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SOBRE O

RELATIVISMO

PÓS-MODERNO

E A FANTASIA

FASCISTA DA

ESQUERDA IDENTITÁRIA
ANTONIO RISÉRIO

SOBRE O

RELATIVISMO

PÓS-MODERNO

E A FANTASIA

FASCISTA DA

ESQUERDA IDENTITÁRIA

Topbooks
Copyright © 2019 Antonio Risério

EDITOR
José Mario Pereira

EDITORA ASSISTENTE
Christine Ajuz

REVISÃO
Luciana Messeder

PRODUÇÃO
Mariângela Felix

CAPA
Miriam Lerner - Equatorium Design

DIAGRAMAÇÃO
Arte das Letras

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE.


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

R474s

Risério, Antonio
Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária - Antonio Risério.
— 1ª ed. — Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.
142 p.; 21 cm.

ISBN: 9788574752891

1. Brasil — Política e governo — Séc. XXI. 2. Democracia — História — Brasil. I. Título.

19-60348 CDD: 320,981


CDU: 32(81)

Todos os direitos reservados por


Topbooks Editora e Distribuidora de Livros Ltda.
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“Quase em todo lugar... a operação de tomar partido, de se
posicionar a favor ou contra, substituiu a obrigação de pensar”.

SIMONE WEIL, Pela Supressão dos Partidos Políticos.


Contracapa

Este é um livro de enfrentamento direto, desafiando sem inibições e sem


temor o relativismo pós-moderno e o fascismo identitário. Um livro de
intervenção intelectual e combate político frontal. Logo, um livro
abertamente polêmico, sem concessões, sem floreios, sem branduras, sem
meias palavras. Uma crítica rigorosa e vigorosa à estranha “práxis”
esquerdista que colocou os campi sob seu implacável e agressivo controle,
na base do chicote e da rédea curta. Um protesto em defesa do verdadeiro
convívio político e cultural. Da vida ao ar livre da democracia.

A VIOLÊNCIA ROUBA A CENA O “OUTRO”: DO RECONHE À


REJEIÇÃO, CAMINHOS PARA A CRACOLÂNDIA MENTAL, A
RACIONALIDADE PLANETÁRIA, ABOLIÇÃO DA HISTÓRIA E DAS
CLASSES SOCIAIS, A DEFESA DO APARTHEID POLÍTICO E
CULTURAL, A BOLHA NEONEGRA, O AFRO-OPORTUNISMO, A
ONIPOTÊNCIA DO PALAVREADO, SUPERAR O APARTHEID,
REENCONTRAR A DEMOCRACIA.
Orelhas

Este é um livro que vem para virar a mesa. Para bater de frente com um
mundo político-cultural hoje hegemônico, reinando no sistema
universitário e até na mídia. Estamos na ditadura do multiculturalismo, do
"politicamente correto”, do identitarismo, com militantes fechados em
seus guetos, de onde saem apenas para manifestar ódio a divergências e
diferenças. Movimentações e grupos que, partindo de uma base justa de
reivindicações, deformaram-se e se perverteram ao extremo.
Em “Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda
identitária”, tudo isso é posto em questão. E não resta pedra sob pedra.
Com erudição e clareza, o antropólogo ANTONIO RISÉRIO vai narrando
a história da formação desses movimentos excludentes (da contracultura e
da transição democrática na década de 1970 aos dias de hoje), e
desmontando, uma a uma, suas mistificações e manipulações, do desvario
irracionalista do pensamento pós-moderno às posturas fraudulentas diante
da realidade e da história.
Vão ruindo, assim, as falácias dos vários modismos para cá importados
sem qualquer crivo crítico. Falácias do multiculturalismo. Do “racialismo
neonegro” e seu estranho discurso em defesa da pureza racial. Da
radicalização assexuada do neofeminismo, com seu horror ao desejo
heterossexual. Da abolição das classes sociais, substituídas por critérios
étnicos e sexuais, no neomarxismo acadêmico. Do combate racista às
mestiçagens.
Mas o autor não se contenta com embates antropológicos ou
filosóficos. Sua intervenção é também política. E vai à crítica do fascismo,
que sobressai como triste característica de movimentos que de tudo fazem
para se impor autoritariamente na vida social e sufocar qualquer
discordância. Movimentos cujas condutas não se pautam exatamente pelo
respeito à verdade dos fatos. Como se ao “oprimido” fosse legítimo
manipular dados e atropelar a ética.
Em resposta a isso, e se definindo no campo da esquerda democrática,
este ensaio é uma defesa veemente do verdadeiro convívio político e
cultural, onde todos possam se mover e se manifestar ao ar livre da
democracia.
Sumário

Nota do autor

1- A violência rouba a cena

2 - O “outro”: do reconhecimento à rejeição

3 - Caminhos para a cracolândia mental

4 - A racionalidade planetária

5 - Abolição da história e das classes sociais

6 - A defesa do apartheid político e cultural

7 - A bolha neonegra, o afro-oportunismo

8 - A onipotência do palavreado

9 - Superar o apartheid, reencontrar a democracia


Nota do autor

ESTE LIVRO É, NA VERDADE, uma invenção de José Mario Pereira,


meu editor. O que aconteceu foi o seguinte. Sentei a fim de escrever um
artigo para jornal, dentro daquelas medidas padronizadas. Logo de cara, vi
que não dava. O texto começou a se estender além dos limites previstos.
Começou a ganhar forma de pequeno ensaio. Em seguida, constatei que
ensaio, sim — pequeno, não. Comentei o assunto com José Mario. Quando
viu qual era o tema, ele avisou de imediato que queria ler. Continuei
escrevendo. E deu no que deu. Quando finalmente disse ao meu editor a
extensão que o escrito tinha assumido, ele não hesitou: “vamos fazer o
livro”. E aqui está o rebento devidamente encadernado.
Não estava nos meus planos fazê-lo. Mas o bicho se impôs,
aproveitando-se da minha indignação diante do fascismo crescente que
vem caracterizando, nos últimos anos, o discurso e a conduta do segmento
hoje mais barulhento da esquerda brasileira: a chamada esquerda pós-
moderna, com sua linha de frente nos movimentos ditos “identitários” e
suas milícias brutais — uma versão atual, mas escandalosamente atroz e
truculenta, das “patrulhas ideológicas” da década de 1970, assim batizadas
pelo cineasta Cacá Diegues, numa expressão que então se tornou corrente
em nosso meio artístico-intelectual. Indignação que foi acentuada (e
muito) pelo fato de que, pelo menos de um ano para cá, nossos intelectuais
“de esquerda” têm produzido textos denunciando e analisando o fascismo
de direita que reemergiu entre nós. Mas, como no velho ditado, se recusam
a olhar o próprio rabo, silenciando sobre o fascismo esquerdista — este,
aliás, por sua anterioridade em nosso cenário recente, responsável pelo
recrudescimento daquele. No polo oposto, invisto vigorosamente, aqui,
contra o sectarismo, as simplificações, os construtos deliriosos, a
ignorância, a cegueira voluntária e involuntária, as ações virulentas contra
qualquer expressão de dissenso político ou ideológico e a rejeição radical
da outridade, que hoje se expressam explicitamente no identitarismo.
O que o eventual leitor terá em mãos, portanto, é um livro de
enfrentamento direto, afrontando sem inibições e sem temor o relativismo
cognitivo (ou epistêmico) pós-moderno e o fascismo identitário, Já que o
primeiro se encontra, queira ou não, na base do segundo. Um livro de
intervenção intelectual e combate político frontal. Logo, um livro
abertamente polêmico, sem concessões, sem floreios, sem branduras, sem
meias palavras. Muito pelo contrário. A propósito, costumo dizer que meu
guru é Lutero: não tenho papas na língua. E, por isso mesmo, aqui está um
livro que destoa radicalmente do atual clima de complacência e medo que
tomou conta do ambiente intelectual de esquerda e, em especial, do meio
universitário, acadêmico, onde tantos professores, quando não apoiam o
identitarismo, escudam-se covardemente no silêncio, temerosos de
sofrerem linchamentos verbais e agressões físicas, elementos hoje centrais
desta estranha “práxis” esquerdista que colocou os campi sob seu rigoroso
controle, na base do chicote e da rédea curta.
Quanto a mim, não só abomino qualquer espécie de fascismo, venha
historicamente do stalinismo ou do nazismo, por exemplo, ou se expresse,
em nossa penúria conjuntural, nos extremos do “petismo”, do
“identitarismo” ou do “bolsonarismo”, como me recuso a aceitar o
silêncio dos “bem pensantes” sobre o assunto — ou sua manifestação,
ridiculamente seletiva, no ataque exclusivo ao fascismo direitista. Planto
meus pés, com toda clareza e determinação, no campo da esquerda
democrática. E reajo como posso a qualquer ofensiva para asfixiar a
liberdade de pensamento e expressão e para liquidar ou suprimir
discordâncias e dissidências. É preciso voltar a respirar o ar livre e
enriquecedor do verdadeiro convívio democrático, espaço por excelência
para a manifestação clara, franca — desenvolta e desembaraçada — de
todos os uns e de todos os outros.
E não será demais lembrar que, num ensaio relativamente breve como
este que se vai ler ou folhear apenas, muita coisa fica necessária ou
mesmo quase forçosamente de fora. É inevitável. Por isso mesmo, faço ao
eventual leitor um pedido que não julgo excessivo. Peço que se concentre,
primeiramente e principalmente, no que de fato eu fiz — e não no que
deveria ter feito ou deixei de fazer. Não que esta segunda postura deva ser
descartada. Não é isso. Mas é que se vem tornando rotineira e até
sistemática, em nosso meio, uma atitude culturalmente estranha e mesmo
narcísica: o destinatário da mensagem parece não ter olhos para ela,
preocupado apenas com o seu próprio ponto de vista. Assim, diante de um
produto intelectual ou estético, denuncia o que ali não foi tratado ou
retratado, sem contemplar ou examinar, concentradamente, o objeto
mesmo que tem à sua frente e o que ele realmente traz ao campo de nossa
atenção.
Por fim, levando em conta que este ensaio é uma espécie de
continuação de conversas recentes que tenho mantido sobre os temas aqui
abordados, seja em meio a companheiros geracionais, seja com
intelectuais, escritores e artistas bem mais jovens do que eu, a eles
agradeço — e a eles dedico este escrito. Eis: a filósofa Bruna Frascolla
(entre outras coisas, tradutora dos Diálogos sobre a Religião Natural de
David Hume e autora de As Ideias e o Terror), a cientista política
Emanuelle Monteiro Torres, o geógrafo Fernando Coscioni (“política
identitária é sinônimo de politização do ressentimento”), o sociólogo
Gustavo Falcón (autor de, entre outros, Os Coronéis do Cacau e Do
Reformismo à Luta Armada), o escritor e crítico João Carlos Rodrigues
(autor de João do Rio: Vida, Paixão e Obra e O Negro Brasileiro e o
Cinema), o músico Makely Ka, a culturóloga Marília Mattos, a advogada
Mariana Risério (que, no próximo novembro, lança Meninas, Mulheres e
Imagens Virtuais: Por Entre Violências, Direitos e Ciberfeminismo), o
cientista político Paulo Fábio Dantas Neto (autor de Tradição, Autocracia
e Carisma), o psicanalista Marcus do Rio, a arquiteta-cineasta Silvana
Olivieri (autora de Quando o Cinema Vira Urbanismo) e o novelista Victor
Mascarenhas, que já nos deu, entre outras coisas, Cafeína e A Insuportável
Família Feliz. E, se nomeei suas áreas básicas de atuação, foi para mostrar
a alguma variedade que me tem cercado nesses entreveros com o
identitarismo. Ao lado dessa turma, não posso deixar de mencionar uma
dívida que contraí com o filósofo Francisco Bosco, já que seu livro A
Vítima Tem Sempre Razão? foi a provocação inicial, lá atrás, para que,
mais cedo ou mais tarde, eu chegasse a este ensaio. Assim como não posso
me esquecer de deixar aqui meus agradecimentos a Mariângela Felix
(produção), Luciana Messeder (revisão) e Miriam Lerner (capa), que
capricharam na execução do projeto deste agora novo livro. Afora isso,
para minha mulher Sara Victoria — sempre.

Ilha de Itaparica, setembro de 2019


1. A violência rouba a cena

DE UNS TEMPOS PARA CÁ, tanto no cenário político-cultural norte-


americano quanto no brasileiro, assistimos à proliferação de ações
persecutórias e mesmo truculentas protagonizadas não só pela extrema-
direita, mas, para a surpresa de muitos, pela chamada “esquerda
identitária”, que se julga moralmente superior ao resto da humanidade.
Aqui, quem quer que não concorde in totum com as imbecilidades hoje
imperantes, é prontamente atacado com os palavrões agora em voga:
homofóbico, racista, misógino, etc. E atacado sem o menor escrúpulo, com
desprezo absoluto pela ética e por verdades factuais. Se o atacado quiser
argumentar, defender o seu ponto de vista, pior. Identitários não perdem
tempo com argumentos e outras bobagens do gênero, desde que andam
sempre muito menos interessados em discutir ideias do que
sistematicamente empenhados em destruir reputações. E é por isso que
berram, alto e mau som, apelando para o que está ao alcance de seus
mínimos neurônios, numa carretilha de xingamentos morais
absolutamente irresponsáveis, onde “canalha” é das expressões mais leves.
Apenas para dar alguns exemplos, lembro coisas acontecidas
recentemente no Canadá e nos Estados Unidos, todas muito bem
documentadas, por sinal. Veja-se o caso da perseguição identitária ao
psicólogo canadense Jordan Peterson. Como se sabe, Peterson defende o
ponto de vista de que somos todos “binários”, isto é, homens ou mulheres,
mesmo que “transexuais”. Só que aprovaram recentemente uma lei no
Canadá — país que se tornou o paraíso delirante de todos os fascismos
identitários e, logo, o inferno do que quer que cheire a democracia e
liberdade de expressão —, a chamada Lei C-16 de proteção a identidades e
gêneros, fundada no “politicamente correto”, que pode fazê-lo perder o
emprego e ser preso por pensar o que pensa, dentro do sistema
universitário, que, em princípio, deveria ser o espaço mesmo do livre
fluxo de ideias. E é bom frisar que os identitários fizeram de tudo para
impedir Peterson de defender sua postura num debate público justamente
sobre — adivinharam — liberdade de expressão, no campus da
Universidade de Toronto: levaram um aparelho que produzia ruído,
gritaram sem parar e ainda desligaram o som enquanto ele argumentava.
Na verdade, o que se vê hoje, no Canadá, é a soma de fanatismos
identitários desembocando no que deve ser definido como um embrião de
fascismo de Estado. Já nos Estados Unidos, tivemos, entre outras coisas, a
campanha absurda movida contra o historiador Ian Buruma, até então
editor da New York Review of Books. Sob uma chuva de mentiras (já
devidamente desmascaradas) da militância identitária — dos chamados
social justice warriors, que são, digamos, uma versão digital de milícias
como as mussolinistas na Itália, as franquistas na Espanha, as salazaristas
em Portugal e as peronistas na Argentina —, Buruma foi demitido do
posto. Artigos desmontam aqui e ali essas farsas enfuriadas. Mas o feroz
moralismo identitário continua promovendo festivais de calúnia e infâmia.
E nesse meio parece que não há militante que não seja cego, barbaramente
cego.
No Brasil, já em 2013, presenciamos o caso do violento ataque
esquerdista-identitário ao geógrafo e analista político Demétrio Magnoli e
ao filósofo Luís Pondé, numa feira literária realizada em Cachoeira do
Paraguaçu, na Bahia. Impediram Demétrio de falar, jogando, inclusive,
uma cabeça de porco ensanguentada no meio do palco de onde ele iria
expor seu pensamento. E isto pelo simples fato dele ser um crítico lúcido
de nossas atuais fraudes estatísticas, que metamorfoseiam até índios em
pretos, e principalmente das políticas públicas compensatórias (cotas
raciais, etc.), quando, de Sarney a Lula, nossos governantes foram
incorporando acriticamente o discurso sempre norte-americanoide e as
reclamações do racialismo neonegro. Pondé também foi cercado e
silenciado por estudantes, naquela cidade do Recôncavo Baiano.
Testemunha dos fatos, o escritor Victor Mascarenhas recorda:

Eu estava na Flica [Feira do Livro de Cachoeira] e vi o protesto


durante a participação de Demétrio Magnoli. Foi em 2013, ainda no
rescaldo das manifestações daquele ano... Os militantes impediram que
ele falasse (ou seja: não protestaram contra algo que ele disse,
cercearam violentamente o seu direito de falar), exigiram que ele fosse
embora da cidade e ainda ameaçaram fazer o mesmo em relação à
participação de Luiz Felipe Pondé. A participação de Pondé foi
também cancelada, em mais um ato de censura e intolerância.

Em seguida, passamos pelo episódio da “blogueira” cubana Yoani


Sanchez. A história, nesse caso, chega a ser até cruelmente irônica. Depois
de anos lutando por maior liberdade de expressão no quintal dos irmãos
Castro e pelo direito de viajar para fora do país, Yoani viu esta sua
reivindicação ser atendida e aterrissou feliz da vida no Brasil. Mas para
levar um susto. Aqui, militantes esquerdistas a humilharam publicamente
e a impediram de abrir a boca para dizer qualquer coisa. Foi só então que a
coitada aprendeu que é rigorosamente proibido criticar a ditadura cubana
nos terreiros e torrões do esquerdismo brasileiro.
Agora, junho de 2019, um “coletivo” (expressão que hoje, em contexto
identitário, se tornou sinônimo de fascismo) invadiu a Escola de Teatro da
UFBA (Universidade Federal da Bahia) para impedir a encenação da peça
“Sob as Tetas da Loba” (Jorge Andrade), dirigida pelo professor Paulo
Cunha. Ladrando e espumejando de ódio, os militantes racialistas
implantaram um clima de terror e medo no Teatro Martim Gonçalves,
inclusive agredindo fisicamente a professora Deolinda França de Vilhena,
já com seus 60 anos de idade, aos berros de “racista” e “branca da França”,
por ser Deolinda casada com uma francesa e ter estudado naquele país -- o
que também mostra o alto grau de preconceito desses identitários
neonegros com relação a amores lesbianos — brancos, ao menos. (Na
verdade, a homofobia tem sido há tempos um traço forte do racialismo.
Em meados da década de 1990, o historiador e antropólogo Luiz Mott teve
os muros de sua casa pichados e quebrados os vidros do seu carro, pelo
simples fato de ter defendido a hipótese de que Zumbi dos Palmares
gostava de fazer sexo com outros homens, na veadagem quilombola). Ou
seja: vimos um “coletivo” racifascista neonegro impedindo a encenação de
uma peça e agredindo uma professora universitária. Vale dizer,
reproduzindo, agora no campo da esquerda, o ataque do velho CCC
(Comando de Caça aos Comunistas) da década de 1960 à peça “Roda
Viva”, de Chico Buarque, dirigida por José Celso Martinez. Na época, em
discurso lúcido e indignado, durante apresentação festivalesca de sua
composição “É Proibido Proibir”, Caetano Veloso acusou aquela esquerda
universitária de fascista, aos gritos: “Vocês são iguais aos que entraram na
‘Roda Viva’ e espancaram os atores, não diferem em nada deles”. Perfeito.
E ainda hoje a esquerda brasileira em geral se recusa a bater na mesa,
denunciando claramente o fascismo em suas próprias fileiras: ou apoia a
agressão ou, em sua covardia, prefere fechar os olhos para não se
comprometer. Acredita que, de todos esses episódios, sai sempre com as
mãos limpas.
A própria Deolinda comenta:

... um ato de censura, de agressão, mas que está sendo visto pela
esquerda como um ato político! A UFBA, a ETUFBA [Escola de
Teatro] quase pediram desculpa aos invasores do teatro, enquanto a
professora agredida NÃO teve uma única palavra de apoio da casa
onde trabalha. Dos colegas esquerdistas, nem pensar.

A filósofa Bruna Frascolla frisa que a reitoria da UFBA não deu sequer
uma notinha a respeito da violência contra Deolinda e a peça de teatro. Diz
ela: a mesma reitoria que se manifestou publicamente até contra a
pichação da suástica em banheiros da Universidade, escolheu agora ficar
caladinha, não dar um pio. E Bruna está certa quando afirma que a
universidade brasileira jogou a toalha — e que não é necessário censurar
professores porque eles mesmos já se autocensuram (ao contrário do que
muitos imaginam ou alardeiam, a covardia intelectual é rotineira no
ambiente acadêmico). No artigo “Racialismo e Violência nos Campi” (O
Globo), a antropóloga Yvonne Maggie comentou:

Estamos mesmo vivendo tempos sombrios e a violência nos campi


cresce e demonstra a falta de diálogo, a ausência da busca pelo
universal que deveria ser central na instituição em que trabalhamos.
Afinal, a universidade, segundo a etimologia, significa universalidade.
[...]. Ao saber do ocorrido imediatamente me solidarizei com a
professora. Nunca fui agredida fisicamente, mas já fui chamada de
‘genocida’ por um grupo... no dia da cerimônia na qual recebi, em
reunião do Conselho Universitário da UFRJ [Universidade Federal do
Rio de Janeiro], o título de professora emérita. Nunca falei sobre isso
porque confesso minha grande dor ao presenciar estudantes agredindo
uma professora que dedicou sua vida acadêmica a construir
mecanismos mais democráticos de inclusão de grupos menos
favorecidos na UFRJ. [...]... me admirei com o silêncio da comunidade
acadêmica que, por medo ou por apoiar este tipo de atitude, não fez
nenhum desagravo público.

Violência à direita e violência à esquerda, é o que vemos. De fato, em


matéria de “caça às bruxas”, muito embora com sinais ideológicos
pretensamente opostos, o velho macarthismo e o novel identitarismo se
equivalem, ou até mesmo este supera aquele na escala do ódio, assim
como, no âmbito brasileiro, equiparam-se, em suas intervenções
“culturais”, a truculência identitária e a da extrema-direita “bolsonarista”.
Tudo sob o signo do fascismo. E, antes que me venham com frescuras
acadêmicas, aviso que emprego a expressão “fascismo” em seu sentido
corriqueiro de tentativa de exercer controle ditatorial sobre a postura e o
discurso dos outros, desde que estes manifestem o mínimo teor de
discrepância com relação aos dogmas ou à doxa de determinado grupo que
se acha e se autodeclara portador da verdade e do destino histórico de toda
uma coletividade. Apenas para me confirmar, digamos assim, uma revista
feminista norte-americana publicou não faz tempo, desavisadamente,
como artigo em defesa da causa, a tradução para o inglês de um capítulo
do Mein Kampf de Adolf Hitler. (Aliada à violência, a censura anda hoje
em alta no Brasil. Da direita à esquerda. Evangélicos, quando chegam ao
poder, tentam censurar o que podem e o que não podem. Como o atual
desprefeito do Rio de Janeiro. Identitários, igualmente. Até o Supremo
Tribunal Federal, suposto guardião de uma carta constitucional que bane a
censura, censurou sites com textos da operação “Lava Jato” que se
referiam ao presidente da “corte”, curiosa expressão com a qual costuma
ser tratado aquele conjunto pseudoaristocrático e algo hilário de togas
roçagantes. Mas a coisa não para por aí. Pesquisa recente do Datafolha
mostrou que nada menos do que 45% dos brasileiros consideram que o
presidente tem todo o direito de censurar obras e espetáculos realizados
com recursos de leis federais de incentivo fiscal). No que de momento
desejo destacar, o fascismo avança furiosamente, em plano verbal e/ou
físico (fascistas, quando não podem fuzilar, xingam a plenos pulmões),
com o propósito de calar e destruir quem quer que destoe minimamente da
ciscalhada identitária que vem emporcalhando mais e mais nosso
ambiente político e cultural. Frise-se, ainda, que a postura fascista não
discrimina entre credos ideológicos, manifestando-se sem inibições tanto
à direita quanto à esquerda, irmanando assim, definitivamente, Hitler,
Stálin e todas as inumeráveis legiões de seus seguidores, onde quer que
eles estejam. Afinal, o furor dos stalinistas que levaram Maiakóvski ao
suicídio é monstruosamente idêntico ao furor dos nazistas que levaram
Walter Benjamin ao suicídio.
2. O “outro”: do reconhecimento à rejeição

EXTREMA-DIREITA À PARTE (que esta, como os bolcheviques,


nunca vacilou em se pautar pelo jogo pesado, ao contrário da, digamos,
esquerda “francesa”, que sempre gostou de posar de “civilizada” na
polarização “civilização ou barbárie”, apesar de tudo o que sempre soube
sobre a Rússia, a Coréia do Norte, a China, o Camboja de Pol Pot e do
Khmer Vermelho e mesmo Cuba), a primeira pergunta que me ocorre,
diante desse quadro atual de intolerância e agressividade dos
identitarismos, é: como chegamos até aqui? Para tentar responder à
pergunta, vamos, primeiramente, recordar alguma coisa da trajetória
recente desses movimentos sociais que hoje são colocados sob o guarda-
chuva do identitarismo. Em seguida, ensaiar uma leitura de como o
identitarismo se formou a partir do campo intelectual, misturando ou
pretendendo ter misturado coisas aparentemente tão díspares quanto, por
exemplo, o desconstrutivismo “gramatológico” de Jacques Derrida e a
herança da luta norte-americana pelos civil rights, a conversa enviesada de
Gilles Deleuze e os punhos fechados do Partido das Panteras Pretas (sim:
black panther — e a tradução de “black” é “preto”), ou a viagem de
Michel Foucault pelos meandros do poder e o discurso feminista vindo de
Betty Friedan, Gloria Steinem e Germaine Greer, agora levado ao extremo
de uma impecável lógica do absurdo, completamente a-histórica, como se
relações sociais fossem passíveis de reificações irrevogáveis,
cristalizando-se numa espécie qualquer de superartefato arqueológico, e
não um processo permanente de deslocamentos, mudanças, reinvenções,
rupturas, saltos e mesmo mutações.
Mas vamos proceder por partes. De saída, lembrando que as atuais
movimentações do identitarismo, tão rígidas e autoritárias, tiveram sua
origem mais imediata não em células de encarniçados militantes nazistas
ou stalinistas, mas na relaxadíssima agenda contracultural dos anos
sessentas, tempos de flower power e do slogan “paz e amor”. Sim. Foi na
preamar neorromântica da contracultura que nos concentramos, com
veemência ou intensidade variável, em coisas como o orientalismo, as
drogas alucinógenas (ou “drogas para a expansão da consciência”), o
pacifismo, o movimento das mulheres, a ecologia, o pansexualismo, as
questões negra e indígena, os discos voadores, a transformação here and
now do mundo, etc. Aí estavam os elementos fundamentais da ecletíssima
dieta de boa parte da juventude mundial naquela época. Em suma, vieram
à luz, na movimentação estético-psicossocial da contracultura, as
primeiras florações contemporâneas de temas que hoje mobilizam
energias políticas e sociais nos mais diversos cantos do planeta. Mas essas
coisas não passariam de imediato a integrar a (e a se mover na) esfera
propriamente política. O ecologismo contracultural, por exemplo —
apesar do surgimento de entidades e escritos como o Clube de Roma, o
relatório
Limites do Crescimento, o texto “Population, Resources,
Environment” de Anne e Paul Erlich ou as advertências de Maxwell Fry
—, foi mais uma postura lírica, ou lítero-filosófica, do que qualquer outra
coisa; algo quase na linha do profeta sioux Smohalla, que se recusava
terminantemente aos trabalhos agrícolas, para não ferir o corpo de sua
mãe-terra. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, o jogo só mudaria
adiante.
No caso brasileiro, estas movimentações só alcançariam repercussão
sociopolítica na segunda metade da década de 1970. Utilizando metáforas
terapêuticas, Caetano Veloso observou, então, que aquele foi o momento
da passagem da “homeopatia” ao “antibiótico”, vale dizer, de traspassar a
brandura e a lassitude de um contemplativismo contracultural regado a
ioga e incensos (note-se, de passagem, que a virada política do hippie em
yippie não veio até nós), em direção a interferências mais enérgicas e
lineares na vida do país. Ao invés do androginismo difuso impregnando o
astral contraculturalista, por exemplo, pensava-se agora em termos
organizacionais a luta pelos direitos de lésbicas e bichas, com recurso
sistemático ao proselitismo e o envolvimento de raciocínios de base
jurídica. Do mesmo modo, o ecologismo se politizaria gradualmente daí
em diante, persistindo certos aspectos originais do contraculturalismo
apenas em meio a ínfimos grupúsculos “artesanais”, que continuaram a
rejeitar in totum o repertório tecnológico contemporâneo. Podemos citar
algumas das fontes dessa mudança, no sentido da qual pesou
principalmente a nova conjuntura política e a reconquista da capacidade de
intervir por parte da assim chamada “sociedade civil”, agora comboiada
por padres e advogados, gente tradicionalmente conservadora que, diante
dos desequilíbrios sociais brasileiros e das violências do regime militar,
bandeou com firmeza para os campos do ativismo antigovernamental.
Em 1974, com o retorno do chamado “grupo castelista” ao poder, era
esperável certo abrandamento da repressão, abrindo-se a perspectiva de
um renascimento do debate político nacional. E o presidente Ernesto
Geisel, governando em condições nem sempre fáceis, logo colocou em
andamento a sua política de “distensão lenta, gradual e segura”, fustigada
à esquerda e sabotada à direita. Foi um jogo complicado, em meio a
diversas pressões, viessem elas da Igreja Católica, com a Confederação
Nacional dos Bispos do Brasil e suas “comunidades eclesiais de base”, dos
oficiais da “linha dura” das forças armadas (agarrando-se com unhas e
dentes ao aparato repressivo), da Ordem dos Advogados do Brasil,
somando arrazoados jurídicos sobre o “estado de exceção” (na mira, o AI-
5) e mesmo da Associação Brasileira de Imprensa. Fatos como o
assassinato de Vladimir Herzog, a demissão do general Ednardo
(comandante do II Exército), as cassações de mandatos de políticos
oposicionistas, a breve ofensiva do terrorismo de direita em 1978, as
agressões ao clero e, claro, a derrota do arquirreacionário general Sylvio
Frota dão bem uma ideia das peripécias que marcaram aquele processo de
liberalização controlada, que ao mesmo tempo acenava para a liberdade de
imprensa e não abria mão do AI-5. Mas o fato foi que o país finalmente se
reanimou para a política, depois dos anos brutalmente repressivos da
presidência do general Garrastazu Médici. Descompressão, informação e
crítica sugerem, nesta ordem, uma reação em cadeia. E a verdade foi que o
ambiente se tornou mais vivo, a opinião pública recuperou em parte seu
grau de informação sobre a vida nacional e a discussão da natureza do
regime e dos programas governamentais de ação ganhou maior amplitude
e outra textura. Daí que se possa dizer que, de par com a entrada em cena
dos generais Geisel e Golbery, saudada com certa extravagância pelo
cineasta Glauber Rocha, tenha enfim se iniciado o que então se chamou “o
despertar da sociedade civil”.
No que aqui mais nos interessa, vamos realçar que nesse período (em
especial, a partir da segunda metade da década de 1970) emergiram ou
reemergiram com força crescente, na vida política e social do Brasil, as
questões feminina, negra, indígena, gay e ecológica, ao lado do “novo
sindicalismo” do ABC paulista, da proliferação de associações de bairro e
do ativo Movimento do Custo de Vida, panelas vazias empunhadas por
donas de casa e militantes das “comunidades de base” e do PCdoB. Coisas
que, durante décadas, foram em boa parte assunto limitado a miúdo
grêmio de cientistas e historiadores, assunto de excêntricos ou ocupação
de visionários tão obsessivos quanto desgarrados, adquiriram nesse tempo
relevância pública inédita e mesmo estatuto de movimento social,
alastrando-se pelas cidades e obrigando os partidos políticos a rever, em
graus variáveis de sinceridade, seus programas monotonamente
semelhantes. Passados os velhos tempos de Bertha Lutz, Carmen Portinho
e Patrícia Galvão (a Pagu da ala “antropofágica” do modernismo de 1922),
a onda feminista transpõe agora as discussões do womens lib da década de
1960 e entra com força total no debate brasileiro, incursionando inclusive
pela chamada “imprensa alternativa”. Também os gays se organizam,
criam grupos, fundam jornais como o Lampião, por exemplo. A luta
indígena — impulsionada por seu próprio movimento interno, mas
também pela Igreja Católica, por antropólogos e por coisas como a
rebelião oglala-sioux de Wounded Knee (Estados Unidos, 1973) — se
afirma irreversivelmente, com os índios e seus aliados se movendo com
desenvoltura cada vez maior na cena brasileira, levando inclusive o
eleitorado carioca a dar ao cacique Mário Juruna, hoje completamente
esquecido, uma cadeira no Congresso Nacional. Esta é também a época da
pregação simplificadora, ou simplacheirona e maniqueísta, de Abdias do
Nascimento e do surgimento do Movimento Negro Unificado, esforçando-
se para aplicar entre nós a hypo-descent mie dos senhores escravistas do
sul dos Estados Unidos. Época, ainda, da conversão do ambientalismo
underground em movimento ecológico, a caminho da futura formação de
um “partido verde” no panorama político brasileiro.
Em resumo, é isso: da contracultura às lutas da década de 1970, no
caminho da reconquista da democracia no Brasil, desenha-se a nova
paisagem política e cultural do país. É claro que, como lembra Francisco
Bosco, em A Vítima Tem Sempre Razão?, as histórias das lutas das
mulheres pela igualdade vêm de antes, desde pelo menos o desempenho de
Nísia Floresta (amiga do guru positivista Auguste Comte, que, aliás, a leu
em português, comentando então com um amigo que tinha descoberto,
surpreso, que entendia mais uma língua), passando pelas “sufragetes” (já
com Carmem Portinho despontando), os ataques virulentos de Pagu —
Patrícia Galvão — aos movimentos de mulheres, em nome do velho
“marxismo- leninismo”, etc. (Só fiquei surpreso com Francisco
observando que “a luta feminista... remonta a mulheres quilombolas do
período colonial”; nunca topei com nenhuma informação segura sobre o
assunto — e não nos esqueçamos, também, de que os moradores de
Palmares sequestravam escravas de plantações próximas ao quilombo,
empregando-as em serviços agrícolas e sexuais). Do mesmo modo, depois
da grande coalizão de classes e cores no movimento abolicionista
(desembocando naquela que é, ainda hoje, a nossa maior revolução social),
as lutas de negros e mulatos escuros pela igualdade vêm desde inícios do
século XX, prolongam-se na criação da Frente Negra Brasileira (que
chegou a aderir à ditadura do Estado Novo, época em que não hesitaram
em defender o nazismo e a tratar Zumbi como um “fuhrer de ébano”), etc.
Mas, depois do golpe militar de 1964 — que, embora sem prender ou
exilar nenhum líder de políticas étnicas, atravancou a vida democrática no
país —, veio o silêncio. Especialmente, pós-1968, quando o tempo fechou
de vez.
Daí que o marco seja o avanço do movimento pela democracia (ou pela
“redemocratização”) na segunda metade da década de 1970. Foi ali que as
chamadas “lutas de minorias” (hoje tratadas, talvez menos
inadequadamente, como identitárias) se projetaram e ganharam
visibilidade social e política no cenário brasileiro. Nasceram — ou
renasceram —, portanto, de nossas lutas em defesa das diferenças, em
favor do respeito fundamental ao outro. Nasceram e se firmaram, para
usar os termos de Francisco, na luta contra “o poder” (no sentido de
Foucault) e por “reconhecimento”. Ou seja: na luta para ampliar direitos
(Bosco, citando o extremo racista estadunidense do sistema “Jim Crow”: o
“déficit de reconhecimento pode se manifestar em formas jurídicas... em
leis que favoreçam determinados grupos em detrimento de outros”) e
afirmar socialmente identidades “minoritárias”. Bem. Penso que aqui eu e
Francisco Bosco começamos a nos afastar. De uma parte, apesar de
considerá-lo fascinante, não tenho como aceitar quase nada das teses de
Foucault, do eruditíssimo papo furado das “epistemes” à fantasia lítero-
filosófica “hegeliana” sobre o desaparecimento do autor. E acredito ser
verdade o que Richard Sennett diz num de seus livros, não me lembro
agora se em Flesh and Stone ou Together, acerca da paranoia de Foucault
sobre controles sociais, que só teria principiado a abandoná-lo quando ele
começou a morrer. Em todo caso, a luta contra o “poder”, na típica leitura
de camadas sempre desdobráveis desenhada por Foucault, teria mesmo de
se desembrulhar ad injimtum...
Quanto ao “déficit de reconhecimento”, no campo dos marcos político-
jurídicos, é coisa que ainda pode ter avanços, evidentemente. Mas as
conquistas estão aí para quem quiser ver (os próprios identitários não
querem, claro, ou vão enfraquecer seu discurso). Tanto para mulheres (lei
Maria Penha, delegacias da mulher, campanhas nacionais contra violência
doméstica e “feminicídio” etc.), quanto para negros e mulatos (no plano
governamental, com o presidente Sarney criando a Fundação Palmares,
cuja atuação suspeita gerou, em nosso presente, mais quilombos do que
Zumbi seria capaz de sonhar, e as políticas públicas racialistas de
Fernando Henrique Cardoso e Lula da Silva), expressando-se em “estatuto
da igualdade racial”, terras para quilombolas, tombamentos de terreiros de
candomblé, cotas raciais em todo canto (menos na hora de escalar a
seleção brasileira de futebol — por quê?), entre outras coisas. Mas o que
quero sublinhar é o seguinte. Depois de se afirmar e de realizar avanços e
conquistas notáveis, esses movimentos, que nasceram do respeito ao outro,
passaram a tomar como inimigo justamente o outro. É feroz o combate de
neofeministas e neonegros à outridade. A tudo que signifique diferença.
Este é o ponto fundamental. Na peripécia política recente em torno do
outro, andou-se (ou desandou-se), no Brasil, do reconhecimento geral à
recusa específica. Este foi um dos caminhos para a prevalência atual do
fascismo identitário.
3.Caminhos para a cracolândia mental

POR ESTRANHO QUE PAREÇA à primeira vista, a base dos atuais


catecismos identitários, no campo intelectual, está no cruzamento do
pensamento pós-estruturalista francês (ou da chamada filosofia “pós-
moderna”, de um modo geral) e do que ficou ou restou, no mundo
universitário norte-americano, da contracultura da segunda metade da
década de 1960. Numa entrevista a Jordan Peterson, Camile Paglia investe
contra essa leitura. O que ela diz é que o sentido de totalidade, de
sensibilidade humana maior e mesmo de “consciência cósmica”,
característico dos anos sessentas, nada tem a ver com o reino do
fragmentário e do fragmentado que vemos hoje, com o “neomarxismo
universitário” norte-americano e seus identitarismos, que não só odeiam
quaisquer dissensões, como representam uma maneira preguiçosa de
esposar o multiculturalismo, sem de fato investigar e estudar as demais
culturas. Ok. A contracultura foi aberta, democrática e libertária — e o
identitarismo atual é unidimensional, sectário e violento, tratando de
tentar calar seus críticos a qualquer preço, para impor uma voz única ao
mundo. E é, por isso mesmo, situável no âmbito do fascismo. Mas, ao
contrário de Camile, penso que a leitura está correta.
Lá atrás, no lastro do navio, entrelaçaram-se o pós-estruturalismo e o
contraculturalismo, ambos sofrendo distorções e perversões que ninguém
esperava. E este estranho casamento se plantou em terreno sólido e
claramente delimitado: a recusa da racionalidade iluminista e da ciência
moderna, quase sempre reduzida a uma de suas instâncias, a da ciência
aplicada, tecnociência. No centro da cena, em última análise, o relativismo
epistêmico. Mas vamos com vagar. A mentalidade “pós-moderna” se deixa
caracterizar de fato, entre outras coisas, por sua recusa explícita ou
implícita do Iluminismo. Em Imposturas Intelectuais, Alan Sokal e Jean
Bricmont, ao elencar “aspectos intelectuais do pós-modernismo”,
apontam: rejeição da tradição racionalista do Iluminismo; discursos
teóricos desconectados de qualquer teste empírico; fascínio pelos
discursos obscuros (do ocultismo heideggeriano ao ocultismo lacaniano,
por exemplo); relativismo epistêmico extremista implicando ceticismo
com relação à ciência moderna; alto interesse em crenças subjetivas
independentemente de sua verdade ou falsidade; relativismo cognitivo e
cultural que encara a ciência “como nada mais que uma ‘narração’, um
‘mito’ ou uma construção social entre muitas outras”; ênfase em discursos
e linguagem em oposição aos fatos aos quais aqueles discursos se referem
— “ou, pior, a rejeição da própria ideia de que fatos existem ou de que
podemos fazer referência a eles”. E não nos esqueçamos de que, em
Michel Foucault ou o Niilismo de Cátedra, José Guilherme Merquior, com
a finura erudita de sempre, trata o filósofo francês não só como um
neoanarquista, mas, também, como “o grão-sacerdote que oficiou as
núpcias do anarquismo com a contracultura”. Anota Merquior:

O estruturalismo, como clima ideológico, fez o pensamento francês


capitular ante o credo contracultural. Uma das bases da campanha
contracultural foi a demolição ‘crítica’ da herança do Iluminismo.
Michel Foucault desempenhou um papel fundamental nessa estratégia,
pois devemos a ele o golpe final da investida contra o Iluminismo.

É correto falar da vigência histórica de uma certa postura anti-


intelectual no conjunto da sociedade norte-americana. Fato que, aliás, não
passou despercebido ao nosso Joaquim Nabuco, como se vê ao longo do
registro que faz da influência que sofreu da cultura estadunidense, em
Minha Formação: “A intervenção do grande pensador, do grande escritor,
do homem competente, faz-se sentir na Inglaterra mais do que nos Estados
Unidos, onde as massas obedecem a influências que não têm nada de
intelectual e não têm apreço por nenhuma espécie de elaboração mental”.
A contracultura não destoou do quadro. Mas é também correto dizer que o
anti-intelectualismo contracultural foi drasticamente seletivo. Pensadores
como Herbert Marcuse e Norman O. Brown, por exemplo, tinham passe
livre entre os “desbundados”, ao lado de Allan Watts e Daisetz Teitaro
Suzuki, filósofos e místicos do Oriente, representantes do esoterismo
ocidental, porta-vozes das camadas marginalizadas da sociedade
industrial, profetas de uma “nova era”, antipsiquiatras como Ronald Laing
e David Cooper, etc. Enfim, figuras extraocidentais e párias e críticos do
complexo civilizacional do Ocidente. A recusa da racionalidade e o cultivo
do irracionalismo não eram feitos via subterfúgios ou meras insinuações,
mas de modo explícito e muitas vezes vigoroso. Um belo proverb of hell
do romântico inglês William Blake poderia ser a divisa do movimento:
“Os tigres da ira são mais sábios que os cavalos da instrução”. A
disposição anti-iluminista, antirracionalista, era, portanto, um fato. Penso
que, para a maior parte dos viajantes do contraculturalismo, a Razão era
uma divindade absolutamente suspeita, devendo ser sumariamente
destronada. Em seu lugar, a intuição e a emoção. A linguagem dos
sentimentos. Coisas que, de resto, se vão desdobrar adiante no estranho e
doentio sentimentalismo identitário, com sua rejeição de formas verbais
que indiquem aspectos desagradáveis da vida e dos seres humanos, como
feiura, deformidades, invalidez, incapacidades, aleijões, etc. — tudo à
espera de uma boa terapia, psicanalítica ou não (mas isso não é comigo:
Davos sum, non Oedipus). Além disso, a contracultura foi também
relativista. Alargou o caminho de uma abertura extra ocidental herdada do
anarco-romantismo dos beatniks, que já haviam voltado sua atenção e
sensibilidade para coisas como o budismo zen e ritos pré-colombianos de
povos da mesoamérica, chegando inclusive a levar o poeta Jerome
Rothenberg a se lançar às prospecções felizes de sua “etnopoesia”, como
vemos num livro como Technicians of the Sacred. Para completar o
quadro, em direção ao identitarismo atual, a década de 1960 foi também
momento de reemergência e avanço de movimentos sociais que pareciam
submersos, como o dos negros e o das mulheres, e de outros que só então
deram as caras, como o dos gays.
Mas não vamos avançar sem fazer um esclarecimento. Uma coisa é o
relativismo antropológico clássico, crítica do etnocentrismo para melhor
aproximação de outras culturas. Outra coisa é o relativismo pós-moderno,
a absolutização absolutista do relativismo, por assim dizer, a fim de tentar
retratar o exagero total da postura: uma coisa, para ser verdadeira, basta
existir; os discursos só contam dentro de suas culturas; etc. Nada tenho a
ver com esses relativistas radicais que hoje desfilam hegemônicos pelos
bancos, parques e bosques dos campi universitários. De saída, porque
relativismo antropológico sério, no meu entender, não exclui, em
princípio, o embate ou confronto de teorias, ideologias e práticas.
Enquanto o relativista pós-moderno (ou relativista cognitivo radical)
defende que uma afirmação ou ponto de vista só pode ser considerado
verdadeiro ou falso com relação a uma cultura particular. E no passo
seguinte, por sinal, voltando totalmente as costas à lógica, desprezando-a,
este mesmíssimo relativista não hesita em aplaudir ou aceitar culturas que
se julgam superiores às outras. E isto veio a ser a base filosófica do
identitarismo. Para resumir o que aconteceu, digamos que o caminho foi
do relativismo antropológico a um ideologismo relativista. E, em seguida,
a uma política do relativismo e a um ativismo relativista... Na frase
irretocável da cientista política Emanuelle Torres, transformaram ativismo
político em episteme. E aqui a discussão acaba. Porque o único argumento
dos identitários, quando seriamente questionados, é de ordem moral.
Ernest Gellner, em Antropologia e Política (Revoluções no Bosque
Sagrado):

Os relativistas tendem, de fato, a se apresentar completos, com auréola


e tudo o mais, e a expor seu ponto de vista não apenas como solução de
um problema, mas como símbolo de excelência moral.

E ainda querem me calar... em nome da liberdade. É paradoxal, cínica


ou involuntariamente paradoxal, quando o fascismo se pretende travestir
de libertário. Porque o que temos de fato, como veremos, é apartheid
político, ideológico e cultural. Guetificação sistemática e sistemática
louvação do gueto. Projeto de subjugar toda a sociedade aos ditames
discursivos do gueto (e não me perguntem, no caso felizmente improvável
de os guetos um dia triunfarem, qual deles iria prevalecer sobre os
restantes — e como).
Convergência contracultural de relativismo, subjetivismo e
movimentos sociais, portanto. Como se vê, temos cruzamentos e
entrecruzamentos do pós-estruturalismo e da contracultura na parição de
uma esquerda pós-moderna, que vai desembocar na agitação identitária.
Agora, que do contraculturalismo marcusiano e do pós-estruturalismo à
Foucault tenham brotado as plantas venenosas do identitarismo, é coisa
que me faz lembrar o verso de T. S. Eliot, num dos poemas de Prufrock
(“Fortran of a Lady”, se a memória não me trai): our beginmngs never
know our ends — nossos começos jamais imaginam nossos fins. E isso vai
tomar conta da esquerda cultural (ou “acadêmica”) norte-americana, em
terreno claramente contraditório. Por dois motivos, ao menos. Primeiro,
porque Karl Marx, como Freud, orgulhava-se (e muito) de ser um herdeiro
do Iluminismo. Segundo, porque a conversa de “pluralismo cultural” era
coisa do establishment norte-americano em tempos de Guerra Fria.
Falava-se disso como uma característica dos Estados Unidos, enquanto
“sociedade aberta”, vis-à-vis o mundo comunista. A esquerda a rejeitava.
Em O Fim da Utopia: Política e Cultura na Era da Apatia, Russell Jacoby
lembra que, por várias décadas,

a ideia de pluralismo exalava conformismo político e anticomunismo


típico da Guerra Fria. Uma nova geração de acadêmicos e críticos [soi-
disant marxistas] passou a denunciá-la nos anos 1960.

De repente, a esquerda pós-moderna deu meia-volta volver, assumiu o


que a direita norte-americana sempre quis que ela assumisse, rebatizou
pluralismo de multiculturalismo e assim, de roupagem nova, a onda
conquistou espaço antes impensável. Mas é também compreensível. A
ênfase total na luta de classes levou os novos movimentos sociais a se
afastarem do marxismo e, logo, da esquerda canônica, tradicional. Foram
todos então gerar esta — e engrossar o caldo desta — esquerda pós-
moderna, cultora do relativismo e do multiculturalismo, voltada
novidadeiramente para combates particulares ou mesmo particularistas,
não mais para o horizonte maior, “clássico”, da transformação geral da
sociedade e da construção de um mundo novo. Projetos revolucionários
totalizantes ficaram para trás — restou apenas a vocação para o
totalitarismo.
Mas é claro que um processo histórico tornou isto possível, como nos
mostra a socióloga Lúcia Lippi em Americanos: Representações da
Identidade Nacional no Brasil e nos EUA, recorrendo ao artigo “What
Price Correctness?”, de Robert Brustein, professor em Harvard. De
acordo com Brustein, tudo começa com procedimentos para ampliar o
espaço e melhorar a posição de grupos desfavorecidos dentro do sistema
universitário norte-americano, numa movimentação que assumiu
expressão slogamática no “politicamente correto”. Lúcia Lippi, seguindo
Brustein:

A garantia de participação crescente de minorias produz como


consequência a criação de novos departamentos, começando pelo dos
negros e das mulheres e, agora, de qualquer minoria ‘virtualmente’
oprimida. Se isso produziu a politização da e na universidade...
produziu, também, consequentemente, a queda do padrão de qualidade
da produção e do ensino. Segundo Brustein, fabrica-se pesquisa para
que se consolidem sentimentos de valorização e/ou supremacia racial.
Manipulam-se fatos históricos com finalidades raciais. A
multiplicação de áreas de estudo e de departamentos específicos torna
os estudantes informados somente sobre aquele tema ou assunto. Gays
aprendem a virtude de serem gays, mulheres estudam a discriminação
por elas sofrida ao longo da história do Ocidente e assim por diante.
[...]. Assim, o multiculturalismo, em vez de ser a fertilização de uma
cultura por outra, torna-se o processo de promover um estilo de vida
exclusivo. A ideia de qualidade torna-se ‘politicamente incorreta’ e
passa a ser identificada como método conspiratório para manter a
exclusão das minorias. Os que não concordam que cor e gênero
determinam tudo passam a ser estigmatizados como racistas e sexistas
[embora “sexista” devessem ser chamados não estes pobres descrentes,
mas quem vê a organização genital do corpo humano como uma
espécie qualquer de axis mundi, desculpando-me aqui, desde já, por
alguma eventual reverberação fálica da palavra eixo].

Vai-se então num crescendo de princípios e crenças cada vez mais


estapafúrdios, materializando-se em ações que de fato realizam, embora
talvez perversamente, a antevisão irônica de Jorge Mautner, dita e repetida
nos tempos da contracultura, inícios da década de 1970: “Ainda iremos ver
o surgimento de grupos em defesa dos direitos das lésbicas gordas
canhotas, por exemplo”. Mas tudo caminhando em direção à intolerância,
que Mautner não previra — e, finalmente, ao fascismo. Com o passar dos
anos, as coisas andaram de mal a pior. A tolerância política e ideológica
foi simplesmente banida do meio acadêmico. Em resposta até atrasada a
isso, foi que vimos surgir um projeto como a Heterodox Academy, fundada
pelo psicólogo social Jonathan Haidt há uns cinco anos atrás. Parece
brincadeira, mas o esforço de Haidt e de quem se foi juntando a ele, era (e
é) para tentar tornar a universidade um lugar menos hostil à liberdade de
pensamento e à livre circulação de ideias. Porque a situação criada pelo
esquerdofrenismo identitário nos faz lembrar, diretamente, a violência dos
estudantes comunistas chineses durante a Revolução Cultural dos tempos
terríveis do maoismo. E toda essa onda liberticida norte-americana foi
para cá transplantada, avidamente aceita pelo provincianismo
tristetropical colonizado. Quase todo mundo aderiu. Virou febre, virou
moda.
Como não raro acontece, o engajamento político e a militância
conduziram a delirações, a esfumaçamentos e falsificações da realidade.
Em What Should the Left Propose?, Roberto Mangabeira Unger falava da
alienação das ditas “ciências humanas”, justamente nesse contexto:

Nas humanidades, o escapismo está na ordem do dia: a consciência vai


passear numa montanha-russa de aventuras, desconectada da
reconstrução da vida prática.

Anos antes, Russell Jacoby já chamava a atenção para a confusão


mental dos cultural studies e a falácia maior do multiculturalismo. A
celebração aberta e acrítica da cultura de massa (sintagma então rejeitado
como pejorativo e elitista) e a supressão da dimensão sociológica das
coisas foram marca registrada daqueles studies, tudo sob o signo do
multiculturalismo, com sua multiplicação desvairada de “culturas”
(esvaziando conceitualmente a expressão: se tudo é cultura, nada é cultura:
cultura dos taxistas, cultura dos porteiros de prédios, cultura das mulheres
seduzidas e abandonadas, cultura dos cantores de jazz, cultura das bichas
de subúrbio, cultura dos leitores de publicações pornográficas, cultura das
torcidas dos times da liga nacional de basquete, cultura dos pescadores de
alto-mar, cultura das frequentadoras de salões de beleza, cultura dos filhos
de cowboys, etc., etc.) e mesmo “nações”. Jacoby:

Multiculturalismo significa receber de braços abertos tudo que venha


passando pelo pedágio da história; cada caminhão é considerado uma
cultura, e alguns até são promovidos a ‘nações’, como a ‘Nação das
Bichas’. A questão é saber como o gênero ou a ‘pan-etnicidade’ vêm a
constituir uma nova cultura, para não dizer uma nação. Sobre isto os
autores não se pronunciam.

Nem poderiam: "Os que são excluídos por injustiças sociais ou étnicas
não constituem necessariamente uma cultura diferente. O sofrimento não
gera uma cultura”. De costas para maiores (ou menores) cuidados
conceituais, foram pipocando, sob capas de seriedade e profundidade,
abordagens de coisas como o “pós-feminismo” em Madonna, Rambo e a
vulnerabilidade do macho norte-americano, o significado dos créditos de
abertura de um programa de televisão, a incrível profundidade de ser e
estar num shopping center, etc. Jacoby:
Críticos e acadêmicos renderam-se a uma lógica inexorável. ‘Como
todos os indivíduos são iguais, tudo que fazem deve ser igual’,
raciocinam. Fiéis a esta lógica, rejeitam a crítica da cultura de massa
como elitista.

Temas banais, sim, mas sempre em linguagem alambicada, reino da


pseudocomplexidade da complicação. Falaram tanto de desconstrutivismo
que já não acertam construir uma frase. Para completar, como bem disse o
mesmo Jacoby, o problema dos cultural studies não é a banalidade do
objeto de estudo, mas a banalidade das análises, todas elas numa tão
presunçosa quanto ridícula roupagem de transgressão, subversão e, como
disse, pseudocomplexidade, alastrando a “tagarelice acadêmica típica de
nossa época”.
Para fazer uma comparação, lembro que as “mitologias” de Roland
Barthes focalizam até o filé com fritas como símbolo nacional francês,
onde a banalidade é de assunto, nunca de leitura. No entanto, veja-se a
leitura semiótica decodificadora do café da manhã norte-americano do
professor Asa Berger em Manufacturing Desire: Media, Popular Culture
and Everyday Life, citada por Jacoby. Berger analisa o café da manhã não
como uma mera refeição, mas como um código. Jacoby:

O autor rejeita como manifestações do código tanto a temperatura


quanto as cores ou formas, desvendando afinal o segredo: a
transformação do sólido em líquido e vice-versa. Observando o típico
breakfast americano, constata o professor: ‘O suco de laranja é um
sólido que se torna líquido. O café é uma bebida feita com um sólido,
os grãos do café. (...). O açúcar é um sólido que se torna líquido e volta
a se solidificar. Os flocos de milho são sólidos que se tornam líquidos
e voltam a ficar sólidos. A manteiga é um líquido que se torna sólido.
Os ovos são líquidos e se solidificam. Os outros produtos — pão,
bacon e batatas — são sólidos que permanecem sólidos, ao passo que o
leite e o creme são sólidos [já que as vacas comem grama] que se
tornam líquidos’. Que conclusões tirar dessas observações? Os norte-
americanos tomam o café da manhã para se transformarem, da mesma
maneira que seus alimentos são transformados em líquidos ou sólidos.
‘A mensagem do típico breakfast americano é disfarce e infindável
transformação’. Quem sabe o professor Berger não poderia passar
agora ao almoço?...

Parece piada, mas alarifagens subintelectuais desse teor se espalharam


pelos campi do sistema universitário norte-americano.
Espalharam-se, se desdobraram e foram importadas para cá, graças ao
capachismo mental de nosso sistema universitário, incapaz de pensar por
sua conta e risco, a partir de nossa própria realidade. E, em todos os seus
galhos e esgalhos, a já mencionada supressão do sociológico se impôs.
Inexistem classes sociais para subdisciplinas e discursos que se vão
sucedendo em linhagem deliriosa. Como os gender studies, os
postcolonial studies, etc., chegando enfim à queer theory, até hoje de
manhã a caçula nesse terreno dos disparates, apressando-se a pretender
anular a dimensão biológica em qualquer conversa sobre, vejam só, um
assunto indestacável da biologia: a sexualidade humana... Ou, por outra,
são os estudos onde se expressam os humilhados e ofendidos, os eternos
marginalizados, oprimidos, etc. Todos reclamando por um lugar ao sol,
mais espaços de poder e melhores empregos, com a complacência, a
cumplicidade e o medo dos que se sentem culpados pelas desgraças do
mundo. Não surpreende, por isso mesmo, que todas essas variantes de
“culturas” escorraçadas, com seus representantes caprichando em retóricas
revolucionaristas de essência desconcertantemente conformista,
ratificadora do status quo, enfim, que todo esse agressivo chororô
acadêmico seja hoje criticamente enfiado na mochila ou na prateleira dos
agora chamados grievance studies, o que é perfeito. Porque o traço
distintivo central de toda essa baboseira teorético-discursiva é a retórica
da vitimização, com suas consequentes exigências de reparo material e
amparo psicológico. E o que há é isso mesmo: rancor, ressentimento, ânsia
“psi” por “reconhecimento”. Ainda Jacoby: “A afirmação de que ‘a falta
de reconhecimento pode ser uma forma de opressão’ soa como lenga-lenga
psi, versão filosófica da conversa sobre autoestima aplicada às culturas”.
Não por outro motivo, é claro, embora em direção diversa, Emanuelle
Torres, formada no horizonte sociológico das leituras de Pierre Bourdieu,
chama corretamente a minha atenção para o fato de que os identitários
constroem uma posição de “status” a partir dos discursos em que
enfatizam e choram sua “inferioridade” social. Nesse caso, a
autovitimização é um atalho para a autonobilitação na figura “heroica” do
“oprimido”.
O deperecimento do espírito intelectual, da vontade/capacidade de
pensar um pouco mais a fundo da superfície mais superficial, é hoje um
fato indisputável. No meio dessa turma da esquerda identitária,
especialmente, contemplar, refletir e meditar são verbos em extinção.
Ninguém está disposto a pagar qualquer tributo à dúvida ou ao
questionamento de si mesmo. Confinam-se todos, por esta simples razão, à
periferia mental da humanidade. Sei que há casos em que fazer
comparações é coisa muito cruel, mas não resisto. Em seu livro hoje
clássico, A Filosofia do Iluminismo, Ernst Cassirer nos mostrou
brilhantemente que as heranças todas, que caíram nas redes do
Iluminismo, se transfiguraram em novos e enriquecedores horizontes
intelectuais. E então vejam como o nível das coisas pode simplesmente
despencar. Da esquerda cultural norte-americana, em sua recusa do
pensamento iluminista, o que devemos dizer, para ser justos, não pode ser
diverso do seguinte: todas as heranças que a formaram foram por ela
barateadas, distorcidas, estragadas e definitivamente empobrecidas, na sua
redução a mero beabá de cartilha militante estrita e estreita, indo do
semianalfabetismo ao fascismo. Em tela, a cracolândia mental do
identitarismo.
4. A racionalidade planetária

TEMOS À NOSSA VOLTA a barafunda barulhenta das exacerbações


do relativismo, com toda a sua palabrería patafísica. E o regozijo diante
de uma espécie de espiral inflacionária de verdades se erguendo de todos
os cantos do mundo. Ou, como já disse antes, o êxtase obscurantista
perante uma proliferação barroca de verdades que, para serem verdadeiras,
bastariam existir. E seu complemento supostamente democrático, mas
igualmente irracionalista: a verdade só é verdadeira dentro das fronteiras
da cultura que a produziu. Para não falar da conversa fiada de “outras
epistemologias”, que é apenas tola. Existem certamente outras formas de
conhecimento, a partir do âmbito da “lógica concreta” da pensée sauvage
tão cara a Claude Lévi-Strauss ou de tantas cosmogonias arcaicas
estudadas por Mircea Eliade, mas não outras “epistemologias”, no sentido
rigoroso do conceito. Não há nada, nos mundos culturais banto, iorubano
ou tupinambá, por exemplo, que desenhe, mesmo nos termos mais
sinópticos, o que se poderia propriamente tratar como um horizonte
epistemológico. Em poucas palavras, a epistemologia é uma investigação
sistemática a respeito dos obstáculos, dificuldades e impossibilidades que
cercam a mente humana, quando esta se lança em busca do conhecimento
objetivo da realidade que lhe é exterior. Logo, que nossos pós-modernos
deem outro nome ao que pretendem dizer, não o de epistemologia. Outra
coisa é que, toda vez que alguém me falou das tais “outras
epistemologias”, sempre me limitei a fazer uma pergunta singela —
quais? —, sem nunca obter resposta. Por tudo isso, de resto, penso que
Ernest Gellner está certíssimo, ao dizer que o pós-modernismo se entrega
ao subjetivismo mais desvairado numa tentativa insana de expiar as culpas
do colonialismo, que, afinal, experimentou sua “idade de ouro” entre as
últimas décadas do século XIX e as primeiras do século passado,
começando a decair na véspera mesma da década contracultural de 1960
— processo histórico que Geoffrey Barraclough, em sua Introdução à
História Contemporânea, tratou nos termos de “A Revolta Contra o
Ocidente”, centrando-se em reações asiáticas e africanas à hegemonia
europeia.
Não por acaso, procurando se ver livre do fardo colonialista e/ou
expiar culpas, nossos pós-modernos trataram de tentar se afastar, por todos
os meios possíveis e impossíveis, do que passaram a classificar, no mundo
das ideias e condutas, como “eurocentrismo”, onde se esforçam para
encarcerar a racionalidade em geral e a ciência em particular, negando
validez universal a qualquer teoria. E passaram a veicular, com insistência
sintomática, a tese furada que quer identificar racionalismo e
colonialismo, por um lado, e relativismo e libertarismo (não só de ex-
colônias, como de mulheres e de pretos), por outro, argumentando que o
relativismo não guardaria qualquer vínculo com a dominação cultural,
desde que trata todas as culturas (e “minorias”) em pé de igualdade,
embora, muito contraditoriamente, aplaudindo e aprovando culturas que se
julgam superiores às demais. A propósito, lembro aqui que já fui
furiosamente acusado de “eurocentrista” por um militante acadêmico (um
racialista neonegro) que, para tentar comprovar a correção do seu
xingamento, recorreu aos bons préstimos de Michel Foucault. E Foucault,
todos sabem, é um conhecido filósofo bakongo do século XIII, que, para
lembrar livremente a deliciosa frase de James Joyce, compôs sua vasta
obra muito antes que a mão europeia botasse os pés em terras
negroafricanas... Além disso, “eurocentrista” é expressão que deveria
queimar a língua de identitários e relativistas, desde que não só não existe
uma cultura europeia homogênea, como o antigo mundo greco-romano
ultrapassou, em muito, fronteiras do continente europeu, abarcando a
África do Norte e fatias consideráveis do Oriente Médio, para alcançar,
inclusive, o Afeganistão. Mais: se o relativismo extremado de hoje fosse
levado às últimas consequências, o que lhe restaria a não ser o silêncio? O
ultras subjetivismo pós-moderno é um convite a isso (embora sua
expressão política, o identitarismo, seja ruidista e cacofônica). Afinal, se
toda verdade é verdadeira, se toda verdade é indestacável de uma cultura e
se todo critério ou ponto de vista também é apenas expressão de uma
configuração cultural particular, como falar de outros mundos
antropológicos? Se todo conhecimento está severamente condicionado e
comprometido pela cultura do conhecedor, não seria mais razoável, então,
que este se limitasse a falar somente de si mesmo, deixando os outros em
paz? Ainda: se o relativista radical relativiza até a si próprio, como sujeito
de qualquer observação, como levar a sério suas autoanálises ou
autoconfissões? Ou, lembrando a pergunta de Gellner, em Antropologia e
Política:
se a verdade só pode existir internamente a uma cultura e às suas
normas, em que vazio interestelar ou intercultural nosso relativista
articula seu ponto de vista?

No entanto, eles têm horror ao silêncio. Não só relativistas escrevem


sem cessar textos empoladíssimos (“As metarreflexões sobre a crise das
representações... assinalam uma mudança... em direção... a um interesse
pelas... metatradições das metarrepresentações”, não vacila em escrever
Paul Rabinow, citado por Gellner, que não resiste ao comentário: quantas
“metabobagens”...), como ativistas identitários falam para caramba — e o
tempo todo. Com um discurso que, no mais das vezes, se resume ao
seguinte: se você não concorda comigo, você é fascista ou coisa pior. Cena
em que, sob a fantasia do libertário, tenta se ocultar, em vão, o liberticida.
Defender que a ciência é apenas um texto entre muitos outros textos,
válido apenas em seu próprio âmbito cultural, é pura e simples confusão
mental. Obscurantismo — intencional ou não. Claro. É perfeitamente
possível considerar a criação mito poética da humanidade como um bem
muito mais valioso do que a criação científica. O que não podemos é tratá-
las como se, no fundo, fossem a mesma coisa. Meras “narrativas”, quem
sabe até intercambiáveis. Não, não devemos perder a sensatez e a clareza
— e deixar de fazer distinções elementares. A teoria da relatividade e o
mito indígena do Jurupari (mito baniwa legitimador da dominação sexual
masculina que, por sinal, é citado no Dorian Gray de Oscar Wilde)
decididamente não pertencem a uma mesma ordem de coisas. Os físicos
Sokal e Bricmont, por sinal, se dão ao trabalho de explicar didaticamente o
que distingue a ciência como discurso específico, com relação ao universo
geral das espécies discursivas.

Primeiramente, existem alguns princípios epistemológicos gerais


(basicamente negativos) que remontam pelo menos ao século XVII:
desconfia-se de argumentos apriorísticos, da revelação, dos textos
sagrados e dos argumentos de autoridade. Além do mais, a experiência
acumulada durante três séculos de prática científica propiciou-nos uma
série de princípios metodológicos mais ou menos gerais — por
exemplo, repetir os experimentos, usar controles, testar os
medicamentos segundo protocolos absolutamente imparciais — que
podem ser justificados por argumentos racionais. No entanto, não
afirmamos que esses princípios possam ser codificados em definitivo
nem que essa lista esteja completa. Em outras palavras, não existe uma
codificação acabada da racionalidade científica; e duvidamos
seriamente de que possa vir a existir. Afinal de contas, o futuro é, por
sua própria natureza, imprevisível; a racionalidade é sempre uma
adaptação a situações novas. Apesar disso — e esta é a principal
diferença entre nós e os céticos radicais —, achamos que as teorias
científicas bem estabelecidas são em geral sustentadas por bons
argumentos, embora a racionalidade desses argumentos precise ser
analisada caso a caso.

Pessoalmente, posso preferir Cervantes, Melville ou Joyce a Newton


ou Heisenberg e Schrödinger (e seu pobre gato), mas o fato é que nem o
Fausto nem a astrologia ou o I-Ching constroem seus discursos recusando
princípios apriorísticos ou realizando e repetindo experimentos, segundo
esta ou aquela epistemologia, este ou aquele método. Sempre que me vejo
discutindo essas coisas, aliás, uma pergunta muito simples me vem
invariavelmente à cabeça: por que o relativista pós-moderno, ao ser
atingido por um AVC (acidente vascular cerebral), procura um
neurocirurgião e não um xamã ou um babalorixá? Não é tudo a mesma
coisa? Não: a verdade, como costumava me dizer um amigo, é que não se
cura câncer com chá de erva-doce. E não me esqueço do geneticista Eli
Vieira, numa entrevista que circulou nas redes sociais:

Você pode se pavonear de entendido e dizer que a ciência é só uma


narrativa entre várias igualmente boas, que verdade é poder, que quem
fala em ‘verdade’ é positivista antiquado. Mas, quando é acusado de
um crime que não cometeu, quer que a verdade objetiva venha à tona,
quer que a investigação seja imparcial, neutra e melhor que meras
narrativas fictícias.

Mas vamos em frente. E aqui sublinho: quem detona de vez o


relativismo epistêmico ou cognitivo — com uma argumentação a um só
tempo clara, densa e objetiva — é o já citado antropólogo Ernest Gellner,
em Postmodermsm, Reason and Religion. Lembrando que os grandes
conflitos intelectuais registrados na história sempre tenderam a ser
binários, gerando divisões regionais ou polarizações planetárias, Gellner
chama a atenção para a inédita “situação triangular” que caracteriza a
nossa época, em matéria de fé. Em vez do choque de dois grandes blocos
ideológicos, o que temos hoje é uma contenda entre três posições
irredutíveis, condensadas no fundamentalismo religioso, que crê na
verdade única e se acha de posse dela; no relativismo cognitivo pós-
moderno, que renega a ideia de verdade única, mas trata como verdadeira
toda e qualquer concepção particular da verdade; e no que ele mesmo
classifica como “racionalismo ilustrado”, postura que acredita na
existência de uma verdade única, mas defende que nenhuma sociedade ou
cultura chega a possuí-la em definitivo — vale dizer, é o campo não do
dogma, como no caso do fundamentalismo religioso, mas o dos partidários
da busca permanente da verdade, pautada por uma “lealdade a certas
regras de procedimento”.
Deixando de parte o fundamentalismo religioso (que hoje se expressa,
principalmente, em sociedades muçulmanas) e as fantasias e
extravagâncias do relativismo pós-moderno, Gellner observa que a
racionalidade moderna fundou um estilo cognitivo transcultural — e tão
poderoso que todas as demais culturas aderiram a ele. Esta é a questão
central. E que não pode ser reduzida a mero “colonialismo” ou
“dominação branca”, como pretende o sub-romantismo político-
acadêmico de nossos dias. Pelo contrário: é este sub-romantismo que deve
ser intelectualmente desmontado. Porque estamos agora diante de um dos
mais falazes e ridículos de todos os determinismos: depois do
determinismo biológico, do determinismo climático, do determinismo
econômico, do determinismo-etc., apareceu por fim o determinismo
cultural de pós-modernos, identitários e similares. Como bem situou a
questão José Guilherme Merquior, logo no segundo parágrafo da
“apresentação” de seu livro The Veil and the Mask — Essays on Culture
and Ideology:

Nestes tempos de feroz irracionalismo e de crescente investida (da


esquerda e da direita) não apenas contra o cientificismo, o mito da
ciência, mas contra a própria ciência, o destino da legitimidade
cognitiva dentro da cultura contemporânea tende a tornar-se a
preocupação central de todos os que acreditam na objetividade do
conhecimento científico, e que se importam com isso. Na observação
vigorosa de Pietro Rossi, estamos diante de um novo julgamento de
Galileu, à medida que aumenta o número dos que, deliberadamente ou
não, parecem preferir a maçã de Adão à de Newton.

E, como também me inscrevo modestamente na liga dos que incorrem


no pecado político-cognitivo de buscar objetividade e clareza, só posso
concordar, assinar embaixo e tocar o barco.
Gellner lembra que a grande tradição epistemológica do pensamento
ocidental sustentava que, para chegar à racionalidade teórica, o sujeito
precisava se desvencilhar da cultura em que foi criado: “O caminho para a
verdade passava por um exílio cultural voluntário”. Descartes identificava
a cultura como fonte do erro. Era preciso se desprender dela. Transcender
o círculo de ferro de uma cultura particular a fim de instaurar uma
racionalidade de validez universal, abrindo-se como possibilidade para
todo o planeta. Foi o que a ciência moderna — mais precisamente: a
ciência natural — fez. E fácil verificar isso em seus princípios e em seus
produtos práticos. Daí que Gellner diga que, intelectualmente, o fato mais
espetacular do mundo em que vivemos “é que o conhecimento real e
transcultural existe”. Satélites, computadores, robôs, pesticidas,
ultrassonografias e testes de DNA funcionam em qualquer ponto ou parte
do planeta, sem tomar conhecimento de contextos socioantropológicos ou
de circunstâncias ambientais. Até o gorduchinho narcisista e amalucado da
Coréia do Norte, além de ter cabeleireiro particular, fabrica mísseis. E há
muito tempo esta ciência deixou definitivamente de ser “branca,
ocidental”. Hoje, ela é planetária: alemã, russa, chinesa, indiana, etc.
Podemos não gostar. Podemos achar que teria sido melhor para tudo e para
todos que tivéssemos estacionado em tempos neolíticos, num mundo
anterior à revolução agrícola e à expansão das cidades. Mas não há como
negar que os produtos da ciência funcionam universalmente, em dimensão
transcultural. Podemos também criticar, como nos dias da contracultura: a
ciência, que sabe muito bem fazer napalm, não sabe que destino dar a todo
o lixo que produz. E aqui, por sinal, flagramos uma limitação: de fato, a
crítica à ciência é, quase invariavelmente, crítica a apenas uma de suas
faces: a ciência aplicada, a tecnociência, a tecnologia.
Fechou-se assim o círculo cartesiano. A ciência se descolou das
culturas, descolou-se do social. Funciona livre de amarras particulares e
particularizantes. Em contrapartida, como bem lembra Gellner, a
sociedade e a cultura deram o troco. Configuram o único espaço em que a
racionalidade, o novo estilo cognitivo do mundo, não consegue dar as
cartas. Se ela não deve satisfações a sociedades e culturas, atravessando-as
com desenvoltura, estas também não se desvelam inteiras ao seu avanço.
A racionalidade, com todo o seu poder transcultural, como que esbarra aí.
Gellner:

...se observamos a diversidade das atividades humanas, este grande


poder só parece funcionar de verdade em certos campos — ciências
naturais, tecnologia. Em outras esferas — por exemplo, na
compreensão da sociedade e da cultura —, sua aplicação elevou sem
dúvida nosso nível de informação e de sofisticação, mas dificilmente
alguém se sente tentado a falar de uma revolução vertiginosa, dessas
que transformam os próprios pontos de referência dentro dos quais
vivemos nossas vidas.

E talvez esteja aí mesmo, prossegue Gellner, um dos fatores que


atraem tanta gente para os campos minados do ir- racionalismo e do
relativismo pós-moderno e identitário. O sucesso deste residiria, assim, na
promessa de uma explicação desta incapacidade científica ou de um
remédio para ela. Ou, ainda, na promessa de substituição da aspiração de
aplicar a ciência ao ser humano social, ao zoon politikon, por uma outra
aspiração mais sedutora e menos sujeita a frustrações, malogros e
fracassos.
Outro ponto a ser vivamente negritado, como sublinha o mesmo
Gellner, é que a assimetria ou desigualdade entre estilos cognitivos,
patente com a poderosa projeção planetária da racionalidade científica,
“não gera uma hierarquia de povos e culturas”. Pelo simples motivo de
que ela não está enraizada no — nem é subproduto do — equipamento
genético de uma população específica. Uma grande assimetria cognitiva se
produziu na história humana — ou, por outra, um abismo intelectivo
fendeu modernamente o mundo mental da nossa espécie —, mas isto “não
tem absolutamente nada a ver com nenhuma glorificação racista, ou
qualquer outra, de um segmento da humanidade sobre os demais”. O que
desequilibrou a antiga simetria de tempos pré-modernos foi um estilo de
conhecimento e sua aplicação prática, não uma categoria de pessoas ou
determinado tipo de gente. É evidente, como diz nosso antropólogo, que
este novo estilo cognitivo teria de nascer em algum lugar, mas não está
preso a nenhum contexto social ou cultural. Pelo contrário: é acessível a
toda a humanidade. Dois fatos mostram fácil e inquestionavelmente esta
autonomia da racionalidade com relação a contexturas ambientais e
histórico-antropológicas. De uma parte, basta lembrar que o lugar onde o
novo estilo se formou, o primeiro país científico-industrial de que se tem
notícia, não se acha atualmente no topo da produção científica do mundo
— até pelo contrário, caminha devagar e está situado numa zona apenas
intermediária do ranking internacional. De outra parte, a universalidade do
novo estilo de conhecimento fica patente de modo imediato quando
pensamos, por exemplo, no panorama científico atualmente imperante em
países como a China, que, como não há quem ignore, longe esteve de ter
sido o berço da nova viagem mental, mas hoje se move com extremo vigor
e criatividade nos campos da física, da química e da engenharia genética.
Mas chega de exemplos. Claro está que o pós-modernismo não passa
de mais uma moda político-cultural efêmera, assim como a febre de
cultural studies e quejandos, o “politicamente correto”, os identitarismos.
Mas, até ser deixada para trás e ser substituída por outra moda, terá
causado um tremendo estrago. Daí que eu repita, seguindo Gellner:
“quanto antes termine esta insensatez, tanto melhor”. O lamentável é que
tudo isso parte de bases justas ou perfeitamente justificáveis. A opressão
masculina, os preconceitos e discriminações raciais, certas perversões no
campo da linguagem, etc., são coisas que merecem o nosso mais vivo
combate. Do mesmo modo, o relativismo cultural brota de dilemas
profundos no pensamento e na prática de quem se dedica à antropologia,
no seu sentido maior de discurso sobre a humanidade. O problema é que,
em meio a militâncias político-acadêmicas, ainda estamos patinando em
pleno estágio do “esquerdismo” (no sentido leninista da expressão, isto é,
tempos de “doença infantil”). E o relativismo extremista pós-moderno,
que Gellner define como uma “histeria da subjetividade”, é também uma
hipertrofia absurda e abstrusa do relativismo antropológico clássico. Uma
construção engenhosa e perigosamente enganadora, patarateira e
prejudicial. Um aluamento obscurantista.
5. Abolição da história e das classes sociais

VAMOS NOS APROXIMAR AQUI de duas das características centrais


dos devaneios ideológicos do identitarismo: o congelamento da história e
a abolição das classes sociais. No primeiro caso, afirma-se, por exemplo,
que o desequilíbrio entre os sexos instaurou-se na origem mesma da
história da espécie humana e se perpetua até hoje essencialmente nos
mesmos termos. E “estrutural”, nesse sentido. No segundo caso, topamos
com o tal do “neomarxismo” acadêmico, que aposentou a luta de classes
do velho materialismo histórico para, em seu lugar, colocar supostos
antagonismos étnicos e sexuais, mas sempre em modo maniqueísta,
identificando o opressor ao mal e o oprimido ao bem. Um prolongamento
bem distorcido, portanto, do que havia em Marx de mais entranhado e
profundo judaísmo. Enquanto o herdeiro do profeta Isaías discursava sobre
ricos e pobres (e Cristo, o ungido, menos infielmente traduzido, teria dito
que era mais fácil um camelo entrar no cu de uma agulha do que um rico
no reino dos céus), sua longínqua descendência espúria fala, insistente e
angustiadamente, de sexos e cores.
É muito curioso: para tentar se legitimar política e intelectualmente, o
identitarismo reclama a partir de um solo histórico. Da sina dos excluídos
e pisoteados desde as primeiras luzes da peripécia planetária da
humanidade. Mas, no momento mesmo em que este solo começa a se
mover, a solução encontrada é fechar os olhos, fazer de conta que nada
está acontecendo, esquecer que a história existe. Afinal, qualquer
transformação histórica, social ou cultural pode detonar a base em que se
assentam seus discursos e, consequentemente, suas fontes de
sobrevivência e financiamento. Vejam o discurso das radfems, as
feministas radicais ou “puritanas fanáticas”, como Camile Paglia as
define. Tudo se constrói aqui como se a relação homem/mulher fosse não
um processo de arranjos mutáveis no tempo e no espaço, mas coisa da
Urgesdiichte. Coisa dada de uma vez e para sempre desde a abertura
mesma da história prístina ou primordial da humanidade. Uma espécie
qualquer de grande e estranho achado arqueológico se projetando
inusitadamente para a eternidade, à maneira daquele monólito de 2001 —
a Space Odissey, o filme de Stanley Kubrick. Poderíamos até nos lembrar,
se desejássemos elegantizar esta estupidez semiletrada, da maravilhosa
“Ode To a Grecian Um” de John Keats (“Thou still unravish'd bride of
quietness...”), se logo no verso de abertura o poeta não contrariasse o
desejo ansioso do estupro pré-histórico, tão enfaticamente indigitado por
estas feministas, que acreditam que a curra se repete invariavelmente, até
aos dias de hoje, sempre que uma mulher alarga suas pernas em direção a
um homem. Porque é assim: o que para nós é história, vida em
movimento, para elas é paralysis, cena definitivamente cristalizada,
congelada num freezer ideológico, como se não existissem o passar dos
anos, dos séculos, dos milênios. Como se não existisse o presente. Já que o
futuro deverá ser a destruição da cena primordial que se perpetua intacta
há milhares e milhares de anos. Quando a história existe, para o
feminismo neonegro, ela se congela na cena traumática original da escrava
preta violada pelo senhor branco. E, a partir daí, deixa também de existir.
Tudo é violação, o eventual leitor ou leitora não deixará de ter notado. E
nem mesmo tenho ideia de como estas feministas lidam com aquele — tão
espantoso, quanto comum — acidente chamado “amor” (un accidente...
ch’è chiamato amore), de que nos fala o poeta medieval italiano Guido
Cavalcanti, numa das suas mais belas canções. Ou o amor, atando em
funda profundidade uma mulher e um homem, não passa de mais um
truque masculino para ludibriar e subjugar fêmeas? John Lennon canta
“woman is the nigger of the world” apenas como expediente cínico para
dominar a pobre da Yoko Ono? E o que quer Bob Dylan celebrando Sara, o
grande amor de sua vida (radiant jewel, mystical wife), contando inclusive
que passou dias num quarto do lendário Chelsea Elotel, em Nova York, só
para fazer uma canção para ela, “Sad-Eyed Lady of the Lowlands”?
Deixando “isso” de parte, é em consequência da anulação neofeminista
da história que Francisco Bosco observa que, para as radfems norte-
americanas,

vivemos em regimes patriarcais que configuram relações tão intensas


de dominação da mulher pelo homem que toda a experiência da
heterossexualidade é abusiva, violenta, ilegítima, imoral. Sob esse
jugo estrutural inescapável, a mulher não tem autonomia. Desse modo,
a relação com o seu desejo, bem como a manifestação deste, no
contexto da experiência heterossexual, é sempre problemática,
instável, suspeita. ‘Consentimento’ [diferentemente de Bosco, prefiro
a palavra tesão; ao contrário do que dizem as neofeministas alemãs,
não acho que “Konsens ist sexy”], o termo que em princípio deveria
servir de linha divisória entre práticas sexuais legítimas ou ilegítimas,
aceitáveis ou criminosas, é anulado como tal, já que suas condições de
fundo são elas mesmas ilegítimas. Ora, se se perde a referência do
consentimento, não há diferença fundamental entre um estupro e uma
relação heterossexual realizada, acreditava-se, em comum acordo.

No entanto, a história anda, eppur si muove, no dizer do velho Galileu


Galilei. E Bosco prossegue:

Deve-se ainda questionar a pertinência descritiva da imagem da


mulher destituída de autonomia: até que ponto ela corresponde à
realidade da experiência da mulher em sociedades democráticas
contemporâneas, pós-revolução sexual, com as mulheres em massa no
mercado de trabalho (em que pesem as discriminações salariais e
outras assimetrias, sem dúvida existentes), podendo legal e
moralmente exercer a sua sexualidade da forma como bem
entenderem? Até que ponto o desequilíbrio vigente nas sociedades
patriarcais compromete a autonomia desse exercício? Retroagindo ao
fundamento: até que ponto as sociedades democráticas
contemporâneas são patriarcais?

Bosco então se vê obrigado ao acacianismo:

Da narrativa bíblica do Gênesis, em que a mulher é declarada, pelo


homem inaugural, como ‘osso dos meus ossos, carne da minha carne’
(parte dele, logo posse dele), até às democracias modernas pós-1960,
muita coisa mudou.

Numa troca de e-mails comigo, comentando uma versão anterior deste


ensaio, Fernando Coscioni, embora discorde da postura geral de Bosco,
com ele concorda totalmente neste ponto. Lembra que, na supracitada
entrevista a Peterson, Camile Paglia

fala da necessidade de ensinar história comparada para os estudantes


identitários. O fato de que eles enxergam a realidade social e a história
como uma guerra entre grupos, com os identitários sempre sendo os
‘oprimidos’, tem a ver, e muito, com esse desconhecimento básico de
sequências históricas mais longas. Um exemplo disso é a insistência
das feministas radicais ianques — e de algumas brasileiras também —
de que a sociedade ocidental é marcada pela ‘dominação patriarcal’. Se
elas conhecessem história, saberiam que a civilização ocidental, que
elas tanto odeiam, é provavelmente a única na história na qual as
mulheres têm todas as liberdades de um homem. É fácil dizer que o
Ocidente moderno é um antro de repressão sem compará-lo com outras
sociedades. As radfems nunca comparam o Ocidente com outras
sociedades quando vão condená-lo, porque, se elas compararem, a
narrativa da ‘opressão patriarcal’ entrará em colapso com o primeiro
exercício mais elementar de história comparada. Imagine, será que as
mulheres eram mais livres na sociedade tupinambá ou asteca do que
são hoje nos países ocidentais? Será que elas são mais livres naquelas
‘maravilhosas’ culturas africanas que arrancam brutalmente os seus
clitóris do que nos EUA ‘capitalista’, ‘patriarcal’ e ‘opressor’? E o
mais curioso é o que vem acontecendo na Europa, continente no qual
as feministas, ao mesmo tempo em que denunciam o ‘patriarcado
ocidental’ passam pano para o machismo acachapante do islã, só
porque o islã é a religião do ‘outro’, do ‘oprimido’, e não faz parte do
mainstream ‘católico- patriarcal-ocidental-heterossexual-opressor’ do
Ocidente, que é a ‘encarnação de todo o mal do mundo’. Sobre isso,
recomendo muito o livro Herege, que conta a história da Ayaan Hirsi
Ali, uma mulher somali que fugiu de um casamento arranjado em seu
país, se refugiou na Holanda, e quando chegou lá descobriu que não
poderia falar mal da opressão do islã sem sofrer ríspidas represálias
das mulheres mimadas da esquerda identitária que não fazem nem
ideia do que é passar o que ela passou na mão do fundamentalismo
islâmico.

Desta perspectiva, podemos traçar um paralelo até meio escroto — e


dizer que as tais feministas puritanas vivem de reminiscências, como as
pacientes histéricas de Freud e Breuer. No polo oposto, veja-se o já célebre
manifesto das 100 francesas, estrelado por Catherine Deneuve, que
explodiu como uma bomba arrasa-quarteirão no meio do arraial
neofeminista norte-americano, com seus discursos provincianos e posturas
reacionárias, primando pelo obscurantismo repressivo. Não era para
menos. Esse neofeminismo é uma degeneração grotesca do feminismo
original da contracultura, na década de 1960, cujo libertarismo espalhou-
se então por quase todos os cantos do mundo. E sob o signo da “revolução
sexual”, que hoje horroriza o neofeminismo puritano, fundado no combate
ao desejo e na repulsa ao sexo heterossexual. É impressionante a
degringolada. E justamente nos Estados Unidos, que nos deram a linha de
frente do feminismo revolucionário daquela época. O que foi libertário, na
contracultura, agora se fecha em puritanismo pétreo. Em aversão ao corpo,
aos jogos amorosos, à exuberância narcísica, aos prazeres sexuais. Enfim,
a disposição revolucionária multicolorida acabou gerando seu avesso: o
puritanismo mais cinzento.
Lembro-me de Lyn Lofland, a socióloga norte-americana, autora de
livros como A World of Strangers e The Public Realm. Em seus estudos,
Lyn, na linha das melhores reflexões da ativista e teórica Jane Jacobs,
observa que a sociologia urbana (ostentando Friedrich Engels como seu
founding father, pelo belo estudo manchesteriano) foi contorcida e lacunar,
ao falar da presença da mulher nos espaços públicos das cidades ocidentais
que estudava. Sua ótica incidia, com ênfase excessiva, no perigo. Trazia
para o primeiro plano não a atuação da mulher na cidade, mas o assédio
sexual. Lyn não nega a prática do assédio, obviamente, mas acha que ela
foi superestimada pelos sociólogos, numa visão exagerada dos espaços
públicos como áreas de risco para as mulheres, contribuindo inclusive para
enfraquecer a presença feminina em tais territórios. Hoje, o que vemos é a
exacerbação extrema do quadro. É claro que temos de combater o assédio
sexual. É evidente que, como na canção de Luiz Melodia, uma mulher não
deve vacilar. Mas é preciso um mínimo de sensatez. Imbecilidade querer
fazer de um olhar luminoso, de uma frase deliciosamente cheia de malícia,
ou de uma bela cantada amorosa, equivalentes de vulgares e ásperas
agressões sexuais. Um olhar não é um estupro. Um longo e modulado
assovio, saudando um belo par de coxas que se movem graciosamente ao
ar livre, cabe muito mais na conta do elogio poético ao erotismo muscular
das fêmeas do que no rol das agressões rasteiras. A não ser aos olhos desse
atual feminismo fundamentalista, tipo “estado islâmico”, que acaba de
braços dados com o que há de pior no neopentecostalismo “evangélico”.
Coisa para aiatolá nenhum botar defeito. E as manifestantes francesas,
inteligentes e requintadas, tocam nos pontos certos. Denunciam que,
depois da fogosa revolução sexual da contracultura, o neofeminismo
puritano quer converter as mulheres em figuras de museu de cera. E vão ao
grão da questão: seu inimigo principal, mais do que o homem, é o desejo.
“Como mulheres, não nos reconhecemos neste feminismo que, além de
denunciar o abuso de poder, incentiva o ódio aos homens e à sexualidade”,
diz o manifesto. E ainda:

Essa febre de enviar ‘porcos’ ao matadouro, longe de ajudar as


mulheres a serem mais autônomas, serve realmente aos interesses dos
inimigos da liberdade sexual, dos extremistas religiosos, dos piores
reacionários.

Nada mais certo. É a degradação final dos avanços sociais da década


de 1960. Assim como a luta contra a discriminação racial veio a dar no
racifascismo neonegro, a luta pela igualdade entre os sexos encalhou nesse
feminismo ao mesmo tempo rubramente belicoso e palidamente
assexuado, ou confinado ideologicamente a navegações lésbicas. É o
naufrágio nas águas grossas e turvas dos movimentos identitários. Hoje,
paradoxalmente, todo “neo” parece condenado a ser sinônimo de
retrocesso. E com sucesso de crítica e público: cresce a cada dia, nos
meios mais letrados, o número de babacas que acham que o tesão
masculino em mulheres — o desejo heterossexual pelo corpo feminino —
é o caminho mais curto para o tal do “feminicídio”. Felizmente, nem todos
pensam assim. Ainda há quem aplauda o poeta romântico inglês William
Blake, em The Marriage of Heaven and Hell: “A nudez da mulher é a obra
de Deus”. E notem, na frase, a importância do artigo. Blake não o suprime
(o que daria em “a nudez da mulher é ... obra de Deus”), nem o emprega
como indefinido (“a nudez da mulher é ‘uma’ obra de Deus”). Não: é
artigo — e é definido: “A nudez da mulher é a obra de Deus”. Em inglês:
“The nakedness of woman is the work of God”. E essa turma, como já
estamos vendo, quer abolir não só a história, como as classes sociais e a
variabilidade antropológica da humanidade. Em seu discurso, todo branco
é igual e todo homem é idêntico. Não há diferença entre Stálin e Dorival
Caymmi. É ridículo. E o mais grave, insisto, é que esses identitários se
fecham corno adversários furiosos da diversidade, desfechando um
combate feroz e sem tréguas à outridade, feito loucos desejosos de banir
da face da Terra quem discorda de seus dogmas. São a encarnação da
intolerância. E, por isso mesmo, inimigos da verdadeira vida democrática.
Mas a paisagem é esta: os identitários parecem não conseguir (nem
desejar) se desprender do desenho da caverna onde seus pares arquetipais
foram um dia fixados. Não aceitam sequer a ideia de se descolar da cena
traumática inaugural. Estão lá, enfeitiçados, extraídos dos processos do
mundo, congelados in illo tempore. E o que é ridículo: acham que, com
este recurso retórico-ideológico, estão falando do dia a dia de todos nós.
Ao contrário, essas duplas primitivas, disformes — o Branco e o Preto/o
Homem e a Mulher — mais sugerem uma caricatura binária da idade dos
gigantes de Giambattista Vico. E em nome dessa opressão primordial, que
se projeta enorme no tempo para marcar cada um de nossos passos ainda
neste século XXI, vão acumulando argumentos, proposições e narrativas
algo hilariantes. É por aí que vem, por exemplo, a tese desatinada ou
inconexa da “solidão estrutural” da mulher negra, em comparação com
brancas e amarelas (ruivas, não sei) — “solidão” que, presumo, se
circunscreva ao campus, ao gueto universitário, entre rictos de acadêmicas
hirtas, já que as fêmeas pretas que conheço desconhecem isso, andando
por aí felizes da vida, entre praças e esquinas, com seus maridos,
mulheres, amantes, namorados, namoradas, paqueras, etc. No âmbito dessa
“luta ideológica”, por falar nisso, a mixofobia do feminismo neonegro
gerou uma gíria racista para ridicularizar e estigmatizar pretos que se
envolvem sexual e/ou amorosamente com brancas, aprofundando assim o
martírio daquela “solidão estrutural”. São os chamados “palmiteiros”, isto
é, os “comedores de palmito” (que é branco). Apenas para ilustrar, lembro
que “palmiteiros” teriam sido, entre muitos e muitos outros, Machado de
Assis, Abdias do Nascimento, Mestre Didi (assim apelidado por Jorge
Amado) e Luiz Melodia, para não falar de nomes em plano internacional.
E agora o combate aos palmiteiros se soleniza em guerra à miscigenação,
considerada “genocídio”, em falações que só podemos entender como
discursos em defesa da implantação de uma política de pureza racial no
Brasil. Ora, se o que está em questão é o “genocídio” palmiteiro, o
antropólogo Peter Fry aviva a memória:

Se fosse assim, teríamos que condenar por genocídio nada menos que
Eduardo Mondlane e Seretse Kama, dois dos mais destacados e
honrados libertadores da África que se casaram e tiveram filhos com
mulheres brancas.
Mas não para aí. Contra os “palmiteiros”, nossas feministas neonegras
levantam a bandeira de um tal “amor afrocentrado”, que é a denominação
atual de currais para confinar machos pretos, a fim de amenizar a tal da
“solidão estrutural” das universitárias pretas e impedir a praga das fodas
interétnicas.
Ora, crimes e absurdos têm de ser combatidos, mas não com
amontoados de disparates tantas vezes racistas. O fanatismo é incapaz de
entender uma coisa bem simples. Quem é contra o obscurantismo
repressivo não é automaticamente a favor do estupro. E o pessoal
neonegro peca pela mesma cegueira: se você discorda de algum
mandamento do movimento, reagem como se você defendesse o
fuzilamento sumário de jovens pretos em favelas e bairros da periferia
proletária. Mas tratar as coisas assim ou é manipulação fascista ou é
primarismo de debutante mental. Em contraposição, vejam, por exemplo,
o trecho seguinte de um texto escrito pelo psiquiatra e militante
revolucionário negro Frantz Fanon, nascido na Martinica. Compare-se o
que há de raso e rasteiro no racialismo neonegro brasileiro com o que pode
haver eventualmente de denso e profundo em Fanon, lendo ou relendo esta
passagem altamente significativa do livro Pele Preta, Máscaras Brancas,
que aqui traduzo:

Eu sou um homem e o que tenho é de me haver com o passado inteiro


do mundo. Não sou responsável apenas pela escravidão em Santo
Domingo. Toda vez que o homem contribuiu para a vitória da
dignidade do espírito, toda vez que o homem disse não a uma tentativa
de subjugar seus companheiros, tenho me sentido solidário ao seu ato.
De modo algum minha vocação básica tem de ser traçada a partir do
passado das gentes de cor. De modo algum tenho de me dedicar a
reviver alguma civilização preta injustamente ignorada. Não vou fazer
de mim mesmo o homem de qualquer passado. Minha pele preta não é
um depósito para valores específicos. Não tenho coisas melhores a
fazer nesse mundo do que vingar os pretos do século XVII? [...]. Eu,
como um homem de cor, não tenho o direito de esperar que venha a
existir, no homem branco, uma cristalização da culpa com relação ao
passado da minha raça. Eu, como homem de cor, não tenho o direito de
pisotear o orgulho de meu primeiro senhor. Não tenho nem o direito
nem o dever de exigir reparações pelos meus ancestrais subjugados.
Não há nenhuma missão negra. Não há nenhum ônus branco. Não
quero ser vítima das regras de um mundo negro. Vou pedir a este
homem branco que responda pelos traficantes de escravos do século
XVII? Vou tentar, por todos os meios disponíveis, fazer com que a
culpa germine em suas almas? Eu não sou um escravo da escravidão
que desumanizou meus ancestrais. Seria de imenso interesse descobrir
uma literatura ou arquitetura negra do século III a.C.; ficaríamos
entusiasmados ao saber da existência de uma correspondência entre
algum filósofo preto e Platão; mas não vemos, realmente, como este
fato mudaria as vidas de crianças de 8 anos de idade trabalhando nos
canaviais da Martinica ou de Guadalupe. Vejo-me no mundo e
reconheço que tenho somente um direito: exigir um comportamento
humano do outro.

Pedir a lideranças e “coletivos” racialistas neonegros que tenham a


consistência e a espessura, que Fanon alcança nesta passagem textual,
seria pura e simples insensatez. Mas vamos em frente. A ênfase
sociológica nas classes sociais e a superênfase marxista na luta de classes
— situando, no desfecho do enfrentamento dos dois grandes agrupamentos
teoricamente antagônicos, a burguesia e o proletariado, a instauração do
milênio comunista, realização “científica” de todos os antigos utopismos,
que vieram de Platão a Fourier e Saint-Simon — eclipsaram pormenores
(e “pormaiores”, se assim fosse possível dizer) dos conflitos cotidianos
que tão bem conhecemos. Em resposta a este eclipsamento, os identitários
foram a tal ponto extremistas que simplesmente inverteram as coisas,
eclipsando também, ou mesmo abolindo, em seus devaneios teorético-
ideológicos, a existência de classes sociais. Desempregaram Nicos
Poulantzas, em suma. Num livro de 1999, o supracitado 0 Fim da Utopia:
Política e Cultura na Era da Apatia, Russell Jacoby já escrevia:

Durante décadas os críticos lamentaram o materialismo estreito do


marxismo, e grande parte dessas críticas tinha sentido. Mas tais
críticas tiveram um efeito maior do que jamais teriam sonhado seus
autores. O marxismo econômico transformou-se em marxismo
cultural. A crítica válida de um marxismo reducionista evoluiu para
uma total rendição de seu núcleo materialista. Hoje o materialismo
trata de espíritos, textos, imagens e ecos, florescendo apenas em
departamentos de literatura e inglês [do sistema universitário norte-
americano].

Na verdade, em vez de “marxismo cultural”, seria mais correto falar de


marxismo caricatural. Mais Jacoby: “O marxismo do século XIX era
materialista e determinista; o do fim do século XX é idealista e
incoerente”. Instaurou-se o império do multiculturalismo. E, com o
identitarismo, o multiculturalismo e o politicamente correto ganharam sua
expressão mais sectária e estridulante.
Mas é engraçado: aboliram as classes sociais, não a retórica da luta de
classes. Em seu livro, Francisco Bosco não se esqueceu de apontar para
uma erosão da centralidade do conceito de classe social no
multiculturalismo e no identitarismo. Na verdade, o conceito não foi
simplesmente erodido, mas abandonado ou arquivado como ferramenta
inútil, talvez até perniciosa, hostil aos “avanços” pretendidos. Num
esforço de síntese genealógica, seguindo o que degenerou de maio
1968/new left para cá, chegando ao “politicamente correto” e aos
identitários, Marília Mattos, doutora em teoria literária e professora de
cultural studies no meio universitário baiano, observou:

A origem, por assim dizer, ‘epistemológica’ é a mesma: os Estudos


Culturais, que têm a ver com Gramsci e com uma revisão do marxismo
(a partir de Althusser e sua concepção de ‘interpelação ideológica’), a
qual, para resumir, fez com que a esquerda (ou melhor, a new left),
praticamente constrangida pelas feministas norte-americanas,
estendesse seu foco — até aí, no proletariado — às chamadas
‘identidades minoritárias’ (ou periféricas). Expansão esta que, a meu
ver, acabou por afastá-la totalmente do proletariado (mais
precisamente, fez este afastar-se dela) ao ignorar e, muitas vezes,
atacar seus valores reacionários, concentrando-se (quase
obsessivamente) nessas identidades ‘oprimidas’ (mulher, negro, gay,
etc) — o que, graças à excessiva patrulha ideológica, deu nessa
overdose de ‘politicamente correto’. ‘Lugar de fala’, simplificando,
diz respeito aos discursos com os quais você se identifica, que
(re)produzem as identidades, que não são únicas, nem essenciais ou
fixas — como demonstrou, emblematicamente, Michael Jackson, um
herético transgressor das ‘sacrossantas’ fronteiras identitárias. Mas
esse caráter fluido da identidade é frequentemente desconsiderado, o
que é lamentável.

A propósito, o indiano Amartya Sen fala uma coisa bem interessante


sobre o tema/problema, em seu livro Identity and Violence. Vou repeti-lo
resumidamente aqui. Sen lembra que uma mesma pessoa pode ter várias
identidades, simultaneamente. Digamos: ser mulato, bissexual, falante do
português, católico, amigo e estudioso do mundo muçulmano, professor de
arquitetura, maconheiro, torcedor do Fluminense ou do São Paulo,
participante de lutas ambientalistas, defensor dos direitos das mulheres,
amante de uma nissei que conheceu na linha amarela do metrô de São
Paulo, etc. Diante desse quadro múltiplo, um companheiro militante ou
um adversário seu (no caso, tanto faz) seleciona e absolutiza apenas uma
dessas identidades: ser “afrodescendente”, maconheiro ou amigo de
muçulmanos, por exemplo. Ao fazer isso, o sujeito “miniaturiza” (para
usar a expressão cara ao próprio Amartya Sen) a pessoa em questão. Faz
urna caricatura dela. Reduz o indivíduo a somente uma de suas almas. E
este é o espaço por excelência do identitarismo, seja caracterizando
alguém como preto-oprimido-futuro-redentor-do-mundo, seja como
branco-opressor condenado a ser escroto per omnia saecula saeculorum. É
o espaço da miniaturização de todos, para louvar ou execrar. E não é
preciso insistir no quanto esta postura é intelectual, social e humanamente
fraudulenta e empobrecedora.
Mas vamos retomar o passo. A esquerda pós-moderna retirou de cena o
velho proletariado — e, em seu lugar, colocou pretos, índios, mulheres,
veados, obesos, caolhos, etc. Assim como retirou de cena a velha
burguesia — e, no seu empedernido (mas removível) posto, assentou a
caricatura gigantesca, a terrível e temível figura do Homem Branco. É este
arquétipo ou superestereótipo e a abolição solipsista das classes sociais,
em suas teses e seus discursos panfletários, que deixa o racifascismo
neonegro confuso e perdido, ou até como se estivesse divisando alguma
miragem, diante do que de fato acontece hoje em tantos países africanos,
como Angola e a Nigéria, por exemplo: a exploração do negro pelo negro
— que vem da escravidão milenar vigente em tantos reinos e aldeias,
passa pela rainha Ginga (ou Nzinga) usando suas escravas pretas como
poltronas, sobre cujos dorsos nus ela se sentava durante horas, enquanto
fazia acordos e tratativas com autoridades e comerciantes brancos da
Europa, e entra com tudo nestes nossos dias de globalização. (Por falar
nisso, aliás, e ao contrário do que nossos historiadores esquerdistas
adoram dizer, o Brasil não foi o último país a abolir a escravidão. Ela
continuou existindo em África. Serra Leoa e o Zanzibar aboliram
legalmente a escravidão bem depois do Brasil. E a Arábia Saudita só o fez
em 1962, quando o mestiço Mané Garrincha, descendente de índios
fulniôs, decidia o campeonato mundial no Chile).
A chamada “descolonização”, posterior à II Guerra Mundial, não
resolveu nada. Podem conferir: ao colapso do colonialismo, seguiu-se o
colapso da descolonização. A África Negra gerou um rosário de ditaduras
corruptas, com elites negras riquíssimas e massas também negras sofrendo
na pobreza e na ignorância. Esta é a África Negra atual: faiscantes ilhas
multimilionárias negras em mares pesados de miséria igualmente negra.
Surpreendem-se ainda, os neonegros, com a observação de que, nessas
mesmas terras de Angola e da Nigéria, Barack Obama jamais se elegeria
presidente. Não só em consequência de ditaduras e fraudes, sob o comando
de elites negras que massacram massas negras. Mas principalmente
porque, para estas mesmas massas negras, Obama não é negro e, sim,
mulato. Os negroafricanos distinguem fortemente esses cromatismos — e
o mulato é objeto de terrível preconceito entre eles. Basta lembrar que em
Angola, por exemplo, mulatos são chamados por uma expressão
pejorativa: latom. “Latons”, em África, são tanto os nossos mais leves
quanto os mais radicais militantes racifascistas. “Latom” é o neonegro Nei
Lopes, por exemplo. “Latom” é Martinho da Vila. “Latonas” são, gostem
ou não gostem disso, as atrizes Camila Pitanga e Thaís Araújo, mulatas
bonitas, mestiças sensuais dos trópicos brasílicos. O caso de Thaís Araújo,
por sinal, merece registro. Num certo sentido, ela não deixa de ser a nossa
Michael Jackson, embora com propósito bem dessemelhante e sem um
milímetro do brilho estético deste: começou bem pretinha; com o tempo (e
operações!), foi ficando cada vez mais branqueada — e, quanto mais
branqueada ficava, mais enfaticamente passava a se declarar “negra”.
Ainda a propósito de identitários e classes sociais, o já citado geógrafo
Fernando Coscioni comentou rapidamente, no face- book, o debate entre
Jordan Peterson e Slavoj Zizek. Peterson negrita, corretamente, que o
maniqueísmo da política identitária descende em linha direta do modelo
marxista, que dividia o mundo em “opressor” (burguesia) e oprimido
(“proletariado”). Concorda assim que assistimos hoje ao lamentável
espetáculo da degradação final do velho binarismo marxista em novo
dualismo analfabeto. Coscioni, também corretamente, no caminho de
Jacoby, matiza:

A política identitária é fruto da migração dessa lógica maniqueísta


vulgar para aquilo que Marx chamou de ‘superestrutura’. A lógica de
entendimento da realidade baseada no binômio ‘opressor-oprimido’
migrou da análise das relações de reprodução econômica para a análise
das relações socioculturais entre pessoas e gêneros, etnias e
orientações sexuais distintos.

Mas Zizek desloca a discussão, ao apontar para o vínculo entre a


política identitária e a “fase atual do capitalismo”. Coscioni:

Especulando sobre o que Zizek quis dizer (e ele foi pouco claro nesse
tema), dá para conjecturar o seguinte: as sociedades capitalistas
estariam se aproveitando do narcisismo dos grupos identitários para
criar formas mais individualizadas de consumo e mercados mais
segmentados (trazendo com isso, por exemplo, todo o cinismo das
ações de marketing e publicidade politicamente corretas que visam
‘agregar valor’ às marcas). O identitarismo seria uma espécie de
consequência politizada do individualismo engendrado pela sociedade
de mercado.

E Coscioni acha que Zizek está certo ao “sublinhar a relação entre a


histeria identitária e o individualismo da sociedade de consumo”, até
porque, acrescento, o individualismo está sujeito a variações históricas
marcantes — e não há como confundir, por exemplo, o individualismo
renascentista com o individualismo desses nossos tempos de sociedade de
consumo e mass culture. Tendo a concordar com Zizek, no caso. E apenas
para botar mais uma castanha nesse vatapá, lembro que, afora diversos
filmetes publicitários bandeirosos, o canal de televisão Globonews —
canal narcisista ao extremo (onde o jornalista é sempre muito mais
importante do que a notícia) e que cai automaticamente de quatro diante
de qualquer modismo novaiorquino — é hoje o grande porta-voz de
massas do identitarismo, com seus discursos ostensivamente pró-
feminista, pró-gay, pró-racialista, pró-índios d’antanho. E isso talvez tenha
a ver com a “afrodescendência” original de Roberto Marinho, que reinou
plenamente em sua casa-grande, antes de deixá-la com seus herdeiros.
E o grave, como já foi dito e rédito, é que, se a pessoa não concorda
com o fogaréu expelido pela boca do militante identitário, merece
diretamente o fogo do inferno: se não acha que o xibiu explica tudo, é
machista; se não acha que é a cor, é racista... E o paredón estaria logo ali
na esquina, caso eles tivessem poder para tanto. Lembro que o historiador
Joel Rufino — mulato preto, comunista atuando com Marighella na
clandestinidade terrorista, autor de livros como História Política do
Futebol Brasileiro —, escreveu, acho que em Atrás do Muro da Noite, que
nossos

movimentos negros trabalham politicamente o ressentimento, o tom do


seu discurso é a mágoa [ou a raiva] pela pouca consideração do branco,
há como que uma ânsia em arrancar do brasileiro comum a confissão
de que este é racista.

Nos dias que correm, não é preciso nem mesmo fazer este esforço,
procurando ajoelhar confessionalmente o próximo. A pessoa é acusada de
racista antes mesmo de ter tido tempo de abrir a boca. Todos então acabam
constrangidos a embarcar na canoa furada do identitarismo. Por esse
caminho, de resto, o identitarismo implantou uma prática ditatorial,
fascista, no mundo da arte e do entretenimento: artistas mulheres (lésbicas
ou não), artistas pretos ou artistas gays são obrigados a militar, ou a
militância vai fazer o que puder para sabotar e bloquear suas carreiras.
Somos assim atirados de volta aos velhos tempos da política cultural
soviética sob Stálin e Zdanov, agora em versão cromático-genital.
Inúmeros observadores já assinalaram isso. Outro dia, João Pereira
Coutinho, em artigo na Folha de S. Paulo:

Um filme que não tenha compromisso com a ‘inclusividade’ é tão


herético como era o ‘sentimentalismo burguês’ para os censores do
realismo socialista. Um livro com personagens sexistas ou misóginas é
tão intolerável como era o formalismo para os sacerdotes da estética
moscovita.
Do realismo socialista ao realismo racialista, portanto. E ainda há um
dado cruel aqui. Depois que se convertem e fazem a opção por se
apresentarem como “negros”, os artistas mais branqueados, mais
claramente amulatados, sofrem desqualificações e exclusões (como se viu
recentemente na disputa sobre quem poderia fazer o papel da sambista
Ivone Lara, ela mesma, aliás, mulatíssima), com base na conversa do
“colorismo”, que estabelece uma hierarquização cromática dos pretos,
segundo a maior ou menor pretidão da pele (só escapam disso mulatos ou
mulatas realmente famosos, como a já citada Camila Pitanga, que os
militantes fazem questão de tratar como preta retinta). Por esse caminho,
os grupos identitários, estabelecendo insuperáveis hierarquias internas,
acabam gerando subgrupos. E tudo vai rolando em direção ao
“personalismo identitário” (me lembro até do velho Thoreau, quando
dizia, com sentido bem diverso, que ele era uma minoria de um), de que
me fala Emanuelle Torres. O grave é que, assim, o mulato e a mulata de
tez mais clara, além de sofrer com discriminações e preconceitos lá fora,
também são obrigados a suportar restrições discriminatórias dentro do seu
próprio grupo, necessitando a todo instante pedir desculpas pelo fato de
não serem representações fenotipicamente “perfeitas” da identidade
grupai.
Aqui chegando, só não consigo entender como os identitários se
comunicam entre si — e, pior, lidam uns com os outros —, quando leio a
seguinte informação no livro As Ideias e o Terror de Bruna Frascolla:

Steven Pinker [em The Better Angels of our Nature] chegou a apontar
que a dicotomia marxista entre opressor e oprimido, acompanhada pela
apologia da revolução violenta, causavam um senhor estrago nos
Estados Unidos de uma maneira nova. Sob a batuta da Escola de
Frankfurt, intelectuais passariam a apoiar qualquer comportamento
lesivo desde que parecesse caber em suas novas noções de revolução
— que, agora, não se centravam mais em classe, mas em coisas como
raça, à maneira nazista. A violência gratuita recebia apologia como
revolucionária ou não-conformista, e psicopatas usavam clichês
frankfurtianos para explicar seus crimes e saírem da prisão. Como
mostra de sua tese, porém, ele traz o surpreendente trecho em que
pantera negra Eldridge Cleaver [em seu livro Soul on Ice] racionaliza
em termos políticos um estupro cometido [contra uma mulher branca]:
‘O estupro foi um ato de insurreição. Deu-me prazer desafiar e pisotear
a lei do homem branco, seu sistema de valores, e deu-me prazer sujar
suas mulheres — e esse ponto, creio, foi o mais satisfatório para mim,
porque eu me ressentia muito do fato histórico de que o homem branco
usou a mulher negra’. Pinker conta ainda que esse livro [de Cleaver]
foi muito bem recebido pela crítica e o New York Times chegou a
qualificá-lo como ‘brilhante e revelador’. Mas piora! Na mesma
página, esse bravo antirracista que cobra dívida histórica em estupro
de brancas conta que foi preciso ensaiar antes com negras [não se sabe
se para minimizar a tal da solidão estrutural]. Diz: ‘Tornei-me um
estuprador. Para refinar minha técnica e modus opercmdi, comecei
praticando com garotas negras no gueto — no gueto negro onde ações
sombrias e viciosas não parecem aberrações ou desvios da norma, mas
como parte da suficiência do Mal cotidiano — e, quando eu me julguei
ligeiro o bastante, cruzei os rastros e procurei presa branca’. Numa
tacada só, o estuprador autoriza o estupro de mulheres da raça que ele
alega defender e diz que estupro é uma coisa normal entre aqueles
pretos pobres! Seria possível ofendê-los mais? Seria possível ser mais
racista e degradar mais, com ações e palavras, as mulheres?

Radfems como Andréa Dworkin, que eu saiba, ficaram caladinhas. Mas


note-se, também, que a sempre celebrada feminista “afro-americana”
Angela Davis, em Women, Race and Class, não condenou nem a violência
de Cleaver contra as mulheres, nem o seu racismo contra pretos.
Identitários consentem crimes identitários, então. Mas o que a
mistificadora Angela Davis e um criminoso sexual e racial como Cleaver,
apesar de tudo que possam pensar em contrário, teriam a ver com um
homem como Frantz Fanon, por exemplo? Nada, é claro.
6. A defesa do apartheid político e cultural

É DO GAÚCHO MANUEL Touguinha (ex-padre e ex-gerente de


bordel, produtor cultural responsável, entre outras coisas, pela recuperação
e sobrevivência arquitetônicas dos moinhos de pão da sua terra natal), em
conversa matinal num boteco às margens do Rio Parnaíba (também
conhecido como Velho Monge), na cidade de Teresina, no Piauí, o melhor
comentário que já ouvi sobre essa baba boba de “apropriação cultural”:
“Tomate é asteca. Logo, vamos parar com essa brincadeira de mau gosto
de ficar fazendo pizza na Itália”... Perfeito. E irrespondível. Bem vistas as
coisas, essa conversa de “apropriação cultural”, quanto a nós, se funda
numa dupla ignorância. De uma parte, no desconhecimento da história
sociocultural da humanidade. De outra parte, no desconhecimento
específico da história sociocultural brasileira.
Dou um exemplo da primeira ignorância. A este propósito, ficou
célebre no Brasil o “caso do turbante”. Uma mulher preta se dirigiu a uma
mulher branca, num ponto de ônibus, questionando-a pelo fato de estar
usando um turbante, que seria coisa negra. A mulher usava o turbante, no
caso, para cobrir uma careca produzida pelo tratamento contra câncer a
que estava se submetendo. Mas, embora não devêssemos, deixemos
provisoriamente isso de lado. O que importa, nesta passagem aqui, é que
turbante nunca foi elemento cultural negro. Turbante é árabe — e árabe
nunca foi preto, mas árabe. Para dar um exemplo concreto, lembremos que
o turbante chegou à terra dos hauçás ainda antes do século XIV, com a
maré islâmica se espraiando pelo espaço negro da África. E era signo da
dominação política, econômica e sociocultural dos hauçás pelos árabes. Na
verdade, a islamização da Hauçalândia nunca chegou a ser completa e foi
assim que, na passagem do século XVIII para o XIX, conflitos e guerras
pipocaram no território hauçá. Muitos chefes e reis hauçás simplesmente
não engoliam o islamismo. Para os verdadeiros muçulmanos, eles eram
pseudomuçulmanos ou mesmo pagãos. Foi então que, no Gobir, reino
hauçá, chegou a ocorrer uma restauração do “paganismo”. Nesta onda
negra rebelde, antimuçulmana, antiárabe, o sarki Nafata investiu contra
todo e qualquer símbolo islâmico, proibindo as mulheres de colocar véus e
punindo qualquer preto ou preta que usasse... turbante. E é preciso cuidado
para não cair na armadilha de certas expressões. Fala-se aqui, por
exemplo, que jogamos “capoeira angola”. Mas essa “capoeira” (uma
palavra tupi, por sinal) não existe, não é conhecida em Angola. Estudando
os hereros do deserto do Namibe, por exemplo, em seu livro Vou Lá Visitar
Pastores, o antropólogo angolano Ruy Duarte de Carvalho fala, a certa
altura, “da bahianíssima ‘capoeira de Angola’”.
A preta (ou mulata escura) que chamou às falas a branca (ou mulata
clara) do turbante, no ponto de ônibus, realmente não tinha conhecimento
algum da história negra da África. Talvez achasse que o turbante era
culturalmente negro por compor o chamado “traje de baiana” e aparecer
no xirê dos orixás. Mas o traje de baiana é totalmente sincrético, com
elementos lusitanos como a saia rendada, por exemplo. Mais: Portugal foi
dominado pelos árabes durante séculos — e assim como os árabes levaram
pretas africanas a usar turbante, também levaram brancas portuguesas a
fazer o mesmo. Na verdade, brancas européias, não apenas portuguesas.
Por isso vemos turbantes em quadros de Rembrandt e Vermeer. Informa o
crítico de arte José Valladares, em “O Torço da Baiana”:

Em Portugal, já no século XII, temos um retrato da rainha D. Mafalda


com seu ‘toucado de rolo’. Turbantes, trunfas, turbantes de polichinelo
e turbante à mourisca encontramos em ilustrações quinhentistas das
edições chamadas de cordel, dos autos e comédias de Gil Vicente,
Ribeiro Chiado e Bernardim Ribeiro.

Em resumo, ao contrário do que fantasia grosseiramente a


invencionice identitária, a história cultural da humanidade é um
vastíssimo espaço fervilhante de trocas, empréstimos, imposições,
assimilações, reinvenções e misturas.
E um exemplo da segunda ignorância: a que quer enfiar a experiência
histórica, social e cultural de um povo na camisa de força da experiência
histórica, social e cultural de outro povo. A peripécia brasileira não pode
ser confundida com a norte-americana. Aqui, as coisas se mesclaram em
profundidade e afloraram com nitidez. Os Estados Unidos são uma nação
de fraca capacidade integradora e alto poder destrutivo. Em sua obra
Fenomenologia do Brasileiro, Vilém Flusser, judeu nascido na Praga de
Kafka, já falava da insularização local das etnias, que viria a produzir uma
série compartimentada de nipo, ítalo ou afro descendentes. Ao lado disso,
o poder destrutivo. O exemplo clássico está no assassinato espiritual do
negro africano nos Estados Unidos. Sob a pressão avassaladora do poder
puritano branco, as religiões negras foram destruídas naquele país. Por
isso, o mulato Martin Luther (a forma inglesa de Martinho Lutero, note-se
bem) King foi um pastor protestante, neto de avó irlandesa, e não um
babalaô, senhor das práticas divinatórias de Ifá. Também por isso, quando
acharam que tinham de recriar alguma “religião ancestral”,
afroamericanos como Malcolm X e Muhammad Ali chegaram ao islã! —
religião de árabes invasores e dominadores de reinos e povos da África
Negra. Daí que os sintagmas música religiosa negra e black religious
music sejam equivalentes perfeitos em termos linguísticos, mas remetam a
realidades dessemelhantes no campo cultural. No caso da black religious
music, o que temos é o hinário protestante preto, recriação de salmos
brancos — e mesmo na poesia do blues a referência é a Bíblia (the Book,
“o Livro”), como ouvimos na voz de Billie Holiday em “God Bless the
Cluld” (décadas depois, na bem menos privilegiada voz de Bob Marley e
de todo o reggae jamaicano) —, e não o universo sonoro de inquices,
orixás e eguns. Já no caso de nossa música religiosa negra, o que ouvimos
é a música sacra executada em nossos terreiros de candomblé, com
atabaques e alabês. As coisas estão vivas entre nós — e ainda hoje é
possível tranquilamente coletar e estudar nesses terreiros, como fez Flávio
Pessoa de Barros em 0 Segredo das Folhas: Sistema de Classificação de
Vegetais no Candomblé Jeje-Nagó do Brasil, conjuntos de “cantigas de
folha”, chamadas orin ewe, em iorubá. E por isso mesmo que signos e
formas de origem negroafricana aparecem, na criação estética brasileira,
não como sobrevivências ou resquícios, mas como coisas concretas do
cotidiano mesmo de nossos artistas e de seu público, indo da produção
plástica de Rubem Valentim ao Amuleto de Ogutn de Nelson Pereira dos
Santos, passando pelo romance de Xavier Marques (pai de Jorge Amado e
avô de João Ubaldo) e pelas canções da música popular brasileira. É que,
aqui no Brasil, heranças negroafricanas permaneceram e permanecem,
viçosas e vistosas, circulando pelos mais variados ambientes sociais e
culturais. Antes que país multicultural, o Brasil é, secularmente, uma
nação sincrética.
Mas, além da bobagem da “apropriação cultural”, temos ainda outra
pedra no caminho: o expediente fascista do tal do “lugar de fala”, que,
segundo o psicanalista Marcus do Rio, se resume ao seguinte: somente
anões bissexuais chineses podem falar sobre anões bissexuais chineses.
Exato: lugar de fala designa um gueto de amantes do apartheid onde só os
perfeitamente idênticos a si mesmos têm direito à voz. Num breve texto
informal estampado no facebook, Fernando Coscioni informa que é
altíssimo, no meio universitário brasileiro hoje em estágio de avançada
decomposição mental, o número de pessoas que enxerga o mundo a partir
do modelo binário opressor-oprimido do marxismo, em suas diversas
variações identitárias. E frisa que essas pessoas

decidiram, de forma um pouco truculenta, que todos os seus colegas


devem aceitar o pedigree de ‘oprimidos’ que eles reivindicam para si
próprios. Isso significa que se uma pessoa desfruta do capital
simbólico de pertencimento a algum grupo ‘oprimido’ e se define, por
exemplo, como ‘mulher negra e lésbica’ ou como ‘pessoa não em
termos de gênero’, entre outras possibilidades, ninguém que,
supostamente, não tem tanto pedigree de ‘oprimido’ como tal pessoa,
como, por exemplo, um ‘homem branco heterossexual’, pode ter, aos
olhos dessas pessoas, legitimidade para se posicionar contra algo que
elas dizem. Para ter legitimidade no que diz, você precisa ser
pertencente a um desses grupos de ‘oprimidos’, com a ‘fala legítima’,
senão, mesmo que você diga algo razoável, você será escorraçado
como um ‘opressor’.

Trata-se de tentar impor um monopólio identitário da fala, uma reserva


de mercado cultural e ideológica: vamos silenciar o outro — falar somente
com os mesmos e somente aos mesmos ouvir. Vale dizer, é a turma que
sacralizou o idem e o ibidem.
Falo “reserva de mercado” porque é uma política francamente
excludente que gera nichos discursivos remunerado- res, pregando que só
mulheres têm “legitimidade” para falar de mulheres, só pretos têm
“legitimidade” para falar de pretos e assim por diante. O objetivo é,
portanto, assegurar um espaço, ter o monopólio da fala e, logo, da
realização de ações e produtos a ela relacionados. Mesmo quem discorda,
não enfrenta. Artistas e administradores públicos se amedrontam, enfiam o
rabinho entre as pernas e aceitam as imposições identitárias. Sei de casos
de pessoas desconvidadas a fazer palestras e desenvolver curadorias, em
museus e outras instituições, pelo simples fato de o tema escolhido ser
considerado como sua propriedade privada por coletivos-patrulha
identitários. (Na Bahia, uma conhecida entidade artístico-cultural até hoje
se desculpa, sem motivos para isso, por um concurso de fotografia. É que
racialistas ficaram revoltados com o fato de somente fotógrafos brancos
terem sido selecionados pela entidade. Detalhe nada insignificante: a
banca julgadora não teve quaisquer informações pessoais acerca dos
fotógrafos concorrentes — seu acesso se restringiu às fotos apresentadas
para avaliação. E aqui aproveito para fazer mais uma observação. Com o
horror identitário à qualidade, seus “artistas” não têm compromisso com o
nível da fatura técnica e estética do que fazem. Comportam-se todos como
se a certidão de nascimento da pessoa fosse o que realmente importa, não
a obra que ela objetivamente concebe e produz. E isso não só complica
algumas coisas agora, como vai gerar lamentações a longo prazo. Claro.
Se você, embora escritor ou cineasta, por exemplo, não tem a desculpa de
ser mulher, preto, veado, índio, trans, etc., só lhe resta mesmo caprichar —
e muito — no seu fazer. O que significa que, se as coisas continuarem
assim, somente homens brancos heterossexuais acabarão produzindo obras
de qualidade. Ou seja: aquelas que terão lugar assegurado no futuro, na
história do fazer estético brasileiro. E não entendo a razão que leva os
identitários a recusar qualquer coisa que cheire a qualidade, como se
qualidade fosse sinônimo de opressão, condenando assim o que fazem ou
pretendem fazer, desde o berço, à irrelevância artística e cultural. Mas é
isso: tem muita gente hoje que não quer ver diferença alguma entre
Wesley Safadão e Tom Jobim, como se isso fosse “libertário”). Que isto
empobreça o debate nacional sobre o assunto, pouco importa? Para dar
exemplos conhecidos, vejam como o mecanismo supostamente libertário,
mas essencialmente fascista, repercute, por exemplo, em nossa produção
cinematográfica. Recentemente, a ira identitária sobrou para um filme
como Vazante de Daniela Thomas, duramente criticado no Festival de
Brasília. O escritor João Carlos Rodrigues — autor, por sinal, de O Negro
Brasileiro e o Cinema — comentou:

Houve um debate deprimente, cheio de agressões, onde a cineasta não


soube se defender de modo adequado e posteriormente fez declarações
ambíguas como se fosse culpada de alguma coisa. [...]. Acredito que o
fato de Vazante ter desnorteado esse tipo de militância radical é uma
qualidade e não um defeito do filme. Revela que não é óbvio, que está
além dos comícios disfarçados, das frases feitas e dos finais catárticos.

Mas, se Vazante e Daniela foram atacados por ativistas racifascistas


neonegros, há filmes que nem chegam a ser feitos, com cineastas
desistindo diante da perspectiva da chuva de pedras que será despejada
sobre eles. A reserva de mercado é garantida, com a vociferação
identitária intimidando autores. E, pior, ainda há os que se arrependem
covardemente de ter filmado isto ou aquilo, como a cineasta Tata Amaral
dizendo que, hoje, não faria um filme como Antonia. Quem perde com
tudo isso? Simples: o cinema brasileiro, a cultura brasileira e, em última
análise, a sociedade brasileira. Quem ganha? Ninguém — a não ser meia
dúzia de gatos pingados (e mais pingados do que gatos, por sinal) que
teriam demarcado suas terras quilombolas no domínio estético,
expulsando dali cineastas extrapretos que estivessem dispostos a garimpar
alguma coisa sobre o país, a sua história, a sua gente. Como, para mim,
inexiste propriedade privada no mundo da cultura, deixo o silêncio
cabisbaixo para os temerosos de sempre.
No fundo, trata-se ainda de pretender apagar uma distinção elementar,
óbvia mesmo: viver uma situação, uma conjuntura, uma época, é uma
coisa — e outra coisa, muito diferente, é compreender o que se viveu.
Milhões de pessoas viveram as chamadas “guerras mundiais” e vivem hoje
a crise brasileira e a globalização, mas poucas entenderam ou entendem o
que estava e o que está realmente acontecendo. E isso não vale só para
ignorantes. Num plano mais radical, Freud fez fortuna ao mostrar que, em
princípio, mal conhecemos a nós mesmos. Mas, no final das contas, o que
não se diz, mas logicamente se afirma, é que, em última análise, só é
legítimo à pessoa falar de si mesma. Unicamente. E, ainda aqui, o que ela
falar de si própria não deixará de ser suspeito. Não só no sentido que
aprendemos e a que nos acostumamos e que Antônio Vieira sintetizou à
perfeição no “Sermão da Terceira Dominga do Advento”, quando declara
que nenhum homem é tão reto juiz de si mesmo que diga realmente o que
é, ou seja realmente o que diz. Mas principalmente porque virá com
determinações “estruturais” de ordem social, cultural, biológica, etc. E se
o que importa mesmo é a vivência do que se fala, como levar a sério um
livro como 0 Suicídio, se o seu autor, Emile Durkheim, nunca atentou
contra a própria vida? Não dá. Pela lógica do “lugar de fala”, só pode
escrever sobre o suicídio quem, pelo menos uma vez na vida, tenha
chegado a se matar. O que me faz lembrar uma daquelas frases deliciosas
do Catatau de Paulo Leminski: “Vou ali, me suicido e volto já”.
7. A bolha neonegra, o afro-oportunismo

O IDENTITARISMO É TAMBÉM, como a essa altura todos já devem


ter concluído, o paraíso das simplificações e das falsificações. Da
manipulação de dados e fatos unicamente com propósitos políticos
racialistas ou sexistas. Do unilateralismo ideologicamente comprometido.
Da garantia, por essas vias, de uma reserva de mercado, do acesso
assegurado a plateias previamente comprometidas com o que será dito. E,
no ambiente identitário brasileiro, como já disse, ainda estamos no estágio
do “esquerdismo”, no sentido leninista de “doença infantil”. E mais:
pretos, veados, índios e mulheres, aqui como nos Estados Unidos, são
sempre seres eticamente superiores, teoricamente impossibilitados de
carregar mesmo a mais leve de todas as máculas em suas vidas ou em suas
almas puríssimas de oprimidos, como se fossem aqueles mártires da
antiga cristandade.
Um escritor neonegro brasileiro jamais faria o que fez o mulato norte-
americano Colson Whitehead em seu recente romance Underground
Railroad. Acompanhamos aí a peripécia da escrava Cora (cujos avós
foram vendidos aos brancos por traficantes negros do Daomé) em busca da
liberdade. E o livro fascina. Verdade que, para ficar somente no plano da
literatura norte-americana desse último meio século, Colson Whitehead
pode não ter o poder textual de John Williams, a alta competência
construtiva de Philip Roth, a criatividade encrespada de Foster Wallace ou
a densidade do Jonathan Franzen de Freedom, por exemplo. Mas fez um
belo trabalho. Conceitualmente, sua virtude central é recusar o
maniqueísmo — estreiteza em que se comprazem hoje, no Brasil, os
chamados “profissionais da negritude”. Colson é implacável ao retratar
crueldades dos senhores escravistas brancos. Mas não é nada simplório. O
jogo entre escravos também pode ser sujo, muito sujo. Cora é estuprada
por colegas de cativeiro. Negros violando a negra. Sem a menor sombra de
solidariedade racial. Assinale-se também que, diante da divisão drástica da
população entre pretos e brancos (classificação imposta pelos senhores
escravistas), escravos afirmam sua mestiçagem. Sua “ancestralidade
mista”, nas palavras do próprio romancista. E vejam, também, como o
comércio de escravos é tratado por um cantor e romancista negro africano,
Wilfried N’Sondé, nascido em Brazzaville, na República do Congo, em
seu recentíssimo Un Océan, Deux Mers, Trois Continents (lançado já em
Luanda, tradução para o português assinada pelo escritor angolano José
Mena Abrantes). Ao falar da participação ativa dos bakongos (e tantos
deles vieram parar no Brasil, trazidos pelos navios negreiros) no comércio
transatlântico de escravos pretos, N’Sondé chega a escrever passagens
como esta, quando o rei bakongo assina um tratado comercial-escravista
com os portugueses, ainda no século XVI:

Não hesitou muito tempo e assinou, logo que compreendeu que em


troca dos cativos que devia fornecer, os seus parceiros lhe iam enviar
uns trinta operários especializados no trabalho do cobre e da madeira,
pistolas, fuzis, e sobretudo dez peças de artilharia. Viu também nesse
arranjo a oportunidade de se desembaraçar não apenas de um grande
número de prisioneiros de guerra que ameaçavam rebelar-se, mas
também dos seus mais ferozes inimigos políticos, assim como das
respectivas famílias. E depois seu reino tinha bastantes criminosos e
gente inútil que bem poderia exilar para longe das suas terras.

Ou ainda:

Os nossos campos viviam tempos sinistros, a caça ao homem e as


razias, tornadas moeda corrente, causavam muitas desordens,
desgraças e destruições. As histórias de raptos se multiplicavam, a
servidão já não ameaçava apenas os indivíduos viciosos, os ladrões, os
incestuosos ou os assassinos. Os poderosos do reino, tornados surdos
às injunções dos espíritos, trocavam até membros da própria família.

Na contramão de Colson Whitehead e N’Sondé, nossos racialistas


tentam não só dar tonalidades róseas à milenar escravidão africana, como
abolir mestiçagens, falsificando fundo a realidade brasileira, ao querer
tratá-la segundo o ponto de vista racista norte-americano da one drop rule.
Mas, como vamos falar logo adiante dos mulatos Machado de Assis, Lima
Barreto e Carlos Marighella, aproveito para abrir parênteses. E dizer que,
ao contrário do que pensa Francisco Bosco, o mulato também é o tal.
(Curiosamente, até à minha geração pelo menos, não tínhamos problema
algum com a palavra “mulato”; a palavra “pardo”, sim, quando aplicada a
pessoas, não raro era olhada com reservas — não por acaso, traduzimos a
expressão francesa, originalmente irônica, éminence gris, não por
eminência cinza ou cinzenta, mas por eminência parda.) Porque Bosco —
observando que, diante da repulsa “politicamente correta” à composição
“Tropicália” (por sua exclamação “viva a mulata!”), Caetano Veloso
deslocou o foco da discussão para a figura do mulato — escreveu o
seguinte:

Há uma diferença fundamental entre um gênero e outro [entre o mulato


e a mulata]. Na formação social e cultural brasileira, o mulato é objeto,
sem dúvida, de racismo, mas a mulata, além do racismo, se define
simbolicamente por uma associação sistemática ao sexo.

Mas isto merece, no mínimo, ser matizado. Em inícios do século


XVIII, em seu Cultura e Opulência do Brasil, Antonil citou o dito que se
tornaria célebre entre nós: o Brasil era inferno dos pretos, purgatório dos
brancos e paraíso dos mulatos. Mas o que me importa, aqui, é que tal
“paraíso” não estava isento de coloração erótica. Antonil carrega nas
insinuações, acenando em direção a um poder mulato. Poder de sedução
sobre senhores e senhoras — sedução sexual, também, ou às vezes
principalmente. Mas é no século seguinte que os mulatos ganham extrema
visibilidade social, numa inédita e forte maré de ascensão em nossa
sociedade, consequência do incremento do processo de urbanização ao
longo do período imperial. Alguém já disse, aliás, que bacharéis e mulatos
foram produtos das cidades e das plantações litorais. Era nos centros
urbanos que eles faziam a festa, ocupando espaços sempre maiores na
política, na imprensa, na literatura, na burocracia estatal. Em Sobrados e
Mucambos, Gilberto Freyre observa:

É impossível defrontar-se alguém com o Brasil de Dom Pedro I, de


Dom Pedro II, da Princesa Isabel, da campanha da Abolição, da
propaganda da República por doutores de pince-nez, dos namoros de
varandas de primeiro andar para a esquina da rua, com a moça fazendo
sinais de leque, de flor ou de lenço para o rapaz de cartola e de
sobrecasaca, sem atentar nestas duas grandes forças, novas e
triunfantes, às vezes reunidas numa só: o bacharel e o mulato.
Não por acaso apareceu nesse período o romance O Mulato de Aluízio
Azevedo, focalizando o filho de um branco contrabandista de escravos e
de uma escrava negra.
Mas Freyre vai além, chamando a nossa atenção para o fato de que, já
em princípios do século XIX, a nossa iaiá tradicional começou a dar lugar
a um tipo de mulher menos servil e mais mundana:

Muito menos devoção religiosa do que antigamente. Menos


confessionário. Menos conversa com as mucamas. Menos história da
carochinha contada pela negra velha. E mais romance. O médico de
família mais poderoso do que o confessor. O teatro seduzindo a mulher
elegante mais que a Igreja. O próprio ‘baile mascarado’ atraindo
senhoras de sobrado.

E aqui se processando a superação progressiva, mas inexorável, da


endogamia patriarcal, com bacharéis e militares mulatos se casando com
moças brancas ricas e elegantes da casa-grande e do sobrado. Freyre
(grifos meus):

... foi em grande parte através da mulher branca e fina, sensível ao


encanto físico e ao prestígio sexual do mulato... que, durante o declínio
do patriarcalismo, se fez, nas próprias áreas aristocráticas e
endogâmicas do país, a ascensão do mulato claro... à classe mais alta
da sociedade brasileira.

Ou seja: seguindo suas inclinações estéticas e eróticas, as novas iaiás


subverteram os critérios de casamento até então vigentes, que tentavam
impedir enlaces nupciais interclassistas e interétnicos. Prevaleceu a ideia
ou a sensação de que o mulato era gostoso. Pena que nenhuma dessas
mulheres tenha escrito um romance que tratasse do assunto. Mulheres
brasileiras não eram escritoras naquela época. E, se fossem, dificilmente
seriam destemidas o suficiente para tematizar eroticamente a figura do
mulato. Mas Freyre, que tinha uma riquíssima sensibilidade erótica, de
natureza pansexual, soube ver. E aqui não posso deixar de sublinhar isto.
Só um sujeito dotado de tão rica fantasia sexual seria capaz de definir o
mas- sapê dos litorais da Bahia e de Pernambuco, como Freyre faz em
Nordeste, nos termos de uma terra “pegajenta e melada”, que se “agarra
aos homens com modos de garanhona”. Isto é, um sujeito capaz de ver a
terra como fêmea ativa e poderosa que faz do macho seu pederasta
passivo. E a verdade é que a leitura que Freyre faz do Brasil é
indissociável desse seu temperamento fogosamente erótico, de natureza,
caráter, disposição ou vocação francamente pansexual.
Mas voltemos ao mulato. Observei que mulheres raramente produziam
textos estéticos naquele período. Na música, Chiquinha Gonzaga — filha
de mãe solteira mulata, uma das primeiras feministas brasileiras, militante
abolicionista — foi uma exceção. Mas era basicamente compositora, não
letrista, embora tenha deixado para nós o erro de português talvez mais
célebre da história estética do país, ao cantar “ó abre” e não “ó abram”
alas. Na literatura, Gilka Machado, que chegou a escrever um verso como
“Sinto pelos no vento... é a Volúpia que passa”, só apareceria em 1915,
com seus Cristais Partidos, para compor “uma obra a um só tempo
violentamente sensual e arrebatada de espiritualidade transcendente”, na
definição perfeita de Andrade Muricy no Panorama do Movimento
Simbolista Brasileiro. Mas não me recordo de referências suas a mulatos.
Em todo caso, as mulheres apenas não escreviam — mas viam, pensavam
e faziam. Veja-se o trecho seguinte de Quelé, a Voz da Cor (elogiável, mas
equivocadíssima) biografia de Clementina de Jesus:

Na década de 1930, a Estação Primeira [de Mangueira] engatinhava


quando o assunto era carnaval. Grandes festas aconteciam o ano todo,
mas o ápice eram as festas juninas. Foi em uma dessas, provavelmente
no ano de 1938, que os olhares de Clementina de Jesus e Albino Pé
Grande se cruzaram pela primeira vez. Portelense e dez anos mais
velha que Albino, Quelé [Clementina] logo reparou naquele
homenzarrão alegre e divertido. ‘Que mulato bonito!’. Em entrevista
ao jornal Correio da Manhã, em 27 de outubro de 1969, Clementina e
Albino contaram como foi o primeiro flerte do casal. ‘Eu era a noiva
na Festa de São João da Mangueira. Tava linda no meu vestido branco.
Todo mundo me olhava, mas eu nem dava bola. Até que notei naquela
maravilha de crioulo, rodeado de moças. Não pensei duas vezes, fui
logo falando: ‘E meu, não tem dúvida que é meu’.

Clementina ganhou o seu mulato, inclusive contra a vontade da mãe,


Amélia, que não via a relação com bons olhos, advertindo a filha para o
fato de que o mulato Albino era “claro demais” para ela... Hoje, temos
levas e levas de escritoras, pintoras e compositoras. Embora, pelo que me
dizem, elas pareçam andar mais interessadas em outras mulheres, não em
homens.
Mas vamos aos casos de Machado de Assis e Lima Barreto, que a
ideologia racialista quer “ressignificar”, transformando-os em neonegros.
Os identitários não admitem que Machado e Lima sejam mulatos. Eles têm
de ser negros. E olha que os avós paternos de Machado eram já mulatos —
e Lima, filho do mulato João Henriques e da mulata Amália Augusta, se
definia nos seguintes termos: “Nasci sem dinheiro, mulato e livre”. Mas o
mestiço, aos olhos do racialismo identitário, não passa da ilusão de ótica
de um povo — o brasileiro — incapaz de reconhecer a sua impecável,
indiscutível, inquestionável pureza racial. Daí a busca ideológica, agora,
de uma “identidade negra” de Machado. Como supostamente desprezam a
qualidade estética em favor da ação afirmativa, submetendo a cultura à
política, querem ressituar Machado de Assis politicamente. Como
militante identitário, racialista neonegro avant la lettre, de preferência.
Mas Machado foi, mais do que todos, fundamente atingido pelo desejo de
brancura de que falava o mulato Mário de Andrade. Quando ativistas
neonegros protestaram contra um filmete publicitário da Caixa Econômica
Federal, em que um ator branco fazia o papel de Machado, não pude deixar
de pensar comigo mesmo e com meus pobres botões: Machado, se viu o
filme em algum cinema realmente transcendental, adorou ser branco,
mesmo que só e rapidamente na propaganda de um banco. Seus romances
são fartos de exemplos que explicam as vastas barbas que usava para
dissimular seus lábios grossos. Em Ressurreição, ele já faz o elogio das
“feições corretas”, brancas, da sua personagem. O que significa que se
considerava portador de feições “incorretas”, grosseiras, mulatas,
acentuando o amarronzado da pele. E não só no romance. Também nos
seus escritos críticos. Em A Personagem Negra no Teatro Brasileiro, na
seção que dedica à peça O Escravo Fiel, de Carlos Antônio Cordeiro,
encenada em 1859, Miriam Garcia Mendes escreve:

A coleção de estereótipos negativos de negro é bastante grande na obra


de José de Alencar. E Machado de Assis também não deixou de utilizá-
los em alguns romances, embora o fizesse mais sutilmente,
formulando-os através da análise do comportamento dos indivíduos,
não os denominando claramente. Na sua crítica ao Escravo Fiel, por
exemplo, ele se mostrara encantado com uma frase de Lourenço, na
cena em que o escravo é surpreendido por Firmino no quarto de Eulália
(Ato IV, Cena II) e procura justificar a sua presença ali. Diz Machado
de Assis: ‘Há uma frase lindíssima, entretanto, desse mesmo negro: —
Eu sou negro, mas as minhas intenções são brancas’. É a ideia do
branco, da brancura como paradigma da decência e honestidade,
conceito que implica a admissão por parte do autor, e também de
Machado de Assis, da inferioridade intrínseca do negro e da
superioridade do branco, só ele capaz de gestos e intenções nobres.

E apenas ignorância quando racialistas neonegros dizem que Machado


de Assis se concentrou na “burguesia branca” para melhor criticá-la.
Bastava ter lido seus romances para não dizer uma bobagem dessas.
Machado não critica acida- mente apenas a aristocracia e a burguesia
brancas, mas a humanidade inteira. Todas as classes e categorias sociais,
independentemente de credo, sexo, idade ou cor. Sua visão crítica pesada,
ainda que tantas vezes tocada de estranho e fino humor, não se restringe
nunca aos ricos, ferindo antes o conjunto dos seres humanos que formam a
totalidade do organismo social. E a barra do autor não é nada leve. No
pequeno escrito “A Filosofia de Machado de Assis”, incluído em Cobra de
Vidro, Sérgio Buarque de Holanda, comparando, nesse particular, nosso
romancista com o francês Anatole France, escreveu: “Machado de Assis
pode talvez desprezar os homens como France, mas não os despreza com
ternura, antes com certo amargor”. A estudiosa italiana Luciana Stegagno
Picchio, em sua História da Literatura Brasileira, pressiona a mesma
tecla. E José Guilherme Merquior, em De Anchieta a Euclides, é
claríssimo: para Machado, “os oprimidos não são melhores do que os
opressores: assim que o libertam, o escravo Prudêncio, que o menino Brás
maltratava, chicoteia sem piedade o seu próprio servo”, que acabara de
adquirir.
Mas desde o guru Abdias do Nascimento, em O Genocídio do Negro
Brasileiro, nossos militantes racialistas primam pela ignorância no campo
literário. Ao afirmar que os pretos brasileiros “são uns verdadeiros
coagidos, forçados a alienar a própria identidade pela pressão social, se
transformando, cultural e fisicamente [sic] em brancos”, Abdias cita o
caso de Gregório de Mattos, “o famoso satírico ‘boca do inferno’ que tão
ferozmente ironizou os mulatos possuidores de amantes negras ou
mestiças; seu ideal de beleza era a beleza branca”. Temos, de cara, uma
meia verdade: Gregório atacou não só mulatos e mulatas, mas pessoas de
todas as cores, sexos e classes sociais. A outra meia mentira é que
Gregório não só desancou, como celebrou mulatas: seu ideal de beleza não
era simplesmente “a beleza branca”. Basta lembrar, entre dezenas de
exemplos disponíveis, o poema onde a beleza da mulata Tereza (“Seres,
Tereza, formosa...”) é por ele celebrada com uma delicadeza lírica digna
dos troubadors da Occitânia. Mas o mais importante nem é isto — e sim o
fato de Gregório não ser mulato, mas branco total, cristão velho, com
“limpeza de sangue” atestada pelo tribunal da Santa Inquisição. Isso muda
tudo! Nossos racialistas bem fariam em pensar sobre o caso. Em ver o
significado desta cena em que um branco celebra a beleza mulata de
Tereza, colocando-a acima do padrão estabelecido da beleza branca: “Se
por todo mundo andara,/ Não vira no mundo inteiro,/ Nem riso mais
feiticeiro,/ Nem mais agradável cara”. E não reclamem, por favor, quando
falo de ignorância. Se não querem ser chamados de ignorantes, estudem,
leiam, se informem, pensem. Sim. E aqui chegando, e ainda em
homenagem ao velho Abdias do Nascimento, lembro Sokal e Bricmont
citando exemplos e mais exemplos de desonestidade intelectual e
desconhecimento do pensamento científico em obras de Lacan, Luce
Irigaray, Gilles Deleuze, Julia Kristeva, etc.: “é sempre bom saber do que
se está falando”. No caso dessa onda em torno da “identidade negra” de
Machado, nossos racialistas não sabem.
Já com relação à apresentação de Lima Barreto como
“afrodescendente”, tal como é feita no livro Lima Barreto: Triste
Visionário de Lilia Moritz Schwarcz, não devemos falar de ignorância,
obviamente, hesitando antes diante de um triângulo que traz as marcas da
culpa, do oportunismo e do desaviso. Culpa: a branquinha “progressista”
paulistana, politicamente corretíssima, investindo bravamente contra a
maré racista da cultura dominante para realizar o resgate histórico de um
“negro”, ainda que à revelia dele mesmo. Oportunismo: a consagrada
historiadora acadêmica da casa-grande “uspiana” marcando novos pontos
ao fazer média com a corrente universitária hegemônica, nos Estados
Unidos e no Brasil, do identitarismo e do politicamente correto — e assim
conquistando os aplausos da já bem crescida plateia racialista de nossos
neonegros. Desaviso: admitindo-se, o que evidentemente não é o caso, que
ela fosse desinformada sobre tudo isso... Como esta última hipótese não é
plausível, fiquemos, portanto, com os dois primeiros tópicos, em resposta
aos quais nos vemos compelidos a classificar seu livro na novel categoria
do afro-oportunismo. De fato, ela pretende surfar na onda dos múltiplos
studies, na maré das novas modas político-acadêmicas norte-americanas.
E aqui não posso deixar de me lembrar de Simone Weil dizendo
sabiamente, em seu escrito “A Pessoa e o Sagrado”, que a influência da
moda é até mais forte sobre cientistas e pesquisadores do que sobre o
formato de chapéus. Ainda mais que o livro em questão foi feito para
cavalgar a tempo de uma nova edição da Flip — a Feira Literária de
Paraty, abrigo atual de todos os esquerdofrenismos —, em homenagem
justamente a Lima Barreto. Mas não vamos apressar o passo.
Muito se falou de uma linha de continuidade entre o mulato Machado
de Assis e o mulato Lima Barreto. Eis o comentário de Tristão de Ataíde,
por exemplo, nos seus Estudos Literários:

Quando, em 1908, mansamente, se extinguia Machado de Assis,


cercado pela vegetação perfumada desse Cosme Velho que tanto amou
e ainda escutando a queixa cristalina das águas do Carioca, descendo
do Corcovado — no outro extremo da cidade, em um desses longos
subúrbios de árvores ralas e chalés coloridos, cortados pelos silvos da
Central, vinha nascendo uma obra que ia prolongar a tradição,
interrompida com a morte do grande humorista. Nesse ano, escrevia
Lima Barreto as Recordações do Escrivão Isaias Caminha.

Mas, se há parentesco, um foi também o avesso do outro. Passadas as


turbulências infanto-juvenis, Machado levou vida sóbria, confortável e
segura. Lima, depois de uma infância relativamente tranquila, foi pobre,
anarquista, amaluca- do, alcoólatra, caindo de bêbado pelas ruas do Rio.
Machado foi romancista da classe dirigente e de seus subúrbios ricos.
Lima abria o foco sobre o conjunto do mundo social carioca, centrando a
luz na dor dos mais humildes. E com um conhecimento de arquitetura e
urbanismo superior ao do meio literário brasileiro. Machado sempre posou
de branco, silenciando sua situação racial. Lima encarou o racismo e
falava abertamente de seus antepassados escravos. Em seu Diário íntimo,
anotou: “escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua
influência na nacionalidade” — o que levou Gilberto Freyre a dizer que
tinha realizado, à sua maneira, o sonho textual do romancista. Esta é a
personagem que Lilia Moritz Schwarcz biografou. Um ato de coragem,
depois que Assis Barbosa compôs, admiravelmente, A Vida de Lima
Barreto.
E o livro de Lilia é feito com minúcia de pesquisadora. Com pleno
conhecimento da vida do autor e da vida social brasileira no período. E sua
grande virtude contextual: Lima in situ e em situação. O problema é que o
livro também se ressente de anacronismos, idealizações e simplificações.
E toma como definitivos o politicamente correto e o jargão acadêmico-
racialista hoje em voga nas faculdades e emissoras de rádio e televisão.
Isto é: categorias “nativas” da sociedade norte-americana, produtos do
horror puritano às misturas e mestiçagens, que nossos movimentos negros
e o establishment universitário importaram para cá. Enfim, coisas que o
próprio Lima classificaria certamente como “bovarismos”, vale dizer,
adoções acríticas automáticas do que vem “do estrangeiro”. E com ele
concordaria Stella de Oxóssi, Odé Kayodé, ialorixá-mor do Brasil na
passagem do século XX para o XXI, definindo-se não como negra, mas
como “marrom”, em seu discurso de posse na Academia de Letras da
Bahia:

Tenho uma mente formada pela língua portuguesa e pela língua iorubá.
Sou bisneta do povo lusitano e do povo africano. Não sou branca, não
sou negra. Sou marrom. Carrego em mim todas as cores. Sou
brasileira. Sou baiana.

O papo de Lilia é o avesso alienado disso. E ela chega ao ponto de


dizer que Lima pode usar a palavra “mulato” como “termo provocativo”, o
que não é só anacrônico, mas ridículo — algo assim como imaginar que,
na sua arquifamosa composição, Ary Barroso retrata o Brasil como
“mulato inzoneiro” apenas para debochar do país. Já na capa do seu livro,
quase um hiper-realismo emprenhado de expressionismo, estampa-se esta
ânsia de tratar Lima não feito “mulato livre”, como ele mesmo se via, mas
enquanto “afrodescendente”, na pauta ideológica da gíria universitária
atual. No entanto, Lima — cabeça mais sociológica do que antropológica
— nunca se voltou para a África ou para culturas de origem negroafricana
aqui florescidas (a “alma nagô” só vai ingressar na literatura brasileira
com O Feiticeiro de Xavier Marques). Sua preocupação é o mulato carioca
em busca de integração e ascensão sociais. Ou, por outra, ele está
concentrado no presente mestiço do Brasil. Compare-se, por isso mesmo,
o livro de Lilia com a biografia de outro mulato, André Rebouças, escrita
(e bem escrita) por Maria Alice Rezende de Carvalho, socióloga e
historiadora refinada e culta, que não perde tempo dando murro em ponta
de fato. Em O Quinto Século: André Rebouças e a Construção do Brasil,
longe de modismos e de pressões identitário-racialistas, Maria Alice fez
um trabalho admirável, onde não contraria nem “reinventa” o seu
biografado (muito estranhamente, é meu querido e admirado Luiz
Werneck Vianna, no prefácio ao livro de Maria Alice, quem vai se render à
importação conceitual racista norte-americana — no rastro do figurino
adotado por Florestan Fernandes, a partir de novos caminhos formulados
sob patrocínio da Fundação Ford, articulada à Casa Branca através do
Departamento de Estado e da CIA — e tratar como “negros” o velho
conselheiro Antonio Pereira Rebouças e seu filho André, sem atentar para
o fato de que assim deforma e defrauda a história social e demográfica do
Brasil, condenando-se ainda a não entender processos nacionais
relevantíssimos, como o da ascensão social dos mulatos ao longo do
século XIX, em especial, durante o reinado de Pedro II — ou Werneck
acha que é possível falar de uma “ascensão social do negro” no período
imperial?).
E terminamos a leitura do livro Lima Barreto: Triste Visionário com
uma tremenda frustração. Lilia Moritz Schwarcz fala que Lima foi
“afrodescendente” em vários sentidos — “por origem, por opção e forma
literária”. Mas em momento algum é capaz de nos explicar onde estaria ou
se manifestaria, na criação romanesca de Lima, a tal da “forma literária
afrodescendente”. Ela não consegue nos dizer o que isto significa. Pelo
contrário. Passa anos-luz distante do campo das estruturas textuais. Como
se a coisa pudesse se resolver em boa vontade, em metafísica somática,
em palavrório acadêmico ou em seu apriorismo ideológico — e não na
materialidade mesma da escrita. Duas coisas, aliás, chegam a ser
intelectualmente muito estéreis, superficial e lamentavelmente retóricas,
no livro de Lilia. A primeira é falar de Lima se manifestando como grande
conhecedor das religiões de origem negroafricana entre nós. Ela chega a
distinguir, em nosso romancista, “um tom de especialista, que conhece de
dentro” o sincretismo religioso. Bobagem. Lima não entendia nada dessas
coisas. Sua formação era católica. E o máximo que podemos dizer é que
tinha um olhar condescendente para a macumba e os macumbeiros. Se
Lilia acha que ele era “especialista”, é porque entende menos ainda do
assunto. A segunda é a afirmação (nunca desenvolvida) acerca da “forma
literária afrodescendente”. Me explico. Podemos falar — tecnicamente —
de influxo estético negro-africano numa composição poético-musical
como “Gua” de Caetano Veloso, que parte do agueré de Oxóssi e não deixa
de montar verbalmente uma espécie de neo-oriki, com palavras justapostas
sem ligaduras sintáticas. Ou, no terreno mais propriamente literário, da
visibilidade da influência africana num livro como Ecué-Yamba-O, do
cubano Alejo Carpentier, ou nas construções epitéticas de Jorge Amado (O
Sumiço da Santa, por exemplo) e de Viva o Povo Brasileiro, que
aproximam o oriki e o texto homérico, quando João Ubaldo implica os
orixás na Guerra do Paraguai. Mas nada de sequer remotamente parecido
com esses exemplos lembrados de passagem pode ser dito a propósito da
produção textual de Lima Barreto. Por tudo isso, a melhor coisa escrita
sobre a vida de Lima Barreto ainda é a de Assis Barbosa, que sabe que,
entre o preto e o branco, existem pelo menos uns cinquenta tons de cinza.
Mas deixemos Lilia e suas ânsias confusas, ideologicamente
adolescentes, como se ela não fosse uma historiadora. Hesitei em acreditar
quando deparei com a cretinice (ou a esperteza, vacilo em dizer)
esquerdofrênico-identitária do ator-diretor Wagner Moura, justificando ter
escalado um negão para fazer o papel de Carlos Marighella, no seu filme
sobre o comunista baiano: “Para mim, Marighella é um herói negro”. Só
rindo. E foi o que fiz logo em seguida, ao ler um comentário do poeta e
designer André Vallias sobre o assunto:

Será que ele nunca leu uma sílaba do que Marighella escreveu? Só
falta agora convidar Elisa Larkin [a viúva branca de Abdias do
Nascimento] para o papel de Clara Charf [a viúva judia de Marighella]
e aí teremos o filme Movimento da Guerrilha Negra Unificada.

A irritação de Vallias era evidente — e ele a traduziu em deboche. No


porte e postura de Moura o que vejo é desrespeito pela história e pela
realidade antropológica. O problema não é de cor, mas de ideologismo
chinfrim. Um diretor pode muito bem colocar um preto no papel do judeu
Bob Dylan (Robert Zimermann é seu nome de batismo, se não me falha a
memória). O que vai ficar ridículo é se ele disser que assim o faz porque,
para ele, Dylan é um “herói negro”. Ou talvez tudo se reduza a uma grande
dose do mais puro oportunismo, já que me dizem que a personalidade
escolhida para fazer Carlos Marighella é hoje sucesso de massa no Brasil
— e pode salvar financeiramente a produção do filme, que parece ter
andado aos tropeções. Não sei, não posso dizer. Não conheço nada do que
se passa nos bastidores do atual ambiente cinematográfico brasileiro, nem
tenho o mínimo interesse em saber o que aí acontece ou deixa de
acontecer. O absurdo político e cultural — nessa tolice de falsear Carlos
Marighella como “herói negro” — é tratar o grande lutador anti-
imperialista, guerrilheiro urbano, comandante da Ação Libertadora
Nacional, na pauta da classificação racista/imperialista da one drop rule
norte-americana, que virou moda e dogma em nosso meio político-
acadêmico neonegro, graças ao capachismo mental de um ativismo
racialista tão colonizado quanto semiletrado. Marighella, bem ao
contrário, tinha perfeita consciência de nossa realidade
socioantropológica. Definia-se orgulhosamente como mestiço tropical
brasileiro, celebrando explicitamente sua avó hauçá, a preta Maria Rita
(sua mãe malê, cozinheira de carurus “de preceito” no Recôncavo Baiano)
e seu pai italiano, Augusto Marighella, anarquista da região da Sicília,
amigo da dupla que criou o trio elétrico na Bahia. Escreveu sobre isso,
inclusive — e sobre a mestiçagem de um modo geral. Compôs poemas
onde fala de sua vivência baiana, do cais do porto, da capoeira, de sua
ascendência ítalo-africana, do Brasil mestiço. De outra parte, no
depoimento “Quando a Primavera Chegar”, enfeixado na coletânea Carlos
Marighella, o Homem por Trás do Mito (organizada por Cristiane Nova e
Jorge Nóvoa), a militante Ana Montenegro, que foi levada ao Partido
Comunista Brasileiro pelo próprio Carlos Marighella, recorda:

[Marighella] contava muitas histórias do seu tempo de prisão, mas não


a sua história. Alguém que viveu com ele, na mesma cela (no Estado
Novo), me disse que, depois de uma das sessões de tortura, suas costas
estavam completamente negras e que lhe arrancaram as unhas. Um dia,
referindo-me a isso, eu lhe perguntei: ‘Afinal, quem é você?’. Ele me
respondeu, com aquele sorriso de dentes brancos: ‘Um mulato baiano’.

E ainda: “Cadê o mulato? Você viu o mulato? Era assim que nos
referíamos a Marighella, no Rio de Janeiro”. Em seu livro Bahia de Todos
os Santos — Guia de Ruas e Mistérios, ao acender a luz sobre a
personalidade do seu amigo Marighella, o escritor Jorge Amado fala, logo
de saída, de sua “graça de moleque nascido nas ruas da Bahia”. E
Marighella foi isso mesmo. Um moleque mestiço. Um mulatinho das ruas,
becos, ladeiras e praças da Cidade da Bahia. Nunca deixou de sê-lo. E
agora vão querer transformá-lo em racialista avant la lettre? Num
racifascista furibundo? Não: mais ainda, muito mais do que o que vemos
no trabalho de Lilia Moritz Schwarcz, o estelionato político-cultural
inscreve o ator Wagner Moura em cheio na supracitada categoria do afro-
oportunismo. Nesta espécie de baixo espiritismo demagógico que parece
seduzir tanta gente hoje no Brasil. Garantindo, claro, o acesso lucrativo a
uma fatia de mercado. E a turma de Moura ainda teve a cara de pau de
querer dar a impressão de que o filme foi censurado, quando o que houve
foi que a Ancine se recusou a adiantar a parcela referente ao lançamento
da película, em consequência de algum problema com a prestação anterior
— me informa João Carlos Rodrigues, acrescentando que hoje nem sequer
existe mais censura prévia no país.
De outro ângulo, mas ainda para tentar entender o afã simplificador ou
a ânsia simplicista de transformar figuras complexas em personagens
rasas, tal como vemos em meio à turma que embarcou no trem ideológico
da onda multicultural-identitária, recorro livremente a uma classificação
didática do romancista E. M. Forster, em Aspects of the New Novel. E
neste escrito que Forster introduz sua célebre divisão das criaturas
construídas em nossas obras romanescas, separando-as em personagens
fundas (ou “redondas”) e personagens rasas, que é a categoria que aqui me
interessa. Na expressão do próprio Forster, flat character ou “personagem
plana” é o “tipo” construído “ao redor de uma única ideia ou qualidade”. E
a personagem esquemática, carente de nuances, sutilezas, ambiguidades,
contradições. E o que vemos, na atual voga multi- cultural-identitária, é o
esforço para reduzir a complexidade à unidimensionalidade — ou a
transformação de personalidades ricas em flat characters. E o que se quer
fazer com Machado, a encarnação mesma do paradoxo e da ambiguidade.
Figuras planas tornam-se também Lima Barreto e Carlos Marighella. E o
problema já começa com a natureza mulata de todos. Com a mestiçagem.
Para se prolongar no caráter mestiço de seus pensamentos. A lógica
binária não pode aceitar o meio-termo ou um terceiro termo — se o fizer,
desmantela-se. Seres híbridos, ambíguos ou complexos não cabem no
invólucro da personagem-tipo, da figura monocromática ou unívoca, do
sujeito definido em alto contraste na claridade artificial de estúdios ou de
gabinetes. É por isso que, mesmo quando se veem às voltas com
personalidades complexas, o empenho do multiculturalista-identitário é
todo para reduzi-las forçosa- mente ao estatuto de personagens planas. É
preciso tipificar ou mesmo caricaturar, como no caso de tratar Marighella
como “herói negro”.
Penso também que é por isso mesmo que essa gente evita encarar uma
personalidade híbrida e complexa como Roberto Marinho, ao mesmo
tempo “afrodescendente” e rico, como se fosse possível um “oprimido”
ser todo-poderoso, inclusive com relação aos rumos do país. Tenho para
mim que figuras como a de Roberto Marinho (que usava pó para disfarçar
a cor da pele, como aquele jogador de futebol que acabou gerando o
epíteto negativo de “pó de arroz” para designar o Fluminense) ou a roda de
relações sociais do africano (de “nação jeje-mahi”) Francisco Nazareth
d’Etra, reunindo algumas das personalidades negras mais complexas de
nossa história, desconcertam a mentalidade linear e maniqueísta dos
identitários. Vejam, a propósito, o estudo “O Terreiro do Gantois: Redes
Sociais e Etnografia Histórica no Século XIX”, de Lisa Earl Castillo,
publicado na Revista USP. O negro Nazareth ainda era escravo quando
comprou seu primeiro escravo, um preto de “nação cabinda”. Nenhuma
novidade: ele mesmo fora escravo de outro escravo, que conseguiu a
alforria antes dele: José Antonio d’Etra, um dos africanos mais ricos da
Bahia, que chegou a possuir um plantei de 50 negros escravizados; teve
patente de capitão-mor de assaltos e entradas, escolhido para combater os
quilombos que se reproduziam no Recôncavo Baiano; e foi da irmandade
negra do Bom Jesus das Necessidades, que tinha irmãos pretos envolvidos
diretamente no comércio negreiro. O próprio padrinho de Francisco
Nazareth, o também africano (e também jeje) Antonio Narciso Martins da
Costa, trabalhava tranquilamente, entre outras coisas, como mestre de
navios negreiros, considerando a escravidão uma coisa normal, de sua
perspectiva africana (por falar nisso, em iorubá, “escravo” se diz erú).
Seria interessante, nesse contexto, examinar o sincretismo que vincula
Santo Antonio e Ogum (o orixá nagô do jeje Nazareth, em mais uma
confirmação de que a definição “candomblé jeje-nagô” é correta): Ogum,
o leão da floresta fechada (como o define um de seus orikis), orixá da
tecnologia, tanto pode ser um construtor quanto um demolidor feroz, deus
dos guerreiros; Santo Antonio era patrono do exército, padroeiro dos
caçadores de escravos fugidos. Nazareth, que foi casado com a ialorixá
Maria Júlia da Conceição, participou da criação dos candomblés do
Bogum e do Gantois, cultivando Ogum, saudando orixás e voduns. Nossos
identitários, quando se deparam com gentes e coisas assim, com
personalidades nada “planas” à Roberto Marinho e Francisco Nazareth,
ficam ofuscados ao ponto de se verem obrigados a desviar o olhar. A
fechar os olhos — ou a não entenderem nada. Roberto Marinho e
Francisco Nazareth — ou ainda com uma figura fascinante como a do
autodeclarado mulato André Rebouças (descendente do casamento bem
sucedido de um alfaiate português branco com uma preta baiana
alforriada; seu irmão Antonio, aliás, que passou boa parte da vida no
Paraná e chegou a ser sócio de Mauá, teve seu nome dado a
importantíssima via pública paulistana, a Avenida Rebouças), engenheiro
de cultura incomum, que chegava a passear ao sol-pôr em Petrópolis, na
companhia do amigo Taunay (autor do excepcional A Retirada da Laguna),
com seus “belos cabelos louros”, e do próprio imperador Pedro II.
8. A onipotência do palavreado

NÃO SURPREENDE QUE, NESSE campo de tantos estelionatos e


simplificações, de tantas fraudes e tolices, enrame-se, por assim dizer, a
crença numa nova magia nominalista. Lembro-me de um folclórico
governador baiano que, diante de uma favela violentíssima chamada
Invasão das Malvinas pelos seus próprios moradores, rebatizou o lugar
como Bairro da Paz e achou que, com isso, tinha resolvido o problema.
Vamos ver mais ou menos o mesmo procedimento no horizonte político-
cultural norte-americano das décadas de 1980-1990. O combate à cultura
estabelecida chegou ao domínio idiomático. As pessoas se dispuseram a
agir sobre a língua para mudar o mundo. Não deixa de ser uma inversão
curiosa. Seria mais sensato agir sobre o mundo para mudar a língua.
Afinal, as cores existem não porque tenhamos palavras para elas. É o
contrário. Existe um léxico das cores porque, graças ao maravilhoso
equipamento ótico com que fomos premiados, o mundo humano é
colorido. Mas não era bem assim que a turma ativista pós-moderna
pensava. Formou-se então a onda do vocabulário e dos torneios frásicos
“politicamente corretos”. E apolitical correctness foi prontamente trazida
para cá, sem intermediações, por nossos copistas sempre de plantão.
No começo, tratava-se de uma mera prática de redenominação das
coisas, em busca de palavras ou arranjos verbais supostamente menos
comprometidos com a ideologia dominante ou com hábitos linguísticos
arraigados (ou mesmo “sintagmas cristalizados”, para lembrar a
terminologia de Saussure) que traziam em si uma visão depreciativa de
determinados tipos de gente, certos grupos sociais ou étnicos, esta ou
aquela formação cultural. Depois, como sempre, veio a deliração
extremista. E os multiculturalistas-identitários-etc. resolveram, muito
simplesmente, mexer em aspectos estruturais da língua, especialmente
com relação à classificação gramatical dos gêneros. Para, finalmente,
chegar ao reino do discurso atravancado por pedregulhos verbais, entre
amigxs, velhxs, colegxs, companheirxs, etc. Depois da velha “língua do
P”, surgia então a nova língua do xis. Ou, como me diz um amigo, a língua
de Ideia Fix, o cachorrinho do Asterix. Não satisfeitos, os x-parlantes
passaram a querer impor suas decisões linguísticas ao corpo da sociedade,
até mesmo em plano legislativo, a exemplo do que acontece no Canadá,
onde idiossincrasias identitárias ganharam força de lei. Como se sabe, o
psicólogo Jordan Peterson ficou famoso justamente por se rebelar contra a
imposição legal expressa em esdrúxulo emprego pronominal. Tudo porque
militantes do pós-tudo canadense resolveram que a partícula verbal they
(que em inglês significa tanto “eles”, quanto “elas”) deveria ser usada,
como forma singular, com referência a pessoas que se dizem “não-
binárias”. Ou seja, indivíduos com problemas de identidade de gênero
escolhem um pronome para si e exigem que o resto do planeta passe a
tratá-los com este pronome. E, no Canadá, conseguem que isso vire lei
(veja-se, a propósito, o livro As Ideias e o Terror, de Bruna Frascolla,
ainda inédito). Se, no capítulo inicial, a ignorância militante já produzia
seus disparates, neste segundo momento, o absurdo começou a querer ditar
regras. A ditá-las. E a coagir os demais a aceitá-las. Peterson bateu na
mesa. E a confusão está criada. Mas também aqui entre nós, no meu velho
e querido Brasil, a confusão mental faz das suas no chamado “poder
judiciário”. Bruna:

Recentemente o nosso STF resolveu que não é mais necessário


acompanhamento médico para mudar de sexo e que qualquer um pode
ir ao cartório escolher um novo prenome e sexo. Na lei brasileira ainda
reconhecemos apenas homens e mulheres — sejam trans ou não —,
mas agora a discriminação contra LGBT foi equiparada ao racismo.
Com a primeira decisão, um homem que queira se aposentar mais cedo
pode ir ao cartório e se declarar mulher. Com a segunda, poderá ganhar
uns trocados processando por injúria aqueles que forem transfóbicos a
ponto de o chamarem pelo gênero masculino.

Que tal?
Bem, vamos aos poucos. Para começar, podemos nos lembrar da luta
para abolir o emprego de elementos lexicais considerados ofensivos,
humilhantes, etc. Foi coisa muito visível no plano do tratamento verbal
que se passou a dispensar, por exemplo, a deficientes físicos (aliás,
observadores mais atentos do que eu já devem ter notado uma coisa: na
disputa por um emprego, deficientes físicos se dizem iguais a todos;
emprego conquistado, voltam atrás — declaram-se portadores de
necessidades especiais e exigem tratamento diferenciado). Nunca me
esqueço de que, numa reunião no hospital Sarah Kubitschek, houve um
marqueteiro que sugeriu que aleijados (um palavrão!) passassem a ser
denominados “pessoas diversamente habilitadas”. Era ridículo, claro. E
certa vez deixei uma plateia em silêncio, num debate realizado em Belo
Horizonte, quando indaguei: como é mesmo que vocês estão se referindo
agora ao Aleijadinho? Mas, mesmo quando não chegávamos ao ridículo,
as coisas não eram tão simples assim. Substituir a palavra “cego” pela
expressão “deficiente visual”, por exemplo, destruiria boa parte do melhor
da criação poética da humanidade. Basta lembrar o belo poema
quinhentista onde Mark Alexander Boyd se declara guiado por um cego e
uma criança. E como refazer tantos folhetos de cordel, o poema de
Kilkerry (“ceguei... ceguei da tua luz?”) ou o título e o texto do romance
de Saramago? Seremos tão cegos assim? Palas Atena podia ter olhos
verde-mar, mas Édipo arranca os seus. E a mudez? Ou até o fingimento da
mudez, como no texto que Guillem de Peitieu escreveu ainda no século
XII (En Alvernhe, part Lemozi/M’en aniey totz sois a tapi...')? Pobre
Tirésias. Pobre Dante. Pobre Shakespeare. Pobre Pound. E o que fazer com
Gerty Macdowell, a Nausícaa coxa e manca do romance de James Joyce?
Existem mulheres feias, Gerty, mas você com certeza não é uma delas — é
apenas aleijada.
Mas o fato é que a coisa foi adiante, com a tentativa de riscar do mapa
da língua vocábulos julgados nocivos ou ultrajantes também no terreno
(ou na cama e na lama) das práticas sexuais. Não devíamos chamar
ninguém de bicha, veado, sapatão, etc., apesar da referência de Lula às
mulheres petistas do “grelo duro” (que, ao contrário do que se disse na
época, na tentativa de livrar a cara do ex-sindicalista, nunca foi expressão
popular nordestina). Putas eram “profissionais do sexo”. And so on. Mas
muitos, dos que seriam supostamente beneficiados com as
redenominações linguísticas, julgaram-se, ao contrário, maleficiados,
ainda que sem protestar publicamente. Lembro-me, por exemplo, de uma
conversa com o historiador e antropólogo Luiz Mott, criador do Grupo
Gay da Bahia, me dizendo: “agora, me vêm com essa conversa de que não
posso mais chamar ninguém de veado, veja só!”. Gabriela Leite disse que
adorava ser “puta”. E minha querida Angela Ro Ro, no facebook “Gay é o
cacete! Eu sou é sapatão!”. Ao lado disso, alguns temas se tornaram tabus.
A feiura, por exemplo. Não faz tempo, assinalei en passant, numa
entrevista, a feiura atual da população baiana. Disse que o número de
pessoas feias crescia diariamente nos bares, nas ruas, nos shoppings, nas
praias. A reação foi pesada. Não porque as pessoas discordassem. O
problema era anterior a isso: elas não admitiam que ninguém achasse
alguém feio. Era o relativismo chegando à estética dos seres humanos. Na
minha opinião, pura vaidade. Falamos tranquilamente de animais e aves
feios e bonitos. Mas estamos proibidos de classificar a espécie humana
nos mesmos termos, embora os bichos costumem ser bem mais belos do
que nós. Além disso, penso que só alguém muito insincero ou insensível
vai dizer que nunca sentiu o impacto poderoso da beleza de uma pessoa. A
porrada algo eletrizante provocada pela irrupção de alguém real e
luminosamente belo em nosso campo de visão. De minha parte, não posso
fazer nada: sei muito bem o que é isso.
Essa mesma tolice linguística foi levada para o campo das culturas.
Como aprendemos não com o “neo”, mas com o velho e verdadeiro
marxismo — em A Ideologia Alemã, onde Marx e Engels, mostrando todo
o seu apreço pela qualidade formal dos objetos estéticos, citam Os
Lusíadas em português —, as ideias e práticas da classe dominante tendem
a se tornar social e culturalmente hegemônicas. Nesse campo, é notável
como culturas populares (dominadas, subalternas, não-hegemônicas)
buscam se legitimar, afirmar-se como dignas de existência e respeito,
passando a aplicar a si próprias o mesmo vocabulário que é usado com
relação a manifestações culturais cultivadas por classes bem postas na
estrutura hierárquica de nossas sociedades. Vimos isso quando, numa
postura que bem poderíamos classificar como racista, militantes
neonegros passaram a escantear denominações bantas e iorubanas, no
mundo do candomblé, para em seu lugar empregar expressões católicas.
Era o “oprimido” copiando o “opressor”, no afã ou na sofreguidão de
assim conseguir conquistar alguma “respeitabilidade”. Isso foi bem visível
nas décadas de 1980-1990. Militantes racialistas passaram a falar de
“templos religiosos negros”, em substituição ao sintagma “terreiros de
candomblé”, muito mais significativo. A usar “sacerdotisa” no lugar de
“mãe de santo”. Etc. Naquela época, ouvi censuras racialistas por
empregar vocábulos sonoros, a exemplo de bozó e macumba, como se
estes fossem estranhamente depreciativos. A ialorixá me mandou arriar
um bozó (ou ebó)? Não, nunca. Eu deveria dizer: a sacerdotisa me falou
para fazer uma oferenda propiciatória... E eu contra argumentava, para
surpresa de meus detratores, dizendo que bozó e macumba eram
expressões de origem negroafricana, nascidas nas línguas bantas. Yeda
Pessoa de Castro identificou suas raízes, como nos mostra em Falares
Africanos na Bahia. Bozó vem da língua kikongo — mbóo-zo —, onde
significa “encanto”, “feitiço”. Macumba, por sua vez, existe nas línguas
kikongo e kimbundo: makuba, “reza”, “invocação”. Nessa mesma batida,
um comissário neonegro do grupo Olodum (que destruiu grosseiramente a
sede que Lina Bo Bardi projetou para o bloco) pediu que não tratássemos a
moçada da banda como “batuqueiros” — e sim como “percussionistas”.
Contestei. Também “batuqueiro” é uma palavra banta — ou luso-banta, já
que o sintagma africano é seguido de um sufixo português. Vem de vutuki,
“batuque”. Já “percussionista” é do latim percussio, percussiottis, “ação
de bater”. Por que eles, que eram mulatos escuros, queriam evitar o uso de
palavras africanas no português do Brasil? Por que consideravam que
palavras portuguesas/latinas eram mais nobres, por assim dizer? Eu
gostava de lembrar, ainda, que todos os brasileiros, de qualquer cor ou
classe social, empregavam a palavra caçula para designar o filho mais
novo da família ou ninhada — palavra banta, também, derivada de kasuka,
kasule — e não a palavra “benjamim”, como se diz em Portugal ou na
própria Angola.
Mas tais procedimentos não estacionaram por aí, bem ao contrário.
Roland Barthes observou certa vez, acho que em seus Elementos de
Semiologia, que os revolucionários de 1789 falaram em desmantelar tudo,
menos a língua francesa. Claro. Nenhuma comunidade humana existe sem
a sua língua. Ela é a mais fundamental de todas as instituições sociais. E
não só. Línguas são cosmovisões milenares. Quando dizemos que cada
língua é uma visão de mundo, isto não significa que ela é uma
ideologiazinha qualquer encontrável ali na esquina. A língua
ordena/organiza/estrutura o nosso entendimento do mundo. O mundo é
visto em termos de nossas estruturas verbais. Da lógica sujeito/predicado,
por exemplo. Do “agrilhoamento sintático formal” das “línguas isolantes”.
Etc., etc., etc. E então: vamos suprimir os verbos e dinamitar a sintaxe
(“desmilitarizar” a língua, para falar em termos contraculturais); Isso é
possível no campo do fazer textual criativo: um poema construído só com
sintagmas nominais, justapostos diretamente, livres do fardo das
imposições lógico-sintáticas. Mas no campo da língua prática, cotidiana,
operando no campo das trocas sígnicas diárias, no plano da comunicação
social — não. Ou ninguém vai conseguir sequer conversar. Me lembro que,
às vezes, em suas preleções não raro etílicas, Décio Pignatari investia
pesado contra o discurso por subordinação (hipotaxe), regido por um
monstro chamado Hierarchus, e celebrava o discurso por coordenação
(parataxe), que se estruturava por conjunções não adversativas, ou à
maneira da lógica ideogrâmica, sem deixar espaço para hierarquizações. E
então, vamos radicalizar? Detonar os discursos hipotáticos e só disparar
mensagens de caráter paratático? Tudo bem, mais uma vez: isso é possível
no campo da criação poética; no da ação comunicacional prática cotidiana,
não. Diante disso, escrever “amigxs”, achando que isto é uma subversão
ideológico-cul- tural dessa cosmovisão específica que é a língua
portuguesa, definindo-se gradualmente sob a dominação romana de terras
e povos ibéricos, mais parece uma brincadeira de crianças. A propósito
disso, não posso deixar de me lembrar aqui de uma expressão do poeta
chileno Vicente Huidobro, no Altazor: coisa de “manicures da língua”.
Sempre que lembro essas realidades básicas, me repetem o mesmo
truísmo: mas tudo muda, a língua também! Claro que as línguas mudam. E
pelas mais variadas razões, motivações e determinações. Mas vamos
clarear o campo, para evitar confusões primárias. Uma coisa é a mudança
processual ocorrendo, a partir da fala, dentro da lógica da própria língua (a
que vai de “vossa mercê” a “você”, por exemplo). Outra coisa é uma
tentativa instantânea de imposição ideológica, artificial, “desde fora”, de
uma partícula linguística ou de uma justaposição de partículas — como
em “amigxs” ou “he or she”. Coisas que nem sequer nascem na fala, que é
a prática da língua. Não: são monstrinhos verbais criados do nada e
exclusivos da escrita político-acadêmica, brotando de fórmulas discursivas
geradas em tubos de ensaio, no laboratório dos novos ideólogos da língua.
Maiakóvski escreveu “o povo, o inventa- línguas” — e não “o ativista, o
inventa-línguas”. A diferença está toda aí. A língua se transforma no
tempo e em plano de massa. Não em consequência de uma decisão tomada
de súbito por alguns gatos pingados basicamente iletrados, reunidos em
horário comercial num departamento universitário qualquer. E não é só.
Como de praxe, esses ideólogos, embora discursando sempre em nome de
tudo que soe libertário, primam pelo autoritarismo. As mulheres gritam,
dizendo que estão falando em nome de todas as mulheres e até de todas as
minorias. Se alguma mulher ou algum gay discorda, diz que não se sente
representado por “x”, elas fazem ouvidos de mercadoras. Ou, o que é pior,
sem distinção de sexo: tentam classificar, quem não concorda com a
“virada ideológica da língua”, como direitista, conservador, inimigo
mortal das mulheres e das “minorias”. É mais um capítulo de um filme
antigo, que conhecemos de há muito tempo: o libertarismo liberticida.
Sinto muito. Mas jamais conseguiría pensar que eu estaria promovendo
alguma transformação sociocultural de relevo porque, desde ontem à noite
ou de hoje de manhã, passei a escrever “amigxs”. Podem me incluir fora
do time dos/das manicures da língua. Por falar nisso, estou à espera do
genial cineasta identitário que irá fazer um longa-metragem inteiro na
língua do xis.
Sou gellneriano, neste sentido preciso: a obrigação de respeitar todas
as pessoas não me obriga a considerar igualmente válidas as ideias que
elas carregam... quando as têm. Respeitar cada homem e cada mulher,
cada pessoa (em sentido literal, e não uma essência, “pessoa humana”) é
coisa que todos devemos fazer. Simone Weil, mais uma vez:

Existe em cada homem [Simone emprega a palavra “homem” no


sentido geral de indivíduo da espécie humana] algo sagrado. Mas não é
sua pessoa. Tampouco é a pessoa humana. É ele, esse homem, pura e
simplesmente. Eis um transeunte na rua que tem braços longos, olhos
azuis, um espírito em que circulam pensamentos que ignoro, mas que
talvez sejam medíocres. Não é nem a pessoa dele nem a pessoa
humana que me são sagradas. E ele. Ele em sua totalidade. Os braços,
os olhos, os pensamentos, tudo. Eu não atentaria contra nada disso sem
uma hesitação infinita. Se a pessoa humana fosse o que há de sagrado
nele para mim, eu poderia facilmente cegá-lo. Sem visão, ele será uma
pessoa humana, e tanto quanto antes. Eu não terei atingido a pessoa
humana nele. Terei atacado apenas seus olhos.

O problema, com a “pessoa humana”, é que ela bem pode carregar


ideias totalmente abomináveis ou estúpidas. Foram pessoas humanas,
humaníssimas, que fizeram o tráfico negreiro, os campos de concentração
na Alemanha nazista, os delírios sanguinários do stalinismo e do
maoismo, as guerras do Vietnã, do Afeganistão e do Iraque. O curioso é
que, sempre que digo que respeito pessoas e não suas ideias, identitários
logo protestam em voz alta, batendo na mesa, como se não fossem eles os
que mais sistemática e violentamente desqualificam e desrespeitam as
ideias dos outros.
Por fim, digo que não por acaso fiz antes referência à magia
nominalista. Encontramos, em diversas práticas mágicas e religiosas, a
crença na chamada onipotência do pensamento — vale dizer, a crença de
que o pensamento pode por si mesmo, sem recorrer à práxis, afetar ou
transformar o mundo externo. De certa forma, não deixamos de ver algo
de semelhante a isso na crença de que alterações programáticas ou
ideológicas na língua irão produzir alterações na realidade envolvente. E
assim a adoção do vocabulário politicamente correto ou da língua do xis
(ou do que quer que venha a substituir este fonema que, a depender dos
seus vizinhos dentro da sílaba, resulta praticamente impronunciável para
nós — ou pelo menos de sonoridade excessivamente estranha a um pobre
falante da língua portuguesa) bem pode ser classificada como uma espécie
de crença na onipotência do palavreado.
9. Superar o apartheid, reencontrar a democracia

JÁ ME REFERI AQUI AO LIVRO A Vítima Tem Sempre Razão?, de


Francisco Bosco. A análise de Bosco parte de uma hipótese estimulante e
de uma afirmação que me parece restritiva. A hipótese é o deslocamento
do lugar da cultura na mentalidade nacional. A afirmação aponta para o
surgimento de um “novo espaço público” brasileiro. No primeiro caso,
Bosco defende que

o país passou, nos últimos anos, por um processo de desculturalização:


não é mais a cultura que está no centro da autoimagem da sociedade, e
sim a política.

Penso eu que esta “desculturalização” não é exatamente nova (a


conheci na década de 1960, presidindo a discussões sobre o destino da
música popular brasileira, então oscilando entre os tropicalistas e as
criaturas do Centro Popular de Cultura, geradas pelo pré-diluviano PCB,
Partido Comunista Brasileiro) e agora vem bem mais pesada, graças, entre
outras coisas, ao processo mais geral de decadência do nosso sistema
educacional (que, em vez de matriz de informações estéticas e intelectuais
se transformou em fábrica de ignorância) e, mais imediatamente, ao fato
de o multiculturalismo e o politicamente correto terem atacado a alta
cultura e a qualidade, substituindo-as pelo critério único da “ação
afirmativa”. Por aqui ou por ali, a cultura viu-se inteiramente atrelada à
política, que se tornou sua senhora absoluta e discricionária. Mesmo
quando o ato político é encarado em plano performático, como no caso da
até bem pobre estetização da violência entre os black blocs, nas
manifestações públicas brasileiras de junho de 2013. Enfim, só a política
passou a pesar. No bolso, inclusive. Artistas passaram a ser financiados
não pela qualidade do seu trabalho, mas pelo princípio da política de cotas,
que Lúcia Lippi tão bem definiu nos termos de uma institucionalização da
compaixão. Entre nós, os famosos “editais” oficializam isso. O que, além
de tudo, significa um tremendo alívio para os identitários, que, regra geral,
além de convictos e inabaláveis praticantes da lei do menor esforço,
costumam ser intelectualmente medíocres e esteticamente bem mais
medíocres ainda. Maravilha isso, não? Em vez de correr o risco de ouvir
que o seu produto é ruim, o identitário já se antecipa aos berros, acusando
o provável crítico de elitista, racista, inimigo do povo, etc. O “novo espaço
público”, por sua vez, teria nascido do colapso do lulismo, dos conflitos
abertos pelas manifestações de junho de 2013 e do casamento das lutas
identitárias com as redes sociais. Aqui, a disposição central não é mais
para a discussão, o diálogo e o entendimento, mas para o confronto, o
enfrentamento sistemático e sistematicamente agressivo.
Nesta direção, eu ainda teria pelo menos duas coisas a dizer. Primeiro,
não penso que devamos falar de “novo espaço público” no Brasil sem
incluir os “evangélicos” e a polarização religiosa e, ainda, lulistas,
antilulistas, bolsonaristas e a polarização político-ideológica. Acho que
Bosco não fez isso por conta do seu recorte, centrado nos identitários. Mas
a inclusão da luta religiosa e da luta mais estritamente política nos dá uma
visão mais ampla do momento, exigindo uma leitura menos esquemática
das coisas. Assim, o que teríamos seria o seguinte quadro principal (onde
“x”, como sempre, significa “versus”, que até isso o analfabetismo atual
anda esquecendo), com cada manada correndo nervosamente em sua baia:
racialistas neonegros x não-negros; lulistas x bolsonaristas; mulheres
“radfems" x homens; evangélicos x não-evangélicos. Então, o que me
impressiona em primeiro lugar, no atual horizonte brasileiro, não são
principalmente os “identitários”. É o quadro de polarização violenta,
brutal mesmo, onde a norma é o ataque e a agressão ao outro, ao diferente,
ao desviante. O inimigo é o dissenso (em última análise, a democracia).
Os identitários são apenas um capítulo disso, especialmente nas redes
digitais, onde lulopetistas e direitistas também não se cansam de trocar
porradas entre si e de agredirem os geralmente mais discretos e educados
militantes de outras esquerdas ou membros do centro democrático, com
inclinações à direita ou à esquerda. Em segundo lugar, como o recurso
mais constante na campanha contra a outridade tem sido moral, sublinho,
mais uma vez, que o dualismo maniqueísta opressor/oprimido não é capaz,
por si só, de demarcar uma separação entre o Bem e o Mal — e, muito
menos, de instaurar uma ética. Em terceiro lugar, a fantasia pós-moderna
da “inacessibilidade do outro” se converteu, de fato, na insularização do
mesmo e na recusa a aproximações de estranhos. Assim, como feministas
não querem não-mulheres se manifestando no pedaço delas e pretos
(fenotípicos ou simbólicos) não querem saber de não-pretos (são todos
racistas, afinal) no pedaço deles, sinto-me inclinado a definir o “novo
espaço público”, de que fala Bosco, não como verdadeiramente público,
mas, algo —paradoxalmente, como uma espécie de condomínio público de
espaços privatizados.
Concordo com Camile Paglia, quando ela diz que a política identitária
deve desaparecer para que a cultura e a liberdade de pensamento
floresçam. Mas diria isso de forma algo mais atenuada: deve ser
abandonada, deixada para trás. Nem levo tão a sério a retórica incendiária
do identitarismo: ainda aqui, como dizia o velho dito popular, cão que late,
não morde. A adesão ao mundo social e ao mundo cultural (em sentido
antropológico) estabelecidos me parece evidente não só em meio às
massas de “oprimidos”, mas também em meio às minorias militantes.
Russell Jacoby:

Todas as culturas ‘diferentes’ sonham com o sucesso americano,


planejam alcançá-lo e às vezes o alcançam. Só os ideólogos do
multiculturalismo não ficaram sabendo.

Para dar somente um exemplo, lembro de Charles H. Nightingale


mostrando, em On the Edge: A History of Poor Black Children and Their
American Dreams, como aquelas crianças socialmente desprivilegiadas
conheciam com intimidade marcas de produtos caríssimos, do tênis Nike a
carrões conversíveis. Ou, ainda, apontando o “consumo ostentatório” dos
rappers e observando que o rap evidencia “uma preocupação com o
consumo e a aquisição que jamais caracterizou o antigo soul e os sucessos
do rhytm and blues”. Mas não é diferente a paisagem militante, repito.
Todos falam a mesma língua, adotam os mesmos estilos vestuais,
dedicam-se aos mesmos tipos de atividades, fazem esportes, comem
coisas parecidas, assistem aos mesmos filmes e programas de televisão,
querem subir na - vida e, se possível, fazer sucesso. Enfim, radicais ou
não, todos querem e procuram estar no mamstream. Todos confirmam o
status quo. Não se trata de ir muito além de nada dessas coisas.
E isso vale também para o Brasil. Na massa e na militância. Veja-se a
questão sociorracial. Entre o final do século XIX e começos do XX, vale
dizer, na conjuntura imediatamente pós-Abolição, existia já, nas principais
cidades brasileiras, uma elite mulata em formação. E foi justamente esta
elite, conseguindo furar o bloqueio do ancien regime e chegar à classe
média, que deu substância e contornos à reivindicação coletiva dos
negromestiços, então a reclamar o seu lugar ao sol, na nova ordem
competitiva que se implantava no país. Queriam franqueados, também
para eles, os direitos e as garantias legalmente assegurados a todos os
cidadãos brasileiros. Ou seja: tratava-se de fazer com que a sociedade
capitalista fizesse valer seus próprios princípios — ou, por outra, a
sociedade aberta não podia continuar sendo um clube fechado. Nesse caso,
pretos e mulatos já estabelecidos consideravam que a ascensão social da
“gente de cor” passava pela assimilação dos padrões brancos de classe
média. Era preciso combater o alcoolismo, a vagabundagem, a
prostituição. Roger Bastide está certo quando, em seus Estudos Afro-
Brasileiros, diz que a imprensa negra surgida em São Paulo representava
muito mais a ideologia classemediana preta do que a opinião da massa
mulata. O que prevalece é a imitação da pequena-burguesia branca. Basta
lembrar que a Frente Negra, em seu esforço educacional, oferece cursos de
catecismo, não de candomblé. A vanguarda negromestiça paulista estava
muito mais próxima do crioulo puritano classemedianizado dos Estados
Unidos do que da mulataria dos morros cariocas ou dos astuciosos
macumbeiros baianos. É por isso que falamos que a ideologia daqueles
pretos era “integracionista”. Hoje, a paisagem é algo diversa. Naquela
época, para se integrar, o negro se afastava de signos africanos e adotava
roupas, modos, modelos e condutas brancas. No rastro de ideólogos
ligados à (ou mesmo bancados pela) Fundação Ford, de Florestan
Fernandes, etc., que pregavam a criação e manutenção de uma suposta
unidade “racial” negra e sua diferença “separatista” com relação ao
“mundo branco”, a coisa mudou. Nossos neonegros continuam querendo
alargar espaços de integração, ampliando sua participação no mercado e na
sociedade — mas querem se integrar não se fantasiando de brancos, mas
com suas diferenças pretas, da arte corporal dos penteados às vestes. No
extremo, em vez de se fantasiar de brancos, fantasiam-se de africanos. Daí
que devamos falar, agora, não mais de integracionismo, mas de
neointegracionismo.
Como nos Estados Unidos, a adesão da massa negromestiça ao modelo
vigente de sociedade, também entre nós, é um fato. Como sempre digo,
favelas hoje são, também elas, “templos de consumo”. E com um aspecto
muito interessante, em termos de psicologia social. No livro Um Pais
Chamado Favela, Renato Meirelles e Celso Athayde não deixaram o
tópico passar em branco. Citam a fala de um empresário popular durante o
Fórum das Favelas, realizado no Rio de Janeiro, em novembro de 2013, no
emblemático Copacabana Palace:

Na favela, comprar o original é sinal de status. Tenho experiência em


shopping popular. A pequena burguesia é que gosta de pirataria. Para o
favelado, a aquisição do produto original é que faz a diferença.

Freud e Marx sorririam. Mas temos mais. No ambiente artístico, não


foi pequena a onda do chamado “funk ostentação” — e o “funk
ostentação” diz tudo: consumo espalhafatoso, exibicionista, entre carrões e
correntões de ouro. Mas a verdade é que ativistas e militantes do
racialismo neonegro vão pelo mesmo caminho da adesão ao “sistema”. Os
desvairados que invadiram a Escola de Teatro na Bahia gritavam por mais
espaço para os pretos no teatro baiano. Os extremistas, que reivindicam
paridade étnica no contingente de professores do hoje tão
inadequadamente chamado “ensino superior”, estão mesmo é querendo
forçar uma abertura maior do mercado de trabalho para eles. Discursam
exigindo mais lugares e mais oportunidades. Ok, tudo bem, boa sorte,
apertem os cintos, assegurem seus espaços. Só não queiram me convencer
de que esses desejos legítimos de se dar bem questionam em profundidade
a ordem social. Longe disso. E comparar não ofende: antigamente, os
revolucionários queriam revolucionar — hoje, eles se contentam com mais
vagas, mais postos de trabalho, mais etc., dentro do que está aí. Não se
trata mais de transformar o mundo, mas de aumentar a participação na
sociedade existente. Ou seja: apesar de todo o palavreado agressivamente
transgressor, dos clichês supostamente subversores da ordem estabelecida
que formam o esquema de base de seu léxico e de sua retórica, os
identitários não são lá tão revolucionários assim. A pose revolucionarista é
mise-en-scène para melhor fincar desafiadoramente os pés na rinha — e,
então, arrolar reivindicações e emitir desejos que, se atendidos, não
causariam qualquer transtorno social maior. Para lembrar uma expressão
que já foi clichê esquerdista entre nós, a questão se resume ao seguinte:
pretos querem ser.pequeno-burgueses E por que não?
Exigir mais mulheres nos quadros do Ministério Público ou da Polícia
Federal, mais pretos nas cátedras ou na burocracia universitária, combate
sistemático aos agressores de veados, isonomias salariais, repressão mais
eficiente ao assédio sexual, reformulação de currículos escolares para
incluir história indígena ou línguas africanas, etc., não é nada que vá
desorganizar, abalar e muito menos derrubar o edifício social. Isso não é
especulação: temos avançado significativamente nesses caminhos. E tais
reivindicações — que fariam parte até das versões mais amenas e diluídas
da socialdemocracia ou do chamado “liberalismo igualitário” de Stuart
Mill — hoje recebem a aprovação tranquila, o beneplácito da maioria da
população brasileira. Jacoby, mais uma vez, está certo:

O objetivo principal é o poder, ou a distribuição do poder, de empregos


ou recursos. O clamor por poder parece algo radical e grave,
especialmente associado ao multiculturalismo. Na realidade, o poder
destituído de uma visão ou de um projeto pouco significa; passa a ser
apenas uma exigência de que determinadas pessoas exerçam mais
autoridade e controle. Também aqui, uma maior representatividade das
mulheres e dos afroamericanos [ou dos pretos e mulatos brasileiros,
acrescento] em diferentes terrenos pode ser francamente defendida em
nome da igualdade. Por mais desejável que isto seja, pouco tem a ver
com multiculturalismo — e nada com subversão.

Aliás, ainda no caminho de Jacoby, lembremos que, em que pesem as


aparências em contrário, os ativistas identitários abordam essas coisas sem
o mínimo de pudor ou hesitação. Dizem claramente: professores ou atores
ou estudos negros estão ocupando espaço tímido aqui, logo, queremos que
os senhores brancos do Ocidente nos deem mais apoio e mais dinheiro.
Querem grana. Não é isso? Não se trata mais de construir um mundo
radicalmente diverso. No fundo e na prática, mesmo o identitário que
extrema no teatro do radicalismo está de fato em busca de cargos mais
importantes e cheques mais generosos. Jacoby: “Especializou-se em
marginalização para aumentar seu valor de mercado”.
Não tenho nada contra essa ampliação de oportunidades e dos espaços
de participação. De modo algum. Apenas observo que esta luta por mais
poder, maior presença profissional e mais dinheiro nada tem a ver com
subversão e menos ainda com socialismo ou revolução. Como quase
cheguei a dizer antes, o liberalismo igualitário dos discípulos e
descendentes de Stuart Mill defende o desempenho do Estado no campo da
habitação, dos serviços públicos elementares, da segurança alimentar e de
alguma distribuição de renda. Hoje, ajuntaram a isso as tais “ações
afirmativas”. E tudo bem. Por esse caminho, Roberto Mangabeira Unger
dixit, não vamos além “do adoçante da política social compensatória e da
seguridade social”. Políticas compensatórias que, pelo menos desde a
criação da Fundação Palmares no governo de José Sarney, vêm sendo
largamente levadas à prática no país. Se ainda não geraram resultados
reconhecidamente espetaculares ou pelo menos admiráveis, no plano
quantitativo, é porque as nossas desigualdades sociais escandalizam quem
quer que olhe em sua direção. O problema, portanto, não é o reformismo.
É a capa revolucionarista somando-se ao exclusivismo, com seus
procedimentos e suas posturas de fundo fascista. Porque isso, além de
condenável em si mesmo, produz um duplo afastamento. De uma parte, a
belicosidade, o foguetório revolucionarista, etc., com sua recusa do outro,
transforma potenciais aliados em, no mínimo, adversários potenciais. De
outra parte, identitários reivindicam coisas para eles e só para eles. Assim
é que racialistas pedem mais empregos para pretos e só para pretos, como
se o desemprego não fosse um problema econômico, mas étnico — e
exclusivo deles. Em outras palavras: só me dirijo aos pretos e só estou
interessado em melhorar a vida dos pretos — os demais que se fodam... E
os políticos profissionais se rendem, não questionam nada. Por incrível
que soe, a covardia política, hoje, é mesmo uma característica geral dos
políticos e do mundo partidocrata.
Como se fosse pouco, temos ainda a hipnose narcísica,
impossibilitando de fato uma percepção menos fantasiosa do contorno e da
substância do que rola algo desfocado no entorno ou na vizinhança do
espelho. Para dar um exemplo recente, relativo à eleição presidencial de
2018, tivemos leituras bem ilustrativas desse autoengano, digamos,
“grupocêntrico”. De uma parte, o ex-deputado federal Jean Willys (que
trata em termos de exílio a temporada de descompressão que resolveu tirar
no exterior, onde não abre mão dos prestigiosos postos de “oprimido” e de
“vítima social”) afirmou que foi a homofobia nacional que elegeu
Bolsonaro (provavelmente, a mesma homofobia que deu a ele, Jean,
prêmio milionário em reality show e três mandatos de deputado federal), o
desatinado perverso, mentalmente raquítico, que se declarou inimigo dos
gays. De outra parte, uma antropóloga conhecida, mas cujo nome não tive
tempo de gravar, classificou a vitória da onda bolsonarista como uma
reação à entrada em cena de uma nova geração feminista. Ou seja: cada
qual superestima seu lugar e sua força, alimenta um senso excessivo de
sua própria importância, achando-se no centro do mundo, e assim perde a
noção de realidade. Tudo se passa, para eles, como se a recessão
econômica, o autoritarismo petista, o espetáculo escandaloso de uma
corrupção sistêmica, a escalada do desemprego, o laissez faire no campo
da criminalidade, a degradação dos serviços públicos de saúde e educação,
a crise na área da segurança, etc., não tivessem contado decisivamente
para nada. Nesse sentido, sim, são todos verdadeiros “lacanianos”: o real
não existe. Só ficou faltando aparecer um ativista neonegro para asseverar
que o racismo brasileiro elegeu Bolsonaro — e um ecologista dar o ar de
sua graça para contradizê-lo, demonstrando definitivamente que o
bolsonarismo venceu porque é uma reação ao avanço do ambientalismo no
país. E quem quiser que conte outra...
Tudo leva ao isolamento, à fragmentação, ao gueto. E é social e
culturalmente prejudicial porque gera resistências a coisas que partem de
bases justas, sensatas e/ou necessárias.
Mas é isso mesmo. Misturar farinha e ovo numa frigideira nunca é
garantia de um bom suflê. Assim como o exagero disparatado do
relativismo pós-moderno atrapalha e confunde o caminho da crítica ao
cientificismo e à tecnolatria, também o identitarismo vai multiplicando
obstáculos para a realização, por exemplo, de uma ampla reforma do
ensino público (por falar nisso, em quanto aumentou, da década de 1970
para cá, o número de jovens negromestiços brasileiros que se lançaram ao
aprendizado do iorubá, do fon ou de algum dos idiomas bantosl). Na
verdade, o fascismo identitário provoca o recrudescimento do fascismo de
direita (hoje, entre nós, “bolsonarista”), aprofundando apartamentos. E é
prejudicial também a certas movimentações políticas reformistas de
centro, de centro-esquerda ou da esquerda democrática, em consequência
da imagem que se firmou, no conjunto da sociedade, identificando
multiculturalismo-identitarismo com a esquerda em geral. Pessoas ligadas
à esquerda democrática ou reformista insistem já nesse ponto. Sinalizam
que está passando o momento de transcender tantos “tribalismos”.
Argumentam que boa parte das reivindicações centrais dos movimentos
sociais dos tempos da contracultura (da igualdade entre os sexos ao
casamento gay, passando pela criminalização do racismo e a
descriminalização das drogas) foi, parcial ou integralmente, incorporada à
legislação de vários países, inclusive do Brasil. Que reivindicações e
desejos desses grupos devem continuar a ser perseguidos, mas não mais
em plano prioritário. Principia a se desenhar então outro horizonte. E se
encorpa a voz dos que dizem que é hora de retomar o caminho
democrático da liberdade de pensamento e de expressão. Que é necessário
respirar o ar livre da democracia em nossos debates políticos e culturais.
Que os identitários, se quiserem, continuem a se julgar donos exclusivos
da verdade e proprietários inquestionáveis da virtude. Nós é que não temos
de aceitar e muito menos de sacralizar seus discursos fanáticos e suas
práticas fascistas. Que é, principalmente, hora de retornar ao campo da
maioria. De transcender, de uma vez por todas, movimentos e lutas
meramente setoriais. Educação, saúde, meio ambiente, diminuição das
distâncias sociais é que devem ocupar o centro do palco. Vale dizer, ganha
volume a posição de que é preciso recuperar a dimensão histórica,
sociológica e antropológica dos processos e das coisas do mundo. E fazer
isso com destemor democrático.
Mas vamos finalizar. Existe hoje uma sensibilidade neurótica a críticas
e um furor patológico para reprimir divergências, inibir discordâncias,
sufocar dissensões. Tudo brota da (ou descamba para a) intolerância.
Estamos bem longe da “prática política da escuta”, de que falava Barthes.
Do gosto enriquecedor pelo convívio democrático. Os identitários
escorraçam quem não é igual a eles, a começar pelo cordon sanitaire desta
excrescência prática que é o “lugar de fala”. E cansa ficar sob a mira da
superficialidade agressiva dos fanáticos, num país onde mestiçagens e
sincretismos começaram antes da existência do Estado e de classes
sociais. Mas essa gente só vai se repensar, se o fizer, quando for soterrada
por fatos. Volta e meia, em rodas de conversa e nas redes sociais, aparece
mais alguém para dizer que desistiu de se manifestar publicamente sobre
questões relativas a tópicos de “justiça e igualdade”, para evitar agressões
dessas caricaturais de revolucionários. Quanto a mim, já sabem — e não é
de hoje. Podem tirar o pangaré do aguaceiro. Vou continuar dizendo o que
penso. Sobre tudos e sobre todos. Feliz ou infelizmente, vivo num país,
numa sociedade, onde, para muito além de grupelhos e associações
(excludentes) neofeministas e neonegras, vivem milhões e milhões de
homens e mulheres que configuram o conjunto da sociedade. Aqui é meu
lugar, aqui é onde vivo, aqui está o que posso transformar. Logo, afirmo e
reafirmo duas coisas. Primeiro: para mim, não existe propriedade privada
no mundo dos signos, dos discursos políticos e das criações culturais.
Segundo: sou brasileiro — discuto e vou continuar discutindo tudo que
disser respeito ao Brasil. Alterando (ou reduzindo) o célebre verso de
Terêncio, Publius Terentius Afer, digo: nada do que é brasileiro me é
estranho. Este é o meu lugar de fala.
Este livro foi impresso pela Edigráfica.

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