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RELATIVISMO
PÓS-MODERNO
E A FANTASIA
FASCISTA DA
ESQUERDA IDENTITÁRIA
ANTONIO RISÉRIO
SOBRE O
RELATIVISMO
PÓS-MODERNO
E A FANTASIA
FASCISTA DA
ESQUERDA IDENTITÁRIA
Topbooks
Copyright © 2019 Antonio Risério
EDITOR
José Mario Pereira
EDITORA ASSISTENTE
Christine Ajuz
REVISÃO
Luciana Messeder
PRODUÇÃO
Mariângela Felix
CAPA
Miriam Lerner - Equatorium Design
DIAGRAMAÇÃO
Arte das Letras
R474s
Risério, Antonio
Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária - Antonio Risério.
— 1ª ed. — Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.
142 p.; 21 cm.
ISBN: 9788574752891
Este é um livro que vem para virar a mesa. Para bater de frente com um
mundo político-cultural hoje hegemônico, reinando no sistema
universitário e até na mídia. Estamos na ditadura do multiculturalismo, do
"politicamente correto”, do identitarismo, com militantes fechados em
seus guetos, de onde saem apenas para manifestar ódio a divergências e
diferenças. Movimentações e grupos que, partindo de uma base justa de
reivindicações, deformaram-se e se perverteram ao extremo.
Em “Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda
identitária”, tudo isso é posto em questão. E não resta pedra sob pedra.
Com erudição e clareza, o antropólogo ANTONIO RISÉRIO vai narrando
a história da formação desses movimentos excludentes (da contracultura e
da transição democrática na década de 1970 aos dias de hoje), e
desmontando, uma a uma, suas mistificações e manipulações, do desvario
irracionalista do pensamento pós-moderno às posturas fraudulentas diante
da realidade e da história.
Vão ruindo, assim, as falácias dos vários modismos para cá importados
sem qualquer crivo crítico. Falácias do multiculturalismo. Do “racialismo
neonegro” e seu estranho discurso em defesa da pureza racial. Da
radicalização assexuada do neofeminismo, com seu horror ao desejo
heterossexual. Da abolição das classes sociais, substituídas por critérios
étnicos e sexuais, no neomarxismo acadêmico. Do combate racista às
mestiçagens.
Mas o autor não se contenta com embates antropológicos ou
filosóficos. Sua intervenção é também política. E vai à crítica do fascismo,
que sobressai como triste característica de movimentos que de tudo fazem
para se impor autoritariamente na vida social e sufocar qualquer
discordância. Movimentos cujas condutas não se pautam exatamente pelo
respeito à verdade dos fatos. Como se ao “oprimido” fosse legítimo
manipular dados e atropelar a ética.
Em resposta a isso, e se definindo no campo da esquerda democrática,
este ensaio é uma defesa veemente do verdadeiro convívio político e
cultural, onde todos possam se mover e se manifestar ao ar livre da
democracia.
Sumário
Nota do autor
4 - A racionalidade planetária
8 - A onipotência do palavreado
... um ato de censura, de agressão, mas que está sendo visto pela
esquerda como um ato político! A UFBA, a ETUFBA [Escola de
Teatro] quase pediram desculpa aos invasores do teatro, enquanto a
professora agredida NÃO teve uma única palavra de apoio da casa
onde trabalha. Dos colegas esquerdistas, nem pensar.
A filósofa Bruna Frascolla frisa que a reitoria da UFBA não deu sequer
uma notinha a respeito da violência contra Deolinda e a peça de teatro. Diz
ela: a mesma reitoria que se manifestou publicamente até contra a
pichação da suástica em banheiros da Universidade, escolheu agora ficar
caladinha, não dar um pio. E Bruna está certa quando afirma que a
universidade brasileira jogou a toalha — e que não é necessário censurar
professores porque eles mesmos já se autocensuram (ao contrário do que
muitos imaginam ou alardeiam, a covardia intelectual é rotineira no
ambiente acadêmico). No artigo “Racialismo e Violência nos Campi” (O
Globo), a antropóloga Yvonne Maggie comentou:
Nem poderiam: "Os que são excluídos por injustiças sociais ou étnicas
não constituem necessariamente uma cultura diferente. O sofrimento não
gera uma cultura”. De costas para maiores (ou menores) cuidados
conceituais, foram pipocando, sob capas de seriedade e profundidade,
abordagens de coisas como o “pós-feminismo” em Madonna, Rambo e a
vulnerabilidade do macho norte-americano, o significado dos créditos de
abertura de um programa de televisão, a incrível profundidade de ser e
estar num shopping center, etc. Jacoby:
Críticos e acadêmicos renderam-se a uma lógica inexorável. ‘Como
todos os indivíduos são iguais, tudo que fazem deve ser igual’,
raciocinam. Fiéis a esta lógica, rejeitam a crítica da cultura de massa
como elitista.
Se fosse assim, teríamos que condenar por genocídio nada menos que
Eduardo Mondlane e Seretse Kama, dois dos mais destacados e
honrados libertadores da África que se casaram e tiveram filhos com
mulheres brancas.
Mas não para aí. Contra os “palmiteiros”, nossas feministas neonegras
levantam a bandeira de um tal “amor afrocentrado”, que é a denominação
atual de currais para confinar machos pretos, a fim de amenizar a tal da
“solidão estrutural” das universitárias pretas e impedir a praga das fodas
interétnicas.
Ora, crimes e absurdos têm de ser combatidos, mas não com
amontoados de disparates tantas vezes racistas. O fanatismo é incapaz de
entender uma coisa bem simples. Quem é contra o obscurantismo
repressivo não é automaticamente a favor do estupro. E o pessoal
neonegro peca pela mesma cegueira: se você discorda de algum
mandamento do movimento, reagem como se você defendesse o
fuzilamento sumário de jovens pretos em favelas e bairros da periferia
proletária. Mas tratar as coisas assim ou é manipulação fascista ou é
primarismo de debutante mental. Em contraposição, vejam, por exemplo,
o trecho seguinte de um texto escrito pelo psiquiatra e militante
revolucionário negro Frantz Fanon, nascido na Martinica. Compare-se o
que há de raso e rasteiro no racialismo neonegro brasileiro com o que pode
haver eventualmente de denso e profundo em Fanon, lendo ou relendo esta
passagem altamente significativa do livro Pele Preta, Máscaras Brancas,
que aqui traduzo:
Especulando sobre o que Zizek quis dizer (e ele foi pouco claro nesse
tema), dá para conjecturar o seguinte: as sociedades capitalistas
estariam se aproveitando do narcisismo dos grupos identitários para
criar formas mais individualizadas de consumo e mercados mais
segmentados (trazendo com isso, por exemplo, todo o cinismo das
ações de marketing e publicidade politicamente corretas que visam
‘agregar valor’ às marcas). O identitarismo seria uma espécie de
consequência politizada do individualismo engendrado pela sociedade
de mercado.
Nos dias que correm, não é preciso nem mesmo fazer este esforço,
procurando ajoelhar confessionalmente o próximo. A pessoa é acusada de
racista antes mesmo de ter tido tempo de abrir a boca. Todos então acabam
constrangidos a embarcar na canoa furada do identitarismo. Por esse
caminho, de resto, o identitarismo implantou uma prática ditatorial,
fascista, no mundo da arte e do entretenimento: artistas mulheres (lésbicas
ou não), artistas pretos ou artistas gays são obrigados a militar, ou a
militância vai fazer o que puder para sabotar e bloquear suas carreiras.
Somos assim atirados de volta aos velhos tempos da política cultural
soviética sob Stálin e Zdanov, agora em versão cromático-genital.
Inúmeros observadores já assinalaram isso. Outro dia, João Pereira
Coutinho, em artigo na Folha de S. Paulo:
Steven Pinker [em The Better Angels of our Nature] chegou a apontar
que a dicotomia marxista entre opressor e oprimido, acompanhada pela
apologia da revolução violenta, causavam um senhor estrago nos
Estados Unidos de uma maneira nova. Sob a batuta da Escola de
Frankfurt, intelectuais passariam a apoiar qualquer comportamento
lesivo desde que parecesse caber em suas novas noções de revolução
— que, agora, não se centravam mais em classe, mas em coisas como
raça, à maneira nazista. A violência gratuita recebia apologia como
revolucionária ou não-conformista, e psicopatas usavam clichês
frankfurtianos para explicar seus crimes e saírem da prisão. Como
mostra de sua tese, porém, ele traz o surpreendente trecho em que
pantera negra Eldridge Cleaver [em seu livro Soul on Ice] racionaliza
em termos políticos um estupro cometido [contra uma mulher branca]:
‘O estupro foi um ato de insurreição. Deu-me prazer desafiar e pisotear
a lei do homem branco, seu sistema de valores, e deu-me prazer sujar
suas mulheres — e esse ponto, creio, foi o mais satisfatório para mim,
porque eu me ressentia muito do fato histórico de que o homem branco
usou a mulher negra’. Pinker conta ainda que esse livro [de Cleaver]
foi muito bem recebido pela crítica e o New York Times chegou a
qualificá-lo como ‘brilhante e revelador’. Mas piora! Na mesma
página, esse bravo antirracista que cobra dívida histórica em estupro
de brancas conta que foi preciso ensaiar antes com negras [não se sabe
se para minimizar a tal da solidão estrutural]. Diz: ‘Tornei-me um
estuprador. Para refinar minha técnica e modus opercmdi, comecei
praticando com garotas negras no gueto — no gueto negro onde ações
sombrias e viciosas não parecem aberrações ou desvios da norma, mas
como parte da suficiência do Mal cotidiano — e, quando eu me julguei
ligeiro o bastante, cruzei os rastros e procurei presa branca’. Numa
tacada só, o estuprador autoriza o estupro de mulheres da raça que ele
alega defender e diz que estupro é uma coisa normal entre aqueles
pretos pobres! Seria possível ofendê-los mais? Seria possível ser mais
racista e degradar mais, com ações e palavras, as mulheres?
Ou ainda:
Tenho uma mente formada pela língua portuguesa e pela língua iorubá.
Sou bisneta do povo lusitano e do povo africano. Não sou branca, não
sou negra. Sou marrom. Carrego em mim todas as cores. Sou
brasileira. Sou baiana.
Será que ele nunca leu uma sílaba do que Marighella escreveu? Só
falta agora convidar Elisa Larkin [a viúva branca de Abdias do
Nascimento] para o papel de Clara Charf [a viúva judia de Marighella]
e aí teremos o filme Movimento da Guerrilha Negra Unificada.
E ainda: “Cadê o mulato? Você viu o mulato? Era assim que nos
referíamos a Marighella, no Rio de Janeiro”. Em seu livro Bahia de Todos
os Santos — Guia de Ruas e Mistérios, ao acender a luz sobre a
personalidade do seu amigo Marighella, o escritor Jorge Amado fala, logo
de saída, de sua “graça de moleque nascido nas ruas da Bahia”. E
Marighella foi isso mesmo. Um moleque mestiço. Um mulatinho das ruas,
becos, ladeiras e praças da Cidade da Bahia. Nunca deixou de sê-lo. E
agora vão querer transformá-lo em racialista avant la lettre? Num
racifascista furibundo? Não: mais ainda, muito mais do que o que vemos
no trabalho de Lilia Moritz Schwarcz, o estelionato político-cultural
inscreve o ator Wagner Moura em cheio na supracitada categoria do afro-
oportunismo. Nesta espécie de baixo espiritismo demagógico que parece
seduzir tanta gente hoje no Brasil. Garantindo, claro, o acesso lucrativo a
uma fatia de mercado. E a turma de Moura ainda teve a cara de pau de
querer dar a impressão de que o filme foi censurado, quando o que houve
foi que a Ancine se recusou a adiantar a parcela referente ao lançamento
da película, em consequência de algum problema com a prestação anterior
— me informa João Carlos Rodrigues, acrescentando que hoje nem sequer
existe mais censura prévia no país.
De outro ângulo, mas ainda para tentar entender o afã simplificador ou
a ânsia simplicista de transformar figuras complexas em personagens
rasas, tal como vemos em meio à turma que embarcou no trem ideológico
da onda multicultural-identitária, recorro livremente a uma classificação
didática do romancista E. M. Forster, em Aspects of the New Novel. E
neste escrito que Forster introduz sua célebre divisão das criaturas
construídas em nossas obras romanescas, separando-as em personagens
fundas (ou “redondas”) e personagens rasas, que é a categoria que aqui me
interessa. Na expressão do próprio Forster, flat character ou “personagem
plana” é o “tipo” construído “ao redor de uma única ideia ou qualidade”. E
a personagem esquemática, carente de nuances, sutilezas, ambiguidades,
contradições. E o que vemos, na atual voga multi- cultural-identitária, é o
esforço para reduzir a complexidade à unidimensionalidade — ou a
transformação de personalidades ricas em flat characters. E o que se quer
fazer com Machado, a encarnação mesma do paradoxo e da ambiguidade.
Figuras planas tornam-se também Lima Barreto e Carlos Marighella. E o
problema já começa com a natureza mulata de todos. Com a mestiçagem.
Para se prolongar no caráter mestiço de seus pensamentos. A lógica
binária não pode aceitar o meio-termo ou um terceiro termo — se o fizer,
desmantela-se. Seres híbridos, ambíguos ou complexos não cabem no
invólucro da personagem-tipo, da figura monocromática ou unívoca, do
sujeito definido em alto contraste na claridade artificial de estúdios ou de
gabinetes. É por isso que, mesmo quando se veem às voltas com
personalidades complexas, o empenho do multiculturalista-identitário é
todo para reduzi-las forçosa- mente ao estatuto de personagens planas. É
preciso tipificar ou mesmo caricaturar, como no caso de tratar Marighella
como “herói negro”.
Penso também que é por isso mesmo que essa gente evita encarar uma
personalidade híbrida e complexa como Roberto Marinho, ao mesmo
tempo “afrodescendente” e rico, como se fosse possível um “oprimido”
ser todo-poderoso, inclusive com relação aos rumos do país. Tenho para
mim que figuras como a de Roberto Marinho (que usava pó para disfarçar
a cor da pele, como aquele jogador de futebol que acabou gerando o
epíteto negativo de “pó de arroz” para designar o Fluminense) ou a roda de
relações sociais do africano (de “nação jeje-mahi”) Francisco Nazareth
d’Etra, reunindo algumas das personalidades negras mais complexas de
nossa história, desconcertam a mentalidade linear e maniqueísta dos
identitários. Vejam, a propósito, o estudo “O Terreiro do Gantois: Redes
Sociais e Etnografia Histórica no Século XIX”, de Lisa Earl Castillo,
publicado na Revista USP. O negro Nazareth ainda era escravo quando
comprou seu primeiro escravo, um preto de “nação cabinda”. Nenhuma
novidade: ele mesmo fora escravo de outro escravo, que conseguiu a
alforria antes dele: José Antonio d’Etra, um dos africanos mais ricos da
Bahia, que chegou a possuir um plantei de 50 negros escravizados; teve
patente de capitão-mor de assaltos e entradas, escolhido para combater os
quilombos que se reproduziam no Recôncavo Baiano; e foi da irmandade
negra do Bom Jesus das Necessidades, que tinha irmãos pretos envolvidos
diretamente no comércio negreiro. O próprio padrinho de Francisco
Nazareth, o também africano (e também jeje) Antonio Narciso Martins da
Costa, trabalhava tranquilamente, entre outras coisas, como mestre de
navios negreiros, considerando a escravidão uma coisa normal, de sua
perspectiva africana (por falar nisso, em iorubá, “escravo” se diz erú).
Seria interessante, nesse contexto, examinar o sincretismo que vincula
Santo Antonio e Ogum (o orixá nagô do jeje Nazareth, em mais uma
confirmação de que a definição “candomblé jeje-nagô” é correta): Ogum,
o leão da floresta fechada (como o define um de seus orikis), orixá da
tecnologia, tanto pode ser um construtor quanto um demolidor feroz, deus
dos guerreiros; Santo Antonio era patrono do exército, padroeiro dos
caçadores de escravos fugidos. Nazareth, que foi casado com a ialorixá
Maria Júlia da Conceição, participou da criação dos candomblés do
Bogum e do Gantois, cultivando Ogum, saudando orixás e voduns. Nossos
identitários, quando se deparam com gentes e coisas assim, com
personalidades nada “planas” à Roberto Marinho e Francisco Nazareth,
ficam ofuscados ao ponto de se verem obrigados a desviar o olhar. A
fechar os olhos — ou a não entenderem nada. Roberto Marinho e
Francisco Nazareth — ou ainda com uma figura fascinante como a do
autodeclarado mulato André Rebouças (descendente do casamento bem
sucedido de um alfaiate português branco com uma preta baiana
alforriada; seu irmão Antonio, aliás, que passou boa parte da vida no
Paraná e chegou a ser sócio de Mauá, teve seu nome dado a
importantíssima via pública paulistana, a Avenida Rebouças), engenheiro
de cultura incomum, que chegava a passear ao sol-pôr em Petrópolis, na
companhia do amigo Taunay (autor do excepcional A Retirada da Laguna),
com seus “belos cabelos louros”, e do próprio imperador Pedro II.
8. A onipotência do palavreado
Que tal?
Bem, vamos aos poucos. Para começar, podemos nos lembrar da luta
para abolir o emprego de elementos lexicais considerados ofensivos,
humilhantes, etc. Foi coisa muito visível no plano do tratamento verbal
que se passou a dispensar, por exemplo, a deficientes físicos (aliás,
observadores mais atentos do que eu já devem ter notado uma coisa: na
disputa por um emprego, deficientes físicos se dizem iguais a todos;
emprego conquistado, voltam atrás — declaram-se portadores de
necessidades especiais e exigem tratamento diferenciado). Nunca me
esqueço de que, numa reunião no hospital Sarah Kubitschek, houve um
marqueteiro que sugeriu que aleijados (um palavrão!) passassem a ser
denominados “pessoas diversamente habilitadas”. Era ridículo, claro. E
certa vez deixei uma plateia em silêncio, num debate realizado em Belo
Horizonte, quando indaguei: como é mesmo que vocês estão se referindo
agora ao Aleijadinho? Mas, mesmo quando não chegávamos ao ridículo,
as coisas não eram tão simples assim. Substituir a palavra “cego” pela
expressão “deficiente visual”, por exemplo, destruiria boa parte do melhor
da criação poética da humanidade. Basta lembrar o belo poema
quinhentista onde Mark Alexander Boyd se declara guiado por um cego e
uma criança. E como refazer tantos folhetos de cordel, o poema de
Kilkerry (“ceguei... ceguei da tua luz?”) ou o título e o texto do romance
de Saramago? Seremos tão cegos assim? Palas Atena podia ter olhos
verde-mar, mas Édipo arranca os seus. E a mudez? Ou até o fingimento da
mudez, como no texto que Guillem de Peitieu escreveu ainda no século
XII (En Alvernhe, part Lemozi/M’en aniey totz sois a tapi...')? Pobre
Tirésias. Pobre Dante. Pobre Shakespeare. Pobre Pound. E o que fazer com
Gerty Macdowell, a Nausícaa coxa e manca do romance de James Joyce?
Existem mulheres feias, Gerty, mas você com certeza não é uma delas — é
apenas aleijada.
Mas o fato é que a coisa foi adiante, com a tentativa de riscar do mapa
da língua vocábulos julgados nocivos ou ultrajantes também no terreno
(ou na cama e na lama) das práticas sexuais. Não devíamos chamar
ninguém de bicha, veado, sapatão, etc., apesar da referência de Lula às
mulheres petistas do “grelo duro” (que, ao contrário do que se disse na
época, na tentativa de livrar a cara do ex-sindicalista, nunca foi expressão
popular nordestina). Putas eram “profissionais do sexo”. And so on. Mas
muitos, dos que seriam supostamente beneficiados com as
redenominações linguísticas, julgaram-se, ao contrário, maleficiados,
ainda que sem protestar publicamente. Lembro-me, por exemplo, de uma
conversa com o historiador e antropólogo Luiz Mott, criador do Grupo
Gay da Bahia, me dizendo: “agora, me vêm com essa conversa de que não
posso mais chamar ninguém de veado, veja só!”. Gabriela Leite disse que
adorava ser “puta”. E minha querida Angela Ro Ro, no facebook “Gay é o
cacete! Eu sou é sapatão!”. Ao lado disso, alguns temas se tornaram tabus.
A feiura, por exemplo. Não faz tempo, assinalei en passant, numa
entrevista, a feiura atual da população baiana. Disse que o número de
pessoas feias crescia diariamente nos bares, nas ruas, nos shoppings, nas
praias. A reação foi pesada. Não porque as pessoas discordassem. O
problema era anterior a isso: elas não admitiam que ninguém achasse
alguém feio. Era o relativismo chegando à estética dos seres humanos. Na
minha opinião, pura vaidade. Falamos tranquilamente de animais e aves
feios e bonitos. Mas estamos proibidos de classificar a espécie humana
nos mesmos termos, embora os bichos costumem ser bem mais belos do
que nós. Além disso, penso que só alguém muito insincero ou insensível
vai dizer que nunca sentiu o impacto poderoso da beleza de uma pessoa. A
porrada algo eletrizante provocada pela irrupção de alguém real e
luminosamente belo em nosso campo de visão. De minha parte, não posso
fazer nada: sei muito bem o que é isso.
Essa mesma tolice linguística foi levada para o campo das culturas.
Como aprendemos não com o “neo”, mas com o velho e verdadeiro
marxismo — em A Ideologia Alemã, onde Marx e Engels, mostrando todo
o seu apreço pela qualidade formal dos objetos estéticos, citam Os
Lusíadas em português —, as ideias e práticas da classe dominante tendem
a se tornar social e culturalmente hegemônicas. Nesse campo, é notável
como culturas populares (dominadas, subalternas, não-hegemônicas)
buscam se legitimar, afirmar-se como dignas de existência e respeito,
passando a aplicar a si próprias o mesmo vocabulário que é usado com
relação a manifestações culturais cultivadas por classes bem postas na
estrutura hierárquica de nossas sociedades. Vimos isso quando, numa
postura que bem poderíamos classificar como racista, militantes
neonegros passaram a escantear denominações bantas e iorubanas, no
mundo do candomblé, para em seu lugar empregar expressões católicas.
Era o “oprimido” copiando o “opressor”, no afã ou na sofreguidão de
assim conseguir conquistar alguma “respeitabilidade”. Isso foi bem visível
nas décadas de 1980-1990. Militantes racialistas passaram a falar de
“templos religiosos negros”, em substituição ao sintagma “terreiros de
candomblé”, muito mais significativo. A usar “sacerdotisa” no lugar de
“mãe de santo”. Etc. Naquela época, ouvi censuras racialistas por
empregar vocábulos sonoros, a exemplo de bozó e macumba, como se
estes fossem estranhamente depreciativos. A ialorixá me mandou arriar
um bozó (ou ebó)? Não, nunca. Eu deveria dizer: a sacerdotisa me falou
para fazer uma oferenda propiciatória... E eu contra argumentava, para
surpresa de meus detratores, dizendo que bozó e macumba eram
expressões de origem negroafricana, nascidas nas línguas bantas. Yeda
Pessoa de Castro identificou suas raízes, como nos mostra em Falares
Africanos na Bahia. Bozó vem da língua kikongo — mbóo-zo —, onde
significa “encanto”, “feitiço”. Macumba, por sua vez, existe nas línguas
kikongo e kimbundo: makuba, “reza”, “invocação”. Nessa mesma batida,
um comissário neonegro do grupo Olodum (que destruiu grosseiramente a
sede que Lina Bo Bardi projetou para o bloco) pediu que não tratássemos a
moçada da banda como “batuqueiros” — e sim como “percussionistas”.
Contestei. Também “batuqueiro” é uma palavra banta — ou luso-banta, já
que o sintagma africano é seguido de um sufixo português. Vem de vutuki,
“batuque”. Já “percussionista” é do latim percussio, percussiottis, “ação
de bater”. Por que eles, que eram mulatos escuros, queriam evitar o uso de
palavras africanas no português do Brasil? Por que consideravam que
palavras portuguesas/latinas eram mais nobres, por assim dizer? Eu
gostava de lembrar, ainda, que todos os brasileiros, de qualquer cor ou
classe social, empregavam a palavra caçula para designar o filho mais
novo da família ou ninhada — palavra banta, também, derivada de kasuka,
kasule — e não a palavra “benjamim”, como se diz em Portugal ou na
própria Angola.
Mas tais procedimentos não estacionaram por aí, bem ao contrário.
Roland Barthes observou certa vez, acho que em seus Elementos de
Semiologia, que os revolucionários de 1789 falaram em desmantelar tudo,
menos a língua francesa. Claro. Nenhuma comunidade humana existe sem
a sua língua. Ela é a mais fundamental de todas as instituições sociais. E
não só. Línguas são cosmovisões milenares. Quando dizemos que cada
língua é uma visão de mundo, isto não significa que ela é uma
ideologiazinha qualquer encontrável ali na esquina. A língua
ordena/organiza/estrutura o nosso entendimento do mundo. O mundo é
visto em termos de nossas estruturas verbais. Da lógica sujeito/predicado,
por exemplo. Do “agrilhoamento sintático formal” das “línguas isolantes”.
Etc., etc., etc. E então: vamos suprimir os verbos e dinamitar a sintaxe
(“desmilitarizar” a língua, para falar em termos contraculturais); Isso é
possível no campo do fazer textual criativo: um poema construído só com
sintagmas nominais, justapostos diretamente, livres do fardo das
imposições lógico-sintáticas. Mas no campo da língua prática, cotidiana,
operando no campo das trocas sígnicas diárias, no plano da comunicação
social — não. Ou ninguém vai conseguir sequer conversar. Me lembro que,
às vezes, em suas preleções não raro etílicas, Décio Pignatari investia
pesado contra o discurso por subordinação (hipotaxe), regido por um
monstro chamado Hierarchus, e celebrava o discurso por coordenação
(parataxe), que se estruturava por conjunções não adversativas, ou à
maneira da lógica ideogrâmica, sem deixar espaço para hierarquizações. E
então, vamos radicalizar? Detonar os discursos hipotáticos e só disparar
mensagens de caráter paratático? Tudo bem, mais uma vez: isso é possível
no campo da criação poética; no da ação comunicacional prática cotidiana,
não. Diante disso, escrever “amigxs”, achando que isto é uma subversão
ideológico-cul- tural dessa cosmovisão específica que é a língua
portuguesa, definindo-se gradualmente sob a dominação romana de terras
e povos ibéricos, mais parece uma brincadeira de crianças. A propósito
disso, não posso deixar de me lembrar aqui de uma expressão do poeta
chileno Vicente Huidobro, no Altazor: coisa de “manicures da língua”.
Sempre que lembro essas realidades básicas, me repetem o mesmo
truísmo: mas tudo muda, a língua também! Claro que as línguas mudam. E
pelas mais variadas razões, motivações e determinações. Mas vamos
clarear o campo, para evitar confusões primárias. Uma coisa é a mudança
processual ocorrendo, a partir da fala, dentro da lógica da própria língua (a
que vai de “vossa mercê” a “você”, por exemplo). Outra coisa é uma
tentativa instantânea de imposição ideológica, artificial, “desde fora”, de
uma partícula linguística ou de uma justaposição de partículas — como
em “amigxs” ou “he or she”. Coisas que nem sequer nascem na fala, que é
a prática da língua. Não: são monstrinhos verbais criados do nada e
exclusivos da escrita político-acadêmica, brotando de fórmulas discursivas
geradas em tubos de ensaio, no laboratório dos novos ideólogos da língua.
Maiakóvski escreveu “o povo, o inventa- línguas” — e não “o ativista, o
inventa-línguas”. A diferença está toda aí. A língua se transforma no
tempo e em plano de massa. Não em consequência de uma decisão tomada
de súbito por alguns gatos pingados basicamente iletrados, reunidos em
horário comercial num departamento universitário qualquer. E não é só.
Como de praxe, esses ideólogos, embora discursando sempre em nome de
tudo que soe libertário, primam pelo autoritarismo. As mulheres gritam,
dizendo que estão falando em nome de todas as mulheres e até de todas as
minorias. Se alguma mulher ou algum gay discorda, diz que não se sente
representado por “x”, elas fazem ouvidos de mercadoras. Ou, o que é pior,
sem distinção de sexo: tentam classificar, quem não concorda com a
“virada ideológica da língua”, como direitista, conservador, inimigo
mortal das mulheres e das “minorias”. É mais um capítulo de um filme
antigo, que conhecemos de há muito tempo: o libertarismo liberticida.
Sinto muito. Mas jamais conseguiría pensar que eu estaria promovendo
alguma transformação sociocultural de relevo porque, desde ontem à noite
ou de hoje de manhã, passei a escrever “amigxs”. Podem me incluir fora
do time dos/das manicures da língua. Por falar nisso, estou à espera do
genial cineasta identitário que irá fazer um longa-metragem inteiro na
língua do xis.
Sou gellneriano, neste sentido preciso: a obrigação de respeitar todas
as pessoas não me obriga a considerar igualmente válidas as ideias que
elas carregam... quando as têm. Respeitar cada homem e cada mulher,
cada pessoa (em sentido literal, e não uma essência, “pessoa humana”) é
coisa que todos devemos fazer. Simone Weil, mais uma vez: