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AS FILHAS DE GUENDRI
ADARIS LIVRO I
Copyright © 2024 by Nina Maria Kennett
This novel is entirely a work of fiction. The names, characters and incidents
portrayed in it are the work of the author’s imagination. Any resemblance to
actual persons, living or dead, events or localities is entirely coincidental.
Nina Maria Kennett asserts the moral right to be identified as the author of
this work.
First edition
ISBN: 9798326820211
E a meu filho Thomas pelos sorrisos matinais mais lindos que já vi.
Considerações Inicias
Olá!
Bem vindo(a) ao meu primeiro livro:
ADARIS
Uma obra de fantasia urbana
i
• Eu entendo que nem todo mundo que começa a leitura, a termina. De
qualquer forma, já agradeço a você por ter dado uma chance a minha
obra. Espero que as páginas te prendam a leitura num metafórico mata-
leão, e que de forma sufocante não te deixe largar o livro. E que os
personagens falem com você como falaram comigo, que plot e os arcs
sejam surpreendentes e que acima de tudo você se divirta lendo, assim
como eu me diverti escrevendo.
• Essa é uma obra de ficção e tudo nela deveria continuar assim; Por
nenhum motivo o que se passa ou é dito no livro é um direto ou indireto
endosso, ou uma lição pessoal sobre o que é certo ou errado.
ii
Conteúdo
iii
26. O Doutor
27. Psicologia Avançada
28. Seus Sinais
29. Língua No Pescoço
30. Defina “Sorte”
31. Flores
32. Contra a Parede
33. Veni, Vidi, Vici
34. Nunca Mais Eu Bebo
35. Marcas Em Sangue
36. Número Errado
37. É De Minha Natureza
38. Você Parece Com Ela
39. A (F)Utilidade da Resistência
40. Eureka!
41. Resoluções Noturnas
42. Não Há Como
43. Quando o Chão Se Abre
44. Temos Companhia
45. Ele
46. Despedace-me
47. Perdoe-me a Interrupção
48. Predador & Presa
49. Zero Absoluto
50. Toda Maldita Vez
51. Quem é Você?
52. Você é Meu… Fim
iv
1
E
stou há um tempo parada, observando minhas pífias manipulações
mágicas e seus míseros resultados.
Preciso, a pedido de meu Regente, de elixires curativos para sua
guarda real. Sou a melhor no quesito em meu mundo Adaris.
Mas sem fluída e contínua magia, não há muito que eu possa fazer. Combino
elementos escassos, mas sem seu agente coligativo, no caso a magia que todos
nós dividimos, não há muito que eu possa fazer.
O barulho parecido com um tecido se rasgando em baixo volume a meu lado
chama minha atenção. Sem tempo para entender a fonte do ruído, assusto-me
ao ver algo vaporoso e escuro surgir e crescer a minha frente.
Reflexos rápidos não são necessariamente minha maior qualidade, e numa
lenta tentativa de me afastar, acabo por cair de costas no chão.
— Caliandrei… — o vulto me chama sem boca, mas com clareza. — Não
tenha medo, fada de Adaris. Não lhe farei nenhum mal. — antes que eu possa
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AS FILHAS DE GUENDRI
dizer qualquer coisa, a feminina voz oferta. — Acredite, venho até você pois
quero o seu bem.
— M-meu bem? — sussurro, sem pensar. Curiosidade e medo dando as
mãos dentro de mim. Minha magia, mesmo fraca já coça em minhas palmas,
fingindo-se pronta para ser usada em minha defesa.
Mas eu bem sei que mesmo se eu a tentasse usar, não faria nada efetivo
contra quem quer que fosse.
— A magia que tem agora correndo em ti não me fará nada. Não é suficiente.
— a sombra invasora sabe, e sua afirmação me faz ouvir meu coração bater
mais forte em resposta. Ainda assim, não abaixo a mão. — Sua reles magia
tem raízes nesta terra, não? Olhe a sua volta. Te parece esta uma terra forte?
Mesmo sabendo que a resposta é não, olho pela abertura que uso como
entrada. Daqui de cima de meu leito-árvore, uma de muitas aqui em meu
mundo, posso claramente ver: Adaris é a mais pura decadência. Fraca,
instável, sem cor, sem vida.
Nossa magia morre e desaparece aos poucos.
Esse é meu mundo. Eu sei bem onde vivo. Mas não entendo por qual
motivo esse ser decidiu vir até mim constatar coisas que ambas sabemos e
estou um tanto estupefata para interrompê-la.
— Acreditaria se eu dissesse que nem sempre Adaris foi assim? — ela retoma
minha atenção.
— Quem é você? — apesar de meu receio, a pergunta finalmente sai.
A Sombra se aproxima, movendo-se sinuosamente. Os efeitos do pavor me
dominam mas não fujo, fico aonde estou.
— Mesmo que eu lhe responda, você não entenderia. E não posso lhe
mostrar minha face neste momento. Deve saber que minha magia, assim
como outras deste tipo são proibidas em Adaris. Não quero que Garou saiba
que estou aqui. Mas se ouvir o que tenho a dizer, prometo que me conhecerá
em breve.
Temor e interesse dançam dentro de mim. Sinto que meus dedos querem
tocar a movente Sombra a minha frente, e vejo meu braço se estender
lentamente, sem esperar minha autorização. O vapor escuro envolve minha
mão lentamente, formando círculos sobre minha pele. Um ar quente e vivo,
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SE VOCÊ NÃO VOLTAR, EU TE BUSCO
3
AS FILHAS DE GUENDRI
gerador de Adaris e todas as espécies que aqui vivem, é alguém que só ouvi
falar o nome. Infelizmente nunca o vi, apesar de ter ouvido que era costume
vê-lo apreciando o mundo que criou, confraternizando com sua criação. Mas
ele desapareceu. E até mesmo para quem o conheceu, é difícil saber quando
voltará; Para muitos que nunca o viram, é mais difícil ainda acreditar até
mesmo que existiu.
Mas não para mim.
— Como sabe, sua magia precisa passar por ele para renovação, redireção,
refortalecimento. E por isso, antes de Guendri partir, ele teceu e formou uma
de suas maiores criações para que protegessem Adaris e mantivessem seus
eixos mágicos quando partisse.
— Garou é a maior criação de Guendri? — ele é quem está nessa posição
desde quando saí de meu lírio.
— Não. A Última Ordem Regencial de Adaris é matriarcal. Guendri deixou
fadas que criou com seu próprio sangue para proteger seu reino e as chama
de Filhas. Não um elfo. E você precisa encontrá-las…
Ouvi rumores das Filhas de Guendri uma única vez em toda minha
existência. Nunca pude confirmar pois ninguém que restou em Adaris as
viram para saber se é verdade. Fadas mais fortes que a própria guarda de
Adaris composta por valquírias, criadas pelo próprio Guendri para substituí-
lo em uma possível ausência.
Mas até então nunca passaram disso: lendas.
— Garou sempre foi nosso líder, todas as valquírias o seguem e obedecem
suas ordens. Elas não fariam isso se ele não fosse o escolhido Regente.
— Engana-se. Se Garou fosse o Regente, Adaris não estaria nesta situação
precária, nem a magia tão fraca que seus habitantes mal podem sentir ou
praticá-la. — diz a Sombra.
— Nosso Regente diz que estamos assim por causa do descaso de Guendri,
que nos abandonou e não deveríamos esperar por ele, pois se foi para criar
um novo mundo e levou a magia com ele.
— Garou mente.
— E você não?
— Me arrisco e muito ao vir até você, pequena. Certamente, nunca viu algo
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SE VOCÊ NÃO VOLTAR, EU TE BUSCO
como eu. Sabe qual é a punição para intrusos, não? Ademais, não há mais
tantas fadas ou outros seres restantes para quem eu possa oferecer ajuda. Ou
mais importante, que seriam capazes de cumprir com os passos necessários
para a mudança. Mas vejo em você, Caliandrei, uma oportunidade de colocar
tudo em seu lugar. Se não acredita em mim, pode me testar.
— Como?
— Pode começar por exemplo, com o que sei sobre Garou. Sabia que ele
conhece pessoalmente uma das filhas de Guendri? Não só a conhece como a
mantém viva aqui mesmo, em Adaris.
Meu choque é audível. Isso é uma absoluta insanidade! Garou jamais faria
isso, jamais mentiria para nós.
E ainda assim…algo dentro de mim me instiga a querer saber mais.
— A-aonde?
— Você o serve na corte, não? — indaga e eu me pergunto como ela sabe
tanto sobre mim. — Elfos de Adaris tem variados níveis de poderes telepatas.
E é assim que ele a esconde de todos. Sozinha, desmemoriada e sem razão
para sua existência além de agradá-lo. É provável que ao tentar se livrar das
Filhas, Garou se apaixonou por uma, apagou sua memória e a manteve para
si.
— Então, se ele a tem aqui em Adaris como você diz, por quê os eixos
mágicos ainda estão desalinhados?
— Porquê a que ele mantém em cativeiro não foi a escolhida por Guendri
para Regenciar. Quando ele as criou, as fez diferente para que pudesse
escolher ao longo de seus treinamentos a mais capaz de coordenar a magia de
seu mundo. E mesmo ele não a escolhendo para ser Regente, ela foi treinada
para liderar a guarda regencial, possui excelentes habilidades de combate e
muita força. Para provar que digo a verdade, te direi aonde encontrá-la. Mas
com uma condição.
Uma súbita vontade de saber se essa é mesmo a verdade, me toma, não
consigo evitar.
— Qual seria a condição?
— Após encontrar essa Filha, você precisa interpelar pela outra. Seu mundo
não voltará ao normal se você não encontrá-las. E não será tarefa fácil pois
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AS FILHAS DE GUENDRI
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SE VOCÊ NÃO VOLTAR, EU TE BUSCO
Sombra.
Convencida e revigorada com a possibilidade de uma nova Adaris onde
todos possam viver livres em sua magia, ao me reencontrar com a Sombra,
concordo em fazer o necessário para recuperar a verdadeira Regente.
Ela repete que a Regente está no mundo humano. Eu sei que existem outros
mundos, mas nunca estive em nenhum deles.
— Não tenha medo, pequena. — move-se com vigor, sua fumaça formando
runas e círculos diferentes com a empolgação da minha aceitação. — Os
humanos são seres peculiares, mas amigáveis em sua maioria. Há também
outros seres de Adaris vivendo normalmente lá após terem fugido antes do
fechar completo de suas portas e portais. — a Sombra tenta me encorajar com
a possibilidade de encontrar mais conterrâneos lá fora. Admito, ela consegue.
— Se não fosse capaz de fazer o que proponho Caliandrei, eu não viria até
você. Apenas peço que mantenha meu nome e a magia que te emprestarei
sob o mais absoluto segredo. Como já te disse, corro riscos ao vir até você.
Mas se fizer tudo como digo, dará tudo certo.
E assim aceitei.
Ela estava certa também quanto a isso. Eu sou sim capaz de cumprir essa
missão. Eu sempre soube dentro de mim que sempre houve algo melhor para
Adaris e agora eu sei que é verdade. E nem mesmo quando entendi o quanto
poderia me custar resgatar a regente pensei duas vezes.
Eu preciso de magia, pois a minha é pouca. Aceito dela uma da qual mal
entendo a respeito, mas abrirá os necessários portais, entre outras coisas. E,
eventualmente acabará.
Eu também preciso enganar Garou. Isso não será nada fácil mas não
importa. O futuro de Adaris não tem preço. Alguém precisa fazer algo
e esse alguém sou eu.
Mesmo que isso custe a minha vida.
E se esse é o preço… eu não tenho medo de pagar.
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2
O
lho para Jaqueline, a terceira garota que trouxemos para ter sua
mente lida pelo elfo.
Ela está desmaiada, de cara na mesa redonda de vidro na qual
todos estamos sentados ao redor.
— Por que a mente humana é tão bagunçada? — Igor levanta da cadeira,
ainda com a peruca e maquiagem de seu show drag queen como Madonna. — É
informação inútil demais. Como guardam tudo isso num espaço tão pequeno
sem explodir? — pega um frasco de comprimido atrás de si e chacoalha uma
boa quantidade deles para dentro de sua boca.
Para encontrar Mabelai, uma das ideias que tivemos veio do elfo que
conhecemos aqui. Ele sugeriu usar seus poderes para fuçar mentes humanas
atrás de pistas do paradeiro dela.
Que é exatamente o que fazemos aqui agora na casa de Igor.
E pela primeira vez, conseguimos algo concreto. Igor, elfo de Adaris e
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EU QUERO FICAR AQUI
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AS FILHAS DE GUENDRI
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EU QUERO FICAR AQUI
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AS FILHAS DE GUENDRI
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EU QUERO FICAR AQUI
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AS FILHAS DE GUENDRI
saberão. Não há por quê. Como sempre, guardo tudo dentro de mim pois
essa parte é minha e apenas minha farda para carregar. Aplico um sorriso
comedido em meu rosto e o ofereço a Igor.
— Não se preocupe comigo. O que faço é por Adaris. Por você, por Cali.
Ela merece isso mais do que ninguém. — suspiro, cruzando os braços e
propositalmente desviando o foco. — Ela se sacrifica demais e não devia…
— Cali é mais forte do que você pensa, Alexis.
— Gente forte também se machuca, Igor. — rechaço. — Não a acha jovem
demais para tudo isso? — a conheço a pouco tempo, e surpreende até a mim
o quanto já me importo com ela. Apesar de dever muito a ela e a sua coragem,
não posso deixar de reparar o quão mais nova, otimista e talvez ingênua ela é,
comparado a todos envolvidos nisso; sem contar na tal magia emprestada. —
Tenho a impressão de que esse tipo de magia que ganhou da Sombra não é
compatível com seu corpo… e se Garou a pegar…
— E por isso protegemos um ao outro. — sorri. — Talvez não se lembre
mas isso o que está sentindo é uma coisa boa: você tem afeição pela Cali,
preocupação. É normal sentirmos isso por quem nos importamos. Mas,
lembre-se: Cali é inteligente e sabe o que faz. E se não fosse seu otimismo não
estaríamos aqui agora. Com você a seu lado eu acredito que vamos conseguir
libertar nosso mundo. — se põe a minha frente e me abraça. Assistimos o
resto do acordar do Sol em silêncio. E assim que o claro se faz completo, nos
despedimos. — Agora vai. Antes que Garou te procure e não te encontre.
Concordo com ele apesar de que se Garou me procurar, eu saberei. Por
algum motivo bizarro posso sentir quando ele me quer.
Relutantemente, me despeço de Igor. Olho uma última vez para as pessoas
na rua e o céu agora azul-claro, guardo a imagem como uma obra de arte em
minha mente.
Em breve você também será livre, Alexandrai. Em breve.
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3
No Coração Da Cidade
J
ogado no sofá vermelho da recepção do escritório onde trabalho está
Flávio, dispensando minha ladainha com “aham”, cara colada em seu
celular.
Não importa quão importante o que eu conto é, seus grupos de WhatsApp
parecem mais urgentes neste momento.
Conheci o gigante magricelo de dezoito anos, com carinha de menininho e
vozerão de homem quando o vi substituir seu pai, o sorridente Sr. Jair, na
portaria do prédio onde trabalhamos aqui na Avenida Paulista. Começamos
com ele tirando sarro da minha cara no dia em que vim fazer entrevista, e
depois quando ele me pagou uma coxinha de almoço, acabamos jogando
conversa fora sobre video games e música, daí descobrimos que dividimos o
mesmo senso de humor besta para memes idiotas e em pouco tempo, mesmo
com a diferença de idade de cinco anos, conectamos numa amizade talvez
improvável, mas que segue firme.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Se ele está aqui no prédio onde trabalho, é assim que passamos nosso
horário de almoço: juntos, na maioria das vezes fazendo nada.
— E então, Magrelo? — pergunto novamente, chamando sua atenção
usando o apelido que coloquei nele.
— Então o quê? — ele nem olha para mim.
— O que você acha do meu sonho?
— Ah, isso. — Flávio finalmente me fita por um segundo, celular ainda na
mão. — Todo mundo sonha esquisitice, Magrela.
Alguns minutos atrás quando fomos almoçar, eu contei a ele como acordei
hoje suando e tremendo violentamente.
De novo.
Não é uma esquisitice “normal”. Meus sonhos estão ficando mais longos,
vívidos, impossivelmente altos em volume, literalmente fazendo meus
tímpanos doerem. Não é comum sonhar com som. Chegou ao ponto de
dificultar meu dormir. E a frequência entre um e outro está aumentando.
Sonhava um ou outro assim enquanto crescia. Durante a adolescência, eles
se tornaram mais longos, mas ainda assim eram raros. Agora adulta com
vinte e dois anos, acontecem quase todo mês. Não são necessariamente cenas
de terror, por isso não os chamo de pesadelos.
São apenas… intensos.
Flávio repara que sua explicação não desfaz minha cara de preocupação e
tenta novamente.
— Já procurou na internet? — indaga.
— Sim. Encontrei muitas explicações. Posso ter de gripe suína a câncer
terminal. — a internet é cruel com quem pode estar doente. Sério, jamais
procure nela qualquer coisa relacionada a sua saúde, ou senão vai piorá-la.
— Mas poucas fazem sentido. Psico somas não são particulares de nenhuma
doença específica.
Ele me olha divertido, acha engraçado quando uso jargões médicos.
— Não sei, Verena. — em raras vezes ele me chama por nome. — Acho que
você devia ir no médico se as dores estão te preocupando. Tem alguns aqui
no prédio, mas o Doutor Gregório é o melhor. A agenda dele como sempre
está lotada mas posso falar com ele por você. O Dimmy te dá seguro de saúde,
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NO CORAÇÃO DA CIDADE
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AS FILHAS DE GUENDRI
Flávio adora causar comigo. Ele não devia falar nada de ninguém pois é
uma gracinha, magrelo do tipo esportivo, certamente tem várias menininhas
correndo atrás dele o que faz dele um Ken em potencial. Além da carinha fofa,
sua altura e talento no basquete também são notáveis. E é um super CDF.
Tirava as melhores notas na escola. Mas mesmo tendo a inteligência, não
tinha o dinheiro para estudar na faculdade em que passou no vestibular com
êxito. E por isso meu chefe que coincidentemente é padrinho de Flávio, paga
sua mensalidade entre outras coisas como transporte, livros, etc.
Flávio merece tudo isso pelo seu trabalho duro. Ele é dedicado e eu o tenho
para mim como um irmão, mesmo sendo um baita dum mala sem alça ás
vezes.
— Desde quando o boneco te convida pra festinha?
— Me convidou hoje de manhã quando eu estava saindo para trabalhar.
Lembra que depois da coxinha parei pra comprar aquele vestido hoje? Foi lá
que te disse que ia sair á noite. Se você não estivesse com a cara no celular,
saberia.
— Ah é, pode crer. Ha, olha só a Magrela, comprou até vestido novo pra
pegar o cara. Dedicada, hein.
— Não comprei vestido pra pegar ninguém. — mentira, comprei sim. Mais
ou menos. Mesmo assim pego uma caneta da minha mesa e jogo nele pelo
abuso de falar alto minhas segundas intenções. Ele desvia a tempo. — Eu não
tinha roupa pra sair, ia comprar roupas novas de qualquer jeito.
Pela cara dele, sei que não acredita.
— É, você tá quase um personagem de desenho animado, usando a mesma
roupa todo dia, mesmo comprando roupa nova. — joga na minha cara.
Penso em responder, mas… ele tem razão. Quando me mudei para São
Paulo, não trouxe muitas roupas comigo. Nunca tive muito dinheiro, tempo
ou saco para ir comprar mais roupas. Até gasto algumas horas nos site
chineses mas no fim não dou checkout e fica por isso mesmo. E também
para quê compraria se nunca tive muitos lugares para exibi-las? Além de
quê, onde vivi lá em Cunha, interior de São Paulo, enquanto crescia não
podíamos usar nada além de uniformes lindíssimos de tactel providos pela
escola estadual, e que mais pareciam sacos de batata com o slogan do governo.
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NO CORAÇÃO DA CIDADE
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4
Bauer Inv.
A
voz que quebra nosso abraço é reconhecida por nós dois.
Ambos viramos para o dono dela.
Dimitri Bauer.
Meu patrão. À porta, esperando uma resposta a sua pergunta. Uma mão no
bolso da calça social azul escuro, a outra segurando seu celular.
— A festa que a magrela vai hoje pra pegar o vizinho dela. — Flávio já vai
me dedando ao se dirigir à porta e eu fico absolutamente sem jeito. Antes de
sair da minha sala de recepção, ele se vira para Bauer. — Você vai ver meu
jogo hoje né, Dimmy?
Mesmo tentando me recompor da momentânea vergonha, acho engraçado
como Flávio chama Dimitri de Dimmy. Não vejo ninguém mais se dirigir à
ele desta forma, provavelmente por isso acho engraçado.
Por quê? Bem, Bauer, não parece ser do tipo que encoraja tais intimidades.
Na verdade, acho que encoraja exatamente o contrário. Pelo menos em mim.
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BAUER INV.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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BAUER INV.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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BAUER INV.
cara delas, só que ainda tenho o pouco de educação que me foi dada e isso
dificulta e muito ser uma fdp.
— Pode sim. — entra em sua sala. — Vai facilitar muito sua vida. E a minha
também. — e tranca a porta.
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5
P
ode ser frustrante tentar aprender algo novo. Especialmente quando seu
próprio corpo vai contra a nova arte que sua mente procura absorver e
dominar. Você quer praticar, melhorar, domar algum ofício, mas tudo
dentro de você luta contra isso.
Esse é meu caso com a magia que a Sombra me dá.
Ela me fez uma oferta da qual eu provavelmente deveria recusar. Ou ao menos
pensar bem mais a respeito.
Mas se eu começar a hesitar e filosofar no que é bom ou não para mim ao invés
de agir, isso significa que eu não estou pensando em Adaris. E é por isso que Adaris
sofre, porquê todos que dizem amá-la colocam suas egoístas vontades à frente do
bem de nossa terra.
— Eu aceito a magia. — digo com precisão à Sombra. Ela sempre se move com
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COBRAS, JAQUETAS E PRÉDIOS
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DIAS ATUAIS
— Acho que gosto dessa, Cali. — comenta Alexis ao pegar um cabide e analisá-
lo.
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COBRAS, JAQUETAS E PRÉDIOS
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6
C
ai a noite na cidade, e mesmo com a vidraça fortemente temperada
do nono andar, acho que ainda posso ouvir o caótico trânsito de
buzinas e xingamentos dar ritmo à noite paulista.
Bauer foi ao encontro de um cliente no finzinho da tarde e agora eu estou
sozinha, frente ao espelho do pequeno banheiro do escritório, experimen-
tando o vestido que comprei na hora do almoço para ir a festa de Lucas hoje
á noite.
É um vestido preto, com mangas três-quartos e saia rodada. Até que gostei,
a única coisa que não curti muito foi o decote. Não estou acostumada com
meus peitos tentando saltar para fora do que estou vestindo.
Olho o decote novamente e tento cobri-lo mais, puxando o tecido para
cima, pelo menos até a hora de encontrar Lucas. Mas por ser alta, a saia
sobe e daí minha bunda ganha visão panorâmica. Que maravilha! Por que
não fazem roupas para pessoas altas que tapem duas partes do seu corpo ao
mesmo tempo?
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PAULISTA VS. PAMPLONA
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AS FILHAS DE GUENDRI
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PAULISTA VS. PAMPLONA
estou segurando suas calças. Por quê resolveu tirar suas roupas? — eu tento
pegá-las, mas ele as tira do meu alcance. Faz isso duas vezes. De repente,
somos crianças num recreio de escola: ele as erguendo toda a vez que tento
pegá-las. — Responde primeiro.
Bauer brincalhão. Essa é nova e de boas, não estou acostumada.
— Eu comprei esse vestido pra sair hoje á noite. — me dando por vencida,
respondo. — Não sabia que hora sairia daqui, e não achei que você voltaria
hoje, então decidi experimentá-lo.
— Hum. É bonito. — comenta, me devolvendo as calças. — Pensa em
usá-lo no jantar de amanhã? — não devia, mas explico que perguntei isso a
Lena durante a última ligação e que ela disse para encontrá-la aqui, amanhã
á tarde para buscar o vestido que devo usar. E que este que visto agora é
somente para hoje à noite. — Ah sim… a festa do seu vizinho. Você deve
gostar bastante dele. — ele olha para meu decote novamente e eu prefiro
não entender o que ele quis dizer. De repente, Bauer parece ter uma ideia e
procura por algo em seus bolsos. — Você tem a chave extra da minha sala?
Acho que deixei a minha no carro.
O escritório começa pela porta de madeira que dá direto na recepção onde
tem dois sofás vermelhos, uma mesinha de café e uma mureta de mármore
onde os clientes se escoram para me ver. A direita da minha mesa, uma
passagem para um curto corredor. Paralelo a recepção, do outro lado do
corredor, ficam duas salas: a maior que é de Bauer, e a menor, de Lena. No fim
esquerdo do corredor tem um pequeníssimo almoxarifado e do lado direito, o
banheiro. Adjacente a recepção, fica uma moderna minicozinha, com frigobar,
outra cafeteira, uma pequena mesa embutida na parede, armário, pia e um
micro-ondas onde re-esquento algumas marmitas.
E eu tenho chaves para todos esses lugares. Menos para a sala de Bauer que
aliás, ele costuma trancar quando sai.
E quando não sai também.
— Tenho a chave da sala da Lena. — que uso quando ela liga e sempre pede
papéis que estão lá. — Não da sua.
Assente e cruza os braços. — Já tentou a chave dela na minha porta?
— Não. — nunca tentei nem nunca me ocorreu tentar. Pego a chave em
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AS FILHAS DE GUENDRI
minha segunda gaveta, levanto e vou até sua porta. Para minha surpresa,
quando viro a chave ouço-a destrancar. Por que nunca me disse isso antes?
Quando me viro para dizer que funcionou, dou de cara com Bauer que está
bem atrás de mim.
Eu não percebi que estava tão próximo, nem ao menos ouvi seus passos ao
se aproximar de mim. Ele tem disso, move-se tão silenciosamente que me
pega de surpresa direto.
Tento andar para trás para recriar a saudável distância que está SEMPRE
entre nós, mas minhas costas já estão contra a porta da sala dele.
Bauer cheira bem e a essa distância, cheira melhor ainda.
Engulo em seco.
— Acho que esqueceram de te avisar. — esqueceram? Esqueceu. Ele quem
me contratou e nunca disse nada. — Você já tinha a chave. É a mesma
fechadura. — olha em meus olhos e eu tô estranhando muito o quão próximo
ele está, mas não consigo não olhar dentro dos dele. Eu estou um pouco
embasbacada, mas meu cérebro está atento. E constatou algo esquisito que
eu não reparei antes: o tal do CEO do ombro largo existe mesmo. E está aqui
na minha frente. — Deve saber que como minha secretária, pode entrar na
minha sala sempre que precisar. — sua fala retorna minha atenção para o
momento.
Honestamente, como toda a assalariada, não gosto de entrar da sala do chefe
nem quando preciso. Mas um “tá” sai da minha boca num sussurro rápido.
De repente sua mão toca minha cintura e eu arregalo os olhos. Quando ouço
a porta abrir atrás de mim, percebo o que ele tentava fazer: girar a maçaneta
que está as minhas costas.
— Entra. — Bauer diz inclinando a cabeça levemente, e desconfio que ele
está me prendendo entre ele e a porta de propósito. Seu divertimento com
meu encabular está estampado em seu rosto.
Entro em sua sala e ele logo em seguida, vai até um gabinete de madeira
escura que fica atrás da sua gigante mesa e cadeira. Enquanto isso, olho
pela sua imensa janela. Gosto da vista da sala de Bauer e a observo todas
as raras vezes em que entro aqui. As grandes vidraças dão de cara para o
cruzamento da Avenida Paulista com a Pamplona e todas as luzes dessa cidade
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PAULISTA VS. PAMPLONA
que parecem se encontrar aqui todas as noites, num fogaréu infinito e de tirar
o fôlego.
E sempre que entro aqui me lembro do dia da minha entrevista, há cinco
meses atrás.
Como eu estava nervosa! Sentada lá fora, esperando a minha vez com algumas
outras garotas que pareciam bem mais preparadas que eu. Quando entrei
aqui e conheci Bauer pela primeira vez, ele ficou olhando para minha cara
como quem viu um fantasma e por isso não achei que me daria o emprego.
O que me deu um certo pânico, já que precisava do dinheiro imediatamente
para poder continuar na cidade.
Eu devia estar com sorte naquele dia, uma raridade naquele mês pois depois
de vários “nãos” de outros empregadores, ele me contratou. E com o tempo,
vi que ele fazia essa cara de mal humor normalmente.
— Gosta de cachaça, Morales?
— Gosto de caipirinha. De preferência, de maracujá.
Ele pega dois shot cups de seu gabinete e também duas garrafas iguais,
colocando-os sobre sua mesa e abrindo uma delas.
— Lena vai fechar este investimento para nós em breve. — ele enche os
pequenos copos com o líquido transparente. — Cachaça artesanal. — Bauer
me oferece um shot e um sorriso brilhante, sentando-se sobre sua mesa a
minha frente.
Quando eu aceito o copo, ele brinda o dele contra o meu e o bebe. Eu o
copio e me arrependo. Não sei bem o que estava pensando para virar cachaça
pura goela abaixo de uma vez só.
Dou algumas tossidas com o fogo queimando minha garganta.
— Gosto bem leve, não é?
Levíssimo, parece gasolina. Não estou acostumada a beber.
— Meu Deus, que delícia. — digo com dificuldade e sarcasmo, o gosto forte
ainda na minha língua e minha careta contorcendo meu rosto.
Bauer ri, e alto. Depois começa a explicar como é o processo dessa
cachaçaria que ele visitou semana passada, no interior de Minas Gerais.
Achou que seria um bom investimento, já que o mercado de bebidas artesanais
está em alta no Brasil.
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AS FILHAS DE GUENDRI
— Leva essa garrafa para a sua festinha. — ele me dá a que ainda está fechada.
— Me diz o que acham dela.
— Poxa, Bauer! Sério mesmo? — exclamo e pergunto, surpresa. —
Obrigada!
Eu seguro a garrafa e a estudo. Ela tem um rótulo bonito. “Barrilha” é o
nome. Bauer explica que este é o sobrenome da família dona da destilaria de
médio porte e eu o observo falar. Sem aquela carranca costumeira e afim de
conversar, seus olhos ficam até mais azuis e seu rosto mais iluminado.
— Me agradeça quando seu namorado gostar. — arregaça as mangas da
camisa e entorna mais um shot. Lucas, meu namorado. Rio para mim mesma.
Bem que eu queria, chefe. Quem sabe, no futuro… — Mais uma?
— Não, obrigada. — a que tomei já está fazendo efeito, minha mente
começa a turvar. — Ainda estou em horário de trabalho, chefe. — Brinco
com a verdade. Lena ainda ligará novamente e eu preciso enviar e depois
imprimir para arquivo físico o documento recém assinado por Bauer, motivo
pelo qual eu ainda estou no escritório. Não creio que eu bêbada serviria
alguma assistência à ela.
Ele vira a dose que pôs em seu copo e o enche novamente.
— Está dispensada por hoje. Se Lena ligar eu atendo. — garrafa sobre meu
copo, ele olha para mim. — E então, mais uma?
Comemorando ser dispensada, eu concedo e aceito mais uma dose.
Brindamos, bebemos. Estamos frente a frente, álcool queimando minha
boca novamente, me deixando mais a vontade à sua volta. Mas quem tagarela
agora é ele. Presto atenção, nunca ouvi tanto sobre a minuciosa arte e química
da destilação e infusão de cachaça na minha vida.
Se ele não me reconheceu por causa do vestido, eu não o reconheço por
causa da postura descontraída.
Na verdade, parece que acabamos de nos conhecer.
Nossa conversa ao redor de preferências e conhecimento sobre bebidas
desenrola naturalmente, uma novidade entre nós. Talvez estamos bêbados
demais para perceber o quão próximo estamos e ao mesmo tempo não estamos
bêbados o suficiente para nos aproximar ainda mais.
Quando a gente para de falar, as palavras que preenchiam o espaço entre
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PAULISTA VS. PAMPLONA
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7
T
ecnicamente, moro próximo ao trabalho. Mas, devido ao
maravilhoso sistema de transporte público paulista e o trânsito,
sempre demoro mais que o necessário para chegar em qualquer
lugar.
Como não tenho carro ainda, se é muito tarde, estou atrasada ou preciso
fazer compras, pego um uber: um dos benefícios que a Bauer Investimentos
me dá. Ele se propôs a pagar por qualquer viagem, relacionada ao trabalho ou
não. Não me parece tão difícil aguentar aquele jeitinho grosso de ser todos
os dias com algumas dessas regalias que ele me oferece.
Aceitando sua proposta, minha conta está vinculada ás contas do escritório,
assim como a conta do meu celular. Quando Bauer ofereceu, não pensei duas
vezes. Ligações, mensagens de texto, internet ilimitada. Nem preciso colocar
wi-fi no meu apartamento ou roubar mais da padaria no andar de baixo. E
eu não abuso do pacote de dados, uso somente quando necessário.
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LAR DOCE LAR
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AS FILHAS DE GUENDRI
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LAR DOCE LAR
começam a tomar conta do espaço. — Daniel! Chega aí! — chama por alguém
atrás de mim quando o vê na entrada da cozinha. — Vou te apresentar meu
amigo.— Lucas avisa e um cara barbudo tatuado se junta a nós. — Verena,
Daniel. Daniel, Verena. Sua nova vizinha e seu novo vizinho.
— Ah, você quem tá no apartamento da chata da Dona Helena agora. Até
que enfim aquela velha dos infernos deu o pé daqui. — nos cumprimentamos
e ele vira para Lucas. — Que que tem pra beber, Alemão?
— Breja na geladeira, a Laís trouxe umas cinco vodcas e a nossa nova vizinha
aqui trouxe essa cachaça de rico. — Lucas dá a garrafa a Daniel.
Daniel arregala os olhos. Eu não sabia que é cachaça de rico. Eu devia ter
prestado mais atenção no que Bauer dizia sobre a bebida ao invés de quão
próximos estávamos.
— Posso experimentar? — Daniel pergunta.
— Claro! Me diz o que acha.
Daniel vira uma dose e parece gostar.
— De-lí-ci-a! Aonde você achou essa aqui?
— Pesquisa de mercado. Meu patrão pensa em investir nela.
— Pode dizer pra ele que tá aprovado. — Daniel bebe mais uma dose e
depois abre uma cerveja. — Que sorte que a nossa, Alemão. Nos livramos da
velha chata e no lugar conseguimos uma gostosa com pinga boa de graça. —
suas cervejas brindam e eu engasgo com o comentário. O ríspido elogio veio
do nada e me coloca a tossir.
Lucas pergunta se eu estou bem. Faço que sim com a cabeça e me pergunto
se ele concorda com Daniel ou não. Gostaria de saber…
— Ela era chata assim, é? — redireciono a conversa.
— Dona Helena era uma peste. — Daniel responde. — Reclamava de tudo.
Meu apartamento é embaixo do seu, então você ouve o que faço e eu posso
ouvir você. Ela reclamava do meu vídeo game, mas eu tinha que gostar do
forró que ela botava pra tocar alto todo fim de semana.
Não sei se é por quê passo mais tempo fora de casa ou por que sou meio
surda, mas não ouço nada vindo do apartamento de baixo. E agradeço por
isso. Ninguém respeita o ouvido alheio em cidade grande.
— Verdade. — Lucas confirma o relato de Daniel. — Ela já chamou a polícia
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AS FILHAS DE GUENDRI
em duas das minhas festas. E olha que eu não deixo passar das dez da noite,
normalmente vamos pra alguma balada ou barzinho, em respeito a todos os
vizinhos. Já ela ficava no forró e quando se arrependia, colocava música de
igreja.
Eu gargalho naturalmente. Em Cunha tem alguns desses.
— Eu não conheço os outros vizinhos. — acabo de reparar.
— Tem um casal ao lado do meu apartamento e o outro está vazio. A
galera muda daqui o tempo todo. A gente não muda por que o preço é bom
comparado com o resto da Barra Funda e é perto do nosso trampo. — Daniel
comenta. — E já acostumamos com o cheiro de mofo.
Sabe que eu também?
— Vocês dois trabalham aqui perto?
— Sim. E no mesmo lugar. Eu e esse moleque aqui tamo junto desde o
primário! — Daniel me responde. — Morávamos juntos também, mas mudei
antes que a gente acabasse se matando. Faculdade junto, trabalho junto. Tudo
junto. Vamos acabar casando, né, meu amor?
— Vai se ferrar, Daniel. — Lucas ri e ouvimos alguém o chamar da sala. —
Já volto, okay? Não some, Vê. — diz para mim e eu sorrio de acordo.
— Lucas me falou que você é de Cunha? — Daniel continua a conversa
depois que Lucas sai.
Respiro fundo antes de responder.
Está chegando aquela inevitável parte do dialogo quando conhecemos novas
pessoas, a parte onde nos enchemos de perguntas sobre onde viemos, nossa
família, ou onde crescemos.
A parte que eu não gosto muito de falar sobre porquê não há muito para se
falar.
E isso me incomoda.
Como falar do seu passado quando você meio que não tem um?
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8
M
inha vida foi sempre tão monótona e solitária. Sinto que não
tenho uma história para contar.
Eu nasci na pequena cidade de Cunha, no interior de São
Paulo. Morei com a minha avó Dona Lurdes durante minha vida inteira.
Não conheci meus pais. Apenas tenho uma foto deles.
Tudo o que sei é que minha mãe me deixou com ela quando nasci e nunca
mais voltou. E só. Eu não sei exatamente o que aconteceu com ela ou com
meu pai, nem se estão vivos ou não. Nunca houve nenhum tipo de contato
entre nós. Minha avó sempre cuidou muito bem de mim, mas evitava falar
deles a qualquer custo.
E com o tempo, fui parando de perguntar.
Quando fiz dezenove anos, recebi a noticia médica de que minha avó tinha
uma forma de demência agressiva. E em poucos anos, a saúde mental dela
foi deteriorando, avançando rapidamente e consumindo sua mente. Após
pouco tempo, ela já não falava coisa com coisa. Isso quando falava. Ás vezes
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AS FILHAS DE GUENDRI
ficava semanas sem falar, olhando para o nada. Sem nenhum outro parente
para ajudar, e apenas uma aposentaria mirrada todo mês para pagar as contas,
meu tempo era dividido entre meu trabalho e cuidar dela.
Na época, eu trabalhava num tipo de lojinha mais conhecida como um e
noventa e nove. Se deixasse o emprego, não poderia cuidar de nós. Fiz o
impossível, quase me dobrei em duas para estar presente em ambos lugares.
Ninguém sabe o que passei, mas cuidei dela.
Foi como lhe paguei a dívida em meu coração por sempre ter cuidado de
mim.
Era frustrante, cansativo, às vezes revoltante. Eu assisti uma mulher forte e
sensata se transformar em uma criança novamente ao longo de alguns anos.
Imaginei que a frustração que tive quando perguntava aos céus “Por quê eu?
Por que comigo?” deve ter sido como ela se sentiu quando me abandonaram
com ela.
Não desistiria dela. Ela não desistiu de mim.
Nos raros momentos em que tinha tempo para mim, eu achava consolo e
amizade no meu velho video game, presente dado a mim por ela. E quando
ela se foi… eu chorei. Por uma semana inteira, foi só o que fiz, só o que as
forças que me sobraram podiam fazer.
Então, além do sobrenome, alguma mobília, o dinheiro que ela escondi-
damente reservou para mim enquanto ainda sã, e suas lições que moldaram
meu caráter, eu não trouxe mais nada de Cunha comigo.
E nunca mais quero voltar para lá.
Queimei a foto dos meus pais num ato rebelde e ritualístico. Essas pessoas
não existiram para mim, como eu não existo para elas. Evaporaram-se com as
chamas. Daí, fiz um pacto comigo mesma. Não importa de onde vim. Apenas
o que acontece daqui para frente.
Eu mereço um novo início. E eu decido quando e qual é o fim.
Agora, vai explicar isso para quem não me conhece sem acabar com o
clima da conversa e receber um monte de olhares tristes acompanhados pelo
desconforto de quem me ouve.
Dispenso.
Então desvio graciosamente de perguntas desse tipo. Minha sorte é que
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SEMPRE TEM UMA FESTA
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AS FILHAS DE GUENDRI
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SEMPRE TEM UMA FESTA
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9
EtOH
N
amorada?
Lucas tem uma droga de uma namorada?
Desde quando? Ele nunca me disse nada! Nenhum comentário,
nenhum sinal de que era comprometido.
ELE FLERTA COMIGO!
Ou pelo menos achei que o fazia…
Para mim, o tempo para e eu me sinto enjoar. Eu não esperava por essa e
não estou sabendo lidar.
— Oi. — consigo com esforço cuspir as letras para a menina a minha frente.
— Prazer. — tenho ciência de que não soo natural e espero que todos ponham
a culpa disso no segundo copo de caipirinha que estou tomando no momento.
A brisa que a bebida me dá de repente não é suficiente para me ajudar a
lidar com o banho de água fria que Lucas acabou de jogar em mim.
Aqui estou eu, infantilmente cultivando sentimentos por um cara que mal
conheço, que apenas vejo de vez em nunca e ás vezes paro para conversar.
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ETOH
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AS FILHAS DE GUENDRI
sobre ela enumeras garrafas e copos. Peço licença e pego a cachaça que eu
trouxe. Ainda bem que ela estava escondida entre as outras garrafas, ainda
não acabou.
Sem pensar duas vezes, acho que a Barrilha pode ser uma boa anestesia
para o que sinto agora. Viro o líquido e o sinto queimar absolutamente tudo
em mim. Dou quantos goles consigo, tossindo quando pauso. Não demora
muito e a sujeita já está indo do meu estômago para minha cabeça.
Eu claramente não sei o que estou fazendo mas em poucos minutos…
Me sinto leve…
Me sinto melhor.
Decido procurar por Daniel e continuar conversando com ele. Pergunto
ao casal que está a frente das garrafas se eles o viram.
— Acho que ele está no quarto. — mal consigo ouvi-los falar e decido
ignorar a risadinha que vem com a resposta.
Me sinto andando na lua. Dando trépidos passos, vou até o quarto que deve
ser no mesmo onde é em meu apartamento. Viro a bebida novamente e dessa
vez, minha goela arde menos.
Que gosto horrível!
Olho para o lado e vejo que Sara ainda dança na sala. A festa começou
com um rock nacional e agora toca funk proibidão e eletrônica, e a rebolação
come solta.
Que seja.
Ao olhar para a porta de entrada, vejo Lucas trazendo mais caixas de cerveja.
Antes que ele passe por mim, entro rapidamente no quarto, fechando a porta
atrás de mim e me escondendo.
E sim, encontrei Daniel aqui.
Com mais duas garotas.
Ele está sem camisa e eu descubro que as tatuagens que começam em
seu braço, terminam em suas costas. Eu acho o design interessante, mas
provavelmente não deveria me concentrar nisso agora. Em qualquer outro
dia, essa cena a minha frente me chocaria. Eu nunca estive tão bêbada, mas
tenho certeza de que não estou alucinando.
Que péssimo filme americano adolescente essa noite virou.
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ETOH
Ele não me viu, nem as senhoritas. Ele parece bem dotado… digo, ocupado.
Não acho que está afim de conversar comigo agora. E nem percebe que estou
aqui.
Em silêncio, me retiro do quarto.
A bebida está batendo mais forte, ficar em pé está ficando difícil. Tentando
me manter contra a parede, vejo Sara ainda dançando, mas agora, Lucas esta
assistindo. É visível que naquele momento, nada mais existe para ele. Sinto
meus olhos que estão secos devido a fumaça de cigarros no ar, queimando
com lágrimas que se alinham para cair.
Penso em ir para meu apartamento, mas além das lágrimas sinto outra coisa
vindo rápido e que também esta difícil de segurar. Vou para o banheiro, que
como em meu apartamento, é a próxima porta ao lado do quarto.
Tem gente dentro, duas garotas fumando um baseado e trocando carícias.
O cheiro de gambá não me ajuda em nada. Não dá tempo de pedir licença ou
agradecer por não trancarem a porta.
Me dirijo até a privada e começo a vomitar.
Felizmente para mim, cheguei na hora certa. Infelizmente para elas, na
hora errada. As ouço reclamarem e saírem do banheiro. Quando penso que
terminei, me arrasto até a porta e a tranco.
Me inclino sobre a pia, abro a torneira e molho meu rosto. Tinha me
esquecido do lápis que passei no olho até olhar meu rosto no espelho. Pareço
estar frente a frente com um fantasma, minha pele morena agora pálida, olhos
escuros.
Me sinto fraca e triste. E me arrependo.
De ter vindo. De ter bebido. De cultivar paixonite besta no meu vizinho
sem base nenhuma.
Eu tenho vinte e dois anos mas agora me sinto como uma criança. Estou
agindo como uma também. Percebo que estou chorando, e me ver assim me
irrita tanto que daria um soco em minha própria cara se pudesse.
Decido ir para casa, sem me despedir de ninguém. Procuro por meu celular
que guardei em meu sutiã, já que o vestido não tem bolsos. Não o encontro e
não consigo lembrar onde o deixei. Deve ter caído do meu decote enquanto
esbarrava nas várias pessoas ao tentar me mover por aqui. E por algum
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AS FILHAS DE GUENDRI
motivo não me importo. A noite acabou para mim, e da ultima forma que
imaginei que acabaria.
Ao tentar me erguer e ficar em pé sem o apoio da pia, uma nova jorrada me
sobe pela garganta e a privada me chama pelo nome.
E de joelhos, eu a atendo.
Converso com dois humanos e uma humana. Bebemos “cerveja” e eles falam
sobre várias coisas que nunca ouvi falar a respeito. Eu tento rir quando eles
riem, bebo quando bebem. Tento copiar todos seus movimentos e palavreado.
Eles sabem muitas coisas. Humanos são assim, tem várias informações sobre
coisas diferentes. E parecem tão entusiasmados sobre as coisas que falam.
Eles estão tão bêbados que não percebem o quão peixe fora d’água sou. Mas
me aceitam. Não me ignoram, ainda conversam comigo.
Futebol… o que é isso? Tem times, uma bola, e juiz que eles realmente
não gostam. E filmes… esses eu sei o que são, já vi partes de alguns na casa
de Igor e contemplei maravilhada. Extremamente engenhoso e complexo,
aparentemente tudo falso. Gostaria de assistir um completo mas o pouco
tempo que tenho quando estou por aqui deve ser utilizado da melhor forma.
Sei que devo prestar atenção na nossa missão mas eu quero aproveitar os
raros momentos que tenho de liberdade.
Eu e o grupo de humanos saímos para fora do apartamento. O barulho e a
quantidade de pessoas nos forçam. Mesmo com a conversa continuando e o
vai e vem de pessoas, algo aqui no corredor me chama a atenção.
54
ETOH
Eu me sinto estranha. Algo ao meu redor parece não estar… bem? É… é isso.
Algo ou alguém, perto ou dentro da festa está me afetando negativamente,
a clareza desse entendimento me atinge junto com o sentimento. Mas no
outro lado do corredor em que estamos, algo também me chama atenção e
fixo meu olhar nela.
Uma porta.
Algo nela me intriga, não sei dizer exatamente o que é.
Mas vou até lá. Chegando a porta vermelho-escuro, a toco. Nada de
anormal nela, nada de único. É uma porta como a do apartamento da festa,
como todas as que já vi na vida. Mas ao tocá-la sinto algo sob minha mão,
algo que nunca senti antes. Não sei por que ela me interessa. Só sei que há
algo aqui.
— Alexis? — Cali me chama, me causando um sobressalto. — Estava te
procurando. —ela nota meu interesse na porta. — Está tudo bem?
— Sim. Eu só queria saber quem mora aqui.
— A Verena. — um humano loiro segurando uma grande caixa cheia de
cervejas como a que eu bebo, responde.
— Verena! — Cali exclama ao ouvir o nome e se vira para quem o disse. —
Você a conhece?
— Sou vizinho dela. Moro naquele apartamento ali. — ele aponta com a
cabeça para a festa. — E vocês?
— Somos…
— Primas dela. — corto Cali, soltando a resposta ensaiada. — Chegamos
agora de viagem mas ela não atende. Sabe onde ela está?
— Última vez que a vi ela estava na minha cozinha. — ele anda a nossa
frente, em direção da festa. — Vem, pode entrar.
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Obrigada, Privada
A
cho que apaguei por alguns minutos.
Alguém me cutuca o ombro e eu ouço uma voz feminina me
chamar pelo nome. Enfrento uma bêbada preguiça para responder.
Meus olhos estão fechados, minha boca seca e minha cabeça girando.
— Ela tá bem?— uma outra voz pergunta. — Foi isso aqui que ela bebeu? —
vejo pela pequena fresta que abro em meus olhos que a dona da voz segura
minha cachaça de rico.
Pouco a pouco recobro a noção de onde estou.
Em um banheiro, sentada no chão, usando uma privada como travesseiro.
Refecho os olhos pois não estou afim de acordar.
— Verena? — a voz e a mão me cutucam de novo e eu respondo com um
grunhido.
Lentamente abro os olhos, me acostumando novamente a luz que violenta-
mente os invade. Estou completamente mole.
Tudo dói, dentro e fora, e não quero me mover, por mais nojenta que essa
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OBRIGADA, PRIVADA
privada possa estar. Mas desabraço a privada para ver quem tenta me acordar.
Deve ser algumas das pessoas que me foram apresentadas hoje. Embora eu
não lembre seus nomes ou rostos, elas lembram o meu.
A que me cutuca é altíssima, ou parece ser daqui do chão. Tem a pele negra,
cabelos pretos num corte bob perfeito, que contornam seu rosto perfeitamente.
Ela se esquiva sobre mim, tentando avaliar minha situação.
Quer saber? Eu conheço esse rosto.
— Rihanna?— pergunto.
Isso! Ela é a cara da Rihanna.
— Todo mundo diz a mesma coisa, que você parece com essa tal de Rihanna.
— a que está atrás dela diz e eu finalmente olho para ela por completo também.
Uma menina que não aparenta ter mais de dezesseis anos, talvez nova demais
para estar numa festa dessas. Um rosto de traços finos, delicados. Pálida
demais, parece que nunca viu um sol. Seus cabelos loiros quase brancos lhe
dão um ar ainda mais juvenil.
— Verena, você está bem? — a sósia da Rihanna pergunta com firmeza,
estudando meu rosto. Ela se vira para trás e pega a garrafa das mãos da outra
garota e chacoalha na minha frente. — Foi isso que você bebeu?
Como se fosse Todinho.
Só de olhar a garrafa, já quero vomitar novamente. E quando acho que já
não sobrou mais nada para botar para fora, meu estômago me surpreende.
— Isso é normal né, Alexis? — a menina loira parece preocupada comigo.
— Se ela bebeu isso, sim. — a tal Alexis responde.
Quando termino de gorfar, tento me levantar para lavar o gosto terrível
em minha boca. Acho que calculei mal, pois perco meu centro de apoio e dou
de cara no box do chuveiro.
A Alexis me segura, virando-me de frente para ela e apoiando minhas
costas contra o box. Minha cabeça dói mais ainda e eu balbucio algumas
profanidades, me perguntado por quê raios tive a idiota ideia de enfiar o
pezão bem no meio da jaca logo aqui na festa.
— Ei, Verena.— Alexis me sacode na esperança de me fazer abrir os olhos.
Funciona.— Meu nome é Alexis. Essa é Cali. — ela aponta para a baixinha. —
Precisamos da sua ajuda. É muito importante… — eu apago de novo e ela me
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AS FILHAS DE GUENDRI
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OBRIGADA, PRIVADA
— Opa, epa, péra, péra… tão me levando pra onde? — quem são essas
garotas e por que estão me carregando?
— Vamos te levar para o seu apartamento. — Alexis diz.
Começo a entrar em pânico porquê sim. Eu não as conheço. Mas elas
aparentemente não só me conhecem como também sabem onde moro.
Seriam amigas de Lucas? Aliás, onde está Lucas, ou Sara, ou Daniel? Será
que deram conta que desapareci por alguns momentos?
— Quem são vocês? Me coloque no chão! — não estou disposta a pagar o
micão de ser carregada para fora da minha primeira festa com vizinhos que
acabei de conhecer. — ME PÕE NO CHÃO AGORA, faz favor. Eu posso
andar!
Imagina só o quanto zoarão com a minha cara no futuro se verem isso!
Começo a me debater pois quero que ela me solte imediatamente, mas ela é
estranhamente forte para alguém de seu porte.
— Verena, pára! — ela me dá a ordem, mas eu não paro até ela me por no
chão.
— Verena, calma! — a loirinha admoesta amigavelmente.
— Que calma, o quê!? Quem são vocês e por quê tão me carregando? Cadê
o Lucas?
Sei que ele tem sua preciosa namorada e que esqueceu da minha existência
assim que ela começou a rebolar, mas como convidada de sua festa e nova
vizinha que está morrendo de coma alcolico em seu banheiro, achei que ele
procuraria por mim em algum ponto da noite.
Mano do céu, como sou iludida!
Alexis finalmente me põe no chão e eu vou cambaleando até a parede mais
próxima.
— Lucas nos convidou para entrar mas alguém o chamou. — Alexis
responde a minha pergunta.
Lucas ocupado com a festa. EU SOU MAIS IMPORTANTE. Ou deveria
ser.
— Cadê o Daniel? Sara? — nenhuma das duas parecem reconhecer os
nomes que eu disse.
Pensando bem, reparo que não me foram apresentadas hoje a noite. Eu
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AS FILHAS DE GUENDRI
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Estranhas
N
ão tive escolha.
Eu tive que fazer o que fiz.
Tive que nocauteá-la.
Cali parece se surpreender com o soco que viro na cara de Verena, pois dá
um pulo para trás e segura o grito na garganta.
— Quê? — pergunto a Cali. — Ela estava ficando histérica. — justifico.
— Foi bem… forte. Não acha? Tenho certeza de que quebrou o nariz dela.
— Da próxima vez, usarei menos força. Prometo. — Cali pisca confusa,
provavelmente esperando que não houvesse uma próxima vez. — De qualquer
forma, o elixir a curará. Vamos antes que ela acorde.
Pego Verena no colo. Ela é bem mais leve do que parece. Cali vai na frente
pedindo para as pessoas da festa liberarem a passagem.
— Meu Deus!! Ela tá bem? — Lucas nos avista de longe e pergunta gritando.
— Ela tá ótima. Só precisa descansar! — grito de volta, carregando Verena
61
AS FILHAS DE GUENDRI
o mais rápido possível, antes que ele se aproxime o suficiente para ver o
tamanho do estrago que fiz na cara dela.
Magicamente, Cali abre a porta do apartamento de Verena. Procuro seu
quarto e a coloco em sua cama.
— E agora? — indago.
Ela respira fundo e cruza os braços, torcendo os lábios.
— Não sei. Esperava conversar com ela hoje á noite. Quando será que ela
vai acordar?
Não sou expert em bebedeira humana, especialmente bebedeira acompan-
hada de soco, mas se não me engano só amanhã.
— Têm algum… feitiço para acordá-la? — ofereço a ideia já sabendo a
resposta.
— Não, Alexandrai. — Cali diz firmemente. — Não vou usar nenhuma
magia em alguém sem autorização dessa pessoa.
— Mas nesse caso é diferente, Cali. Vai ajudá-la.
— Mesmo assim. — Cali analisa a dorminhoca na cama, que agora faz um
barulho, mais conhecido por humanos como ronco. Se respira, sobreviveu
ao murro. Nem foi tão forte mas mesmo assim ganhou um pouco da minha
admiração. — Não é certo.
Esse código moral que Cali têm é derivado de seu pouco tempo entre
humanos. O que é estranhíssimo pois Igor nos diz que “ Na selva de pedra é
cada um por si. Com o tempo vocês aprenderam o jeitinho brasileiro. É impossível
sobreviver aqui sem.” Por outro lado, não muito diferente do que aprendi
sobre nossa espécie com Igor, fadas não esperam permissão e também não
seguem regras éticas que não condizem com nossa magia ou as leis que as
regem. Nem todos os parâmetros morais humanos se aplicam em elementos
extraterrestriais.
— Sei o que está pensando. — a voz de Cali é séria, mas doce.
— Então não precisamos mais de Igor. — sou sarcástica.
Ela inclina a cabeça levemente, frustrada com minha resposta.
— Está impaciente.
Não precisa ler mentes para ver isso. Estou cansada desse vai e vem entre
mundos. Dessa busca da qual não sei onde vai dar. De respirar liberdade e
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ESTRANHAS
ter que voltar a ficar sem ar em meu cativeiro. Toda vez. Estou cansada deste
inferno e de não saber o que fiz para merecê-lo.
— E você não? — pergunto.
Cali está em silêncio, provavelmente escolhendo as palavras certas para
usar comigo. Não gosto quando ela faz isso, quando me trata como realeza.
Não tenho reino, não me lembro de jamais tê-lo tido e honestamente, nem
quero ter.
— Eu sei que você se pergunta o por quê disso tudo. — Cali diz isso tão
baixo, eu mal a ouço. — Estou certa? — sinto uma pontada do medo que ela
sente em me fazer essa pergunta.
Me ira.
Sim. Já me perguntei o por que disso tudo. Acha que sei? Acha que sei por
quê nem eu ou minha irmã conseguimos defender Adaris como supostamente
fomos criadas e treinadas para fazer?
Estou pagando por um erro que não lembro nem ao menos se realmente
o cometi. A cada vez que penso nisso me sinto mais fraca do que quando
comecei essa busca.
O passado é algo irritante: ou lembra-se dele tortuosa e repetidamente ou
não se faz ideia de como ele foi e consequentemente, do por que tudo é como
é.
— Não digo isso para fazê-la sentir-se culpada. — Cali se aproxima de mim,
colocando a mão sobre meu braço. — Mas para lembrar que precisamos
encontrar uma resposta. Um motivo. Uma maneira de assim que a verdadeira
Regente estiver em seu lugar e Adaris voltar ao normal, nada disso aconteça
novamente.
— Você acha que foi nossa culpa? Culpa das “Filhas de Guendri”? — preciso
ouvi-la dizer. Cali é um dos poucos seres de Adaris que conheço. Será que
é isso que pensam? Que as filhas são as culpadas pela atual situação? Ao
menos os que acham que nós existimos, pois aparentemente muitos acham
que somos apenas rumores.
— Não é isso que penso. Na verdade, nem sei o que pensar a respeito. E
isso não importa agora. — ela evita minha pergunta e eu já sei que é isso
que acha. Mais um motivo pelo qual não quero viver em Adaris. — O que
63
AS FILHAS DE GUENDRI
importa agora é que lutamos por justiça. E se fizermos injustiças ao lutar por
ela, certamente não a alcançaremos. Sei que quer sua liberdade Alexis, mas
precisamos ter fé e paciência. Não faço isso só por mim, mas por você, por
sua irmã, e por toda Adaris.
— E você, Cali? Já se perguntou se vale a pena? Se vale a pena fazer isso
por mim? Por Mabel? Será que Adaris vale a pena? — não tive a intenção de
soar tão amarga. Mas saiu.
Me levanto. Será que eu pensava assim de Adaris antes de ter minha
memória apagada? Será que meu leve desdém por minha terra é antigo
e nos levou a atual situação? Já amei meu mundo alguma vez?
Imagino que nem todo mundo ama o mundo em que nasce.
Respiro fundo, olhos fechados. Passo as mãos em meus cabelos, buscando
paciência e candura. Quando finalmente olho para Cali, vejo que minhas
palavras a magoaram.
— Eu… eu não quis dizer isso. — para minha surpresa estou fazendo aquilo
que já vi alguns humanos fazerem. Estou me desculpando.
— Tudo bem, Alexis. Eu sei que você quer o bem de Adaris. Você é o que
mais me deu esperanças de lutar por mudança e não o contrário. Quero que
saiba disso.
— Você é mais corajosa, amorosa e paciente que eu, Cali. Se Guendri queria
alguém para proteger Adaris, não deveria ter me criado, deveria ter procurado
por fadas como você.
Ela me abraça de repente e eu não sei exatamente como retribuir.
E entre seus braços reparo que a cada palavra trocada com ela, percebo que
algo dentro de mim muda. Cresce. Nasce. Aparece.
Ela me talha a cada interação. Juntas descobrimos quem sou.
E o que realmente quero.
Até hoje, já aprendi muito com a pequena Caliandrei. Seu jeito suave e
altruísta ainda me é um enigma. Mas uma coisa sobre ela me é bem clara.
É por ela e por todas as outras que perderam muito em Adaris que ela luta.
Com unhas e dentes. Com tudo o que tem.
Provavelmente, eu deveria aprender isso com ela também pois as Filhas de
Guendri já falharam a todos uma vez.
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ESTRANHAS
Acordei há um tempo.
Minha cabeça ainda dói. Estou horrível, minha boca azeda e me sinto… seca.
Seca feito reserva de água paulista em meio ao outono. E por algum motivo,
não sinto parte de minha face e respiro pela boca.
Apesar da fraqueza e desconforto, estou tentando entender a situação em
que me encontro. Recostada em minha cama, silenciosamente estudo as duas
garotas a minha frente.
A modelo de passarela é Alexis. Esguia, de beleza intrigante e presença
marcante. Está recostada em meu armário, blasé.
A baixinha é Cali. Carinha fofa de adolescente que nunca se rebelou contra
os pais em pé ao lado da minha cama, me oferecendo uma bebida esquisita
dentro de um vidrinho verde com um sorriso educado.
E eu, considerando a possibilidade de estar em um de meus vívidos sonhos,
embora este seja completamente diferente de todos os outros.
Por que somente assim isso tudo faria sentido.
— E isso é uma… “poção mágica”? — pergunto, sem esconder o sarcasmo.
Rio, sem humor.
Opa, tem outra possibilidade: a de que isso é um sequestro e que estou em
cativeiro, raptada por duas garotas malucas que dizem ser… eu não consigo
nem repetir tal loucura.
— Vai te ajudar a sentir melhor. — Cali diz.
Aham. Eu respiro fundo.
Estamos em meu quarto há um tempo. Elas tagarelaram sobre um lugar
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AS FILHAS DE GUENDRI
blá, blá, blá, uma regente de não sei o quê e eu só as ouvi, fazendo cara de
paisagem. Agora estamos todas em silêncio, nos entreolhando, como em
stand off de filmes de bang bang.
— Um banho e uma aspirina vão ajudar e são, sem ofensa, mais confiáveis.
— respondo à Cali.
Alexis revira os olhos. Cali abre espaço para eu sair da cama e me arrependo
de me mover assim que começo a fazê-lo. Todas as dores agora competem
para ver qual me mata primeiro.
Com dificuldade, me dirijo ao banheiro.
Me preocupo em deixar as duas estranhas em meu apartamento, mas fora
meu video game, não tenho nada de valor. E se quisessem roubar algo, o
teriam feito enquanto eu dormia. De qualquer forma, eu preciso de um banho
imediatamente. Eu dormi com vômito no cabelo e no vestido. Perdi uma das
sapatilhas ontem, mas uma delas ainda esta em meu pé. O pé sem sapatilha
está mais encardido que a sapatilha no outro pé.
Mas que beleza.
Tranco a porta do banheiro, só para garantir. Olho no espelho e solto um
ecoante grito de espanto ao ver meu olho roxo, nariz literalmente torto e
sangue seco em volta dele.
— Desculpa… — ouço Alexis gritar em resposta.
Ela tinha me avisado que devido a cena que eu comecei em meio a festa, a
única forma de me tranquilizar foi essa. Um belo de um murrão na minha
fuça. Ela tinha se desculpado antes, mas eu não tinha visto o tamanho do
estrago.
Não tem banho nem aspirina que conserte isso, cara.
Cali jura que a tal bebida vai consertar tudo, me deixar novinha em folha.
Mas acho que menos de uma cirurgia corretiva não fará tal milagre.
Ligo o chuveiro e espero a água esquentar. Tiro o vestido e piso debaixo
d’água, sentindo dor e alívio ao mesmo tempo. Ao lembrar da privada que
abracei, me lavo mais uma vez por inteiro, esfregando com mais força, só
para garantir.
Ao terminar me sinto um pouco melhor.
Enrolada na toalha, vou até a cozinha e bebo bastante água. Mas bastante
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ESTRANHAS
água mesmo. De volta a meu quarto, minhas intrusas não parecem cansadas
de esperar.
— Vocês se importam? — indico que quero privacidade para trocar de
roupa e elas seguem até a sala, sentando-se em meu sofá.
Calça de moletom e camiseta, vou a frente de meu espelho que era de minha
avó (e muito bonito, diga-se de passagem) e desembaraço meus cachos. Antes
de voltar para as sequestradoras, tento recapitular todas as insanidades que
me foram ditas por elas desde quando acordei.
Alexis e Cali precisam de mim.
Elas tem nomes compridos e procuram por uma pessoa com um outro
nome exótico.
Eu posso ajudá-las a encontrar essa pessoa.
Que é irmã de Alexis.
Ela desapareceu há algum tempo.
Alexis não sabe dizer exatamente quanto tempo, pois tem algum tipo de
amnésia.
Até então, tudo bem. Pessoas desaparecem, infelizmente esse tipo de coisa
acontece. E se eu puder ajudar alguém a ser encontrado, será um prazer. Mas
eu não conheço essas pessoas, nunca as vi na vida, já expliquei que sou nova
nessa cidade e praticamente não conheço ninguém.
Agora, o que faz toda esta história ainda mais bizarra, é o que me disseram
depois disso.
O que as duas garotas são.
Fadas.
Elas duas são fadas.
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12
A
dor de cabeça piora quando tento computar nela essa loucura.
Fecho meus olhos e rio de nervoso. Não quero sair do meu quarto,
não quero falar com ninguém. E tentando entender tudo, á tona me
vem a memória o que descobri ontem sobre Lucas. Sua perfeita namorada e
a cara de cachorro que caiu da mudança que ele faz quando olha para ela.
Que bela forma que minha cabeça encontrou de melhorar uma manhã que
já está uma porcaria.
Me levanto, relutantemente vou até a sala. Não quero pensar em Lucas e
essa é provavelmente a melhor forma de evitar: tentando me livrar da dupla
de piradas em meu apartamento.
— Está pronta para continuar a conversa, Verena? Sente-se melhor? —
Cali me pergunta e parece preocupada com meu estado. Também pudera, eu
estou com cara de quem irritou um faixa preta de MMA ontem a noite, meu
olho roxo e nariz torto são provas disso.
Me sento na poltrona ao lado do sofá onde elas sentam lado a lado.
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VERDADES EM PEQUENAS DOSES
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VERDADES EM PEQUENAS DOSES
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VERDADES EM PEQUENAS DOSES
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Intromissões Vizinhas
E
ssa é a parte mais difícil. A parte em que explicamos tudo para os
humanos que tiveram contatos com Mabel.
É a quarta vez que conto nossa história. Quinta, se você contar a
vez em que o cara não quis ouvir e nos mandou embora. É cansativo explicar
tudo, mas é honesto.
Uma vez, Alexis disse que seria mais fácil nocautear as pessoas, trazê-las
até Igor sem que soubessem, ler suas mentes e devolvê-los a segurança de
suas vidas sem desconfiarem de nada.
Não acho que Alexis tenha sugerido isso por maldade, mas praticidade. Eu
apenas não acho isso certo. Não se constrói um mundo melhor deixando
vítimas para trás. Não se luta por liberdade promovendo violência contra
indivíduos. Não se busca a verdade contando mentiras.
Uma coisa é me machucar. Este é o preço que EU resolvi pagar. Outra coisa
é machucar outras pessoas. Então com dificuldades, convencemos pessoas a
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INTROMISSÕES VIZINHAS
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AS FILHAS DE GUENDRI
Igor, um ex-habitante de Adaris que agora mora aqui entre vocês. Ele pode
entrar na sua mente, encontrar resquícios anímicos de Mabel e rastreá-la
com isso.
Caímos em silêncio, mas posso ver que a mente de Verena está a mil por
hora.
— Olha, eu sei que parece que eu acredito nisso tudo,ou que aceito que
vasculhem minha mente com magia… mas como vou saber que vocês são
mesmo o que dizem ser? Que isso tudo não passa de uma pegadinha ou de
um truque para vocês me levarem para algum lugar e roubarem meus órgãos?
Arregalo os olhos com a pergunta. Isso é comum entre humanos? Roubar
órgãos alheios?
— Eu posso tentar te convencer. — Alexis se levanta e vira de costas. Ela
tira a jaqueta e a regata branca. Em suas costas, os dois cortes diagonais
começam a se mover e abrir. Desses cortes brotam suas asas, que tomam
forma exibindo cores vibrantes. — Isso parece mentira pra você?
Verena congela, assistindo atentamente. Nem pisca. O primeiro instinto é
sempre proteger-se do desconhecido. Ela anda para trás numa tentativa de
se distanciar.
— Não tenha medo, Verena. — encorajo ao ver quão pálida fica. Vou até
ela. — Vem, toque nelas.
— To-tocar?
— Isso. — pego em sua mão e a guio. Ela reluta mas por fim me segue.
As asas de Alexandrai são realmente muito exuberantes. Certamente
desenhadas por seu próprio pai, tão verdes e brilhantes quantos seus olhos,
reagem ao toque de Verena, agitando o ar a nossa volta.
— Gente, eu acho que vou desmaiar. — Verena diz, hipnotizada. — Meu
Deus, o que é isso? Que viagem, cara! Como isso pode ser possível? Como?
Você também tem isso? — me pergunta.
Respondo que sim com um sorriso.
— Não… isso não é possível! Eu vou coringar, meu Deus. — ela ri
histericamente. — Eu devo estar alucinando. Isso. Estou alucinando com a
bebidinha de Adaris.
Batidas na porta nos interrompem, fazendo com que nós três nos entreol-
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INTROMISSÕES VIZINHAS
hemos.
— Verena? — a masculina e abafada voz responsável pelas batidas chama lá
de fora.
— Guarde as suas… — Verena sussurra e aponta para as asas de Alexis. —
E não esquece sua blusa. — assim que Alexis termina, Verena abre a porta. —
Daniel.
— Vizinha! — ele a cumprimenta com um beijo na bochecha. — Vim ver
como você está. Nós ficamos preocupados ontem.
— Preocupados por quê?
— Bem, você apagou. O Lucas me disse que sua linda prima aqui… — ele
aponta para Alexis com a cabeça. — Teve que te carregar.
— Minha… prima? — Verena olha para nós sem entender.
Daniel vem nos cumprimentar e perguntar nossos nomes. Sua barba faz
cócegas contra meu rosto e as tatuagens em seu braço chamam minha atenção.
— Vocês moram aqui também? — ele pergunta enquanto para de frente a
Alexis. Só falta babar nela.
— Não. — Verena responde rapidamente. — Só vieram me visitar.
Ele assente, tira algo do bolso e dá a Verena.
— Meu celular! Obrigada. Tinha até esquecido que o perdi ontem.
Daniel sorri. — Também te trouxe um remédio pra ressaca. — sacode a
caixinha de comprimidos. — Mas vejo que você já está bem melhor.
— Obrigada mesmo assim. — Verena conecta o celular num cabo grudado
a parede. — Droga. — pragueja ao ligar o aparelho.
— Algo errado com o celular? — Daniel pergunta.
— É que eu esqueci que tenho que ir ao escritório hoje. Já estou atrasada.
— Trabalhar de sábado é osso. — ele comenta.
— Sim, mas hoje só tenho que buscar um vestido pra um jantar com os
sócios do meu chefe mais tarde.
— Bem, então não vou te atrasar mais. — ele se dirige a porta. — Vou dizer
para o Lucas que você sobreviveu. — vira para Alexis. — Eu vou ver você de
novo, Alexis?
Alexandrai se surpreende com a pergunta. Verena tira os olhos do celular e
olha para ele, assim como eu. Alexis apenas dá de ombros e ele sorri para ela,
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É.
Está tudo acabado mesmo.
Fadas. Fadas!
Existem.
Com asa, varinha e tudo. Bem, eu não cheguei a ver a varinha. Mas existem.
Andando por aí, entre nós. Como nós. Com jardineiras e botas de couro.
Meu Deus… o que mais não-humano será que existe em nosso meio? O que
fazem? O que querem? E mais importante…
Por que querem vir para um mundo como este?
Também não sei.
Como é que não estou mais em choque com isso? Como aceitei ajudar duas
garotas que nunca vi em minha vida que me contaram uma história insana e
nessa cidade gigante cheia de tudo que é gente louca?
E aquelas asas… se falsas, são os efeitos especiais mais bem feitos que já vi.
E ao vivo.
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CÉU E PEITO ABERTO
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CÉU E PEITO ABERTO
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Deportiva Cali
— Pode trazer a garota hoje á noite. — diz Igor. — Tenho apenas um show e
assim que terminar posso atendê-la. Avise a moça.
— Alexis ficou com o número de contato de Verena. — aviso a Igor. — Ela
fará a ligação assim que voltar.
Estamos sentados em sua varanda que fica ao lado de sua pequena casa de
shows, que a esta hora da tarde está vazia. Sem aquele barulho que treme as
paredes todas as sextas e sábados á noite, sua casa parece um lugar diferente.
Mesmo com Igor instalando isoladores de som, ás vezes ainda é possível
sentir a construção sacudir um pouco nas noites mais badaladas. De qualquer
forma, gosto de sentar aqui com ele e tomar sol. Guendri definitivamente
deveria ter criado um desses para nós em Adaris.
Esse calorzinho é delicioso.
— Não preciso usar minha telepatia para saber que tem algo que não sai de
sua mente. — Igor dá um trago em seu cigarro. — Ande, conte-me: quem é?
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DEPORTIVA CALI
contagiante.
— Quero muito vê-lo novamente. — a verdade sai antes que eu possa
segurá-la. — Não faço ideia de como. Não sei nada sobre ele. Mas tenho essa
vontade, cresce todo dia e nem sei de onde vem.
Igor gargalha.
— Não há mundo ou criatura que saiba. Aqui chamam de “amor”… — Igor
pega um novo cigarro. — Pra sua sorte, você conhece alguém que magicamente
pode encontrá-lo.
Baixei minhas guardas mágicas mentais para que Igor pudesse encontrar
Flávio através de minha mente, do mesmo jeito que estamos fazendo para
encontrar a Regente de Adaris.
E aqui estou, numa parte da cidade de São Paulo que nunca estive antes
e bem diferente de outras partes que já conheci. É um pequeno parque no
meio de casebres com frontes e derredores simples.
Através de uma fina malha de metal enferrujado, assisto Flávio jogar uma
bola em direção a um poste com um círculo no topo. Ele corre para lá e para
cá, controlando-a com batidas rápidas contra o chão. Quando ele pula, coloca
a bola dentro do círculo e a espera cair, recuperando-a e fazendo tudo de
novo. Seus movimentos são precisos, seu corpo é ágil e brilha quando o sol
bate contra o suor de sua pele.
Gosto de assisti-lo. Me faz sorrir.
Devagar, passo a cerca de metal e entro na quadra. Percebo que ele está
sozinho e que eu estou nervosa. Algo dentro de mim quer se aproximar dele
mas não sei como.
Por Guendri. Salvar meu mundo da mais completa ruína arriscando minha
vida parece ser mais fácil que falar com um garoto humano.
Enquanto debato como chegar nele, o destino é mais rápido que eu: sua
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O Vestido
E
sse vestido é maravilhoso!
Vermelho, longo, estilo sereia. Não tem mangas, apenas duas tiras
que abraçam meus ombros justamente e que estão conectadas ao
vestido pelo decote em formato de coração. Está me dando cintura e quadris
que nem eu lembrava que tinha.
Vestidos de gala são sensacionais.
Sigo o conselho que mais parecia uma ordem de Lena e coloco meu cabelo
em um coque lateral, com algumas mechas ao redor de meu rosto. Segui um
tutorial de Youtube para fazer a maquiagem e mesmo ignorando a maioria
dos passos complicados, não ficou de todo o mal.
De volta aos sapatos doloridos, decido praticar um pouco mais o andar.
Após alguns momentos, confiro meu celular para ver que horas são. Nenhuma
ligação perdida, apenas uma mensagem de texto de Flávio perguntando como
foi ontem a noite. Resolvo responder depois por não ter tempo agora, nem
vontade de lembrar.
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O VESTIDO
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O VESTIDO
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fique a vontade para pedir o que quiser. Estou ás suas ordens. — Lazaro tenta
pegar minha mão novamente, mas antes que eu possa responder qualquer
coisa, Bauer se coloca a minha frente e agradece em meu lugar.
Contornamos algumas mesas seguindo a Lazaro. Eu nem ligo para o que
Bauer fez pois quando chegamos ao outro lado do salão, o dono do Altar abre
uma porta de vidro para o terraço, e eu reparo que não estou preparada para
o que vejo.
Eu não acredito que Bauer fez isso…
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Águas Rasas
D
e volta a Adaris, retiro minhas roupas e as escondo sob
uma das grandes pedras que rodeiam meu cativeiro. Meus
olhos rapidamente se ajustam à escuridão, meus passos seguem
hesitantes o já conhecido caminho de minha prisão.
Posso senti-lo se aproximar.
Aprendendo sobre quem sou não vem apenas do que Cali me conta. Aos
poucos descubro também como meu corpo funciona. Uma de minhas
habilidades é o que chamo de absorver a presença de quem conheço. Minha
teoria é de que quanto mais significativa minha conexão com a pessoa, mais
posso pressentir sua presença. Não preciso vê-la para saber que está perto.
Um dia espero encontrar alguém que saiba me dizer se estou certa ou errada.
Não acontece com todos que conheço, mas é o que acontece com Garou.
Sua pré-presença tem um efeito estranho em mim do qual tenho dificuldades
em decifrar o que significa.
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Não suporto mais o frio após ter descoberto o que é o calor. A ira que
isso me causa literalmente me esquenta. Numa tentativa de acalmar meu
corpo, mergulho em minha pequena lagoa gélida. O negro e sedoso líquido
me engole por inteiro, e o único som que se pode ouvir são os de meus braços
e pernas ao mover-me contra a coesão das águas.
Garou está aqui.
Ele murmura algo que não ouço direito. Algo numa língua antiga da qual
não fui exposta ainda. Mas mesmo sem entendê-lo ás vezes, sempre sei o que
ele quer de mim.
Mantendo apenas minha cabeça fora da água, viro-me de frente a ele.
Não sinto nada por Garou além da raiva que me consome em brasa toda
vez que perguntas sobre o por quê me mantém prisioneira surgem em minha
cabeça.
Ele me enoja. Mas não posso demonstrar.
O fito na esperança de que meu olhar transmita o que meu corpo não sente.
Não sei se isso é inteligente, mas tento o melhor que posso. Atuar não é meu
forte e meu receio é de que não o faço perfeitamente, já que fica mais e mais
difícil de voltar aqui depois de saber o que sei, ver o que vejo.
Enquanto eu agir como antes, ele não desconfiará de nada do que faço com
Cali.
Há algo de novo nele, de diferente. Desde a primeira vez em que o vi,
Garou mudou e ainda muda. A cada vez que entra em minha presença parece
maior, mais forte, mais assustador. Seu corpo parece passar por uma estranha
evolução, suas medidas já estão além do normal de outros elfos, me fazendo
questionar se ele é mesmo um deles.
No centro de seu largo peitoral, seu mediastino está quase visível, veias
largas cintilantes brilham como lava, algo que nunca percebi antes.
Sua feição de repente muda. Deve ter visto algo diferente em minha
expressão. Droga. Meu rosto me trai, dedura meus pensamentos. Tento
controlar minha face, limpar minha mente. Parecer o mais vazia possível.
Do jeito que ele gosta.
Sem o que sei pairando por meus pensamentos, sem minha sede de liberdade
que me faz lutar e seguir em frente, o que sobra em mim é o silencioso
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ÁGUAS RASAS
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AS FILHAS DE GUENDRI
Aquiesço, sendo isso parte de meu ato de traição. Tudo o que sei sobre nós,
coloco de lado. Agora eu preciso que ele me queira. Quero que quando eu o
destronar, seu desejo se transformem em decepção. Olho no olho, quero que
reconheça minha face em seu momento mais alto de prazer como também
seu momento mais baixo de derrota. Somente a sua morte será meu prazer.
E ninguém vai roubar de mim esse momento.
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P
aralisada pela beleza da vista, vou o mais próximo que consigo da
beirada da imensa sacada e quase perco meu ar…
É exatamente a vista da foto que tenho como fundo de tela do meu
computador do escritório!
— Surpresa. — Bauer anuncia timidamente ao juntar-se a mim.
E como uma criança que acabou de ganhar aquele presente por qual esperou
tanto, ajo impulsivamente e dou um apertado abraço em quem me presenteou,
surpreendendo-o.
— Foi do topo deste prédio que tiraram aquela foto que colocou no
seu computador. — Bauer certamente está desconcertado com minha
demonstração de gratidão. Ele não me abraça de volta mas eu não me importo.
— Achei que gostaria de ver o lugar em pessoa. — explica.
— Nossa, obrigada. Isso é lindo! — Bauer sabe do meu amor por essa
cidade, em especial por aquela foto pois lembro-me quando perguntou sobre
meu fundo de tela no escritório.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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AS FILHAS DE GUENDRI
olhares coléricos a ele. Apesar disso, eu não mais vejo o patrão mal-humorado
de sempre, mas vejo o Bauer que conheci ontem á noite, menos estressado e
deveras comunicativo.
Estou gostando de ouvir as histórias sobre ele. Notei que nunca tinha
parado para pensar como ele é fora do escritório, de onde veio ou aonde
esteve. Eu sei pouco sobre Bauer e nunca tive curiosidade de saber mais.
Bom, provavelmente para não quebrar aquela barreira do profissionalismo,
não criar nenhum tipo de situação que possa turvá-la.
Tenho para mim que é melhor assim.
Mas agora sei de algumas dessas histórias sobre quando por exemplo, os
três viajaram pela América do Sul. Ou sobre o acidente de carro de corrida
que Bauer sofreu no velocímetro de São Paulo, sendo correr um de seus
hobbies favoritos.
E também aprendo sobre como conheceu sua ex namorada: a defendendo-a
contra assaltantes.
— Assaltantes? Parece perigoso. — observo. Sei que Bauer tem uma arma
no escritório, mas nunca o vi usá-la.
— Não foi bem assim, Téo tem a tendência de exagerar as coisas. — Bauer
responde e muda de assunto. Algo me diz que ele não quer falar dela.
Antes que mais informações sobre a dita cuja apareçam, um novo assunto
surge e um novo prato chega. Apesar da multitude de talheres e copos
diferentes, eu tento copiá-los a cada entrada, cinco pratos ao todo. A comida
é deliciosa, leve ao paladar e desmancha na boca.
Quando estou para dar aquela baita bocanhada na minha comida, sinto
minha bolsa tremer. Meu celular, recebendo uma ligação.
— Com licença. — me levanto e eles se levantam também, me fazendo
achar o cavalheirismo engraçado.
Demoro um pouco para achar o banheiro mas quando acho, atendo.
— Verena? É a Alexis.
A fada.
— Pode falar.
— Igor pode nos atender hoje. Você pode nos encontrar? — ouço a
esperança em sua voz. Me olho no espelho do banheiro, observando minha
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A VISTA MAIS LINDA
leve maquiagem ainda intacta. Não sei o que responder. Não posso deixá-la
na mão depois de ter-lhe dito que ajudaria. — Verena? — indaga após meu
silêncio.
— Aonde quer que eu te encontre? — respondo sem muita convicção. É
melhor fazer isso logo, me livrar dessas duas e por um fim nisso. Verão
que não tenho nada a ver com fadas, nem Adaris ou Mabelai, seja lá quem
ela for ou onde estiver. Me deixarão em paz e caso não deixem, mudo de
apartamento, ou de cidade. Estou precisando de novos vizinhos mesmo. Não
é uma má ideia.
— Na Rua Augusta. O lugar se chama “O Lírio”. É a boate dele. Estarei lá
hoje a noite. Me encontre na porta, pode ser?
Meu Deus, que pepino fui arrumar.
— Pode. Te vejo lá. — faço uma nota mental do nome do lugar. A Augusta é
próxima de onde trabalho e fico aliviada que nos encontraremos em um local
movimentado, menos possibilidades de ser sequestrada e ter meus órgãos
roubados.
De volta a mesa, jantares terminados, recebemos nossas sobremesas assim
que chego. Bauer coloca seu braço em volta de minha cadeira e aproxima seu
rosto de mim.
— Está tudo bem, Morales? — pergunta num sussurro a meu ouvido,
provavelmente se referindo a minha ligação. Xereta.
— Tudo certo. Uma amiga ligou querendo marcar de sair hoje á noite e eu
aceitei. — Bebo meu vinho, querendo terminar a inquisição e afastá-lo.
Bauer estreita seus olhos e me encara por um segundo. Eu encaro de volta,
ainda bebericando minha taça. E assim ficamos trocando olhares até que Téo
quebra nosso pequeno momento.
— Verena, se estiver pensando em mudar-se de São Paulo, considere Porto
Alegre. Mais calma, mais vazia, mais limpa. — Dimitri lança um olhar
fulminante à Téo, que sorri cinicamente em resposta. — E eu sou bem mais
legal que seu atual chefe. E seja lá o que ele estiver te pagando, eu dobro.
Eita. Sorrio com a proposta de Téo que eu não sabia dizer se a fez de verdade
ou para provocar Bauer. Mas caso fadas continuem me perseguindo, partiu
Porto Alegre.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Agora quem troca olhares são Bauer e Téo enquanto eu só bebo mais vinho.
Os dois tem esse ar brincalhão que deixou a mesa mais divertida, o que fez a
noite passar em um piscar de olhos.
À frente do prédio me despeço dos dois sócios de Bauer. Téo me dá um
abraço demorado enquanto encara Bauer, depositando um beijo em minha
bochecha. Afonso apenas me dá um breve aperto de mão e antes de partir me
lança um olhar que me dá um frio na espinha. Posso jurar que ele não gostou
muito de mim.
Que seja, não dá para agradar todo mundo.
— Vem. — direciona Bauer, com um gesto. — Eu te levo pra casa.
— Obrigada, mas eu não estou indo pra casa.
Frente a frente e sozinhos, nos encaramos.
— Ah, é? — Bauer cruza os braços — E aonde pretende ir?
— Parece curioso. — provoco, colocando minhas mãos nas minhas costas.
— Não, apenas pareço querer te dar uma carona. — retruca. — Pra onde?
— Não se preocupe comigo, Bauer.
— Morales. — ele fecha os olhos, respira fundo e os abre novamente. —
Por mais que goste dessa cidade, caso não saiba ela é bem perigosa. E antes
que eu precise contratar uma nova secretária, um processo deveras irritante,
deixa de ser teimosa e me diz. Aonde. Devo. Te. Levar. — ele enuncia cada
palavra e eu sorrio com sua irritação.
É Bauer, não é tão divertido ser provocado, uh?
O valet aparece dirigindo uma Mercedes Classe A, pára ao nosso lado e dá a
chave a Bauer que lhe dá uma gorjeta, um obrigado e um boa noite.
— O Mercedes não vai me convencer. — brinco. Aliás, estou brincando
demais com ele e ele comigo. Resultado do whiskey dele e meu vinho. Pelo
bem do nosso profissionalismo, não deveríamos brincar um com o outro
assim. Mas confesso, é divertido.
— Que bom, pois não o comprei pra te convencer. — rebate Bauer, mãos
nos bolsos. — Apesar de já ter convencido outras mulheres. — um sorriso
aparece em um lado de seus lábios. Reviro meu olhos. Que convencido. — É
impressão minha ou está com medo de entrar em meu carro, Morales? —
Bauer dá dois passos em minha direção, seus ombros num perfeito quadrado
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A
s luzes neon brilham em silêncio, atraindo a mim e guiando todas
as pessoas que aqui se encontram ao tipo de noite que procuram.
A Rua Augusta tem de tudo.
Ando por ela a caminho do Lírio em um dos vestidos que as humanas usam
para dançar em noites assim. Elas sabem se vestir e eu gosto de copiá-las.
Verde escuro e justo, de alças e sem frescuras. Assim me misturo aos locais
perfeitamente.
Quando chego na porta do Lírio vejo Verena conversando com a hostess
Tiffany, que lhe promete uma noite e tanto.
— Já me convenceu. — digo, surpreendendo as duas.
— Alexis! — Tiffany, assim como Igor, é uma drag queen famosa de São
Paulo. E assim como Igor, ela também não é humana. Quando me vê me
cumprimenta com dois beijos e um abraço.
— Essa é a Verena, Tiffany. — a apresento formalmente e algo parece
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AS FILHAS DE GUENDRI
clicar em sua mente, provavelmente entendendo que Verena é mais uma das
humanas que trazíamos ultimamente.
— Ah, por isso ela perguntou por Igor. — Tiffany disse mais para si do que
para nós. — Prazer em conhecê-la, Verena. — seu sorriso brilha tanto quanto
seus paetês. — Enfim meninas, a noite é uma criança e eu preciso trabalhar.
Divirtam-se!
Tiffany graciosamente se despede e nos deixa para entregar flyers promo-
cionais do Lírio á outras pessoas.
Fico sozinha com Verena.
Por um momento me sinto insegura com ela, percebendo que Cali fora
em grande parte um conector entre nós esta manhã. A personalidade aberta
da pequena fada nos conduziu a pacientemente ouvir uma a outra. Agora,
estamos em silêncio, apenas esperando na fila para entrar.
— Gostei do seu vestido. — Verena finalmente diz alguma coisa.
— Igor me deu este vestido algum tempo atrás. Gosto de roupas humanas.
—respondo, monótona. — Seu vestido também é bonito.
— Nem queira saber onde achei esse aqui. — ela aponta para o vestido nela
e revira os olhos. — Eu não sou muito de usar vestidos, sabe. — assenti e após
outro silêncio estranho, ela começa a falar de novo. — Como você conheceu
Igor?
— Através da Cali. Ela o conheceu primeiro quando chegou no mundo
humano e acabamos virando bons amigos. Você vai gostar dele.
A fila começa a andar e logo é nossa vez de entrar. Após mostrar minha
identidade, Verena mostra a dela. Antes que perguntasse algo, sussurro que é
falsa e que não é difícil conseguir uma.
O Lírio está mais ou menos cheio, musica eletrônica alta e todo tipo de
pessoa entrando. Uma pista quadriculada no meio, uma cabine de DJ a
esquerda, um palco á frente e um bar a direita.
E toda vez que entro nesse lugar, meu humor melhora cem por cento.
Pareço surpreender Verena ao pegá-la pela mão e guiá-la para o bar.
— Quero te dar meu veneno humano favorito como forma de agradeci-
mento. — explico, contendo um sorriso.
O bartender mal me vê e já sabe o que preparar. Em momentos, coloca a
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O LÍRIO DA RUA AUGUSTA
111
AS FILHAS DE GUENDRI
lenda. Sou apenas mais uma pessoa querendo seguir o som e ver onde vai
dar.
Há beleza intrínseca nisso.
— Alexis… — Verena me cutuca uma, duas, três vezes. Abro os olhos saindo
de meu transe. — Suas… asas estão…
Verena parece assustada e faz sinais confusos, apontando para minhas
costas. No meio da excitação, baixei minhas guardas e literalmente, quase
coloquei minhas asinhas para fora do vestido de alças.
Constrangida, volto à nossa mesa e Verena me segue.
— Ei, não fique assim. Acontece. — ela tenta me consolar.
— Acontece? — pergunto, desacreditando.
— É, acontece. Sabe por que não gosto de roupas curtas assim? Uma vez eu
estava dançando e te juro, paguei o famoso “peitinho” e nem tinha reparado.
Dá vergonha, mas acontece. Nada mais humano que pagar peitinho, calcinha,
asinha… — sem querer eu rio. Sinto-me grata pelo senso de humor de Verena
e por ela tentar me animar. — E você dança muito bem! Onde aprendeu?
— Não faço ideia. — dou de ombros, honestamente.
— Bem, de qualquer forma, só tem cara lindo babando em você.
E eu não sei por quê isso acontece. Cali e Igor dizem a mesma coisa.
Outros acham isso admirável, eu não. Por ser desejável, fui guardada por um
megalomaníaco longe de tudo como um brinquedo pessoal que só ele pode
tocar.
Não quero saber de caras, nem de garotas, nem de ninguém dessa forma.
Então, mudo de assunto.
— Você sai bastante?
— Não, eu trabalho muito. — Verena se justifica. — E também não tenho
muitos amigos pra sair assim.
— E aquelas pessoas de ontem á noite?
— Bem… eu meio que acabei de conhecê-los. Eu sou nova aqui em São
Paulo. Cheguei há uns cinco meses vindo do interior.
— Eu amo essa cidade. Aliás, esse mundo. — não escondo isso de ninguém.
Verena concorda. Nossa conversa continua fluindo naturalmente.
— Sabe Alexis, quando falamos de sua família hoje mais cedo, vi como
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O LÍRIO DA RUA AUGUSTA
113
AS FILHAS DE GUENDRI
Me calo. Não gosto de falar de Cali dessa forma, como uma criança
desatenta pois é a última coisa que ela é. Mas as vezes me pego me
preocupando com seu bem-estar.
— Posso perguntar como é onde você fica? — Verena é cuidadosa com suas
palavras.
— É frio. Escuro. Silencioso. Uma alcova no meio do nada. Tem um lago.
Garou gosta de me assistir nadar. Aqui é o completo oposto de onde vivo.
— E como você está… digo, em relação ao descobrir o que o cara fez com
você… imagino que desmemoriada, você nem deveria saber muito sobre ele…
É uma pergunta interessante da qual não ouço muito. Existem detalhes da
minha existência naquele lugar que serão esquecidos eternamente por mim
assim que eu sair de lá. Não vou levar nenhum pedaço daquela masmorra
comigo quando estiver completamente livre. Não haverá espaço, não fará
sentido.
— Eu não sentia nada por ele. O conheci e ele me fez crer que o mundo era
ele. E sair dali, falar ou fazer qualquer coisa que não fosse de seu agrado era
um erro crasso. Imagino que Guendri me criou para obedecer, pois isso o
fiz sem questionar. — confesso com uma certa vergonha, já que cedi e me
concedi a um completo crápula. Eu deveria ter sido melhor que isso. Nasci
para lutar e não ofereci resistência nenhuma a quem devia.
— Ei… não é sua culpa que um megalomaníaco fez. Você foi a vitima. Não
sei quais são as leis de Adaris mas aqui neste mundo esse cara iria direto pra
cadeia. — Verena se apressa a dizer assim que reconhece em meu rosto a
vergonha do que não é meu erro, mas não consigo não sentir como se eu não
tivesse algum tipo de culpa.
O assunto pesa o ar que era para estar leve. Tento retomar o clima de antes.
— Não se preocupe, assim que encontrarmos Mabelai, serei livre. E com sua
ajuda, será em breve.
— E onde você acha que ela pode estar? Ou por que não voltou para Adaris
por si só?
Dou de ombros. — Ás vezes acho que está por ai como eu, sem lembrar
de quem é ou de onde é. Outras vezes penso que não quer voltar, não quer
a responsabilidade. Que como eu, não saberia como reger Adaris. Mas só a
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O LÍRIO DA RUA AUGUSTA
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20
O
DJ termina seu set, a pista cheia bate palmas quando ele anuncia
que o show vai começar.
— E agora com vocês, Madonna!
— É o Igor. — Alexis cochicha em minha orelha.
No palco, uma drag queen vestida de rosa como Madonna em “Material Girl”
interpreta a música ao lado de dois musculosos homens que a carregam para
lá e para cá. Todos na plateia acompanham, cantando a letra empolgadamente.
Pela primeira vez vejo Alexis cantando junto. Imagino que já deva ter visto o
pequeno show algumas vezes.
Após quatro outras músicas o set termina e Igor deixa o palco após
cordialmente agradecer os aplausos da plateia. Alexis me arrasta pelo braço
até os bastidores, sem precisar convencer o cara da porta a nos deixar passar.
Este também já a conhece.
Passamos pelo pequeno corredor que conecta a porta, o palco e um quarto
que serve de camarim. Nele tem três espelhos contornados por luzes e dezenas
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ABRA SUA MENTE
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AS FILHAS DE GUENDRI
meus pensamentos.
— Desculpa a invasão de privacidade Verena, mas ás vezes não posso evitar.
Obviamente ainda não acredito cem por cento, mas não peço provas para
não parecer rude.
— Não é rude pedir que eu prove minhas habilidades, Verena.
— Bem, acho que agora nem preciso mais pedir. — concluo, impressionada.
Igor explica que ao darmos as mãos, abro mais portas para que tenha mais
acesso á partes mais profundas em minha mente. O papel e caneta a sua frente
são para anotar o que quer que veja.
Alexis, que está sentada a meu lado, coloca sua mão sobre a minha.
— Não tenha medo, Verena. Eu prometo que nada ruim acontecerá. Estarei
aqui o tempo todo.
— Enquanto posso ouvir pensamentos mais a superfície de sua mente,
vou precisar que você se concentre em alguns pensamentos do seu passado,
começando pela infância. E assim continuaremos, passando por épocas
diferentes. Acredite é mais fácil do que parece. Até encontrarmos resquícios
de Mabelai e assim tentarmos localizá-la do passado no agora. — ele sorri
delicadamente.
É pensamento demais. Mas é melhor pensar aqui agora do que pensar para
fazer o vestibular da faculdade, que como parte do acordo com elas, é o desejo
que me concederão.
— Espera. — ainda tenho perguntas. — Você já encontrou algo sobre
Mabelai? Digo, na mente das pessoas que Alexis trouxe aqui? Como sabe por
quem estão procurando?
— Bem… eu nunca a vi pessoalmente. Não acho que ninguém em Adaris
as viram, apenas ouviram falar das Filhas. O que até umas semanas atrás me
era mais lenda que verdade. Quanto a quem procuramos, sabemos de uma.
Mas tenho pra mim que Guendri possa ter criado duas, como também pode
ter criado dez. — Igor dá de ombros. — Só o que sei mesmo é que Guendri
quis dar um tempo de Adaris e as criou, treinou e daí resolveu desaparecer.
Grande criador o nosso! — ele zomba. — Seu grande plano falhou assim que
ele sumiu. Ou antes. Honestamente, não sei direito, pois sai assim que a nova
“administração” tomou conta do negócio.
118
ABRA SUA MENTE
Igor cruza os braços. Posso ver em seu rosto que só de relembrar a história
já fica mais cansado do que com o show.
— Não quis ficar com Garou lá? Mas você não é como ele?
— Além de sermos da mesma espécie… não, definitivamente não sou como
ele. Expulsou vários outros, alguns vieram para o mundo humano, uns
foram para outros mundos. Abri o Lírio com a ajuda de um outro humano.
Meu verdadeiro ganha-pão. Faço os shows de Madonna por quê me divirto
imensamente com a música humana. — Igor me oferece algo para beber, mas
nego. Após sair para buscar uma água, volta com um copo cheio e continua a
explicar. — Temos ideia da aparência de Mabel. Cabelos longos, vermelhos,
pele clara. Vagamente a vi na mente da última pessoa que Alexis trouxe aqui.
— lê minha mente novamente e já vai respondendo. — Ah, não me pergunte
por que ela é fisicamente diferente de Alexis, não sei o que Guendri pretendia.
— E mesmo assim não conseguiram encontrá-la, já que a viram na mente
de Jaqueline? Viram o que mais e na mente de mais quem?
Quero entender como isso funciona! Como que entre milhões de pessoas,
Alexis, Cali e Igor especificamente sabem quem pode ou não ter encontrado
Mabel?
Igor lança um olhar afiado a Alexis e curva a cabeça sarcasticamente, vendo
que a regra de anonimidade fora quebrada, já que eu sabia o nome da última
voluntária.
— Sinto muito Verena, mas não podemos revelar o nome de todas as pessoas
envolvidas. Já quebramos as regras ao te dizer o nome de Jaqueline. É melhor
mantermos todas as identidades em segredo.
Me indigno. A ideia de que seu nome está numa suposta lista de pessoas
que encontraram seres de outros mundos é muito estranha. Me sinto como a
CIA/FBI que manda seus agentes atrás de pessoas que supostamente foram
abduzidas por aliens.
Será que existe uma agência brasileira para aqueles que encontram fadas?
Curupiras? Sacis? Chupacabras?
Como é que eu não vou ficar curiosa para saber quem sabe de mim, da
minha infância ou o que possa ter ou não ocorrido nela? Será que também
sabiam sobre meus pais?
119
AS FILHAS DE GUENDRI
Ou será que Igor poderia, não sei, talvez ver minhas memórias sobre eles?
Alguma imagem guardada em meu subconsciente da qual não tenho acesso
da forma convencional?
Nunca tive muito interesse em saber sobre aqueles que me abandonaram
friamente mas uma oportunidade única surge aqui.
— Então você pode ver qualquer pessoa desaparecida em minhas memórias?
— estar em listas de estranhos é péssimo sim, mas no momento tenho interesse
em saber o que pode ser encontrado em minha mente sobre meus pais.
Igor assente lentamente. Alexis parece não saber aonde quero chegar.
Esclarecendo meus pensamentos que neste momento estão a mil por hora:
não, eu não acredito cem por cento na existência de Adaris ou em fadas, elfos
leitores de mentes, Regentes de magia e afins, apesar do que ocorre.
Aliás, apenas estou aqui por que bebi aquele troço e acabei dando esperanças
a quem não devia. E também estou testando meu lado aventureiro, saindo
da minha zona de conforto, atentando contra a loucura para ter algumas
histórias para contar. “Meu, teve uma vez que eu fui num cara que jurava que
podia ler minha mente… mó doideira.” Foi para isso que vim aqui, para isso me
mudei para São Paulo. Pela aventura! E por mais maluco que isso aqui seja,
ainda parece mais interessante que os vários nadas que eu já fiz na minha vida
até agora, desde… desde sempre.
Na melhor das hipóteses, formo uma nova amizade ou três. Na pior, volto
a estaca zero e não servindo como compasso para encontrar uma fada, eles
me deixam em paz e partem para a próxima pessoa.
Sei que existem mais possibilidades, mas não tenho tempo de contar todas
elas. A hora é agora e para falar a verdade, não quero estender essa baboseira
mais que o necessário.
— Posso pedir algo em troca? Digo, mais alguma coisa? — indago. Em
silêncio, continuam me ouvindo. — Quero saber o que pode encontrar aqui
dentro. — aponto para minha cabeça. — Sobre meus pais. Qualquer coisa.
Pode ser?
Não que eu vá acreditar de cara. Mas no caso de encontrarem Mabel no
mundo real, a possibilidade do que ele disser sobre meus pais ser verdade
aumenta significantemente.
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ABRA SUA MENTE
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21
Milissegundo
V
erena fecha seus olhos e dá sua mão á Igor. Este prepara-se para
escrever, papel e caneta á postos.
E eu… apenas espero. E assim que a sessão acabar e Verena estiver
inconsciente, eu a levo para sua casa. Como com todos os outros voluntários.
Os dois agora se encontram em um transe e minha curiosidade sempre
atiça nessas horas. Tento imaginar o que Igor vê na cabeça das pessoas. Deve
ser um lugar bem insano a cabeça de outrem. Com o pouco de memórias que
tenho, sei que a minha é.
Verena está imóvel, parece uma estátua de cera. Nem parece respirar.
Minha paciência é testada durante essas sessões. Duram de trinta minutos
a uma hora, e como não gosto de quebrar promessas, fico ao lado de Verena.
Mas uns cinco minutinhos longe não farão diferença. Vou até o pequeno
quarto que Igor usa como escritório, onde mantém papéis relacionados ao
Lírio.
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MILISSEGUNDO
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AS FILHAS DE GUENDRI
Sabe quando você dorme de noite e acorda de manhã, de forma que oito horas
de sua vida se passaram no que pareceu mais um piscar de olhos?
É exatamente isso que acaba de acontecer comigo.
Assim que fecho meus olhos, já sou obrigada a base de violentos chacoalhões
a abri-los novamente.
O faço com certa dificuldade.
— Verena! VE-RE-NA!
A voz, ou melhor dizendo, os gritos de Alexis invadem meus ouvidos e me
assustam. Não entendo por que ela grita nem por que me chacoalha. A lanço
um olhar confuso, vendo confusão também em sua face.
De início não entendo as coisas que diz, como se o português me tivesse
escapado. Também não entendo o que vejo quando olho para Igor.
A sala se torna fria, minha visão um pouco turva. Estou trêmula, o ar
rarefeito dificulta minha respiração.
Tudo está em câmera lenta.
Há algo de errado. Muito errado.
— Verena… o que foi que você fez?
Como assim o que fiz? Que tipo de pergunta é essa?
Saindo aos poucos de meu estupor, consigo ouvir claramente Alexis e
entender o pânico em sua voz.
A nossa frente está Igor, líquido verde e espesso lhe escorrendo pelos
ouvidos, nariz e olhos. Parece inconsciente, jogado pesadamente sobre sua
cadeira. Entro em pânico junto à Alexis que desesperadamente tenta acordá-
lo. Me levanto sem saber exatamente o que fazer.
Desespero se alastra pela sala como fogo em incêndio.
Com a mente ainda turbulenta, minha primeira ideia foi oferecer chamar
uma ambulância.
Ela me impede.
— Verena, ele não é… hospital não vai ajudar! — ela responde.
Bem, com certeza ficariam curiosos em relação a natureza do líquido verde.
Certamente se tornaria um grande enigma médico. Mas minha cabeça em
alarde não consegue pensar em mais nada. Ver Igor daquele jeito está me
deixando nauseada. Sinto que vou vomitar.
124
MILISSEGUNDO
— Alexis, o que aconteceu? — minha voz é fraca. — Foi tudo tão rápido!
Eu apenas pisquei, não sei como…
— Apenas piscou? — ela me olha incrédula. — Verena… estamos aqui há
cinco horas.
CINCO HORAS!? Como eu nem percebi? Há quanto tempo Igor está
sangrando, se é que isso é sangue?
— Temos que ajudá-lo, tenho que buscar Cali. — conclui. — Talvez ela
possa fazer algo. Preciso voltar para Adaris imediatamente.
Alexis pega o papel em que Igor escreveu e o guarda no bolso antes que eu
possa ver o que está escrito. Em uma demonstração impressionante de força,
ela pega Igor que é provavelmente três vezes mais pesado que ela e o coloca
sobre seu ombro, levando-o até uma cama num quarto ao lado.
— O que você quer que eu faça? — ofereço, tentando conter minhas próprias
lágrimas e confusão no calor do momento.
O olhar que Alexis me lança é impreciso, como se tentasse entender algo
sobre o que vê: eu. Parece me julgar. Sem querer, isso me machuca. Eu não
sei o que aconteceu e não tenho certeza se ela sabe disso, mas gostaria que
soubesse. Só ela viu o que aconteceu e não entendo por quê parece me culpar.
— Vá para casa, Verena. — Alexis ordena friamente. — Eu cuido disso.
— Mas, Alexis… — insisto.
— Por favor! — ela fecha os olhos, impaciente. — Eu preciso ir agora, antes
que seja tarde demais. — Alexis passa a mão pelos cabelos com força. — Isso
nunca aconteceu antes… — murmura, passando por mim e caminhando em
direção a porta com passos firmes e rápidos.
A sigo até a saída do apartamento e no portão dos fundos por onde entramos,
abro a boca para falar algo. Mas Alexis nem tenta me ouvir, apenas tranca
o pequeno portão assim que saio e corre escada á cima para dentro do
apartamento.
No limite de meu próprio mal estar e estresse, vomito na rua, o que só faz
minha barriga e cabeça doerem mais.
Sozinha, olho meu celular. São quase seis da manhã, já posso ver o sol
nascendo, suas primeiras luzes alcançando as partes mais escuras do beco no
qual me encontro. Algumas pessoas andam calmamente, ainda vestidas em
125
AS FILHAS DE GUENDRI
seus trajes de balada, a procura de modos de voltar para suas casas ou café da
manhã.
Eu aciono um uber e o espero desolada, ruminando dentro de minha cabeça
tudo o que aconteceu, de novo e de novo. Tento fazer sentido do que se passou.
Nem senti Igor dentro de minha mente, e de todos os cenários que imaginei
como consequência da decisão de ajudá-los, machucar alguém não foi um
deles.
E Alexis me culpara por isso, ao menos momentaneamente.
Mas eu não fiz nada…
Estou cansada. Mental e fisicamente drenada. Tive um longo dia e noite.
Quero ir para casa, dividida entre tentar entender o que aconteceu ou esquecer
completamente que estive aqui com estas pessoas.
Mas algo me diz que nenhuma das duas opções será tão fácil assim.
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Essências E Discordâncias
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AS FILHAS DE GUENDRI
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ESSÊNCIAS E DISCORDÂNCIAS
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AS FILHAS DE GUENDRI
Meu olhar vazio mira o nada escuro a minha frente. Minha solidão, minha
única companhia.
Tento entender o que aconteceu com Igor.
Ele lia a mente dela e tudo ia como sempre até que… começou a agonizar e
afogar-se em seu próprio sangue verde-escuro.
Me espanto quando lembro da cena. Como pode ser culpa de Verena se ela
não fez nada? Estava imóvel, nem notou quando Igor começou a passar mal.
Tive que arrancá-la de seu transe.
Após levar Cali até Igor, voltei para meu cativeiro. Despi-me e antes de
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ESSÊNCIAS E DISCORDÂNCIAS
entrar no lago, li o papel em que Igor escreveu. Não faz nenhum sentido.
Normalmente suas anotações são claras, precisas. Com Jaqueline, anotara
as características físicas de Mabel. Mas nesse papel deixou apenas um
emaranhado de rabiscos difíceis de ler.
Desistindo de tentar entender, escondi a folha no bolso da minha calça
humana e a coloquei sob a pedra de sempre.
Sem sinal de Garou nem de Cali por um tempo, minha mente começa a dar
voltas no mesmo lugar.
É difícil saber minutos, horas ou dias aqui. Nada muda. A escuridão é
sempre a mesma. Entediada, deito-me de lado no chão seco, um braço sobre
minha barriga, outro estendido a minha frente.
Não há nada para fazer, ninguém com quem falar. Meu tédio parece brincar
cruelmente com minha imaginação pois por um momento, acho ter visto
meu poder em forma de uma cristalina poeira se expressar na palma de minha
mão, fazendo-a formigar.
Eu jamais fiz uso do meu poder.
Olho novamente, esperando algo acontecer. Eu confesso que não sei nem
como minha magia se manifesta ou se isso é mesmo uma manifestação dela.
Enquanto tento entender o que acontece, um abrupto barulho de passos
me faz sentar para ver se há algo ou alguém ali. Tento afinar minha audição
já que não posso ver muita coisa.
O movimento pára e eu fico à postos. Quando começa novamente, como
em um bote animalístico, agarro no pescoço de meu intruso e o prendo contra
as grandes pedras que cercam meu esconderijo. Minha magia pode estar fraca,
mas todos os meus sentidos são e estão extraordinários tais quais os de um
predador.
— Alexis… — minha vítima tenta falar em meio a pressão que aplico em
seu pescoço.
— Cali! — assim que reconheço a voz, a solto. — Me perdoe, não pensei
que fosse você.
Cali tenta retomar sua respiração, sem entender porquê a ataquei. Além
dela e Garou, não sei mais quem poderia ser ali. Mas quero saber por que não
reconheci Cali. Recentemente comecei a sentir quando ela se aproxima, o
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AS FILHAS DE GUENDRI
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ESSÊNCIAS E DISCORDÂNCIAS
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23
U
m soco contra a pedra.
O tempo passa, e eu me irrito com o fato de que agora que sei
o que é o tempo, e que também não posso controlá-lo.
Outro soco contra a pedra.
Não vejo nada além da escuridão que me sufoca, rodeando-me em absoluto.
Meu algoz, silencioso companheiro. Um carrasco maldito. Me assiste, me
ignora, me completa, me devora. Um infinito universo que me faz sentir
pequena e fraca.
Mais um soco contra a pedra.
Ouço-a partir em pedaços assim como as outras. Essa era a maior de todas,
pensei que ofereceria mais resistência contra minha força. Sem muito para
fazer, tudo o que me resta é treinar. Sou uma guerreira, uma amazona criada
para combate por Guendri.
É hora de aceitar que é isso o que sou.
134
ACERTE O TEMPO NO ESCURO
Meus planos para viver entre humanos precisariam ficar para depois.
Não quero mais fugir de mim mesma. Estou cansada de sentir como se não
pertencesse á lugar algum pois pertenço. Apenas não queria aceitar isso.
Quero participar do Torneio de Valquírias, um tipo de combate amistoso
da guarda regencial de Adaris para o entretenimento de Garou. O plano que
formulei para isso é fácil: já que Cali conhece o castelo, vai lá e arranja uma
armadura Valquíria para que me cubra de cima abaixo e fique irreconhecível,
apenas mais uma delas.
Não posso afirmar com certeza, mas creio que esse festival não acontecia
quando Guendri estava aqui. Não me parece de seu feitio, apesar de eu saber
nada sobre ele. Só sei que tinha as valquírias como sua proteção pessoal e de
Adaris. Um tipo de fada sem magia, mas com forças gladiadoras que protegem
nosso mundo.
Como surgiu tal prática?
Que tipo de reinado meu pai tinha antes de me criar?
É só isso o que sei: perguntas e mais perguntas. E por agora, me é o
suficiente como resposta entender que valquírias são verdadeiras traidoras,
já que seguem Garou ao invés de negar servir o falso Rei ou ir á procura de
Guendri ou suas filhas.
Sem vitais informações, tento construir a história de meu povo com o
pouquíssimo que sei sobre ele.
Por que Valquírias se submetem a Garou? Em algum momento se rebelaram
ainda com Guendri aqui? Ou eram as guerreiras preferidas de Guendri até o
instante em que ele nos criou?
Não sei quantas são mas imagino que muitas. Cali me diz que são
extremamente similares em suas armaduras metálicas e espada-lanças. Estão
por todo canto de Adaris, mantendo a ordem que Garou impôs e impedindo
portais de serem abertos.
Malditas sejam por isso. O braço que reforça a tirania injustamente imposta
é tão corrupta quanto quem a coordena. Para isso treino. Vencer-las-ei em
seu próprio jogo traidor. Se forem mesmo parte deste complô contra mim,
minha irmã ou meu pai…
Respiro fundo. Penso nele.
135
AS FILHAS DE GUENDRI
136
ACERTE O TEMPO NO ESCURO
Percebo lágrimas em meu rosto. As limpo o mais rápido que posso com as
palmas de minhas mãos. Tenho vergonha de chorar, é tão vulnerabilizante.
Tento me controlar pensando em algo que gosto. Uma música humana me
vem a minha mente, volume baixinho, mas alta o suficiente para me fazer
ouvir a letra.
Não sei quem toca seus instrumentos, mas sei que aprendi a lingua após
ouvi-la para poder entender o que falava. “My love, my life, my drive, it came
from pain […] you made me a believer… ”
Fecho meus olhos e me deleito no som, abraçando-o como um velho amigo
que sabe todos os meus segredos e não julga nenhum. As notas embalam meus
pensamentos. De repente, a dor começa a tomar uma nova forma, através
de uma dança lenta e rítmica coreografada pela esperança que timidamente
começa a retomar o palco dentro de mim.
Nunca se esqueça do equilíbrio das coisas. Não há fraqueza sem força. Não há
medo sem coragem.
Não há vitória sem luta.
Se eu não consigo me lembrar de quem eu era… é por que só preciso de
quem sou agora.
Meu passado não pode me ajudar.
Eu sou meu presente.
Meu momento.
Esse momento.
Meu tempo. Posso controlá-lo se eu puder me controlar.
Me levanto. Seco meu rosto e tomo uma nova estância de combate,
endurecendo meus músculos. Formo uma sequência de socos e chutes no ar.
Não poderei atingir meu potencial sem treinar, não poderei cumprir minha
missão sem melhorar minha capacidade de lutar.
O passado não vai voltar.
Meu futuro é agora e não posso deixar que nada me derrote.
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24
Maestral
C
om Igor ainda inconsciente em seu quarto, decidi lhe fazer o favor
de verificar como andam seus negócios no mundo humano.
Já se passaram alguns dias. Ele não melhora mas também não
piora, e acho que de alguma forma isso já é bom.
O apartamento de Igor está intacto. Lavei a louça suja que tinha deixado
antes daquela noite de sábado, tirei o lixo para fora, apanhei suas cartas
e alimentei seu gato. Procurei por seu telefone por toda a parte e não o
encontrando, usei de magia para fazê-lo tocar.
Seguindo o som, o encontrei dentre o vão dos assentos do sofá da sala.
Sem bateria, lembro como se faz para recarregar. Assim que conecto o
aparelho ele liga, me assustando ao tremer repetidamente em minha mão.
Após alguns minutos, ligo para um de seus funcionários do Lírio e disfarço
minha voz magicamente, transformando-a na de Igor. Digo que estou em
uma importante e urgente viagem e que voltarei em breve. Peço para que
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MAESTRAL
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AS FILHAS DE GUENDRI
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MAESTRAL
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AS FILHAS DE GUENDRI
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MAESTRAL
certo padrão.
— Se você é feliz assim e não tá machucando ninguém, pra mim tá ótimo.
Após o término do lanche, nos levantamos e seguimos de volta para sua
faculdade. Na entrada já vejo que é um prédio enorme. Estudantes vem e
vão pelos grandes portões de ferro, alguns carregando livros e conversando
com amigos, outros focados em seus celulares. Como é de praxe, me senti
deslocada por um momento.
Eu gosto daqui. Mas por mais que eu tente, não acho que o mundo humano
é para mim. Não sou como Alexis que adora esse lugar, até mesmo mais que
Adaris.
Todos que passam por nós cumprimentam Flávio e o parabenizam pela
última vitória no jogo de basquete. Quando um grupo de meninas humanas
o pára para conversarem, me sinto mais deslocada ainda. Ao ver isso, um
sentimento negativo tenta tomar conta de mim e me recordo de que tenho
mais o que fazer do que estar aqui.
Adaris precisa de mim.
Adaris é meu lugar.
Nunca me sentirei deslocada lá.
Com meu povo, em minha terra.
Também sinto minhas veias queimarem um pouco mais, onde as marcas
que Flávio me mostrara mais cedo estão.
Respirando fundo decido sair de fininho, já que Flávio parece ocupado com
as elas.
Meu plano desaba quando ele nota que tento escapar e me puxa de volta
pela mão, me apresentando ao trio de meninas de corpos e roupas bonitas,
rostos perfeitos e sorridentes.
— Essa aqui é a Cali. — ele ás diz, segurando minha mão.
Elas me olham, curiosas.
— Oi, Cali. Nossa, seu cabelo é tão loiro, quase branco! É natural? — a do
meio pergunta esticando a mão e tocando meu cabelo.
Confusa por um momento, respondo que sim. Que tipo de pergunta é essa?
Será que ela acha que eu uso perucas como as de Igor?
— Adorei seu vestido. — diz outra.
143
AS FILHAS DE GUENDRI
Agradeci, mesmo tendo a impressão de que ela não queria dizer o que disse.
Não sei, alguns humanos tem disso. As vezes, não são sinceros em seus elogios
e eu nem sei então por que perdem tempo dizendo-os.
Por trás do grupo, percebo que uma outra estudante passa carregando uma
caixa cheia das melhores coisas no mundo humano: flores.
Adoro flores!
Olho para a caixa com intenso interesse e quando Flávio vê isso, interrompe
sua conversa com as garotas, corre atrás da estudante com a caixa e fala com
ela.
— Mas são para meu projeto de ecologia! — ouço-a dizer a ele.
Flávio insiste um pouco e ela cede uma delas a ele, que vêm até mim e me
oferece a flor.
— Pra você, Cali. — por Guendri, que gentil da parte de Flávio fazer isso!
O cheiro, a cor… meu coração toma um ritmo acelerado e sinto meu rosto
corar.
— Obrigada, Flávio! — sorrio em agradecimento, e por um momento
esqueço que estou em frente á quatro humanos e faço o que sempre fiz com
flores.
Sem pensar duas vezes, arranco pétala por pétala da flor e começo a comê-la
ali mesmo.
144
25
A
s meninas se despedem e rindo, se vão.
O rosto de Flávio demonstra claramente sua confusão ao me ver
comendo a flor que me deu.
Tento sorrir coçando minha nuca, sem graça.
— É que… é normal de onde venho sabe? — é o melhor que consigo pensar
para dizer.
— Tudo bem. Hmmm… de onde você é mesmo? — Flávio pergunta e por
algum motivo, isso me faz sentir estranha de novo.
E mais fora do lugar assim.
Não sinto vergonha de ser quem sou nem de vir de onde venho. Mas não
estou aqui no mundo humano para isso e dividida entre mentir ou expôr uma
já frágil Adaris, prefiro ir embora.
— Desculpa, Flávio. Eu não deveria estar aqui. — devolvo-lhe o que restou
da flor e começo a partir.
145
AS FILHAS DE GUENDRI
— Como assim? Cali! Aonde você vai? — Flávio corre atrás de mim e
mesmo eu tentando ser mais rápida, cada passo seu dá dois do meu. Ele me
alcança rapidamente, entra na minha frente e me para na calçada do lado de
fora de sua faculdade. — Hey! — Flávio me segura pelos ombros. — Por que
tá fugindo?
— Flávio, eu não sou daqui, você não entenderia. Eu não sou como vocês e
não deveria nem estar aqui! — a salada de palavras começa a sair. — Eu tenho
outras coisas pra fazer e não deveria me distrair. Aqui não é o meu lugar!
— Como assim, Cali? Por que tá falando isso?
— Por que você é daqui e eu não! Entende? — extravaso sem querer,
embalada pelo pequeno vexame que dei ao comer a flor na frente deles.
Não tenho nada contra humanos nem contra seu mundo. Mas não sou
daqui e nem sou como Alexis ou Igor, que se adaptaram tão facilmente. Já
está quase impossível para mim distingui-los de humanos,
Não sou boa em fingir ser algo que não sou. Não quero esconder-me! E
assim que cumprir minha missão, para Adaris voltarei e lá ficarei!
— Claro que entendo! Acha que eu nunca achei o mesmo? Olhe a sua volta!
—relutantemente eu o faço, sem entender aonde ele quer chegar. — Carrões,
celulares caros, laptops do último tipo. Bairro e universidade de rico! Você
lembra onde me encontrou jogando basquete?
Era certamente uma parte diferente da cidade de São Paulo das quais já
estive. Mas não entendo o por quê. O que significa ser “de rico”?
Seja lá o que for, pela entonação de Flávio já entendi que é algo que ele não
é.
— Lembro. O que tem?
— É lá onde moro, Cali. — continua Flávio. — Na periferia. E quando
entrei nessa faculdade, de cara pensei que não pertencia aqui, com esse bando
de boyzinho e patricinha. A maioria deles nunca nem se quer chegou perto
de onde eu moro. Eu não tenho nem metade do dinheiro que o menos rico
daqui tem, não poderia nem pagar pra passar na porta de entrada daqui.
Flávio parece um pouco exasperado. Devo ter cutucado algo que ele guarda
em si á sete chaves.
Ele se sente diferente dessas pessoas por ser de um lugar diferente delas?
146
OUTRAS FORMAS DE HEROÍSMO
Oh.
… Exatamente como me sinto.
— Mas que se dane, por que eu estou aqui. E fiz por merecer pra estar
aonde estou. Estudei, trabalhei, treinei. E mesmo assim, não sou melhor
nem pior que ninguém! Se eu moro na periferia, se de onde você é as pessoas
comem flores… não importa!
O que importa é quem a gente é. — ele fala com convicção. — A gente merece
tá aqui nesse lugar tanto quanto qualquer outra pessoa.
As palavras de Flávio, combinadas com a verdade e fogo em seus olhos,
acendem algo dentro de mim.
Eu não entendo o que quero fazer.
Mas o faço, por que eu sou assim.
Eu o beijo por que quero.
Nele se refletem tudo o que tenho em mim: minha ânsia por melhora, meu
desejo incontrolado por lutar por uma melhor realidade, a diária batalha
que é manter uma jovem mente focada numa missão, especialmente no meio
dessa vida tumultuosa e interdimensional de paixões imediatas e intensas.
Eu nunca beijei ninguém antes.
Aliás, desde quando vi a prática pela primeira vez achei estranhíssima. O
que dá em um ser para que quisesse colar sua boca na de outra pessoa?
Agora eu sei.
A princípio, apenas forço meus lábios contra os dele. Depois de alguns
segundos estou imóvel, daí me afasto.
Ele não fala nada, só me olha em silêncio, feição indecisa.
— Desculpa, e-eu não sei o que… — tento me explicar, mas não sei nem o
que dizer, mil palavras dançam em minha boca e nenhuma faz sentido. — É
que me deu vontade e eu fiz o beijo.
Flávio franze o cenho de leve e acaba por rir um pouco.
— Cali, acho que você “fez o beijo” errado.
— Como assim? O que fiz de errado?
— O que fez de errado foi parar de me beijar. — Flávio delicadamente
coloca uma mão em cada lado do meu rosto, e me beija novamente. Me
surpreendendo, lentamente adiciona sua lingua e a faz explorar minha boca.
147
AS FILHAS DE GUENDRI
Após mais alguns beijos e risos, Flávio me pega pela mão e tenta me fazer
segui-lo.
— Aonde está me levando? — pergunto.
— A biblioteca. Vou pegar uns livros e a gente pode sair daqui, ir pra outro
lugar… que acha?
— Não sei… — digo, torcendo meus lábios, indecisa. Ele para e me olha,
sem entender minha hesitação. — É que preciso voltar pra casa. — Flávio
parece chateado com o que digo. — Se pudesse eu ficaria. E faria muito mais
beijos com você.
Ele ri novamente. Não sei do que exatamente.
— Olha Cali, antes que você vá, quero te perguntar uma coisa. — com
um sorriso, o encorajo a continuar. — É que… vai ter uma função aqui na
faculdade…
— Uma… função? — pergunto, sem saber o que é isso.
— É… — ele desvia o olhar, acanhado como nunca o vi ficar. — Uma parada
tipo bailinho, sabe? — ainda estou confusa e Flávio percebe. — Mulher vai de
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OUTRAS FORMAS DE HEROÍSMO
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AS FILHAS DE GUENDRI
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OUTRAS FORMAS DE HEROÍSMO
É isso!
Além das poucas flores que uso para fazer o elixir que ofereço á humanos,
é difícil crescer qualquer coisa na terra seca de Adaris. Além de quê, nossas
plantas são um pouco diferentes das daqui.
Mas estou feliz de saber que há outras formas de crescer mantimentos para
o meu povo! Vou arranjar flores no mundo humano, crescer essas que Taís
me deu, e levá-las para Adaris.
151
26
O Doutor
E
stou quase caindo no sono quando a voz da enfermeira me acorda.
— Verena Morales?
Eu olho para mulher de uniforme branco e recebo seu sorriso.
Ela espera em frente a porta da sala do consultório do Doutor Gregório.
Deixando a pequena sala de espera, digo um quase mudo “obrigada”antes da
enfermeira fechar a porta atrás de mim.
É a primeira vez em muito tempo que venho a uma consulta. Consulta esta
que marquei após o estranho pedido do doutor a minha frente, que se senta
com as mãos atrás de sua cabeça, vestindo uma camiseta do Rush, barba por
fazer, sem jaleco branco e com cara de deboche.
— Vai se sentar ou…? — o doutor indaga por que ainda estou de pé.
Não gosto de estar aqui. O ultimo médico que vi me disse que minha avó
estava doente e que seu prognóstico não era dos melhores. Desde então, não
fiquei muito afim de encontrar outro doutor tão cedo.
Especialmente se ele vai me dizer que existe do lado da família da minha
152
O DOUTOR
153
AS FILHAS DE GUENDRI
ele não para. — Bem, Verena, quando Flávio me pediu para te consultar…
— Flávio te pediu pra me consultar? — interrompo, sem pensar. O
linguarudo é fã do doutor Gregório, aliás diz o tempo todo que gostaria
de ser tão “top” quanto ele. Deve ter falado de mim como um caso médico a
ser estudado.
Filho da mãe.
— Foi o que eu disse. Ele falou que você tem problemas ao dormir e que
acorda com dores em lugares exatos onde algo acontece em seus “sonhos”.
Correto? — ele faz o sinal de aspas no ar e eu tenho que dizer, nunca vi um
doutor ser tão sarcástico.
Se eu não estivesse tão cansada e me sentindo tão fraca, responderia á
altura.
É sexta feira de manhã, quase uma semana desde que vi Igor, Alexis e Cali.
Desde o que aconteceu com Igor, nenhum deles entrou em contato comigo.
Eu não faço a menor ideia do que ocorreu naquele sábado a noite com ele,
nem ao menos se já melhorou. O tempo todo me lembro de seu corpo pesado
sobre a mesa, da gosma verde e que não parecia respirar.
Mas ele não foi o único afetado naquela noite.
Dormir se tornou praticamente impossível para mim. E quando é possível,
cenas bizarras de imagens mal formadas e gritos melancólicos infestam meus
sonhos. Tenho a sensação de estar caindo constantemente e acordo num
impulso. Não tenho fome, mal tenho sede e meu nível de atenção também
decaiu. Minha sorte é que esta semana no trabalho foi lenta.
Eu não ia marcar a consulta com Doutor Gregório, mas eu preciso dormir,
comer… voltar ao normal.
O que está acontecendo comigo?
Seja lá o que for espero que Doutor Gregório possa me ajudar. Conto a ele
tudo isso, deixando de fora a sessão de leitura mental dinâmica envolvendo
um elfo e uma fada que aconteceu semana passada. Se eu contar essa parte,
certamente não me dará um remédio, me dará um ticket para um sanatório.
— Infelizmente insônia e dores musculares não são incomuns em indivíduos
da sua idade. E também não são sintomas de uma doença única. Pode ser
estresse, pode ser peste bubônica… ou qualquer outra condição entre as duas.
154
O DOUTOR
— meu olho arregala no “peste bubônica”. — O que quero dizer é que existem
várias possibilidades. Vamos fazer alguns testes. Vou precisar de amostras de
sangue e urina. A enfermeira colherá os dois. Por enquanto, tome isto. — ele
rabisca uns garranchos e me dá a receita. — O de cima vai te ajudar a dormir.
O outro é para abrir o apetite.
Agradeço e guardo a receita em minha bolsa. Me levanto e quando lhe
estendo a minha mão para me despedir, o pego estudando meu cabelo da
mesma forma estranha que o fez no sábado passado, expressão de desagrado.
Antes de apertar minha mão, ele também a estuda. Ao apertá-la, a vira dos
dois lados, analisando-a.
Mesmo achando sua atitude estranha, deixo para lá. Cheguei a conclusão
de que Doutor Gregório não é uma pessoa normal, e desde que o que quer
que tenha me receitado funcione, sua nonsense não me importa.
— E Verena… — ele me chama quando eu abro a porta para sair de sua sala.
— É melhor deixar sua mente descansar por esses dias, não deixar o estresse
do trabalho te afetar; tente descansar em paz.
O que pensar quando um médico te diz para “descansar em paz”? Ele parece
se divertir com seu trocadilho. Deixo sua sala e a enfermeira me direciona a
sala dela para fazer as coletas.
Eu a sigo com uma estranha sensação de que já ouvi o Dr. Gregório dizer
aquilo antes.
155
AS FILHAS DE GUENDRI
Não sei quando ele volta, nem onde está. Ele cancelou a maioria de seus
compromissos, não sei como e nem quando, o que fez a semana ficar mais
lenta e as horas demorarem para passar. As únicas ligações que atendi foram
de novos clientes e de Lena, que parece trabalhar em dobro para compensar
a ausência de nosso chefe. E o faz sem reclamar.
Na segunda-feira quando cheguei no escritório, sobre minha mesa havia
apenas um recado:
“Tive que fazer uma viagem urgente. Voltarei em breve.”
Dizia o papel, sem assinatura nem nada.
Bauer poderia ter me ligado, me mandado um e-mail, até uma mensagem
de texto está valendo para dizer para onde foi ou quando exatamente volta.
Sou sua secretária e nossa comunicação é… falha, estranha.
Me perguntei o por quê de me avisar de sua ausência dessa forma. Será
que aconteceu algo sério com algum familiar? Ele não ligou a semana inteira.
Nenhum tipo de interação se deu entre nós, o que só me faz pensar que
aconteceu algo ruim. Tento lembrar o que exatamente sei de Bauer, se
conheço seus pais, irmãos… não é casado, não tem filhos, e nunca o ouvi falar
de seus familiares.
E nunca perguntei. Provavelmente por que não queria que perguntasse
sobre os meus. E também por que apesar de nossas ultimas interações terem
sido mais abertas, antes delas eramos estritamente reservados profissionais.
Resolvi que não vou me preocupar. Aliás, já tenho algo me preocupando,
tornando minha semana mais miserável a cada dia que passa. Estou
fisicamente afetada pela minha falta de sono que já era um problema antes de
sábado a noite, e agora piorou de vez.
Não sei se foi algo que Igor fez. Não sei nem se Igor fez algo, pois não me
lembro de nada. Cinco horas? Em um segundo? Não é possível…
O que será que descobriram?
E Igor? O que aconteceu com ele?
Estou perdendo as esperanças de reencontrar Alexis ou Cali novamente. De
inicio, eu queria que elas desaparecessem após eu concordar com a proposta
maluca que elas me fizeram. Mas agora… estou morbidamente curiosa e acho
justo saber no que deu. Elas tem meu telefone, sabem onde moro.
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O DOUTOR
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AS FILHAS DE GUENDRI
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27
Psicologia Avançada
A
pós acalmá-la com um copo de água com muito açucar, estamos
sentadas no sofá da recepção, eu tentando convencê-la de que Bauer
não aparece aqui desde segunda.
— Como pode, Verena? Ele não atende minhas ligações mas vai viajar com
a minha irmã, duas semana depois de ter ficado comigo? — ela chora e eu
sinto pena dela. Mas eu não sei o que dizer, então continuo ouvindo. —
Desculpa por entrar assim e te assustar, mas é que eu não sei o que fazer, me
subiu a cabeça, sei lá. Minha própria irmã! — a garota seca as lágrimas com a
mão. — Ela vive roubando meus namorados. Eu não sei porquê ela faz isso
comigo. Ela sabe que eu sou louca por ele!
E põe louca nisso. Foi uma cena e tanto.
Deus que me livre chorar ou fazer barraco por causa de homem. Nunca o
fiz e nunca o farei. Ainda mais por homens como Bauer, que são a síntese da
dor de cabeça feminina.
— Não esquenta, Alina. — eu a conforto. Ela é maluca e barraqueira, mas
159
AS FILHAS DE GUENDRI
parece ser gente boa. — Essa semana foi bem parada. Um momentinho
emocionante na sexta-feira não é nada. — tento uma piada para elevar o
humor. Alina ri. — Mas por que você achou que Bauer estaria aqui?
— Por quê a cretina da minha irmã já voltou de lá.
Não sei de quem é a culpa desse fuzuê todo, de Bauer ou dela, o que também
não me importa, não tenho intenção nenhuma de me meter… mas não posso
ignorar a dó que dá ver uma moça de coração tão quebrado. Qualquer ser
humano normal teria compaixão.
— Olha, eu não vou te dizer que o Bauer tá errado, ou que é um canalha. Ou
que a culpa é sua, apesar dele ter deixado claro que não queria nada sério… —
Alina olha para mim, provavelmente se perguntando como é que eu sei disso.
— Não cabe a mim e não vou tomar lados. Mas acho sinceramente que você
não merece se deixar passar por isso, sabe. Eu posso te dizer várias coisas do
tipo, “ah, ninguém merece suas lágrimas, blá blá blá”. Mas a verdade é que
dói. Pra caramba. E quando dói, a gente chora e perde a noção. — ela presta
atenção. — Dói ser traída pela irmã, dói gostar de alguém que não gosta de
você, dói ver quem se gosta feliz com outra pessoa. E você tenta não pensar
nele, e quanto mais você tenta, menos consegue. — eu já nem estou mais
olhando para ela. — Chega uma hora que você começa a duvidar de si mesma,
da sua inteligência, por que não consegue entender que esta pessoa não te
quer e você não consegue parar de querer ela. Mas todo dia, tem que dizer
pra si mesma que vai passar. Que você não precisa correr atrás de ninguém.
Quem te quer e te merece, nunca vai te fazer sofrer assim. E essa é a verdade.
Não parece, mas amanhã vai doer menos. Um dia, você não vai se lembrar de
como se sente agora. Não parece mas esse dia vai chegar.
Ela me assiste calada e atenciosa.
É claro que eu estou falando isso mais para mim que para ela.
Um dia ouço meu próprio conselho.
— Eu não sei por que minha irmã é assim. Ela sabe como me sinto em
relação ao Dimitri. Pra te falar a verdade, eu não sei se ele sabe que ela é minha
irmã… Mas ela sabe dele! E de qualquer forma ele devia ficar só comigo! —
a sua voz falha quando tenta dizer isso. — Ele devia dar uma chance pra eu
mostrar o quanto o amo, Verena.
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PSICOLOGIA AVANÇADA
É.
Parece até que eu não falei nada.
Ás vezes quis ter uma irmã. Sempre imaginei que esse tipo de ligação com
alguém é única, mas já vi que aparentemente, nem sempre…
Checo meu relógio e vejo que é meu horário de almoço. Eu não estou com
fome, nem minhas amadas mexericas me interessam no momento, mas eu
tenho que tentar comer algo.
— Desculpa pela cena, Verena. — Alina se levanta e limpa seu rosto com as
mãos. — E obrigada pela água e por… tudo.
— Sem problemas. Desculpa, não olhei no relógio pra te dispensar, é que
é meu horário de almoço. — comento, tendo uma ideia. — Tem uma ótima
pizzaria aqui na Pamplona. Tá afim de ir lá comigo?
Meu almoço com Alina foi mais descontraído que nosso encontro inicial.
Tentamos não conversar sobre Bauer ou a irmã dela. Ela me contou sobre
estar no ultimo ano da faculdade de direito e algumas de suas viagens ao
exterior. Contei a ela sobre minha vontade de entrar na faculdade em breve e
algumas histórias minhas de Cunha. Não tenho muitas, mas ela ouviu mesmo
assim.
Para alguns nossas experiências não se comparam, mas demos boas risadas
e ela pareceu interessada. Nós duas tagarelamos comendo uma super
pizza quatro queijos e suco de laranja bem gelado, fazendo a hora passar
rapidamente.
Eu precisava disso. E acho que ela também.
Antes de voltar para o escritório, trocamos números de telefone e prome-
temos manter contato. Nos despedimos e subo para minha silenciosa sala
vazia, feliz por ter socializado.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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PSICOLOGIA AVANÇADA
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AS FILHAS DE GUENDRI
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PSICOLOGIA AVANÇADA
persar, sou abordada por uma mulher que oferece ler minha palma. Recuso
educadamente e continuo meu caminho, só que não percebi que ela ainda
segura minha mão e com um retranco me puxa de volta.
— Ai! — me viro para ela. É uma senhorinha baixinha que não parece
passar dos sessenta anos de idade. Me deu um puxão bem forte para seu
tamanho e idade.
— Minha filha… — sua voz é rouca e sua longa unha vermelha como suas
vestes, dança sobre a palma de minha mão. — Não quer saber o que o destino
lhe reserva?
— Obrigada minha senhora, mas hoje não. — tento puxar minha mão mas
ela a segura firmemente.
— Sua vida vai ser longa… vejo um belo rapaz interessado em você!
— Ora, não me diga! — não quero ser sarcástica mas a tiazinha está pedindo
por isso. Tenho a impressão de que toda quiromântica diz isso.
— Digo sim! E por dez reais te digo tudo sobre ele! Já posso vê-lo aqui na
sua linha do coração… bem aqui! — ela enfia a unha pontiaguda na minha
palma com tanta força que eu dou um grito, puxando minha mão de volta
para mim.
— Sua velha louca! — a pontada dói e eu reclamo, olhando para ela
indignada. — Pra quê fez isso?
Olhei para minha mão e a marca vermelha em minha palma. A velha maluca
não parece se importar com o que fez, apenas me olha sem expressão. Eu me
afasto. Ela parece dizer algo, mas não paro para ouvir o que é.
Sei que tem todo tipo de louco em cidade grande, mas nunca achei que uma
senhorinha com cara de uva passa seria um dos meus problemas.
Minha mão queima e muito. A vermelhidão da unhada em minha palma se
espalha um pouco. Quero gritar de raiva pelo susto. O pouco de bom humor
que eu tinha acabara de ir para o saco. Que droga! O destino está tirando a
semana para me sacanear.
Quer saber? Bauer está certo.
Hora de ir pra casa e não sair de lá nunca mais.
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28
Seus Sinais
M
inhas primeiras mudas e sementes estão plantadas em fileira
num pequeno canteiro artificial que criei na varanda de Igor,
seguindo as instruções do livro que Taís me deu. Elas precisam
de água e sol, então espero que as chuvas de São Paulo regue-as quando eu
não puder, e que o sol empreste um pouco de seus raios em minha ausência.
Sorrio para minha futuras plantinhas, satisfeita com as horas de trabalho
que tive em comprar, organizar e plantar tudo.
Gosto de me manter ocupada, trabalhando por um objetivo.
De acordo com o livro, elas levarão algum tempo para crescer. Mas tudo
bem, pois reparei que existem muitas flores no mundo humano, espalhadas
pelo chão por toda parte.
Andando por um grande parque próximo a casa de Igor chamado Ibirapuera,
eu arranco e recolho todas as que vejo. Algumas pessoas me olham feio e não
entendo exatamente por quê.
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SEUS SINAIS
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AS FILHAS DE GUENDRI
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SEUS SINAIS
devo apoiá-la.
Ela quer se encontrar em nosso mundo, e devo ajudá-la nessa busca pessoal.
Minha parte do trabalho é lhe arranjar uma armadura da guarda real, uma
armadura de valquíria.
E eu sei exatamente onde encontrar uma.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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SEUS SINAIS
— Bravo! — Cali aplaude quando tenho minha oponente sob meu controle.
Sem demoras ela já gera duas outras mais que aparecem de lados opostos, e
já se põem a me atacar. O exercício se repete, um loop violento que requer
minha completa força e atenção.
Não só para a luta em si mas também sobre o que ela me ensina a respeito
de quem sou.
Minha sede por sangue é uma das coisas sobre mim das quais não sabia. E
quanto mais luto, mais descubro que essa me é uma sede impossível de saciar.
171
AS FILHAS DE GUENDRI
Sem pensar duas vezes removo a armadura, vou até minhas roupas
escondidas e as visto. Antes de eu partir, Cali me pára e me oferece um
vidrinho com elixir.
— Leve um caso ela precise.
Coloco o vidrinho no bolso da calça e mergulho em meu lago indo até o
fundo dele. Cruzo a fina abertura entre Adaris e o mundo humano, saindo
exatamente no espelho do quarto de Verena…
… e me surpreendendo com o que vejo ao chegar.
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29
Lingua No Pescoço
A
pós tomar o remédio receitado, não deu nem meia hora eu caí no
sono. E durmo até que bem se não fossem os pingos que caem sobre
minha face, me acordando.
— Uh? — balbucio, voltando a realidade.
Quando outro pingo cai, toco meu rosto. Seja lá o que pingou é mais espesso
que água. Não está chovendo, então por quê está pingando no meu quarto?
Será algum vazamento?
Maravilha. Meu senhorio vai adorar isso.
Sentando, ligo a luz do meu abajour e analiso o pingo enquanto outro me
cai no topo da cabeça. Olho para cima e o que vejo… me faz congelar.
— Hssssssssssssssss.
Uma criatura verde que parece uma mistura de jacaré com macaco está
pendurada em meu teto rosnando para mim, sua língua bifurcada para fora e
seus olhos extremamente coléricos.
Outro pingo cai agora em minha testa e percebo com certo nojo e medo
173
AS FILHAS DE GUENDRI
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LINGUA NO PESCOÇO
Eu nunca pensei muito sobre morrer. Não por ter a audácia de achar que
não aconteceria comigo, mas… mais para evitar mesmo. Sempre quis viver
e nunca pude. Mas viver, mesmo. Experimentar tudo a meu redor, brincar
com esse mundão a fora cheio de pessoas interessantes, conversas para ter,
músicas para ouvir, lugares para conhecer, histórias para dividir, livros para
ler…
E agora. Não só sou obrigada a pensar na morte, como já começo a encará-
la.
Oh céus… Eu não quero fechar meus olhos, mas eles já começam a se fechar
sozinhos. Que fim patético o meu! Até na hora de minha morte só sinto pena
de tudo o que não vivi.
Alguns chamariam isso de desistir. Motivação não é uma força sobrenatural
que vai te fazer viver só por que você quer. Nenhum dos meus esforços para
me livrar da besta verde funcionam.
Eu já não posso mais evitar…
Até que um barulho alto me força a reabrir os olhos.
A criatura já não está mais sobre mim. Eu não posso vê-la, mas aos poucos
eu recupero meu ar e com ele meus sentidos. Ainda no chão coloco a mão no
pescoço e tento sentar-me para ver o que aconteceu.
A criatura fora jogada contra a parede do outro lado do meu quarto e
agora se encontra no chão. Com a fraca luz de meu abajour posso ver meu
salvador… ou melhor, salvadora.
— Alexis! — tento exclamar mas minha voz quase não sai.
— O que faz aqui? Quem te mandou? — a fada interroga, pegando a criatura
pelo pescoço e a suspendendo contra a parede. Estou embasbacada com a
força dela! A criatura é grande e ela a segura com uma mão só sem dificuldades.
Fico impressionada com mais essa demonstração de força herculana da fada
que mais parece uma modelo da Victoria Secret’s do que uma lutadora de
UFC. — RESPONDE LOGO! Quem te mandou? — pergunta novamente por
entre os dentes, apertando mais a garganta do bicho enquanto eu quero saber
por que Alexis acha que alguém mandou aquilo vir aqui atrás de mim.
O pensamento me dá um nó na garganta que já dói.
— Ela matou Igor! — a criatura responde sem mover a boca. Ouço sua
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AS FILHAS DE GUENDRI
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LINGUA NO PESCOÇO
trata agora, é isso que parece querer fazer. Mas creio que a ultima coisa que
ela quer é atrair atenção desnecessária, deixá-lo ir é mesmo a melhor solução
apesar de ser também a mais perigosa.
Alexis olha para mim e entende o recado.
— Da próxima vez, não terei misericórdia. — ela o chuta na barriga. —
Desapareça daqui e nunca mais chegue perto dessa humana, entendeu?!
A criatura concorda exasperada e sai o mais rápido possível pela minha
janela que só agora percebo que está aberta. Imagino que seja por ali que ele
entrou.
Ainda em choque, continuo no chão sem acreditar no que acabou de
acontecer.
— Você está bem? — Alexis me ajuda a levantar.
— Não sei. — digo tremendo ao finalmente aceitar que não estou em um
sonho. — O que é aquilo, Alexis?
— Um elfo. A mesma espécie de Igor e Garou, mas um tipo um pouco
diferente. Por isso achei que ele o mandou. Por um lado é bom que não tenha
sido Garou mesmo.
Sentamos na beirada da minha cama. Alexis estuda meu pescoço e os
vergões deixados pelo ataque.
Nada grave.
— E pelo outro lado? — eu não vejo nenhum lado bom em ter sido atacada
por uma das criaturas mais esquisitas e bizarras que já vi, mas pergunto
mesmo assim.
— Não sei o que é aquilo que ele disse. Ou quem. — ela respira fundo. —
Mas agora o que importa é que você está bem.
Estou tremendo violentamente, com uma baita dor de cabeça e uma dor
pior ainda na garganta, causada por um negócio que eu nem sabia que existia,
mas que esteve ativamente tentando me matar.
Eu já estava ótima, agora estou perfeita.
— Como você chegou aqui a tempo? — pergunto quando percebo o
momento deus ex machina.
— Eu não devia ter vindo ao mundo humano, mas senti que você estava
em perigo. — ela levanta depressa. — Reagir foi mais forte que eu. — parece
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AS FILHAS DE GUENDRI
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LINGUA NO PESCOÇO
Um desenho esquisito de uma torre, com o que parece ser um relógio em seu
topo. Algumas combinações de letras podem ser lidas, mas não entendidas.
No topo, pode-se ler “P A R A N A” mesmo com bastante espaço entre as letras.
No rodapé, no mesmo padrão “A B A”.
— Você sabe o que é “Parana”?
— O estado que faz fronteira sul com este. — respondo, pensando a respeito.
Será que isso é alguma pista que Igor encontrou em minha mente? Será que
é lá onde Mabel está? Por qual outro motivo Igor encontraria “Paraná” na
minha cabeça? Eu nunca fui lá. Pode ser por outras razões mas agora só faz
sentido uma delas: a possibilidade de que pode ser relacionado a Mabelai.
Os olhos de Alexis se acendem com o que digo.
— Isso é o mais próximo de uma pista que já tivemos. Se for mesmo um
lugar pode ser onde Mabelai está.
— E o que é isto? — pergunto apontando com meu dedo. — Este monte de
letras “T” aqui neste canto?
Alexis não diz nada, apenas dá de ombros.
Suspiro e lhe devolvo o papel sem mais saber o que decifrar ali. Percebo
que minha tremedeira para lentamente e o efeito do remédio para dormir
passara.
— Verena, não me leve a mal, mas você não parece nada bem.
— Pois é. — me levanto para fechar a janela. — Não ando dormindo
bem, sabe. Desde sábado. Nem comido. Nem muita coisa. Sei lá o que está
acontecendo comigo. E ainda pra ajudar, alguém tentou me matar hoje.
Ela pára por um momento e pega algo de seu outro bolso. Ela me entrega
uma jarrinha verde e eu já sei o que é.
Abro e bebo, num gole só.
O elixir lentamente conserta cada canto do meu corpo. Logo me sinto
impossivelmente bem e levemente frenética.
— Sente-se melhor? Já não está tão acabada.
— Obrigada? — sarcasticamente, agradeço a desnecessária sinceridade
da fada. — E quais sãos seus próximos planos? — quero saber se estes me
incluem. Não que eu me importe mas no fundo, no fundo, gostaria de saber
há quantas anda sua busca.
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AS FILHAS DE GUENDRI
— Vou dizer a Cali o que significa Paraná e veremos o que faremos a partir
dai. É uma pista e mesmo não sendo tão direta, é o que temos. Assim que
Igor acordar, perguntaremos a ele o que mais ele viu.
— Quando acha que ele acordará?
— Não sabemos. Mas Cali está trabalhando nisso.
— E aquele troço verde? Tem certeza que não vai voltar? Aliás, quem é
Nássera e como sabe onde moro? — lembrar disso me causa uma leve euforia,
que provavelmente seria desespero caso eu não estivesse sob o efeito da poção
de Cali.
— Honestamente, nunca ouvi esse nome. Existem vários outros seres de
outros mundos no mundo humano Verena, e creio que são tão capazes de
espalhar fofocas e mentiras quanto os desse mundo aqui. Mas tenho certeza
que esse elfo não voltará a te perturbar.
— Certeza como?
— Porquê estarei por perto e ele sabe disso.
Ela sorri me tranquilizando e pára em frente ao grande espelho de minha
avó em meu quarto. Alexis se despede e entra nele, desaparecendo numas
ondas mágicas circulares que me impressionam por um segundo, já que eu
nunca vi um portal para outro mundo. Se aquela bebidinha maravilhosa não
fosse tão potente, eu provavelmente daria um mega chilique ao ver isso.
Mas mesmo com coisas fantásticas e impossíveis acontecendo a minha
volta, só o que quero fazer mesmo é me jogar na cama e finalmente dormir
uma boa noite de sono.
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30
Defina “Sorte”
A
pós a energia inicial do elixir dissipar, dormi tão bem que acordei no
dia seguinte as duas da tarde com disposição para dar uma corrida.
Fones de ouvido com o volume no máximo e pé no asfalto, percorri
ao todo quatro quilômetros. Sei que parece pouco, mas para quem corre de
vez em nunca está ótimo.
Atravessando ruas, calçadas, pessoas, carros e bikes que perambulam pela
Barra Funda e que fazem dela uma pequena cidade em si dentro da cidade
de São Paulo, aproveito para ver mais do bairro em que vivo e acabo me
apaixonando ainda mais, me sentindo sortuda por morar aqui.
De volta a minha rua sem saída e vazia, tiro minha regata ensopada. Nunca
tinha usado esse sutiã esportivo antes e essa fora uma ótima estreia.
Mesmo me sentindo ótima ainda tenho em mente o fato de que alguém
tentou me matar ontem. Não é algo fácil de se processar, mas fico feliz que
Alexis me salvou. Eu não contava com isso. Achei que nunca mais ouviria
falar dela. Ou de Cali. Ou de ninguém na verdade, já que estava para morrer…
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AS FILHAS DE GUENDRI
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DEFINA “SORTE”
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AS FILHAS DE GUENDRI
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DEFINA “SORTE”
alguém já enrolado. Aliás, isso não é nem um convite dele, apenas é um dia
quente e seu apartamento ferve.
O celular de Daniel toca e quebra minha admiração pelo dorso tatuado do
meu companheiro de jogo.
— Fala, Alemão!
Se este “alemão” for quem eu estou pensando… já sinto o frio na barriga
e paraliso. E tornando o frio na barriga em nevasca no corpo todo, o ouço
convidar o tal “Alemão” para sair conosco.
— Peraí. — ele tira o celular do ouvido. — Posso chamar o Lucas pra ir
também, né?
Você já chamou!
Contra minha vontade e tentando segurar a careta, concordo lentamente.
Ótimo.
A noite que eu teria para me distrair agora viraria a noite em que eu teria
que assistir o Casal 20, Lucas e Sara, se esfregarem um no outro bem na minha
frente.
Que sorte a minha, meu Deus.
Ele confirma o convite e Lucas confirma a presença.
— Coitado do Alemão. — Daniel diz após desligar. Coitada de mim! — Ele
tá precisando sair. Não dá pra ficar todo dia com cara de bunda por causa de
mulher.
— Como assim? — a estranha constatação chama minha atenção.
— Ele e a Sara tão dando um tempo.
O frio na minha barriga vira um calor intenso. Tomo minha breja para
disfarçar o sorriso que se abriu em meus lábios que se abriu mais rápido e
largo que buraco na BR-153.
Que notícia maravilhosa!
— Sério? Que triste. — bebo mais a minha cerveja para evitar sorrir da
desgraça alheia. — O que aconteceu?
— Sei lá, mas não é a primeira vez. Ela apareceu no escritório na quarta
feira, eles conversaram, ela saiu gritando, ele ficou irritado e eu nem precisei
perguntar. E também nem quero saber. Gosto dos dois, mas se meter em
briguinha de casal só dá confusão, Verena.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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Flores
A
masso algumas flores que colhi aqui mesmo em Adaris para retirar
delas seus extratos. Após saber do ataque a Verena decidi estocar
o elixir.
Nem reparei que estou amassando com tanta força. O estresse e a pressão
dos acontecimentos recentes subiram a minha cabeça. Parece que quando
dou um passo a frente, o jogo muda e eu tenho que retornar dez outros passos.
Por quê atacaram Verena? Alexis disse que um tal de “Nássera” mandou.
O que é isso e de onde? E mais importante, como é que sabe do que
aconteceu com Igor? Quem mais sabe do que fazemos no mundo humano?
Isso é péssimo, uma vez que há possibilidade de Garou acabar descobrindo
também…
Fecho meus olhos, frustrada. Esse é um dos motivos de deixar todos os
voluntários no anonimato.
Falhei! Mais uma para minha lista… não consigo proteger nem as poucas
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AS FILHAS DE GUENDRI
pessoas a minha volta, como é que vou salvar Adaris? Chuto a pequena
mesinha de madeira a minha frente num ataque de raiva, minhas flores e seu
extrato neon se espalham pelo chão.
— Não consigo fazer nada direito! — grito comigo mesma, arfando e
sentindo meu sangue esquentar, queimar sob minha pele. Estou fora de mim
e em meus ouvidos só retumbam ecos de minha revolta com minha própria
incompetência.
Eu nunca me senti assim.
Olho para meus punhos. Estão cerrados, minhas unhas fincando minhas
palmas. Minhas veias pulsam visivelmente sob minha pele. Negras, formam
o mesmo intrínseco desenho de antes mas agora maior, se espalhando pelos
meus dois braços.
Isso… não é normal… essa… não sou eu.
Tento me acalmar. De súbito me lembro das palavras da Sombra: “Ou eu
domino a magia ou ela me domina.” É isso o que está acontecendo? A magia está
me mudando, me deixando mais insegura, mais irritada? Não que a situação
não ajude a me frustrar, mas nunca perdi minha calma assim. Me sento ao
chão pois preciso me controlar.
Essa magia deve exponenciar o que sinto de negativo, se aproveitando
desses sentimentos ruins e os reforçando, usando-os para crescer dentro de
mim. Quanto mais odiosa eu estiver, mais controle de mim essa magia terá.
E quanto mais controle de mim ela tiver, mais revoltada eu vou ficar.
Nunca tive que me “controlar”. Eu não sei nem por onde começar, mas
preciso me acalmar. Não tenho medo de me perder, mas não vou me perder
sem antes conseguir o que quero.
Não antes de encontrar Mabelai.
Há quem diga que caridade e benevolência fazem bem para quem as pratica.
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FLORES
É o que tento exercer agora com mais flores do mundo humano, trazidas
de minha ultima rápida viagem ao Parque do Ibirapuera, de onde enchi duas
sacolas. Mas só de pétalas dessa vez, que são as partes mais comestíveis.
Decidi voar até a parte Sul de Adaris, onde o céu é laranja e grande colinas
escondem pequenos vales. Aqui é bem maior e mais populoso que o Norte,
provavelmente por que é mais claro e mais fértil no quesito magia. Vendo
daqui de cima concluo que certamente não conseguirei cobrir a área toda em
apenas uma viagem. Ainda assim tenho que tentar o máximo que posso.
Distribuí todas as flores de uma sacola entre Fus, Ndales e Héberas. Eles
sempre me recebem muito bem em seu pequeno condado. Me oferecem chás
e os mais velhos me convidam para sentar e conversar. Falamos sobre a seca
de Adaris e da dificuldade de cultivar a magia que estão em suas famílias a
gerações. Infelizmente não posso dizer que estou tentando mudar isso, não
posso arriscar ser descoberta. Então apenas os ouço, tento fazê-los entender
que apesar de nós fadas sermos uma grande maioria de Adaris (ou melhor
dizendo, um dia fomos), nos importamos com todas as espécies e estamos
disponíveis com o que pudermos ajudar.
Preciso continuar minha jornada, e mesmo com o delicioso tempo que
passei com eles, não posso ficar mais.
Me despeço e sigo alguns metros adiante, passando por baixo de três
Barlosas. Barlosas são como pássaros do mundo humano mas com longas,
longuíssimas pernas. Eles podem mudar as cores de sua penugem e eu acho
lindo quando vejo o momento raro. Mas precisam de magia para isso e sem
ela, suas penas são pretas. Bicam o topo de uma colina provavelmente a
procura de alimento.
É patético oferecer pequeníssimas pétalas para seres tão gigantes, mas não
quero que se sintam excluídos.
Eles não me veem, então bato minhas asas até a frente da face de um deles.
Seus gigantes olhos se ajustam para me ver quando chego tão próxima de seu
rosto. Agora que tenho sua atenção, tomo a liberdade de sentar em seu bico.
Eles não são muito de conversa, mas aceitaram minha pequena oferta de bom
grado. Depositei duas mãos inteiras de pétalas em suas bocas, voando entre
uma e outra. Eu prometi voltar com mais assim que pudesse. Assim que os
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FLORES
Quando chego na edificação onde Garou recebe a todos, procuro por Alexis
com meu olhar. Sem encontrá-la, imagino que ela já está provavelmente na
concentração do subsolo com todas as outras Valquírias.
O salão no qual me encontro contém uma decoração nova, com algumas
plantas carnívoras nativas de Adaris e outros displays de imagens e objetos por
mim desconhecidos. Parece mais sofisticado que de costume, definitivamente
contrasta com o resto de nosso mundo. Comes e bebes em um canto,
convidados diversos de dentro e de fora perambulam e socializam, convidados
estes que entram e saem pelo mesmo único portal que Garou permite abrir
apenas para esse evento, ambos evento e portal monitorados pesadamente
por ele e sua guarda.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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FLORES
agradecendo por minha presença ser insignificante pois não quero chamar a
atenção de nenhum dos dois.
— Herdeiro de Guendri! — o aristocrata diz. — É uma honra estar aqui.
— É nossa honra recebê-lo, Lorde Vór.
Ao menos agora sei seu nome.
— É meu imenso prazer ver as criações de Guendri em ação. Tudo o que
Guendri cria ecoa fama por todos os povos que conheço e ser um dos poucos
a presenciar essa fama de perto é um convite irrecusável.
Que maravilha! Garou transformando Adaris em circo para entreter outros
mundos. É isso que somos para ele: bonequinhas para seu deleite. Não me
importa se as Valquírias aceitam isso. Essa certamente não é a função delas.
O pensamento faz as veias negras de meu braço se estenderem ainda mais.
As sinto queimar em mim uma nova extensão e eu tento de tudo para controlar
a raiva e não deixá-la dominar-me. Por Guendri, a última coisa que preciso
aqui é uma exibição física de magia não permitida em Adaris, e bem na frente
de Garou.
Ele, o Lorde e sua caravana seguem para a pequena arena assim que ouvimos
o anúncio do início do torneio.
Me viro de costas a todos e respiro aliviada quando penso que não fui
notada.
Ledo engano.
— Caliandrei.
Garou me surpreende, partindo-me ao meio entre a vontade de mandá-lo
para bem longe no universo e a necessidade de ser cordial.
— Regente. — abaixo a cabeça em sua presença. Decoro, minha odiosa
aliada.
— Vejo que finalmente resolveu aceitar meu convite. — ele comenta. Garou
convida a todos que o servem para apreciar o torneio, é daqueles que crê em
manter amigos perto, e inimigos mais perto ainda. Obviamente, nunca tive
curiosidade de vir.
— Obrigada por me receber, Regente. — forço minha voz a sair e escondo
meus braços e suas marcas. — É muito generoso de sua parte.
Garou se aproxima de mim e eu sinto o calor de seu corpo emanando de
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AS FILHAS DE GUENDRI
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FLORES
para começar.
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Contra a Parede
C
hapinha no cabelo, preso na parte de cima e solto na de baixo,
ganhando alguns centímetros a mais quando liso. De roupa, escolhi
um short shorts vermelho-escuro de cintura alta, camisa justa de
seda branca por dentro do shorts, e sapatilhas pretas. É a mesma resgatada
por Lucas semana passada. Apenas um irônico trocadilho a lá Cinderela.
Sinceramente, estou uma boneca. Prontissima para sair, linda, leve, solta
e… não, peraí, leve, linda, livre… louca, leve, livre… Como é que é mesmo?
O uber deixa Daniel e eu bem á porta do Alto e Bom Som, que já tem uma
enorme fila á sua frente, um pequeno fuzuê que momentaneamente me faz
desejar ter vindo mais cedo.
Logo avisto Alina. Mais alta impossível em seu super sapato de salto
combinado com sua estatura natural, num vestido de glitter dourado. Está
estonteante. Ela parece bem feliz ao me ver e após nos cumprimentarmos,
ela nos coloca á sua frente na fila V.I.P o que encurta e muito o tempo que
passamos na entrada. Ela nos apresenta a seus dois amigos. Eu a apresento á
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CONTRA A PAREDE
Daniel.
Para minha sorte, Alina e Daniel parecem clicar de imediato.
Quer que eu seja sincera? Minha preocupação seria Lucas querer trocar
uma loira por uma ruiva. Daniel estando aqui, já o ofereço para a fera ferida.
Ferida, aliás, por Bauer. Se ela gosta de morenos com tendências a darem dor
de cabeça na mulherada, ninguém melhor que Daniel.
Para o que não presta, sou uma estrategista.
Por um segundo pensei que talvez Bauer se importasse se Alina ficasse com
algum amigo meu, mas daí lembrei que é de Bauer que estou falando e não,
Bauer não se importa com ela nem um pouquinho.
Estou quase uma vilã de novela com tudo calculado. Enfim, não sou idiota.
Já marquei as cartas desse jogo e não vou perder. Ainda bem que Lucas só
pode aparecer mais tarde, até lá com sorte Alina e Daniel estarão se pegando.
Entramos.
A casa de show é de médio porte. Mesas, um palco na parte de baixo e uma
baita pista de dança no andar de cima. A vibe do lugar te deixa empolgado
para a noite por vir com uma decoração contemporânea e divertida, um luxo
em néon rosa e verde.
Assim que entramos, Alina nos apresenta a mais dois amigos que entraram
antes para preparar seus instrumentos para começarem a tocar. A vocalista
da banda é uma menina baixinha e muito simpática, e após uma conversa
rápida, lhes desejei um bom show. Deixamos os integrantes da banda para
trás e nos dirigimos ao bar, tentando conversar mesmo com a música alta
atrapalhando.
Embora estou jogando uma boa conversa fora com Alina, seus amigos e
Daniel, não consigo parar de olhar para a porta de entrada esperando ver
Lucas chegar.
E momentos passam e nada de vizinho gostoso.
Não consigo me divertir completamente.
Sabia que ficaria encanada com isso.
A banda, chamada Ramona Rox, começa a tocar e a noite vai rolando com
o lugar bombando de gente. Estou impressionada com a voz da vocalista e
até aprecio uma das canções, com um título que aliás parece rir da minha
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CONTRA A PAREDE
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CONTRA A PAREDE
???
Não.
Não.
Eu devo estar alucinando. Talvez ouvindo coisas, vozes do além.
Vozes do além pigarreiam? Pois é o que ouço na semi escuridão.
— Mo. Ra. Les.
Uma voz grave que a sinto vibrar em mim enuncia cada sílaba de meu
sobrenome.
Que voz é essa? Você me pergunta.
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S
ozinha, sentada num mal iluminado cubículo com paredes feitas de
um material que nunca vi, me escoro contra uma delas. Lança-espada
e escudo no chão a meu lado, faço meu melhor para controlar minha
respiração.
Estou pronta para a batalha.
Estou pronta para qualquer coisa.
Acima de mim, passos vem e vão. Alguns pesados, alguns arrastados. Mal de
estar no subsolo de uma arena quase cheia. Ouço vozes ao longe e tento meu
melhor para mantê-las distantes para me concentrar. Antes que eu reclame da
demora para iniciarmos, um estranho silêncio toma conta do ar, logo sendo
substituído por uma voz. A mesma voz que ouço gemer e rosnar indecências
em meus ouvidos.
— Sejam bem vindos a minha casa. Bem vindos a Adaris. — anuncia Garou,
ecoando em todos os cantos da redoma. — É com prazer que os recebo para
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AS FILHAS DE GUENDRI
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VENI, VIDI, VICI
Valquírias lutam com pressa. Elas mal esperam para atacar, posição
defensiva lhes parece ser uma fraqueza. Ouço os sons que suas lança-espadas
fazem ao acertar o escudo ou a arma alheia se misturar aos gritos e rosnados
de esforços das mesmas. É intenso e voraz.
Em compensação, o silêncio dos olhos famintos pela violência demonstrada
é ativo, só quebrado quando mais uma Valquíria cai e outra entra em seu
lugar.
Algumas delas agem como animais enjaulados, batem suas espadas contra
a grade e urram num agressivo sinal de adrenalina acumulada em quem mal
pode esperar sua vez.
Eu não faço nada. Não me movo nem reajo, não deixo nenhum pensamento
que não seja o de batalha entrar em minha mente. Não preciso de nada me
atrapalhando neste momento.
Observo que as Valquírias caídas não estão mortas. Feridas sim, mas não
mortas. Já imaginava que elas não matariam umas as outras. Não, isso seria
extremamente imbecil. Que pena, pois eu realmente queria enfiar a espada no
coração de uma, ou algumas essa noite. O pensamento em si me faz sorrir
de soslaio. Tudo bem, me contento com a vitória e alguns pingos de sangue para
provar que sou melhor que vocês.
Num contra-ataque impressionante, a recém chegada Valquíria vence a
outra que já tinha ganhado das cinco anteriores. Alguns aplaudem, alguns
vaiam.
A nova Valquíria agora urra para a plateia, provavelmente para quem a
vaiou. Balança sua lança-espada no ar e é estupidamente pega de surpresa
pela próxima Valquíria que entra na arena e já lhe amontoa nas costas. Para
se defender, ela gira algumas vezes e tenta bater a grande amazona que tenta
lhe enforcar contra as paredes de concreto.
Perdendo o ar ela cai no chão. A que lhe montava agora celebra a vitória
após chutar o imóvel corpo no chão, tirando-o de seu caminho.
A multidão vai a loucura.
Que chatice. Em minha um singular e aparentemente muito natural
pensamento.
Qual é a graça de ganhar e não poder remover a cabeça de seu oponente como
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AS FILHAS DE GUENDRI
Diferente das outras, eu não corro. Apenas caminho passos fortes até minha
oponente que está exaltada devido sua ultima vitória. Aliás, todos dentro e
fora desta arena estão eufóricos demais.
Menos eu.
Meus olhos estão focados, meu rosto relaxado. Meus punhos seguram
minha lança-espada e escudo firmemente. Se por um momento me preocupei
que alguém me reconheceria como não-Valquíria, até agora não o fizeram.
Isso por si só já me deixa mais tranquila. Na minha mente não tem mais
espaço para intromissões, dúvidas, nem nada além daquela amazona a minha
frente.
Cercada pelos corpos das perdedoras, respiro o odor de suas derrotas. Me
enoja apesar de eu gostar da adrenalina que começa a me consumir por estar
aqui e do que vou fazer.
Dou uma rápida olhada na direção de Garou. Ele está de pé e aplaude. Um
homem igualmente imponente mas não tão grande quanto ele está a seu lado,
sorriso e olhar notoriamente glaciais. Aquele tipo de olhar de quem admira
lutas, mas prefere ver a carnificina entre outros. Parece conversar com Garou,
mas este não tira seus olhos de mim.
Assista Garou e preste bem atenção, pois você será o próximo.
1…2… 3….
As palmas se acalmam e minha oponente avança contra mim. Desvio sem
dificuldade. Ela é barulhenta, exagerada em seus movimentos. Deveria se
economizar. Não retalio, apenas desvio de seus óbvios ataques. E assim
continuamos, numa dança onde ela conduz. Quero me poupar, elas perdem
por quê se cansam fácil e abrem espaços onde não devem. Querem mostrar
quão viscerais e perversas podem ser, aplausos são seus combustíveis e
objetivo. Não o meu. Não quero ser aplaudida, admiração de nenhuma dessas
pessoas me importa.
Como previsto, ela já se cansa. Essa luta me entedia. Seus movimentos
são repetidos, atingem apenas o ar e ao invés de mudar o repertório, ela
continua com mais e mais força. Me ocorre que todo esse evento é combinado,
roteirizado por elas. Não é possível que a segurança deste mundo está em
mãos tão incompetentes. Se for o caso, adorarei alterar seus planos.
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VENI, VIDI, VICI
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M
e desfaço do beijo para olhar quem me chama. Lucas continua
descendo sua boca por meu pescoço. Focando meus olhos,
encontro uma figura parada na semi-escuridão da entrada
do corredor, refletindo luz o suficiente para confirmar minha primeira
impressão.
— Bauer? — pergunto sem acreditar.
O que raios Bauer faz aqui?
Copo em uma mão e a outra no bolso da calça, as mangas da camisa azul-
claro dobradas e sua figura imponente impedindo o pouco de luz de entrar
no corredor.
Não sei se paro ou se continuo. Lucas parece não ter visto que temos
companhia, pois ainda me beija vigorosamente assim como suas mãos ainda
apertam minha bunda, me segurando contra a parede.
— Essa área é restrita, Morales.
Mas será o Benedito? Que que é? Bauer faz bico de segurança aqui agora?
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NUNCA MAIS EU BEBO
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AS FILHAS DE GUENDRI
— Alina me convidou, eu não sabia que você era dono daqui. — se soubesse
tinha pedido desconto na entrada, pois foi caríssimo. Completamente sem graça,
me sinto na necessidade de explicar a incrível coincidência de estarmos ambos
hoje a noite no mesmo lugar e sem combinar.
Por um breve momento Bauer parece se divertir com a situação.
— Eu a vi. Ela fez questão de me mostrar seu amigo. Qual é o nome dele
mesmo?
— Daniel.
— Isso, Daniel. Você tinha que ver, ela quase o engoliu na minha frente. —
Bauer ri e me circula, parando atrás de mim. — Interessante ela te convidar…
são amiguinhas agora? — diz com um tom de deboche.
— Melhores amigas, Bauer. — respondo com igual sarcasmo, tentando sair
de sua presença. Mas como uma boa bêbada clichê, tropeço. Para exponenciar
minha frustração, Bauer me segura. — Onde está Alina?
— Já se foi com o seu amigo.
— Pode me soltar, Bauer.
— Pra você cair e me processar por ter se machucado em meu estabeleci-
mento?
— Isso acontece?
— Mais do que você imagina.
— Que tipo de gente faz isso?
— Bêbados desastrados. Vem. — com um braço colado na minha cintura,
andamos até o bar mais próximo onde ele deixa seu copo de bebida e pede
uma água à bartender. Tenta me fazer beber o líquido gelado, mas não quero.
Aviso que preciso ir ao banheiro. Ele pede a bartender para que me leve até o
toalete feminino do staff, e ela o faz, me espera até eu sair do banheiro, onde
um braço do nada me prende pela cintura, de novo.
— Meu Deus Bauer, você vai deslocar minhas costelas se continuar me
apertando assim. — protesto.
— Vou te levar para casa. Onde está seu vizinho? — Bauer olha a nossa
volta. — Eu o levo também.
— Que caridoso. Mas não precisa! A gente chama um tax…
— Morales; — me corta— Se você acha que vou deixar um cara te levar
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NUNCA MAIS EU BEBO
bêbada e sozinha daqui, você está delirando. — ele avista Lucas. — Vamos,
seu amigo está na entrada.
Que situação ridícula! Meu chefe aparece do nada no meio da noite e
acaba com o meu clima! Se eu soubesse que esse bar é dele ou que ele estaria
aqui hoje á noite, eu jamais viria. Alina deveria ter me avisado. Será que ela
estava me usando para falar com ele de novo? Ou não me contou por quê
provavelmente eu não viria se soubesse - quem quer encher a cara usando
roupas curtas ao redor do chefe? Ou talvez ela achasse que eu já sabia… Claro!
Ele é meu patrão, eu deveria saber!
Ele me coloca no banco da frente de seu carro, ajusta meu cinto de segurança
e tranca a porta. Lucas senta no banco de trás.
— Eu quero ouvir musica. — digo folgada e procuro no mar de botões
aonde liga o rádio do carro.
— Cuidado, vai acordar seu namoradinho. — Bauer liga o motor.
Olho no banco de trás. Lucas já está roncando.
— Ele não é meu namorado. Ele já tem namorada. — solto uma risada
maliciosa. — Mas eles estão dando um tempo.
— Hum. E você não perdeu tempo.
Sorrio tortamente, mesmo ele dizendo isso com uma pontinha de maldade.
Meu sorriso morre. Verdade seja dita.
É meio falta de caráter de minha parte ficar com um homem semi-
compromissado, concordo. Mas o que é caráter quando temos a oportunidade
de beijar um cara lindo desses?
Vou me importar com isso quando minha cabeça não estiver rodando.
Enquanto faço auto-observações a respeito de minha breve falta de caráter,
pego Bauer analisando minha vestimenta de soslaio.
— Estranho te deixarem entrar em meu bar usando apenas essa calcinha. —
Bauer olha para minhas pernas. — Está um pouco curta demais, não acha?
Vai contra os códigos de vestimentas no meu estabelecimento.
— De calcinha? — encaro meu short shorts cor vermelho sangria. — Eu
não tô de calcinha! — me defendo.
— Perdeu na balada ou já veio sem?
— Chefe! Eu tô de calcinha sim, mas isso aqui é shorts! Short shorts!
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AS FILHAS DE GUENDRI
Nunca viu um? — não vou deixar meu short shorts ser ofendido dessa forma.
Comprei numa promoção e não é de todo o mal. — Nem todo mundo quer
andar por aí de Armano, Bauer.
— Armani, Morales. E esse daqui é um Ferragamo.
— Que seja. Aliás, desde quando você é dono de balada?
— Relutante dono de duas e sócio de algumas outras, então depende de
qual delas estiver falando.
— Ai, que metido! — zombo. — Me dê uma lista de nomes pra eu evitar
esses lugares.
— Não se preocupe, a partir de hoje seu nome já está na lista de pessoas
banidas em todas elas. Não conseguirá entrar nem com ou sem calcinha. —
ele tenta segurar a risada que minha silenciosa indignação o causa, mas acaba
rindo baixinho de uma forma que me faz subir um calor que não sei dizer
se é raiva ou vergonha. O fuzilo com meu olhar. — O quê? — ele me encara
de soslaio. — Deixar você entrar e começar uma briga por beijar namorados
alheios? Não mesmo. Isso acaba com a reputação de qualquer lugar.
— Essa foi a única vez! Sabe há quanto tempo eu quero beijar esse cara?
Ele não responde.
Aliás, ele acelera.
Quase achei que ia meter o carro num poste em vários momentos. Quero
gritar com ele, perguntar se esta ficando louco. Quis me dar uma carona para
me manter segura ou me matar ele mesmo?
Ao chegarmos em frente a meu pequeno prédio, acordo Lucas que com
certa dificuldade sai do carro, meio perdidamente se despede e sobe para seu
apartamento. Já eu…
Resultado da pinga + Bauer dirigido feito um louco, começo a vomitar na
beira da calçada, pensando na minha oportunidade perdida de dormir na
cama do meu lindo vizinho.
Bauer segura meu cabelo. Ah, nunca mais eu bebo.
— Vou processar o dono do Alto e Bom Som por deixarem me embebedar
tanto. — brinco depois da desconcertante cena. Bauer ri e pega uma
garrafinha de água em seu carro para que eu lave minha boca.
— Consegue subir as escadas sozinha?
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NUNCA MAIS EU BEBO
ele parece encontrar tudo sem dificuldade, como se já estivesse aqui antes.
— Vai me levar pra cama também, Bauer?
Ele parece confuso com a minha frase.
— Morales, você acabou de beijar outro cara e agora está dando em cima
de mim? — cruza os braços sobre a camisa molhada. — Sinto muito mas não
me aproveito de mulheres bêbadas.
— Não assim! Me levar pra cama no sentido de me carregar como me
carregou até agora!
Ele respira fundo virando a cabeça por um momento. Sem esforço ou aviso,
me ergue pelos joelhos, e dessa vez me põe sobre seu ombro. Chegando em
meu quarto, literalmente me joga na cama.
— Pronto. Satisfeita?
— Meu Deus, é assim que você trata seus funcionários? Jogando eles na
cama desse jeito? — reclamo ao bruto.
— Não, Morales, só você. Na próxima vez que eu te jogar na cama, prometo
que você não vai reclamar.
— Pois espero mesmo, hein. — não, espera… — Sua camisa me deixou toda
molhada. — foco em reclamar e outra expressão de quem se delicia com a
minha confusão aparece em seu rosto. — Molhada no sentido de que você tá
todo molhado e me colocou no seu ombro. — me apresso em explicar.
— Tenho certeza de que não é a primeira vez que te deixo assim. — mete
essa e sem hesitar ou tirar os olhos dos meus, Bauer abre sua camisa num
puxão só e a tira, e por tudo que há de mais sagrado na terra eu perco meu
ar por um momento e não consigo responder o que ele disse. Você começou
sua carreira como gogoboy no clube das mulheres? É o que eu quero perguntar
mas meu queixo continua caído, me impedindo a fala. De olhos arregalados
apenas fico em silêncio. Okay, eu não esperava por essa. — Pode me emprestar
uma toalha?
— E-eu acho que tenho uma toalha e uma camiseta grande o suficiente pra
você naquela gaveta ali. — nem sei para o que estou apontando porque não
consigo parar de olhar para ele.
— Só preciso da toalha. — Bauer acha uma numa de minhas gavetas e
começa a se secar. Quando termina, se aproxima de mim mesmo sem camisa
219
AS FILHAS DE GUENDRI
e tudo o que posso ver é o dorso definido que cobre toda a minha visão assim
que ele começa a me cobrir com as cobertas; eu tento soltar a respiração que
reparo que ainda seguro. — Agora procure descansar.
Eu ia começar a falar algo, mas Bauer me interrompe.
— Shhhh. Dorme agora.
Uma simples ordem em duas palavras e eu apago imediatamente. E acho
que já começo a sonhar logo em seguida pois posso jurar que sinto Bauer
beijar minha testa.
220
35
Marcas Em Sangue
C
omeça a ficar chato o jeito com o qual eu venço.
Eu não me canso por que não me esforço muito. É essa a tão
impressionante Guarda Regencial de Adaris?
Ser agressivo não significa saber lutar. Confesso que se uma dessas
empaladas que elas dão me acertasse em cheio, provavelmente eu perderia
muito sangue. As armas brancas são extremamente bem talhadas, afiadas em
perfeição. E apesar de ter recebido alguns dos socos e chutes, me recupero
com mais rapidez que elas. Um pequeno detalhe de minha anatomia da qual
ninguém aqui sabe e que apesar de ser uma vantagem, autocura não é algo
que eu possa controlar, já que esta funciona como bem entende.
A dor física me atinge sim, mas não me afeta na mesma proporção que
parece afetar as valquírias. Na verdade só me deixa mais alerta, mais
rancorosa. Tento não transparecer nada disso. Não emito nenhum “a” além
do necessário nessa arena, nenhuma interação com a plateia. Nem ao menos
221
AS FILHAS DE GUENDRI
olho para ela, apesar de ouvi-la fervorosa a cada empunhada de minha espada,
cada defesa de meu escudo.
Gritam tanto por mim. Ganhei a arena em duas lutas. Aqueles que me
observam são mais sanguinários que eu. A sina dos covardes: apenas assistem
o que não são capazes de fazer.
Essa Valquíria tenta me passar uma rasteira. Dou espaço, e ergo minha
perna o suficiente para deixar a dela se posicionar sob meu pé. Após a quebrar
o joelho com uma pisada, pego-a pela mesma perna recém-quebrada e a
arremesso alguns metros.
Estou perdendo espaço em meu rosto para uma nova risca de sangue. Já
perdi a conta de quantas abati. A pilha na arena está ficando maior, o espaço
para lutar diminuí. Seja lá quando for que essas valquírias acordem, me
pergunto o que farão quando descobrir que a vencedora não está entre elas.
Porque eu vou vencer.
Espero que a duvida as corroam por dentro.
Depois de ter dado uma joelhada na cara da nova combatente quebrando
seu nariz, a seguro pela mandíbula, parte da minha mão dentro de sua boca.
Ela tenta morder, óbvio. A posiciono de frente a mim e firmemente puxo-a
contra minha espada. Eu a deslizo em minha lâmina sólida, atravessando seu
ombro sem encontrar dificuldades ou barreiras. Minha espada agora ocupa
suas entranhas. Ela perde força e fôlego após murmurar alguma coisa contra
minha orelha, seu corpo pesado contra o meu.
Após ouvir seu ultimo soluço, a jogo para longe retraindo minha espada no
processo. De minha lâmina retiro a viva e ainda quente tinta que vai pintar
em meu rosto mais uma marca.
Oh, Guendri. Se você pudesse me ver agora. O pensamento é inato, e não me
lembro de já te-lo tido.
Após mais uma irritante onda de aplausos, Garou se pronuncia. Quero
olhar para ele mas apenas me ajoelho e abaixo a cabeça, como imagino que
uma maldita valquíria faria. Quando sua voz começa a ecoar estrondosa,
todos correm para se silenciarem e ouvi-lo.
Covardes.
— Bravo! Magnificente! — ele aplaude firmemente. — Jamais vi tão grande
222
MARCAS EM SANGUE
talento para as artes de combate. — mesmo não achando que Garou reconheça
minha voz pois não a ouve muito, espero que ele não espere uma resposta de
minha parte. — Pois bem, valquíria, chegamos a última etapa. — não posso
vê-lo pois ainda olho para o chão, mas imagino que tem suas mãos nas costas
e um ar prepotente. — Espero que tenha nos guardado algo especial para seu
último desafio: uma convidada de muito longe. Abram os portões!
Ele ordena e o fazem. Quando ouço atrás de mim algo pesado abrir e fechar
lentamente, me preparo para o que possa ser.
223
AS FILHAS DE GUENDRI
extasiado, ébrio com o banho de sangue, seus olhos brilham e não há nada
que Lorde Vór diga que o faça desgrudar os olhos da arena, de Alexis. Se
ergue e congratula a vitoriosa “valquíria”, lhe anunciando um ultimo desafio.
Congelo em meu assento quando vejo alguém desconhecido entrar. Não é
uma valquíria e não é de Adaris. Parece com uma das pessoas da caravana de
Lorde Vór, pálida com armadura toda azul-escuro e visivelmente superior a
da guarda Regencial de Adaris.
Alexis está de joelho fronte a Garou. Se levanta assim que ouve sua nova
oponente entrar e eu sei que ela vai para cima dessa combatente com o mesmo
vigor com o que lutou até agora. E que vencerá.
Não posso deixar isso acontecer. Preciso fazer alguma coisa!
Tenho uma ideia… é a única que tive, mas preciso tentar. Ao ve-la lutar,
Começo a entender quem ela era, quem ela é. Por isso, se funcionar, não sei
se Alexis vai me perdoar por isso…
224
MARCAS EM SANGUE
225
AS FILHAS DE GUENDRI
contra a força da magia que me segura, parando tão próxima de sua lâmina
que posso sentir o cheiro do metal.
Arfando, tento controlar minha mente. Estive à dois segundos de perder
meu olho e talvez a batalha. Ela retrai a espada e avança novamente, dessa
vez, bem no meio do meu rosto…
— De novo. — ele ordena, sua costumeira calma inabalada.
— Não consigo! — dou um soco nervoso no chão, indignada com o fato de que
não consigo fazer o que ele pede. — Me perdoe, mas não consigo. — não quero me
levantar. Não quero olhar para ele. Tenho vergonha de minha ineficiência.
Ainda no chão, o observo dar alguns passos para minha direita. Estamos num
lugar semiescuro, a mesma sala feita de grandes pedras de concreto onde minhas
lições ocorrem de forma privada para que eu possa melhorar minhas fraquezas.
De minhas irmãs e eu, sou a única impedida de possuir esse defeito.
— Levante-se. — não o faço. — É uma ordem!
Bufo. Obedeço. Me erguendo, fico a sua altura. O observo. Tem sobre si simples
vestimentas claras, que combinam com sua barba, pele e cabelos igualmente brancos.
Está próximo mas eu não posso ver muito além de sua silhueta.
— Vinte e cinco eras, Alexandrai. Vinte e cinco. — sua voz é suavemente rígida
contra o silêncio entre nós. — Acha isso pouco?
Ele se refere a meu tempo de treino. E não, não é pouco, mas eu não consigo.
É quase impossível acertá-lo, quase impossível vencê-lo. Não tem como, já estou
tentando desde que ele me deu direito a existência.
Não o respondo.
Num piscar de olhos, ele me cola na parede de pedras com sua espada dourada
contra meu pescoço.
— Assim como sua irmã, sua língua é sua maior fraqueza. — respirar é
complicado, pois qualquer movimento de minha garganta resultará em um corte.
Ainda assim, presto atenção em suas palavras. Elas me marcam mais que sua
espada. Mal parece o amoroso, orgulhoso e doce pai que é. Ele muda completamente
quando estamos aqui. — Não respondem quando lhes faço uma pergunta, mas
falam quando nada lhes fora perguntado, com a convicção de um tolo.
Estou trêmula sob a ponta de sua espada, brava comigo mesma por concordar
com o que ele diz. Engulo em seco e o movimento de minha garganta faz com que
226
MARCAS EM SANGUE
eu me corte.
— Vê isso? — ele passa o dedo numa gota de meu sangue que agora esta na ponta
de sua lâmina. — Seu sangue. Meu sangue. — ele passa o dedo manchado em meu
rosto, lentamente formando uma linha. Sinto o molhar do espesso líquido. — É
essencial que faça com que o sangue em seu rosto seja de seus inimigos, minha filha.
Não o nosso.
Sinto vergonha. E fraqueza. Ele vê isso nos meus olhos e a sensação só piora.
Isso o enfurece. Ele diz que quando fazemos isso durante nossos treinos, estamos
subconscientemente apelando por sua pena, pedindo para que ele seja brando. E ele
não pode ser. Deve nos treinar, deve nos fazer capazes de proteger nosso mundo.
— Precisa saber o que fazer quando houverem apenas dois segundos entre você e
a espada. — fala por entre os dentes semicerrados, retirando sua lâmina de meu
pescoço. — Jamais diga que não consegue. Você é minha melhor criação. E essa
não é a resposta que te criei para dar. — ele se aproxima e vejo meu reflexo em
seus olhos escuros. — Te dei meu sangue. Te fiz a partir de mim. Quem sou eu,
Alexandrai?
Com dificuldade lhe respondo.
— Guendri.
— E quem é você?
— Sou… Alexandrai de Adaris. Filha de Guendri. — ergo meu trêmulo queixo.
— Sua filha.
— E jamais se esqueça disso. — a precisão com a qual diz isso abala todo o meu
ser e a sala a minha volta. Olhando em seus olhos, eu juro ali mesmo obedecê-lo.
E jamais esquecer quem sou.
Dois segundos.
Dois segundos entre eu e a espada. Dois segundos entre eu e a derrota.
Dois segundos entre eu e o mundo.
Dois segundos entre eu e Guendri.
Extasiada.
Delirante.
Estática.
Todos os mundos param de rodar para mim nesse momento. A espada de
minha oponente acerta em cheio meu ombro pois em dois segundos desvio
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AS FILHAS DE GUENDRI
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36
Número Errado
C
om a ressaca passando e a noite de domingo caindo, eu passei o dia
todo moscando no sofá, fazendo maratona de um dos meu shows
favoritos e trocando mensagens de texto com alguns amigos.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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NÚMERO ERRADO
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AS FILHAS DE GUENDRI
Não me importo. Só não se apegue tanto dessa vez tão depressa. Não quero
te ver chorar de novo nem vir bater na porta do meu vizinho me assustando
mais uma vez.
232
NÚMERO ERRADO
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AS FILHAS DE GUENDRI
Nada.
Lucas não me mandou nenhuma mensagem até agora. Eu quero mandar
uma mas acho melhor não. Não quero que pense que estou desesperada.
Vira e mexe penso na noite passada. Não só na pista de dança com Lucas,
mas em Bauer virando minha babá. Na verdade, pensar em Bauer como um
todo no momento é complicado. Por que raios não me conta que é dono, ou
sócio de outros lugares? Por quê não falou que ia viajar? Ou por que não me
234
NÚMERO ERRADO
fala nada de nada? Sou sua secretária , eu deveria saber dessas coisas mais do
que qualquer outra pessoa.
Bauer, Bauer… quando não está sério, está com cara de que vai matar
alguém, ou que acabou de matar. Ás vezes flerta, e muitas outras vezes nem
nota minha presença. Nunca imaginei que ele seria quem seguraria meu
cabelo enquanto gorfo as biritas extras.
Meu reservado patrão, com senso de humor estranho e os olhos mais
bonitos que já vi. É, acho que fiquei com ele em baixo do chuveiro perto
demais e por tempo demais. Tenho em minha memória o desenho exato de
sua íris.
E por falar no diabo…
235
AS FILHAS DE GUENDRI
Confesso que não sei o que fazer, não sei qual é a norma. Eu sei que o jeito
como engatamos as coisas não foi o melhor. Bêbados no escuro, com ele
dando um tempo de sua namorada. Mas acho que ele provavelmente teria
entrado em contato comigo até agora depois de ontem, certo? Moramos
praticamente frente a frente, se ele me quisesse…
Ótimo. Agora terei esses pensamentos sobrevoando minha cabeça, atormen-
tando minha autoestima. Bem… talvez seja hora de reconhecer a possibilidade
de Lucas não gostar de mim como eu gosto dele.
E por que gosto dele? Eu apenas o vi algumas vezes no corredor, disse oi,
e… só. O beijo foi bom, mas… que superficial de minha parte desenvolver
sentimentos tão sérios por alguém que mal conheço, baseados apenas em seu
rosto lindo e no que imagino ser uma barriga tanquinho.
Na verdade eu nunca vi.
Sou péssima com essas coisas, não leio bem as pessoas. Achei mesmo que
ele flertava comigo. E não é o fato de querer o que não posso ter, eu o quis
por que a possibilidade de tê-lo existia. E ao invés de me dar um fora logo,
ele bebe e me beija, piorando tudo.
Bocejo. Nem percebo que estou prestes a cair no sono. Nunca digo não a
dormir, minha insônia não me permite tal luxo.
Com o celular ainda em mãos e sob o efeito dos famosos “cinco minutos”
de loucura, escrevo uma mensagem para Lucas:
“Estou louca pra te beijar de novo.”
Sinto vergonha alheia da minha própria cafonice.
Não aperto “enviar”. Apenas tento achar graça nessa idiotice toda e acabo
caindo num pesado e delicioso sono.
Caminhando sobre um chão seco, iluminada por nada além do céu que me cobre em
seu vasto neon púrpura, me pergunto onde estou, mesmo sentindo que já conheço
236
NÚMERO ERRADO
este lugar.
Não há como saber direções aqui. Não há com quem conversar. Não me lembro
por onde entrei. Não sei por onde sair.
Cobrindo minha pele trêmula tenho apenas algo que parece um vestido rasgado,
caindo aos pedaços. O pobre pano não faz nada para me proteger do ar gelado que
me petrifica toda vez que a brisa bate com mais força.
Paro aonde estou. Tenho a impressão de estar sendo seguida mas olhar á minha
volta é inútil, pois não posso ver muito nessa escuridão.
Respiraria fundo se pudesse, mas meus pulmões doem. O ar rarefeito deste lugar
me machuca por dentro e por fora, luta com meus alvéolos e recusa-se a ser absorvido
em meu sangue e me manter viva.
Subitamente, me assusto com o vago som de tambores. Paraliso, tentando
ecolocalizar sua origem. O som aumenta rapidamente, tom por tom, tum por
tum, um volume que invade meus ouvidos e preenche cada lacuna de minha cabeça.
Em autoproteção, coloco minhas mãos contra meus ouvidos, em vão. Acabo por cair
no chão e ferir meus joelhos, lutando contra o batucar de minha mente, tentando
gritar mais alto do que o som que a domina.
Consigo vencê-la e meu prêmio é o silêncio.
De quatro no chão, sinto algo quente escorrer por meu nariz. Não posso ver o
que é, mas tenho certeza de que é meu sangue. Isso sempre acontece quando não me
controlo.
Se eu não a domino, ela me domina.
Fujo de algo. Não sei exatamente de quê.
Engatinho no chão seco, escuro e rachado, que cheio de pequenas crateras e pedras
me castiga, e mesmo esgotada não desisto. Sinto que há algum lugar por aqui, algum
lugar no qual preciso chegar. Tento ser o mais rápida possível, rasgando mais meu
vestido e causando mais dano à minha já machucada pele.
Apalpando o chão, finalmente sinto algo: uma grossa raiz de árvore semicoberta
por terra.
Sorrio.
É aqui.
Continuo tateando e sigo a raiz que vai engrossando, e de uma acaba por
multiplicar-se em várias, todas me guiando para o mesmo vasto tronco.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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NÚMERO ERRADO
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AS FILHAS DE GUENDRI
como onda, cada gota de sua vingança, em peso e pressão, se unem e se quebram
sobre mim, me afogam e me exaurem de todo fôlego de vida que tenho, se esvai com
um único som vibrado contra a pressão de sua mão sobre minha garganta.
Ainda no paraíso particular que ele constrói para mim toda vez que nos unimos
assim, sinto-o despejar-se dentro de mim, sucinto e pulsante, sem desconectar seus
olhos dos meus.
Há limites em relação ao quanto uma mulher e um homem podem renunciar e
corromper entre si. Já ultrapassamos todos eles. Estou certa de que não resta mais
nada dentro de mim.
Desabo satisfeita, com um sorriso fraco em meus lábios. Ele me segura, não
me deixa cair. Nunca deixará de me proteger não importa o quanto queira me
machucar. Esse é seu defeito e ele sabe disso.
Jamais me deixará partir.
Por mais que invada meu corpo quando permito, sei que sou eu quem está dentro
dele.
E jamais sairei.
Tudo o que ele é pertence a mim.
Sim, eu venci.
Meu celular treme sobre minha barriga, aparentemente onde caiu depois
que peguei no sono. A vibração me acorda de um dos mais intensos e
possivelmente insanos sonhos que já tive. Minha respiração é ofegante e
minha dor de cabeça está pior do que quando acordei de ressaca esta manhã.
Mesmo ainda sonolenta e chocada com as imagens que minha mente
produziu alguns minutos atrás, checo o celular na ansiedade de que seja
uma mensagem de Lucas.
240
NÚMERO ERRADO
Não…
NÃO!
NÃÃÃÃÃÃO!
Que horas são agora?
Sete e meia da noite. Uma hora se passou.
Como que eu fiz essa cagada?
COMO?
Acordo completamente e pulo do sofá. Mandei dez mil mensagens
de “desculpa” e “mensagem errada”, mas para variar, Bauer não responde
nenhuma.
241
AS FILHAS DE GUENDRI
Meu Deus, será que ele vai me demitir? Considerar isso um desrespeito,
uma quebra de decoro profissional?
Após minha trigésima mensagem tentando me explicar, meu telefone toca.
É Bauer ligando. Congelo. Não quero atender, mas tenho que me explicar…
— Chefe!? — tento dizer mas a voz mal sai.
— Esse barulhinho de celular vibrando está me deixando louco. Se você
me mandar mais uma mensagem, fizer meu celular tocar mais uma vez, eu
juro que arrebento ele na parede, Morales. — declara na maior tranquilidade
do mundo. — E desconto um novo do seu salário.
— Ah… é que eu ia mandar aquela mensagem pra outra pessoa, mas daí
desisti, não vi que tinha mandado pra você e caí no sono, entende? Me
desculpa! Não estava sendo atrevida, não me demite… e também desculpa
encher sua caixa de mensagens, mas é que você não respondia então fiquei
preocupada, sabe… — estou desesperada mas tento soar normal.
— Acha que eu te demitiria só por que você quer me beijar, Morales? Então
nem teria te contratado. — não tenho certeza mas acho que ele solta uma
risadela aqui. Essa resposta/pergunta me tira do frenesi. Como assim? Quem
disse que quero beijá-lo? Nem consigo pensar numa resposta. Ele quebra
nosso extenso silêncio. — Meu Deus, Morales. Tenha senso de humor. —
Bauer critica e eu me pergunto como o Sr. Carranca tem a coragem de
insinuar que quem não tem senso de humor aqui sou eu. — Te vejo amanhã.
Cedo. O primeiro cliente chegará às 7:15, então não se atrase.
Após enunciar cada palavra, ele desliga sem nem esperar minha resposta.
Fico encarando o celular com cara de tacho, tentando entender o que acabou
de acontecer.
Respiro fundo. Ao menos não perdi meu emprego.
Massageio minhas têmporas e quer saber?
É melhor eu ir dormir antes que eu faça mais alguma cagada colossal para
estragar mais minha vida nesse final de semana.
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37
É De Minha Natureza
A
ssim que retiram o corpo inconsciente de Alexis da arena, Garou se
levanta e anuncia a vencedora. Ela não é uma valquíria, é do mundo
de Lorde Vór, aparentemente da guarda pessoal dele.
Durante a escandalosa sessão de poucos aplausos e muitas vaias pela derrota
de Alexis que tinha obviamente se tornado a favorita da plateia, aproveito
para sair pela lateral e ir até ela.
Ver aquela lança a atravessando doeu em mim. E não posso nem expressar
o que sinto já que não quero que ninguém saiba de minha conexão com a
amazona derrotada e sendo carregada para fora da arena.
Chego até o subsolo da arena. Algumas das valquírias derrotadas se
encontram aqui, sendo colocadas em cubículos separados, dependendo da
gravidade se seus ferimentos. Poucas voltam a si sozinhas, muitas precisarão
de magia ou poções para se curar depois de suas lutas com Alexis.
E como já prestei serviços similares a Garou, decido que este seria um
243
AS FILHAS DE GUENDRI
bom álibi para usar e estar ali, esperando por Alexis e ajudá-la eu mesma.
Enquanto procuro por entre as paredes de pedras grossas e escuras onde
levaram e deixaram Alexis, posso ouvir algumas das valquírias comentarem
sobre ela, perguntando quem ela é e como luta tão bem.
É uma habilidade nossa de fada nos restituir de alguns machucados. O
tempo e o tipo variam dependendo da espécie. Eu por exemplo, não posso
me recuperar de muito, um corte um pouco mais profundo sendo meu
limite, mas imagino que as valquírias tenham uma anatomia mais resistente,
caso contrário o torneio não existiria, pois dificilmente creio que Garou
sacrificaria a guarda regencial dessa forma tão boçal, sendo que Adaris está
mais fraca que nunca e precisa de proteção.
Mas como eu não sei exatamente a extensão das habilidades de Alexandrai
nessa área, quis me certificar que acordará rapidamente, caso contrário, usarei
a magia emprestada para fazê-lo.
Quando a encontro, reparo que não se move e por isso choro tão descon-
troladamente sobre seu corpo ao vê-la inconsciente. Igor, agora ela… eu não
consigo segurar. Meu peito arde com tristeza. Mesmo imaginando que ela
acordará eventualmente, só a sombra da ideia de não tê-la mais em minha
vida num futuro próximo por causa da jornada perigosa em que a coloquei,
me faz cair de joelhos e me prostrar no mais amargo pranto sobre as costas
dela.
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É DE MINHA NATUREZA
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AS FILHAS DE GUENDRI
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É DE MINHA NATUREZA
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É DE MINHA NATUREZA
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AS FILHAS DE GUENDRI
250
38
A
manhã de segunda-feira foi corrida. Não a toa, me pediram para
vir mais cedo. O acumulo de tudo o que não fiz semana passada dá
as caras hoje. Entre múltiplas ligações perguntando se Bauer havia
voltado e uma boa quantidade de empreendedores visitando-o para breves
reuniões, eu mal parei sentada.
É o que eu precisava hoje: um dia corrido, ficar ocupada e não pensar em
Lucas ou no mico que paguei ontem a noite com a mensagem que mandei a
Bauer por engano.
Flávio me pediu ajuda para comprar um terno para um evento da faculdade
dele, então aproveito o horário de almoço para acompanhá-lo.
— Você parece triste. Vai, me fala quê que foi que aquele paquito te fez,
Magrela. — ele diz ao sair do provador.
— Gostei desse aí, Flavinho. Experimenta ele com a gravata preta. — ignoro
sua pergunta.
— Verena, não muda de assunto.
251
AS FILHAS DE GUENDRI
Ás vezes esqueço que Flávio tem apenas dezoito anos, especialmente quando
ele fica bravo por eu mudar de assunto quando faz perguntas pessoais. Sua
voz fica mais grossa que o normal quando conversamos sobre algum assunto
sério e por ser super alto, quando isso acontece aparenta ser mais velho. E
agora, ao invés de sentir que tenho um irmãozinho mais novo, sua carranca
combinada com o terno que experimenta o fazem parecer um irmão mais
velho.
E ele realmente está enfezado com Lucas.
— Não quero falar mais disso, Flávio. Não tenho mais o que dizer. — eu
juro que estou prestes a chorar e Flávio pôde perceber.
Tanto que ele se aproxima e me abraça.
— Ele se aproveitou de você, não foi? — sinto seu queixo se mover sobre
minha cabeça ao dizer isso.
— Não é verdade. Ele também estava bêbado. E foi só um beijo, nada
demais. — desfaço nosso abraço ao lembrar que estamos dentro de uma loja
fina demais para tais demonstrações dramáticas de emoções.
— Então por quê você tá com essa cara? Quer que eu quebro o Ken no
meio? É só falar.
Suspiro me sentido querida e protegida por um momento. Homens.
— Obrigada, mas dispenso. Agora coloca a gravata preta, depois a de seda
verde-escuro. — ergo as gravatas na ordem que citei. — Aliás, por quê você
não me fala da garota que vai levar nesse evento?
— Como sabe que vou levar alguém? — Flávio soa surpreso.
— Como? — rio. — Você não ligou para os outros eventos da sua facu,
muito menos para o que vestia neles. E agora tá todo paquito, como você
mesmo diz, querendo até usar terno e gravata. É obvio que alguma garota é o
motivo disso.
Me olhando incrédulo ele põe a gravata preta e assim como imaginei: ficou
perfeita.
— Meu primeiro Ferragamo. — comenta Flávio enquanto o alfaiate tira
suas medidas. — Dimmy compra os ternos dele aqui.
Uma das poucas coisas sobre Bauer que sei. Aliás, o terno de Flávio e tudo
mais são presentes dele, que tenta mimar seu afilhado. Digo tenta, pois Seu
252
VOCÊ PARECE COM ELA
Jair filtra e muito isso. Bauer literalmente tenta dar tudo para Flávio, e se o
Magrelo não fosse um bom garoto e só aceitasse o extremamente necessário,
seria um porre dum moleque mimado que tem tudo o que quer quando quer
por causa do meu chefe.
— E aí, vai me dizer quem ela é?
— Se ela atender minha ligação, sim.
— Como assim? Ela não deu certeza?
— Ela é meio complicada. Mas não tem problema. Eu gosto dela assim. —
ele abre um sorriso tão grande que me convence. — Não quero falar dela
agora que é pra não zicar. Se ela for eu te apresento.
— “Apresenta”. — repito o Magrelo. — Isso significa que eu vou ter que ir
também, é?
— Comida e bebida de graça, e eu vou ganhar uma medalha nesse negócio,
se você não for vai ser muita mancada.
— Então tá. É melhor ela ser gente boa hein, senão eu arranco a peruca
dela.
253
AS FILHAS DE GUENDRI
minutos. — ele olha para o saco, daí olha para mim, depois inspeciona a
sacola novamente. — Juro que não estou tentando te envenenar. — brinco,
mãos as costas. — Flávio disse que você gosta de comida mexicana. — me
justifico.
Por algum motivo ele parece confuso. Ofendido até. Aos poucos seu rosto
volta ao normal, ou seja, sem expressão nenhuma. O que esse homem tem de
bonito, tem de estranho.
— Obrigado, Morales. — múrmura com dificuldade antes de se trancar em
sua sala.
Sento a minha mesa e em vinte minutos o próximo cliente entra. Um senhor
de terno cinza com barba e cabelos brancos. Bem vestido, boa aparência,
bonitão para sua idade, com um sofisticado sorriso estampado no rosto.
— Boa tarde, Senhor Dugrine. — o comprimento, mais entusiasmada que
o normal. Não o conhecia pessoalmente, apenas nos falamos ao telefone, mas
eu já sei quem é. E estou muito feliz, pois sempre o quis conhecer. — Muito
prazer. Sou a Verena. — estendo minha mão e ele a aperta com vigor.
— Você é a Verena! Que prazer imenso finalmente te conhecer!
— Igualmente. Por favor, sente-se. Gostaria de um cafezinho ou um chá?
— Café sem açúcar, por favor. Açúcar faz um mal danado na minha idade.
— ele se senta e eu preparo uma xícara. — Sempre ao telefone tentei imaginar
como você era. — solta uma risada empolgada. — Mas nunca imaginei que
você fosse a cara da minha filha mais nova. — comenta após sentar-se.
— Mesmo? — o entrego a xícara cheia.
— Mesmo. — ele pega a xícara e agradece. — Tenho três filhas, sabia?
Sim, eu sabia. Ele repete isso de vez em sempre.
— Casa cheia, uh?
— Ah, se é. Tem meus filhos também. Mães diferentes, eles são do meu
primeiro casamento então não somos tão próximos, infelizmente. Mas a mais
nova é a minha moleca, muito apegada a mim. E eu á ela. Igualzinha a mãe.
Teimosa que só. Cabeça dura, nunca me ouve, mas adoro o jeito bagunceiro
dela. Nunca achei que colocaria no mundo um furacão desses! — ri. Senhor
Dugrine é tão falador ao vivo quanto no telefone. — Já a mais velha vive
pegando no pé dela. Acho que é porquê eu e ela somos tão próximos. Ciúmes
254
VOCÊ PARECE COM ELA
bobo. A do meio tenta separar a briga das duas. As três brigam e brigam, mas
não se desgrudam.
— Assim são famílias. — comento fingindo que sei do que ele fala. Dugrine
é tão simpático que não me importo em ouvir as histórias de suas filhas.
Parece um pai bem orgulhoso. Fala delas como seu bem mais precioso. E
toda vez que o faz, sinto uma pontinha de inveja pois adoraria ter um pai que
falasse assim de mim para outras pessoas.
Minutos depois, Bauer abre a porta de sua sala.
— Dugrine.
— Dimitri.
Os dois se abraçam efusivamente. Bauer parece… feliz. Feliz em ver alguém.
Momento raro, eu deveria tirar uma foto.
— Finalmente veio me visitar.
— Só vim aqui pra finalmente conhecer sua simpática secretária. — sr.
Dugrine sorri para mim e eu sorrio de volta. — Traga ela a meu barco na
próxima vez que velejarmos, sim?
ELE DISSE BARCO? ISSO, ME LEVA! Adoraria velejar!
Seria essa minha chance de ter meu próprio véio da lancha?
A ideia me faz fazer uma careta.
— Não sei Dugrine, não confio em mais ninguém pra ficar aqui e cuidar
do meu escritório além dela. — Bauer me lança um olhar do qual eu não sei
retribuir. Finjo que não sei que ele confia em Lena mais que qualquer outra
pessoa para isso. E tudo bem pois ela é a melhor mesmo.
— Bem, então você fica aqui cuidando de tudo e ela vem comigo!
Eles riem e eu não sei se foi o que Bauer disse sobre confiar em mim ou o
convite que Dugrine fez para velejar, mas ao olhar para os dois sem querer
abro um mega sorriso de orelha a orelha.
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AS FILHAS DE GUENDRI
“Tudo bem? Então, queria conversar com vc sobre sábado, acho que fui muito
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VOCÊ PARECE COM ELA
precipitado e queria pedir desculpas. Não quero te perder como amiga. Te vejo em
breve. Uma boa semana pra você também.”
Hmmmm.
Fecho a mensagem.
Deleto a mensagem.
Deleto contato.
Desligo celular.
Jogo ele do outro lado da sala de recepção do escritório.
Meu peito queima e apesar de minhas fúteis tentativas de não chorar,
começo a fazê-lo com tanta força que minha cabeça começa a latejar de
dor.
Precipitado? Pedir desculpas? Por mensagem? Que droga Lucas, nós nos
beijamos e somos vizinhos, por quê não bate na minha porta e diz isso na
minha cara? Que tipo de homem é você?
— Boa noticia, Morales. Fechamos um contr… — nem vi Bauer entrando.
Ele pára e me olha. Seu sorriso desaparece, sua boca se torna uma linha reta.
Ele franze o cenho confuso, me observa e deixa uma longa pausa silenciosa
falar por ele. Se aproxima da minha mesa como se estivesse se aproximando
de uma bomba prestes a explodir. — O que aconteceu?
Bauer parece fisicamente desconfortável com meu estado emocional, como
se não pudesse se decidir entre me confortar ou sair correndo. Ele opta
por cruzar seus braços sobre a mureta de mármore branco a minha frente e
pacientemente esperar minha resposta.
— Não é nada. — digo quando finalmente consigo me controlar.
Ele revira os olhos, obviamente irritado com minha resposta.
— Nada? Tem certeza? — cético, tamborila os dedos sobre o mármore
branco.
Seco minhas lágrimas, cruzo meus braços sobre meu peito e tento explicar.
Preciso falar com alguém. Vai Bauer mesmo.
— Lembra do meu vizinho de sábado? — mal consigo falar. Choro mais
ainda.
— Ah, é isso. — ele revira os olhos novamente mas dessa vez não por
surpresa ou deboche, na verdade parece aliviado. — Era óbvio que isso
257
AS FILHAS DE GUENDRI
aconteceria, Morales.
— Como assim “era óbvio”? Você nem sabe o que aconteceu!
— Você mesma me disse que ele tinha namorada. O que achou que
aconteceria? Que ele a largaria por você?
— Não achei isso… — sim, era exatamente o que achei, só não queria
assumir a idiotice em voz alta.
— Então porque deixou ele te beijar? — pergunta irônico e eu não quero
responder. — Por favor, Verena. Não seja aquele tipo de mulher que dá muito
de si, aceita pouco de volta e depois se surpreende com os óbvios resultados
desastrosos da troca.
Eu sei lá que tipo de mulher eu sou! Eu só queria ficar com ele… sei que fiz
besteira. Não que Bauer esteja errado, mas eu não quero ouvir.
— Eu achei que Lucas gostasse de mim; Pelo menos um pouco.
— Se um homem precisa ficar bêbado pra te beijar Morales, dificilmente
ele goste de você. Sei que é inteligente o suficiente pra saber isso.
— Meu Deus, Bauer! Não precisa ser tão grosso, tão maldoso.
— Eu sou o maldoso? EU? — ele ri sem humor. — Você deveria me
agradecer por não te deixar ir pra casa sozinha com aquele cara, ou seu
arrependimento seria maior ainda.
Isso também é verdade. Mas agora não é hora de jogar na minha cara.
— Ah, é? — seco minhas lágrimas, irritada. — Que lindo receber lição sobre
relacionamentos de você, como se eu não tivesse que lidar com uma da suas
exs tentando quebrar a porta da sua sala porquê você viajou pra Búzios com a
irmã dela! — explodo. Não devia, mas eu estou revoltada.
— Ah. Então foi assim que a linda amizade se formou. — caçoa, olhando
para a porta da sua sala, provavelmente imaginando a cena.
— Vocês homens são todos iguais! — o ignoro. — TO-DOS-I-GUA-IS!
Você não sabe como é! Tenho certeza de que meu chefe, o senhor pegador
NUNCA PASSOU POR ISSO! Não sabe como dói!
Preciso falar o que sinto, preciso botar para fora tudo o que está em meu
peito.
Pacientemente me ouvindo e sem mudar sua expressão, ainda inclinado
sobre a mureta, Bauer estende a sua mão e segura meu queixo assim que eu
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VOCÊ PARECE COM ELA
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AS FILHAS DE GUENDRI
ira enquanto jurava que nunca seria como ela, que jamais choraria por um
homem.
Esse escritório está zicado.
Vou até o outro lado da sala e resgato meu celular.
— Joguei na hora da revolta. — explico a Bauer que não entende o que meu
celular faz atrás do sofá da recepção.
— Da próxima vez jogue algo mais barato, Morales. Esses aparelhos são
caros. — argumenta me fazendo rir entre as lágrimas.
Lembro da assistência que Bauer me dera no sábado. Não só a carona, mas
como um todo. Na hora, achei um infortúnio. Mas agora…
Paro na porta do escritório e antes de sair, me viro para ele.
— Obrigada pelo que fez por mim sábado, Dimitri. — pela primeira vez
uso seu primeiro nome. Por um momento, parece surpreso ao ouvi-lo sair de
minha boca.
Ele me assiste colocar minha bolsa nas costas e caminhar até a porta. Antes
de sair me viro para ele, e o vejo me lançar o sorriso mais genuíno que já vi
em seu rosto.
Em silêncio, não tento entender, apenas sinto o interessante efeito que isso
tem em mim.
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39
A (F)Utilidade da Resistência
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AS FILHAS DE GUENDRI
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A (F)UTILIDADE DA RESISTÊNCIA
— Eu não sou ninguém, Igor. — múrmuro mesmo sabendo que ele não
pode me ouvir. — Eu pensei que podia mudar alguma coisa, salvar nosso
mundo… mas não posso. Não adianta! Não há nada que eu faça que possa
alterar nossas situações. Na verdade… tudo o que faço só piora. Eu não sou
nada! — sem perceber, estou a gritar. — Por quê achei que eu podia salvar
Adaris? Eu não posso mudar nada! Sou uma chorona patética! Eu desisto
dessa droga toda! Desse plano estúpido! Não me importa mais!
As paredes do quarto de Igor ecoam o que digo, repetindo para mim o
acabei de dizer, de novo e de novo, confirmando minhas falas de fraqueza de
forma uníssona.
Parecem formar suas próprias vozes para acusarem meus erros, me julgarem
culpada e darem minha sentença: a derrota.
— S-se vo…cê… d-desis…tir ag-gora…
Espera... isso não é um eco.
Eu ouvi claramente?
Seco meus olhos e não acredito no que vejo ou ouço. Será que alucinações
também são partes dos efeitos colaterais da magia negra que corre minhas
veias?
Pois devo estar alucinando.
— I…Igor? — uno minhas forças e pergunto com medo da resposta.
Afobada, me jogo de joelhos ao chão do lado de sua cama. Seus lábios se
encontram semiabertos. Sim, é a voz dele! Eu a reconheceria em qualquer
lugar! Ele falou comigo! Tenho certeza de que falou comigo! — Igor! Igor! —
seguro suas mãos frias com firmeza.
Ele tenta mover os lábios lentamente e eu quase tenho um revertério
frenético quando vejo isso.
Igor acordou!
IGOR ESTÁ VIVO!
— Cali… — ele tenta sorrir ao dizer meu nome. — Por fa… vor, não cho… re,
minha pe… quena. — sua voz é tão fraca.
Eu não quero chorar novamente mas conter lágrimas de felicidade é tão
difícil quanto conter as de tristeza. Coloco todas as minhas frustrações de
lado. Igor acordou e isso é tudo o que importa. Mesmo deitado, tento abraçá-
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AS FILHAS DE GUENDRI
O tempo usado pelos humanos me fascina. Quem quer sua vida regida por
sessenta números que se repetem vinte e quatro vezes?
Dois dias.
Dois dias que sou serva desses malditos sessenta números.
Dois dias diretos com Garou.
Após o torneio no subsolo da arena, ele procurou por quem vencera todas
aquelas batalhas. Sem encontrá-la, veio exercer seu acumulado desejo em
mim. Isso é perversamente irônico, já que foi minha ira e violência enquanto
disfarçada de valquíria que o causou essa euforia.
Agora é meu castigo acalmá-la.
De qualquer forma, acabei sem poder dizer a Cali sobre a pista que Verena
decifrou no mundo humano, ou sobre a memória que tive de Guendri.
Mal tive tempo de me recuperar por completo. Nesse momento estamos
dentro de meu lago, ele me segura pelos quadris enquanto minhas palmas
agarram-se como podem na terra que cerca a beira das águas.
Com minha mente longe do meu corpo, faço uma introspecção do que se
passou até aqui. Do que mudou agora. Essas lutas acenderam acendeu algo
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A (F)UTILIDADE DA RESISTÊNCIA
dentro de mim. Sinto isso e não posso negar. Ao pisar na arena eu já sabia que
não era mais a mesma. Bem, ao menos a mesma que fui até então. É como se
uma peça desse quebra-cabeças que sou tivesse se encaixado. Mas não uma
peça qualquer: uma vital, uma peça que define e muito bem a imagem final.
E se eu não estivesse ocupada com Garou, tentaria entender a tal imagem.
— Seu corpo me inebria, minha bela… — sussurra em meu ouvido, com
uma mão que acaricia meu pescoço.
Assim que ele me solta com todo o cuidado, eu viro de frente para ele e o
estudo, cólera velada em meu olhar. Após tocar meu rosto com cuidado e
algum tipo de afeição, mergulha em meu lago para se refrescar, pois o calor
que criamos nos rodeia e nos sufoca.
Quando me deixará? Quero ficar sozinha para reorganizar meus pensamen-
tos e plano de encontrar Mabel com a pequena pista que temos. É por sua
causa que estou presa aqui, penso. É por sua causa que não consigo me libertar.
Vejo meu aprisionamento nele e minha respiração acelera. A raiva recomeça
seu lento caminho em meu coração, se espalhando aos poucos em meu sangue,
percorrendo minhas veias, iniciando e fomentando um descontrole irracional.
Quase o mesmo sentimento que me coordenou durante o torneio.
Minhas mãos tremem, acompanhando o arrepio que passa por minha
espinha. Eu quero enforcá-lo, e uma ideia me ocorre de como fazê-lo. Quero
e posso matá-lo, aqui, agora. O pensamento em si me excita.
Vou atrás dele e ele me olha. Um olhar diferente, confuso. Pressiono meus
lábios nos dele e o beijo com ódio, laçando minhas pernas ao redor de seu
abdômen e meus braços em volta de seu pescoço. Preciso colocar o nojo de
lado por momento. Não preciso mais esperar, mantê-lo vivo e enganá-lo.
Nesse momento, só quero que ele sinta meu tormento, minha inigualável dor.
Ainda no colo dele, não reparo que ele me move de lugar. Só me dou conta
quando sinto o áspero chão sob minhas costas. Mas me nego a ficar em baixo
dele dessa vez, preciso de um ponto físico de vantagem. Uso toda minha força
para virá-lo e consigo. Garou não esperava por isso. Posso jurar que vejo
desorientação em seu rosto ao me ver controlar a situação. Pudera. Eu nunca
fiz nada do tipo, apenas recebo suas ordens, calada e complacente, do jeito
que me ensinou a ser.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Deitado e toda vez que tenta se levantar, o pressiono de volta para baixo. O
Grande herdeiro de Adaris não quer aceitar a posição que lhe dei. Ele desiste
de tentar mudar nossas posições e só me assiste com o olhar mais intenso
que já recebi.
Eu odeio esses olhos cinzas.
Durante o torneio, redescobri a maravilhosa sensação de ter carne viva
contra minhas mãos. A cada valquíria e outra que caía, eu me deliciava
ao machucá-las e fazê-las sofrerem. Quem não gosta de ganhar? Julguei,
condenei e entreguei a sentença eu mesma, e senti seus corpos definharem
contra a força de minhas mãos.
Ah! É vivo, delicioso, intoxicante. Aparentemente é quem eu sou.
Sinto semelhante vontade de novo, de quebrantar e consumir algo por
minhas palmas. Sem parar meus quadris, coloco minhas mãos em volta do
pescoço de Garou. Quero sentir aquilo novamente. Ele não me impede,
apenas fita meu rosto extasiado, obscenamente curioso.
Maldito seja, Garou. Maldito seja o dia em que decidiu invadir meu corpo, tomar
o trono de Adaris e me enjaular. Maldito seja pelo que faz com Adaris, com seus
habitantes, até com as estúpidas valquírias. Por não procurar meu pai ou minha
irmã, e por não me dizer a verdade.
Tento juntar minhas palmas em volta de seu pescoço com mais força mas
ele é tão grande, seus músculos tão fortes que temo não causar metade do
impacto que gostaria. Mas não importa. Minha mandíbula se fecha com
força, minha gengiva dói com a pressão. Meus braços obedecem e as mãos
seguem as ordem de meus pulsos.
Seus olhos saltam um pouco, parecem inquietos com a pressão agora não
tão intima quanto ele achou que seria. A força é tremenda, eu sinto sua
garganta e fechar e seu corpo começar a responder ao que eu tento fazer.
A movimentação anterior se transformara eu outra coisa, outra coisa da
qual ele tenta se defender, suas mãos grandes ao redor de meus pulsos. Ele
não consegue me parar e me encara. Eu o assisto tentar me conter, respirar,
seu rosto avermelhando. Tenta falar algo por entre os dentes.
Sorrio.
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A (F)UTILIDADE DA RESISTÊNCIA
Minha cabeça embaixo da água, me sinto sufocar, engolir sem querer, líquido
invade todo e qualquer orifício de minha cabeça. Eu nunca tive medo das águas, ao
contrário, é minha aliada, me protege e me esconde, me cobre e me acaricia quando
o nada é tudo o que tenho. Mas aqui aonde estamos, nem eu nem elas temos controle.
Sou forçada contra ela, e ela me machuca. Uma mão puxa meu cabelos, trazendo
minha cabeça para fora dela, ar de volta a meus pulmões. É escuro quando abro
os olhos. Não vejo nada. Não há nada para se ver. Apenas ouvir. E são essas as
palavras que tão claras é impossível não ouvir;
Não conseguirá se livrar tão fácil assim, Alexandrai, esse é seu eterno castigo.
Render-se a mim é o que merece por ter perdido. Não é digna. Não é limpa. Você é
sórdida e é minha. Eu sou sua prisão, não esse lago nem essa escuridão. Eu. Seu
corpo e sua alma me pertencem. E você deveria ser mais grata a isso. Te lavei de
toda impureza e te curei de todos os males. Por mais que me deixe ou saia daqui,
sempre estará presa a mim. Sou sua razão de viver. Aceite isso de uma vez por
todas.
Seu pai não virá te salvar, minha bela.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Termina.
Aqui.
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Eureka!
D
entro de um ônibus no caminho para casa, eu olho a chuva forte e
passageira dominar e deixar São Paulo ainda mais caótica. Eu tento
controlar o choro dentro do transporte público. Quis demorar o
máximo possível para chegar em casa hoje e tentar evitar esbarrar em certos
vizinhos. Então, nada como pegar um ônibus em Sampa em horário de pico
se você quer demorar muito a chegar em qualquer lugar.
Saio da minha fossa momentaneamente quando meu celular começa a
tremer no bolso da minha jaqueta jeans.
— Lena? — seco a lágrima que escapa de meu olho. A ligação de Lena me
surpreende. Ela não é de ligar, é mais do tipo que manda mensagens rápidas
e efetivas. Tento me lembrar se esqueci de fazer alguma tarefa no trabalho. —
Tudo bem?
— Comigo, sim. E você? Ainda chora? — como assim “ainda” chora? Lena
não estava no escritório hoje, não me viu chorar. — Dimitri pediu pra te ligar.
Está preocupado. E pelo que ele disse, eu também fiquei. Ele achou que você
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EUREKA!
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EUREKA!
com o tal do Garou e ele descobrir o portal? É uma possibilidade. Devo ter
cuidado.
Paro de bater. Lembro que ela disse que o portal fica no fundo de seu lago.
Será que ao nadar pode me ver?
Não é uma ideia muito boa, mas é a única que tenho: pego um caderno e
escrevo o seguinte:
“Acho que descobri o que significa a mensagem que Igor escreveu.”
Rasgo o papel do caderno e o penduro com fita adesiva contra o espelho
para que ela possa vê-lo quando olhar através dele.
Espero impacientemente. Minutos parecem horas quando estamos an-
siosos. No meio tempo, aproveito para tomar um banho, secar o cabelo e
trocar de roupa.
Ah, como eu precisava disso. Ocupar minha mente com algo diferente. Algo
estranhamente diferente, concordo, mas qualquer coisa agora é melhor do que
ficar na fossa. Tentando ser produtiva e lembrar as outras coisas no papel,
fecho os olhos, me arrependendo de não ter tirado uma foto do bendito com
meu celular.
Mas vamos lá Verena, você consegue…
Haviam círculos… e mais o quê? Uma torre, acho… uma torre? Sim,
acho que era uma torre com um relógio bem no topo. Ou não. Igor não
é necessariamente um Michelangelo das artes, mas é o que parecia.
Ando em círculos pelo meu quarto na esperança da minha cabeça pegar
no tranco. Lembro de uma letra avulsa que se repetia várias vezes. Acho
que a letra era… hmmm… vamos ver… acho que era a letra P… ou talvez um
Z… não, era um T várias vezes.
Faço uma nova busca na internet do meu celular procurando por Paranapi-
acaba de novo, pois nunca ouvi falar de lá de antes de sábado.
“Um distrito do município de Santo André na região da Grande São Paulo”.
Na primeira foto da página de pesquisas vejo uma torre com o relógio no
topo. Bingo. O lugar existe e é mais perto que imaginei. Bem… mais perto
que o Estado do Paraná, que fora minha primeira hipótese.
Paranapiacaba é uma vila paulista que fora outrora abandonada, mas que
agora parece tomar vida novamente com as renovações para fins turísticos.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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EUREKA!
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Resoluções Noturnas
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RESOLUÇÕES NOTURNAS
estranha afeição por essa humana. Me diverti com ela, me abri para ela,
e senti um forte dever de salvá-la de uma certeira morte. Mas não era nem
para estarmos nos falando agora, ela não devia nem se lembrar que um dia
me conheceu.
Mas tudo bem, aceitei a ajuda. Já o que não estou muito afim de aceitar
é seu cenho franzido ao me olhar enquanto se arruma e suas perguntas.
Mesmo contente, eu estou sem paciência para isso. Ainda não me recuperei
totalmente da minha estúpida e falha tentativa de assassinato e o que
aconteceu por causa dele. Não é culpa dela meu estado mental e emocional,
ainda assim…
— E seus olhos estão vermelhos e inchados como se tivesse chorado e muito.
— retruco. Se é para apontar coisas desconfortáveis, façamos isso.
Ela engole em seco. Deixa óbvio que não quer falar sobre o que a incomoda.
Pois é Verena, eu também não quero conversar sobre o que me atormenta. Não
quero falar sobre o que acabara de acontecer entre eu e Garou. E por mais
que a memória de meu pai tenha sido um grande momento, não é o momento
certo de destrinchá-la. O foco agora é encontrar minha irmã.
Minha observação faz com que Verena continue colocando algumas coisas
que quer levar em uma bolsa, como faca, água, mexericas e dinheiro em
silêncio.
— Bem, agora vem a parte mais difícil. — recomeça após fechar o zíper da
bolsa, colocar uma jaqueta preta e dar nós em seu par de tênis brancos. —
Pedir a Daniel que nos empreste sua moto.
— Poderíamos ir voando. — sugiro apontando para minhas costas, já
sabendo a resposta.
Ela apenas me olha incrédula.
— Ou podemos ir de moto. — continua. — Eu poderia chamar um uber,
mas minha conta está conectada a do meu chefe e eu não sei exatamente como
explicaria a ele uma visita à um cemitério em Paranapiacaba tarde da noite
de segunda-feira. — se explica, cenho franzido. — Só tem um problema: eu
não sei andar de moto.
— Eu sei.
— Com CNH e tudo?— Verena ergue as sobrancelhas.
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AS FILHAS DE GUENDRI
— Igor tem uma moto. Diz que é a única forma de andar por São Paulo.
Minha identidade falsa é uma habilitação. — e quando eu tinha esperanças
de viver entre humanos, eu tinha decidido que compraria uma para mim
também.
Rio mentalmente. Lembro de minha sede em ficar no mundo humano, ser
como eles. Essa pessoa que fui há dias atrás me soa tão distante agora.
— Isso é estranhamente conveniente. Mas ótimo! Vou falar com meu
vizinho. Me deseje sorte. — Verena vai até a porta mas antes de
sair vira para mim. — Você teria mais um vidrinho de elixir adariano?
Aquele que convence as pessoas a fazer coisas estranhas?
Alexis não tinha mais vidrinhos de delicioso elixir convencedor com ela,
então estamos na estrada com a moto que Daniel emprestou só depois de
muita encheção de saco minha e parte do meu salário desse mês.
Confesso estar surpresa pelo fato dela conduzir as duas rodas habilmente.
Pois bem, me agarro a ela e até agora não morremos.
Sem muito transito e duas horas depois, estamos na cidade de Paranapi-
acaba. Apesar da escuridão, dá para ver o cemitério poucos metros a nossa
frente já na entrada na cidade assim como o mapa mostrou.
Olhando ao nosso redor, não vemos ninguém.
Devo dizer, eu poderia até andar aqui de dia, mas agora a noite? Não sei do
que tenho mais medo: dos mortos ou dos vivos. Um súbito pavor quase faz
borrar-me de pânico. E provavelmente borraria se Alexis não estivesse aqui
comigo. Sou medrosa mesmo. Mas como já vi do que Alexis é capaz, relaxo
um pouco.
Após acertar um plano inicial de procurar por qualquer coisa fora do normal
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RESOLUÇÕES NOTURNAS
(como se a situação fosse normal em si), dou meu celular com sua lanterna
embutida acesa para Alexis e a faço ir na minha frente, sem dizer a ela mas
deixando claro que a uso de escudo.
Caminhamos lentamente enquanto eu tento ver se decifro mais alguma
coisa no papel de Igor. A luz do luar é uma boa aliada agora, banhando tudo
de prata e deixando a área um pouco mais visível.
— Cruzes e mais cruzes. E flores mortas. — Alexis quebra o silêncio. —
Que pena que estão mortas. — não entendo porquê ela diz isso com pesar
então decido ignorar. — Nunca entendi porquê vocês colocam cruzes sobre
seus mortos.
— Faz parte do rito religioso predominante da região, no caso o Cristian-
ismo. Mas há cantos do mundo onde fazem coisas diferentes. — respondo
sem pensar. — O que vocês fazem em Adaris? — fico genuinamente curiosa.
— Não sei, ainda não matei ninguém pra saber. — Alexis responde e eu
não sei se brinca ou se fala sério. Ignoro para o meu próprio bem. Sempre
imaginei fadas mais no estilo fofo Cali de ser, e descobrir o tipo Alexis é tão
fascinante quanto assustador.
Os pequenos animais a nossa volta decidem fazer aleatórios barulhos que
só me deixam mais amedrontada. Corujas, corvos, ratos… toco minha bolsa,
me certificando de que minha faquinha punhal está a postos. Sempre a trago
comigo. E sempre espero não precisar usá-la.
— Estes círculos… não entendo seus significados. — tento focar na tarefa.
— Bem… em outras vezes, Igor fez círculos parecidos. Talvez não seja nada.
— Pode ser. E essas linhas cruzadas? Você já o viu desenhá-las antes?
Antes que Alexis responda, minha mente não vê mais as linhas desenhadas
como linhas, mas talvez possam ser referências aos trilhos de trem da cidade.
Eu pensei nisso já na moto e agora, acho que faz mais sentido. Se não
encontrarmos nada aqui, vamos até a torre e depois vasculhamos os trilhos e
os vagões.
Não sabemos exatamente o que procuramos. Mas temos chão para cobrir,
então procuramos assim mesmo, andando entre túmulos altos e baixos,
algumas estátuas novas, outras velhas e quebradas de santos e anjos mudos,
estáticos. Todos sem nenhuma dica ou direção para nos apontar.
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RESOLUÇÕES NOTURNAS
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a cabeça.
— Eu lembrei dele, Verena. — ela me fita. — Meu pai, Guendri. Sua espada
em meu pescoço, me arrancou sangue para ensinar uma lição que esqueci.
Serei sua vergonha quando voltar, quando descobrir o que me tornei, o que
deixei fazerem de nosso mundo e de mim. — fala as últimas palavras com nojo.
— Acho impossível alguém sentir vergonha de você, Alexis… — falo com
toda a sinceridade.
A alta e bela fada tenta se manter forte a minha frente. Não, não entendi
tudo o que falou, mas se teve uma lembrança mesmo de seu pai isso é um
grande acontecimento. Por isso ela está desse jeito? Agora entendo. E me
sinto mal por ter extravasado com ela.
— Eu preciso encontrar Mabelai, Verena. — sussurra. — Isso tem que
terminar hoje. Eu só volto para Adaris quando encontrá-la.
— Mas e se nós não…
— Você não entende. Não existe mais outra opção. — o olhar de Alexis é
resoluto. — Não tem mais volta, Verena.
Meus problemas parecem infinitamente menores diante dos de Alexis.
— Sei que não pode parecer muito ou que vá ajudar mas eu estou aqui, Alexis.
— temos muito em comum em nossa solidão, e o nosso maior denominador
comum agora é a necessidade de um abraço. Sei que é pouco para muitos, mas
para alguns significa um porto seguro em meio ao mar caótico do mundo.
Sem ninguém para me dar um, eu roubo um dela mesmo.
Ela demora, mas abraça de volta. Com força que estrala alguns de meus
ossos.
— Eu não preciso acreditar em Adaris pra poder te ajudar, Alexis. Você
salvou minha vida! Sim, pode ser sua responsabilidade cuidar de um mundo
todo, mas faço da minha agora cuidar de você. Se você não puder voltar para
Adaris pode morar comigo. Dividimos o aluguel. — brinco para confortá-la,
apesar da oferta ser verdadeira. Assumindo um tom mais sério, eu continuo.
— Eu acho que entendo como você se sente, tudo que conhece pode estar
prestes a mudar drasticamente, ou não. E os dois casos são assustadores. Mas
saiba que mesmo eu não sendo ultra forte como você, pode contar comigo
para qualquer coisa que aconteça. Não vou te deixar sozinha. A gente vai
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RESOLUÇÕES NOTURNAS
encontrar sua irmã e acabar com a raça daquele elfo safado. Juntas, entendeu?
Ela demora para responder, mas sinto-a fazer que sim com a cabeça contra
meu ombro. Desabraçamos e ela me olha em silêncio. Não sei se minhas
palavras a fazem se sentir melhor, mas ela parece mais convicta a continuar.
E o fazemos.
Mais adentro do cemitério passamos por mais flores mortas, covas que-
bradas e até mesmo uma macumba com frango e tudo. Momentos passam
sem nenhum sinal de nada que possa significar algo. O decadente cemitério
é maior do que pensei.
Alexis continua andando, olhando para os lados e não para a frente. Ela
não vê o grande mausóleo logo adiante, caminha em direção á ele e se der
dois passos a mais, tromba.
— Alexis, cuidado! — exclamo e ela olha a sua volta em alerta, e depois para
mim.
— Cuidado com o quê?
— Você quase deu de cara com o mausóleu! Esse casebre com portão de
ferro aí na sua frente. — explico, caso ela não saiba o que é um.
Ela olha a sua volta novamente, virando lentamente num giro completo e
retorna a luz do celular para mim.
— Não vejo nada. Que mausóleu, Verena?
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Não Há Como
— Descanse. Tudo vai ficar bem. Você e Alexis estão bem e é só isso que eu
preciso.
É a última coisa que digo a Igor antes de deixá-lo descansando. Contei a
ele algumas coisas e escondi muitas outras, apenas para ajudá-lo a descansar
e se recuperar em paz.
Quero ficar com ele, quero me certificar de que ficará bem. Mas preciso
voltar para Adaris em breve, principalmente saber se Alexis conseguiu fugir
sem problemas e se está segura.
Preciso encontrá-la para saber o que ela quer me dizer.
E também para dizer-lhe que acho que desisto. Que para mim já chega. Que
não consigo mais continuar. Que tudo que achei que ganharia ao começar
essa jornada, eu perdi.
E que Adaris me perdoe mas não sou forte o suficiente para continuar.
Meus erros, um por um, despedaçam meus sonhos. Fui inocente, causei
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NÃO HÁ COMO
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NÃO HÁ COMO
Olho a minha volta para entender o que acontece. Não encontrando nada,
olho para cima.
— O quê…?
Uma massa negra enorme coberta por uma penugem cinza escura, preta
e dourada bate suas asas vigorosamente sobre mim. Parece um pássaro
mas trinta vezes maior, talvez até maior que uma barlosa. Circula no céu
acima de mim, tem entre oito e dez chifres, olhos agressivamente vermelhos
acompanhados por um bico torto na ponta que é provavelmente do meu
tamanho!
A besta-fera continua voando por sobre mim e quando cruzamos olhares,
chia ensurdecedoramente em minha direção, enérgica e violenta, me avisando
de que eu me tornei sua presa.
Olho a minha volta novamente, não acreditando em meus olhos. Seria isso
uma ilusão proveniente da magia negra? Eu nunca tinha visto nada do tipo.
Nem em Adaris, muito menos aqui, e creio que um monstro desse tamanho
chamaria no mínimo a atenção de quem perambula pela mesma calçada que
eu.
Mas ninguém mais ao meu redor parece ver o que vejo!
Um casal passa por mim aos risos e abraços, me deixando mais confusa
ainda do que eu já estou. São Paulo e seus habitantes parecem completamente
sossegados, sem se preocupar com a massiva besta de garras afiadas e chifres
que sobrevoa sua preciosa Avenida Paulista no momento.
É como se aquela colossal fera só existisse para mim. E quando ela chia
novamente e investe em minha direção num bote certeiro, caio para trás
ainda hipnotizada pelo que vejo. Sem conseguir me acertar, bate suas asas e
voa ainda mais alto. E por mais que eu queira ficar e assistir tamanhas asas
em ação, meus instintos acordam e gritam em minha cabeça que agora é hora
de correr.
E eu o faço em desespero e pavor.
Largando sacola de flor e tudo para trás, a besta que só eu vejo emite ainda
mais sons ao me ver correndo atravessando a larga e movimentada Paulista
em direção a Augusta, tentando não acertar os carros que passam e não ser
acertada por um.
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AS FILHAS DE GUENDRI
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NÃO HÁ COMO
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43
M
e aproximo de Alexis e oriento sua mão que segura a luz do
celular em direção a pequena construção com barras de ferro
que formam portões e um cadeado pendurado por uma corrente
que dá duas voltas aonde as barras se encontram.
Alexis continua procurando, seu olhar indo em diversas direções e eu me
pergunto se de repente ela ficou cega.
— Atrás de mim. — aponto com o dedão sobre meu ombro.
Ela olha. E olha. E olha.
— Não tem nada atrás de você.
— Como não? Olha o tamanho desse negócio. Portões, cadeado? — falo,
franzindo meu cenho e apontando para os objetos citados.
Olho novamente para o mausóleu como um todo. Comparado à outras
covas, ele é bem maior, bem mais sofisticado. Na verdade, se destoa de forma
que não parece pertencer aqui.
— Bebeu veneno humano antes de virmos, Verena?
292
QUANDO O CHÃO SE ABRE
Por um momento acho que Alexis está de palhaçada comigo, mas ela está
séria e não acho que está em clima para brincadeira depois da quase briga
que tivemos minutos atrás. Ela realmente acha que bebi algo e estou vendo
coisas. Mira a luz de meu celular sem direção, ainda procurando o que eu já
encontrei.
Para ter certeza de que a louca não sou eu, resolvo tocar no negócio. Coloco
minhas mãos cheias nas barras, que geladas preenchem minhas palmas. Dou
até uma chacoalhada para garantir e ouço o barulho dos ferros batendo e
corrente movendo assim que mexo no cadeado.
— Não ouviu isso? — pergunto sem entender como seria possível não ouvir
aquilo.
Aparentemente é, pois Alexis faz que não com a cabeça.
Como posso estar alucinando um mausóleu no meio do nada? Porquê
Alexis não pode vê-lo também? Sou eu que estou vendo demais ou ela quem
vê de menos?
Tive uma ideia para confirmar qual de nós duas está ficando louca. Peço
meu celular de volta a ela e resolvo tirar uma foto do lugar. Me afasto um
pouco e ajusto o flash para não ter desculpas. Em segundos bato algumas
fotos.
E confesso que não esperava o que vejo nelas.
— Mas será o….?? — resmungo. Bato outra foto e xingo quando o resultado
se repete.
Nada!
Na foto, apenas a continuação do caminho pelo qual passamos com túmulos
e vasos velhos dos dois lados. Alexis vem até mim, levemente confusa com
minha tiração de foto constante.
— E então? — ela se posiciona para ver a tela do celular. Quando a imagem
confirma o que os olhos dela veem, ela me olha em silêncio.
Eu também não entendo. Eu olho a minha frente e o pequeno casebre ainda
está lá!
— Alexis, eu não tô louca! Eu sei o que tô vendo, precisa acreditar em mim.
Tem um mausóleu aqui!
O olhar de Alexis é de curiosidade. Peço a ela que segure o celular
293
AS FILHAS DE GUENDRI
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QUANDO O CHÃO SE ABRE
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AS FILHAS DE GUENDRI
— Claramente, fadas não podem ver certas coisas. — explico a ela. — Mas
enfim Alexis, não temos tempo pra discutir isso agora. Ainda temos uma
boa parte da cidade pra procurar sua irmã caso minhas suposições sobre o
desenho de Igor estiverem erradas. Esse é o último canto desse cemitério que
não procuramos ainda.
— Espera. — Alexis me segura pelo braço e antes que eu diga qualquer
coisa, ela rasga a parte de baixo de minha regata branca num puxão firme
e enrola o trapo em minha mão que ainda sangra, dando um firme nó para
estancar o líquido.
Agradeço o gesto e a encorajo a me seguir. Hesitantemente, ela o faz. Ainda
usando meu celular como lanterna, damos alguns cautelosos passos á frente
e encontramos uma escada de pedra, em espiral. Descemos tentando não
tropeçar, já que a luz do luar não alcança aqui dentro e a do celular começa a
ficar fraca por causa da bateria.
A parte inferior do mausóleu é composta de chão de concreto, paredes de
pedras, areia e pó. Muito pó.
Olhando a minha volta e orando para não encontrar nenhuma cobra ou
aranha, sou surpreendida por luzes que se acendem de repente, providas
por velas espalhadas pelos agora visíveis quatro cantos da pequena sala de
aparência tosca e rústica. Alexis também se assusta com as luzes e desliga o
celular quase drenado de bateria, guardando-o em seu bolso.
Quando vejo que a parede do lado esquerdo da pequena sala possui uma
aparência diferente das demais, me aproximo dela. Tinha pedras, algumas
pequenas, outras grandes, desalinhadas e com acabamento diferentes, com
símbolos em algumas delas. Alguns eu já vi antes em livros, filmes, internet.
Muitos outros, nunca.
— Verena, olha isso. — Alexis chama minha atenção para o chão.
Três círculos, um dentro do outro, sendo que o do meio continha mais
símbolos, alguns similares aos da parede, mas em vermelho vivo.
— Esses símbolos… acho que são alguma… magia… — Alexis parece ter
dificuldade para falar. Olho para ela e posso ver que não está bem. — Eu
preciso… sair daqui…
Eu me sinto normal mas a fada parece estar a ponto de desmaiar a qualquer
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QUANDO O CHÃO SE ABRE
momento. Me pergunto por que Alexis não pôde ver o casebre antes e ao
entrar nele começa a se sentir fraca.
— Calma Alexis, segura em mim, vamos sair daqui.
Coloco seu braço sobre meu ombro e passo uma mão em volta de sua
cintura, apoiando a minha ainda dolorida e ensanguentada mão contra a
parede de símbolos estranhos, tentando ajudá-la a se mover. Mas antes que
dessemos qualquer passo adiante, um tremor abala o chão e tudo mais a nossa
volta.
Terremotos? Em São Paulo?
Horinha propícia para a raridade acontecer!
Mantendo-nos de pé com dificuldade, tento ser mais rápida ainda quando
vejo que o chão no meio da sala onde os círculos estão desenhados começa a
se abrir.
Digo a Alexis para se segurar firme em mim e tento correr com ela, mas mal
consigo me equilibrar. Sem muitas opções, nos abaixamos tentando proteger
nossas cabeças de serem atingidas por detritos.
Quando o tremor para tão repentino quanto começou, nos reerguemos. E
para nossa surpresa, um caixão branco e fechado, se ergue do chão aberto,
flutuando.
O nível de bizarrice dessa noite está começando a passar dos limites para
os quais me preparei mais cedo.
Em choque, Alexis e eu nos entreolhamos. Quero tirá-la daqui, mas não
posso acreditar no que vejo no centro da sala. Me assegurando de nossos
arredores, vou até o outro lado da sala, tentando me aproximar do caixão
com cautela.
Com incerteza, o toco cuidadosamente.
E para minha surpresa ele se abre sozinho, vagarosamente. O som que
parece madeira, range e ecoa. Alexis se levanta e se aproxima, mesmo em seu
fraco estado a curiosidade é maior.
Cruzamos nosso olhar incerto, uma de cada lado do caixão. Quando temos
coragem de olhar dentro dele agora aberto, o fazemos juntas.
Mas não há nada que poderia ter nos preparado para isso.
Em meio a alguns detritos numa sala onde a luz fraca de velas acompanha
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AS FILHAS DE GUENDRI
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Temos Companhia
O
lho para Alexis tentando adivinhar o que se passa em sua mente
agora.
É perceptível que sua condição piora mas ela se esforça para
ficar de pé, fitando, vidrada o que está dentro do caixão.
A mulher em vestes brancas parece dormir solene, como qualquer outro
corpo nesse estado. Exceto que sua pele clara brilha literalmente, e não há
sinais de decomposição. Seus longos cabelos vermelhos tornam seu semblante
ainda mais vívido. Em seu peito, apenas a ponta de uma lâmina parece estar
cravada em seu coração, mas que pela posição parece ter sido enfiada por
trás.
Ela não respira. Pálida, imóvel, intacta como uma estátua de mármore. Ao
mesmo tempo que parece estar morta, é estranhamente óbvio que não está.
— Será que é ela? — o silêncio aumenta meu pavor. Para quebrá-lo, digo
o óbvio em voz alta. Bem… é um cemitério, essa pode ser qualquer outra
defunta.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Alexis parece que vai desmaiar a qualquer momento. Ela não me responde,
mal pisca, hipnotizada pela mulher, se mantendo de pé com as poucas forças
que lhe restam. É impossível dizer o que passa em sua cabeça agora.
O lugar a está afetando e encontrar sua possível irmã na seguinte situação
também não ajuda. Lembro-me do que Igor falou na noite em que o conheci,
na noite em que o deixei entrar em minha mente. Disse-me que Mabel teria
cabelos vermelhos e a pele clara. Zombou do por que Guendri faria irmãs
fisicamente diferentes.
E sim, ela é o oposto de Alexis.
Uma vez ouvi um dos meus personagens favoritos num dos meus shows
favoritos dizer algo sobre coincidências… o que era mesmo? Ah, que o universo
raramente é tão preguiçoso.
Essa moça tem que ser Mabel.
Mal percebo que estou ofegante, meu coração prestes a saltar pela boca.
Num lento movimento, Alexis ergue a mão para arrancar a pequena ponta de
metal do peito dela.
— Espera, Alexis. — peço a ela e vou até seu lado do caixão. — E se
for algo nocivo a fadas? É melhor eu tentar tirar. — raciocínio depois de
tudo que tem acontecido com ela aqui desde que encontramos o casebre de
cimento e concreto. Sem dizer nada ela concorda e eu coloco minha mão
não machucada dentro do ataúde, no espaço entre o braço de Mabel e a seda,
tentando cutucar um caminho nas costas dela até achar a coronha da bendita,
já que está claro que esta lhe foi cravada pelas costas. Bem, já que ela não
está realmente morta, então movê-la não é um sacrilégio, certo? Assim o
faço. Com dificuldade, sinto carne desconectar de aço e retraio bem rápido,
olhando para o sofismado objeto agora em minhas mãos.
E se não fosse a outra faca sendo lançada em nossa direção acertando de
raspão a minha mão, a adaga não teria caído agora na barriga de Mabel.
Espera…. outra faca?
O quê???
Seguro a mão que outrora boa agora tem um pequeno corte para chamar
de seu e olho na direção de onde o objeto voador fora lançado.
— A-alexis, acho que temos companhia… — meu medo quase impede minha
300
TEMOS COMPANHIA
voz de sair.
Duas mulheres com armaduras metálicas dos pés a cabeça que parecem ter
saído diretamente de um filme sobre amazonas medievais surgem do nada, e
bloqueiam a passagem por onde entramos.
— Traidora! — uma delas exclama, sardônica.
— Valquírias… — Alexis anuncia mas apenas me deixa com um mega ponto
de interrogação na cara.
Quem ou o quê são valquírias? Acho que Alexis já falou nelas, mas não
me recordo no momento. Seja lá o que são, não parecem interessadas em se
apresentar, nem em conversar pacificamente.
O que fazem aqui? Como chegaram aqui? Estariam elas por trás disso
tudo? Teriam elas feito isso com Mabelai e guardam seu tumulo para que
ninguém encontre?
— Acha mesmo que não nos conhecemos, impostora? — pergunta a jamanta
metálica. — Achou mesmo que colocando uma armadura poderia passar-se
por uma de nós? — ela aponta uma lança-espada para Alexis, que se afasta e
usa da parede para se apoiar.
— Alexis? Do que elas estão falando? — indago, meu pânico aumentando.
Antes que Alexis possa me responder, uma delas se aproxima e a chuta no
peito, derrubando-a. Eu grito o nome de Alexis e tento alcançá-la, mas a
outra tal de valquíria vem até mim a passos largos e me segura.
— Traindo seu mundo e seu Regente com a ajuda de humanos, fada? — a
que me segura diz atrás de mim. Tento me desvencilhar mas é impossível,
ela é forte demais e machuca meu braço, dando-me a impressão de que irá
quebrá-lo se apertar um pouco mais.
— Reaja! Não queria mostrar que é melhor que nós na luta? — a outra
chuta Alexis novamente e ri um som que beira o frenesi de sádica satisfação.
Me dói não ver Alexis lutar de volta, não se defender. Este lugar a afetou
tanto. Me arrependo por não te-la tirado daqui a tempo.
— Me solta, sua CRETINA! — grito para a que está atrás de mim, enquanto
me movo com tudo o que eu tenho na tentativa de fazê-la me soltar.
— Cale-se, humana imunda. — diz e chuta Alexis. — Acha que ouvirei
ordens de um ser inferior? — sem dificuldades ela ergue Alexis pelo pescoço
301
AS FILHAS DE GUENDRI
302
TEMOS COMPANHIA
ar, mas não preciso de muito para ser afrontosa. Por quê eu disse isso?
Apenas a irrito ainda mais.
— Maldita humana imunda! — fala por entre os dentes e eu me pergunto
novamente porque pensamos no mundo humano que todas as fadas são fofas
e serenas.
— VAI… PRO… INFERNO!
Vejo-a pressionar uma medalha circular contra uma das paredes, fazendo
com que ondas parecidas com as que Alexis faz em meu espelho ao passar
por ele apareçam, e me pergunto o que mais cruzará o mundo entre humanos
e Adaris. Mais fadas? Cali? Mais valquírias? O próprio Garou?
Seja lá o que for me fez amarelar de medo.
— Maldita seja, humana! Escória da existência entre todos os mundos! —
ela ainda rosna contra minha face, chegou tão perto que sinto seu capacete
gelado contra minha testa.
Ela me arrasta até o portal enquanto luto contra sua forte mão, minha
cabeça latejando com a falta de oxigênio. Olho de relance para meu lado e
vejo Alexis caída, imóvel e com seus olhos fechados.
— Não… Alexis! — meu grito ricocheteia nas paredes de pedra, que em vão
apenas faz ecoarem minhas palavras para ninguém. — Você precisa acordar,
reage!
Meu Deus… será que ela morreu?
Sem saber da resposta fico calada e trêmula. A amazona de Adaris cruza o
portal que abriu, me levando junto com ela e tudo que posso ouvir é meu grito
de desespero enquanto a escuridão me abraça numa centrífuga atemporal e
me joga num escuro vazio e sem fim.
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45
Ele
P
osso sentir meu corpo sendo carregado.
Quem me carrega pára, nos abaixa e gentilmente me deita no chão.
Já sou capaz de abrir meu olhos. Fora daquele lugar começo a me
recuperar.
— O que aconteceu?
Reconheço a voz que faz a pergunta, como também os intensos olhos azuis
e o rosto de quem me resgata. Ele não parece nada feliz. Não que já tenha
parecido antes.
Não sei como, mas aqui está ele. No meio da noite que esfria, no cemitério
de Paranapiacaba. Camisa social, gravata e um sóbrio terno aberto e de cor
escura. Mesmo com a feição que expressa preocupação, sua presença como
sempre parece inabalável.
Este é o homem que auxilia Cali e eu em nossa busca por Mabelai. Nos
ajudou a encontrar a todos os voluntários, como Jaqueline e também Verena,
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ELE
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AS FILHAS DE GUENDRI
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ELE
para manter minha espécie longe. Dimitri respira fundo, mas não responde.
Não sei se sabe a resposta ou se não quer dizer quem foi. Tenho tantas
perguntas em minha mente com relação a tudo isso que mal sei enumerá-las.
— Como soube que eu estava aqui?
— Pelo celular de Verena. Faz parte da rede de celulares do meu escritório.
Posso localizá-lo digitalmente em qualquer lugar do mundo. Torna mais fácil
saber aonde ela está.
Essas invenções humanas podem ser extremamente uteis a quem sabe usá-
las. Lembro que Verena disse que seu chefe a questionaria quando visse um
uber de nossa viagem em sua conta e por isso queria evitar usar o serviço.
Ela não deve saber que basta ter o aparelho consigo para que ele soubesse
onde esteve e eu não sabia que o tal chefe em questão é ninguém mais ninguém
menos que Dimitri.
Eu sei que ele a conhece. Nos disse quando ela estaria na festa do vizinho
Lucas, nos deu seu endereço, nos avisou como estaria vestida, etc. Por isso
fomos lá encontrá-la. Mas não nos disse que são tão próximos, convivência
diária.
Por isso ele não nos quis indo em seu escritório? Para que ela não nos visse?
Lembro-me que o aparelho ainda está em meu bolso pois o usei como
lanterna a noite toda e por isso agora está sem bateria. E também, a aleatória
fala de Verena durante nossa discussão sobre como seu chefe não sai de sua
cabeça faz bem mais sentido agora.
Começo a desconfiar que o sentimento seja mútuo.
— Encontrei pedaços de um corpo, muito sangue roxo de valquíria, e isto.
— Dimitri me mostra a adaga. — Por tanto tempo procurei por isso. — ele
fala mais para si que para mim. — Agora só preciso encontrar as outras. Foi
você quem a usou na valquíria que explodiu?
Faço que não com a cabeça. — Eu apaguei completamente antes de ver
o que aconteceu. Mas recentemente enfiei lâminas em várias valquírias e
nenhuma explodiu.
— É a adaga. Você não faz ideia do que isso aqui é capaz. — explica
observando o objeto. — Então Verena matou uma valquíria… — resmunga
para si. Posso jurar que mesmo irritado, ele ri disso para si.
307
AS FILHAS DE GUENDRI
Eu perguntaria por quê acha graça nisso, mas o telefone de Dimitri toca.
— E então? — atende com pressa.
— Humana, Dimitri. Cem por cento humana. — o silêncio da madrugada
e minha proximidade a Dimitri me permitem ouvir a voz no outro lado da
linha. É de homem.
— Tem certeza disso, Gregório?
— Absoluta. Passei o sangue que coletei dela na consulta por todos os testes
possíveis.
— O que diabos… — Dimitri olha para mim. — Já encontraram a ruiva. E
uma adaga estava nela.
— Se a encontraram, então não usaram a correta. — conclui. — Ah, antes que
eu me esqueça: meu radar detectou um Kroll na cidade esta noite.
Dimitri parece surpreso com a notícia. Eu provavelmente também estaria
se soubesse do que falam.
— Aonde? — franze o cenho.
— Sobrevoando próximo a Augusta.
Dimitri pensa em silêncio por um momento.
— Vou levar a ruiva até o Hotél. Encontre-me lá imediatamente pois preciso
sair assim que deixá-la com você.
Ao desligar, Dimitri imediatamente liga para outra pessoa que atende sem
demora.
— Encontrou? — a voz também masculina pergunta. Dimitri responde que
sim. — E Verena?
— A levaram.
— Quem?
— Valquírias.
— Hah. Vai resgatá-la, príncipe encantado? — o homem zomba no outro lado
da linha, calmamente rindo baixo. — Vai pra Adaris de cavalo branco e tudo? —
a gargalhada agora é alta e me enfeza.
— Gregório está a caminho do Hotel. — Dimitri ignora a brincadeira.
— Vocês dois ficam com a ruiva enquanto eu vou buscar a Verena. Esteja
preparado. Tem um Kroll nessa dimensão.
— Um caçador? Aqui? — agora a voz do outro lado muda de tom. — Uau, há
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ELE
quanto tempo não vemos um? Suas amiguinhas de asas conseguem cada coisa… mas
é como dizem: quando uma fada bate as asas em outro mundo, inicia-se o caos por
este aqui. Eu te avisei pra ficar longe delas. De novo. Mas você não consegue ficar
longe daque…
— Estou a caminho, Téo. — Dimitri o corta.
— Olha, eu tô meio entediado. O doutor pode ficar sozinho com a ruiva. Não vai
precisar de uma ajudinha em Adaris?
Dimitri desliga o telefone sem responder, colocando-o no bolso da calça.
— Quem são esses homens e o que sabem sobre Adaris? — estive sob a
impressão de que essa missão era um velado segredo em um seleto e pequeno
grupo de ex-habitantes. Aparentemente me enganei.
— Nada que vá ajudar ou prejudicar seu mundo. — me assegura. — Você
veio pelo espelho do quarto de Verena?
— Como sabe? — começo a segui-lo até seu carro, apenas alguns passos
atrás dele.
— Ela bebeu muito sábado passado e eu lhe dei uma carona. Entrei no
quarto dela, vi que recentemente abriram um portal. Quando ela caiu no
sono, investiguei o lugar. Um elfo conseguiu entrar no apartamento dela no
dia anterior e você a salvou. — como sabe? Quis repetir a pergunta, mas nem
preciso, ele continua explicando como se lesse minha mente. — Cogitei pelo
cheiro que ficou no lugar. A famosa olência das fadas é malditamente doce,
inconfundível. Algumas espécies élficas fedem. É fácil distinguir.
Continuamos a andar pelo cemitério, recebo todas as informações tão
rápido quanto ando. De repente me lembro do que ouvi alguns minutos atrás:
um caçador?
— Cali. — digo, irritada por não ter pensado antes. Um caçador na região da
Augusta. — Cali está cuidando de Igor esta noite.
Dimitri pára aonde está e respira fundo, fecha os olhos e leva uma mão
as têmporas, impaciente. Então, calmamente pega seu celular e digita uma
mensagem. Após fazê-lo, me explica:
— Afonso irá atrás dela. — seja lá quem for esse, que seja competente o
suficiente para protegê-la.
A rede de aliados de Dimitri vai se expandindo em minha frente e minha
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AS FILHAS DE GUENDRI
curiosidade sobre o que ele e esses homens possam ser não demora aparecer.
— Tem um time e tanto a sua disposição. — comento. — Quando iria nos
informar sobre ele? — eu e Cali perjuramos segredo quanto a todas as coisas
envolvendo Dimitri e outros humanos, mas ele não parece tão preocupado
em manter o mesmo decoro quanto a nós.
— Sim, tenho alguns sócios. E estaríamos em melhor vantagem para te
ajudar se soubéssemos de seu plano de antemão. Você deveria ter me dito
que encontraram outra pista e que viriam para cá esta noite.
— Foi tudo muito rápido, não tive tempo de avisar ninguém, nem mesmo a
Cali. Verena quem encontrou a pista assim que saiu do trabalho hoje e entrou
em contato comigo através do portal no espelho dela. Eu não tenho mais
tempo a perder e ela quis vir comigo de qualquer jeito.
Mesmo de costas para mim, reparo que todas as péssimas notícias no
máximo causam Dimitri Bauer um breve desconforto, pequenos impropérios,
pedras em seu caminho fáceis de chutar. Mas é só algo envolver Verena para
vê-lo reagir verdadeiramente, cólera outrora contida agora visível em seus
olhos.
Se eu suspeitava, agora tenho certeza. Não é só a adaga que ele quer.
— E como vieram pra cá? — aproximamos seu carro. Aponto para a moto
estacionada do outro lado da rua sob a luz do poste.
— Ela pediu emprestado ao vizinho dela.
— Lucas? — ele pergunta com um certo desprezo na voz.
— Não. O outro, todo tatuado. Verena o prometeu dinheiro.
Dimitri retira seu terno, abre a porta de seu carro e o joga lá dentro. Eu me
aproximo do veículo. Me abaixo, tentando olhar dentro dele mas os vidros
são tão escuros, só consigo ver meu próprio reflexo. Sei que Mabelai está la
dentro no banco de trás.
O que não sei é porquê quero vê-la mas ao mesmo tempo tenho receio.
Dimitri vê meu impasse e vem para o meu lado do carro.
— Ela vai acordar assim que se recuperar da adaga. Sua autocura requer
mais tempo quando as feridas são mais profundas. Não há nada que
possamos fazer por ela agora. — com um tom brando ele segura meus
ombros, quebrando meu olhar que está grudado no vidro do carro. — Agora
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ELE
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46
Despedace-me
E
scuridão aos poucos se transforma num prisma de luz novamente
assim que saímos do vórtex bizarro pela qual a valquíria me fez
passar.
Chegando onde quer que seja este lugar, a cavala me joga com força no
chão e eu vomito, nauseada da nossa pequena viagem cósmica.
É assim que fadas atravessam os mundos? Passando por um liquidificador?
De quatro no chão dou uma olhada nos meus braços e agora vomito pelos
pedaços de seres não-humanos que se encontram sobre mim, especialmente
pelo dedo sem unha que vejo agarrado no cabelo que cai sobre meu rosto.
Mesmo colocando tudo para fora, a intensa sensação de ter acabado de sair
de uma centrífuga não passa.
— Levante-se! — late odiosamente minha captora.
— Aonde estamos? — pergunto ainda no chão e achando que ela vai
responder.
Me arrependo de perguntar assim que ela me acerta um tapão na lateral
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DESPEDACE-ME
da cabeça que me deixa surda do lado direito. Meu ouvido agora zune. A
valquíria me força a ficar de pé e a começar a andar, uma mão segurando-me
pelo cabelo, outra em meu braço.
Mesmo com dificuldade dada a minha situação, observo meus arredores.
Onde quer que eu estou, não parece nenhum lugar que já estive na vida.
A seca terra desse chão tem tons marrom escuro. Plantas são grandes mas
não todas verdes como as de meu mundo. São pretas, secas e compridas.
Algumas tem algo que parecem folhas, muitas outras não. Não começam
apenas no chão mas sim por todos lados, incluindo o céu. E são enormes.
Algo pinga de algumas delas, um tipo de orvalho bizarro de cor vermelho
escuro. Um desses pingos cai em meu all star branco e para meu choque
parece vivo, vai rolando de um lado para outro.
Dou um grito, paro de andar e começo a chutar meu pé no ar, querendo
me livrar daquele negocinho esquisito. A valquíria ignora meu chilique, me
puxando para perto de si novamente e me arrastando consigo.
É confuso olhar para o horizonte. Ele move mas não girando lentamente,
como na Terra. Não, ele dá umas tremidas ás vezes, daquelas que você tem
que olhar de novo para confirmar que aconteceu. E ele muda de cor depois
da tremelicada, mantendo um tom escuro e alaranjado, te fazendo duvidar se
mudara mesmo.
Que raio de lugar é esse?
Tento me livrar da mulher como fiz com sua amiguinha antes de vir parar
aqui. Tento aproveitar algum momento de fraqueza dela. Tenho que usar esse
meu jeitinho brasileiro para alguma coisa, tirar vantagem quando ela estiver
de bobeira.
Um segundo pode ser tudo o que eu preciso e a única vantagem que eu
tenho.
Apesar de eu estar cansada e quase surda de um ouvido, assim que a chance
aparece, percebendo que ela afrouxa sua pegada em meu couro cabeludo,
puxo meu corpo contra o dela. E já que eu estou á sua frente, faço de tudo
para lhe acertar a única parte de seu rosto que não está coberta por armadura:
seu queixo.
Dou uma cabeçada para trás e ela perde um pouco do equilíbrio, soltando
313
AS FILHAS DE GUENDRI
314
DESPEDACE-ME
da minha mente, e o meu nado que sempre foi uma porcaria agora é apenas
eu me debatendo debaixo d’água, mais afundando que indo para cima. Meu
lado sarcástico faz apostas do que me matará primeiro: a mulher peixe ou a
asfixia.
Não sei se devo agradecer ou xingá-la, mas a valquíria que me sequestrou
agarra meus cabelos por fora da água. Seu braço forte me dá um mega puxão
que me retira do lago e da mira da sereia.
Eu finalmente respiro fundo, tossindo, peito e garganta doendo, os dois
pulmões desesperados para recuperar todo o ar que fiquei sem.
— Humana imbecil! — raiva estampada em seu rosto ela puxa mais ainda
meus cabelos e tenho certeza que dessa vez deve ter arrancado algumas
mechas.
Eu responderia se pudesse falar. Olho para minha frente na esperança de
ver quão próximo a sereia esteve de me pegar, mas para a minha surpresa…
Não há lago nenhum ali.
Por isso não o vi antes. O lago não existe. Ou ao menos… não é visível. A
minha frente somente chão, continuação de mais chão ainda.
— Cadê o lago? E a sereia? — perguntei como se a odiosa valquíria fosse
responder.
— Eu devia ter deixado a iara te engolir viva! — ela diz, me colocando de
pé de novo pelos cabelos e fazendo-me segui-la.
Iara? Olho para trás… e ainda não vejo o corpo de água. Eu estou molhada,
o lago existe. Aliás, me lavou de boa parte do sangue da outra valquíria.
Depois de andarmos por um tempo (melhor dizendo, ela andando e
puxando meu cabelo, me forçando a andar junto) chegamos a um titânico
lugar do qual nunca vi nada igual.
Parece um castelo… mas bem, não é exatamente um castelo. Tem as medidas
de um, mas a aparência de uma… árvore? Uma árvore metálica? Ou de
concreto? Tem galhos que se estendem por boa parte de suas laterais, buracos
que parecem janelas cobertas por uma vidraça furta-cor.
É arquitetonicamente de se admirar. Uma enorme e bela mistura de
concreto gótico e orgânico fosco. Contudo, também é assustador. Cheira a
decadência, mas tem a imponência de um palácio. Tive a ligeira impressão
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AS FILHAS DE GUENDRI
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47
Perdoe-me a Interrupção
I
ntroduções são tão… tediosas. Certamente já ouviu falar de mim.
Cali já deve ter lhe contado sobre nosso pequeno trato. Deve ter lhe dito
algo sobre a minha forma vaporosa, ou contado sobre meus afiados dentes em
sua pele.
Confesso mordê-la com mais força que o necessário. Não me julgue, quando
tiveres uma fada em sua boca, me entenderá.
Ela me chama de “sombra”.
Sombra.
É o apelido mais estranho que já me deram.
Eu tenho um corpo. Mais de um, na verdade. Uma especialidade de seres como eu.
Todavia, meu verdadeiro corpo (que também é meu favorito por ser minha forma
mais bela), está desaparecido.
Para ser mais precisa, meu corpo foi retirado de mim. Sequestrado.
Apesar de suspeitar, não sei ao certo com quem está.
Imagino que quem o levou de mim, o fez decidindo me prender.
Me punir.
Ele achou que assim me deixaria longe de seus brinquedinhos. Que assim me
afastaria dela.
Mas nada vai me deixar longe dela.
Nada.
Ele pode tentar tirá-la de mim, mas por todos os deuses existentes em todos os
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AS FILHAS DE GUENDRI
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A
cordo no silêncio de um lugar semiescuro.
Minha cabeça e meu corpo ainda latejam de dor. Lentamente,
tento me erguer, mas é bem difícil.
Há algo pesado em meus pulsos e mais pesado ainda em volta de meu
pescoço. E por causa do grande impulso que dou para frente na esperança de
me levantar, as malditas trancas agora me puxam para trás, um tranco que
quase desloca minha coluna.
Tusso, pois o puxão me deixa sem ar.
— Grilhões… — murmuro enraivecida ao tocar meu pescoço, certificando
que ele ainda está no lugar e reconhecendo os pedaços de metal atarraxados
por correntes.
Me movo novamente e o barulho do metal ladrilhando é tão alto que me
faz parar onde estou.
Mas… onde estou?
Olho a minha volta. Droga de lugares escuros! Se aqui é Adaris, necessitam
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PREDADOR & PRESA
Bizarro.
— Minha menina… — a voz diz, me assustando. Não posso ver nenhum
rosto ou corpo.
— Quem é? — pergunto num sussurro. É tão frustrante quanto apavorador,
como sonhos nos quais parece estar acordado, vê algo se aproximando mas
não pode-se mover, nem dizer nada?
É mais ou menos isso.
Tento conter meu desespero e meu trêmulo queixo, mantendo o pensa-
mento positivo, mas está cada vez mais difícil. A única saída é fechar os
olhos e o faço. Retraio meu corpo inteiro daquele toque, me jogando contra
a parede atrás de mim.
De olhos fechados e face escondida, reparo que estou com fome, frio, dores
aonde ainda posso sentir meu corpo e cheiro a pedaços de valquíria.
Físico definhando, o mental e o emocional são as únicas coisas ainda mais
ou menos intactas. Eu estou num lugar desconhecido, que provavelmente fica em
outro mundo. Pensar nisso é uma viagem só. Como é que consegui fazer o que
cientistas de todos os lugares de nosso planeta tentam, sonham, teorizam a
respeito? Atravessei paredes dimensionais e sim, apesar da grande descoberta
a lá pequeno passo para o homem e grande passo para a humanidade, isso tudo é
uma grande droga.
É estranho dizer isso mas, essa sensação e lugar são extremamente parecidos
com os que me atormentam quando durmo. Acho que a forma como cheguei
e estou aqui não me deixaram reparar isso antes.
Então se estou em um sonho, tudo o que preciso fazer é acordar…
E tento.
Abro meus olhos.
De novo, e de novo e de novo.
Nada.
O lugar é sempre o mesmo ao abrir os olhos, mas o vaporoso toque
desaparece e a voz se cala dessa vez.
Me certificando de que se fora mesmo, sento no chão, seguro a corrente
entre as mãos e coloco um pé de cada lado de onde ela se prende na parede e
puxo, puxo, puxo sem cansar.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Não adianta.
E eu choro. Tá, eu sei que eu choro muito. Mas não dá para segurar. Eu nunca
me senti tão fraca, sozinha e inútil. Não acreditei em Alexis, não confiei em
Cali. Não me interessei pelo mundo que tentaram abrir meus olhos a respeito.
Não quis saber o que estava acontecendo, do que queriam me ensinar.
Eu estou no centro de uma história envolvendo seres e dimensões que não
conheço, e que não quis conhecer pois achei que era uma grande maluquice
inventada pela cabeça de duas lunáticas. Dispensei qualquer chance de
aprender e entender sobre tudo que Cali e Alexis me avisaram.
Só me importei com uma paixonite boba. Nessas últimas semanas só me
importei em roubar um rapaz de outra garota. Algo muito maior que eu e
tudo o que eu julgava importante acontecia, mas foquei em idiotices ínfimas.
Não devia ter feito nada além de aprender a me defender depois daquele
elfo-jacaré-macaco tentou me matar.
Tantas vezes que eu deveria ter ouvido Alexis, especialmente quando ela
insistiu para que eu não viesse, ou quando ela precisava sair de dentro do
mausóleu. Do lado de fora ela estaria forte suficiente e poderia nos defender,
poderia lutar.
Por quê sou assim?
Por quê sempre foco na coisa errada?
Por quê só me arrependo quando tudo explode na minha cara?
O choro estanca minha respiração.
Calma, Verena. Digo a mim mesma. Já basta meu corpo convalescendo, se
eu perder também a minha mente já não terei mais nada.
Não posso desistir agora. Enquanto tento me controlar, a meu lado direito
uma luz se acende bem ao longe.
Aquiesço imediatamente.
Ouço passos de mais de uma pessoa.
E eles vem em minha direção.
Em um piscar de olhos, quem vinha já está a minha frente, mãos sobre meu
grilhões, desfazendo-os. Não me machucam. E para que não comecem, fico
em silêncio pois sei que falar será em vão.
Começam a me arrastar por onde vieram. Estou com medo, um medo tão
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Zero Absoluto
N
unca me senti tão pequena e fria em toda minha existência, desde
a frente da casa de Igor quando me pegaram até aqui e agora sendo
arrastada até o salão principal do “castelo” de Garou.
Nos descobriram.
Me pegaram.
Valquírias me encontraram e me arrastam sem dó.
Eu desisto de chutar e gritar. Eu já não estou nas melhores das condições
físicas, especialmente depois de ter de fugir de uma besta aviária gigante no
mundo humano. E agora isso.
Duas valquírias. Eu as conhecia pessoalmente. Cada uma delas segura meus
braços firmemente. Não soltam nem por um segundo. Sem falar uma única
palavra desde que me encontraram, nem responder minhas inquisições.
E para piorar tudo, quando chegamos em Adaris eu vejo a última pessoa
que queria ver aqui.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Verena.
Sendo puxada pelo cabelo por uma carrasca semelhante a minha. Ela está
molhada, com manchas roxas em suas roupas e me pergunto o que acontecera
pois isso é sangue de valquíria.
Grito seu nome mas ela não me ouve de imediato. Quando ouve, a amazona
que a mantinha lhe bateu com tal força que a apaga.
Eu estou tão cansada de me debater. Mal tenho forças para andar e agora,
depois de me manterem numa cela escura, elas literalmente me arrastam por
um corredor.
Como tudo acabou assim?
Como eu vim parar aqui?
Chegando no salão de Garou, eu o vejo próximo a Verena que está de joelhos
a frente dele. Ela o olha, hipnotizada. Ela é inocente, não tem absolutamente
nada a ver com isso e eu me afogo em remorso pois está aqui por minha causa.
Garou teve que forçá-la a me olhar para responder a pergunta que ele fez.
Se ela me conhece. Quando parece quebrar de seu encanto, em silêncio tenta
vir até mim. Garou a puxa pelos cabelos, num forte retranco. Com uma mão
dando uma volta quase completa em sua nuca, ele mantém controle sobre
Verena como uma marionete. Ela se debate, ele a ergue do chão e a vira de
frente para ele.
— Garou, por favor eu imploro! Deixe-a ir! — é tudo que consigo pensar
dizer.
— Caliandrei… ou, melhor dizendo, “Cali” — debocha. — Patético, não
acha? — ele observa Verena com curiosidade. — É isso sua cúmplice? Inferior.
Efêmero. Fraco. É com a assistência disso que se rebela contra seu Regente?
“Isso” é Verena. Ele a estuda atenta e genuinamente curioso, morbidamente
interessado em sua fragilidade humana. Mais uma vez eu imploro que a
coloque no chão e a poupe disso.
E para minha surpresa, dessa vez ele o faz. As valquírias a seguram
novamente enquanto ela tenta com tudo em si recuperar sua respiração.
Garou volta para seu trono e entre o silêncio pesado, as altas tosses de
Verena e meu fraco chorar, ele se senta e parece ponderar calmamente.
— Não posso dizer que não esperava que algo do tipo acontecesse. Se
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é se sacrificar por alguém que não dá a mínima a seu sacrifício? — toca meu
rosto. — Olhe para você… seu rosto. Suas mãos. Eu proibi coisas externas
em nosso mundo por um motivo.
— Meus erros ou acertos são minhas decisões e não suas. Eu não pertenço
a você nem lhe outorguei o poder de tomar decisões por mim. — desvio
de seu toque que irrita minha pele. Tudo o que eu quero é liberdade. Algo
que sempre foi meu mas que me foi roubado por Garou. Liberdade minha
e dos seres de Adaris. Todos nascemos livres. É nosso direito e estado
natural. Até um maldito qualquer achar que não e tentar mudar isso. — Eu
faria tudo de novo, e de novo, e QUANTAS VEZES PRECISAR! — grito em
sua face. — Você pode me matar mas a ideia continuará. Outra como eu
vai se erguer. Não há nada que você possa fazer, Garou. Suas regalias, suas
festinhas, sua corrupção chegarão ao fim. As Filhas de Guendri existem e eu
mal posso esperar para ver o que elas farão de você.
Vi as íris de seus olhos expandirem. Foi rápido, numa fração de segundo
mas vi.
Ele sentiu minhas palavras por sob sua pele.
Garou tenta se conter. Como eu não digo mais nada, ele anda até
Igor novamente. Minhas palmas formigam com o prospecto do que pode
acontecer. Mas não respondo.
— Estava tão falante, por que se cala agora? Você encontrou sua “Regente”?
Estamos curiosos, Caliandrei. — sua voz estremece dentro de mim, posso
sentir o pequeno terremoto sob meus pés. — Aonde está Guendri e suas
filhas?
— Se eles não existem querido Regente, por quê me pune por tentar encontrá-
los? — rosno por entre os dentes.
É difícil ler Garou, seu exterior calculista se mantêm calmo em um perigoso
e constante garbo. Mas minha pergunta acende uma pequena ira por trás de
seus olhos.
E eu vejo as chamas.
Se não acendessem, ele não pegaria Igor pelo pescoço num ligeiro ato que
meus olhos mal podem acompanhar.
— Tudo o que fiz e que sacrifiquei. — Garou arrasta Igor até minha frente.
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Q
uando chego no prédio de Verena, devolvo a moto com o dinheiro
e corro para seu apartamento, o qual praticamente tenho que
arrombar, já que está trancado.
Aqui dentro nervosamente espero por Dimitri, mas confesso que não dá
mais. Sei que ele virá o mais rápido possível, mas tudo dentro de mim grita
para atravessar o portal imediatamente.
E assim faço, deixando para trás um rápido bilhete avisando minha decisão
para quando Dimitri chegasse e não me visse ali.
Atravesso o portal e sinto a gelada água me envolver. Nado até a superfície
de meu lago. Está calmo. Vazio. Como o deixei.
Mas a calma não dura muito e assim que piso fora das águas, posso sentir.
Como uma pontada bem forte acompanhada de um mal-estar, semelhante ao
que senti quando Verena fora atacada por um elfo.
Tentando vencer o desconforto, corro o mais rápido que posso na mesma
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AS FILHAS DE GUENDRI
direção que fui quando participei do Torneio das Valquírias, e vestida como
uma pude andar por Adaris. Velocidade agora minha aliada, chego na
exuberante porém decadente árvore palácio.
Me pergunto se esse castelo fora de meu pai e se nos criara aqui. O lugar
não me é familiar, e quando vejo quem está dentro dele enquanto voo próxima
a janela furta-cor, o mal-estar só piora.
Verena de joelhos, sete Valquírias ao redor do grandioso salão, Garou em
frente a um trono e de costas para minha janela, com Cali paralisada e o
encarando.
Fisicamente, Cali não parece a mesma doce e jovem fada que eu conheço.
Não… ela parece ter envelhecido como uma humana, corpo e postura
cansados e frágeis. Seu rosto tem tantas veias negras agora, bem mais que da
última vez em que a vi. Me pergunto quando é que pararão de crescer e se
espalhar. Dominariam seu corpo todo? Há como reverter?
Garou parece ter alguém de joelhos a sua frente. Cali o olha com medo e
desprezo.
Eu não posso ouvi-los, mas meu coração fica contente por um segundo
ao saber que todos ainda estão vivos. Eu olho para Cali. É difícil estudar
sua expressão com seu rosto neste estado, mas seus olhos… seus olhos não
mudam.
Nunca mudaram.
Ela parece implorar algo para Garou. Este por sua vez, põe sua mão sobre
o ombro de quem quer que esteja de joelhos a sua frente, entre ele e Cali. E é
neste momento que os olhos de Cali fazem o outrora impossível, se tornam
negros por completo.
Quando olho o motivo pelo qual isso acontece, diferente dela que paralisada
apenas olha, eu reajo.
Meu coração se parte ao meio, posso senti-lo quebrando em meu peito.
Uma dor inconfundível, inconsolável.
Não há esperanças.
Perdemos.
Minha boca se abre sem eu querer. Meu grito é tão forte, tão intenso, que
é como se saísse não só do trabalho em conjunto de minhas cordas vocais e
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me chama. Mesmo com o corpo de Igor caído próximo a mim nada mais
interessa, não há dor, nem sentimentos, eu tenho um foco e eu o espero voltar
para continuar nossa batalha.
— Impressionante. — ele comenta após se levantar, voltando pelo buraco na
parede. Sem tirar meus olhos dele, posso ouvir as valquírias se posicionarem
ao meu redor. Ele se aproxima, tirando seu manto preto e dourado, deixando
seu enorme peitoral que cintila em fogo á mostra. Eu mal reconheço seu
corpo. — Sabia que apareceria, minha bela. — comprime um sorriso. —
Venha até mim; venha buscar o que tanto almeja.
O debique em sua voz é palpável. Eu nunca odiei alguém em minha
existência e mesmo sem lembrar de boa parte dela, tenho certeza que nunca
tive tal sentimento pesado e intenso dentro de mim antes.
Pois tal sentimento te molda como fogo em ferro.
É único e absolutamente poderoso.
Quando a primeira valquíria me ataca do nada, não me surpreendo com a
falta de habilidade em me enfrentar. Me aproveito de seus erros e a derrubo
com facilidade.
— Deve ter aprendido bastante no Torneio não é mesmo, Alexandrai? — ele
anda lentamente ao derredor do círculo de valquírias que se forma a minha
volta. — Adoraria ver uma segunda apresentação. Sabe como ninguém o
quanto aprecio quando você se apresenta para mim. — me provoca.
Olho ao meu redor e vejo que Verena abraça Cali que ainda está catatônica.
Verena tenta movê-la para longe, se aproveitando desse momento para
protegê-la. Esperta. Elas se escondem atrás do trono e eu completo um
giro, me certificando de cada uma das seis valquírias que me circulam, rostos
ferozes e olhos sedentos.
Instinto.
É uma coisa interessante. Grande parte do que somos está prescrito em
nosso ser, receita engrenada em nossa essência por nossos criadores.
Meu primeiro instinto ao ser cercada por valquírias foi provocá-las ainda
mais. Subitamente me abaixo até a amazona caída, vítima dos estilhaços de
janelas, enfio minha mão em seu peitoral com força, lhe arranco o coração
numa pegada só.
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TODA MALDITA VEZ
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AS FILHAS DE GUENDRI
avisei.
Ele sorri para a Alexis, que tem seu olhar vidrado no dele. Dá para sentir a
tensão entre os dois. Me dá até um arrepio.
— Está com medo de mim, Garou? É por isso que me aprisionou por tanto
tempo? — Alexis afirma de dentro do círculo. — E você está correto. Sou
mesmo um perigo a todos vocês que traíram meu pai e nosso mundo.
— O que esperam para atacá-la? — Garou pergunta num tom sardônico,
no que resulta em seis amazonas atacando Alexis ao mesmo tempo.
E por mais que Alexis saiba se defender, de onde eu venho, seis contra um
é covardia. Por algum motivo sinto a necessidade de protegê-la, não posso
deixar que a machuquem. Preciso me mover.
Preciso de coragem.
Eu não tenho nenhuma,vou mentir para quê? Sou um inconstante estado
de espíritos desde que me arrastaram até aqui. Horror, asco, pânico, tristeza,
confusão, clareza. Uma perecível humana perante aparentemente quase
indestrutíveis semideuses.
Sou uma pequena chama de glória fadada a se apagar num vento. E também,
graças a Deus, sou dona de muitas decisões imbecis e precipitadas. Estou me
coçando para tomar mais uma delas. E se for para a chama apagar, que esse
pequeno fogo se apague não pela minha covardia, mas pela minha coragem
de lutar pelo que é certo.
Minhas pernas são mais rápidas que minha mente, que sanamente grita
para eu ficar na minha para meu próprio bem. Meus pés fingem não ouvirem
o comando de meu cérebro e eu avanço em direção a rodinha de porrada. Com
minhas fracas mãos distribuo socos e tapas no que pegar primeiro, numa pífia
tentativa de ao menos distrair uma ou outra de Alexis e lhe dar mais espaço
para se defender. Sei que posso morrer por fazer isso, e ainda assim não paro.
Aliás apanho, mas não por que elas revidam. Na verdade me ignoram, apenas
me acertam por engano.
Entre palavrões e raiva, vou pegando o que encontro de decoração estranha
e tacando nelas. Quebro um vaso de planta carnívora que tenta me morder
na cabeça de outra valquíria. No revide, quando uma decide me acertar de
verdade, saio voando e bato contra a parede atrás do trono de Garou.
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TODA MALDITA VEZ
Acho que quebro uma costela. Talvez três. Rolando no chão por causa da
dor, ouço a voz de Alexis.
— Verena! A Cali! — ela grita e eu olho na direção de onde deixei a
loirinha. Meu coração entristece só de olhar para ela e lembrar do que teve
que presenciar, ver seu melhor amigo naquele estado.
Garou também olha para Cali. Então mesmo com dor corro até ela, tento
erguê-la para que possamos sair daqui antes que mais cabeças rolem.
Olho para Alexis de novo e ela parece dar conta do recado por enquanto,
então agarro um pedaço de metal que encontro perto de nós e o uso para nossa
defesa. Olhando rápido encontro o mesmo corredor pelo qual trouxeram
Cali.
Dou graças a Deus por ela ser pequena e a arrasto comigo até lá. Não vou
muito longe, apenas aonde posso escondê-la por um momento.
— Cali… — sento-a no chão contra a parede e tento falar com ela. Espero
resposta, mas não ouço nenhuma. — Eu… eu sinto muito, Cali. — pauso por
um momento, tentando respirar e não chorar pela dor dela. — Nós vamos
sair dessa, okay? Não vamos deixar a morte de Igor ser em vão. — engulo
em seco. Tenho tanta adrenalina em mim, não consigo falar num tom calmo
nem sentir mais a dor das minhas costelas.
E Cali nem me olha, parece perdida dentro de si.
Sem pensar duas vezes e entendendo seu estado mental e emocional, lhe
dou um beijo na testa e um abraço forte, semelhante ao que eu queria ter
levado quando minha avó morreu.
Mesmo não sendo a melhor decisão a tomar, me afasto um pouco de Cali
e fico entre o salão e a entrada de onde a escondo, e assisto Alexis quase
incapacitada de mover, cada valquíria segurando uma parte do corpo dela.
Até suas belas asas estão presas.
Não sei o que fazer. Apenas assisto confusa, limitada. Olho para meu lado,
pensando em como ajudar, procurando algo para pegar e tacar em algumas
delas novamente, só que não encontro nada.
Enquanto procuro o que fazer, Alexis me surpreende mais uma vez.
E a surpresa faz com que eu feche meus olhos para protegê-los de uma das
mais belíssimas explosões que já vi em minha vida.
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Quem é Você?
M
aravilhada, assisto um cristalino círculo formar-se ao redor de
Alexis, ganhando mais e mais força e tamanho. Sua velocidade
também aumenta, girando com mais intensidade e precisão, um
tornado incrivelmente brilhante que começa a tocar o chão e se expandir até
o teto.
Mexe com todo o ar a nossa volta, o tornando bruto e perigoso, forte o
suficiente para mover e cortar muito do que aqui se encontra.
Alexis não pode se mover, está fisicamente incapacitada pelas valquírias.
Mas por causa do tornado furta-cor que ela cria em volta de si, essas também
já sentem dificuldades em manter-se na posição em que estão.
Seria esse um dos poderes de Alexis como fada? Pensando bem, nunca a
vi usando seus poderes (fora a força) em nenhum momento. De qualquer
forma, aprender que Alexis pode iniciar um furacão por vontade própria, além
de surpreendente, é algo que eu posso contar em nosso favor, aumentando
minhas chances de sair daqui.
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QUEM É VOCÊ?
Volto para onde Cali está no breu do corredor, me escondendo nele para
não sair voando também. Percebo daqui que a poeira cristalina que se levanta
é na verdade estilhaçante e cria mini cortes em tudo o que encosta.
Pela distância minha pele não sofre tanto, mas imagino que a das valquírias
não tem tanta sorte. Em pouco tempo, uma por uma acabam soltando Alexis.
Duas voam longe junto com os outros objetos. Algumas espadas também
voam para longe de suas donas, deixando ainda mais perigoso ficar de pé no
salão.
O furacão tem no centro de seu olho Alexis, que apenas o controla com
calma e concentração, enquanto o resto do salão tenta se manter intacto
em vão. Coisas batem nas paredes e quebram. Manter meus olhos abertos
também já está ficando difícil. Ainda escondida, a curiosidade toma conta de
mim e acabo roubando um breve vislumbre de Garou, mesmo sabendo o que
olhar para ele pode fazer comigo.
Tenho medo do que ele possa fazer contra Alexis. Ou Cali. Preciso saber
aonde ele está.
Mas ele apenas se mantém parado. Suas vestes e seus cabelos longos se
movem com a mesma intensidade do resto da sala. Ainda sem muita emoção,
assiste suas guerreiras incapazes de controlar a Filha de Guendri.
Quando Alexis finalmente se mexe, volto meu olhar para ela. O furacão
cristalino finalmente baixa, e algo em Alexis muda. Seus olhos agora são
completamente brancos, eu já não vejo mais sua íris. Suas asas também
parecem maiores e com cores mais vivas que outrora.
Como uma máquina ela começa a lutar novamente. Acerta uma amazona
no rosto a sua esquerda, quase descolando a cabeça dela do resto do corpo.
Com um chute certeiro em seguida, acerta a que esta no exato lado oposto.
Apesar de ser atingida, essa avança novamente e Alexis pega a cabeça dela
com as duas mãos e afunda o crânio contra seu joelho, chutando o corpo
desta com chutes duplos em sequência, que a lançam para meu lado do salão.
Quando ela atinge a parede atrás de onde estou e cai no chão, seu sangue
roxo começa a escorrer até meu pé quando olho seu rosto todo ferrado no
qual agora posso ver de perto e em vivos detalhes o estrago que minha amiga
fada fez nele.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Duas circulam Alexis com certo medo. Garou comanda para que a ataquem
de uma vez e elas o fazem ao mesmo tempo; Alexis desvia, segurando a lança
de uma com a mão direita imobilizando-a, forçando que a outra enfie sua
própria lança acidentalmente nesta que está paralisada por Alexis. A fincada
inicial certamente era para Alexis mas acabou penetrando e atravessando o
pescoço de sua própria companheira de guarda.
A violência apresentada é brutal e nauseante. É oficial, estou revendo todo o
meu conceito de fadas. Jamais pensei que elas fossem fãs de arrancar corações
ou partir crânios.
Alexis toma para si a lança espada da valquíria que agora tem a lâmina de sua
colega atravessada em sua goela. Com um astuto puxão em um movimento
curto e rápido, a fada negra gira o metal e o enterra no meio da testa da outra.
O grito ecoa pelo salão e me dá um frio na espinha.
Alexis lentamente se afasta das duas que como estátuas ficam lá, em pé,
trocando mortos olhares, assassinadas uma com a arma da outra e eu me
pergunto por que elas não explodem ao morrer como a que eu ataquei no
mausóleu.
Uma das duas valquírias que saíram voando anteriormente aparece do
nada, correndo em direção a Alexis, ira audível entre seus dentes cerrados. A
fada simplesmente espera ela chegar perto o suficiente para agarrar-lhe pelo
pescoço dando-lhe as costas ao mesmo tempo, derrubando a amazona por
sobre seu ombro, fortemente metendo-a no chão do outro lado e abrindo
uma pequena cratera ao fazê-lo. E como se não bastasse, Alexis enfia o pé no
peitoral da valquíria caída, e mesmo sem poder vê-la dentro da cratera posso
ouvir seus ossos quebrando.
Uau.
É isso. Alexis derrubou todas. Sala vazia. Silêncio pesado com o cheiro de
sangue.
Mas antes que eu possa celebrar, antes que Alexis possa sair do pequeno
buraco que fez, uma lança vem voando e lhe atravessa a barriga. Foi tão
rápido e tão forte que a mesma também só percebeu quando a arma voadora
a carrega consigo até a parede mais próxima, prendendo Alexis contra ela á
um metro do chão.
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QUEM É VOCÊ?
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AS FILHAS DE GUENDRI
ele foi um grande dissidente subversivo e fiz o que julguei melhor para nós,
para Adaris.
— Não é sua incumbência tomar essas decisões sobre a vida de ninguém
aqui. E pare de tentar me convencer. Não sou sua e nunca mais vou acreditar
numa única palavra que disser. Eu não descansarei até servir a sua cabeça
numa bandeja para meu pai.
Ouço Garou rosnar.
— Você me pertence, Alexandrai. Por mais que pense que não, saiba que
nossa união jamais será desfeita. A farei entender isso de uma vez por todas.
— Garou remove a lança que prende Alexis e a enfia novamente mas agora
no centro de seu abdômen.
Alexis não emite nenhum som, quem grita sou eu assim que vejo sua cabeça
cair pesada para um lado de seu ombro. Ela parece dormir, serena. Não se
move mais, nem se debate. Ele beija sua testa e múrmura coisas com bizarro
carinho contra seu rosto.
Sem saber se ela está morta ou viva, estou de pé atrás do trono fincando
minhas unhas nele, sentindo um choque eletrizante percorrer todo meu corpo.
Um pavor imenso toma conta de mim e já não posso sentir ou ouvir mais
nada.
Devastada, me sinto sozinha. Aliás, o sentimento nunca me foi tão
violentamente óbvio e claro. A solidão me enforca com ambas as mãos,
me rouba todo o ar e esperança de sair daqui viva.
Mas eu não estou sozinha.
Garou me ouviu e vira sua cabeça em minha direção com um maligno olhar
acusatório, como se eu interrompe-se um momento privado e vital que tinha
com alguém que obviamente é o mundo para ele.
Eu tremo sob seu olhar glacial. Lábios, pernas, mãos. Minha pele formiga
e o formigamento passeia de cima a baixo, contorcendo meu estômago e
alterando meus sentidos, o hipnótico sentimento de olhá-lo tentando me
dominar.
Quando ele começa a andar em minha direção me abaixo novamente,
num instinto súbito que agradeço por ser automático, já que eu mesma no
momento não tenho a capacidade de fazer mais nada além de tremer.
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QUEM É VOCÊ?
Silêncio.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Abro os olhos. Respiro fundo e ainda trêmula e suando, olho para os lados.
Nada. Sem barulhos de passos ou voz de Garou, me ergo aos poucos tentando
ver o que passa, ainda me escondendo por trás do trono.
Completamente de pé, assisto Garou paralisado. Alguns espasmos são
visíveis em sua face, seus olhos perdendo aquele brilho e força que exercem
sobre mim. Percebo que já posso olhar para ele sem aqueles sentimentos me
tomarem de prontidão.
Ele parece engasgar com algo. Quando olho para o lugar onde seu peitoral
deveria estar, só vejo um grande buraco.
Vazio e aberto.
A lava laranja agora escorre por seu abdômen, densa e lenta. O espaço que
até então continha seu coração, agora é apenas uma visível lacuna de bordas
irregulares, envoltos por sua carne e sangue.
Garou desaba como estátua e agora posso ver o que está atrás dele.
E o que eu vejo faz meu universo inteiro virar de cabeça par baixo.
Ou melhor… quem eu vejo.
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E
u vi Igor morrer e sua cabeça rolar.
Grande parte de mim morreu ali mesmo.
Verena veio até mim e me moveu, me escondendo junto a ela. Acho
que Alexis está aqui. Não sei mesmo se ouvi a voz dela ou só alucinei. Depois
de alguns momentos, Verena me arrasta para o mesmo corredor pelo qual as
valquírias me trouxeram.
Ela fala comigo, mas eu não a ouço.
Em minha cabeça, apenas a cena de Garou arrancando a cabeça de Igor
se repete num loop maldito que me cega para tudo mais que acontece e me
paralisa.
Verena beija minha testa e me abraça, me deixando ali para minha “proteção”.
Eu queria responder, dizer a ela que não há proteção alguma, que nada do
que fizermos vai adiantar. Que nada mais importa. Que Adaris não sera salva,
e tudo o que fizemos fora em vão.
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AS FILHAS DE GUENDRI
Mas ela se vai e eu ainda não consigo me mover, não consigo sentir meu
corpo. Ou não quero sentir meu corpo, não sei dizer ao certo. Só quero uma
coisa: sumir daqui.
Desaparecer.
— Caliandrei…
Ouço a voz estranhamente materna e já sei quem é, mas também não
respondo. Deve ter sentido meu desejo de sumir, visto isso como uma
invocação. Não a chamei e não me importo nem um pouco que esteja aqui ou
com o que quer de mim. Vai me fazer perguntas, vai tentar me dar respostas.
Tentar me convencer a continuar. Ou me negar ajuda, já que sua magia está
acabando comigo, me dominando pois eu não soube dominá-la.
Mas não, ela não faz nenhuma das coisas que imaginei que faria. Apenas
me envolve em seu vapor negro e quente, e quando dou por mim, não estou
mais em Adaris.
Abro os olhos fracamente. Estou deitada ao lado de meu lago, roupa humana
encharcada com meu sangue e sangue das valquírias que derrotei.
Não estou mais empalada na parede do salão do castelo onde Garou me
apunhalou novamente para me apagar por um momento e possivelmente me
recapturar, mas ainda posso sentir o buraco em minha barriga.
— Não temos tempo. — Dimitri diz assim que me vê acordar. — Garou
está com Verena e você precisa se esconder até se recuperar completamente.
Vá para o apartamento dela e quebre o espelho para que ninguém te siga. E
fique lá até eu entrar em contato com você.
Pensando rápido em como retornarão se eu quebrar o espelho, apenas
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VOCÊ É MEU… FIM
indico a Dimitri onde Cali está escondida para que os três possam fugir de lá
usando os poderes dela.
Ele assente e sem pensar duas vezes, mergulho em meu lago.
Estou terrivelmente fraca. Quando atravesso o portal, sangro mais ainda.
Mesmo assim, pisar no mundo humano me faz sentir estranhamente mais
segura que em qualquer outro lugar.
Com um soco despedaço o grande e belo espelho, e o observo estilhaçar-se
á meus pés. Olho para a janela de Verena. O sol ilumina fracamente indicando
que a manhã começa no mundo humano.
Sento em sua cama, reparando que eu não paro de sangrar. Em minha
mente, turvas memórias de tudo que aconteceu se fundem, desde quando vi
Igor até o último momento em que Garou me encheu de mais mentiras antes
de virar meu pescoço.
Eu penso em Igor. Em Cali. Espero em meu coração que abra um portal
com sua magia em algum lugar de Adaris e fuja de lá. Que Dimitri traga
Verena a salvo. Que minha irmã acorde e retorne a seu posto de Regente o
mais rápido possível.
Que nada disso tenha sido em vão.
— Verena? — alguém bate na porta do apartamento de Verena algumas
vezes e quebra minha linha de pensamento. — Vê, a gente precisa conversar!
Se não me engano a voz é do vizinho dela, o dono da festa na qual a conheci,
Lucas.
Fico imóvel e em silêncio na esperança de que ele desista de conversar com
a Verena e vá embora.
— Vamos Verena, conversa comigo! Eu não devia ter te dito o que disse por
mensagem. — ele fala contra a porta. — Por favor, Vê! Eu tava indo trabalhar
e te ouvi aí dentro, sei que você tá chateada mas abre a porta, vai!
Droga, ele deve ter ouvido o espelho quebrando. Por Guendri, não tinha uma
hora mais inoportuna para ele resolver conversar com a Verena?
Ele não desiste, ainda bate a porta. Deve ser muito importante essa conversa
para ser urgente assim. Me levanto, levemente tonta e gemendo entre os
dentes a dor da ferida ainda aberta que me atravessa o corpo da barriga até as
costas, da qual eu preciso de algumas horas para me recuperar por completo.
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minhas costas são as minhas asas. Não chame ninguém para me ajudar. Se
você chamar, tenha certeza de que quando acordar vou te fazer pagar caro
por isso.
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VOCÊ É MEU… FIM
tempo?
Sim, por que me salvaram. Por mais que tenham mentido, sempre me
mantiveram segura e viva.
Ele parece confuso por um momento com a minha gargalhada histérica.
Eu o olho. Observo sua beleza agressiva com seus traços fortes que outrora
não me eram tão atraentes mas que já faz um tempo, não saem de minha
cabeça. Seus olhos azuis, todos os detalhes daquelas íris que decorei sem
querer, assim como sua costumeira cara de quem estava para matar alguém…
Meu Deus.
Bauer matou alguém.
Na minha frente.
Alguém três vezes maior que ele.
Arrancara seu coração sem dó.
Meus lábios tremem quando a realização de que este homem não é
exatamente quem eu achei que era me atinge novamente. Me afasto dele.
Por sua vez, ele também se afasta alguns passos, escorando-se contra a ilha
no centro de sua moderna cozinha.
Sinto um calafrio e reparo no reflexo da polida geladeira de aço que estou
um caco: cabelo todo embolado, roupas sujas e rasgadas, rosto inchado,
coberta de cima a baixo de restos de valquíria, extremamente esgotada a
ponto de cair a qualquer momento.
Já ele, impecável como sempre aparece no escritório todos os dias. Aliás,
ainda veste a mesma camisa e gravata que usara quando me consolou quanto
a Lucas ontem. Nada mudara, meu coração me diz pedindo para que eu me
acalme, que eu confie como se o músculo em meu peito já conhecesse Dimitri
Bauer sem sombras de dúvidas.
Sensação bizarra de que sim, eu o conhecia.
Mas olho para ele e não sei o que vejo.
Humano? Não humano?
Ele não é mais o mesmo e ainda é ao mesmo tempo…
Minha boca começa a se mover cuidadosamente, uma sílaba de cada vez.
Forço minha voz a sair em uma simples pergunta.
— Aonde estamos? — tento uma questão inofensiva, algo que já sei a
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resposta mas que talvez faça meus lábios pararem de tremer, me dando tempo
de pensar no que fazer.
— Meu apartamento. — a voz de Bauer é baixa, por um momento tenho a
impressão de que ele não quer me assustar.
Engulo em seco. Ele não parece ansioso em começar a conversa onde me
diz para confiar nele, onde me conta por quê ficou em silêncio por todo esse
tempo.
Escapei de Adaris com vida graças a ele, tento me lembrar disso. Bauer me
salvou da morte certeira nas mãos de Garou.
Quero agradecê-lo, mas… preciso entender.
— Como foi que você… — começo a falar mas ele vem até mim novamente,
coloca seu dedo em minha boca me calando, seu corpo junto ao meu.
— Você está em choque. Compreensível. É absolutamente inacreditável
tudo o que acontece com você, Verena. Acredite, eu sei. — Bauer constata.
Estamos tão próximos que novamente posso ver os pequenos pontinhos
pretos que dançam ao redor de sua íris.
“Inacreditável”. Certamente, é uma das palavras que pode-se usar sobre tudo
o que passou comigo nas últimas horas. Aliás, poderia usar um dicionário
inteiro, mas todas essas palavras me escapam no momento.
— Bauer… — suplico em um sussurro, reparando que não me é mais natural
dizer seu sobrenome, o jeito como sempre o chamei. Talvez por isso acabara
de me chamar de Verena. Bauer não existe. Meu Bauer não existe mais. —
Dimitri, eu preciso ent… — seu nome deixa um gosto amargo em minha boca
assim que ele me interrompe e segura meu rosto, demandando meus olhos
nos seus.
— Sabe por quanto tempo eu te procurei?
Imagino que esteja falando de ontem a noite. Se conhecia Alexis, talvez
tenha ido a pedido dela até Paranapiacaba? Ou está falando de sua busca por
mim em Adaris?
Eu ia responder com outra pergunta mas não pude. Dimitri me faz andar
para trás, me prensa contra a parede mais próxima, cobrindo minha boca
com a sua.
Se eu achei que o perigo acabara assim que escapei de Adaris, eu estou
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Fim
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Considerações Finais
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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EXTRAS
VERENA MORALES
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EXTRAS
ALEXANDRAI/ALEXIS
CALIANDREI/CALI
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ADARIS
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EXTRAS
FLÁVIO
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DIMITRI BAUER
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EXTRAS
PLANTAS E MAPAS
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EXTRAS
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Paranapiacaba
Esse nome sempre foi motivo de risada pra gente quando criança
(Paranaseacaba) mas o lugar é muito legal e com vistas absurdamente lindas.
Tem esse quê de história de terror na cidade. Você visita e (apesar dar
renovações) não tem como não ter uns tremeliques lá. Talvez seja o constante
nevoeiro que cobre a cidade, talvez seja a forma como boa parte de sua
população a abandonou todos ao mesmo tempo e tudo meio que enferrujou,
Talvez seja o cemitério super gótico que já te recebe na entrada (também
usado no livro, onde a Mabel foi encontrada)… bem, seja lá o que for, me
inspirou a colocar o vilarejo na cidade. Todas essas fotos são de lá =]
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EXTRAS
São Paulo
Eu amo São Paulo (kkkk dá pra ver minha babação de ovo no livro). Aliás,
essa cidade é o que me enche de motivação para escrever. Na colagem que
fiz, tentei colocar lugares como, a Pamplona (a travessa da paulista onde o
prédio do escritório de Bauer fica) a Rua Augusta (o mais lindo pardieiro da
cidade onde fica o Lírio e a casa de Igor), O Parque do Ibirapuera (onde a Cali
rouba suas florezinhas kkk), A Avenida Paulista (onde Verena dá seus rolês) e
a Barra Funda (melhor bairro kkkk).
Eu amo histórias que se passam no Brasil, e sempre dou preferência a ler
sobre elas. Não sei porque, acho que é aquela questão de familiaridade, temos
lugares muito legais no Brasil, e acho que poucos autores aproveitam isso
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(graças a Deus está mudando) e ver pessoas fictícias com cultura parecida
com a sua é extremamente divertido para mim.
Sei que nosso país é vasto e bem diferente, e as vezes alguns de nós tem
vergonha do lugar onde nasceu/mora. Não tenha! Faz parte de você e
merece respeito tanto quanto qualquer outro lugar. Chega de preconceito,
independente de qual região do Brasil você é, sinta amor e espalhe o amor
desse lugar por aí!
Playlist
Aqui vou disponibilizar dez das músicas que mais ouvi durante a produção
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EXTRAS
dessa obra. Se alguma for específica para personagem, cena ou casal, eu vou marcar
na frente. Se vocês concordam ou discordam, fiquem a vontade pra comentar.
E também fiquem a vontade para procurá-las no Youtube ou Spotify, até
mesmo para me indicar músicas, pois adoro conhecer sons novos.
Música em itálico, banda em negrito.
Danse Macabre - Scalene
Ethos - Scalene & Amén JR
Agua e Vinho - Capital Inicial (Bauer & Verena)
Eu Preciso Te tirar do Serio - Frejat (Cali & Flavio)
Não Vou Te Deixar Dormir - Ramona Rox
Apenas Mais Uma De amor - Lulu Santos (Verena & Lucas)
Tarde Livre - Selvagens a Procura da Lei
Kriptonita - Ludov
Dura Feito Aço - Luxúria (Alexis/Verena)
Pode Agradecer - Jay Vaquer (Garou & Alexis)
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