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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS

HELOISA PERIN FORNER

POSSE E PORTE DE ARMA DE FOGO E SEU IMPACTO NA SOCIEDADE


E NO DIREITO

UMA ANÁLISE DOS PRINCIPAIS ARGUMENTOS

CAMPINAS
2021
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS
FACULDADE DE DIREITO

HELOISA PERIN FORNER

POSSE E PORTE DE ARMA DE FOGO E SEU IMPACTO NA SOCIEDADE


E NO DIREITO

UMA ANÁLISE DOS PRINCIPAIS ARGUMENTOS

Trabalho de conclusão de curso apresentado à


Faculdade de Direito do Centro de Ciências
Humanas e Sociais Aplicadas, da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas como
exigência para obtenção do grau de Bacharel.

Orientador: Prof. Me. José Guilherme di Rienzo


Marrey

CAMPINAS
2021
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS
FACULDADE DE DIREITO

HELOISA PERIN FORNER

POSSE E PORTE DE ARMA DE FOGO E SEU IMPACTO NA SOCIEDADE


E NO DIREITO

UMA ANÁLISE DOS PRINCIPAIS ARGUMENTOS

Dissertação defendida e aprovada em ___ de


_______ de 2021 pela comissão examinadora:

Prof. Me. José Guilherme Di Rienzo Marrey


Orientador e presidente da comissão
examinadora.
Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Prof.(a) Convidado
Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

Prof.(a) Convidado
Pontifícia Universidade Católica de Campinas.

CAMPINAS
2021
Dedico a Antonio Carlos Forner, que
sempre me serviu de inspiração em tudo
que eu optasse por fazer.
AGRADECIMENTOS

À minha família, minha mãe Silvana, meus irmãos Tiago, Diego e Rodrigo, e meus
tios Wilson e Sônia, por apoiarem e ajudarem com meus estudos.

Aos meus amigos, Matheus, Pablo, Brenda e Guilherme, pelos bons anos que
vivemos na faculdade.

E ao meu companheiro, Bruno, que me deu incentivo para terminar o curso e não
permitiu que abandonasse o projeto.
“A violência destrói o que ela pretende
defender: a dignidade da vida, a liberdade
do ser humano.”

João Paulo II.


(1920 – 2005)
RESUMO

O presente projeto reproduziu a pesquisa do artigo “Escala de Atitudes frente à


Arma de Fogo (EAFAF): Evidências de Sua Adequação Psicométrica” objetivando
identificar quais dos três elementos a quê as pessoas tendem a associar as armas
(direitos, proteção ou crimes) eram mais presentes e usados nos debates do meio
social e, após identificá-los, analisar os argumentos atrelados a estes elementos,
verificando sua adequação as hipóteses das leis e sua possibilidade de aplicação. O
resultado do projeto obteve-se através de pesquisa bibliográfica e objetivou-se
apontar aspectos cuja observação é indispensável para o debate. Através da análise
foi possível concluir que, apesar da aparência individualista, o porte e a posse de
armas de fogo jamais poderão ser avaliados como direitos individuais, vez que
tratam de assunto de interesse da coletividade, atrelados ao bem comum.

Palavras-chave: Armas de Fogo. Interesse coletivo. Estado.


ABSTRACT

The present study reproduced the research of the article "Attitudes Towards Guns
Scale (ATGS): Evidence of its Psychometric Adequacy" aiming to identify which of
the three elements people tend to associate guns (rights, protection or crimes) were
more present and used in social debates and after identifying them, analyse the
arguments of the related elements, verifying their adequacy to the hypothesis of the
law and their possibility of application. The result of the study was achieved via
bibliographical research and aimed to indicate the aspects whose observation is
essencial for the debate. By the analysis, it was possible to conclude that dispite of
the individualistic appearence, the possesion and the bearing of firearms can never
be evaluated as individual rights, since they deal with the issue of the community
insterest, linked to the commom good.

Keywords: Firearms. Community interest. State.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO....................................................................................... 11

2. MUDANÇAS DO ESTATUTO (LEI 10.823/2003) .................................. 12

3. ESCALA DE ATITUDES FRENTE Â ARMA DE FOGO (EAFAF).......... 15

3.1. Método ............................................................................................ 15

3.2. Resultado ........................................................................................ 16

4. ARMAS COMO DIREITO ...................................................................... 17

4.1. Porte e posse e os direitos individuais ............................................ 17

4.2. O que são direitos individuais ......................................................... 17

4.3. Porte e posse e o direito individual de liberdade ............................. 18

4.4. Autotutela vs. Bem comum ............................................................. 19

5. ARMAS COMO MEIO PARA SEGURANÇA ......................................... 22

5.1. Legitima Defesa .............................................................................. 22

5.2. Exercício Arbitrário das próprias razões ......................................... 25

6. ARMAS PARA O CRIME ....................................................................... 27

6.1. Analise da violência: De 1980 para os dias atuais .......................... 27

6.2. Segurança Pública, Dever do Estado, Direito e Responsabilidade de


todos ............................................................................................... 29

7. CONCLUSÃO ........................................................................................ 32

8. REFERÊNCIAS ..................................................................................... 35

9. ANEXOS ................................................................................................ 37
11

1. INTRODUÇÃO

A posse e o porte de arma de fogo estão entre os assuntos mais polêmicos


da atualidade, sendo o foco de grandes debates no meio popular.

Certamente um tema que divide opiniões, principalmente após o assunto


ganhar a visibilidade da mídia dado as tentativas de alteração do Estatuto do
Desarmamento (Lei 10.823/2003), as quais vêm ocorrendo desde o ano de 2019 e
incluem mudanças que logo serão apontadas.

Entretanto, o que chama atenção não é a dimensão dos debates, capazes de


ganhar os holofotes sem muito esforço, mas sim a falta de artigos e pesquisas
proveitosas sobre o tema, os quais poderiam servir de base para estas discussões.
Artigos, trabalhos e pesquisas a respeito são escassos, havendo poucos resultados
de interesse e, conseqüentemente, dificultando análises a nível mais profundo.

Cabe inclusive ressaltar que este foi o mesmo problema enfrentado pelos
autores do artigo “Escala de Atitudes frente à Arma de Fogo (EAFAF): Evidências de
Sua Adequação Psicométrica”, o qual foi de grande relevância para este projeto.

Portanto, diante deste empecilho, a finalidade deste projeto é expor, analisar


e refutar os argumentos mais utilizados quando o assunto é a liberação de armas de
fogo, percorrendo sua adequação as hipóteses das leis e verificando suas
possibilidades de aplicação.
12

2. MUDANÇAS DO ESTATUTO (LEI 10.823/2003)

O Estatuto do Desarmamento, Lei nº 10.826, de 22 de Dezembro de 2003,


dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o
Sistema Nacional de Armas (Sinarm), define crimes e dá outras providências.

Sendo assim existem duas possíveis classificações para os tipos de armas, elas
podem ser de uso permitido, cujas pessoas físicas e jurídicas possuem autorização
para utilizar, desde que de acordo com as normas do Comando do Exército e nas
condições previstas no Estatuto; E de uso restrito, aquelas de uso exclusivo das
Forças Armadas, de instituições de segurança pública e de pessoas físicas e
jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Comando do Exército, de acordo
com legislação específica.

Outra diferença importante que deve ser destacada para melhor compreensão do
assunto é a que existe entre o porte e a posse de armas. O porte consiste na
autorização de transitar com o instrumento, levá-lo consigo e poder portá-lo em
ambientes além da residência e do local de trabalho. Já a posse delimita que a arma
deve ser mantida apenas dentro da residência ou local de trabalho.

Atualmente a lei proíbe o porte em todo o território nacional, salvo exceções para
profissionais da área. Ela dá mais poder de controle ao Sinarm, impõe maior
burocracia sob quem compra e exige responsabilidade jurídica de quem
comercializa as armas. A lei também burocratiza o comércio, permitindo a venda de
munições apenas se forem correspondentes ao calibre da arma registrada, e
delimita que empresas que comercializam armas devem comunicar a venda à
autoridade competente e manter um banco de dados com as características destas.
Também legitima a Polícia Federal para expedir certificados de registros dos
instrumentos.

Desde o ano de 2019 ocorreram muitas tentativas de alteração do estatuto, até a


data do dia 13 de abril de 2021 onde entraram em vigor quatro decretos editados
pelo presidente Jair Bolsonaro que visavam flexibilizar as regras de compra de
armas. Estes tiveram alguns trechos suspensos pela relatora do caso, ministra Rosa
Weber. Passando os decretos a vigorar parcialmente.
13

Após as últimas alterações, o que vigora:

 Membros das Forças Armadas poderão adquirir insumos para recarga de até
cinco mil cartuchos das armas de fogo registradas em seu nome anualmente;
 Poder Judiciário, Ministério Público e a Receita Federal estão autorizados a
comprar e a importar armamento de uso restrito, mediante autorização do
Comando do Exército;
 Corpos de bombeiros militares, guardas municipais, Receita Federal mediante
aprovação prévia ao Comando do Exército poderão importar armas de fogo,
munições e demais produtos controlados;
 Colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) poderão portar uma arma de
fogo de porte de seu acervo municiada, alimentada e carregada no trajeto
entre o local em que realizam a atividade de tiro;
 Retira a proibição de colecionar armas semiautomáticas;
 Declaração da própria instituição atestará o cumprimento dos requisitos legais
necessários ao porte e aquisição de armas dos servidores integrantes das
carreiras da Receita Federal, do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Além disso, entre as normas estabelecidas nos decretos, está a autorização para
que as seguintes categorias possam adquirir e importar armas de fogo, munições e
demais produtos controlados, cuja fiscalização do uso cabe ao Exército Brasileiro:

 Integrantes das Forças Armadas;


 Policiais federais, rodoviários federais, civis, militares e bombeiros militares;
 Policiais penais federais, estaduais e distrital;
 Guardas municipais;
 Agentes operacionais da ABIN1 e da área de segurança do Gabinete de
Segurança Institucional da Presidência da República;
 Integrantes do quadro efetivo dos agentes e guardas prisionais, integrantes
das escoltas de presos e as guardas portuárias;
 Atletas das entidades de desporto legalmente constituídas;
 Auditores e técnicos da Receita Federal;
 Membros da área de segurança do Poder Judiciário e do Ministério Público.

1
Agência Brasileira de Inteligência
14

As novas regras também autorizam o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos


Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação
da Biodiversidade (ICMBio) a adquirir a mesma categoria de armamentos.

Foram suspensos pela ministra:

 Fim do controle feito pelo Comando do Exército sobre categorias de munições


e acessórios para armas;
 Autorização para a prática de tiro recreativo em entidades e clubes de tiro,
independentemente de prévio registro dos praticantes;
 Possibilidade de aquisição de até seis armas de fogo de uso permitido por
civis e oito armas por agentes estatais com simples declaração de
necessidade, revestida de presunção de veracidade;
 Comprovação pelos CACs da capacidade técnica para o manuseio de armas
de fogo por laudo de instrutor de tiro desportivo;
 Dispensa de credenciamento na Polícia Federal para psicólogos darem
laudos de comprovação de aptidão psicológica a CACs;
 Dispensa de prévia autorização do Comando do Exército para que os CACs
possam adquirir armas de fogo;
 Aumento do limite máximo de munição que pode ser adquiridas, anualmente,
pelos CACs;
 Possibilidade de o Comando do Exército autorizar a aquisição pelos CACs de
munições em número superior aos limites pré-estabelecidos;
 Aquisição de munições por entidades e escolas de tiro em quantidade
ilimitada;
 Prática de tiro desportivo por adolescentes a partir dos 14 anos de idade
completos;
 Validade do porte de armas para todo território nacional;
 Porte de trânsito dos CACs para armas de fogo municiadas;
 Porte simultâneo de até duas armas de fogo por cidadãos;

No mesmo decreto, o presidente também permitia que policiais, agentes


prisionais, membros do Ministério Público e de tribunais comprassem duas armas
de fogo de uso restrito, além das seis de uso permitido. Rosa Weber também
suspendeu esse trecho.
15

3. ESCALA DE ATITUDES FRENTE Â ARMA DE FOGO (EAFAF)

O já mencionado artigo “Escala de Atitudes frente à Arma de Fogo (EAFAF)”


trata-se de estudo realizado com 200 policiais militares e 220 estudantes
universitários com intuito de compreender as atitudes das pessoas frente às armas.
Este por sua vez foi adaptado para o Brasil, pois o estudo original “A three‐factor
scale of attitudes toward guns”, em português “Uma escala de três fatores de
atitudes em relação às armas” é americano.

O artigo “Escala de Atitudes frente à Arma de Fogo (EAFAF): Evidências de


Sua Adequação Psicométrica” menciona que para Branscombe et al., que
dissertaram sobre o assunto no artigo original, as armas se associam a três itens
principais: Direitos, Proteção e Crime. Sendo os três mencionados fatores
relacionados, já que “os Direitos se relacionam moderadamente com Proteção e o
fator Crime se relaciona negativamente com esses dois fatores”.

Portanto, dada a grande relevância dos resultados apresentados na referida


pesquisa, a mesma foi reproduzida para este trabalho, havendo o acréscimo de 4
novas perguntas pertinentes ao tema, sendo respondida por 100 voluntários mistos,
de diferentes ocupações, leigos e universitários, entre os quais 55 foram homens e
45 mulheres, com idades variadas.

3.1. Método
Participantes. Um total de 100 voluntários respondeu ao questionário, dentre
eles pessoas do sexo masculino e feminino, de diferentes idades e ocupações, não
havendo um padrão entre os respondentes. Objetivou-se a opinião popular nesta
pesquisa.

Instrumentos. Conforme pesquisa original, os participantes responderam a


afirmações através da escala Likert de 8 pontos, sendo 1=concordo totalmente a
8=discordo totalmente. Além das questões originais, foram acrescentadas outras 3
afirmações (anexos 14,19 e 20) e uma questão de resposta curta (anexo 23),
solicitando ao voluntário que respondesse a quê assimila armas de fogo.
16

3.2. Resultado
As respostas dos voluntários demonstram diversos posicionamentos acerca
do tema, sendo possível identificar, quando analisado individualmente, se o
respondente considera as armas como um direito, um instrumento de proteção ou
um facilitador para prática de crimes.

Isto ocorre porque um dos três itens sempre será o fator dominante da opinião
do entrevistado, se ele, por exemplo, entende que as armas garantem a proteção,
irá discordar das afirmações relacionadas ao aumento de crimes. Do contrário, se as
vê como algo que gera perigo para a sociedade, irá discordar que se trata de um
direito.

Outro fator curioso o qual pode ser observado é o de que as armas foram, na
maioria das respostas, associadas a algo negativo. Apesar de respostas como
“responsabilidade”, “proteção”, “defesa” e “respeito”, que equilibram o
posicionamento dos entrevistados, palavras como “morte” e outras ligadas à
violência se repetem diversas vezes, conforme demonstra o anexo 23.
17

4. ARMAS COMO DIREITO

4.1. Porte e posse e os direitos individuais


Um dos argumentos mais utilizados ao se debater o porte e a posse das armas é
a equiparação a um Direito Individual, argumento este provavelmente derivado da
observação das leis de outros países, onde as armas são mais populares e contam
com a ajuda da cultura de normalização.

Mas o porte e a posse podem ser considerados de fato um direito individual?


Afinal, o que são direitos individuais e o que classificaria as armas para pertencer a
esta classe?

4.2. O que são direitos individuais


A nossa Carta Magna de 1988, em seu título II, Direitos e Garantias
Fundamentais, apresenta em capítulos a definição destes afamados direitos, os
quais se dividem em: a) direitos individuais e coletivos; b) direitos sociais; c) direitos
de nacionalidade; d) direitos políticos.

“São também denominados obrigações negativas do Estado, porque sua


declaração significa que o Estado não deve fazer nada que os possa lesar. São
limitações à autoridade, à atividade dos poderes públicos, dos governos e das
autoridades em geral.” (AZAMBUJA, 1995)

São, portanto, uma série de direitos e garantias indispensáveis, dadas pelo


Estado ao homem, com intuito de assegurar que este tenha uma vida com dignidade
e com o mínimo de interferência do Poder.

A nós, neste primeiro momento, só importam os direitos individuais e


coletivos, ligados ao conceito de pessoa humana e à sua personalidade, e os
direitos sociais, que garantem as liberdades positivas e asseguram a igualdade dos
cidadãos.
18

4.3. Porte e posse e o direito individual de liberdade


O direito individual de liberdade, por vezes é invocado para sustentar
argumentos a favor das armas, mas existe uma grande possibilidade de estar sendo
interpretado erroneamente por seus interlocutores.

O direito de liberdade aparece dentro dos direitos individuais e coletivos e


novamente junto aos direitos sociais.

No primeiro capitulo, esta mencionada liberdade se refere ao tratamento


digno de um ser humano, e deixa claro em seus incisos que está tratando das
liberdades de locomoção, de pensamento e de escolha.

“A liberdade civil é o direito de todos os homens exercerem e


desenvolverem sua atividade física, intelectual e moral, e compreende a
liberdade física, isto é, o direito de ir e vir, de não ser detido arbitrariamente,
mas apenas de acordo com a lei, quando a transgredir; a inviolabilidade do
domicílio, o direito de propriedade, de que não pode ser despojado senão
por motivos de utilidade ou necessidade pública, mediante prévia e justa
indenização. A liberdade civil compreende ainda a liberdade religiosa, isto é,
a de praticar qualquer religião, desde que essa prática não ofenda a Moral;
a liberdade de opinião, que é a de expressar verbalmente ou por escrito
suas opiniões, desde que isso não importe aconselhar ou praticar crimes
defendidos em lei; a liberdade de associação, para qualquer fim lícito e
justo; e o direito de petição, que é o de dirigir às autoridades quaisquer
reclamações, queixas ou observações. (AZAMBUJA, 1995)

Dentro deste aspecto, a segurança dada pelos direitos individuais e coletivos


é de que o indivíduo é livre para pensar e argumentar a respeito do porte e da
posse, sem ser reprimido ou penalizado por expressar suas idéias, muito contrário
ao entendimento popular mais comum, que é o de que se é livre para fazer o que
bem entender e, dentro desta perspectiva, para possuir uma arma, se assim o
desejar.

Por sua vez, os direitos sociais, que reforçam as garantias do capitulo


anterior, são invocados sob argumento de auto-proteção. Diz o artigo Art. 6º da CF:

“São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a


moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção
19

à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma


desta Constituição.”

Novamente há um equívoco nesta interpretação, vez que não cabe ao


cidadão executar esta segurança pessoalmente (exceto quando a lei o permite),
trata-se de uma obrigação do Estado para com a sociedade.

Para Azambuja (1995) “Tem, pois, o Estado o dever de respeitar a vida, a


integridade física e as faculdades espirituais do homem, e este tem o direito de exigir
da sociedade política a manutenção das condições para existência da prosperidade
de sua vida física e intelectual”, o que significa dizer que o indivíduo pode e deve
valer-se de suas garantias, mas estas lhe serão dadas pelo e através do Estado,
justamente para evitar que este indivíduo satisfaça suas vontades por suas próprias
mãos e venha a prejudicar um terceiro ao fazê-lo, assunto que será esgotado nos
capítulos a seguir.

4.4. Autotutela vs. Bem comum


A autotutela trata-se da forma mais primitiva de solução de conflitos, é a
demonstração exata da Lei de Talião (olho por olho, dente por dente), representando
a prevalência do mais forte sobre o mais frágil. Conforme Ney Moura Teles (2006),
nesta época “além de fazer justiça pelas próprias mãos as penas não guardavam a
devida proporção com o delito que visavam responder. Verdadeira vingança de
sangue, tratava-se da lei do mais forte, cujo interesse individual se colocava acima
de tudo”.

Apesar desta definição, a autotutela diz respeito também à capacidade de


possuir o poder de controlar os próprios atos, de decidir o que é melhor para si
mesmo como indivíduo.

Embora a narrativa aparente um discurso ideal, vez que parece justo sermos
os únicos responsáveis por nossos atos, ela não se faz coerente à nossa atual
conjuntura por visar apenas a individualidade de cada ser.

O Homem, como já comprovado em muitos estudos, é um ser social que


possuí necessidade de se agrupar e conviver em sociedade. Deste modo passamos
a entender que ele, o Homem, é um ser racional político, que se une para viver em
20

grupos, dada suas características de consciência e sentimentos. Em outras


palavras, o Homem não age apenas por instinto, diferente de outras criaturas
irracionais.

Conforme ARISTÓTELES, os outros animais vivem em meros agrupamentos,


mas o homem, por ter a noção do bem e do mal, do justo e do injusto, organiza seus
agrupamentos, mas tudo está em sua necessidade natural.

“A primeira causa de agregação de uns homens a outros é menos a sua


debilidade do que certo instinto de sociabilidade em todos inato; a espécie
humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma
disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar
o apoio comum". (Cícero, in República, vol. I p. 15).

Com isso demonstrando que não são as necessidades materiais que levam o
homem a viver em sociedade, mas sim a disposição natural para a vida associativa.

Há muito tempo aqueles que se reuniam faziam isso com intuito de proteção,
de si próprio e de suas famílias, desta forma dando origem aos primeiros
agrupamentos: as tribos. Não bastasse esse agrupamento, o qual solucionava
questões relacionadas à segurança, urgiu a necessidade da criação de normas de
conduta, que organizassem as tribos e possibilitassem uma vida harmonizada entre
os membros. Para Darcy Azambuja (1995) “o instinto social leva ao Estado, que a
razão e a vontade criam e organizam”.

Assim começam a nascer às sociedades mais complexas e o mundo


atravessa várias formas de estruturas sociais, passando pela criação de cidades,
cidades-estado, feudos, reinos e várias outras até chegarmos à estrutura social
moderna, a qual conhecemos hoje e que ainda possuí como elemento principal uma
característica "sui generis": o bem comum.

O surgimento da sociedade, portanto, muda o rumo da história, tornando a


autotutela ultrapassada e pouco aplicada. O uso da força não é mais necessário
para garantir a sobrevivência. Com o avanço da humanidade as leis sobrevêm e
junto delas a busca pelo Bem Comum. Seja através da criação de normas de
convívio social, leis e costumes, ou pela imposição destes, a presença do Estado
nas sociedades passa a ser indispensável para a existência da ordem. Sua lei é
21

“erga omnes”. O Estado passa a operar como o solucionador de conflitos e de


questões importantes pertinentes ao bem de todos.

“O Estado não cria a Arte, a Ciência, a Moral, o Direito, que são criações da
alma humana, e ele não tem poder direto sobre ela. Seu domínio é o
temporal, o equilíbrio e a harmonização da atividade do homem, para que a
liberdade de um não prejudique a igual liberdade dos outros” (AZAMBUJA,
1995)

Ante o exposto entende-se que com os agrupamentos sociais surgiram as


sociedades organizadas, as quais, pela própria vontade abriram mão da autotutela e
instituíram um Estado, que passa a ter competência para tutelar e garantir os
interesses de todos, mas ao fazê-lo deverá respeitar os direitos individuais , naturais
e inalienáveis, não podendo traças limites senão aqueles necessários a coexistência
social, tendo ainda que basear suas decisões no bem comum.

Compreendendo que a autotutela é uma forma de proteção individualista que


assegura apenas a proteção dos próprios ganhos e afronta a coexistência social,
seria adequado, ao se viver em sociedade, aplicá-la aos dias atuais? Até onde a
autotutela e sede pela própria proteção prevalece sobre o bem comum? A liberação
das armas ao atender o desejo de proteção de alguns indivíduos estaria respeitando
o desejo daqueles que se sentem mais seguros sem elas?

Para Dworkin (2014)

“Como indivíduos, nós podemos e devemos demonstrar mais consideração


pelo bem-estar da nossa família e dos nossos amigos que pelo de pessoas
desconhecidas. Mas essa consideração especial tem limites: não podemos
submeter os desconhecidos ao risco de danos graves que não aceitaríamos
para nós e nossos próximos”.

Ele ainda complementa:

“Um governo legítimo não compromete a dignidade quando atua para


proteger alguns cidadãos contra a violência dos outros. Se pensássemos
que toda proibição do crime compromete automaticamente a dignidade,
teríamos de tratar como graves erros boa parte do que os Estados
atualmente fazem”. (DWORKIN, 2014)
22

5. ARMAS COMO MEIO PARA SEGURANÇA

O uso de armas como instrumento para garantia de segurança é indiscutível,


do contrário os servidores públicos não teriam acesso a elas como instrumento
de trabalho. Entretanto, este capítulo se resguardará a analise das armas nas
mãos dos cidadãos comuns, desconstruindo o argumento de legítima defesa e
apresentando hipóteses que se confundem.

5.1. Legitima Defesa


Nosso Código Penal apresenta em seu Art.25º que “entende-se em legítima
defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta
agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

Mencionado artigo trata de uma excludente de ilicitude, uma situação em que


o agente pode cometer um ato ilícito sem que seja penalizado por ele, desta forma
resguardando seus direitos através da autotutela, sem a ajuda do Estado, vez que
este não possuí condições de proteger a todos em todos os lugares e momentos.

Portanto, havendo uma situação de agressão atual ou iminente, o agente está


apto a revidar, usando os meios necessários para proteger a si mesmo ou terceiros,
tendo o resguardo da lei.

A falha ao interpretar esse artigo reside na crença de que a hipótese pode ser
aplicada a toda e qualquer situação de revide, quando na verdade a legitima defesa
possuí requisitos para sua existência.

É necessário, em primeiro lugar, que a agressão sofrida seja injusta, de


natureza não autorizada pelo direito, e que ocorra naquele exato momento ou esteja
prestes a acontecer.

“Só é admitida a reação quando o bem jurídico já está sendo agredido ou


quando estiver prestes a sofrer a lesão. Quando houver perigo concreto de
lesão, não quando este perigo é apenas uma suposição, distante ainda no
tempo, de modo que pode sequer instalar-se”. (TELES 2006).
23

A título de exemplo imagine a seguinte situação: o agente A possuí desafeto


com B e pretende lesioná-lo. Um dia caminhando pela rua ele vê a oportunidade de
consumar sua vontade e desfere um soco contra B quando passa ao seu lado na
calçada. B age rapidamente, desvia do soco e desfere o mesmo golpe conta A, que
é atingido e cai no chão. Nesta hipótese, B teria o resguardo da excludente de
ilicitude, entretanto, se não houvesse agido naquele momento, guardasse o ocorrido
pra si, planejasse uma forma de se vingar e após dois dias, ao deparar-se com A na
rua devolvesse o soco, não teria o resguardo e seria indiciado pela lesão corporal,
vez que seria ele quem provocou a injusta agressão.

Outro ponto que merece atenção é o “uso moderado dos meios necessários”,
o qual significa que um exagero na reação da agressão desqualifica a excludente.
Para Ney Moura Teles (2006) “só é legitima a repulsa praticada com utilização dos
meios necessários para fazer cessar, ou impedir que ocorra a agressão injusta, atual
ou iminente, a qualquer direito, próprio ou de terceiro”.

Utilizando o mesmo exemplo já mencionado, seria a situação em que ao


revidar o soco desferido por A, B depois de derrubá-lo continua a dar golpes, além
do necessário para repelir a agressão, excedendo à exceção autorizada pela lei.

“O meio utilizado deve ser o necessário para impedir a agressão iminente de


concretizar-se, atualizar-se, ou para fazer cessar a agressão atual. Nem mais do que
o necessário, nem menos, pois aí não haveria defesa eficiente.” (TELES, 2006)

A doutrina ainda explica:

“Uma arma de fogo pode ser o meio necessário para obstar uma agressão
praticada com os próprios punhos. Um sujeito franzino, raquítico, que tenha
uma arma de fogo à sua disposição, agredido a murros por um lutador de
artes marciais, deve utilizar o revolver como o meio necessário para se
defender, ainda que junto dele exista um porrete, ou uma barra de ferro.
Tais instrumentos, nas mãos do frágil cidadão, podem, a toda evidência, ser
aquém do necessário para impedir a agressão do exímio lutador. Se o
sujeito tem a seu dispor vários instrumentos, ou pode utilizar-se de vários
meios contra a agressão, deve, é evidente, escolher aquele que, com
eficiência, resulte no menor dano ao agressor” (TELES, 2006).
24

Não basta que o agente escolha o meio necessário, é indispensável que o


utilize com moderação, sem exageros, sem excessos (TELES, 2006). Dito isto,
entende-se que para validação da excludente de ilicitude é necessário que a reação
seja equivalente a agressão sofrida, devendo o agente se atentar aos excessos.

Desta forma nos resta questionar até que ponto o revide a uma agressão
utilizando uma arma como instrumento garantidor de segurança estará dentro dos
limites e requisitos do caput do artigo, já que não existe nenhuma forma de
mensurar o meio necessário e não se pode esperar que aquele que reage consiga
calcular com exatidão o “estrago causado”, ficando a avaliação a cargo somente do
julgador.

Dentro do pior cenário hipotético a aplicação da legitima defesa a casos de


acidentes com armas resultaria numa banalização do propósito da lei, ou pior do que
isso, ainda que o agente possuísse os requisitos necessários para a excludente,
este poderia enfrentar inúmeros distúrbios pós-traumáticos derivados de sua ação.

Acerca deste assunto o Instrutor de Direito Penal e de Armamento e Tiro para


cursos de formação de vigilantes, Luiz Guilherme Prado Souza Leal (2019) discorre
em seu artigo:

“O uso de uma arma de fogo, ainda que em uma situação de estrito


cumprimento do dever legal, ou exercício de legítima defesa, incorre em
2
vários destes questionamentos , bem como o efeito do transtorno de stress
pós-traumático, ou PTSD, sigla em inglês para Pos-Traumatic Stress
Disorder, onde o autor pode desenvolver uma série de patologias ligadas a
situação de enorme stress que é uma situação de combate, bem como a
reprovação no meio social de sua atitude, ou questionamentos internos, por
ter atirado em alguém, ou mesmo matado uma pessoa, ainda que esta
pessoa o estivesse atacando.”

Ele ainda completa:

“O remorso, mesmo de uma ação de legítima defesa bem sucedida, pode


ter conseqüências devastadoras na vida de um ser humano, pois aquele

2
Segundo o autor, não fazer com outro o que não queremos que não façam conosco, a preocupação
com as medidas coercitivas de cunho social, como a reprovação dos integrantes do meio em que
vivemos contra indivíduos que exerçam a violência, bem como as medidas coercitivas de cunho legal,
pois o sujeito não quer ir para a prisão e deixar a família desamparada durante a sua privação de
liberdade;
25

que sobreviveu terá até o fim de seus dias para se questionar, e é uma
patologia que pode vir a se manifestar muito tempo depois do fato, ou
exposição. Imagine um cidadão, que ao reagir a um ataque, feriu e matou
um transeunte inocente?”

5.2. Exercício Arbitrário das próprias razões


O Art. 345º Traz a definição de exercício arbitrário das próprias razões como
“fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo
quando a lei o permite”, hipótese que trata da já mencionada autotutela.

Com a superação da lei de talião o Estado passa a ter o monopólio da


jurisdição, tornando-se o mais apto para resolução de conflitos e sendo necessário
para tanto, conseqüentemente tornando culpável a ação em função da própria
vontade e inibindo este comportamento.

Apesar da reprovação apresentada na lei existem algumas exceções


cabíveis, como a já mencionada legitima defesa, o estado de necessidade e o
exercício regular do direito (previstos no artigo 23 do CP) nestas hipóteses para se
configurar a excludente de ilicitude, o agente deve agir com consciência e vontade
de defender o bem jurídico (TELES, 2006); São outras exceções o direito de greve
(art. 9º da Constituição Federal); o direito à retenção de bagagem ou bens móveis
nos casos do artigo 1.467 e de outros artigos do Código Civil); a poda de galhos de
árvore dos vizinhos (artigo 1.283 do Código Civil); e a proteção possessória (artigo
1.210 do Código Civil). Salvo nestas hipóteses, qualquer situação em que o agente
vise satisfazer sua própria vontade, agindo por si mesmo sem a tutela do Estado,
estará cometendo o crime de exercício arbitrário.

Esta situação se assemelha muito a situação hipotética apresentada


anteriormente a respeito do revide tardio a injustas agressões. Imagine que A e B se
desentendem por alguma razão entrando em vias de fato. A, enfurecido, ao invés de
resolver o conflito através dos meios legais, onde se utilizaria da ajuda do judiciário,
decide resolver o problema sozinho. A, cujo possuí uma arma de fogo, municia o
instrumento e vai até a casa de B. No local ele aponta a arma para B e profana
inúmeras ameaças, inclusive dizendo para que B não cruze seu caminho
novamente.
26

No caso em tela A agiu pelos próprios impulsos com a finalidade de encerrar


um problema, ainda que tivesse uma pretensão legítima, a qual não foi o caso, ao
fazê-lo cometeu outros inúmeros delitos. Não há, portanto, uma ponderação das
atitudes ou um argumento que valide a ocorrência dos outros delitos para atingir a
finalidade.

A validação do uso de armas sob argumento da própria proteção beira o


crime de exercício arbitrário das próprias razões, vez que o cidadão que possuí uma
arma é passível de cometê-lo.
27

6. ARMAS PARA O CRIME

6.1. Analise da violência: De 1980 para os dias atuais


O ano escolhido como marco do início da análise será 1980 devido ao
significante tempo de 23 anos até a data de promulgação do estatuto do
desarmamento, deste modo sendo possível ilustrar a “criminalidade antes do
estatuto” e, após isso, o caminho percorrido até os dias atuais, para a “criminalidade
após o estatuto”.

São inúmeros os relatos discorrendo sobre a facilidade de se obter armas


antes do, atualmente polêmico, estatuto do desarmamento. Mas o fato é apenas
um, seja este argumento usado contra ou a favor das armas, era possível comprá-
las como se compra um aparador de grama nos dias de hoje.

“Imagine um país onde qualquer pessoa com mais de 21 anos pudesse


andar armada na rua, dentro do carro, nos bares, festas, parques e
shoppings centers. Em um passado não muito distante, esse país era o
Brasil. Até 2003, aqui era possível, sem muita burocracia, comprar uma
pistola ou um revólver em lojas de artigos esportivos, onde
as armas ficavam em prateleiras na seção de artigos de caça, ao lado de
varas de pesca e anzóis. Grandes magazines, como os hoje finados Mesbla
e Sears, ofereciam aos clientes registro grátis e pagamento parcelado em
três vezes sem juros. Anúncios de página inteira nas principais revistas e
jornais anunciavam promoções na compra de armas, apelando para o já
existente sentimento de insegurança da população” Alessi (2017)

“O porte de armas era tão comum que em alguns Estados os locais públicos
eram obrigados a oferecer uma chapelaria exclusiva para guardar os revólveres ou
pistolas dos clientes” (ALESSI, 2017), o que ilustra a normalidade com as armas
eram vistas há alguns anos.

Entretanto, a convivência normalizada ao lado do instrumento bélico não


significa a inexistência da violência. “Segundo dados do Ministério da Saúde e do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, de 1980 até 2003, as taxas de homicídios
subiram em ritmo alarmante, com alta de aproximadamente 8% ao ano” (ALESSI,
2017).
28

“Entre 1993 e 2003 os homicídios com arma de fogo cresceram 7,8% ao ano,
até atingir 36.115 mortes” (ALESSI, 2015). “O Distrito do Jardim Ângela, bairro da
zona sul da cidade de SP, no ano de 1996, chegou a ser eleita pela ONU a região
mais perigosa do planeta, registrando a taxa anual de 116,23 assassinatos para
cada 100 mil habitantes.” (REDAÇÃO DO MIGALHAS, 2021).

Até 1997, o porte ilegal de arma de fogo era enquadrado apenas como uma
contravenção penal. “Em 1997 o Brasil passou a controlar o acesso às armas, sendo
sancionada a lei 9.437/97, que instituiu o Sinarm - Sistema Nacional de Armas como
o responsável pelo controle de armas de fogo em poder da população” (REDAÇÃO
DO MIGALHAS, 2021). Mas apesar do controle os índices de violência continuaram
a aumentar, sobrevindo o Estatuto do Desarmamento quatro anos após.

Dois anos depois da publicação, em 2005, foi realizada uma pesquisa com a
população por meio de referendo, onde lhes foi questionado se concordavam ou não
com a restrição de armas imposta pela norma. Nessa consulta popular mais de 63%
dos cidadãos foram contrários aos termos do estatuto, perpetuando-se o comércio,
com certas restrições e devida burocracia, de armas de fogo e munição em todo o
território nacional até a presente data.

É comprovado que a violência sempre esteve presente em nossa sociedade.


Entretanto, o problema que enfrentamos atualmente é a evolução desta violência.
“Julio Jacobo afirma que a maioria dos homicídios do país são motivados por brigas
entre vizinhos, parentes, acidentes de trânsito, ou seja, motivos fúteis, crime cultural”
(ALESSI, 2015). Demonstra o anexo 14, referente à pesquisa, que mais da metade
dos entrevistados considera haver mais violência hoje do que houve em outras
épocas, concordando totalmente ou parcialmente com a afirmação (escala Likert 1 a
3 pontos), além de declarar que não se sentiriam mais seguros ao saber da
presença de uma pessoa armada dentro da mesma sala (anexo 19).

A pesquisa CNT/MDA divulgada no dia 22 de fevereiro de 2021 “aponta que


68,2% dos brasileiros são contrários ao decreto do presidente Jair Bolsonaro que
facilitou o acesso da população à compra de armas de fogo.” (FRAGA, 2021).

Os argumentos a favor da liberação comumente se valem do sentimento de


insegurança, reforçando a ineficácia do Estado em proteger a população e a
29

necessidade de terem o direito de se defender sozinhos, abordagem já mencionada


e que era utilizada antes da burocratização do estatuto e do controle de registros
pelo Sinarm. Entretanto, na contramão do referendo de 2005, a população mais
jovem, que não viveu uma realidade próxima das armas, não acredita na sua
necessidade como um instrumento de proteção, ao contrário, assimila as armas a
coisas negativas e a violência, e não se vêem em posse ou portando uma.

Sendo assim, não é plausível mensurar uma comparação entre às épocas e


valer-se disso como argumento uma vez que toda a nossa sociedade se modificou
dentro deste período histórico de 40 anos e, conseqüentemente, a opinião e
posicionamento das pessoas também, bem como sua necessidade de portar armas.

6.2. Segurança Pública, Dever do Estado, Direito e Responsabilidade


de todos
Conforme pudemos analisar até o momento, “o homem não é absolutamente
livre para fazer o que bem quiser, pois vive sob a égide de normas de conduta,
criadas por ele mesmo, por meio do Estado, que ele também instituiu” (TELES,
2006).

Assim, traz o artigo 144 da nossa Constituição Federal:

A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,


é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.

O artigo é claro ao delimitar os órgãos responsáveis por nossa segurança


dentro da sociedade, demonstrando, portanto, que incube ao Estado a tutela dos
bens jurídicos, e que ele o fará através de seus representantes.
30

Já o direito e responsabilidade a que se refere mencionado artigo trata do


direito objetivo dos cidadãos, em outras palavras, diz respeito às normas que
determinam a conduta que os membros da sociedade devem observar nas relações
sociais.

“A responsabilidade é um conceito indispensável em todas as facetas da


nossa vida intelectual. É um conceito enganoso, pois usamos as palavras
“responsabilidade” e “responsável” de várias maneiras diferentes, fáceis de
confundir entre si.” (DWORKIN, 2014)

A “responsabilidade” citada é comumente usada nos discursos de liberação


das armas, sendo entendida como uma obrigação que todo cidadão possuí de
contribuir com a segurança, entretanto, a responsabilidade atribuída ao cidadão é a
de manter a ordem pública através do cumprimento das leis, ao viver de acordo com
elas, vez que os responsáveis por garantir esse direito e assegurá-lo são as forças
policiais.

Para o Centro Internacional de Investigação e Informação da Paz;


Universidade Para A Paz das Nações Unidas (2002):

“De uns tempos pra cá, observa-se um desgaste da cidadania que levas as
pessoas a criarem mecanismos de autodefesa, independentes de
instituições responsáveis pela segurança pública. Ao lado disto, verifica-se o
aparecimento de novos comportamentos sociais como o isolamento (em
especial das camadas mais altas), a desconfiança e o individualismo”

Cada vez mais as pessoas cultivam pensamentos individualistas, colaborando


com o discurso de insuficiência do Estado para oferecer proteção. Os níveis de
criminalidade são alarmantes, não permitindo a negação de sua existência. Mas
seria o porte e a posse de armas de fogo solução eficiente para os problemas de
Segurança Publica?

“Os individualistas esquecem que, num mundo cheio de povos agressivos,


onde a justiça internacional é ainda um ideal apenas, a nação é o ambiente
único em que o homem pode encontrar a segurança para a sua pessoa e o
estímulo para suas aspirações, sendo necessário, portanto, sacrifícios para
manter e engrandecer a sociedade nacional, em que ele vive e prospera”.
(AZAMBUJA, 1995)
31

Ao vislumbrar uma sociedade onde há liberação de armas e, portanto, a


autotutela como instrumento de segurança, é necessário ter consciência de que isto
sugere uma renuncia da proteção dada pelo Estado. Mas se por outro lado deseja
viver em uma sociedade tutelada, o indivíduo não pode viver à margem dela, tem
fatalmente que inserir-se em seus quadros (AZAMBUJA, 1995), o que implica
respeitar as imposições da lei.
32

7. CONCLUSÃO

A discussão acerca do porte e da posse das armas de fogo costuma ser pautada
pelos convincentes argumentos do direito de se defender, o que nos remete a idéia
de que este se trata de um assunto de direitos individuais.

Entretanto, a análise e capítulos apresentados neste projeto evidenciam tratar-se


de um assunto de interesse público, a respeito de segurança pública, ainda que
todos os argumentos utilizados sejam de cunho individualista.

Para discutir o tema, portanto, é imprescindível compreender que a liberação


afeta todos dentro da sociedade, inclusive aqueles que optam por não possuir
armas, pois estes terão de conviver com elas se assim ocorrer.

Deste modo, torna-se impossível transformar o porte e a posse de armas de fogo


num direito objetivo sem antes atravessar a discussão sobre o conflito entre a
autotula e o bem comum.

Dentro de uma sociedade é indispensável que todos atuem em busca do já


mencionado bem, e façam isso através do respeito às leis instituídas pelo Estado,
vivendo em conformidade com elas. É evidente que a sociedade não reprime as
individualidades e trabalha para garantir a existência destas, mas o faz apenas até o
momento em que isto não afeta outras pessoas.

Embora as armas sejam meros instrumentos, muitas vezes utilizados como meio
para o cometimento de crimes, a finalidade de sua criação é única. Armas foram
criadas para matar, ainda que esta escolha caiba somente ao portador do utensílio.
De todo modo uma arma que não efetua disparos não é um instrumento eficiente, e
se um indivíduo não possuí a intenção de atirar com ela, não há razão para tê-la.

Suponha então que um individuo, dentro da atual legislação, possua uma arma
de fogo e, ao revidar a uma injusta agressão atinja um transeunte que passava por
ali. É evidente que ele será abarcado pelo instituto da legítima defesa, não por ter o
direito individual de se defender, mas porque a hipótese trata de uma excludente de
ilicitude, uma espécie de direito subjetivo que pode ser invocado desde que
presentes todos os requisitos necessários para tanto. No cenário de sua aplicação, é
33

usado uma analise causalistica. Sendo assim, não deve o agente iludir-se com sua
existência, acreditando que poderá aplicar a exceção a todos os incidentes que
ocorram.

O argumento da legitima defesa acaba sendo invalidado pela complexidade de


aplicação do instituto, uma vez não é possível calcular milimetricamente os meios de
reação num momento de temor e, posteriormente, toda a situação será analisada
por um julgador, a quem caberá dizer se houve ou não uma reação adequada e
equivalente ao fato ocorrido.

Cabe ressaltar também que a legitima defesa, diante de excessos, será


devidamente penalizada, sendo o agente punido pelos atos cometidos. Neste
cenário, é necessário se atentar para a possibilidade de que um fato humano
utilizando uma arma possa encaixar-se na hipótese do Art. 345 do Código Penal,
que trata do crime de exercício arbitrário das próprias razões. Nesta situação o bem
jurídico tutelado que se atinge é a administração da justiça (o agente ignora o
monopólio estatal para atingir seu fim), e apenas secundariamente alcança a vítima.

Quando debatamos a respeito da liberação das armas, tanto a legítima defesa


quanto o exercício arbitrário podem se confundir. Em ambas as hipóteses o agente
age valendo-se da autotutela, tendo a proteção do Estado em uma situação e noutra
não.

O que se entende da Legitima Defesa é que o Estado reconhece sua


incapacidade de estar presente em todos os lugares e concede uma exceção aos
indivíduos, que não devem utilizá-la como justificativa para cometer delitos e sair
impunes. Esta é justamente a responsabilidade de que trata Art. 144 da CF.

Por sua vez o exercício arbitrário das próprias razões é uma afronta ao
monopólio da jurisdição do Estado. E conceder ao cidadão comum o direito de
autotutelar seus direitos não é muito diferente de apagar a referida hipótese de
nosso Ordenamento, invalidando o dever do Estado e tornando-o inútil.

Cabe ao Estado garantir o necessário para vida próspera de seus membros, o


que incluí a segurança destes, através de inúmeros representantes, figurando no
campo operacional ostensivo e no administrativo jurisdicional.
34

Se os membros, no entanto, acreditam que o Estado não é mais capaz de


garantir-lhes a segurança e optam por fazê-la por suas próprias mãos, não há por
que valer-se de suas leis e proteção.

Ao contrário desta linha de pensamento tão radical, se o foco do problema que


trouxe à tona a discussão acerca do porte e da posse de armas de fogo é de fato o
aumento da criminalidade e a segurança publica, deve-se voltar à atenção para
estes pontos, discutindo os problemas de segurança pública e procurando soluções
com aqueles a quem compete garanti-la, ao invés de assumir os riscos de regresso
a autotutela armando os cidadãos comuns, incapacitados para tanto.

“Se uma sociedade se move mais em direção da violência da que da paz, isso
significa a perda de vidas humanas e materiais, custos econômicos, impossibilidade
de construção de uma ordem política e erosão de valores de convivência e
integração sociais” (CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E
INFORMAÇÃO DA PAZ; UNIVERSIDADE PARA A PAZ DAS NAÇÕES UNIDAS,
2002)
35

8. REFERÊNCIAS

ALESSI, Gil. Como era o Brasil quando as armas eram vendidas em shoppings
e munição nas lojas de ferragem. El País. São Paulo, p. 1-1. 31 out. 2017.
Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/25/politica/1508939191_181548.html. Acesso
em: 15 abr. 2021.

ALESSI, Gil. Estatuto do Desarmamento salvou 160.000 vidas, calcula


estudo. El País. São Paulo, p. 1-1. 13 maio 2015. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/05/13/politica/1431545595_563619.html. Acesso
em: 15 abr. 2021.

AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 34. ed. São Paulo: Globo, 1995. 397
p.

CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO DA PAZ;


UNIVERSIDADE PARA A PAZ DAS NAÇÕES UNIDAS (ed.). O ESTADO DA PAZ E
A EVOLUÇÃO DA VIOLÊNCIA: a situação da américa latina. Campinas,Sp:
Editora da Unicamp, 2002. 230 p. Tradução: Maria Doles Prades.

DWORKIN, Ronald. A RAPOSA E O PORCO-ESPINHO: justiça e valor. São


Paulo: Wmf Martins Fontes, 2014. 735 p. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla.

GOMES, Pedro Henrique. Decretos das armas: saiba o que está em vigor após
rosa weber ter suspendido trechos. 2021. G1. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/04/13/decretos-das-armas-saiba-o-que-
esta-em-vigor-apos-rosa-weber-ter-suspendido-trechos.ghtml. Acesso em: 13 maio
2021.

FRAGA, Lorena. 68% dos brasileiros são contra flexibilização do uso e compra
de armas de fogo. 2021. Poder360. Disponível em:
https://www.poder360.com.br/pesquisas/68-dos-brasileiros-sao-contra-flexibilizacao-
do-uso-e-compra-de-armas-de-fogo/. Acesso em: 16 abr. 2021.

FAVORETTO, Affonso Celso. Exercício arbitrário das próprias razões (art. 345,CP).
In: FAVORETTO, Affonso Celso (ed.). DIREITO PENAL: parte geral e parte
especial. São Paulo: Rideel, 2014. p. 413-414. Disponível em:
https://plataforma.bvirtual.com.br/Leitor/Publicacao/182324/pdf/432. Acesso em: 12
maio 2021.

LEAL, Luiz Guilherme Prado Souza. ARMAS DE FOGO E LEGÍTIMA DEFESA.


2019. Disponível em: https://medium.com/@sheepdogwriter/armas-de-fogo-e-
leg%C3%ADtima-defesa-5ee56dd95465. Acesso em: 05 maio 2020.

REDAÇÃO DO MIGALHAS (ed.). Pátria armada, Brasil - As mudanças de


Bolsonaro na questão das armas. Migalhas. [S. L.], p. 1-1. 24 fev. 2021.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/340420/patria-armada-brasil--
as-mudancas-de-bolsonaro-na-questao-das-armas. Acesso em: 15 abr. 2021.
36

TELES, Ney Moura. DIREITO PENAL: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
540 p.
37

9. ANEXOS

ANEXO 1

Sexo dos voluntários que responderam a pesquisa.

ANEXO 2

Idade dos voluntários, sendo maior a participação de pessoas com idade


compreendida entre 18 a 25 anos.
38

ANEXO 3

ANEXO 4
39

ANEXO 5

ANEXO 6
40

ANEXO 7

ANEXO 8
41

ANEXO 9

ANEXO 10
42

ANEXO 11

ANEXO 12
43

ANEXO 13

ANEXO 14
44

ANEXO 15

ANEXO 16
45

ANEXO 17

ANEXO 18
46

ANEXO 19

ANEXO 20
47

ANEXO 21

ANEXO 22
48

ANEX0 23

Demonstração de respostas que mais se repetem

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