois de ontem, certo? Moramos
praticamente frente a frente, se ele me quisesse…
Ótimo. Agora terei esses pensamentos sobrevoando minha cabeça, atormen-
tando minha autoestima. Bem… talvez seja hora de reconhecer a possibilidade
de Lucas não gostar de mim como eu gosto dele.
E por que gosto dele? Eu apenas o vi algumas vezes no corredor, disse oi,
e… só. O beijo foi bom, mas… que superficial de minha parte desenvolver
sentimentos tão sérios por alguém que mal conheço, baseados apenas em seu
rosto lindo e no que imagino ser uma barriga tanquinho.
Na verdade eu nunca vi.
Sou péssima com essas coisas, não leio bem as pessoas. Achei mesmo que
ele flertava comigo. E não é o fato de querer o que não posso ter, eu o quis
por que a possibilidade de tê-lo existia. E ao invés de me dar um fora logo,
ele bebe e me beija, piorando tudo.
Bocejo. Nem percebo que estou prestes a cair no sono. Nunca digo não a
dormir, minha insônia não me permite tal luxo.
Com o celular ainda em mãos e sob o efeito dos famosos “cinco minutos”
de loucura, escrevo uma mensagem para Lucas:
“Estou louca pra te beijar de novo.”
Sinto vergonha alheia da minha própria cafonice.
Não aperto “enviar”. Apenas tento achar graça nessa idiotice toda e acabo
caindo num pesado e delicioso sono.

Caminhando sobre um chão seco, iluminada por nada além do céu que me cobre em
seu vasto neon púrpura, me pergunto onde estou, mesmo sentindo que já conheço

236
NÚMERO ERRADO

este lugar.
Não há como saber direções aqui. Não há com quem conversar. Não me lembro
por onde entrei. Não sei por onde sair.
Cobrindo minha pele trêmula tenho apenas algo que parece um vestido rasgado,
caindo aos pedaços. O pobre pano não faz nada para me proteger do ar gelado que
me petrifica toda vez que a brisa bate com mais força.
Paro aonde estou. Tenho a impressão de estar sendo seguida mas olhar á minha
volta é inútil, pois não posso ver muito nessa escuridão.
Respiraria fundo se pudesse, mas meus pulmões doem. O ar rarefeito deste lugar
me machuca por dentro e por fora, luta com meus alvéolos e recusa-se a ser absorvido
em meu sangue e me manter viva.
Subitamente, me assusto com o vago som de tambores. Paraliso, tentando
ecolocalizar sua origem. O som aumenta rapidamente, tom por tom, tum por
tum, um volume que invade meus ouvidos e preenche cada lacuna de minha cabeça.
Em autoproteção, coloco minhas mãos contra meus ouvidos, em vão. Acabo por cair
no chão e ferir meus joelhos, lutando contra o batucar de minha mente, tentando
gritar mais alto do que o som que a domina.
Consigo vencê-la e meu prêmio é o silêncio.
De quatro no chão, sinto algo quente escorrer por meu nariz. Não posso ver o
que é, mas tenho certeza de que é meu sangue. Isso sempre acontece quando não me
controlo.
Se eu não a domino, ela me domina.
Fujo de algo. Não sei exatamente de quê.
Engatinho no chão seco, escuro e rachado, que cheio de pequenas crateras e pedras
me castiga, e mesmo esgotada não desisto. Sinto que há algum lugar por aqui, algum
lugar no qual preciso chegar. Tento ser o mais rápida possível, rasgando mais meu
vestido e causando mais dano à minha já machucada pele.
Apalpando o chão, finalmente sinto algo: uma grossa raiz de árvore semicoberta
por terra.
Sorrio.
É aqui.
Continuo tateando e sigo a raiz que vai engrossando, e de uma acaba por
multiplicar-se em várias, todas me guiando para o mesmo vasto tronco.

237
AS FILHAS DE GUENDRI

Meu refúgio. Minha árvore. Meu poder.


É imensa, prepotente e soberana. Quente sob minhas palmas, queima minhas
mãos. Me ergo aos poucos, apoiando-me nela. Quero abraçá-la, mas nunca
conseguiria por completo contornar seu diâmetro com meus braços.
Não importa. Estou segura!
Eu venci, imperiosa armação! Beijo seu tronco, amorosamente.
Mas antes que me absorva para si como deve ser… algo muda.
Sou retirada de meu momento de celebração por uma mão que puxa meus cabelos
inclinando minha cabeça para trás, forçando minhas costas contra um corpo quente.
O corpo dele.
Inalo seu cheiro.
Cerro meus dentes.
— Acha mesmo que venceu? — sua voz é como gasolina que dentro de mim inicia
um fogo impossível de apagar.
Ele puxa minha cabeça rigidamente para o lado e rosna, baixo e grave contra
meu ouvido, passando a língua contra o lóbulo de minha orelha. Minha respiração
já ofegante, acelera ainda mais. Uma de suas mãos se apossa de minha garganta
que tenta continuar aberta contra a pressão que ele exerce. A outra decide explorar
minha pele e como uma cobra serpenteia por minha clavícula, tortuosamente vai
passeando por meu ventre deixando um rastro de ódio e vingança pela tenra pele.
E eu o deixo fazer isso. Eu sempre o deixo fazer o que quiser comigo.
De repente, ele rasga meu vestido, expondo ainda mais minha pele ao compacto
ar que nos rodeia.
Ele é elétrico. Sua mera presença é elementalmente um perigo para a minha
existência e nem com a ajuda de mil demônios eu posso me afastar disso. Sinto cada
vez mais a pressão de seu desejo contra meus quadris. Ele quer me devorar e rio
debilmente com o pecado inato disso, estremecendo com os pequenos espasmos que
seu toque entre minhas pernas me causam.
— Está morto. — entre gemidos descontrolados, o relembro desse nefasto fato.
Em resposta à minha arrogante condenação, num ato forte e ligeiro ele esmaga
meu corpo contra a árvore, chocando minha face contra o tronco. Rio sem humor
da dor que me causa pois meu lado masoquista aflora quando o lado sádico dele dá
as caras. E vice-versa.

238
NÚMERO ERRADO

Sempre soubemos revezar.


Ser o que o outro precisa na hora que o outro precisar.
Não mais.
Me firma contra o tronco da árvore agora pelos quadris com uma mão. O som é
a sinfonia que rege minha carne, ecoa em minha mente e institui rara submissão
em mim. Sei o que ele fará e anseio por isso.
Sem cerimônias ou avisos, ele me invade de uma vez só, impiedoso e prepotente
preenche centímetro por centímetro o vazio que existe dentro de mim quando não
estou com ele. Tento prendê-lo dentro de mim. O que posso fazer? Sou egoísta. A
pressão de seu contínuo e gradualmente acelerado movimento requer meu gritar,
mas a falta de fôlego não deixa.
Já fizemos isso antes. Muitas e muitas vezes. Mas agora é diferente. Não há
paixão, não há amor. Há apenas a vingança de um homem com uma lição a me
ensinar e um preço a me fazer pagar.
O que será que fiz para despertar os monstros internos deste homem?
Com destreza me vira de frente para ele. Meu vestido em frangalhos, pedaços de
madeira seca contra minha pele. Ele segura meu rosto e me beija com fúria.
Ele segura meus cabelos de forma bruta, pele próxima e emanando um frenesi
contagiante. Quando vê que me submeto com escárnio, coloca sua mão novamente
em meu pescoço e recomeça a me enforcar.
Ele me invade com precisão, numa velocidade quase impossível de acompanhar.
Meu corpo aguenta, pede, implora para que não pare, para que não tenha
misericórdia de nenhum dos pecados que cometi contra ele.
É uma incansável máquina, resoluto em enterrar-se dentro de mim, deixar sua
marca, nunca mais sair. Seus olhos, fixos nos meus que mal consigo manter abertos.
Eu vejo tudo neles. Tudo entre eu e ele. Nós existimos ali, por trás daqueles olhos
amargos, íris banhada em prazer. Somos tudo! Nada, nem ninguém pode nos
separar.
E todas essas lembranças organizadas em sua cabeça, são um turbilhão tumul-
tuados na minha.
Neste momento, deixo seu ódio transferir para mim. Recebo com grado. O convido
a acabar comigo, minhas costas quase em carne viva contra a árvore. Magicamente,
transformo sua deliciosa punição em um perfeito climax, pouco a pouco, cresce

239
AS FILHAS DE GUENDRI

como onda, cada gota de sua vingança, em peso e pressão, se unem e se quebram
sobre mim, me afogam e me exaurem de todo fôlego de vida que tenho, se esvai com
um único som vibrado contra a pressão de sua mão sobre minha garganta.
Ainda no paraíso particular que ele constrói para mim toda vez que nos unimos
assim, sinto-o despejar-se dentro de mim, sucinto e pulsante, sem desconectar seus
olhos dos meus.
Há limites em relação ao quanto uma mulher e um homem podem renunciar e
corromper entre si. Já ultrapassamos todos eles. Estou certa de que não resta mais
nada dentro de mim.
Desabo satisfeita, com um sorriso fraco em meus lábios. Ele me segura, não
me deixa cair. Nunca deixará de me proteger não importa o quanto queira me
machucar. Esse é seu defeito e ele sabe disso.
Jamais me deixará partir.
Por mais que invada meu corpo quando permito, sei que sou eu quem está dentro
dele.
E jamais sairei.
Tudo o que ele é pertence a mim.
Sim, eu venci.

Meu celular treme sobre minha barriga, aparentemente onde caiu depois
que peguei no sono. A vibração me acorda de um dos mais intensos e
possivelmente insanos sonhos que já tive. Minha respiração é ofegante e
minha dor de cabeça está pior do que quando acordei de ressaca esta manhã.
Mesmo ainda sonolenta e chocada com as imagens que minha mente
produziu alguns minutos atrás, checo o celular na ansiedade de que seja
uma mensagem de Lucas.

240
NÚMERO ERRADO

Não…
NÃO!
NÃÃÃÃÃÃO!
Que horas são agora?
Sete e meia da noite. Uma hora se passou.
Como que eu fiz essa cagada?
COMO?
Acordo completamente e pulo do sofá. Mandei dez mil mensagens
de “desculpa” e “mensagem errada”, mas para variar, Bauer não responde
nenhuma.

241
AS FILHAS DE GUENDRI

Meu Deus, será que ele vai me demitir? Considerar isso um desrespeito,
uma quebra de decoro profissional?
Após minha trigésima mensagem tentando me explicar, meu telefone toca.
É Bauer ligando. Congelo. Não quero atender, mas tenho que me explicar…
— Chefe!? — tento dizer mas a voz mal sai.
— Esse barulhinho de celular vibrando está me deixando louco. Se você
me mandar mais uma mensagem, fizer meu celular tocar mais uma vez, eu
juro que arrebento ele na parede, Morales. — declara na maior tranquilidade
do mundo. — E desconto um novo do seu salário.
— Ah… é que eu ia mandar aquela mensagem pra outra pessoa, mas daí
desisti, não vi que tinha mandado pra você e caí no sono, entende? Me
desculpa! Não estava sendo atrevida, não me demite… e também desculpa
encher sua caixa de mensagens, mas é que você não respondia então fiquei
preocupada, sabe… — estou desesperada mas tento soar normal.
— Acha que eu te demitiria só por que você quer me beijar, Morales? Então
nem teria te contratado. — não tenho certeza mas acho que ele solta uma
risadela aqui. Essa resposta/pergunta me tira do frenesi. Como assim? Quem
disse que quero beijá-lo? Nem consigo pensar numa resposta. Ele quebra
nosso extenso silêncio. — Meu Deus, Morales. Tenha senso de humor. —
Bauer critica e eu me pergunto como o Sr. Carranca tem a coragem de
insinuar que quem não tem senso de humor aqui sou eu. — Te vejo amanhã.
Cedo. O primeiro cliente chegará às 7:15, então não se atrase.
Após enunciar cada palavra, ele desliga sem nem esperar minha resposta.
Fico encarando o celular com cara de tacho, tentando entender o que acabou
de acontecer.
Respiro fundo. Ao menos não perdi meu emprego.
Massageio minhas têmporas e quer saber?
É melhor eu ir dormir antes que eu faça mais alguma cagada colossal para
estragar mais minha vida nesse final de semana.

242
37

É De Minha Natureza

A
ssim que retiram o corpo inconsciente de Alexis da arena, Garou se
levanta e anuncia a vencedora. Ela não é uma valquíria, é do mundo
de Lorde Vór, aparentemente da guarda pessoal dele.
Durante a escandalosa sessão de poucos aplausos e muitas vaias pela derrota
de Alexis que tinha obviamente se tornado a favorita da plateia, aproveito
para sair pela lateral e ir até ela.
Ver aquela lança a atravessando doeu em mim. E não posso nem expressar
o que sinto já que não quero que ninguém saiba de minha conexão com a
amazona derrotada e sendo carregada para fora da arena.
Chego até o subsolo da arena. Algumas das valquírias derrotadas se
encontram aqui, sendo colocadas em cubículos separados, dependendo da
gravidade se seus ferimentos. Poucas voltam a si sozinhas, muitas precisarão
de magia ou poções para se curar depois de suas lutas com Alexis.
E como já prestei serviços similares a Garou, decido que este seria um

243
AS FILHAS DE GUENDRI

bom álibi para usar e estar ali, esperando por Alexis e ajudá-la eu mesma.
Enquanto procuro por entre as paredes de pedras grossas e escuras onde
levaram e deixaram Alexis, posso ouvir algumas das valquírias comentarem
sobre ela, perguntando quem ela é e como luta tão bem.
É uma habilidade nossa de fada nos restituir de alguns machucados. O
tempo e o tipo variam dependendo da espécie. Eu por exemplo, não posso
me recuperar de muito, um corte um pouco mais profundo sendo meu
limite, mas imagino que as valquírias tenham uma anatomia mais resistente,
caso contrário o torneio não existiria, pois dificilmente creio que Garou
sacrificaria a guarda regencial dessa forma tão boçal, sendo que Adaris está
mais fraca que nunca e precisa de proteção.
Mas como eu não sei exatamente a extensão das habilidades de Alexandrai
nessa área, quis me certificar que acordará rapidamente, caso contrário, usarei
a magia emprestada para fazê-lo.
Quando a encontro, reparo que não se move e por isso choro tão descon-
troladamente sobre seu corpo ao vê-la inconsciente. Igor, agora ela… eu não
consigo segurar. Meu peito arde com tristeza. Mesmo imaginando que ela
acordará eventualmente, só a sombra da ideia de não tê-la mais em minha
vida num futuro próximo por causa da jornada perigosa em que a coloquei,
me faz cair de joelhos e me prostrar no mais amargo pranto sobre as costas
dela.

— Não, Alexis! Você também não, por favor!


Ouço Cali chorar e sussurrar, voz fraca interrompida por intermitentes
soluços, o peso de seu corpo todo contra minhas costas.

244
É DE MINHA NATUREZA

O que está acontecendo?


Ah, sim.
Agora me recordo.
Uma espada atravessou minhas costas no torneio durante minha luta final.
Magia barata foi usada em mim e sem minha espada ou meu escudo, perdi.
Sem noção exata de quanto tempo atrás isso ocorreu, abro os olhos
lentamente. Estou de bruços no chão de um lugar escuro, com areia colada á
lateral de meu corpo e rosto. Sinto um leve desconforto. Tento mover meu
pescoço mas a rigidez de meus músculos dificultam qualquer movimento.
Assim que recobro consciência, um formigamento corre minha pele e meu
sangue parece relembrar o percurso que deve fazer.
— Cali… — sem querer, o som sai como um múrmuro dolorido.
— Alexis! — a baixinha exclama assim que me ouve. Assim que confirma
que estou viva parece chorar ainda mais, ainda jogada pesadamente sob
minhas costas.
— Cali, eu estou bem… — ofereço. Não há motivos para chorar. Ela deveria
saber que ninguém morre nesse “Torneio”. Que tudo é uma farsa para entreter
Garou. Mas ela não me ouve, apenas soluça sem parar. — Por favor, não chore.
— peço. Essa demonstração crua de emoção está me deixando desconcertada,
e olha que eu acabei de sair de uma arena de combate e ainda tenho o sangue
de minhas oponentes marcados em meu rosto.
Acho que certas coisas como marcar-me em sangue me são mais naturais
do que lidar com emoções.
Me mover se torna gradualmente mais fácil e começo a fazê-lo assim que
Cali finalmente levanta seu corpo de mim. Retiro o capacete da armadura de
valquíria e decido ficar sentada por enquanto.
A sala onde estou é sombria, iluminada por um pequeno feixe de luz
formado pelas labaredas no alto de uma das paredes. Parece com a pequena
jaula onde fiquei antes da luta começar. Apesar de eu estar acostumada com
a escuridão, me incomoda pensar que ela se estende de meu lago cativeiro
por boa parte de Adaris. Dos novos lugares pelos quais passei para chegar na
arena hoje, pude finalmente ver o quanto havia algo seriamente errado com
essa terra.

245
AS FILHAS DE GUENDRI

A escuridão não é natural de nosso mundo.


Mas apesar dela, eu posso ver o rosto de Cali.
Sentadas, ela me abraça. A fadinha tem suas jovens asas batendo lentamente
e isso a faz parecer uma pequena criança jogada contra mim.
— Cali, eu estou bem. Não se preocupe. — tento acalmá-la novamente.
— É tudo minha culpa. — ela se afasta, sentando-se sobre seus calcanhares
e limpando seu rosto. — Eu tive que fazer aquilo, por favor me perdoe… —
soluça. Por um momento estou confusa, não faço ideia do que ela está falando.
— Você perdeu por minha causa. Eu… — sua voz se torna mais baixa e seus
lábios se retraem, parece ter receio do que vai dizer. — Retirei de você seu
escudo e sua espada. — ela abaixa a cabeça envergonhada e outra corrente de
lágrimas começa a rolar sob suas coradas bochechas. Entendo agora porquê
ela age assim: achou que suas ações tinham me matado. — Por favor, me
perdoe!
— Espera Cali, fique calma e vamos devagar. Você me fez perder? Era sua
magia me controlando? — ela meneia positivamente. Pois bem. Melhor do
que minha teoria original, a de que minha oponente trapaceou. Não precisarei
me vingar aqui fora. — Por quê você fez isso? — por um momento enquanto
a espero se recompor e responder, estudo seu rosto. A pouca luz não me
impede de ver o quanto ela mudou nesse pouco tempo em que estamos juntas.
Não sei dizer exatamente no que sua inocente juventude está se transfor-
mando.
— Enquanto você lutava, ouvi Garou conversar com um homem sobre
dar-lhe a vencedora do torneio…
Não sei se foram os soluços que quase me impediram de entender o que Cali
falou ou o quão absurdo é o que ouvi agora; Cenho franzido, raiva crescendo,
músculos enrijecendo novamente. Daria a valquíria a quem e para quê?
— Que homem é esse? — acordei de um sono profundo após intensa
adrenalina e exercício físico para já ser colocada sob outra corrente de euforia.
— Você sabe?
— Seu nome é Lorde Vór. Eu não sei quem ele é, nunca o vi antes de hoje.
— Cali soluça cada vez menos, ansiosa para me dizer o que ocorrera. — Só sei
que ele veio assistir o torneio e o ouvi conversar com Garou sobre escolher

246
É DE MINHA NATUREZA

para si uma valquíria e que seria a que vencesse.


— E onde foi que você ouviu isso? — essa é uma boa pergunta. Importa
pois uma possível proximidade física entre Garou e Cali pode ser perigosa e
imagino que ela saiba disso. — Onde você estava?
Ela pausa por um momento e com uma cara de culpa, desvia seu olhar do
meu.
— Eu vim assistir ao torneio para te ver. Quando Garou me viu no salão
principal, me convidou para sentar com ele de última hora, representar as
fadas para quem é de fora. Eu não tinha como dizer não. Sentei perto e como
queria saber o que diriam de você, se te descobririam… acabei os ouvindo
conversar enquanto assistíamos as lutas.
Tento permanecer calma.
— Cali, você se arriscou demais vindo aqui… Garou pode desconfiar se
você nunca veio ao torneio antes e de repente aparece. E ainda senta-se com
ele? — respiro fundo e tento não ficar paranoica ou soar rude. Sei que ela não
fez por mal e preciso me lembrar disso. — Espera… você disse que retirou
minha espada e escudo?
— Sim… quando os ouvi falando disso… tive que te fazer perder. — ela
segura o choro novamente. Cali está uma pilha de sentimentos tumultuados.
Confesso que é muito estranho para mim ver isso, sempre achei Cali centrada,
segura de si. Quando a conheci, decidiu arriscar tudo o que tinha por uma
causa que julgou ser boa. Ali, sem nada na minha vida, eu acreditei nela,
na sua convicção. E agora, aqui na minha frente… eu vejo uma garota com
sonhos interrompidos e esperança quase esgotada. Por Guendri, eu nem
tinha reparado nas marcas que começam a tomar sua pele. — Tive a ideia
de remover o escudo e a espada e impedir alguns de seus movimentos… foi
a única forma de te fazer perder, Alexis. O jeito com que você luta… você
acabaria vencendo se eu não fizesse isso, e Lorde Vór acabaria te levando!
Respiro fundo. Quero fazer mais perguntas mas não quero pôr Cali sob
mais pressão. Ela finalmente deixa tudo o que guarda em si sair. Extravasa,
bem aqui. Me aproximo dela para oferecer algum consolo. Apesar de estar
frustrada, entendo seus motivos. Olhando bem em seu rosto, vejo algumas
veias escuras traçando caminhos pelo lado esquerdo de seu pescoço, subindo

247
AS FILHAS DE GUENDRI

um pouco por seu queixo e maxilar. Provavelmente essa droga de magia


mexendo com ela.
— Eu não posso te perder também, Alexis. Você é a minha única esperança.
Essa é pior coisa que alguém pode dizer a você. Deposite suas esperanças
em si mesma, em Mabelai, em Guendri, qualquer outra pessoa além de mim.
— Tá tudo bem, Cali. Estou viva e perdi. Não me levarão para lugar nenhum.
Com um breve sorriso meu, ela parece mais calma por um segundo.
— Não é só isso, Alexandrai. Você é muito importante pra mim… talvez
ache que é só por causa de nossa missão e de Adaris, mas pra mim você se
tornou muito mais que isso.
Eu quero fazer ela parar de falar. Não quero ouvir nada daquilo. Sim, Cali
também se torna mais importante para mim a cada dia, mas isso é perigoso
no momento. Todos esses laços que formamos nos obrigam a fazer coisas
idiotas, como por exemplo, usar magia proibida em público logo em frente a
Garou. Ou entrar numa droga de torneio para provar que se é melhor que
um bando de traidoras e que se pode surrá-las a qualquer momento.
Pequenos atos egoístas que dizemos ser para o “bem maior”.
Pequenas mentiras perigosamente confortáveis demais quando justificadas.
Nesse exato momento não me considero receptáculo de nenhuma dessas
afeições. Não sem saber como reciprocá-las. Quero ser quem Cali acha que
posso ser. Uma lembrança toma minha mente de assalto quando penso nisso,
iluminando a ideia de que talvez eu possa ser essa pessoa…
— Cali! — lembrando do que aconteceu, deixo a euforia de contar as
duas coisas extremamente importantes mudar o tom da conversa: a pista de
Mabelai que Verena encontrou e a memória que me ocorreu durante a luta.
Cali olha para mim em alerta pelo meu tom de voz. Ele. Eu vi o rosto dele. —
Eu acho que tive uma lembrança durante a luta!
— Uma lembrança? — ela parece feliz mas confusa, seus olhos negros
arregalados e curiosos.
— Isso! Eu lembrei dele, Cali! Lembrei de… — ouvimos barulho de passos
se aproximando e me calo imediatamente. Vozes acompanham os passos,
embora abafadas demais para que possamos entender o que dizem. — Aonde
estamos exatamente? — Sussurro me lembrando de repente de que não

248
É DE MINHA NATUREZA

estamos em território familiar.


— No subsolo da arena. Valquírias são trazidas aqui para se recuperarem.
Por quê?
— Por que ele… — olho para frente sentindo minha carne pulsar como
sempre o faz quando… — Garou está vindo.

— Eu preciso sair daqui. — Alexis se levanta rapidamente.


— Alexis… você ia dizer algo. — sussurro. Sei que ela tem pressa, mas
quero saber do que ela se lembrou!
— Agora não. Preciso voltar para o lago imediatamente. — ela recoloca
o capacete de valquíria. — E Cali… muito obrigada por me proteger. —
sussurra antes de olhar pelo corredor que conecta todos os quartos e sair por
ele assim que acha que é seguro.
Suas palavras são significantes. Fecho meus olhos e respiro aliviada por ela
ter conseguido escapar. Limpo minhas lágrimas e me preparo para sair da
sala. Mas assim que viro…
Garou está bem de frente a mim, silenciosamente me encarando, acompan-
hado por Lorde Vór.
Tremulo de cima abaixo, jamais tive dois pares de olhos me olharem tão
friamente. Sem saber o que dizer, apenas abaixo minha cabeça mediante
a Garou, esperando que ele não possa ouvir as frenéticas batidas do meu
coração.
— O que faz aqui, Caliandrei? — Garou questiona.
— Eu vim ajudar as valquírias a se recuperarem.
Ele meneia a cabeça lentamente de forma compreensível e mesmo assim

249
AS FILHAS DE GUENDRI

eu sinto meus músculos tensionarem.


— Fui comunicado de que trouxeram a vencedora para este leito. — ele
olha a nossa volta. — Saberia me dizer onde ela se encontra?
Engulo em seco.
— Eu a tratei e ela já se foi. Mas com todo o respeito, se não me engano ela
não é a vencedora, Regente. — abaixo a cabeça novamente. — Ela perdeu a
última luta.
— Obrigada por seus serviços, Caliandrei. — Garou ignora minha opinião
sobre a luta e fala como se me dispensasse.
Eu respiro mais sossegada e me apresso a sair assim que lhe pago uma
reverência. Mas sou parada bem ao portão de metal escuro da sala de pedras
por um dos toques mais gelados que já senti em meu corpo.
— Um momento, se me permite. — volto meu olhar para Lorde Vór que diz
isso enquanto segura meu braço, me impedindo de sair da sala. — Caliandrei,
correto? — ele pergunta e eu balanço a cabeça. Ele solta meu braço e dá
alguns passos até minha frente, se posicionando perto demais para que eu
pudesse ficar calma. Ele me olha da forma mais predadora que já vi. —
Gostaria de lhe pedir que pagasse uma visita a minha amazona. Mesmo com
ela ganhando, quero ter certeza de que passa bem. — ele olha para Garou. —
Não se importaria, não é mesmo, Garou?
— De forma alguma. — Garou replica. — Ela é uma pocionista nata. A
melhor que conheço. — ainda olho para o chão. — Caliandrei, faça como
pede nosso convidado.
Quem eles pensam que são para me dar ordens assim? Cerro meus punhos
e encaro o chão tentando esconder a cólera. Eu preciso me acalmar ou
explodirei em magia aqui mesmo.
— Certamente. — cuspo as palavras. — Com licença. — ao menos posso
usar isso como desculpa para sair correndo daqui e o faço.
Por fim, acho que fingi tão bem suportar Garou e sua companhia que
começo a achar engraçado como uma das coisas que aprendi desde que
comecei a buscar justiça e verdade para salvar Adaris foi a manipular e a
mentir.
Para falar a verdade, me perturba o quão boa eu estou ficando nisso.

250
38

Você Parece Com Ela

A
manhã de segunda-feira foi corrida. Não a toa, me pediram para
vir mais cedo. O acumulo de tudo o que não fiz semana passada dá
as caras hoje. Entre múltiplas ligações perguntando se Bauer havia
voltado e uma boa quantidade de empreendedores visitando-o para breves
reuniões, eu mal parei sentada.
É o que eu precisava hoje: um dia corrido, ficar ocupada e não pensar em
Lucas ou no mico que paguei ontem a noite com a mensagem que mandei a
Bauer por engano.
Flávio me pediu ajuda para comprar um terno para um evento da faculdade
dele, então aproveito o horário de almoço para acompanhá-lo.
— Você parece triste. Vai, me fala quê que foi que aquele paquito te fez,
Magrela. — ele diz ao sair do provador.
— Gostei desse aí, Flavinho. Experimenta ele com a gravata preta. — ignoro
sua pergunta.
— Verena, não muda de assunto.

251
AS FILHAS DE GUENDRI

Ás vezes esqueço que Flávio tem apenas dezoito anos, especialmente quando
ele fica bravo por eu mudar de assunto quando faz perguntas pessoais. Sua
voz fica mais grossa que o normal quando conversamos sobre algum assunto
sério e por ser super alto, quando isso acontece aparenta ser mais velho. E
agora, ao invés de sentir que tenho um irmãozinho mais novo, sua carranca
combinada com o terno que experimenta o fazem parecer um irmão mais
velho.
E ele realmente está enfezado com Lucas.
— Não quero falar mais disso, Flávio. Não tenho mais o que dizer. — eu
juro que estou prestes a chorar e Flávio pôde perceber.
Tanto que ele se aproxima e me abraça.
— Ele se aproveitou de você, não foi? — sinto seu queixo se mover sobre
minha cabeça ao dizer isso.
— Não é verdade. Ele também estava bêbado. E foi só um beijo, nada
demais. — desfaço nosso abraço ao lembrar que estamos dentro de uma loja
fina demais para tais demonstrações dramáticas de emoções.
— Então por quê você tá com essa cara? Quer que eu quebro o Ken no
meio? É só falar.
Suspiro me sentido querida e protegida por um momento. Homens.
— Obrigada, mas dispenso. Agora coloca a gravata preta, depois a de seda
verde-escuro. — ergo as gravatas na ordem que citei. — Aliás, por quê você
não me fala da garota que vai levar nesse evento?
— Como sabe que vou levar alguém? — Flávio soa surpreso.
— Como? — rio. — Você não ligou para os outros eventos da sua facu,
muito menos para o que vestia neles. E agora tá todo paquito, como você
mesmo diz, querendo até usar terno e gravata. É obvio que alguma garota é o
motivo disso.
Me olhando incrédulo ele põe a gravata preta e assim como imaginei: ficou
perfeita.
— Meu primeiro Ferragamo. — comenta Flávio enquanto o alfaiate tira
suas medidas. — Dimmy compra os ternos dele aqui.
Uma das poucas coisas sobre Bauer que sei. Aliás, o terno de Flávio e tudo
mais são presentes dele, que tenta mimar seu afilhado. Digo tenta, pois Seu

252
VOCÊ PARECE COM ELA

Jair filtra e muito isso. Bauer literalmente tenta dar tudo para Flávio, e se o
Magrelo não fosse um bom garoto e só aceitasse o extremamente necessário,
seria um porre dum moleque mimado que tem tudo o que quer quando quer
por causa do meu chefe.
— E aí, vai me dizer quem ela é?
— Se ela atender minha ligação, sim.
— Como assim? Ela não deu certeza?
— Ela é meio complicada. Mas não tem problema. Eu gosto dela assim. —
ele abre um sorriso tão grande que me convence. — Não quero falar dela
agora que é pra não zicar. Se ela for eu te apresento.
— “Apresenta”. — repito o Magrelo. — Isso significa que eu vou ter que ir
também, é?
— Comida e bebida de graça, e eu vou ganhar uma medalha nesse negócio,
se você não for vai ser muita mancada.
— Então tá. É melhor ela ser gente boa hein, senão eu arranco a peruca
dela.

De volta ao escritório, eu trouxe a Bauer um almoço que comprei na Taqueria


onde Flávio e eu comemos, pois eu sei que ele ainda está em reunião e
provavelmente com fome, o que o deixaria mais mal-humorado que de
costume.
Bauer alimentado significaria Bauer menos enfezado e uma Verena mais
feliz. Todos ganhamos.
Sua reunião termina assim que chego e eu lhe entrego a sacolinha artesanal
com a comida em frente a porta de sua sala.
— O que é isso? — ele franze o cenho.
— Agradecimento por sábado e desculpas por domingo em forma de almoço.
— sorrio o mais branco dos sorrisos. — Seu próximo cliente chega em vinte

253
AS FILHAS DE GUENDRI

minutos. — ele olha para o saco, daí olha para mim, depois inspeciona a
sacola novamente. — Juro que não estou tentando te envenenar. — brinco,
mãos as costas. — Flávio disse que você gosta de comida mexicana. — me
justifico.
Por algum motivo ele parece confuso. Ofendido até. Aos poucos seu rosto
volta ao normal, ou seja, sem expressão nenhuma. O que esse homem tem de
bonito, tem de estranho.
— Obrigado, Morales. — múrmura com dificuldade antes de se trancar em
sua sala.
Sento a minha mesa e em vinte minutos o próximo cliente entra. Um senhor
de terno cinza com barba e cabelos brancos. Bem vestido, boa aparência,
bonitão para sua idade, com um sofisticado sorriso estampado no rosto.
— Boa tarde, Senhor Dugrine. — o comprimento, mais entusiasmada que
o normal. Não o conhecia pessoalmente, apenas nos falamos ao telefone, mas
eu já sei quem é. E estou muito feliz, pois sempre o quis conhecer. — Muito
prazer. Sou a Verena. — estendo minha mão e ele a aperta com vigor.
— Você é a Verena! Que prazer imenso finalmente te conhecer!
— Igualmente. Por favor, sente-se. Gostaria de um cafezinho ou um chá?
— Café sem açúcar, por favor. Açúcar faz um mal danado na minha idade.
— ele se senta e eu preparo uma xícara. — Sempre ao telefone tentei imaginar
como você era. — solta uma risada empolgada. — Mas nunca imaginei que
você fosse a cara da minha filha mais nova. — comenta após sentar-se.
— Mesmo? — o entrego a xícara cheia.
— Mesmo. — ele pega a xícara e agradece. — Tenho três filhas, sabia?
Sim, eu sabia. Ele repete isso de vez em sempre.
— Casa cheia, uh?
— Ah, se é. Tem meus filhos também. Mães diferentes, eles são do meu
primeiro casamento então não somos tão próximos, infelizmente. Mas a mais
nova é a minha moleca, muito apegada a mim. E eu á ela. Igualzinha a mãe.
Teimosa que só. Cabeça dura, nunca me ouve, mas adoro o jeito bagunceiro
dela. Nunca achei que colocaria no mundo um furacão desses! — ri. Senhor
Dugrine é tão falador ao vivo quanto no telefone. — Já a mais velha vive
pegando no pé dela. Acho que é porquê eu e ela somos tão próximos. Ciúmes

254
VOCÊ PARECE COM ELA

bobo. A do meio tenta separar a briga das duas. As três brigam e brigam, mas
não se desgrudam.
— Assim são famílias. — comento fingindo que sei do que ele fala. Dugrine
é tão simpático que não me importo em ouvir as histórias de suas filhas.
Parece um pai bem orgulhoso. Fala delas como seu bem mais precioso. E
toda vez que o faz, sinto uma pontinha de inveja pois adoraria ter um pai que
falasse assim de mim para outras pessoas.
Minutos depois, Bauer abre a porta de sua sala.
— Dugrine.
— Dimitri.
Os dois se abraçam efusivamente. Bauer parece… feliz. Feliz em ver alguém.
Momento raro, eu deveria tirar uma foto.
— Finalmente veio me visitar.
— Só vim aqui pra finalmente conhecer sua simpática secretária. — sr.
Dugrine sorri para mim e eu sorrio de volta. — Traga ela a meu barco na
próxima vez que velejarmos, sim?
ELE DISSE BARCO? ISSO, ME LEVA! Adoraria velejar!
Seria essa minha chance de ter meu próprio véio da lancha?
A ideia me faz fazer uma careta.
— Não sei Dugrine, não confio em mais ninguém pra ficar aqui e cuidar
do meu escritório além dela. — Bauer me lança um olhar do qual eu não sei
retribuir. Finjo que não sei que ele confia em Lena mais que qualquer outra
pessoa para isso. E tudo bem pois ela é a melhor mesmo.
— Bem, então você fica aqui cuidando de tudo e ela vem comigo!
Eles riem e eu não sei se foi o que Bauer disse sobre confiar em mim ou o
convite que Dugrine fez para velejar, mas ao olhar para os dois sem querer
abro um mega sorriso de orelha a orelha.

255
AS FILHAS DE GUENDRI

Ao cair da noite, diferente do resto do dia, o escritório finalmente está quieto.


Bauer e Dugrine saíram há uma hora atrás para celebrar mais um contrato
fechado como sócios da Cachaçaria Barrilha, a cachaça de rico que bebi como
se fosse água quando descobri que Lucas tinha namorada.
Sozinha e no ócio após completar minhas tarefas do dia, tentei evitar ficar
olhando meu celular esperando uma mensagem de Lucas. Mas foi impossível.
Até agora ele não mandou nenhuma.
Bem… o que tenho a perder se eu mandar a mensagem primeiro? Sei que
disse que não o faria mas… crio culhões e sem pensar duas vezes o faço.
“Oi, Lucas, espero que tenha uma boa semana!”
Nada demais, apenas uma mensagenzinha inocente! Apenas dois vizinhos
amigos, desejando uma boa semana ao outro!
— NADA DEMAIS! — digo a mim mesma num tom que saiu mais frenético
do que eu pensei, tentando me convencer que não foi uma atitude desesperada,
querendo dizer “Eeei vizinho lindo, esqueceu que nos beijamos? Não some! Diz
que sente por mim o mesmo que sinto por você! Larga a Sara e fica comigo!”
Coloco o telefone sobre a mesa e espero uma resposta.
Cara, que coisa horrível, e como estou ansiosa!
Cinco minutos se passam…
Dez minutos…
Vinte…
QUE DROGA, LUCAS! NÃO ME DEIXE NO VÁCUO! Estou roendo as
unhas!
Trinta fucking minutos se passam…
E quando já estou pronta para entrar na fossa, meu celular vibra levemente,
sua tela se acendendo.
Uma mensagem de Lucas.
Uma mensagem DE LUCAS!
Meu Deus, Verena, quantos anos você tem? Pergunto a mim mesma, pois
pareço uma pré-adolescente.
Por fim, abro a mensagem.

“Tudo bem? Então, queria conversar com vc sobre sábado, acho que fui muito

256
VOCÊ PARECE COM ELA

precipitado e queria pedir desculpas. Não quero te perder como amiga. Te vejo em
breve. Uma boa semana pra você também.”
Hmmmm.
Fecho a mensagem.
Deleto a mensagem.
Deleto contato.
Desligo celular.
Jogo ele do outro lado da sala de recepção do escritório.
Meu peito queima e apesar de minhas fúteis tentativas de não chorar,
começo a fazê-lo com tanta força que minha cabeça começa a latejar de
dor.
Precipitado? Pedir desculpas? Por mensagem? Que droga Lucas, nós nos
beijamos e somos vizinhos, por quê não bate na minha porta e diz isso na
minha cara? Que tipo de homem é você?
— Boa noticia, Morales. Fechamos um contr… — nem vi Bauer entrando.
Ele pára e me olha. Seu sorriso desaparece, sua boca se torna uma linha reta.
Ele franze o cenho confuso, me observa e deixa uma longa pausa silenciosa
falar por ele. Se aproxima da minha mesa como se estivesse se aproximando
de uma bomba prestes a explodir. — O que aconteceu?
Bauer parece fisicamente desconfortável com meu estado emocional, como
se não pudesse se decidir entre me confortar ou sair correndo. Ele opta
por cruzar seus braços sobre a mureta de mármore branco a minha frente e
pacientemente esperar minha resposta.
— Não é nada. — digo quando finalmente consigo me controlar.
Ele revira os olhos, obviamente irritado com minha resposta.
— Nada? Tem certeza? — cético, tamborila os dedos sobre o mármore
branco.
Seco minhas lágrimas, cruzo meus braços sobre meu peito e tento explicar.
Preciso falar com alguém. Vai Bauer mesmo.
— Lembra do meu vizinho de sábado? — mal consigo falar. Choro mais
ainda.
— Ah, é isso. — ele revira os olhos novamente mas dessa vez não por
surpresa ou deboche, na verdade parece aliviado. — Era óbvio que isso

257
AS FILHAS DE GUENDRI

aconteceria, Morales.
— Como assim “era óbvio”? Você nem sabe o que aconteceu!
— Você mesma me disse que ele tinha namorada. O que achou que
aconteceria? Que ele a largaria por você?
— Não achei isso… — sim, era exatamente o que achei, só não queria
assumir a idiotice em voz alta.
— Então porque deixou ele te beijar? — pergunta irônico e eu não quero
responder. — Por favor, Verena. Não seja aquele tipo de mulher que dá muito
de si, aceita pouco de volta e depois se surpreende com os óbvios resultados
desastrosos da troca.
Eu sei lá que tipo de mulher eu sou! Eu só queria ficar com ele… sei que fiz
besteira. Não que Bauer esteja errado, mas eu não quero ouvir.
— Eu achei que Lucas gostasse de mim; Pelo menos um pouco.
— Se um homem precisa ficar bêbado pra te beijar Morales, dificilmente
ele goste de você. Sei que é inteligente o suficiente pra saber isso.
— Meu Deus, Bauer! Não precisa ser tão grosso, tão maldoso.
— Eu sou o maldoso? EU? — ele ri sem humor. — Você deveria me
agradecer por não te deixar ir pra casa sozinha com aquele cara, ou seu
arrependimento seria maior ainda.
Isso também é verdade. Mas agora não é hora de jogar na minha cara.
— Ah, é? — seco minhas lágrimas, irritada. — Que lindo receber lição sobre
relacionamentos de você, como se eu não tivesse que lidar com uma da suas
exs tentando quebrar a porta da sua sala porquê você viajou pra Búzios com a
irmã dela! — explodo. Não devia, mas eu estou revoltada.
— Ah. Então foi assim que a linda amizade se formou. — caçoa, olhando
para a porta da sua sala, provavelmente imaginando a cena.
— Vocês homens são todos iguais! — o ignoro. — TO-DOS-I-GUA-IS!
Você não sabe como é! Tenho certeza de que meu chefe, o senhor pegador
NUNCA PASSOU POR ISSO! Não sabe como dói!
Preciso falar o que sinto, preciso botar para fora tudo o que está em meu
peito.
Pacientemente me ouvindo e sem mudar sua expressão, ainda inclinado
sobre a mureta, Bauer estende a sua mão e segura meu queixo assim que eu

258
VOCÊ PARECE COM ELA

finalmente paro de falar, forçando meu olhar contra o dele.


Acho que falei mais que devia.
Agora posso ver em seus olhos uma leve onda de impulsividade e ódio
calmamente contida em suas retinas. Seja lá o que eu disse, devo ter tocado
em alguma ferida.
Se eu pudesse fugir da bronca que sei que está por vir, fugiria.
— Eu nunca “enrolei” ninguém, Verena. Alina acreditou nas próprias
fantasias que inventou sobre mim. Desde o começo deixei bem claras minhas
intenções com ela e ela aceitou, e eu já te expliquei isso mais vezes do que até
mesmo me importei em explicar a ela. — as palavras de Bauer são tranquilas
mas penetrantes. Seus olhos, mais vivos do que nunca. — Jamais cometa o
erro de achar que sabe pelo que passei ou não. Já me decepcionei com alguém
e queria eu não saber como é. — sua voz fica ainda mais firme e eu sinto o
gosto da amargura dela como se estivesse em minha própria língua. — Sabe
como se sente ter seu coração arrancado do próprio peito por quem se confia
mais do que ninguém? Eu sei. Infelizmente, eu não tive a sorte que você acha
que tenho.
A fala de Bauer é fria, contrastando com seu toque acalorado em meu rosto.
Ele usa a mão que está em meu queixo para secar uma lágrima que desliza
sem esforços por meu rosto. Daí sorri, calmamente. Nem parece que acabou
de me dizer o que disse.
Estar a frente de seus lábios e olhos é extasiante, mesmo que suas palavras
contenham a fúria armazenada de um amor antigo e mal resolvido. Um
relacionamento que visivelmente o despedaçou e a ferida ainda está aberta.
Seja lá quem fez isso com ele, certamente o marcou para sempre.
— Desculpa… eu não…
— Vá pra casa, Verena. — Bauer me corta, quebrando o transe em que me
pôs. — Esqueça esse cara. E a noite de sábado.
Eu respiro fundo. Sinto que não quero esquecer a noite de sábado pois nela
vi Bauer rindo, descontraído. O pensamento em si é repentino e surge do
nada, fazendo-me sentir mais estranha do que eu já me sinto no momento.
Me afasto dele, mesmo não querendo.
Daí me lembro de nesse mesmo escritório, consolar uma mulher barraque-

259
AS FILHAS DE GUENDRI

ira enquanto jurava que nunca seria como ela, que jamais choraria por um
homem.
Esse escritório está zicado.
Vou até o outro lado da sala e resgato meu celular.
— Joguei na hora da revolta. — explico a Bauer que não entende o que meu
celular faz atrás do sofá da recepção.
— Da próxima vez jogue algo mais barato, Morales. Esses aparelhos são
caros. — argumenta me fazendo rir entre as lágrimas.
Lembro da assistência que Bauer me dera no sábado. Não só a carona, mas
como um todo. Na hora, achei um infortúnio. Mas agora…
Paro na porta do escritório e antes de sair, me viro para ele.
— Obrigada pelo que fez por mim sábado, Dimitri. — pela primeira vez
uso seu primeiro nome. Por um momento, parece surpreso ao ouvi-lo sair de
minha boca.
Ele me assiste colocar minha bolsa nas costas e caminhar até a porta. Antes
de sair me viro para ele, e o vejo me lançar o sorriso mais genuíno que já vi
em seu rosto.
Em silêncio, não tento entender, apenas sinto o interessante efeito que isso
tem em mim.

260
39

A (F)Utilidade da Resistência

É noite de segunda-feira no mundo humano. Estou na casa de Igor,


arrumando as coisas que já arrumei outrora e que tristemente continuam em
seus lugares, intactas.
Sei lá, preciso fazer algo aqui ou vou enlouquecer pois parece a casa de um
fantasma, nenhum movimento desde quando a deixei da última vez e isso me
mata por dentro.
A flor que coloquei na cabeceira do quarto onde Igor está já murchou.
Assim como eu.
Estou drenada e só pioro.
Minhas emoções fora de controle, minha mente também. Divergindo entre
euforia e profunda agonia, tento meu máximo me controlar. Mas preciso usar
a magia dada. Preciso usá-la em Igor para ao menos mantê-lo respirando, e
também preciso usá-la para atravessar mundos.
E quanto mais eu a uso enquanto estou fora de controle, pior me sinto.

261
AS FILHAS DE GUENDRI

Quando cheguei aqui, peguei o celular de Igor e para minha surpresa, o


nome de Flávio está na tela. Quando toco a notificação o celular desliga na
hora. Julgando ser falta de bateria, o conecto a parede pelo cabo, e assim que
ele liga novamente, vejo que Flávio me mandou uma mensagem.
“Vc não sai da minha cabeça, Cali. Vc vai na festa comigo?”
Eu fico tão feliz quando leio isso que posso sentir meu coração sorrir
também. Eu respondo um “Nos veremos em breve, prometo.” na real esperança
de que isso aconteça.
Mas mais uma vez, tenho minhas mãos sobre o coração de meu amigo.
Estou assim já faz um tempo, fisicamente cansada de ficar na mesma posição
e não posso parar. Igor precisa acordar e esse é meu foco.
Eu quero ver Flávio. Muito… pelo menos queria até o momento em que
me olhei no espelho na casa de Igor. A última coisa que quero é que Flávio
me veja assim, com veias negras por meus braços e subindo por meu pescoço
e rosto.
Eu preciso invocar a Sombra em breve, pedir mais poder. Eu preciso
descobrir quem é Nássera e como sabe do que estou fazendo, ou onde Verena
mora. Tenho que confirmar se Verena está bem e se Jaqueline e os outros que
nos ajudaram também sofreram ataques. Eu preciso saber se Alexis conseguiu
fugir e chegou a tempo no lago, e que Garou não desconfia de nada. Eu preciso
saber que memória ela teve e o rosto de quem ela viu.
E mais importante: quero saber aonde Mabel está e se estamos perto de
encontrá-la.
Mas eu não sei de nada. Absolutamente nada.
Uma grande tola, é isso o que sou. Uma sonhadora idealista com um
otimismo ingênuo que só pôs todo mundo em perigo. Julguei outros por não
agirem para salvar Adaris e no fim, minhas ações só pioram a situação.
Num súbito momento de raiva, pego o vasinho com a flor murcha e o
arremesso contra a parede com um grito que estava entalado na garganta.
Estou aqui, desolada sobre o corpo inerte do meu amigo que não reage a
nada do que faço. Não sei para onde ir nem como continuar! Para falar a
verdade, não sei nem para quê exatamente seguir adiante com tudo isso. A
ruína é o destino e não há nada que eu possa fazer.

262
A (F)UTILIDADE DA RESISTÊNCIA

— Eu não sou ninguém, Igor. — múrmuro mesmo sabendo que ele não
pode me ouvir. — Eu pensei que podia mudar alguma coisa, salvar nosso
mundo… mas não posso. Não adianta! Não há nada que eu faça que possa
alterar nossas situações. Na verdade… tudo o que faço só piora. Eu não sou
nada! — sem perceber, estou a gritar. — Por quê achei que eu podia salvar
Adaris? Eu não posso mudar nada! Sou uma chorona patética! Eu desisto
dessa droga toda! Desse plano estúpido! Não me importa mais!
As paredes do quarto de Igor ecoam o que digo, repetindo para mim o
acabei de dizer, de novo e de novo, confirmando minhas falas de fraqueza de
forma uníssona.
Parecem formar suas próprias vozes para acusarem meus erros, me julgarem
culpada e darem minha sentença: a derrota.
— S-se vo…cê… d-desis…tir ag-gora…
Espera... isso não é um eco.
Eu ouvi claramente?
Seco meus olhos e não acredito no que vejo ou ouço. Será que alucinações
também são partes dos efeitos colaterais da magia negra que corre minhas
veias?
Pois devo estar alucinando.
— I…Igor? — uno minhas forças e pergunto com medo da resposta.
Afobada, me jogo de joelhos ao chão do lado de sua cama. Seus lábios se
encontram semiabertos. Sim, é a voz dele! Eu a reconheceria em qualquer
lugar! Ele falou comigo! Tenho certeza de que falou comigo! — Igor! Igor! —
seguro suas mãos frias com firmeza.
Ele tenta mover os lábios lentamente e eu quase tenho um revertério
frenético quando vejo isso.
Igor acordou!
IGOR ESTÁ VIVO!
— Cali… — ele tenta sorrir ao dizer meu nome. — Por fa… vor, não cho… re,
minha pe… quena. — sua voz é tão fraca.
Eu não quero chorar novamente mas conter lágrimas de felicidade é tão
difícil quanto conter as de tristeza. Coloco todas as minhas frustrações de
lado. Igor acordou e isso é tudo o que importa. Mesmo deitado, tento abraçá-

263
AS FILHAS DE GUENDRI

lo. Mesmo não querendo machucá-lo, não me contenho.


— Igor! — falo por entre as lágrimas, meu som abafado contra seu ombro.
— Finalmente, finalmente! — chorar é um exercício físico facial fatigante,
já posso sentir meu rosto doer. — Estou tão feliz meu amigo! Eu estava tão
preocupada, mas por Guendri, você finalmente acordou!
Ele sorri e fracamente segura minha mão de volta.
— O que… acon…teceu?

O tempo usado pelos humanos me fascina. Quem quer sua vida regida por
sessenta números que se repetem vinte e quatro vezes?
Dois dias.
Dois dias que sou serva desses malditos sessenta números.
Dois dias diretos com Garou.
Após o torneio no subsolo da arena, ele procurou por quem vencera todas
aquelas batalhas. Sem encontrá-la, veio exercer seu acumulado desejo em
mim. Isso é perversamente irônico, já que foi minha ira e violência enquanto
disfarçada de valquíria que o causou essa euforia.
Agora é meu castigo acalmá-la.
De qualquer forma, acabei sem poder dizer a Cali sobre a pista que Verena
decifrou no mundo humano, ou sobre a memória que tive de Guendri.
Mal tive tempo de me recuperar por completo. Nesse momento estamos
dentro de meu lago, ele me segura pelos quadris enquanto minhas palmas
agarram-se como podem na terra que cerca a beira das águas.
Com minha mente longe do meu corpo, faço uma introspecção do que se
passou até aqui. Do que mudou agora. Essas lutas acenderam acendeu algo

264
A (F)UTILIDADE DA RESISTÊNCIA

dentro de mim. Sinto isso e não posso negar. Ao pisar na arena eu já sabia que
não era mais a mesma. Bem, ao menos a mesma que fui até então. É como se
uma peça desse quebra-cabeças que sou tivesse se encaixado. Mas não uma
peça qualquer: uma vital, uma peça que define e muito bem a imagem final.
E se eu não estivesse ocupada com Garou, tentaria entender a tal imagem.
— Seu corpo me inebria, minha bela… — sussurra em meu ouvido, com
uma mão que acaricia meu pescoço.
Assim que ele me solta com todo o cuidado, eu viro de frente para ele e o
estudo, cólera velada em meu olhar. Após tocar meu rosto com cuidado e
algum tipo de afeição, mergulha em meu lago para se refrescar, pois o calor
que criamos nos rodeia e nos sufoca.
Quando me deixará? Quero ficar sozinha para reorganizar meus pensamen-
tos e plano de encontrar Mabel com a pequena pista que temos. É por sua
causa que estou presa aqui, penso. É por sua causa que não consigo me libertar.
Vejo meu aprisionamento nele e minha respiração acelera. A raiva recomeça
seu lento caminho em meu coração, se espalhando aos poucos em meu sangue,
percorrendo minhas veias, iniciando e fomentando um descontrole irracional.
Quase o mesmo sentimento que me coordenou durante o torneio.
Minhas mãos tremem, acompanhando o arrepio que passa por minha
espinha. Eu quero enforcá-lo, e uma ideia me ocorre de como fazê-lo. Quero
e posso matá-lo, aqui, agora. O pensamento em si me excita.
Vou atrás dele e ele me olha. Um olhar diferente, confuso. Pressiono meus
lábios nos dele e o beijo com ódio, laçando minhas pernas ao redor de seu
abdômen e meus braços em volta de seu pescoço. Preciso colocar o nojo de
lado por momento. Não preciso mais esperar, mantê-lo vivo e enganá-lo.
Nesse momento, só quero que ele sinta meu tormento, minha inigualável dor.
Ainda no colo dele, não reparo que ele me move de lugar. Só me dou conta
quando sinto o áspero chão sob minhas costas. Mas me nego a ficar em baixo
dele dessa vez, preciso de um ponto físico de vantagem. Uso toda minha força
para virá-lo e consigo. Garou não esperava por isso. Posso jurar que vejo
desorientação em seu rosto ao me ver controlar a situação. Pudera. Eu nunca
fiz nada do tipo, apenas recebo suas ordens, calada e complacente, do jeito
que me ensinou a ser.

265
AS FILHAS DE GUENDRI

Deitado e toda vez que tenta se levantar, o pressiono de volta para baixo. O
Grande herdeiro de Adaris não quer aceitar a posição que lhe dei. Ele desiste
de tentar mudar nossas posições e só me assiste com o olhar mais intenso
que já recebi.
Eu odeio esses olhos cinzas.
Durante o torneio, redescobri a maravilhosa sensação de ter carne viva
contra minhas mãos. A cada valquíria e outra que caía, eu me deliciava
ao machucá-las e fazê-las sofrerem. Quem não gosta de ganhar? Julguei,
condenei e entreguei a sentença eu mesma, e senti seus corpos definharem
contra a força de minhas mãos.
Ah! É vivo, delicioso, intoxicante. Aparentemente é quem eu sou.
Sinto semelhante vontade de novo, de quebrantar e consumir algo por
minhas palmas. Sem parar meus quadris, coloco minhas mãos em volta do
pescoço de Garou. Quero sentir aquilo novamente. Ele não me impede,
apenas fita meu rosto extasiado, obscenamente curioso.
Maldito seja, Garou. Maldito seja o dia em que decidiu invadir meu corpo, tomar
o trono de Adaris e me enjaular. Maldito seja pelo que faz com Adaris, com seus
habitantes, até com as estúpidas valquírias. Por não procurar meu pai ou minha
irmã, e por não me dizer a verdade.
Tento juntar minhas palmas em volta de seu pescoço com mais força mas
ele é tão grande, seus músculos tão fortes que temo não causar metade do
impacto que gostaria. Mas não importa. Minha mandíbula se fecha com
força, minha gengiva dói com a pressão. Meus braços obedecem e as mãos
seguem as ordem de meus pulsos.
Seus olhos saltam um pouco, parecem inquietos com a pressão agora não
tão intima quanto ele achou que seria. A força é tremenda, eu sinto sua
garganta e fechar e seu corpo começar a responder ao que eu tento fazer.
A movimentação anterior se transformara eu outra coisa, outra coisa da
qual ele tenta se defender, suas mãos grandes ao redor de meus pulsos. Ele
não consegue me parar e me encara. Eu o assisto tentar me conter, respirar,
seu rosto avermelhando. Tenta falar algo por entre os dentes.
Sorrio.

266
A (F)UTILIDADE DA RESISTÊNCIA

Minha cabeça embaixo da água, me sinto sufocar, engolir sem querer, líquido
invade todo e qualquer orifício de minha cabeça. Eu nunca tive medo das águas, ao
contrário, é minha aliada, me protege e me esconde, me cobre e me acaricia quando
o nada é tudo o que tenho. Mas aqui aonde estamos, nem eu nem elas temos controle.
Sou forçada contra ela, e ela me machuca. Uma mão puxa meu cabelos, trazendo
minha cabeça para fora dela, ar de volta a meus pulmões. É escuro quando abro
os olhos. Não vejo nada. Não há nada para se ver. Apenas ouvir. E são essas as
palavras que tão claras é impossível não ouvir;

Não conseguirá se livrar tão fácil assim, Alexandrai, esse é seu eterno castigo.
Render-se a mim é o que merece por ter perdido. Não é digna. Não é limpa. Você é
sórdida e é minha. Eu sou sua prisão, não esse lago nem essa escuridão. Eu. Seu
corpo e sua alma me pertencem. E você deveria ser mais grata a isso. Te lavei de
toda impureza e te curei de todos os males. Por mais que me deixe ou saia daqui,
sempre estará presa a mim. Sou sua razão de viver. Aceite isso de uma vez por
todas.
Seu pai não virá te salvar, minha bela.

Arregalo os olhos, alarmada. Não faço ideia do que aconteceu há um minuto


atrás, como se minha mente viajasse por um segundo em outra dimensão mas
ainda assim, nunca sai daqui, de cima dele.
O olho, assustada e confusa.
Eu posso jurar que por uma fração de segundo, eu estive dentro dele, dentro
de sua mente, e pude entender o que sempre diz naquela língua maldita que
usa as vezes e que nunca me fez nenhum sentido.
Eu paro o que comecei, atônita. Ele termina o que começou e procede
como se nada tivesse acontecido.
Perdi uma chance única. E de repente estou completamente exaurida.
Estive na mente de Garou e enquanto lá não me lembro de ter sentido tanto
medo em minha vida. Mas ainda no chão e sem forças, o assistindo partir,
ainda foco no sentimento que me resta e transformo aquele medo em coragem.
Te prometo que isso acaba aqui, Garou.
Isso.

267
AS FILHAS DE GUENDRI

Termina.
Aqui.

268
40

Eureka!

D
entro de um ônibus no caminho para casa, eu olho a chuva forte e
passageira dominar e deixar São Paulo ainda mais caótica. Eu tento
controlar o choro dentro do transporte público. Quis demorar o
máximo possível para chegar em casa hoje e tentar evitar esbarrar em certos
vizinhos. Então, nada como pegar um ônibus em Sampa em horário de pico
se você quer demorar muito a chegar em qualquer lugar.
Saio da minha fossa momentaneamente quando meu celular começa a
tremer no bolso da minha jaqueta jeans.
— Lena? — seco a lágrima que escapa de meu olho. A ligação de Lena me
surpreende. Ela não é de ligar, é mais do tipo que manda mensagens rápidas
e efetivas. Tento me lembrar se esqueci de fazer alguma tarefa no trabalho. —
Tudo bem?
— Comigo, sim. E você? Ainda chora? — como assim “ainda” chora? Lena
não estava no escritório hoje, não me viu chorar. — Dimitri pediu pra te ligar.
Está preocupado. E pelo que ele disse, eu também fiquei. Ele achou que você

269
AS FILHAS DE GUENDRI

gostaria de conversar com alguém. Uma mulher, mais necessariamente. —


Lena explica e eu começo a entender.
Nunca pensei que ela… ou ele… que nenhum dos dois se importassem
comigo assim.
— Obrigada, Lena. Eu… acho que vou ficar bem. — ou não, já que naquele
exato momento eu começo a chorar ainda mais só pelo fato dela demonstrar
esse cuidado comigo, e até mesmo por Bauer recrutar ajuda para me consolar
porque eu estou triste.
Grosseiro, mas bonzinho.
Eu nunca vou entender Bauer.
— Verena, não sei quem esse cara é, e não quero saber, mas você não precisa
dele. — ela parece um robô, como se aquela voz automática do Google falasse
comigo. Suas palavras parecem mais ordens de um general que um conforto.
— E honestamente, você não deveria ter beijado alguém compromissado. Não
julgo isso uma atitude digna, mocinha. — arregalo o olho. Meio fofoqueiro meu
chefinho querido, não?
Apesar de por algum motivo ter gostado de ouvi-la me chamar de mocinha
como se fosse uma mãe brava, sinto vergonha. Ser chamada a atenção assim…
ás vezes não aceitamos ser corrigidos, pois não é fácil admitir os próprios
erros. Mas ela está certa. Se eu aceito as palavras doces de parabenização ou
consolo, tenho que aceitar as duras corretivas também.
Respiro fundo, admitindo que minha atitude fora canalha mesmo. Me
arrependo de ter tentado passar Sara para trás assim. Especialmente depois
de ela ter sido legal comigo. Cometi um baita erro e agora que tudo foi por
água abaixo, percebo isso.
— Você tá certa, Lena. — aprendi minha lição.
Da pior forma possível.
Mas antes tarde do que nunca. Certo?
Após mais alguns conselhos que certamente eu gostaria de ter ouvido
durante minha adolescência, Lena se despede com uma ordem final.
— Agora esqueça-o, está bem? Tire o dia de folga amanhã. Ou não, você
decide. Talvez você seja como eu, gosta de se ocupar quando está chateada.
Mas esqueça-o. Sei que ele mora perto de você, aconteça o que acontecer não

270
EUREKA!

vá atrás dele. Vida que segue. E me mande mensagem se precisar conversar.


Boa noite, Verena.
Ela desliga após eu me despedir e agradecer. E eu não sei se sorrio ou se
choro um pouco mais, então faço os dois ao mesmo tempo, e algumas das
pessoas que estão no ônibus me olham de soslaio.
A ligação meio que me inspirou. Me sinto querida e importante, exatamente
como preciso me sentir num momento desses. Sempre fui muito sozinha
e já estou acostumada com isso, sem ter com quem conversar, engarrafo
tudo o que sinto. Talvez por isso tive a afobada atitude de tentar forjar um
relacionamento com Lucas. Não sei ao certo. Foi uma breve, intensa e boba
afeição. Mas agora, lembro a mim mesma de que posso ter relacionamentos
mais saudáveis com outras pessoas, da forma correta. E preciso focar nisso,
tentar com alguma outra pessoa.
Quem? Não faço ideia.
Eu sei que não vou esquecê-lo de uma hora para outra, mas isso já é um
começo.
Pronta para obedecer a melhor ordem de Lena, enquanto no coletivo
ambulante me encarrego de esquecer imediatamente todas as coisas “Lucas”.
A começar por eliminar as cenas de sábado a noite de minha mente. Desde o
momento em que ele chegou, que dançamos, quando sentamos para beber,
quando ele disse que quase não veio por que teve que dirigir ida e volta para
algum lugar com sua mãe mas veio mesmo cansado, os shots de tequila, mais
dança, agarração e os maravilhosos beijos no escuro corredor do bar de Bauer,
que aparece sisudo e até que apessoado no corredor…
Espera…
Algo me ocorre.
Qual o nome do lugar que Lucas disse que foi no sábado?
Para… parasisala… paralasialaba?
Não, espera… tá errado. É que nem o nome do estado. Parana… e fica há
algumas horas de São Paulo. Deixa eu procurar no google…
PARANAPIACABA!
Não sei por quê essa palavra me parece importante no momento. Sinto uma
lâmpada acender sobre minha cabeça, não sei exatamente por qual motivo.

271
AS FILHAS DE GUENDRI

Já a vi em algum lugar? Ou algo semelhante talvez?


Aonde foi mesmo?
Minha mente vasculha pela informação. Parece estar na ponta da língua,
mas demoro alguns momentos para lembrar onde é que vi essa bendita.
Quando lembro, paro de chorar imediatamente: no papel em que Igor
rabiscou e que Alexis me mostrou, estava escrito “Parana” e no lado oposto,
“caba”.
Seria isso? Seria esse o lugar?
SÓ PODE SER!
Essa é a lâmpada! Meu cérebro conectou tudo subconscientemente antes
que eu pudesse entender. Faz sentido!
De chororô, começo a sorrir empolgada com a descoberta. O pessoal do
ônibus me olha de novo, uma tiazinha muda até de lugar, sentando-se mais
longe. Eu entendo, tiazinha, hoje eu tô parecendo uma louca mesmo.
Dane-se, só sei que preciso falar com Alexis imediatamente. Mas como?
Eu poderia tentar o espelho. Ela apareceu em meu quarto através de meu
espelho, certo? Deve ter como eu falar com ela através dele.
Peguei o ônibus hoje para demorar a chegar em casa de propósito e agora
me arrependo de tê-lo feito, pois estou roendo todas as minhas unhas na
demora que é finalmente chegar ao ponto mais próximo de meu apartamento
na Barra Funda.
Quando desço do transporte correndo sob a chuva paulista que diminui
de intensidade na noite que cai rápida, atravesso duas quadras de sobrados e
pequenos edifícios, finalmente chegando em minha rua sem saída.
Subo as escadas do meu prédio na maior velocidade que consigo, cabelo
pingando e roupas molhadas, pés deslizantes no velho piso granilite me fazem
escorregar algumas vezes. Abro minha emperrante porta, jogo minha bolsa
no chão e corro para frente do espelho no meu quarto.
Mas lembro que infelizmente não sei como abrir um portal mágico para
um mundo que mal acredito existir.
Tento espalmar levemente o objeto, dois toques como se fosse uma porta,
chamando o nome de Alexis e acertando apenas minha reflexão.
Será que ela pode me ouvir? Não sei se devo chamá-la… e se ela estiver

272
EUREKA!

com o tal do Garou e ele descobrir o portal? É uma possibilidade. Devo ter
cuidado.
Paro de bater. Lembro que ela disse que o portal fica no fundo de seu lago.
Será que ao nadar pode me ver?
Não é uma ideia muito boa, mas é a única que tenho: pego um caderno e
escrevo o seguinte:
“Acho que descobri o que significa a mensagem que Igor escreveu.”
Rasgo o papel do caderno e o penduro com fita adesiva contra o espelho
para que ela possa vê-lo quando olhar através dele.
Espero impacientemente. Minutos parecem horas quando estamos an-
siosos. No meio tempo, aproveito para tomar um banho, secar o cabelo e
trocar de roupa.
Ah, como eu precisava disso. Ocupar minha mente com algo diferente. Algo
estranhamente diferente, concordo, mas qualquer coisa agora é melhor do que
ficar na fossa. Tentando ser produtiva e lembrar as outras coisas no papel,
fecho os olhos, me arrependendo de não ter tirado uma foto do bendito com
meu celular.
Mas vamos lá Verena, você consegue…
Haviam círculos… e mais o quê? Uma torre, acho… uma torre? Sim,
acho que era uma torre com um relógio bem no topo. Ou não. Igor não
é necessariamente um Michelangelo das artes, mas é o que parecia.
Ando em círculos pelo meu quarto na esperança da minha cabeça pegar
no tranco. Lembro de uma letra avulsa que se repetia várias vezes. Acho
que a letra era… hmmm… vamos ver… acho que era a letra P… ou talvez um
Z… não, era um T várias vezes.
Faço uma nova busca na internet do meu celular procurando por Paranapi-
acaba de novo, pois nunca ouvi falar de lá de antes de sábado.
“Um distrito do município de Santo André na região da Grande São Paulo”.
Na primeira foto da página de pesquisas vejo uma torre com o relógio no
topo. Bingo. O lugar existe e é mais perto que imaginei. Bem… mais perto
que o Estado do Paraná, que fora minha primeira hipótese.
Paranapiacaba é uma vila paulista que fora outrora abandonada, mas que
agora parece tomar vida novamente com as renovações para fins turísticos.

273
AS FILHAS DE GUENDRI

Clico em “mais imagens”. Algumas fotos aéreas mostram o vilarejo com


pequenas casas alinhadas parede á parede. Também tem alguns trilhos de
trem paralelos a tal torre. Neles, vagões vermelhos de carga enferrujados e
abandonados. Várias outras imagens mostram nevoeiros intensos, algumas
vezes até acobertam toda a cidade, deixando apenas a ponta da grande torre
a mostra.
Fotos de uma igreja também chamam minha atenção.
Uma imagem em particular mostra um cemitério cercado por muros de
blocos de cimento pintados de branco, com uma cruz e um arco em azul
sobre a entrada.
Quebrando minha atenção da pesquisa, minha visão pega meu espelho a se
mexer de forma bizarra. Vou até ele e vejo minha imagem se contorcer. Abro
espaço quando vejo Alexis começar a passar por ele.
— Funcionou! — celebro.
— Eu li o recado. Devo dizer, bem criativa.
— Obrigada. — estou jubilante, mas não perco tempo, pego a toalha que
utilizei em mim e jogo para ela, que se seca das águas que começa a pingar em
meu quarto. — Eu acho que decifrei a mensagem do papel. Eu sei exatamente
onde é o lugar que Igor viu. O lugar onde sua irmã pode estar! E o melhor de
tudo: não é tão longe daqui.
Ela não diz nada por um momento, tenta processar a informação que lhe
dei, seu rosto passando por diferentes expressões até finalmente dizer algo.
— Eu não sei… eu não sei nem o que dizer, Verena! Esperei tanto por esse
momento, nunca estivemos tão perto! — com firmeza me pede. — Me diz
aonde é pois eu vou lá agora mesmo.
— Não vai esperar Cali? — reparo que faz tempo que não vejo a loirinha.
— Creio que Cali está com Igor agora. E ela não parecia muito bem da
última vez que a vi. — Alexis diz séria. — É melhor não avisá-la sem algo
concreto. Ela vai se sentir forçada a pedir mais magia e eu quero evitar isso.
Eu posso procurar sozinha, vou atrás dessa pista e ver no que dá.
— Entendo. — espero que Cali e Igor melhorem. Não posso evitar me
sentir um pouco mal ao ouvir que Igor ainda se encontra em coma após nosso
encontro. Talvez se encontrarmos Mabelai mesmo ela possa fazer algo para

274
EUREKA!

ajudá-lo. É uma Regente de magia certo? — O nome do lugar é Paranapiacaba,


uma cidade a algumas horas daqui. Lá tem uma torre com um relógio assim
como a que Igor desenhou. — mostro a ela a foto no meu celular. Ela olha a
imagem atentamente. — Só não encontrei o que significam os “Ts”…
Outra lâmpada se acende em cima desse meu cabeção. A ficha finalmente
cai.
Como eu não tinha pensado nisso? Talvez por ter só um vizinho muito bonito
na mente enguiçando meu raciocino.
— O que foi, Verena? — Alexis franze o cenho preocupada com a minha
expressão.
— Os “Ts”, — explico quase sherlockholmesmente. — Não são letras. São
cruzes. Cruzes de um cemitério!

275
41

Resoluções Noturnas

— Você parece diferente. — comenta Verena indiferentemente enquanto nos


preparamos para sair. — Sei lá, tá meio estranha.
Decidi ir para a tal de Paranapiacaba imediatamente. Essa é uma ótima
pista e eu mal posso acreditar. É tudo que eu preciso, uma droga de boa
notícia finalmente.
E por mais grata que eu estou a Verena por ter descoberto isso, quando ela
pediu para ir comigo, confesso que exprobei. Não acho devido ou necessário
que me acompanhe. Ela é humana, tem outros compromissos pela manhã
seguinte como por exemplo, seu trabalho, além de ter suas dúvidas sobre a
veracidade das coisas que contamos.
Não quero envolvê-la mais nisso. Ela já fez sua parte. E depois que Igor
acordar para apagar sua mente, Cali lhe entregará o prometido e pronto,
nunca mais nos veremos.
Não é necessariamente o que quero. Eu percebi que agora sinto uma

276
RESOLUÇÕES NOTURNAS

estranha afeição por essa humana. Me diverti com ela, me abri para ela,
e senti um forte dever de salvá-la de uma certeira morte. Mas não era nem
para estarmos nos falando agora, ela não devia nem se lembrar que um dia
me conheceu.
Mas tudo bem, aceitei a ajuda. Já o que não estou muito afim de aceitar
é seu cenho franzido ao me olhar enquanto se arruma e suas perguntas.
Mesmo contente, eu estou sem paciência para isso. Ainda não me recuperei
totalmente da minha estúpida e falha tentativa de assassinato e o que
aconteceu por causa dele. Não é culpa dela meu estado mental e emocional,
ainda assim…
— E seus olhos estão vermelhos e inchados como se tivesse chorado e muito.
— retruco. Se é para apontar coisas desconfortáveis, façamos isso.
Ela engole em seco. Deixa óbvio que não quer falar sobre o que a incomoda.
Pois é Verena, eu também não quero conversar sobre o que me atormenta. Não
quero falar sobre o que acabara de acontecer entre eu e Garou. E por mais
que a memória de meu pai tenha sido um grande momento, não é o momento
certo de destrinchá-la. O foco agora é encontrar minha irmã.
Minha observação faz com que Verena continue colocando algumas coisas
que quer levar em uma bolsa, como faca, água, mexericas e dinheiro em
silêncio.
— Bem, agora vem a parte mais difícil. — recomeça após fechar o zíper da
bolsa, colocar uma jaqueta preta e dar nós em seu par de tênis brancos. —
Pedir a Daniel que nos empreste sua moto.
— Poderíamos ir voando. — sugiro apontando para minhas costas, já
sabendo a resposta.
Ela apenas me olha incrédula.
— Ou podemos ir de moto. — continua. — Eu poderia chamar um uber,
mas minha conta está conectada a do meu chefe e eu não sei exatamente como
explicaria a ele uma visita à um cemitério em Paranapiacaba tarde da noite
de segunda-feira. — se explica, cenho franzido. — Só tem um problema: eu
não sei andar de moto.
— Eu sei.
— Com CNH e tudo?— Verena ergue as sobrancelhas.

277
AS FILHAS DE GUENDRI

— Igor tem uma moto. Diz que é a única forma de andar por São Paulo.
Minha identidade falsa é uma habilitação. — e quando eu tinha esperanças
de viver entre humanos, eu tinha decidido que compraria uma para mim
também.
Rio mentalmente. Lembro de minha sede em ficar no mundo humano, ser
como eles. Essa pessoa que fui há dias atrás me soa tão distante agora.
— Isso é estranhamente conveniente. Mas ótimo! Vou falar com meu
vizinho. Me deseje sorte. — Verena vai até a porta mas antes de
sair vira para mim. — Você teria mais um vidrinho de elixir adariano?
Aquele que convence as pessoas a fazer coisas estranhas?

Alexis não tinha mais vidrinhos de delicioso elixir convencedor com ela,
então estamos na estrada com a moto que Daniel emprestou só depois de
muita encheção de saco minha e parte do meu salário desse mês.
Confesso estar surpresa pelo fato dela conduzir as duas rodas habilmente.
Pois bem, me agarro a ela e até agora não morremos.
Sem muito transito e duas horas depois, estamos na cidade de Paranapi-
acaba. Apesar da escuridão, dá para ver o cemitério poucos metros a nossa
frente já na entrada na cidade assim como o mapa mostrou.
Olhando ao nosso redor, não vemos ninguém.
Devo dizer, eu poderia até andar aqui de dia, mas agora a noite? Não sei do
que tenho mais medo: dos mortos ou dos vivos. Um súbito pavor quase faz
borrar-me de pânico. E provavelmente borraria se Alexis não estivesse aqui
comigo. Sou medrosa mesmo. Mas como já vi do que Alexis é capaz, relaxo
um pouco.
Após acertar um plano inicial de procurar por qualquer coisa fora do normal

278
RESOLUÇÕES NOTURNAS

(como se a situação fosse normal em si), dou meu celular com sua lanterna
embutida acesa para Alexis e a faço ir na minha frente, sem dizer a ela mas
deixando claro que a uso de escudo.
Caminhamos lentamente enquanto eu tento ver se decifro mais alguma
coisa no papel de Igor. A luz do luar é uma boa aliada agora, banhando tudo
de prata e deixando a área um pouco mais visível.
— Cruzes e mais cruzes. E flores mortas. — Alexis quebra o silêncio. —
Que pena que estão mortas. — não entendo porquê ela diz isso com pesar
então decido ignorar. — Nunca entendi porquê vocês colocam cruzes sobre
seus mortos.
— Faz parte do rito religioso predominante da região, no caso o Cristian-
ismo. Mas há cantos do mundo onde fazem coisas diferentes. — respondo
sem pensar. — O que vocês fazem em Adaris? — fico genuinamente curiosa.
— Não sei, ainda não matei ninguém pra saber. — Alexis responde e eu
não sei se brinca ou se fala sério. Ignoro para o meu próprio bem. Sempre
imaginei fadas mais no estilo fofo Cali de ser, e descobrir o tipo Alexis é tão
fascinante quanto assustador.
Os pequenos animais a nossa volta decidem fazer aleatórios barulhos que
só me deixam mais amedrontada. Corujas, corvos, ratos… toco minha bolsa,
me certificando de que minha faquinha punhal está a postos. Sempre a trago
comigo. E sempre espero não precisar usá-la.
— Estes círculos… não entendo seus significados. — tento focar na tarefa.
— Bem… em outras vezes, Igor fez círculos parecidos. Talvez não seja nada.
— Pode ser. E essas linhas cruzadas? Você já o viu desenhá-las antes?
Antes que Alexis responda, minha mente não vê mais as linhas desenhadas
como linhas, mas talvez possam ser referências aos trilhos de trem da cidade.
Eu pensei nisso já na moto e agora, acho que faz mais sentido. Se não
encontrarmos nada aqui, vamos até a torre e depois vasculhamos os trilhos e
os vagões.
Não sabemos exatamente o que procuramos. Mas temos chão para cobrir,
então procuramos assim mesmo, andando entre túmulos altos e baixos,
algumas estátuas novas, outras velhas e quebradas de santos e anjos mudos,
estáticos. Todos sem nenhuma dica ou direção para nos apontar.

279
AS FILHAS DE GUENDRI

A certeza e entusiasmo que tive outrora começa a se dissipar. Estar aqui


procurando uma fada rainha desaparecida já começa a parecer a ideia estúpida
que realmente é, mas que na hora da empolgação pareceu genial.
Nada como a realidade para te fazer colocar os pés no chão.

Certamente já estamos há uma meia hora procurando. No silêncio, já


podemos sentir nossa frustração crescendo. Olho para meu lado esquerdo
tentando enxergar além do horizonte azul marinho. A cidade é pequena mas
espalhada pelos morros e pouco se vê daqui, já que o cemitério fica numa
parte mais acima do resto da vila e há muitas árvores. Apenas uma dúzia de
casas tinham suas luzes ainda acesas, o que daqui parecem fracos chuviscos
de luz ao léu.
A noite já está longa demais apesar de ter apenas começado. Procurar
qualquer coisa aqui neste momento é a tal da agulha no palheiro. Vezes três.
Correção: vezes mil, pois ao menos saberia a aparência da agulha se tivesse
que procurá-la.
Por que será que Igor desenhou tantos pontos da cidade? Mabel só poderia
estar em um deles, não? Um pensamento sombrio me ocorre mas tento
ignorá-lo. Não estou a fim de encontrar pedaços de ninguém… ainda mais
com a irmã deste alguém a meu lado. Não… deve ter desenhado apenas para
confirmar que esta cidade é o lugar. Ou assim espero.
Mas por outro lado… e se Mabel estiver mesmo morta? Fadas podem morrer
também, certo? Nada de Regente. Nada de Adaris livre. Nada de liberdade
para Alexis, Cali e Igor. Todo o esforço em vão.
— Verena. — ela mira a luz em mim, quebrando meus pensamentos e quase
me cegando. — Talvez se nos separássemos poderíamos procurar melhor.
— Péssima ideia. — já a corto ali, imaginando que não existem filmes de
terror em Adaris e ela nunca viu o que acontece neles com grupos que se

280
RESOLUÇÕES NOTURNAS

separam. — Primeiro: eu não tô com pressa, e segundo: estou com muito


medo, então por favor, vamos continuar juntas.
Ela desiste da ideia com uma expressão arrependida.
— Eu não devia ter deixado você vir. — desabafa, finalmente.
— Alexis, você não me “deixou” vir. Eu quis vir. Quero te ajudar a encontrar
sua irmã.
— Por quê? — ela cruza os braços, franze o cenho e espera a resposta.
— Como assim por quê? — me surpreendo com a pergunta dela.
— Sem ofensa, mas você mal acredita no que te contamos ou que Adaris
existe, mesmo após ser atacada e ver o que viu. — Alexis se aproxima de
mim, parecendo disposta a ter essa conversa aqui e agora e eu não entendo o
porquê. Acho que gratidão seria um sentimento mais apropriado para comigo
ao invés do aparente cinismo em relação a minha motivação de estar aqui,
especialmente depois de eu ter desvendado as pistas sozinha.
Eu a observo, luz da lua banhando parte de seu rosto. Ela quer mesmo
minha resposta agora. Quer decifrar meu interesse em ajudar, acha que tem
algo escondido nele.
Penso bem no que falar. Este é um momento tão decisivo para ela. Confesso
que a profundidade dele me fugira. Realmente, nem Adaris nem Mabelai
significam algo para mim, nem mudam nada em minha vida, mas ainda assim
eu estou aqui.
E não há segundas intenções nisso.
— Quando eu te conheci nem você acreditava. — pensei e consegui falar
sem pensar. Não devia usar contra ela o que me contou com o coração aberto.
Eu não tive um dia fácil, me sentir encurralada por ela agora não me ajuda a
manter a diplomacia.
Ela cerra seus lábios.
— É diferente agora. Pra mim, pelo menos. — alega, algo sombrio em sua
voz.
— Pra mim também. — dou de ombros.
— Não… — balança a cabeça, estudando cada canto do meu rosto, me
encarando mais de perto ainda. — Não no seu caso. — semicerrando seus
olhos ela tenta me analisar e eu não entendo para quê. — Mesmo com um

281
AS FILHAS DE GUENDRI

elfo enrolando a língua em seu pescoço.


— E como você sabe disso? — me defendo.
— Eu estava lá, lembra? — Alexis insiste e eu desvio meu olhar. — Você
não precisava vir, Verena. Agora me diz por quê insistiu em vir comigo e não
minta pra mim.
Há algo de estranho em Alexis. Parece mais… agressiva. Mesmo quando
deu um soco na minha cara na festa de Lucas ela não estava assim. Impaciente
e mal humorada talvez, mas não desconfiada e paranoica.
— Eu não tenho porquê mentir pra você, Alexis. — saio andando,
continuando a procura para dar um fim naquele estranho interrogatório.
— Isso… — ela comenta. — Sempre foge quando a conversa fica mais séria.
A gota que faz a água transbordar acaba de cair.
— Tá legal, se você quer tanto saber, eu te digo: tô aqui pra esquecer o que
eu fiz com meu vizinho. Pra esquecer que alguém tentou me matar. Pois
é, sabia que tem algo chamado “transtorno de estresse pós-traumático”? É
super divertido, só que não. — um cemitério não me parece a melhor terapia,
mas enfim. — Pra esquecer por um minuto também que minha saúde anda
de mal a pior e que dormir é uma tortura e ficar acordada a noite toda é
outra. Pra esquecer também o fato de que a droga do meu chefe ultimamente
não sai da minha cabeça e eu nem sei por quê. E que isso é completamente
errado por que ele é um baita mulherengo. — cedendo a pressão, estou
praticamente gritando no meio do cemitério. — EU SÓ NÃO QUERO MAIS
FICAR SOZINHA! Tá satisfeita agora, fadinha? É isso que você quer saber? —
frustrada, sento na mureta do túmulo de concreto atrás de mim, esquecendo
por um momento que tinha um defunto ali dentro. — Que DROGA DE
DIFERENÇA FAZ?! — indago entre soluços por que é lógico que já estou
chorando. — Eu só quero ajudar. Fazer algo útil! — lágrimas estúpidas rolam
soltas, mas eu as limpo imediatamente e me levanto, sem poder segurar minha
boca. — Por qual outra droga de motivo estaria aqui? Por que acha que eu
mentiria pra você? Que que é… você tá duvidando de mim agora? Acha que
conheci sua irmã e tenho algum envolvimento com o paradeiro dela? Ou
ainda acha que eu tenho culpa no que aconteceu com Igor?
Estou chorando de nervoso. Alexis cruza os braços e revira os olhos.

282
RESOLUÇÕES NOTURNAS

— Eu não desconfio de você. — ela abaixa seu tom. — Eu só… eu não…


— Desconfia sim, tudo bem, admite. — a interrompo. — E daí que eu não
acredito em Adaris!? Não faz diferença nenhuma. Eu só quero te ajudar, já
disse!
— EU NÃO QUERO MAIS A AJUDA DE NINGUÉM! — num ato ligeiro,
Alexis pega uma das enormes estátuas de anjos de um túmulo e a arremessa
a alguns metros de distância, quebrando-a. Levo um susto e arregalo meus
olhos. Tenho certeza que aquela estátua só poderia ser movida com tal
facilidade por no mínimo cinco homens. — ESTOU FARTA DE ACHAREM
QUE PRECISO DE AJUDA! O TEMPO TODO ME OLHANDO COM PENA,
COM DÓ! EU NÃO PRECISO DA DÓ DE NINGUÉM! Nem sua, ou de Cali,
ou de quem quer que seja! EU SOU ALEXANDRAI, FADA DE ADARIS E
FILHA DE GUENDRI! EU! RECUPERAR E DEFENDER ADARIS É MINHA
RESPONSABILIDADE E DE MAIS NINGUÉM! Você quase morreu, Igor
não reage, e Cali… — Alexis engole em seco com dificuldade de continuar
a falar ao mencionar o que acontece com Cali. — A cada dia que passa Cali
está pior, magia obscura a corroendo por dentro. — eu nem sabia disso. — E
por quê? Por minha causa. Por que eu não o obedeci!
Alexis emana um tipo de eletricidade estática, sua pequena extravasão de
sentimentos move todo o ar a nossa volta.
Passada a ferro e a assistindo extravasar, me pergunto a quem ela não
obedeceu. Alexis esta próxima o suficiente para que eu visse seus lábios
tremendo e seus olhos cintilarem com algo que recentemente acordara dentro
dela.
Algo intenso que parece ser algo novo para ela também.
— Alexis… — ergo minha mão para confortá-la, sem saber se deveria.
— E agora, ele ri. — a primeira lágrima dela rola sem ela perceber. — Aquele
desgraçado me usa, me engana, e a verdade é que estive fingindo mas pra
ele não faz diferença nenhuma se eu sei da verdade ou não. — sua voz é
monótona e cheia de pesar. — Se acha meu castigo. Que mesmo comigo
querendo, eu nunca vou conseguir sair dali. E depois do que aconteceu hoje
começo a achar que ele está certo. — com o olhar perdido, confessa.
— Você está falando de Garou? — pergunto baixinho e ela faz que sim com

283
AS FILHAS DE GUENDRI

a cabeça.
— Eu lembrei dele, Verena. — ela me fita. — Meu pai, Guendri. Sua espada
em meu pescoço, me arrancou sangue para ensinar uma lição que esqueci.
Serei sua vergonha quando voltar, quando descobrir o que me tornei, o que
deixei fazerem de nosso mundo e de mim. — fala as últimas palavras com nojo.
— Acho impossível alguém sentir vergonha de você, Alexis… — falo com
toda a sinceridade.
A alta e bela fada tenta se manter forte a minha frente. Não, não entendi
tudo o que falou, mas se teve uma lembrança mesmo de seu pai isso é um
grande acontecimento. Por isso ela está desse jeito? Agora entendo. E me
sinto mal por ter extravasado com ela.
— Eu preciso encontrar Mabelai, Verena. — sussurra. — Isso tem que
terminar hoje. Eu só volto para Adaris quando encontrá-la.
— Mas e se nós não…
— Você não entende. Não existe mais outra opção. — o olhar de Alexis é
resoluto. — Não tem mais volta, Verena.
Meus problemas parecem infinitamente menores diante dos de Alexis.
— Sei que não pode parecer muito ou que vá ajudar mas eu estou aqui, Alexis.
— temos muito em comum em nossa solidão, e o nosso maior denominador
comum agora é a necessidade de um abraço. Sei que é pouco para muitos, mas
para alguns significa um porto seguro em meio ao mar caótico do mundo.
Sem ninguém para me dar um, eu roubo um dela mesmo.
Ela demora, mas abraça de volta. Com força que estrala alguns de meus
ossos.
— Eu não preciso acreditar em Adaris pra poder te ajudar, Alexis. Você
salvou minha vida! Sim, pode ser sua responsabilidade cuidar de um mundo
todo, mas faço da minha agora cuidar de você. Se você não puder voltar para
Adaris pode morar comigo. Dividimos o aluguel. — brinco para confortá-la,
apesar da oferta ser verdadeira. Assumindo um tom mais sério, eu continuo.
— Eu acho que entendo como você se sente, tudo que conhece pode estar
prestes a mudar drasticamente, ou não. E os dois casos são assustadores. Mas
saiba que mesmo eu não sendo ultra forte como você, pode contar comigo
para qualquer coisa que aconteça. Não vou te deixar sozinha. A gente vai

284
RESOLUÇÕES NOTURNAS

encontrar sua irmã e acabar com a raça daquele elfo safado. Juntas, entendeu?
Ela demora para responder, mas sinto-a fazer que sim com a cabeça contra
meu ombro. Desabraçamos e ela me olha em silêncio. Não sei se minhas
palavras a fazem se sentir melhor, mas ela parece mais convicta a continuar.
E o fazemos.
Mais adentro do cemitério passamos por mais flores mortas, covas que-
bradas e até mesmo uma macumba com frango e tudo. Momentos passam
sem nenhum sinal de nada que possa significar algo. O decadente cemitério
é maior do que pensei.
Alexis continua andando, olhando para os lados e não para a frente. Ela
não vê o grande mausóleo logo adiante, caminha em direção á ele e se der
dois passos a mais, tromba.
— Alexis, cuidado! — exclamo e ela olha a sua volta em alerta, e depois para
mim.
— Cuidado com o quê?
— Você quase deu de cara com o mausóleu! Esse casebre com portão de
ferro aí na sua frente. — explico, caso ela não saiba o que é um.
Ela olha a sua volta novamente, virando lentamente num giro completo e
retorna a luz do celular para mim.
— Não vejo nada. Que mausóleu, Verena?

285
42

Não Há Como

— Descanse. Tudo vai ficar bem. Você e Alexis estão bem e é só isso que eu
preciso.
É a última coisa que digo a Igor antes de deixá-lo descansando. Contei a
ele algumas coisas e escondi muitas outras, apenas para ajudá-lo a descansar
e se recuperar em paz.
Quero ficar com ele, quero me certificar de que ficará bem. Mas preciso
voltar para Adaris em breve, principalmente saber se Alexis conseguiu fugir
sem problemas e se está segura.
Preciso encontrá-la para saber o que ela quer me dizer.
E também para dizer-lhe que acho que desisto. Que para mim já chega. Que
não consigo mais continuar. Que tudo que achei que ganharia ao começar
essa jornada, eu perdi.
E que Adaris me perdoe mas não sou forte o suficiente para continuar.
Meus erros, um por um, despedaçam meus sonhos. Fui inocente, causei

286
NÃO HÁ COMO

mais perigos e problemas que soluções e vitórias. Nada, absolutamente nada


do que fiz valeu de algo ou deu certo. Só coloquei em perigo todos a minha
volta para nada.
Estamos há meses humanos procurando Mabelai e não encontramos
absolutamente nada!
E não, não achei que poderia resolver tudo rapidamente. Tempo nunca foi
um aliado ou um adversário. Apenas não achei que esse limbo maldito onde
todos nós nos machucamos sem ganhar nada em troca fosse a solução final.
Corro para o banheiro de Igor. Sinto um mal-estar forte que vai da cabeça
até os pés. E assim como vi Verena fazer ao beber o veneno humano na
festa de seu vizinho, também me livro do veneno magico que me domina
aos poucos. Vomito um líquido espesso e preto, que deixa um péssimo gosto
metálico que arde até o céu da minha boca e as narinas. Me inclino sobre a
privada, sentindo os espasmos de meu corpo inteiro lutando para se livrar
daquilo que me aflige, circulando por minha veias como um antídoto para
minha paz e existência.
Tentando não fazer nenhum barulho para não acordar Igor, tento conter as
tosses e engasgos. É fisicamente dolorido expelir esse líquido. Escorada na
parede, observo minhas mãos e braços. O negrume agora não é só de minhas
veias, mas boa parte de minha pele. E sobe por meus braços, um lembrete de
meu descuido e fraqueza.
Irada, me ergo. Meu coração bate violentamente em meu peito quando
vejo meu reflexo em frente ao espelho. Meus lábios sujos e escuros, rosto
ressecado e pálido.
Sabe o que é olhar no espelho e não se reconhecer?
Como vim parar aqui? Como continuarei?
Meu coração está partido. Minha voz se aquieta. Minhas feridas abertas,
meus castigos ativos.
Procuro em meus bolsos um vidrinho de elixir e sem encontrá-lo, me
lembro que usei a última dose que fiz na Amazona de Lorde Vór. Esquecendo
que a Sombra não pode vir até o mundo humano, tento invocá-la em vão.
Preciso de mais magia.
— Mas que droga, Caliandrei! — murmuro raivosamente para aquela

287
AS FILHAS DE GUENDRI

pessoa que eu vejo no espelho.


Tenho rancor e dó de mim mesma ao mesmo tempo.
Penso em Alexis. Penso em Igor. Em Adaris e cada ser que encontrei, como
por exemplo, a pequena tátira que quer ter asas como as minhas. Eu a inspirei
e certamente se me visse agora, ficaria desapontada.
Respiro fundo. Não. Não posso desistir de ajudar Adaris assim. Mas posso
trazer algumas flores comigo e ajudar meu mundo numa menor escala.
É a única coisa que eu posso fazer agora.
Após limpar meus lábios certifico-me de que Igor dorme, tranco sua casa e
decido ir a um parque próximo para colher mais flores.
A essa hora da noite ninguém me olharia feio ou reclamaria.
Ainda existe movimento na cidade. Carros parecem pixies ao cruzarem o
asfalto em altas velocidades. Quando vejo o primeiro par de pessoas por onde
eu caminho, cubro meu rosto com o grande capuz da blusa de moletom que
peguei no armário de Igor. Elas me ignoram ao passar por mim, o que me
deixa aliviada. Não quero que a iluminação artificial das lâmpadas das ruas e
prédios evidenciem meu rosto, ou qualquer parte de meu corpo dominada
por magia negra. Ando nas sombras e nelas encontro refúgio.
Atravesso a rua correndo e chego no parque. Este é menor que o Ibirapuera
e não tem tantas flores, mas é mais perto e tem a quantia suficiente para encher
uma sacola. Ele está fechado, cercado por uma corrente de ferro amarela.
Não me importo, pulo o fecho e continuo até o canteiro mais próximo.
Abrindo uma sacola plástica que coloquei amassada em meu bolso, começo
a colher. Retirando somente as pétalas, encho minha sacola aos poucos.
Quando acho que tenho o suficiente, me levanto e me dirijo ao local pelo qual
entrei, pulando de volta o grilhão amarelo tentando não derrubar o conteúdo
do saco.
Andando de volta, sinto uma movimentação diferente no ar da noite
paulista. Um vento forte bate em mim, circulando rapidamente em diferentes
direções. O ar é estranhamente quente, diferente do que tinha sentido até
agora.
Está tão forte que remove o capuz de minha cabeça, quase formando um
redemoinho ao meu redor.

288
NÃO HÁ COMO

Olho a minha volta para entender o que acontece. Não encontrando nada,
olho para cima.
— O quê…?
Uma massa negra enorme coberta por uma penugem cinza escura, preta
e dourada bate suas asas vigorosamente sobre mim. Parece um pássaro
mas trinta vezes maior, talvez até maior que uma barlosa. Circula no céu
acima de mim, tem entre oito e dez chifres, olhos agressivamente vermelhos
acompanhados por um bico torto na ponta que é provavelmente do meu
tamanho!
A besta-fera continua voando por sobre mim e quando cruzamos olhares,
chia ensurdecedoramente em minha direção, enérgica e violenta, me avisando
de que eu me tornei sua presa.
Olho a minha volta novamente, não acreditando em meus olhos. Seria isso
uma ilusão proveniente da magia negra? Eu nunca tinha visto nada do tipo.
Nem em Adaris, muito menos aqui, e creio que um monstro desse tamanho
chamaria no mínimo a atenção de quem perambula pela mesma calçada que
eu.
Mas ninguém mais ao meu redor parece ver o que vejo!
Um casal passa por mim aos risos e abraços, me deixando mais confusa
ainda do que eu já estou. São Paulo e seus habitantes parecem completamente
sossegados, sem se preocupar com a massiva besta de garras afiadas e chifres
que sobrevoa sua preciosa Avenida Paulista no momento.
É como se aquela colossal fera só existisse para mim. E quando ela chia
novamente e investe em minha direção num bote certeiro, caio para trás
ainda hipnotizada pelo que vejo. Sem conseguir me acertar, bate suas asas e
voa ainda mais alto. E por mais que eu queira ficar e assistir tamanhas asas
em ação, meus instintos acordam e gritam em minha cabeça que agora é hora
de correr.
E eu o faço em desespero e pavor.
Largando sacola de flor e tudo para trás, a besta que só eu vejo emite ainda
mais sons ao me ver correndo atravessando a larga e movimentada Paulista
em direção a Augusta, tentando não acertar os carros que passam e não ser
acertada por um.

289
AS FILHAS DE GUENDRI

Como é que pode ninguém mais ver o que eu vejo?


Carros buzinam e pessoas reclamam quando esbarro nelas. A besta ainda
sobrevoa e avança de novo em minha direção, seu estranho bico torto abre
e fecha em tentativas de me capturar, enquanto eu desvio de suas ferozes
investidas.
Eu nunca corri tanto na minha vida. Sim, voar seria mais rápido, mas
retiraria de mim toda a vantagem que eu tenho de poder me esconder entre
grandes prédios e toldos que suas entradas oferecem.
Desviando de latas de lixo, pessoas e árvores, finalmente viro a esquina da
Rua Augusta, agradecendo o fato de que alguns estabelecimentos ainda estão
abertos. Não tenho tempo de chegar na casa de Igor, preciso me foragir aqui
mesmo.
Entrando num bar com luzes fracas, música baixa e pessoas estranhas, corro
para a parte traseira, torcendo para que o lugar fosse como a boate de Igor,
onde os banheiros ficam nos fundos, pois é lá que pretendo me esconder e
espero que ninguém note.
Quando entro, tranco a porta.
Arfando, recuo até a parede mais próxima.
Tento me acalmar, mas a adrenalina não deixa.
Alguns longos momentos se passam e por mais que eu não queira sair dali,
não posso ficar aqui para sempre. Alguém bate a porta do banheiro.
— Moça, você tá bem? — uma voz masculina pergunta.
Eu abro a porta e minto dizendo que sim, está tudo bem. Levemente mais
calma, vou até a porta do estabelecimento ver se a besta voadora ainda está a
espreita.
Alguns clientes do bar me ignoram, alguns me olham curiosos. Quando
chego as largas portas do bar, olho para cima devagar.
Nada.
A besta sumiu.
Após alguns minutos, hesitantemente coloco o pé para fora do estabeleci-
mento. Dou alguns passos, ainda olhando para cima mas não vejo nem sinto
nada. O ar da noite paulista é frio e calmo novamente.
Respiração difícil de manter sob controle, sigo até a casa de Igor tentando

290
NÃO HÁ COMO

entender o que acabou de acontecer. Aumento a velocidade dos passos quando


confirmo novamente que não estou mais sendo seguida e logo chego na
entrada da casa de Igor. Coloco a chave no cadeado ainda olhando para o céu
azul escuro que cobre a cidade.
Eu preciso descobrir o que é aquilo.
Eu giro a chave mas antes que eu possa ouvir o click, sinto uma presença
menos assustadora que a da besta voadora mas ainda assim, próxima demais
para que eu possa me sentir segura.
Não tenho tempo de ver quem ou o quê é, um saco é colocado sobre minha
cabeça e sem ar, logo desmaio.

291
43

Quando o Chão Se Abre

M
e aproximo de Alexis e oriento sua mão que segura a luz do
celular em direção a pequena construção com barras de ferro
que formam portões e um cadeado pendurado por uma corrente
que dá duas voltas aonde as barras se encontram.
Alexis continua procurando, seu olhar indo em diversas direções e eu me
pergunto se de repente ela ficou cega.
— Atrás de mim. — aponto com o dedão sobre meu ombro.
Ela olha. E olha. E olha.
— Não tem nada atrás de você.
— Como não? Olha o tamanho desse negócio. Portões, cadeado? — falo,
franzindo meu cenho e apontando para os objetos citados.
Olho novamente para o mausóleu como um todo. Comparado à outras
covas, ele é bem maior, bem mais sofisticado. Na verdade, se destoa de forma
que não parece pertencer aqui.
— Bebeu veneno humano antes de virmos, Verena?

292
QUANDO O CHÃO SE ABRE

Por um momento acho que Alexis está de palhaçada comigo, mas ela está
séria e não acho que está em clima para brincadeira depois da quase briga
que tivemos minutos atrás. Ela realmente acha que bebi algo e estou vendo
coisas. Mira a luz de meu celular sem direção, ainda procurando o que eu já
encontrei.
Para ter certeza de que a louca não sou eu, resolvo tocar no negócio. Coloco
minhas mãos cheias nas barras, que geladas preenchem minhas palmas. Dou
até uma chacoalhada para garantir e ouço o barulho dos ferros batendo e
corrente movendo assim que mexo no cadeado.
— Não ouviu isso? — pergunto sem entender como seria possível não ouvir
aquilo.
Aparentemente é, pois Alexis faz que não com a cabeça.
Como posso estar alucinando um mausóleu no meio do nada? Porquê
Alexis não pode vê-lo também? Sou eu que estou vendo demais ou ela quem
vê de menos?
Tive uma ideia para confirmar qual de nós duas está ficando louca. Peço
meu celular de volta a ela e resolvo tirar uma foto do lugar. Me afasto um
pouco e ajusto o flash para não ter desculpas. Em segundos bato algumas
fotos.
E confesso que não esperava o que vejo nelas.
— Mas será o….?? — resmungo. Bato outra foto e xingo quando o resultado
se repete.
Nada!
Na foto, apenas a continuação do caminho pelo qual passamos com túmulos
e vasos velhos dos dois lados. Alexis vem até mim, levemente confusa com
minha tiração de foto constante.
— E então? — ela se posiciona para ver a tela do celular. Quando a imagem
confirma o que os olhos dela veem, ela me olha em silêncio.
Eu também não entendo. Eu olho a minha frente e o pequeno casebre ainda
está lá!
— Alexis, eu não tô louca! Eu sei o que tô vendo, precisa acreditar em mim.
Tem um mausóleu aqui!
O olhar de Alexis é de curiosidade. Peço a ela que segure o celular

293
AS FILHAS DE GUENDRI

novamente e que aponte a luz em mim. Me lembro do desenho de Igor


e pego o papel novamente, erguendo-o na direção da luz e em frente ao lugar.
— É isso! — exclamo assim que confirmo minha mais nova suspeita.
— Isso o quê?
— Eu achei que eram trilhos de trem, mas é esse portão! Só pode ser esse
portão. — mostro o papel a Alexis. — No desenho de Igor!
Os múltiplos traços verticais cortados por dois traços horizontais me
confundiram a princípio mas agora faz sentido, a imagem se refere as barras
de ferro do mausóleu. Sorrio e dou uns pulinhos. Talvez impróprios para o
momento mas não pude me conter, isso daqui é uma baita de uma pista.
— Não posso discordar… não posso ver. — ela dá de ombros.
— Alexis, confie em mim. Tem alguma coisa aqui. Talvez fadas não podem
ver, só humanos. — cogito a possibilidade e ela só franze o cenho sem vontade
de argumentar.
Começo a tentar abrir o cadeado, imaginando que talvez estivesse velho
o suficiente para abrir na base da porrada. Sou humana, meus métodos
não-eficazes são tentados primeiro.
Mas eu tento, bato, soco, cutuco, puxo, chacoalho, balanço, quase me
penduro nele, uma, duas, cinco, dez vezes e nada.
Alexis mira meu celular/lanterna em mim, me assistindo em silêncio como
se eu fosse louca. Imagino que ainda não pode ver contra o que estou batendo,
então só me assiste lutar contra o ar. O que é uma pena pois sua mega força
seria bem mais útil que meus braços magrelos agora.
Frustrada, mas ainda determinada, penso em usar minha faquinha no
buraco do cadeado.
— Eu vou abrir esse negócio. — determino como se fosse pastor de igreja
evangélica.
Cutuco para lá, enfio a ponta da faca para cá, rodo, giro e nada sai do lugar.
Seguro o cadeado e como uma surtada começo a esfaqueá-lo num breve
surto de frustração e raiva após várias tentativas fúteis. Mas me arrependo
de ter dado um chilique assim que sinto a lâmina afiada e rápida me cortar
da base do dedão de minha mão até metade da palma. Grito de dor e de raiva.
No vazio da noite, o som assusta alguns corvos e pombos que saem voando

294
QUANDO O CHÃO SE ABRE

de seus galhos nas arvores.


O corte foi fundo o suficiente para me arrancar sangue.
— Se machucou? — Alexis arregala os olhos, preocupada.
— Uh… sim. — mostro a ela minha mão. A abertura é dolorida. E sangra
que é uma beleza. A culpa é toda minha, não deveria ter dado este faniquito
com uma faca na mão.
Burra!
Ainda analisando meu corte, não noto que Alexis dá três passos para trás
lentamente se afastando, olhar fixo em algo atrás de mim.
— Verena… — sussurra. — O que… como você…
Olho para ela e para o mausóleu. Finalmente, ela parece poder ver o casebre.
E está estupefata.
Quando eu ia jogar na cara que quem estava certa era eu, ouço o barulho
de metais se movendo atrás de mim e por reflexo e susto, automaticamente
pulo na direção de Alexis para que esta me defenda do que quer seja. Olho
para o cadeado que se abre, se desfazendo sozinho e caindo a nossos pés. As
correntes também se movem e serpenteiam até desfazerem por completo o
complicado nó que dão em volta dos portões de ferro, que por sua vez agora
livres, vagarosa e pesadamente se abrem para nós.
Esqueço da minha dor e celebro a pequena vitória. Abriu! Determinada,
começo a entrar, mas Alexis não me segue.
— Vamos, Alexis! — chamo, espírito aventureiro e tudo.
— Verena, espera; Como você fez isso?
— Fiz o quê?
— Isso! — Alexis move a mão, apontando para a pequena construção aberta
que agora pode ver. — Como encontrou esse lugar? Como só você pode
vê-lo? Como conseguiu abri-lo?
Dou de ombros. Minha resposta é genuína, mas Alexis não parece
convencida.
Honestamente, não fiz nada além de bater e muito no cadeado. Até me
machuquei. Tem coisas que só pegam no tranco mesmo, como a televisão
velha que eu usava para jogar meus videogames quando criança. Ás vezes o
Mortal Kombat era entre eu e o aparelho.

295
AS FILHAS DE GUENDRI

— Claramente, fadas não podem ver certas coisas. — explico a ela. — Mas
enfim Alexis, não temos tempo pra discutir isso agora. Ainda temos uma
boa parte da cidade pra procurar sua irmã caso minhas suposições sobre o
desenho de Igor estiverem erradas. Esse é o último canto desse cemitério que
não procuramos ainda.
— Espera. — Alexis me segura pelo braço e antes que eu diga qualquer
coisa, ela rasga a parte de baixo de minha regata branca num puxão firme
e enrola o trapo em minha mão que ainda sangra, dando um firme nó para
estancar o líquido.
Agradeço o gesto e a encorajo a me seguir. Hesitantemente, ela o faz. Ainda
usando meu celular como lanterna, damos alguns cautelosos passos á frente
e encontramos uma escada de pedra, em espiral. Descemos tentando não
tropeçar, já que a luz do luar não alcança aqui dentro e a do celular começa a
ficar fraca por causa da bateria.
A parte inferior do mausóleu é composta de chão de concreto, paredes de
pedras, areia e pó. Muito pó.
Olhando a minha volta e orando para não encontrar nenhuma cobra ou
aranha, sou surpreendida por luzes que se acendem de repente, providas
por velas espalhadas pelos agora visíveis quatro cantos da pequena sala de
aparência tosca e rústica. Alexis também se assusta com as luzes e desliga o
celular quase drenado de bateria, guardando-o em seu bolso.
Quando vejo que a parede do lado esquerdo da pequena sala possui uma
aparência diferente das demais, me aproximo dela. Tinha pedras, algumas
pequenas, outras grandes, desalinhadas e com acabamento diferentes, com
símbolos em algumas delas. Alguns eu já vi antes em livros, filmes, internet.
Muitos outros, nunca.
— Verena, olha isso. — Alexis chama minha atenção para o chão.
Três círculos, um dentro do outro, sendo que o do meio continha mais
símbolos, alguns similares aos da parede, mas em vermelho vivo.
— Esses símbolos… acho que são alguma… magia… — Alexis parece ter
dificuldade para falar. Olho para ela e posso ver que não está bem. — Eu
preciso… sair daqui…
Eu me sinto normal mas a fada parece estar a ponto de desmaiar a qualquer

296
QUANDO O CHÃO SE ABRE

momento. Me pergunto por que Alexis não pôde ver o casebre antes e ao
entrar nele começa a se sentir fraca.
— Calma Alexis, segura em mim, vamos sair daqui.
Coloco seu braço sobre meu ombro e passo uma mão em volta de sua
cintura, apoiando a minha ainda dolorida e ensanguentada mão contra a
parede de símbolos estranhos, tentando ajudá-la a se mover. Mas antes que
dessemos qualquer passo adiante, um tremor abala o chão e tudo mais a nossa
volta.
Terremotos? Em São Paulo?
Horinha propícia para a raridade acontecer!
Mantendo-nos de pé com dificuldade, tento ser mais rápida ainda quando
vejo que o chão no meio da sala onde os círculos estão desenhados começa a
se abrir.
Digo a Alexis para se segurar firme em mim e tento correr com ela, mas mal
consigo me equilibrar. Sem muitas opções, nos abaixamos tentando proteger
nossas cabeças de serem atingidas por detritos.
Quando o tremor para tão repentino quanto começou, nos reerguemos. E
para nossa surpresa, um caixão branco e fechado, se ergue do chão aberto,
flutuando.
O nível de bizarrice dessa noite está começando a passar dos limites para
os quais me preparei mais cedo.
Em choque, Alexis e eu nos entreolhamos. Quero tirá-la daqui, mas não
posso acreditar no que vejo no centro da sala. Me assegurando de nossos
arredores, vou até o outro lado da sala, tentando me aproximar do caixão
com cautela.
Com incerteza, o toco cuidadosamente.
E para minha surpresa ele se abre sozinho, vagarosamente. O som que
parece madeira, range e ecoa. Alexis se levanta e se aproxima, mesmo em seu
fraco estado a curiosidade é maior.
Cruzamos nosso olhar incerto, uma de cada lado do caixão. Quando temos
coragem de olhar dentro dele agora aberto, o fazemos juntas.
Mas não há nada que poderia ter nos preparado para isso.
Em meio a alguns detritos numa sala onde a luz fraca de velas acompanha

297
AS FILHAS DE GUENDRI

nosso incortável silêncio, encaramos na mais absoluta comoção o sereno e


pálido corpo que parece descansar pacificamente dentro do caixão.

298
44

Temos Companhia

O
lho para Alexis tentando adivinhar o que se passa em sua mente
agora.
É perceptível que sua condição piora mas ela se esforça para
ficar de pé, fitando, vidrada o que está dentro do caixão.
A mulher em vestes brancas parece dormir solene, como qualquer outro
corpo nesse estado. Exceto que sua pele clara brilha literalmente, e não há
sinais de decomposição. Seus longos cabelos vermelhos tornam seu semblante
ainda mais vívido. Em seu peito, apenas a ponta de uma lâmina parece estar
cravada em seu coração, mas que pela posição parece ter sido enfiada por
trás.
Ela não respira. Pálida, imóvel, intacta como uma estátua de mármore. Ao
mesmo tempo que parece estar morta, é estranhamente óbvio que não está.
— Será que é ela? — o silêncio aumenta meu pavor. Para quebrá-lo, digo
o óbvio em voz alta. Bem… é um cemitério, essa pode ser qualquer outra
defunta.

299
AS FILHAS DE GUENDRI

Alexis parece que vai desmaiar a qualquer momento. Ela não me responde,
mal pisca, hipnotizada pela mulher, se mantendo de pé com as poucas forças
que lhe restam. É impossível dizer o que passa em sua cabeça agora.
O lugar a está afetando e encontrar sua possível irmã na seguinte situação
também não ajuda. Lembro-me do que Igor falou na noite em que o conheci,
na noite em que o deixei entrar em minha mente. Disse-me que Mabel teria
cabelos vermelhos e a pele clara. Zombou do por que Guendri faria irmãs
fisicamente diferentes.
E sim, ela é o oposto de Alexis.
Uma vez ouvi um dos meus personagens favoritos num dos meus shows
favoritos dizer algo sobre coincidências… o que era mesmo? Ah, que o universo
raramente é tão preguiçoso.
Essa moça tem que ser Mabel.
Mal percebo que estou ofegante, meu coração prestes a saltar pela boca.
Num lento movimento, Alexis ergue a mão para arrancar a pequena ponta de
metal do peito dela.
— Espera, Alexis. — peço a ela e vou até seu lado do caixão. — E se
for algo nocivo a fadas? É melhor eu tentar tirar. — raciocínio depois de
tudo que tem acontecido com ela aqui desde que encontramos o casebre de
cimento e concreto. Sem dizer nada ela concorda e eu coloco minha mão
não machucada dentro do ataúde, no espaço entre o braço de Mabel e a seda,
tentando cutucar um caminho nas costas dela até achar a coronha da bendita,
já que está claro que esta lhe foi cravada pelas costas. Bem, já que ela não
está realmente morta, então movê-la não é um sacrilégio, certo? Assim o
faço. Com dificuldade, sinto carne desconectar de aço e retraio bem rápido,
olhando para o sofismado objeto agora em minhas mãos.
E se não fosse a outra faca sendo lançada em nossa direção acertando de
raspão a minha mão, a adaga não teria caído agora na barriga de Mabel.
Espera…. outra faca?
O quê???
Seguro a mão que outrora boa agora tem um pequeno corte para chamar
de seu e olho na direção de onde o objeto voador fora lançado.
— A-alexis, acho que temos companhia… — meu medo quase impede minha

300
TEMOS COMPANHIA

voz de sair.
Duas mulheres com armaduras metálicas dos pés a cabeça que parecem ter
saído diretamente de um filme sobre amazonas medievais surgem do nada, e
bloqueiam a passagem por onde entramos.
— Traidora! — uma delas exclama, sardônica.
— Valquírias… — Alexis anuncia mas apenas me deixa com um mega ponto
de interrogação na cara.
Quem ou o quê são valquírias? Acho que Alexis já falou nelas, mas não
me recordo no momento. Seja lá o que são, não parecem interessadas em se
apresentar, nem em conversar pacificamente.
O que fazem aqui? Como chegaram aqui? Estariam elas por trás disso
tudo? Teriam elas feito isso com Mabelai e guardam seu tumulo para que
ninguém encontre?
— Acha mesmo que não nos conhecemos, impostora? — pergunta a jamanta
metálica. — Achou mesmo que colocando uma armadura poderia passar-se
por uma de nós? — ela aponta uma lança-espada para Alexis, que se afasta e
usa da parede para se apoiar.
— Alexis? Do que elas estão falando? — indago, meu pânico aumentando.
Antes que Alexis possa me responder, uma delas se aproxima e a chuta no
peito, derrubando-a. Eu grito o nome de Alexis e tento alcançá-la, mas a
outra tal de valquíria vem até mim a passos largos e me segura.
— Traindo seu mundo e seu Regente com a ajuda de humanos, fada? — a
que me segura diz atrás de mim. Tento me desvencilhar mas é impossível,
ela é forte demais e machuca meu braço, dando-me a impressão de que irá
quebrá-lo se apertar um pouco mais.
— Reaja! Não queria mostrar que é melhor que nós na luta? — a outra
chuta Alexis novamente e ri um som que beira o frenesi de sádica satisfação.
Me dói não ver Alexis lutar de volta, não se defender. Este lugar a afetou
tanto. Me arrependo por não te-la tirado daqui a tempo.
— Me solta, sua CRETINA! — grito para a que está atrás de mim, enquanto
me movo com tudo o que eu tenho na tentativa de fazê-la me soltar.
— Cale-se, humana imunda. — diz e chuta Alexis. — Acha que ouvirei
ordens de um ser inferior? — sem dificuldades ela ergue Alexis pelo pescoço

301
AS FILHAS DE GUENDRI

e lhe dá um soco que faz Alexis despencar no chão.


Meu grito ecoa, rumbando entre as quatro paredes do pequeno espaço. Meu
sangue ferve ao ver o que fazem com Alexis. A amazona a chuta repetidamente.
Seja lá quem são, certamente tem a intenção de matá-la e eu não posso deixar
conseguirem.
Eu tenho que fazer alguma coisa!
Entre meu pavor e um deslize da grandalhona que me segura, num surto de
força propulsionado pela raiva, consigo soltar um braço. Aproveito a situação
e agarro a adaga caída sobre Mabelai e sem poder ver, tento acertar algo ou
alguém por sobre meu ombro.
Ouço-a gritar e ela me solta.
Me viro e vejo que atingi a lateral de seu pescoço e me afasto. Quase não a
acerto, já que parte do seu torso está coberto por sua armadura. Ela me xinga
e cai de joelhos, me olhando com ódio enquanto a adaga em seu pescoço
brilha. Não sei exatamente como, mas a adaga parece imobilizá-la por um
momento. Ela fica em silêncio me encarando com olhos arregalados.
Tento me afastar mais, pois se ela voltar a se mover não quero estar a seu
alcance.
Em questão de segundos seu corpo explode. E não só uma explosão mas
várias, uma atrás da outra. Eu tento me afastar a tempo mas não consigo
evitar que suas partes sólidas (seu corpo, sua armadura, a adaga) e líquidas (o
que que é esse negócio roxo?) -ECA!- me acertem.
QUE NOJO!
Enquanto sinto vontade de gorfar e o nojo temporariamente me faz
esquecer onde estou, a outra deixa de bater numa inconsciente Alexis e se
lança contra mim, numa psicótica reação a morte de sua parceira.
Na valquíria que me ataca, o pouco que posso ver de seus olhos por trás do
metálico capacete erradia emoção, dúvida e violência. Seu maxilar cerrado,
ela rosna para mim ensandecida.
Paraliso com o ocorrido, estou em choque assim como ela. Tive intenção
de machucá-la mas não esperava fazê-la explodir. Ligeiramente, ela coloca
sua mão em meu pescoço e em segundos, respirar me é quase impossível.
— O que fez com Alexis… fiz o mesmo com sua amiguinha! — estou sem

302
TEMOS COMPANHIA

ar, mas não preciso de muito para ser afrontosa. Por quê eu disse isso?
Apenas a irrito ainda mais.
— Maldita humana imunda! — fala por entre os dentes e eu me pergunto
novamente porque pensamos no mundo humano que todas as fadas são fofas
e serenas.
— VAI… PRO… INFERNO!
Vejo-a pressionar uma medalha circular contra uma das paredes, fazendo
com que ondas parecidas com as que Alexis faz em meu espelho ao passar
por ele apareçam, e me pergunto o que mais cruzará o mundo entre humanos
e Adaris. Mais fadas? Cali? Mais valquírias? O próprio Garou?
Seja lá o que for me fez amarelar de medo.
— Maldita seja, humana! Escória da existência entre todos os mundos! —
ela ainda rosna contra minha face, chegou tão perto que sinto seu capacete
gelado contra minha testa.
Ela me arrasta até o portal enquanto luto contra sua forte mão, minha
cabeça latejando com a falta de oxigênio. Olho de relance para meu lado e
vejo Alexis caída, imóvel e com seus olhos fechados.
— Não… Alexis! — meu grito ricocheteia nas paredes de pedra, que em vão
apenas faz ecoarem minhas palavras para ninguém. — Você precisa acordar,
reage!
Meu Deus… será que ela morreu?
Sem saber da resposta fico calada e trêmula. A amazona de Adaris cruza o
portal que abriu, me levando junto com ela e tudo que posso ouvir é meu grito
de desespero enquanto a escuridão me abraça numa centrífuga atemporal e
me joga num escuro vazio e sem fim.

303
45

Ele

P
osso sentir meu corpo sendo carregado.
Quem me carrega pára, nos abaixa e gentilmente me deita no chão.
Já sou capaz de abrir meu olhos. Fora daquele lugar começo a me
recuperar.
— O que aconteceu?
Reconheço a voz que faz a pergunta, como também os intensos olhos azuis
e o rosto de quem me resgata. Ele não parece nada feliz. Não que já tenha
parecido antes.
Não sei como, mas aqui está ele. No meio da noite que esfria, no cemitério
de Paranapiacaba. Camisa social, gravata e um sóbrio terno aberto e de cor
escura. Mesmo com a feição que expressa preocupação, sua presença como
sempre parece inabalável.
Este é o homem que auxilia Cali e eu em nossa busca por Mabelai. Nos
ajudou a encontrar a todos os voluntários, como Jaqueline e também Verena,

304
ELE

na condição de nunca dizer a ninguém sobre ele, e “pagá-lo” recuperando


algo que ele procura e que possivelmente estava com Mabelai.
Ou mais especificamente como vi hoje, estava em Mabel.
A adaga.
É isso o que ele quer.
E por que ele a queria tanto?
Boa pergunta. Se ele não fosse tão misterioso e reservado eu saberia, ou
me importaria em saber. Na verdade, não ligo muito para isso. Até o
conhecermos, procurar minha irmã era como procurar uma agulha em um
palheiro.
Ele ajudou Igor a abrir sua boate há algum tempo atrás e através dele o
conhecemos. Ele sabia da existência de fadas, de elfos, etc. E quando ouviu
nossa causa, resolveu nos ajudar sob as condições que mencionei. Sua lista
de possíveis pessoas que encontraram Mabelai era curta, mas sem ela, jamais
teríamos chegado tão longe.
Lembro de um dos dias que fomos encontrá-lo em seu escritório, na Avenida
Paulista. A única vez que fomos, pois ele deixou claro que era muito arriscado
encontrá-lo lá. Foi o dia em que Cali conheceu a Flávio, na portaria do prédio
do escritório dele. Fingi não reparar o quanto o rapaz mexeu com ela. Uma
vez tentei mencioná-lo, mas ela não deu muita bola, e com certa timidez disse
que seu foco era Adaris.
Cali… eu queria tanto vê-la nesse momento, assegurá-la de que tudo vai
dar certo, informá-la do que encontramos. Que nossa busca chegou ao fim e
Adaris será livre.
— Eu não… — tento me levantar mas minhas pernas ainda estão fracas. —
Mabelai… Acho que a encontramos…
— Sim. Aquela é sua irmã. — me pergunto como ele sabe. — Ela ainda não
acordou. E não irá acordar tão cedo. Eu a coloquei em meu carro.
Eu senti uma conexão com a mulher desmaiada dentro do mausóleu, só
não tinha certeza se era Mabelai mesmo ou só algum tipo de empolgação
momentânea. Mas de alguma forma eu sabia que é ela. Minha irmã, meu
objetivo. O motivo de tudo, a razão…
Eu a encontrei.

305
AS FILHAS DE GUENDRI

De repente relembro de como a encontrei.


— Ela vai ficar bem, certo? Preciso vê-la. — minha ansiedade é audível
embora minha voz sai fraca.
— Provavelmente. Mas está irresponsiva. Precisa de tempo para se
recuperar e esse não é nosso problema agora. — responde firmemente. —
Alexis, precisa me dizer… — ele fita meu rosto, seu olhar firme no meu. —
Aonde está Verena?
O rosto de Dimitri Bauer é sério e compenetrado, comanda uma resposta
de mim. Em sua voz, a calma antes da tempestade.
— Não sei. Valquírias apareceram…
— Malditas Valquírias. Devem tê-la levado para Garou. — Dimitri cerra
os dentes, veladamente colérico. Ele se levanta, passa a mão nos cabelos e
respira fundo.
Eu o observo, agora me sentando melhor no chão. Quando o encontramos,
Dimitri Bauer sabia mais sobre a história de Adaris que eu ou Cali. Sem
revelar muito sobre seus laços com o lugar, resolvemos aceitá-lo como um
aliado em nossa causa. Ele nunca nos decepcionou apesar de sentirmos que
ele sabe bem mais do que aparenta ou queira nos dizer. Como todos temos
nossos segredos e nada além de encontrar Mabelai e o futuro após fazê-lo
nos interessa, Cali e eu decidimos confiar nele na medida do possível e seguir
suas pistas.
Funcionou.
Já me sinto melhor, mas com todos os acontecimentos recentes me voltando
a mente, quem precisa parar por um momento e respirar fundo sou eu. Meu
mundo está girando rápido demais e cada nova informação que recebo me
atropela sem hesitar.
— Sente-se melhor?
— Acho que sim. Seja lá qual magia guarda aquele mausóleu, é forte. Nunca
me senti tão fraca tão rápido.
— Quem ergueu aquela cela, a fez exatamente para isso. — responde me
dando a mão. — Enfraquecer o seu tipo e te manter longe.
— Quem foi, Dimitri? Quem colocou minha irmã ali? — seguro a mão dele
e me ergo, tentando imaginar quem poderia prender minha irmã com magia

306
ELE

para manter minha espécie longe. Dimitri respira fundo, mas não responde.
Não sei se sabe a resposta ou se não quer dizer quem foi. Tenho tantas
perguntas em minha mente com relação a tudo isso que mal sei enumerá-las.
— Como soube que eu estava aqui?
— Pelo celular de Verena. Faz parte da rede de celulares do meu escritório.
Posso localizá-lo digitalmente em qualquer lugar do mundo. Torna mais fácil
saber aonde ela está.
Essas invenções humanas podem ser extremamente uteis a quem sabe usá-
las. Lembro que Verena disse que seu chefe a questionaria quando visse um
uber de nossa viagem em sua conta e por isso queria evitar usar o serviço.
Ela não deve saber que basta ter o aparelho consigo para que ele soubesse
onde esteve e eu não sabia que o tal chefe em questão é ninguém mais ninguém
menos que Dimitri.
Eu sei que ele a conhece. Nos disse quando ela estaria na festa do vizinho
Lucas, nos deu seu endereço, nos avisou como estaria vestida, etc. Por isso
fomos lá encontrá-la. Mas não nos disse que são tão próximos, convivência
diária.
Por isso ele não nos quis indo em seu escritório? Para que ela não nos visse?
Lembro-me que o aparelho ainda está em meu bolso pois o usei como
lanterna a noite toda e por isso agora está sem bateria. E também, a aleatória
fala de Verena durante nossa discussão sobre como seu chefe não sai de sua
cabeça faz bem mais sentido agora.
Começo a desconfiar que o sentimento seja mútuo.
— Encontrei pedaços de um corpo, muito sangue roxo de valquíria, e isto.
— Dimitri me mostra a adaga. — Por tanto tempo procurei por isso. — ele
fala mais para si que para mim. — Agora só preciso encontrar as outras. Foi
você quem a usou na valquíria que explodiu?
Faço que não com a cabeça. — Eu apaguei completamente antes de ver
o que aconteceu. Mas recentemente enfiei lâminas em várias valquírias e
nenhuma explodiu.
— É a adaga. Você não faz ideia do que isso aqui é capaz. — explica
observando o objeto. — Então Verena matou uma valquíria… — resmunga
para si. Posso jurar que mesmo irritado, ele ri disso para si.

307
AS FILHAS DE GUENDRI

Eu perguntaria por quê acha graça nisso, mas o telefone de Dimitri toca.
— E então? — atende com pressa.
— Humana, Dimitri. Cem por cento humana. — o silêncio da madrugada
e minha proximidade a Dimitri me permitem ouvir a voz no outro lado da
linha. É de homem.
— Tem certeza disso, Gregório?
— Absoluta. Passei o sangue que coletei dela na consulta por todos os testes
possíveis.
— O que diabos… — Dimitri olha para mim. — Já encontraram a ruiva. E
uma adaga estava nela.
— Se a encontraram, então não usaram a correta. — conclui. — Ah, antes que
eu me esqueça: meu radar detectou um Kroll na cidade esta noite.
Dimitri parece surpreso com a notícia. Eu provavelmente também estaria
se soubesse do que falam.
— Aonde? — franze o cenho.
— Sobrevoando próximo a Augusta.
Dimitri pensa em silêncio por um momento.
— Vou levar a ruiva até o Hotél. Encontre-me lá imediatamente pois preciso
sair assim que deixá-la com você.
Ao desligar, Dimitri imediatamente liga para outra pessoa que atende sem
demora.
— Encontrou? — a voz também masculina pergunta. Dimitri responde que
sim. — E Verena?
— A levaram.
— Quem?
— Valquírias.
— Hah. Vai resgatá-la, príncipe encantado? — o homem zomba no outro lado
da linha, calmamente rindo baixo. — Vai pra Adaris de cavalo branco e tudo? —
a gargalhada agora é alta e me enfeza.
— Gregório está a caminho do Hotel. — Dimitri ignora a brincadeira.
— Vocês dois ficam com a ruiva enquanto eu vou buscar a Verena. Esteja
preparado. Tem um Kroll nessa dimensão.
— Um caçador? Aqui? — agora a voz do outro lado muda de tom. — Uau, há

308
ELE

quanto tempo não vemos um? Suas amiguinhas de asas conseguem cada coisa… mas
é como dizem: quando uma fada bate as asas em outro mundo, inicia-se o caos por
este aqui. Eu te avisei pra ficar longe delas. De novo. Mas você não consegue ficar
longe daque…
— Estou a caminho, Téo. — Dimitri o corta.
— Olha, eu tô meio entediado. O doutor pode ficar sozinho com a ruiva. Não vai
precisar de uma ajudinha em Adaris?
Dimitri desliga o telefone sem responder, colocando-o no bolso da calça.
— Quem são esses homens e o que sabem sobre Adaris? — estive sob a
impressão de que essa missão era um velado segredo em um seleto e pequeno
grupo de ex-habitantes. Aparentemente me enganei.
— Nada que vá ajudar ou prejudicar seu mundo. — me assegura. — Você
veio pelo espelho do quarto de Verena?
— Como sabe? — começo a segui-lo até seu carro, apenas alguns passos
atrás dele.
— Ela bebeu muito sábado passado e eu lhe dei uma carona. Entrei no
quarto dela, vi que recentemente abriram um portal. Quando ela caiu no
sono, investiguei o lugar. Um elfo conseguiu entrar no apartamento dela no
dia anterior e você a salvou. — como sabe? Quis repetir a pergunta, mas nem
preciso, ele continua explicando como se lesse minha mente. — Cogitei pelo
cheiro que ficou no lugar. A famosa olência das fadas é malditamente doce,
inconfundível. Algumas espécies élficas fedem. É fácil distinguir.
Continuamos a andar pelo cemitério, recebo todas as informações tão
rápido quanto ando. De repente me lembro do que ouvi alguns minutos atrás:
um caçador?
— Cali. — digo, irritada por não ter pensado antes. Um caçador na região da
Augusta. — Cali está cuidando de Igor esta noite.
Dimitri pára aonde está e respira fundo, fecha os olhos e leva uma mão
as têmporas, impaciente. Então, calmamente pega seu celular e digita uma
mensagem. Após fazê-lo, me explica:
— Afonso irá atrás dela. — seja lá quem for esse, que seja competente o
suficiente para protegê-la.
A rede de aliados de Dimitri vai se expandindo em minha frente e minha

309
AS FILHAS DE GUENDRI

curiosidade sobre o que ele e esses homens possam ser não demora aparecer.
— Tem um time e tanto a sua disposição. — comento. — Quando iria nos
informar sobre ele? — eu e Cali perjuramos segredo quanto a todas as coisas
envolvendo Dimitri e outros humanos, mas ele não parece tão preocupado
em manter o mesmo decoro quanto a nós.
— Sim, tenho alguns sócios. E estaríamos em melhor vantagem para te
ajudar se soubéssemos de seu plano de antemão. Você deveria ter me dito
que encontraram outra pista e que viriam para cá esta noite.
— Foi tudo muito rápido, não tive tempo de avisar ninguém, nem mesmo a
Cali. Verena quem encontrou a pista assim que saiu do trabalho hoje e entrou
em contato comigo através do portal no espelho dela. Eu não tenho mais
tempo a perder e ela quis vir comigo de qualquer jeito.
Mesmo de costas para mim, reparo que todas as péssimas notícias no
máximo causam Dimitri Bauer um breve desconforto, pequenos impropérios,
pedras em seu caminho fáceis de chutar. Mas é só algo envolver Verena para
vê-lo reagir verdadeiramente, cólera outrora contida agora visível em seus
olhos.
Se eu suspeitava, agora tenho certeza. Não é só a adaga que ele quer.
— E como vieram pra cá? — aproximamos seu carro. Aponto para a moto
estacionada do outro lado da rua sob a luz do poste.
— Ela pediu emprestado ao vizinho dela.
— Lucas? — ele pergunta com um certo desprezo na voz.
— Não. O outro, todo tatuado. Verena o prometeu dinheiro.
Dimitri retira seu terno, abre a porta de seu carro e o joga lá dentro. Eu me
aproximo do veículo. Me abaixo, tentando olhar dentro dele mas os vidros
são tão escuros, só consigo ver meu próprio reflexo. Sei que Mabelai está la
dentro no banco de trás.
O que não sei é porquê quero vê-la mas ao mesmo tempo tenho receio.
Dimitri vê meu impasse e vem para o meu lado do carro.
— Ela vai acordar assim que se recuperar da adaga. Sua autocura requer
mais tempo quando as feridas são mais profundas. Não há nada que
possamos fazer por ela agora. — com um tom brando ele segura meus
ombros, quebrando meu olhar que está grudado no vidro do carro. — Agora

310
ELE

precisamos encontrar Verena. Você e eu vamos até Adaris buscá-la.


Automaticamente faço que sim com a cabeça. Espero com todas as minhas
forças que Verena esteja bem.
— Se Garou fizer alguma coisa com ela eu não respondo por mim. —
sussurro com ódio .
— Não vai. Pelo menos não agora. — Dimitri pega sua carteira e tira
algumas notas de de dinheiro dela. — Entregue isso ao dono ao devolver a
moto e espere por mim no apartamento dela. Te encontro lá assim que deixar
sua irmã em um lugar seguro. — diz entrando em seu carro.
Concordo com ele. Sem nos despedirmos, ele liga o carro e acelera,
cantando pneu. Eu subo na moto e mesmo com os pensamentos a mil por
hora, dou a partida e sigo meu caminho.
São tantas coisas para colocar no lugar e fazer sentido.
Mas recuperar Verena das mãos nojentas de Garou é a prioridade no
momento.
E todas as milhões de perguntas que tenho ficam para depois.

311
46

Despedace-me

E
scuridão aos poucos se transforma num prisma de luz novamente
assim que saímos do vórtex bizarro pela qual a valquíria me fez
passar.
Chegando onde quer que seja este lugar, a cavala me joga com força no
chão e eu vomito, nauseada da nossa pequena viagem cósmica.
É assim que fadas atravessam os mundos? Passando por um liquidificador?
De quatro no chão dou uma olhada nos meus braços e agora vomito pelos
pedaços de seres não-humanos que se encontram sobre mim, especialmente
pelo dedo sem unha que vejo agarrado no cabelo que cai sobre meu rosto.
Mesmo colocando tudo para fora, a intensa sensação de ter acabado de sair
de uma centrífuga não passa.
— Levante-se! — late odiosamente minha captora.
— Aonde estamos? — pergunto ainda no chão e achando que ela vai
responder.
Me arrependo de perguntar assim que ela me acerta um tapão na lateral

312
DESPEDACE-ME

da cabeça que me deixa surda do lado direito. Meu ouvido agora zune. A
valquíria me força a ficar de pé e a começar a andar, uma mão segurando-me
pelo cabelo, outra em meu braço.
Mesmo com dificuldade dada a minha situação, observo meus arredores.
Onde quer que eu estou, não parece nenhum lugar que já estive na vida.
A seca terra desse chão tem tons marrom escuro. Plantas são grandes mas
não todas verdes como as de meu mundo. São pretas, secas e compridas.
Algumas tem algo que parecem folhas, muitas outras não. Não começam
apenas no chão mas sim por todos lados, incluindo o céu. E são enormes.
Algo pinga de algumas delas, um tipo de orvalho bizarro de cor vermelho
escuro. Um desses pingos cai em meu all star branco e para meu choque
parece vivo, vai rolando de um lado para outro.
Dou um grito, paro de andar e começo a chutar meu pé no ar, querendo
me livrar daquele negocinho esquisito. A valquíria ignora meu chilique, me
puxando para perto de si novamente e me arrastando consigo.
É confuso olhar para o horizonte. Ele move mas não girando lentamente,
como na Terra. Não, ele dá umas tremidas ás vezes, daquelas que você tem
que olhar de novo para confirmar que aconteceu. E ele muda de cor depois
da tremelicada, mantendo um tom escuro e alaranjado, te fazendo duvidar se
mudara mesmo.
Que raio de lugar é esse?
Tento me livrar da mulher como fiz com sua amiguinha antes de vir parar
aqui. Tento aproveitar algum momento de fraqueza dela. Tenho que usar esse
meu jeitinho brasileiro para alguma coisa, tirar vantagem quando ela estiver
de bobeira.
Um segundo pode ser tudo o que eu preciso e a única vantagem que eu
tenho.
Apesar de eu estar cansada e quase surda de um ouvido, assim que a chance
aparece, percebendo que ela afrouxa sua pegada em meu couro cabeludo,
puxo meu corpo contra o dela. E já que eu estou á sua frente, faço de tudo
para lhe acertar a única parte de seu rosto que não está coberta por armadura:
seu queixo.
Dou uma cabeçada para trás e ela perde um pouco do equilíbrio, soltando

313
AS FILHAS DE GUENDRI

um de meus braços, mesmo erro cometido dentro do mausóleu. Tento


também lhe dar um pisão, mas o metal que cobre seu pé não a deixa sentir
nada.
No último impulso de força que provavelmente conseguirei dar, avanço
para frente tentando escapar das mãos dela o mais rápido possível. A valquíria
grita alguma coisa e me solta por completo e eu corro mais rápido que o Forrest
Gump, sem saber ao certo no que estou pisando.
Eu não sei nem para onde ir ou se há alguma saída. Não há nada pior
do que correr sobre um chão desconhecido mas continuo mesmo assim,
hora pisando em terras moles, hora pisando em terras firmes. Algumas das
plantas se agarram a meu braço e a minha cintura, fazendo um barulho muito
estranho. Quando uma se agarra a meu pescoço, tenho a impressão de ouvir
uma risadinha esquisita. Sinto algo que parece uma mordida em meu pescoço
e sem parar de correr, meto a mão na minha pele e puxo o que quer que seja
aquilo com força, quase arrancando a pele de meu pescoço junto.
Sem parar, olho para o lado e a lanço para longe. Mas minha corrida termina
assim que caio dentro de um lago, meu corpo engolido por inteiro pelas águas
extremamente frias.
O que é um grande infortúnio pois não sei nadar.
Como não vi um lago á minha frente? Como não o enxerguei em meio esta
terra seca? Um corpo de água seria visível, não? A não ser que além de surda,
também estou ficando cega.
Tentando voltar para a superfície, confirmo que não sofro de cegueira assim
que diante de mim vejo um vulto se aproximar, e quanto mais perto chega
mais posso ver e entender sua forma.
Não que tudo que já tenha acontecido até agora fosse normal, mas…
Uma sereia?!?!?
A mulher de longuíssimos cabelos escuros e - sério - cauda de peixe,
serpenteia a minha frente, tão confusa e curiosa com o que vê quanto eu.
Não saber nadar e cair em um lago com sereias…
É tanta sorte que me pergunto se nasci com a bunda virada para a lua.
Ela nada em minha direção e o pouco ar que eu tenho guardado em meus
pulmões começa a acabar. O pânico de morrer afogada começa a tomar conta

314
DESPEDACE-ME

da minha mente, e o meu nado que sempre foi uma porcaria agora é apenas
eu me debatendo debaixo d’água, mais afundando que indo para cima. Meu
lado sarcástico faz apostas do que me matará primeiro: a mulher peixe ou a
asfixia.
Não sei se devo agradecer ou xingá-la, mas a valquíria que me sequestrou
agarra meus cabelos por fora da água. Seu braço forte me dá um mega puxão
que me retira do lago e da mira da sereia.
Eu finalmente respiro fundo, tossindo, peito e garganta doendo, os dois
pulmões desesperados para recuperar todo o ar que fiquei sem.
— Humana imbecil! — raiva estampada em seu rosto ela puxa mais ainda
meus cabelos e tenho certeza que dessa vez deve ter arrancado algumas
mechas.
Eu responderia se pudesse falar. Olho para minha frente na esperança de
ver quão próximo a sereia esteve de me pegar, mas para a minha surpresa…
Não há lago nenhum ali.
Por isso não o vi antes. O lago não existe. Ou ao menos… não é visível. A
minha frente somente chão, continuação de mais chão ainda.
— Cadê o lago? E a sereia? — perguntei como se a odiosa valquíria fosse
responder.
— Eu devia ter deixado a iara te engolir viva! — ela diz, me colocando de
pé de novo pelos cabelos e fazendo-me segui-la.
Iara? Olho para trás… e ainda não vejo o corpo de água. Eu estou molhada,
o lago existe. Aliás, me lavou de boa parte do sangue da outra valquíria.
Depois de andarmos por um tempo (melhor dizendo, ela andando e
puxando meu cabelo, me forçando a andar junto) chegamos a um titânico
lugar do qual nunca vi nada igual.
Parece um castelo… mas bem, não é exatamente um castelo. Tem as medidas
de um, mas a aparência de uma… árvore? Uma árvore metálica? Ou de
concreto? Tem galhos que se estendem por boa parte de suas laterais, buracos
que parecem janelas cobertas por uma vidraça furta-cor.
É arquitetonicamente de se admirar. Uma enorme e bela mistura de
concreto gótico e orgânico fosco. Contudo, também é assustador. Cheira a
decadência, mas tem a imponência de um palácio. Tive a ligeira impressão

315
AS FILHAS DE GUENDRI

de que em algum tempo no passado já fora casa de alguém importante.


Usando suas asas, a valquíria voa até uma abertura no meio da grande
árvore prédio, se posicionando e pisando em meio a janela, me jogando no
chão de dentro do lugar ao entrarmos por ela.
Diferente do lado de fora, aqui é extremamente iluminado. Chega até a
doer os olhos e me dificulta a enxergar propriamente.
Ouço vozes abafadas e por causa do safanão que levei, essas se misturam
ao zunido e não entendo o que dizem já que estão longes.
Meu corpo dói de cima abaixo, minha respiração não desacelera nem por
um minuto. Minha cabeça lateja demais, especialmente onde ela me segura
pelos cabelos. A ficha caindo de que não tenho como fugir, a tensão não me
deixa parar de tremer, pés e mãos não se firmam de forma alguma.
Comigo ainda no chão, sem prévios avisos ela me chuta novamente, na cara.
Sinto o gosto do meu sangue e o mesmo escorrer pelo canto de minha boca.
Meu grito seria mais alto se não tivesse tanto sangue impedindo o som de
sair. Como dói. Me deixou até zonza.
Tento fazer sentido do que está acontecendo. Quem são essas pessoas, onde
estou? Eu acho que é Adaris, mas como confirmar se nunca a vi?
A pergunta mais alta em minha cabeça é: para que me trazer aqui?
Levanto a cabeça e ajusto o olhar, tentando ver quem se aproxima. Não
consigo. Tento entender o que dizem. Não posso.
Será que vão me matar? Por quê ainda não o fizeram?
— Verena! Não! Deixem-na em paz!
Meus ouvidos ainda zunem, mas tenho quase certeza de que ouvi meu
nome. Só não sei se isso é bom ou se é ruim…
Na tentativa de descobrir quem é, abro a boca para responder. Mas antes
que eu consiga, levo outro golpe em minha cabeça que me apaga, acabando
com todas as minhas chances de fazer sentido de meus arredores e descobrir
quem me chamara.

316
47

Perdoe-me a Interrupção

I
ntroduções são tão… tediosas. Certamente já ouviu falar de mim.
Cali já deve ter lhe contado sobre nosso pequeno trato. Deve ter lhe dito
algo sobre a minha forma vaporosa, ou contado sobre meus afiados dentes em
sua pele.
Confesso mordê-la com mais força que o necessário. Não me julgue, quando
tiveres uma fada em sua boca, me entenderá.
Ela me chama de “sombra”.
Sombra.
É o apelido mais estranho que já me deram.
Eu tenho um corpo. Mais de um, na verdade. Uma especialidade de seres como eu.
Todavia, meu verdadeiro corpo (que também é meu favorito por ser minha forma
mais bela), está desaparecido.
Para ser mais precisa, meu corpo foi retirado de mim. Sequestrado.
Apesar de suspeitar, não sei ao certo com quem está.
Imagino que quem o levou de mim, o fez decidindo me prender.
Me punir.
Ele achou que assim me deixaria longe de seus brinquedinhos. Que assim me
afastaria dela.
Mas nada vai me deixar longe dela.
Nada.
Ele pode tentar tirá-la de mim, mas por todos os deuses existentes em todos os

317
AS FILHAS DE GUENDRI

espaços-tempo, vou encontrá-la.


Ela é tudo o que sempre quis ter. Minha filha. E ele sabe disso.
Maldito o dia em que coloquei meus olhos, minhas mãos e meus lábios nele! Uma
entidade ególatra que zombou de meu amor e devoção.
E não suficiente, agora me pune impiedosamente. Me forçou a abandoná-la.
Por cinco anos humanos a procuro…
Finalmente a encontrei.
O único momento em que pude me aproximar dela quase custou minha existência.
Tive que entrar em um velho e desgastado corpo humano, esperá-la numa rua cheia
naquela cidade enorme e marcar sua mão para que pudesse rastreá-la, saber onde
mora ou aonde estaria naquela noite. Tive sucesso, mas tive que lhe causar dor.
Todas as vezes que tenho que lhe causar dor me parte a alma. Mas tudo bem, pois
sei que ela entenderá que o que ia acontecer naquela noite em seu apartamento seria
para seu próprio bem.
Mas não posso me aproximar dela no mundo humano sem meu melhor corpo,
pois é nele que consigo utilizar minha magia por completo. Dessa forma em que
estou, há pouquíssimo que posso fazer. Preciso encontrá-lo. Preciso me vingar de
quem o roubou e já comecei.
Não vou parar até que ele pague pelo que fez.
E por mais que eu tenha meu plano em mente e o executo com algum sucesso
apesar de pequenos obstáculos, estranhamente neste momento sou perturbada por
algo que me surpreende.
Não, não pode ser.
Aquele crápula a tem em seu poder. Daqui onde me escondo eu a sinto.
E infelizmente, ela está mais próxima do que eu queria que ela estivesse.

318
48

Predador & Presa

A
cordo no silêncio de um lugar semiescuro.
Minha cabeça e meu corpo ainda latejam de dor. Lentamente,
tento me erguer, mas é bem difícil.
Há algo pesado em meus pulsos e mais pesado ainda em volta de meu
pescoço. E por causa do grande impulso que dou para frente na esperança de
me levantar, as malditas trancas agora me puxam para trás, um tranco que
quase desloca minha coluna.
Tusso, pois o puxão me deixa sem ar.
— Grilhões… — murmuro enraivecida ao tocar meu pescoço, certificando
que ele ainda está no lugar e reconhecendo os pedaços de metal atarraxados
por correntes.
Me movo novamente e o barulho do metal ladrilhando é tão alto que me
faz parar onde estou.
Mas… onde estou?
Olho a minha volta. Droga de lugares escuros! Se aqui é Adaris, necessitam

319
AS FILHAS DE GUENDRI

imediatamente de um sistema de eletricidade estilo humano. Tudo o que


consigo ver é um pequeno lago a distância, iluminado por um feixe de luz
azulada solitário do qual a fonte não consigo achar. Se soubesse de onde vem
eu poderia tentar fugir por lá. Isso se conseguir escapar dos meus grilhões.
Tremo de frio. Ou de medo. Provavelmente os dois revezam suas vezes em
tomar conta de mim. Minhas roupas e cabelos ainda estão bem molhados,
então imagino que eu não apaguei por muito tempo.
Sem vontade de desistir, tento me erguer devagarzinho, tentando diminuir
o movimento dos grilhões e consequentemente seu barulho. O máximo que
me deixam ficar é de joelhos, o pedaço de ferro em volta de meu pescoço
quase me sufoca.
Procuro por minha bolsa e sem encontrá-la, tento lembrar de onde a vi
pela última vez… acho que deve ter se perdido durante nossa viagem pelo
portal, pois quase tenho certeza de que até então estava comigo.
Outra possibilidade seria: quem quer que me raptou a manteve para si.
Tateio o chão a minha volta e a única coisa que consigo encontrar é a parede
onde meus grilhões se fincam. Minha mão explora o local na esperança
de encontrar algo caindo aos pedaços ou algum material vagabundo que
compusesse o que me mantém cativa.
Nada.
— Verena…
Uma voz feminina bem suave se destaca na escuridão. Sem dar muita bola
pois preciso fugir daqui, continuo cutucando a fonte de meus grilhões.
— Verena…
Agora a voz é um pouco mais alta, paro o que faço para olhar a meu
redor. Quando encontro um ponto anormal a minha frente, congelo. Posso
ver sombras movendo-se em minha direção mas não consigo enxergar
exatamente sua forma. Recuo com medo, mesmo sem espaço.
Enxergar no escuro não é minha especialidade, e não posso dizer se o vulto
movente está longe ou próximo. De repente, o ar a minha volta fica quente e
sinto o calor se aproximar de meu rosto. É um sentimento estranho, como
vapor de água quente. Pela sutileza do toque, arrisco dizer que o que quer
que fosse parece tentar me acariciar.

320
PREDADOR & PRESA

Bizarro.
— Minha menina… — a voz diz, me assustando. Não posso ver nenhum
rosto ou corpo.
— Quem é? — pergunto num sussurro. É tão frustrante quanto apavorador,
como sonhos nos quais parece estar acordado, vê algo se aproximando mas
não pode-se mover, nem dizer nada?
É mais ou menos isso.
Tento conter meu desespero e meu trêmulo queixo, mantendo o pensa-
mento positivo, mas está cada vez mais difícil. A única saída é fechar os
olhos e o faço. Retraio meu corpo inteiro daquele toque, me jogando contra
a parede atrás de mim.
De olhos fechados e face escondida, reparo que estou com fome, frio, dores
aonde ainda posso sentir meu corpo e cheiro a pedaços de valquíria.
Físico definhando, o mental e o emocional são as únicas coisas ainda mais
ou menos intactas. Eu estou num lugar desconhecido, que provavelmente fica em
outro mundo. Pensar nisso é uma viagem só. Como é que consegui fazer o que
cientistas de todos os lugares de nosso planeta tentam, sonham, teorizam a
respeito? Atravessei paredes dimensionais e sim, apesar da grande descoberta
a lá pequeno passo para o homem e grande passo para a humanidade, isso tudo é
uma grande droga.
É estranho dizer isso mas, essa sensação e lugar são extremamente parecidos
com os que me atormentam quando durmo. Acho que a forma como cheguei
e estou aqui não me deixaram reparar isso antes.
Então se estou em um sonho, tudo o que preciso fazer é acordar…
E tento.
Abro meus olhos.
De novo, e de novo e de novo.
Nada.
O lugar é sempre o mesmo ao abrir os olhos, mas o vaporoso toque
desaparece e a voz se cala dessa vez.
Me certificando de que se fora mesmo, sento no chão, seguro a corrente
entre as mãos e coloco um pé de cada lado de onde ela se prende na parede e
puxo, puxo, puxo sem cansar.

321
AS FILHAS DE GUENDRI

Não adianta.
E eu choro. Tá, eu sei que eu choro muito. Mas não dá para segurar. Eu nunca
me senti tão fraca, sozinha e inútil. Não acreditei em Alexis, não confiei em
Cali. Não me interessei pelo mundo que tentaram abrir meus olhos a respeito.
Não quis saber o que estava acontecendo, do que queriam me ensinar.
Eu estou no centro de uma história envolvendo seres e dimensões que não
conheço, e que não quis conhecer pois achei que era uma grande maluquice
inventada pela cabeça de duas lunáticas. Dispensei qualquer chance de
aprender e entender sobre tudo que Cali e Alexis me avisaram.
Só me importei com uma paixonite boba. Nessas últimas semanas só me
importei em roubar um rapaz de outra garota. Algo muito maior que eu e
tudo o que eu julgava importante acontecia, mas foquei em idiotices ínfimas.
Não devia ter feito nada além de aprender a me defender depois daquele
elfo-jacaré-macaco tentou me matar.
Tantas vezes que eu deveria ter ouvido Alexis, especialmente quando ela
insistiu para que eu não viesse, ou quando ela precisava sair de dentro do
mausóleu. Do lado de fora ela estaria forte suficiente e poderia nos defender,
poderia lutar.
Por quê sou assim?
Por quê sempre foco na coisa errada?
Por quê só me arrependo quando tudo explode na minha cara?
O choro estanca minha respiração.
Calma, Verena. Digo a mim mesma. Já basta meu corpo convalescendo, se
eu perder também a minha mente já não terei mais nada.
Não posso desistir agora. Enquanto tento me controlar, a meu lado direito
uma luz se acende bem ao longe.
Aquiesço imediatamente.
Ouço passos de mais de uma pessoa.
E eles vem em minha direção.
Em um piscar de olhos, quem vinha já está a minha frente, mãos sobre meu
grilhões, desfazendo-os. Não me machucam. E para que não comecem, fico
em silêncio pois sei que falar será em vão.
Começam a me arrastar por onde vieram. Estou com medo, um medo tão

322
PREDADOR & PRESA

intenso que chega a formigar as palmas de minhas mãos. Ao chegarmos á


um corredor com uma fonte da luz mais forte, vejo que são duas valquírias,
exatamente iguais fisicamente e em sua forma de andar.
Quantas delas existem?
Espero que o suficiente para que não sintam falta da que eu matei.
Elas me arrastam por longos minutos, e chegamos novamente ao lugar por
onde entrei primeiramente, o grande salão aonde a valquíria me arremessou
no chão pela janela.
Muito neste lugar parece com coisas que já vi em meu mundo, mas em suas
essências se olho de perto, olho mesmo, vejo que são diferentes.
Ás vezes acho que é minha mente tentando decifrar o que estou vendo, e
traduzir os arredores para mim da forma mais precisa e próxima de algo que
já tenha visto antes. Mas reparar nesses detalhes agora é inútil.
Ao chegarmos a frente de um trono gigante feito de ouro, ossos e plantas,
elas me jogam ao chão com brutalidade e forçam minha cabeça para baixo. E
assim fico, de joelhos.
Uma estrondosa voz masculina demanda minha atenção. Não o consigo
encontrar imediatamente mas quando ele entra em meu campo de visão, uma
das valquírias levanta minha cabeça e força-me a olhá-lo.
Estou vidrada em sua imagem e o observo assiduamente. Seu corpo é
definitivamente o maior e mais musculoso que já vi em toda minha vida,
coberto em vestes preto e dourado. Seus cabelos são viçosos e longos. Os
traços de seu rosto perfeitamente desenhados, chamá-lo de belo não faz jus
ao que eu vejo. Sua presença me encanta, sua beleza é violenta.
Eu o olho sem piscar mesmo com meus olhos ardendo. Reparo algo correr
por minha bochecha e com muito esforço desvio o olhar, me forçando a olhar
para baixo.
Me erguem do chão.
Ele decide se aproximar. Evito olhar para ele. Sua enorme mão quase cobre
todo meu rosto, ele me força olhá-lo no olho. Olhar em seus intensos olhos
cinzas é como olhar para o sol.
O mais belo ser que já vi aproxima seu rosto de meu ouvido esquerdo, e
cuidadosamente afaga meu cabelo, afastando-o. Sinto suas narinas contra

323
AS FILHAS DE GUENDRI

meu pescoço, lentamente subindo por minha orelha. O sinto respirar-me


fundo e outro arrepio me percorre.
— Humana. — sussurra contra meu ouvido.
Quem é ele?
Estamos face a face e me sinto diferente com seu olhar sobre mim. Me
desperta servitude, algo intenso, único e profundo dentro de mim quer fazer
qualquer coisa que ele me pedir.
Obviamente um efeito mágico que força em mim.
— Trarei alguém aqui e quero que me diga se a conhece. — respondo que
sim com a cabeça. Nesse momento eu diria a ele qualquer coisa que quisesse
saber.
— Não! — uma voz que não me soa estranha exclama mas não me importa,
só quero olhar para ele. — Ela não tem nada a ver com isso! — grita, histérica.
No entanto, ele me força a tirar os olhos dele pois precisa que eu a reconheça.
Quando o faço, a hipnose se quebra. Forçada a virar meu rosto para quem
me chama pelo nome, um forte desespero toma conta de mim novamente.
Faz tempo que não a vejo mas a reconheceria em qualquer lugar. Ela parece
abatida. Seu cabelo que outrora era um vívido raio de luz, agora parece sem
vida. Seu rosto pálido tem veias negras lhe subindo pelas laterais. Braços e
mãos quase pretos por completo, destoando do resto do pálido tom de seu
corpo.
Esse é o último lugar que gostaria de ter que reconhecê-la.

324
49

Zero Absoluto

N
unca me senti tão pequena e fria em toda minha existência, desde
a frente da casa de Igor quando me pegaram até aqui e agora sendo
arrastada até o salão principal do “castelo” de Garou.
Nos descobriram.
Me pegaram.
Valquírias me encontraram e me arrastam sem dó.
Eu desisto de chutar e gritar. Eu já não estou nas melhores das condições
físicas, especialmente depois de ter de fugir de uma besta aviária gigante no
mundo humano. E agora isso.
Duas valquírias. Eu as conhecia pessoalmente. Cada uma delas segura meus
braços firmemente. Não soltam nem por um segundo. Sem falar uma única
palavra desde que me encontraram, nem responder minhas inquisições.
E para piorar tudo, quando chegamos em Adaris eu vejo a última pessoa
que queria ver aqui.

325
AS FILHAS DE GUENDRI

Verena.
Sendo puxada pelo cabelo por uma carrasca semelhante a minha. Ela está
molhada, com manchas roxas em suas roupas e me pergunto o que acontecera
pois isso é sangue de valquíria.
Grito seu nome mas ela não me ouve de imediato. Quando ouve, a amazona
que a mantinha lhe bateu com tal força que a apaga.
Eu estou tão cansada de me debater. Mal tenho forças para andar e agora,
depois de me manterem numa cela escura, elas literalmente me arrastam por
um corredor.
Como tudo acabou assim?
Como eu vim parar aqui?
Chegando no salão de Garou, eu o vejo próximo a Verena que está de joelhos
a frente dele. Ela o olha, hipnotizada. Ela é inocente, não tem absolutamente
nada a ver com isso e eu me afogo em remorso pois está aqui por minha causa.
Garou teve que forçá-la a me olhar para responder a pergunta que ele fez.
Se ela me conhece. Quando parece quebrar de seu encanto, em silêncio tenta
vir até mim. Garou a puxa pelos cabelos, num forte retranco. Com uma mão
dando uma volta quase completa em sua nuca, ele mantém controle sobre
Verena como uma marionete. Ela se debate, ele a ergue do chão e a vira de
frente para ele.
— Garou, por favor eu imploro! Deixe-a ir! — é tudo que consigo pensar
dizer.
— Caliandrei… ou, melhor dizendo, “Cali” — debocha. — Patético, não
acha? — ele observa Verena com curiosidade. — É isso sua cúmplice? Inferior.
Efêmero. Fraco. É com a assistência disso que se rebela contra seu Regente?
“Isso” é Verena. Ele a estuda atenta e genuinamente curioso, morbidamente
interessado em sua fragilidade humana. Mais uma vez eu imploro que a
coloque no chão e a poupe disso.
E para minha surpresa, dessa vez ele o faz. As valquírias a seguram
novamente enquanto ela tenta com tudo em si recuperar sua respiração.
Garou volta para seu trono e entre o silêncio pesado, as altas tosses de
Verena e meu fraco chorar, ele se senta e parece ponderar calmamente.
— Não posso dizer que não esperava que algo do tipo acontecesse. Se

326
ZERO ABSOLUTO

não esperasse, não teria fechado todas as entradas e saídas de Adaris ou


proibido a abertura de portais. Populações se rebelam. É comum em qualquer
Mundo. Espíritos jovens e anarquistas sempre se erguem para enfrentar
suas autoridades, figuras conservadoras. Alguns acham isso fascinante. Eu
acho entediante. Repetitivo. E você… o que acha, minha querida “Cali”?
— sua calma voz profere no salão e eu não respondo. — Seu momento
heroico durou o suficiente? Rendeu-lhe frutos? Seu plano funcionou? — ele
descansa seu cotovelo sobre o braço do trono, uma das mãos inquietas, dedos
se friccionando. — Como dizem no mundo desta aqui… valeu a pena?
Vê-lo tão calmamente falar sobre todo o inferno pelo qual passei é um
insulto maior ainda do que me arrastar até aqui.
Mesmo acabada e vencida, num breve acesso de raiva eu reajo.
— Esse trono não te pertence. Você não é nosso regente. Guendri…
— Guendri não está AQUI! — começando a frase calmamente e a termi-
nando com um grito que estremeceu as janelas, Garou se levanta e vem até
mim. — o que pretendia com tudo isso, uh? Pôr nosso povo em perigo ao nos
expôr a esse tipo de ser? Abrindo portais para que perigosas criaturas andem
entre nós e se aproveitem de nossa momentânea fragilidade? Certamente já
viu o mundo dessa espécie! — aponta para Verena. —Destroem-se pouco a
pouco apenas pelo prazer de destruir! É isso o que quer para nós?
Garou perde a calma aos poucos. Já eu?
Literalmente não tenho mais nada a perder. A magia emprestada pela
Sombra desestabilizou tudo em mim e me apresentou a algo que nunca
conheci: a beleza do descontrole.
— Não. — minha voz sai timidamente. — Você traiu Adaris. Você é o perigo,
um monstro que devora nossa terra, nos destrói, nos divide e nos corrói,
por dentro e por fora. Vive nos enchendo de medo, nos convencendo de
que fomos abandonados. — ergo minha cabeça com o pouco de coragem
que me resta desta jornada. — Um megalomaníaco que se acha nosso dono.
Quem te deu autoridade sobre nós? NINGUÉM! VOCÊ NÃO É NINGUÉM!
UM TIRANO SOZINHO E MENTIROSO! NOSSA LIBERDADE NÃO LHE
PERTENCE! — minha boca não pára. — Você se aproveitou da ausência de
Guendri para nos escravizar. Nos vender, nos dar para outros como você.

327
AS FILHAS DE GUENDRI

Roubar nossa magia e se fingir herdeiro de Guendri. VOCÊ NÃO É NADA!


Tudo o que está entalado em minha garganta há tempos finalmente sai sem
freios.
Garou olha em meus olhos por um momento, taciturno. Eu não sei dizer se
minhas palavras lhe atingem ou não. Eu o encaro de volta, exausta, tremendo.
A sala está em perfeito silêncio, ninguém emite um som sequer.
— Tragam o elfo. — comanda depois de um tempo sem desviar o olhar de
mim.
Duas valquírias saem e quando voltam, confirmam meu maior medo.
Entre elas duas, trazem um quase inconsciente Igor em sua forma natural
verde, pesadamente sendo arrastado. Elas o jogam ao chão em frente ao trono
de Garou.
Me pergunto como foi que nos descobriram. Quando. Quais foram as pistas
que deixamos. De qualquer forma, eu os levei até Igor. Eles descobriram sua
residência por minha causa e eu nunca me perdoarei por isso.
— Veem por que faço o que faço? — Garou começa a andar lentamente
em meio aos presentes, as valquírias em posições militares, Verena no chão
tentando ao máximo não olhar para Garou. — Este ser nos abandonou e
fora daqui seus atos mostraram-se subversivos a existência de Adaris. Quer
nossa destruição e agia diariamente para isso. — as mentiras simplesmente
rolam da boca de Garou com assustadora facilidade. — E agora… prova mais
uma vez sua traição. De seu exílio, planejou nossa queda. Fui misericordioso
quando o deixei sair com vida. Observem como sou retribuído por tentar ser
justo.
Que grande canalha. Tive que morder minha língua para não dizer nada.
— Optei pela paz e sou pago com rebeldia e traição. — Garou continua.
— Fomos abandonados. Largados as traças com a promessa de que alguém
seria deixado responsável pelos eixos mágicos e proteção de nosso mundo.
Mas Guendri se foi sem deixar nada, nem ninguém. — Garou dá uma volta
completa ao nosso redor, se encontrando a minha frente novamente. —
Encontrou o que procura, Caliandrei? Encontrou Guendri e as mentirosas
lendas que nos alimentara antes de partir? — murmurou a minha face. —
Como é lutar por um deus ausente? Diga-me Caliandrei, estou curioso. Como

328
ZERO ABSOLUTO

é se sacrificar por alguém que não dá a mínima a seu sacrifício? — toca meu
rosto. — Olhe para você… seu rosto. Suas mãos. Eu proibi coisas externas
em nosso mundo por um motivo.
— Meus erros ou acertos são minhas decisões e não suas. Eu não pertenço
a você nem lhe outorguei o poder de tomar decisões por mim. — desvio
de seu toque que irrita minha pele. Tudo o que eu quero é liberdade. Algo
que sempre foi meu mas que me foi roubado por Garou. Liberdade minha
e dos seres de Adaris. Todos nascemos livres. É nosso direito e estado
natural. Até um maldito qualquer achar que não e tentar mudar isso. — Eu
faria tudo de novo, e de novo, e QUANTAS VEZES PRECISAR! — grito em
sua face. — Você pode me matar mas a ideia continuará. Outra como eu
vai se erguer. Não há nada que você possa fazer, Garou. Suas regalias, suas
festinhas, sua corrupção chegarão ao fim. As Filhas de Guendri existem e eu
mal posso esperar para ver o que elas farão de você.
Vi as íris de seus olhos expandirem. Foi rápido, numa fração de segundo
mas vi.
Ele sentiu minhas palavras por sob sua pele.
Garou tenta se conter. Como eu não digo mais nada, ele anda até
Igor novamente. Minhas palmas formigam com o prospecto do que pode
acontecer. Mas não respondo.
— Estava tão falante, por que se cala agora? Você encontrou sua “Regente”?
Estamos curiosos, Caliandrei. — sua voz estremece dentro de mim, posso
sentir o pequeno terremoto sob meus pés. — Aonde está Guendri e suas
filhas?
— Se eles não existem querido Regente, por quê me pune por tentar encontrá-
los? — rosno por entre os dentes.
É difícil ler Garou, seu exterior calculista se mantêm calmo em um perigoso
e constante garbo. Mas minha pergunta acende uma pequena ira por trás de
seus olhos.
E eu vejo as chamas.
Se não acendessem, ele não pegaria Igor pelo pescoço num ligeiro ato que
meus olhos mal podem acompanhar.
— Tudo o que fiz e que sacrifiquei. — Garou arrasta Igor até minha frente.

329
AS FILHAS DE GUENDRI

O pânico já começa a me devorar pedaço por pedaço. — Foi para o bem


de nosso mundo, de nosso povo. O seu bem. A desordem e o caos após
o abandono e o descaso de seu deus, nos trouxe até aqui. GUENDRI É O
UNICO CULPADO. — o desprezo que sente por Guendri é palpável em seu
tom.
— Garou, não ouse…
— E se temos culpados, precisamos de alguém para declarar a sentença. E
toda sentença dada precisa de alguém para pagar a pena. Concorda?
— Garou… não…
— Lembre-se que sua insolência e desobediência a pôs de joelhos diante
de mim. Lembre-se que colocou todo o seu povo em perigo. JAMAIS
CALIANDREI, JAMAIS SE ESQUEÇA DISSO.
Em um rápido movimento Garou coloca Igor de joelhos, com uma mão
segura sua cabeça por seus cabelos e com a outra firma seu ombro para baixo.
O que meus olhos veem em seguida, meu cérebro não consegue registrar.
Eu não sei mas eu acho que estou gritando. Acho que chamo por seu nome,
repetidas vezes até minhas cordas vocais doerem. Uso todo o ar que tenho em
meus pulmões, posso senti-los retrair e tocarem os ossos em minhas costas,
chegando naquele limite no qual se acha que vai morrer, que nunca mais
poderá respirar de novo.
Mas eu não posso me ouvir gritando.
Não há barulho. Há frio, apenas muito frio a minha volta. Dentro de mim,
frente fria em ventania torturante. As fibras que conectam as paredes do meu
coração congelam. Tudo morre; pára no tempo. Um ar glacial cristalizado e
imutável.
Inerte.
Quando a energia cinética e térmica mutualmente se equivalem.
Zero absoluto.
Onde estagnada, eu apenas olho a cabeça de meu melhor amigo rolar até
mim.

330
50

Toda Maldita Vez

Q
uando chego no prédio de Verena, devolvo a moto com o dinheiro
e corro para seu apartamento, o qual praticamente tenho que
arrombar, já que está trancado.
Aqui dentro nervosamente espero por Dimitri, mas confesso que não dá
mais. Sei que ele virá o mais rápido possível, mas tudo dentro de mim grita
para atravessar o portal imediatamente.
E assim faço, deixando para trás um rápido bilhete avisando minha decisão
para quando Dimitri chegasse e não me visse ali.
Atravesso o portal e sinto a gelada água me envolver. Nado até a superfície
de meu lago. Está calmo. Vazio. Como o deixei.
Mas a calma não dura muito e assim que piso fora das águas, posso sentir.
Como uma pontada bem forte acompanhada de um mal-estar, semelhante ao
que senti quando Verena fora atacada por um elfo.
Tentando vencer o desconforto, corro o mais rápido que posso na mesma

331
AS FILHAS DE GUENDRI

direção que fui quando participei do Torneio das Valquírias, e vestida como
uma pude andar por Adaris. Velocidade agora minha aliada, chego na
exuberante porém decadente árvore palácio.
Me pergunto se esse castelo fora de meu pai e se nos criara aqui. O lugar
não me é familiar, e quando vejo quem está dentro dele enquanto voo próxima
a janela furta-cor, o mal-estar só piora.
Verena de joelhos, sete Valquírias ao redor do grandioso salão, Garou em
frente a um trono e de costas para minha janela, com Cali paralisada e o
encarando.
Fisicamente, Cali não parece a mesma doce e jovem fada que eu conheço.
Não… ela parece ter envelhecido como uma humana, corpo e postura
cansados e frágeis. Seu rosto tem tantas veias negras agora, bem mais que da
última vez em que a vi. Me pergunto quando é que pararão de crescer e se
espalhar. Dominariam seu corpo todo? Há como reverter?
Garou parece ter alguém de joelhos a sua frente. Cali o olha com medo e
desprezo.
Eu não posso ouvi-los, mas meu coração fica contente por um segundo
ao saber que todos ainda estão vivos. Eu olho para Cali. É difícil estudar
sua expressão com seu rosto neste estado, mas seus olhos… seus olhos não
mudam.
Nunca mudaram.
Ela parece implorar algo para Garou. Este por sua vez, põe sua mão sobre
o ombro de quem quer que esteja de joelhos a sua frente, entre ele e Cali. E é
neste momento que os olhos de Cali fazem o outrora impossível, se tornam
negros por completo.
Quando olho o motivo pelo qual isso acontece, diferente dela que paralisada
apenas olha, eu reajo.
Meu coração se parte ao meio, posso senti-lo quebrando em meu peito.
Uma dor inconfundível, inconsolável.
Não há esperanças.
Perdemos.
Minha boca se abre sem eu querer. Meu grito é tão forte, tão intenso, que
é como se saísse não só do trabalho em conjunto de minhas cordas vocais e

332
TODA MALDITA VEZ

pulmões, mas sim de meu corpo inteiro, espasmos e choques se intercalando


por todas as fibras do meu ser. Tudo em mim é sonoro desespero.
Igor.
A cabeça que vejo rolar é de Igor.
Garou o matou.
E antes que eu possa digerir o que acontece, meu grito consome tudo o
que vê, supersonicamente quebra as vidraças mandando seus estilhaços para
dezenas de direções diferentes.
O prédio árvore em si chacoalha ao som do meu luto.
Nem sei como fiz isso.
Todos dentro do salão se abaixam, colocando suas mãos em seus ouvidos,
tentando se proteger de minha fúria vocal. Uma valquíria é diretamente
atingida por estilhaços e cai.
Quando minha voz pára de ecoar, Garou vira para a janela. Eu não espero
por nada, minha primeira reação é voar diretamente em seu pescoço. De
novo.
Bato minhas asas em sua direção, adentro o castelo e o derrubo numa
velocidade impressionante, da qual nem ele esperava.
Eu não quero falar nada, expressar emoções, palavras. Não quero chorar.
Eu quero lutar, meu sangue borbulha dentro de minhas veias, aumentando o
volume do único chamado que eu tenho na vida.
O de lutar.
O de vencer.
Não há um par de olhos em nenhum universo como os de Garou, pois
mesmo lhe desferindo letais golpes enquanto estou em cima dele, aqueles
malditos olhos não desviam dos meus.
Ele me esperava aqui, posso sentir isso. Ele esperou por esse momento
assim como eu, o momento no qual eu acordaria de minha hipnose, no qual
eu o confrontaria, tomaria o que é meu.
E quando o momento chega eu o ergo e o arremesso alguns metros de
distância no qual ele acerta a parede e a ultrapassa, deixando um grande
buraco no lugar.
Respiro vigorosamente. Não olho ao meu lado, mesmo quando Verena

333
AS FILHAS DE GUENDRI

me chama. Mesmo com o corpo de Igor caído próximo a mim nada mais
interessa, não há dor, nem sentimentos, eu tenho um foco e eu o espero voltar
para continuar nossa batalha.
— Impressionante. — ele comenta após se levantar, voltando pelo buraco na
parede. Sem tirar meus olhos dele, posso ouvir as valquírias se posicionarem
ao meu redor. Ele se aproxima, tirando seu manto preto e dourado, deixando
seu enorme peitoral que cintila em fogo á mostra. Eu mal reconheço seu
corpo. — Sabia que apareceria, minha bela. — comprime um sorriso. —
Venha até mim; venha buscar o que tanto almeja.
O debique em sua voz é palpável. Eu nunca odiei alguém em minha
existência e mesmo sem lembrar de boa parte dela, tenho certeza que nunca
tive tal sentimento pesado e intenso dentro de mim antes.
Pois tal sentimento te molda como fogo em ferro.
É único e absolutamente poderoso.
Quando a primeira valquíria me ataca do nada, não me surpreendo com a
falta de habilidade em me enfrentar. Me aproveito de seus erros e a derrubo
com facilidade.
— Deve ter aprendido bastante no Torneio não é mesmo, Alexandrai? — ele
anda lentamente ao derredor do círculo de valquírias que se forma a minha
volta. — Adoraria ver uma segunda apresentação. Sabe como ninguém o
quanto aprecio quando você se apresenta para mim. — me provoca.
Olho ao meu redor e vejo que Verena abraça Cali que ainda está catatônica.
Verena tenta movê-la para longe, se aproveitando desse momento para
protegê-la. Esperta. Elas se escondem atrás do trono e eu completo um
giro, me certificando de cada uma das seis valquírias que me circulam, rostos
ferozes e olhos sedentos.
Instinto.
É uma coisa interessante. Grande parte do que somos está prescrito em
nosso ser, receita engrenada em nossa essência por nossos criadores.
Meu primeiro instinto ao ser cercada por valquírias foi provocá-las ainda
mais. Subitamente me abaixo até a amazona caída, vítima dos estilhaços de
janelas, enfio minha mão em seu peitoral com força, lhe arranco o coração
numa pegada só.

334
TODA MALDITA VEZ

Seis pares de olhos se enchem de ódio ao assistir isso e eu posso senti-los


sobre mim.
Especialmente quando pego o sangue do ainda pulsante coração em minha
mão. Virando em um lento círculo, me certifico de que cada valquíria assista
o que eu faço.
Marco meu rosto com o sangue desta.
Elas me conhecem e reconhecem. Sabem que no fim serão apenas uma marca
em meu rosto, exposição do fatal erro que cometeram quando resolveram
trair nosso mundo e se opor a mim.

Eu acho que não me surpreendo com mais nada.


Escondida com Cali atrás do trono, tento bisbilhotar um pouco o que está
acontecendo e o que vejo me dá um certo asco.
Alexis arranca o coração da valquíria que ela derrubou na base do grito. E
o mais estranho é que ela parece gostar e todo mundo a seu redor apenas a
assiste pintar um traço em seu rosto com o sangue roxo retirado do órgão.
Tento olhar para Garou o mais rápido possível para não me hipnotizar de
novo. Ele também está levemente hipnotizado com a cena.
Quando uma das valquírias grita em resposta ao ato todas as outras parecem
acordar de seus transes também, finalmente respondendo ao ver o coração
de uma delas ser usado como maquiagem por Alexis.
— Vejam só vocês. — Garou toma a palavra novamente, tentando agir como
se nada tivesse acontecido, retomando seu lento andar ao derredor do círculo
de valquírias. Só de olhar para ele agora já começo a sentir tudo aquilo de
novo. — Esta á sua frente diz ser uma Filha de Guendri. E como podem ver, se
for mesmo, não passa de um grande perigo para todos nós. Como eu sempre

335
AS FILHAS DE GUENDRI

avisei.
Ele sorri para a Alexis, que tem seu olhar vidrado no dele. Dá para sentir a
tensão entre os dois. Me dá até um arrepio.
— Está com medo de mim, Garou? É por isso que me aprisionou por tanto
tempo? — Alexis afirma de dentro do círculo. — E você está correto. Sou
mesmo um perigo a todos vocês que traíram meu pai e nosso mundo.
— O que esperam para atacá-la? — Garou pergunta num tom sardônico,
no que resulta em seis amazonas atacando Alexis ao mesmo tempo.
E por mais que Alexis saiba se defender, de onde eu venho, seis contra um
é covardia. Por algum motivo sinto a necessidade de protegê-la, não posso
deixar que a machuquem. Preciso me mover.
Preciso de coragem.
Eu não tenho nenhuma,vou mentir para quê? Sou um inconstante estado
de espíritos desde que me arrastaram até aqui. Horror, asco, pânico, tristeza,
confusão, clareza. Uma perecível humana perante aparentemente quase
indestrutíveis semideuses.
Sou uma pequena chama de glória fadada a se apagar num vento. E também,
graças a Deus, sou dona de muitas decisões imbecis e precipitadas. Estou me
coçando para tomar mais uma delas. E se for para a chama apagar, que esse
pequeno fogo se apague não pela minha covardia, mas pela minha coragem
de lutar pelo que é certo.
Minhas pernas são mais rápidas que minha mente, que sanamente grita
para eu ficar na minha para meu próprio bem. Meus pés fingem não ouvirem
o comando de meu cérebro e eu avanço em direção a rodinha de porrada. Com
minhas fracas mãos distribuo socos e tapas no que pegar primeiro, numa pífia
tentativa de ao menos distrair uma ou outra de Alexis e lhe dar mais espaço
para se defender. Sei que posso morrer por fazer isso, e ainda assim não paro.
Aliás apanho, mas não por que elas revidam. Na verdade me ignoram, apenas
me acertam por engano.
Entre palavrões e raiva, vou pegando o que encontro de decoração estranha
e tacando nelas. Quebro um vaso de planta carnívora que tenta me morder
na cabeça de outra valquíria. No revide, quando uma decide me acertar de
verdade, saio voando e bato contra a parede atrás do trono de Garou.

336
TODA MALDITA VEZ

Acho que quebro uma costela. Talvez três. Rolando no chão por causa da
dor, ouço a voz de Alexis.
— Verena! A Cali! — ela grita e eu olho na direção de onde deixei a
loirinha. Meu coração entristece só de olhar para ela e lembrar do que teve
que presenciar, ver seu melhor amigo naquele estado.
Garou também olha para Cali. Então mesmo com dor corro até ela, tento
erguê-la para que possamos sair daqui antes que mais cabeças rolem.
Olho para Alexis de novo e ela parece dar conta do recado por enquanto,
então agarro um pedaço de metal que encontro perto de nós e o uso para nossa
defesa. Olhando rápido encontro o mesmo corredor pelo qual trouxeram
Cali.
Dou graças a Deus por ela ser pequena e a arrasto comigo até lá. Não vou
muito longe, apenas aonde posso escondê-la por um momento.
— Cali… — sento-a no chão contra a parede e tento falar com ela. Espero
resposta, mas não ouço nenhuma. — Eu… eu sinto muito, Cali. — pauso por
um momento, tentando respirar e não chorar pela dor dela. — Nós vamos
sair dessa, okay? Não vamos deixar a morte de Igor ser em vão. — engulo
em seco. Tenho tanta adrenalina em mim, não consigo falar num tom calmo
nem sentir mais a dor das minhas costelas.
E Cali nem me olha, parece perdida dentro de si.
Sem pensar duas vezes e entendendo seu estado mental e emocional, lhe
dou um beijo na testa e um abraço forte, semelhante ao que eu queria ter
levado quando minha avó morreu.
Mesmo não sendo a melhor decisão a tomar, me afasto um pouco de Cali
e fico entre o salão e a entrada de onde a escondo, e assisto Alexis quase
incapacitada de mover, cada valquíria segurando uma parte do corpo dela.
Até suas belas asas estão presas.
Não sei o que fazer. Apenas assisto confusa, limitada. Olho para meu lado,
pensando em como ajudar, procurando algo para pegar e tacar em algumas
delas novamente, só que não encontro nada.
Enquanto procuro o que fazer, Alexis me surpreende mais uma vez.
E a surpresa faz com que eu feche meus olhos para protegê-los de uma das
mais belíssimas explosões que já vi em minha vida.

337
51

Quem é Você?

M
aravilhada, assisto um cristalino círculo formar-se ao redor de
Alexis, ganhando mais e mais força e tamanho. Sua velocidade
também aumenta, girando com mais intensidade e precisão, um
tornado incrivelmente brilhante que começa a tocar o chão e se expandir até
o teto.
Mexe com todo o ar a nossa volta, o tornando bruto e perigoso, forte o
suficiente para mover e cortar muito do que aqui se encontra.
Alexis não pode se mover, está fisicamente incapacitada pelas valquírias.
Mas por causa do tornado furta-cor que ela cria em volta de si, essas também
já sentem dificuldades em manter-se na posição em que estão.
Seria esse um dos poderes de Alexis como fada? Pensando bem, nunca a
vi usando seus poderes (fora a força) em nenhum momento. De qualquer
forma, aprender que Alexis pode iniciar um furacão por vontade própria, além
de surpreendente, é algo que eu posso contar em nosso favor, aumentando
minhas chances de sair daqui.

338
QUEM É VOCÊ?

Volto para onde Cali está no breu do corredor, me escondendo nele para
não sair voando também. Percebo daqui que a poeira cristalina que se levanta
é na verdade estilhaçante e cria mini cortes em tudo o que encosta.
Pela distância minha pele não sofre tanto, mas imagino que a das valquírias
não tem tanta sorte. Em pouco tempo, uma por uma acabam soltando Alexis.
Duas voam longe junto com os outros objetos. Algumas espadas também
voam para longe de suas donas, deixando ainda mais perigoso ficar de pé no
salão.
O furacão tem no centro de seu olho Alexis, que apenas o controla com
calma e concentração, enquanto o resto do salão tenta se manter intacto
em vão. Coisas batem nas paredes e quebram. Manter meus olhos abertos
também já está ficando difícil. Ainda escondida, a curiosidade toma conta de
mim e acabo roubando um breve vislumbre de Garou, mesmo sabendo o que
olhar para ele pode fazer comigo.
Tenho medo do que ele possa fazer contra Alexis. Ou Cali. Preciso saber
aonde ele está.
Mas ele apenas se mantém parado. Suas vestes e seus cabelos longos se
movem com a mesma intensidade do resto da sala. Ainda sem muita emoção,
assiste suas guerreiras incapazes de controlar a Filha de Guendri.
Quando Alexis finalmente se mexe, volto meu olhar para ela. O furacão
cristalino finalmente baixa, e algo em Alexis muda. Seus olhos agora são
completamente brancos, eu já não vejo mais sua íris. Suas asas também
parecem maiores e com cores mais vivas que outrora.
Como uma máquina ela começa a lutar novamente. Acerta uma amazona
no rosto a sua esquerda, quase descolando a cabeça dela do resto do corpo.
Com um chute certeiro em seguida, acerta a que esta no exato lado oposto.
Apesar de ser atingida, essa avança novamente e Alexis pega a cabeça dela
com as duas mãos e afunda o crânio contra seu joelho, chutando o corpo
desta com chutes duplos em sequência, que a lançam para meu lado do salão.
Quando ela atinge a parede atrás de onde estou e cai no chão, seu sangue
roxo começa a escorrer até meu pé quando olho seu rosto todo ferrado no
qual agora posso ver de perto e em vivos detalhes o estrago que minha amiga
fada fez nele.

339
AS FILHAS DE GUENDRI

Duas circulam Alexis com certo medo. Garou comanda para que a ataquem
de uma vez e elas o fazem ao mesmo tempo; Alexis desvia, segurando a lança
de uma com a mão direita imobilizando-a, forçando que a outra enfie sua
própria lança acidentalmente nesta que está paralisada por Alexis. A fincada
inicial certamente era para Alexis mas acabou penetrando e atravessando o
pescoço de sua própria companheira de guarda.
A violência apresentada é brutal e nauseante. É oficial, estou revendo todo o
meu conceito de fadas. Jamais pensei que elas fossem fãs de arrancar corações
ou partir crânios.
Alexis toma para si a lança espada da valquíria que agora tem a lâmina de sua
colega atravessada em sua goela. Com um astuto puxão em um movimento
curto e rápido, a fada negra gira o metal e o enterra no meio da testa da outra.
O grito ecoa pelo salão e me dá um frio na espinha.
Alexis lentamente se afasta das duas que como estátuas ficam lá, em pé,
trocando mortos olhares, assassinadas uma com a arma da outra e eu me
pergunto por que elas não explodem ao morrer como a que eu ataquei no
mausóleu.
Uma das duas valquírias que saíram voando anteriormente aparece do
nada, correndo em direção a Alexis, ira audível entre seus dentes cerrados. A
fada simplesmente espera ela chegar perto o suficiente para agarrar-lhe pelo
pescoço dando-lhe as costas ao mesmo tempo, derrubando a amazona por
sobre seu ombro, fortemente metendo-a no chão do outro lado e abrindo
uma pequena cratera ao fazê-lo. E como se não bastasse, Alexis enfia o pé no
peitoral da valquíria caída, e mesmo sem poder vê-la dentro da cratera posso
ouvir seus ossos quebrando.
Uau.
É isso. Alexis derrubou todas. Sala vazia. Silêncio pesado com o cheiro de
sangue.
Mas antes que eu possa celebrar, antes que Alexis possa sair do pequeno
buraco que fez, uma lança vem voando e lhe atravessa a barriga. Foi tão
rápido e tão forte que a mesma também só percebeu quando a arma voadora
a carrega consigo até a parede mais próxima, prendendo Alexis contra ela á
um metro do chão.

340
QUEM É VOCÊ?

Alexandrai urra de dor tentando se livrar do objeto pontudo e longo que a


prega na parede.
Sobressalto, paralisada, incapaz de emitir um só piu. Depois de ouvir
algumas palmas ecoarem ao léu, assisto de soslaio Garou se aproximar de
Alexis, solenemente com o andar pesado, mãos em suas costas.
— Desde a primeira vez que te vi…. — o ouço dizer, enquanto ela se debate
contra parede. — Eu te quis para mim. — a voz de Garou é pesarosa. — Eu
a vi por acidente. Seu pai… seu maldito pai nunca deixaria alguém como eu
sequer pôr os olhos em você.
— Porque será? — mesmo sangrando através da ferida aberta em volta da
lança que a atravessa, Alexis ainda consegue ser debochada.
Garou apenas sorri fracamente.
— Ainda me vê como um inimigo? Depois de tudo o que vivemos juntos,
minha bela?
— Muito amigável me atravessar com essa lança. — retruca entre espasmos
de dor. — Ou ordenar que sua guarda real me ataque. Ou tentar matar minha
irmã e tomar Adaris para si.
Ele dá dois passos para frente e de repente está cara a cara com Alexis.
Droga, não posso olhar para ele por muito tempo, senão entro naquele
estado hipnótico de novo.
— NÃO TENTEI MATAR SUA IRMÃ! — Garou diz por entre dentes,
segurando o rosto de Alexis. — Eu nunca a vi. Seu maldito pai as manteve
como um segredo de todos nós. Fora traído anteriormente e não queria… não
importa! Era um velho paranoico com ideias falhas e antiquadas. Adaris foi
abandonada por ele e EU A SALVEI! EU A RECONSTRUO PARA NÓS
DOIS! TE QUERO COMO MINHA RAINHA, NÃO VÊ ISSO?
— A única coisa que vejo… — Alexis rosna. — É um mentiroso. Alguém que
traiu minha família e meu povo. Alguém que me prendeu e me manipulou.
— Eu te protegi. Eu te mantive segura dos inimigos de nosso mundo. Você
ainda está viva POR MINHA CAUSA!
— VOCÊ ME ENGANOU E ME USOU! E Igor…
— Eu não sabia que se importava com ele. — pausa. — Consideraria perdoá-
lo se você intercedesse por ele. Sim, Alexandrai, por você eu faria isso. Mas

341
AS FILHAS DE GUENDRI

ele foi um grande dissidente subversivo e fiz o que julguei melhor para nós,
para Adaris.
— Não é sua incumbência tomar essas decisões sobre a vida de ninguém
aqui. E pare de tentar me convencer. Não sou sua e nunca mais vou acreditar
numa única palavra que disser. Eu não descansarei até servir a sua cabeça
numa bandeja para meu pai.
Ouço Garou rosnar.
— Você me pertence, Alexandrai. Por mais que pense que não, saiba que
nossa união jamais será desfeita. A farei entender isso de uma vez por todas.
— Garou remove a lança que prende Alexis e a enfia novamente mas agora
no centro de seu abdômen.
Alexis não emite nenhum som, quem grita sou eu assim que vejo sua cabeça
cair pesada para um lado de seu ombro. Ela parece dormir, serena. Não se
move mais, nem se debate. Ele beija sua testa e múrmura coisas com bizarro
carinho contra seu rosto.
Sem saber se ela está morta ou viva, estou de pé atrás do trono fincando
minhas unhas nele, sentindo um choque eletrizante percorrer todo meu corpo.
Um pavor imenso toma conta de mim e já não posso sentir ou ouvir mais
nada.
Devastada, me sinto sozinha. Aliás, o sentimento nunca me foi tão
violentamente óbvio e claro. A solidão me enforca com ambas as mãos,
me rouba todo o ar e esperança de sair daqui viva.
Mas eu não estou sozinha.
Garou me ouviu e vira sua cabeça em minha direção com um maligno olhar
acusatório, como se eu interrompe-se um momento privado e vital que tinha
com alguém que obviamente é o mundo para ele.
Eu tremo sob seu olhar glacial. Lábios, pernas, mãos. Minha pele formiga
e o formigamento passeia de cima a baixo, contorcendo meu estômago e
alterando meus sentidos, o hipnótico sentimento de olhá-lo tentando me
dominar.
Quando ele começa a andar em minha direção me abaixo novamente,
num instinto súbito que agradeço por ser automático, já que eu mesma no
momento não tenho a capacidade de fazer mais nada além de tremer.

342
QUEM É VOCÊ?

Ouço seus passos.


Um por um.
Assustadoramente lentos.
— Humana… — múrmura Garou. — Tão insignificante, até esqueci que
ainda estava presente.
Respiração fora de controle, coração batendo tão forte que eu posso senti-
lo contra meu peito. Procuro por algo a minha volta inutilmente, pois
só na minha cabeça eu teria alguma chance contra esse ser bizarramente
forte e gigante que acabara de sacrificar sem dó nem piedade alguém que
aparentemente mais amava em sua vida.
Eu não quero nem imaginar o que ele fará então com algo que considera
“insignificante” como eu.
Sadisticamente, Garou anda devagar, cada passo mandando um recado aos
meus cinco sentidos de que minha última hora está chegando. Um milhão de
preces cirandam minha mente, pedindo para Deus que não me deixe conhecer
meu fim nas mãos de Garou. Abraço minhas pernas mesmo com minhas
mãos tremendo tanto que mal consigo firmá-las a minha volta.
Só de pensar que a qualquer segundo ele vai aparecer em um dos dois lados
do trono, já me faz sentir morta por dentro.
— Tentou tirar Alexandrai de mim. — me acusa. Eu quero responder, mas
não tenho a coragem de Cali para gritar verdades a esse tirano desgraçado. —
E esse pecado será pago com sua própria vida. — Garou me sentencia, voz
cada vez mais próxima. — Espero que tenha dado adeus ao seu mun…

Silêncio.

Garou não termina a frase.


Na verdade, posso jurar que algo o fez parar de falar através da inflexão de
dor em sua voz.
Por mais que todos os meus instintos gritem sobrevivência, a curiosidade
sempre vai dar um jeitinho de ser ouvida em nós humanos.

343
AS FILHAS DE GUENDRI

Abro os olhos. Respiro fundo e ainda trêmula e suando, olho para os lados.
Nada. Sem barulhos de passos ou voz de Garou, me ergo aos poucos tentando
ver o que passa, ainda me escondendo por trás do trono.
Completamente de pé, assisto Garou paralisado. Alguns espasmos são
visíveis em sua face, seus olhos perdendo aquele brilho e força que exercem
sobre mim. Percebo que já posso olhar para ele sem aqueles sentimentos me
tomarem de prontidão.
Ele parece engasgar com algo. Quando olho para o lugar onde seu peitoral
deveria estar, só vejo um grande buraco.
Vazio e aberto.
A lava laranja agora escorre por seu abdômen, densa e lenta. O espaço que
até então continha seu coração, agora é apenas uma visível lacuna de bordas
irregulares, envoltos por sua carne e sangue.
Garou desaba como estátua e agora posso ver o que está atrás dele.
E o que eu vejo faz meu universo inteiro virar de cabeça par baixo.
Ou melhor… quem eu vejo.

344
52

Você é Meu… Fim

E
u vi Igor morrer e sua cabeça rolar.
Grande parte de mim morreu ali mesmo.
Verena veio até mim e me moveu, me escondendo junto a ela. Acho
que Alexis está aqui. Não sei mesmo se ouvi a voz dela ou só alucinei. Depois
de alguns momentos, Verena me arrasta para o mesmo corredor pelo qual as
valquírias me trouxeram.
Ela fala comigo, mas eu não a ouço.
Em minha cabeça, apenas a cena de Garou arrancando a cabeça de Igor
se repete num loop maldito que me cega para tudo mais que acontece e me
paralisa.
Verena beija minha testa e me abraça, me deixando ali para minha “proteção”.
Eu queria responder, dizer a ela que não há proteção alguma, que nada do
que fizermos vai adiantar. Que nada mais importa. Que Adaris não sera salva,
e tudo o que fizemos fora em vão.

345
AS FILHAS DE GUENDRI

Mas ela se vai e eu ainda não consigo me mover, não consigo sentir meu
corpo. Ou não quero sentir meu corpo, não sei dizer ao certo. Só quero uma
coisa: sumir daqui.
Desaparecer.
— Caliandrei…
Ouço a voz estranhamente materna e já sei quem é, mas também não
respondo. Deve ter sentido meu desejo de sumir, visto isso como uma
invocação. Não a chamei e não me importo nem um pouco que esteja aqui ou
com o que quer de mim. Vai me fazer perguntas, vai tentar me dar respostas.
Tentar me convencer a continuar. Ou me negar ajuda, já que sua magia está
acabando comigo, me dominando pois eu não soube dominá-la.
Mas não, ela não faz nenhuma das coisas que imaginei que faria. Apenas
me envolve em seu vapor negro e quente, e quando dou por mim, não estou
mais em Adaris.

Abro os olhos fracamente. Estou deitada ao lado de meu lago, roupa humana
encharcada com meu sangue e sangue das valquírias que derrotei.
Não estou mais empalada na parede do salão do castelo onde Garou me
apunhalou novamente para me apagar por um momento e possivelmente me
recapturar, mas ainda posso sentir o buraco em minha barriga.
— Não temos tempo. — Dimitri diz assim que me vê acordar. — Garou
está com Verena e você precisa se esconder até se recuperar completamente.
Vá para o apartamento dela e quebre o espelho para que ninguém te siga. E
fique lá até eu entrar em contato com você.
Pensando rápido em como retornarão se eu quebrar o espelho, apenas

346
VOCÊ É MEU… FIM

indico a Dimitri onde Cali está escondida para que os três possam fugir de lá
usando os poderes dela.
Ele assente e sem pensar duas vezes, mergulho em meu lago.
Estou terrivelmente fraca. Quando atravesso o portal, sangro mais ainda.
Mesmo assim, pisar no mundo humano me faz sentir estranhamente mais
segura que em qualquer outro lugar.
Com um soco despedaço o grande e belo espelho, e o observo estilhaçar-se
á meus pés. Olho para a janela de Verena. O sol ilumina fracamente indicando
que a manhã começa no mundo humano.
Sento em sua cama, reparando que eu não paro de sangrar. Em minha
mente, turvas memórias de tudo que aconteceu se fundem, desde quando vi
Igor até o último momento em que Garou me encheu de mais mentiras antes
de virar meu pescoço.
Eu penso em Igor. Em Cali. Espero em meu coração que abra um portal
com sua magia em algum lugar de Adaris e fuja de lá. Que Dimitri traga
Verena a salvo. Que minha irmã acorde e retorne a seu posto de Regente o
mais rápido possível.
Que nada disso tenha sido em vão.
— Verena? — alguém bate na porta do apartamento de Verena algumas
vezes e quebra minha linha de pensamento. — Vê, a gente precisa conversar!
Se não me engano a voz é do vizinho dela, o dono da festa na qual a conheci,
Lucas.
Fico imóvel e em silêncio na esperança de que ele desista de conversar com
a Verena e vá embora.
— Vamos Verena, conversa comigo! Eu não devia ter te dito o que disse por
mensagem. — ele fala contra a porta. — Por favor, Vê! Eu tava indo trabalhar
e te ouvi aí dentro, sei que você tá chateada mas abre a porta, vai!
Droga, ele deve ter ouvido o espelho quebrando. Por Guendri, não tinha uma
hora mais inoportuna para ele resolver conversar com a Verena?
Ele não desiste, ainda bate a porta. Deve ser muito importante essa conversa
para ser urgente assim. Me levanto, levemente tonta e gemendo entre os
dentes a dor da ferida ainda aberta que me atravessa o corpo da barriga até as
costas, da qual eu preciso de algumas horas para me recuperar por completo.

347
AS FILHAS DE GUENDRI

Resolvo atender e dispensá-lo com uma desculpa qualquer.


Com muita dificuldade, vou até a porta me segurando nas paredes e por
fim, na maçaneta. Abro uma pequena fresta da qual só se pode ver parte do
meu rosto.
— A Verena saiu. Foi trabalhar. — imagino que esse é o horário humano
no qual ela faz isso, apesar de ela e do chefe dela estarem agora em outra
dimensão.
— Ah… me desculpa, eu achei que ela estivesse em casa. Eu não sabia que
você ainda estava na cidade. — o loiro diz sem graça e me olha. Quando vejo
uma expressão estranha em seu rosto, tento fechar mais a porta. — Ei, espera,
você… está bem?
— Estou ótima. — respondo antes de começar a tossir e acabar cuspindo
sangue. Droga.
— Meu Deus! Você não precisa de um médico? — pergunta assustado
enquanto minha tosse piora.
Não vou morrer disso, mas preciso de tempo para que meu corpo se refaça.
E preciso mais do que nunca que ele me deixe sozinha.
O vizinho de Verena pega seu celular e começa a fazer uma ligação. Eu pego
o aparelho de sua mão e o quebro no meio. Ele apenas me olha embasbacado
tentando decifrar de onde tirei a força para fazer aquilo.
— Vai embora. — digo com dificuldade.
— Mas… como fez isso? Verena sabe que você está aqui e assim? — seus
olhos arregalam mais ainda. — O que é isso nas suas costas?
— Vai EMBORA! — grito. Ou tento gritar, pois acabo tossindo mais ainda.
Agora um monte de sangue sai pela minha boca e eu me afasto da porta,
regurgitando o líquido no chão da sala de Verena.
Lucas me segura assustado. Para minha inconveniência, realmente quer
ajudar.
Eu caio no chão, mas antes de apagar por completo, digo o mais claramente
que consigo:
— Você não vai entender o por quê mas acredite: eu vou ficar bem. Eu vou
apagar agora, mas em algumas horas vou acordar de novo, completamente
recuperada. — olho no olho, pois preciso fazê-lo entender. — Isso nas

348
VOCÊ É MEU… FIM

minhas costas são as minhas asas. Não chame ninguém para me ajudar. Se
você chamar, tenha certeza de que quando acordar vou te fazer pagar caro
por isso.

Eu quis brigar com ele.


Eu quis agradecê-lo.
Quis perguntar o que ele faz ali, com o coração de Garou em sua mão.
Quis interrogá-lo, saber se tudo o que sei dele é verdade.
E se não é, eu queria saber por quê mentiu.
Mas Dimitri Bauer me disse que precisávamos sair dali antes que Garou
crescesse outro coração e acordasse novamente. Por que sim, a magia que o
ajudava no momento e o fazia extra forte faria isso. A ideia em si é apavorante
e depois de tudo o que passei, convincente. Daí, disse que conversaríamos
sobre tudo isso em breve.
Em breve.
Ele procura por Cali e não a encontra. Imagina que ela tenha fugido com
seu próprio poder e isso me acalma, pelo menos um pouco.
Vendo minha hesitação em acompanhá-lo, disse que se eu quisesse escapar
de Adaris, eu deveria ouvi-lo e segui-lo. Obedecer quando pediu para que
eu lhe desse minha mão. O fiz. Coloquei-a sobre a dele pois não quero estar
aqui quando Garou acordar. Ele a segurou e com umas das espadas lança que
caíram, Bauer reabre o corte em minha palma que ganhei ao tentar destrancar
o mausóleu no cemitério de Paranapiacaba. Eu não digo a ele o que aconteceu.
Doeu e muito de novo, mas eu não falei nada, nenhuma palavra.
Eu não conseguia nem formular uma frase inteira para tentar dizer, apesar
de meu coração estar estranhamente terno, confiante, agindo por si só. Ao
contrário de minha mente e meus instintos. A lógica indica que eu deveria ter

349
AS FILHAS DE GUENDRI

me afastado dele quando o vi ali, em Adaris, de pé após derrubar a criatura


mais assustadora que já vi em toda minha vida.
Deveria ter corrido quando ele me chamou pelo sobrenome da mesma
forma que sempre faz. “Você está bem, Morales?”. Deveria ter negado dar-lhe
minha mão, especialmente quando meu sangue começou a pingar no chão em
gotas grossas formando pequenas poças, e ele murmurou algumas palavras
estranhas sobre elas fazendo o sangue se mover, se unir e começar a abrir um
círculo preto.
Me colocando junto a seu corpo, ele nos aloca sobre o círculo que vai
aumentando de tamanho. A escuridão sobe num redemoinho de vapor que
nos engole por inteiro, e em segundos estamos em uma nova localidade.
E agora, aqui estou.
Atônita, apenas olho a minha volta em silêncio. Não reconheço o local, mas
parece com o mundo humano.
Por favor, meu Deus, sem mais surpresas ou mundos diferentes por hoje.
— Morales…
Viro meu rosto para ele subitamente. Apesar de estar em terras conhecidas,
tudo o que vi e que passei nas últimas horas não se cansam de me desmontar,
desarmar tudo o que sei e conheço por verdade absoluta.
Mas não há verdades absolutas, não é mesmo?
Há quanto tempo me enganava? Me ENGANAVAM? Ele conhecia Alexis,
Cali, e sabia de tudo. Nenhuma delas nem ele me disseram coisa alguma em
nenhum momento.
Nada faz sentido.
Absolutamente nada.
E para minha surpresa, ao invés de respondê-lo ou enchê-lo de perguntas,
sair correndo ou qualquer outra coisa, no momento eu apenas elevo minhas
mãos a minha cabeça e…. rio.
O som da minha gargalhada cresce gradualmente, ecoa pelas paredes do
bem decorado loft de Bauer. É risada cheia de tudo, menos humor. Desespero,
desapego, confusão, ironia. Me sinto traída, usada.
E com raiva. Dele. Delas.
Me pergunto como, como eu posso me sentir segura e em perigo ao mesmo

350
VOCÊ É MEU… FIM

tempo?
Sim, por que me salvaram. Por mais que tenham mentido, sempre me
mantiveram segura e viva.
Ele parece confuso por um momento com a minha gargalhada histérica.
Eu o olho. Observo sua beleza agressiva com seus traços fortes que outrora
não me eram tão atraentes mas que já faz um tempo, não saem de minha
cabeça. Seus olhos azuis, todos os detalhes daquelas íris que decorei sem
querer, assim como sua costumeira cara de quem estava para matar alguém…
Meu Deus.
Bauer matou alguém.
Na minha frente.
Alguém três vezes maior que ele.
Arrancara seu coração sem dó.
Meus lábios tremem quando a realização de que este homem não é
exatamente quem eu achei que era me atinge novamente. Me afasto dele.
Por sua vez, ele também se afasta alguns passos, escorando-se contra a ilha
no centro de sua moderna cozinha.
Sinto um calafrio e reparo no reflexo da polida geladeira de aço que estou
um caco: cabelo todo embolado, roupas sujas e rasgadas, rosto inchado,
coberta de cima a baixo de restos de valquíria, extremamente esgotada a
ponto de cair a qualquer momento.
Já ele, impecável como sempre aparece no escritório todos os dias. Aliás,
ainda veste a mesma camisa e gravata que usara quando me consolou quanto
a Lucas ontem. Nada mudara, meu coração me diz pedindo para que eu me
acalme, que eu confie como se o músculo em meu peito já conhecesse Dimitri
Bauer sem sombras de dúvidas.
Sensação bizarra de que sim, eu o conhecia.
Mas olho para ele e não sei o que vejo.
Humano? Não humano?
Ele não é mais o mesmo e ainda é ao mesmo tempo…
Minha boca começa a se mover cuidadosamente, uma sílaba de cada vez.
Forço minha voz a sair em uma simples pergunta.
— Aonde estamos? — tento uma questão inofensiva, algo que já sei a

351
AS FILHAS DE GUENDRI

resposta mas que talvez faça meus lábios pararem de tremer, me dando tempo
de pensar no que fazer.
— Meu apartamento. — a voz de Bauer é baixa, por um momento tenho a
impressão de que ele não quer me assustar.
Engulo em seco. Ele não parece ansioso em começar a conversa onde me
diz para confiar nele, onde me conta por quê ficou em silêncio por todo esse
tempo.
Escapei de Adaris com vida graças a ele, tento me lembrar disso. Bauer me
salvou da morte certeira nas mãos de Garou.
Quero agradecê-lo, mas… preciso entender.
— Como foi que você… — começo a falar mas ele vem até mim novamente,
coloca seu dedo em minha boca me calando, seu corpo junto ao meu.
— Você está em choque. Compreensível. É absolutamente inacreditável
tudo o que acontece com você, Verena. Acredite, eu sei. — Bauer constata.
Estamos tão próximos que novamente posso ver os pequenos pontinhos
pretos que dançam ao redor de sua íris.
“Inacreditável”. Certamente, é uma das palavras que pode-se usar sobre tudo
o que passou comigo nas últimas horas. Aliás, poderia usar um dicionário
inteiro, mas todas essas palavras me escapam no momento.
— Bauer… — suplico em um sussurro, reparando que não me é mais natural
dizer seu sobrenome, o jeito como sempre o chamei. Talvez por isso acabara
de me chamar de Verena. Bauer não existe. Meu Bauer não existe mais. —
Dimitri, eu preciso ent… — seu nome deixa um gosto amargo em minha boca
assim que ele me interrompe e segura meu rosto, demandando meus olhos
nos seus.
— Sabe por quanto tempo eu te procurei?
Imagino que esteja falando de ontem a noite. Se conhecia Alexis, talvez
tenha ido a pedido dela até Paranapiacaba? Ou está falando de sua busca por
mim em Adaris?
Eu ia responder com outra pergunta mas não pude. Dimitri me faz andar
para trás, me prensa contra a parede mais próxima, cobrindo minha boca
com a sua.
Se eu achei que o perigo acabara assim que escapei de Adaris, eu estou

352
VOCÊ É MEU… FIM

redondamente enganada. Meu coração ainda encontra forças para disparar


novamente. Ele me beija, docemente a princípio, arduamente em seguida.
E naquele momento, o mundo que não estava mais para acabar parece
recomeçar a se desfazer sob meus pés.
Dimitri Bauer me devora. Mal consigo me mover, ele satura e domina cada
sentido meu. E para minha surpresa, eu quero beijá-lo. Acho que sempre quis.
Sem pensar, quero atender cada vontade de sua boca.
E nós já fizemos isso antes.
Num impulso, ele desfaz nosso laço e eu perco meu equilíbrio. Minhas
pernas estão bambas e se não fosse a parede atrás de mim, não estaria de pé
agora.
— Sabe a quanto tempo quis fazer isso, Verena? Por quanto tempo desejei
te ter aqui sozinha comigo? — olho no olho, ele segura meu rosto firmemente
com uma mão. Minha respiração é ofegante e ao mesmo tempo que vou ao
céu em descobrir isso, imediatamente volto ao inferno que é não entender
nada do que está acontecendo.
Eu também o quero. O desejo ardentemente, mas infelizmente não sabia
disso antes de agora. Pior momento para descobrir, concordo. Eu nunca
imaginei que Bauer me quisesse tanto assim. E nunca imaginei que seria aqui
e agora, depois de tudo o que passei.
Depois de tudo o que ele fez.
Devo admitir que imaginação nunca foi meu forte.
Um instinto primitivo de pertencer a ele calou todo racional pensamento
inquisidor do perigo que corro sozinha com esse homem que sabia de tudo
e nunca me dissera nada. Aproveito a proximidade de nossos lábios e
estupidamente o beijo novamente. Ele sorri contra minha boca, colocando as
mãos sobre meus quadris e me erguendo contra a parede.
E mesmo inicialmente devolvendo meu beijo com igual vontade, ele pára o
que começamos ali, parecendo se forçar a não continuar. Chacoalha a cabeça
numa negativa, arfando. — Você sempre sempre consegue tirar o meu foco.—
murmura contra a maçã do meu rosto.
Franzindo meu cenho, abro a boca para perguntar o que queria dizer com
aquilo mas não são palavras que saem.

353
AS FILHAS DE GUENDRI

Um líquido espesso flui por minha garganta e pouco a pouco transborda


por meus lábios e queixo.
Confusa, elevo a mão a minha boca.
Sangue.
Meu sangue.
Olho para baixo e me pergunto como foi que não senti algo tão pontiagudo
e metálico entrar em meu peito, atingindo meu coração em cheio?
Assim como não vi absolutamente nada que acontecia a minha volta até hoje.
Que irônico.
A adaga que acidentalmente matei a valquíria no cemitério de Paranapi-
acaba, a mesma que retirei do corpo da mulher que deitava no caixão do
mausóleu, agora descansa sua lâmina bem no meio do meu peito, clamando
seu espaço entre as paredes de meu coração.
Meu sangue começa a pingar de onde ela se aloja. Vermelho, vivo, denso e
bruto, mais e mais a cada vez que a dificuldade de respirar aumenta.
Olho para ele, incrédula.
Friamente impassível, seus lábios são uma imutável linha.
Ele me fita com esse mesmo maldito e cauteloso silêncio que usa desde o
momento em que nos conhecemos na minha entrevista de emprego até este
momento no qual apenas observa meu agonizar…
… me machuca mais que a ponta da faca que finaliza minha vida.
Dimitri me segura calma e firmemente enquanto vou perdendo minhas
forças e caindo.
— Verena, Verena… e pensar que eu esperei tanto por isso. Eu achei que
aquele desgraçado teria a oportunidade antes de mim. — Dimitri me aperta
em seus braços. Não entendo tudo o que ele diz, o som de sua voz está cada
vez mais distante. Mas ele continua falando, dessa vez segura meu rosto com
as duas mãos forçando meu turvo olhar contra o dele. — Ninguém vai me
tirar o prazer de te matar, Verena. — ele diz forçando a faca ainda mais, lábios
agora contornados por algo profundo que sente por mim mas que não posso
entender o que é. — Ninguém.
Ele gosta desse momento, da tortura. Assiste minha vida evanescer de meus
olhos com apreciação de quem vê uma obra de arte, um espetáculo de cor e

354
VOCÊ É MEU… FIM

fúria do qual seus olhos não desviam.


Estas são suas últimas palavras e dançam em minha mente antes da
escuridão tomar conta da minha visão, minha respiração cessar e meu coração
dar sua última batida.
Quão poético é morrer nas mãos de quem me salvou.
Lembro-me que ele disse que conversaríamos em breve e como confiei nele
mesmo achando por um lado que não devia. Eu queria perguntá-lo como ele
sabia de Adaris, o que fazia lá, como derrotou Garou.
Eu tinha tantas perguntas a fazer.
A que eu mais queria perguntar era quem ele era.
Mas agora eu sei. De uma forma que nenhuma resposta verbal poderia
explicar.
Eu sei quem você é, Dimitri Bauer.
Você é meu fim.

Fim

355
Considerações Finais

Este é o fim do livro Adaris - Livro I - As Filhas de Guendri.

Querido leitor, MUITO OBRIGADA!


Espero sinceramente que tenha gostado da experiência com a leitura! Esse
livro significa muito para mim e poder compartilhá-lo com você é um prazer
imenso e intenso, e eu agradeço do fundo do meu coração por você ter
chegado até aqui.
Não tenho palavras para expressar quão feliz, abençoada e agradecida fico
quando recebo um review/resenha ou uma mensagem de vocês.
Suas palavras também são poderosas.
Quero agradecer a breve revisão que a Thalita Naine fez para mim, pegando
errinhos bizonhos que se esconderam de meus olhos durante esse tempo
todo escrevendo lendo e relendo esse livro.
Obrigada também pela SUA paciência com erros ortográficos e/ou de
digitação, alguns erros de continuação, etc. Eu sou autora e editora, reconheço
que algumas coisas me escaparão, mas é a vida. Tenho a intenção de continuar
com revisões mais profundas em próximas edições, nada que mudará
significantemente o que você já leu, mas pequenas coisas que certamente
melhorarão a qualidade da leitura.
Novamente, obrigada!!!
GOSTOU DO LIVRO E GOSTARIA DE INDICÁ-LO A ALGUÉM?
Agradeço.
Gostaria também de pedir a você um review honesto na Amazon ou onde
quer que tenha adquirido a cópia desse livro. Estes me ajudam a alcançar
mais leitores, e continuar com a saga.
Para finalizar, desejo á todos muita paciência, inspiração e coragem para

356
CONSIDERAÇÕES FINAIS

fazerem o que amam. Eu consegui terminar um livro (sempre sonhei, e


também sempre duvidei que conseguiria) e aqui estou, olhando para minha
obra finalizada e lágrimas de felicidade pela sensação de concretizar um
sonho.
Um grande e eterno abraço, e nos vemos em breve no LIVRO II- Sua
Coroa, Meus Espinhos.
Nina Kennett

357
EXTRAS

VERENA MORALES

358
EXTRAS

ALEXANDRAI/ALEXIS

CALIANDREI/CALI

359
AS FILHAS DE GUENDRI

ADARIS

360
EXTRAS

FLÁVIO

361
AS FILHAS DE GUENDRI

DIMITRI BAUER

362
EXTRAS

PLANTAS E MAPAS

363
AS FILHAS DE GUENDRI

364
EXTRAS

365
AS FILHAS DE GUENDRI

Paranapiacaba
Esse nome sempre foi motivo de risada pra gente quando criança
(Paranaseacaba) mas o lugar é muito legal e com vistas absurdamente lindas.
Tem esse quê de história de terror na cidade. Você visita e (apesar dar
renovações) não tem como não ter uns tremeliques lá. Talvez seja o constante
nevoeiro que cobre a cidade, talvez seja a forma como boa parte de sua
população a abandonou todos ao mesmo tempo e tudo meio que enferrujou,
Talvez seja o cemitério super gótico que já te recebe na entrada (também
usado no livro, onde a Mabel foi encontrada)… bem, seja lá o que for, me
inspirou a colocar o vilarejo na cidade. Todas essas fotos são de lá =]

366
EXTRAS

São Paulo
Eu amo São Paulo (kkkk dá pra ver minha babação de ovo no livro). Aliás,
essa cidade é o que me enche de motivação para escrever. Na colagem que
fiz, tentei colocar lugares como, a Pamplona (a travessa da paulista onde o
prédio do escritório de Bauer fica) a Rua Augusta (o mais lindo pardieiro da
cidade onde fica o Lírio e a casa de Igor), O Parque do Ibirapuera (onde a Cali
rouba suas florezinhas kkk), A Avenida Paulista (onde Verena dá seus rolês) e
a Barra Funda (melhor bairro kkkk).
Eu amo histórias que se passam no Brasil, e sempre dou preferência a ler
sobre elas. Não sei porque, acho que é aquela questão de familiaridade, temos
lugares muito legais no Brasil, e acho que poucos autores aproveitam isso

367
AS FILHAS DE GUENDRI

(graças a Deus está mudando) e ver pessoas fictícias com cultura parecida
com a sua é extremamente divertido para mim.
Sei que nosso país é vasto e bem diferente, e as vezes alguns de nós tem
vergonha do lugar onde nasceu/mora. Não tenha! Faz parte de você e
merece respeito tanto quanto qualquer outro lugar. Chega de preconceito,
independente de qual região do Brasil você é, sinta amor e espalhe o amor
desse lugar por aí!

Playlist
Aqui vou disponibilizar dez das músicas que mais ouvi durante a produção

368
EXTRAS

dessa obra. Se alguma for específica para personagem, cena ou casal, eu vou marcar
na frente. Se vocês concordam ou discordam, fiquem a vontade pra comentar.
E também fiquem a vontade para procurá-las no Youtube ou Spotify, até
mesmo para me indicar músicas, pois adoro conhecer sons novos.
Música em itálico, banda em negrito.
Danse Macabre - Scalene
Ethos - Scalene & Amén JR
Agua e Vinho - Capital Inicial (Bauer & Verena)
Eu Preciso Te tirar do Serio - Frejat (Cali & Flavio)
Não Vou Te Deixar Dormir - Ramona Rox
Apenas Mais Uma De amor - Lulu Santos (Verena & Lucas)
Tarde Livre - Selvagens a Procura da Lei
Kriptonita - Ludov
Dura Feito Aço - Luxúria (Alexis/Verena)
Pode Agradecer - Jay Vaquer (Garou & Alexis)

369

Você também pode gostar