Finitum Non Capax Infinitum

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Finitum non capax infinitum – R. C.

Sproul

- Deus é Incompreensível -

O estudo da própria teologia normalmente começa com a


doutrina da incompreensibilidade de Deus. Este termo
pode sugerir ao leitor que cremos que Deus é
fundamentalmente inconhecível ou ininteligível. Na
realidade o caso não é este, de modo nenhum. Nós
cremos que o Cristianismo é, antes de tudo, uma religião
revelada. Somos compromissados com a idéia de que
Deus se fez conhecer a nós suficientemente para que
sejamos redimidos e experienciemos comunhão com ele.

A doutrina da incompreensibilidade de Deus chama


atenção para a distância entre o Criador transcendente e
suas criaturas mortais. Um dos principais axiomas
ensinados por João Calvino era expressado pelo
reformador na frase latina Finitum non capax infinitum - "O
finito não pode captar (ou conter) o infinito." Porque Deus
é infinito em seu ser e eterno e nós somos finitos e
limitados, tanto pelo espaço quanto pelo tempo, nosso
conhecimento dele nunca é compreensivo ou completo.
Nós apreendemos um conhecimento de Deus, mas não o
conhecimento total.

Para conhecer Deus compreensivelmente teríamos


necessidade de participar em seu atributo de infinidade.
Infinidade é um atributo divino acertadamente chamado
de "incomunicável", o que significa que Deus não pode
fazer deuses de nós mesmos. Mesmo Deus não pode
"criar" um segundo deus. O segundo deus não poderia
ser realmente um deus porque seria, por definição, uma
criatura. Seria dependente de e derivado do Deus original.
Mesmo em nosso estado glorificado no céu, no qual
entenderemos as coisas de Deus muito mais
completamente do que entendemos agora, nosso
conhecimento de Deus não será compreensivo, completo.
Nossa glorificação não significa deificação. Ainda
seremos criaturas; ainda seremos finitos. Mesmo no céu o
axioma se aplica:Finitum non capax infinitum.

Embora nos falte um conhecimento compreensivo de


Deus, não somos reduzidos a ceticismo ou agnosticismo.
Nós apreendemos Deus, sim. A igreja primitiva enfrentou
uma heresia virulenta na forma do assim chamado
gnosticismo. Os gnósticos, que derivaram seu nome da
palavra grega para conhecimento(gnosis), criam que não
podemos ter nenhum conhecimento apropriado de Deus
pelos meios normais de apreensão racional ou dos
sentidos. O único canal desse conhecimento é uma
intuição mística possuída só por uma elite bem-dotada de
"gnostikoi", ou "aqueles que estão por dentro". Os
gnósticos reivindicavam um nível ou tipo superior de
conhecimento àquele dos apóstolos e buscavam exceder
ou suplantar a autoridade deles. O problema gnóstico foi
exacerbado mais tarde com o surgimento do
neoplatonismo.

Neoplatonismo foi uma tentativa consciente de fornecer


uma filosofia alternativa ao Cristianismo. A fé cristã, tendo
vencido a filosofia grega tradicional, o neoplatonismo, foi a
tentativa de restaurar a filosofia grega à preeminência. O
filósofo mais importante do movimento neoplatônico,
Plotino, descreveu Deus como "o Um". Plotino insistia que
nada positivo sobre Deus pode jamais ser afirmado. Ele é
inconhecível. Podemos rodear sobre certas idéias a
respeito de Deus, mas nunca podemos pousar sobre
nenhuma delas. Plotino popularizou o método de falar
sobre Deus que é chamado a "via da negação"(via
negationis), que define algo dizendo o que a coisa não é.
A teologia cristã rejeita o cetiscismo do gnosticismo e
neoplatonismo. A via da negação, entretanto, por vezes é
empregada na teologia. Por exemplo, falamos da
infinitude e imutabilidade de Deus. São termos negativos.
Dizer que Deus é infinito é dizer que ele não é finito. Dizer
que ele é imutável é dizer que ele é não-mutável,
não-variável. Neste sentido estamos apontando para
dessemelhanças entre Deus e criaturas. Se houvesse só
dessemelhanças entre Deus e o homem, realmente não
poderíamos ter nenhum conhecimento de Deus.

Tornou-se moda em nossos dias falar em Deus como


sendo "totalmente outro". Esta frase foi cunhada para
salvaguardar a transcendência de Deus contra todas as
formas de panteísmo que buscam identificar Deus com ou
contê-lo dentro do universo. Se tomado literalmente,
contudo, o termo "totalmente outro" seria fatal ao
Cristianismo. Se não há nenhum sentido em que Deus e o
homem são similares, se não há nenhuma analogia de ser
entre Deus e homem, então não há nenhuma base para
comunicação entre nós. Seres totalmente dissimilares não
têm nenhum caminho de discurso entre si.

A Escritura ensina que fomos criados à imagem e


semelhança de Deus. Isto não quer dizer que somos
pequenos deuses. A imagem não obscurece a diferença
entre Deus e o homem. Garante, no entanto, algum ponto
de semelhança que torna possível a comunicação, por
mais limitada que seja.

Embora a igreja empregue o caminho da negação em


suas declarações sobre Deus, sua confissão não é, como
no neoplatonismo, limitada a esse método. Também
usamos o "meio da afirmação" (via affirmatas) e o "meio
da eminência" (via eminentia). A via da afirmação faz
afirmações positivas sobre Deus, como "ele é santo,
soberano e justo". A via da eminência descreve Deus
elevando categorias pertencentes à criatura ao grau
infinito ou máximo.

Por exemplo, estamos familiarizados com as categorias


de poder e conhecimento. Exercemos poder, mas nosso
poder é limitado. O poder de Deus sobre sua criação não
é limitado; é absoluto. Então dizemos que Deus é
todo-poderoso ou onipotente. Do mesmo modo, embora
nosso conhecimento seja limitado, o de Deus não é.
Dizemos que ele é onisciente, ou totalmente sabedor.

Nossa linguagem sobre Deus leva em conta tanto as


semelhanças entre ele e nós como as dessemelhanças. A
incompreensibilidade de Deus busca respeitar este
sentido no qual Deus nos é conhecido e o sentido no qual
ele continua desconhecido para nós.
Martinho Lutero distinguiu entre o "Deus oculto" (Deus
absconditus) e o "Deus revelado" (Deus revelatus):

...uma distinção deve ser observada quando o


conhecimento ou, mais precisamente, o assunto do ser
divino está sendo discutido. A disputa deve ser entre ou o
Deus oculto (abscondito) ou o Deus revelado
(revelato).Nenhuma fé em, nenhum conhecimento e
nenhum entendimento de Deus, até onde ele não é
revelado, são possíveis... O que está acima de nós não
nos cabe. Pois pensamentos dessa natureza, que querem
perscrutar algo mais sublime, acima e externo àquilo que
foi revelado sobre Deus, são completamente diabólicos.
Nada efetuamos com eles senão lançar a nós mesmos
em destruição, porque nos propõem um objeto que
desafia investigação, a saber, o Deus não-revelado. Que
Deus em vez disso fique com seus decretos e mistérios
em oculto.

João Calvino fez uma distinção semelhante entre o que


podemos conhecer sobre Deus e o que permanece
desconhecido para nós. "Sua essência, realmente, é
incompreensível, totalmente transcendendo todo
pensamento humano; mas em cada uma de suas obras
sua glória está estampada em caracteres tão brilhantes,
tão distintos e tão nobres que ninguém, por mais obtuso e
analfabeto que seja, pode argumentar ignorância como
desculpa."

Antes Calvino havia elogiado o conhecimento de Deus


que já temos: "Visto que a perfeição da bem-aventurança
consiste do conhecimento de Deus, agradou-lhe de modo
que ninguém poderá ser excluído dos meios de obter a
felicidade, não só depositar em nossas mentes a semente
da religião da qual já falamos e, como também manifestar
de tal maneira suas perfeições na estrutura inteira do
universo, e diariamente se colocar em nosso campo de
visão, de modo que não possamos abrir os olhos sem ser
obrigados a enxergá-lo".

Calvino e Lutero, com a doutrina da incompreensibilidade


de Deus, procuraram ser fiéis ao ensino bíblico se
prendendo a ambos os aspectos do conhecimento de
Deus, sua ocultação e sua revelação de si: "As coisas
encobertas pertencem ao SENHOR, nosso Deus, porém
as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para
sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei"
(Dt 29.29).

Nós já vimos que a teologia reformada é centrada em


Deus, e não centrada no homem; teocêntrica, não
antropocêntrica. Ao mesmo tempo reconhecemos que
nosso entendimento de Deus tem implicações radicais
para nosso entendimento da humanidade, que ele criou
em sua imagem. O conhecimento do homem e o
conhecimento de Deus são inter-relacionados, estão
vinculados um ao outro. Em um sentido, tornando-nos
apercebidos de nós mesmos nos tornamos cientes de
nossa própria finitude e qualidade de criatura.
Reconhecemos que somos criaturas dependentes. Essas
coisas nos apontam para o Criador, embora em nossa
natureza decaída busquemos evitar ou ignorar essa placa
indicadora de caminhos. Em outro sentido, só quando
entendemos quem é Deus é que entendemos
adequadamente quem nós somos.

Bem no início de seu trabalho clássico, Instituías da


Religião Cristã, João Calvino diz:

Nossa sabedoria, até onde deveria ser considerada


sabedoria verdadeira e sólida, consiste quase que
inteiramente de duas partes: o conhecimento de Deus e
de nós mesmos. Mas como eles são ligados por muitos
vínculos, não é fácil determinar qual dos dois antecede e
dá surgimento ao outro. Pois, em primeiro lugar, nenhum
homem pode se examinar sem logo voltar seus
pensamentos para Deus em quem ele vive e se move;
porque é perfeitamente óbvio que os dons que possuímos
não têm possibilidade de ser de nós mesmos; não é
assim; é que nosso ser em si nada mais é do que uma
subsistência somente em Deus.

Mais tarde Calvino volta sua atenção ao outro lado da


moeda:

Por outro lado é evidente que o homem nunca alcança um


verdadeiro auto-conhecimento até que antes ele tenha
contemplado a face de Deus e descido depois de tal
contemplação para olhar a si próprio... Enquanto não
olhamos para além da terra, estamos bem satisfeitos com
nossa própria justiça, sabedoria e virtude; nós nos
dirigimos a nós mesmos com os termos mais lisonjeiros e
parecemos apenas menores do que semideuses. Mas se
começarmos apenas uma vez a levantar nossos
pensamentos a Deus e refletir no tipo de ser que ele é, e
em quanto é absoluta a perfeição dessa retidão, e
sabedoria, e virtude, à qual, como padrão, somos
constrangidos a ser conformados, o que antes nos
deleitava por sua mostra falsa de retidão se tornará
poluído com a maior iniqüidade; o que antes se impunha
estranhamente sobre nós sob o nome de sabedoria nos
aborrecerá pela sua extrema doidice; e o que apresentava
a aparência de energia virtuosa será condenado como a
mais miserável impotência. Tão distantes estão aquelas
qualidades em nós que parecem as mais perfeitas de
corresponder à divina pureza.

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