Entrevista Com Sergio Paulo Rouanet
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Entrevistadores:
Antonio Felipe Araujo Silva
Aruanda Costa Leonel Ferreira
Cléver Cardoso T. de Oliveira
Elisa Pereira Castro
João Alex Costa Carneiro
Valéria da Silva Freitas
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Entrevista
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Sérgio Paulo Rouanet
minha frustração, tentei aprender alemão sozinho, usando como livro bási-
co a “Fenomenologia do Espírito”, de Hegel, numa tradução de Jean Hyp-
polite. Não fui muito longe, mas aprendi a usar nos contextos apropriados,
e até nos não-apropriados, palavras que pertenciam ao vocabulário esoté-
rico da dialética, como “Aufhebung”. Quando me casei com a socióloga
Barbara Freitag, aprendi de fato a língua e cheguei a traduzir autores como
Walter Benjamin. Mas falar continua sendo um problema: sou capaz de ler
sem dificuldade poemas alemães da Idade Média e do século 17, mas tropeço
humilhantemente nas declinações.
Fora isso, sou um latinista razoável (mas consulto, furtivamente, edições
bilíngües) e tenho uma grande tristeza, a de não saber grego.
SÉRGIO PAULO ROUANET: Quanto às idéias políticas, elas sempre foram de es-
querda. Mas, no início, era uma esquerda um tanto romântica, o que desgos-
tava meu amigo Antônio Houaiss. Quando eu disse que achava os “Manuscritos
Econômico-Filosóficos”, do jovem Marx, mais importantes do que “O Capi-
tal”, meu pobre amigo foi acometido pela cólera dos justos e chamou-me de
revisionista. Depois, minha formação política foi se tornando menos “idealis-
ta”. Li sistematicamente, com Barbara e alguns amigos, os três volumes de “O
Capital”. A descoberta de Gramsci foi uma revelação: aparecia, finalmente, um
marxista que reconhecia a importância das superestruturas. A leitura de Althus-
ser, mais ou menos na mesma época, ensinou minha geração a relativizar um
pouco um certo relativismo historicista em Gramsci.
O grande impacto, sem dúvida, foi a Escola de Frankfurt — a revaloriza-
ção de Freud por parte de Adorno e Horkheimer e a síntese freud-marxista
tentada por Marcuse mostraram de modo inequívoco que o marxismo e a
psicanálise são duas variantes do iluminismo moderno e, como tais, solidá-
rias e complementares, na medida em que uma é voltada para a emancipação
externa e outra, para a emancipação interna. Ao mesmo tempo, a teoria
crítica de Frankfurt, sendo uma filosofia da liberdade, é ontologicamente
incompatível com qualquer forma de totalitarismo. Esse lado radicalmente
democrático da teoria foi desenvolvido pelo último dos “frankfurtianos”,
Jürgen Habermas, com sua teoria da ação comunicativa, e é a síntese de
minha posição, no momento atual: a democracia é a pátria política do ilu-
minismo, em suas duas vertentes, como o iluminismo é a pátria espiritual
da democracia.
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SÉRGIO PAULO ROUANET: Há alguns anos escrevi que a pós-modernidade não tinha
existência própria e não vejo motivo, anos depois, para modificar essa opinião. A
pós-modernidade é parte da modernidade, pois é a modernidade sonhando sua
própria superação. Marx disse, no início do século 19, que a filosofia alemã era o
sonho da Revolução Francesa. Enquanto a França construía a modernidade po-
lítica e a Inglaterra, a modernidade econômica, a Alemanha sonhava no mundo
do espírito uma modernidade metafísica. Creio que a filosofia pós-moderna é
o equivalente atual do idealismo alemão. Ela percebe, corretamente, os perigos,
disfunções e patologias do mundo moderno, mas em vez de enfrentar esses ma-
les no terreno da história real, edifica nas nuvens um pós-moderno mítico. O
pós-moderno é uma Terra do Nunca fantasiada por uma modernidade doente.
Parodiando Drummond, a modernidade cansou de ser moderna, agora ela quer
ser pós-moderna.
A meu ver, um caminho mais promissor seria explorar, na prática, todas
as virtualidades do próprio projeto moderno. Esse projeto tem uma dimensão
funcional, weberiana, voltada para o aumento da eficácia, da racionalidade ins-
trumental, do rendimento técnico, mas também tem uma dimensão iluminista,
voltada para a autonomia dos agentes. Uma sociedade que não tiver esse segun-
do vetor nunca será moderna. Será tão arcaica quanto o castelo de Silling, de
Sade, com máquinas aperfeiçoadíssimas de torturar e de gozar, mas que abriga,
atrás de suas altas muralhas, uma sociedade de escravos submetidos ao prazer
de alguns e, no limite, de um só. A tarefa política consiste em dar condições
concretas de realização à modernidade iluminista: não se trata de uma fuga para
trás, regredindo a uma pré-modernidade ultrapassada pelo desenvolvimento da
espécie, nem de uma fuga para frente, empurrando o homem para um pós-mo-
derno ilusório, mas de dar voz e vez à modernidade emancipatória, realizando
o projeto moderno, em vez de descartá-lo.
SÉRGIO PAULO ROUANET: Creio que tudo aponta para um mundo multiidentitário
em que não haja uma oposição simples entre as culturas particulares e a cultura
universal, mas um sistema de identidades múltiplas que se entrecruzam e se se-
dimentam no indivíduo para a formação de personalidades complexas. Um dos
piores legados do século 19 foi ter dado legitimidade à idéia de que só devemos ter
uma única lealdade — nacional, religiosa ou étnica. Contra esse reducionismo, o
iluminismo moderno aposta no universal. Isso não significa negar a incomen-
surável riqueza do pluralismo cultural, mas é justamente em nome dos valores
da diversidade que temos que recusar o enclausuramento numa única cultura.
Se formos só brancos, ou só esquimós, ou só xavantes, estaremos nos fechan-
do em guetos culturais autárquicos, hermeticamente calafetados contra o Outro,
contra todos os outros que compõem o gênero humano. Por isso acredito, sim,
na hibridação. Não vejo fundamentalismo nisso, pelo contrário: todos os indi-
víduos compulsivamente uniidentitários são fundamentalistas potenciais. Se eu
fosse bósnio, preferiria ter que enfrentar um sérvio que fosse um pouco muçul-
mano, um pouco negro, um pouco maranhense, um pouco mulher, a enfrentar
um sérvio duro e puro, um sérvio que fosse apenas sérvio. Vivam as diferenças,
sim — mas não as diferenças coletivas, comunitárias, que fazem com que argen-
tinos sejam diferentes de brasileiros, e sim as diferenças individuais, que fazem
com que um brasileiro seja diferente de outro brasileiro, ou, melhor ainda, as
diferenças que eu voluntariamente incorporo, transformando-me, graças a um
processo contínuo de “autopoesis” numa síntese, por mim mesmo fabricada, de
todas as diferenças que eu mesmo escolhi.
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SÉRGIO PAULO ROUANET: Desde que saí do cargo de secretário nacional de Cul-
tura, tenho acompanhado apenas à distância o desenvolvimento da política cul-
tural brasileira e, por isso, evito pronunciar-me sobre aspectos específicos dessa
política, como os relacionados com a Lei de Incentivo à Cultura. Partilho ple-
namente da opinião de que precisamos equilibrar grandes projetos patrocina-
dos pelo setor empresarial com projetos alternativos, experimentais, que refli-
tam a diversidade cultural brasileira. Lembro, aliás, que esses objetivos figuram
entre os objetivos fundamentais do Pronac. Acrescento que, segundo minha
concepção original, o financiamento de tais projetos deveria ficar a cargo do
Fundo Nacional de Cultura, constituído por recursos públicos, e não a cargo
do mecenato.
Quanto à inclusão de instituições religiosas entre as beneficiárias da Lei de
Cultura, acho essa idéia totalmente absurda. Há muitos argumentos contra isso,
mas basta dizer que felizmente vivemos num estado laico, baseado no princípio
constitucional da separação entre o Estado e as igrejas, e a idéia de convocar o
poder público para co-financiar “templos”, seja pela renúncia fiscal, seja pelo
desembolso físico de recursos, vai numa direção diametralmente contrária a
esse princípio.
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