Filosofia Do Direito Privado

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Dra.

Adriana Goulart De Sena Orsini


Professora Associada IV e membro do corpo permanente do Programa de Pós-graduação
da Faculdade de Direito da UFMG.

Dra. Amanda Flavio de Oliveira


Professora associada e membro do corpo permanente do PPGD da faculdade de Direito da
Universidade de Brasília.

Dr. Eduardo Goulart Pimenta


Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG e do Programa de Pós-graduação
em Direito da PUC/MG

Dr. Francisco Satiro


Professor do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP – Largo
São Francisco

Dr. Henrique Viana Pereira


Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC Minas.

Dr. João Bosco Leopoldino da Fonseca


Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG

​​​​​​​Dr. Leonardo Gomes de Aquino


Professor do UniCEUB e do UniEuro, Brasília, DF.

Dr. Luciano Timm


Professor da Fundação Getúlio Vargas - FGVSP e ex Presidente da ABDE (Associação Brasi-
leira de Direito e Economia)

Dr. Marcelo Andrade Féres


Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG

Dra. Renata C. Vieira Maia


Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG

Dr. Rodolpho Barreto Sampaio Júnior


Professor Adjunto na PUC Minas e na Faculdade de Direito Milton Campos, vinculado ao
Programa de Mestrado.

Dr. Rodrigo Almeida Magalhães


Professor Associado da Faculdade de Direito da UFMG e do Programa de Pós-graduação
em Direito da PUC/MG
Direção editorial: Luciana de Castro Bastos
Diagramação e Capa: Daniel Carvalho e Igor Carvalho
Revisão: Do Autor
A regra ortográfica usada foi prerrogativa do autor.

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‘’A prerrogativa da licença creative commons
4.0, referencias, bem como a obra, são de
responsabilidade exclusiva do autor’’

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


PEREIRA, Fábio Queiroz, ZANITELLI, Leandro Martins, COLOMBI, Henry
(ORG.)
Titulo: Filosofia do Direito Privado - Ensaios sobre a justificação nos
contratos a partir da obra de Peter Benson - Belo Horizonte - Editora
Expert -
2022.
Organizadores: Fábio Queiroz Pereira, Leandro Martins Zanitelli, Henry
Colombi
ISBN: 978-65-89904-51-9
Modo de acesso: https://experteditora.com.br
1.Direito 2.Contratos 3.Direito civil 4.Peter Benson; I. I. Título.
CDD: 342.1

Este livro foi selecionado para publicação pelo Programa de Pós-Graduação em Direito
da UFMG com recursos do Programa de Excelência Acadêmica (PROEX) da CAPES

Pedidos dessa obra:

experteditora.com.br
[email protected]
APRESENTAÇÃO

A presente obra é resultado da disciplina “Filosofia do Direito


Contratual”, ofertada no primeiro semestre letivo de 2021 junto ao
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de
Minas Gerais (PPGD/UFMG). Na oportunidade, as análises e os debates
foram conduzidos a partir da leitura do livro “Justice in Transactions”,
do jurista canadense Peter Benson.
Benson apresenta uma teoria do contrato com fundamentos
diversos das visões dominantes encontradas na Common Law, quais
sejam aquelas embasadas no discurso econômico ou na moralidade
promissória. O autor sustenta uma concepção normativa de contrato,
atenta à necessidade de estabilidade do sistema e à concretização
da justiça corretiva. O instituto é então compreendido como uma
transferência de propriedade (ownership) e, nesta proposta, reside a
sua base pública de justificação.
Os artigos ora apresentados refletem as atividades de
investigação dos discentes participantes da disciplina e revelam
caráter transversal e interdisciplinar. São produções científicas que
se vinculam diretamente ao projeto de pesquisa “Direito Civil na
Interdisciplinaridade”, desenvolvido no âmbito da linha de pesquisa
“História, Poder e Liberdade” do PPGD/UFMG. Por meio de aportes
teórico-filosóficos, busca-se repensar contornos da dogmática de
direito civil, notadamente daqueles conexos ao fenômeno contratual.
Em razão do caráter recente da obra “Justice in Transactions” de
Peter Benson e do intenso debate já gerado no âmbito internacional,
espera-se, por meio da presente coletânea de artigos, introduzir no
contexto brasileiro importantes debates e propiciar a construção de
futuros diálogos e reflexões no campo do direito contratual, reforçando
e construindo novas redes de pesquisa.

Fabio Queiroz Pereira


Leandro Martins Zanitelli
Henry Colombi
CONTEÚDO

A TEORIA CONTRATUAL DE PETER BENSON


E O PROBLEMA DA ESTABILIDADE

Rangel Mendes Francisco


Introdução...................................................................................................... 12

1. Justificação pública e a base moral para uma teoria do contrato como

transferência................................................................................................... 13

1.1. A base pública de justificação ................................................................ 14

1.2. A base moral para o contrato e a concepção jurídica de pessoa................ 17

2. O problema da estabilidade na teoria contratual de Peter Benson ................... 20

2.1. Estabilidade e os domínios da promessa gratuita, do mercado e da justiça

distributiva..................................................................................................... 21

3. Do problema da estabilidade na filosofia política de John Rawls à teoria contratual

de Peter Benson .............................................................................................. 24

Considerações Finais ...................................................................................... 27

Referências .................................................................................................... 29

A PESSOA EM PETER BENSON

Pedro Silveira Campos Soares


Introdução...................................................................................................... 30

1. Plano abstrato: os dois poderes morais.......................................................... 32

1.1 Primeiro poder moral: independência pura............................................. 35

1.2 Segundo poder moral: racionalidade e reconhecimento .......................... 38


2. Plano concreto: um terceiro poder moral?..................................................... 41

2.1 Sistema de carecimentos hegeliano......................................................... 43

2.2. Justiça distributiva e terceiro poder moral.............................................. 46

Conclusão ...................................................................................................... 48

Referências..................................................................................................... 50

PROPRIEDADE COMO REPRESENTAÇÃO EM PETER BENSON

André Maciel Silva Ferreira


Introdução...................................................................................................... 52

1. Os diferentes sentidos de ownership............................................................54

1.1 Ownership como propriedade................................................................. 54

1.2 Propriedade como representação............................................................ 56

2. Diferentes pontos de análise da propriedade representacional........................ 59

2.1 Propriedade como valor de uso e valor de troca........................................ 59

2.2 Significado jurídico da tradição............................................................... 62

2.3 Valor no momento da quebra.................................................................. 64

3. As diferentes percepções de Benson.............................................................. 67

Conclusão....................................................................................................... 72

Referências..................................................................................................... 74

A TEORIA DE PETER BENSON E SUA APLICAÇÃO


AOS CONTRATOS DE SERVIÇOS

Fernanda Marinho Antunes de Carvalho


Introdução...................................................................................................... 75

1. O contrato como transferência de propriedade.............................................. 76


1.1 “Ownership” e “Property” na perspectiva de Peter Benson........................ 79

2. A transferência para Benson: breves apontamentos sobre a doutrina da

consideração................................................................................................... 83

3. O papel da performance no contrato............................................................. 88

Conclusão....................................................................................................... 92

Referências..................................................................................................... 94

PETER BENSON E AS DUAS FORMAS DA IMPLICATION


NAS JURISDIÇÕES DO COMMON LAW

Pedro Victor Silva de Andrade


Introdução...................................................................................................... 95

1. A regra-padrão e a alternativa proposta pela teoria transacional..................... 97

2. Os critérios operacionais da teoria transacional e a prática jurídica a respeito. 106

3. Intenção presumida, necessidade transacional e as duas formas da

implication...................................................................................................... 111

Considerações finais........................................................................................ 116

Referências..................................................................................................... 119

CONTRATOS DE ADESÃO NA TEORIA DE PETER BENSON

Henrique Rabelo Quirino


Introdução...................................................................................................... 120

1. Para além da moralidade promissória e da eficiência econômica.................... 121

2. A ideia de contrato como transferência de “titularidade”................................ 125

3. Contratos de forma-padrão na common law e justiça contratual....................... 128

Considerações finais........................................................................................ 140


Referências..................................................................................................... 142

PETER BENSON E OS REMÉDIOS PARA O


DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL: O PROBLEMA DA
TUTELA ESPECÍFICA DOS SERVIÇOS PESSOAIS

Daniel de Pádua Andrade


Introdução...................................................................................................... 143

1. A fundamentação transacional dos remédios para o inadimplemento ............ 145

2. A rejeição da tutela específica dos serviços pessoais no Common Law ............. 147

3. O dilema apresentado pelos serviços pessoais e a resposta de Benson............. 150

4. A insuficiência da noção de núcleo inalienável de autodeterminação.............. 153

Conclusão....................................................................................................... 155

Referências..................................................................................................... 157

PETER BENSON E A PERSPECTIVA COMPENSATÓRIA


DA DEVOLUÇÃO DO LUCRO DA INTERVENÇÃO
NO ÂMBITO CONTRATUAL

Henry Colombi
Introdução...................................................................................................... 158

1. As (amplas) considerações sobre a devolução do lucro da intervenção no âmbito

contratual na obra pretérita de Peter Benson e sua (breve) abordagem na obra

Justice in Transactions: uma mudança de posição acerca das prestações contratuais

infungíveis?..................................................................................................... 162

2. A adequação da devolução do lucro da intervenção como remédio ao inadimplemento

no caso das prestações contratuais infungíveis: uma proposta interpretativa à luz da


obra Justice in Transactions................................................................................ 172

Conclusão....................................................................................................... 175

Referências..................................................................................................... 178
A TEORIA CONTRATUAL DE PETER BENSON
E O PROBLEMA DA ESTABILIDADE

Rangel Mendes Francisco

INTRODUÇÃO

Em Justice in Transactions – a theory of Contract Law (2019)1,


Peter Benson defende sua concepção de contrato como transferência
de propriedade. Em breve síntese, o autor argumenta que, por meio
dessa concepção, tem-se a transferência de direitos de propriedade
de uma parte para outra, de modo que tenha sido acordado prévia e
bilateralmente. Trata-se de um meio típico de aquisição transacional
que independe da execução daquilo que se acordou, consumando-se
meramente com o consentimento. Ao anunciar o projeto que visa a
defender, Benson afirma que pretende apresentar uma concepção
que possa ser explicada “em seus próprios termos e em uma base
que seja moralmente aceitável do ponto de vista da justiça”, o que
possibilitaria, na esteira de John Rawls, apresentar uma “base pública
de justificação” para o direito contratual.2
Com isso, ele entende que é necessário, primeiro, detalhar os
mais relevantes princípios e doutrinas contratuais, argumentando
que o contrato como transferência reflete uma concepção que emerge
inteiramente de uma análise interna de tais e não com base em alguma
visão externa econômica, moral ou política; em segundo lugar, leva-
se a análise a um nível mais abstrato, defendendo que tal teoria é
juridicamente coerente e moralmente aceitável mesmo como parte
de um sistema mais amplo de justiça.3
O presente artigo se concentra neste segundo passo, e,
especificamente, naquilo a que o capítulo 12 da obra supracitada se

1 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge, MA:


Belknap Press, 2019.
2 Ibid., p. ix.
3 Ibid., p. xi.

12 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
destina a enfrentar, que é o problema da estabilidade. Segundo o
autor, para que sua concepção de contrato seja de fato coerente em
seus próprios termos, e para que possa servir como uma base pública
de justificação, é necessário que as pessoas possam endossá-la como
sendo justa e congruente com suas concepções individuais de bem.
Este problema – o da estabilidade – é enfrentado por vários filósofos
políticos, tendo como destaque o próprio Rawls em Uma Teoria da
Justiça (1971)4, bem como em sua transição para o Liberalismo Político
(1996)5.
Pretende-se, desta forma, apresentar um esforço exegético
interno à teoria bensoniana em Justice in Transactions para se
compreender o que o autor entende por estabilidade, recorrendo,
quando necessário, a autores da filosofia política, além de se tentar
compreender o porquê de, para ele, este ser um problema que deve
ser enfrentado também por teorias do direito privado. Como será
observado, Benson argumenta que para se construir uma teoria
contratual que seja estável, não basta que a concepção apresentada seja
apenas compatível com outros domínios (eg. a economia ou a política),
devendo também os apoiar e os fomentar mutuamente. A análise
começará pelas ideias de uma base moral para o direito contratual e
de justificação pública do contrato, que são essenciais para que o autor
elucide o motivo de se preocupar com a estabilidade de sua teoria.

1. JUSTIFICAÇÃO PÚBLICA E A BASE MORAL PARA UMA


TEORIA DO CONTRATO COMO TRANSFERÊNCIA

Para entender o porquê de haver um esforço por parte de


Benson em enfrentar o problema da estabilidade, é necessário que
se compreendam melhor, primeiramente, os objetivos do autor na
obra supracitada. Já na introdução, o jurista canadense afirma que o
contrato entendido como uma forma de transferência entre as partes

4 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, [1971] 1997
5 RAWLS, John. O Liberalismo Político. São Paulo: Martins Fontes, [1996] 2000.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 13


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
representa a concepção mais moralmente aceitável e consistente
tanto do ponto de vista das ideias mais gerais do direito privado (e em
particular com a ideia de propriedade), quanto do ponto de vista de
uma concepção liberal de justiça. 6
Tal característica do contrato como transferência seria necessária
para que ele pudesse empreender seu esforço final de apresentar
uma base pública de justificação relativa ao direito contratual. Para
demonstrar tal afirmação, ele defende que é preciso, primeiramente,
que se entenda o que é uma base moral para o contrato e qual é a
concepção de pessoas livres e iguais que sua teoria constrói.

1.1. A BASE PÚBLICA DE JUSTIFICAÇÃO

O autor explica que tal base moral, que não deve invocar ou se
basear em qualquer propósito ou valor extratransacional substantivo,
é particularmente adequada para fazer parte de uma base pública
de justificação para o direito contratual em um sistema jurídico
liberal moderno. Não obstante, esta forma de se ver o contrato (como
transferência de propriedade) seria plausível como uma questão
interpretativa e, de fato, permitiria uma compreensão unificada
das diferentes doutrinas contratuais, refletindo também uma noção
de razoabilidade e justiça devida propriamente aos indivíduos que
poderiam ver a si mesmos e aos outros como pessoas livres e iguais
juridicamente.7
O cerne da questão é que as partes deveriam ser vistas apenas
como proprietárias, enquanto sua transação seria constituída por atos
representacionais mutuamente relacionados. Tomando as partes e suas
transações dessa maneira, haveria uma concepção de liberdade e de
igualdade que envolveria atribuir a elas poderes morais que expressam
sua autonomia racional e razoável. 8 Benson argumenta que essa ideia

6 BENSON, op. cit., p. 21.


7 Ibid., p. 366.
8 Ibid., p. 368.

14 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
estaria de acordo com o insight fundamental de Rawls segundo o qual
a justificação pública deve ser estruturada para tipos específicos de
relação entre pessoas - se as relações contratuais e políticas diferem
entre si, o mesmo vale para suas justificativas. 9 De fato, em Justice as
Fairness: A Restatement (2001), Rawls afirma que:

O objetivo da ideia de justificação pública é especificar


a ideia de justificação de uma forma apropriada
a uma concepção política de justiça para uma
sociedade caracterizada como uma democracia por
um pluralismo razoável. [...] Uma característica
essencial de uma sociedade bem ordenada é que sua
concepção pública de justiça política estabelece uma
base compartilhada para que os cidadãos justifiquem
uns aos outros seus julgamentos políticos: cada um
coopera, política e socialmente, com os demais
em termos que todos possam endossar. Este é o
significado de justificação pública [...] A questão é
que se uma concepção política de justiça cobre os
fundamentos constitucionais, ela já é de enorme
importância, mesmo que tenha pouco a dizer sobre
muitas questões econômicas e sociais que os órgãos
legislativos devem considerar. Para resolvê-los,
muitas vezes é necessário sair dessa concepção e
dos valores políticos que seus princípios expressam e
invocar valores e considerações que ela não inclui. 10

9 Benson também cita que esta é uma diferença que já havia sido elucidada por Hegel
em Philosophy of Right.
10 No original: The aim of the idea of public justification is to specify the idea of
justification in a way appropriate to a political conception of justice for a society
characterized, as a democracy is, by reasonable pluralism [...] An essential feature
of a well-ordered society is that its public conception of political justice establishes
a shared basis for citizens to justify to one another their political judgments: each
cooper­ ates, politically and socially, with the rest on terms all can endorse as just.
This is the meaning of public justification. [...] The point is that if a political conception
of justice covers the con­stitutional essentials, it is already of enormous importance even
if it has little to say about many economic and social issues that legislative bodies must
consider. To resolve these it is often necessary to go outside that con­ception and the political
values its principles express, and to invoke values and considerations it does not include.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 15


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Paralelamente ao filósofo americano, Benson já esboçava sua
ideia de base pública de justificação para a teoria contratual em seu
artigo The ideia of a Public Basis of Justification for Contract (1995)11.
Neste texto, o autor afirma que teorias contratuais devem, justamente,
iniciar com ideias internas à lei, e suas reflexões posteriores devem
proceder da análise subjacente deste primeiro objetivo, analisando
se suas ideias podem ser coerentes quanto ao todo da obrigação
contratual. 12 Na obra de 2019, ele esclarece que:

Os estudos contemporâneos muitas vezes presumem


que as teorias do direito contratual devem ser
“normativas” ou “positivas”. No primeiro caso, o
objetivo é propor e implementar como lei algum
conjunto idealmente justificado de regras ou
princípios que não precisam se basear ou coincidir
com o conteúdo e com pontos de vista reais já
incorporados nas doutrinas contratuais; no último
caso, a teoria procura compreender essas doutrinas
e princípios da maneira que parece melhor lhes dar
sentido à luz dos objetivos e premissas aparentes do
direito contratual, mas sem necessariamente mostrar
que o conteúdo e os objetivos são normativa ou
moralmente aceitáveis. Em contraste com ambas as
abordagens, podemos desejar analisar se as principais
doutrinas e princípios contratuais incorporam,
mesmo que apenas latentemente, certas ideias e
valores normativos que podem ser elaborados em
uma concepção coerente que possa ser moralmente
justificada, pelo menos para aqueles que participam e
são afetados pelas relações contratuais. Esta terceira

RAWLS, John. Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge, MA: Belknap Press of


Harvard University Press, 2001, p.26-28 (tradução livre).
11 BENSON, Peter. The Idea of a Public Basis of Justification for Contract. Osgoode Hall
Law Journal, v. 33, n. 2., pp. 273-336, 1995.
12 Ibid., p. 313.

16 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
possibilidade é o caminho percorrido por uma base
pública de justificação. 13 (grifo meu).

Observa-se que, na visão de Benson, o caminho percorrido por


uma base pública de justificação seria justamente aquele em que a
teoria do direito contratual não só se justificaria a partir das principais
doutrinais contratuais, mas também em princípios moralmente
aceitáveis, e vice-versa. Esta é uma ideia coerente com seu projeto,
ao mesmo tempo em que destaca que somente este caminho pode
justificar, inclusive, que possa haver o uso da força coercitiva de forma
legítima e moralmente aceitável.14
Para que essa aceitabilidade moral seja atingida, é necessário que
a concepção de contrato defendida pelo autor esteja em consonância
com uma concepção liberal de justiça na qual os indivíduos sejam
considerados pessoas livres e iguais, sendo respeitados como tais.
Qual seria, então, a concepção jurídica de pessoas livres e iguais
particularmente apropriada à ideia de contrato?

1.2. A BASE MORAL PARA O CONTRATO E A


CONCEPÇÃO JURÍDICA DE PESSOA

Em seu esforço de construir uma base moral para a justificação


pública do contrato, Benson afirma que pretende apresentar uma

13 No original: Contemporary scholarship often assumes that theories of contract law must
be either “normative” or “positive.” If the former, the aim is to propose and implement
as law some ideally justified set of rules or principles that need not build on or coincide
with the actual content and point of view already embodied in contract doctrines; if the
latter, the theory seeks to understand these doctrines and principles as seems best to make
sense of them in light of contract law’s apparent aims and premises but without necessarily
showing that the content and aims are normatively or morally acceptable. In contrast to
both approaches, we might wish to see whether the main contract doc- trines and principles
embody, even if only latently, certain normative ideas and values that can be worked up
into a coherent conception that can be mor- ally justified at least to those who participate
in and are affected by contrac- tual relations. This third possibility is the path taken by a
public basis of justification. BENSON, op. cit., p. 12. (tradução livre).
14 Ibid., p. 13.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 17


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
concepção específica e não geral da pessoa: trata-se, exclusivamente,
de uma concepção jurídica – contratual – distinta da política ou
econômica, por exemplo. E, em consonância com a ideia de base
pública de justificação, tal concepção é apresentada sem se derivar de
quaisquer abordagens filosóficas ou de outras doutrinas abrangentes.
Na verdade, ela se conecta com a experiência moral cotidiana, fazendo-
se suficiente vermos a nós mesmos e aos outros dessa maneira quando
consideramos como agir, sendo agentes responsáveis que podem estar
sujeitos a obrigações legais genuínas. 15
Vistas dessa forma, atribui-se às pessoas dois poderes morais:

a. Uma capacidade moral de afirmar sua total independência


de suas necessidades, preferências, propósitos e até mesmo
de suas circunstâncias;
b. Uma capacidade moral de reconhecer e respeitar termos
justos de interação que tratam todos como independentes
no sentido específico suposto pelo primeiro poder moral.16

A partir desses dois poderes morais, as pessoas seriam livres


porque os indivíduos (i) afirmariam o direito de ver sua pessoa e
tudo o que incorpora sua personalidade como independente – i.e., a
ideia de liberdade como independência; (ii) reivindicariam o direito
de serem independentes dos propósitos dos outros e de agir sem ter
que justificar sua conduta à luz desses ou de quaisquer outros fins
substantivos, podendo fazer reivindicações em relação a outrem;
(iii) poderiam se distanciar de seus desejos, necessidades, propósitos
etc., assumindo responsabilidade por seus fins, firmando a ideia de
liberdade como responsabilidade. 17
Da mesma maneira, a partir dessa concepção jurídica de
pessoa, os indivíduos seriam iguais porque eles poderiam afirmar sua
independência dos fatores que os tornassem diferentes. Partindo dessa

15 Ibid., p. 369.
16 Ibid., p. 370.
17 Ibid., p. 372.

18 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
perspectiva, não haveria nada que poderia os diferenciar: a igualdade
consistiria no mero fato de que são todos tidos como idênticos. 18
Imerso neste argumento, Benson defende que este ponto de vista
implica no contraste normativo básico entre pessoas com unidades
de responsabilidades separadas e auto relacionadas e tudo aquilo
que poderia ser devidamente distinguido delas, contando, portanto,
imediatamente como o contrário da personalidade – ou seja, “coisas”.
Pessoas não podem ser usadas como meios, mas “coisas” sim. 19
À luz desse contraste entre pessoas não utilizáveis e coisas
utilizáveis, ele sugere que, quando as pessoas são reconhecidas como
sujeitos com capacidade moral de usar as coisas e, ao mesmo tempo,
são tratadas elas mesmas como totalmente impossíveis de se usar, o
significado moral da personalidade jurídica é expresso e respeitado
externamente. Benson, então, afirma que isso parece se justificar
exatamente com o que o respeito pela propriedade privada implica,
uma vez que a concepção liberal de propriedade supõe que certos
atos devem ser respeitados por outros. Tanto o objeto quanto o ato
de exercer controle sobre ele poderiam contar normativamente como
expressões externas e determinadas da presença da personalidade.20
O esforço aqui praticado de caminhar brevemente pelas ideias
de justificação pública, base moral para o contrato e concepção
jurídica de pessoa foi empreendido justamente porque tais categorias
são essenciais para que se compreenda o que Benson entende por
estabilidade e porque sua teoria precisa ser estável. Como será
demonstrado, a estabilidade relaciona-se diretamente com a ideia
mais abrangente de apresentar uma base pública de justificação para
o contrato.

18 Ibid., p. 373.
19 Ibid., p. 374.
20 BENSON, loc. cit.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 19


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
2. O PROBLEMA DA ESTABILIDADE NA TEORIA
CONTRATUAL DE PETER BENSON

Benson inaugura o capítulo 12 de Justice in Transactions


afirmando que a estabilidade da concepção jurídica de contrato é
particularmente importante para defender as concepções jurídicas
e políticas que pretendem ser liberais e fundamentadas na razão
pública. Ele explica que a base pública de justificação para o direito
contratual compreende três etapas: (i) deve ser elaborada a partir
das principais doutrinas e princípios como interpretação plausível da
lei; (ii) deve ser considerada como razoável em seus próprios termos,
incorporando uma visão de pessoas livres e iguais, sendo esta visão,
para ele, a de concepção jurídica de pessoa tal como apresentado e (iii)
justificar a estabilidade dessa concepção jurídica do contrato. 21
Assim, ele defende que, de acordo com o que Rawls elucida
sobre a estabilidade de sua concepção política de justiça, não se trata
apenas de evitar “futilidade”, mas:

[...] estabilidade significa que essa concepção deve,


quando realizada em circunstâncias favoráveis e
de acordo com seus objetivos, gerar o tipo certo de
suporte: na devida reflexão, os cidadãos, tanto pessoas
livres e iguais quanto pessoas razoáveis e racionais,
devem ser capazes de endossar tal concepção não
apenas como justa, mas também congruente com
seus bens individual e social22. (tradução livre) 23

21 Ibid., p. 397.
22 Ibid., p. 396-397.
23 No original: stability means that this conception should, when realized under favorable
circumstances and in accordance with its aims, generate the right kind of support: on due
reflec- tion, citizens, as free and equal as well as reasonable and rational persons, must be
able to endorse the conception not only as fair but also as congruent with their individual
and social good.

20 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Entende-se, a partir disso, que “estabilidade” não diz respeito
apenas à capacidade de a teoria poder se manter ao longo do tempo. Na
verdade, trata-se também de que, ao ser inserida em outros domínios
que não o contratual, tal teoria possa ser congruente com o que é
exigido por outras concepções, tais como econômicas e políticas, além
de não conflitar com concepções de bem individuais e sociais.
O autor acrescenta ainda que a análise da estabilidade deve
refletir o tipo específico de concepção normativa que está em jogo,
o que, no caso, seria uma concepção jurídica de contrato como
transferência de propriedade. Para isso, deve-se ter em mente os
principais traços distintivos de tal concepção, que seriam, no caso,
justamente sua base moral e a ideia de pessoa incorporada por ela,
como demonstrado na seção anterior.
Além disso, o ponto central de como Benson compreende a ideia
de estabilidade talvez resida na afirmação de que não é suficiente que
a concepção específica de contrato não conflite com outros domínios.
Também é necessário, na visão do autor, que tal concepção seja
compatível com tais domínios24. Decorre, daí, que ele pretende, em
seu projeto de construir uma base pública de justificação, demonstrar
não apenas que é possível que sua concepção contratual conviva com
outras concepções (e.g. política e econômica), mas que ela é a melhor
concepção possível para que se fomente tais concepções.

2.1. ESTABILIDADE E OS DOMÍNIOS DA PROMESSA


GRATUITA, DO MERCADO E DA JUSTIÇA DISTRIBUTIVA

Benson, visando a demonstrar que sua teoria é capaz de ser


congruente com outras concepções, sendo compatíveis com tais e
não apenas deixando de apresentar conflito, cita três domínios em
que a estabilidade de sua teoria poderia ser desafiada: (i) a moral
promissória; (ii) o mercado e (iii) a justiça distributiva.

24 BENSON, loc. cit.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 21


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Quanto ao primeiro domínio, ele volta seu foco à promessa
gratuita, afirmando que esta se diferencia frontalmente das
características presentes na concepção transacional do contrato,
residindo na moralidade cotidiana. Há, no entanto, um dever moral
de cumprir tais promessas meramente gratuitas, e a questão mais
premente da estabilidade diria respeito justamente à relação entre
esse dever promissório puramente moral e a concepção jurídica do
contrato. 25
A estabilidade, mais ainda, deveria especificar um dever moral
de cumprir as promessas que surgem em conexão com “um tipo de
interação ou relação que os agentes morais reconheceriam como
genuinamente distinta de e como não pressupondo o contrato”, o
que possibilitaria compreender a natureza vinculativa das promessas
gratuitas. E a concepção jurídica, dessa forma, não poderia excluir as
promessas gratuitas justamente porque não teria autoridade para se
pronunciar sobre tanto. A promessa gratuita seria normativamente
distinta e irredutível à obrigação contratual, podendo ser justificada a
partir de um dever de virtude kantiano. 26
No que diz respeito ao mercado, Benson afirma que o ponto
principal da estabilidade entre esse domínio e a concepção de
contrato residiria na tese de independência e autonomia do direito
contratual. O mercado e o direito contratual, representando domínios
diferentes, seriam construídos de forma que se apoiem e se adequem
mutuamente, mas haveria uma distinção fundamental: o primeiro
representa um sistema de interações voluntárias em que os indivíduos
buscam obter satisfação material com os outros, enquanto o segundo
seria um sistema de princípios razoáveis sujeitos à aplicação coercitiva.
27
Haveria, neste sentido, a expressão da ideia do racional no domínio
do mercado, enquanto o domínio do direito contratual expressaria a
ideia do razoável.

25 Ibid., p. 400.
26 BENSON, loc. cit.
27 Ibid., p. 445.

22 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
O direito contratual, segundo Benson, desempenharia um papel
institucional inserido na ideia hegeliana de mercado como “sistema
de necessidades”, em que os indivíduos, contados como transatores,
teriam o mesmo interesse formal na existência, no conhecimento e na
garantia de determinados aspectos sistêmicos e bilaterais essenciais
para que pudessem transacionar como pessoas razoáveis, racionais,
livres e iguais. É neste sentido que a teoria contratual seria estável
quanto ao mercado: tomando em consideração sua dimensão social
ou relacional, compartilhada por ambos os domínios, o contrato
especificaria a relação social em suas dimensões formais como uma
questão de autoridade e justiça pública. 28
O terceiro domínio citado por Benson – a justiça distributiva
– teria sua estabilidade justificada ao retornar à ideia do sistema
de necessidades. Para o autor, tal sistema funcionaria como uma
“concepção normativa unificadora central” – o termo do meio entre,
de um lado, justiça distributiva e, de outro, o direito contratual. Isso
se daria porque o sistema de necessidades possui duas características
centrais. Primeiro, ele possui foco no papel institucional do direito
contratual, em que as partes são tratadas apenas como pessoas
jurídicas com o poder moral de afirmar sua independência absoluta
em relação aos outros, concentrando-se nas necessidades formais
de conhecimento e segurança.29 Um segundo aspecto diz respeito ao
fato de que o sistema de necessidades seria visto como um recurso
de capital compartilhado e permanente, ou mais precisamente, um
sistema de cooperação social.30
Quando tomada abstratamente, a concepção jurídica de
pessoa refletiria a mera possibilidade moral de transferência, não
importando, segundo Benson, quais as consequências disso para
a justiça distributiva. Entretanto, quando inserida no mercado
tido como sistema de necessidades, as pessoas, a partir de suas
concepções de bens, possuiriam necessidades e objetivos reais.

28 Ibid., p. 446.
29 Ibid., p. 453.
30 Ibid., p. 454-455.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 23


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Portanto, sendo legitimados a fazer reivindicações a partir de seus
interesses, os indivíduos, livres e iguais, teriam direitos iguais a
meios, circunstâncias e oportunidades de participar deste sistema
de cooperação e de compartilhar as vantagens que ele possibilita.
A partir dessa constatação, Benson afirma serem necessários
princípios distributivos de justiça que garantam um sistema de justiça
procedimental pura de fundo, mantendo-se ao longo de gerações,
marcando uma divisão institucional de trabalho entre o direito
contratual e a justiça distributiva. 31
Este é um fator particularmente importante quando se trata da
questão da estabilidade, mesmo quando se diz respeito aos debates
internos à filosofia política. Como foi explicado anteriormente,
estabilidade não se trata apenas de uma teoria poder se manter ao longo
do tempo, mas essa característica – se manter ao longo do tempo - é,
também, importante. Não à toa, Rawls argumenta que seus princípios
de justiça – a prioridade de liberdades, a equitativa igualdade de
oportunidades e o princípio da diferença – são necessários para que
se possa conceber a justiça procedimental pura de fundo32.

3. DO PROBLEMA DA ESTABILIDADE NA FILOSOFIA POLÍTICA


DE JOHN RAWLS À TEORIA CONTRATUAL DE PETER BENSON

Como já citado, há grande inspiração na filosofia política de


John Rawls por parte de Benson. Em apertada síntese, quando o
filósofo americano publica, em 1971, Uma Teoria da Justiça (TJ), ele já
se preocupava com a questão da estabilidade, argumentando na parte
III de seu paradigmático livro que, como seres racionais, tenderíamos
a respeitar os princípios originados da posição original, pois
desejaríamos expressar “nossa natureza de pessoas morais livres”.33

31 Ibid., p. 456-457.
32 Para entender do que se trata a justiça procedimental pura de fundo, ler a segunda
parte de Justice as Fairness: A Restatement (2001)
33 RAWLS, op. cit., 1997 p. 705

24 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Esta ideia é posta em xeque quando se conhece o fato do
pluralismo razoável. Atores sociais podem ter suas próprias doutrinas
e concepções de bem que, como ilustra Lucas Petroni (2017), podem
não aceitar que a concepção de pessoa de Teoria da Justiça seja a
concepção correta de pessoa, ou que demandas da justiça sejam
autônomas. Percebe-se, assim, que qualquer concepção de justiça
precisa ser compatível com a diversidade de doutrinas morais que
existem na sociedade.34 Haveria, aí, o problema de como a “sociedade
bem ordenada” deveria ser entendida, pois em TJ ela era vista como
aquela que pressupunha tal concordância quanto aos princípios
rawlsianos, enquanto em O Liberalismo Político (LP), e em Justiça como
Equidade, ela é vista como a “sociedade efetivamente regulada por
alguma concepção pública (política) de justiça, seja ela qual for” 35.
É exatamente no Liberalismo Político que o problema da
estabilidade se coloca de forma mais contundente. Burton Dreben
explica que, em TJ, Rawls se preocupava com o problema da justiça,
enquanto que em LP ele se preocupava com a questão da “legitimidade”
de sua concepção de justiça. Surgiram questões como: “se não pelo poder
estatal, como uma democracia liberal constitucional pode se manter,
com as pessoas divergindo entre si? Como doutrinas abrangentes (como
a religião), podem endossar também uma concepção política razoável
que dê suporte à democracia constitucional?”. É preciso, sim, que uma
teoria possa se manter ao longo do tempo, mas é preciso que ela se
mantenha pelos motivos corretos. 36
Entende-se, dessa forma, que talvez aquilo que Rawls se refere
como “estabilidade” seja mais modesto do que o entendimento que
Benson apresenta em seu projeto. Ora, como o filósofo americano
argumentou em A ideia da Razão Pública Revisitada (2012)37, cidadãos
razoáveis, livres e iguais, atenderiam ao seguinte critério de
34 PETRONI, Lucas. O argumento da estabilidade no contratualismo de John Rawls.
Kriterion: Journal of Philosophy, v. 58, n. 136, p. 139-161, 2017.
35 RAWLS, op. cit., 2001, p. 13.
36 DREBEN, Burton. “On Rawls and political liberalism”. In: FREEMAN, Samuel (org.).
A Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University, 2003, p. 317.
37 RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 25


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
reciprocidade: quando são propostos termos razoáveis de cooperação
equitativa, quem os propõe deve também pensar que seria ao menos
razoável que outros possam aceitá-los.38 Uma teoria poderia ser
legítima, portanto, se seus termos fossem razoáveis, podendo ser
endossados por todos. A estabilidade não exigiria que a concepção
política de justiça rawlsiana – a justiça como equidade – fosse vista
como a melhor, ou a que promovesse mais adequadamente outras
concepções de pessoa (eg. jurídica ou econômica). Os termos e
princípios dessa concepção deveriam, apenas, poder ser endossados
pelas pessoas.
Benson parece dar um passo além quando afirma que a
concepção jurídica de pessoa, tal qual explicitada na seção anterior,
é compatível com e apoia a moralidade promissória, o mercado e a
justiça distributiva, sem apenas deixar de entrar em conflito com tais.
Na verdade, já na introdução de Justice in Transactions, ele defende
que pretende demonstrar como os princípios que governam essas
diferentes esferas se apoiam mutuamente. 39
Ele afirma que, dado a sua natureza limitada, e permanecendo
dentro de seus limites, pode haver total congruência entre a
concepção jurídica inserida no direito contratual e esses outros
domínios. Particularmente quanto ao mercado e à justiça distributiva,
Benson defende que há uma “sequência normativo-conceitual”
entre tais sujeitos e o contrato, argumentando que a concepção
jurídica transacional atingiria os domínios sistêmicos referentes às
necessidades de mercado e de justiça distributiva. 40
Mais uma vez, é preciso destacar que Benson sugere que
sua teoria de contrato como transferência só pode ser estável se
a concepção jurídica de pessoa não apenas deixar de conflitar com
outros domínios, mas também os apoiar mutuamente, enquanto
Rawls afirma que uma concepção política de justiça pode ser estável
– pelas razões corretas – ao propor termos razoáveis que possam ser

38 Ibid., p. 528-529.
39 BENSON, op. cit., 2019, p. 28.
40 BENSON, loc. cit.

26 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
endossados tanto por aqueles que os propõem quanto por aqueles que
estarão sujeitos a eles. Dessa maneira, Petroni sintetiza o argumento da
seguinte maneira: “tudo o que a legitimidade exige de uma concepção
de justiça é que ela seja, em princípio, compatível com as liberdades
individuais presentes nas cartas de direitos contemporâneos”. 41

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ideia de estabilidade em Peter Benson parece ser mais


ambiciosa do que aquela entendida pela filosofia política, e em
especial por John Rawls e seus críticos. O canadense entende que,
para que a teoria de contrato como transferência seja estável, é
necessário que a concepção jurídica de pessoa não apenas não conflite
com outros domínios, mas que também os apoie mutuamente. Não
apenas pessoas livres e iguais, além de racionais e razoáveis, devem
ser capazes de endossar tal concepção como justa e congruente com
seus bens individuais e sociais. É preciso, também, que ela apoie
outros domínios, dentre os quais se destaca, para Benson, a moral
promissória, o mercado e a justiça distributiva.
Enfrentar o problema da estabilidade, como o faz Peter Benson,
se justificaria por fazer parte daquilo que é necessário para que
se concretize um projeto maior: o de oferecer uma base pública de
justificação para o direito contratual. Esta base pública de justificação
buscaria um caminho central entre, de um lado, teorias normativas
e, de outro, teorias positivas. Desta forma, ao mesmo tempo em que
idealiza princípios moralmente aceitáveis, também se constrói a partir
das principais doutrinas e princípios contratuais, i.e., internamente à
lei.
A estabilidade seria o último passo para que se atingisse tal base
pública de justificação, após demonstrado que a concepção de contrato
como transferência possui uma interpretação plausível da lei e que
ela pode ser considerada razoável a partir de seus próprios termos,

41 PETRONI, op. cit., 2017, p. 156.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 27


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
oferecendo, para isso, a concepção jurídica de pessoa como uma base
moral para o contrato. De fato, uma base pública de justificação, seja
política, seja contratual, deve ser estável, o que torna o esforço de
Benson, portanto, justificável.

28 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
REFERÊNCIAS

BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law.


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____________. The Idea of a Public Basis of Justification for Con-


tract. Osgoode Hall Law Journal, v. 33, n. 2., pp. 273-336, 1995.

DREBEN, Burton. On Rawls and political liberalism. In: FREE-


MAN, Samuel (org.). A Cambridge Companion to Rawls. Cambridge:
Cambridge University, 2003, p. 316- 346.

G. W. F. Hegel. Philosophy of Right. Trad. T. M. Knox. Oxford: Ox-


ford University Press, 1952.

OLIVEIRA, Joviniano. A questão da estabilidade na teoria da justiça


de John Rawls. Dissertação (mestrado em Filosofia) – Departamento
do Insituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Campinas,
p. 130, 2006.

PETRONI, Lucas. O argumento da estabilidade no contratualismo


de John Rawls. Kriterion: Journal of Philosophy, v. 58, n. 136, p. 139-161,
2017.

RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes,


2012

____________. O Liberalismo Político. São Paulo: Martins Fontes,


[1996] 2000.

_____________. Justice as Fairness: A Restatement. Cambridge,


MA: Belknap Press of Harvard University Press, 2001

____________. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes,


[1971] 1997.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 29


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
A PESSOA EM PETER BENSON

Pedro Silveira Campos Soares

“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella


no me salvo yo”1.

INTRODUÇÃO

Para desenvolver a tese de que o contrato representa uma


transferência de propriedade entre pessoas, Benson dedica parte de
seu livro “Justice in Transactions: A Theory of Contract Law”2 para
diferenciar o objeto passível de contratação dos sujeitos contratantes.
Para tanto, ele identifica as bases principiológicas de sua teoria e,
depois, seus fundamentos teóricos.
O presente trabalho busca abordar a concepção jurídica de
pessoa para Peter Benson. Propõe-se que, para o professor canadense,
a pessoa, enquanto sujeito contratante, exerce dois poderes morais,
de cunho abstrato, e um terceiro poder moral, de aplicação prática.
Essa avaliação se justifica diante da primazia que a pessoa,
enquanto ente jurídico, tem na concepção de contrato de Benson,
desde a formulação de sua teoria, até a aplicação prática dela.
Com efeito, é no campo teórico que Benson desenvolve o
alicerce de sua concepção de pessoa. Trata-se de uma tarefa complexa
por uma questão fundamental que Benson logo reconhece. Sua
teoria considera como irrelevante, para os estritos fins do contrato,
a plêiade de circunstâncias pessoais e interesses subjetivos que
permeiam o interesse de contratar. Diz isto de maneira retumbante:
sua concepção normativa de pessoa não “trata como moralmente

1 ORTEGA Y GASSET, Jose. Meditaciones del Quijote. In. Obras Completas: Tomo I, 7 ed,
Madrid: Revista Del Occidente, 1966, p. 322.
2 Referências a “livro”, “obra”, “tese”, quando não especificadas, referem-se ao
mencionado livro de Peter Benson.

30 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
saliente nelas próprias toda gama de considerações derivadas dos
propósitos particulares, demandas, preferências, dentre outras”3. O
ato de contratar cristalizado desde sua formação, e só ele, é relevante
para a operacionalização de sua teoria enquanto tal4.
Benson não ignora toda sorte de subjetividades que norteiam as
condutas particulares que circundam uma contratação. Para ele essas
finalidades substantivas e particulares são “fatos inegáveis”5. Diante
disso, para demonstrar que sua tese permanece firme, Benson trata de
afastar suas aparentes incongruências, a partir de um verdadeiro teste
de estabilidade da teoria. Neste particular, Benson recorre à teoria do
direito de Hegel, a partir da qual desenvolve sua concepção de pessoa
e seus dois poderes morais.
Para que esses poderes morais possam ser reconhecidos
no plano prático das relações contratuais, deve haver uma base
principiológica ou, nas palavras de Benson, um pano de fundo teórico
que indiretamente incida sobre eventual esforço interpretativo sobre
determinada relação contratual. Em busca de tais princípios, Benson
se vale de Rawls, seus princípios de justiça e suas duas capacidades
morais.
Aqui também há um certo paradoxo, que Benson esclarece na
última seção de seu livro. Para Benson, sua teoria tem “caráter não-
distributivista”6. Como então compatibilizá-la com os princípios
de justiça Rawlsianos, especialmente com o segundo princípio –
igualdade de oportunidade e princípio da diferença – que, reconhece
Benson, é a “justiça distributiva em seu sentido mais estrito”7?

3 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 373
4 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. William & Mary Law Review, Vol.
48, n. 5, 2007, p. 1.696 (“o único ponto que conta é se as partes podem razoavelmente
serem vistas como tendo feito os atos requeridos para alienação e apropriação”).
5 Op. cit., p. 1.696.
6 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 396.
7 Op. cit., p. 448.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 31


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Em sua resposta, Benson lança mão de algo como um terceiro
poder moral cuja incidência se dá em um plano específico, em que
se concretiza a justiça contratual por ele proposta, no seio de um
sistema de carecimentos que compreende um quadro institucional e
um ambiente de cooperação.
Este artigo está estruturado em duas seções. A primeira delas
aborda o plano abstrato da pessoa e os dois poderes morais que o
compõe. A interrelação entre Hegel, Kant e a teoria de Benson será
tratada nesta seção.
A segunda seção discute a conjugação entre os diferentes
elementos da teoria de Benson, no âmbito concreto, com uma incursão
nos principios de justiça Rawlsianos.
Ao final, o leitor terá uma visão abrangente dos limites e da
relevância da concepção de pessoa proposta por Benson para sua teoria
do contrato como transferência de propriedade. Sobretudo, restará
evidenciada de que forma os três poderes morais interagem entre si,
como forma de atribuir uma base estável para o desenvolvimento da
teoria de Benson.

1. PLANO ABSTRATO: OS DOIS PODERES MORAIS

A concepção de pessoa em Benson pode ser depreendida a


partir de sua concepção de contrato. Para ele, a transferência de
propriedade constitui a essência do ato de contratar e se desenvolve
em um plano eminentemente abstrato, independente e desvinculado
da execução própria das obrigações contratuais8. Performance,
entrega, movimentação física dos bens transacionados não operam

8 BENSON, Peter. Rawls, Hegel, and Personhood: A Reply to Sibyl Schwarzenbach.


Political Theory, Vol. 22, n. 3, 1994, p. 493 (tanto Benson, quanto Rawls e Hegel
atribuem bastante importância à perspectiva abstrata, iniciando a análise do objeto
de estudo com um enfoque dissociado de subjetividades. Para Hegel, como Benson
mesmo explica, “a liberdade inerente à personalidade não é nada além da tomada de
consciência de si como pura atividade de abstração: ‘um ego totalmente sem conteúdo
e abstrato no qual toda restrição e valor concretos são negados e sem validade’”).

32 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
nesse plano abstrato. Basta que se cumpram os requisitos – os “atos
necessários”9 – para a formação do contrato; nada mais.
Assim também se constitui a pessoa na concepção bensoniana10.
Suas particularidades, finalidades e interesses não importam em uma
primeira análise. O que vale é que, em abstrato, cada pessoa tenha o
poder de contratar (transferir mutuamente propriedade sobre bens ou
serviços) e simultaneamente tenha o dever de respeitar o correlativo
poder das demais. Trata-se de uma concepção que difere de conceitos
políticos, filosóficos e econômicos. Como Benson pontua, os
“indivíduos devem ser vistos como, e somente como, sujeitos com a
capacidade de ter, adquirir e exercer a posse legítima por e para si
mesmos”11.
Esse poder-dever ínsito à relação contratual de Benson encontra
inspiração na filosofia do direito hegeliano e, em menor medida, na
filosofia moral kantiana. Uma pequena incursão nestas obras é útil.
A Filosofia do Direito de Hegel está estruturada em três seções:
Direito Abstrato, Moralidade e Eticidade. Em cada uma delas, Hegel
apresenta um espectro diferente do livre-arbítrio (e da liberdade),
partindo do mais abstrato para o mais concreto12. Logo no primeiro
espectro, Hegel inicia sua discussão sobre a pessoa como a base
do direito enquanto instituição abstrata e formal, agindo segundo
o imperativo de reconhecimento-respeito. Deve-se reconhecer-se
enquanto pessoa e, ao mesmo tempo, respeitar os outros também
enquanto tal13.

9 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 367.
10 Trata-se de neologismo com referência aos estudos de Peter Benson.
11 BENSON, Peter. The Idea of a Public Basis of Justification for Contract. Osgoode Hall
Law Journal, Vol. 33, n. 2, 1995, p. 316.
12 BENSON, Peter. Rawls, Hegel, and Personhood: A Reply to Sibyl Schwarzenbach.
Political Theory, vol. 22, n. 3, 1994, p. 493 (utiliza-se a interpretação do próprio Benson:
“embora o conceito geral de livre arbítrio seja igualmente pressuposto em todos os
estágios, seu modo de expressão em cada um é categoricamente distinto. Cada estágio
envolve, então, uma forma verdadeira particular de liberdade verdadeiramente
específica e diferente”).
13 HEGEL, G. W. F (trad. Paulo Meneses). Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2010, p. 80.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 33


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Precisamente em razão dessa perspectiva abstrata, a pessoa
não considera as particularidades de sua vontade, de sorte que “o
interesse particular, minha utilidade e meu bem-estar não entram
em consideração – tampouco o fundamento determinante particular
de minha vontade, do discernimento e da intenção”14. Dessa forma, a
determinação jurídica deve envolver uma possibilidade ou permissão
para fazer algo e, ao mesmo tempo, uma obrigação de “não lesar a
personalidade e o que deriva dela”15.
A proximidade com a construção de Benson não poderia ser
mais nítida. Ambos se utilizam da abstração como metodologia para
identificar a natureza da pessoa enquanto sujeito contratante, assim
como atribuem a mesma importância ao contrato como ferramenta
de promoção da pessoa.
A inspiração kantiana é, também, notável. No Apêndice à
Introdução à Doutrina do Direito, parte da célebre Metafísica dos
Costumes, Immanuel Kant propõe uma concepção de direito como
a capacidade de obrigar terceiros derivada de fundamentos legais
inatos ou adquiridos16. O chamado direito inato, para Kant, é um só: a
liberdade. Liberdade que se revela como “independência em relação ao
arbítrio coercitivo de um outro”17. Ser independente é o “direito único,
originário, que cabe a todo homem em virtude de sua humanidade”18.
Para além disto, Kant reconhece que esse direito inato não
se desenvolve em um vácuo. Ao contrário, a liberdade se expressa
a partir das relações que são estabelecidas com outras pessoas.

14 Op. cit., p. 80-81.


15 Op. cit., p. 81.
16 SCHWARZENBACH, Sibyl A. Rawls, Hegel and Communitarism. Political Theory,
Vol. 19, n. 4, 1991, p. 552 (Kant e Hegel possuem interpretações distintas de moralidade
e eticidade. Todavia, pode-se considerar que ambos inspiraram Peter Benson e,
por isso, merecem ser relidos no esforço de interpretar a referida obra. Sobre isto,
Schwarzenbach esclarece: “o conceito de ‘expressão’ de Hegel é de maior interesse
porque sinaliza um aspecto importante de seu afastamento de Kant. Com esse
conceito, Hegel claramente tenta superar as rígidas dualidades kantianas entre mente
e corpo, razão e desejo, e assim por diante. Hegel é, no final das contas, um monista”).
17 KANT, Immanuel (trad. Clélia Aparecida Martins). Metafísica dos Costumes.
Petrópolis: Vozes, 2013, p. 55.
18 Op. cit., p. 55.

34 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Trata-se, aqui, do que Kant define como igualdade inata, isto é, não só
ser independente, mas “não ser obrigado por outrem senão àquelas
coisas a que também reciprocamente se pode obrigá-los”19.
O reconhecimento da pessoa enquanto objeto de obrigações
impostas pela liberdade dos outros culmina na conclusão de Benson,
de que as pessoas seriam unidades de responsabilidade separadas e
distintas dotadas de independência, mas reciprocamente relacionadas
(“self related”)20. Benson, ao fim e ao cabo, reconhece a partir da
abstração um aspecto relacional inerente à pessoa21.
Compreendida a inspiração filosófica de Benson, cabe
examinar os chamados poderes morais que constituem os atributos
indispensáveis da pessoa na concepção de Benson22. Uma ressalva
preliminar: referidos poderes são construídos em abstrato, conforme a
metodologia que acima se explicou. A passagem do plano abstrato para
o plano prático (concreto) se dará mais à frente.

1.1 PRIMEIRO PODER MORAL: INDEPENDÊNCIA PURA

Na concepção de Benson, a “independência pura” é produto


da aptidão do sujeito para se distanciar de tudo mais. Aqui, Benson
antagoniza-se com o que Ortega y Gasset indicava em seus escritos,
em especial na célebre passagem aqui epigrafada. As circunstâncias
não importam para Benson, tampouco são fontes de constituição
do próprio sujeito no plano abstrato. Por isto Benson caracteriza essa
aptidão como um poder moral negativo, porque não culmina em
nenhuma posição jurídica sobre as demandas particulares, tampouco
qualquer pretensão intrinsicamente moral sobre seus propósitos e
19 Op. cit., p. 56.
20 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 376.
21 Assim como Ortega y Gasset o faz ao colocar como elemento constitutivo do “Eu”
suas respectivas “circumstâncias”.
22 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge:
The Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 369 (para Benson os poderes
morais são mesmo “atribuídos” a partir de sua concepção de pessoa).

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 35


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
necessidades23. O poder em questão atua, tão-somente em abstrato,
como uma potencialidade de fazer escolhas dirigidas a um fim
específico. Nesse campo da potencialidade tem-se somente a pessoa,
e só ela, em perspectiva24.
Para desenvolver este raciocínio, Benson remete aos aspectos
livre-arbítrio de Hegel, com especial ênfase à universalidade que, na
noção hegeliana, implica a capacidade do sujeito de dissipar quaisquer
restrições impostas pelo meio, afastando-se delas para assim firmar
sua independência25.
Esse poder moral gera repercussões em outras partes do livro.
Em especial, ele se mostra fundamental para distinguir a “promise-
for-consideration”26 do sujeito contratante. Para Benson é justamente
na capacidade de distanciamento que está a diferença fundamental
entre pessoal e coisa, vez que essa capacidade (poder) não pode ser
objetificada sem necessariamente objetificar a pessoa. Ao contrário,
o que é passível de externalização e objetificação é a coisa. É ela que
pode ser apropriada, qualitativa e quantitativamente27 e, ao assim
ser, distinguir-se da pessoa. Isso constitui o que Benson considera a

23 BENSON, Peter. The Idea of a Public Basis of Justification for Contract. Osgoode Hall
Law Journal. Vol. 33, n. 2, 1995, p. 316.
24 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 370-71.
25 BENSON, Peter. Rawls, Hegel, and Personhood: A Reply to Sibyl Schwarzenbach.
Political Theory, vol. 22, n. 3, 1994, p. 492 (Benson trata disso com profundidade
ao criticar a posição de Sibyl Schwarzenbach, afirmando não ter ela considerado
o que Hegel chamada de livre-arbítrio, em seus dois aspectos, universalidade e
particularidade. O primeiro deles “sendo uma capacidade ilimitada de distinguir-
se do outro e de dissipar ‘toda restrição e todo conteúdo seja imediatamente dado
pela natureza, pelos desejos e pelos impulsos, seja determinado por qualquer outro
meio’”).
26 Sendo essa promise-for-consideration o objeto mesmo da teoria bensoniana.
27 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. William & Mary Law Review,
Vol. 48, n. 5, 2007, p. 1.729 (essa distinção fica saliente quando Benson esclarece como
a obrigação de fazer pode constituir objeto da transferência de propriedade por ele
proposta: “se, como eu supus, a noção de coisa é entendida em termos normativos
legais primariamente a partir do contraste com a noção de pessoa, o serviço é uma
coisa que pode ser propriedade de outra pessoa”).

36 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
dignidade intocável da pessoa, o que implica ser considerada como
“sacrossanta e nunca como meramente utilizável”28.
Aqui a “particularidade”, como o segundo aspecto do livre-arbítrio
de Hegel, também incide com clareza29. É justamente a capacidade da
pessoa de exercer escolhas e de contratar (a particularidade) que lhe
permite apropriar-se de objetos, assim diferenciando-se destes. Fala-
se, portanto, de um poder quase passivo, universal e idêntico, eis que
incide sem maior esforço, igualmente, sobre qualquer pessoa30. Não é
necessário que a pessoa esteja fisicamente livre, tampouco que tenha
que agir de qualquer forma para atingir essa independência. Nas
palavras de Benson: “acorrentado, eu ainda posso ser livre”31.
Fique claro: na obra de Hegel, a particularidade, enquanto
segundo atributo do livre-arbítrio não se coloca com ênfase na seção
do Direito Abstrato, mas nas seções subsequentes, sobretudo na
última, Eticidade. Não obstante, parece que, para a teoria de Benson,
a particularidade de Hegel aparece como substrato do primeiro poder
moral, isto é, como “ter um conteúdo ou objeto de escolha específico
e determinado”. Benson não é suficientemente claro neste ponto, pois
chegou a dizer, em seu artigo de 1994, que na concepção abstrata de
Hegel somente o primeiro aspecto seria relevante, o que foi objeto de
sólida crítica por parte de Schwarzenbach32.
O segundo poder moral diferencia-se neste aspecto, por
necessitar de ímpeto, ação, para que se operacionalize. É o que se verá
na sequência.

28 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 371.
29 BENSON, Peter. Rawls, Hegel, and Personhood: A Reply to Sibyl Schwarzenbach.
Political Theory, vol. 22, n. 3, 1994, pp. 493-494.
30 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 369 (fala-se aqui de pessoas em
sã-consciência e capazes do ponto de vista civil. Benson ressalta essa particularidade
“por introspecção, qualquer um deveria ser capaz de reconhecer esses poderes em si
mesmo, exceto em casos extremos de incapacidade que implique insanidade legal,
automatismo e circunstâncias similares”).
31 Op. cit., p. 374.
32 SCHWARZENBACH, Sibyl A. A Rejoinder to Peter Benson. Political Theory, vol. 22,
n. 3, 1994, pp. 503-504.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 37


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
1.2 SEGUNDO PODER MORAL: RACIONALIDADE
E RECONHECIMENTO

Para bem compreender o segundo poder moral de Benson, vale


construí-lo a partir do primeiro, demonstrando a correlação e, até
mesmo, vinculação entre eles.
Ao afirmar que a pessoa, enquanto tal, possui a aptidão natural
pela independência pura, Benson demonstra que esse primeiro
poder tem caráter negativo: ele não dá azo a qualquer pretensão
positiva, de cunho moral ou legal. Entretanto, Benson não ignora
que para preservar essa independência, é necessário ação. Ação não
como a busca pelos interesses subjetivos subjacentes a cada escolha
(inclusive a de contratar), mas sim como o reconhecimento de que
a independência pura é, em si mesma, um “objetivo e um fim”, que
merece ser perseguida33.
Esse reconhecimento implica, assim, uma escolha racional,
porquanto envolve definir finalidades para a ação e assumir as
consequências disto34. O agir racional depende de esforço, sendo,
assim, uma liberdade positiva. São necessários ímpeto, atitudes
positivas no sentido de fazer valer esse segundo poder moral. Não mais
se fala em contemplação, mas em esforço: “a posição passiva torna-se
abolida e existir significa esforçar-se”35. Racionalidade é precisamente o
primeiro aspecto em que o segundo poder moral está ancorado.
O segundo aspecto é o reconhecimento. Reconhecer, neste caso,
significa compreender que a pessoa está em comunidade e, assim,

33 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 371.
34 KANT, Immanuel (trad. Clélia Aparecida Martins). Metafísica dos Costumes.
Petrópolis: Vozes, 2013, p. 37 (“a personalidade moral, portanto, é tão somente a
liberdade de um ser racional submetido a leis morais (a psicológica não passando,
porém, da capacidade de tornar-se a si mesmo consciente da identidade de sua
existência nos seus diferentes estados), donde se segue que uma pessoa não está
submetida a nenhuma outra lei além daquelas que se dá a si mesma (seja sozinha ou,
ao menos, juntamente com outras”).
35 ORTEGA y GASSET, Jose. Kant Hegel Dilthey. Madrid: Revista Del Occidente, 1972,
p. 37.

38 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
relaciona-se com outras. Sem esta característica sequer se falaria em
contrato, quanto mais na concepção de Benson, em que a transferência
de propriedade se dá de modo recíproco, sendo ambos os polos da
relação contratual promitente e promissário ao mesmo tempo36.
Benson bem pontua em um trabalho sobre Kant que “a vontade comum
articula a lei para a vontade individual das partes”37.
Como, então, conceber uma independência pura se a pessoa
é inegavelmente influenciada pelas outras no entorno social? A
resposta está no segundo poder moral. Ao incidir, esse poder permite
reconhecer a independência pura do outro para assim abster-se de
infringi-la. Benson conclui:

Essa ideia de razoável postula que, antes de


qualquer conduta voluntária que possa colocá-los
em uma relação especial entre si, os indivíduos
são considerados mutuamente independentes. As
consequências decorrentes das próprias decisões
são imputadas apenas a eles mesmos. Tudo o que
uma pessoa pode legitimamente exigir dos outros é
que se abstenham de infringir o que lhe pertence,
não que atendam às suas necessidades ou desejos,
por mais básicos ou urgentes que sejam38.

Nessa perspectiva, as pessoas são idênticas e nessa identidade


sobressai o segundo poder moral, enquanto decisão racional de
abster-se de infringir a personalidade alheia. Esse é o imperativo
hegeliano – “sê uma pessoa e respeita os outros enquanto pessoas”39
–, a demonstrar a proximidade com a teoria proposta por Benson.

36 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 51.
37 BENSON, Peter. External Freedom According to Kant. In: Columbia Law Review.
Vol. 87, n. 3, 1987, p. 568 (destacou-se).
38 BENSON, Peter. The Idea of a Public Basis of Justification for Contract. Osgoode Hall
Law Journal, vol. 33, n. 2, 1995, p. 301.
39 HEGEL, G. W. F (trad. Paulo Meneses). Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2010, p. 80.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 39


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Dando fecho à análise do plano abstrato, vale sintetizar como
esses poderes se entrelaçam e se compatibilizam em Benson.
O primeiro poder moral, a independência pura, é a aptidão
necessária para que o sujeito contratante possa se distanciar de seus
interesses, desejos, e finalidades subjetivas, colocar-se como um ser
independente de tudo o que não lhe seja ínsito e inseparável – um ser
em abstrato.
Tal característica é única da pessoa, na concepção bensoniana, o
que a distingue do objeto a ser transacionado: a pessoa é proprietária
– e não propriedade40 – no ato de transferência que constitui o cerne
da teoria de Benson. Esse primeiro poder moral serve de suporte para
a construção teórica de uma transferência de propriedade como ato
jurídico dissociado das intenções e desejos particulares dos sujeitos
contratantes.
Já o segundo poder moral atua em um espectro ainda abstrato,
porém mais próximo da realidade dos sujeitos contratantes, como se
fosse uma etapa intermediária para chegar-se ao plano concreto que
será tratado logo mais. Nesse nível compreende-se que a pessoa não
só tem sua independência pura, como deve respeitar essa mesma
independência das demais.
Não há como deixar de relacionar essa característica à profunda
discussão proposta por Benson sobre dano (injury) e inadimplemento
culposo (misfeasance). Para o autor, “a indiferença legal às motivações
é compatível com os preceitos éticos que determinam às partes
respeitarem os direitos recíprocos”41, em especial sua respectiva
independência pura.

40 Op. cit., p. 81 (“a pessoa, diferenciando-se de si, relaciona-se com uma outra pessoa,
e precisamente ambas têm ser-aí uma para a outra somente como proprietários. Sua
identidade sendo em si recebe uma existência pela passagem da propriedade de um
para a de outro, por sua vontade comum e com a manutenção de seus direitos, - no
contrato”).
41 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 398.

40 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
2. PLANO CONCRETO: UM TERCEIRO PODER MORAL?

O notável esforço de Benson para demonstrar a estabilidade de


sua teoria, em especial quando cotejada frente ao paradigma da justiça
distributiva, se justifica ao considerar-se que a teoria do contrato
como transferência de propriedade tem natureza não-distributiva.
O afastamento da noção distributiva de justiça está, ainda, no plano
abstrato e funciona como elo com o plano concreto que será doravante
discutido. De fato, disse Benson logo no prefácio de seu livro, que
o respeito de que trata o segundo poder moral “é devido aos outros
como questão de justiça em transações, que, sendo indiferente às
necessidades, interesses e similares, deve ser concebida com caráter
completamente não-distributivo”42.
Como então manter integra a teoria de Benson, diante da
inegável natureza distributiva dos princípios de justiça?
Propõe-se encontrar a resposta a partir do estudo de
Schwarzenbach sobre Rawls e Hegel, o qual, além de aprofundado,
foi objeto de debates propostos por Benson, o que justifica discuti-lo
neste artigo. Em seu artigo de 1991, a professora novaiorquina busca
os pontos de ligação entre a filosofia do direito de Hegel e a teoria
da justiça de Rawls. De especial relevo para o presente trabalho é o
capítulo dedicado à concepção de pessoa, em que a autora rememora
as críticas de que Rawls seria individualista ou super-kantiano ao
também propor uma concepção de pessoa “afastada e antecedente
de seus fins particulares, atributos, compromissos e seu caráter
concreto”43. Schwarzenbach pontua o equívoco dessa percepção,
por ignorar que, para Rawls, o conceito de pessoa se limita a uma
concepção puramente política (e não social, cultural, antropológica
ou jurídica). É a pessoa, enquanto agente político, que decide os
princípios da justiça adequados para a estrutura básica da sociedade.

42 Op. cit., p. 27.


43 SCHWARZENBACH, Sibyl A. Rawls, Hegel and Communitarism. Political Theory,
vol. 19, n. 4, 1991, p. 549 (a crítica é de Michael Sandel).

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 41


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Para a autora, ao limitar-se a uma concepção política de pessoa,
Rawls lança mão de uma abstração metodológica, assim como Hegel
fez na primeira parte de sua Filosofia do Direito, quando propôs afastar
a pessoa de seus “vínculos sociais imediatos e concretos”44. Em Hegel,
essa seria a primeira condição para o florescer da pessoa enquanto ser
humano.
Não obstante isso, ambos os filósofos enxergam outros espectros
para o desenvolvimento da pessoa enquanto tal. Não é suficiente
considerá-la simplesmente dissociada de seu meio. Para Hegel, uma
concepção moderna de personalidade depende “não simplesmente
da habilidade de seguir regras, tampouco negar ou escolher entre
alternativas concretas, mas fazer planos, postular propósitos
particulares e, em geral, ‘exprimir’ uma concepção ou plano próprios
de vida em uma esfera externa publicamente reconhecida”45. Por isto, na
parte final de sua Filosofia do Direito, Hegel conclui que a liberdade
substantiva só é atingida a partir do reconhecimento recíproco do
meio46 ou, como a autora pontua, a “‘personalidade livre’ universal e
os direitos individuais são produtos culturais, e não pontos de partida,
de uma longa e árdua luta histórica”47.
A passagem para Rawls deve partir do esforço de Benson em
demonstrar que sua teoria se compatibiliza, ou ao menos não se
abala, com os preceitos da justiça distributiva do mencionado filósofo-
político. Para isto, na seção final de seu livro, Benson aborda dois pontos
fundamentais para justificar a estabilidade de sua teoria: o sistema de
carecimentos de Hegel e os princípios da justiça distributiva.

44 Op. cit., p. 550.


45 Op. cit., pp. 551-552 (destacou-se).
46 HEGEL, G. W. F (trad. Paulo Meneses). Filosofia do Direito. São Leopoldo: Editora
Unisinos, 2010, p. 195.
47 SCHWARZENBACH, Sibyl A. Rawls, Hegel and Communitarism. Political Theory,
vol. 19, n. 4, 1991, p. 555.

42 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
2.1 SISTEMA DE CARECIMENTOS HEGELIANO

Na apresentação da edição brasileira de Filosofia do Direito de


Hegel, o professor Denis Lerrer Rosenfield esclarece que o sistema de
carecimentos é um dos conceitos chave da “sociedade-civil-burguesa”
propugnada pelo filósofo de Stuttgart, como parte do conceito de
“sociedade civil. Para Rosenfield:

O ‘sistema de carecimentos’ é o conceito que exprime


relações de troca, próprias de uma economia de
mercado, que, assim, se desenvolve. Ou seja, Hegel
pensou o mercado que então se desenvolvia em
suas relações impessoais, em que as necessidades,
os carecimentos de cada um, são satisfeitos por
intermédio dos carecimentos de outros, em trocas
impessoais que se fazem em escalas regional, nacional
e internacional. Hegel, nesse sentido, é o pensador de
uma economia de mercado que estabelece relações
contratuais entre os indivíduos, independentemente
do Estado, o qual não tem - nem deve ter - nenhuma
ingerência nessa área. Não cabe ao Estado interferir
nos processos econômicos, salvo em situações de
catástrofe natural ou de guerras. A economia de
mercado, o “sistema de carecimentos”, possui regras
que lhe são imanentes, que regulam o seu processo,
o seu modo de funcionamento48.

Para Benson, o sistema de carecimentos, enquanto derivado


da relação contrato-mercado, constitui o conceito essencial para
interrelacionar os princípios de sua teoria com os princípios de justiça
Rawlsianos. Essa interrelação é inspirada na noção de “divisão de
trabalho” de Rawls, proposta na Conferência VII de “O Liberalismo

48 ROSENFIELD, Denis Lerrer. Apresentação. In: Filosofia do Direito. São Leopoldo:


Editora Unisinos, 2010, p. 13.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 43


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Político”, que discute a estrutura básica da sociedade49. Para ele, essa
estrutura é o “objeto primeiro da justiça”50, tornando-se necessário
propor uma divisão de trabalho entre as normas estatais que a
compõem e as normas contratuais51.
Para Benson, o sistema de carecimentos explica a função dos
princípios específicos de sua teoria, assim permitindo diferenciá-los
dos princípios subjacentes de justiça distributiva, por meio da divisão
de trabalho de origem Rawlsiana. Nesse esforço metodológico, Benson
firma sua premissa fundamental: sua concepção jurídica de contrato
“não exclui a possibilidade da primazia regulatória dos princípios
distributivos”52. Como, então, estabelecer essa divisão de trabalho?
Em primeiro, reconhecendo que, ao partir do duplo poder moral
que se falou anteriormente, a concepção jurídica de contrato em
Benson pode implicar desigualdade extrema, uma vez que abstrata,
dissociada do meio e do que consistiria “carecimento” na visão
hegeliana53. Em segundo, evidenciando que a operacionalização de tal
concepção jurídica não impede que se estabeleça uma base pressuposta
de direitos mínimos de caráter distributivista54. Em terceiro, notando
que a concepção não distributiva é, de fato, operacional. Isto é, que ela
não se verifica apenas no plano abstrato, mas também em concreto
a partir de um sistema de transações reais, a demonstrar que a mera

49 RAWLS, John. O Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo:
Editora Ática, 2. ed., 2000, p. 309 (“a estrutura básica é entendida como a maneira pela
qual as principais instituições sociais se encaixam num sistema, e a forma pela qual
essas instituições distribuem os direitos e deveres fundamentais e moldam a divisão
de benefícios gerados pela cooperação social”).
50 Op. cit., p. 309.
51 Op. cit., p. 321 (para Rawls “se essa divisão de trabalho puder ser estabelecida, os
indivíduos e associações ficam livres para realizar mais efetivamente os seus fins no
interior da estrutura básica, com a segurança de saber que, em uma outra parte do
sistema social, estão sendo feitas as correções necessárias para preservar a justiça
básica”).
52 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, pp. 449-450.
53 Op. cit., p. 451.
54 Op. cit., p. 451.

44 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
potencialidade que revolve o plano abstrato se torna uma verdadeira
necessidade para dar conta do real55.
O uso do termo “sistema” não é aleatório, uma vez que é
justamente o sistema de carecimentos de Hegel que, para Benson,
funciona como a base comum normativa entre a concepção jurídica
de contrato de Benson e os princípios de justiça distributiva. Viabiliza-
se, desse modo, a divisão de trabalho.
De um lado, a concepção jurídica de contrato exerce um papel
institucional e formal, assegurando à pessoa, enquanto integrante desse
sistema, uma base mínima normativa que possa lhe dar segurança
e previsibilidade mínima no ato de contratar (i.e., de transferir
propriedades)56. Essa preocupação está no cerne da teoria de Benson,
sendo recorrentemente relembrada57.
De outro lado, os princípios de justiça distributiva atuam como
motivadores da cooperação intrassistêmica entre as pessoas que
o integram. Neste particular, Benson reconhece que o sistema de
carecimentos é um sistema de cooperação social, que seus integrantes
lançam mão para alcançar seus interesses subjetivos. É nesse quadro
particular, do plano concreto (material), que se inserem os princípios
de justiça distributiva, como se examinará na seção final deste texto.

55 Op. cit., p. 452.


56 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. Cambridge:
The Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 453 (“exercendo a função
institucional, o direito contratual endereça determinadas deficiências em relações
de mercado que somente a lei pode remediar. Ele proporciona regras prontamente
compreensíveis e praticáveis ​​que todos os contratantes precisam ter condição
de aplicar em suas transações particulares para que tenham condição de efetiva e
livremente cumprir seus interesses particulares e bem-estar a partir da participação
de mercado”).
57 Op. cit., p. 109.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 45


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
2.2. JUSTIÇA DISTRIBUTIVA E TERCEIRO PODER MORAL

De início, remete-se à distinção de Ernest J. Weinrib entre a


justiça corretiva, de raiz aristotélica58, e justiça distributiva: “justiça
corretiva é a ideia que a responsabilização corrige a injustiça
infligida por uma pessoa em outra ... justiça distributiva lida com a
distribuição de qualquer coisa divisível ... entre os participantes de
uma comunidade política”59. Justiça distributiva se verifica “se todos
são titulares dos ativos que fazem jus a partir de sua distribuição”60,
como esclarece Robert Nozick no seminal artigo Distributive Justice,
de 197361.
Benson trabalha o conceito de justiça distributiva a partir dos
dois princípios de justiça de Rawls: acesso igualitário a um sistema
de liberdade fundamentais iguais e justificação específica para
desigualdades sociais e econômicas62. Mais que isto, Benson também
parece se inspirar nas duas capacidades morais de Rawls63 – a
capacidade de ter senso de justiça e a capacidade de ter uma concepção
de bem64. São essas capacidades que, no entender de Rawls, permitem

58 BRICKHOUSE, Thomas. Aristotle on Corrective Justice. The Journal of Ethics, vol.


18, n. 3, 2014, p. 187 (διορθωτικo`ν δίκαιον “justiça corretiva é uma parte particular da
justiça que se preocupa com a retificação de injustiças a partir do que ele chama de
‘interações’ … entre pessoas”).
59 WEINRIB, Ernest J. Corrective Justice in a Nutshell. The University of Toronto Law
Journal, vol. 52, n. 4, 2002, p. 349.
60 NOZICK, Robert. Distributive Justice. In: Philosophy & Public Affairs. Vol. 3, n. 1,
1973, p. 47.
61 Note que tanto Benson quanto Schwarzenbach questionam a aplicabilidade de
Nozick para a compreensão de Rawls. Confira BENSON, Peter. Rawls, Hegel, and
Personhood: A Reply to Sibyl Schwarzenbach. Political Theory, vol. 22, n. 3, 1994, p.
494; e SCHWARZENBACH, Sibyl A. A Rejoinder to Peter Benson. Political Theory, Vol.
22, n. 3, 1994, p. 502.
62 RAWLS, John. O Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo:
Editora Ática, 2. ed., 2000, p. 345.
63 Que não se confunde com o duplo poder moral discutido no capítulo antecedente.
64 RAWLS, John. O Liberalismo Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo:
Editora Ática, 2. ed., 2000, p. 370.

46 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
que pessoas convivam de modo cooperativo em sociedade, a despeito
de concepções de vida diferentes, chegando em consensos políticos65.
A partir da interação entre pessoas emergem os pilares de justiça
distributiva a animar as deliberações individuais em busca dos bens
próprios de cada um. O sistema de carecimentos, por conseguinte,
atua como motivador das trocas interpessoais, pelo qual cada pessoa
pode satisfazer seus interesses particulares. Nasce daí o terceiro poder
moral inerente à pessoa. Nas palavras de Benson:

O fato de que os contratantes têm e perseguem


determinados propósitos e interesses é em si um
base para pretensões legítimas. Eles não são vistos
simplesmente como tendo o poder moral poder de
ser independente, mas, além disso, são reconhecidos
como tendo um poder moral poder de ter e de almejar uma
concepção determinada de seu bem. Para tanto, precisam
de bens e meios substantivos, e é por intermédio da
participação no sistema de carecimentos que esses
são obtidos.

Considera-se, pois, como terceiro poder moral a aptidão


da pessoa de ultrapassar o plano da abstração66 inerente aos dois
primeiros poderes morais para, em concreto, postular e perseguir
o que lhe convém subjetivamente, o seu “bem” (na concepção de
Rawls), seu interesse, seus objetivos. Benson registra que a existência
desse terceiro poder moral permite a cooperação entre agentes de
mercado para exercitar pretensões interpessoais em um sistema de
carecimentos.
Sendo assim, Benson conclui inexistir incompatibilidade entre
sua teoria do contrato e o sistema de carecimentos, eis que a primeira

65 Trata-se de brevíssima síntese extraída de SEN, Amartya. The Idea of Justice.


Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2009, p. 55.
66 BENSON, Peter. Rawls, Hegel, and Personhood: A Reply to Sibyl Schwarzenbach.
Political Theory, vol. 22, n. 3, 1994, p. 494 (Rawls mesmo reconhece que a definição do
“bem” individual e seu atingimento não se dá em um plano abstrato).

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 47


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
incide no plano formal, enquanto o segundo no plano concreto,
de sorte que os princípios subjacentes de justiça não infirmam a
concepção jurídica de contrato de Benson; sobre ela incidem lateral
e indiretamente, nunca diretamente em disputas contratuais, mas
“sistematicamente por meio de, por exemplo, um sistema tributário”67.
Chega-se aqui ao final dessa breve exposição dos três poderes
morais desenvolvidos por Benson em sua Teoria do Contrato. Os dois
primeiros, de ordem abstrata, permitem à pessoa se dissociar do
meio em que vive para alcançar sua independência pura e, ao mesmo
tempo, respeitar a independência pura dos demais, em uma escolha
racional. O último deles, de ordem concreta, viabiliza a externalização
de subjetividades pela pessoa no ato de postular perante as demais o
que lhe aprouver, respeitados os paradigmas de justiça cuja incidência
se mostrem necessários.

CONCLUSÃO

Esta reflexão pretendeu trazer luz ao entendimento de Benson


sobre a pessoa enquanto sujeito do direito dos contratos. Trata-se,
como se viu, de concepção eminentemente jurídica que busca, a um
só tempo, servir de apoio para o desenrolar da Teoria do Contrato de
Benson e, igualmente, constituir alicerce suficientemente sólido para
dar conta de outras preocupações de justiça.
Embora de caráter não-distributivo, a teoria de Benson é sensível
aos ideais da justiça distributiva, não no tocante às suas estruturas
fundantes, especialmente quanto às regras de formação do contrato,
mas sim aos aspectos não essenciais, tais como, no entender de
Benson, as próprias motivações subjacentes ao ato de contratar. As
“circunstâncias” não são desconsideradas, como poderia transparecer
em um direito puramente não-distributivo, mas incidem em um

67 JIMÉNEZ, Felipe. Contracts, Markets, and Justice: On Peter Benson’s “Justice in


Transactions”. University of Toronto Law Journal, vol. 71, n. 1, 2021, p. 25.

48 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
plano específico, concreto, em que a transferência de propriedade
efetivamente tem aplicação prática.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 49


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
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50 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
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FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 51


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
PROPRIEDADE COMO REPRESENTAÇÃO EM PETER BENSON

André Maciel Silva Ferreira

INTRODUÇÃO

Leitores brasileiros da obra de Peter Benson poderiam se deparar


com dificuldades iniciais na transposição de suas ideias ao contexto
em que estão familiarizados. A proposta do autor, todavia, deve ser
capaz de responder a tal desafio, visto que pretende, em especial
com seu livro de 2019 “Justice in Transactions”, realizar uma análise
das concepções implícitas às diferentes doutrinas e interpretações do
direito privado que possam auxiliar na construção conjunta de sentido
entre os diferentes sistemas jurídicos1.
Embora trabalhe com um direito privado marcado pelas
peculiaridades e especificidades do common law, sua teoria deve ser
vista como abrangente, uma vez que objetiva atingir uma base pública
de justificação, não com implicações territoriais (escopo exclusivo
de países anglo-americanos) mas com indicações propriamente
normativas, que representem a forma de se interpretar de forma
pervasiva as doutrinas jurídicas contidas nessa prática.
Essa concepção unificada da relação contratual tem como pedra
de toque fundamental em seu trabalho a noção de contrato “involving
a transfer of ownership between the parties”2 3. Embora o autor proponha-

1 Esse é o objetivo declarado de Benson: “[...] [A] teoria se propõe a discernir que o que
é implícito nas doutrinas da common law é uma concepção geral unificante da relação
jurídica contratual que, ao se fazer explícita, é inteligível em seus próprios termos
e pode, portanto, animar demais sistemas contratuais não pertencentes à common
law.” (Tradução livre). No original: “[ ] [T]he theory purports to discern as implicit in
common law doctrines is a unifying general conception of juridical contractual relation
that, when made explicit, is intelligible in its own terms and may therefore animate other
non–common law systems of contract”. BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory
of Contract Law. The Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 29.
2 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap Press
of Harvard University Press, 2019. p. 21
3 “Envolvendo uma transferência de propriedade entre as partes” (tradução livre). As
razões para a tradução do termo ownership por propriedade serão expressadas ao

52 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
se a abordar a noção de ownership como saliente à prática jurídica,
é certo que sua maneira de a interpretar representa, em especial em
seu livro de 2019, marca distintiva de uma teoria res-significadora de
conceitos. No entanto, é também importante ressaltar que a ownership
em Benson não é vista como um conceito próprio e específico e que
não corresponde à prática que deseja explicar. Assim, é necessário
um trabalho de interpretação de seu sentido jurídico, para evitar sua
imanentização, como se correspondesse a algo genuinamente distinto
e sem correspondência.
Tendo em vista referida concepção, o trabalho busca investigar o
significado e repercussão jurídica da ownership adquirida, em conversa
com outros pontos de sua teoria, e qual seria a melhor interpretação
de seu significado jurídico.
Para responder a esse desafio, a dimensão semântica da
questão é de relevante interesse, visto que a hipótese a ser defendida
é que o conceito bensoniano de ownership implica na visão de que o
contrato serve, propriamente, para a transmissão de propriedade. O
sentido da propriedade que se adquire é, no entanto, propriamente
representacional, no que consiste o principal ponto de argumentação
de Benson.
Assim, trabalhando essa hipótese, o primeiro capítulo pretende
defender e explicitar a tese de que o contrato, para Benson, é um modo
de transferir propriedade representacional sobre bens que possuem
valor, abstraído de concretude física. O objetivo do segundo capítulo
é demonstrar a importância que o critério representacional assume
na teoria de Benson, em contato as com demais partes da teoria
contratual desenvolvida em seu livro Justice in Transactions. O terceiro
e último capítulo fará uma análise retroativa da obra de Benson, em
especial de seu artigo Contract as transfer of ownership, de 2007, para
demonstrar como o critério representacional impacta concepções
prévias do autor.

longo do trabalho.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 53


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
1. OS DIFERENTES SENTIDOS DE OWNERSHIP

Inicialmente, é necessário empreender uma tarefa, na própria


dimensão da linguagem, que permita apreender o sentido próprio de
ownership na obra de Benson, que é caracterizada como propriedade
sobre um bem, propriedade essa que assume uma dimensão inicial
exclusivamente representacional – enquanto propriedade transacional
apenas. Como será demonstrado, a linguagem como medium de
comunicação de sentido é crucial para a empresa de Benson, o que
justifica a análise nessa dimensão inicial.

1.1 OWNERSHIP COMO PROPRIEDADE

A obra literária de Benson, quanto ao tema da ownership, é


marcada pela contraposição constante com a figura da property, bem
como pelas relações que esses conceitos estabelecem com as formas
de aquisição originária (original acquisition) e derivada (transactional
acquisition).
Na visão do autor, a ownership consiste em um termo guarda-
chuva que abriga dentro de si a noção de poder e controle sobre coisas
externas. Aquele que detém a ownership sobre um bem específico tem
a capacidade jurídica de excluir os demais de tratar a coisa como se
deles fosse4, contendo nesses termos um poder concreto de submeter
algo a seus próprios fins.
Ownership configura um conceito relacional, uma vez que o
controle sobre algo só se dá mediante e perante outras pessoas, por
meio de atos externos que razoavelmente são entendíveis pelos demais
membros de uma comunidade como atos de ownership. Da relação
intrínseca que Benson retira desse conceito com a importância dos
poderes externos, depreendem-se duas consequências.

4 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.


2007. p. 1673-1731. p. 1703. Assim também em BENSON, Peter. Philosophy of Property
Law. In: Coleman & Shapiro eds., The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy
of Law. Oxford University Press, 2002. p. 752-814. p. 781.

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PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
A primeira é que o poder de excluir os outros de tratar a coisa
como se deles fosse não implica, por si só, generalidade no uso do poder.
Essa faculdade pode ser dirigida ou limitada a pessoas específicas e
circunstâncias limitadas ou pode se dar de forma indeterminada. A
marca da indeterminação, que provém da dimensão in rem de um
poder concreto, só está presente na property, que é uma instância
particular da ownership5.
A segunda é que a demonstração de controle sobre um bem
pode se dar de diversas formas, e não apenas pela expressão física
de poder sobre algo. De fato, a posse no sentido concreto do termo
figura como uma indicação e um indício de que aquele que a detém
possui poder sobre a coisa e é, portanto, quem detém ownership6. No
entanto, se o critério é a representação razoável externa de poder, a
posse é apenas uma de suas instâncias: existiria uma equivalência
na forma de exercício do controle sobre um bem, representado pelas
dimensões da sua apropriação, uso e disposição7. O sujeito que dispõe

5 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev. 2007.
p. 1673-1731. p. 1693. Benson comunica essas ideias de forma direta: “Propriedade é
uma concepção mais geral que consiste em qualquer direito à exclusiva posse, uso
ou alienação de algo contra outro ou outros. [...] Enquanto direitos proprietários são
adquiridos por atos unilaterais de vontade que, requerem inicialmente ocupação
física de uma coisa externa corpórea, direitos contratuais são adquiridos por meio dos
atos relacionalmente mútuos de duas partes sem a necessidade de ocupação física”
(tradução livre). No original: “Ownership is a more general conception consisting of any
right to exclusive possession, use, or alienation of something as against another or others.
[…] Whereas property rights are acquired by a unilateral act of will that requires initial
physical occupancy of an external corporeal object, contractual rights are acquired through
the mutually related acts of two parties without the necessity of any physical occupancy”.
(BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.
2007. p. 1673-1731. p. 1719) Benson parece equivaler a propriedade estrita a um modo
de aquisição específica; no entanto, após a performance contratual, a parte adquirirá
na totalidade todos os poderes contra os outros, de forma que não parece apropriado
retirá-la dessa classificação.
6 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.
2007. p. 1673-1731. p. 1699.
7 “Porque o direito à propriedade é definido em abstração de todos os fatores
diferenciadores, é o mesmo direito no seu delongar e é idêntico em todas as instâncias
de exercício. Sem isso, não seria possível conceber que uma mesma coisa pode ser
transferida de um proprietário inicial para uma segunda parte” (tradução livre). No
original: “Because the right of ownership is defined in abstraction from all differentiating
factors, it is the same right throughout and it is identical in every instance of its exercise.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 55


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
sobre algo perante outro exerce visualmente e externamente um ato
de ownership, mesmo que o bem não esteja presente no momento.
Feitas tais considerações, apreende-se que a ownership é, na
realidade, a propriedade sobre um bem, objeto no qual incidem os
poderes que se detém. Se há uma equivalência entre todas as formas de
exercício da ownership, então todas as suas dimensões configuram uma
instância de sua existência. E o poder de dispor contratualmente de
um bem é faculdade [poder] do proprietário. O proprietário é o sujeito
de direito que, exercendo a capacidade de não ser mais proprietário,
apresenta externamente seu poder sobre algo – ownership.
Propriedade transmite, assim, o significado jurídico se que
busca imprimir – é necessário atentar, todavia, que existem dois tipos
distintos de propriedade: propriedade em sentido estrito – property –
que vem e se concretiza com a tradição ou aquisição originária, que é o
poder concreto sobre um bem individualizado, à exclusão de todos os
outros; e propriedade representacional, adquirida contratualmente,
que consiste em poderes concretos sobre coisas abstratas em relação
a pessoas definidas. A propriedade, nesse contexto, ainda se dá em
relação aos poderes que são detidos pelo proprietário, sem fazer
referência ao objeto especificamente contratual sobre o qual incidem
tais faculdades. A essa questão será dedicada a próxima seção.

1.2 PROPRIEDADE COMO REPRESENTAÇÃO

A propriedade, como indicado, é um conceito relacional e que se


perfaz pela existência de um contexto comunitário em que as pessoas
se reconhecem como detentoras de controle e poder sobre as coisas
em geral. A propriedade sempre incide, nesses termos, sobre coisas
que possuem valor, em relação a outra pessoa ou a todos em geral.

Without this, it would not be possible to conceive of one and the same right being transferred
from an initial owner to a second party.” BENSON, Peter. Contract as a Transfer of
Ownership. 48 William and Mary L. Rev. 2007. p. 1673-1731. p. 1703.

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PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
A propriedade, portanto, possui uma importância valorativa que
lhe é intrínseca; valor, no entanto, consiste em uma dimensão que não
é puramente física, visto que é possível atribuir valor inicialmente
independente de um substrato material que o suporte. Justamente pelo
valor consistir, para Benson, em uma dimensão do social, é possível a
apropriação, em primeiro plano, do valor que uma coisa representa,
mas não necessariamente sobre a coisa em si. É nesse sentido que
direitos contratuais são tidos por existentes e com relevância no
fenômeno jurídico, podendo ser transacionados mesmo em momento
anterior à performance.
Nesse sentido, a aquisição de propriedade contratualmente
operada é, antes de tudo, representacional, pois se dá como
transmissões de significado, no campo da linguagem, ainda não
complementadas por aportes materiais e físicos; transmite-se o
sentido de propriedade e o sentido de ser proprietário (ter controle).
Há uma existência puramente ideal: o objeto transferido tem a forma
de um valor8, abstraído da concretude física, que é reconhecido pelas
partes e pelos demais.
Os objetos transacionados são representações de algo,
representações que tomam forma de um valor. A representação, por
óbvio, faz referência a algo que está sendo representado – um bem
concreto específico. Todavia, em razão da capacidade de abstração

8 “[V]alor é o apropriado conteúdo da propriedade quando esta é vista como relacional


e na forma de representação” (tradução livre). No original: “[V]alue is the proper content
of ownership when ownership is viewed as relational and in the form of representation”.
BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap Press
of Harvard University Press, 2019. p. 423. Ao explicar como se dá a relação entre
proprietários que interagem por meio do contrato, Benson explica que a transação deve
poder ser explicada como uma relação em que ambas as partes são, ao mesmo tempo,
proprietárias do mesmo bem ao mesmo tempo. É isso que permitiria tanto o ato de
aquisição quanto de disposição recíprocos. Referida dimensão paradoxal e recíproca
somente pode se dar enquanto representação. Em termos de valor, isso significa
que “valor é a dimensão de igualdade abstrata dos objetos de uma transferência, de
forma paralela à igualdade abstrata das partes que realizam a transferência” (tradução
livre). No original: “value is the dimension of abstract equality of the objects of a transfer
paralleling the abstract equality of the parties who do the transfer”. BENSON, Peter. Justice
in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap Press of Harvard University
Press, 2019. p. 387.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 57


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
que é atribuída aos indivíduos, a aquisição de propriedade pode se dar
antes pela aquisição exclusiva da representação, mas não sobre a coisa
em si.
A transação contratual faz-se em atenção a um bem representado,
mas no momento da formação, em que as partes se reconhecem
mutuamente como detentoras do poder de dispor, o objeto está
presente apenas enquanto função representativa, entendida essa como
o método simbólico pelo qual as coisas possuem valor em um contexto
social. O medium da linguagem é, nesses termos, essencial à análise de
Benson, pois fornece os subsídios comunicativos necessários para que
uma troca entre as partes seja genuinamente performativa, no sentido
de que transacionar por representações têm influência nas coisas por
elas representadas9.
Com isso, a propriedade deixa de ser definida a partir dos
poderes e controles inerentes à posição de proprietário, e tem como
referência um objeto específico, que é um símbolo externo, dotado
de significância jurídica pelos membros de uma comunidade10.

9 “Ainda, porque essa relação de vontade para vontade existe no medium dos atos
representacionais que são objetivamente vistos como comunicações de significados,
a tendência inerente é que essa relação seja expressa explicitamente na forma
intelectiva de uma declaração unificada que incorpora a decisão conjunta das partes.
O momento do acordo tem essa determinada existência puramente ideal, que é
mais apropriadamente incorporada na linguagem ou em outra forma simbólica; e,
sendo um medium de comunicação que tem um determinado conteúdo e contexto
[...]” (tradução livre). No original: “Further, because this relation of will to will exists
in the medium of representational acts that are objectively viewed as communications
of meanings, the inherent tendency is that this relation be expressed explicitly in the
intellectual form of a unified declaration that embodies the parties’ joint decision. The
moment of agreement has a purely ideal determinate existence, which most suitably is
embodied in language or other symbolic form; and, being a medium of communication
that has a determinate content and context […]”. BENSON, Peter. Justice in Transactions:
A Theory of Contract Law. The Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 385.
10 Benson assim apresenta a relação contratual, em relação ao elemento ideal e
simbólico: “Essa relação entre assentimentos, sendo explicitamente representacional,
agora está incorporada em um elemento que é adequado para a assinalar, notadamente,
pelo uso de palavras ou equivalentes em conduta simbólica, e, portanto, em um modo
que é aquilo que significa e representa” (tradução livre). No original: “This relation
between assents, being explicitly representational, is now embodied in an element that
is adequate to signal this, namely, via the use of words or their equivalent in symbolic
conduct, and therefore in a mode that is what it signifies and represents.” BENSON, Peter.

58 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Propriedade contratual incide no objeto de uma representação, a qual
as partes detêm capacidade de apropriação, uso e disposição11.

2. DIFERENTES PONTOS DE ANÁLISE DA


PROPRIEDADE REPRESENTACIONAL

Benson não foge de assumir a dimensão propriamente ideal


de sua teoria contratual, entendendo que essa não deve ser negada,
em se tratando de uma relação mútua em que ambas as partes se
reconhecem enquanto proprietárias, podendo realizar a troca entre
si desses direitos representados no momento de formação. A ideia
de a propriedade contratual ser sobre a representação de um bem
e não sobre a coisa concreta aparece no livro Justice in Transactions,
notadamente em determinados pontos de sua teoria: nos dois sentidos
distintos de valor; no significado jurídico da tradição; e nos diferentes
remédios contratuais adequados a cada situação.

2.1 PROPRIEDADE COMO VALOR DE USO E VALOR DE TROCA

Tendo em mente que a propriedade contratual adquirida assume


primariamente a posição de um valor, destaca-se na teoria bensoniana
duas dimensões representacionais distintas dessa coisa: uso e troca.
Na primeira dimensão, a coisa adquirida possui como parte
constituinte um valor de uso específico, objetivado e querido pelas

Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap Press of Harvard


University Press, 2019. p. 338.
11 “Mas um direito à exclusiva posse física e ao valor do objeto ou serviço tem caráter
proprietário, pertencendo a quem lhe é dono. Entre as partes, portanto, o postulante
é dono da coisa contratada” (tradução livre). No original: “But a right to the exclusive
physical possession and the value of an object or service is proprietary in character,
belonging to him or her who is its owner. As between these two parties, therefore, the
plaintiff is owner of the thing contracted for.” BENSON, Peter. Philosophy of Property
Law. In: Coleman & Shapiro eds., The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy
of Law. Oxford University Press, 2002. p. 752-814. p. 783.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 59


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
partes contratantes. A representação da coisa, nesses termos, tem
atenção ao valor que ela tem enquanto objeto de poderes concretos.
O que está sendo transferido é, com efeito, o objeto da
performance que é devida em um momento futuro, e não o que os
contratantes detêm em título ou em fato, pontua Benson12. Assim,
entende-se que é um objeto de interesse das partes que entram em
uma relação contratual. A coisa transmitida no momento de formação
é uma utilidade abstrata que uma coisa concreta poderá lhe conferir,
sendo essa utilidade inclusive transacionável anteriormente à
performance.
Em termos representacionais, o objeto do contrato é sempre um
bem de uso específico13, que tem valor para a parte que dele dispõe
(uma vez que receberá algo em troca), e tem valor para a parte que
adquire (que escolheu abdicar de algo para tê-lo em troca).
Na segunda dimensão, o que se adquire contratualmente
sempre deve poder ser expresso enquanto um valor hábil à realização
de trocas entre as pessoas; com efeito, o bem representado possui
um determinado valor de mercado, e é por esse valor que as partes
transacionam entre si. A dimensão do valor de troca deixa claro o
caráter representacional da propriedade: antes de dizer respeito ao
bem concreto, as partes adquirem na formação o valor que esse bem

12 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap


Press of Harvard University Press, 2019. p. 353.
13 “Propriedade é sempre de um determinado objeto que pode ser usado” (tradução
livre). No original: “[O]ownership is always of some determinate object that can be used”.
BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap Press of
Harvard University Press, 2019. p. 376. Benson assevera que a teoria da consideration
permite assegurar que o contrato seja “genuinamente uma relação bilateral
constituída por dois objetos qualitativamente diferentes, cada um do qual é algo que
pode ser razoavelmente visto como usável pela parte a quem a consideration se move
na formação do contrato, a partir daí transferindo direitos de controle exclusivo de
promissário a promitente” (tradução livre). No original: “genuinely two-sided relation
constituted by two qualitatively different objects, each of which is something that can be
reasonably viewed as usable by the party to whom the consideration moves at contract
formation, thereby transferring exclusive rightful control from promisee to promisor”.
BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap Press
of Harvard University Press, 2019. p. 179.

60 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
detém junto a uma prática institucionalizada de troca entre pessoas
que se reconhecem como proprietárias.

Quando valor é sistematicamente e generalizadamente


estabelecido de tal forma que diversos objetos
distintos de troca, tanto presentes quanto futuros,
são simultaneamente comparáveis em termos pura
e quantitativamente relacionais, valor toma a forma
de preço. Assim entendido, preço é representação
de um ponto de vista sistêmico e geral.14

O “valor” é, assim, propriamente o objeto da aquisição


contratual. Enquanto representação valorativa de algo, tanto no
sentido de utilidade prática quanto de utilidade inter-relacional, a
propriedade contratual permite que as partes efetivamente se vejam
como adquirindo algo no momento do acordo.

14 No original: “When value is systematically and generally established such that


indefinitely many different objects of exchange, both present and future, are simultaneously
comparable in purely quantitative relational terms, value takes the form of price. So
understood, price is therefore representation from a general and systemic standpoint”.
BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap Press
of Harvard University Press, 2019. p. 423. Em sentido semelhante, o autor dispõe:
“Pois valor é a substância indestrutível e imutável do objeto representado da aquisição
quando essa substância é totalmente relacional e completamente independente
de posse física. É a dimensão dos objetos que os fazem contar não como entidades
particulares concretas que podem acabar por ser, mas ao seu significado em relação
a outras coisas vistas da mesma maneira.” (Tradução livre). No original: “For value is
the indestructible and unchanging substance of the represented object of acquisition when
this substance is fully relational and completely independent of any physical holding. It
is the dimension of objects that makes them count not as the particular concrete physical
entities that they happen to be but as what they are supposed to signify in relation to other
things viewed in the same way”. BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of
Contract Law. The Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 340. O valor de
troca também serve para mostrar a identidade entre as coisas adquiridas em termos
de representação. Quando os sujeitos trocam X por Y, e ambos possuem o mesmo
valor de troca, efetivamente os proprietários continuam sendo donos do mesmo valor,
não alterando sua posição. BENSON, Peter. Philosophy of Property Law. In: Coleman
& Shapiro eds., The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law. Oxford
University Press, 2002. p. 752-814. p. 784.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 61


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
2.2 SIGNIFICADO JURÍDICO DA TRADIÇÃO

Como ressaltado anteriormente, se o contrato em si já transfere


a propriedade, é necessário explicar quais os efeitos jurídicos que
advêm da tradição e da performance do contrato. Para garantir a
integridade da empreitada bensoniana de construção de uma visão
unitária do direito contratual enquanto modo próprio de transferência,
a tradição propriamente não deve ser vista como incluindo algo que já
não estivesse presente no momento de formação.
Para isso, o critério de representação novamente é de valia. Isso
porque a aquisição de propriedade é operada em sentidos distintos,
mas complementares, entre formação e performance. Com o contrato,
os contratantes transmitem entre si o sentido de ser proprietário
de um determinado bem, entendido isso enquanto deter poder de
controle sobre algo e excluir os demais. Por ser exclusivamente
representacional, somente pode atuar na dimensão dos incluídos no
processo de comunicação operado – seja das partes, seja de terceiros
que possuam ciência comprovada da existência e dos termos da
operação15.
Com a tradição, acrescenta-se apenas a plena potência in
rem sobre um bem individuado, isso é, o poder de incluir pessoas
indeterminadas nessa possibilidade de exclusão. O sentido de direitos
in rem nesse caso não é de uma dimensão qualitativamente distinta,

15 Ao abordar as repercussões de um contrato perante terceiros, no campo do que


denomina de “efeitos reais da obrigação contratual” (proprietary effects of contractual
obligation), Benson pontua a necessidade de que a parte não contratante tenha ciência
da contratação, de forma a não ser pega de surpresa ao ver que suas ações impactaram
nos termos de um acordo do qual não participou. “Nós vimos que, como parte dessa
análise, o terceiro demandado deve, ao menos implicitamente, reconhecer e tratar
especificamente o interesse in personam do promissário na performance como um
bem valioso sobre o qual o promissário tem o controle exclusivo e presente [...]”
(tradução livre). No original: “We have seen that as part of this analysis, the third-party
defendant must, at least implicitly, specifically recognize and treat the promisee’s
in personam performance interest as a valuable asset over which the promisee has
present exclusive control […].” BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of
Contract Law. The Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 99.

62 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
mas de uma publicidade16 que dota o direito representacional de
operabilidade contra todos os demais, visto que a posse física é, de
pronto, ato externo de controle visível.

Dessa forma, posse física obtida por meio da tradição


representa a expressão final de transferência
de propriedade que é estabelecida completa e
plenamente na formação do contrato. O papel da
posse em assegurar publicidade não é independente
do contrato mas, pelo contrário, está totalmente
integrado como parte do sentido e da operação
da aquisição transacional. [...] No contrato, é a
representação, não a coisa física, que é toda a
realidade jurídica e é pervasivamente regulativa.
(Tradução livre).17

Não se inclui nada ao direito da formação, porque a


representação da coisa entregue já estava presente no meio de
comunicação das partes18. O que a tradição faz é concretizar o que está

16 “[ ] [T]omar a posse por meio da tradição não aperfeiçoa o poder contratual de


estabelecer direitos, que é completo na formação do contrato. Em vez disso, apenas
faz esse poder operativo frente a terceiros por meio de aviso público apropriado. Ao
trocar o local da posse física do promitente para promissário, a entrega fornece o tipo
de aviso geral e indeterminado que é necessário para vincular terceiros que podem
não ter noção da existência do contrato” (tradução livre). No original: “[…] [T]aking
possession via delivery does not perfect the rights-establishing power of the contract, which
is whole and complete at contract formation. Instead, it only makes this power operative
vis-à-vis third parties through the provision of appropriately public notice. By changing the
locus of rightful physical possession from promisor to promise, delivery provides the kind
of indeterminately general notice that is necessary to bind third parties who may not have
specific notice of the contractual relation itself ”. BENSON, Peter. Justice in Transactions:
A Theory of Contract Law. The Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 359.
17 No original: “In this way, physical possession obtained via delivery represents the
final expression of the transfer of ownership that is stablished completely and fully at
formation. The role of possession in ensuring publicity is not independent of contract but,
to the contrary, is fully integrated as part of the meaning and operation of transactional
acquisition. […] In contract, it is the representation, not the physical thing, that is the whole
juridical reality and is regulative throughout.” BENSON, Peter. Justice in Transactions: A
Theory of Contract Law. The Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 359.
18 Benson também assevera que a performance apenas dá ao contratante a
disponibilidade física para que possa usar livremente daquilo de que já era dono.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 63


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
sendo representado: tanto para as partes, que detêm o bem objeto
da transação, quanto para terceiros indeterminados, que tomam
conhecimento do que se havia operado apenas no meio linguístico.

2.3 VALOR NO MOMENTO DA QUEBRA

A propriedade representacional, que advém da transação


das partes na formação, pode ser lesada no caso em que algum ou
ambos os contratantes não entreguem o bem que é devido e que já
não é mais de sua titularidade. A análise do valor representativo da
propriedade interfere com especial força nos diferentes remédios
que Benson verifica no momento da quebra do contrato, adquirindo
forças específicas dependendo do tipo de bem e do tipo de valor que
ele simboliza.
Uma primeira forma remedial identificada por Benson diz
respeito à quebra do contrato de entrega de bens fungíveis; nesse
caso, a indenização compensatória deve mirar em disponibilizar ao
contratante lesado a capacidade econômico-financeira de adquirir o
mesmo bem por meio de outras trocas no mercado. Em se tratando,
todavia, de bens infungíveis, o remédio apropriado seria a tutela
específica quanto às obrigações de entregar coisas.
A justificação para essa divisão institucional de remédios
seria o critério da adequação, hábil a tutelar o que intitula interesse
possessório na performance (performance interest in possession)19:
ambas as formas de tutela buscam colocar o contratante na posição de
ter posse atual do objeto contratual, seja por meio da disponibilização
dos custos razoáveis para obter a coisa genérica de outro contratante,
seja por meio da entrega de bem específico. Assim expõe o autor:

Assim, ao receber a coisa, já a recebe como proprietário. BENSON, Peter. Contract as


a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev. 2007. p. 1673-1731. p. 1725-1726.
19 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap
Press of Harvard University Press, 2019. p. 268.

64 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
[O] postulante deveria ser confinado à compensação
monetária em vez de à performance específica apenas
quando a indenização colocaria o postulante na
mesma posição, em todos os aspectos materiais, em
que ele estaria caso tivesse obtido a performance
em espécie da obrigação contratual em questão.
Assim, onde a indenização é plenamente adequada,
atinge a mesma justiça integral que seria obtida pelo
remédio da performance específica. Ambos procuram
assegurar, até o limite do possível na situação pós
quebra, a própria performance, especificada em
termos quantitativos e qualitativos, a que o postulante
tem direito de acordo com os termos contratuais. A
indenização e a performance específica são apenas
duas rotas distintas para a mesma finalidade.
(Tradução livre)20

O mesmo critério aparece se considerado o caráter


representacional da propriedade. Se o bem é fungível, as
representações de seu valor recaem não sobre um bem específico,
mas sobre a coisa enquanto incluída em uma categoria específica,
porém repetível. A representação pode ser efetivada por meio de
diversos bens representados; até algo ser entregue, não deixa de ser
pura representação, isso é, algo que poderia ser de uma determinada
forma. Se essa forma determinada não é exclusiva, a representação
não pode recair sobre algo exclusivo, visto que aparece no contrato
apenas como valor (de uso – utilidade de qualquer um dos bens – e de
troca – condição suficiente e necessária para ser adquirido).

20 “[A] plaintiff should be confined to monetary damages instead of specific performance


only where damages would put the plaintiff in the same position in all material respects as
she would have been if she obtained performance in specie of the contractual obligations
in question. Thus, where damages are fully adequate, they achieve the very same complete
justice that would be accomplished by an in specie remedy. Both seek to secure, as far as
possible in post-breach circumstances, the very performance, specified qualitatively and
quantitatively, to which the plaintiff has a right in accordance with the contractual terms.
The damages award and order of specific performance are merely two different routes to
this same end.” BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 267-268.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 65


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Se o bem, todavia, não só pode vir a ser, mas deve ser de
uma determinada forma, então a representação leva em conta um
bem individualizado; qualquer outra coisa que fosse entregue não
corresponderia à representação de valor que foi transmitido no
momento do contrato. As partes transacionaram com algo em mente,
uma representação única, e é essa que constitui a única forma de dar
concretude à posse atual do objeto contratualmente representado21.
Uma outra forma de indenização identificada por Benson diz
respeito à indenização puramente pelo valor de uma coisa, que ocorrerá
quando um bem não puder ser obtido via mercado ou por meio da
performance específica, como por exemplo pela perda da coisa ou por
razões de hardship22. A esse tipo de indenização, Benson denomina
compensação pelo valor perdido da performance (compensation for lost
performance value)23.
Referida compensação traduz com maior clareza a importância
do critério representacional, uma vez que nesses casos a performance
contratualmente devida e que se protraiu no tempo somente pode
tomar a forma do valor que já representava no momento da formação
do pacto.
Nos casos anteriores, ainda havia um possível substrato que
embasava a representação; neste, a coisa só pode existir enquanto
representação (valor de algo). O bem representado não pode ser
entregue à parte, mas persistirá no símbolo valorado.

21 Essa ideia aparece em um artigo seu de 2002, em que explica que os expectation
damages dão ao contratante o valor total que a coisa contratada representava, por
meio do valor de troca; quando isso não for possível, apenas a performance específica
é adequada. BENSON, Peter. Philosophy of Property Law. In: Coleman & Shapiro eds.,
The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law. Oxford University Press,
2002. p. 752-814. p. 782.
22 O instituto da hardship, para Benson, opera quando a performance contratual afeta
de tal maneira os interesses do contratante inadimplente que ele teria que suportar
custos não razoavelmente esperados no momento da contratação, sem que isso
acarrete prejuízos ao conteúdo central da performance devida ao lesado. BENSON,
Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap Press of Harvard
University Press, 2019. p. 273.
23 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap
Press of Harvard University Press, 2019. p. 273.

66 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
No entanto, em vez de almejar dar ao postulante os
meios de obter a coisa particular qualitativamente
prometida, a indenização é agora fornecida para
representar o caráter da coisa como valor. [...] Ao
obter posse, o postulante também necessariamente
obtém o valor da coisa. Mesmo que a performance em
termos substantivos não possa ser obtida via mercado
ou por performance específica, seu valor permanece
intocado e deve estar acessível ao postulante para
assegurar que a performance – a consideration
prometida – e a sua imunidade com respeito à
performance não são tornados ilusórios pela quebra
do réu. [...] O que ao postulante foi prometido não é
valor per se no abstrato, mas algum bem determinado
ou serviço que em si mesmo tem valor. O propósito da
compensação é fixar o quantum desse valor perdido.
(Tradução livre)24

Assim, a coisa só pode vir a ser a comunicação simbólica


operada pelas partes, que existe entre elas e foi por elas transacionada,
efetivando a dimensão de propriedade transmitida.

3. AS DIFERENTES PERCEPÇÕES DE BENSON

A visão do contrato como transferência de propriedade é uma


noção que acompanha a trajetória acadêmica de Peter Benson,
estando presente em trabalhos anteriores à publicação de seu livro

24 No original: “However, instead of aiming to give the plaintiff the means of obtaining
the particular qualitative thing promised, damages are now given to represent the thing’s
character as value. […] By obtaining possession, the plaintiff also necessarily obtains
the subject matter’s value. Even though the substantive performance cannot be obtained
via market damages or specific performance, its value remains untouched and must be
accessible to the plaintiff to ensure that the performance—the promised consideration—and
her immunity with respect to that performance are not rendered illusory by the defendant’s
breach. […] What the plaintiff has been promised is not per se value in the abstract but
some determinate asset or service that itself has value. The aim of damages is therefore to
fix a quantum for this lost value”. BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of
Contract Law. The Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 274.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 67


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
de 2019. É interessante notar, todavia, que o critério representacional
não se encontra explícito nesses trabalhos anteriores, consistindo em
verdadeira inovação interna à sua própria teoria.
No artigo de 2007, intitulado Contract as transfer of ownership,
a ideia da transferência enquanto abstração transacional relativa
às partes já estava presente. A ênfase nesse trabalho se encontrava
na dimensão relacional da propriedade, que estaria presente na
relação contratual. Para isso, a base e justificação de seu argumento
consistiam na desnecessidade de contínua posse física para fins de
demonstração externa de propriedade, sendo certo que proprietários
podem de maneira externa e razoável apresentar atos de propriedade
que não envolvem aportes de materialidade25.
Nesse momento de sua obra, a base de transferência presente
no contrato é justamente a demonstração da intenção concreta e
imediata de dispor de um bem; o dever de entregar a coisa seria apenas
o sentido normativo da transferência que já ocorreu.

Enquanto no caso da transferência física as mútuas


manifestações de vontade se expressam na forma do
dar e do obter físicos, essa não é a única forma em que
isso pode ser feito. Nos contratos, a decisão de alienar
e de se apropriar estão incorporadas no acordo, e
não no dar e receber da posse física. Não há nada
inerentemente problemático nas partes expressarem
essa decisão pelo medium da linguagem que é, afinal
de contas, o modo mais preciso pelo qual as partes
podem transmitir mútuo assentimento uma para com
a outra. (Tradução livre) 26

25 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.


2007. p. 1673-1731. p. 1704.
26 No original: “Whereas in the case of a physical transfer the parties’ mutual assents are
expressed in the form of physical giving and taking, this is not the only way it can be done.
In contract, the decisions to alienate and appropriate are embodied in an agreement, not
in the giving and taking of physical possession. There is nothing inherently problematic in
the parties expressing these decisions through the medium of language which is, after all,
the most precise means by which parties can convey mutual assent to each other.” BENSON,

68 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Nesse artigo, Benson aborda três exemplos práticos que entende
que apresentam dificuldades à sua teoria, sendo necessária sua
abordagem para fins de coerência interna. O primeiro exemplo trata
do contrato sobre serviços: em que medida seria possível dizer que um
contratante tem propriedade sobre o fazer do outro?
Benson se posicionou no sentido de que a propriedade se
dá sobre a forma externa, em que o poder de agir de uma parte foi
transacionalmente limitado. As pessoas teriam poderes que as
constituem, mas que podem ser expressos exteriormente, delas se
desprendendo. Assim, o objeto da propriedade é a autoridade de
determinar a forma de ação, de dar controle sobre a conduta alheia27.
O segundo exemplo diz respeito à compra e venda de coisa ainda
não existente/que ainda não se é dono: A vende para B um cavalo
que A ainda não possui – como seria possível entender que houve
transferência de propriedade no momento da formação contratual28?
O autor, naquela oportunidade, entendeu que a resolução
dependia de como o acordo deveria razoavelmente ser interpretado,
apresentando duas possíveis soluções. A primeira, a que faz mera
referência, é que, entre as partes, já havia propriedade do referido
bem. A segunda, que desenvolve com mais afinco e parece privilegiar,
seria no sentido de que estaria incluído no contrato um serviço de
obter o bem; a promessa de um serviço seria o objeto de propriedade29.

Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev. 2007. p. 1673-
1731. p 1705.
27 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.
2007. p. 1673-1731. p. 1728-1729.
28 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.
2007. p. 1673-1731. p. 1729-1730.
29 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.
2007. p. 1673-1731. p. 1730. “A promessa de transferir o cavalo está condicionada à
promessa de obtê-lo. Ambos os elementos do contrato, o serviço e a venda – entram
no escopo da transferência contratual de propriedade” (tradução livre). No original:
“The promise to transfer the horse is conditioned by the promise to procure it. Both elements
of the contract – the service and the sale – come within the scope of a contractual transfer of
ownership”. BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary
L. Rev. p. 1673-1731. p. 1730.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 69


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
O outro exemplo trata da venda de itens repetidos que o vendedor
possui em grande quantidade: A tem diversos itens repetidos e vende
um deles para B sem especificar qual – como entender sobre qual
item B se tornou proprietário30?
Em sua explicação, Benson ressalta que o fato de um objeto
não ser único não o faz indeterminável ou não identificável. Seria
suficiente que no momento da formação as partes especificassem o
que contará como performance, por exemplo “um dos itens de A, tendo
X característica e Y valor”31, para que a transferência de propriedade
se dê sobre algo determinado.
Tendo tais considerações em mente quanto ao seu trabalho
de 2007, depreende-se que, embora já presente menção à dimensão
linguística, a caracterização da propriedade enquanto representação
não tinha sido ainda desenvolvida. Tal noção é de vital importância
ao seu projeto como um todo, visto que, até então, sua concepção
de propriedade fazia referência predominantemente aos poderes do
proprietário, mas não sobre o objeto da propriedade em si. Adquirir
contratualmente propriedade significava adquirir equivalentemente
os poderes de proprietário – apropriar, usar, dispor32. A ideia dos
símbolos transmitidos permite a compreensão mais completa sobre o
quê as partes concordam e transacionam já no momento da formação,
dando maior substância ao direito de propriedade transacional que
tem como objeto a coisa prometida33.
Assim, busca-se agora a aplicação do critério representacional
de Justice in Transactions aos três cenários por ele apresentados e já
relatados.

30 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.


2007. p. 1673-1731. p. 1730.
31 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.
2007. p. 1673-1731. p. 1731.
32 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.
2007. p. 1673-1731. p. 1726.
33 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William and Mary L. Rev.
2007. p. 1673-1731. p. 1723.

70 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Quanto ao primeiro exemplo (contrato sobre serviços), no livro
de 2019, Benson aborda a questão no sentido de que o fazer algo não
pode pré-existir à relação contratual como se fosse algo separado e
apropriável por qualquer um. Assim, o que se tem antes da transação
é apenas o poder de fazer algo, que se torna “expresso como um
ato alienável ou serviço apenas quando especificado como parte da
mesma interação pela qual eu transfiro [o poder] do meu controle
exclusivo para o seu”34. Como fica claro, a transferência que se opera
não é de algo que pré-existe ao acordo, como se necessitasse de
uma materialidade subjacente. O serviço existe enquanto modo de
representação entre as partes, que o veem, no plano ideal, como uma
manifestação de sentido que se transmite de um para o outro e que já
é dotado de valor. Mesmo que o serviço não venha a ser fornecido, não
significa que ele já não existia no momento do acordo, na forma do
símbolo externo transacionalmente relevante.
Quanto ao segundo exemplo (compra e venda de coisa que ainda
não se é dono), pelo critério representacional, parece que a solução
de que já havia propriedade sobre o bem é mais consentânea com
seu posicionamento atual. A parte que transaciona coisa inexistente
ou ainda não sob seu poder o faz enquanto dono presente da
representação de valor. O valor é, no momento contratual, a expressão
da propriedade transacionada. Assim, no momento da formação, a
parte estaria se apresentando enquanto dono do valor representativo
de um objeto – não seria relevante naquele momento contratual saber
se o objeto representado já possuiria existência concreta. Mesmo que a
coisa não viesse a existir, ainda responderia pelo valor dela, conforme
compensação pelo valor perdido da performance.
Por fim, no que tange ao terceiro exemplo (venda de itens
repetidos), novamente o critério representacional vem ao auxílio do
autor. O objeto da transação estaria especificado na formação porque

34 No original: “expressed as an alienable act or service only if specified as part of the very
interaction by which I transfer it from under my rightful control into yours”. BENSON,
Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap Press of Harvard
University Press, 2019. p. 341. BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of
Contract Law. The Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 341.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 71


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
não leva em conta um bem físico específico e individualizado, mas
sua representação na forma de um valor. Na verdade, o contrato nesse
caso não faz referência aos diversos objetos, mas aos valores que estes
detêm ou são hábeis a representar; irrelevante, portanto, que A tenha
um, nenhum ou mais de um dos itens, porque o objeto do contrato é a
representação destes e não estes em si35.
Como abordado anteriormente, até o momento da entrega, o
bem existe apenas no meio representacional e comunicacional inter
partes. Não deixa de ser determinado, visto que a determinação está
presente nas duas dimensões distintas de valor.

CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou explicar as repercussões de uma


propriedade exclusivamente representacional, que advém de um
contrato, em conexão com diferentes pontos que identificam o direito
privado como uma prática coerente de maneira interna.
Assim, partindo das próprias considerações do autor sobre
o sentido representativo da propriedade contratual – princípio
unificante – , foi possível auxiliar na construção de uma visão coerente
do direito contratual enquanto modo próprio de transferência.
A construção, a que se pretendeu apenas fornecer subsídios
iniciais, se deu na dimensão da linguagem utilizada (ownership como
propriedade e como representação de propriedade), na dimensão

35 “[ ] [A] substância da consideration pode ser qualquer coisa determinada que possa
ser expressa ou representada em palavras ou equivalente como conteúdo usável ou
querido definidamente prometido por (e, portanto, movido por) um lado para o outro
independente de condições espaciais ou temporais. No momento da formação, o
objeto pode ser genérico em descrição, meramente determinável, e até mesmo não
existente ou qualificado em referência a condições externas futuras [...]” (tradução
livre). No original: “[ ] [T]he substance of the consideration can be anything determinate
that can be expressed or represented in words or their equivalent as a definite usable or
wanted content promised by (and therefore moved from) one side to the other independently
of temporal or spacial conditions. At the time of formation, the object may be generic in
description, merely determinable, and even nonexistent or qualified by reference to future
external conditions […]”. BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract
Law. The Belknap Press of Harvard University Press, 2019. p. 274

72 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
interna à sua obra literária (como o princípio conversa com demais
partes da teoria em Justice in Transactions) e na dimensão interna do
próprio autor (como o princípio conversa com trabalhos anteriores
como Contract as transfer of ownership).
Interpretar o contrato como forma própria de transferência,
para todos os efeitos e propósitos, é nadar contra a corrente. Assim,
é de grande relevância estudar de maneira aprofundada visões que
justifiquem tal concepção não como uma possível realidade a ser
construída, mas como uma prática já existente e que dá sentido às
manifestações jurídicas do direito contratual. Se o objetivo de Benson
é demonstrar que os institutos publicamente reconhecidos do contrato
são um trabalho digno de aceitação e respeito36, o mesmo pode ser dito
de sua empreitada intelectual.

36 BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. The Belknap


Press of Harvard University Press, 2019. p. xii.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 73


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
REFERÊNCIAS

BENSON, Peter. Justice in Transactions: A Theory of Contract Law.


The Belknap Press of Harvard University Press, 2019.

BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. 48 William


and Mary L. Rev. 2007. p. 1673-1731.

BENSON, Peter. Philosophy of Property Law. In: Coleman &


Shapiro eds., The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of
Law. Oxford University Press, 2002. p. 752-814.

74 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
A TEORIA DE PETER BENSON E SUA APLICAÇÃO
AOS CONTRATOS DE SERVIÇOS

Fernanda Marinho Antunes de Carvalho

INTRODUÇÃO

Curtis Bridgeman1 aponta Peter Benson e Ernest Weinrib como


os principais teóricos da aplicação da justiça corretiva ao direito
contratual. Conforme bem pontua Bridgeman, ambos argumentam
que, quando o promitente viola uma promessa, ao promissário é
negado algo ao qual ele é detentor por direito. Weinrib e Benson,
todavia, discordam sobre qual, exatamente, é esse direito: se para
Weinrib trata-se de um direito à performance, para Benson trata-se de
um direito de propriedade.
Nesse sentido, Benson é categórico ao afirmar que a ideia de
transferência por ele apresentada difere-se da visão comumente
assumida que a vê como a transferência de um “direito à performance”
e aponta o autor que o que é adquirido ou transferido não é o direito a
X, porém um conteúdo substancial que pode ser transferido de forma
exclusiva e por direito2. Isso porque, em sua perspectiva, o contrato
se configura como uma forma de transferência de propriedade, o que
parece ser plausível quando o objeto transferido é específico, único,
externo ou corpóreo, porém menos intuitivo caso se trate de um
serviço.
Destarte, um desafio emerge de sua teoria: qual a mais adequada
interpretação do substrato dessa transferência para que seu raciocínio
possa ser aplicável aos contratos que envolvam serviços? Isto é, como

1 BRIDGEMAN, Curtis. Reconciling Strict Liability with Corrective Justice in Contract


Law, 75. Fordham L. Rev. 2007. p. 3013-3040.
2 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 322.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 75


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
se interpretar a ideia de um direito à propriedade sobre uma ação de
um outro indivíduo?
Este artigo pretende responder à questão proposta e, para tanto,
será dividido em três partes. Inicialmente, irá abordar de forma sucinta
a teoria do contrato como transferência de propriedade apresentada
por Benson e, em busca do melhor exercício exegético, irá investigar
o significado das expressões “ownership” e “property”, essenciais para
o correto entendimento do que, para o autor, significa dizer que o
contrato é capaz de transferir um direito de “ownership”. Na segunda
parte, irá analisar a ideia de transferência proposta por Benson,
examinando a doutrina da consideração3, eis que, segundo o seu ponto
de vista, o que é transferido pelo contrato é, exatamente, a “sustância
da consideração”4. Por fim, irá verificar se as ideias apresentadas são
compatíveis com os contratos de serviços, utilizando-se, para esse fim,
das observações apresentadas pelo autor em seu artigo “Contract as a
Transfer of Ownership”, publicado em 2007.

1. O CONTRATO COMO TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE

Peter Benson, ainda em 2007, publicou seu artigo intitulado


“Contract as a Transfer of Ownership”, em que anunciava, como bem
sinaliza o título, a teoria de que o contrato se configura como um
meio de transferência de propriedade. Em 2019, o autor lançou sua
obra denominada “Justice in Transactions” e dedicou um capítulo para
o detalhamento da referida tese.
A ideia de que o contrato figura como uma transferência de
propriedade pode ser considerada uma resposta ao desafio proposto
por Fuller e Perdue:

O direito toma esse princípio da “expectativa” como


um princípio de compensação e, como tal, como sendo

3 Optou-se por utilizar “consideração” para se referir à expressão “consideration”.


4 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 323

76 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
um princípio justo e dirigente. O que é precisamente
o que Fuller e Perdue desafiam. Eles escrevem que
os remédios contratuais dão ao requerente “algo que
ele nunca teve”. Isso, pontuam, “parece à primeira
vista uma estranha forma de compensação”. Ao
entregar esse remédio, o direito não “cura um status
quo perturbado”, mas, ao em vez disso, leva a uma
“nova situação” e, ao fazê-lo, passa “do domínio da
justiça corretiva para o da justiça distributiva5.

Em uma breve contextualização, a construção de pensamento de


Fuller e Perdue6, como bem elucidou Fabio Queiroz, assenta-se em uma
classificação tripartite sobre os interesses envolvidos em uma situação
de dano contratual, quais sejam: o interesse na restituição (restitution
interest), o interesse na confiança (reliance interest) e o interesse na
expectativa (expectation interest)7. Para a correta compreensão do
desafio a que Benson pretende responder, importa definir cada um
dos interesses, em especial o interesse na expectativa.
O primeiro tipo (restitution interest), ainda de acordo com Fabio
Queiroz, aplica-se nos casos em que se concretiza o enriquecimento
sem causa. Nessa situação, está-se em busca de um retorno de um
valor patrimonial indevidamente deslocado e não diante de uma
ponderação de ordem indenizatória8. No segundo caso (reliance

5 Tradução livre. No original: “The law takes this “expectation” principle to be a


principle of compensation and, as such, to be a just and ruling principle. This is
precisely what Fuller and Perdue challenge. They write that contract remedies give a
plaintiff “something he never had.” ‘This,” they point out, “seems on the face of things
a queer kind of ‘compensation.”’ In giving such remedies, the law does not “heal a
disturbed status quo” but instead brings into being “a new situation” and, in doing
so, the law passes “from the realm of corrective justice to that of distributive justice.”
In: BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1675.
6 Sobre o desafio proposto pelos autores, ver: FULLER, L.L; PERDUE JR.,William R.
The reliance Interest in contract damages. Yale Law Journal, New Haven, Vol. 46,1936.
7 PEREIRA, Fabio Queiroz. O Ressarcimento do Dano Pré-Contratual: Interesse Negativo
e Interesse Positivo. São Paulo: Almedina, 2017. p. 172.
8 PEREIRA, Fabio Queiroz. O Ressarcimento do Dano Pré-Contratual: Interesse Negativo
e Interesse Positivo. São Paulo: Almedina, 2017. p. 172.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 77


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
interest), protege-se a confiança vez que um dos negociantes pode ter
realizado despesas, acreditando em um posicionamento transmitido
pela contraparte. Assim, quando há uma frustração da confiança
depositada, deve ser aplicada uma indenização, visando a reposição
da situação que precedeu o evento lesivo9.
Por fim, o expectation interest10, essencial para a compreensão
do desafio proposto por Fuller e Perdue, objetiva possibilitar que o
lesado esteja em uma situação tão adequada quanto a que estaria se
o contrato tivesse sido cumprido de forma que é possível demandar
contra a contraparte requerendo o desempenho específico do que foi
prometido ou pleitear uma indenização, com o pagamento do valor
monetário equivalente11. Nesse passo, pontuaram os autores que o
direito da common law considera o interesse na expectativa como o
princípio da compensação, o que daria ao requerente algo que “ele
nunca teve”, colocando-o em uma nova situação e, não simplesmente,
retornando ao status quo ante.
Nesse ponto encontra-se a teoria de Benson: trabalhando
a aplicação de uma justiça compensatória aos contratos, isto é,
utilizando-se do conceito aristotélico de justiça corretiva para embasar
sua teoria, ele atinge uma resposta satisfatória ao desafio proposto.
Caso o contrato se apresente como uma transferência de propriedade,
que ocorre desde o momento de sua formação, estar-se-ia diante de
uma situação em que o requerente “detém” algo que é seu por seu
direito, desde o momento da formação contratual12 e, portanto, as
críticas levantadas por Fuller e Perdue não mais subsistiriam.

9 PEREIRA, Fabio Queiroz. O Ressarcimento do Dano Pré-Contratual: Interesse Negativo


e Interesse Positivo. São Paulo: Almedina, 2017. p. 173.
10 PEREIRA, Fabio Queiroz. O Ressarcimento do Dano Pré-Contratual: Interesse
Negativo e Interesse Positivo. São Paulo: Almedina, 2017. p. 172.
11 De acordo com Fabio Queiroz, há uma relação muito próxima entre o interesse na
confiança e o interesse contratual negativo enquanto o interesse contratual positivo
possui uma forte afinidade com o interesse na expectativa. PEREIRA, Fabio Queiroz.
O Ressarcimento do Dano Pré-Contratual: Interesse Negativo e Interesse Positivo. São
Paulo: Almedina, 2017. p. 173.
12 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 256.

78 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Benson, nesse sentido, aponta sua teoria: “contract as a transfer of
ownership”. Para a sua correta compreensão, todavia, importa analisar
o sentido atribuído pelo autor à expressão “ownership”, diferenciando-a
da “property”, o que será trabalhado no tópico seguinte.

1.1 “OWNERSHIP” E “PROPERTY” NA


PERSPECTIVA DE PETER BENSON

Essencial para a adequada interpretação da teoria de Benson é


a correta compreensão do que, para o autor, consiste ser “ownership”
e “property”. Afinal, se o contrato é considerado como uma “transfer of
ownership”, é imprescindível para o presente artigo a correta definição
do que seria “ownership”.
A questão foi trabalhada por Benson, ainda em 2007, no artigo
“Contract as a Transfer of Ownership” em que o autor, ao enunciar sua
principal tese de conceituação do contrato afirma que, entre as duas
referidas expressões, está um contraste chave para a visão por ele
desenvolvida13. Em suas palavras:

Na visão que devo elaborar, “ownership” é uma


concepção larga, geral na qual “property” (direitos in
rem) é uma instância particular. Direitos contratuais,
devo argumentar, são instâncias outras, diferentes
e particulares de direitos de “ownership”. De acordo
com essa visão, eu refiro ao contrato como uma
transferência de “ownership”, não como uma
transferência de “property”14.

13 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1693.
14 Tradução Livre. No original: “On the view that I shall elaborate, “ownership” is a
larger, general conception of which “property” (right in rem) is a particular instance.
Contract rights, I shall argue, are another, different particular instance of ownership
rights. Consistent with this view, I refer to contract as a transfer of ownership, not as a
transfer of property”. In: BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. &
Mary L. Rev. 1673. 2007. p. 1693-1694.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 79


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Para correta definição dos conceitos, deve-se, inicialmente,
analisar as formas de aquisição de propriedade que, acredita-se, dão
origem a cada uma dessas expressões. Por isso, imperioso para a
apreensão do conceito de propriedade para Peter Benson é a maneira
como se dá a sua aquisição: pode ela ser adquirida de forma originária
ou derivada.
Originária é a aquisição que ocorre quando um indivíduo adquire
algo por apenas um ato, já que, nessa hipótese, o objeto da aquisição
encontra-se sem dono. A aquisição originária será, sempre, de um
determinado objeto que é separado e distinto do corpo do indivíduo,
incluindo-se aqui as suas faculdades e os seus poderes físicos e
psicológicos15. Não possuindo um dono, o objeto está disponível
para a aquisição por qualquer um, o que faz com que os serviços, na
perspectiva de Benson, não possam ser adquiridos dessa maneira,
mas, somente, possam ser objeto de aquisição derivada16.
Para adquirir um determinado objeto de forma originária,
deve-se realizar um ato que, naquele momento, será reconhecido
como subordinando um objeto externo ao controle exclusivo daquele
que o adquire, que poderá usá-lo segundo seus próprios propósitos
sem o auxílio de outros sujeitos17. Isto é, o ato deverá razoavelmente
manifestar aos demais uma sujeição e um controle sobre o objeto18.
Assim, para que o controle seja exclusivo, necessário será que o
adquirente submeta o objeto aos seus próprios fins e propósitos, o
que envolve os modos de exercício de propriedade apresentados por
Benson, quais sejam, tomar posse, usar e alienar19.

15 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University


Press, 2019. p. 328
16 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 328.
17 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 329.
18 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 331.
19 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 330.

80 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Derivada, por outro lado, será a aquisição de algo do seu
respectivo dono, mediante o consentimento e a decisão deste20. Ocorre,
portanto, quando alguém previamente detém algo que já está sob o
seu controle exclusivo e decide realizar a transferência. Dessa forma,
a aquisição derivada fundamenta-se no consentimento e é constituída
pela participação de duas partes, por meio de dois atos distintos21.
Essas diferentes aquisições são imprescindíveis para a correta
compreensão do que configura “property” e “ownership” para Benson,
que expressamente diferencia as expressões. Ele é categórico ao
afirmar, em sua obra, que “property” e “ownership” não são sinônimos22.
Enquanto os direitos de “property” são adquiridos por um ato
unilateral de vontade que requer a posse física de um objeto externo
e corpóreo, os direitos contratuais são adquiridos por meio de atos
mutuamente relacionados entre duas partes, sem a necessidade de
uma posse física23.
Em suas palavras:

Na propriedade originária, o direito de propriedade


é adquirido por uma ação unilateral e o objeto desse
direito é definido nessa base. Por outro lado, no caso
do contrato, o direito e o objeto são completamente
especificados pelos termos do acordo e essa análise
sustenta-se somente entre as partes de acordo
com esses termos. Esse direito não é um direito de
propriedade originária e é totalmente transacional
entre as partes, somente24.

20 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University


Press, 2019. p. 327
21 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 334.
22 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1719.
23 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1719.
24 Tradução Livre. No original: “In property, the right of ownership is acquired by
a person’s unilateral action and the object of the right is defined on this basis. By
contrast, in the case of contract, the right and the object are completely specified by

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 81


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Por esse ângulo, a diferenciação mostra-se clara: o autor utiliza-
se de “property” para se referir a uma específica forma de aquisição de
propriedade, a originária. Já “ownership”, é utilizada para caracterizar
a aquisição derivada, realizada por meio do contrato. A diferença não
está no direito exercido, mas na forma de aquisição da propriedade.
À vista desta definição, Benson aponta ser o contrato um meio
de se transferir propriedade: no momento de formação da avença,
transfere-se uma autoridade exclusiva para o exercício de um controle
sobre o objeto prometido e, é exatamente essa autoridade que, para o
autor, define a propriedade25. Nesse sentido:

Essa autoridade exclusiva para exercer controle


sobre algo é o direito de propriedade. Porque esse
direito é o mesmo, ainda que exercido de formas
diferentes, e independente dos diferentes propósitos e
interesses envolvidos no seu exercício, a propriedade
que é adquirida é idêntica àquela a que se abre mão,
logo a adequação de se referir a essa operação como
uma transferência. Assim, o exercício do direito
de propriedade, seja se apropriando, usando ou
alienando, necessariamente se dá em um momento
e maneira específicos26.

the terms of the parties’ agreement, and this analysis holds only as between the parties
in accordance with those terms. The right is a non-proprietary right of ownership that
is wholly transactional as between the parties alone”. In: BENSON, Peter. Contract as a
Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p. 1693-1731. p. 1723.
25 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1725
26 Tradução livre. No original: “This exclusive authority to exercise control over a
thing is ownership. Because ownership is the same however differently it may be
exercised, and irrespective of the different purposes and interests involved in its
exercise, the ownership that is acquired is identical to the ownership that is given up;
hence the propriety of referring to it as a transfer of ownership. Now, the exercise of
ownership, whether appropriating, using, or alienating, necessarily takes place at a
particular time and in a particular manner”. In: BENSON, Peter. Contract as a Transfer
of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p. 1693-1731. p. 1725.

82 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Por isso, o contrato se configura como uma forma de aquisição
derivada de propriedade, eminentemente transacional e, por isso,
capaz de transferir o controle exclusivo sobre um objeto ou um
serviço, de uma parte (alienação) para a outra (apropriação) e, ao
estipular a performance, determina o modo e a maneira como se
dará a execução contratual27. Fica claro, portanto, que, para Benson,
o contrato transfere, de fato, a propriedade e todos os seus poderes:
posse exclusiva, uso e alienação.
Passa-se, então, à caracterização da transferência para Peter
Benson, bem como à compreensão do substrato transferido para, por
fim, verificar se a teoria é compatível com os contratos de serviços.

2. A TRANSFERÊNCIA PARA BENSON: BREVES


APONTAMENTOS SOBRE A DOUTRINA DA CONSIDERAÇÃO

Conforme já elucidado, Benson, respondendo ao desafio proposto


por Fuller e Perdue, compreende o contrato como uma transferência
de propriedade e, sob sua perspectiva, o descumprimento contratual
configura-se como uma interferência em um interesse protegido,
tornando o interesse positivo compensatório28.
Para explicar sua ideia de transferência, o autor inicia sua
argumentação supondo uma transferência de propriedade através
da qual, fisicamente, transfere-se algo que é, fisicamente, recebido29,
sem qualquer acordo prévio. Essa operação, na lição de Benson,
pode ocorrer mediante algo em retorno, ou não, transferindo a
propriedade de uma pessoa para a outra, o que é realizado por certos
atos mutuamente relacionados30.

27 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1725.
28 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1693.
29 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1694.
30 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1694.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 83


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Desse modo, para se transferir a propriedade, deve haver uma
decisão de transferir que é corporificada em fisicamente entregar algo
para a outra parte. Uma mera transferência física, que não expressa
essa intenção, não é capaz de produzir uma mudança na propriedade
pois é necessário que a parte expresse o seu propósito de entregar a
coisa, como uma expressão externa do seu desejo de transferi-la31.
Esse desejo, todavia, não é, por si só, suficientemente apto a
configurar uma transferência. É necessário um segundo ato: a outra
parte deve também expressar o seu desejo de se apropriar da coisa
como sua e essa decisão é corporificada tomando-a para si, em
resposta à decisão de alienar32.
Esclarece-se, nesse passo, como se dá a transferência proposta
por Benson: ela é constituída por dois atos que são temporalmente
sucessivos:

A relação entre os atos de transferência e apropriação


deve ser especificada na seguinte forma. A ideia de
uma transferência de propriedade de alguém para
outra pessoa, implica: primeiro, que a aquisição, pela
segunda parte, venha, não só com o consentimento
da primeira parte, mas também, originado dela; e
segundo, que o direito de propriedade que está com
a primeira parte seja o mesmo que é adquirido pela
segunda33.

31 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1694.
32 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1694.
33 Tradução livre. No original: “The relation between the acts of alienation and
appropriation must be further specified in the following way. The idea of a transfer
of ownership from one to another implies: first, that the second party’s acquisition
of ownership comes, not only with the consent of, but also from, the first party; and
second, that the right of ownership that is in the first party is the very same that is
acquired by the second.” In: BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm.
& Mary L. Rev. 2007. p. 1693-1731. p. 1695.

84 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
A decisão de realizar atos de transferência caracteriza-se como
um exercício de direitos de propriedade, sendo ela constituída por
atos mutuamente relacionados que podem ser compreendidos sob o
aspecto de serem sucessivos no tempo e, ainda, co-presentes34.
Diante dessa operação, um segundo questionamento consiste
em qual é o objeto dessa transferência. Conforme levantou o autor em
sua obra, “Justice in Transactions”, a ideia por ele defendida difere-se
daquela comumente adotada que vê o objeto da transferência como
um direito à performance, sendo esse o direito transferido35. Na
verdade, o que é transferido é a substância da consideração, que irá
se deslocar de uma parte contratual para outra, como uma resposta à
primeira consideração36.
Importante ressaltar que, consoante sinaliza Benson, nenhuma
doutrina na common law foi tão cuidadosamente desenvolvida como
a doutrina da consideração37. Por isso, não se pretende, neste artigo,
esgotar o tema, mas, tão somente, compreendê-lo para fins de elucidar
a ideia de transferência proposta pelo autor.
A doutrina da consideração, diferenciando uma simples
promessa de um contrato, determina que, para que um acordo
seja executável em seus termos, uma promessa deve ser realizada
mediante o retorno de uma consideração válida e legal, que pode ser
uma promessa recíproca ou um ato que é requerido pelo promitente
e providenciado pelo promissário, como parte de uma mesma
transação38. A consideração não corresponde, somente, a um motivo

34 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1696.
35 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 323.
36 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 322.
37 BENSON, Peter. The ideia of consideration. University of Toronto Law Journal. 2001.
p. 241-278. p. 242.
38 BENSON, Peter. The ideia of consideration. University of Toronto Law Journal. 2001.
p. 241-278. p. 249.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 85


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
ou uma razão para a promessa, ela deve “mover-se” do promitente e,
ainda, deter um determinado valor à luz do direito39:

Para mover-se do promissário, não apenas a


consideração não deve ser movida de um terceiro,
mas, tão importante quanto, ela também não deve
mover-se do promitente. Mais exatamente, isso
acarreta que a consideração deve ser independente
da promessa para a qual é dada da seguinte
maneira: deve ser possível interpretar o conteúdo da
consideração como algo que poderia genuinamente
se originar do promissário, não do promitente. A
consideração deve ser algo que não seja simplesmente
redutível a um mero aspecto, condição ou efeito da
primeira promessa ou de sua execução. Em outras
palavras, a consideração deve ser algo que possa ser
razoavelmente vista como vinda potencialmente do
lado do promissário e, portanto, como não produzido
pelo promitente40.

Dizer que a consideração deve “mover” de uma parte à outra,


significa apenas ressaltar a necessidade de que, para a formação de
um contrato executável, devem existir dois lados que, juntos, irão
constituir a relação contratual. E é por isso que há, ainda, mais um

39 BENSON, Peter. The ideia of consideration. University of Toronto Law Journal. 2001.
p. 241-278. p. 249.
40 Tradução livre. No original: “To move from the promisee, not only must the
consideration not move from a third party, but, just as importantly, it must also
not move from the promisor. More exactly, this entails that consideration must be
independent in the following way from the promise for which it is given: it must be pos-
sible to construe the content of the consideration as something that could genuinely
originate with the promisee, not the promisor. Consideration must be something that
is not simply reducible to a mere aspect, condition, or ef- fect of the first promise or its
execution. In other words, the consideration has to be something that can reasonably
be viewed as potentially on and coming from the promisee’s side and therefore as
not produced by the promisor”. BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of
contract law. Harvard University Press, 2019. p. 48.

86 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
requisito para a sua formação: o promitente deve expressamente
requisitá-la como um retorno para a sua promessa41.
Ademais, importa ressaltar que não há a necessidade de
equivalência de valores para a formação da consideração. A doutrina
é, em verdade, indiferente à adequação, porém é necessário que o
seu objeto seja algo utilizável e que possa ser razoavelmente desejado
como um serviço ou um objeto por suas qualidades e recursos. O que
é necessário é que algo seja dado em troca por outra coisa, um quid
pro quo42.
Ante o exposto, pode-se afirmar que a consideração se configura
como uma condição necessária para a formação do contrato e para
sua executoriedade43. Conforme abordado por Benson, é a substância
da consideração o objeto da transferência em uma relação contratual
e não um direito à performance, como apontam outros autores, em
uma abordagem alinhada aos estudos de Kant.
Segundo esta corrente, o que é transferido por um contrato
não é o objeto prometido, mas sim o direito à performance da outra
parte44. Sob essa visão, em um contrato de compra e venda de cavalos,

41 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University


Press, 2019. p. 50.
42 BENSON, Peter. Justice in transactions: A theory of contract law. Harvard University
Press, 2019. p. 55-56.
43 BENSON, Peter. The ideia of consideration. University of Toronto Law Journal. 2001.
p. 241-278. p. 250.
44 Essa é a visão adotada por Weinrib: “His account addresses the perplexity later
raised by Fuller and Perdue, that expectation damages seem to be “a queer kind of
‘compensation’’ in that they give the plaintiff something that the plaintiff never had.
It is true that the plaintiff never had the thing promised; its loss is therefore not
something for which the plaintiff can rightly claim compensation. But the plaintiff
did have an entitle- ment to the performance itself; it is for the infringement of this
entitlement that expectation damages compensate. Kant thereby answers the question
of how can the law treat the plaintiff as entitled to the thing’s value if the plaintiff is not
entitled to the thing. The plaintiff turns out to be entitled to the thing’s value because
that value determines the value of the performance to which the plaintiff is entitled.
Both the Kantian account and the Fuller-Perdue critique of expectation damages
presuppose the disjunction between contrac- tual performance and ownership of the
subject matter of the contract. But this very feature of contract that is problematic for
Fuller and Perdue is what for Kant characterizes contract as creating a distinct kind of
right.” In: WEINRIB, Ernest J. Punishment and Disgorgement as Contract Remedies,
78 Chi.-Kent L. Rev. 55, 2003.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 87


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
não se adquiriria o cavalo, em si, mas sim, o ato de que o cavalo seja
entregue45. Para Benson, todavia, essa teorização iria de encontro
com os princípios fundamentais da common law: já que não seria a
promessa, mas sim, a sua substância que constitui a “coisa prometida”
46
.
Por isso, Benson alinha-se a uma concepção distinta, que também
pode ser encontrada nos trabalhos de Grotius, Pufendorf e Hegel47,
ao argumentar que, ainda no momento da formação contratual, o
promitente adquire um direito de propriedade ao objeto prometido.
Se, na propriedade originária, o direito de propriedade é adquirido
por um ato unilateral, na relação contratual, o direito e o objeto são
especificados nos termos do acordo. O direito transferido, adquirido
de forma não originária, é, à luz dos estudos de Benson, totalmente
transacional48.
E, diante desse conceito, tem-se a importância da compreensão
das diferentes formas de aquisição da propriedade: no momento da
formação contratual, uma parte transfere à outra a sua autoridade
exclusiva de realizar o controle sobre o objeto prometido, o que se
apresenta, exatamente, como a conceituação de propriedade por
Benson proposta.

3. O PAPEL DA PERFORMANCE NO CONTRATO

Analisar a aplicabilidade da teoria de Benson aos contratos de


serviços significa compreender o papel e o significado da performance
no contrato. O autor enuncia que, em termos gerais, é a performance
que assegura que algo está disponível ao promissário, permitindo o

45 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1720.
46 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1721.
47 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1723.
48 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1723.

88 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
seu uso49. O seu conteúdo, dessa maneira, irá depender dos termos do
contrato, em cada circunstância.
O enfoque proposto por esse artigo foi identificado pelo
assistente de pesquisa de Benson, Fredrick Schumann50 e enfrentada
já nas últimas páginas do artigo “Contract as a Transfer of Ownership”.​​
Benson reconhece que sua teoria se apresenta plausível quando o
objeto da transferência de propriedade é um objeto específico, único
e corpóreo, porém é menos intuitiva em três situações, que foram
levantadas por Schumann, quais sejam, quando o “objeto” transferido
é um serviço; quando é algo que a parte ainda não detém; quando o
objeto ainda não é determinado no momento da formação do contrato,
em meio a um número de outros praticamente idênticos51.
Benson é categórico ao afirmar que nenhuma das questões
levantadas por Schumann vão de encontro com a sua teoria e, em uma
resposta sucinta, ele afirma ser exatamente o caráter transacional de
uma transferência via contrato capaz de permitir que sua tese abarque,
também, esses cenários52.
Considerando o objetivo deste trabalho, os dois últimos desafios
não serão analisados, porém é exatamente com relação aos contratos
de serviços que se busca uma resposta satisfatória.
A questão, parece, de fato, espinhosa: conforme aponta
Mckendrick, os contratos envolvendo serviços pessoais não são, em
regra, submetidos à execução específica53. Caso contrário, o direito
estaria, conforme bem se levantou, transformando o contrato em

49 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1725.
50 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1728.
51 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1728.
52 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1728.
53MCKENDRICK, Ewan. Contract law: Text, Cases, and Materials. 5 ed. Oxford
University Press, 2012. p. 929.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 89


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
uma forma de escravidão54 . Nesse sentido, em Johnson v. Unisys Ltd,
(2001), Lord Hoffmann apontou ser:

“o trabalho de alguém é, normalmente, uma das


coisas mais importantes em sua vida. Ele entrega não
apenas uma forma de sustento, mas uma ocupação,
uma identidade e um senso de autoestima” (tradução
livre)55.

Na mesma toada, Beatson, Burrows e Cartwright56 sinalizam


que, em contratos envolvendo serviços pessoais, os tribunais, em
geral, não determinam a execução forçada já que não seria apropriado
fazer com que alguém sirva a outrem contra a sua vontade. Os autores
compartilham da visão de que, caso o tribunal o fizesse, estaria
transformando o contrato em um verdadeiro contrato de escravidão57.
Considerando essa peculiaridade atinente aos contratos
de serviços, como seria possível afirmar que o contrato transfere
um direito de propriedade sobre um serviço alheio? O alcance da
expressão “ownership” parece ser essencial para a compreensão da
solução proposta por Benson, como veremos a seguir.
Ao descrever o contrato de serviço, o autor sinaliza que uma
parte exterioriza os seus poderes de forma definida, limitada em
seu modo e em sua forma, sendo esse o objeto transferido à segunda
parte58. O poder que é exteriorizado, diferentemente de um objeto

54 MCKENDRICK, Ewan. Contract law: Text, Cases, and Materials. 5 ed. Oxford
University Press, 2012. p. 929.
55 No original: a person’s employment is usually one of the most important things in
his or her life. It gives not only a livelihood but an occupation, an identity and a sense
of self-esteem’. In: MCKENDRICK, Ewan. Contract law: Text, Cases, and Materials. 5
ed. Oxford University Press, 2012. p. 929.
56 BEATSON, Jack; BURROWS, Andrew; CARTWRIGHT, John. Anson’s law of contract.
29 ed. Oxford University Press, 2010. p. 578.
57 BEATSON, Jack; BURROWS, Andrew; CARTWRIGHT, John. Anson’s law of contract.
29 ed. Oxford University Press, 2010. p. 578.
58 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1728.

90 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
externo que pode ser fisicamente apropriado, é parte do direito à
integridade pessoal, física e psicológica59 do contratante, o que enseja
dúvidas acerca da aplicabilidade de um direito de propriedade para
essas transferências.
A afirmativa de Benson é clara: “esses poderes são a pessoa”60
e, como um todo, não podem ser objeto de alienação sem que se
aliene a pessoa, ela ou ele mesmo, o que, bem reconhece Benson,
seria moralmente impossível61. Pensar em uma apropriação desses
poderes somente seria viável de uma forma limitada, tanto qualitativa
como quantitativamente: deve-se pensar em um serviço ou trabalho
específico que, a partir de então, torna-se distinto da totalidade de
poderes que compõem aquele indivíduo, ora contratante.
O ponto nevrálgico para a adequação da teoria de Benson a essa
desafiadora situação parece residir na diferenciação, já trabalhada,
acerca da aquisição originária e derivada: diante de obrigações
oriundas de contratos de serviços, não se poderia cogitar uma aquisição
originária de propriedade. Nessa hipótese, a performance somente se
tornaria um objeto passível de transferência de titularidade em uma
aquisição consensual e transacional, isto é, por meio do contrato62.
O serviço, argumenta Benson, torna-se-ia uma “coisa” que,
então, poderia ser possuída por alguém63. Nesse passo, dizer que uma
das partes adquire um direito de propriedade sobre o serviço de outra
pessoa, na visão do autor, significa apenas dizer que foi transferida a

59 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1728.
60 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1728.
61 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1729.
62 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1728.
63 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1729

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 91


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
autoridade de determinar suas ações ou de expressar os seus poderes
de uma limitada, estipulada pelo contrato64.
Por isso, afirmar que o contrato transfere um direito à
propriedade sobre um serviço alheio não significa dizer que haverá o
direito, a priori, à execução forçada daquele serviço, mas tão somente
que, no momento da formação contratual, o contratante já detém um
direito de propriedade derivada de um serviço, de forma limitada, nos
estritos termos estipulados pelo contrato.

CONCLUSÃO

Diante do exposto, pôde-se concluir que a teoria proposta por


Benson se mostra aplicável aos contratos de serviços. Nesse sentido,
verificou-se que a mais adequada interpretação de “ownership” é, de
fato, propriedade, sendo que a expressão se diferencia de “property”
somente no que se refere ao seu modo de aquisição: aquela refere-se à
aquisição derivada, por intermédio do contrato, enquanto esta traduz-
se na aquisição originária.
Assim, pôde-se apurar que o contrato, na perspectiva de
Benson, figura-se como um meio de transferência de propriedade
que ocorre desde o momento da sua formação, independentemente
da performance, sendo o substrato dessa transferência a substância
da consideração, que pode ser um objeto ou um serviço. Caso seja
um objeto, a interpretação torna-se mais simples, afinal, tem-se algo
externo, corpóreo, que pode ser fisicamente apreendido. Caso seja
um serviço, isto é, no caso de um contrato de prestação de serviços, o
exame deve ser ainda mais minucioso.
Nessa hipótese, tem-se que, para a Benson, a parte deve
exteriorizar os seus poderes de forma definida, limitada em seu modo
e em sua forma, sendo esse o objeto transferido à segunda parte65. Isso

64 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1729
65 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1728.

92 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
porque esse poder que é exteriorizado é parte do direito à integridade
pessoal, física e psicológica. Nesses casos, portanto, em que “esses
poderes são a pessoa”66, não é possível cogitar que o serviço, em si, seja
objeto da transferência porquanto, caso fosse esse o caso, estar-se-ia
transferindo a própria pessoa67. Por isso, aponta o autor que, em um
contrato de serviço, a ação contratada torna-se distinta da totalidade
de poderes do contratante, equiparando-se a uma “coisa” que, então,
pode ser possuída por alguém68.
Observou-se, deste modo, que dizer que uma das partes adquire
um direito de propriedade sobre um serviço da outra, na visão de
Benson, significa apenas dizer que foi transferida a autoridade de
determinar suas ações ou de expressar os seus poderes de uma forma
limitada, estipulada pelo contrato. Por fim, diante de obrigações
derivadas de contratos de serviços, não se poderia cogitar de
uma aquisição originária de propriedade já que, nessa situação, a
performance somente se tornaria um objeto passível de transferência
de titularidade em uma aquisição consensual e transacional, isto é,
por meio do contrato.

66 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1728.
67 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1729.
68 BENSON, Peter. Contract as a Transfer of Ownership. Wm. & Mary L. Rev. 2007. p.
1693-1731. p. 1729

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 93


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
REFERÊNCIAS

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94 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
PETER BENSON E AS DUAS FORMAS DA IMPLICATION
NAS JURISDIÇÕES DO COMMON LAW

Pedro Victor Silva de Andrade

INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva examinar a concepção da implication1,


proposta pela teoria transacional de Peter Benson como alternativa à
teoria da regra-padrão, analisando especificamente as duas formas ou
modalidades da inferência de termos e condições implícitos que dela
defluem.
No contexto do common law, a teoria da regra-padrão defende que
a integração de lacunas relativas à execução dos contratos possa ser
realizada com recurso a hipóteses sobre a vontade ou a racionalidade
das partes ou a outros critérios estranhos ao texto contratual, como
a moralidade das promessas, a maximização da utilidade ou a
distribuição equitativa dos ônus do contrato. Sustenta-se que haveria
uma opção tácita das partes pela aplicação dessas regras-padrão
quando se omitem em regulamentar expressamente as consequências
de determinada circunstância que possa afetar a execução contratual.
Benson se contrapõe a essa ideia, ao sustentar que a teoria da
regra-padrão não oferece uma justificação adequada para a solução
de disputas relacionadas à execução contratual. Argumenta contra a
própria concepção de que o contrato válido poderia encerrar lacunas, e
aduz que a sua interpretação não pode ser feita com base em quaisquer
critérios estranhos à específica relação contratual. Defende que os
termos e condições implícitos ao arranjo contratual, eventualmente

1 Utilizamos a terminologia técnica do fenômeno no common law para deixar claro


o objeto a que o artigo se refere. Pode-se traduzir implication como a interpretação
e a integração judicial do contrato por meio da inferência de termos e condições
implícitos. No desenvolvimento do trabalho, a terminologia técnica própria do direito
comum será por vezes traduzida de maneira não literal, com alguma aproximação
de termos mais familiares, buscando tornar a leitura mais confortável aos filiados ao
nosso direito continental.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 95


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
necessários à solução de uma disputa a respeito da execução do
contrato, devem ser inferidos por meio do chamado teste objetivo, isto
é, a partir da perspectiva do destinatário razoável. Argumenta também
pela existência de uma divisão do trabalho entre os termos expressos
e implícitos: aqueles denotariam as escolhas contingentes das partes
e estes o sentido do justo e do razoável necessário à interpretação
adequada do contrato.
Para atender a essa exigência, e com base em precedentes
judiciais dos tribunais britânicos e norte-americanos, o autor propõe
que os termos e condições implícitos devam refletir a intenção presumida
e a necessidade da transação. Benson não esclarece de maneira ostensiva
se se trata de duas nomenclaturas distintas para um mesmo critério
de integração ou, ao contrário, de dois critérios qualitativamente
distintos para a tarefa. Mas o exame da jurisprudência apresentada
pelo autor evidencia que os tribunais trabalham efetivamente com
dois tipos (ou modalidades) distintos de implication, correlatos a cada
qual desses conceitos. Há uma primeira situação em que o tribunal
apenas expõe ou revela a intenção efetiva das partes com a transação,
em que o recurso à razoabilidade é fraco e a inferência, meramente
formal; e há uma segunda situação em que a intenção plasmada no
contrato não é capaz de oferecer a solução adequada à sobrevivência
(isto é, à necessidade) da transação. Nessa última circunstância,
o recurso à razoabilidade é mais forte e a solução conferida pelo
julgador é material ou substancial, incumbindo-lhe, inclusive,
escolher, dentre alternativas possíveis, qual o instrumento adequado
ao restabelecimento da relação contratual (uma garantia implícita,
a modulação dos efeitos do descumprimento de uma das prestações
etc.).
O trabalho que segue está dividido em três partes. A primeira se
dedica a expor os fundamentos principais da teoria da regra-padrão
e da teoria transacional de Peter Benson a respeito da implication.
A segunda examina os conceitos operativos de intenção presumida e
necessidade da transação à luz da jurisprudência trazida pelo autor. A

96 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
última seção apresenta as duas formas da implication nas jurisdições
do common law e suas respectivas características.
O argumento proposto instiga à investigação mais aprofundada
a respeito das condições, dos parâmetros e dos limites da
discricionariedade que tem o juiz para deduzir termos implícitos do
tipo forte ou substancial, ponto este que não será explorado adiante
por escapar aos limites espaciais do artigo e por demandar uma
análise mais consistente e sistemática de doutrina e jurisprudência
nas jurisdições de direito comum.

1. A REGRA-PADRÃO E A ALTERNATIVA
PROPOSTA PELA TEORIA TRANSACIONAL

A resposta à pergunta sobre se ao julgador é dado inferir termos


implícitos nos contratos privados, e em que hipóteses e medida
ou extensão ele estaria autorizado a fazê-lo, traz à tona o tema da
implication, enfrentado por Peter Benson no capítulo 3 da obra “Justice
in Transactions”.
Nas jurisdições do common law, a doutrina da implication teria
sido cunhada originalmente com o objetivo de oferecer uma resposta
normativa adequada a situações nas quais a execução contratual é
impossibilitada ou dificultada por circunstâncias supervenientes,
não previstas no momento da contratação.2 Atualmente, a doutrina
assume um escopo mais amplo, norteia a solução de disputas judiciais
relativas à execução contratual, compreendendo o descumprimento
de prestação ou deveres anexos, impossibilidade superveniente,
frustração dos fins do contrato. A inferência de termos implícitos
com o sentido de delimitar, qualificar, especificar o conteúdo das

2 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 146. O autor relata que a implication
e as teorias da impossibilidade e da frustração do contrato foram cunhadas na
Inglaterra, a partir dos leading cases Taylor v. Caldwell (1863) e Krell v. Henry (1903),
com o objetivo de amenizar os impactos da aplicação draconiana da interpretação
literal das cláusulas e obrigações contratuais.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 97


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
obrigações assumidas pelas partes se faz possível sempre que o juiz
verificar que os termos expressos não oferecem a resposta completa,
necessária ou adequada à ocasião posta à sua apreciação. Trata-se,
portanto, de um critério de interpretação (aqui utilizada no sentido
clássico de fixação do sentido e alcance) do contrato e das obrigações
nele expressas de forma abstrata à luz das contingências concretas da
execução contratual.
A compreensão prevalecente a respeito da implication seria
expressada pela “teoria da regra-padrão” (default-rule paradigm).
Segundo essa ideia, nenhum contrato é capaz de prever expressamente
a solução para toda e qualquer contingência superveniente, ou
disputa que vier a se instaurar acerca de sua execução. As limitações
naturalmente inerentes à racionalidade ou à economia das negociações
contratuais fazem com que os contratantes optem por deixar de prever
a solução adequada a algumas dessas contingências, o que daria origem
a lacunas contratuais.3 Ocorrendo, na prática, uma dessas hipóteses,
caberá ao julgador oferecer uma solução normativa fundamentada e
inspirada em critérios estranhos à relação contratual, tal qual expressa
pelas partes. Para a doutrina prevalente, seria o caso de o julgador
perquirir qual teria sido a “vontade hipotética” das partes, se tivessem
cogitado de regulamentar expressamente a contingência efetivamente
verificada.4 Mas há a sugestão de outros critérios para inferir a regra-
padrão: preservação da moralidade das promessas, racionalidade da
barganha, distribuição eficiente e equitativa dos ônus e benefícios do
contrato etc.5

3 COLEMAN, Jules; HECKATHORN, Douglas; MASER, Steven. A Bargaining Theory


approach to default provisions and disclosure rules. Harvard Journal of Law and Public
Policy. Cambridge, v. 12, n. 3, 1989, pp. 639-709, p. 640.
4 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 125.
5 FRIED, Charles. Contract as Promise. A theory of contractual obligation. 2a Ed. New
York: Oxford University Press, 2015, p. 73; COLEMAN, Jules; HECKATHORN, Douglas;
MASER, Steven. A Bargaining Theory approach to default provisions and disclosure
rules. Harvard Journal of Law and Public Policy. Cambridge, v. 12, n. 3, 1989, pp. 639-
709, p. 648; POSNER, Richard. Let us never blame a contract breaker. Michigan Law
Review. Ann Arbor, vol. 107, n. 8, jun-2009, pp. 1349-1363, p. 1361.

98 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Comumente, afirma-se que os contratantes teriam a
oportunidade de prever as consequências para todas as situações
possíveis de descumprimento ou impossibilidade de execução do
contrato. Assim, na medida em que deixam de fazê-lo, aderem
tacitamente à regra-padrão a respeito do contexto, da condição ou
especificidade em causa.6 As vertentes dogmáticas tributárias do
utilitarismo argumentam também que a omissão das partes refletiria
a opção mais eficiente para uma dada situação, faltando justificação
para modificá-la judicialmente.7 Outras propostas enfatizam o papel
do contexto e da pragmática da comunicação nessa empreitada8, ou
oferecem um arranjo conceitual sofisticado, fundamentado no exame
analítico da racionalidade das partes e possíveis interessados em cada
etapa da dinâmica contratual.9
Charles Fried, propositor da teoria do contrato como promessa,
parece adotar efetivamente uma perspectiva mista entre as alternativas
promissória e utilitária:

Assim, no procedimento de preencher lacunas, é


natural olhar para o contrato propriamente dito
para obter algum senso da natureza e da extensão
da empresa comum. Como a real intenção
(hipoteticamente) está ausente, o tribunal respeita
a autonomia das partes o tanto quanto possível,
construindo uma alocação de ônus e benefícios
que pessoas razoáveis teriam empreendido nesse
tipo de arranjo. (...) Essa é uma investigação com
inevitáveis elementos normativos: partes “razoáveis”

6 COLEMAN, Jules; HECKATHORN, Douglas; MASER, Steven. A Bargaining Theory


approach to default provisions and disclosure rules. Harvard Journal of Law and Public
Policy. Cambridge, v. 12, n. 3, 1989, pp. 639-709, p. 641.
7 POSNER, Richard. Let us never blame a contract breaker. Michigan Law Review. Ann
Arbor, vol. 107, n. 8, jun-2009, pp. 1349-1363, p. 1361.
8 KRAMER, Adam. Implication in Fact as an instance of contractual interpretation.
The Cambridge Law Journal. Cambridge, vol. 63, n. 2, jul-2004, pp. 384-411, p. 386.
9 COLEMAN, Jules; HECKATHORN, Douglas; MASER, Steven. A Bargaining Theory
approach to default provisions and disclosure rules. Harvard Journal of Law and Public
Policy. Cambridge, v. 12, n. 3, 1989, pp. 639-709, p. 707.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A| 99


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
não perseguem objetivos meramente racionais; o
fazem constritos por normas de justiça e honestidade.
Finalmente, esse recurso a princípios distributivos
para preencher as lacunas não ameaça sobrepujar o
princípio promissório, pela simples razão de que as
partes são livres para controlar o sentido e a extensão
da sua relação pelo próprio contrato.10

A questão é que a teoria da regra-padrão encontra desafios tanto


no que diz respeito à sua justificação, na medida em que a norma
default tem que buscar abrigo teórico em elemento estranho à vontade
das partes, quanto no que concerne à metodologia da integração,
controvertendo-se sobre os graus de generalidade e a idealização
adequadas à concepção de uma regra-padrão.11
Benson argumenta contrariamente à teoria da regra-padrão
afirmando, com razão, que as suas principais vertentes não oferecem
uma justificação adequada para a heterointegração que propõem. Se

10 FRIED, Charles. Contract as Promise. A theory of contractual obligation. 2a Ed. New


York: Oxford University Press, 2015, p. 73. No original: “Thus in filling the gaps it is
natural to look to the agreement itself for some sense of the nature and extent of the common
enterprise. Since actual intent is (by hypothesis) missing, a court respects the autonomy
of the parties so far as possible by construing an allocation of burdens and benefits that
reasonable persons would have made in this kind of arrangement. (...) This is, as I argued
earlier, an inquiry with unavoidably normative elements: “Reasonable” parties do not
merely seek to accomplish rational objectives; they do so constrained by norms of fairness
and honesty. Finally, this recourse to principles of sharing to fill the gaps does not threaten
to overwhelm the promissory principle, for the simple reason that the parties are quite free
to control the meaning and extent of their relation by the contract itself.”
11 CHARNY, David. Hypothetical Bargains. Michigan Law Review. Ann Arbor, vol. 89,
n. 7, 1991, pp. 1815-1879, p. 1816. O autor afirma, ainda, que a concepção de cada
julgador a respeito da natureza da regra-padrão adequada a cada caso pode variar
conforme a dimensão da generalidade, que se refere ao grau de particularização da
regra para os sujeitos em disputa, e da idealização, com respeito à circunstância de
o julgador conceber os afetados pela regra-padrão como partes idealizadas ou como
pessoas concretas e contextualizadas. A conjunção dessas duas dimensões daria
ensejo a quatro hipóteses paradigmáticas para a concepção da regra -padrão: I)
escolha da melhor regra para dado tipo de transação (geral e idealizada), II) escolha da
regra que as partes teriam provavelmente eleito (geral e não-idealizada), III) escolha
da regra que as partes nessa situação teriam eleito se o fizessem de forma racional e
perfeitamente informada (particular e idealizada) e IV) escolha da regra que as partes
nesse tipo de transação teriam provavelmente eleito no curso normal das coisas (geral
e não-idealizada).

100 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
as partes optaram por não regulamentar a contingência que ameaça
a execução contratual, a autonomia privada não pode ser alçada a
fundamento imediato da atividade interpretativa. Mas a “vontade
presumida” não é equivalente teórico à vontade real das partes e não
pode ser a ela equiparada sob o ponto de vista da justificação, para
suprir eventuais lacunas do contrato.12 O critério da racionalidade da
negociação — em que se indaga qual regra seria racional às partes
regulamentarem, tivessem cogitado a contingência — também
padece da mesma artificialidade da “vontade presumida”. É certo que
os contratantes não atuam de forma perfeitamente racional, mas,
antes, com racionalidade limitada (bounded rationality). Ademais,
nada assegura que a escolha racionalmente limitada seria realmente
feita; trata-se ainda de uma presunção. O mesmo pode ser dito acerca
dos critérios da escolha eficiente, da melhor distribuição de riscos e
benefícios, da preservação da moralidade da promessa: nenhum deles
oferece uma justificação teórica adequada para a interferência do juiz
sobre a relação contratual e nenhum deles é capaz de assegurar a
certeza e a previsibilidade pressupostas pelo argumento em favor de
uma norma default.13
Benson propõe solucionar esse impasse a partir da premissa
de que os termos implícitos não poderiam ser inferidos da vontade
das partes ou de valores morais ou de utilidade externos ao contrato.
Deveriam ser deduzidos do arranjo contratual elementar, composto
pela promessa e pela consideration14, suas circunstâncias e contexto de
uso, o que, segundo ele, exaure a única base possível e legítima de
justificação da exigibilidade das obrigações contratuais.

12 Essa circunstância encontra excelente desenvolvimento analítico em COLEMAN,


Jules; HECKATHORN, Douglas; MASER, Steven. A Bargaining Theory approach to
default provisions and disclosure rules. Harvard Journal of Law and Public Policy.
Cambridge, v. 12, n. 3, 1989, pp. 639-709, p. 641.
13 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 126.
14 O termo foi mantido em inglês pela falta de uma tradução consolidada. A sua
definição técnica vem na sequência.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A101


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Para formular a sua proposta, o autor parte da ideia, desenvolvida
no primeiro capítulo de sua obra, de que o contrato é modo de
aquisição transacional (transactional acquisition), consubstanciado em
uma interação bilateral do tipo “promessa-por-consideração’’ (promise-
for-consideration).
Mais que o simples fato da promessa, a exigibilidade do contrato
teria como elemento essencial a consideration, a circunstância de as
partes se comprometerem, reciprocamente, a transferir uma à outra
algo de valor porque há uma promessa (ou ato) da outra parte em
sentido contrário.15 O que justifica a exigibilidade jurídica de uma
promessa é o fato de ela ter sido dada em consideração à promessa
da outra parte. Assim, a reciprocidade entre as promessas de oferta
e aceitação (quid pro quo), independentemente do valor nominal que
as respectivas prestações venham a assumir, é tanto o fundamento de
legitimidade do contrato, da aquisição transacional, como, também,
da concretização dessa aquisição já no momento da formação do
contrato, ou seja, independentemente da execução.16
Sob esses parâmetros, Benson concebe o contrato bilateral,
regularmente formado, como modo em si bastante para a
concretização da transferência transacional entre as partes e,
consequentemente, como justificação teórica suficiente tanto para
a exigibilidade das prestações, como para a incidência de remédios
contratuais e hipóteses de resolução. A parte que deixa de cumprir a
sua prestação ou que de qualquer modo frustra a execução do contrato
interfere ativamente no objeto cuja titularidade ela mesma havia
transferido à outra parte, no momento da contratação. Nesse sentido,
a violação do contrato se assemelha à violação da propriedade alheia.
A justiça comutativa própria da relação promessa-por-consideração
é justificação suficiente; não é preciso recorrer a outros argumentos
de ordem moral (como a moralidade das promessas) ou utilitarista

15 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 47.
16 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 64.

102 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
(como a melhor eficiência na distribuição dos riscos do contrato) para
justificar a recomposição coercitiva do interesse do contratante ao
objeto da consideration.17
A posição do autor acerca da implication reflete essa ideia
básica. Como dito, Benson considera que a solução para as contendas
a propósito das contingências enfrentadas na execução do contrato
deve ser sempre encontrada com base no arranjo contratual,
reputando ilegítima qualquer possibilidade de aplicação de critérios
de investigação da vontade hipotética das partes, de moralidade
promissória, de utilidade e eficiência, e de justiça distributiva.18
A rigor, portanto, a teoria transacional não considera que a
heterointegração proposta pela regra-padrão seja possível porque
pressupõe que o contrato não tenha, efetivamente, quaisquer lacunas
de sentido. E é do arranjo institucional do contrato, concebido como
uma relação bilateral do tipo “promessa-por-consideração”, que se
extraem os termos implícitos necessários à sua adequada execução.
Dessas premissas teóricas se extraem as seguintes consequências.
Por um lado, os termos implícitos meramente especificam o sentido
e o alcance das obrigações contratuais à luz da relação bilateral
tipicamente contratual, a promessa-por-consideração, não deixando
espaço para a inserção, indevida, de valores estranhos ao contrato,
e oferecendo, a cada parte, nada diverso do valor inteiro e justo
da prestação convencionada.19 Por outro lado, essa especificação
das obrigações de uma parte exclusivamente à luz das obrigações
recíprocas e contrapostas (consideration), operação pautada pela
bilateralidade e reciprocidade do contrato, evidencia um sentido de
razoabilidade na interpretação da avença, em clara contraposição à
racionalidade e, consequentemente, unilateralidade que inspira as

17 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 66.
18 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 127.
19 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 131.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A103


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
propostas da regra-padrão voltadas para a vontade presumível das
partes do contrato.20
De acordo com o autor, a interpretação e a inferência de
termos implícitos segundo a razoabilidade tomam por parâmetro o
chamado “teste objetivo” (objective test), critério de análise da relação
contratual e do impasse presente na execução que busca a percepção
não do arranjo contratual ideal e abstrato, mas, sobretudo, concreto
e contextualizado. Para essa finalidade, o teste objetivo toma em
consideração, cumulativamente: i) a visão do “destinatário razoável”
do contrato, ii) a respeito da prestação que lhe foi prometida, iii)
no sentido que efetivamente motivou a sua própria promessa (isto
é, da consideration razoavelmente ponderada), iv) considerando as
circunstâncias e o contexto da contratação, v) bem como os fatos e
presunções conhecidos e razoavelmente disponíveis para as partes.21
Todas essas considerações remeteriam a uma possível “divisão
do trabalho” entre o arranjo institucional do contrato, dado pela lei, e
as escolhas contingentes das partes, presentes nas cláusulas expressas,
no seguinte sentido:

É dado às partes escolher o conteúdo contingente,


mas não o caráter do tipo de relação que determina a
caracterização jurídica do contrato e os efeitos da sua
escolha. Esse mesmo arranjo relacional determina
se algo conta como um termo contratual expresso
e operativo e determina também a adequação de
termos e condições implícitas para uma transação
em particular: todos os termos, expressos e implícitos,
têm sua existência e sentido apenas enquanto aspectos
dessa relação promessa-por-consideração construída

20 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 132.
21 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 112. Segundo o autor, os mesmos
critérios do razoável e do teste objetivo são aplicáveis às hipóteses de impossibilidade
e frustração do contrato e descumprimento de deveres decorrentes da boa-fé (pp. 144
e 156).

104 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
de acordo com o teste objetivo. Ela oferece um ponto
de vista unificado para a formação e interpretação do
contrato e para o fenômeno dos termos implícitos.22

Benson propõe, enfim, como alternativa radical à teoria da regra-


padrão, que os termos implícitos não resultam nem da investigação
da vontade hipotética das partes, nem das suas escolhas contingentes,
expressas nas prestações prometidas, nem, tampouco, da leitura do
julgador, a partir de critérios de justiça eleitos discricionariamente.
Resultam, na verdade, do arranjo institucional relacional do contrato,
interpretado segundo a razoabilidade e o teste objetivo, de maneira
a especificar as obrigações de cada parte e a elas assegurar o valor
inteiro e justo de suas prestações, e nada além disso.
Ademais, a diferença de posição entre as vertentes da regra-
padrão e a teoria transacional reconduz, como visto, a uma distinção
essencial de perspectiva quanto ao critério de justificação do
instituto da implication e, mais fundamentalmente, de justificação da
exigibilidade do próprio instituto do contrato.
Na regra-padrão, a integração do sentido do contrato se pauta
na racionalidade real ou presumida das escolhas contingentes que
cada parte fez ou teria feito, caso se deparasse com a circunstância
imprevista; ou, ainda, na racionalidade, na eficiência ou na utilidade
(em sentido amplo) vislumbrada pelo julgador naquela situação, ou
naquela ordem de situações.23

22 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 132. No original: “It is up to the
parties to choose their preferred contents but not the character of the kind of relation that
determines the contractual juridical characterization and effects of their choice. This
same relational framework determines whether something counts as an operative express
contractual term in the first place but also the appropriateness of implying terms and
conditions for a particular transaction: all terms, both express and implied, have their
existence and meaning only as aspects of this promise-for-consideration relationship
construed in accordance with the objective test. It provides a unified standpoint for contract
formation, interpretation and implication”.
23 CHARNY, David. Hypothetical Bargains. Michigan Law Review. Ann Arbor, vol. 89,
n. 7, 1991, pp. 1815-1879, p. 1816.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A105


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Mas, segundo a teoria transacional, a integração do sentido
do contrato diante de situações ou obstáculos não expressamente
regulados pelas partes deve se conduzir pela máxima da razoabilidade.
Seu parâmetro de análise não é a racionalidade ou as escolhas das
partes, mas a relação contratual propriamente dita e o específico
arranjo contratual adotado: a reciprocidade, a codependência, o
contexto e as circunstâncias das promessas recíprocas dos contratantes.
Seu fundamento de legitimidade não é (ao menos diretamente) o
exercício da autonomia moral, ou a busca da máxima utilidade nas
relações privadas, mas, apenas, a preservação do contrato como
modo legítimo de os particulares transferirem e adquirirem pelo meio
representacional das transações.

2. OS CRITÉRIOS OPERACIONAIS DA TEORIA


TRANSACIONAL E A PRÁTICA JURÍDICA A RESPEITO

Conceitualmente, a teoria transacional considera que a


interpretação do contrato e a identificação do sentido dos termos
implícitos se deduzem do arranjo institucional consubstanciado
na relação promessa-por-consideração construída de acordo com
o princípio da razoabilidade e com o teste objetivo. Peter Benson
defende que quando o tribunal infere termos e condições implícitos
da relação contratual, o que faz é se valer de um sentido objetivamente
construído da específica transação. Consequentemente, considera
que as partes não devam ser razoavelmente jungidas aos termos
expressados senão em conjunção com dados termos ou condições
não escritos no contrato.24 Na imaginada “divisão do trabalho”, os
primeiros expressam a racionalidade dos contratantes e os segundos
a razoabilidade da específica relação contratual.
Concretamente, partindo-se desse pressuposto, o processo de
inferência de termos implícitos seria realizado por meio do recurso

24 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 133.

106 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
às ideias de intenção presumida (também denominada intenção da
transação) e de necessidade transacional. Para entender melhor o
significado desses conceitos, e sobretudo a diferença entre a ideia que
encerram e aquela praticada pela teoria da regra-padrão, recorramos
à explicação oferecida pelo autor:

(...) a intenção presumida não representa o que cada


parte, ou mesmo ambas as partes em conjunto,
teriam (provável ou hipoteticamente) intencionado
se tivessem abordado expressamente o significado do
evento ou da circunstância que afeta a performance.
Intenção presumida também não é um critério
secundário de substituição para a aproximação da
vontade subjetiva desconhecida das partes ou um
dispositivo para a imposição de normas e valores
extracontratuais em um assunto a respeito do qual
o silêncio das partes importe simples ausência de
acordo. Antes, a intenção presumida se refere àquilo a
respeito do que as partes de um dado contrato devam
razoavelmente ter convergido porque necessário para
evitar a falta de consideração no sentido mais amplo
de um evento ou circunstância na ou após a formação
que teria tornado o contrato inútil, desprovido do
justo valor ou benefício que pretendia contemplar
ou simplesmente absurdo. 25

25 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge:


The Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 133, 134. No original: “(...)
presumed intention does not represent what either party, or even both parties jointly, would
(probably or hypothetically) have intended if they had expressly addressed the significance
of the event or circumstance that affects performance. Nor is presumed intent a second-best
strand-in for the approximation of the parties unknown subjective consents or a device for
the imposition of extracontractual norms and values on a matter with respect to which
party silence signifies sheer absence of agreement. Rather, presumed intent refers to what
the parties to a given contract must reasonably have intended because necessary to avoid a
failure of consideration in the wider sense of an event or circumstance at or after formation
that would render the contract futile, devoid of fair value or benefit that it contemplated,
or plainly absurd”.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A107


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Em síntese, há duas ideias importantes nesse argumento que
posiciona a relação transacional como objeto preponderante do
esforço interpretativo e inferencial. Em primeiro lugar, ele busca
explicitar a condição ou circunstância razoável (aquela que poderia
ser deduzida por um destinatário razoável) e que se encontra implícita
ao objeto do contrato, qual efetivamente pretendido pelas partes. Em
segundo lugar, o argumento proposto pelo autor exige que o termo
ou a condição implícita, inferido pela interpretação judicial, seja de
tal ordem ou natureza que deva ser encampado necessariamente,
sob pena de todo o contrato se tornar um texto inócuo, absurdo, sem
sentido ou opressivo para ao menos uma das partes.26
Para ilustrar sua posição, o autor se refere a quatro precedentes
judiciais conhecidos do common law, em que ideias relacionadas às da
proposta transacional teriam sido tomadas em consideração.
No precedente britânico Kingston v. Preston (1773)27, Kingston,
representante comercial, pretendia a execução de contrato que previa
que Preston, dono do negócio, transferiria a ele mercadorias para
comércio contra o oferecimento de garantia. O demandante não havia
oferecido a garantia prometida, mas o contrato não continha cláusula
expressa condicionando o cumprimento da prestação de transferir
à obrigação de garantir. A jurisprudência que então prevalecia
pressupunha que o contrato bilateral obrigava uma parte a cumprir
sua prestação independentemente do cumprimento da prestação
adversa.28 O tribunal britânico, ao apreciar o caso, alterou a orientação
jurisprudencial que até então prevalecia e considerou que a obrigação
de Preston estaria implicitamente condicionada ao cumprimento
prévio da obrigação de Kingston, pois não faria sentido exigir que
aquele lhe transferisse a mercadoria sem o oferecimento prévio de
qualquer espécie de garantia. A decisão afirma que a dependência ou

26 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 134.
27 REINO UNIDO. COURT OF QUEEN’S BENCH. Kingston v Preston (1773) 2 Doug KB
689.
28 Conforme Paradine v. Jane (1647) (REINO UNIDO. COURT OF KING’S BENCH.
Paradine v. Jane (1647) EWHC KB J5).

108 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
independência das prestações de um contrato deveria ser inferida,
caso a caso, a partir da intenção da transação, que deve ser deduzida
do sentido e significado evidente das partes, levando em consideração
os termos expressos, o objeto da transação, a essência da avença.29
Presumiu-se, portanto, com base na qualidade das partes, nos termos
expressos, no objeto e na natureza do contrato em questão, que a
transação tenha tido a intenção de condicionar a transferência da
mercadoria à prestação prévia de garantia, pois do contrário uma das
partes ficaria submetida a todo o risco do negócio.
Em seguida, o autor considera o precedente britânico Boone
v. Eyre (1777)30, em que o demandante pedia a resolução por
inadimplemento de contrato de compra e venda de uma plantação
acompanhada de um grupo de escravos, situados nas Índias Orientais.
Pela aquisição, o demandado pagaria o preço inicial de 500 libras
esterlinas mais parcelas anuais e vitalícias de 160 libras. O demandado,
que havia deixado de pagar uma prestação anual, alegou que Boone
não possuía escravos no momento da contratação, razão pela qual não
poderia exigir a prestação contratual. Para o que importa à discussão
das cláusulas implícitas, interessa ter o tribunal considerado que
o inadimplemento fora trivial, limitado a um aspecto menor do
contrato, e assim não autorizaria a resolução da avença. Afirmou-se, na
oportunidade, que quando a inexecução se limita a um aspecto restrito
e não alcança o “todo” (a “raiz” ou a “fundação do contrato”, segundo
Lord Blackburn em The Mersey Steel and Iron Co. v. Naylor, Benzon and
Co.31), e o prejuízo pode ser compensado adequadamente por meio
pecuniário, a parte inocente não deve ser desonerada de cumprir sua
obrigação, sem prejuízo do seu direito ao ressarcimento pecuniário.

29 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The


Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 135.
30 O caso Boone v. Eyre é referenciado diretamente por BENSON, Peter. Justice in
Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The Belknap Press of Harvard
University Press, 2019, p. 137 e em outros trabalhos como Boone v. Eyre (1777) 1 H Bl
273.
31 REINO UNIDO. COURT OF APPEALS. The Mersey Steel and Iron Co. v. Naylor,
Benzon and Co. (1884) 9 App. Cas. 434, 443.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A109


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
O tribunal presumiu, enfim, que a intenção da transação concebida
pelas partes não fora prejudicada pelo inadimplemento da anuidade,
o que justificaria a restauração do prejuízo independentemente da
preservação do contrato.
O terceiro precedente mencionado pelo autor é o caso norte-
americano Jacob & Youngs Inc. v. Kent (1903)32. Nessa demanda, a
empreiteira Jacob & Youngs Inc. requeria o pagamento da remuneração
avençada com o demandado pela edificação da residência deste.
O demandado justificava a recusa em fazer o pagamento alegando
que o contrato previra o emprego de uma marca específica de
encanamento na construção, o que a empreiteira não havia observado.
O tribunal reputou que o demandante fazia jus à remuneração, pois
o inadimplemento havia sido trivial e havia demonstrado disposição
em comprovar que o encanamento seria equivalente ao avençado, não
acarretando efetivo prejuízo ao tomador do serviço. Na mesma linha
do julgado anterior, a decisão afirma que “a intenção não explicitada
pode ser presumida diante do que é provável e razoável” e que, ausente
cláusula expressa, não seria razoável se supor que as partes tenham
a intenção de que todos os termos do contrato sejam hipóteses de
resolução, especialmente quando o significado da omissão quanto à
obrigação do empreiteiro se revela severamente desproporcional à
opressão representada pelo não pagamento da remuneração que fora
avençada em seu favor.33 A decisão favorece a preservação da relação
contratual face a um inadimplemento trivial, mas também pondera
a dificuldade envolvida no eventual desfazimento da construção e
a grande significação da remuneração para o orçamento anual da
empreiteira. Em síntese, o tribunal norte-americano, considerando
a desproporcionalidade entre o inadimplemento vindicado e a
remuneração do contratado, inferiu à transação um termo implícito

32 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. NEW YORK COURT OF APPEALS. Jacob & Youngs,
Incorporated, v. George E. Kent 230 N.Y. 239; 129 N.E. 889; 1921 N.Y. LEXIS 828; 23
A.L.R. 1429.
33 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 138.

110 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
que atenuaria o efeito da disposição das partes acerca do encanamento
que deveria ser utilizado na edificação.
O último caso citado pelo autor para explicitar a aplicabilidade
concreta da teoria transacional sobre os termos implícitos é o
precedente britânico The Moorcock (1889)34. Nesse caso, um grupo
de donos de navios cargueiros processava o proprietário de um
píer no rio Tâmisa, pedindo a reparação de danos decorrentes do
descumprimento do contrato de uso do local para a descarga de suas
mercadorias. Na operação, as embarcações haviam sido danificadas
pelo desnível do leito do rio, circunstância da natureza sobre a qual os
demandados alegavam não ter qualquer controle. O tribunal decidiu
que o contrato de uso do espaço pressupunha o descarregamento do
navio, o que permitiria inferir um dever de cuidado por parte dos
cedentes-proprietários, que deveriam ter notificado os cessionários
sobre o perigo ou ao menos a ausência de inspeção a tal respeito.
A decisão afirma que se tal obrigação não fosse presumida, os
demandantes estariam simplesmente “adquirindo uma oportunidade
de perigo”, o que não satisfaria os requisitos mínimos de uma relação
contratual bilateral.35

3. INTENÇÃO PRESUMIDA, NECESSIDADE TRANSACIONAL


E AS DUAS FORMAS DA IMPLICATION

Resumindo os elementos conceituais comuns aos quatro


julgados mencionados acima a propósito da inferência de termos e
condições implícitos aos contratos, Peter Benson afirma ser razoável
presumir que as partes de qualquer relação contratual tenham
pretendido conferir ao contrato todo o significado que seja necessário
para evitar a falta da consideration no momento da execução, o que
se traduz concretamente como tornar a execução inútil, removendo
do contrato qualquer valor ou benefício, tornando-o opressivo para

34 REINO UNIDO. COURT OF APPEAL. The Moorcock (1889) 14 PD 64.


35 BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law. Cambridge: The
Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. 141.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A111


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
uma das partes, ou simplesmente o tornando absurdo. A necessidade
dos termos e condições implícitos na relação contratual, insiste
o autor, não se refere ao que se faça preciso para a execução física
das prestações ou para o aprimoramento do contrato. Não se deve
pretender justificar tal inferência nas escolhas hipotéticas das partes,
de acordo com seus critérios de racionalidade, ou em parâmetros de
justiça estranhos à relação contratual concretamente considerada.
O exercício dedutivo judicial deve se satisfazer com explicitar aquilo
que o contrato realmente significa, o que abrange tanto o juízo pela
necessidade ou não de se inferir um termo implícito como o juízo
relativo ao conteúdo que lhe deva ser atribuído.
Essa dualidade do exercício do trabalho inferencial necessário
para expressar adequadamente o significado do contrato reflete a
dualidade dos conceitos propostos por Benson a propósito dos termos
implícitos. Verifica-se que a inferência de termos implícitos pode
se pautar em uma mera especificação do sentido do contrato, tal qual
dado pelo arranjo contratual, ou, contrariamente, que pode ir além,
sugerindo termos e condições cujo conteúdo tem o efeito prático de
delimitar o espaço dentro do qual seja razoável o exercício da autonomia
contratual. Apenas nessa segunda hipótese é que se faria necessária
a atribuição de conteúdo substancial aos termos implícitos, o que no
primeiro caso já teria sido predeterminado.36 Paralelamente, essa
segunda modalidade envolveria considerações mais problemáticas
acerca dos limites da dedução de termos implícitos pelo julgador,
que deve se abster de interferir ou distorcer a relação contratual

36 Com base em critérios oriundos da teoria da comunicação (inferência pragmática),


Adam Kramer (Implication in Fact as an instance of contractual interpretation. The
Cambridge Law Journal. Cambridge, vol. 63, n. 2, jul-2004, pp. 384-411, p. 407) propõe
uma dicotomia diversa para a análise da implication: implication in fact x implication
in law. As duas formas de inferência aqui propostas se referem indistintamente
a circunstâncias de fato e de direito, mas não excluem o emprego de critérios
pragmáticos na interpretação do sentido dos contratos. Em outra perspectiva, lastreado
em diferenças entre as etapas da negociação, formação e execução do contrato, Jules
Coleman et al também defende uma classificação de ordem pragmática-contextual
para a regra-padrão (COLEMAN, Jules; HECKATHORN, Douglas; MASER, Steven. A
Bargaining Theory approach to default provisions and disclosure rules. Harvard
Journal of Law and Public Policy. Cambridge, v. 12, n. 3, 1989, pp. 639-709, p. 679).

112 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
estabelecida entre as partes. Daí a importância da adstrição, referida
pelo autor, ao mínimo necessário para evitar o esvaziamento do
sentido do contrato. Haveria, enfim, uma forma fraca e uma forma forte
de inferência ou atribuição de termos e condições implícitos como
correlatos aos requisitos conceituais propostos por Peter Benson para
a compreensão da implication: a intenção presumida e necessidade
transacional.
Sob a aqui denominada forma fraca da implication se alinharia a
resolução conferida aos dois primeiros precedentes mencionados pelo
autor: Kingston v. Preston e Boone v. Eyre. Veja: os termos implícitos
inferidos nesses casos se traduzem meramente na explicitação
da intenção da transação entre as partes. Na primeira situação, a
precedência cronológica da prestação da garantia com relação à
transferência da mercadoria para comercialização ao representante
da empresa é evidente tradução daquilo que as partes, conjuntamente,
efetivamente pretendiam com o contrato. No segundo julgado,
a decisão se refere à circunstância de que o inadimplemento da
anuidade, aspecto restrito de uma pluralidade de prestações previstas
no contrato, não abala o todo, a raiz ou a fundação da relação contratual,
e poderia ser remediado adequadamente pela via indenizatória. Em
ambos os casos, ao deduzir a condição implícita aos termos do próprio
contrato, o tribunal dá efetiva prevalência à intenção presumida da
transação e nada mais. Meramente recorta, do significado potencial
do texto contratual, o significado efetivo (e não hipotético) pretendido
pelas partes, conjuntamente, dada a natureza, o objeto e o contexto da
transação.
A situação é radicalmente diferente nos outros dois julgados
mencionados por Benson. A decisão do precedente britânico The
Moorcock não apenas explicita o que se encontrava implícito na
negociação das partes, mas vai além, estabelecendo uma obrigação de
garantia que não estava contemplada no contrato. Naquela situação,
o cedente se considerava irresponsável pelo risco decorrente da
inconstância do desnível do leito do rio e o cessionário sequer estava
ciente dessa circunstância. Não se pode dizer que se trate de mera

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A113


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
explicitação da intenção presumida da transação, pois é duvidoso que
ao menos o cedente tenha cogitado que a sua prestação contemplasse,
para além da cessão do espaço, também a obrigação de advertência
ou inspeção ao leito do rio. Essa obrigação foi efetivamente inventada
pelo tribunal como necessária à sobrevivência da transação, à execução
adequada do contrato como uma relação bilateral do tipo “promessa-
por-consideração”, o que é dizer, a fim de que as partes recebessem o
valor inteiro e justo das prestações convencionadas.
Jacob & Youngs Inc. v. Kent também encerra uma inferência que
vai além da intenção presumida da transação. Aqui, a limitação da
responsabilidade do empreiteiro pela desconformidade do material
empregado na obra, inferida pelo tribunal, contraria a disposição
expressa no contrato que estabelecia a marca a ser utilizada. Com
isso, determina que o dono da obra se contente com a edificação em
parâmetro técnico diferente daquele expressamente contratado. Não
há só uma relação, mas há sobretudo uma aparente incompatibilidade
entre a norma inferida e a intenção da transação, ou ao menos uma
contradição entre a norma inferida e a disposição expressa das
escolhas contingentes das partes.
Essa última espécie de inferência de termos e condições
implícitos não se satisfaz, portanto, com o critério da intenção
presumida. Aqui, é claro que era intenção dos contratantes utilizar a
marca de encanamento avençada. Diferentemente do que se vê nos
dois casos anteriores, a solução encontrada pelo tribunal não se pode
dizer deduzida do mero significado potencial do texto contratual, do
significado efetivamente pretendido pelas partes, dada a natureza, o
objeto e o contexto da transação. A questão aqui é que o significado
presumível tornaria o contrato — concebido como uma relação bilateral
promessa-por-consideração — absurdo ou no mínimo opressivo para
ao menos uma das partes.
Essa hipótese evidencia o elemento do razoável inerente
à implication e o específico modo por meio do qual ele encontra
uma aplicação forte e substancial na interpretação dos contratos:
a necessidade da transação. Nessa forma de inferência de termos

114 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
implícitos, o recorte realizado pelo julgador se traduz em mais que
a exposição de algo que já se encontrava oculto no contrato; traduz-
se efetivamente em um decote semântico que pode avançar inclusive
sobre a vontade das partes contratantes, efetivamente manifestada,
na tutela daquilo que se apresente como necessário e indispensável
à preservação da bilateralidade do contrato naquele tipo e contexto
específicos de contratação.
Justifica-se, por esses fundamentos, que os julgadores em The
Moorcock tenham inventado uma obrigação de garantia por parte dos
cedentes proprietários do píer sem que esta estivesse quer no horizonte
volitivo dos cedentes, quer no horizonte cognoscitivo dos cessionários.
Os proprietários consideravam o risco um fato da natureza, sobre o
qual não lhes poderia ser pressuposto controle. Para que a transação
não fosse opressiva, porém, fazia-se necessária a previsão dos deveres
implícitos de inspeção ou ao menos advertência, sem o que o uso
do píer para o desembarque de mercadorias redundaria em mera
“aquisição de uma oportunidade de perigo”.
Já na decisão de Jacob & Youngs Inc. v. Kent, os julgadores
deduziram um termo implícito que contrariou a cláusula expressa
no contrato, que previra o uso do encanamento de determinada
marca ou fabricante. O recurso à intenção presumida é claramente
insatisfatório para a anulação implícita dessa condição. A intenção da
transação compreendia, aqui, o uso do encanamento expressamente
avençado. É, de novo, o conceito da necessidade da transação, avaliada
na perspectiva do destinatário razoável (isto é, pelo “teste objetivo”),
que autoriza o julgador a ponderar que a exigência em questão
seria opressiva e desproporcional à prestação adversária, pois sua
execução literal, com a substituição do encanamento contratualmente
contemplado pelo efetivamente instalado, esvaziaria completamente
o benefício do contrato.
Importante destacar que o próprio Benson não cuida de
demarcar a distinção entre a intenção presumida e a necessidade
da transação, tratando os requisitos como indistintos. Não obstante,
parece ser apenas nessa segunda modalidade (que denominamos forte

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A115


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
ou substancial) que a implication reclama efetivamente a aplicação dos
conceitos de razoabilidade, em conformidade com o teste objetivo,
e de necessidade transacional, para salvar os contratos privados
da inutilidade, do completo desvalor ou da ausência de sentido. À
intervenção necessária se pressupõe ínsito o princípio da interferência
mínima do julgador, isto é, pressupõe-se que o juiz estabeleça o termo
ou condição minimamente necessário e indispensável a que o contrato
não seja frustrado. É também nessa hipótese que o julgador opera com
autorização e discricionariedade para eleger o específico conteúdo do
termo ou condição implícitos ao contrato ou um remédio alternativo
para a reparação do prejuízo, seja ele uma garantia adicional, a
modulação dos efeitos do descumprimento de uma cláusula contratual
etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Peter Benson contesta a teoria da regra-padrão a propósito


da inferência de termos e condições implícitos nos contratos
sustentando que a teoria não oferece uma justificação adequada para
o fenômeno da implication e que o contrato, uma vez constituído,
não pode apresentar quaisquer lacunas: sua interpretação, diante de
contingências imprevistas ou obstáculos à execução, deve ser sempre
feita com referência ao arranjo contratual concreto.
Essa compreensão se pautaria no critério da razoabilidade e
no parâmetro do teste objetivo. Seria também aplicável às hipóteses
de inexecução de prestação e deveres anexos, de impossibilidade
e de frustração do fim do contrato, pois necessária e indispensável
à atribuição a cada parte do valor inteiro e justo dos benefícios
contratualmente contemplados.
O autor antevê, assim, uma divisão do trabalho entre os termos
expressos e os termos implícitos ao contrato, sendo os primeiros
responsáveis por veicular as escolhas contingentes das partes,
pautadas por sua racionalidade, enquanto os segundos surgem como

116 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
expressão dos limites e condições impostos àquelas pelo arranjo da
relação contratual, orientados pela máxima da razoabilidade.
Concretamente, termos expressos devem ser interpretados e
termos implícitos devem ser inferidos em conformidade com a intenção
presumida e com a necessidade transacional, sob a perspectiva do
teste objetivo (isto é, de um destinatário razoável), de maneira a evitar
sobretudo que o contrato redunde em um documento inútil, absurdo,
opressivo ou desprovido de qualquer valor ou benefício para ao menos
uma das partes.
Das decisões dos precedentes judiciais mencionados pelo autor,
Kingston v. Preston (1773), Boone v. Eyre (1777), The Moorcock (1889) e
Jacob & Youngs Inc. v. Kent (1903), percebe-se que o critério da intenção
presumida basta à justificação das normas inferidas nas duas primeiras
soluções; e que as duas últimas não prescindem de um juízo acerca da
necessidade da transação, sob a perspectiva do teste objetivo.
O exame dos conceitos da teoria transacional e a análise dos
julgados referidos por Benson evidenciam que há uma forma fraca
e uma forma forte de inferir termos e condições implícitos nos
contratos. A inferência de termos implícitos pode se pautar em uma
mera especificação do sentido do contrato, ou, contrariamente, pode
ir além, ao sugerir termos e condições cujo conteúdo tem o efeito
prático de delimitar o espaço dentro do qual seja razoável o exercício
da autonomia contratual.
Na sua forma fraca, a inferência é formal, pois se realiza a partir
da delimitação do mero significado potencial do texto contratual,
buscando o significado efetivamente pretendido pelas partes, dada a
natureza, o objeto e o contexto da transação. Já a forma forte pressupõe
que o significado presumível tornaria o contrato inútil, despido de
valor, absurdo ou opressivo para ao menos uma das partes, e por
isso se vale do conceito de necessidade da transação, vista a partir
do destinatário razoável, como indispensável para evitar a frustração
completa da avença.
Apenas essa última modalidade de inferência promove a
integração ou a modificação substancial do conteúdo contingente do

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A117


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
contrato, do disposto expressamente pelas partes, em consonância
com o princípio da razoabilidade. Nela, caberá ao julgador eleger a
modalidade ou o instrumento mais adequado à veiculação da norma
implícita, que pode assumir a forma de uma garantia adicional, da
modulação de efeitos do descumprimento de uma cláusula expressa
e assim por diante.
Em síntese, o exame realizado indica que a inferência de termos
contratuais implícitos em sua forma fraca se satisfaz com o critério da
intenção presumida, e que apenas a forma forte demanda o recurso
à necessidade da transação, sob a perspectiva do teste objetivo e da
razoabilidade. A indicação dessa diferença conceitual desperta o
interesse acerca dos parâmetros e dos limites do trabalho inferencial
do tipo forte, mas Peter Benson não oferece considerações mais
detalhadas a esse respeito. Ainda assim, é possível divisar alguns
parâmetros elementares do exercício dessa competência, a partir da
teoria transacional: adstrição ao mínimo necessário à não frustração
da transação e orientação do julgador ou intérprete pelo princípio da
razoabilidade, em conformidade com o teste objetivo (i.e., a partir da
perspectiva do destinatário razoável).

118 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
REFERÊNCIAS

BENSON, Peter. Justice in Transactions. A theory of contract law.


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64.

REINO UNIDO. COURT OF KING’S BENCH. Paradine v. Jane


(1647) EWHC KB J5.

REINO UNIDO. COURT OF QUEEN’S BENCH. Kingston v Preston


(1773) 2 Doug KB 689.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A119


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
CONTRATOS DE ADESÃO NA TEORIA DE PETER BENSON

Henrique Rabelo Quirino

INTRODUÇÃO

Não há dúvidas de que os sistemas da common law e da civil law


possuem muito o que aprender e absorver um do outro, não apenas
no campo da dogmática jurídica, mas, também, no campo da teoria
do direito.
Em se tratando de teoria do direito contratual, um dos grandes
nomes que orientam o debate sobre os fundamentos da tutela jurídica
dos contratos na common law é o do jurista canadense Peter Benson,
atual professor da Faculdade de Direito da Universidade de Toronto.
A tese formulada e defendida por Benson, embora construída com
base na tradição da common law, em princípio, pode ser exportada
para sistemas que adotam outras tradições jurídicas. O fato, inclusive,
é reconhecido pelo próprio autor no Prefácio de sua principal obra,
“Justice in Transactions: a theory of contract law”:

(...) muito embora tenha sido construída para o


common law em um arranjo judicial, o caminho
traçado pela justificação pública proposta pode ser
relevante para o desenvolvimento de um enfoque
teórico similar para outros sistemas modernos
de direito contratual – notadamente, aqueles
pertencentes à tradição civilista.1

1 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge,


Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p.29, tradução
do autor. Texto original: “(...) even though it is worked out for the common law in a
judicial setting, the path taken by the proposed public justification may be relevant
in developing a similar theoretical approach for other modern systems of contract
law—most obviously, those belonging to the civilian tradition.”

120 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Sendo assim, na permanente busca pelo aprimoramento
da zetética do direito contratual, o presente artigo busca melhor
compreender os desafios apresentados pelos contratos de adesão
(standard-form contracts) à proposição de uma teoria do direito
contratual que se pretenda coerente, bem como avaliar as formas por
meio das quais Benson, em sua obra, enfrenta esses desafios.
Para tanto, a fim de melhor contextualizar o debate, o primeiro
capítulo traçará um panorama geral acerca das duas principais
vertentes teóricas que orientam o debate acerca da teoria do direito
contratual. Na sequência, o segundo capítulo apresentará, de
forma breve, a saída proposta por Benson a essa dicotomia, com a
apresentação de sua tese.
Avançando sobre a discussão central do trabalho, o terceiro
capítulo se destinará ao exame das principais dificuldades trazidas
pelos contratos de adesão à formulação de uma teoria íntegra do
direito contratual. Por fim, o mesmo capítulo se destinará a escrutinar
o tratamento oferecido por Peter Benson a esses desafios.

1. PARA ALÉM DA MORALIDADE PROMISSÓRIA


E DA EFICIÊNCIA ECONÔMICA

Os debates acerca dos fundamentos do direito contratual


revolvem, em geral, em torno de dois grupos teóricos principais:
moralidade promissória e eficiência econômica. A tese da moralidade
promissória, na realidade, se refere a uma família de teorias cuja origem
remonta à filosofia grega, tendo se desenvolvido progressivamente
até suas versões mais contemporâneas. As primeiras visões da
moralidade promissória, agrupadas sobre a alcunha geral de “visões
tradicionais”2, fundamentavam o dever de cumprir as promessas em
imperativos superiores e termos absolutos, tais como o “direito natural”
e a “virtude”. Como representativo desse grupo, Aristóteles defendia o

2 HABIB, Allen. Promises. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2021


Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/
promises/#TraTheVirNatLaw. Acesso em: 30 ago. 2021.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A121


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
dever de observar as promessas feitas em deferência às virtudes de
honestidade e justiça, inclusive quando puramente gratuitas:

Examinemos a ambos, mas antes de tudo ao homem


veraz. Não estamos falando daquele que cumpre a
sua palavra nas coisas que dizem respeito à justiça ou
à injustiça (pois isso pertence a outra virtude), mas
do homem que, em assuntos onde nada disso está
em jogo, é veraz tanto em palavras como na vida que
leva, porque tal é o seu caráter. Sem embargo, uma
pessoa dessa espécie será naturalmente equitativa,
porquanto o homem que é veraz e ama a verdade
quando não há nada em jogo deve sê-lo ainda mais
quando vai nisso uma questão de justiça. Evitará a
falsidade em tais casos como algo de ignóbil, visto
que a evitava por si mesma; e tal homem é digno de
louvor. E inclina-se mais a atenuar a verdade isso lhe
parece de mais bom gosto, porquanto os exageros
são tediosos. 3

As visões tradicionais foram complementadas e acompanhadas


por juristas romanos como Cícero e Gaio, bem como por escolásticos
como Tomás de Aquino. À altura do século XVII, as teorias
promissórias passaram a ganhar contornos mais complexos e se
subdividir em uma pletora de diferentes ramos, dentre os quais se
incluem o “contractarianismo” (contractarianism), o contratualismo
(contractualism), o consequencialismo contratual (o qual, por sua
vez, se subdivide em diversas teorias) e a teoria das expectativas4. O
que todas essas teorias têm em comum é que buscam fundamentar a
obrigatoriedade dos contratos (e também o direito contratual) em um
dever moral preexistente.

3 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad.: Leonel Vallandro e Gerd Bornheim, da


versão inglesa de W. D. Ross. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 90.
4 HABIB, Allen. Op. cit., 2021.

122 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Por sua vez, as teorias de eficiência econômica partem da
noção de “análise econômica do direito”. Afastando-se de uma
perspectiva moral, os defensores da eficiência econômica do contrato
fundamentam a força jurídico-normativa da avença em seu potencial
para maximizar a geração de valor para as partes. Se, como observou
Galvani5, com base na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, o
contrato é o “ponto de contato” entre o sistema jurídico e o sistema
econômico, então pode-se considerar que o Direito tira da eficiência
econômica seu cogens, ao passo que a Economia confia na força jurídica
na busca pela geração de valor. Os sistemas, assim, se retroalimentam.
Nesse sentido6:

O contrato, nesse prisma, será o ambiente para a


alocação eficiente de recursos, para a distribuição de
riscos e para a tomada de decisões. Portanto deve-se
procurar, como anotam Zylbersztajn e Sztajn (2005),
uma negociação que se dê em termos paretianos,
quando os agentes puderem negociar direitos de
propriedade que levem a uma melhoria das partes
que negociaram, ou se uma parte puder melhorar
compensando a posição da outra parte, colocam
ainda os autores que o objetivo central passa ser o
de motivar os agentes a cooperar transformando
situações sem solução não-cooperativa em soluções
factíveis. Nesse diapasão, ao garantir o cumprimento
das promessas, as cortes criam os incentivos para a
cooperação eficiente. (...) Segundo o autor7, dessa
maneira se efetiva a eficiência requerida para a
realização satisfatória das operações econômicas
no complexo mundo contemporâneo, em face da
principiologia constitucionalmente adotada.

5 GALVANI, Leonardo. Análise Econômica do Contrato e Eficiência Contratual.


Economic Analysis of Law Review; Brasília, Vol. 9, Ed. 2, (May-Aug 2018), p. 194-211.
6 GALVANI, Leonardo. Op. cit., 2018.
7 A citação se refere ao seguinte: KORNHAUSER, L. A. Derecho de los contratos. In:
SPECTOR, H. Elementos de análisis económico del derecho. Buenos Aires: Rubinzal-
Culzoni Editores, 2004, p. 114.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A123


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
No entanto, em meio a esse contexto dicotômico, autores como
o canadense Peter Benson não observam em nenhuma das grandes
vertentes teóricas expostas o potencial para adequada justificação dos
fundamentos do direito contratual. Isso porque, segundo o professor
canadense, ao buscarem justificação externa ao Direito (na moral e
na Economia), essas teorias acabam não sendo capazes de se mostrar
coerentes em relação a todos os institutos do direito contratual. No
prefácio da obra “Justice in Transactions: a theory of contract law”,
Benson enuncia suas intenções:

Ao longo das detalhadas discussões, na Primeira


Parte, sobre as principais doutrinas e princípios
contratuais – compreendendo formação, justiça
e execução forçada do contrato – , eu tentarei
demonstrar que estes refletem uma concepção de
contrato que é estritamente jurídica: nem econômica,
nem idêntica ao dever moral de cumprir as próprias
promessas.8

Como passo importante para a adequada compreensão da


concepção oferecida por Peter Benson acerca das regras de justiça
e cogência aplicáveis aos contratos de adesão, faz-se necessário
apreender, ao menos de forma geral, os elementos de sua própria
teoria do direito contratual.

8 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge,


Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2019, tradução do
autor. Texto original: “Through the detailed discussions in Part One of the main
contract doctrines and principles—covering formation, fairness, and enforcement—I
shall try to show that these reflect a conception of contract that is strictly juridical:
neither economic nor the same as the moral duty to keep one’s promises.”

124 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
2. A IDEIA DE CONTRATO COMO
TRANSFERÊNCIA DE “TITULARIDADE”

Na obra “Justice in Transactions: a theory of contract law”, Benson


busca afastar a moralidade promissória e a eficiência econômica
como fundamentos do direito contratual. Isso porque, como denota o
autor em diversas ocasiões, seu empreendimento “filosófico”9 vem em
busca, sobretudo, de coerência entre as bases de um direito contratual
e seu conteúdo normativo. Coerência esta que, segundo Benson,
nenhuma dessas vertentes teóricas é capaz oferecer.
Como exemplo dessas incoerências sistêmicas, o autor menciona
o cálculo da indenização com base no interesse positivo do contrato10,
já apontado como controverso por Fuller e Perdue Jr. em trabalho
anterior, datado de 1936:

Por exemplo, é comum encontrar a regra “normal”


sobre dano contratual (que concede ao promissário
o valor de sua expectativa, o “lucro perdido”)
tratada como um mero corolário de um princípio
mais fundamental, de que a razão de indenizar é
oferecer uma “compensação” pelo dano. Mas, nesse
caso, nós “compensamos” o autor dando a ele algo
que nunca teve. Isso parece, em princípio, uma
forma estranha de “compensação”. Nós podemos,
certamente, fazer o termo “compensação” parecer
apropriado dizendo que a falha do réu “privou” o autor
de uma expectativa. Mas isso é, em essência, apenas
uma declaração metafórica dos efeitos da regra legal.
Na realidade, a perda que o autor sofre (privação de

9 Optou-se por utilizar o termo “filosófico” entre aspas porque Benson (2019, p. 27) faz
questão de frisar, no curso de sua investigação, que busca construir uma base pública
de justificação para o direito contratual, e não propriamente uma filosofia do direito
contratual. No entanto, isso não significa que seu empreendimento não seja filosófico;
afinal, nada impede, aprioristicamente, que a filosofia funcione como meio, ainda que
não seja o fim de determinada investigação.
10 BENSON, Peter. Contract. In: PATTERSON, Dennis (Coord.). A Companion to
Philosophy of Law and Legal Theory. 2. ed. Malden; Wiley-Blackwell, 2010. p. 29-64.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A125


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
uma expectativa) não é um dado da natureza, mas o
reflexo de uma ordem normativa. Ela aparece como
“perda” apenas em referência a um desejo oculto. Em
consequência, quando a lei estima a indenização com
base no resultado prometido, ela não está meramente
medindo um quantum, mas buscando uma finalidade,
por mais vaga que essa finalidade possa ser.11

A fim de superar as notórias contradições entre o que os


fundamentos extrajurídicos do direito contratual implicam e aquilo
que realmente encontra-se positivado, Benson propõe a formulação
de uma teoria que parta do próprio direito vigente. Sendo assim, sua
missão fundamental é a de elaborar uma teoria do direito contratual
que nasça a partir dos institutos do direito positivo, sendo com ele
perfeitamente coerente; e, mais que isso, também seja moralmente
deglutível e economicamente proveitosa (ou viável). Para Benson,
essa coerência seria atingida por meio da compreensão do contrato
como mecanismo de transferência da titularidade12 de determinada
substância (prestação ou coisa); transmissão esta que se operaria
através da vontade dos contratantes.

11 FULLER, Lon Luvois; PERDUE, Jr., W. W. The reliance interest in contract damages.
Yale Law Journal, 46:52-96, 1936, p. 373-420, tradução do autor. Texto original: “ For
example, one frequently finds the “normal” rule of contract damages (which awards
to the promisee the value of the expectancy, “the lost profit”) treated as a mere
corollary of a more fundamental principle, that the purpose of granting damages is
to make “compensation” for injury. Yet in this case we “compensate” the plaintiff by
giving him something he never had. This seems on the face of things a queer kind of
“compensation”. We can, to be sure, make the term “compensation” seem appropriate
by saying that the defendant’s breach “deprived” the plaintiff of the expectancy. But
this is in essence only a metaphorical statement of the effect of the legal rule. In
actuality the loss which the plaintiff suffers (deprivation of the expectancy) is not a
datum of nature but the reflection of a normative order. It appears as a “loss” only
by reference to an unstated ought. Consequently, when the law gauges damages by
the value of the promised performance it is not merely measuring a quantum, but is
seeking an end, however vaguely conceived this end may be.”
12 O termo “ownership”, utilizado pelo autor, traz dificuldades no momento da
tradução. Embora a ideia veiculada por Benson se aproxime mais de uma noção
de “propriedade” do que de simples “titularidade”, no presente trabalho, optou-
se pelo uso do segundo termo, para o exclusivo fim de desambiguá-lo em relação à
propriedade real, à qual os operadores do direito brasileiro estão acostumados.

126 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Ao anunciar sua proposta, Benson se faz claro:

No entanto, eles juntos articulam uma concepção de


contrato como uma forma particular de aquisição
transacional entre as partes: uma transferência
de titularidade entre as partes que é plenamente
realizada e encontra-se completa na formação
do contrato, antes e independentemente de sua
execução. Adicionalmente, devo argumentar que
essa concepção e as doutrinas do direito contratual
são completamente independentes e distintas de
quaisquer considerações de justiça distributiva.
Talvez minha mais importante contenda aqui é a de
que essa concepção organizadora de contrato como
transferência não é introduzida ou imposta sobre
o direito contratual de fora, com base em alguma
visão moral, política ou filosófica de preferência.
Em contrário, pretendo mostrar em detalhe como
ela emerge inteiramente de uma análise interna
dos principais princípios e doutrinas. A concepção
proposta, de contrato como transferência, é
necessária para explicar essas doutrinas em seus
próprios termos.13

Nesse sentido, o que o autor busca – e trata-se de marca


fundamental de sua teoria – é uma base pública de justificação

13 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge,


Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2019, p. xi, tradução
do autor. Texto original: “Instead, they together articulate a conception of contract
as a particular form of transactional acquisition between the parties: a transfer of
ownership between the parties that is fully effectuated by and is complete at contract
formation, prior to and independently of actual performance. In addition, I shall
argue that both this conception and the doctrines of contract law are completely
independent and distinct from considerations of distributive justice. Perhaps my most
important contention here is that this organizing conception of contract as transfer is
not introduced to or imposed upon contract law from the outside, on the basis of some
favored moral, policy, or philosophical view. To the contrary, I hope to show in detail
how it emerges wholly from an internal analysis of the main contract doctrines and
principles themselves. The proposed conception of contract as transfer is needed to
explain these doctrines in their own terms.”

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A127


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
para o direito contratual. Essa base pública de justificação, aplicável
essencialmente ao direito privado, teria como ponto de partida o
direito vigente e seria indiferente a preceitos de justiça distributiva.
Expressamente se referindo à teoria de John Rawls, Benson afirma que

Eu pretendo oferecer uma compreensão de justiça


transacional que não apenas satisfaça as necessidades
essenciais de uma teoria do direito contratual, mas
que também possa adequadamente complementar a
própria concepção política de justiça de Rawls, dentro
de uma estrutura mais ampla de justiça liberal que
inclui ambas.14

Vale notar que, ao que parece, o professor canadense busca


determinar qual é a base pública de justificação do direito contratual,
sem se preocupar com qual deveria ser essa base. Sendo assim, não se
incumbe do ônus de demonstrar que sua teoria é a melhor dentre as
disponíveis (que proporcione o maior bem) ou a única possível, mas,
tão somente, que é totalmente coerente com os preceitos do direito
contratual positivo, moralmente aceitável e economicamente viável.

3. CONTRATOS DE FORMA-PADRÃO NA
COMMON LAW E JUSTIÇA CONTRATUAL

Como é cediço, contratos de adesão (também chamados de


contratos de forma-padrão) são aqueles nos quais uma das partes
se encarrega de estipular e redigir todo o conteúdo do contrato,
sem que seja dada à outra a possibilidade de negociar as cláusulas
e condições da avença. Nesse sentido é a definição apresentada por
Benson: “os termos dos contratos de forma-padrão são apresentados

14 BENSON, Peter. Op. cit., p. xii, tradução do autor. Texto original: “I hope to offer an
account of justice in transactions that not only meets the essential needs of a theory of
contract law but that also can suitably complement Rawls’s own political conception
of justice within a broader framework of liberal justice that includes both.”

128 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
em formulários pré-impressos (ou seus equivalentes eletrônicos) que
não foram individualmente negociados pelas partes”15.
Em geral, contratos de adesão representam um desafio para
os juristas (e também para os teóricos e filósofos do direito) nos
mais diversos sistemas. E, no caso da common law, não é diferente.
Isso porque, nesse tipo de contrato, entram em xeque algumas das
suposições tradicionalmente empregadas pelos teóricos do direito
contratual para justificar o pacta sunt servanda, tais como: i) a de que
os contratantes são todos livres e iguais; ii) a de que os contratantes
possuem, um em face do outro, poder de negociação e barganha; e
iii) a de que os contratantes possuem domínio e conhecimento do
conteúdo da avença.
Logo no início do capítulo que dedica ao tema, o autor observa
que os contratos de adesão, para parte da doutrina, desafiam os
princípios do direito contratual básico16. Mas que a jurisprudência
paradigmática dos tribunais aplica aos contratos de forma-padrão
regras e princípios típicos do direito contratual geral, não os
tratando como uma categoria diferente de transação. Além disso,
Benson observa que, para a maioria das teorias contemporâneas,
especialmente as econômicas, os contratos de forma-padrão possuem
potencial de produzir valor para todas as partes, sendo importante
instrumento de circulação de riqueza. Para essas teorias, o foco não
deve estar na análise da bilateralidade da relação entre as partes, mas
sim em “variáveis sistêmicas, como: a operação de mercados reais,
e, não-raro, imperfeitos; as muitas diferentes funções econômicas –
tanto explícitas quanto escondidas – das cláusulas-padrão; o impacto
econômico de fazer cumprir ou excluir cláusulas-padrão; e assim por
diante”17.

15 BENSON, Peter. Op. cit., p. 217, tradução do autor. Texto original: “(...) standard
form terms are presented on preprinted forms (or their electronic equivalent) that
have not been individually negotiated by parties”.
16 BENSON, Peter. Op. cit., p. 215.
17 BENSON, Peter. Op. cit., p. 216, tradução do autor. Texto original: “Rather, it should
be, if at all, on systemic variables such as the operation of actual, often imperfect, markets;

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A129


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
O autor canadense reconhece que, de fato, é em um contexto
sistêmico que os contratos de adesão podem dar azo a problemas de
ordem econômica, social ou jurídica, que devem ser atacados por
mecanismos legislativos ou administrativos, sobretudo na esfera
consumerista ou de pequenos negócios. No entanto, observa que
esses fatores extracontratuais não são relevantes do ponto de vista
da teoria do direito contratual. E que, sem prejuízo dessa irrelevância
dos fatores externos, os contratos de adesão merecem atenção por
parte da teoria do direito contratual, por trazerem problemas de
justificação que não são superados pelas teses tradicionais. A partir
dessa observação é que Benson enuncia sua tese a respeito do tema:
os pactos de adesão possuem natureza contratual, expressando uma relação
bilateral e transacional entre as partes, em respeito à ideia de razoável.
Vale, desde logo, apontar o que o autor quer dizer quando se
refere à razoabilidade, diferenciando-a da racionalidade, também
empregada pelo professor canadense em sua obra. Embora essa
discussão mereça a integralidade de um trabalho acadêmico, buscar-
se-á diferenciar as duas concepções de forma simplificada.
A ideia de racionalidade representa, do ponto de vista individual
do sujeito participante da relação, a adequação dos termos aos fins por
ele buscados. Em outras palavras, uma decisão ou cláusula racional,
para um dado sujeito, é aquela que atende os interesses desse sujeito. Por
outro lado, a concepção de razoável é essencialmente intersubjetiva: diz
respeito às expectativas que uma parte, de forma justa, deposita sobre
a outra em relação à avença. Nesse sentido, Benson afirma que a ideia
de razoabilidade pode ser compreendida como aquela que “especifica
termos justos que se aplicam adequadamente a relações entre pessoas
que são vistas como possuidoras de igual e independente capacidade
de apresentar requisições uma vis-à-vis com a outra”. Sendo assim,
uma cláusula razoável é aquela que, além de justa, acolhe a ideia de

the many dif­ferent economic roles— both visible and hidden— of standard terms; the
economic impact of enforcing or striking out standard terms; and so forth.”

130 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
que os contratantes são livres e iguais, com mútua capacidade de
reivindicação e renúncia, vis-à-vis um com o outro.
Prosseguindo na interpretação da posição de Benson sobre os
contratos de adesão, é importante ressaltar que, em sua obra, o autor
se refere primordialmente àqueles contratos redigidos com orientação
“geral”, isto é, àqueles cuja intenção seja a utilização repetitiva em um
número indeterminado de transações idênticas ou muito similares. O
caso paradigmático é o de contratos de consumo. Essa observação é
importante porque, em razão dessa natureza geral das cláusulas, as
partes aderentes (“form-takers”) são razoavelmente induzidas a pensar
que um número grande de outras pessoas estão aderindo às mesmas
cláusulas, nas mesmas condições. Isso, evidentemente, significa
que, em muitos casos, os aderentes podem consentir com o teor de
cláusulas que sequer foram lidas ou compreendidas corretamente.
No entanto, o fato de uma cláusula, no caso concreto, ter
sido ou não lida ou compreendida por uma das partes não é de per
se significativo para determinação da validade ou invalidade de
seus termos. Do ponto de vista da formação do contrato, quando o
aderente manifesta seu aceite em relação ao contrato, o faz por livre
e espontânea vontade, sendo essa legítima forma de manifestação
da promise-for-consideration. Nas palavras de Benson, “se o aderente
manifesta seu aceite sem ler ou compreender esses termos, essa é a
sua opção e decisão”18. Essa constatação, além de reforçar a natureza
contratual dos negócios jurídicos formados por adesão, também
ressalta o papel central da ideia de razoabilidade na interpretação
desses tipos de contratos: não importa se o aderente de fato leu os
termos; o que importa é que a natureza geral do contrato de adesão o
faz, razoavelmente, esperar que não existam termos excessivamente
onerosos ou desproporcionais.
Sendo assim, o que de fato é determinante para verificar a
validade e a justeza de uma cláusula aposta em contrato de adesão

18 BENSON, Peter. Op. cit., p. 221, tradução do autor. Texto original: “If the offeree
manifests acceptance without reading or understanding those terms, that is his or her
choice and decision.”

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A131


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
é sua conformidade com o parâmetro geral de razoabilidade. Nesse
sentido, Brian Bix, interpretando a tese de Benson, observa que
“todos esses termos inesperados ou desarrazoados não serão objeto de
cumprimento forçado”19. Por isso é que, segundo Benson, ainda que o
aderente não tenha lido ou tomado conhecimento de uma cláusula,
não poderá esquivar-se de cumpri-la ou pleitear sua alteração se ela
for perfeitamente razoável e usual20. A esse respeito:

Llewellyn não estava sozinho quando ele corretamente


enfatizou que, com base no aceite en bloc à transação
inteira, o aderente pode razoavelmente ser vinculado
aos termos-padrão que sejam justos e balanceados,
ainda que não lidos ou desconhecidos pela parte.21

Como destacado por Bix, desdobram-se em duas as possibilidades


de desconformidade entre o contrato de adesão e a ideia de razoável: 1)
a existência de cláusulas cuja presença, naquele contrato, não pudesse
ser razoavelmente esperada (unexpected terms); e 2) a existência
de cláusulas cujo conteúdo não seja razoável (unreasonable terms).
Presente alguma dessas hipóteses de desconformidade, a cláusula
em questão é considerada contratualmente injusta, podendo a parte
aderente pleitear-lhe a anulação ou reforma.
A diferenciação entre as duas hipóteses supracitadas, apesar
de útil do ponto de vista teórico, não possui tanta aplicação concreta.
Afinal, pode-se arguir que toda cláusula cuja presença não seja razoável
esperar possui, naturalmente, um conteúdo desarrazoado para o caso
concreto. Na mesma linha, pode-se dizer que a presença de qualquer

19 BIX, Brian (2020). Justice in Transactions: A Theory of Contract Law. By Peter


Benson. The Cambridge Law Journal, 79(2), p. 365, tradução nossa.
20 BENSON, Peter. Op. cit., p. 221.
21 BENSON, Peter. Op. cit., p. 221, tradução do autor. Texto original: “Llewellyn was
not alone when he correctly emphasized that, on the basis of his or her assent en bloc
to the whole transaction, a form-taker can reasonably also be held to standard terms
that are fair and balanced even though unread by and unknown to the party.”

132 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
cláusula excessivamente desarrazoada não poderia ser razoavelmente
esperada. Não obstante, as hipóteses serão tratadas de forma analítica.
A primeira hipótese, como é evidente, não traz maiores
indagações. Seria o caso, por exemplo, da inclusão de uma cláusula
que preveja doação de numerário em um contrato adesivo de seguro.
A parte aderente não poderia razoavelmente esperar a presença
de dita cláusula naquele contrato; sendo assim, a prestação por ela
enunciada não será objeto de cumprimento forçado em qualquer juízo
ou tribunal.
A segunda hipótese, a seu turno, levanta interessantes
considerações teóricas. Como determinar se o conteúdo de
determinada cláusula é ou não razoável? A resposta de Benson se
baseia naquela inicialmente proposta por Karl N. Llewellyn22, e que
encontra fundamento muito similar na seção 211 do Restatement
(Second) of Contracts.
A escolha de Benson por essa via faz sentido, sobretudo porque
tanto a tese de Llewellyn quanto aquela esboçada no Restatement
reforçam a ideia de que as questões relativas à formação do contrato
de adesão (ou ao conhecimento das cláusulas pelo aderente) não
são relevantes para a análise da justeza da avença. Comentando
mencionada seção 211, Eric A. Zacks observa que:

A seção 211 do Restatement (Second) of Contracts


incorpora a aparente inabilidade da doutrina do
direito contratual de se ajustar às realidades dos
contratos de adesão modernos. A seção 211 foi uma
solução profunda e elegantemente desenhada por
teóricos contratuais impressionistas para lidar com
o problema do consentimento em contratos de
adesão. Com um compromisso entre a presunção
de formação e a habilidade de as partes aderentes
questionarem termos inesperados, a seção 211
aparentemente oferecia uma rota por meio da qual

22 LLEWELLYN, Karl N. The Common Law Tradition: deciding appeals. Quid Pro, LLC:
2015, p. 370-371.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A133


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
juízes poderiam preservar a utilidade de contratos
de adesão consumeristas, mas também impedir
exageros por parte das partes estipulantes. (...) Se a
formação não é mais um fardo tão importante para os
contratos de adesão, e o consentimento esclarecido
não é obtenível nem relevante, juízes e acadêmicos
puderam desenvolver defesas mais substantivas e
palpáveis contra termos excessivamente onerosos.
Similarmente, o abandono do consentimento pelo
direito contratual empoderaria reguladores para
policiar termos questionáveis, já que tais reguladores
não mais estariam limitados pelo princípio de que
a regulação legal deve abrir caminho para o acordo
privado de vontades.23

Segundo Llewellyn, para verificar se o conteúdo de determinada


cláusula se ajusta ao parâmetro de razoabilidade, deve-se analisar se
essa cláusula está em contradição com outras cláusulas do mesmo
contrato. A depender do tipo de contradição encontrada (as espécies
serão detalhadas mais à frente), será imperioso reconhecer a ausência
de razoabilidade de uma das cláusulas em questão.
A essas contradições, entre cláusulas (expressas ou implícitas)
do próprio contrato ou negócio, Llewellyn dá o nome de “contradições

23 ZACKS, Eric A. The Restatement (Second) of Contracts § 211: Unfulfilled Expectations


and the Future of Modern Standardized Consumer Contracts, 7 Wm. & Mary Bus.
L. Rev. 733 (2016), p. 736; 741, tradução do autor. Texto original: “Section 211 of the
Restatement (Second) of Contracts embodies the apparent inability of contract law
doctrine to adjust to the realities of modern standardized contracts. Section 211 was
an elegantly designed, thoughtful solution by impressive contract theorists to address
the problem of assent to standardized contracts. With a compromise made between
the presumption of formation and the ability of non-drafting parties to challenge
unexpected terms, section 211 seemingly provided a route by which adjudicators
could preserve the utility of standardized consumer contracts but also constrain
overreaching by drafting parties. (…) If formation is no longer a significant burden for
standardized agreements and meaningful assent is neither achievable nor relevant,
adjudicators and scholars could develop more substantive and achievable defenses
to onerous terms. Similarly, contract laws abandonment of assent would empower
regulators to intervene to police objectionable terms because such regulators would
no longer be constrained by the principle that legal regulation should defer to private
agreement.”

134 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
intratransacionais”24, sendo essas as únicas relevantes para o exame
de razoabilidade. Eventuais “contradições extratransacionais”25, isto é,
entre cláusulas do contrato e elementos externos (moralidade, fatores
econômicos, condições pessoais do agente, entre outros), não são
determinantes para julgamento da justeza contratual.
Como destaca Benson26, são três os tipos de contradições (ou
injustiças) intratransacionais que podem dar ensejo à reforma ou
invalidação de cláusulas nos contratos de forma-padrão:

a. Quando termos não-salientes do contrato entram


em conflito com o sentido razoável de termos
salientes;
b. Quando termos não-salientes do contrato
entram em conflito com os termos e condições
implicados pelos termos salientes; e
c. Quando termos não-salientes do contrato entram
em conflito com o “núcleo duro” do tipo de
negócio em questão.

Antes de examinar cada uma das hipóteses, é importante


distinguir o que os autores designam como “termos salientes” ou
“termos não salientes” de um contrato de adesão.
Os termos salientes, também chamados “primários”, “nucleares”
ou “centrais”, são aqueles que constituem a base da formação contratual,
representando a promise-for-consideration que cada uma das partes
oferecerá à outra. Se referem, assim, a elementos centrais do tipo
negocial, sendo exemplos comuns: o preço; a forma de pagamento;
a forma e prazo de entrega; a descrição da coisa ou prestação; dentre

24 BENSON, Peter. Op. cit., p. 228.


25 Benson não utiliza o termo “contradições extratransacionais” em nenhum momento
de sua obra. No entanto, é razoável supor que, em oposição às contradições internas
ao negócio, existam também contradições entre o negócio e elementos externos.
Essas contradições não possuiriam relevância para a análise da justeza das cláusulas
apostas em contratos de adesão.
26 BENSON, Peter. Op. cit., p. 228.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A135


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
outros. Nas palavras de Karl Llewellyn, os termos salientes são “os
dominantes e a única real expressão da avença”27.
Por outro lado, os termos não-salientes (“secundários”) também
integram o contrato de adesão, mas referem-se a aspectos auxiliares,
os quais, normalmente, seriam regulados pela lei civil, tais como:
compensações pelo inadimplemento; eleição de foro; garantias
presumidas; limitações de cobertura, dentre outros. Esses termos são
intratransacionalmente subordinados aos termos salientes:

A lei distingue entre termos primários e salientes


e aqueles que são secundários e não-salientes; e vê
os últimos como normativamente subordinados e
regulados pelo significado razoável dos primeiros,
quando interpretados prima facie em si próprios e
desvinculados dos secundários. Essa visão supõe
que existe um ponto de vista transacional interno,
que regula a significância contratual de diferentes
cláusulas a partir da forma por meio da qual elas
moldaram o entendimento razoável do aderente sobre
o que foi contratado. 28

Se o conteúdo de um termo não-saliente, no caso concreto, conflita


com a interpretação razoável dos termos salientes, o afastamento ou
modificação do primeiro, posto que subordinado, é medida natural e
adequada. Caso paradigmático da common law, citado por Benson29, é
aquele referente ao recurso Tilden Rent-A-Car Co. v. Clendenning. No
caso, o tribunal afastou a aplicabilidade de uma cláusula não-saliente

27 LLEWELLYN, Karl. Op. cit., p. 370.


28 BENSON, Peter. Op. cit., p. 226-227, tradução do autor. Texto original: “The law
distinguishes between upfront salient primary terms and those that are secondary and
nonsalient; and it views the latter as normatively subordinate to and as regulated by
the reasonable meaning of the former, when construed prima facie on their own and
apart from the secondary. This view supposes that there is an internal transactional
standpoint that regulates the contractual significance of different terms in light of
how they have shaped the form-taker’s reasonable understanding of what he or she
has contracted for.”
29 BENSON, Peter. Op. cit., p. 224-226.

136 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
(de liability) que restringia excessivamente a cobertura de um seguro
(cláusula saliente) automotivo de veículo alugado.
A segunda hipótese traz à baila a figura das implicated clauses
(cláusulas implicadas), tratadas com especificidade por Benson
em capítulo distinto de sua obra. Trata-se de cláusulas que, embora
não tenham sido expressamente pactuadas pelas partes, integram o
contrato e obrigam os contratantes tal como se estivessem escritas.
Havendo omissão das partes, a implicação pode dar-se por força de lei,
de práticas anteriores das partes, dos usos e costumes, da interpretação
das próprias cláusulas expressas do contrato, dentre outros. O próprio
autor retoma, no capítulo dedicado aos contratos de forma-padrão, a
ideia de implication:

Como vimos na discussão sobre a implicação, as


teorias contratuais contemporâneas comumente
vêem os contratos como nada mais que a soma de seus
termos expressos, e justificam a implicação com base
na ideia de que os contratos são fundamentalmente
incompletos e apenas podem ser suplementados
com fundamento em políticas que são externas ao
significado razoável do verdadeiro contrato entre as
partes.30

Como os termos implicados são compreendidos como parte


natural do contrato, aqueles termos implicados derivados dos
termos salientes gozam da mesma preferência destes. Sendo assim,
a contradição intratransacional entre termos implicados derivados
de termos salientes e cláusulas não-salientes que prejudiquem
excessivamente o aderente deve ser resolvida em favor daqueles,

30 BENSON, Peter. Op. cit., p. 227, tradução do autor. Texto original: “As we saw in the
discussion of implication, contemporary contract theories standardly view contracts
as no more than the sum of their express terms, and they justify the implication
of terms on the basis that contracts so viewed are fundamentally incomplete and
can only be supplemented on grounds of policy that are external to the reasonable
meaning of the actual contract between the parties.”

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A137


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
respeitada a razoabilidade. Um dos casos mencionados por Benson31
é o paradigmático Henningsen v. Bloomfield Motors Inc., em que o
tribunal afastou a incidência de uma cláusula que limitava de maneira
estapafúrdia a garantia do fornecedor pelos defeitos do veículo.
Segundo o professor canadense, a decisão prolatada pela corte deixa
evidente o reconhecimento do caráter desarrazoado da cláusula, sem
qualquer benefício para o aderente e com abrangência muito menor
que aquela que seria garantia pela lei (cláusula implicada da cláusula
saliente de venda e compra).
Por fim, também caracteriza contradição intratransacional a
incompatibilidade entre termos não-salientes e o “núcleo duro” do
tipo contratual. O que seria, à luz da teoria de Benson, esse “núcleo
duro”?
Como já destacado alhures, a teoria contratual sugerida
por Peter Benson compreende o contrato como mecanismo de
transferência definitiva da titularidade de determinada coisa ou
prestação. Naturalmente, o objeto dessa transferência fica ao arbítrio
das partes contratantes, variando conforme cada negócio avençado.
No entanto, é possível falar em um “padrão de transferência” que se
repete em diversos contratos similares. Esse “padrão de transferência”
é que acaba por caracterizar cada tipo contratual; e, sendo comum e
geral, produz nas pessoas uma determinada expectativa com relação
a cada uma das “espécies” existentes na “taxonomia contratual”. Nas
palavras de Benson,

Logo, emerge e continua a se desenvolver ao longo


do tempo uma série de diferentes tipos transacionais,
todos variantes da relação básica de promise-for-
consideration, e cada qual com suas características
organizacionais e incidentes particulares. Assim,
pode-se presumir que as partes entendem, pretendem
e nutrem expectativas padronizadas em relação ao
tipo de transação em que entraram, e a lei leva isso em

31 BENSON, Peter. Op. cit., p. 229-231.

138 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
consideração ao avaliar a razoabilidade dos termos
contratuais.32

Um contrato de arrendamento, por exemplo, possui aspectos


típicos que o diferenciam de outros tipos de contratos, como o de
locação; em outras palavras, possuem “mínimos de transferência”
distintos. O contrato de seguro, por sua vez, tem como núcleo duro
a garantia de determinado risco em troca do pagamento de alguma
quantia (prêmio). Um contrato de seguro, por adesão, que contenha
uma cláusula secundária que esteja em contradição com essa ideia
básica, desnaturando o negócio, é considerado desarrazoado e injusto,
protagonizando contradição intratransacional.
Naturalmente, é de se salientar que o nomen iuris atribuído
ao contrato não é, por si só, apto a determinar o tipo contratual.
Embora, certamente, o nome dado ao contrato seja importante para a
delimitação de seu núcleo duro, certamente devem ser considerados
outros elementos, sobretudo as circunstâncias de contratação, as
negociações prévias entre as partes e os usos e costumes locais.
Conclusivamente, insta ressaltar que a possibilidade de se
negar execução a cláusulas injustas ou desarrazoadas não está
necessariamente conectada a fatores extracontratuais, tais como a
diferença de poder de barganha, a inexperiência ou fragilidade de
alguma das partes ou determinadas condições de mercado. Embora
esses fatores possam estar presentes, não são necessários nem
suficientes, em si mesmos, para fundamentar o reconhecimento
da injustiça contratual juridicamente tutelável. Trata-se de questão
resolvida no âmbito transacional, não necessitando envolver questões

32 BENSON, Peter. Op. cit., p. 235, tradução do autor. Texto original: “Hence there
emerges and continues to develop over time a range of different transaction-types,
all variants of the basic promise-for-consideration relation and each with its own
organizing features and particular incidents. Thus parties may be presumed to
understand, to intend, and to have patterned expectations related to the given type
of transaction into which they have entered, and the law takes this into consideration
when assessing the reasonableness of the actual contract terms.”

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A139


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
sociais, econômicas ou de política pública. Nesse sentido, Benson
pontua o seguinte:

É importante sublinhar que, nesse contrato de


consumo de massa e assim como na análise em Tilden,
essa comparação intratransacional não requer, per
se, que o Tribunal verifique condições do mercado,
poder de barganha desigual ou a ignorância de um
consumidor em particular.33

Considerando as interpretações até aqui expostas, passa-se às


considerações finais do presente trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os contratos de adesão certamente representam um desafio


para as teorias clássicas do direito contratual, tendo provocado a
emergência de diversas posições doutrinárias e filosóficas – inclusive
no sentido de afastar a natureza contratual dos negócios por adesão. As
investigações de Benson, embora enfocadas nos parâmetros de justiça
contratual adotados pela common law para os contratos de adesão,
representam importante passo na demonstração da integridade de
sua própria teoria contratual.
Isso porque, por meio da interpretação das regras adotadas pelo
direito vigente, Benson consegue demonstrar que os contratos de
adesão, embora notoriamente desafiadores, não apresentam risco para
sua teoria. Além disso, o autor consegue posicionar a razoabilidade
no centro da análise da justiça contratual, o que é essencial para sua
própria visão acerca do direito contratual, a qual se pretende base
pública de justificação.

33 BENSON, Peter. Op. cit., p. 231, tradução do autor. Texto original: “It is important to
underline that, in this mass consumer contract and as with the analysis in Tilden, this
intratransactional comparison does not per se require the court to ascertain market
conditions, unequal bargaining power, or a particular consumer’s ignorance.”

140 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Por fim, cabe observar que a análise pormenorizada conduzida
por Benson chega a ultrapassar o campo da teoria do direito contratual,
lançando luz sobre a própria hermenêutica dos contratos de adesão e
de suas possíveis contradições intratransacionais. Nesse sentido, é fato
que as complexas relações que nascem das interações entre a promise-
for-consideration, as expectativas razoáveis do aderente e o conteúdo
dos contratos de forma-padrão devem ser consideradas pelo julgador
no momento da resolução dos conflitos.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A141


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
REFERÊNCIAS

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142 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
PETER BENSON E OS REMÉDIOS PARA O
DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL: O PROBLEMA DA
TUTELA ESPECÍFICA DOS SERVIÇOS PESSOAIS

Daniel de Pádua Andrade

INTRODUÇÃO

No livro Justice in Transactions, Benson apresenta uma proposta


detalhada e inovadora de embasamento filosófico do Direito Contratual.
O autor argumenta, em síntese, que a ideia de relação contratual como
transferência de titularidade tem o potencial de oferecer, por si só,
o que ele chama de base pública de justificação para o regramento
jurídico dos contratos. A obra é dividida em duas partes, uma primeira
que defende a coerência da tese com os institutos do Common Law e
uma segunda que defende a plausibilidade da tese diante de outras
considerações filosóficas. Ao longo da primeira parte do trabalho,
Benson dedica um capítulo inteiro ao exame dos dois principais
remédios para o descumprimento contratual presentes na tradição
anglo-saxã, que são a indenização e a tutela específica. Neste tópico
do desenvolvimento, o autor assume a tarefa de demonstrar que o
sistema de respostas judiciais para o inadimplemento das obrigações
contratuais pode ser unificado e fundamentado em termos puramente
transacionais.
O raciocínio de Benson parte da premissa de que o contrato
surge com a aceitação da oferta de uma troca de bens e que, neste
momento, cada contratante já adquire um direito à prestação que foi
assumida pelo outro. A inexecução da obrigação contratual devida,
nesse sentido, pode ser compreendida como um ato ilícito que viola
o direito titularizado pela parte prejudicada e que justifica, por isso,
a incidência de uma medida coercitiva estatal. Na visão de Benson,
os remédios para o descumprimento do contrato são orientados
pela busca da justiça compensatória, ou seja, eles tentam colocar

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A143


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
o credor na posição que estaria se o devedor tivesse adimplido
satisfatoriamente. Ainda de acordo com Benson, a compensação da
parte preterida deve ser realizada com base na apuração objetiva do
conteúdo que seria razoavelmente esperado da parte inadimplente
à luz das circunstâncias da contratação. Segundo o referido autor,
este pano de fundo transacional se mostra suficiente para subsidiar a
escolha judicial entre a indenização e a tutela específica.
Benson afirma que o remédio da indenização deveria ser aplicado
no caso de inexecução de obrigações fungíveis, já que a entrega de
dinheiro permitiria a compensação através da aquisição de um bem
substitutivo. O remédio da tutela específica, diferentemente, deveria
ser aplicado no caso de inexecução das obrigações infungíveis, pois o
cumprimento coativo da prestação seria o único modo de compensar a
violação do direito do credor. Ocorre que, no Common Law, existe uma
hipótese excepcional que afasta o cabimento da tutela específica ainda
que a obrigação inadimplida apresente um caráter insubstituível.
Trata-se da exceção dos serviços pessoais, que impede a execução in
natura das prestações de fazer com natureza personalíssima, mesmo
naquelas situações em que for verificado que a indenização não seria
capaz de compensar adequadamente o credor. Este é o cerne do
problema, porque Benson não aprofunda o estudo da questão e alguns
outros autores apontam fundamentos não transacionais para justificar
a exceção dos serviços pessoais.
Este trabalho busca oferecer algumas reflexões sobre o desafio
de assimilação da exceção dos serviços pessoais dentro dos quadros
da teoria transacional do contrato. Nesse sentido, o primeiro tópico
detalha a fundamentação do regramento dos remédios para o
inadimplemento que é apresentada no livro Justice in Transactions
como uma decorrência da concepção de contrato como transferência
de titularidade. No segundo tópico, são expostas as linhas gerais
da orientação jurisprudencial predominante no Common Law no
sentido de recusar a aplicação da tutela específica como resposta
para a inexecução das obrigações de fazer personalíssimas. O terceiro
tópico, por sua vez, explora as dificuldades de justificação da exceção

144 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
dos serviços pessoais em termos puramente transacionais e, logo em
seguida, tenta identificar as propostas de solução deixadas por Benson.
Já o quarto tópico demonstra que a noção de núcleo inalienável de
autodeterminação não resolve o tema-problema e levanta, por fim,
alguns apontamentos para futuras investigações.

1. A FUNDAMENTAÇÃO TRANSACIONAL DOS


REMÉDIOS PARA O INADIMPLEMENTO

O oitavo capítulo do livro Justice in Transactions é dedicado à


análise dos remédios para o descumprimento do contrato a partir da
perspectiva transacional proposta por Benson1. Nesta seção da obra,
o argumento principal é que a noção de contrato como transferência
de titularidade oferece sentido e unidade para o complexo sistema
de respostas judiciais derivadas do inadimplemento das obrigações
contratuais. Benson examina, nesse sentido, quatro aspectos relevantes
do Direito Contratual do Common Law, quais sejam: a) a relação entre
tutela específica e tutela genérica; b) a reparabilidade dos danos
consequenciais; c) a indenização pela confiança; e d) a mitigação
dos próprios prejuízos. Ao tratar destes tópicos, ele sustenta que os
diferentes remédios para a inexecução da prestação compartilham o
propósito de compensar o credor pela violação do seu direito que era
titularizado desde a formação do contrato.
Para o presente trabalho, importa sobretudo a proposta de
interpretação da relação entre a tutela específica e a tutela genérica
apresentada na primeira subseção do oitavo capítulo.2 De início,
Benson esclarece que todos os sistemas contemporâneos de Direito
Contratual reconhecem uma distinção básica entre os remédios da
tutela específica e da tutela genérica. A tutela específica tem o objetivo
de mobilizar o aparato estatal para permitir que a parte prejudicada

1 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge: Harvard


University Press, 2019, p. 263-265
2 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge: Harvard
University Press, 2019, p. 265-274.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A145


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
tenha um acesso in natura ao bem jurídico prometido. A tutela
genérica, diferentemente, tenta satisfazer o contratante lesado através
da entrega de uma quantidade de dinheiro correspondente à extensão
da violação obrigacional sofrida. No âmbito do Common Law, a escolha
entre a tutela específica e a tutela genérica é feita com base no teste
da adequação, que apura qual dos dois remédios seria mais apto para
compensar o credor.
Dando seguimento, Benson explica que a aplicação do teste da
adequação resulta na constatação de que as obrigações infungíveis
atraem a tutela específica, ao passo que as obrigações fungíveis atraem
a tutela genérica. Como as obrigações infungíveis possuem uma
natureza peculiar, não é possível encontrar sucedâneos no mercado
e por isso a única forma de compensar adequadamente o credor é
através da concessão da tutela específica. As obrigações fungíveis, por
sua vez, podem ser substituídas por produtos ou serviços equivalentes,
o que autoriza a afirmação de que, neste caso, a via mais adequada
para a compensação do credor é a concessão da tutela genérica. De
acordo com a visão de Benson, o raciocínio subjacente ao teste da
adequação pode ser resumido nos seguintes questionamentos: “qual
é a prestação prometida e qual remédio assegura que o requerente
receba isso e não alguma outra coisa?”.3
Nesse contexto, Benson afirma que a presença do teste da
adequação no Common Law corrobora a sua proposta de fundamentação
do Direito Contratual em termos puramente transacionais. Embora
sejam distintas entre si, a tutela específica e a tutela genérica
representam dois caminhos para alcançar o mesmo ponto de chegada,
que é a concretização da justiça compensatória por meio da satisfação
do interesse do credor na prestação. Compreendidos dessa maneira,
ambos os remédios ratificam a percepção de que o inadimplemento é
um ato ilícito que viola o direito preexistente do contratante preterido
e justifica a imposição de medidas reparatórias. O sistema de reações

3 “[…] what is the promised performance and which remedy ensures that the plaintiff
receives this and not something else?”. BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of
contract law. Cambridge: Harvard University Press, 2019, p. 266.

146 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
para a inexecução obrigacional está necessariamente atrelado ao
teor dos direitos transacionados na formação do contrato, porque é a
natureza das prestações prometidas que definirá a escolha da resposta
jurisdicional mais adequada.
A conclusão de Benson é que a opção entre a tutela específica
e a tutela genérica depende apenas do que uma parte esperava
razoavelmente da outra quando a oferta foi aceita. O procedimento
judicial de definição dos desdobramentos do inadimplemento,
portanto, deve ser realizado exclusivamente à luz da interpretação
objetiva dos conteúdos que foram trocados no momento do
nascimento do contrato. Consequentemente, é preciso admitir que
o regramento das respostas para a inexecução das prestações não
leva em conta nenhuma política ou valor que extrapole os limites da
relação particular em si mesma considerada. Divergindo de grande
parte dos autores anglófonos, Benson assevera que os fatores externos
à transação inter partes, como a promoção da eficiência econômica ou
a preservação da moralidade promissória, não são relevantes para a
fundamentação dos remédios para o descumprimento contratual.

2. A REJEIÇÃO DA TUTELA ESPECÍFICA DOS


SERVIÇOS PESSOAIS NO COMMON LAW

O sistema de remédios para o inadimplemento em vigor no


Common Law, contudo, contempla um instituto que parece fugir um
pouco da fundamentação transacional proposta por Benson. Trata-se
da chamada exceção dos serviços pessoais, que impede a concessão
judicial da tutela específica das obrigações contratuais descumpridas
que apresentam uma natureza personalíssima ou intuitu personae.4

4 LAYCOCK, Douglas. The death of the irreparable injury rule. Harvard Law Review,
v. 103, n. 3, p. 687-771, Jan. 1990, p. 746; BEATSON, Jack; BURROWS, Andrew;
CARTWRIGHT, John. Anson’s law of contract. 29 ed. Oxford: Oxford University Press,
2010, p. 578; STONE, Richard. The modern law of contract. 9. ed. London: Routledge,
2011, p. 492-493; MACKEDRICK, Ewan. Contract law: text, cases, and materials. 5. ed.
Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 929-931; TREITEL, G. H. The law of contract.
14. ed. Atual. Edwin Peel. Sweet & Maxwell, 2015, 1913-1915; SMITS, Jan M. Contract

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A147


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Nos contratos de prestação de serviço por uma pessoa com qualidades
singulares, embora a obrigação assumida possua um caráter
nitidamente infungível ou insubstituível, os tribunais anglo-saxões se
recusam a ordenar a tutela específica. À primeira vista, a exceção dos
serviços pessoais representa um desvio da regra estabelecida pelo teste
da adequação, porque neste caso a tutela específica é afastada apesar
de consistir aparentemente na forma mais adequada de compensar o
credor pela inexecução da prestação devida.
Para compreender a dinâmica de funcionamento da exceção
dos serviços pessoais na prática jurídica do Common Law, vale a
pena conferir o conteúdo da obra acadêmica Restatement (Second)
of Contracts. Elaborado pelo American Law Institute e publicado no
ano de 1981, o referido livro oferece uma compilação organizada
das principais normas de Direito Contratual que foram consagradas
ao longo do tempo pela jurisprudência estadunidense. O § 359 (1)
do Restatement (Second) of Contracts endossa a premissa do teste da
adequação e preconiza que “tutela específica [...] não será ordenada
se a tutela genérica for adequada para proteger o interesse positivo da
parte prejudicada.”5 Depois de alguns outros dispositivos, no entanto,
o § 367 (1) confirma a relevância da exceção dos serviços pessoais ao
estabelecer que “uma promessa para realizar serviços pessoais não
será tutelada de maneira específica.”6
Mas qual seria o fundamento filosófico que justifica a rejeição
do remédio da tutela específica no caso de inadimplemento das
obrigações contratuais de fazer personalíssimas? O argumento mais
utilizado pelos escritores do Common Law para embasar a exceção dos
serviços pessoais é a proteção da liberdade pessoal do devedor, que
seria violada se ele fosse constrangido a realizar a ação prometida. A
imposição de medidas coercitivas direcionadas à execução in natura

law: a comparative introduction. 2. ed. E-book. Cheltenham: Edward Elgar Publishing


Limited, 2017, p. 227; DAGAN, Hanoch; HELLER, Michael E. Specific performance.
Columbia Law & Economics Working Paper, n. 631, p. 1-57, 2020, p. 37-38.
5 “Specific performance […] will not be ordered if damages would be adequate to protect the
expectation interest of the injured party.”
6 “A promise to render personal service will not be specifically enforced.”

148 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
dos serviços pessoais desrespeitaria uma série de facetas da autonomia
individual, como a liberdade de locomoção, a liberdade de expressão,
a livre iniciativa etc. Sendo assim, no embate entre a necessidade de
preservar a liberdade pessoal da parte inadimplente, por um lado,
e a necessidade de compensar adequadamente o interesse da parte
prejudicada, por outro lado, a preferência deveria recair sobre o
primeiro imperativo.
Para além do argumento primário baseado na ideia de autonomia
individual, os defensores da exceção dos serviços pessoais também
apresentam outras duas justificativas secundárias. Uma delas é a
questão da dificuldade de supervisão estatal das ordens judiciais de
tutela específica das obrigações de fazer com caráter personalíssimo.7
O acompanhamento de um pintor recalcitrante que fosse compelido
a pintar um quadro dotado de características artísticas singulares,
por exemplo, acarretaria diversas polêmicas periciais e demandaria
altos custos financeiros. Outra questão relevante diz respeito à própria
qualidade dos serviços pessoais que são obtidos de maneira forçada
através da imposição de medidas coercitivas.8 A título ilustrativo,
tudo indica que um cantor intransigente que fosse coagido a realizar
determinado show apresentaria um desempenho muito abaixo do
nível técnico desejado.
É importante ressaltar que, nos ordenamentos de Common Law,
existem algumas situações particulares que afastam a incidência
da exceção dos serviços pessoais. De modo geral, essas hipóteses
especiais têm sido implementadas por meio de dispositivos legislativos
voltados para a regulação de relações privadas desequilibradas.
Exemplificativamente, tanto o direito estadunidense quanto o direito
inglês contemplam mecanismos legais que autorizam a reintegração

7 LAYCOCK, Douglas. The death of the irreparable injury rule. Harvard Law Review,
v. 103, n. 3, p. 687-771, Jan. 1990, p. 746; SMITS, Jan M. Contract law: a comparative
introduction. 2. ed. E-book. Cheltenham: Edward Elgar Publishing Limited, 2017, p.
227.
8 SMITS, Jan M. Contract law: a comparative introduction. 2. ed. E-book. Cheltenham:
Edward Elgar Publishing Limited, 2017, p. 227.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A149


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
forçada de empregados demitidos pelos empregadores.9 Estas
“exceções da exceção”, contudo, não são abrangentes o suficiente para
alterar a percepção prevalecente de que o inadimplemento de uma
obrigação de fazer personalíssima atrai somente o remédio da tutela
genérica. Diante desse cenário, cumpre avaliar a compatibilidade
da exceção dos serviços pessoais com a teoria do contrato como
transferência de titularidade criada por Benson.

3. O DILEMA APRESENTADO PELOS SERVIÇOS


PESSOAIS E A RESPOSTA DE BENSON

A existência do instituto da exceção dos serviços pessoais


apresenta um desafio para a tentativa de fundamentação transacional
dos remédios para o descumprimento do contrato. Benson argumenta
que a sua interpretação do Direito Contratual não apenas é coerente
com a prática judicial do Common Law como também é independente
em relação a políticas e valores externos à transação negocial. O
problema é que a maioria dos outros comentadores entende que a
justificativa da exceção dos serviços pessoais extrapola a mera troca
inter partes, relacionando-se com preocupações externas como a
liberdade pessoal do sujeito inadimplente. Esta orientação majoritária
contradiz a proposta de Benson, que atrela a escolha entre a tutela
específica e a tutela genérica exclusivamente a uma análise da medida
que seria mais adequada para compensar a violação do direito do
credor ocasionada pela conduta do devedor.10
A primeira impressão é que a exceção dos serviços pessoais só
poderia ser acomodada na teorização de Benson se ele relativizasse

9 BEATSON, Jack; BURROWS, Andrew; CARTWRIGHT, John. Anson’s law of contract.


29 ed. Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 578; TREITEL, G. H. The law of
contract. 14. ed. Atual. Edwin Peel. Sweet & Maxwell, 2015, p. 1914; STONE, Richard.
The modern law of contract. 9. ed. London: Routledge, 2011, p. 492-493; MACKEDRICK,
Ewan. Contract law: text, cases, and materials. 5. ed. Oxford: Oxford University Press,
2012, p. 929-931.
10 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge: Harvard
University Press, 2019, p. 266.

150 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
alguma das suas premissas metodológicas. Se a teoria do contrato
como transferência de titularidade renunciasse à pretensão de
correspondência com a práxis, Benson poderia afirmar que
o descabimento da tutela específica das obrigações de fazer
personalíssimas é um traço infundado e criticável do Common Law.
Além disso, se a fundamentação transacional do Direito dos Contratos
admitisse a influência de elementos externos na escolha dos remédios
para o inadimplemento, Benson poderia concordar com o afastamento
excepcional da tutela específica em prol da preservação do valor da
liberdade. Ocorre que qualquer uma dessas concessões acabaria
enfraquecendo a coerência da base pública de justificação que Benson
associa ao regramento jurídico contratual.
O problema da compatibilidade teórica da exceção dos serviços
pessoais é agravado pelo fato de que o livro Justice in Transactions
menciona muito brevemente o referido assunto. No oitavo capítulo,
que examina os fundamentos transacionais dos remédios para o
inadimplemento, há apenas uma única referência à exceção dos
serviços pessoais. Trata-se de uma nota de rodapé que enuncia que
“a tutela específica pode ser contrária às políticas públicas quando,
por exemplo, o contrato estipula uma obrigação de prestar um serviço
pessoal.”11 A frase que vem logo depois da chamada para a nota, todavia,
deixa dúvidas quanto à família jurídica contemplada pela afirmação,
porque acrescenta que, “de fato, essa abordagem parece ser a posição
oficial no Civil Law.” A conjugação dessas sentenças indica que, na
percepção de Benson, apenas os ordenamentos jurídicos filiados à
tradição romano-germânicos admitem a exceção dos serviços pessoais
com base em considerações referentes a políticas públicas.
O tema do enquadramento da exceção dos serviços pessoais é
retomado sucintamente na terceira seção do décimo segundo capítulo
do livro Justice in Transactions.12 Nesta parte da obra, Benson se apoia

11 “Specific performance may be against public policy where, for instance, the contract
stipulates a positive covenant of personal service.” BENSON, Peter. Justice in transactions:
a theory of contract law. Cambridge: Harvard University Press, 2019, p. 271, nota 24.
12 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge: Harvard
University Press, 2019, p. 448-476.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A151


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
na filosofia política de John Rawls e tenta demonstrar que a concepção
transacional do Direito dos Contratos é compatível com princípios
de justiça distributiva liberais. Segundo Benson, a compatibilização
é possível porque existe uma divisão de trabalho entre os princípios
transacionais (que regulam as trocas privadas) e os princípios
distributivos (que preservam a justiça de fundo). Com efeito, deve-se
admitir que os princípios distributivos incidem apenas indiretamente
sobre as transações, estabelecendo aspectos subjacentes como
quais são os bens jurídicos excluídos do comércio. Como evidencia
a passagem a seguir, Benson sugestiona que as prestações de fazer
personalíssimas não podem fazer parte do objeto contratual porque
elas integram um núcleo inalienável de autodeterminação individual:

“[...] há um núcleo inalienável de autodeterminação


individual que não pode ser ele mesmo o conteúdo
da relação transacional. [...] Em última análise,
este núcleo inalienável compreende tudo o que
pode contar como (ou ser pressuposto por) uma
liberdade básica no sentido de Rawls, por exemplo,
liberdade de religião e consciência, as liberdades
políticas e seu justo valor, liberdade de associação e
até mesmo uma reivindicação substantiva (que não
deve ser confundida com o princípio da diferença)
de ter suas necessidades básicas satisfeitas. Com
relação ao que quer que seja assim incluído, o direito
contratual sustenta que sua negação não pode ser
um interesse contratual legítimo e exequível. [...] E
nós vimos uma preocupação semelhante operando
quando os tribunais não apenas se recusam a ordenar
a tutela específica de uma obrigação de prestar um
serviço pessoal, mas também, e talvez especialmente,
se recusam a fazer cumprir uma proibição negativa
contra uma parte que trabalha para outros [...].”13

13 “[…] there is an inalienable core of individual self-determination that cannot


itself be the content of the promise-for-consideration relation. […] Ultimately, this
inalienable core comprises whatever can count as (or be presupposed by) a basic
liberty in Rawls’s sense, for example, freedom of religion and conscience, the political

152 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
4. A INSUFICIÊNCIA DA NOÇÃO DE NÚCLEO
INALIENÁVEL DE AUTODETERMINAÇÃO

Em tese, o recurso ao conceito de núcleo inalienável de


autodeterminação individual seria capaz de promover a harmonização
da exceção dos serviços pessoais com a teoria de Benson. Nesse
sentido, poder-se-ia afirmar que o Direito Contratual mantém uma
estrutura transacional porque se preocupa exclusivamente com a
articulação entre a oferta e a aceitação sob um contexto de expectativas
razoáveis. O regramento dos remédios para o inadimplemento,
portanto, trataria somente da lógica da troca de direitos realizada
entre os contratantes, deixando de fora a questão dos objetos passíveis
de negociação, que ficaria a cargo dos princípios distributivos. Sendo
assim, o descabimento da tutela específica das obrigações intuitu
personae estaria justificado por razões de política pública, mas isso
não prejudicaria a autonomia do Direito Contratual, que continuaria
fundamentado em termos puramente transacionais.
Uma análise mais detida, no entanto, revela que a linha
supramencionada acarretaria alguns resultados que embaraçam a
teoria do contrato como transferência de titularidade. Primeiramente,
a afirmação de que as prestações de fazer personalíssimas estão fora do
comércio porque violam princípios distributivos acaba contrariando o
estado da arte do Direito Contratual do Common Law. Todos os dias
são celebrados inúmeros contratos lastreados em características
pessoais únicas, especialmente no ramo dos profissionais liberais,
como os artistas, advogados, contadores, psicólogos, cozinheiros etc.
Os tribunais anglo-saxões não rejeitam a tutela específica dos serviços

liberties and their fair value, freedom of association, and even a substantive claim
(not to be confused with the difference principle) to have one’s basic needs met. With
respect to whatever is thus included, contract law holds that its denial cannot be an
enforceable and legitimate contractual interest. […] And we saw a similar concern
at work when courts not only decline to order specific performance of a positive
covenant of personal service but also, and perhaps especially, refuse to enforce a
negative prohibition against a party working for others […].” BENSON, Peter. Justice
in transactions: a theory of contract law. Cambridge: Harvard University Press, 2019,
p. 464-465.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A153


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
pessoais porque vislumbram ilicitude no objeto do contrato, pelo
contrário, eles reconhecem a validade do negócio, mas ressalvam
que o remédio aplicável deve ser a tutela genérica em homenagem à
liberdade individual do devedor.
Ocorre que a concepção transacional dos contratos, nos termos
propostos no livro Justice in Transactions, demanda uma correlação
exata entre a expectativa do credor e o remédio aplicável. Benson
não poderia admitir que políticas públicas são capazes de definir
a resposta adequada para o inadimplemento, pois este raciocínio
traria uma ruptura entre o conteúdo do direito do contratante
prejudicado e a respectiva forma de tutela jurisdicional. Ao admitir
que a preocupação com a liberdade individual do devedor pode
afastar o remédio que promoveria a justiça compensatória da melhor
maneira, Benson estaria reconhecendo que os princípios de justiça
distributiva incidem diretamente sobre as transações individuais. O
caminho argumentativo viabilizado pela noção de núcleo inalienável
de autodeterminação, portanto, revela-se insuficiente para assimilar
satisfatoriamente a exceção dos serviços pessoais.
É difícil precisar qual seria, de fato, a solução definitiva que
Benson apresentaria para o dilema relativo à tutela específica
das obrigações de fazer com natureza personalíssima. Muito
provavelmente este problema não foi aprofundado no decorrer do
livro Justice in Transactions em virtude da abrangência da referida obra,
que contempla diversas reflexões contratuais de cunho dogmático e
filosófico em seu conteúdo. Até que Benson retome a temática aqui
trabalhada em alguma publicação futura, o que se pode dizer é que
ainda não há uma resposta clara para o desafio da compatibilização
entre a leitura transacional do contrato e a exceção dos serviços
pessoais. Sem prejuízo de outras possibilidades que poderão surgir,
e apenas a título de provocação inicial para o debate, uma saída
interessante seria resgatar e reformular a questão da qualidade dos
serviços pessoais que são prestados de maneira judicialmente forçada.
Relembre-se que, para além da controvérsia primária sobre a
liberdade individual do devedor, um dos argumentos secundários que

154 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
costumam embasar a exceção dos serviços pessoais é a preocupação
com a qualidade da prestação. O Poder Judiciário até pode compelir
o contratante recalcitrante a desempenhar a conduta infungível
assumida, mas é razoável supor que o serviço realizado coativamente
trará um resultado pior do que o originalmente esperado. A constatação
de que a tutela específica não compensaria adequadamente o interesse
do contratante prejudicado, por sua vez, poderia ser utilizada para
justificar a aplicação da tutela genérica dentro de uma concepção
transacional. Esta linha de argumentação parece mais coerente com
a teoria de Benson na medida em que oferece uma explicação interna
para fundamentar o remédio que tutela as obrigações de fazer com
natureza personalíssima.

CONCLUSÃO

O presente trabalho foi motivado pela identificação de uma


tensão entre a teoria do Direito Contratual proposta por Benson e a
exceção dos serviços pessoais reconhecida no Common Law. De acordo
com a concepção do contrato como transferência de titularidade,
a escolha dos remédios para o inadimplemento deve ser feita com
base na apuração da providência jurisdicional mais adequada para
compensar o credor. Benson parte deste teste da adequação para
constatar que a inexecução das obrigações infungíveis atrai a tutela
específica, enquanto a inexecução das obrigações fungíveis atrai
a tutela genérica. A prática judicial do sistema anglo-saxão, no
entanto, evidencia que os tribunais rejeitam a tutela específica das
obrigações infungíveis quando a prestação frustrada envolve um fazer
personalíssimo. O enquadramento da exceção dos serviços pessoais na
formulação teórica de Benson não é uma tarefa fácil, porque a maioria
dos comentadores justifica o instituto a partir de fatores externos à
transação em si, tais como a preocupação com a liberdade individual
do devedor.
A controvérsia da tutela específica das obrigações de fazer
intuitu personae não é aprofundada no livro Justice in Transactions, que

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A155


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
tangencia diversos pontos do regramento contratual. Há um trecho na
terceira seção do décimo segundo capítulo, entretanto, que sugestiona
um caminho de solução para o tema-problema. Com apoio na teoria
da justiça rawlsiana, Benson afirma que os princípios distributivos
incidem apenas indiretamente sobre as transações individuais,
definindo aspectos como os bens excluídos do comércio. Um dos
objetos não negociáveis seria justamente a promessa de prestação
personalíssima, que comporia o chamado núcleo inalienável de
autodeterminação e por isso não seria passível de execução judicial.
Ocorre que esta linha contradiz a teoria do contrato como transferência
de titularidade, porque se distancia do cotidiano jurisdicional do
Common Law e promove uma ruptura entre o conteúdo do direito do
credor e respectivo remédio protetivo. Seria mais coerente, portanto,
refletir sobre soluções internas à própria relação entre os contratantes,
como a argumentação baseada na preocupação com a qualidade do
serviço prestado mediante coação estatal.

156 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
REFERÊNCIAS

BEATSON, Jack; BURROWS, Andrew; CARTWRIGHT, John. An-


son’s law of contract. 29 ed. Oxford: Oxford University Press, 2010.

BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law.


Cambridge: Harvard University Press, 2019.

DAGAN, Hanoch; HELLER, Michael E. Specific performance. Co-


lumbia Law & Economics Working Paper, n. 631, p. 1-57, 2020.

LAYCOCK, Douglas. The death of the irreparable injury rule.


Harvard Law Review, v. 103, n. 3, p. 687-771, Jan. 1990.

MACKEDRICK, Ewan. Contract law: text, cases, and materials. 5.


ed. Oxford: Oxford University Press, 2012.

SMITS, Jan M. Contract law: a comparative introduction. 2. ed.


E-book. Cheltenham: Edward Elgar Publishing Limited, 2017.

STONE, Richard. The modern law of contract. 9. ed. London: Rou-


tledge, 2011.

TREITEL, G. H. The law of contract. 14. ed. Atual. Edwin Peel.


Sweet & Maxwell, 2015.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A157


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
PETER BENSON E A PERSPECTIVA
COMPENSATÓRIA DA DEVOLUÇÃO DO LUCRO DA
INTERVENÇÃO NO ÂMBITO CONTRATUAL

Henry Colombi

INTRODUÇÃO

Sua perda ou meu ganho? Afinal, o que uma parte inadimplente


em um contrato pode antecipar que seja tomado em consideração
para a fixação da sanção pelo descumprimento contratual? Com esse
questionamento, Allan Farnsworth, em seu artigo “Your loss or my gain?
the dilemma of the disgorgement principle in breach of contract” lançou luz
sobre uma omissão no sistema tripartite dos interesses passíveis de
compensação pela quebra de um compromisso contratual1, herdada
de Fuller e Perdue2 e por ele próprio compilada no Restatement second
of contracts3.
Dentro dessa concepção adotada pelo Restatement, o
inadimplemento contratual daria azo a três possíveis interesses: (i) o
interesse de execução; (ii) o interesse de confiança e (iii) o interesse de
restituição. A definição desses três possíveis interesses é trazida com
clareza pelo próprio texto do Restatement:

1 FARNSWORTH, E. Allan. Your Loss or My Gain? The Dilemma of the Disgorgement


Principle in Breach of
Contract. Yale law journal, vol. 94, pp. 1339-1393, 1985. Eisenberg sugere que a
abordagem tímida e da atribuição de um reduzido espaço ao interesse de devolução
do lucro da intervenção no citado artigo de Farnsworth indicaria que a intenção do
autor seria a de justificar a omissão do Restatement. EISENBENRG, Melvin A. The
disgorgement interest in contract law. Michigan law review, vol. 105, n. 3, pp. 559-601,
2006. p. 561.
2 FULLER, L. L.; PERDUE, William R. The reliance interest in contract damages: part.
1. Yale law journal, vol. 46, n. 1, pp. 52-96, 1936.
3 AMERICAN LAW INSTITUTE. Restatement (Second) of Contracts. In: SCOTT, R. E;
KRAUS, J. S. Contract law and theory. 5º ed. Danvers: LexisNexis, 2013. §344.

158 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
§ 344. Propósito dos remédios. Os remédios judiciais
sob as regras estatuídas neste Restatement servem para
proteger um ou mais dos seguintes interesses de um
contratante: (a) seu “interesse de execução”, que é o
seu interesse em obter o benefício de sua negociação
ao ser colocado em uma posição tão boa quanto
aquela em que ele estaria caso o contrato tivesse
sido cumprido; (b) seu “interesse de confiança”, que
é o seu interesse de ser reembolsado pelas perdas
causadas pela confiança no contrato ao ser colocado
em uma posição tão boa quanto aquela em que ele
estaria caso o contrato jamais tivesse sido feito; (c)
seu “interesse de restituição”, que é seu interesse em
ter retornado a si qualquer benefício que ele tenha
conferido à outra parte4.

Entretanto, sobretudo a partir do artigo de Farnsworth, o debate


jurídico no âmbito do common law passou a considerar também
a possibilidade de que o inadimplemento contratual poderia ser
sancionado com a determinação de que a parte prejudicada fosse
contemplada com os eventuais lucros obtidos pela parte inadimplente
em razão do descumprimento. Esse novo interesse recebeu a
alcunha de disgorgement interest – interesse à devolução dos lucros da
intervenção – , o qual daria azo aos denominados gain-based damages –
sanção pecuniária ao inadimplemento calculada com base nos ganhos
da parte inadimplente.
A inclusão desse novo interesse no campo de cogitações do
direito contratual atraiu a atenção de Ernest Weinrib. Teórico da justiça

4 Tradução livre. No original: “§ 344. Purposes of Remedies. Judicial remedies under the
rules stated in this Restatement serve to protect one or more of the following interests of a
promisee: (a) his “expectation interest,” which is his interest in having the benefit of his
bargain by being put in as good a position as he would have been in had the contract been
performed, (b) his “reliance interest,” which is his interest in being reimbursed for loss
caused by reliance on the contract by being put in as good a position as he would have been
in had the contract not been made, or (c) his “restitution interest,” which is his interest in
having restored to him any benefit that he has conferred on the other party”. AMERICAN
LAW INSTITUTE. Restatement (second) of contracts. In: SCOTT, R. E; KRAUS, J. S.
Contract law and theory. 5º ed. Danvers: LexisNexis, 2013. §344.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A159


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
corretiva, o autor enxerga o direito privado como uma manifestação
especial da razão prática que se destina a regular a interação entre
indivíduos em suas relações bilaterais5. Dentro dessa ótica, caberia ao
direito contratual garantir tão somente a compensação pelos danos
sofridos em razão do inadimplemento, não devendo considerar fatores
externos ao esquema compensatório6.
Weinrib, em seu artigo “Punishment and disgorgement as
contract damages”, endereça com preocupação a evolução observada
no contexto do common law no sentido da admissão do interesse à
devolução do lucro da intervenção como remédio ao inadimplemento
contratual. Para o autor, não haveria base de compensatória7 a
embasar referido remédio8. As justificativas subjacentes ao seu
reconhecimento, segundo Weinrib, seriam invariavelmente externas
ao sistema bilateral e correlativo pertinente ao direito privado,
fundando-se especificamente em considerações de desestímulo ao
inadimplemento9.
O histórico da introdução do lucro da intervenção como
uma variável relevante no âmbito contratual e a reação de um
representativo teórico da justiça corretiva em contraponto a esse

5 WEINRIB, Ernest J. Corrective justice. Oxford: Oxford University Press, 2012. p. 2. Essa
posição encontra-se também explicitada no artigo “Punishment and disgorgement as
contract damages”, pertinente de forma mais próxima à presente discussão. WEINRIB,
Ernest J. Punishment and disgorgement as contract damages. Chicago-Kent law review,
v. 78, p. 55-104, 2003. p. 103.
6 WEINRIB, Ernest J. Punishment and disgorgement as contract damages. Chicago-
Kent law review, v. 78, p. 55-104, 2003. pp. 65-70.
7 Por “justificativa compensatória” ou “justiça compensatória” entenda-se a
manifestação particular da justiça corretiva no âmbito do direito contratual. Trata-
se de expressão largamente empregada por Benson neste sentido na obra “Justice in
Transactions”, embora o autor não a defina expressamente nestes termos. Destaca-
se, entretanto, que em textos pretéritos Benson assume a posição de um teórico da
justiça corretiva no âmbito contratual. Cf. BENSON, Peter. Disgorgement for breach
of contract and corrective justice: an analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.).
Understanding unjust enrichment. Portland: Hart Publishing, 2004. p. 312.
8 Os argumentos específicos de Weinrib para rechaçar a adequabilidade do interesse à
devolução do lucro de intervenção serão abordados adiante, em confronto com a tese
de Peter Benson.
9 WEINRIB, Ernest J. Punishment and disgorgement as contract damages. Chicago-Kent
Law Review, Chicago, v. 78, p. 55-104, 2003. p. 77.

160 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
movimento, embora possa atrair algum interesse, não parece se
conectar com o objeto desta obra coletiva, dedicada à discussão do
livro “Justice in transactios: a theory of contract law”, de Peter Benson10.
O fato de Benson ter publicado, no ano seguinte ao da divulgação do
artigo de Weinrib, um trabalho intitulado “Disgorgement for breach
of contract and corrective justice”11, sustentando um argumento pela
compatibilidade da devolução do lucro da intervenção como um
possível remédio ao inadimplemento contratual quando o objeto do
contrato for infungível, embora curioso, tampouco seria suficiente a
justificar essa pertinência.
Contudo, o fato de esse argumento não ter sido reproduzido
na obra “Justice in Transactions” parece justificar uma empreitada
interpretativa, e é a isso que o presente trabalho se propõe. Afinal,
como Benson, dentro de seu esquema do contrato como transferência
de propriedade, consolidado no livro “Justice in Transactions”,
encara a possibilidade de o inadimplemento ser sancionado com a
determinação da devolução do lucro da intervenção?
A fim de oferecer uma resposta a essa pergunta, serão analisadas,
comparativamente, as considerações de Benson acerca do instituto
em sua obra pretérita e no livro “Justice in Transactions”. Após, será
realizado um esforço interpretativo a fim de identificar se o argumento
sustentado por Benson no texto “Disgorgement for breach of contract and
corrective justice”, acerca da compatibilidade da devolução do lucro
da intervenção como um remédio ao inadimplemento de contratos
cujos objetos são infungíveis, seria compatível com a construção
teórica proposta pelo autor no livro “Justice in Transactions”. Ao final,
conclui-se que, dentro do arcabouço bensoniano consolidado em seu
livro de 2019, a devolução do lucro da intervenção segue como um
remédio aceitável dentro de um esquema compensatório também

10 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:


Belknap/Harvard, 2019.
11 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an
analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A161


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
naquela hipótese de inadimplemento de contratos cujos objetos são
infungíveis, conforme sustentado no artigo de 2004.

1. AS (AMPLAS) CONSIDERAÇÕES SOBRE A


DEVOLUÇÃO DO LUCRO DA INTERVENÇÃO NO ÂMBITO
CONTRATUAL NA OBRA PRETÉRITA DE PETER BENSON
E SUA (BREVE) ABORDAGEM NA OBRA JUSTICE IN
TRANSACTIONS: UMA MUDANÇA DE POSIÇÃO ACERCA
DAS PRESTAÇÕES CONTRATUAIS INFUNGÍVEIS?

Aparentemente escrito como uma reação ao texto “Punishment


and disgorgement as contract damages”, de Weinrib, Benson publica
em 2004 o texto “Disgorgement for breach of contract and corrective
justice”12. Trata-se de um texto curto, o qual veicula, porém, uma tese
bastante firme acerca da possibilidade de utilização dos ganhos da
parte inadimplente como medida da sanção pelo descumprimento
contratual dentro de um esquema de justiça compensatória. O texto
tem por objetivo responder a seguinte pergunta: “pode a devolução
dos ganhos [do devedor, decorrentes do inadimplemento] ser uma
medida da compensação pela violação contratual consistente com
uma concepção do contrato como justiça corretiva?” 13.
Para responder a essa questão, Benson compara a utilização da
devolução do lucro da intervenção como um remédio para violações
de titularidades no âmbito extracontratual – pacífica no âmbito do
common law – com a sua aplicação no âmbito contratual. Naquele
primeiro âmbito, Benson constrói o raciocínio pela ampla aceitação
desse remédio como uma decorrência natural do conceito de ofensa

12 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an


analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. p. 312.
13 Tradução live. No original: “can disgorgement of gain ever be the measure of damages
for breach of contract, consistent with a conception of contract as corrective justice?”.
BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an
analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. p. 312.

162 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
à propriedade, dentro de um esquema de justiça corretiva. O autor
sustenta que a propriedade sobre determinado bem não se constitui
simplesmente como uma imunidade reconhecida pelo direito ao
proprietário de não sofrer menoscabo patrimonial – i. e., um poder de
reclamar indenização pela perda patrimonial quando o ato de outrem
que interfira sobre um bem por ele havida de modo a reduzir o seu
valor patrimonial. A propriedade conferia, outrossim, um poder mais
amplo ao proprietário de definir sob quais circunstâncias o bem tido
sob seu domínio poderá ser possuído, usado ou disposto. Destarte,
não apenas uma interferência danosa sobre o seu patrimônio, mas
qualquer interferência que obstrua o seu poder exclusivo de definir
a sorte da posse, do uso e da disposição daquele bem configura uma
violação de seu direito de propriedade e, portanto, é passível de
compensação14.
A devolução do lucro da intervenção, neste sentido, coloca-
se como uma das possíveis respostas à violação de direitos de
propriedade. Sempre que a interferência for diretamente danosa,
representando uma efetiva redução patrimonial, a indenização pelas
perdas sofridas será o remédio adequado. Contudo, quando uma
interferência na faculdade do proprietário de definir os rumos da
posse, uso e disposição, não resulte em prejuízos patrimoniais diretos,
mas confira ao ofensor um ganho ou uma economia, uma correta
retificação da ofensa é alcançada por uma compensação que perpasse
pela condenação do interventor em devolver ao proprietário os
lucros havidos (compreendendo aí tantos os ganhos auferidos quanto
as despesas evitadas), posto ter se apropriado de forma indevida e
desviado benefícios que, por direito, cabiam apenas ao proprietário15.
Aplicando essa mesma lógica ao âmbito contratual, Benson
contrapõe-se à tese de Weinrib, justamente no que se refere à sua

14 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an


analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. p. 313-321.
15 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an
analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. p. 313-321.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A163


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
compreensão do conteúdo do direito adquirido por meio de uma
relação contratual. Divergindo da matriz kantiana sustentada por
Weinrib, segundo o qual o que se adquire por um contrato é o direito
ao ato de prestar por parte do devedor16, Benson vai justificar, de forma
mais firme, a compatibilidade da devolução do lucro da intervenção
com o direito contratual justamente em sua conhecida tese, por ele
caracterizada como de matriz hegeliana17, de que, pelo contrato,
opera-se inter partes uma verdadeira transferência de propriedade
sobre o bem ou serviço objeto da prestação18.
O autor afirma que o conteúdo do direito adquirido por uma
relação contratual é o mesmo daquele que se adquire por um meio
originário de aquisição: a propriedade em si. O que diferiria o contrato
de um modo originário de aquisição seria apenas sua origem derivada

16 O argumento de Weinrib acerca da natureza do direito conferido por um contrato


pode ser encontrado na seguinte passagem: “Kant é explícito acerca da natureza do
direito que emerge desse processo [contratual]. Não é o direito à matéria sujeita ao
contrato. Nem tampouco é um direito à situação que resultaria da execução do ato
prometido. Pelo contrário, é meramente um direito à prática daquele ato, ao que Kant
chama de ‘a escolha do outro de executar uma tarefa específica’”. Tradução livre. No
original: “Kant is explicit about the nature of the right that emerges from this process. It
is not a right to the subject matter of the contract. Nor is it a right to the situation that
would result from the performance of the promised act. Rather, it is a right merely to the
performance of that act, to what Kant calls “another’s choice to perform a specific deed”.
WEINRIB, Ernest J. Punishment and disgorgement as contract damages. Chicago-Kent
law review, v. 78, p. 55-104, 2003. p. 67.
17 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an
analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. p. 325.
18 Vale notar que Benson tenta sustentar a compatibilidade da devolução do lucro
da intervenção também dentro da concepção kantiana do objeto da transferência
contratual como o ato de prestar. Ou seja, o autor tenta uma compatibilização de
seu argumento com o esquema de transferência sustentado por Weinrib. Segundo
Benson, quando se trata de prestação infungível, a direito ao ato de execução da
prestação também se estenderia ao direito de não ter o mesmo ato a si prometido
transferido a terceiros. Contudo, referido argumento não é pormenorizadamente
aprofundado pelo autor, e diante, de sua explícita posição pela concepção de que o
objeto da transferência contratual é a própria propriedade sobre o bem ou serviço,
e não o direito ao ato de execução, a questão parece ter sido superada, tendo sido
incluída no texto apenas à guisa de mostrar a estabilidade de seu argumento com
posições divergentes da sua. BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and
corrective justice: an analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding
unjust enrichment. Portland: Hart Publishing, 2004. pp. 328-329.

164 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
e a abrangência de seus efeitos. Enquanto uma aquisição originária,
por sua natureza necessariamente externalizada, posto consistir em
um ato material de apropriação do bem pela pessoa, ter-se-ia um
direito com dimensão in rem, e, portanto, erga omnes – oponível a todas
as outras pessoas – no contrato, esse direito constitui-se inter partes
– relacionalmente em face daqueles que participaram da relação
contratual – , restringindo-se, nesse particular a uma dimensão in
personam19. A execução do contrato, segundo Benson, não teria qualquer
relevância inter partes em termos de constituição ou modificação dos
direitos transferidos. Haveria, no entanto, uma relevância externa
da execução, apenas para que aquilo que entre devedor e credor já
é uma realidade transacionalmente constituída – a transferência
da propriedade – possa também ser estendida a terceiros20. Logo, a
execução do contrato teria relevância para transmutar a dimensão in
personam a uma dimensão in rem.
Nesse cenário, se, pelo menos em face do devedor, a propriedade
do objeto da prestação é transferida ao credor logo na formação do
contrato, decerto que atos incompatíveis com esse direito perpetrados
pelo devedor no momento prévio à execução do contrato devem seguir
a mesma lógica observada no contexto extracontratual. Logo, se o
devedor destrói a coisa antes da entrega, ele impinge ao credor um dano,
o qual deverá ser compensado pelo interesse de execução. Se o devedor,
quando da data da execução, recusa-se à prestação devida, poderá
o credor pleitear, quando cabível, a tutela específica. Nessa mesma
toada, dentro do esquema sustentado por Benson, caso o devedor,
antes da data da execução, aliene o bem ou o serviço a terceiros de
modo a interferir no direito do credor de recebê-los na data aprazada,
é cabível a devolução do lucro da intervenção eventualmente auferido

19 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an


analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. pp 321-326.
20 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an
analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. p. 234. Conforme se verá adiante, esse raciocínio
particular é superado na obra “Justice in Transactions”, a qual vai embutir no próprio
contrato, já na sua formação, essa dimensão in rem.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A165


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
pelo devedor, tal como seria na hipótese de apropriação indevida de
coisa alheia, ou seja, de esbulho. Afinal, transacionalmente entre as
partes, o conteúdo da prestação efetivamente já pertence ao credor e
assim deve ser tutelado21.
Uma questão factual se coloca a distinguir a aplicação do remédio
da devolução do lucro da intervenção no âmbito extracontratual
e contratual, entretanto. Como nos contratos a transferência da
propriedade do objeto da prestação é abstratamente construída de
acordo com os termos do contrato, a caracterização de um ato de
disposição ou uso do bem pelo devedor somente será incompatível
com os direitos do credor se efetivamente a conduta interferir na sua
faculdade de se apossar do bem ou serviço no momento da execução.
Logo, quando o contrato transfere a propriedade de bens fungíveis,
uma prévia alienação desses bens pelo devedor em nada impactará a
titularidade do credor se, quando da data aprazada, outros exemplares
da mesma qualidade e em mesma quantidade estiverem à disposição
para entrega22.
Ademais, em situações de descumprimento de contratos de
conteúdo fungível, o remédio adequado será a indenização pelo
interesse positivo, pois ela será sempre suficiente para que o credor
possa perquirir os mesmos bens fungíveis contratados no mercado.
O remédio da devolução do lucro da intervenção, portanto, somente
terá lugar quando o contrato em questão versar sobre bens ou serviços
infungíveis, pois nesta situação, de fato, uma alienação a terceiros,
invariavelmente, importará na interferência sobre o direito de
propriedade já previamente transferido ao credor23.

21 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an


analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. pp 321-326.
22 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an
analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. pp 326-328.
23 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an
analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. pp 326-328.

166 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Dentro dessa concepção, Benson logra sucesso em justificar a
devolução do lucro da intervenção dentro de um esquema contratual
eminentemente compensatório. A tese sustentada pelo autor não se
baseia em qualquer consideração de dissuasão e articula, nos limites de
uma moldura de justiça corretiva aplicada aos contratos, um argumento
forte em favor da admissão da devolução do lucro da intervenção
como um remédio adequado ao inadimplemento contratual sempre
que o objeto da prestação contratada for infungível. O autor chega
a afirmar, textualmente, que um esquema dito compensatório que
se limitasse aos clássicos remédios da indenização pelo interesse de
execução da tutela específica, rechaçando tout court a devolução do
lucro da intervenção quando ela se demonstrasse cabível, estaria em
desacordo com a própria noção de justiça corretiva na qual a violação
do dever por parte do autor do ato ilícito deve corresponder ao prejuízo
sofrido pela vítima24.
O argumento sustentado por Benson no texto “Disgorgement
for breach of contract and corrective justice” teve acolhida em estudos
posteriores sobre o tema, ao menos em trabalhos preocupados com
uma perspectiva teórica do direito privado. O texto de Andrew Botterell
apoia-se largamente nas considerações formuladas por Benson
para sustentar que, ainda que esposando-se a visão kantiana sobre
o conteúdo do que se transfere em uma relação contratual, a noção
de titularidades decorrentes do contrato autorizaria a interpretação
pela compatibilidade do remédio dentro de um esquema de justiça
corretiva25. Katy Barnett analisa a posição bensoniana, acusando o
autor de, em seu processo de raciocínio, estender excessivamente
o conceito de dano a fim de acomodar a devolução do lucro da
intervenção em um esquema compensatório26. Anthony Sangiuliano

24 BENSON, Peter. Disgorgement for breach of contract and corrective justice: an


analysis in outline. In: NEYERS, J. et al. (Coord.). Understanding unjust enrichment.
Portland: Hart Publishing, 2004. pp 320.
25 BOTTERELL, Andrew. Contractual performance, corrective justice, and
disgorgement for breach of contract. Legal Theory, n. 16, pp. 135-160, 2010.
26 BARNETT, Katy. Accounting for profit for breach of contract: theory and practice.
Portland: Hart Publishing, 2012. p. 21.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A167


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
considera a posição de Benson, mas a critica dentro de uma concepção
kantiana por ele priorizada27.
Contudo, apesar da repercussão de seus escritos e de diversas
críticas a serem endereçadas sobre o tema, surpreendentemente,
folheando-se a obra “Justice in Transactions”, a obra definitiva
apresentada por Peter Benson sobre a teoria do direito contratual,
não se identifica a reprodução do argumento apresentado em
“Disgorgement for breach of contract and corrective justice”. É verdade que,
na obra “Justice in Transactions”, Benson não descura propriamente
do tema da possibilidade de se calcular a sanção do inadimplemento
contratual com base nos ganhos auferidos pela parte inadimplente.
Quando reflete sobre os remédios oferecidos pelo direito em
alternativa à indenização ao interesse de execução, o autor, ao lado
da indenização pelo interesse de confiança, considera a possibilidade
de se arbitrar a sanção pela quebra do contrato com base nos ganhos
auferidos pela parte inadimplente em determinadas situações. No
livro, Benson segue sustentando expressamente a possibilidade da
aplicação da devolução do lucro da intervenção em duas hipóteses de
configuração do inadimplemento contratual, as quais não haviam sido
consideradas no texto “Disgorgement for breach of contract and corrective
justice”. São elas: (i) situações nas quais “certas atividades lucrativas
engendradas pelo demandado deveriam ser exercidas em benefício
do demandante”28 e (ii) situações nas quais a apuração dos expectation
damages é difícil e a tutela específica impossível em razão de o prejuízo
ser “irreversível, intangível e indireto”29.
A primeira hipótese refere-se a situações na qual o próprio
contrato, por seus termos expresso ou implícitos, define determinadas
atividades do devedor como sendo realizadas em benefício do credor.

27 SANGIULIANO, Anthony Robert. A corrective justice account of disgorgement


for breach of contract by analogy to fiduciary remedies. Canadian journal of law and
jurisprudence, vol. 24, n. 1, pp. 149-190, fev. 2016.
28 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:
Belknap/Harvard, 2019. p. 286.
29 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:
Belknap/Harvard, 2019. p. 287.

168 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Dessa forma, qualquer atitude incompatível com essa disposição
poderá ser adequadamente compensada pela consideração dos
ganhos auferidos pela parte em violação ao contrato. Nessas situações,
Benson constata que a medida da perda do credor equivale aos ganhos
do devedor, sendo a restituição do lucro da intervenção o equivalente
à própria prestação devida30. O remédio, nesta situação, dá ao credor
o próprio objeto do contrato, configurando-se como uma verdadeira
“execução forçada da prestação”31, tal como as são a tutela específica e
a indenização pelo interesse de execução32.
Benson não exemplifica essa primeira hipótese, mas pode-se a
aventar que se enquadraria nesta situação exemplos como a violação
de cláusulas de exclusividade em contratos com elementos fiduciários
e de interdependência mútua, tal como a representação comercial33,
contrato no qual uma das partes se compromete a empreender esforços
na promoção e venda de produtos da contraparte. Nesses cenários,
é possível concluir que qualquer ganho auferido pelo representante
advindo do exercício da atividade de representação comercial
em violação da cláusula de exclusividade pode ser razoavelmente
identificado com a perda do representado em não ter os seus produtos
promovidos e vendidos.
Na segunda hipótese, verifica-se uma clara colocação do
remédio como uma “segunda melhor” opção em termos de sanção,
o que Benson denomina “indenização pelo valor da prestação
perdida”34, na qual as características da prestação são substituídas por
um valor aproximativo em pecúnia. Essa resposta é justificada apenas

30 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:


Belknap/Harvard, 2019. p. 286.
31 Tradução adaptada da expressão “enforced performance damages”, definida por
Benson em: BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:
Belknap/Harvard, 2019. pp. 269.
32 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:
Belknap/Harvard, 2019. pp. 269; 286.
33 Acerca do contrato de representação comercial, cf. arts. 710-721 do Código Civil
brasileiro, bem como a Lei n. 4886/1965.
34 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:
Belknap/Harvard, 2019. pp. 273-274.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A169


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
diante da impossibilidade de se computar o interesse de execução e
de se determinar uma tutela específica35, tendo em vista o prejuízo
ser “irreversível, intangível e indireto”. Para exemplificá-la, Benson
recorre a um dos precedentes mais célebres relativos à aplicação da
restituição do lucro da intervenção no âmbito contratual: o caso “Her
Majesty’s Attorney General vs. Blake”36.
Blake era agente secreto à serviço da Coroa Britânica que havia
cometido traição e revelado segredos de estado à União Soviética.
Condenado e preso, o agente conseguiu fugir do cárcere e refugiou-
se em Moscou. Anos após, Blake escreveu um livro de memórias,
publicado na Inglaterra, revelando segredos que, embora não mais
prejudiciais à segurança nacional, o proporcionaram lucros que se
ligavam diretamente ao fato de sua traição e de sua atuação como
agente duplo. O caso foi decidido em julho de 2000 pela Câmara dos
Lordes britânica. No precedente firmou-se o entendimento pelo
qual seria cabível, como remédio contratual, a devolução do lucro
da intervenção “quando o réu obteve seus lucros ao fazer justamente
aquilo que ele houvera contratado não fazer”37. Na opinião da corte
“Blake auferiu seu lucro ao fazer justamente aquilo que ele havia
prometido não fazer”38, visto que em seu contrato de trabalho havia

35 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:


Belknap/Harvard, 2019. p. 274.
36 REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE. Câmara dos Lordes.
Apelado: O Procurador Geral de Sua Majestade. Apelante: Blake e outros. Relator:
Lorde Nicholls de Birkenhead. Londres, 27 de julho de 2000. Disponível em: <House of
Lords - Her Majesty’s Attorney General v. Blake and Another (parliament.uk)>. Acesso
em setembro de 2021.
37 Tradução livre. No original: “the defendant obtained his profit by doing ‘the very
thing’ he contracted not to do”. REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO
NORTE. Câmara dos Lordes. Apelado: O Procurador Geral de Sua Majestade. Apelante:
Blake e outros. Relator: Lorde Nicholls de Birkenhead. Londres, 27 de julho de 2000.
Disponível em: <House of Lords - Her Majesty’s Attorney General v. Blake and Another
(parliament.uk)>. Acesso em setembro de 2021.
38 Tradução livre. No original: “Blake earned his profit by doing the very thing he had
promised not to do”. REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE.
Câmara dos Lordes. Apelado: O Procurador Geral de Sua Majestade. Apelante:
Blake e outros. Relator: Lorde Nicholls de Birkenhead. Londres, 27 de julho de 2000.
Disponível em: <House of Lords - Her Majesty’s Attorney General v. Blake and Another
(parliament.uk)>. Acesso em setembro de 2021.

170 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
uma disposição expressa no seguinte sentido: “Eu me comprometo
a não divulgar nenhuma informação oficial por mim acessada como
resultado de meu emprego, seja pela imprensa ou em forma de livro.
Eu também compreendo que essas estipulações se aplicam não apenas
durante o período de serviço, mas também para depois de o emprego
ter se encerrado”39. Pelo exemplo utilizado por Benson, vê-se que essa
segunda hipótese em cogitação é particularmente adequada como
remédio ao descumprimento de obrigações pessoais negativas.
Percebe-se, portanto, que nenhuma das duas hipóteses aventadas
por Benson em “Justice in Transactions” parece abarcar a possibilidade
de se utilizar os ganhos da parte inadimplente como medida da sanção
pelo descumprimento de contratos com objeto infungível. Nessas
situações não se cogita de uma “atividade estabelecida em benefício
do credor” e tampouco se afigura uma situação de substitutivo pela
perda da prestação. A possibilidade de utilização do instituto tal como
sustentada por Benson no texto “Disgorgement for breach of contract and
corrective justice”, mais ampla e fundamentada na natureza proprietária
do direito do credor, não foi objeto de consideração em sua obra mais
recente.
Diante dessa omissão, é possível suspeitar de uma eventual
mudança de posição por parte de um Benson mais maduro. Face às
amplas considerações prévias do autor sobre a temática, a omissão
da questão na obra mais recente poderia representar um silêncio
eloquente. Contudo, não parece ser essa a conclusão mais acertada,
pois, considerando a construção teórica formulada pelo autor
que propõe enxergar no contrato uma forma de transferência de
propriedade, a tese sustentada no texto “Disgorgement for breach of
contract and corrective justice” aparenta ser ainda totalmente compatível

39 Tradução livre. No original: “I undertake not to divulge any official information gained
by me as a result of my employment, either in the press or in book form. I also understand
that these provisions apply not only during the period of service but also after employment
has ceased”. REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E IRLANDA DO NORTE. Câmara dos
Lordes. Apelado: O Procurador Geral de Sua Majestade. Apelante: Blake e outros.
Relator: Lorde Nicholls de Birkenhead. Londres, 27 de julho de 2000. Disponível em:
<House of Lords - Her Majesty’s Attorney General v. Blake and Another (parliament.
uk)>. Acesso em setembro de 2021.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A171


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
com o arcabouço teórico apresentado por Benson em sua obra mais
recente. É o que se buscará demonstrar no capítulo seguinte.

2. A ADEQUAÇÃO DA DEVOLUÇÃO DO LUCRO DA


INTERVENÇÃO COMO REMÉDIO AO INADIMPLEMENTO
NO CASO DAS PRESTAÇÕES CONTRATUAIS
INFUNGÍVEIS: UMA PROPOSTA INTERPRETATIVA
À LUZ DA OBRA JUSTICE IN TRANSACTIONS

No livro “Justice in Transactions” Benson reproduz e robustece


amplamente sua tese do contrato como transferência de propriedade,
a qual, conforme demonstrado, constitui o cerne de seu argumento
pela compatibilidade da devolução do lucro da intervenção nas
hipóteses de prestações contratuais infungíveis. Já no prefácio da
obra, Benson aponta que, com base na análise do direito contratual
positivo, observando-se as regras pertinentes à formação do contrato,
à justiça contratual e aos remédios para o inadimplemento, extrai-se a
conclusão de que o contrato seria “uma forma particular de aquisição
transacional entre as partes: uma transferência de propriedade entre
as partes que é completamente efetuada e completa na formação do
contrato, anterior e independente da [sua] efetiva execução”40.
Ao analisar o requisito da consideration, elemento necessário à
formação dos contratos não solenes no common law, tema espinhoso
e de difícil justificação pelas teorias promissórias e eficientistas,
Benson assenta o que é o suporte mais firme de sua tese em meio
às regras contratuais vigentes. A noção expressada pelo requisito
da consideration é a de que o contrato se tem por formado quando as
partes mutuamente transferem à outra algo de valor jurídico (seja uma
promessa, um ato ou uma abstenção). É este o momento a partir do

40 Tradução livre. No original: “a particular form of transactional acquisition between


the parties: a transfer of ownership between the parties that is fully effectuated by and
is complete at contract formation, prior to and independently of actual performance”.
BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge: Belknap/
Harvard, 2019. p. xi.

172 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
qual aquilo que cada parte detinha em seu patrimônio é transacional
e representacionalmente transferido ao patrimônio da outra, e
vice-versa. Benson tem nessa figura peculiar ao direito contratual
do common law maior evidência de que o contrato opera como um
mecanismo de transferência de propriedade sobre o conteúdo daquilo
que se compreende como consideration41.
Essa análise é completada pelo estudo dos remédios ao
inadimplemento, que, elegendo a indenização pelo interesse de
execução e a tutela específica como remédios prioritários, demonstram
a percepção do direito segundo a qual a titularidade contratualmente
transferida (i. e. a propriedade relacional) integra a esfera de direitos do
credor. Por essa razão, o descumprimento contratual atrai sanções que
têm por objetivo restituir ao credor, à medida do possível, exatamente
aquilo que ele adquirira transacionalmente pelo contrato42.
É, entretanto, no capítulo 10 do livro, o qual é inteiramente
dedicado a demonstrar a compatibilidade de sua tese do contrato
como transferência de propriedade ao esquema mais amplo das
demais áreas do direito privado, que os mesmos argumentos presentes
no texto “Disgorgement for breach of contract and corrective justice” são
retomados e elaborados longamente. Neste capítulo, após repisar a
importância da consideration como base de sua percepção do contrato
como meio de transferência de propriedade43, Benson procede à
mesma comparação entre a propriedade havida pelo contrato daquela
adquirida pelos meios originários de apropriação.
O autor compara, por um lado, a aquisição pelos meios
originários como sendo unilateral e dependente de externalização e,
por outro lado, a aquisição contratual como sendo necessariamente
transacional, especificada pelo conteúdo do acordo firmado entre
as partes e, principalmente, abstrata e representacional, ou seja,

41 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:


Belknap/Harvard, 2019. pp. 63-68.
42 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:
Belknap/Harvard, 2019. pp. 298-299.
43 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:
Belknap/Harvard, 2019. pp. 321-325.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A173


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
independente de qualquer manifestação externa. Benson mantém
clara sua posição segundo a qual, já na formação do contrato, o
conteúdo da prestação (consideration) é transferido ao credor, que dele
se assenhora por mero efeito do intercâmbio das prestações, sendo
a execução do contrato um mero demonstrativo factual de respeito
à propriedade já anteriormente adquirida, sem qualquer sentido
normativo relevante. Nas palavras do autor: “a relação contratual,
já na sua formação, consagra a independência normativa de cada
parte vis-à-vis a outra na medida que cada uma delas obtêm um justo
controle exclusivo contra a outra no que diz respeito à substância da
consideration, sempre ao modo de uma representação e especificada
transacionalmente”44.
Aprofundando sua análise sobre as dimensões in rem e in
personam, Benson quebra a dicotomia sustentada no texto anterior
no sentido de atribuir eficácia in rem apenas à aquisição originária e
a eficácia in personam apenas à manifestação contratual, passando a
sustentar a existência de manifestações dessas duas eficácias em ambos
os modos de aquisição. Em “Justice in Transaction”, Benson aprofunda
sua posição segundo a qual, na formação contratual, todo direito a
ser conferido já é transferido entre as partes, não detendo a execução
contratual nem mesmo uma função de sucessão dos direitos in rem.
O autor sustenta expressamente que mesmo os poderes proprietários
já são totalmente estabelecidos no momento da formação, como um
“justo título”45, ainda que sua eficácia perante terceiros somente se
opere com a efetiva entrega – nota-se, somente se opere, mas não se
constitua46. Essa concepção, com efeito, parece atribuir ainda maior

44 Tradução livre. No original: “the contractual relation at formation enshrines the basic
normative independence of each party vis-à-vis the other insofar as each obtains rightful
exclusive control against the other with respect to the substance of the consideration, always
in the medium of representation and as transactionally specified”. BENSON, Peter. Justice
in transactions: a theory of contract law. Cambridge: Belknap/Harvard, 2019. p. 352.
45 A expressão é empregada por Benson em sua formulação latina: “iusta causa
traditionis”. BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:
Belknap/Harvard, 2019. p. 358.
46 BENSON, Peter. Justice in transactions: a theory of contract law. Cambridge:
Belknap/Harvard, 2019. pp. 349-360.

174 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
razão para sua leitura da compatibilidade da devolução do lucro da
intervenção na hipótese de prestações infungíveis, tendo em vista
potencializar a natureza proprietária da titularidade adquirida pelo
contrato.
Observa-se, portanto, que a tese central de Benson segundo
a qual na formação do contrato já se tem, para todos os efeitos, a
transferência de propriedade inter partes (efeito in personam) e já
também a semente de sua eficácia erga omnes (efeito in rem), mantém-
se, inclusive com maior densidade na obra “Justice in Transactions”.
Ora, dentro dessa perspectiva, o argumento anteriormente sustentado
pelo autor no já antigo texto “Disgorgement for breach of contract and
corrective justice” parece inteiramente compatível e, inclusive, até mais
fortalecido pela concepção do conteúdo daquilo que é transferido
pelo contrato apresentada na obra “Justice in Transactions”. Assentada
essa aparente compatibilidade, questionam-se as possíveis razões da
omissão desse argumento no livro, o que será realizado adiante, à
guisa de notas conclusivas.

CONCLUSÃO

Conforme demonstrado, o fervilhante tema da devolução do


lucro da intervenção como remédio ao inadimplemento contratual
ocupou as cogitações de Peter Benson em uma obra pretérita, qual
seja, o texto “Disgorgement for breach of contract and corrective justice”.
Em referido trabalho, o autor contrapôs-se à tese sustentada por
Weinrib e argumentou, de modo inovador, pela compatibilidade desse
remédio a um esquema contratual compensatório – i. e., animado por
considerações de justiça corretiva. Em que pese a repercussão desse
texto, viu-se que o argumento especificamente sustentado, segundo
o qual referido remédio seria adequado a situações envolvendo
contratos de prestações infungíveis nos quais o devedor interferiria
na propriedade transacionalmente conferida ao credor ao alienar o
objeto do contrato a terceiros de forma lucrativa, não foi reproduzido
em sua mais recente obra, o livro “Justice in Transactions”.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A175


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Neste seu último livro, Benson não desconsidera totalmente a
problemática da utilização dos benefícios da parte inadimplente como
medida da sanção pelo inadimplemento contratual, mas a considera
em duas novas e distintas hipóteses, nas quais o argumento formulado
no texto pretérito não parece se acomodar. Viu-se, no entanto, que, pela
compreensão esposada pelo autor, que enxerga no contrato um meio
de transferência de propriedade, a qual foi conservada e robustecida
em “Justice in Transactions”, tem-se que o argumento outrora defendido
permanece totalmente compatível com sua construção teórica atual.
Nesse cenário, concluindo-se pela compatibilidade do
argumento, resta aventar as possíveis razões para a omissão apontada.
Inicialmente, é possível suspeitar que a lacuna pode decorrer do
caráter geral da obra, que tem a pretensão de justificar a teoria do
contrato como transferência com base nas linhas gerais dos institutos
do direito contratual. Assim, é compreensível que o livro se abstenha
de deter-se em detalhes de alguns pontos sensíveis do debate jurídico.
Com efeito, sua consideração sobre a utilização dos ganhos da parte
inadimplente como remédio ao descumprimento contratual é tratada
lateralmente, a título de ilustração da possibilidade de se utilizar outros
meios de cômputo de indenização quando o interesse de execução
não é facilmente aferível e a execução específica não está disponível.
O argumento anteriormente sustentado, referente às prestações
infungíveis, por versar menos sobre uma particular configuração
dos remédios ao inadimplemento e mais sobre um debate acerca do
conteúdo dos direitos contratualmente transferidos, poderia revelar-
se deslocada.
Outra hipótese que se pode aventar é a de que, estabelecida com
clareza a definição do conteúdo do direito contratualmente transferido
– uma propriedade relativa, transacionalmente construída – , dada a
identidade de razões do emprego do remédio da devolução do lucro da
intervenção tal como ele se apresenta no âmbito extracontratual (como
defesa da propriedade), a conclusão sustentada no texto “Disgorgement
for breach of contract and corrective justice” pode ter inclusive soado
como óbvia para Benson no contexto da obra “Justice in Transactions”.

176 | FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS A


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
Dito isso, é possível sustentar que, dentro do arcabouço
bensoniano, tal qual trazido na obra “Justice in Transactions”, a devolução
do lucro da intervenção segue como um remédio aceitável dentro de
um esquema compensatório também naquela hipótese sustentada
no texto “Disgorgement for breach of contract and corrective justice”.
Para além das hipóteses expressamente abordadas no livro “Justice in
Transactions”, quais sejam: (i) situações nas quais “certas atividades
lucrativas engendradas pelo demandado deveriam ser exercidas em
benefício do demandante” e (ii) situações nas quais a apuração dos
expectation damages é difícil e a tutela específica impossível em razão
de o prejuízo ser “irreversível, intangível e indireto”; entende-se como
implicitamente inserida no arcabouço da obra a possibilidade de se
empregar o remédio da devolução do lucro da intervenção também
(iii) quando o objeto do contrato é infungível e o devedor interfere
na propriedade transacionalmente conferida ao credor ao alienar
o bem ou serviço a terceiros. Esta última hipótese, embora não
expressamente contemplada pelo texto, pode dele ser extraída sem
maiores dificuldades.

FILOSOFIA DO DIREITO PRIVADO: ENSAIOS SOBRE A JUSTIFICAÇÃO NOS CONTRATOS|A177


PARTIR DA OBRA DE PETER BENSON
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