Émerson Vasconcelos Almeida
Émerson Vasconcelos Almeida
Émerson Vasconcelos Almeida
São Leopoldo
2013
ÉMERSON VASCONCELOS ALMEIDA
São Leopoldo
2013
A447a Almeida, Émerson Vasconcelos
Audiovisualidades nos quadrinhos digitais: como se dá o
tensionamento das molduras quadrinhos, audiovisual e
software/interface nas AppHQs / por Émerson Vasconcelos
Almeida. -- São Leopoldo, 2013.
CDU 714.5:004.92
714.5:004.4'242
Catalogação na publicação:
Bibliotecária Carla Maria Goulart de Moraes – CRB 10/1252
RESUMO
This dissertation aims to make notes to answer the research problem that
constitutes essentially the following question: "How audiovisual strategies, in
combination with the dimensions of the software and the cultural interface operate on
other frames of AppHQs?". For that, I operate on macroframes software/interface,
comics and audiovisual, trying to understand how is the tension between them in
empirical objects analyzed. The AppHQs are comics that have characteristics of
digital applications and, therefore, follow a logic of software. The constitution of the
methodology of this research relies on procedures originally proposed by Benjamin,
Bergson and Kilpp. Besides these authors, others, like Dubois, Manovich and
McLuhan are fundamental to understanding the audiovisual strategies present in
AppHQs. The concept of comics presented throughout this dissertation is based on
what Eisner and McClloud say about sequential art. This research advances
regarding to the mapping audiovisual strategies used in AppHQs. Moreover, it also
advancing methodologies for studies of this object.
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8
1.1 QUADRINHOS, AUDIOVISUALIDADES E EU ..................................................... 8
1.2 ESTUDOS SOBRE QUADRINHOS DIGITAIS .................................................... 26
1.3 AUDIOVISUALIDADES E TECNOCULTURA NAS APPHQS ............................. 35
2 HQS INSCRITAS NOS NOVOS MEIOS ................................................................ 37
2.1 RECONHECENDO OS NOVOS MEIOS E SEU AMBIENTE .............................. 37
2.2 OS NOVOS MEIOS SÃO AS NOVAS MENSAGENS ......................................... 46
2.3 INTERFACE NOS NOVOS MEIOS ..................................................................... 49
2.4 CONSTITUIÇÃO DAS APPHQS ......................................................................... 61
3 PRIMEIRAS PISTAS DE AUDIOVISUALIDADES NA APPHQ ............................. 64
3.1 IMAGENS TÉCNICAS ......................................................................................... 64
3.2 O SOFTWARE SE IMPÕE: A INFLUÊNCIA DAS NORMAS DA APPLE NAS
APPHQS ............................................................................................................. 66
4 APONTAMENTOS METODOLÓGICOS ................................................................ 73
4.1 SELEÇÃO ATRAVÉS DA INTUIÇÃO BERGSONIANA....................................... 73
4.2 OPERAÇÃO SOBRE CONSTELAÇÕES DE IMAGENS ..................................... 77
4.3 TENSIONAMENTOS DE MOLDURAS E DISSECAÇÃO DO CORPUS ............. 78
5 DISSECAÇÃO DO CORPUS ................................................................................. 80
5.1 PATRE PRIMORDIUM ........................................................................................ 80
5.2 DC COMICS E MARVEL COMICS ..................................................................... 86
5.2.1 Avengers Prelude #2 (página 15) .................................................................. 92
5.2.2 Batman Beyond #1 (página 7) ....................................................................... 94
5.2.3 Crisis on Infinite Earths #1 (página 3) .......................................................... 96
5.2.4 Nightwing #1 (página 15) ............................................................................... 98
5.2.5 Smalvile Season 11 #1 (página 19) ............................................................... 99
5.3 LUTHER ............................................................................................................ 100
5.4 TENSIONAMENTOS ENCONTRADOS NO CORPUS ..................................... 103
6 APONTAMENTOS TRANSITÓRIOS ................................................................... 105
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 107
APÊNDICE A – LÓGICAS DE PRODUÇÃO DAS APPHQS.................................. 109
ANEXO A – PARÂMETROS DE MONTAGEM DAS APPHQS .............................. 110
8
1 INTRODUÇÃO
Meu interesse por quadrinhos tem origem desde muito antes de sequer
pensar em realizar esta pesquisa. Foi com os quadrinhos que aprendi a ler e foram
eles que se tornaram minha principal forma de diversão e até mesmo de
aprendizado durante todo meu amadurecimento pessoal e profissional. Ingressei no
curso de jornalismo, em grande parte, por inspiração trazida pelos vários jornalistas
dos quadrinhos, normalmente retratados como identidades secretas de super-heróis
nas HQs norte-americanas ou como o herói propriamente dito nas HQs europeias.
Ao ingressar no curso de jornalismo, logo percebi que, embora a profissão
ainda me despertasse interesse, existiam outros rumos, dentro da área de
comunicação, que me pareciam ainda mais interessantes. Em certo ponto do curso,
mais precisamente em 2007, tive a oportunidade de me tornar bolsista de iniciação
científica da professora Doutora Suzana Kilpp, que, na ocasião, desenvolvia a
pesquisa Devires de Imagem-Duração. Como as pesquisas de Kilpp são
relacionadas ao audiovisual e às audiovisualidades, acabei conhecendo também
esta linguagem, embora os quadrinhos continuassem me despertando interesse.
Não apenas conheci, como me apaixonei pelas audiovisualidades. Me apaixonei
tanto, que na reta final da graduação, decidi fazer um trabalho de Conclusão de
Curso voltado aos estudos das audiovisualidades, no qual um dos conceitos mais
importantes que tomei contato foi o de molduras. No blog de Suzana Kilpp pode ser
facilmente encontrada uma definição para este conceito, proveniente de um excerto
da metodologia de sua pesquisa intitulada Audiovisualidades Digitais, desenvolvida a
partir de 2008.
pode ouvir uma versão dramatizada da história, que reproduz sonoramente o que
está escrito nos balões, sobreposta a uma trilha, ou desativar as vozes e ouvir
apenas com a trilha. Há também a possibilidade de desativar totalmente o áudio e
experimentar a HQ apenas com os recursos visuais.
com Smallville Season 11. Em entrevista realizada por e-mail (ver Apêndice A), o
artista ressaltou que o processo de produção determinado pela Marvel Comics para
esta edição digital de Vingadores foi idêntico ao que ele está habituado para a
produção de quadrinhos impressos. As páginas foram pensadas apenas para
publicação em formato vertical.
Antes de seguir adiante com a pesquisa, percebi que era necessário observar
o que está sendo estudado no Brasil a respeito dos quadrinhos digitais. Ao buscar
estas referências, descobri que pesquisadores de diversas partes do país
desenvolvem estudos que de alguma forma tocam meu objeto, que ainda está em
construção neste momento, embora nenhuma delas convoque a perspectiva das
audiovisualidades, ou de alguma que seja similar. O audiovisual presente nos
quadrinhos digitais ainda é pouco explorado nestas pesquisas. Mais do que isso,
percebo que a relação do quadrinho digital com a interface e com os softwares
também carece de maior aprofundamento em termos de estudos. Neste ponto, pela
primeira vez, percebi que minha preocupação não se resume apenas a algo que
está inscrito nas molduras quadrinhos e audiovisual. Creio que meu objeto de
26
pesquisa esteja tensionado pelos quadrinhos, pelo audiovisual, e por uma terceira
moldura: software/interface. E foi justamente buscando algo que pudesse me auxiliar
nesta perspectiva, que olhei os estudos que citarei a seguir. Dentro dos trabalhos
que mapeei, e que apresento a seguir, não localizei movimentos com vistas à
compreensão específica das lógicas deste grupo que estou denominando como
AppHQ. Embora alguns destes estudos possam tocar objetos empíricos que cito em
minha pesquisa, nenhum deles observa estas AppHQs com um enfoque ligado às
audiovisualidades e à tecnocultura.
Levando em consideração que esta pode ter sido a origem das manifestações
relacionadas a cartuns e histórias em quadrinhos na internet, é possível perceber
que, já na gênese, os quadrinhos digitais incorporaram fortemente a necessidade de
comunicar através de recursos textuais. Desta forma, fica evidente também que
aquilo que convencionamos chamar de quadrinhos na internet, pode sequer ter
relação, em seu surgimento, com a necessidade de produzir HQs para os meios
digitais.
Alguns autores como Marcelo Soares de Lima (LIMA, 2011) abordam as
possibilidades dos quadrinhos nos meios digitais, enfocando a influência que os
recursos tecnológicos destes dispositivos têm sobre as formas de leitura e de
distribuição dos quadrinhos.
É justamente o trabalho de Lima que aponta que estes produtos que resultam
do entrelaçamento dos quadrinhos com os meios digitais possuem uma
complexidade muito grande em termos de produção. Desta forma, mesmo que o
autor não se preocupe com a linguagem em si, e pareça estar mais preocupado com
questões tecnológicas e mercadológicas, aponta para a existência de algo que
possui características diferentes de qualquer outra atualização dos quadrinhos.
A relação dos quadrinhos com o ambiente digital também foi abordada por
Walter Correia e Rodrigo Motta (MOTTA; CORREIA, 2011). Os autores observam
que as características dos meios digitais pouco estão influenciando a montagem e,
consequentemente, a linguagem dos quadrinhos encontrados neste ambiente:
29
Não pretendo utilizar todas estas molduras propostas por Franco como
parâmetro para realizar as análises dos materiais empíricos que tensionarei com os
procedimentos metodológicos que serão explicados no terceiro capítulo deste texto.
No entanto, várias delas se aplicam, de diferentes formas, na maior parte das HQs
visualizadas, essa questão será retomada na explicitação das opções
metodológicas. Depois de determinar estas características básicas, a pesquisa de
Franco avança em uma direção que não creio que dê conta de alguns fenômenos
próprios disto que ele opta por chamar de HQTrônicas. Para o pesquisador, houve
até agora três “gerações” deste tipo de quadrinhos, que são diferenciadas pela
forma como os recursos digitais foram incorporados nas HQs em determinados
32
eletrônicos. Iniciativas como o site Zuda Comics (que foi interrompido e atualmente
não está mais disponível), que fez parte do corpus de meu Trabalho de Conclusão
de Curso, foi descontinuado pela DC Comics em abril de 2011, oferecem espaço
para a publicação do trabalho quadrinistas que produzam dentro de um formato pré-
determinado para a web, mas não privilegiam trabalhos produzidos através de meios
digitais. Nada impediria que uma HQ totalmente produzida artesanalmente, sem
recursos digitais, fosse digitalizada e enviada ao Zuda Comics, desde que estivesse
dentro das medidas permitidas.
Depois de fazer a seleção dos materiais que compõem esta versão do corpus
e de fazer este breve percurso pelos trabalhos de autores como McCloud e Franco,
percebo que a pesquisa em relação à ligação dos quadrinhos com os recursos
digitais ainda é pouco desenvolvida. Muitas vezes, o termo webcomics acaba sendo
utilizado para definir todos os quadrinhos produzidos para serem distribuídos na
internet. No entanto, o termo acaba englobando não apenas as HQs pensadas para
serem lidas na web, mas qualquer história em quadrinhos disponibilizada na internet,
seja ela uma versão digitalizada de um quadrinho impresso ou um aplicativo que
pode ser visualizado offline. É possível traçar um paralelo do que acontece com os
quadrinhos, com o que está ocorrendo também com os vídeos. Cada vez mais, com
a popularização de sites de compartilhamento de audiovisual, como o YouTube,
surgem vídeos pensados e produzidos sob a lógica da web, utilizando recursos
próprios do meio. Paralelamente, a cada dia, milhares de vídeos extraídos de
programação de televisão ou de filmes originalmente disponíveis em DVD, são
inseridos nestes sites de compartilhamento. Não seria correto chamar de webvídeo,
algo que não foi concebido para a web. Da mesma forma, um vídeo produzido para
ser visualizado offline, também não pode ser designado através deste termo. Antes
mesmo de optar por chamar meus objetos empíricos de AppHQS, defini minha
opção por não me referir como webcomics aos materiais que analisarei. Esta
primeira escolha se deveu ao fato de que a maioria das HQs que selecionei para
esta pesquisa é destinada à experiência de leitura off-line (embora as etapas de
busca, escolha e compra sejam feitas online), sendo Luther a única exceção. Seria,
portanto, ilógico utilizar o termo webcomics para designar um conjunto representado,
em sua maior porção, por elementos que não necessitam da web para serem
acessados depois de feito o download.
No atual estágio deste trabalho, creio que meu problema de pesquisa parta
35
Entendo que, devido à minha forte ligação com os quadrinhos, seja como
leitor ou como um interessado em pesquisar sobre o tema, corro o risco de ser
cegado por situação ao olhar os materiais que pretendo estudar. Por isso, busco não
me focar na análise do conteúdo, utilizando-o apenas para observar como se
articulam as molduras sobrepostas dos quadrinhos digitais selecionados. Pretendo
tensionar meu olhar com conceitos desenvolvidos por autores que permeiam os
estudos das audiovisualidades e, especialmente, do que o grupo de pesquisa
Tecnocultura Audiovisual (TCAv), no qual estou inscrito, entende por tecnocultura.
Embora ainda em construção, este conceito, assim como todas as discussões das
quais venho participando no grupo, está sendo fundamental para que eu
compreenda melhor como se constitui meu objeto de pesquisa. Particularmente,
entendo por tecnocultura os processos culturais que são impregnados por
procedimentos técnicos. Por isso, creio que os quadrinhos, através de sua
constituição tecnoestética, se inscrevam perfeitamente no conjunto de estudos que
segue o viés tecnocultural.
Com vistas a compreender e buscar uma compreensão de como as
audiovisualidades se apresentam nas AppHQs e sobre como este grupo de
quadrinhos digitais se relaciona com a tecnocultura, desenvolvi a estrutura deste
trabalho, que está dividido em 6 capítulos. É importante ressaltar que vários trechos
de obras citadas na bibliografia foram traduzidos do inglês e do espanhol para este
trabalho, devido a não existência de traduções oficiais destes textos.
Até aqui procurei desenvolver a apresentação da macromoldura quadrinhos,
paralelamente à introdução do córpus e a um breve apanhado da pesquisa brasileira
sobre HQs digitais. No capítulo 2, intitulado HQs Inscritas nos Novos Meios, com
36
“1. Um objeto dos novos meios pode ser descrito em termos formais
(matemáticos). Por exemplo, uma imagem ou uma forma podem ser
descritos por meio de uma função matemática.
1 Um objeto dos novos meios está submetido a uma
manipulação algorítmica. Por exemplo, se aplicarmos os algoritmos
adequados, podemos tirar automaticamente o “ruído” em uma
fotografia, melhorar seu contraste, encontrar as bordas das formas
ou trocar suas proporções. Em resumo, os meios se voltam
programáveis” (MANOVICH, 2006:8),
Ou seja, embora Manovich pontue que os objetos dos novos meios possam
ser submetidos à manipulação algorítmica e descritos através de funções
matemáticas, os quadrinhos impressos, quando passam pela etapa da digitalização,
também possuem estas características, mas ainda assim não podem ser
considerados como novas mídias.
O autor pontua também que a modularidade é um princípio que, nos novos
meios, funciona da mesma forma que uma estrutura fractal. A comparação se dá
porque, da mesma forma que em um fractal, o objeto dos novos meios apresenta uma
estrutura modular capaz de se agrupar com outros objetos, mas sem perder sua
identidade:
40
“Um objeto dos novos meios não é algo fixado e uma vez por todas,
sendo que pode existir em distintas versões, que potencialmente são
infinitas. Há aqui outra consequência da codificação numérica dos
meios (princípio 1) e da estrutura modular dos objetos midiáticos
(princípio 2). Os velhos meios implicavam um criador humano, que
juntava manualmente elementos textuais, visuais ou auditivos em
uma sequência ou composição determinadas. Essa sequência se
armazenava em algum material, que determinava sua ordem de uma
vez por todas. Poderiam tirar-se numerosas cópias do original que,
em perfeita correspondência com a lógica de uma sociedade
industrial, eram todas idênticas“ (MANOVICH. 2006: p.12).
materiais coletados para esta pesquisa, percebi que ainda há muito de quadrinho
impresso na forma como estes materiais se apresentam. Escolhas feitas por quem
programou estas AppHQs definiram o motivo destes materiais ainda serem tratados
como quadrinhos. A inclusão de molduras como os balões e os quadros, por
exemplo, poderia não ter sido feita. Estes elementos poderiam facilmente ser
suprimidos ou modificados de tal forma que não remetessem ao formato impresso.
Mesmo que neste ponto do texto tenha ficado mais claro que a mensagem é
fortemente afetada e impregnada pelo meio, esta relação precisa ser esclarecida. Este
movimento é fundamental para que eu possa discorrer sobre a interface das AppHQs, a
mensagem que é comunicada através desta interface, e sobre como esta mensagem
se constitui exclusivamente nos meios que atualmente designamos como novos. Indo
além, nos termos de McLuhan, poderíamos afirmar que meio é a mensagem e, por
consequência, os novos meios são as novas mensagens. Pensando nesta direção,
percebo cada vez mais que a macromoldura software/interface, uma das mais sólidas
dos meios digitais que atualmente chamamos de novos meios, é essencial para o
estudo do objeto que pretendo analisar.
A importância elementar desta macromoldura se dá em decorrência do que
Manovich (2006) explica sobre a interface cultural. Para o autor, ela é resultante de
um movimento de articulação do impresso, da interface humano-computador e do
cinema. É a partir deste movimento que compreendo a constituição da moldura
software/interface. As AppHQs possuem certo nível de interação tátil com o usuário,
seguindo a lógica que vem se estabelecendo nos aplicativos utilizados em
dispositivos como tablets e smartphones.
Da mesma forma, a compreensão desta macromoldura será essencial para
que eu possa analisar os quadrinhos digitais que possuem características de
AppHQs, embora não sejam experimentadas através de aplicativos.
McLuhan entende que as características do meio se fazem presentes na
mensagem, e que, na essência, são a própria mensagem. Embora não estivesse se
referindo ao que entendo nesta pesquisa por novos meios, o autor faz a seguinte
colocação: “Nada mais distante da nova tecnologia que 'um lugar para cada coisa
em seu lugar'”.
47
Nos materiais que estou observando, percebo que, na maioria dos casos, o
áudio não está presente e, quando está, é possível suprimi-lo totalmente ou
parcialmente. Já a porção visual se mantém constante. A visualidade é um aspecto
forte na atual sociedade, mas não é mais necessariamente a base dela ou dos
meios que atuam nela, como explica McLuhan:
Estas características apontadas por Eisner estão até hoje, embora cada vez
menos perceptíveis, presentes em quadrinhos digitais. Simulações de virar a página,
como se faz no quadrinho impresso, eram utilizadas frequentemente nos sites das
grandes editoras, quando elas disponibilizavam materiais para serem
experimentados nos suportes digitais. Com o tempo, as HQs foram se filiando cada
vez mais às lógicas da interface dos meios digitais. Hoje, os equipamentos com tela
sensível ao toque, desempenham papel fundamental na navegação das AppHQs.
Como indiquei na introdução, um dos meus materiais do corpus me faz pensar que o
termo AppHQ pode também ser pensado também para um dos materiais que,
mesmo experimentado através de um navegador tradicional, apresenta
características ligadas às lógicas de aplicativos.
Através da leitura de Manovich, percebi que uma das abordagens sobre
interface mais úteis para o trabalho que estou desenvolvendo é justamente o que o
autor define como interface humano-computador (ihc), ou interface do usuário.
Manovich entende que se trata daquela que se situa entre o usuário e dispositivo
digital:
Não apenas a palavra impressa, mas tudo o que compõe o quadrinho impresso,
da escrita às ilustrações e balões estáticos, faz com que o usuário fique ainda amarrado
à lógica da versão de papel, seguindo sua lógica linear. Paralelamente, a presença do
audiovisual evidencia que há naquele produto algo além de quadrinhos e faz com que o
mesmo usuário se coloque em uma posição diferente da tomada por um leitor de
material impresso. Posteriormente, voltarei a abordar o conceito de remidiação neste
trabalho, usando como base as ideias de Bolter e Grusin.
Através de minhas observações preliminares, já apresentadas no começo
deste trabalho, sobre o aplicativo da DC Comics e sobre a AppHQ Patre Primordium,
que apresentei na introdução deste texto, percebi que, quando não há a presença do
audiovisual, um outro fator, ligado diretamente à interface do computador, faz com
que o usuário perceba que está experimentando algo bastante diferente do que se
entende por quadrinhos. Este fator é a coexistência de janelas. O leitor, através de
uma simples combinação de comandos no teclado, pode transitar entre diversas
janelas, que podem exibir outros quadrinhos ou qualquer outro tipo de software:
59
Embora, por convenção, chame meu objeto de AppHQs, por outro lado, fica
evidente para mim que a nomenclatura não é o que mais importa neste momento e
sim a compreensão das formas como se articulam as molduras quadrinhos,
audiovisual e software/interface. Como a maior parte das páginas e quadros das
AppHQs que compõem o corpus foi originalmente planejada para o meio impresso,
creio que é hora de retomar o que dizem Bolter e Grusin a respeito do que eles
chamam de remidiação e de como este processo, na visão deles, é o que faz um
meio atuar sobre outros meios, anteriores, reformulando suas características e
sendo afetado por eles:
meio digital não são necessariamente meios extintos ou em vias de extinção. Estes
meios “anteriores” são, na verdade, interligados com o meio digital. Como admitem
Bolter e Grusin, os meios jamais operam de forma isolada:
Durante este processo de remidiação, o que ocorre não é uma simples junção
de elementos de quadrinhos e de audiovisual em um meio que propicia a inscrição
de todas estas características. É mais do que isso. Se o meio é a mensagem, a
AppHQ é, antes de tudo, impregnada por aquilo que é próprio do meio digital e este
é resultado e atualização constante dos processos de remidiação das interfaces
culturais. Entendo que os cinco princípios citados por Manovich sejam as principais
características deste meio.
Como Bolter e Grusin falam no trecho abaixo, os jogos de videogame, embora
tomem como base outras mídias, como a literatura, se constituem dentro das
possibilidades de programação e de hipermediação do meio. A apropriação do livro,
ou de qualquer produto, vai depender do que o meio digital propicia:
É seguro afirmar que os quadrinhos não são um território onde o vídeo está
fortemente institucionalizado. É a existência da interface gerada através de software
que torna viável a aproximação de características de vídeo e de HQ neste objeto
que chamo de AppHQ e que demonstra a faceta camaleônica e de múltiplas
identidades citada por Marchado.
As características audiovisuais não estão mais restritas ao cinema, ou a
televisão, assim como os quadrinhos não estão presentes apenas naquilo que é
conhecido tradicionalmente como HQ. No entanto, estes objetos que trazem
características destas macromolduras não apenas são afetados por elas, como
também afetam a percepção do que se entende por audiovisual e também
quadrinhos:
66
“É preciso, portanto, buscar o vídeo onde ele surge como outra coisa,
onde ele está respondendo a necessidades novas, fazendo
desencadear consequências não antes experimentadas. Mas essa
tarefa não deve ser reduzida à mera identificação de uma
"especificidade" do vídeo; ela implica, antes, a descoberta daquilo
que, no imbricamento de tantas coisas diversas, é mutação e
deslocamento“ (MACHADO;1993: 47).
“People often launch apps from the Home screen, so they tend to
expect all apps to start in the same orientation. Because of the
different ways iPhone and iPad display the Home screen, this
expectation affects apps in different ways:
● On iPhone and iPod touch, the Home screen is displayed in one
orientation only, which is portrait, with the Home button at the bottom.
This leads users to expect iPhone apps to launch in this orientation
by default”.
more, help content takes up valuable space to store and display. iOS-
based devices and their built-in applications are intuitive and easy to
use, so people don’t need onscreen help content to tell them how to
use the device or the apps. This experience leads people to expect all
iOS apps to be similarly easy to use”.
“Make the path through the information you present logical and easy
for users to predict. In addition, be sure to provide markers, such as
back buttons, that users can use to find out where they are and how
to retrace their steps. In most cases, give users only one path to a
screen. If a screen needs to be accessible in different circumstances,
consider using a modal view that can appear in different contexts”.
4 APONTAMENTOS METODOLÓGICOS
para que eu não acabe baseando minha pesquisa em falsos problemas. Baseado no
que afirma Deleuze ao propor uma compreensão do que diz Bergson, entendo que a
utilização do método da intuição pode reduzir o risco de que eu volte a cometer o
mesmo erro:
Para Bergson, como já foi dito na introdução desta pesquisa, todas as coisas
têm dois modos, o modo de ser e o modo de agir. O modo de ser é o que o autor
define como virtual, ou virtualidade. Já o modo de agir, chamado por Bergson de
atual, é a atualização desta virtualidade em espaço, algo que podemos apreender.
No entanto, não podemos pensar em virtualidade e atualização como coisas
verdadeiramente diferentes. A virtualidade é da ordem da duração e da memória,
enquanto os atuais são da ordem do espaço e da matéria; mas todas as coisas são
aquilo que Bergson chama de misto, uma mistura de duas naturezas: a temporal
(sua duração, inapreensível, mas experimentada e intuída) e a espacial (sua forma
no espaço, que é apreensível). A maneira como Deleuze entende o que Bergson fala
sobre os mistos será de suma importância para o desenvolvimento desta pesquisa:
A respeito das imagens dialéticas, entendo que elas não são necessariamente
imagens pictórias e podem ser também imagens sonoras. Ter este direcionamento
em mente é essencial para minha pesquisa, uma vez que não estou operando
apenas sobre imagens estáticas e sim sobre recursos audiovisuais. Ao pensar em
audiovisual, não posso desprezar o áudio. Devo, inclusive, prestar especial atenção
nele, uma vez que a presença de som no quadrinho digital é um dos maiores
diferenciais desta atualização em relação à versão impressa.
5 DISSECAÇÃO DO CORPUS
ainda uma terceira opção, na qual o leitor pode optar por desabilitar completamente
o som e experimentar a HQ sem interferências de áudio. Ainda assim, as
audiovisualidades se fazem presentes, pois o movimento “de câmera” é mantido e,
como em todas as histórias em quadrinhos, os balões enunciam uma
intencionalidade de fala, que remete claramente ao áudio. Estas características
também estão vinculadas a protocolos e regulamentos desta trajetória software que
incide sobre o aplicativo.
Analisando o diagrama I (Figura 21), fica evidente que a moldura
software/interface chega a se sobrepor à moldura quadrinhos quando se segue pelo
caminho ali indicado. As opções de tocar nos ícones indicados levam a duas telas
que em nada lembram quadrinhos tradicionais. Ao escolher o link, que leva às
instruções de uso, o usuário vê uma animação de transição, que leva a uma tela que
apresenta os procedimentos para navegação no material. Da mesma forma, uma
transição animada também é apresentada quando se opta por tocar no ícone que
leva aos créditos. Embora créditos sejam comuns nos quadrinhos impressos, aqui
eles enunciam a presença do audiovisual e do software. Para se observar a
totalidade dos profissionais creditados, é necessário que se arraste para cima a tela,
em um movimento similar a uma barra de rolagem, que é algo característico do
software. Inclusive vale destacar que as próprias funções creditadas nesta tela
apontam que há audiovisual no material. Profissionais ligados à dublagem e à trilha
sonora aparecem listados junto a roteiristas e desenhistas. Além disso, a
configuração dos créditos remete ao cinema, e não à configuração normalmente
adotada aos quadrinhos.
O diagrama II (figura 22), por sua vez, aponta as possibilidades em relação à
ativação do áudio, assim como mostra que ao tocar no centro da tela, o leitor ativa
uma próxima tela, onde ocorre um “movimento de câmera”, que percorre a página
de cima para baixo. O movimento 2 mostra uma sequência de dois quadros no
momento em que está ocorrendo o movimento.
A respeito do áudio, o botão que controla esta função é customizado
conforme a opção escolhida. O botão 1C destaca o botão que indica quando o
apenas a trilha sonora está ativada. O 2C indica que o áudio está completamente
ativado, com trilha sonora e narração. Por fim, o botão 3C mostra o botão que indica
que apenas a trilha está ativada. É importante perceber que o botão 2C remete
visualmente aos quadrinhos, mostrando o balão como uma das molduras que se
82
sobrepõem na montagem das HQs. Aqui, mais uma vez, a perspectiva da dupla-
hélice fica evidente. Enquanto a opção pelo formato de balão no botão busca indicar
que a experiência remete à da HQ impressa, paralelamente, a simples presença de
um botão e da necessidade de se optar em relação à ativação do som serve para
provocar uma dessemelhança em relação aos quadrinhos. A interação através de
botões é algo próprio da montagem da macromoldura software/interface. Muitas das
características destes botões são pré-determinadas (ou fortemente recomendadas)
por um documento, com mais de 180 páginas, que a Apple disponibiliza, contendo
regras para a produção de aplicativos. O fato de o balão representar a opção que
ativa tanto trilha quanto narração conclama ao mesmo tempo as molduras
quadrinhos e audiovisual.
É, portanto, necessário pontuar que aqui percebo um indício de que a moldura
interface/sotware pode ser ainda mais sólida nos materiais que pretendo analisar, do
que as molduras quadrinhos e audiovisual. É possível ainda regular a velocidade da
passagem dos quadros, também através de um botão inserido na montagem da
moldura interface/software, como mostrado no botão 1C do diagrama I.
Ao observar a macromoldura quadrinhos que percebo o quanto o
tensionamento interface/software-quadrinhos-audiovisual produz neste material
sentidos que não poderiam ser articulados em outro meio. Quando o usuário
desativa todas as opções de áudio no aplicativo e resolve prestar atenção apenas no
que há de quadrinhos em Patre Primordium, não é difícil encontrar argumentos, em
um primeiro momento, de que é possível experimentar o material desta forma, como
se ele fosse uma simples HQ. Estão ali presentes todas as molduras que,
sobrepostas, produzem o sentido que se espera em uma história em quadrinhos. As
molduras balão, requadro e onomatopeia estão presentes. Até mesmo a moldura
página, sobre a qual estas estão montadas e sobrepostas geralmente, é
reconhecível mesmo sem a existência de papel. Só que, como um interessado na
área de quadrinhos, entendo que sempre corro um grande risco de me cegar por
situação e de acabar enxergando apenas quadrinhos, em constelações de molduras
nas quais outras “estrelas” podem estar brilhando ainda mais. Ao tentar evitar de me
cegar por situação, ou pelo menos tendo recobrado a visão, depois de momentos de
cegueira, percebi que mesmo quando desativamos o áudio, Patre Primordium
continua sendo audiovisual.
Além disso, as molduras que se sobrepõem sobre a macromoldura
83
original, mas que aqui é apresentada em três telas diferentes. O procedimento que
realizei resultou no quadro 1:
Dissecando o áudio desta forma, pude perceber que, no que diz respeito à
narração, ela só se torna compreensível para quem tem um conhecimento prévio,
mesmo que mínimo, das histórias em quadrinhos. O que determina de quem é a voz
da narração é o posicionamento do balão na tela. Sem ele, seria impossível saber
qual das personagens se chama Amanda, e qual está lendo o bilhete, por exemplo.
A respeito da trilha sonora, pude perceber que aqui o silêncio também tem
grande importância para a navegação. Quando a trilha sonora cessa, e o silêncio se
instaura, o leitor sabe que chegou a hora de tocar a tela e passar para os próximos
86
Optei por ativar a opção Show Page on Enter, para manter uma visualização
da página inteira, antes de ver isoladamente cada quadro na tela. Também ativei a
opção Totate Automatically, para facilitar a visualização das animações de transição
nos momentos em que os quadros alternam entre verticais e horizontais. Com esta
91
opção ativada, não foi necessário virar o iPod para ajustar o quadro à tela e foi
ativada uma animação que mostra a imagem girando (figura 26) para se posicionar
na posição correta, evidenciando mais marcas de audiovisualidades que acabam
discretizadas na configuração original, onde a transição ocorre ao girar o dispositivo.
TELA DESCRIÇÃO
Tela 1: A primeira tela mostra a página inteira. É
possível ver que ela é composta por quatro
quadros, que estão parcialmente sobrepostos
uns aos outros. O layout evidencia que o
planejamento da edição priorizou a edição
impressa.
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TELA DESCRIÇÃO
Tela 1: Na exibição da página inteira, vê-se que
a composição é formada por cinco quadros.
Embora não existam sobreposições dos
requadros que delimitam cada quadro, a página
apresenta personagens e um balão que vazam
de um quadrinho para o outro.
TELA DESCRIÇÃO
Tela 1: A tela reproduz uma digitalização da
página originalmente publicada na versão
impressa em 1985. No canto inferior direito, é
possível ver o crédito da digitalização para o
estúdio Wildstorm. A página apresenta quatro
quadros, sendo três deles horizontais e um
vertical.
TELA DESCRIÇÃO
Tela 1: Tela mostra a página inteira, dividida em
cinco quadros. Página apresenta elementos
vazados de um quadro para outro.
TELA DESCRIÇÃO
Tela 1: A constituição desta página de Smallville,
apresentada na tela, segue as instruções dadas
aos artistas da DC Comics no manual de
produção para quadrinhos digitais (Apêndice A).
A página é diagramada em formato horizontal e
os quadros, assim como o balonamento foram
pensados para um melhor ajuste na tela de
dispositivos móveis. Com isso, nesta página não
são necessários giros nas transições. É como
se, após o zoom inicial, uma câmera deslizasse
de um quadro a outro e também dentro deles,
quando necessário.
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5.3 LUTHER
em Luther sequer há uma página configurada na maior parte da HQ. Nos novos
meios a página e o requadro possuem função quase que idêntica, uma vez que
ambos não são o limite físico final da AppHQ. Tanto página quanto requadro são
convenções de limites traçados dentro de um suporte.
Mesmo em Smallville Season #11, planejada para ser exibida em aparelhos
com tela sensível ao toque, a página é ainda uma espécie de requadro primordial e
não um limite físico. A página na AppHQ está para a tela como os requadros estão
para as páginas na HQ impressa.
Alguns recursos da AppHQ podem também levantar dúvidas sobre a real
natureza destes produtos. Não se pode afirmar que são de fato quadrinhos e nem
que deixam de ser, mas esse não é o debate principal que queremos trazer aqui. A
AppHQ se constitui como algo que agrega características de quadrinhos em um
ambiente no qual suas molduras, que são territórios de significação (Kilpp, 2004)
são, muitas vezes, resignificadas. Da mesma forma, há a ressignificação de
molduras do audiovisual na articulação interna destes produtos. A ativação dos
recursos de automatização da rotação das páginas, por exemplo, mostrou que o
audiovisual pode ser fazer presente em vários níveis na AppHQ. As animações
acabam por não remeter apenas ao audiovisual em si, mas também ao movimento
de virar de página impressa dos quadrinhos. A automatização, um dos princípios
apontados por Manovich (2006) como fundamental dos novos meios, é uma marca
muito perceptível nas AppHQs. Se o usuário entendia facilmente, através da
experiência, como se dava o virar de página nas HQs impressas, nas AppHQs ele
não tem acesso à programação que faz ocorrer a animação. Contudo, o princípio da
transcodificação cultural, ainda faz com que, apesar de todas as articulações com as
macromolduras audiovisual e software/interface, o usuário ainda tenha plenas
condições de reconhecer as AppHQs como quadrinhos. De certa forma, parece que,
ao fazer a dissecação e refletir sobre meu problema, estou tentando revelar as
características dessa transcodificação e mais especificamente qual o papel que as
macromulduras exercem nela.
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6 APONTAMENTOS TRANSITÓRIOS
REFERÊNCIAS
BUXTON, William. Sketching user experience: getting the design right and the
rightdesign. São Francisco: Morgan Kauffman, 2007
FLUSSER, V. 2002. Filosofia da Caixa Preta: Ensaios para uma futura filosofia da
fotografia. Coleção conexões. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
RAMOS, P. O Impacto dos Blogs para a Produção de Tiras no Brasil. In: I Jornadas
Internacionais de Histórias em Quadrinhos. In: 1as Jornadas Internacionais de
Histórias em Quadrinhos da ECA/USP, 2011, São Paulo. Anais eletrônicos... das
1as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da ECA/USP. São Paulo:
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2011. v. 1