LIvro Jogo de Palavras

palavras Carlos Ney
Jogo
de
Assim como o primeiro, OS 100 CONTOS DE RIS, lanado em maio de 2010, este livro tambm foi escrito em Araruama (RJ), onde o autor reside atualmente. A opo por contos curtos explicada por ele como um cacoete decorrente da linguagem publicitria. Com passagem pelos principais jornais da cidade, com os quais colabora desde 2003, alm da fascinante experincia ancorando um programa de entrevistas, em rdio, Carlos Ney sempre usou e abusou da facilidade em manusear as palavras, criando por conta disso um estilo inconfundvel de transformar artigos em crnicas. E mesmo quando, movido pela indignao, carrega nas tintas, jamais abre mo do humor e do respeito, motivo pelo qual to conceituado. Com o JOGO D E PA L AV R A S , e l e pretende retribuir o carinho com que a cidade o acolheu, fazendo do livro, que no ser c o m e rc i a l i z a d o , u m presente de Araruama p a ra a s b i b l i o te c a s pblicas municipais do Estado do Rio de Janeiro.
Carlos Ney
Jogo de Palavras
1 Edio Outubro - 2011 Above Publicaes Vila Velha - ES
Carlos Ney
Jogo de Palavras
Apesar de sermos to diferentes, nossas vidas so contadas com as mesmas palavras. Assim, o destino de cada um sempre depender da ordem em que o acaso colocar as letras.
Jogo de Palavras
1 edio Autor Carlos Ney Publicitrio Jornalista Cronista Reviso Ortogrfica: Prof. Urias Bilio Capa: Clovis Brasil [email protected] Projeto Grfico Carlos Henrique Pimentel CHP Designer http://projetolivropronto.blogspot.com/ Editorao Eletrnica: Marcos Serpa e Andra Borba [email protected] Saiba mais em: www.blogdocarlosney.blogspot.com Publicado pela Editora Above Copyright 2011 Above Publicaes
Todos os direitos reservados pelo autor. proibida a reproduo parcial ou total sem a permisso escrita do autor.
Palavras que ficam

Confesso que o convite para escrever a apresentao do livro do Carlos Ney foi uma agradvel surpresa. Segundo ele, fui o primeiro poltico araruamense que conheceu, logo que comeou a colaborar como redator do jornal A VOZ, em 2003. De l para c, nos encontramos muitas vezes. Ele como entrevistador para os diversos jornais pelos quais passou, alm de programas de rdio, eu, ainda como vereador, depois candidato e atualmente prefeito de Araruama. Dono de estilo prprio, por vezes contundente em suas afirmaes, destacou-se por sua iseno como analista do nosso cotidiano poltico, mas sem perder a sensibilidade e a irreverncia do cronista. Seu primeiro livro, OS CEM CONTOS DE RIS, lanado em nosso Teatro Municipal no ano passado, comprovou isso. Agora, lanando o segundo livro, JOGO DE PALAVRAS que, assim como o anterior, no ser comercializado, pede ao amigo Andr Mnica que participe de sua obra. Como araruamense, sinto-me feliz em ver nossa cidade inspirando a criatividade de artistas e escritores. Mais ainda pela reintroduo da Casa de Cultura, como cenrio para esta e as outras grandes manifestaes culturais que aqui ocorrero. Isso porque, alm de sua importncia na histria da cidade, a Casa de Cultura faz parte de minha histria pessoal, j que aqui, ainda menino, velei o corpo de meu pai, de to saudosa lembrana. Que fique, portanto, registrado meu carinho e respeito pelo autor, juntamente com minha admirao por sua obra, esperando que ela ultrapasse as
nossas fronteiras municipais e fale de ns para as outras cidades fluminenses. E que meu gesto de carinho e admirao se estenda a cada um dos nossos artistas - de todas as artes - que com seu talento e dedicao, ajudam a fazer nossa Araruama ainda mais linda.
Um cara chamado Carlos Ney

Eu e o Carlos Ney fomos colegas de redao do jornal A VOZ, em 2003. Tivemos, ali, pouqussimo contato. Mas, algum tempo depois, eu tinha nas mos um problemo. Havia me comprometido com apoiadores, a lanar meu prprio jornal, o ROTA DO SOL, juntamente com o renomado e experiente jornalista, Braz Pellozi. O objetivo pretendido era adotar uma linha opinativa. Mais do que noticiar, desejvamos comentar o fato poltico, deixando clara a linha editorial do jornal. Com data pr-determinada para colocar o primeiro nmero nas ruas, sou comunicado pelo Pellozi de que, por motivo de sade, ele no poder dar sequncia ao projeto. E agora? Foi quando procurei o Carlos Ney. Juntos, produzimos o primeiro nmero do jornal. E outros que se seguiram a ele. A, eu pude conhecer bem o cara. Um profissional de jornalismo comprometido com a tica. Com texto agressivo, mas sem ser desrespeitoso, ele jamais cruzou a linha que separa o fato da interpretao. Mais importante ainda, nunca fez uso do jornal para obter vantagens pessoais. Na campanha eleitoral de 2004, o JRS promoveu o primeiro debate entre candidatos, numa emissora de rdio, em Araruama. A Rdio Mar Aberto, por ser comunitria, permitiu que se fizessem programas realmente democrticos. Como os candidatos no pagavam nada para comparecer, respondiam todas as nossas perguntas.
Ficamos separados, eu e o Carlos, por algum tempo. Eu, envolvido com problemas pessoais, ausentei-me de Araruama. Mas sempre lia artigos ou crnicas suas, nos nossos jornais. Por essas voltas que o destino d, hoje estou dirigindo a Rdio Mar Aberto (FM 98,7) e com ele colaborando no jornal O CARAPEBA. Quase que na mesma data, ano passado, lanamos nossos livros. Eu pedi a ele que escrevesse uma apresentao para o meu, TODAS AS CORES DA POLTICA DE ARARUAMA. Ele me retribui agora (apesar de convidado, estava impossibilitado de escrev-la para o primeiro dele, OS 100 CONTOS DE RIS). Acho que, aps contar essa histria, s me resta dizer que se precisasse de algum para juntos fazermos o melhor jornal de Araruama, eu chamaria o Carlos. E precisando de um amigo, chamaria o Carlos, tambm.
(Lo Anelhe o Jornalista Responsvel pelo jornal O CARAPEBA e dirige a Rdio Mar Aberto (FM 98,7), comunitria, de Praia Seca Araruama).
PALAVRAS DO AUTOR
Eu jamais tive inteno de escrever o primeiro livro de contos. Como acontece agora com o segundo, pouco mais de um ano depois. Eu que sempre escolhi meus caminhos nem sempre os mais fceis observo que no consigo aprisionar a arte que flui atravs dos meus dedos e que parece ter vontade prpria. Apesar de ainda hoje compreender muito pouco do processo de criao, persisto na certeza de que sou mais instrumento do que autor. Com todas essas certezas e dvidas, preparei mais esta fornada de contos, entremeados de algumas crnicas e uns quase-poemas, num caleidoscpio formado por fragmentos das vidas de todos ns. Porque, se voc olhar com bastante ateno, de ns mesmos que estamos falando. To despretensioso quanto o primeiro, este livro prope mexer com a emoo do leitor, oferecendo sorrisos e umas poucas lgrimas; o acar e o sal com que temperamos a vida.
Este livro dedicado a duas mulheres: minha me, autora da minha vida, e minha mulher, que fez algumas correes no projeto original.
AGRADECIMENTOS
No poderia deixar de registrar minha gratido aos que foram parceiros na concretizao da idia. Apesar de profissionais, compreenderam a proposta de publicar, para distribuir gratuitamente, livros em Araruama, dividindo comigo o mrito da obra. Sem sua ajuda, isso no seria possvel: publicitrio Carlos Henrique Pimentel (projeto grfico), jornalista Marcos Serpa e Andra Borba - Studiolagos Publicidade (editorao eletrnica), engenheiro e professor multilinguista Urias Bilio (reviso ortogrfica) e o artista plstico Clvis Brasil (capa). Aos profissionais da comunicao que fizeram de tudo para que eu virasse celebridade, abrindo espao para a divulgao de ambos os livros: jornais A Voz, Correio da Cidadania, Hora Certa, O Carapeba, Jornal da Cidade, Marola, Lemos, Vitrine, La Femme, Mataruna Esportivo, Revista Contedo. As emissoras de rdio, Costa do Sol AM 560 e Rdio Mar Aberto FM 98,7. Ao prefeito Andr Mnica (que aceitou escrever a apresentao do livro) e esposa, a secretria de Poltica Social, jornalista Paula Pgas. Ao sub-secretrio de Cultura, professor Ricardo Adriano, pela cesso do Teatro Municipal (lanamento de OS 100 CONTOS DE RIS) e, agora, da Casa de Cultura de Araruama. Ao Colgio Estadual Edmundo Silva, FAETEC e Biblioteca Municipal de Araruama. Cmara de Vereadores, como um todo, pela concesso da Moo de Aplausos, por iniciativa do vereador Norberto, quando do lanamento do meu primeiro livro.
Aos amigos da divulgao, Marcos Serpa, Andra Borba, Fernando Campos e Jaida Mundim. Maria Regina (Mar), que leu com olhos de amiga e comentou os originais, e seus colegas das artes plsticas da Regio dos Lagos, pela fora. Sem esquecer de Silvino Jorge e do jornalista Lo Anelhe.
Sumrio
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O ESPRITO DA COISA EM FAMLIA DEUS ME LIVRE DELES! DE MOS DADAS O REENCONTRO MINHA RUA O ANJO DA NOITE QUADRINHOS A ESCOLHA SAGRADA FAMLIA DOIS PRA L, DOIS PRA C O COMPLEXO DE DIGENES DEPOIS QUE VOC FOI EMBORA UM POR TODOS E TODOS POR UM A SABEDORIA DAS MARS ASSIM , SE LHE CONVM AZAR A MULHER DA BUNDA GRANDE O CRIME NO COMPENSA UMA MENTIRA FABULOSA O DIA DEPOIS DE AMANH COMO UM BLUES DE FINAL DE MARO TARDE DEMAIS AS VAMPIRAS O MISTRIO DO 7 ELEMENTO EU HOJE FALEI COM MEU ESPELHO E ELE NO ME RESPONDEU O LADO ESCURO DA RUA CENA CARIOCA
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O ENTERRO DO ANO O PORCO QUE QUERIA SER ASTRONAUTA CACHORRA! O SORRISO VERTICAL A HORA H MULHERES: QUEM PRECISA DELAS? DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA AMOR PONTO COM NA LNGUA DO P ACALANTO A GAROTA DA CAPA PORCO DOURADO LETRINHAS MGICAS O MONSTRO DA LAGOA SUJA O JOGO DO SCULO UNI, DUNI, TE UMA NOITE LONGA DEMAIS O CONTADOR DE HISTRIAS FAMLIA TUDO DE BOM! TIRANDO ONDA O VIRA INJUSTIA DIVINA O CASO DO ANO VOADOR EI, VOC FOI EMBORA TO DE REPENTE QUE EU NEM TIVE TEMPO DE TE DIZER... TESTEMUNHA OCULAR DA HISTRIA A IGREJA DO QUADRADO CIRCULAR O DIA EM QUE SATANS TROCOU 2 DEDOS DE PROSA COM O CAVALEIRO DA TRISTE FIGURA SEUS OLHOS MORTINHO DA SILVA
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A DOCE AMLIA ERA UMA VEZ... ISSO A, BICHO! O LTIMO SAMURAI ALGUM QUE EU DEIXEI PARA TRS O LTIMO PASSO SUAS MOS EM FABULANDIA TODO DIA DOMINGO AT QUE A MORTE OS SEPARE O ROUBO DA PENA DOURADA DO RABO DO FAISO SAGRADO DE ZANZIBAR 141 SOMBRA DA VELHA GOIABEIRA 142 TIME IS MONEY 144 OUVINTE NA LINHA 146 O LABIRINTO 148 A NOITE DO ESPANTALHO 151 ROMEU E JULIETA 154 A LENDA DA CARAPEBA ENCANTADA 155 DE MUITO DISTANTE 156 UMA SITUAO BEM PATOLGICA 157 A VELHA! 159 A CIDADE DAS SOMBRAS 162 A GATA DE BOTAS 163 MACAQUINHOS NO STO 165 A GOSTOSA DA MINHA RUA 166 A VIVA MINNYE 173 BANDIDO BOM BANDIDO MORTO 175 O NOME DO JOGO 193 TODAS AS MULHERES DO MUNDO 195 MALDITA INTERNET! 197 O CASO DO SEQUESTRO DO GAROTO
O esprito da coisa
Acordei tossindo, com a sensao de que no podia mais espirar. Meu corao cavalgava feito um potro louco, ameaando pular do meu peito, enquanto um frio glacial me congelava os ossos. Mas o pior era o cheiro. Um cheiro insuportvel de... Enxofre! O grito que eu dei, veio junto com a certeza de que estava vivendo o meu maior pesadelo. Ela estava ali, sentada na beira da minha cama, no maior relax, como se no estivesse morta e enterrada debaixo de sete palmos de terra. A minha sogra! A prpria viso do inferno. E nem adiantava tentar entender a lgica da coisa, j que minha mulher viajara s pressas para a Paraba, s para assistir ao enterro dela - a mocria estava morando l com a outra filha, depois de quase mandar para a cucuia o nosso casamento. Ah, mas eu deveria ter imaginado que nem o coisa ruim aguentaria este drago por muito tempo. Agora ela est aqui! A confirmao de que, realmente, existe vida aps a morte. E que o inferno no assim to longe. A jararaca voltou das profundezas, s para roubar minha paz. Pior ainda, ela foi logo dizendo - numa voz de alma penada e um bafo azedo de carnia - que veio para ficar. E eu nem posso mat-la. Ah, isso no vai prestar! Muito mais do que apavorado, eu estou indignado, me sentindo trado. Afinal, ou bem a pessoa morre, ou no morre. Isso de ficar indo e vindo,
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a maior sacanagem. E a megera est se achando, passeando pelo meu quarto, feito dona do pedao. Ser que cravar estaca no peito, adianta? Ah, no! Ela est bebendo da minha cachaa mineira, direto na garrafa. Depois de secar o pote, ela emborcou, atravessada na minha cama. E pelos roncos, no vai acordar to cedo. Mas que vai acordar vai, porque a desinfeliz no faz pela metade, quando o assunto azucrinar este cristo. Enquanto est apagada, vou espalhando as velas acesas em volta da cama, e me pegando com tudo que santo que conheo. E como o milagre dos grandes, estou disposto a pagar qualquer promessa. E voc que est a s olhando? Por acaso tem alguma ideia de como que eu me livro deste encosto?
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Em famlia
Com passos cansados, Satans atravessou toda a extenso da imensa sala do trono, vazia naquela hora do dia. Das paredes, aprisionados nas molduras, rostos de antepassados seus fitavam-no com malignos olhos vermelhos. Um gemido escapou-lhe por entre os lbios ressequidos, quando empurrou a pesada cadeira de pedra para mais prximo da lareira. Com os cascos fendidos bem junto s chamas crepitantes, deixou o calor relaxar seus nervos. De uns tempos para c, fazia cada vez mais frio. Era o tal do efeito-freezer que, segundo especialistas, estava reduzindo a camada de enxofre. Culpa das mquinas de picol, de que os jovens capetinhas tanto gostavam. Mais uma vez, ele reconheceu que jamais deveria ter permitido isso. Depois de tantas centenas de anos infernais, lanando mo de todas as artimanhas para garantir a supremacia do mal sobre o bem, a coroa j lhe pesava sobre os chifres, e ele sentia que j no tinha o pulso forte de antes. Claro que deveria ter abandonado o barco no dcimo sculo, como o fizeram antes dele cada um de seus ancestrais. Mas s de imaginar seu filho reinando absoluto sobre todas as foras das trevas, o pnico tomava conta dele. O garoto era um desastre! Herdara da me, alm dos traos finos, o sorriso que ficaria bem melhor em um querubim. E desde que era s um diabinho mirrado, o moleque s se interessava por livros, msica e poesia. O fato que Satans sempre se
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culpou por ser um pai ausente. E, depois que sua mulher morreu, to jovem, ele comeou a mimar demais o guri. Acordes dissonantes de uma melodia, chegando at seus ouvidos, acabaram com o resto de paz que ainda tinha. Afundando o rosto horrorizado nas mos, ele abandonou-se ao desespero. Lembrava-se agora de que ontem, aqui mesmo nesta sala, Deminho havia dito que estava tocando lira eletrnica, e que pretendia formar uma banda de rock pesado: os Anjos do Inferno. E a alegria do garoto era to grande, que o velho Sat, contra toda a lgica do Universo, apenas balanou a cabea assentindo, incapaz de dizer a palavra que precisava ser dita. No bastassem aquelas roupas esquisitas e os cabelos compridos. Sem pensar, o velho ergueu os olhos e suspirou: Deus, onde foi que eu errei? E apenas o estrondo assustador do maior dos troves, fazendo estremecer o palcio, respondeu a tamanha blasfmia.
Deus me livre deles!

Tenho medo dos que falam em nome de Deus, e usam com intimidade Suas palavras, porque adivinho neles as fraquezas. Tenho medo dos que escrevem sobre si prprios, porque jamais se revelaro em seus textos. Tenho medo dos sbios, porque aprendi que ningum sabe o bastante para ensinar sabedoria. Tenho medo do dinheiro, do seu poder de decretar fartura ou misria. Tenho medo do juiz e dos que aplicam a lei, pois jamais sero to inflexveis consigo prprios ou qualquer dos seus. Tenho medo da minha coragem, porque ela jamais dever ser maior do que o bom senso, mas nunca pequena a ponto de me impedir de defender minhas convices. Tenho profunda insegurana quanto ao propsito da vida, naquilo que ela tem de mais misterioso: a razo pela qual fui escolhido. Quais aes o Criador esperava de mim, ao delegar-me esta existncia, e o castigo que receberei por ter falhado em tantas delas. Confesso, sim, o meu terror colossal pelo inferno, como definitiva morada da minha alma. No tanto pelo senhor das trevas com quem jamais tive qualquer intimidade mas, pela certeza de que reencontrarei ali, um a um, todos os canalhas por quem, uma vez ou outra, cruzei neste meu mais de meio sculo de estrada.
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De mos dadas
Quem nunca veio a um hospital durante a noite, quando o silncio to espesso que at assusta, no conseguir imaginar a sensao de tamanha solido que cerca os compridos e frios corredores. Mas, por instantes, esse silncio foi quebrado pelo rudo montono das rodas da maca. Sobre ela, coberta at o pescoo, uma criana de dez anos, da qual se v apenas o rosto. Quando a maca ultrapassou as portas de vai-e-vem da sala de cirurgia, mdicos e auxiliares j esperavam por ela. Num canto afastado, longe o bastante para no atrapalhar, mas perto o suficiente para que a menina pudesse sentir sua presena, ele a observava. a sua filha que ali est, prestes a ser operada. A equipe mdica movimenta-se com a eficincia que s a longa prtica proporciona. Mas, como bom observador que , percebe nos gestos de cada um deles, a tenso de quem sabe que tem pela frente uma tarefa extremamente difcil. Enquanto as horas passam, os movimentos deles, bem como o rudo metlico dos instrumentos, vo tomando um ritmo mais acelerado. De seu lugar, ignorado por todos, ele consegue pressentir o cansao e a tenso que vo tomando conta de cada profissional; o envolvimento deles, sua determinao. Na memria, ele rev os momentos que marcaram a vida de sua filhinha nos cinco primeiros anos, quando ele esteve sempre to presente, acompanhando cada
descoberta dela, e todas as suas aventuras. Dando-lhe a mo, guiando seus passos, sabendo ouvi-la. Eles sempre foram to unidos... Era uma relao mgica, esta a palavra, que transformava cada momento que compartilhavam, numa ocasio muito especial. Entendiam-se, muitas vezes, sem a necessidade de palavras; apenas por gestos e olhares. E conversavam sobre tudo, o que sempre o surpreendia, j que ela era to pequena. At os cinco anos, ele jamais a deixou s. Depois, repentinamente, teve de afastar-se. Ele sabe que no teve culpa, j que a escolha no foi sua. Mas tem certeza - e foi o que mais o entristeceu que o seu sbito desaparecimento magoou profundamente a menina. O rudo do equipamento eletrnico, aumentando a intensidade dos bips, o trouxe de volta realidade da sala de cirurgia. O movimento da equipe era agora mais agitado. Nos rostos, parcialmente cobertos pelas mscaras, via-se o cansao e a sensao da derrota que se anunciava. Mesmo lutando uma batalha que sabiam ser impossvel, eles no se entregaram. Tentaram de tudo. Algum tempo depois, a criana levantou-se e veio at ele.Abraados, pai e filha foram embora. Um a um, os membros da equipe de cirurgia deixaram a sala, exaustos e inconformados. Ali deitada, sozinha agora, a menina parecia dormir tranquilamente, tendo no rosto uma expresso de puro contentamento.
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O reencontro
Eram outros tempos, e as coisas eram feitas daquela forma. Meu pai, rico proprietrio de terras, levou-me at l, na vspera do meu aniversrio de quinze anos. O casaro antigo, de dois pavimentos, um pouco afastado do centro da cidade. Era, por fora, igual aos outros tantos que por ali existiam. Um homem negro, o mais bem vestido que jamais vi, abriu-nos a porta. Isolado por grossas cortinas que cobriam inteiramente seus janeles, o imenso salo, tomando quase toda a extenso do andar inferior, era iluminado por pesados lustres de cristal. Em toda a volta, mesas, sendo a maior parte ocupada por casais. De algum lugar, soavam os acordes suaves de um piano. Aos meus olhos, aquele era um castelo que s existia nos livros. A mais linda mulher que eu j havia visto, caminhou at ns, cumprimentando meu pai com respeitosa intimidade. Eu no conseguia desgrudar os olhos do decote dela. Em ateno ao meu pai, assegurou que ela mesma faria as honras da casa. Dando-me o brao, levou-me at o bar, pedindo champanhe para ns dois. Sem pensar, procurei a aprovao do meu pai. Percebendo meu embarao, ela apertou meu brao e sorriu. Acho que foi naquele momento que me apaixonei de verdade. Do resto, lembro-me pouco. O champanhe venceu meus receios, e eu abri meu corao. Na certeza de ser correspondido, fiz amor com ela. Depois disso, jamais tornei a v-la... at hoje.
Amanda e eu resolvemos nos casar, aps um namoro de dois intensos e loucos anos, numa cerimnia simples e sem convidados. Hoje, em nossa lua-de-mel, ela me trouxe para conhecer sua me. Olhando-as agora, uma ao lado da outra, pergunto-me como foi possvel jamais haver percebido a extrema semelhana entre as duas. Enquanto o sol se perdia por trs do horizonte, e um vento outonal desprendia as folhas douradas das amendoeiras, o tempo pareceu enlouquecer, e diante de mim, nos mesmos olhos e sorrisos, passado e futuro tornaram-se uma coisa s. Depois, quando o silncio j ameaava tornar-se acusador, tomei minha deciso. Por ser a nica coisa a ser feita, abri o meu melhor sorriso. E, tomando entre as minhas a mo da minha primeira amante, beijei-lhe respeitosamente as pontas dos dedos. S a voz tremeu um pouco, quando eu exclamei as palavras de praxe: Muito prazer!
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Minha rua
Hoje, sem mais nem menos, me pego a caminhar sobre meus prprios passos, desenhados num tempo em que era tudo to mais simples, e o mundo cabia inteiro nos limites da minha rua. Com os olhos da memria, avalio cada muro e cada canteiro, percebendo neles as marcas dos anos. Tudo to igual, tudo to diferente. A comear pelos sons. Calaram-se os pssaros e tambm as crianas. Existem muito mais carros e grades. Os velhos sorrisos mudaram-se daqui. Portes, antes sempre to abertos, trancam-se agora, com uma desconfiana toda nova. Na minha memria, o ano dividia-se em aulas e frias, numa simplicidade que envolvia por inteiro as nossas vidas. E cada coisa no seu tempo, j que existiam tempos e pocas. Tempos de soltar pipa, de jogar bolinhas de gude, de soltar balo, e de fantsticas corridas de carrinhos de rolim. Todos eles religiosamente observados, sem que ningum pensasse em alterar o calendrio, exercendo tais atividades em tempos imprprios. E mesmo hoje, eu nem sequer sei quem nos dizia onde se iniciava um tempo e terminava o outro. J as pocas, eram determinadas pelas frutas. Mamo, goiaba, manga, sapoti, jamelo, jabuticaba, amora, carambola e jaca, se ofereciam fartas, nos quintais da minha infncia. Nas avenidas de rvores de tamarindo, crianas e frutos se apinhavam nas tardes de intensa ventania.
Passo pela casa do Gordo, do Marcelo, do Pepe, esperando que a qualquer momento algum deles aparea, ou grite meu nome. Em frente ao prdio verde, olho para cima. A janela da Lia est fechada. Deus, como eu amava aquela garota! At conhecer Marina, com os maiores peitos que eu j tinha visto. Marina foi a primeira mulher que eu levei para a cama, embora ela jamais soubesse disso. E a sua presena era de tal forma intensa nas minhas noites, que eu quase podia toc-la, encharcando os lenis de suor e de indecncias. O porteiro do prdio, perguntando-me se eu estava procurando algum, despertou-me. Sem perceber, eu ficara ali parado, olhando para cima, tendo no rosto o sorriso idiota dos apaixonados. Claro que ali no morava mais nenhuma Lia; nem a Marina, o Gordo, Marcelo ou o Pepe. Foram-se eles todos, como os dias e as tardes da minha infncia. No existem mais, como as goiabas e os sapotis, dos quais eu ainda posso, s vezes, sentir o gosto adoando minha boca. No silncio que restou, meus passos repercutem na calada, e so como uma cano triste que me acompanha enquanto caminho de volta, no sentido inverso da felicidade. E esta cano triste, ecoando naquela rua morta, a prova do quanto a vida deixou de fazer sentido.
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O anjo da noite
L pelas tantas, Ranulfo despertou sobressaltado e com a incmoda certeza de que havia algum, alm dele, no seu quarto. sua volta, a escurido era total. Tentou apurar o ouvido, cata de algum som denunciador, mas o galope acelerado de seu corao tornava isso impossvel. Tateando, buscou encontrar na mesinha de cabeceira, os culos salvadores. Foi quando uma voz de Cid Moreira reverberou pelas paredes, liquidando com o ltimo vestgio da sua j limitada coragem. Volte a dormir, que voc est sonhando! Talvez s por burrice, Ranulfo ainda perguntou: Tem algum a? Sim. Sou o seu anjo da guarda. Com olhos de puro xtase, ouvindo emocionado sinos badalando os sagrados cnticos, Ranulfo exclamava maravilhado: Milagre, milagre! Mas quando estava prestes a ajoelhar-se, rendendo homenagem ao celestial visitante, Ranulfo se deu conta de que estava inteiramente nu, por baixo da coberta. E sua vergonha foi maior que a devoo. Enquanto isso, seus olhos mopes tentavam vislumbrar na escurido do quarto, aquele ser de luz, com seus cachinhos dourados e asinhas prateadas. Mas, nada! Apenas uma imensa mancha
escura. Quando a mancha escura se mexeu, Ranulfo no se conteve, e exclamou horrorizado: Mas voc um nego! A ousadia da acusao, mesmo desmentida pela voz fina e gaguejante, foi cortante como faca de aougueiro. Com movimentos lentos, o gigante de bano chegou-se mais para perto dele. As passadas rpidas repercutiam no pequeno aposento, como marretadas desferidas contra o cho. O visitante, com o rosto to prximo ao de Ranulfo, que este sentiu- lhe o bafo alcolico, respondeu secamente: Tava esperando quem? Cada um tem o anjo da guarda que merece! E enquanto ensacava os objetos mais vistosos que suas grandes e geis mos encontravam, o arcanjo Tio (foi assim que ele disse chamar-se) fazia severo discurso contra o materialismo de Ranulfo, e a favor da distribuio de renda. E no adiantou Ranulfo argumentar, por entre lgrimas, que morava num muquifo (janela e porta conjugados), e que seu salrio mal dava para chegar ao fim do ms. Por ltimo, foram-se as derradeiras notas de sua j magra carteira, engolidas por aquele saco que parecia no ter fundo. Depois, j saindo, o anjo da noite deu um ltimo aviso, que aos ouvidos acovardados de Ranulfo, soou como ameaa: De hoje em diante, eu no vou mais deixar voc sozinho. Depois desta experincia mstica, Ranulfo quer mais que o diabo o carregue.
30 | Carlos Ney
Quadrinhos
Batman lanou o olhar treinado para o relgio, enquanto colocava a lasanha ao molho siciliano, no forno para gratinar. O prato favorito de Robin. Cinquenta minutos, ele pensou: o tempo exato para um banho e a loo hidratante. Depois, jantar luz de velas, dando o toque romntico. De passagem, revisou pela centsima vez a mesa posta para dois. Outra vez, ele sentiu falta de Alfred - o mordomo dos Wayne -, que esteve sempre ao seu lado, desde os oito anos, quando assaltantes de rua mataram os seus pais. Por conta disso, o Homem-Morcego foi criado. O justiceiro implacvel que varreu o crime das ruas de Gotham City. Agora, aposentado, vivia para o seu amor, feliz em ser apenas o Bruce, do Robin. Numa outra cidade, claro, mais tolerante. Hoje, dez anos depois, ele espera por seu amado. Ele esqueceu, com certeza, do nosso aniversrio. E os dez anos desfilam por seu pensamento, arrancando um sorriso nostlgico. Ultimamente, alegria e tristeza tm sido mais frequentes, causando mudanas sbitas do seu humor. Isso, e a insegurana. A diferena de idades, sempre ela, lembrando que os relgios de ambos correm em velocidades diferentes. No incio, os vinte anos que os separavam sequer eram lembrados. Com 28 anos de idade, Bruce era um heri, aos olhos de menino, de Robin.
Com carinho de tio, ele ensinou ao jovem pupilo que havia sido adotado por um primo seu, j falecido todas as tcnicas de ataque e defesa que fizeram deles a dupla de mocinhos mais famosos do mundo. Agora, Robin quem administra o conglomerado Wayne. H alguns anos, Bruce abriu mo disso, para passar mais tempo em casa. Mas Robin foi luta. Assim que se formou, dedicou-se aos negcios com tanto empenho que, agora, o principal executivo do gigantesco empreendimento. Para Bruce sobrou a vida domstica. Na cozinha, seguindo a orientao de Alfred, descobriu uma nova forma de realizao. Adoro esta casa ele pensa enquanto os olhos pousam em cada pea valiosa que foi colecionando no correr dos anos, nas viagens que fizeram pelo mundo, numa lua-de-mel que parecia interminvel. A vida quase perfeita, faltando s um tantinho assim para que o seu orao se aquiete. Olhando para o espelho do banheiro, corre os dedos elas rugas ao redor dos olhos. Os cremes, carssimos, j no esto funcionando. Depois, dando um passo atrs, ele deixa cair a toalha, mostrando-se de corpo inteiro. Um gemido involuntrio escapa de seus lbios, ao constatar que a cintura est cada vez mais larga. E Robin que no chega...
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A escolha
Desde que a lembrana alcana, ns estvamos sempre juntos. Dois garotos da mesma idade, vivendo dias despreocupados, numa poca em que a maldade ainda no havia sido inventada. A semana inteira, eu ia para casa dele imensa com um quintal que abrigava mangueiras generosas. Mocinhos e bandidos das nossas brincadeiras, nem percebemos que o tempo passava nossa volta. At que, adolescentes, ele rumou para outra vida, em So Paulo - assim que seu pai assumiu a direo da fbrica do sogro e eu tive de meter a cara nos livros, brigando por uma vaga difcil na universidade pblica. Nas frias, nos dois primeiros anos, eu ia para o stio deles, no interior paulista. Depois, tendo de conciliar estudo e trabalho, s nos comunicvamos por cartas. E mesmo essas, na medida em que o tempo me faltava, foram escasseando. Faz quinze anos que no nos vemos. Claro que eu tinha como certeza, o fato de que ele estaria numa boa, tocando os negcios da famlia. Jamais imaginei que alguma coisa pudesse sair errada para ele. Por isto, to difcil acreditar no que vejo agora. Mas ele! Eu o reconheo, mesmo com os cabelos desgrenhados, a barba imensa e as roupas imundas. Logo ele que sempre foi to vaidoso. Sentado na calada, com olhar vazio, indiferente ao movimento das pessoas, a imagem do meu amigo de infncia
um grito desesperado de socorro. Meses antes, eu teria atravessado a rua atravessado o tempo e o levantaria da calada imunda, abraando-o sem qualquer constrangimento. Meses antes... A verdade que a vida nunca foi fcil para mim. A luta pela sobrevivncia sempre foi acirrada, e este processo consumiu cada um dos meus sonhos. Alm de toda minha energia. O casamento com a mulher da minha vida foi bom s no incio. Agora nos odiamos mais do que nos amamos. Meses atrs, larguei a Defensoria Pblica minha ltima tentativa de mudar o mundo. Decidido a ganhar dinheiro, ingressei num grande escritrio de advocacia. L, eu e os outro vinte e quatro litigantes, pisamos uns nos outros, na tentativa de nos mantermos tona. Ento, o que eu posso fazer por este meu amigo? O apartamento em que moramos, pago pela minha mulher; e ela no esquece de me lembrar disso quase todos os dias. Um amigo fracassado, neste momento exato, tudo do que no preciso para consertar meu casamento. Por outro lado, que bem faria para as minhas aspiraes profissionais, ser visto abraado a um mendigo, quase na portaria da empresa? Assim, viro as costas para o meu amigo de infncia - e para o cara que eu um dia fui tornando a me juntar s pessoas que, como eu, precisam desesperadamente continuar vivendo.
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Sagrada famlia
Meu nome Jos. Ns somos em dois, eu e a Maria. A gente vive assim, de pura teimosia, correndo atrs das migalhas que a fartura dos outros desperdia. Servio, quando tem, abenoado. Seja de obra ou de capina, limpeza de terreno ou de fossa, at enterro de animal de estimao. Maria, vez por outra pega faxina, equilibrando-se nos parapeitos que separam o cu da rua l em baixo. Nos dias em que no h biscate, a gente corre por essas ruas todas, com um carrinho de mo que eu mesmo fiz, catando papelo e latinhas. Porque a fome, essa, meu senhor, tem todo dia. Assim a vida da gente. Em dezembro, vai chegar o nosso filho. O nome dele vai ser Jesus. Por isso, Maria est sempre rindo. Diz que agora sim, ns vamos ser uma famlia de verdade. Eu fico feliz com a felicidade dela, veja se o senhor me entende. S que de noite, s vezes, eu acordo sem mais nem menos, e me pego chorando. Eu tento falar com Deus, que mesmo Ele tendo se esquecido da gente, eu peo pra Ele olhar pelo nosso anjinho. Que Ele, que pai assim como eu vou ser, no permita nunca que essa criana venha para ser s mais uma, tendo de brigar de unha com a vida, como a gente, por qualquer pedao da parte que cabe, por direito, a cada um dos filhos Dele.
Dois pra l, dois pra c

Ela era simplesmente Ticha quando eu a conheci num show de rock, no Museu de Arte Moderna, no Rio. Eram os anos 80. Tempos de forte represso policial. A ditadura proibia qualquer forma de livre expresso e os jovens, com suas manifestaes, eram um alvo fcil. Comeamos a nos esbarrar desde ali, quase que diariamente, j que frequentvamos os mesmos lugares: o per de Ipanema, shows das bandas cariocas de rock (Vmana, A Bolha, Os Lobos), os baianos Gil, Caetano, Gal e Bethnia e outros tantos eventos da contracultura do Rio. Um dia ns descobrimos que ramos to exatamente iguais, que deveramos nos mandar de casa, pegando a estrada, no rumo de uma comunidade rural, como nos rocks rurais de S, Rodrix e Guarabira. Jamais fizemos isso. Os pais dela entraram no circuito e a mandaram para a Inglaterra. Ironicamente, seria para a Inglaterra dos Beatles que iramos, se tivssemos grana para isso. Hoje, numa festa de amiguinhos do meu filho, eu a reencontro. Est ainda mais linda. Minha cabea girava, enquanto apresentvamos nossos novos parceiros. E naqueles constrangidos momentos, ambos agamos como se fssemos outros, falando e sorrindo sem que soubssemos de qu e nem por qu. S nossos olhos continuaram os mesmos de 30 anos atrs.
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O complexo de Digenes
Quando Digenes recebeu do patro a notcia de que estava despedido, correu para casa, ansioso que estava em abafar, nos carinhosos braos da amada, a dor da ingratido. Mas chegou atrasado. Com o brao negro e musculoso sobre a mulher que era de Digenes, Chico, o mecnico, roncava desavergonhadamente na cama que era de Digenes. A indignao queria que ele gritasse bem alto a sua revolta. Mas a cautela o manteve calado. Afinal, vai que o nego acorda mal-humorado? Percebendo que sobrava naquele quadro familiar, decidiu abandonar a casa. Na sada, ainda trpego pelo susto, pisou no rabo do cachorro que - como um tapete peludo - espalhava-se junto porta. Levou uma mordida. E isto, na cabea conturbada de Digenes, foi a gota dgua. Sentindo-se perseguido pela humanidade, preferiu isolar-se dela. S com a roupa do corpo, tomando como norte a montanha mais distante que a vista alcanava, iniciou a jornada sem volta. E conforme os dias iam virando semanas, um fervor mstico comeava a tomar conta dele. Enquanto as semanas iam virando meses, a extrema solido agia naquele crebro doente, criando nele um cego fanatismo. Por isso, quando se viu diante da montanha que ele escolhera como destino, teve a iluso de que era o prprio Deus. E na crena de que subia os degraus para o cu, iniciou a penosa escalada. Quase no topo, encontrou uma gruta. Nela,
preservadas da chuva e do sol de anos a fio, as quinquilharias deixadas por algum outro que, como ele agora, resolvera dar uma banana para o mundo material. Dentre tudo, uma lamparina a leo chamou sua ateno. Agora, noite aps noite, ele caminha at o ponto mais alto da montanha, e com a lanterna erguida sobre a cabea, contempla, com olhos de pai, a cidade que se espalha sob seus ps, cumprindo a sina dos deuses, que de velar pelo sono de seus filhos. L de baixo, as pessoas olhando a chama que desafia o negrume da noite, divertem-se com a obstinao do louco da montanha.
Depois que voc foi embora

Agora eu j consigo ver o dia que comea a apontar por trs da linha de montanhas. Agora eu sei que, daqui a pouco, o vento cortante que encrespa a superfcie do mar, ir serenar, e os primeiros pssaros, com seu canto suave, iro saudar a nova manh. Agora eu sei que, por trs de toda a imensa tristeza da longa noite, existir sempre a certeza de um novo amanhecer. Em meu rosto, a lgrima secou. Porm, como um cristal que o tempo endureceu, mas que a lembrana preserva, ela est guardada ainda, como cada um dos nossos dias passados. Assim como todas as palavras e, tambm, os silncios mais eloquentes.
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Eu preciso dizer que, mesmo quando nosso amor era tanto que at doa, e o nosso mundinho parecia nos proteger da vida l de fora, s vezes eu me pegava olhando para a porta, com medo do que poderia se esconder por detrs dela. E eu no estava to errado, voc concorda? Depois, tudo se transformou numa eterna noite, cercada de frio, dor e irrealidade. E a noite foi to longa, que eu julguei que seria eterna. Hoje eu j consigo caminhar por esta estrada, que no tem fim nem comeo e, sozinho como jamais me lembro de ter sido um dia, no sentir pena de mim mesmo. E quando olho o mar quebrando nas pedras l embaixo, j no ouo o apelo das ondas me oferecendo paz, e insistindo para que eu mergulhe nelas, bebendo delas, respirando delas. Na verdade, foi quando eu comecei a ouvir sua voz, repetindo vezes sem conta que esta no era a sada; que desse jeito jamais tornaria a encontrar voc. Por isso - e s por isso - eu tive foras para lutar, contra mim, essa batalha de todos os dias, no desespero de todas as horas. At que pudesse ver, desenhando-se no horizonte distante, os primeiros raios do sol. E assim, eu vou caminhando por esta estrada sem fim nem comeo, e mesmo que a vontade de desistir seja ainda to forte, eu sigo adiante. E no vou parar nunca, enquanto puder sentir em meus dedos a suavidade da sua pele, a luz dos seus olhos guiar a minha vontade, e a doura da sua voz sussurrar, em meus ouvidos, que voc ainda me ama.
Um por todos e todos por um

Dartagnan, sou eu... A voz que hesita, demonstra claramente o enorme conflito entre ligar e no ligar Eu sei que no deveria estar telefonando para voc. Eu jurei que jamais faria isso. No depois daquela noite. ... Espere, me deixe falar. Voc acha que se no fosse to importante, eu estaria falando com voc? Estaria passando por cima do meu orgulho, depois das coisas horrveis que voc me disse? ... Voc pode escutar, Dart? Tem um bicho nojento me acuando na minha cozinha o gorducho Porthos falava aos berros, enquanto grossas lgrimas corriam dos seus olhos. - Eu estou trepado numa cadeira, armado com uma ridcula colher de pau, merc deste... deste... ... o bote. Voc no entende? Este animal horroroso est preparando
Ele est esperando eu descer. Mas eu no vou, nunca! Porthos, agora, chorava copiosamente. Bem prximo cadeira onde Porthos se equilibrava, um minsculo camundongo, indiferente ao pnico que causava, sentava-se sobre as patas traseiras, devorando com gula os sucrilhos que se espalhavam pelo cho.
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... Voc quer saber de Athos e Aramis? Eles esto viajando. Alguma surpresa? Agora eles quase no tm tempo para vir aqui. Estou s. Eu contra o mundo. ... um rato! Ser que voc no me ouve? Um rato imenso e feio. Porthos estava histrico agora. O bicho est olhando fixo para mim, com seus olhinhos malvolos, s esperando que eu adormea ou morra. O apartamento, de quatro quartos, na cobertura de um prdio de poucos andares na Lagoa Rodrigo de Freitas, fora herana dos pais de Porthos. Nos bons tempos, quando ele ainda estava casado com Dartagnan, todo dia era uma festa. Athos e Aramis - um casal que ele conhecera logo no primeiro ano de faculdade - eram artistas talentosos e loucos. Pintavam e esculpiam num ateli em Jacarepagu, mas viviam ali, transformando o apartamento em um circo. Era o incio dos anos noventas e, mesmo na zona sul do Rio, os quatro gays, morando juntos, criavam uma silenciosa hostilidade entre os demais condminos. Mas eles, jovens e felizes, nem se importavam com isso. Na cozinha, ainda aboletado sobre a cadeira, com o telefone sem fio grudado no ouvido, Porthos, dividido entre o pavor e o despeito, continuava fazendo o seu nmero. Est bem, doutor Dartagnan. No vou mais desperdiar o seu tempo. No preciso ficar me lembrando que voc tem milhares de clientes aguardando por voc. Claro, um psiclogo to famoso. Eu
vejo voc na tev, s vezes. Sempre muito ponderado, demonstrando imensa sabedoria. Parecendo estar muito bem. No final das contas, eu deveria ser um obstculo na sua vida. Um trambolho gordo e idiota. Sempre tirando mais do que dando. ... Como? Voc me pergunta o que que eu quero? Eu quero... eu quero... sua ateno, merda! Que voc se importe. Ou pelo menos finja que se importa. Que venha at aqui, merda! Ridculo! Ridculo! Ai, como eu sou ridculo em pensar que voc se abalaria; que viria at aqui. ... E da que voc esteja em So Paulo? No de Marte que ns estamos falando. de So Paulo. Antes, voc nem pensaria duas vezes. Mas, agora agora, certo? No est nem a. Que se exploda! Vou desligar, Dart. ... No, doutor. Seu tempo precioso demais. Volte para o que realmente importante para voc. Desculpe por eu ter telefonado. Com tanto dio que esqueceu o motivo de sua aflio, Porthos desceu da cadeira, aos prantos, e saiu da cozinha pisando forte. Se no tivesse fugido bastante rpido, o camundonguinho teria sido esmagado por aqueles ps imensos.
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A sabedoria das mars

A tarde se esvai lentamente, enquanto a brisa passeia em meio aos galhos das amendoeiras, despertando a cantoria dos pssaros. L, bem longe, o sol se prepara para mergulhar nas guas calmas da Lagoa de Araruama, incendiando o cu sua volta e transformando o crepsculo numa inimitvel obra de arte. Isto vida!, murmura a mar, em seu ir e vir constante. Neste incessante movimento, dias se transformam em noites e estas em dias, tornando sem qualquer sentido a idia de passado e de futuro, j que real apenas o momento presente; e ele eterno. As mars so como esses momentos, ruins e bons momentos de que feita a vida de cada um de ns. Abatendo-nos ou nos levantando, dando-nos o amargo e o doce com que temperamos nossos dias. E nessa simplicidade que repousa todo o mistrio da vida. Enquanto a inteligncia humana perde-se de si mesma, na tentativa de encontrar frmulas que a faam compreender o abstrato conceito de infinito; a falta de um comeo e de um fim. Afinal, quem criou o Criador? Que inteligncia no humana criou a inteligncia humana? E para qu? Longe de aceitar com simplicidade o que nos foi legado, gratos por isso, nos revoltamos com a idia de um Pai que nunca aparece para nos visitar. E responder a mais intrigante de todas as perguntas: -De que nos vale a vida se ela to curta como o dia, e a morte chegar na forma de crepsculo?
Assim , se lhe convm

Pompilho aspirou com gosto o cheiro doce dos manacs, que vinha de seu canteiro. Depois, fechou as janelas. Os olhos argutos vistoriaram cada cmodo de seu pequeno castelo. Era detalhista, o que se h de fazer? Compulsivo, diriam os modernos, como se diagnosticassem uma patologia. Virtude! Isso sim!, argumenta ele. Das minhas raras virtudes, sendo a modstia a princi... A campainha, tocada insistentemente, arrancou-o do seu monlogo. Sim, porque Pompilho era dos que se bastavam, convivendo em doce harmonia consigo prprio. Afinal, no se diz que... A campainha tocou de novo, ainda mais nervosa. L estava ele de novo a conversar com seus botes; fazer o qu, se o hbito faz o... porta, emoldurada como uma pintura renascentista, tendo ao fundo a rua que despertava para o novo dia, estava o amor da vida dele. Lucineide! Que no dia mais negro da sua existncia, escafedeu-se mundo afora, sem qualquer... paus? Cacete, Pompilho, vai ficar a parado como um dois de Era Lucineide. Deus, como sonhara com aquele
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momento. Como fantasiara em suas noites sem sono, o doce instan... Sai da frente, homem, que estou apertada. Era Lucineide. Loura e linda. E no estava sozinha, j que trazia pela mo um garotinho - de no mximo dois anos da cor de chocolate. E ela chispou para o banheiro, deixando os dois ali, olhando-se constrangidos. Pompilho e o pimpolho; o pimpolho e o Pompilho. claro que Pompilho amava as crianas, assim como amava todos os animaizinhos da natureza. Mas e isso ele tem de confessar - preferia as plantas. Mais por uma questo de afinida... Pombas, Pompilho, voc j saiu do ar, de novo. Deixa eu te apresentar. Este o Jnior, seu filho. Filho, meu Deus. Um filho de quase... quase... Quantos anos tem o garoto? Era uma pergunta banal, sem outra inteno que no a de estreitar, atravs do conhecimento, os laos da paternidade recm-adquirida. Mas, Lucineide, sensvel como era, levou a mal. filho... Viu s? Voc j est duvidando que o Ariclenes seja seu Ariclenes? Mas ele no o Jnior? Jnior por parte de pai; voc! Ariclenes por causa de um sonho que eu tive com o vov, que Deus o tenha os dois se persignaram.
O velho pedia que eu colocasse no neto, o nome do melhor amigo dele. Voc acha que eu fiz mal? Claro que Pompilho no achava. Lucineide sabia, melhor do que ningum, que Pompilho era espiritualista convicto, tendo pelas coisas do alm um respeito que beirava o medo. E para mostrar que no iria brigar com a verdade, Pompilho abraou o guri, preferindo ignorar que o moleque demorara bastante para nascer, j que ele e Lucineide estavam separados h mais de quatro anos. E dava gosto de ver aqueles dois assim abraados, alheios s diferenas bvias, uma vez que Pompilho era mais branco que conscincia de anjo, enquanto o garoto por certo graas mediunidade da me havia puxado ao melhor amigo do av dela que, com certeza, tinha os dois ps no continente africano. A vida repleta desses pequenos milagres. No v o caso deles? Ontem mesmo, Pompilho tinha apenas a si prprio. Agora, tinha esposa e filho, de uma s tacada. E nesta hora, como deixar de lembrar da dor que sentira, dias depois de Lucineide ir embora, quando leu, pichada na parede de sua casa, a frase terrvel: TODO CASTIGO PARA CORNO POUCO! Humilhado, buscara conselho com o padrinho, missionrio de uma obscura ordem religiosa. E desse homem santo, ouvira as palavras reconfortantes: Chifre coisa que no existe. Tire isso da sua cabea.
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Azar
Aquela era uma pequena cidade, pouco mais do que uma vila de pescadores, no interior de Portugal do ano da graa de 1901. As casas ali eram pequenas, e muito prximas umas das outras. Construes simples, descoloridas, todas no mesmo estilo, como se feitas de uma s vez. Nas manhs, as mulheres aproveitavam o bom tempo, e iam at a bica, no centro, onde um enorme tanque circular era usado para lavagem de roupas. E ali naquele territrio s delas, vidas alheias eram, como as roupas sujas, lavadas em pblico. A rapariga, numa outra vida, jogou pedra na cruz. E agora vive para expiar as culpas passadas. Pior, que me arrastou nesse calvrio. Distante dali algumas quadras, a tal rapariga bordava delicadas florezinhas, numa das peas do seu enxoval de casamento. A sorte jamais sorrira para a doce e ingnua Popnia. Nascera tarde, quando os pais j tinham mais com que se preocupar, e dez anos depois do irmo que, vendo-se deposto da condio de filho nico, jamais perdoara tal afronta. Eram abastados, por ser o pai dono de um dos poucos barcos de pesca, da vila. Mas isso s durou at o dia do primeiro aniversrio de Popnia. Uma tempestade to terrvel quanto inesperada, impediu o retorno do barco. Ningum escapou. A me, com a sade abalada desde o parto tardio, viu agravado o seu estado, falecendo poucos meses aps. O irmo, culpando-a
pelos infortnios, deixou a cidade para sempre, embarcando num cargueiro de bandeira espanhola. Para fazer face s dvidas acumuladas, a casa teve de ser vendida. Castorina, alegando razes de corao, mas na verdade de olho gordo no pequeno capital que restara, assumiu a guarda da criana. A partir desse dia, jamais deixou de referir-se sobrinha, como um fardo. No satisfeita de t-la como criada sem paga, a prfida Castorina fazia questo de tornar-lhe a vida, um suplcio. Assim os anos foram passando, todos iguais. At que um dia, bateram porta. Estando sozinha, j que a tia, como de hbito, sara a bater pernas pelo comrcio, teve um momento de indeciso. O desconhecido procurava um quarto para alugar. Ora, naquele fim de mundo, alugar um quarto para um viajante, era sempre um excelente negcio. Qualquer das casas, ela tinha certeza, acolheria com entusiasmo to distinto cavalheiro. Vencendo pela primeira vez o velho medo, decidiu fazer entrar o desconhecido para que esperasse pela tia. E ainda serviu-lhe caf e bolachas, ignorando a sovinice da megera. Os passos pesados da Castorina, ressoando no alpendre, interromperam a agradvel prosa dos dois. Ao ouvir-lhes as risadas, a megera trancou a cara. Mas foi quando viu o almofadinha aboletado em sua poltrona, com ares de dono, que o vermelho da raiva subiu-lhe do colo ao rosto. Percebendo os j to conhecidos sinais,
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Popnia apressou-se a explicar-lhe que o gentil senhor viera alugar um quarto. Santa medicina! Animada com a possibilidade de embolsar uns escudos, a agora toda gentil Castorina abriu um de seus raros sorrisos, pondo mostra os dentes estragados. Sorriso que quase virou um engasgo, quando soube que a tonta da sobrinha dobrara o valor que ela prpria pediria. E qual no foi sua surpresa quando o estranho, com aquele gesto de mos que s os muito ricos sabem fazer, aceitou sem regatear. Ser que pedi pouco? a interesseira pensou consigo mesma. E conforme o tempo passava, a Castorina melhor conhecia os detalhes da vida do inquilino. Era comerciante, e ausentava-se por conta dos negcios, a cada quinze dias. Mas, ao retornar, sempre trazia mimos valiosos para ela e para a sobrinha. A casa, graas generosidade dele, comeou a dar sinais dos bons fados. Pintada de novo, exibia vistosas cortinas em suas janelas e uma infinidade de flores multicoloridas, arranjadas em vasos e jardineiras pelas caprichosas mos de Popnia. Anfilfio este era o nome do rapaz tratava a ambas com to gentis maneiras, que a Castorina logo encasquetou que o gajo estava a lhe fazer a corte, j que era das que julgam que o mundo gira em torno de seu prprio umbigo. Assim, quando ele solicitou uma entrevista em particular, esmerou-se em fazer caras e bocas, apertada em roupas que lhe amassavam as carnes, na tentativa de mostrar-se mais sedutora. O golpe s no foi maior porque a manhosa tinha
sete vidas. E cada uma delas, mais calculista que a outra. Ora, se o parvo apaixonara-se pela desmilinguida da sobrinha, deixe-se estar, que nem tudo estava perdido. Afivelando s fuas um sorriso que mais parecia um esgar, fingiu-se contente, aceitando que noivassem. Mas fez exigncias. Todas muito justas, dizia a prfida mulher, j que abrira mo de todo o pequeno patrimnio de uma vida, para que a sobrinha tivesse dias de princesa. Outro, menos apaixonado, teria recusado tamanho despautrio. Anfilfio, contudo, sequer protestou. Assim, toda desmanchada em salamaleques e rapaps, a Castorina viu Anfilfio colocar no delicado dedo da amada, o anel do compromisso, que a bruaca avaliou como carssimo. Mas, cinco meses depois, uma carta endereada a Popnia, foi interceptada pelas geis mos de Castorina. Um advogado informava que Anfilfio havia sido preso, e que rogava que a noiva o visitasse no presdio da Capital. Queria pedir que ela o perdoasse, e explicar-lhe o que acontecera. Lvida, a Castorina despachou a sobrinha para que fosse ao herbanrio aviar-lhe uma receita. Vendo-se sozinha, invadiu o quarto do hspede. Ao canto, o imenso ba de couro negro, sempre trancado, que tanto lhe despertara a curiosidade e a cobia. Com ferramentas adequadas e muito esforo, arrebentou as fechaduras. Dentro, uma montanha de cdulas estalando de novas. Eram libras esterlinas. Mas, para a Castorina que, apesar da pose, era uma rematada idiota, eram notas falsas, dinheiro de meliante, j que no tinham qualquer
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semelhana com cdulas de verdade, que ela to bem conhecia. Por conta disso, acovardada em se imaginar cmplice do delito, j que acoitara o bandido em sua casa, decidiu tirar de l a prova do crime. Amontoando a dinheirama no quintal, ateou-lhe fogo. Na pressa, no reparou na carta que agora queimava junto com as cdulas. Nela, Anfilfio dizia que se Popnia estivesse lendo aquela carta, seria porque algo de muito ruim acontecera com ele. Se assim fosse, todo aquele dinheiro, que era fruto da venda das terras de sua famlia, em Londres, deveria ser usado por ela, para comear uma nova vida.
A mulher da bunda grande

Num desses cursos livres que a ociosidade nos obriga a fazer, quando obcecados pela certeza de que apesar da esperana de sermos eternos - j estamos com nossos prazos de validade vencidos, estava eu tonto de tanto cheirar incensos, quando fui surpreendido por uma afirmao bombstica: - Cuidado com a mulher que tem a bunda grande! Algum, ao ouvir semelhante improprio, deixou escapar uma gargalhada inadequada. S quando senti sobre mim os olhares de censura dos quase cinquenta homens que lotavam o plenrio, percebi que fora eu o autor de
tamanho sacrilgio. Isso porque o palestrante era ningum menos do que o guru indiano Sri Sriconanda Ravi Ravishnanda (voc tem que molhar bem a boca, com saliva, antes de pronunciar o nome dele). Fingindo um acesso de tosse que no enganou ningum, enfiei o leno no rosto para disfarar minha vergonha. Pronto. Se eu tinha ido at ali para tentar salvar minha alma, acabara de adquirir um ingresso sem volta para as profundezas do inferno. Acho que devo ter cochilado em alguma parte, j que tomei um susto quando todos se levantaram. Exatamente uma hora depois de iniciada, terminou a palestra. Nem um minuto de bnus. Sa sem saber o motivo pelo qual devo desconfiar de mulheres bem dotadas. Que poderes terrveis podem ocultar-se sob as calolas das mulheres de glteos avantajados? Ora, faa-me o favor, seu RajaBugongo ou que raio de nome o senhor tenha. Pra cima de mim... Nem acabei a frase. O mundo veio com tudo pra cima de mim. E como era pesado. Msica de carrossel. Toda a minha vida projetada minha frente, como num filme mudo. Mas eu no conseguia enxergar a luz escondida por detrs daquela montanha. No era montanha. Era uma mulher. E tinha a bunda imensa. To grande que demorou uma eternidade para sair do carro vermelho que havia me atropelado.
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O crime no compensa
Quando a jurssica secretria da presidncia adentrou o recinto, o silncio que se fez foi mortal. Ela acabara de ignorar o primeiro mandamento da ancestral empresa ZAMBROVI, PUSKAS e CARRANZA IMPORTAO E EXPORTAO, que jamais se interromperia uma reunio da Diretoria. Mas o silncio logo foi quebrado pelo sofrido uivo do meu estmago, quando ela, com os olhinhos brilhantes de uma ratazana sdica, apontou-me o dedo longo e ossudo, e ordenou que eu fosse atender a um telefonema ur-gen-te. E logo passei do medo ao terror, quando ela, sem disfarar a alegria, completou: da polcia! Sem essa de cidado cumpridor das leis. Eu estava grudado cadeira, vitimado por um tremelique vergonhoso e incontrolvel. A culpa estampava-se na minha cara, por qualquer crime que fosse. Quando a autoridade, do outro lado da linha, informou que minha sogra havia sido sequestrada, lgrimas me correram dos olhos. E a gargalhada, a custo contida, jorrou como cachoeira. Claro que, para o investigador, eu aleguei uma crise de nervos. Ainda tonto, eu s conseguia pensar: - Quem que iria querer pegar aquela tribufu? Nada contra os meliantes, claro; eu dou a maior fora. O policial, cortando a animada conversa que eu
tinha comigo mesmo, aconselhou-me a contratar um profissional, para negociar os termos do resgate. Foi a que a ficha caiu. Tinha de ser pegadinha. - Eu ainda teria de pagar para trazer aquela velha de volta? Mesmo disposto a fazer qualquer sacrifcio, s para me ver livre da jararaca, por causa da minha mulher que e nem me pergunte o porqu adorava a me dela, eu teria de chutar contra meu prprio gol. Problemas, problemas... Ento, eu mandei e-mails para os meus comparsas da C.O.R.J.A. (CAMBADA DOS ONZE RENEGADOS DO JARDIM DE ALAH), convocando uma reunio de emergncia, para aquela noite. A turma do antigo bairro, com devoo franciscana, bate ponto toda sexta-feira no bar do Arajo. S que, por causa da urgncia do ocorrido, no dava para esperar sequer um dia. Na hora combinada, estvamos todos l. Eu nem consegui acabar de expor os fatos. A galera rolava no cho de tanto rir. E nem adiantou eu ficar repetindo que a coisa era grave, pedindo seriedade. Imagine ento, quando eu soltei a bomba: o Palhares seria o profissional que eu contrataria para lidar com os sequestradores da minha sogra. A birosca do Arajo quase veio abaixo, com as gargalhadas dos caras. Srios, ali, s eu e o Palhares. Agora, eu devo explicar a quem no o conhece, quem o Palhares. O cara um asno! Voc acredita que o panaca jogou para o alto, assim, na maior, um salrio de maraj numa multinacional, para abrir uma agncia
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de detetive particular? Mas, mesmo que ele jamais tenha passado da palavra ao, ele um profissional, pombas; tem de ser respeitado! Era esse o meu discurso. Mas, no meu plano perfeito, do Palhares eu s esperava uma coisa: nada! O que aconteceu depois, saiu em todos os jornais. Em seu primeiro telefonema, os sequestradores mandaram o Palhares ir buscar a velhota de volta. Assim, sem mais nem menos; deram o endereo e tudo. Tremenda sacanagem dos caras. E o babaca do Palhares, foi. E mais: resolvendo usar a cabea pela primeira vez na vida, convocou a imprensa, decidindo surfar nessa onda. Por isso, todo mundo viu no Jornal Nacional, o Palhares resgatando a simptica vovozinha. Hoje faz dois anos que tudo aconteceu. A turma, agora com dez, continua se reunindo toda sexta-feira, na birosca do Arajo. Menos o Palhares, claro, que agora virou celebridade. Voc quer saber da minha sogra? Est morando l na minha casa. Diz que ainda no conseguiu se recuperar do choque, e por isso no pode mais ficar sozinha. Minha mulher, com os olhos lacrimosos, perguntou se podia, j que no lhe restam muitos anos de vida. S que a surucucu tem sade de ferro. Fuma, bebe, e come como uma porca. Pelo jeito, a velha vai durar mil anos. Fazer o qu, se eu nasci sem sorte? Feliz era o Ado, que no tinha sogra.
Uma mentira fabulosa

No captulo das grandes mentiras da humanidade, a histria de Chapuzinho Vermelho tem de ocupar um lugar de destaque. Veja como a coisa realmente deve ter-se passado. A garota era da p virada. Sempre que podia, dava uma escapulida de casa e ia ver se pintava algum agito, j que o bairro em que morava era devagarzo. E no adiantava o conselho da me, para que ficasse longe dos matagais. Sempre com muita pressa, ela cortava caminho atravs daquelas brenhas, no rumo da Casa da V Joana, um pardieiro muito do mal falado, onde umas franguinhas chegadas tal vida fcil, ficavam ouvindo msica e fofocando, entre um e outro programa. Apesar de no ser do ramo, Chapuzinho adorava o papo das gurias. Vai que numa dessas vezes - por causa da chuva, ela estava usando a sua capa vermelha - ela aceitou a carona de um estranho. Carro negro, som na maior altura, o cara mandando um papo legal... Tudo concorreu para o desfecho inevitvel. Teve at aquela histria do - Que olhos grandes voc tem, que narigo que voc tem, que... Uau! Tsc, tsc. Dia seguinte, entre lgrimas e soluos, ela s soube dizer que o apelido do cara era Lobo; e que ele era muito, muito mau.
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O dia depois de amanh

Estava um dia perfeito, daqueles em que a gente fica se perguntando o que pode sair errado. Caminhando pelo calado, na orla da lagoa de Araruama, deixei meus olhos se perderem no infinito. Por isso, demorei a perceber a moa ao meu lado. Linda, com longos cabelos negros escorrendo por seus ombros, e sem qualquer maquiagem. De diferente, s o vestido branco, enfeitado com fitinhas multicoloridas; alm dos dentes, claro, todos eles de ouro. Queria ler minha mo. Normalmente, eu no dou assunto; ignoro e sigo em frente. Mas hoje, tocado pela extrema beleza da manh, brinquei com ela: cliente. Se voc adivinhasse mesmo, saberia que no sou um bom A resposta vem rpida: Pelo contrrio, s me aproximei porque sei que o que tenho a dizer ir mudar sua vida. No tanto pelo que ela falou. Mas foi a forma como ela falou, que despertou minha curiosidade. Mesmo assim, no dei o brao a torcer. Mais brincando do que falando srio, eu a desafiei: Diga o meu primeiro nome, e o ano do meu aniversrio, s para me convencer. Com os olhos muito srios, ela disse que a origem do seu povo remonta a muitos milhares de anos. Apesar de estarem espalhados pelos quatro cantos do mundo,
no possuem o seu prprio pas. E mesmo nos pases dos outros, vivem apartados, em acampamentos, fiis s suas origens e aos seus costumes. Os deuses nos abenoaram com o dom de prever o futuro. E esta a nica forma de garantir o sustento da nossa gente, j que no plantamos, no temos criaes de animais, no fabricamos e nem comercializamos nada. Eu no sei o seu nome ou o ano do seu nascimento. Mas posso dizer coisas sobre voc, que apenas voc sabe. Alm de outras, de que voc nem desconfia. Dei a ela os cinquenta reais. Pegando minha mo, ela falou de alguns fatos e de pessoas da minha infncia e adolescncia. Depois, durante alguns minutos, manteve-se em silncio. Quando tornou a falar, sua voz estava diferente. Voc no ir realizar qualquer dos seus sonhos. No ter esposa e nem filhos. s o que eu devo lhe dizer. Ela conseguiu me tirar do srio, e eu estava prestes a ofend-la de alguma forma. Mas, a tristeza que eu vi nos olhos dela, calou minha revolta. Eu sinto muito. Mas voc pagou para ouvir a verdade. E quando eu, virando-lhe as costas, j me afastava, ela gritou: Voc ir morrer no ano que vem, no dia 18 de setembro. Mesmo com a voz de bom senso repetindo - vezes sem conta nos meus ouvidos - que aquilo era bobagem, uma certeza me fazia acreditar que a profecia se realizaria. Nem sei como cheguei at em casa. Deitado na minha cama, eu pude ver toda a minha vida passar diante dos meus olhos. E s quando os primeiros raios de sol chegaram at minha janela, eu compreendi que s tinha
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uma coisa a fazer. Criei para mim um plano de onze meses. Pediria demisso do meu emprego, para pegar a grana da resciso. Venderia o apartamento e o carro novinho. Depois, sem nada que me prendesse, iria viver intensamente a pouca vida que ainda me restava. E exatamente o que eu venho fazendo desde ento. Dormia em uma cidade e acordava em outra. Saltei de pra-quedas, voei de asa-delta, fiz pesca submarina, escalei montanhas, e pratiquei canoagem. S que para viver a vida que eu pedi a Deus, gastei at o meu ltimo centavo. Desde o ms passado, estou usando o limite do meu cheque-especial. No tinha alternativa, depois que estourei todos os meus quatro cartes de crdito. Preocupado, eu? Da varanda da sute presidencial deste hotel cinco estrelas, no Rio de Janeiro, observo as ondas do mar quebrando nas pedras, doze andares abaixo. Soprando a fumaa azulada do meu charuto cubano, bebo mais um gole do carzimo champanhe francs. Definitivamente, estou em paz com o mundo. Afinal, se tudo correr bem, eu vou morrer amanh. Sem casa, emprego ou automvel, e devendo uma nota preta, o azar vai ser se, no dia depois de amanh, eu ainda estiver vivo.
Como um blues de final de maro

A estrada se estende infinita diante de meus olhos. Uma fenda cinzenta e morta rasgada em meio ao matagal, ondulando preguiosa ao sabor do vento morno e raro. Por trs de mim, os primeiros riscos de um vermelho agressivo comeam a incendiar o cu, antecipando a manh de calor intenso. Instigado pelo silncio, meus olhos se enchem das imagens distantes; quase uma outra vida. A pequena cidade no sul das Gerais, plantada em volta da escola imponente. A disciplina impiedosa dos padres, contendo com castigos e rezas aquele bando de meninos endiabrados. As to esperadas festas religiosas que nos abriam as portas para a liberdade, mesmo que por to poucas horas. Voc. A primeira troca de olhares. O toque de sua mo. O beijo desajeitado. A paixo se instalando como dona, em meu peito, misturando prazer e dor... Vieram outras, claro. Mulheres para as quais eu tinha todo o tempo do mundo. Morenas, louras ou negras, numa confuso de rostos e nomes, cada qual buscando despertar em mim o mesmo sentimento. E entre umas e outras, voc. O rosto que permanece to bem definido em minha memria. O perfume de jasmim, que a aragem fresca trouxe at ns quando eu beijei seus lbios. A tortura da distncia, alimentando-se da cor e da alegria dos dias. Vazio de sensaes e sonhos, eu me deixo correr no sentido inverso do tempo, buscando nos reencontrar naquele instante, certo de que, enquanto houver estrada minha frente, eu jamais olharei por sobre os ombros.
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Tarde demais
Antes que soasse o alarme do relgio, ele levantou-se, certo de que, se no o fizesse agora, o sono arredio iria nocaute-lo. Tarde demais, companheiro. Enquanto olhava, oito andares abaixo, a rua ainda deserta quela hora da madrugada, acendeu o primeiro cigarro do dia. E a velha vontade de jogar tudo para o alto, bateu ainda mais forte. Tarde demais, companheiro. Vinte anos de trabalho policial gritavam, nos seus ouvidos, que os mocinhos estavam perdendo a guerra. Foi at o quarto do filho. Ele no dormira em casa. Lembrou quando sua esposa levara o garoto para ele. Dias antes ela ligara, dizendo que j no conseguia mais controlar o filho. E ele, que abandonara o lar h mais de sete anos, se viu s voltas com aquele rapaz que ele conhecia to pouco. Mas aquela revolta muda, a mesma que ele tantas vezes viu nos olhos de garotos que vinha prendendo, que faz com que ele se preocupe tanto. Na nsia de provar que so livres, os jovens escravizam-se, tornando-se peas descartveis da criminalidade. O resultado disso, ele testemunha todos os dias nas ruas. E por achar que na prxima ocorrncia poder defrontar-se com seu filho, morto ou preso, que ele agora vive com medo. E esse medo est lhe tirando o sono, noite aps
noite, e prejudicando seu trabalho como policial. Isso, e a culpa de saber que, ao falhar como pai, condenara o filho irremediavelmente. E dentre todas as dvidas que povoam o seu mundo, ele tem apenas uma certeza: tanto para ele quanto para o filho, agora j tarde demais.
As vampiras
Depois de horas preso no trnsito comum das noites de sexta-feira, vindo de uma chatssima reunio de negcios, na Barra da Tijuca, tudo o que eu queria era chegar logo em casa, e cair nos braos macios e carinhosos da minha mulher. Mas o destino tinha outros planos para esta noite. As duas estavam ali paradas, com ar desolado, acenando em vo para os txis que passavam em disparada. Mesmo eu sendo um cara legal, sempre pronto a um ato de generoso desprendimento, no teria parado. Mas comeava a chover, e todo carioca sabe que, quando chove, os txis somem como que por encanto. Isso e o fato de que, estando ali quentinho, o desconforto delas comeou a fazer com que eu me sentisse culpado. J no carro, elas apresentaram-se como universitrias, indo para sua festa de formatura, em Botafogo. Realmente, as duas estavam deslumbrantes em seus vestidos de noite. Jovens, lindas e inteligentes encantaram-se com meu gesto de bondade, fazendo com que me sentisse um heri. Eu
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poderia t-las deixado no prdio, em Copacabana, onde apanhariam outra colega, e seguido o meu caminho, ao invs de aceitar subir para um drinque de comemorao. Mas, afinal, elas insistiram tanto... S voltei para casa, cinco dias depois. Totalmente desmemoriado, no soube dizer o que tinha acontecido depois de uma taa de vinho tinto. Ou melhor, antes de apagar, eu acho que ouvi uma voz rouca, sussurrando no meu ouvido: Seja bem-vindo ao ninho das vampiras! Eu posso ver, pelo seu sorriso, que voc no acreditou nesta histria. Infelizmente, minha mulher tambm no. E agora, eu vou morar onde?
O mistrio do 7 elemento
Desde que ela mudou-se para c, eu a venho observando atentamente. Pelo fato de estar preso a esta cadeira de rodas, tendo de abrir mo dos meus esportes preferidos e das longas caminhadas, tornei-me um espectador atento das coisas, j que para mim o mundo ficou do tamanho desta janela. Assim, fui adestrando minha percepo a tal ponto que, com a cmera digital nas mos, capturo detalhes que a viso comum jamais registraria. Por isso, pude anotar cada pea do pesado mobilirio que compunha a mudana da nova vizinha: 13 caixotes imensos.
Pela posio das persianas, eu julgava que no seria notado, mas o gato preto, que iria dividir com ela a nova residncia, fixou em mim seus olhos malvolos, por um longo tempo, de forma a no deixar dvida de que eu fora descoberto. Nos dias que se seguiram, nada aconteceu. Portas e janelas do casaro permaneciam fechadas, e as grossas cortinas impediam que se olhasse atravs delas. Quando eu estava prestes a desistir, vieram as noites de lua cheia. Por volta da meia-noite, carros negros comearam a estacionar em frente ao porto, deles descendo homens e mulheres elegantemente trajados, mas chegando sozinhos. Eram sempre sete os visitantes que entravam. No entanto, antes do amanhecer, somente seis carros retornavam, para buscar seus passageiros. O mesmo fato repetiu-se em cada uma dessas noites de lua cheia. Depois, tudo voltou a ser como antes, a casa permanecendo vazia e silenciosa, como se no fosse habitada. Graas ao meu fabuloso equipamento, transportei as imagens obtidas com a cmera, para a tela do computador, e pude, utilizando o recurso de aproximao das imagens, tornar ntidos os rostos de cada visitante. Totalmente obcecado, eu dividia o meu tempo entre a tela e a janela, aguardando pela primeira noite de lua cheia. Quando isso se deu, eu comparei as fotos que tinha, com cada um dos novos visitantes. Ento, dei-lhes nomes: Abel, Brena, Clo, Dante, Elmer, Franz e Gertrude, chegaram na primeira noite; Elmer no retornou. Depois, foi a vez de Brena. Nessa altura, j haviam vindo para o grupo, Ianis,
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Jssica, Keila e Licurgo. Abel e Gertrude no foram mais vistos. Agora eu vivia para esse mistrio, envolvido de tal forma que sequer dormia, consumindo leite de caixa e biscoitos, ali mesmo, prximo janela, temendo perder o detalhe que explicaria o desaparecimento, a cada noite, do stimo elemento. Os meses foram passando, e em cada uma das noites de lua cheia, sete pessoas entravam e apenas seis saam. Estranho era que, apesar dos desaparecimentos, os jornais nada publicavam. Mais estranho ainda era o fato de que os visitantes demonstravam estar alegres, tanto quando chegavam, quanto quando partiam. S que a constante agitao das noites em claro, e a alimentao precria, comearam a cobrar seu preo. No percebi quando ferrei no sono. Ao acordar, estava no centro da imensa sala, toda vermelha, discretamente iluminada por velas, em candelabros de ouro fixados s paredes. Muito mais deslumbrado do que temeroso, eu observava, fascinado, cada detalhe do salo. Sob a minha cadeira de rodas, um imenso pentagrama, com elaborados smbolos cabalsticos. Sentada num imenso trono de rocha bruta, trajando um manto dourado, tendo o gato negro no colo, a dona da casa tinha o porte de uma rainha. Senti uma enorme alegria, fruto talvez da mais absoluta loucura. Agora, eu no era apenas o observador distante. Eu estava ali, fazia parte de tudo aquilo, e era um deles. Finalmente iria descobrir o mistrio do stimo elemento.
Eu hoje falei com meu espelho e ele no me respondeu

Antes que voc coloque em dvida a minha sanidade, devo explicar que todas as manhs eu procuro na imagem refletida, as marcas do tempo que eu vejo to ntidas nos rostos dos meus conhecidos. Com o espelho eu divido o largo sorriso, antecipando o dia que ser repleto de vitrias. Com ele, eu divido a incerteza ou o temor quanto ao enfrentamento de situaes de alto risco, para as quais no me sinto to preparado. Ao repartir confidncias dos jovens amores de um velho combatente, me enfrento sem medo, sabedor de que jamais receberei, em troca, um olhar de censura, ou um sorriso de troa.Sempre, em todas as ocasies, eu obtive do espelho uma resposta. A expresso atenta, quando eu falei das minhas dvidas. O olhar de incentivo, em face das minhas intenes mais corajosas. A extrema bondade, ante uma perda. Palavras para qu? Eu criei o hbito de conviver com os velhos olhares, to logo amanheceram os dias de toda a minha vida... at hoje. Agora, enquanto as horas passam uma a uma, o que eu contemplo um rosto velho, marcado pelo desnimo e pela derrota. Procurando em mim as respostas que eu desconheo.
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O lado escuro da rua

Foi por causa da sexta-feira - dia sagrado para a turma l do escritrio - que festejava o final de semana num barzinho ali perto. Apesar dos convites insistentes dos colegas, ele nunca fora. Mas hoje, sem mais nem menos, resolveu ir. Beberia apenas um chope decidiu - e jogaria um pouco de conversa fora. S para no bancar o chato. Depois, ainda teve a chuva fina, colando a camisa no corpo, enquanto o palet, distrado, descansava no ombro. Passos incertos o levaram atravs da viela. Ele, que jamais passava por ali, preferindo o caminho mais longo at o lugar onde estacionava o carro. Mesmo com a cabea zonza e os pensamentos confusos, uma sensao de quase-perigo tentava acordar seus sentidos. Era um beco estreito e pouco iluminado. A maior parte dos postes, inteis, com lmpadas quebradas. De cada lado, casas que as sombras ocultavam, podiam ser adivinhadas, como presenas ameaadoras. E, mais que tudo, o silncio denso e frio. Pensou em voltar. Afinal, quanto j caminhara? Talvez j estivesse quase no final da ruela. De repente, o negro da noite o envolveu, como em um abrao indesejado. Nesse trecho, no havia lmpadas. Pensando ouvir um rudo s suas costas, voltou-se. Rodou em torno de si mesmo, sentindo-se ameaado, buscando compreender a origem do seu medo. Agora, j no sabia sequer de onde viera ou para aonde iria, com o
incio e o fim da viela embaralhados definitivamente. Nesse momento, imvel, encharcando-se de chuva e pavor, ele teve certeza de que a sua vida terminaria ali. Quando sentiu que mos sem corpo o tocavam, deixou que um grito lhe escapasse da garganta. Depois, nada.
Cena carioca
Ela passou correndo frente do meu carro, tentando aproveitar o sinal que j comeava a mudar de cor. Jovem de seus vinte anos, se tanto, igual a outras tantas annimas que passam por ns, indo ou vindo. Comum, no fosse o fato de que, to logo alcanou a outra calada, desabou como que tropeando. Pessoas acorreram em seu auxlio, uma das quais um homem que, ajoelhando-se, colou dela sua boca, mostrando-nos a gravidade do problema. Indiferentes ao sinal que alternava suas cores, eu e os demais motoristas que estvamos prximos, mantivemos nossos olhos presos quela jovem, to despropositadamente deitada naquela calada suja, agora sem nenhuma pressa, enquanto o homem - com certeza, mdico - apoiava as mos abertas sobre o externo da moa, tentando traz-la de volta vida. Como por milagre, uma ambulncia, do tipo UTI mvel, encostou junto ao meio-fio numa manobra ousada. Dela saram dois homens de branco, um deles com
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uma pequena maleta de cor laranja contendo, eu acredito, o aparelho desfibrilador. Agora, j no tnhamos como ignorar a existncia das buzinas. Por isso tivemos de seguir em frente, dando sequncia ao nosso dia. Um pouco mudados, creio eu, em face do ocorrido. No sei dizer se a jovem recuperou-se. Gosto de imagin-la abrindo os grandes olhos, um pouco confusa ainda, enquanto o belo sorriso vai se formando em sua boca. Na dela e na de todos os que, sua volta, foram personagens desse drama urbano. Apenas mais uma histria de vida e de morte, dentre as tantas que acontecem no dia-a-dia da Cidade Maravilhosa.
O enterro do ano
Tefilo, ano profissional - j que interpretava a si mesmo em qualquer evento que pintasse, s para descolar um trocado - finou-se de forma lenta, gradual e progressiva, sem fazer alarde. Fato por si s comum, no fosse o comentrio de um palpiteiro de planto, que levantou uma questo histrica: - Ningum jamais, em tempo algum, viu um enterro de ano. O silncio que se seguiu, no poderia ser mais eloquente. O prefeito, homem de mostrar a cara e de no perder a viagem, to logo soube do enigmtico comentrio, falou, mesmo antes de pensar: - Vamos irradiar em rede nacional e tev a cabo!
Do nada, surgiram bons, camisetas e at outdoors estampando a foto do sorridente prefeito, abraado ao nada sorridente ano (bastante maquiado, por sinal), que no conseguia disfarar a cara de quem j viveu dias melhores. Apesar dos enraivecidos protestos do Lder da Oposio, de que o micro-defunto fora em vida um adversrio poltico do prefeito, a coisa tomou corpo, e ganhou as ruas. A pracinha engalanada foi pequena para tanta gente e geringona televisiva. Tudo corria para ser o melhor domingo das nossas vidas. Pena que o povo no entendeu, atrapalhando o discurso emocionado do prefeito, e partindo para cima do palanque oficial, aos gritos de Queremos o ano! Queremos o ano!. Deu no que deu. Entre mortos e feridos, quem se deu bem mesmo foi o ano, que encerrou sua to insignificante carreira artstica, aparecendo no Fantstico. E o prefeito? Ele agora botou na cabea, que vai construir um parque temtico s para anes, com aparelhinhos de ginstica, piscininha trmica e farolzinho do saber. Coisa de primeiro mundo, ele promete. Quanto oposio, est cuspindo marimbondos, dizendo que o Prefeito quer mesmo realizar o primeiro enterro comunitrio de anes. Falam que j tem at uma rea escolhida para ser o mini-cemitrio, l mesmo onde o prefeito prometeu na campanha, que iria construir um novo Maracan, lembra? Voc me pergunta se isso pode? Aqui em Periquitpolis, minha gente, at que pode!
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O porco que queria ser astronauta

No livro ELES SO MUITOS, MAS NO SABEM VOAR, de autor desconhecido, mas psicografado por mim, algumas partes sobressaem em meio a outras e, por isso, merecem alguma ateno. Como esclarecimento, antes que algum queira me usar para fazer um 0800 para o alm, eu devo explicar que no incorporo absolutamente nada, muito embora acredite piamente no inacreditvel. No fosse isso, como poderia explicar que produzo longos e tediosos textos versando sobre os mais variados assuntos, sem que tenha a mais remota idia daquilo sobre o que estou falando? Isso posto, vamos aos fatos e voltemos ao livro. Logo de inicio, tropeamos com isso: Os que menos tm a dizer so os nicos que ousam faz-lo. Por desconhecerem o bvio, alardeiam o ftil, dejetando bolotas inteis texto afora, encobrindo flores e obliterando perfumes. Quando adormecerem, podero at sonhar com suas asas prateadas; mas, ao acordarem, continuaro sendo aquilo que sempre foram: apenas porcos. Por causa deles que esto se calando os pssaros. Abismado diante de tamanha profuso de assertivas, e ainda em dvida sobre a propriedade delas, fao-me ainda
agora a incmoda pergunta: - Afinal de contas, o que eu estou querendo dizer com isso? A explicao mais lgica, no coincidentemente, tambm a nica: - No fui eu quem escreveu! Claro que qualquer grande proctologista da mente humana, no importando se freudiano ou junguiano, haveria de classificar isso como uma das psicopatologias do inconsciente coletivo (seja l o que isso queira dizer), decorrente da T.P.S. (tenso pr-senil). claro! Ou no. Isso, se eu fosse louco (sem duplo sentido) o bastante para pedir a qualquer deles que enfiasse o dedo na minha intimidade, e diagnosticasse os meus sintomas. Mas, o final do livro, para quem ali procurasse o real sentido da coisa, ainda menos conclusivo e, por conseguinte, mais aterrador. Os porcos, por toda a eternidade, permanecero porcos. Aos pssaros, em menor nmero, caber zelar para que a cano no morra, j que a eles, e somente a eles, foi dada a abenoada tarefa de despertar o dia.
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CACHORRA!
Ele sempre saa de casa s sete horas, em ponto. Frio, chuva, nada o impedia. Estava um pouco desacostumado a correr sozinho, verdade. Mas iria superar. J havia passado por isso antes. Estava to distrado que demorou a perceber o amigo, emparelhando com ele. - Cara, de longe eu nem te reconheci, sozinho. Cad a Mayra? - J no estou mais com ela. - No est, como? Cara, voc adorava a Mayra. - No estava mais dando certo. Acho que estava sentindo falta de ficar sozinho no meu espao. Ento, levei-a de volta para meus sogros. - Voc devolveu a Mayra? E os velhos, coitados? - Espera a! Eu nunca os enganei. Eles sabiam que eu ainda estava abalado com a minha viuvez recente. Eu expliquei isso a eles. Precisava ficar sozinho. Lembrar nossos momentos, que foram to poucos. Olhar nossas fotografias e chorar todas as lgrimas que ainda tivesse. Mas voc sabe como so os velhos. Disseram que a K no gostaria que eu me aprisionasse naquela casa vazia. A K iria adorar a Mayra. Foi um erro. - E a Mayra, como foi com ela? - Normal. Acho que, no fundo, ela sempre sentiu que no iramos ficar muito tempo juntos. - Mas vocs ficaram. Mais de dois anos, eu acho. - Dia cinco de fevereiro completaria trs anos que ela estava comigo. - Eu te conheo, cara. Houve alguma coisa.
- Quer saber? Um dia, eu estava distra na portaria do prdio, folheando as correspondncias. Questo de minutos. Voc acredita que ela estava atracada com um vira-lata sarnento? Eu enlouqueci. Parti para cima do desgraado. Sabe o que ela fez. Avanou em mim e tentou me morder. Cachorra ingrata! Aceito tudo, menos traio.
O sorriso vertical uma crnica ertica

(Passou pela vida, no viveu, o homem que jamais viu abrir-se para si, o sorriso rasgado dos grandes lbios de Gina) Mostre-se recolhida ou reveladora, criou-se a respeito dela farto material que, vez por outra, adorna as pginas dos peridicos. Perfeitamente lgico, nesses tempos em que toda abertura festejada, diriam os tolos. Mas quem so os que sobre ela falam, alardeando tal intimidade e dispostos a desnudar-lhe os mais preservados segredos? Uns, conhecedores de fato, citam-na como gentil figura de retrica, coadjuvante no texto, sem qualquer relao promscua com o sujeito ou seus predicados. Outros, meros tericos do ato, desconhecedores crnicos das preliminares introdutrias e at dos posicionamentos fsicos - mas sfregos em demonstrar notrio saber - expem nos seus murchos textculos, toda falta que a
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abordagem menos profunda acarreta, num ingnuo arranhar da superfcie. Podem, claro, produzir caudalosa verborragia; jamais prazeroso eplogo. Nestes tempos de fteis modernidades, a rosa vermelha que brota e floresce, pouco encanta. Para tristeza dos que amam a prima Vera - as Margaridas, Hortncias ou Melissas de qualquer estao. No entanto, o que dizer aos neo-romnticos que aspiram danar ao som da velha msica, mas ignoram-lhe o ritmo? Que em nome do bom senso, deixem de usar o trao como manda o figurino. Busquem em si prprios a criatividade instintiva, abusando despudoradamente do derradeiro recurso da lngua falada. Tudo em nome da poesia; a irm gmea do prazer. E j que tudo vale a pena, mesmo que a almaseja pequena, o hbil Davi sempre poder vencer o atrapalhado Golias, deixando Afrodite guiar-lhe os passos no emaranhado labirinto do Monte de Vnus. Quanto aos mooilos alegres, filhos da ps-modernidade, que acreditam que os iguais se atraem e se completam, dando a Csar o que de Cesar - Roberto, Paulo e Joo - que o faam, se assim de seu desejo e natureza, deixando que da Gina cuidemos ns, os mais antiquados.
A hora H
Quando eu completei 40 anos, o destino colocou-me frente a frente com a minha primeira crise existencial. Olhando pela janela do tempo, a soma de todos os meus atos e decises dava um resultado desanimador. E sabe do que mais? Eu era um fracasso! Por isso, resolvi que vou dar o fora; pular do bonde. Afinal, como um camelo errante, andei vagando pelo deserto dos meus dias. No incio, de p, depois rastejando como um verme nojento, sempre esperando encontrar a tal luz no fim do tnel. Qual nada! O final do tnel era somente um paredo intransponvel, com uma plaquinha na qual se lia, graas a uma lamparina bruxuleante, os seguintes dizeres: Fim do caminho. Retorne ao ponto de partida. Assim, com o rabo entre as trmulas pernas, ainda tive de voltar correndo, com medo de que algum sacana me perguntasse: - Voc tambm? Decidido a realizar o sonho de viajar pelo mundo assumindo novas identidades, voltei para casa. Mas ali, como desgraa pouca bobagem, testemunhei horrorizado que, junto com os fragmentos de meu porquinho de barro, mseros 42 reais - a poupana de toda uma vida - olhavam para mim, com suas carinhas envergonhadas. Agora, s me restava transpor a ltima fronteira. Decidido a morrer, procurei no armarinho do banheiro por alguma droga de efeito letal e imediato; s havia Sonrisal. Enchendo-me de coragem, tomei seis comprimidos, de
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uma s vez. Foi pavoroso. Tomado por um acesso de tosse, e esguichando uma baba espumosa por todos os orifcios do corpo, acreditei estar agonizando. Alarme falso. Mas no desisti. Antes que a coragem me faltasse por completo, resolvi parar de respirar; afinal, uma morte limpa. Aps dez interminveis minutos, percebi que trapaceava comigo mesmo, respirando pela boca, atravs da toalha. Pior ainda, o pregador colocado no nariz, me dava uma horrvel sensao de asfixia. Exausto, vencido pela certeza de que at para uma sada covarde preciso coragem, dirigi-me cozinha, j que este negcio de suicdio costuma dar a maior fome. Como eplogo, fao minhas as palavras do herico almirante luso que - em plena lagoa de Araruama - ao perceber que seu pedalinho fazia gua, desembainhando a espada, exclamou: - Mais vale a morte do que perder-se a vida!
Mulheres: quem precisa delas?

Com a convico adquirida pela experincia de mais de meio sculo de praia, alternando ciclos de solteiro e casado, sinto-me preparado para afirmar que mulher to complicada que tinha que vir com manual de instrues. Verdade, verdade, o fato que existem duas mulheres para cada homem: a certa e a errada. Adivinha com qual delas, na maior parte das vezes, nos casamos? Claro, no devemos generalizar. Toda regra tem secreo. Mesmo porque tem muito cara por a que j casou e descasou vrias vezes, na eterna procura de sua outra metade, que jura solenemente - com a sinceridade dos tolos e dos romnticos - que tem mais mulher errada, do que certa; e isto, na lei das probabilidades matemticas, atrapalha um pouco o raciocnio. No entanto, uma coisa est mais do que provada: desde os tempos do paraso, o homem busca uma mulher, para conseguir a sua paz... e s depois que percebe que era feliz e no sabia. Nestes tempos do genrico, macheza coisa que precisa ser provada todo dia. Mas, mesmo com o risco de ser confundida com dupla identidade, a amizade entre os homens, eterna e descomplicada. Digo mesmo que, depois do cachorro, o homem o melhor amigo do homem. O que no nos impede, para sermos totalmente verdadeiros, de concordar que no existe nada melhor,
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aps uma rodada de louras geladas, do futebol com a galera, ou outra qualquer obrigao masculina, do que uma mulher linda, perfumada, sorridente e... calada. Sim, porque, vamos combinar, depois de um dia desgastante como esse, nenhum de ns merece nada alm disso. P.S: Mulher: eu escrevi tudo isso s para chamar a sua ateno. Voc fundamental na minha vida, tanto quanto a cerveja, o futebol e os amigos. Voc a princesa dos meus dias e a rainha das minhas noites. Assinado: O Homem
Dois perdidos numa noite suja

Dia desses, estando eu s voltas comigo mesmo, abandonado pelo meu senso de orientao aps uns tantos baldes de cerveja, encostei-me, exausto, em um poste de luz que vinha me acompanhando por umas tantas quadras. Isso, ou admitir publicamente que eu andava em crculos. Uma voz sem corpo, brotada de algum lugar encoberto pela nvoa fria, deu seu parecer: - Amigo, voc est chapado! Sou desses que abominam a intromisso alheia nos assuntos etlicos. Tentei olhar em torno de mim para responder com os punhos, se preciso fosse, tamanha afronta. Foi um erro. No pude desprezar a mo amiga
que se estendeu para reerguer-me. Mo? No tinha dedos e era peluda. Parecia com a pata de um... -Jegue, meu amigo, para servi-lo. E no era mesmo um jegue? Pombas, o que colocaram na minha bebida? Errar o caminho, tudo bem. Isso acontece sempre. Mas, por mais bbado que eu j tenha ficado, no recordo haver trocado dois dedos de prosa com bicho nenhum. - Vejo que est duvidando de sua sanidade mental. Eu compreendo. Sou dos poucos da minha espcie que falam a sua lngua. Embora goste de fazer isso, evito conversar com humanos. S o fao, quando esto alcoolizados. Se que me perdoa por dizer isso. Apoiado em meu novo amigo veja s o estado em que eu estava rumei para um bar que meu faro de pinguo dizia haver ali perto. L chegando, nos sentamos mesa, eu com minha cerveja e o jegue com a dele. O boteco estava vazio naquela hora. Do dono, eu s a vi as mos, empurrando as latinhas e pegando meu dinheiro. Contei para o jegue, que se mostrara muito interessado, a histria da minha vida. At que, no sei quantas latinhas depois, emborquei ali mesmo. Acordei com o sol no meu rosto. Pessoas formavam um crculo em volta de mim, divertindo-se com a minha nudez. Haviam roubado todas as minhas roupas, alm da carteira, chaves e celular. Preferi no responder s perguntas do guarda. E o tempo todo, eu s pensava numa coisa: - Tremenda sacanagem do jegue.
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Amor ponto com

Enquanto escrevo, as lgrimas correm soltas de tal forma que, na tela do computador, tudo vira um s borro indefinido. Mas agora j no tenho como parar. Meus dedos correm por sobre o teclado, como se tivessem vontade prpria, determinados a no omitir qualquer palavra, mesmo aquelas que ainda doem. O apelido dela era Bolacha. Ela j nem sabia mais quem a chamou assim da primeira vez. Quando criana, era um apelido carinhoso e simptico, que lhe caa bem. Depois, tornou-se como uma feia mancha, marcando-lhe o corpo e tambm a alma. Apesar de bonita, inteligente e espirituosa, passou a ter como defeito e virtude apenas o fato de ser muito gorda. Com o tempo, foi se fechando em si e em casa, isolando-se no mundo sem rosto e sem corpo da internet. Comeou a frequentar os chats de bate-papo, onde falava apenas dos seus sonhos, jamais de suas angstias. At que um dia, Seal (foca) mudou tudo, tornando-se muito mais do que um parceiro virtual. Presa nessa armadilha, Bolacha deixou que se libertasse a mulher que se escondia nela. Um dia, Seal quebrou a regra do contato sem imagem, mostrando-se como era, em traje de mergulho, cercado de uma vida que existia l fora, cheia de cor, luz e promessas. Decidida a transformar sua realidade em sonho,
parou de comer. Bebia gua, mastigava algumas folhas e se entupia com os milagrosos comprimidos de todas as cores do arco-ris. Rebelando-se contra a forma que a vida lhe dera, resolveu impor sua prpria vontade, disposta a tornar-se aquela (que ela achava) que eu queria que ela fosse. Morreu tentando.
Na lngua do p
Praia da Pontinha Pequeno pedao de paraso Prola preciosa Preservada em pose de postal. Poesia profana Parte pureza, parte pecado Pairando pretensiosa na poeira Nos pensamentos perdidos Como promessas e paixes De primaveras passadas. Porto dos pioneiros pescadores - Primeiros ps a pisarem na praia Permanece princesa Provocando, petulante, A prosa pobre do poeta prisioneiro N.A. - A Praia da Pontinha um recanto maravilhoso, prximo ao centro de Araruama.
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Acalanto
Durma pequena Maria. Foi somente um sonho mau. Daqui a pouco, voc vai ver, dezenas de criancinhas, lindas como voc, Viro encher com seus risos O silncio enorme desta noite vazia. E levaro voc para brincar com elas, pequena Maria. Agora durma, meu anjinho de asas quebradas, E voc vai ver que tudo no passou de um sonho. E que voc, quando acordar, nem vai mais lembrar que sonhou. Durma pequena criana. Porque voc no esta a, Deitada sobre as pedras frias da rua, Enquanto a chuva vai, pouco a pouco, Lavando o sangue do seu vestidinho rasgado E encharcando os seus lindos cabelos cacheados. Durma, pequena Maria, Porque o mundo bom! Durma, durma...
A garota da capa
Minha empregada, a Bruquishildes, depois que descobriu que eu escrevo em jornal, decidiu virar reprter. E dana de ligar para mim nos horrios mais imprprios, disposta a ser a primeira a me informar das ltimas. E o papo comea sempre da mesma maneira: - Seu moo, nem te conto. Senta a, que o babado forte! E tudo manchete, para ela. De cachorro atropelado a criana dormindo na rua. No princpio, eu ainda tentava explicar que essas so imagens que j nem despertam a ateno de ningum. Parei, quando vi as lgrimas. Nos olhos dela, a expresso de desapontamento comigo foi o que doeu mais. Dia desses, entre uma cerveja e outra, eu contei a um amigo o que estava acontecendo. A resposta dele, curta e grossa, me tirou o flego: - D um p na bunda dela! Sacrilgio! Alm de to bonita indo quanto vindo, minha empregada cuida de mim como a minha ex-mulher prometeu fazer, e jamais cumpriu. Isso sem falar na rabada dela, meu amigo, que de fechar os olhos, cair de boca e uivar de puro prazer. Na cozinha da Bruquishildes, todo dia domingo. S se eu fosse muito doido, iria contrariar a minha musa dos servios auxiliares. E se, para mant-la bem juntinho de mim, eu precisaria fazer sacrifcios, tratei de ir logo aprendendo a conviver com essa mania dela. s vezes,
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disfarando um ou outro bocejo, eu anotava, num bloco, os pontos que ela considerava mais importantes para compor a matria. De outras, s escutava, como a coruja do portugus da piada. At aquele dia, quando o editor me mandou escrever uma crnica para ocupar o espao deixado pela colunista do caderno feminino, que trocara de emprego sem cumprir aviso prvio. Juro que no sei qual de ns estava mais desesperado. Se ele por me convocar, ou eu, por no recusar. Afinal, teria de substituir, mesmo que s por um domingo, a mais bem paga colunista do nosso jornal. E eu nem sabia como iria fazer isso, j que meu negcio era a pgina policial. Foi quando a Bruquishildes ligou para me contar a ltima. Movido pelo pnico de me descobrir como a bosta de jornalista que eu sempre fui, despejei tudo nos ouvidinhos rosados dela. No domingo, a crnica estava l, estampada com destaque entre roteiros de viagens, dicas de maquiagem e uma entrevista com a top-model mais paparicada do mundo. Faz seis meses que isso aconteceu, e minha vida mudou muito depois disso. Casei com a Bruquishildes, e hoje sou o colunista mais bem pago do jornal. E no tenho a menor vergonha de dizer que devo tudo a ela, j que eu apenas coloco molho nas matrias que ela garimpa, no dia a dia das ruas. Para voc ver que, s vezes, o que a gente est procurando a gente j tem.
Porco Dourado (Uma Histria de Amor Global)

Ediberto era um jovem que vivia de Esperana. Esperana de ser um grande fazendeiro, um grande escritor, um grande amante. Assim caminhava ele pelas estradas da vida, com os ps no barro e a cabea nas nuvens. At que a viu: Belssima! Jeito de princesa, formas arredondadas e Da Cor do Pecado. Mas foram os olhos da leitoa, de um azul plido, que o fizeram prisioneiro. Descendente de uma orgulhosa linhagem europia, ela fora criada nos prados sedosos da Sucia, com costumes e idiomas to diferentes, distante da lama e da lavagem dos chiqueiros da Amrica. Por isso ela consumia-se, descrente de qualquer possibilidade de um dia tornar a sorrir, at que viu o rapaz. Ele, coitado, em todos os dias da exposio agropecuria, no arredou p. E tamanha ateno cativou o coraozinho virgem da leitoa, que retribua com ronquinhos langorosos, a paixo que percebia. Mas a vida, Senhora do Destino, resolveu conspirar contra os dois. No leilo, a porquinha foi arrematada por uma quantia que, aos olhos e bolsos dele, parecia absurda. Desvairado, Ediberto ficava repetindo para si mesmo, tendo os olhos marejados de lgrimas: - Eu nem vou poder despedir-me dela. Depois, as coisas sucederam-se to rpidas, que
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nem ele podeexplicar como aconteceram. Num momento, ele se viu junto ao caminho, com dedos nervosos e ferramentas imprprias, arrebentando o velho cadeado. Com a amada porca nos braos uma sensao indescritvel ele adentrou sua casa. L dentro, Escravisaura, Cabocla arretada que fazia jornada dupla, ora dando duro nos afazeres do lar, ora dando mole para Ediberto, no aceitou ser coadjuvante nessa novela pobre, como a mucama da Sinh Moa, preferindo tentar a sorte num acampamento de sem-terras. E mais tarde, mostrando ter uma estrela Brilhante, veio a ser escolhida como a Rainha da Sucata, no lixo da cidade. Ediberto, antes muito chegado numa cachaa de rolha, e que costumava meter o P na Jaca dia sim, dia tambm, agora pouco visto na cidade. E quando vem, fica pouco; quer voltar logo para o Casaro e cair nos braos de sua Alma Gmea. E este caso de amor, que j causou o maior Ti-Ti-Ti, agora j nem mais comentado. Mas, ainda hoje, quem passar por aqueles lados poder ouvir gritinhos e risadas de pura Felicidade. Isso sim que a Fora de um Desejo.
Letrinhas mgicas
No sei quantas horas eu caminhei perdido em meus pensamentos, at chegar a este lugar onde jamais tinha estado. A ponta de areia que, como um cotovelo, divide a orla da lagoa de Araruama em duas praias, preservara este cantinho. Mas eu no estava sozinho. Com balde e outros utenslios plsticos, uma garotinha se entretinha em formar caminhos de areia, como se fosse uma cordilheira de montinhos. Nada de castelos ou buracos. Somente uma trilha de areia que terminava como comeava, sem dar qualquer pista do que fosse. A forma atenta como eu a observava despertou sua ateno. Mas no mais do que por alguns segundos. Depois, ignorou-me, j que parecia ter coisa mais importante a ocupar-lhe o tempo. E a pergunta que arrisquei fazer, nada mais era do que uma forma de quebrar o silncio. - Para que servem tantos caminhos de areia, pequenina? Rapaz, o anjinho me fulminou com olhos de mulher ofendida. Perdo, pedi, explicando que no entendia nada de construes em areia. Era apenas escritor de frases, que ningum se interessava em ler. E por conta disso que eu caminhava horas a fio, sentindo ter desperdiado cada momento de minha vida. Realmente, agora eu tinha de concordar que j havia alcanado o limiar da loucura. Filosofando com uma garotinha de quatro anos, se tanto...
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disse.
- O seu problema que voc no olhou direito ela me
- O que eu no olhei direito, menininha? Por favor, explique para mim. - No so caminhos de areia. Estou juntando letrinhas. E como eu continuasse mudo, apenas olhando para ela, complementou. - Voc nunca percebeu que cada grozinho de areia uma letrinha mgica. Um dia, algum chegar a esta praia e precisar de todas elas. Foi ento que eu me lembrei do sonho. E embora resgatado dentre os escombros de uma infncia complicada, ele ainda permanecia vivo em alguma parte da minha mente. No sonho, me dizia o Senhor: - A ti, Carlos, Eu darei mos com que possas trabalhar a areia e com ela construir teu destino. Mas, e isso tu jamais deves esquecer, por serem to finos os gros da areia, apenas a uns poucos ser dado desfrutar da tua obra. E ela ser fruto da escolha que ters de fazer entre construir com a areia castelos para os poderosos que sero somente castelos de areia ou mudar a histria do mundo.
O monstro da lagoa suja

Na natureza nada se perde, nada se cria; tudo se transforma. (Antoine Laurent de Lavoisier) - Ns criamos um monstro! Coczilla, como o prprio nome diz, uma bosta de monstro; ou um monstro de bosta. Nascido nela, a criatura tem a cor e o cheiro caractersticos da lagoa de Araruama. Cansada de esperar pela soluo poltica para o problema, uma vez que, no discurso, a nossa lagoa j foi salva centenas de vezes, a natureza pariu o monstrengo. Com um apetite voraz, ele come o lodo (para no ser por demais explcito) que abunda (epa!) na lagoa. Mas, como todo produto brasileiro, ele tem um probleminha: as fezes do Coczilla so ainda mais fedorentas do que o lodo que lhe serve de alimento. Acho que vamos ter que continuar mesmo esperando pelos nossos polticos. Alis, pelo que se ouve dizer, eles j esto pensando em criar uma nova secretaria (acho que seria a de nmero 379) s para administrar a criatura. O que est atrapalhando o nome da secretaria: ECOC-SISTEMA ou FEDEMA? Questo difcil essa, que ameaa ir se arrastando e consumir a cuca dos tecnocratas. Enquanto isso, indiferente a essas quizilas, o
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Coczilla reina absoluto na lagoa, j que ningum, alm dele, calorento o bastante para dar um mergulho naquele pinico de guas nauseabundas (epa, epa!). Agora, dizem que os governos estadual e federal brigam pelo monstro, discutindo se ele encontra-se sob a jurisdio da SERLA ou se da competncia do IBAMA. Mas o prefeito, enxergando dinheiro na histria, no abre mo: diz que o bruto produto interno do municpio, e aposta nele para alavancar o nosso turismo. Mas, para isso, preciso que o monstro colabore, aparecendo nas horas certas e fazendo algumas firulas coreogrficas. Seno, a coisa vira baguna. Para envolver o povo, ser organizado um novo Abrao Lagoa. O tema da campanha ser: O Coc nosso; o Coczilla tambm. E voc j est convidado.
NOTA DO AUTOR A lagoa de Araruama, aqui retratada em 2004, felizmente, hoje, j no mais a mesma, embora ainda esteja distante das condies ideais, por conta, principalmente, do despejo de esgoto das cidades as quais abraa.
O jogo do sculo
Quem me contou o caso jura que verdade. Na cidade cenogrfica de Periquitpolis, quem manda o Coron Chumbinho Bacamarte, homem de poucas palavras e de muitos palavres. Claro que na cidade tem vereador, vigrio, delegado e at juiz, mas... Ao que se diz por l, depois que o homem chegou, a cidade mudou bastante, e agora tem supermercado (do Coron), pracinha (com o nome do pai do Coron), at mesmo um piscino, que nem aquele de l de Ramos. Coisa de primeiro mundo, j que o Coron no homem de fazer servio pela metade. Mas, como no tem coisa que o Coron goste mais que de futebol, ele at criou um time para representar a cidade: o Aratama Futebol Clube. Voc acredita que ele prometeu, num discurso empolgado na campanha para prefeito, fazer um estdio maior que o Maracan? Pois foi. Se ele cumpriu a promessa? Mais ou menos, j que o Maraca era bem maior do que o Coron imaginava. Mas no foi essa a nica promessa dele, j que ele garantiu que traria para jogar contra o Aratama F.C., o time de futebol mais famoso do Brasil. Bastou isso para incendiar a imaginao do povo, e nas rodinhas dos desocupados, no se falava de outra coisa. Uns dizendo que ele traria o Flamengo, e outros, que seria o Palmeiras. At que um cara que vivia dando carteirada, alegando ser unha e carne com o Coron, soltou a bomba: j estava
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acertada a vinda da Seleo Brasileira. Por essa e outras, o Coron foi eleito, dando uma surra de votos no adversrio, daquelas de fazer o cabra mudar de freguesia. E a partir da, as apostas correram soltas. Mas, voc sabe como essa gente maldosa. Apesar de ser o time da cidade, o povo no fazia a menor f na rapaziada do ARATAMA. O que se dizia era que os jogadores eram pernas-de-pau, escolhidos a dedo pelo Coron, s porque eram bons cabos eleitorais dele. Assim, a aposta que mais se fazia era de quanto seria a goleada que o ARATAMA iria levar. Pois foi. Quando os amigos lhe contaram que na bolsa de apostas s dava o time visitante, o Coron subiu nos cascos, e cuspindo fogo pela venta, avisou que ia bancar a parada, botando uma grana preta no ARATAMA. Ele, no, j que Secretrio est a para isso. Pois foi. E faltando uma semana para a inaugurao, veio a surpresa: o time convidado era o TABAJARA FUTEBOL CLUBE (aquele mesmo da televiso, que jamais ganhou de ningum). No grande dia, as ruas amanheceram atravancadas de carros de som (eles tinham sido proibidos por lei, mas graas generosidade dos vereadores todos eles grandes amigos do Coron o decreto foi desdecretizado por motivo de fora maior. Pois foi. Em cada poste e marquise da cidade, faixas e cartazes convidavam o povo para assistir ao Jogo do Sculo. O resultado desse jogo, eu no sei. Quem me contou a histria, disse que segredo de estado (ou, de municpio). Mas, por l, futebol virou assunto proibido. O CoJogo de Palavras | 93
ron acabou com o Aratama F.C., e botou seus jogadores para varrerem as ruas. E no que eles so craques? Est tudo limpinho que uma belezura. Em Periquitpolis, a moda agora um tal de beisebol. Idia do Coron, que quando est de bom humor, uma santa criatura.
Nota Explicativa Normalmente uso a fictcia Cidade dos Periquitos, quando quero pintar Araruama com cores mais surrealistas, descomprometendo-me assim com a fidelidade aos fatos. Mas, neste caso, impossvel deixar de citar a figura do ex-prefeito Chiquinho do Atacado, que inspirou o personagem.
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Uni, duni, t
Mcio era, antes de tudo, um indeciso. Qualquer situao em que ele se visse obrigado a fazer uma escolha, por mais insignificante que fosse, tinha para ele um peso imenso, esmagador.Por isso, fugia das decises, como o vagabundo foge da enxada. Mesmo hoje, tanto tempo depois, ainda sente arder-lhe na face a extrema vergonha daquele dia, na rodoviria, momentos antes de embarcar para aquela que seria sua primeira visita, dez anos aps haver abandonado a terra natal e sua mezinha querida. Impelido pela necessidade, viu-se diante de duas portas sanitrio masculino e sanitrio feminino. E o pnico o paralisou. S quando o lquido quente e farto escorregou-lhe pernas abaixo, compreendeu que a natureza cansara-se de esperar que ele decidisse. E as gargalhadas o acompanharam, ecoando cada vez mais altas em seus ouvidos, enquanto fugia da poa denunciadora. A me, coitada, ignorante do drama por ele vivido, morreu poucos meses depois, decepcionada com o descaso do filho. Agora, tendo sua frente aquele ladro de aspecto sinistro, que lhe impe a questo to difcil, Mcio sente, ao invs da habitual angstia, que uma paz imensa toma conta dele.
- A bolsa ou a vida? Estaria ele realmente pronto para abrir mo de uma, em proveito da outra? - A bolsa? Mcio traz consigo todo o salrio do ms, alm do dcimo-terceiro, que lhe garantiriam as primeiras frias de toda uma existncia escrava. - Ou a vida? Que vida, pelo amor de Deus? Com muito menos altos do que baixos, ele bem que poderia passar sem ela. E Mcio que era antes de tudo um indeciso, percebe agora que o simples ato de no decidir j uma escolha que faz. E quem poder dizer que no a mais correta? Assim, indiferente ao olhar fixo do meliante, Mcio deixa aflorar-lhe ao rosto um sorriso de confiana, enquanto espera que o destino decida o seu futuro.
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Uma noite longa demais

Quando acordei, l pelas tantas da madrugada, uma neblina incomum para meses de primavera flutuava pelo quarto, produzindo uma estranha sensao de frio. Na pouca luz do abajur de cabeceira, o ambiente parecia ainda mais sobrenatural. Sonolento, olhei para o lado. O que vi despertou-me totalmente. Minha mulher havia se transformado numa abbora. E no dessas que se v pelas feiras. Das japonesas, aquelas grandonas. Afinal ainda bem que abbora no tem ouvidos - minha mulher vive brigando com a balana. E a balana sempre tem levado a melhor. Como eu sou um cara prtico, fiz uma anlise rpida da situao. Eu tinha que estar sonhando, j que ningum vira uma abbora assim, da noite para o dia. Ou melhor, pelo que sabia, mesmo sendo pouco versado em hortalias e leguminosas, ningum vira abbora. Por outro lado - ainda na linha do raciocnio lgico e considerando que todo sonho uma linguagem figurada - que merda de interpretao freudiana uma abbora poderia ter? Incapaz de decifrar tal enigma, eu achei melhor buscar mais informaes. Primeiramente fiz um levantamento visual da cucurbitcea nome cientfico pelo qual so conhecidos os familiares da minha esposa em sua forma atual. Apesar das medidas mais avantajadas, algumas caractersticas haviam sido preservadas pela mutao.
Como aquele ronquinho suave, quase como o motor de um ventilador pequeno. E o jeito de abraar o pequeno travesseiro em forma de corao. A segunda fase exigiria o contato fsico, j que o tato, em situaes como esta, to importante quanto a viso. Principalmente quando o analista cego como um morcego. A pele - ou melhor, a casca - era spera e fria. Quando lhe dei umas pancadinhas com os ns dos dedos, o som repercutiu como se o interior fosse oco. Com o olfato, depois de umas trs cheiradas maradnicas, no cheguei a nada. No sei quanto tempo depois de esgotar cada uma das possibilidades, resolvi encerrar minha pesquisa de campo. A fase trs seria a aceitao do fato de que, como todo sonho que se presta, este tambm terminaria. Ento, eu iria esperar deitado. Do lado de fora, mais uma vez, a noite vai dando lugar ao dia. Minha mo esquerda, num movimento automtico, risca mais um X no calendrio de mesa. Duas semanas, agora. Com meu canivete de bolso corto mais uma tirinha da abbora. Pequena. O suficiente para enfrentar outra manh, deitado. Afinal, preciso manter-me vivo. E dando um beijo na minha abbora, sussurro carinhosamente na sua orelhinha: - Bom dia, querida.
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O contador de histrias
Quando eu sa de casa, uma certeza martelava em minha cabea: eu era o maior escritor no famoso do Brasil. Com os manuscritos debaixo do brao, eu estava indo ao encontro do meu futuro. O renomado editor, com quem me encontraria dali a instantes, havia pedido que eu levasse apenas trs dos meus contos. Era um homem ocupado. E aps tantos anos garimpando em meio ao cascalho grosso da mediocridade, na procura pela rara pepita dourada da genialidade, ele havia desenvolvido uma terceira viso. O grosso amarrado sob minha axila testemunhava que eu, aps uma noite insone lendo e relendo meus textos, na frentica tentativa de escolher os trs melhores, selecionara a metade deles. E quando a manh invadiu meu quarto, trouxe com ela a culpa por eu rejeitar os demais, como se menos amados fossem. Mas, depois do ch de cadeira que tomei, eu j no tinha mais certeza de nada. Por falta do que fazer, e para controlar a ansiedade que, em mim, tende a provocar gases, cismei de reler minhas preciosidades. Trmulo, suando mais que frango de padaria, a certeza me atingiu como um soco, nocauteando minha autoestima: eu no era to bom. Alis, enquanto caminhava para l e para c, como um tigre enjaulado, na esperana de que os malditos gases se dissipassem, eu sabia que nem bom eu era. Meus
contos, que at ontem eu venerava como se fossem os prprios manuscritos do Mar Morto, agora pareciam meras redaes ginasianas. Eu tinha que me livrar deles. Fingindo me abanar freneticamente mas na verdade tentando tornar o ar menos poludo eu corri os olhos pela saleta. S ento percebi uma porta, disfarada pelos lambris da parede. Era um banheiro. Comecei a transformar os contos em tiras. Quando a lixeirinha j no podia mais fechar a tampa, o desespero me sussurrou uma idia. At a terceira descarga, tudo bem. Depois, o papel comeou a voltar. Retirei tudo o que havia enfiado na lixeirinha, e a usei como balde, transferindo a gua do vaso, para a pia. Enquanto isso, eu mantinha o dedo na descarga, direto. Quase deu certo. Alis, se o troo no tivesse quebrado, eu teria me livrado de uma parte do problema. Sim, porque a papelada que eu retirara da cestinha, agora estufava os bolsos do meu palet. Espalhei todas as toalhas de papel no cho, para impedir que o aguaceiro, que transbordava do vaso, ultrapassasse os limites do banheiro. E o tempo todo, torcendo para que o ralinho fizesse a parte dele. No havia ralinho. Agora, s me restava abandonar o navio. A saleta continuava vazia. Buscando uma rota de fuga, avaliei minhas possibilidades. Do teto, uma cmera vigiava cada um dos meus passos. Estou irremediavelmente preso nesta ratoeira. A porta de blindex negro que me liga com a recepo, tranca-se automaticamente, e s pode ser aberta da sala da recepcionista. Por causa do ar condicionado central, no existe janela; apenas um corte na
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parede, que vai do piso ao teto, mais ou menos da largura de um palmo, ocupado por blocos de vidro macio. Sentado no sof, com os ps para cima, tornei-me um mero observador. Vencido, o grosso tapete, que antes enfeitava a sala, transformou-se em massa disforme. Daqui a pouco, j que existe uma abertura de um dedo para lhe dar passagem, o primeiro grito de - gua! ecoar. E quer saber do que mais? Eu no estou nem um pouquinho interessado em saber como esta histria vai terminar.
Famlia tudo de bom!

A manh s comea mesmo para mim, quando mame vem me dar bom dia. Apesar de ser o menor de todos, sou o nico que no d trabalho para levantar. Fora mame, claro, porque esta no conta. Tenho um segredo: eu acordo bem cedo, todos os dias. Mas fico deitado no quentinho, at mame vir perguntar se o gostosinho dela dormiu bem. Gostosinho, sou eu. Mame chama cada um pelo nome que ela mesma inventou. Os gmeos so Tico e Teca. Papai Bem. E ele um terror. Grita por ela desde que acorda. Est sempre reclamando que mudaram as coisas dele de lugar, que nem vai ter tempo de tomar caf e que vai chegar atrasado ao trabalho, de novo. Ele muito atrapalhado.
Mame nem esquenta. De l pra c, ela est em todas as partes da casa, ao mesmo tempo. Sempre sorrindo. Jamais levanta a voz. Tico e Teca j esto prontos, tomando suco de laranja (no gosto) e torradas com melado (adoro). Eles so legais. Sempre dividem as torradas deles comigo. Bem est sentando. Mame j pegou o jornal, l fora, e colocou ao lado da caneca dele. Ela prende o guardanapo no pescoo dele, enquanto ele comenta com ela o que est escrito no jornal. Nem repara no que est bebendo ou comendo. So os nicos momentos em que papai se esquece de reclamar da hora. Pena que durem to pouco. Eu j papei tudo o que mame colocou no meu pratinho e, como quem no quer nada, subo na cadeira ao lado dos gmeos. Mame finge que no repara. Pronto, acabou o sossego. Bem corre para tirar o carro da garagem, gritando que ns estamos atrasando ele. Mame sai com as crianas, carregando as mochilas deles e a pasta que papai esqueceu. Antes, me d um beijo na cabea e diz para eu ficar direitinho. Quando a porta bate, eu corro para cima da cama da Teca, e olho pela janela. As crianas entram no carro e acenam para mim, por trs do vidro. Mame v se elas esto com o cinto. Assim que senta ao lado do Bem, ela olha para a janela em que estou, e d adeus. Eu fico latindo at o carro sumir na curva. meu jeito de dizer que eu amo muito todos eles. Depois, volto para minha caminha.
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Tirando onda
impossvel no se sentir tocado pelos dedos suaves do Criador, quando nossos olhos correm pela imensa extenso da areia, ou caminham preguiosos pelo azul esverdeado do mar. Pelo menos, era isso o que eu deveria estar enxergando, enquanto fixo o borro de cores que se mistura minha frente. Sou mais cego do que morcego, j que esse consegue desviar-se dos obstculos, e eu no. Mas no vou pagar mico exibindo culos de fundo de garrafa. A potica areia, entrando na intimidade do meu sungo novo, me desafia a continuar ignorando sua tortura. Mas a mente forte, e eu no vou depor contra a elegncia, coando-me despudoradamente como um vira-lata pulguento. Por enquanto, nada. Tomara que no demorem a chegar. O calor do sol est me derretendo. Olho com raiva para o guarda-sol que, colocado estrategicamente de modo a no impedir que eu seja visto, no me protege contra o ataque fulminante dos raios ultravioletas. Deveria estar usando bronzeador, digo, bloqueador solar tenho que me acostumar com esses modernismos, para mostrar que sou antenado. Alis, eu preferia estar era em casa, deitado na minha rede encardida, pescando cerveja direto do isopor. Cara, eu no curto praia. Sou mais branco do que ndegas de freira, e a areia me incomoda. Sem falar que o barulho dessas ondas de trs metros, quebrando na areia, assustador. Mas, depois do que me aconteceu na semana passada, eu tenho de estar aqui. Quando ouvi me gritarem do porto, pensei que
o meu dia estava estragado. Tentei ignorar, como sempre fao, esperando que o problema fosse embora. Mas o cara era insistente. Deixando o livro na rede, fui ver quem era. O Dcio. Meu amigo, o Dcio. Depois de anos sem contato, nos esbarramos numa livraria em Copacabana. Meia dzia de latinhas depois, eu dei meu endereo, em Araruama. Agora ele est aqui. Quer conhecer Praia Seca. Ento, fomos. No havia sol, apenas mormao. S estvamos ns, ali, com os glteos afundados naquela areia fininha, jogando conversa fora. Ento ns as vimos. Duas gatas. Uma loura, a outra morena. Como estava de culos, pude perceber bem os detalhes. Belos e arredondados detalhes. Brincavam na gua, como duas crianas, e podamos ouvir suas gargalhadas. At que veio a onda. Imensa. Cinematogrfica. E elas foram engolidas. O Dcio partiu para a gua, tirando apenas a camisa. E eu fui atrs. O Dcio nada pra cacete. Eu, nada! O Dcio deu um mergulho e j veio rebocando uma das garotas. Eu tambm mergulhei; e comecei a me afogar. A outra garota foi quem me salvou. Fomos tratados como heris. As meninas eram gachas, e estavam hospedadas em uma pousada aqui perto. Pegamos as coisas delas, e fomos para minha casa. Passamos um fim-de-semana maravilhoso. No domingo noite, o Dcio deu carona para elas, at o Rio. Dali, com os pais, elas voltariam para Porto Alegre. De l para c, eu no penso em outra coisa. por causa disso que eu voltei hoje. Porque, se alguma gata precisar de um heri, eu estou na rea. Prevenido, trouxe uma bia.
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O vira
O Sobral era... melhor no falar de sua origem geogrfica, pra no dizerem que estou a fazer graa com a boa gente da boa terra. Comeo de novo. O Sobral era um quase-brasileiro. Gostava de cachaa (com tremoos), atacava com disposio, semana sim, semana no, uma feijoada domingueira (mas j de olhos sonhadores no bacalhau do prximo domingo) e no podia ver uma mulata. O Boteco do Sobral era a vida daquele gajo. Mesmo porque, vamos combinar, das seis da manh at dez da noite, de segunda a sbado (aos domingos aquilo virava um restaurante para sessenta pessoas), impossvel ter outra. Mas a felicidade do Sobral tinha prazo de validade. Nescaf, que usava terno branco para o contraste de cor, era um malandreco que vivia do trabalho dos outros. Apesar do sorriso de mil dentes, tinha os olhos mais frios que os de jacar. Sobral se borrava de medo dele. E o pior que nem conseguia disfarar. O indivduo cafeinado era um dos primeiros fregueses do boteco. O termo fregus, na verdade, se aplicava mais ao Sobral, j que o malandro tinha uma conta aberta que nunca fechava. s vezes, com a Ritinha a tiracolo. Ritinha... A mulata mais estonteante da Lapa e adjacncias. O sonho mais safado do Sobral. Nescaf, com aquela sabedoria dos que o demo
favorece, usava e abusava dessa fraqueza. E para desespero do pobre, s vezes cochichava-lhe nas orelhas, zombeteiro: - A Ritinha t querendo me trair com voc, Sobral. Quando conseguia arranjar flego para responder, o Sobral - homem de carter e que s cobiava a mulher de algum to prximo, em pensamento - gaguejava: - Deixe disso, amigo Nescaf. Dona Ritinha santa de altar. Ora pois. A coisa iria assim, nesse chove no molha, se o calendrio do destino no tivesse escolhido aquela sexta-feira, dia treze, para dar uma rasteira no Sobral. Ferrado no sono, talvez umas duas horas depois de ter deitado, o Sobral custou a entender que batiam na sua porta. Vestindo apenas o seu cueco, abriu uma fresta para espiar quem seria o visitante. Era o seu sonho, e que nem esperou que ele sasse da frente. Ela tremia quase tanto quanto ele. Se, para salvar a vida, o Sobral tivesse que descrever como tudo tinha acontecido, ele estaria lascado. Fosse quem fosse a tomar a iniciativa, o fato que a Ritinha estava nos braos dele, e que, pela cara dela, o Sobral no tinha feito vergonha. Depois, arrumaram as malas dele. Seis. Sendo uma, s com o dinheiro que estufava o colcho dele. Porque o Sobral tinha contas em bancos, claro. Mas, desconfiado dessa merda de imposto de renda, agia como seu velho pai, que Deus o tenha. Faz trs anos que os dois esto morando nesta pequena vila de pescadores. Sobral comprou um barco dos grandes e, durante seis meses, ele vai para alto mar. Os peixes menores, vende na cidade mais
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prxima; os grandes sero limpos por mulheres que trabalham sob as ordens de Ritinha - no imenso galpo construdo ao lado da casa deles - e depois congelados. uma vidinha simples, bem do jeito que eles gostam. E como por aqui o sol no d trgua, ele agora est quase da cor do Nescaf. Trocou a gordura por msculos, e traz sempre no rosto um sorriso de mil dentes. S fecha a cara quando percebe um olhar de macho, meio atravessado, para o lado da sua Ritinha. Ms que vem j alta temporada. Para os prximos seis meses, os dois iro, como nos anos anteriores, reabrir a espetacular pousada deles, em Bzios, com o restaurante mais famoso da regio. De segunda a sbado, peixes de todas as qualidades (armazenados durante os meses em que pescou). Aos domingos, s feijoada. que a Ritinha detesta bacalhau
Injustia divina
Querido Papai do Cu: Estou escrevendo para dizer que acho que no quero mais ser seu filho. Voc sabe que desde que eu era muito pequeno, minha me ensinou que eu sempre deveria rezar para voc, pedindo as coisas que eu queria. s vezes, eu estava com tanto sono que dormia no
meio da orao, e tinha de comear tudo de novo. Agora que eu j estou grande tenho quatro anos - vejo que estou gastando reza toa. Todos os anos, na poca do Natal, eu pedia uma coisa, e vinha outra. E no adianta botar a culpa no Papai Noel, porque ele s empregado. Uma vez, eu pedi uma mesa de futebol tot, e veio uma bola (e nem era de couro). No outro ano, eu pedi um autorama, e veio um carro de bombeiros (era do Paraguai, e a sirene nem estava funcionando). Ano passado, pedi um videogame e veio uma bicicleta de rodinhas. Mas, o que me deixou furioso mesmo, foi que eu Lhe pedi para o meu pai ganhar mais (j que ele disse que no podia dar as coisas que eu queria, porque o salrio dele era muito pequeno). E voc sabe o que aconteceu? Claro que sabe: Meu pai perdeu o emprego. Agora mesmo que a vaca vai pro brejo. Ento, eu vejo que os meus amiguinhos do prdio e da escola, esto com os brinquedos que eles pediram. E eu sei que eles nunca rezaram. A eu penso: o que que eu estou fazendo de errado? A resposta, o Senhor j sabe: Estou rezando demais. Por isso, resolvi escrever.
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O caso do ano voador

Captulo 1 A porta ainda estava sem o vidro, depois que o maldito ano saiu voando para fora do meu escritrio. E antes que voc me julgue um covarde - por causa dos meus um metro e noventa de altura - devo dizer que o cara entrou sem ser convidado. E tinha na mo uma pistola maior do que ele. Eu sou assim. No gosto de gente que me ameaa. Mesmo que, como era o caso do ano, eu tenha ficado com a mulher dele. Meu nome Malone. Sou investigador particular desde que desisti da polcia. Uma coisa que ainda mexe muito comigo, j que abandonar a polcia depois de quase vinte anos, foi como desistir de continuar sendo eu mesmo. Embora sabendo que fiz a coisa certa, demorei bastante a retomar minha vida. Durante meses, eu busquei abrigo nos bares, bebendo sempre sozinho, noite aps noite. At que, voltando para casa, fui cercado por quatro desconhecidos. S acordei no hospital, dois dias depois. Um policial fardado sentava-se ao lado do meu leito. Eu havia sido encontrado sem sentidos, ao lado de um defunto. Como nada meu havia sido roubado - o dinheiro em minha carteira, relgio e celular continuavam comigo - e no foram encontrados sinais da existncia de outros agressores, eu poderia ficar encrencado. Por outro lado, sendo eu tambm uma vtima, os policiais no podiam me acusar pelo homicdio. A no
ser, claro, que eu confessasse. Como havia sido atingido violentamente na cabea, aleguei que no me lembrava de nada. A percia no encontrou em minhas mos qualquer sinal de autoria do golpe que mandou o safado para o inferno. Ainda bem que usei o cotovelo. Para minha sorte, o morto tinha antecedentes piores do que os meus. Por isso fui liberado. Dois dias depois, j livre das dores e dos curativos, comecei a investigar. As prostitutas que faziam ponto em ruas prximas, disseram o que eu queria ouvir. O primeiro que eu peguei, um jovem franzino que se disse viciado em crack, depois de convencido por mim, aceitou entregar seus dois comparsas. Um deles havia sido preso, poucos dias depois do ocorrido, numa tentativa frustrada de assaltar uma loja de bebidas. Como j estava condenado por outro latrocnio, talvez morresse na cadeia. Cumprindo o trato que fiz com ele, deixei que o garoto sasse da cidade. Demorei alguns dias para chegar at ao nmero quatro. Era um negro feio, que gostava de espancar prostitutas, aps transar com elas. Esse, que segundo o garoto, havia me atingido pelas costas com um basto de beisebol. As meninas me ligaram alguns dias depois, assim que o bastardo apareceu por l. O resto foi consequncia. O cara ainda tentou correr, quando me viu, mas eu o imobilizei com uma gravata, por trs, encostando em sua barriga o aparelho de choque que levava comigo. Na terceira descarga eltrica, o corao dele parou. A tecnologia tornando o mundo menos sujo. Curioso que, por causa de tudo isso, eu me tornei
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um investigador particular. Captulo 2 O nome dela Grace. Uma loura linda. Trs anos como prostituta. S atende clientes ricos. Tem um servio de recados que intermedia seu contato com quem pode pagar o preo dela. Foi para ela que fiz meu primeiro trabalho. Queria achar um cara, mas no me disse por qu. Pagou mil dlares adiantados, com a promessa de outros mil se eu o encontrasse em menos de dois meses. Depois de pouco mais de vinte dias, eu completei o servio. Estamos juntos desde ento. Sou o nico homem que visita o apartamento dela. E se quer saber, jamais cobrei os outros mil dlares. No me interesso por seus assuntos, apesar da curiosidade em saber como ela consegue manter um apartamento to luxuoso, num dos bairros mais caros da cidade. Foi a que entrou o ano. Literalmente, quero dizer. Com a arma em punho. O resto voc j sabe. Mas o que voc no sabe que, antes de bater as asinhas, o deficiente vertical me acusou de estar pegando a Grace. Uma rpida investigao depois, e eu j sabia que o tampinha era dono do El Toro, um clube de stripers que cobrava os olhos da cara. Ele bancava a Grace. Eu fiquei to aborrecido com isso que, mais ou menos durante um ms, ignorei os telefonemas da loura. S que, depois de olhar a foto no jornal, o que eu mais queria era falar com ela. Milhes de tentativas, e nada.
A imagem na tev mostra a priso dela, logo pela manh, acusada de mandar matar o ano. Agora questo de tempo. Daqui a pouco a polcia vai bater em minha porta. Eu j fui tira, sei como . O desgraado do ano registrou queixa contra mim, por tentativa de assassinato, quando eu o expulsei daqui. E alguma alma bem intencionada logo ir dar com a lngua nos dentes, sobre meu envolvimento com a loura. Enquanto aguardo o retorno do telefonema que dei para um velho companheiro de farda, vou secando a garrafa de conhaque. Nada alm de um palpite. O cara que fui procurar para a loura, logo que nos conhecemos. Um detalhe ficara gravado em minha mente, mesmo depois de tanto tempo. Ele havia ganho um campeonato nacional de tiro, logo aps dar baixa do exrcito. Se era um matador profissional, a polcia teria um dossi sobre ele. Mas, se dependesse dessa informao, a polcia jamais chegaria ao cara. No por mim. O ano j morreu tarde, e eu no iria mover um dedo para prejudicar a loura. E no teriam como me colocar na cena do crime. Minha preocupao aqui era outra. que no meu ramo, a gente no gosta de deixar perguntas sem resposta.
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Ei, voc foi embora to de repente que eu nem tive tempo de te dizer...
L fora o dia vai escurecendo e o vento assobia uma melodia triste. Enquanto passeio pelo lbum de velhas fotografias, eu posso ouvir seus passos apressados, e adivinhar sua preocupao com as roupas estendidas no varal. Depois, o ritual de fechar bem todas as janelas. Voc tem muito medo das tempestades. No confessa, mas tem. Acho que nesses trs ltimos anos ns falamos sobre tudo e sobre todos. Pelo menos, era assim que eu pensava quando, ignorando a novela das sete, ns molhvamos o po no caf forte, e eu ouvia as histrias de muito antes de eu nascer. Pela arte da contadora de casos, pessoas que jamais vi passavam a ter rosto e voz, permitindo que eu convivesse com elas naqueles maravilhosos momentos em que ns dois nos sentvamos mesa da sala. Quantas vezes, tentando disfarar minha inquietao por frustraes do dia-a-dia, eu pensava que me fazia ouvinte para agradar voc. Mas era eu, e sempre eu, quem tinha as minhas mos cheias com os frutos doces da sua sabedoria. Foram tantos os nossos dias e noites, nesses trs anos em que tornamos a nos encontrar; e foram to poucos. Agora, ao chegar ltima das pginas deste lbum, o imenso vazio que me cerca ameaa tornar-se maior do que minha vontade de continuar existindo. E meus olhos ardem com a vergonha por tudo o que quis, mas no soube
dizer a voc, acreditando que sempre seria hoje, e o amanh jamais chegaria. Mas no pode existir tristeza, porque no deve existir egosmo. Se h de permanecer algum sentimento, que seja de gratido a Deus, pela me que Ele me deu. E enquanto l fora a noite se faz serena, eu me preparo para voltar vida, com a certeza que voc estar sempre entre os bons. E que, num desses dias qualquer, eu e voc iremos nos ver de novo.
NOTA EXPLICATIVA Esta crnica foi escrita poucos dias depois do falecimento de minha me, cujo corpo encontra-se enterrado no Cemitrio Municipal de Araruama.
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Testemunha ocular da histria

Fazer jornal em uma cidade pequena como esta, uma guerra de todo dia. E guerra que travada com fuzis velhos e munio defeituosa. A necessidade de uma boa manchete, nica forma de impedir o encalhe, esbarra na triste realidade de que, por aqui, no acontece nada. Quando morre um vizinho mais abonado, a gente lana mo do arquivo, e vende para a famlia enlutada um obiturio porreta. Afinal, no nosso negcio, cliente morto no tem defeito. Mas at de morto a gente pobre. Aniversrios, casamentos e batizados, com direito a fotografias, ajudam a engordar o jornal que a gente bota na rua, todas as sextas-feiras. Meu nome Francisco. Mas a turma me chama de Chico do Jornal. Sou eu que escrevo sobre esportes (matria que copio, sem qualquer culpa, dos jornais da capital), fao a coluna de horscopo (Cigana Zora, muito prazer) e fao a distribuio dos exemplares de assinantes e para a banca da rodoviria. Esta era a minha rotina que no mudava muito. At que no ms passado, eu esbarrei na melhor matria da minha curta vida, sem querer. Alis, eu nem corri atrs da notcia. Foi ela que veio at mim. Mosquito um garoto de idade indefinida, que, por umas moedas, faz pequenos servios. Vez por outra ele aparece por aqui, com recado de algum querendo publicar alguma coisa. Ontem, no entanto, ele estava misterioso. Depois que insisti muito, ele contou. Havia visto
o prefeito Onofre entrando, de noite, na casa da viva Deolinda. Eu quase ca da cadeira. Deolinda fora mulher do principal adversrio poltico do atual prefeito. Mosquito no mentiroso, mas a notcia era boa demais pra ser verdade. A viva, que me perdoe o falecido, mulher demais para manter luto fechado. E at aquele momento, tinha reputao de santa. J o prefeito era um homenzarro grosso que, mais de uma vez, tinha me tratado como bosta. Casado com uma mulher mida e gentil, sempre com os olhos baixos, como se temesse a repreenso do marido. Depois de molhar muito bem as mos de Mosquito, fui at em casa para vestir roupas de frio. Assim que anoiteceu, com lanterna e cmera fotogrfica, fiquei de tocaia at amanhecer o dia. Pela manh, quebrado, sonolento e faminto, voltei com minhas mos vazias. S na terceira noite, consegui dar o flagrante. Apesar de ter comigo um equipamento de ltima gerao, o rosto do prefeito no estava bem definido. No correr da semana, em todas as noites, eu mantive o meu planto. Quando finalmente tive um material de boa qualidade, fui procurar o vereador Justiniano, o nico oposicionista, que havia sido o melhor amigo do falecido. No lhe falei das fotos e nem dos fatos. Disse que havia recebido uma denncia. Sa de l com a garantia de que, se publicasse a matria, ele me arranjaria quinhentos contos. Era mais dinheiro do que havia visto nos ltimos seis meses. E foi a enormidade da grana que despertou o monstro adormecido. No dia seguinte, como quem no quer nada, visitei
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o vereador Sab, dono de uma rede de postos de combustvel e lder da bancada governista. Para no publicar, eu receberia dois mil contos. Para no me alongar muito, devo dizer que faz dois meses, o jornal no vai para as bancas. Voc quer saber do qu eu estou vivendo? Estou gastando por conta. Por causa das eleies que se aproximam, eu j garanti dez mil contos. E ainda nem falei das fotos. Claro que assim que fotos e dinheiro trocarem de mos, eu boto o jornal venda. uma profisso muito, muito perigosa.
A igreja do quadrado circular

Depois de horas caminhando em crculos, cheirando este ar saturado de cec e pum, eu estou pronto a aceitar meu salvador; seja ele quem for. Estamos juntos, eu e outras cinquenta almas, penando na roda ( assim que chamam esta loucura, por aqui). Cobertos com lenis brancos, rasgados no centro para que passem as cabeas, com uma corda de varal servindo de cinto. Nossos braos se apiam nos ombros do irmo da frente, e um empurra o outro, num eterno movimento ligando o nada a lugar nenhum. Parar, nem pensar. Quem tentou, foi arrastado brutalmente, desnudado, e sovado com galhos de uma planta espinhenta. Possudos! - gritavam os homens santos (os lenis
deles eram tingidos de vermelho), enquanto baixavam o sarrafo com vontade no desinfeliz. Os gritos deles nos convenceram a seguir em frente. E enquanto rodava a roda, eu me lembrava do dia em que tudo comeou. Eu trancava o meu porto, pensando em dar uma passada na feira, quando a mulher me deu o maior susto. Ela era baixota e gorda, como um bujo de gs. Espetando o dedo na minha cara, rosnou de forma intimidadora: - Voc est sendo chamado. V na minha igreja amanh, ou coisas indescritveis iro lhe acontecer. E antes que eu arranjasse uma desculpa esfarrapada para sair dessa, ela emendou: - E nem pense em faltar, que estamos de olho em voc! Depois disso, no importa para onde eu quisesse ir, alguma figura sinistra observava meus passos. Sem coragem para evitar o inevitvel, eu estou aqui, na roda. Mas j pensando em como vou fazer a coisa. Acobertado pela escurido da lua nova, fugirei de casa. E vou correr com vontade, como se mil demnios estivessem querendo me pegar. No quero nem saber o que vou fazer depois. Mas, para a merda da roda, eu no volto mais.
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O dia em que Satans trocou dois dedos de prosa com o cavaleiro da triste figura
Manh dessas de domingo de cu azul sem nuvens e sol vermelho como fogo. O cavaleiro da triste figura, trajando o negro de seu costume, saa esbaforido do culto onde, por mais de uma hora sem descanso, gritara Aleluia com toda fora dos seus pulmes. Boca seca no rosto pegajoso, ele fazia a parada de sempre na vendinha acanhada, mirando de cima as poucas pessoas que por ele passavam, ansioso pelo refresco gelado. S depois da primeira bicada reparou no desconhecido, todo de branco dos sapatos ao chapu e sorriso zombeteiro afivelado na cara. Preferiu ignorar. Pelo menos tentou, j que mesmo sem querer, prestava ateno no homem que dele no tirava os olhos. At que o desconhecido, rompendo o silncio, mandou que o dono do bar lhes servisse mais dois refrescos, que a conta era dele. A a coisa mudava de figura. L pras tantas, abrigados sombra da frondosa mangueira, enquanto devoravam um segundo prato de tira-gosto de mortadela o homem levou o assunto para o lado da religio, apontando o bbado imundo que, jogado na terra, tinha a cara enfiada em seu prprio vmito. - Vosmec, homem letrado que , e que conhece de cor e salteado as passagens do Livro Santo, me esclarea esta dvida: se todos so filhos do mesmo Pai, porque alguns no so tratados como irmos? A coisa dita assim de supeto, lhe pegou desprevenido. E o engasgo que se seguiu foi a consequncia disso.
- Veja bem, respondeu ainda inseguro, o cara escolheu entre a igreja e o bar... - Quer dizer ento que vosmec, nem por respeito ao Pai, seria capaz de socorrer aquele outro filho Dele, aliment-lo, dar-lhe gua para beber e, num gesto de amor, aquec-lo com seu belo palet branco? Mas, matreiro como era, ele no seria pego desprevenido de novo. Manhosamente, saiu-se com outra pergunta: - Por que o amigo, ao invs de cobrar santidade no pe, ele mesmo, em prtica a humanidade que me acusa de no possuir. - Seria o amigo, ento, capaz de ir agora mesmo at ao desgraado, ergu-lo, aliment-lo, saciar sua sede e ainda presente-lo com seu palet carssimo? - No, eu no faria por ouro nenhum desse mundo. Mas pagaria de bom grado ao amigo, com todo dinheiro que trago comigo, para que ele o fizesse, trazendo paz para as nossas conscincias. Enquanto as palavras eram despejadas, as mos do homem retiravam, nota por nota, uma fortuna da bela carteira de couro. - Vamos amigo, no se detenha, v no socorro de seu irmo. Ele sequer sabe quantos minutos, ou mesmo horas, se passaram enquanto sua vontade buscava foras para resistir ao apelo indigno da cobia, e seu orgulho fingia ignorar o sorriso de escrnio do desconhecido. Agora, enquanto corre da chuva raivosa que investe contra a camisa fina e sente a falta do aconchego caro do palet que deixou para trs, suas mos nervosas, enfiadas nos bolsos da cala encharcada, agarram-se ao grosso rolo de dinheiro.
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Seus olhos
Depois de tantas paixes, alguns incndios que, de to violentos, consumiram-se em momentos, alm de um amontoado de nomes sem rosto que a memria do tempo se esqueceu de apagar, os dias de vero j no me parecem to claros e quentes. As manhs ainda surgem, claro, com o mesmo sol alardeando sua presena. Mas sinto falta do entusiasmo dos pssaros, que hoje apenas passeiam, poucos e cabisbaixos, sem nimo para alarem-se aos cus e gritar sua alegria. Pelos caminhos por onde me levam os passos incertos, o verde agora ralo, entremeado de grandes manchas de terra pedrenta. Eu sempre venho at aqui onde esta rocha solitria, em forma de mo toscamente desenhada, emerge abruptamente do solo, apontando um dedo acusador para o cu indiferente. Apesar de a trilha estender-se minha frente, eu jamais quis seguir adiante, mesmo aps esses anos todos. De olhos fechados, me deixo envolver pelo vazio, at que sejamos s os dois, eu e a pedra, a dividir esta paisagem intil. Mais tarde, talvez, voc vir at mim. O vento espalhar minha volta o som da sua voz e o perfume dos seus cabelos. Eu poderei at, quem sabe, sentir o macio toque das suas mos sobre os meus ombros e perceber o calor da sua respirao no meu pescoo. Ser, enfim, feliz como j fui um dia. E mesmo com o risco de quebrar toda essa magia, eu vou lhe implorar que me leve junto com voc, no importa para aonde. Porque eu j no suporto mais estar sozinho. Eu preciso reaprender a sorrir com o seu sorriso e voltar a ver a vida com os seus olhos.
Mortinho da Silva
Era comum naquelas noites de sbado, quando ns quatro nos encontrvamos na vendinha do Seu Tlio, para dois dedos de aguardente e outros cinco dedos de prosa, que um dos trs amigos puxasse um caso meio-verdade, meio-mentira, para animar a roda. Principalmente quando - como hoje - o bolso da gente estivesse estufado com o pagamento do ms, e os dedos de cachaa se multiplicassem. Eu disse os trs porque, diferentemente deles - que pareciam viver uma aventura atrs da outra - eu nunca tinha o que contar. Pedro Cunha, ento, capaz de mentir sem sequer piscar o olho, era o que mais histrias tinha. E naquela noite, talvez por ser meu aniversrio, ele cismou de mexer comigo, desafiando-me a contar algum caso. Se minha histria fosse muito boa, eu nem ia precisar pagar a conta. Acho que se eu no tivesse bebido tanto, teria ficado com minha boca fechada. Alis, como sempre fiz nesses quase quinze anos. Fosse pelo que fosse, quando dei por mim, a frase terrvel havia sido despejada na mesa, e a noite pareceu que ficava mais fria. - Eu vi um homem morrer duas vezes! Um imenso silncio se fez. Cessaram as conversas e o barulho dos copos. Se fosse o Pedro Cunha, a coisa no iria parecer to terrvel. Quando ele pegava a palavra, afastando a cadeira da mesa e alteando a voz para que ningum perdesse um nadinha do caso, at o Seu Tlio costuma se achegar. E como todos, com um meio-sorriso
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na boca, j que apesar das poucas verdades, as histrias eram sempre boas. Mas, eu? Pra comeo de conversa, meu jeito acanhado. Apesar de amigos de muito tempo, eu quase nada tinha de comum com o grupo, afora o fato de que trabalhvamos de sol a sol, todos juntos, na maior fazenda de gado da regio. Agora que o mal j estava feito, eu no podia mais voltar atrs. Alis, mesmo se pudesse, eu no iria fazer. Durante esses anos todos, aquela cena insistia em ficar se repetindo na minha cabea, e no foram poucas as noites em que fui acordado, com meu corao disparado, a garganta seca e o corpo banhado de suor. - Ns estvamos no velrio. A madrugada era fria, e quase todas as pessoas j tinham ido embora, prometendo voltar pela manh, para o enterro. Ficamos ali s os cinco. Era um fim de mundo, aquele lugar em que ns morvamos. A capela do cemitrio era fora da vila, e os caminhos s recebiam a luz da lua, quando havia. E aquela gente era cheia de crendices. Mula-sem-cabea, sacis e lobisomens. Era costume os homens portarem faces ou foices, quando tinham de sair de casa depois do anoitecer. Ali, sombra de umas poucas velas, era impossvel no sentir medo. Mas o finado Tinho era nosso amigo de infncia. E alm do mais, o Lzaro estava com a garrucha do pai. Acho que cochilamos todos, sentados naquelas cadeiras duras, com os encostos apoiados na parede, enquanto l fora o vento chegava a assobiar, sacudindo de leve as portas e janelas fechadas. Nesta altura da narrativa, todos que estavam minha volta sequer piscavam. Os copos permaneciam vazios, sem que ningum pensasse em servir-se de mais uma dose. Eu olhei para aqueles rostos, e era como se voltasse no tempo,
para a capela perdida no meio do nada. Ento, continuei. - De repente, as coisas todas aconteceram quase que ao mesmo tempo. As portas e janelas foram escancaradas pela terrvel ventania que se formara. As velas apagaram-se. Minhas mos tremiam quando aproximei da vela a chama do fsforo. Do outro lado, o Leco fazia o mesmo. De olhos baixos, ns dois nem vimos o que acontecia. S escutamos o terrvel estrondo dos dois tiros. Agora que a terrvel histria vai se aproximando de seu final, como se um imenso fardo estivesse sendo retirado das minhas costas. Como esttuas, meus companheiros tm seus olhos presos nos meus lbios, aguardando o desfecho. - S muito tempo depois, o resto de ns conseguiu compreender o que tinha acontecido, contado pelo prprio Lzaro. O defunto havia recebido dois tiros no peito; e dos ferimentos jorrava bastante sangue. O Lzaro desmaiara, e a garrucha, ainda quente, estava jogada longe dele. Fechamos o caixo, e decidimos enterrar o corpo antes da hora. Quando as pessoas chegaram, inventamos uma histria, e repetimos as rezas na beira do tmulo. Depois disso, cada qual seguiu o seu caminho. Jamais tornei a ver qualquer um deles. E juramos que aquele segredo nunca seria revelado. Por que teria de ser diferente? Quando a primeira claridade das velas se fez, quis a fatalidade que apenas o aterrorizado Lzaro, justamente o que tinha a arma, visse o corpo levantando-se do caixo.
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A doce Amlia
Onofre um cara muito distrado. Alm de esquecido, claro. Para complicar ainda mais o quadro, sofre daquela anomalia moderna a que os especialistas denominaram de transtorno obsessivo compulsivo (TOC). Escravo das rotinas, mal entra em casa resmunga o costumeiro ol para sua cara-metade e corre para o computador. Uma de suas obsesses era a de verificar seguidamente a caixa de e-mails. Geralmente vazia. Mas isso para ele no tem a menor importncia. S que agora foi diferente. A mensagem que ocupa a tela com letras imensas, acusadora: EU SEI O QUE VOC FEZ NAQUELA NOITE! Onofre fica apavorado. Enquanto abre e fecha as mos caracterstica que denuncia seu nervosismo repete compulsivamente a frase que, pela velocidade imprimida, engole os espaos: -Oqueeuvoufazeragora?oqueeuvoufazeragora?oqueeuvoufaze ragora?oqueeuvoufazeragora?oqueeuvoufazeragora? O que transtorna mais ainda o Onofre, ocasionando uma sucesso de tiques nervosos, o fato de que ele no lembra o que fizera naquela noite. Alis, por mais que escarafunche a memria, sequer lembra daquela noite. Mas, e disso ele no tem qualquer dvida, s pode ter feito algo terrvel. Pulando os degraus, corre escadas abaixo, rumo
garagem, no sub-solo do prdio. Seu carro no est l. O porteiro, atencioso, lhe informa que no tem mais carro. O atropelamento e fuga, portanto, esto descartados. Uma amante ocasional! Sim, s podia ser isso. Trara da forma mais abjeta a sua companheira de tantos anos. Correndo de volta, ajoelha-se aos ps da santa. E como toda santa, ela coloca sua mo sobre os cabelos dele e pergunta: - O que voc acha que fez desta vez, meu cabecinha de vento? Assim a sua Amlia, que no poderia ter outro nome, j que a mulher de verdade, da vida dele. Quantas vezes ela no lhe secou as caudalosas lgrimas, absolvendo-o de pecados que ele ignorava se cometera ou no? Depois que a me morrera, Onofre achou que no suportaria sua ausncia. Mas Amlia, a enfermeira que to bem cuidara de sua me, continuou ao lado dele. Casaram-se dois meses depois. Consolado, volta ao computador. Talvez a mensagem no estivesse mais l. Talvez tivessem errado o destinatrio... A mensagem mudara. Agora, imensas letras vermelhas gotejantes, pulsando numa acusao ainda mais terrvel: ASSASSINO! Era isso ento. Ele cometera o mais cabeludo dos pecados. Matara algum. Um homem? Uma mulher? Uma criana? Um monte deles. Era um serial killer. Podia se ver esgueirando-se atravs de becos e vielas, na escurido da noite. Na mo, a faca (revlver, furador de gelo, garrote). demais para ele. No suporta olhar-se no espelho e ver a
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criatura abjeta em que se transformou. Como ltimo gesto de dignidade, atira-se pela janela. Amlia, porta da capela, recebeu com seu sorriso triste, as demonstraes de carinho dos poucos que compareceram cerimnia de cremao do corpo. Cinco anos. Um inferno amargado dia-a-dia. Mas eles eram ricos. Primeiro a me, insuportvel. A colega do curso de enfermagem a indicara para ser a plantonista noturna. Quando percebera que a velha era riqussima, decidiu ajud-la a terminar com o suplcio. Com cautela, aumentava gota por gota, semana sim, semana no, a dosagem do calmante que era ministrado noite. Achou que a mulher, sensibilizada por tamanha dedicao, deixaria algum dinheiro para ela. Enganou-se. Teria que ser o filho. Ele administrava os negcios da famlia. Mas, revirando as coisas dele, soube que estava em tratamento psiquitrico. Com a morte da me, o estado dele sofreu sbito agravamento. Perdido, sem a me, o rapaz voltou-se para ela. Dois anos antes, casaram-se. Depois, por quantas vezes perguntou a si mesma, se a recompensa valeria tanto esforo? Seu plano original era repetir o que fizera com a velha, reforando as doses dos medicamentos controlados. Mas o mdico que o tratava, prevendo que ele pudesse envenenar-se acidentalmente, suspendeu-os todos, optando pela terapia trs vezes por semana. Sem ter mais o que fazer, presa na armadilha que ela mesma armara, s lhe cabia esperar que o destino conspirasse a seu favor. A idia de usar o computador foi ditada mais pelo desespero do que pela lgica.
Era uma vez...

Depois que minha mame e meu papai viajaram para muito, muito longe, quem cuida de mim a Srta. Anne. Ela me disse que eles agora so duas estrelas, e aponta os meus dedinhos para o cu, ensinando-me a ach-los. Eu digo que sim, mas para mim muito difcil encontr-los, quando estou sozinha e com medo, e o cu est to cheio de estrelas. Alis, para mim, algumas coisas so muito complicadas. Por que mame viajou para to longe, se ela sabe que eu no consigo dormir at que venha me cobrir e fazer as oraes comigo? Todas as noites eu peo para Papai do Cu me levar at onde eles esto, porque eu sinto muita falta deles. No princpio, eu contava isso para a Srta. Anne. Mas ela ficava com os olhos cheios de lgrimas. Agora, eu s falo disso com o Russinho. Enquanto tem gente perto, o meu urso s um boneco. Mas, quando estamos sozinhos, ele conversa comigo. Ele gosta muito da Srta Anne. Mas detesta a vov Yolanda. Diz que ela no gosta realmente de ns. Os pais da minha me moram em outra cidade. Vov prometeu que um dia vir me buscar. Russinho diz que mentira, e que ela morre de medo do vov. E ele no suporta crianas. Tem a irm do meu pai, que artista, e mora no estrangeiro. Talvez eu tenha de ir para l, mesmo sem saber se ela vai gostar de mim. Ou ento, fugir de casa com o Russinho. que
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eu tenho um livro cheio de ilustraes, e todas as noites, depois que a Srta. Anne pensa que j estou dormindo, eu e ele lemos a historinha da menina que se perdeu na floresta. E como tem um urso muito parecido, o Russinho cismou que irmo dele. Tem tambm uma fada boazinha que realiza o desejo da menina que queria uma famlia. No livro, a floresta fica do outro lado de um lago imenso. Russinho garante que o mesmo lago do nosso quintal. Basta a gente esperar uma noite de lua cheia, pegar o barquinho e remar at l.
isso a, bicho!
Meu Galo Alcebades: Condor imensa soube pela morsa colgua Joaninha, que tuiu ests uma arara comico, porque anu falei contico- tico que tainha gavio ciscando na tua orca. Pomba, que marmota essa? No fique amulado com ourio. Texugo que eu nunca consagui entregar ningum de badejo. Lebre- se que no doninha conta se a filha da truta da Ema iguana voc, e liblula a perereca patodo mundo. R, r, r... Pardal, eu sei que no tem gara nenhuma. Mas, olha a raposabilidade: siri eu falo,
sabi se voc ia acreditar? Ona bem: pare de ficar com a pulga atrs da ovelha. Salte de panda, elefante a cabea. Se elagosta de voc, e voc gosta de camela, sava seu coalajumento. Peixe barata, ou d uma cora nela at ela ficar cansardinha. Bode no resolver, mas voc vai ficar aliveado. E deixe esse polvo falar. Ostra coisa: no pra me gamb, mas apesar desse meu jeito lagarto, jabuti mutum a salmo no fogo, por essas traras. Agora, no bto mais. Antes, eu discotia, queria bigu. Mas, essas mariposas so tudo a lesma coisa. Bando de galinhas formigadoras. Que se foca! Chato paca, passar por furo contigre. Levar fama de amigo-urso. Agora, eu que nunca fui pilontra, sa cgado desta histria. Macacos me mordam! Eu no fujo da arraia pra defender um amigo, anchova ou faa sol. E eu sou gato a voc, por ter me livrado daquele sanhao com o imposto de rena. Mas, fazer o qu? Se arminho amizade porco pra voc, tatudo bem. Caracol com sua suna. At lobo. Te percevejo pre . Saudaes flamingoistas. Seu amigo Antanor Carneiro.
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O ltimo samurai
(Quem no sabe o que procura v, mas no acha.) A voz ao telefone deixava alguma dvida, j que era fina para ser masculina, e grossa para ser feminina. Mas o que aquela voz dizia, era de uma clareza bestial: - Volte para casa agora, que sua mulher est traindo voc! Cambaleando como um bebum chapadao, fiquei girando em torno de algum eixo imaginrio, enquanto a certeza da dvida corroa meus neurnios. Alvejado de costas pelo dardo venenoso da traio conjugal, eu era agora um corno de carteirinha. Enquanto apalpava a testa em busca dos sinais externos reveladores, j que as pessoas que por mim cruzavam, no desgrudavam os olhos zombeteiros de mim, uma deciso comeava a crescer dentro do meu peito: - Eu vou lavar a minha honra com sangue! E quando o anjo apaziguador, aboletado no meu ombro direito, perguntou com que arma, a voz rouca do capeta, saltitando entusiasmado sobre o meu ombro esquerdo, gargalhou: - Com os chifres, idiota! A partir de agora, este seria o meu destino. Ser motivo das piadas infames e dos risinhos debochados. Logo imaginei os colegas do escritrio, alguns que claramente no iam com a minha cara, colocando o V da vitria
sobre a cabea, enquanto mugiam como vacas loucas. A no ser, claro, que eu agisse como macho. isso! Eu posso at ver as expresses de respeito, quando comentassem a minha atitude. E era nisso que eu ia pensando, enquanto o txi rumava para minha casa. Eu no usaria outra arma seno as minhas prprias mos. Afinal, eu era alto como um jogador de basquete, e apesar de um pouco barrigudo, havia sido faixa amarela de jud, na minha mocidade. E certas coisas ningum esquece. Alm do mais, eu tinha a vantagem da surpresa. No daria chance de reao. Imobilizaria o furunfador por trs, aplicando um ippon seonagi (ou seria um juji-gatame?). No importa, eu estrangularia o desgraado. E o sofrimento dela, vendo o garanho de merda engasgando at a morte, seria minha vingana. Depois, eu a arrastaria pelos cabelos, nua como estava, e a jogaria na rua. A coisa correu quase como eu imaginei. Quase. Entrei em casa sem qualquer dificuldade. A porta do nosso quarto estava fechada, e pude ouvir risinhos abafados l dentro. Meu sangue fervia quando eu segurei a maaneta e investi como um louco, com o grito de guerra dos guerreiros nipnicos. Mas o grito de guerra virou um uivo de dor quando, tropeando no tapete, eu me estabaquei sobre o carrinho de ch, espalhando louas e lquidos para todos os lados. Pior de tudo foram os gritos delas. Minha mulher e minha irm, vestidas apenas de calcinha e suti, pareciam que jamais desligariam as sirenes. Depois, como duas leoas alucinadas, investiram contra mim e me esmurraram para valer. Eu nem senti, de to feliz que estava porque, afinal, era tudo mentira.
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Algum que eu deixei para trs

So tantos em minha volta, que sequer sei se ainda lhes lembro os nomes. Uns sim, com certeza, mas no todos. A vista est embaada. Estranhamente, eu me sinto flutuar acima do leito, como se atrado por uma espcie de im, enquanto abaixo de mim o meu corpo permanece imobilizado. uma estranha sensao de duplicidade. Eu falo. Sinto as palavras articulando-se em minha boca, mas no as escuto. E nem eles. Sei que vieram despedir-se de mim, mas no lhes compreendo a tristeza. De cima, movimento os braos, as pernas, tento obrigar o corpo a levantar-se, abraando e confortando essa gente toda, falando-lhes da ausncia de dor e da imensa paz que estou sentindo. Mas meu corpo, que eu sei j no fazer mais parte de mim, se mantm imvel. Tenho pouco tempo. Concentrando-me, fixo meus olhos em cada um, e tento transformar palavras em pensamentos que possam chegar at eles. quando percebo a falta de algum. E uma angstia, quase uma pontada de dor, me transporta at voc. Do jeito que eu a preservei em minha memria. Trinta, talvez quarenta anos. Uma eternidade, desde o dia em que me despedi de voc, em busca dos sonhos que acreditei serem nossos. Foi quando, olhando em seus olhos, eu disse que voltaria. Uma vida inteira me separou desse dia. Semanas viraram anos, e eu no voltei. Agora, eu s gostaria de poder olhar de novo dentro
dos seus olhos, para dizer que embora tenha tentado tantas vezes, jamais consegui ser feliz de novo. E por todas as noites desde aquele dia, foi com voc que eu dividi minha cama. No estou mais cercado pelas paredes do quarto. Estou envolvido por uma claridade intensa e pela aragem perfumada que acaricia meu corpo. Embora no caminhe, sinto que estou me movimentando. Pessoas vm ao meu encontro, sorridentes. Rostos to queridos. Parentes e amigos que eu achei que no veria nunca mais. Esto todos aqui. E de mos dadas com minha me, vem voc.
O ltimo passo
Um dia voc percebe a inutilidade de todos os caminhos e para Um dia voc compreende que no quer mais saber as respostas e se isola. Voc desiste de ouvir por todo o sempre as mesmas eternas mentiras. E porque nada sabe, enfim se cala. Com seus olhos fechados, enxerga quem voc realmente. Aquele que jamais deixou de ser. A, voc para de respirar e ento voa.
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Suas mos
O toque macio de suas mos entre as minhas, assim que nos conhecemos, uma lembrana recorrente que em sua nsia de no se deixar morrer, insiste em chegar at mim, mesmo agora, atravessando meses e paredes. como se eu as estivesse vendo, suas mos, vivas em seus gestos, na obsessiva necessidade de esclarecer idias, ou o definitivo adeus que se formou em seus dedos. Foram sempre as suas mos a me apontar os caminhos, ou barrar decises atropeladas. Em meus melhores momentos, envolvendo meu rosto, acariciando meus sonhos, batucando impacientes quando eu a tirava do srio, sem jamais me impedir de chegar at voc. Suas mos. Como esquecer o momento em que eu, totalmente vencido pela mais humilhante das derrotas, olhava voc atravs do mel dos seus olhos, e agarrado s suas mos, outra vez criana, apenas chorava? Que imensa fora eu absorvi de voc naquele instante, que me fez depois acreditar que tudo eu podia. E porque eu acreditei realmente que tudo podia, conquistei todas essas coisa de que me cerco e que, por seu brilho, me impediram de ver o quanto eu fui perdendo no correr dos meus dias. Estou s, agora. Em desespero, olho para as minhas mos suplicando ajuda. Mas elas esto vazias.
Em Fabulndia, todo dia domingo

Nalgum lugar entre aqui e acol, existe uma pequena cidade que, de to pequena, sequer aparecia nos mapas; e isso tirava o sono de seus moradores. Isso e todo o milho de problemas que, de tantos, tomavam conta das ruas e invadiam at as casas (como os caramujos gigantes, e o bafo de bosta do Coczilla). Antes de Fabulndia se tornar o centro do mundo, as coisas no eram assim. Quando ainda no havia declarado sua independncia do Estado, no clebre grito, s margens do rio Tupinamb, a cidade padecia. As ruas eram esburacadas, e na poca das chuvas (grandes e pequenas, no importava), o transporte de moradores tinha de ser feito por improvisadas balsas. A bufunfa que circulava nos pequenos comrcios era to rara, que o pessoal tirava xerox das notas, s para poder andar com algum nos bolsos. Como no h mal que dure para sempre, hoje as coisas so outras. Fabulndia, que j foi conhecida como o fiof do planeta, agora primeiro mundo. E os buracos? Continuam todos l, largos e profundos, como na paisagem lunar. Mas agora, quando chove, eles transformam-se em lindos aqurios. As balsas de antes, transformaram-se em modernssimos iates, singrando com graa os pequenos oceanos cor de esmeralda. Voc quer saber o que mudou realmente? Foram os culos especiais de viso positiva. Cada morador, agora tem o seu. Logo que acorda, ele coloca os seus culos. E a que
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o milagre acontece. O matagal, que ameaava engolir as precrias ruas, como que por encanto transforma-se em fileiras de lindos e sussurrantes coqueiros, movimentando-se suavemente na agora perfumada brisa da manh. Para qualquer lugar que se olhe, o resultado o mesmo. Problemas transformaram-se em solues, num piscar de olhos (ou num colocar de lentes). Nas brancas e mornas areias da imensa lagoa que um dia j foi um pinico de exalante fedor, mas que agora uma das sete maravilhas do mundo as barangas que antes ostentavam as suas cansadas adiposidades pela orla lacustre, desfilam agora como as Julianas Paes em quem se transformaram, para deleite dos olhares jovens e os nem tanto. Claro que nem todos esto felizes. Tem sempre um ou outro desmancha-prazer, que insiste em querer que as pessoas abram os olhos (ou tirem os culos), e caiam na real. Mas, ser que essa gente no percebe que o povo quer apenas ser feliz?
At que a morte os separe

No princpio, ele bem que tentou ignorar o toque insistente do celular, maldizendo o esquecimento de desligar o aparelho. Mas, com seis pares de olhos reprovadores fixados nele, achou melhor atender logo. - Popco, aqui a sua ninjazinha... a voz, melada de segundas intenes, soava rouca e sensual. Vermelho at as razes dos cabelos, ele escondeu o aparelho nas mos e gaguejou uma explicao ridcula: - minha mulher. Ela sempre liga a essa hora... os senhores sabem como ... Ningum sabia. Os dois gordos empresrios japoneses, clientes dos sonhos de qualquer grande empresa de exportao, mantiveram suas caras de esculturas da Ilha da Pscoa. J o seu chefe, da outra ponta da mesa, mostrava claros sinais de que iria enfartar a qualquer momento. - Popco, quem t a com voc? - Querida, por favor! Estou no meio de uma reunio importante... Com os olhos saltados, ele gritava baixinho, enchendo de saliva o aparelho. - Mais importante do que eu, Popco? a voz trmula, traa a mgoa que abriria caminho para um choro convulsivo. Ele conhecia bem cada uma dessas teclas. Para evitar o drama, resolveu pacificar. - No isso, entenda. Falo com voc assim que me liberar daqui. Est bem assim?
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- S se voc me chamar de coelha gostosa! - Pombas, Salete, que coelha merda nenhuma. Voc uma burra, entendeu? B-U-R-R-A! Soletrei bem devagarzinho para no deixar dvida. Agora, ele estava pouco se lixando para a reunio. No estava mais nem a para o contrato que os colocaria em p de igualdade com seus maiores concorrentes. E seu dio era to grande que apertou, por engano, a tecla do viva-voz. Por isso, o choro, do outro lado da linha, explodiu naquele silncio, como uma bomba. O lutador de sum que se postava em frente a ele, apontou o dedo gordo para o telefone, cuspindo uma rajada de grunhidos. Mas foi mal interpretado. E o mais calmo dos homens, despido at da cueca dos princpios da diplomacia nipoamericana, usou a nica frase em japons que, dos seus velhos tempos de marinha, aprendeu com uma prostituta de Shangai. Faz trs anos que ele est solteiro. Dono de um currculo invejvel, mas sem poder explicar o motivo pelo qual foi demitido da empresa em que trabalhou por tantos anos, ele cumpre a rotina dos desempregados. Pior ainda o fato de que, agora morando numa penso de terceira, no bairro do Bexiga, recusa-se a fornecer seu endereo. E nem o telefone, j que jurou jamais usar um celular de novo.
O roubo da pena dourada do rabo do faiso sagrado de Zanzibar

Um cientista (no sei se alemo ou austraco) chamado Albert Einstein afirmou que o tempo relativo. A complicadssima teoria, mais ou menos explica que, se consegussemos correr na mesma velocidade em que a Terra executa o seu movimento de rotao, chegaramos ao ponto de partida na mesma hora em que havamos partido. Mas, se consegussemos ser um minuto mais rpidos, chegaramos um minuto antes de havermos partido. No falei que era complicado? Por isso que ningum se empolga com a teoria do Albert. Todo mundo, menos o meu av. Voc acredita que o velho Thellonyous (calma, s o nome do meu av) teve em mos os estudos originais e decifrou o emaranhado de rabiscos? E depois disso trancou-se por vinte longos anos em seu laboratrio, saindo somente quando sua geringona j estava pronta? Pois verdade. Meu av construiu uma mquina do tempo que, segundo ele, o transportaria para viagens fantsticas ao passado e ao futuro. S que os anos de confinamento naquele laboratrio minaram sua sade. E foi a que eu entrei na histria. Por falta de outros ouvidos, o velho, j preso cama, agarrou-se a mim. Como os meus pais estavam sempre ausentes, eu tinha que escolher entre a rabugenta empregada Eugnia, ou meu av.
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Deixe que eu me apresente. Meu nome Rosa dos Ventos. At a apario do meu av, que s conheci outro dia, meu nico amigo era o Ricky, um cozinho preto e peludo que apronta todas. Na verdade, ele s continua aqui porque eu, nas vezes em que a chapa esquentou para o lado dele, ameacei sufocar. A asma pode ser uma arma poderosa, acredite. Pois bem, todos os dias desde que o vov renasceu para o mundo, eu fico ouvindo ele falar. Como ele uma enciclopdia e eu sou boa ouvinte, j conheo de cor a histria do mundo. Ele diz que muito importante para que eu possa ser uma crononauta (viajante no tempo). Tudo o que eu falei at agora, j aconteceu h meses. Vov morreu enquanto dormia. Depois, durante uma semana, eu fiquei pelos cantos tentando me acostumar com a perda. Hoje, finalmente, coloquei a mquina do tempo para funcionar, seguindo as instrues do meu av. S que, na hora H, bateu um medo e eu mandei o Ricky no meu lugar. Eu j falei que o carinha apronta? Pois . Eu disse para ele, assim que chegasse ao seu destino (eu graduei mil e quinhentos anos atrs), trouxesse alguma coisa de l, s para eu ter certeza de que a geringona do vov estava bem calibrada. Pensei numa roupa que estivesse em um varal, ou numa fruta. Quando eu abri a portinhola da mquina, dez minutos depois de ter sentado o Ricky na poltrona de piloto, ele me sai de l com uma pena de pssaro na boca. E no uma peninha de pardal. uma coisa grande. Cinquenta centmetros. Parecendo de ouro.
Foi a que eu me lembrei de uma coisa que o vov contou. L pelos anos 700 d.C. houve uma guerra muito longa envolvendo dois povos antes pacficos: os etruscos e os zanzibarianos. Ela foi to sangrenta que acabou com as duas civilizaes. Sabe o motivo? O roubo de uma pena dourada do rabo do faiso sagrado de Zanzibar. Revoltados com a acusao de seus vizinhos, os etruscos invadiram Zanzibar. Agora, o verdadeiro ladro est aqui, ao meu lado. Eu podia ouvir as palavras de vov: - Voc pode ir ou voltar. Mas no deve interferir com nada. Um pequeno gesto seu poder representar a desgraa para muitos. J decidi. Eu e o Ricky vamos voltar agora para Zanzibar. Com sorte, faremos o que tem que ser feito, e ainda chegaremos em tempo para o lanche. Quando eu passei pela cozinha, mais cedo, a Eugnia estava batendo massa para as panquecas. E ela sempre serve panquecas com sorvete de chocolate.
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sombra da velha goiabeira

O sol ainda levanta-se por trs do horizonte, alaranjando com arte o azul vivo da nova manh. No solo de pouca vegetao, a velha goiabeira se impe aos olhos, oferecendo obrigo para os pardais que a visitam, s centenas. Numa cadeira de espaldar alto, a mulher costura, unindo pacientemente, como num quebra cabeas, as diferentes formas geomtricas. Enquanto trabalha, acariciando o tecido com os dedos pouco firmes, ela murmura os versos de uma cano que, de to antiga, talvez s mesmo ela ainda guarde na memria. minha me. E ao v-la assim sentada sombra da velha goiabeira, mesmo distncia, sinto meu peito apertar-se e uma vontade enorme de correr para os seus braos, deixando livres todas as lgrimas que so muito mais do que apenas palavras. Mas, eu sei que no devo. No ainda, pelo menos. Agora, embalada pelo canto dos pssaros, ela est cochilando. Eu olho suas mos inertes descansando sobre o multicolorido da colcha de retalhos que ela borda. Tentando no ser percebido, eu me aproximo dela e observo seu trabalho. Logo, logo, esta colcha estar forrando a cama, no quarto que ela insiste em manter arrumado, mesmo que todo mundo j tenha lhe dito que eu nunca mais irei voltar. Mas eu estou aqui, no me? No final das contas, como sempre, voc tinha razo. Roo com meus lbios os cabelos branquinhos e aspiro o perfume doce da lavanda, to presente nos distantes dias da minha infncia. Est na hora de deixar voc, agora. At muito breve, me querida.
Time is money
Coisa chata sentir saudade. Ela como um aviso do corao para que ns saiamos da casca. Voltemos para o jogo, j que o relgio da vida continua correndo. Choramos a falta de alguma coisa que algum nos fez experimentar um dia. Ou de algum que nos completou. Dos lugares que nos fizeram sorrir. Saudade da nossa felicidade, enfim. De momentos em que vivamos os dias com intensidade, ao invs de apenas observar o seu lento decorrer. Mas, o que realmente nos impede de retornar s coisas que, indiferentes s barreiras do tempo, ainda hoje nos chamam de volta? O que pode, enfim, ser mais importante do que satisfazer a ns mesmos, enquanto vida ainda nos resta? Eu sei a resposta. Sou exatamente como voc. No posso dar uma banana para a minha rotina. Puxar o freio, simplesmente, e saltar na metade do caminho. Estou atolado de compromissos. Pessoas dependem de mim, tanto quanto eu delas. Agora mesmo, aguardo um telefonema importante. S ento poderei decidir como reorganizarei minha agenda que j estava cheia. Estou preocupado. Detesto improvisos. Uma mudana como esta influir nos dias seguintes. Uma pea retirada de uma pirmide de domins. A televiso fala sozinha. Meu lanche ficou esquecido sobre a mesa. E toda essa angstia. At o relgio mudou o compasso dos seus batimentos. Tudo isso para qu? Mas uma pergunta vazia. Enquanto
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a agonia do silncio persiste, continuo a folhear o novo lbum de fotos. No to novo assim, na verdade. Trs ou quatro anos j se passaram. Nem sei por que peguei. Aqui esto registrados alguns dos nossos momentos. Meu Deus, eu no acredito que seja mesmo eu, com este sorriso imenso a me tomar todo o rosto. Sempre de mos dadas, para cima e para baixo, implorando a estranhos que nos fotografassem. Dois bobos... O telefone. Sim, eu respondo. No h qualquer problema, claro. Eu s vou precisar mexer um pouco na minha agenda. Est combinado, ento! Deus. O pior horrio. Vou ter que sair de casa mais cedo. No caminho tentarei ligar para o Jonas, desmarcando. Logo amanh, que eu j tinha prometido almoar ou lanchar com meu filho. Cancelado, de novo. Problemas, problemas... Vou ter que ligar agora para a minha secretria. Esta noite, nem vou dormir
Ouvinte na linha
- Programa Julcimar Ambrsio, quem est na linha? Os que vivem nos grandes centros urbanos, ou prximos a eles, desconhecem o que representa o rdio na vida de pessoas que residem em cidadezinhas do norte ou nordeste brasileiro, principalmente. E para quem a televiso ainda um sonho distante, o rdio uma janela aberta para a fantasia. - Meu nome ... No, melhor eu no dizer meu nome. - Minha amiga, sua voz to bonita que vou cham-la de rouxinol do rio Negro. Voc gosta do nome? - Muito. E tem tudo a ver comigo, porque estou vestida como ele: amarelo e preto. E um pssaro do meu Amazonas. - T feito, ento. Voc quer contar sua histria ou apenas pedir uma msica, amiga? - Julcimar, pra ser sincera eu queria um conselho seu. - Rouxinol, voc deve saber que se conselho fosse bom, a gente vendia, no ? - Mesmo assim, gostaria muito de ouvir sua opinio. Vou contar o meu problema e voc v se pode ajudar. Estou casada de nova. Dois anos. Meu marido caminhoneiro e passa muito mais tempo viajando do que em casa. Minha distrao o rdio que eu ouo o dia inteiro. Eu tinha como companhia um macaquinho que era muito agarrado comigo. Era criado livre, mas no me largava. Meu esposo trouxe ele de uma das viagens, depois que falei que me
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sentia muito sozinha. Aqui, as casas so muito distantes umas das outras. Dificilmente a gente v os vizinhos. Esto sempre nas roas. Como eu sou s dona-de-casa, me sobram o bordado e o rdio. Depois que o Chico (o macaco) veio para c, eu me senti menos s. At que chegou o soldado (papagaio). Outro presente do meu marido, que ganhou ele numa rodada de dados, e no sabia o que fazer dele. Parece que o bicho era de uma casa de mulher-dama, l pros lados de Altamira. O papagaio gostou de mim e eu dele. Mas o Chico detestou o Soldado. Tanto detestou que se escafedeu por esses matos, pra nunca mais dar as caras. Voc deve estar se perguntando qual o problema de que eu falei, no ? O problema que quando meu marido voltou de viagem, o papagaio comeou a chamar ele de corno. Veja s, o homem da Paraba, to grande que parece dois. E o pior veio depois. Ele torcedor fantico pelo Nacional. E no dia da deciso do campeonato amazonense, se agarrou com o rdio. Foi quando o papagaio danou de assobiar o hino do So Raimundo. Para encurtar, o Nacional perdeu por trs a zero para o So Raimundo. Antes de seguir viagem, no dia seguinte, meu marido deu a ordem: quando voltar, ele no quer mais ver o papagaio aqui. O que eu fao, Julcimar? Eu amo meu marido de paixo, mas me apeguei tanto ao Soldado...
O labirinto
Meu av era um homem muito estranho. Dotado de rara inteligncia, desde muito cedo se interessou por descobrir como as coisas funcionavam. E para tanto, desmontava e remontava tudo quanto era aparelho eltrico e at motores. Depois, passou a consertar coisas, ganhando um bom dinheiro com isso. Da para as invenes foi um passo curto. Nas horas vagas, ele estudava eletrnica e robtica. Sinceramente eu nem sei o que o velho inventou de to importante. Um dia, eu deveria estar com uns dez anos de idade, ns acordamos ricos. Vov havia viajado para o exterior, onde seria homenageado. Depois de uma semana, ele voltou e disse que tinha ganho muito dinheiro, vendendo sua inveno. Foi a nica vez em que vi a minha me chorar. Nossa nova casa era linda. Tinha um quintal imenso. Vov comeou a construir um galpo que, segundo a mame, poderia servir de garagem para um avio. Naquela casa, ns trs vivemos felizes por muitos anos. Eu estudava na capital, quando recebi a notcia do falecimento de mame. O enterro foi muito triste. Vov estava to desesperado que eu disse a ele que no iria embora. Ficaria ali, com ele. Mas meu av nem me deixou terminar a frase. Exigiu que eu fosse. Em dois anos eu terminaria a faculdade de engenharia. Foi quando segredou que estava construindo um aparelho que iria revolucionar o mundo. Depois de formado, eu o ajudaria
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a fazer alguns poucos ajustes que ainda faltavam. Vov morreu semana passada. Nossa casa, agora, parece um fantasma daquela em que ns vivemos. Mas o galpo ainda mais assustador. O velho ergueu outros trs, unindo-os ao primeiro. Apesar de terem portas individuais, eles so apenas um. Ali, meu av construiu um labirinto de corredores estreitos. Por prudncia, eu nem tentei caminhar atravs deles, quando cheguei aqui, ontem. Agora estou trazendo comigo alimentos para um ano, rolos de cordas finas, estacas, lanternas e lampies, um GPS e uma bssola, furadeira pilha e dezenas de pequenos quadros brancos para eu anotar o caminho que estou percorrendo. Porque, veja bem, se o velho era um louco muito inteligente, e se ele construiu um labirinto para que o que quer seja no fosse encontrado por quem quer que seja, eu vou ter que tomar um cuidado imenso para que isto aqui no acabe se transformando na minha sepultura. A primeira parte vai ser a tentativa de mapear cada corredor, transformando-os em ruas identificadas. Partindo da lgica, deverei encontrar um centro onde est guardado o tesouro do velho. Depois, no caminho de volta, vou derrubando cada parede, uma a uma. Como no consegui a dinamite, eu trouxe picareta, enxada e p. Tempo eu tenho. Toda uma vida. E nem pergunte por qu. Pode parecer loucura, mas uma coisa que eu tenho que fazer.
A noite do espantalho
Mabel Park uma cidadezinha perdida entre as extensas fazendas de criao de gado bovino, comuns na regio oeste. Ela nasceu em funo da estrada que estava sendo construda para dar vazo ao que era produzido em toda a regio. Mas, por razes tcnicas, o governo optara por alterar o desenho original da rodovia, e o progresso ficou mais distante de ns. Agora a estradinha transformou-se em mero desvio da rodovia, e s quem faz uso dela so as poucas pessoas que ainda tm negcios ou moram na cidade. Apesar de sua pouca importncia, sempre achei Mabel Park um lugar maravilhoso. Anteriormente, segundo contam nossos livros, era habitada por ndios Navajos, criadores de uma raa de estupendos cavalos. E a tradio mantida, ainda hoje, pela riqussima famlia Gaynor, dona de quase toda a cidade. Seus vizinhos, os Wellerson, so criadores de touros no menos nobres, e vivem da exportao de smem e dos leiles de garanhes. E no resto de terra que sobra, vivemos ns, pouco mais de mil habitantes, quase todos empregados de uns e de outros. Por conta da tradio indgena, muitas lendas foram incorporadas ao nosso cotidiano. Como a do espantalho. Segundo a crena, espritos dos que morrem muito cedo, s vezes recusam-se a aceitar seu destino e ficam para sempre presos ao lugar onde se encontram enterrados. Como eles no tm corpo, iro procurar um espantalho,
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desses que alguns plantadores ainda insistem em colocar em suas roas, para afugentar pssaros. Com o corpo do espantalho, iro buscar vingana contra aqueles que julgam responsveis por sua morte. Estou lhe contando isso porque estou com muito medo. Durante toda a nossa infncia, ns quatro estvamos sempre juntos, indiferentes s regras sociais que impediriam os filhos das duas famlias mais ricas da cidade, de se relacionaram com os filhos de seus capatazes. Na verdade, nossos pais, que tambm cresceram nesta cidade, jamais impediram nossa amizade. Assim que encerramos o quinto ano de escola, Lucy e Harold foram estudar na capital. Mas, nas frias, nos reencontrvamos, ano aps ano. At que, no penltimo vero, Lucy deu idia de irmos nos banhar no velho aude dos Murray. Como as noites estavam muito quentes, seria uma idia maravilhosa. Isso, se no levssemos em considerao que o lugar era afastado demais, e que no haveria nada alm do luar para guiar nossos passos. Para variar, Will concordou logo com a idia. Ele era louco pela Lucy e faria qualquer coisa que ela lhe pedisse. Pelo lado pobre, eu e Joe, que no estvamos muito entusiasmados, demoramos a aceitar o plano. Assim que nossos relgios marcaram vinte horas, nos encontramos na cerca dos Murray . O lago era imenso e muito profundo. A gua estava morna. Por segurana, colocamos o bote na gua, e ficamos prximos a ele. At que a endiabrada Lucy inventou o campeonato de saltos. Equilibrando-se sobre o bote, cada competidor saltaria dali. Eu ganhei a primeira rodada e um beijo da Lucy.
Enciumado, Will exigiu uma segunda rodada. Quando chegou a vez de Joe, ele se desequilibrou e bateu com a cabea na quina do bote. O barulho foi horrvel. Nem sei quantas horas depois, ns desistimos de mergulhar procura dele. O cu estava muito nublado, agora. E ns estvamos congelando. Voltamos com nossos pais e o delegado. Em um barco motorizado e com um potente refletor, o delegado deu vrias voltas. Meu pai e o pai de Joe mergulharam vrias vezes, sem qualquer resultado. Lucy e Will retornaram s suas escolas poucos dias depois. Fiquei sozinho para enfrentar minha culpa e os olhares acusadores dos nossos vizinhos. O pai de Joe comeou a beber muito, e logo aps a missa de um ano da morte do filho, a famlia deixou a cidade. Foi mais ou menos por essa poca que eu vi aquele vulto pela primeira vez. De relance, protegido pela sombra de um beco. Meu corao ameaava explodir em meu peito, mas eu fui at l. Havia palha no cho. A palha que forra o corpo do espantalho.
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Romeu e Julieta
Se voc pensa em se alistar no exrcito porque acha que est faltando aventura em sua vida, pode ir tirando o seu cavalo da chuva. No exrcito, o que menos existe aventura. Vai por mim, porque sei do que estou falando. Eu j nasci fardado. Meu pai o comandante desta base militar. O cara um dino. Dois metros, descalo, e estrutura de um tanque de guerra, farejando preguia e enrolao. As coisas por aqui funcionam como um relgio suo. No existe um macho por aqui - e olha que aqui a parada sinistra - que no tenha medo dele. Foi campeo de boxe, pelo exrcito, recusando proposta para se profissionalizar, porque teria de pedir baixa. Acorda s cinco, todos os dias, para correr em volta do campo de futebol. Trs voltas. Pior que no corre sozinho. Eu sou o recruta dele. A bosta de filho, segundo ele. E ele s no acabou comigo, ainda, por causa da mame. Meu amigo, sabe a histria do poderoso elefante que se borrava de medo do ratinho? por a. Eu no sei qual o segredo da baixinha. Quando o brutamontes me enxerga e eu desenvolvi uma tcnica de ficar invisvel para ele e resolve me atormentar, mame diz as palavras mgicas: - Wally, larga do p do meu filho! E ela fala baixinho, quase cantando. Juro que ele congela. A coisa to irreal que eu um dia ca na besteira de rir da cara dele. Levei um peteleco no cocoruto. Um s. Mas juro que alguma coisa soltou-se l por dentro da
minha cabea, e ainda chacoalha quando eu corro. Na maior parte do tempo, a vida aqui no m. Existem muitos garotos da minha idade, a escola tima. O problema o coronel. Estou pensando em desertar. Avies pousam e decolam daqui todos os dias. Estou amadurecendo a idia. Enquanto isso, para no ficar disponvel um bom estrategista sabe que um alvo fixo muito vulnervel - estou tentando ocupar todas as minhas horas vagas, depois da escola. Por falta de outra opo, eu vou fazer teatro. A professora esposa de um tenente, e chegou a fazer algumas pontas em peas que tiveram sucesso. A chapa esquentou por aqui. Dois galpes da base passaro a servir ao pessoal da marinha. Sabe o que isso quer dizer? Comando compartilhado. Outro galo no terreiro. Claro que, tecnicamente, a base ainda comandada por meu pai. Mas ele odeia dividir coisas. O cara est com os fios to desencapados que ningum aceita lutar boxe com ele. Eu estou adorando. Em silncio e de longe. A, tenho de fazer uma pausa para esclarecer meu relacionamento com Deus. Quando ficou claro que estvamos tendo nossas diferenas, passei a rezar s quando mame vinha fazer as oraes comigo. No era um rompimento definitivo, eu estava s dando um tempo, at que algum l de cima percebesse o filho esquecido. s vezes a gente tem que endurecer o jogo. Mas uma coisa muito especial aconteceu. A filha do comandante de marinha est estudando na minha turma de teatro. Ela tem cabelos dourados e grandes olhos azuis.
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Chama-se Pamela. Um dia ela flagrou meu olhar e deu um pequeno sorriso. Pelo menos, eu acho. Ela fazia escola de teatro, quando o pai dela servia na capital. A professora disse que na pea de final de ano, Pamela ser Julieta. E eu estou disposto a tudo para ser o Romeu dela. Seis meses se passaram. No aconteceu muita coisa. Quase tive que abandonar a carreira artstica. Papai soube que eu estava estudando teatro e a coisa ficou feia. Mais uma vez fui salvo pela mame. Ela disse que adoraria ver seu filho em um palco. Tive at um pouco de pena do papai. Ele no sabia como voltar atrs. Tinha me proibido de continuar com as aulas. E foi naquele momento que eu cresci. Olhei para meu pai e disse que talvez ele tivesse razo. Todos estavam dizendo que eu no conseguiria mesmo. Melhor desistir. A mudana foi instantnea. Esquecido de sua opinio anterior, ele agora dizia que o filho iria ser o Romeu. Desistir? Nunca! Passei a gostar de correr com ele. Agora, pelo menos duas vezes na semana, eu lutava boxe, sob a orientao dele. Era no esporte que eu relaxava. Com a mame, quase todas as noites, eu passava as falas, defronte a um espelho de corpo inteiro, que papai conseguira para mim. Fecham-se as cortinas. Um silncio imenso toma conta do teatro. Depois, as palmas. Um barulho mgico, ensurdecedor. De mos dadas, eu e Pamela saudamos o pblico. E ento eu o vejo. Chorando sem qualquer vergonha, abraado por minha me, orgulhoso, enfim, da bosta de filho que ele tinha.
A lenda da carapeba encantada

(Em rio que tem piranha, jacar usa camisinha ditado popular) Nos tempos de antigamente, a cidade das Araras era toda abraada por uma lagoa imensa, habitada por peixes de todas as cores e tamanhos. As pessoas que moravam em suas margens, pescavam apenas o necessrio para sua alimentao, mas nunca sem que antes pedissem licena rainha das guas claras, a Carapeba Encantada. E faziam questo de contar a cada visitante, a histria da mais linda de todas as fadas que, por despertar inveja e dio na poderosa bruxa Alcia, foi transformada numa peixa. De tempos em tempos, a rede de algum pescador apanhava a Carapeba Encantada, que era imediatamente devolvida gua. Em troca, havia sempre fartura de peixes para alimentar a todos. At que um forasteiro cheio de ms intenes que todos os dias saa para pescar - conseguiu aprisionar a Carapeba Encantada. Ele havia escutado dizer que quem comesse o rabo da Carapeba Encantada, ia ter poder, fama e muitas riquezas. Depois desse dia, a lagoa foi morrendo lentamente, enquanto o malvado ia ganhando cada vez mais dinheiro e ficando cada vez mais famoso. S que agora, apesar de todo poder, fama e riquezas, ele j nem consegue dormir mais. O homem mais velho da Cidade das Araras disse a ele que, segundo a lenda dos ndios Mataruna, quem comer o rabo do bicho que comer
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o rabo da Carapeba Encantada, vai tirar dele todo poder, fama e riqueza. Nota Explicativa Esta crnica foi escrita para o jornal O CARAPEBA, de Araruama.
De muito distante
Por que chora a minha criana, se hoje como em todas as noites eu guardei o seu sono, sussurrando lindos sonhos junto ao seu travesseiro, e trouxe a lua cheia para cobrir-lhe o corpo com seu lindo manto de prata? Por que chora a minha criana, se hoje como em todas as manhs, eu trouxe o primeiro raio de sol para dourar-lhe o rosto, e a brisa mansa veio afagar seus cabelos, murmurando em seus ouvidos doces versos de paz? Por que chora a minha criana, se eu espalhei pelos campos as mais lindas e perfumadas flores da primavera, e trouxe para a sua janela mil passarinhos para cantar s para ela? Por que chora ela, ali de tal forma distante, que minhas mos j no podem toc-la, que meus dedos no podem secar suas lgrimas, e por conta disso eu me desespero ouvindo-a chamar por mim. Ah, quantas mortes terei que morrer ainda, minha criana, at que a mulher desperte em voc, pronta para sonhar seus prprios sonhos.
Uma situao bem patolgica

Quando, ao adentrar minha casa, dei de cara com aquele bando de urubus realizando a Conveno Anual das Bruxas, nem pensei duas vezes. Como de feiticeiro e de louco, todos ns temos um pouco, arremessei contra elas as poderosas palavras de encantamento que aprendi na infncia: - Cruz credo, p de pato e mangal 3 vezes! O que aconteceu? Fora o fato de que as mocrias, com os dedos tortos apontados para mim, rolavam pelo cho s gargalhadas, quase nada. Assim que elas deram uma parada, resolvi expressar toda a minha indignao: - Quac! Foi a senha para mais um acesso de cacarejos. Sem nada mais a fazer, fui rebolando (?) at o corredor. Ali, sem qualquer preocupao em ferir minha sensibilidade, o espelho proferiu sua sentena: eu era um pato. Fora vtima do meu prprio feitio. Quem poderia me ajudar? Minha sogra, nem pensar, j que era ela a bruxa-chefe. Minha mulher, que tocava harpa, estava em turn com a orquestra sinfnica. - Quac! Eu estava mesmo na vala, se precisasse depender desse tipo de ajuda. O bicho nem tinha uma cara inteligente. Foi quando a mais terrvel das dvidas surgiu: e se ele no fosse ele? Olhando bem de perto, no existiam sinais reve158 | Carlos Ney
ladores. S o jeito de andar. - Quac! - Ei, volta aqui, no me faa correr atrs de voc. T bom, desculpe. Foi mal. Eu sei que voc macho, t legal? Mas, que mal pergunte, o que ns estamos fazendo no quarto da velhota? - Quac! - isso! O livro de cabeceira das bruxas. Gnio, cara! Por que eu no pensei nisso antes. Agora estamos aqui, os dois, em frente ao espelho. Duas ou trs horas depois, e s agora eu comeo a pegar o jeito da coisa. O pato j virou um lagarto verde, e agora esta zebra nervosa que encheu o quarto de bosta. Depois que terminar por aqui, vou descer e transformar aquela velhacaria em bichos exticos. Quem sabe eu no arrumo um troco, vendendo elas para algum circo dos horrores? Ou voc tem alguma idia melhor?
a velha!
Vnhamos, eu e o meu fusquinha do ano... de 1967, corcoveando bravamente por sobre os altos e os baixos da nossa realidade buracopolitana quando, no mais que de repente, eu avistei uma vaguinha no jeito. Vaga pra ser do meu jeito tem que ter pelo menos quatro metros de larga e dez metros de funda, seno eu travo. Depois
de exaustivas idas (pra frente) e vindas (pra trs), saltei do possante. Afogueada, mas vitoriosa. E quase enfartei quando um rapazinho azul, brotado assim do nada, espetou um bilhete nas minhas fuas. - um real! Juro que por conta dessas tantas primaveras j somadas na carcaa, tento manter minha pose de vov meiguinha. Mas s verniz. Por baixo da casca, pura maaranduba; pau de dar em doido. E eu j nem uso sapato que pra no ter que descer do salto. Porque quando eu me espalho, ruim de me juntar. Com toda a candura que ainda me restava, falei para ele docemente: - Filho, v se catar! E deixei ele l com cara de ndegas, cantando o rap dele para quem quisesse ouvir. Ora, v se me erra! Me obrigar a pagar para estacionar o carro na rua, tostando a pintura no sol. Ou a rua, que j est uma m..., deixou de ser pblica para virar privada? Privada, entendeu? R, r, r, r. Se voc acha que este o final da comdia, se segura na peruca que ainda vem mais. Se o seu carro aquele mesmo que para estacionar voc pagou (lembra?) for roubado ou danificado, adivinha quem vai pagar? Quem? Quem? Voc! Que pra deixar de ser besta. Quem mandou no reagir a assalto?
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A cidade das sombras

Est mais frio agora. Este lugar, noite, cercado por todas as sombras, de uma beleza triste. Eu digo para a minha bonequinha que ela pode dormir tranquila porque, l de cima, Papai do Cu est olhando para ns duas. Ningum pode dormir nos bancos do parque. Mas o guarda, um velhinho que j trabalha aqui desde antes de eu nascer, no teve coragem de me deixar do lado de fora. Por causa da minha barriga, ele disse. Faz oito dias que eu tenho passado minhas noites aqui, depois que meu padrasto no quis que eu continuasse em casa. Quando a gravidez ficou evidente, ele me deu uma surra de cinto. Eu s continuaria ali, se fizesse um aborto. Eu no aceitei. Minha me, coitada, ainda tentou convenc-lo a perdoar-me. Com o rosto marcado pela ltima agresso, ela me abraou chorando e ajudou-me a colocar na mala as poucas coisas que eu tinha. Tentei sorrir para ela, dizer que no se preocupasse comigo. Eu iria morar com o JR. Depois de me beijar, ela colocou um pequeno rolo de notas em minha mo. Dinheiro que ela ia retirando de pouquinho, daquele que meu padrasto dava para a despesa da casa. Eu nem olhei para trs, com medo de no conseguir seguir adiante. No princpio vaguei pelas ruas mais iluminadas da cidade, com o celular na mo, esperando ansiosamente pela ligao do meu namorado. E enquanto deu para segurar, no comi nada, para economizar o pouco dinheiro que tinha.
De madrugada, num boteco pequeno e sujo, tomei um copo de caf com leite. O rapaz que me serviu tinha o rosto coberto por espinhas inflamadas. Quando viu que eu no comeria nada, ele me trouxe um po. E deu um sorriso. Foi ento que eu percebi que estava prxima da estao rodoviria. Fiquei sentada na rea mais fechada, por causa do vento frio. A plataforma estava lotada de gente e caixas de papelo estufadas. Uma senhora perguntou se eu iria embarcar no mesmo nibus que ela. Mostrou-me a passagem. Seu destino era uma cidade pequena, no extremo norte do estado. Eu contei tudo a ela. A expulso de casa e o abandono por parte do pai da criana. Choramos eu e ela. Deu-me uma sacola, com seu lanche da viagem. Insistiu muito para que eu aceitasse. Mesmo depois que o nibus j havia sumido de vista, eu ainda acenava para ela. tardinha, vim para o parque. Foi quando conheci o guarda. Firmino o seu nome. Ele me disse que, se eu fosse vista ali depois do fechamento do parque, ele iria ficar encrencado. Eu iria embora, ento, para no prejudic-lo. Ele pensou um pouco e depois me levou at um pequeno espao cercado por tela de arame, onde antes ficavam os banheiros. Aquilo brevemente entraria em obras. Por enquanto, eu estaria segura ali. Pela manh, antes de abrir o parque, ele me trouxe uma caixa de leite e um pacote de biscoitos. Disse para eu circular pelas partes menos movimentadas do parque, trocando de roupa todos os dias. Deu-me algumas revistas antigas e livros. Uma pessoa que estivesse lendo, chamaria
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menos ateno, ele explicou. Pelos classificados, pude ver os locais que mais empregavam moas. E esta passou a ser minha rotina de todos os dias. Ir de loja em loja, pedindo servio. Mas logo compreendi que ningum contrata grvida. Uma garota mais ou menos da minha idade falou-me para perguntar s pessoas que distribuem folhetos. Tive sorte. Comearei amanh. Corri para o parque para contar a novidade ao Sr. Firmino. Hoje eu iria dormir cedo. Minha barriga roncava de fome. Tomei um susto quando os vi. Quatro jovens. Todos vestindo agasalhos pretos e mascarados. Nas mos, tinham cordas e pedaos de cabos de vassoura, afinados numa das extremidades. Pouco adiantou minha luta. Despiram-me e ataram meus braos e pernas esticados s estacas encravadas no cho e entupiram minha boca com um trapo imundo. Apenas um deles falava. Com um faco dentado, ele disse que iria fazer uma cesariana em mim. Agora, no sei mais o que sonho ou realidade. Eu me lembro da luz intensa que tingiu a noite de azul. E do anjo prateado, com uma espada de fogo nas mos. No sei dos garotos. Estou com muito sono. As estrelas esto mais perto de mim, e eu sinto que, se esticar minha mo, poderei toc-las. A ltima coisa que recordo da voz do anjo me dizendo que vai me levar para casa agora.
A gata de botas
No foi por falta de aviso. A campainha do bom senso apitou assim que botei meus olhos na casa. O Palcio do Pecado. Uma diabinha gigantesca, piscando num vermelho indecente, era um convite que eu no queria recusar. L dentro, num ambiente enfumaado, mulheres nuas e lindas serviam s mesas. A batida forte da msica eletrnica, as luzes piscando alucinadamente e aquela bebida azul, deliciosa, acabaram por derrubar todas as minhas j frgeis barreiras. Quando o cardpio foi colocado minha frente, meu dedo trmulo apontou o item mais caro. Nem sei como cheguei at aqui. uma masmorra medieval, toda de pedra, e com o teto espelhado. No centro, a Mulher-Gato. E que mulher. Uma loura alta e gorda. Tem a pele muito branca e est vestida apenas com as tatuagens que lhe cobrem todo o corpo. Tem um chicote de couro na mo. Cada estalo um uivo meu. No incio eu gania mais alto (eu no podia falar, s latir), mas quando percebi que isso parecia fazer com que a nazista batesse ainda mais forte, decidi sofrer em silncio. Claro que eu tentei argumentar com ela. Queria ir embora. Amanh ou depois eu voltaria, menti para ela. Mas os caras por aqui so rigorosos. Eu paguei pelas doze horas. E a festa estava s comeando. Quando eu j estava quase conformado com o meu destino, comearam a surgir, um a um, todos os personagens das histrias infantis. Eu havia, sem perceber,
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escolhido zorra total. Nu, preso ao poste por uma coleira e com o corpo todo besuntado de leo, eu assisti horrorizado s coisas que eles faziam comigo. Coisas essas, alis, que guardarei como um segredo que levarei para o tmulo. Eu me lembro do Capito Gancho, do Pinquio, do gnio da lmpada do Aladim e dos diablicos anezinhos da Branca de Neve. E ainda falta o gigantesco King Kong, para eu me preocupar. Mas, tem uma coisa que ainda bem mais aterrorizante. Como eu s vou ser liberado s seis da manh, e com as minhas costas lanhadas pelo chicote da gata de botas, o que que eu vou dizer em casa?
Macaquinhos no sto
A casa sombria, mesmo debaixo do sol do meio-dia. Grande e antiptica, ela demonstrou com um silncio hostil que no nos quer sob o seu teto. Mas, mame e o meu irmo esto adorando morar aqui. Por que mame teve que mudar de cidade? Quando eu me lembro do nosso cantinho gostoso, meu corao fica apertado; mas eu no choro. Meu irmo tinha o quarto dele e eu dormia no da mame, ouvindo as histrias que toda noite ela contava para mim. Agora, sozinho neste quarto imenso, sei que minha infncia acabou e que todos ns estamos em perigo. Outro dia, meu irmo estava diante do computador
atirando contra uma gangue de macaquinhos. Eu ouvi quando ele disse para a minha bab que, apesar de suas carinhas simpticas, eles so monstros do espao, que vieram matar a todos ns e tomar o nosso planeta. Por isso eles tm que ser eliminados. Pois bem: eu descobri que temos macaquinhos no sto. Um bando deles. Iguais aos que meu irmo explode no videogame dele, s que de verdade. Aps pensar muito, comecei a colocar bananas no peitoril da janela do meu quarto. S no terceiro dia a minha armadilha funcionou. Depois disso, em todas as manhs, assim que minha me saa para o trabalho, eu ia buscar bananas e biscoitos para eles. Dez dias agora. Eles j se habituaram comigo. So cinco, e no parecem to terrveis catando os sucrilhos que eu espalhei. Estou deitado e imvel como uma esttua. O revlver que era do papai j est na minha mo. Mentalmente estou fazendo a contagem regressiva. Agora!
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A gostosa da minha rua

Agora, eu sou obrigado a ficar aqui caminhando em crculos com este cachorro idiota. - Cara, eu odeio este animal! E nem meu ele . Minha me comprou ele para a minha irmzinha... E sou eu que tenho que pagar este mico. Cada amigo meu que passa por aqui, d uma paradinha, s para zoar da minha cara. Em vez de estar l no campo, com eles, eu tenho de bancar a bab desse co. Mas, isto foi ontem. Voc acredita que eu estava to distrado reclamando do meu azar, que nem vi a sorte chegar perto de mim? S ouvi a voz. Linda. A minha deusa. Bem aqui, falando comigo. Claro que na hora eu travei. Nem conseguia respirar. S balanava a cabea para cima e para baixo, como um daqueles bonecos idiotas. Ela adorou o cachorrinho. Fazia festas no bicho e falava comigo. Pura msica. E eu ali, que nem boneco de mola, s tentando voltar a respirar. Mas, hoje outro dia. E eu estou aqui. Minha me at estranhou quando eu coloquei a coleira no poodle. Meus amigos passam e me convidam para jogar bola. Que futebol que nada! Quando ela perguntar a minha idade, vou dizer que tenho quase dez. Mame sempre diz que sou muito alto para ter s sete anos.
A viva Minnye
CAPTULO I Enquanto eu arrastava meus ps ladeira acima, de volta das compras semanais de mercado, Alfred segredava em meus ouvidos: - Sempre devagar, doura. No esquea de que voc uma frgil velhinha. Faa algumas caretas, por causa do esforo. Nunca deixe eles saberem que voc seria capaz de subir esta ladeira correndo, com um saco de batatas em um dos ombros. Com o rosto encoberto pela sombrinha antiquada, enquanto disfarava um sorriso, eu passeava meus olhos pelas caladas de ambos os lados da rua, procurando alteraes de padro. O jogo de Kim. O exerccio solitrio dos espies e dos ladres para se manterem vivos. - Tem um homem na nossa porta, Alfie. - No olhe para l! Voc enxerga mal, lembra? Desta distncia, ento... No por aqui que tem aquela rvore pequena de que voc tanto gosta? Pare sob a sombra dela. Faa um pouco de teatro e v descrevendo o homem para mim. Eu e Alfred fomos casados por mais de dez anos. Por conta das nossas vidas duplas, jamais fazamos planos para o futuro distante. Quando ele morreu, descobri que no me abandonara. Sua voz esteve sempre comigo, dia aps dia, desde ento. Cantarolando comigo as canes de que gostamos, e sabendo descrever com assombrosos detalhes todos os
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lugares que tnhamos visitado juntos. No guardvamos retratos que pudessem revelar os caminhos que juntos j havamos percorrido. Alfred tem medo das ruas. Alerta para a existncia de um perigo que mora do lado de fora de nossa casa, e que no dorme nunca. Como ele apenas voz, eu tenho que descrever tudo para ele. Como agora. - Ele um homem grande e parece estar em forma. Tem quase sessenta anos. Est bem vestido: palet branco e calas azuis. Tem porte de militar e seu brao esquerdo apia-se em uma bengala. No tem qualquer carro prximo a ele. Usou txi ou veio andando. No parece dissimulado, como um policial. Est encostado ao muro, prximo primeira das trs portas. Nossa casa, por idia do Alfred, tem trs entradas exatamente iguais, com caminhos independentes. Usamos a entrada do meio. As outras duas abrem para escadas que conduzem aos pequenos apartamentos de solteiro, no andar superior. Quando estou quase chegando, Alfred d o aviso final: - Olhe para os olhos dele, Minnye. Um cavalo se conhece pelos dentes. Um canalha, pelos olhos. D pouca ateno aos sorrisos e salamaleques. E mande-o embora. CAPTULO II Agora, na sala de estar, eu sirvo uma xcara de ch ao major Grooves. um processo lento, que se destina a mexer com os nervos do visitante. Mas ele permanece calmo. Ele diz estar interessado em alugar
um dos apartamentos, por um perodo de dois meses. Nesta poca do ano, no incomum aparecerem forasteiros atrados pela pesca em alto-mar. Mas, normalmente, eles nunca vm sozinhos. E costumam ficar nos dois hotis prximos ao centro da cidade. Mas ele diz que ambos esto lotados. So comuns tambm os pintores de paisagens, atrados pelos belos cenrios e os dias claros e quentes que unem primavera e vero. Eu no dependo financeiramente da renda dos apartamentos, mas Alfred diz que uma boa fachada. Um deles vem sendo alugado pelo ano todo para o Sr. Sommers, um vivo ingls aficionado por pintura, que passa aqui os meses de vero. Pinta todos os dias. Quando vai embora, carrega com ele uma pilha de telas. Como o outro apartamento est vago, eu tenho de alug-lo. Ficaria esquisito se no o fizesse. Resolvo pedir o dobro do valor que cobraria de outro inquilino. Antecipado. No confio nos olhos dele. Pelo leve sorriso, demonstra que sabe que est sendo explorado. Mas, nem pisco. - Viva, a senhora sabe jogar bem os dados. Eu vou aceitar. Tenho dois amigos que chegaro por estes dias. Vm de barco. So marinheiros experientes. Para mim, sero as primeiras pescarias, por isso preferi fazer os meus pernoites em terra. S que, devo confessar-lhe, no esperava pagar tanto. Como eu nada respondi, ele levantou-se. Da porta, informou que s cinco horas voltaria com a bagagem deixada em um dos hotis. Ele pagaria o valor acertado e eu entregaria
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suas chaves. Joj chegou por trs de mim, logo depois. Por meio de gestos, perguntou o que deveria fazer. Pedi que ele esperasse. Teria que conversar com Alfie, primeiro. CAPTULO III Quando eu vi o Joj pela primeira vez, ele tinha cinco anos. Parecia um animalzinho magro e aterrorizado. Alfie disse que Deus o colocara em nossas mos, para que cuidssemos dele. Havia sofrido tantos tipos de agresses, que havia perdido a voz. Agora, ele um homenzarro de quinze anos. Ganhou nome, documentos e uma histria. Meu marido o ensinou a operar os equipamentos de vigilncia que monitoram todos os cmodos da casa. Devo dizer que esta no uma casa comum. Ela possui quatro cmodos que no constam da planta oficial. Em um deles est instalada a central de vigilncia, sob o comando de Joj. Mas, afinal, que segredos ns mantemos guardados aqui? Quando nos conhecemos, Alfie e eu andvamos em caladas contrrias. Ele era o detetive da maior seguradora do mundo, perito em obras de arte antiga. Mais especificamente, pinturas. Eu era estudante de arte renascentista, em Paris, e pertencia a um grupo de teatro amador. Para pagar minhas contas, eu fazia excelentes reprodues de telas famosas, para vender a turistas. Mas isso nunca era o suficiente. Um dia, quando eu estava em uma praa, desenhando
retratos em carvo para arranjar mais algum dinheiro, notei o interesse com que um homem observava uma de minhas telas. A que eu colocava sobre um cavalete, como um trabalho em construo, j que pouco mais de um tero dela estava pintada. Ele era um cavalheiro, tanto nos modos quanto na forma de se vestir. Assim que fiquei desocupada, ele apresentou-se. Entregando-me um carto, disse que pretendia contratar-me para reproduzir um quadro de famlia, danificado parcialmente em um incndio. No se tratava de obra de arte, mas tinha valor sentimental, disse ele. A importncia que eu receberia, tirou o meu sono. Depois daquele dia, jamais me faltou dinheiro. Cinco anos juntos. Alfred visitava a casa de grandes colecionadores, para os relatrios destinados seguradora. De posse das plantas e conhecendo os dispositivos de segurana, s nos restava esperar que os donos das manses viajassem, para que minhas reprodues ocupassem o lugar das telas originais, por ele fotografadas. Quando nos preparvamos para o ltimo golpe, o meu Alphonse foi morto na rua. A polcia tratou o caso como tentativa de assalto. Foi quando a jovem Angeline saiu de cena, dando lugar idosa viva Minnye. Faz trs anos que ela mudou-se para c. Um escritrio de advocacia administra o pequeno fundo de investimentos legado pelo finado marido dela (um burocrata francs que realmente existiu, casado com a mulher de quem Minnye herdou o nome, desde que ela, por uma feliz coincidncia, desapareceu misteriosa172 | Carlos Ney
mente), depositando mensalmente na agencia bancria de seu bairro, o valor destinado aos seus gastos pessoais. Esta a histria que ns construmos. Mesmo sabendo que so mnimas as chances de ser descoberta, eu no relaxo a vigilncia. Alfie diz que algum sabe sobre ns. Quem o matou continua procurando por mim. Uma senhora vem aqui todos os dias para fazer a limpeza e preparar a comida. Ela de pouca conversa e preocupa-se apenas com seu trabalho. Eu acordo cedo e Joj me ajuda com a maquiagem, que eu s retiro depois que ela vai embora. Uma vez por ano, no vero, eu venho me desfazendo das telas originais que roubamos. Uma de cada vez. Elas sero negociadas pelo Sr. Sommers, que as retira daqui, junto com as telas que pinta. Assim que as vende, ele deposita a minha parte em uma conta numerada na Sua. Apenas ele e Joj sabem quem eu sou realmente. Agora, Alfie quer que eu tome uma medida radical. Ele diz que nossos inimigos chegaram at ns. Como ainda no tm certeza, mandaram um de seus perdigueiros. Neste cmodo transformado em laboratrio, estou enchendo a velha banheira de cobre com cidos altamente corrosivos. As trs telas valiosssimas - as ltimas que nos restam - devero ser afundadas ali. Segundo Alfie, bastaro cinco horas para que no reste qualquer vestgio delas. Os potentes exaustores sugam os gases provenientes da mistura de cidos, e os transportam at uma fornalha. Num duto, a fumaa filtrada e levada at a chamin da lareira. O Sr. Sommers tomar as providncias necessrias para a nossa
evaso imediata, caso tenhamos que criar um acidente para o major Grooves (ou seja l que nome ele realmente tenha). Mas, s no caso dele mostrar que realmente perigoso. Enquanto isso no acontecer, temos pela frente um vero bastante longo. Eu e o major Grooves. Mais uma vez eu vou colocar prova o meu talento de atriz, e mostrar ao velho gato que o jovem ratinho tambm conhece alguns truques. Ser a ltima cena da doce velhinha. Joj, j de posse dos novos documentos, ir para Londres cursar uma escola destinada aos jovens com inteligncia acima da mdia. Assim que completar a maioridade, tomar posse de uma pequena fortuna. Nunca mais nos veremos. So os ossos do nosso ofcio, repleto de encontros e despedidas. E quando a primavera chegar, j ser hora de preparar a partida da viva. Todos na cidade sabem que ela tem uma irm bem mais nova, residente em outra cidade. Apesar de estar sempre retardando esse dia, ela ir mudar-se para l. Atravs dos advogados, o Sr. Sommers colocar a casa venda, depois que a mesma empresa de engenharia que a construiu alterar a planta, suprimindo cmodos e corredores secretos. Alm de equipamentos e utenslios no convencionais que, antes da retirada, sero destrudos. Como no posso mudar as coisas, terei de seguir adiante, como sempre, sem olhar para trs. E, afinal de contas, vai ser muito bom voltar a ser jovem, sentindo de novo o prazer de ser mulher e linda. Ainda mais nas Bahamas, o paraso dos milionrios e dos ladres aposentados.
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Bandido bom bandido morto!

Sabe aquelas manhs de cu enfezado, em que voc acorda j com a certeza de que aquele no ser um bom dia? Mas como teimosia a me de todas as desgraas, eu fui em frente. Quer dizer, eu tentei. Mal eu botei um dos ps do lado de fora, um homem meio que me empurrou de volta. Ele estava apavorado. Se o cabra era preto, tinha branqueado de susto. No era nem alto e nem baixo; e puxado para o magro. Mas foi o que ele falou, que estragou de vez o dia: - Dona, me deixe entrar, que se eles me pegam, vo me matar. E no que disse, foi indo direto at ao meu quarto, enfiando-se debaixo da minha cama. Sou uma senhora sria, pelo amor de Deus. Incapaz de botar qualquer um na minha casa. Pelo menos, at agora. O que os vizinhos vo dizer de mim? J pensou na explicao? - No sei quem era o homem, no. Foi entrando e se enfiando embaixo da minha cama. Por outro lado, sou crist. No posso negar ajuda a quem me pede. Boto o homem para fora, e a? Vai que pegam o coitado? Eu iria morrer de remorso. Mas eu tenho que sair. J estou atrasada para o meu trabalho. O vestido novo, que eu botei para pegar um ar, no varal, me lembra que ainda nem troquei de roupa. E agora? To entretida estava que nem percebi que, pela por aberta, havia entrado outro homem. Grande, cara de poucos amigos. - Entrou um homem aqui, senhora?
- Ah, moo, o que o senhor vai fazer com ele? - Ele vai morrer, porque assim que se trata bandido. - Ele entrou aqui, sim. Mas eu no quero defunto dentro do meu quarto. Eu falei isso para as costas dele, porque ele j estava em meu quarto, tendo na mo o maior revlver que eu j tinha visto em minha vida. Ento, ele gritou para algum, l fora: - Corra para a rua de trs. O vagabundo pulou o muro. Pulou, como? O muro alto e liso. No tem nada para servir de escada eu pensava comigo mesma. Mais tarde, o companheiro dele voltou. Estava cansado, havia corrido muito. No encontrara nada. S uma mulher esquisita, de vestido vermelho. Vestido vermelho? Minha dvida era quase uma certeza. Meu lindo vestido vermelho. O novo, que eu usaria para o trabalho. O cara roubara o meu vestido. Agora, sou eu quem est atrs dele. Se eu pegar, mato o bandido.
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O nome do jogo
CAPTULO I Claro que tudo foi decorrncia do conturbado momento pelo qual eu passava. Afinal, em menos de um ano (na verdade onze meses cravados), eu tinha que trocar minha tranquila cidade natal - um minsculo pontinho encravado no extremo sul do mapa - por uma So Paulo transbordante de sonhos e pesadelos. Isso, depois que minha mulher arremessou na minha cara, como se fosse uma torta cremosa, que ela havia cometido um erro ao se casar comigo. E como h 10 anos eu trabalhava para o pai dela era o gerente, vendedor, cobrador e saco de pancadas morais do velho na nica empresa da cidade, da noite para o dia me vi duplamente na rua; demitido do emprego e expulso da nossa linda casa que, na verdade, era apenas dela. Com um diploma virgem de advogado e a maleta magra de pertences minha cara-metade confiscou os presentes (dela) que enchiam o guarda-roupa - eu parti para a terra da garoa e das oportunidades, disposto a mostrar para o mundo, que a vontade faz o homem. Claro que, aps semanas de po com mortadela e um caf muito mais mulato do que preto, minha vontade era de voltar a ser o homem que eu tinha sido. Principalmente pelos sonhos recorrentes em que minha mulher chorava lgrimas de arrependimento, e meu sogro ficava dando tapinhas em minhas costas. Mas s at que o despertador me expulsasse de volta para a realidade congelante de todas as manhs. Isso porque, s seis horas, l estava eu no Viaduto do Ch,
protegido pelas duas placas de anncios que me transformavam em homem-sanduche, caminhando daqui pra l e de l pra c. A vida havia resolvido pegar pesado comigo, e nem ao menos se dera ao trabalho de me explicar por qu. Quando escolhi minha profisso, havia jurado que no aceitaria menos do que ser o astro de algum escritrio de renome. Mas o casamento com a garota mais linda - e tambm a mais rica da cidade - tornou sem graa os meus sonhos, j que a partir de agora, o cu seria o limite. Mas nada me preparou para a queda que veio depois. E agora, transformado em outdoor ambulante, sou a espcie mais rastejante da pirmide social. Estava eu to entretido em enumerar, para mim mesmo, cada uma das minhas desgraas, que demorei a perceber a mulher que olhava para mim, insistentemente. Coisa absolutamente rara, j que as pessoas sempre ignoram o homem por trs das tabuletas. E como as mulheres tm um olfato apurado para os azares, h muito tempo que nenhuma delas sequer arriscava uma segunda olhadela. Fosse pelo que fosse, ela no disfarava o interesse. Juntando o resto de coragem que ainda tinha, fui at l. Depois de alguns embaraosos instantes, nos quais as palavras teimavam em no sair da minha boca, ela tomou a iniciativa. Anotou em um carto de visitas o endereo de um bar carsimo ali perto, pedindo que eu a encontrasse s 18 horas. Ela me faria uma proposta de trabalho. Aceitando ou no, receberia cem reais pelo tempo perdido. Antes do
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horrio marcado, vestindo o meu melhor terno (na verdade, o mesmo, j que era o nico que tinha) eu ficava indo e voltando pela calada do bar, rezando para que ela viesse, e j imaginando o que faria com aquele dinheiro. Quando saltou do txi, eu quase no a reconheci. Linda, com a elegncia discreta das que no precisam provar nada a ningum. Foi ali, exatamente naquele instante, que uma parte de mim que eu j imaginava morta, anunciou-se de forma pouco elegante. Pegando-me pelo brao, indiferente aos que nos olhavam com espanto, ela me guiou at uma mesa j reservada. Cheio de respeitosos floreios, um garom - que parecia ter brotado do cho como um coqueiro - apressou-se a anotar o pedido dela, deixando-nos a ss logo em seguida. A proposta era muito simples: ela queria que eu me tornasse o marido dela. CAPTULO II Com a boca seca, e as mos tremendo tanto que preferi escond-las, ouvi em silncio cada detalhe do que ela me oferecia. Como marido e mulher, ns dois passaramos um ano viajando pelo mundo, sempre hospedados nos melhores hotis. Todo ms haveria um depsito de cem mil reais num fundo de investimentos que seria aberto em meu nome, mas que eu s poderia resgatar aps um ano, quando nos separaramos. A partir da, cada qual iria viver sua prpria vida. Simples assim. Resgatado do inferno e direto para o paraso, num vo sem escalas, com direito a um bnus de um milho e duzentos, mais os juros que se
acumulariam nesse perodo. Claro que eu estava cheio de perguntas na ponta da lngua. At que ela impusesse sua condio: sem explicaes. Ela diria apenas o que eu precisaria saber, e nos momentos que julgasse oportuno. E, assim que foram servidos nossos pratos que para ser sincero, comi sem reparar no gosto - ela abriu a bolsa e empurrou a nota de cem reais que eu, com a velocidade de quem rouba, enfiei em meu bolso. CAPTULO III Agora, mais de trs meses depois, eu me debruo sobre uma So Paulo que em nada se parece com a cidade fria e suja que eu conheci. Na verdade, foram meus olhos que mudaram, j que agora a contemplo do 15 andar desta sute de hotel. J no sou mais eu. Tenho outro nome agora. Quatro cirurgias plsticas transformaram-me em algum que estou ainda aprendendo a conhecer. Quase no saio, para fugir das perguntas embaraosas de pessoas que jamais vi, mas que conheceram o homem cujo lugar eu agora ocupo. Minha mulher montou aqui um pequeno hospital, para justificar meu recolhimento. Diariamente me vejo obrigado a ficar sob a guarda de um mdico estrangeiro que ocupa o apartamento contguo ao nosso. Ele troca os curativos em meu rosto e me faz tomar comprimidos de todas as cores. Alexandra este o nome de minha mulher simulou o agravamento de uma doena muito sria que me obriga a manter repouso absoluto e acompanhamento mdico em tempo integral.
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Se houver necessidade, no caso de uma visita que no possa ser evitada, serei sedado, meu rosto estar coberto pela mscara de oxignio e o mdico ir permanecer ao meu lado at que voltemos a ficar sozinhos. Hoje cedo eu vi o comprovante do terceiro depsito de cem mil reais no fundo de investimento. Foi uma emoo estranha saber que existir uma nova vida esperando por mim, depois que tudo isso terminar. Meus dias transcorrem numa morosidade que o luxo impede de ser entediante. Leio muito, assisto tev e falo sozinho, j que o amvel doutor parece ser surdo e mudo. Alexandra costuma ausentar-se muito. Nesses dias, como se estivesse armando um imenso quebra-cabea, meu passatempo est sendo o de desenrolar a histria, preenchendo as lacunas do que no me foi contado, com aquilo que minha mente cria. o talento de escritor, querendo romper a casca do ovo. Assim, de modo geral, estou certo de conhecer quase todos os fatos. O homem muito rico casa-se com a jovem deslumbrante e muito, muito ambiciosa. Aps quatro anos, ele decide (por alguma coisa que eu nem imagino, mas que deve ser muito sria) que no quer mais manter o casamento. A separao, para ela, est totalmente fora de cogitao.Existe um contrato pelo qual ela s ter acesso parte mais gorda da imensa fortuna, aps cinco anos de casamento. Para evitar o divrcio prematuro, ela teria que se livrar imediatamente dele. Mas existe o seguro que a favorece que s perder a validade ao trmino do contrato uma verdadeira armadilha que no pode ser ignorada, j que d direito seguradora, durante a vigncia da aplice, de investigar
minuciosamente o bito do contratante, excluindo-se da obrigao de pagar o prmio estipulado, no caso de morte suspeita. E como deve ser muita grana, os caras vo investigar mesmo. E a que eu entro neste drama. Segundo minha teoria, o cara j no est mais entre ns, e sua morte foi to misteriosa que o corpo guardou com ele alguma evidncia, o que a obrigou a dar sumio nele. E eu a imagino, no maior desespero, j prevendo o futuro sombrio. Sem dinheiro e jogada em alguma cadeia infernal. Mas como, para algumas poucas pessoas, o destino sempre age como fada-madrinha, ela me encontra, e ao perceber a semelhana entre mim e o defunto, resolve ressuscitar o homem; pelo menos por mais um ano. Plano perfeito. Quanto ao medo de eu ter igual fim, valho-me da lgica. No sendo ela uma serial killer, jamais cometeria a mesma loucura pela segunda vez. Eu tento me convencer disso. CAPTULO IV Faltam seis dias para aportarmos em Creta, o destino de nosso maravilhoso cruzeiro. Depois de definhar por tanto tempo naquela priso cinco estrelas, o sol e a brisa do mar operaram um verdadeiro milagre em mim. Apesar de ainda estar recebendo cuidados mdicos, aproveito para caminhar livremente pelo transatlntico, misturado a todas aquelas pessoas que vivem no mundo sobre o qual eu s lia nas revistas das celebridades. As cicatrizes em meu rosto quase que desapareceram, e eu j no preciso me empanturrar de comprimidos. Por aqui, mesmo protegidos
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pelo anonimato, continuamos os trs a desempenhar nossos papis. O cirurgio plstico, que tem se passado por meu mdico particular, grego de nascimento, e estando cumprida a sua parte no plano, ficar definitivamente em sua terra natal. Acho que no vou sentir saudades dele. De Creta, por avio, Alexandra e eu iremos para algum lugar (ela insiste em esconder o jogo), que ser o ponto inicial de um roteiro turstico. CAPTULO V Sem qualquer dvida, estes so os melhores dias da minha vida. Como um casal em lua-de-mel, ns estamos desfrutando, com intensidade, cada momento. Fotografamos como loucos e procuramos nos integrar de corpo e alma ao modo de vida das pessoas simples dos povoados pelos quais passamos, conhecendo os costumes e saboreando com prazer sua comida. Nesta noite, mirando-nos atravs de nossas taas de vinho, enquanto a melodia alegre nos embala, eu lhe digo do quanto a amo, e da minha vontade de que fiquemos juntos para sempre. Calada, ela apenas sorri. Depois me fala da menina Alcia e do homem que virou sua vida de pernas para o ar. CAPTULO VI 28 ANOS ANTES Armand, o nico filho de um casal de fazendeiros franceses, viveu at os dezoito anos na pequena propriedade
da famlia. Mas logo ficou claro que ele no se contentaria com to pouco. Unindo-se a outros quatro jovens, comeou uma carreira de crimes que, apesar da estrutura policial que se formou para det-los, se prolongou durante cinco anos, at encerrar-se de forma violenta, naquela noite de inverno, quando foram cercados por mais de duzentos agentes da lei. Na intensa troca de tiros que se seguiu, quatro rapazes morreram. Armand, com a sorte que jamais lhe negou auxlio, conseguiu escapar ileso atravs de uma galeria de esgoto. E na noite em que completava 21 anos, sabendo que seria cassado sem trgua, ele deixou a cidade em um velho cargueiro de bandeira portuguesa, depois de pagar ao comandante uma boa parte de tudo aquilo que conseguira juntar. Em Lisboa, permaneceu por oito anos. No incio encontrou algumas dificuldades por conta da diferena de idiomas. Mas, por sua boa aparncia, a mente privilegiada e uma total falta de escrpulos, com sua nova identidade de Jean Baptiste Marchais, ele logo encontrou as pessoas certas e voltou aos negcios. Menos de dois anos passados, j dominando com perfeio o idioma portugus, enquanto ainda era o principal assunto de todos os jornais o roubo milionrio ao mais importante banco da cidade, ele passou a frequentar os ambientes sofisticados onde se reuniam as pessoas realmente importantes. J com fama de investidor disposto a realizar negcios, no demorou a ampliar seu crculo de amizades, chegando a Carlo de Palma, o homem que abriria para ele as portas das mais importantes manses da capital. De ori184 | Carlos Ney
gem nobre, Carlo agora s possua, de seu, o prprio nome. Vivia da minguada renda de umas poucas terras que lhe vieram por herana, mas que no podia vender. Um vcio secreto vinha, nos ltimos anos, lhe consumindo a herana: o jogo. Percebendo o quanto a amizade poderia lhe proporcionar, Jean Baptiste resgatou, de agiotas, todas as promissrias assinadas por Carlo, alm da hipoteca de um castelo carcomido por dcadas de abandono, e de um haras h muito desativado. Aps uma obra gigantesca, mudou-se para l junto com o amigo, iniciando em sociedade com ele, uma criao de cavalos rabes. Agora eles podiam ser vistos, sempre juntos, nos ambientes mais exclusivos de Lisboa. Quando o banco que havia sofrido o assalto entrou com um pedido preventivo de concordata, Jean Baptiste, utilizando as relaes de amizade de Carlo, disps-se a adquirir o seu controle acionrio, negociando um prazo bastante dilatado para quitar as dvidas com investidores, mas garantindo todos os depsitos em conta corrente. Para acalmar o mercado, manteve em seu cargo o antigo presidente e alguns de seus diretores. Numa campanha publicitria inteligente, atraiu novos clientes, enquanto promovia festas no castelo para as quais eram convidados apenas os muito ricos, conquistando grandes investidores com promessas de lucros fabulosos. Em pouco tempo as contas estavam equilibradas e havia sido restaurada a credibilidade do banco. Ento, sem alarde, substituiu toda a diretoria e empossou Carlo na presidncia. Trs anos se passaram at que fosse tornado pblico o golpe que havia sido aplicado. Como depois se veio
saber, o banco havia investido a quase totalidade de seus ativos em empresas de fachada, que tinham suas sedes em outros pases. Numa ao muito bem orquestrada, todas essas empresas foram fechadas no mesmo dia, e a totalidade de seus capitais transferidos para diferentes contas abertas em parasos fiscais. Dias depois, o principal jornal portugus estampava a notcia do suicdio do banqueiro Carlo de Palma. CAPTULO VII Depois de completar 21 anos, Armand teve de trocar de nome algumas vezes, assim como alterar as feies de seu rosto, para continuar vivendo. As pessoas que tiveram a desgraada sorte de cruzar seu caminho, jamais compreenderam que ele era to somente um jogador. No havia espao para dios ou culpas nas suas atitudes. que o destino impe apostas cada vez mais altas, caso voc insista em continuar desafiando sua sorte. No jogo, a ousadia e o blefe sero sempre to importantes quanto as cartas que voc recebe. Quando idealizou e comandou seu primeiro assalto a banco, com a identidade de Jean Baptiste, sabia que era tudo ou nada. Se fosse pego, no teria uma segunda chance. Mas, se conseguisse vencer, jamais precisaria roubar de novo. Mas ele era, por destino ou maldio, um jogador. A compra do banco, com o dinheiro ali roubado, foi uma piada deliciosa. Menos engraada apenas do que a idia de roubar, pela segunda vez, o seu prprio banco. Ento, desde o primeiro dia como banqueiro, ele arquitetou a forma de tornar isso, realidade. Quando o fez,
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j tinha uma nova personalidade esperando por ele em outro pas. Patrick Dapive. Portanto, imagine sua surpresa quando cinco homens, fortemente armados, invadiram sua bela residncia na verdade uma verdadeira fortaleza - e o levaram fora. Tinha como certo que no escaparia com vida. E durante toda a viagem, tentava desesperadamente imaginar exatamente onde errara, deixando rastros que seriam to facilmente seguidos. Mas Olaf Pedrossian, o lder da mfia russa, no o queria morto. Acompanhara com divertido interesse as aes dele, desde o assalto ao banco at o golpe financeiro. O banco gerenciava trs contas secretas da organizao, nada muito expressivo, e o prejuzo fora imediatamente ressarcido pela seguradora. Da viera o interesse por ele. Segundo Olaf, ele era o homem que poderia comandar suas operaes criminosas na Amrica. Se aceitasse, passaria a receber uma fatia substancial de todos os negcios realizados nos Estados Unidos. No era uma proposta que pudesse recusar, se quisesse continuar vivo. Durante cinco anos, a partir daquele dia, ele fez muito mais do que esperavam dele, e j havia chegado ao lugar com que sempre sonhara. Alm do mais, apenas um louco pensaria em trair a mfia russa. Estas eram as garantias que tinham os seus empregadores, at o dia em que Patrick Dapive desapareceu como fumaa. E os russos descobriram que havia levado com ele, dinheiro suficiente para comprar todos os pases do terceiro mundo. Foi ento que chamaram o Siciliano.
CAPTULO VIII Guilhermo Malisia, um homem imenso de 62 anos, participava da reunio de diretores do Grupo Mundi, a gigantesca corporao que atuava nos mais diversos segmentos, em mais de vinte pases, com apenas um objetivo: ganhar muito dinheiro. Ele estava sendo apresentado como o novo presidente, e as pessoas que se sentavam em redor da imensa mesa mostravam-se visivelmente apavoradas. Ele era o representante da mfia russa, a verdadeira controladora do Grupo Mundi. Seu antecessor sumira misteriosamente na semana anterior, e j no era segredo para nenhum deles que fora responsvel por um desfalque vultoso, o que justificava a rigorosa auditoria que estaria sendo realizada em cada uma das empresas ligadas ao Grupo. E enquanto um verdadeiro exrcito caava o foragido pelos quatro cantos do mundo, funcionrios dos mais diversos escales, suspeitos de cumplicidade ou negligncia, sumiam como moscas. Guilhermo comandara com mos de ferro a Camorra siciliana por trinta anos. Homem excepcionalmente inteligente, ele soube perceber a mudana dos ventos, assim que teve o primeiro contato com os russos. E que no tinha como impedir a tomada de controle dos negcios criminosos que h mais de vinte anos vinham sendo explorados na Amrica. Enquanto os outros chefes das diversas famlias italianas dizimavam seus exrcitos numa luta intil, ele formalizava a aliana que faria dele um homem ainda mais poderoso. Durante os ltimos dez anos ele se dedicou, com alguma conversa e muita violncia, a reorganizar os diversos feudos italianos, na Amrica, para seus novos patres.
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Fora um trabalho gigantesco, mas recompensador. Chegara a pensar que estava aposentado, at que um chamado o levou para aquela reunio. No precisavam dele para presidir a corporao. O cargo era meramente figurativo. Da torre do mais alto prdio de Nova Iorque, ele estava dirigindo as aes das vinte equipes encarregadas de encontrar aquele que ousara enfrentar a mais poderosa organizao criminosa do mundo, colocando em dvida a liderana de Olaf Pedrossian. Para reverter essa situao, ele precisava que lhe trouxessem a cabea do traidor. E Guilhermo Malzia era o homem certo para isso. CAPTULO IX Os dois jovens acomodam com facilidade o corpo envolvido pelo cobertor, no banco traseiro do automvel. O desconhecido que os havia contratado, paga a cada um deles o valor combinado e, sem qualquer palavra, eles partem pela estrada poeirenta. Algumas horas depois, o carro que havia sido alugado meses antes pela prpria mulher, despencaria da parte mais alta da montanha, aps chocar-se contra o grosso tronco de rvore que obstrua parcialmente a estrada, espatifando-se trinta metros abaixo e se consumindo pela imensa bola de fogo. CAPTULO X A cabea lateja horrivelmente. Com dificuldade, tento vencer a nvoa escura e olhar as coisas que me cercam, mas no reconheo o quarto em que estou. H um homem de
costas para mim, prximo janela. Quando ele se vira, tomo o maior susto da minha vida. A pessoa que se aproxima da cama, sou eu. Atordoado, eu s consigo olhar para ele. Incrvel como se parece comigo. Ou melhor, com o cara que eu fui antes de me transformar no marido de Alexandra. Minha bela Alcia ... Deus, onde est ela? Minha preocupao tanta que, apesar da dor, eu me sento. Uma vertigem e a escurido total. Quando desperto, o homem est sentado em uma cadeira ao lado da cama. Ele sorri enquanto observa meu espanto, porque parece saber exatamente o tamanho da confuso em que se encontram meus pensamentos. CAPTULO XI Depois de ser achado pelos russos, aps a sada de Lisboa, Armand teve certeza de que, no momento em desse um novo golpe, precisaria fazer mais do que alterar seu rosto ou forjar uma nova identidade. Por conta disso, Patrick Dapive apaixonara-se perdidamente pela bela modelo Alcia Baldinni. No correr dos cinco anos em que estiveram casados, no escondia dela o quanto estava farto do seu trabalho para o Grupo. Queria largar tudo. Sonhava em viajar com ela pelas cidades europias que no conhecia. Mas jamais o deixariam sair. Ele sabia demais. Quando lhe falou de seu plano, ela imediatamente concordou em ajud-lo. Precisavam de algum com as suas caractersticas fsicas e que estivesse to desesperadamente necessitado de dinheiro que aceitasse ficar no lugar dele, durante um ano.
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Alcia assumiria uma nova identidade e, exceto para fazer rpidas aparies junto a Patrick, ela no sairia de perto do homem. Um cirurgio plstico estrangeiro, indicado por Dapive, trabalharia no rosto dele. No para torn-lo parecido com Patrick, mas sim para comprovar que se sujeitara a vrias pequenas cirurgias na tentativa de forjar uma nova identidade. Apenas uma coisa Patick Dapive no comentou com Alcia. Atravs dela, os russos no demorariam a chegar at ele. No dia seguinte ao desaparecimento do presidente do Grupo Mundi, Alcia - como Alexandra - alugava um potente utilitrio na maior locadora de Palermo. Dali, ela e o seu acompanhante atravessaram a fronteira e partiram para uma pequena cidade cercada por uma vista deslumbrante. Comearia ali um roteiro de trs meses. No plano que Patrick formulou, ao fim deste perodo estaria completado o ano de sua separao. Eduardo, o brasileiro que se passava por ele, com novos documentos, embarcaria num luxuoso navio de passageiros at Npoles. De l, por avio, retornaria ao Brasil. Num cofre de banco, cuja chave lhe seria entregue antes da viagem, estariam guardados seus documentos originais. Bastaria troc-los para recuperar sua identidade. Alexandra reencontraria Patrick e, juntos, continuariam o seu roteiro de viagem. E Alcia acreditou nisso at o dia de sua morte. CAPTULO XII Eu estava achando a coisa toda to fantasiosa que, apesar de todos os fatos que me envolveram na vida deles,
nada daquilo me parecia real. E apenas uma verdade ficava ressoando na minha cabea: Alexandra era Alcia. Esse homem agora era eu. E eu j no era ningum. Nem percebi quando os dois homens entraram. O leno com clorofrmio me apagou instantaneamente. Sequer senti a picada da agulha. FINAL Em seu luxuoso escritrio, Eduardo observa a pilha de documentos por assinar. Dois anos depois de associar-se a uma das mais tradicionais firmas de advocacia de So Paulo o que lhe custou a bagatela de quinhentos mil dlares depositados em um paraso fiscal, ele comea a dar os primeiros sinais de inquietao. Nada a ver com o investimento, que ele tinha como certo recuperar totalmente em mais uns trs anos. Muito menos com a eficincia de seu plano. Ao livrar-se do casal, ele bloqueou o caminho que poderia levar seus caadores at ele. O problema a imobilidade. Como jogador, ele sabe melhor do que ningum que a sorte no confivel. Mas o apelo do jogo irresistvel. Ele jamais atende a clientes desconhecidos. Mas o homem, contador de uma mega empresa com fortes laos com o governo federal, insistiu que s falaria com ele. Guiado pelo sexto-sentido, ele concordou em receb-lo. Isso foi ontem. Mas o assunto no abandonou mais os seus pensamentos. Basicamente, o funcionrio queria saber se poderia ser envolvido num eventual processo por fraude contra o sistema financeiro, j que a empresa estaria de posse de informaes privilegiadas, e pretendia beneficiar-se delas.
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Segundo ele, uma estatal anunciaria, no prximo ms, a aquisio do controle acionrio de uma das gigantes do ramo petrolfero. As negociaes estavam sendo realizadas em Londres, debaixo do maior sigilo. Como contador, cabia a ele acionar corretores para iniciar o processo de compra de aes da empresa petrolfera. Por tratar-se de manobra fraudulenta, ele queria resguardar-se, motivo pelo qual pediu a entrevista. Depois de distraidamente formular palavras para tranquilizar o homem, Eduardo foi para o computador. Passou a noite no escritrio, pesquisando. Se fosse em frente, aproveitando a dica, determinaria a imediata compra das aes atravs do mesmo escritrio de advocacia que cuidava dos seus interesses, em Berna. Conseguiria, desta forma, triplicar o investimento feito, to logo fosse anunciada a compra. Nada mal. Mas ele percebeu que existia mais alguma coisa. A empresa para a qual o contador trabalhava, teria muito a perder caso sofresse uma investigao. A no ser se ela estivesse trabalhando em favor da estatal, garantindo para ela o controle das aes disponveis no mercado, o que daria a ela maior cacife na negociao. A empresa petrolfera vinha amargando uma srie de prejuzos depois da exploso ocorrida numa plataforma de extrao de petrleo em guas profundas, e que ocasionara aquilo que a imprensa internacional classificara como a maior tragdia ambiental do mundo. Com suas aes em baixa, ela tornara-se um produto pouco atrativo. A no ser que existissem outros interesses. Um artigo publicado em jornal reforou essa idia. Com as imensas reservas de petrleo do pr-sal, o Brasil passaria a ser um exportador em potencial. Principalmente
porque precisaria cobrir de imediato os altssimos custos desse tipo de extrao. Por outro lado, os pases produtores estavam atendendo bem demanda mundial por petrleo bruto. Com os preos estveis, a aceitao, por parte do cartel (leia-se OPEP), de um novo membro por conseguinte, maior oferta do produto no seria bem recebida. A compra de uma das irms (como so conhecidas as grandes companhias de petrleo norte-americanas), com refinarias e pontos de venda espalhadas pelos quatro cantos do mundo, garantiria para o Brasil uma fatia do mercado comprador de leo j refinado, onde havia pouca concorrncia. Sem contar que o valor investido na aquisio do controle acionrio, seria recuperado no mdio prazo, com os contratos para explorao das reservas do pr-sal. Uma manobra brilhante, tanto comercial quanto estratgica, j que tambm reduziria consideravelmente a dependncia do ocidente em relao aos pases rabes, garantindo para o Brasil uma posio de destaque no mapa do poder. Nesse contexto, as aes atingiriam valores inimaginveis. Com Eduardo neste circuito, haveria uma triangulao, cabendo a ele o papel de fiel da balana, quando da negociao. Se houvesse mesmo essa tal negociao. Evidentemente que o risco de perder toda a imensa fortuna pela qual tantas vezes arriscara a vida, seria imenso. Se estivesse de fora, apenas assistindo a essa rodada de fogo, ele diria que as chances de fracasso beirariam os 70%. E era exatamente esse desafio que o obrigaria a ir em frente. Afinal, risco o nome do jogo.
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Todas as mulheres do mundo

Para uns, elas so problemas em forma de gente. Outros as acham to complicadas que deveriam vir acompanhadas de um manual de instrues. Mesmo sem concordar com uns, e discordando dos outros, uma coisa certa: tudo aquilo que as faz felizes , exata e talvez no coincidentemente, a soma dos nossos piores pesadelos. Radical demais? Ento, vamos aos fatos: No dicionrio masculino, sbado um excelente dia para... ... acordar o mais tarde possvel (a no ser que tenha a pelada dos solteiros contra os casados), ler o jornal de ponta a ponta, lavar o carro, assistir ao futebol pela tev, encontrar os amigos no boteco da esquina. E assim seria se assim fosse, j que no universo feminino, sbado um excelente dia para... ... compras no supermercado (que vai estar a maior muvuca), onde o carrinho - sempre empurrado pelo melhor animal de trao que elas j domesticaram se arrastar numa velocidade quelnica, uma vez que cada item da relao de compras ser minuciosamente examinado (apalpado, cheirado e quase sempre desprezado). Isso claro, depois de uma ampla consulta com as outras nutricionistas. S a se vai a metade do nosso dia. Ao voltar, nada de sonhos preguiosos, j que nos esperam outras emocionantes aventuras. Como consertar coisas, mudar mveis de lugar (cara, elas adoram isso) ou limpar algum
cantinho obscuro onde a vista humana (dos homens) jamais alcanaria. E de noite, companheiro? Sempre haver algum para ser visitado, ou nos visitar. Geralmente algum de quem gostamos muito... de manter a maior distncia possvel. Fazer o qu? Discordar sai sempre mais caro. Deus nos livre da ira de uma mulher contrariada. Mas, o que nos mantm, mesmo assim, algemados a elas, e com os nossos quatro pneus arriados por essas criaturas? Esta, meu caro amigo, a grande questo que angustia os grandes estudiosos da alma homana, desde os mais remotos sculos. Para alguns, a explicao o eterno desafio que o homem se impe, de assumir o controle, vencendo-as; mesmo que, na maioria das vezes, ele morra tentando. Outros admitem que a necessidade que temos, ns os homens, de proteger os mais fracos (e a que a porca torce o rabic). Agora, uma nova e revolucionria teoria vem ao conhecimento pblico: seria pura hipnose. Um compl de todas as mulheres, para garantir a sua sobrevivncia. Elas nos repetiriam, desde a nossa mais tenra idade, o quanto elas so maravilhosas e necessrias. Que, sem elas, as nossas vidas seriam um verdadeiro inferno. Ento, me vem a pergunta que no quer calar: - Mame, voc participou disso?
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Maldita internet!
Estou aqui h muito poucos minutos, eu sei. Mas o tempo, dependendo da situao, pode ser ainda mais relativo. E agora, eu fao o qu? Afogado em meu prprio embarao, sinto que apenas a metade de mim aquela que tem juzo - ainda est sentada aqui, de frente para ela, com a face paralisada em um sorriso idiota, bebendo cada palavra dita, embora no consiga sequer imaginar o que ela est dizendo. Como se assistisse a um filme, minha outra metade apenas observa, de um canto qualquer do salo, a cena inslita. O contnuo movimento dos lbios grossos, artisticamente delineados com um vermelho vivo. O brilho intenso dos olhos cor de esmeralda. O maravilhoso vestido. Com gestos graciosos de mos, ela arranca fascas da grossa pulseira de ouro. Embora discreta, ela tem o charme das mulheres que j nasceram muito ricas. E no se importam com isso nem um pouco. Meu nome Nestor. Era, at bem pouco tempo atrs, um vivo como os outros. A idia de um novo relacionamento me apavorava. que depois dos cinquenta, a gente costuma ficar mais medroso. Mas no confessa isso a ningum, nem sob tortura. Escondidos do mundo em uma rotina simples, ns deixamos a vida nos levar. Apanhar o po e o jornal. Ir ao supermercado. Passear com o cachorro.
Mas a veio a internet. Os poucos amigos que ainda conservo, me falaram dos namoros virtuais. Foi ento que eu mudei. Ms companhias. O perigo est nelas. No princpio, apenas bate-papo com umas e outras mulheres sem rosto e pouco interessantes. At que tropecei na Kathy. Uma amiga dela a citou, como autora de um poema que eu elogiei com um comentrio despretensioso. Ento, ela me adicionou ( assim que os internautas falam) e, a partir da, comeamos um relacionamento estranho, falando durante meses pela ponta dos dedos. Eu estava louco por ela. Insisti em v-la. O resultado est aqui. Restaurante caro. Uma mulher que tem quase tudo o que eu, mesmo sem saber, estive procurando minha vida inteira. O problema que ela parece a minha me. No na forma fsica, entenda bem. na idade. Por ser cinco anos mais nova do que eu, a coisa fica ainda mais constrangedora. Ela faz eu me sentir velho. Velhos so meus amigos! Os vizinhos de toda uma vida. Velha a minha imagem que se reflete nos espelhos por onde eu passo e me olho. Mas no eu. Eu me recuso a ser velho. Adoro os corpos arredondados que passeiam pelas areias, a elasticidade dos movimentos nas redes de vlei. A forma como os olhos dessas sereias lindas flertam, mesmo sem notar. Maldita internet. E agora, eu fao o qu?
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O caso do sequestro do garoto

Da minha festa de aniversrio ficaram como lembranas, uma fita de vdeo todos os micos ficaro registrados ali por toda a eternidade e esta caixa imensa. O meu presente. Quando vi o embrulho, pensei que fosse uma piscina dessas, de criana, que os adultos vivem achando que iremos adorar. Era um kit do detetive moderno, igualzinho ao daquele filme da televiso. Um brinquedo que nem tinha ainda chegado ao Brasil. Cara, eu nem acreditei. Tinha tudo. Binculo, luneta, mini-cmera, microfone, mquina fotogrfica, gravador, algemas, manual e 4 DVDs com lies bsicas para entrar no ramo. Para mim, a festa comeou e acabou ali. Estou contando isso para voc entender bem como a coisa toda se passou. Naquela manh, assim como nas outras, tive que acordar no melhor do sono, fazer todas as coisas de sempre e, depois do caf, ficar l fora esperando o carro da tia Francis (esta semana, seria a vez dela de nos levar para a escola). Stu, o filho dela, o meu melhor amigo. Com tantas obrigaes, eu no percebi nada. Alis, nem sei quantos dias se passaram desde o desaparecimento. Ah, preciso explicar do que estou falando. Quando eu era bem pequeno, meu av me deu um cofre. Um porco de barro. No desses que so vendidos por a. Meu av comprou ele em um antiqurio. Custou uma nota preta. um poro de cinquenta centmetros de altura, gordo e
sorridente. Usa uma camisa vermelha, curta, que deixa de fora a sua pana imensa. Em letras amarelas est escrito na camisa, GAROTO. O porco est sentado em uma poltrona, segurando uma garrafa de rum. A gente enfia as moedas numa fenda, no encosto da poltrona. Sempre que meu av vinha me visitar, colocava moedas nele, todas novinhas e de um real. Nunca esquecia. Quando morreu, deixou cem moedas de uma libra esterlina dinheiro da Inglaterra - para serem colocadas no cofre. Segundo o meu av, no dia em que eu tiver que quebrar o cofre no tem outro jeito de retirar as moedas vou estar rico. Mas o porco desapareceu. De acordo com o manual de detetives, havendo dinheiro envolvido, ato criminoso. E como os suspeitos moram na mesma casa que eu, comecei pelo quarto dos meus pais. Desta forma eu eliminava dois provveis culpados. Minha me havia comprado um vestido novo. Eu tinha ouvido uma conversa dela ao telefone, em que ela perguntava a minha tia, como iria arrumar o dinheiro para pagar o vestido. Tinha conseguido. Muito suspeito. Na gaveta de meu pai, um notebook recentemente lanado, ainda na caixa. Era o sonho do meu pai. Um sonho muito, muito caro. Mais suspeito, impossvel. Mas foi no quarto do meu irmo, desde o princpio a minha melhor aposta, que o crime comeou a ser desvendado. Escondido dentro do capacete de ciclista, com um carto muito meloso, a correntinha dourada com um pingente de um casal de bonequinhos se beijando.
200 | Carlos Ney
Breguice pura. Como eu tinha lido em algum lugar, risquei o canto do espelho dele com a jia. Era ouro puro. E custou a vida do Garoto. Para fechar o meu caso, s faltava achar algum caco do porco. noite, com toda a famlia reunida para o jantar, soltei a bomba. Se houvesse um buraco, eu teria mergulhado. Quem quebrou o porco foi a faxineira. E papai levou o cofre para um arteso, que esculpe em barro, fazer a colagem. Minha tia, para quem minha me disse que sonhava com o vestido, contou para o papai, que o comprou para ela, como presente de aniversrio antecipado. Meu pai havia sido promovido, dias antes, e ele encomendou logo o notebook. Quanto ao meu irmo, estava mais limpo do que conscincia de anjo. Minha me havia comprado a jia, no carto dela, para descontar em um milho de vezes da mesada dele. Era o presente de um ano de namoro com aquela garota magricela. E nem era to jia assim. Era s chapeado. Para piorar, ainda fui informado que diamante, e no ouro, que risca o vidro. Pombas, eu acabei de completar oito anos. Que culpa tenho se ningum me conta nada? A caixa do detetive moderno agora est guardada em cima do meu armrio. Descobri que no levo jeito para a coisa. Desde o princpio eu deveria saber que o culpado sempre o mordomo. Ou a faxineira.
Tome o seu lugar. Voc est sendo convidado a participar do jogo. Pelos dedos geis do autor, palavras vo sendo embaralhadas, como cartas, e d i s p o s t a s s o b re a mesa, em forma de histrias ou poemas que contam histrias. Personagens mais ou menos comuns, desses que a gente encontra casualmente pela s ruas, iro defrontar-se com situaes que variam do normal ao absurdo, em dramas e comdias que iro acontecer em um nico ato, e que obrigaro o leitor a emprestar sua imaginao para compor cenrios, desenvolver dilogos, a c re s c e n t a r n ovo s finais. Porque desta qumica que nasce um bom livro. E, segundo as prprias palavras do a u t o r, s e p u d e r arrancar de seu leitor, conforme a situao descrita, uma lgrima ou sorriso, a obra se justificar. E todo o esforo de realiz-la, 202 | Carlos ter valido a pena. Ney
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Tome o seu lugar. Voc est sendo convidado a participar do jogo. Pelos dedos geis do autor, palavras vo sendo embaralhadas, como cartas, e d i s p o s t a s s o b re a mesa, em forma de histrias ou poemas que contam histrias. Personagens mais ou menos comuns, desses que a gente encontra casualmente pelas ruas, iro defrontar-se com situaes que variam do normal ao absurdo, em dramas e comdias que iro acontecer em um nico ato, e que obrigaro o leitor a emprestar sua imaginao para compor cenrios, desenvolver dilogos, a c re s c e n t a r n ovo s finais. Porque desta qumica que nasce um bom livro. E, segundo as prprias palavras do a u t o r, s e p u d e r arrancar de seu leitor, conforme a situao descrita, uma lgrima ou sorriso, a obra se justificar. E todo o esforo de realiz-la, ter valido a pena.
Jogo de Palavras
ISBN 856308075-X

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9 788563 080752

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