Barchi

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doi: http://dx.doi.org/10.

1590/1516-731320160030006

Educação ambiental e (eco)governamentalidade

Environmental education and (eco)governmentality

Rodrigo Barchi1

Resumo: Esse ensaio busca discutir o processo de institucionalização da educação ambiental, utilizan-
do como categoria de análise o conceito de governamentalidade, elaborado por Michel Foucault como
um conjunto de procedimentos, análises, reflexões, cálculos e táticas que permitem o exercício de uma
determinada forma de poder, e também como uma tendência produzida pelo Ocidente de desenvolver
uma série de aparelhos específicos de governo, envolvendo um determinado conjunto de saberes. A
intenção desse texto é dialogar com algumas críticas libertárias sobre o processo de institucionalização
da educação ambiental brasileira, e discutir possibilidades de entender a apropriação da educação am-
biental pelo Estado como um modo de torná-la uma ferramenta da governamentalidade, fazendo com
que o potencial ativo das relações entre a educação e o meio ambiente se neutralize e cristalize por ser
transformado em leis e políticas públicas.
Palavras-chave: Governamentalidade. Poder. Educação ambiental. Meio Ambiente.

Abstract: This essay aims to discuss the process of institutionalization of environmental education,
using as a category of analysis, the concept of governmentality, developed by Michel Foucault as a set
of procedures, analysis, reflections, calculations and tactics that allow the exercise of a particular form
of power. We look as well at a trend produced by the West to develop a series of specific apparatus of
government, involving, therefore, a particular set of knowledge. The intention of this paper is to dia-
logue with some libertarian criticism of the process of institutionalization of Brazilian environmental
education, and from there, discuss some possibilities to understand this appropriation by the state of
environmental education as a way to make it a tool of governmentality. We examine the active potential
of the relationship between education and the environment through crystallization and neutralization
to be turned into laws and public policies.
Keywords: Governmentality. Power. Enviroment education. Environment.

1
Universidade de Sorocaba, Departamento de Geografia, Sorocaba, SP, Brasil. E-mail: <[email protected]>.

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A educação ambiental chega ao Estado...

Os movimentos ecologistas dos anos 1960 e 1970 foram responsáveis diretos pela
popularização da questão ambiental, caracterizando-se pelas perspectivas libertárias, pois atri-
buíram aos governos grande parte da responsabilidade no que diz respeito à crise ambiental
das últimas décadas, sejam eles dos países capitalistas ou dos antigos socialistas (GUATTARI,
1990), sejam eles dos ricos desenvolvidos ou dos pobres em desenvolvimento ou miseráveis
(CASTORIADIS, 2006; GORZ, 1982; MOSCOVICI, 2007).
Um dos motivos dessa culpa se dava pelo modelo socioeconômico incentivado pelos
governos dos países ricos, baseado em grande extração e consumo de recursos naturais, além
da geração de enormes quantidades de resíduos. De acordo com os discursos predominantes
nos movimentos ambientalistas dos anos 60 e 70, os governos não se preocupavam com as
paisagens naturais e com as espécies vivas ali residentes, muito menos com as culturas humanas
que viviam de maneira menos predatória que a civilização ocidental.
Outra alegação dos ecologistas era que os governos estavam cada vez mais submetidos
aos interesses das megacorporações transnacionais, as quais, em grande parte, consideravam
os gastos com a minimização dos impactos ambientais extremamente prejudiciais ao desen-
volvimento e crescimento de seus ganhos (LUTZENBERGER, 2012; MOSCOVICI, 2007).
Do outro lado, os críticos aos ecologistas questionavam essas acusações indagando se, caso
os governos e as empresas viessem a arcar com esses gastos, quais seriam os argumentos e
justificativas dadas à população que a sua qualidade de vida delas diminuiria devido aos gastos
com preservação de áreas naturais e animais silvestres.
A questão ambiental se tornou amplamente difundida, popular e legitimada, devido
ao grande poder de convencimento dos discursos científicos e políticos que afirmaram que a
vida no planeta estava correndo grave risco se mudanças não ocorressem, e pelo fato de boa
parte dos governos começarem a instituir políticas ambientais como forma de minimizar sua
responsabilidade pela problemática ecológica, e também responder às reivindicações dos mo-
vimentos sociais (LEIS, 1999). E em uma esfera ainda maior, há o esforço das Nações Unidas
– através de órgãos como a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
(UNESCO), e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) – em reunir
os países, criar consensos e compromissos internacionais para tomada de ações conjuntas que
visem a proteção do planeta.
Numerosos documentos norteadores de ações são criados por essas instituições in-
ternacionais – muitas vezes com o apoio e financiamento de megacorporações internacionais,
ou de órgãos transnacionais, como o Banco Mundial – para auxiliar os governos nacionais a
tomarem medidas de combate à destruição do ambiente. Esses documentos, quando não são
seguidos à risca, no mínimo servem de orientadores para boa parte das políticas ambientais,
oferecendo tanto marcos teóricos como técnicos e metodológicos, permitindo aos governos
sistematizarem suas ações com melhor precisão e base conceitual.
Considerada um dos meios pelos quais é possível se combater a destruição ecológica
e promover uma nova forma de convívio entre seres humanos e o planeta, a educação cons-

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tantemente teve um papel de destaque nas discussões ambientais, ganhando uma terminologia
própria para tratar do tema, surgindo assim, a “educação ambiental”2.
A bibliografia nacional e internacional sobre educação ambiental é ampla, e o número
de trabalhos acadêmicos não para de crescer. As perspectivas filosóficas políticas e metodológi-
cas são as mais diferenciadas possíveis, tornando cada vez mais acaloradas as discussões sobre
quais rumos ela pode tomar.
O espaço que a educação ambiental ocupa nas conferências sobre o meio ambiente é
representativo, e desde os anos 70, conferências internacionais exclusivas sobre ela são realizadas,
dando-lhe um status de grande relevância. A quantidade de tratados e documentos elaborados
nessas reuniões é abundante3, sendo produzida de forma a nortear as políticas e ações sobre
educação ambiental pelos governos nacionais, e consequentemente orientar ou até servir como
matriz teórica e metodológica, às políticas regionais e locais.
No Brasil, a educação ambiental está instituída por lei nacional desde a criação da
Política Nacional de Meio Ambiente de 1981, a qual, apesar de não ser uma política pública
exclusiva de educação ambiental, tem nessa ação um de seus dez princípios4. A necessidade do
Estado ser o principal agente condutor da educação ambiental foi reforçada na Constituição
de 19885, e desde então, secretarias e departamentos de educação ambiental se estabeleceram
em nível federal, estadual e municipal.
A Política Nacional de Educação Ambiental foi instituída em 1999, e partir de 2005
o governo federal passou a desenvolver o Programa Nacional de Educação Ambiental (PRO-
NEA), que conta com um programa de formação de educadores formais e não formais além de

2
A terminologia Educação para o Desenvolvimento Sustentável – e não Educação Ambiental – está sendo
largamente utilizada pela UNESCO, que declarou o decênio 2005-2014 como “Década para a Educação para o
Desenvolvimento Sustentável”. Sauvé (1997) e Reigota (1999) alertam para as diferenças pedagógicas, políticas,
econômicas e ecológicas entre as duas terminologias.
3
Entre alguns dos tratados e documentos mais importantes estão a Carta de Belgrado (de 1975), as
recomendações da Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental de Tbilisi (em 1977), Moscou
(em 1987) e Thelassonica (em 1997), o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e
Responsabilidade Global (de 1992) e o capítulo 36 da Agenda 21, de 1992.
4
“Art 2º - A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da
qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico,
aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios:
[...] X - educação ambiental a todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando
capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente. [...]” (BRASIL, 1981).
5
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder
Público: [...] VI – Promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a
preservação do meio ambiente. (BRASIL, 1981).

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um sistema de integração de informações relativas à educação ambiental chamado SIBEA. Em


esfera nacional, diversos documentos e tratados6 funcionam como norteadores dessa política
e dos programas de educação ambiental, fazendo com que o Estado brasileiro esteja cada vez
mais instrumentalizado e com as ferramentas necessárias para realizar a educação ambiental.
(BRASIL, 1999, 2002, 2006).
A institucionalização da educação ambiental tem como uma das suas principais justifi-
cativas o fato de que sem ela não é possível criar sociedades sustentáveis e justas, e muito menos
garantir um planeta mais saudável e limpo para as gerações futuras. Além disso, a educação am-
biental, ao promover – de acordo com a justificativa afirmada pelo PRONEA (PROGRAMA...,
2005, p. 19) – uma melhoria na qualidade de vida da população brasileira ao interagir esferas
políticas, econômicas, culturais e sociais, permite que o Brasil alcance de maneira mais exitosa
o seu desenvolvimento, sendo fundamental ao planejamento estratégico do país.
A proposta desse ensaio é dialogar com alguns autores mais próximos a perspectiva
libertária da educação ambiental brasileira e buscar em suas críticas argumentos que possibi-
litem visualizar a institucionalização da educação ambiental no Brasil como um instrumento
daquilo que Foucault,principalmente nos cursos “Segurança, Território, População”, de 1978,
e “Nascimento da Biopolítica”, de 1979, conceituou como governamentalidade.

Governar, governamentalidade

No começo do curso de 1978, Foucault (2008a) afirma que desejava estudar o biopoder,
ou seja, o conjunto de fenômenos pelos quais, a partir do século XVIII, foram desenvolvidos
os mecanismos de poder que, ao levar em consideração o fato biológico da espécie humana,
passaram a gerir a vida dos humanos em seus aspectos individuais e coletivos. Sobre o esses
mecanismos, Foucault (1987) já havia desenvolvido e publicado dois estudos nos anos anteriores
aos cursos: em “Vigiar e Punir”, explorou intensamente o desenvolvimento dos mecanismos
de vigilância e correção instituições disciplinares – escola, quartéis, hospitais, prisões – em um
fenômeno chamado anatomopolítica; e no ano seguinte, lançou o primeiro volume da “História
da Sexualidade”, chamado “A Vontade de Saber”, onde sistematiza os estudos dos exercícios
de poder sobre a população, através do dispositivo da sexualidade, no processo que chamou
de biopolítica7. Nesse último, o autor deixa evidente que não é possível entender biopoder sem
entender o conjunto entre anatomopolítica e biopolítica e, mesmo com a perda de força das
sociedades disciplinares, esse processo se mantinha forte e intrínseco ao exercício biopolítico.
(FOULCAUT, 1988).

6
Além da Política Nacional e do Programa Nacional de Educação Ambiental, diversos livros e coletâneas de
artigos foram publicados pelo governo federal nos últimos anos, entre eles a coletânea coordenada por Layrargues
(2004), os dois volumes de Encontros e Caminhos: formação de educadoras(es) ambientais e coletivos educadores
(FERRARO JÚNIOR, 2005, 2007), e os textos de Brandão (2005) e Czapski (2008).
7
Foucault desenvolve em outros trabalhos as práticas biopolíticas – sem ainda chamá-las por esse termo – como
aquelas abordadas no texto “O nascimento da medicina social”, onde explica que o controle da população ocorre
através da instauração da noção de salubridade, a partir da qual pode intervir em práticas sociais nas mais diversas
esferas, como as fábricas, as casas e os espaços públicos de lazer.

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Porém era necessário ampliar a noção de biopoder, e Foucault fez isso tendo como eixo
norteador a ideia de governo e sua ligação com o conceito de Estado. Ao resumir esse curso
na primeira aula do curso seguinte, “Nascimento da Biopolítica”, e justificar os métodos de
pesquisa utilizados para abordar seus estudos relativos às tecnologias de poder nas sociedades
ocidentais, ele afirmou que usava à palavra governar no sentido estrito em que ela aparecia como
o governo dos humanos no exercício da soberania política, deixando de lado as concepções de
governos dos filhos, das almas, das comunidades ou das famílias. Era uma consciência de si dos
governos, ou um estudo da racionalização prática governamental que Foucault (2008a) queria
fazer no âmbito da soberania política, cuja base se encontra no Estado.
Uma razão governamental, surgida entre os séculos XVI e XVII, que tinha no Estado
ao mesmo tempo seu princípio e seu objetivo, sua ideia reguladora, um princípio de “inteligibi-
lidade do real”, que ao mesmo tempo existe, mas não o suficiente, que está dado a se construir
e edificar, definido como uma realidade específica e autônoma. Além disso, Estado, de acordo
com Foucault (2008a), também foi uma determinada forma de entender, analisar e definir a
natureza e as relações de elementos, realidades e personagens políticos até então já concebidos,
como reis, soberanos, súditos, leis, territórios, riquezas, entre outros.

O Estado não é nem uma casa, nem uma igreja, nem um império. O estado
é uma realidade específica e descontínua. O Estado só existe para si mesmo
e em relação a si mesmo, qualquer que seja o sistema de obediência que
ele deve a outros sistemas com a natureza o como Deus. (FOUCAULT,
2008a, p. 7).

Nessa perspectiva, um pouco mais adiante, na aula de 1º de fevereiro de 1978, Foucault


(2008a) argumenta que o objetivo do governo – que surgia a partir dos séculos XVII-XVIII -
estava em melhorar a sorte da população, aumentar sua riqueza, duração de vida e sua saúde.
Estava em gerir a população em sua massa coletiva e seus fenômenos globais, assim como gerir
no detalhe, agindo, a partir da disciplina minuciosamente em cada um dos indivíduos, seja em seu
corpo ou em sua consciência. A necessidade que criou a ideia de governar a população se deveu
ao fato no qual ela em si se mostrou geradora de problemas, seja pela explosão demográfica
ocorrida a partir do século XVII, seja pela abundância monetária promovida pelas navegações
e o mercantilismo, e também pelo aumento da produção agrícola.
Substituía-se a arte de governar soberana e a economia entendida como gestão da fa-
mília por uma ciência de governo, uma economia política capaz de apreender a rede de relações
múltiplas e contínuas entre a população, o território e as riquezas. Foucault recorre a Rousseau
para mostrar a diferença entre a economia como específica à gestão familiar e a economia po-
lítica tendo sentido somente no que diz respeito às artes de governar. E também baseado em
Rousseau, afirma que a noção de soberania, ao invés de ser eliminada, é tornada mais complexa
e aguda. Assim como as disciplinas, obrigatórias a essas artes de governar modernas, já que
permitem administrar a população não só em sua globalidade, mas na sutileza dos detalhes.
Foucault (2008a) se debruça sobre a trinca soberania, disciplina e gestão governamental,
para elaborar o conceito de governamentalidade, a qual pode ser entendida como um conjunto
formado por instituições, procedimentos, cálculos e táticas que tornam possível esse modo de
poder governamental, que tem a população como o alvo, a economia política como saber e

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como ferramentas os dispositivos de segurança. A governamentalidade é uma tendência que


acabou desenvolvendo e legitimando certos aparelhos específicos de governo e um conjunto de
saberes, sendo também, o resultado do processo que transformou o Estado de Justiça medieval
no Estado administrativo dos séculos XV e XVI.
A palavra governamentalidade, de acordo com Fimyar (2009), funde governar e men-
talidade, indicando que não há como isolar o exercício de governo do pensamento que sustenta
e legitima essa prática. Para ela, a “governamentalidade como conceito identifica a relação entre
o governamento do Estado (política) e o governamento do eu (moralidade), a construção do
sujeito (genealogia do sujeito) com a formação do Estado (genealogia do Estado).” (FIMYAR,
2009, p. 38).
De acordo com Veiga-Neto (2002), a governamentalidade só tem sentido para Foucault
quando se fala em governamentalização do Estado, ou seja, quando essa instituição se torna
responsável pelas técnicas de disciplinamento, docilidade e autogovernamento ou o governa-
mento dos próprios corpos. Lembra ainda que essa governamentalização do Estado consiste
numa captura pelo Estado, de determinadas técnicas de governamento, as quais são devidamente
ampliadas de forma a manter a sobrevivência desse Estado. De acordo com o próprio Foucault,
não só para a sobrevivência, mas para o próprio crescimento desse Estado. Além do controle
sobre mobilidade e a vida das populações.
No entanto, Foucault (2008a) afirmava nessa mesma aula do dia 1º de fevereiro de 1978
que existe uma supervalorização do problema do Estado que ocorre de duas formas: a ideia
anarquista clássica do monstro frio, que mente afirmando que é próprio povo, e a hipótese de
que o Estado é somente o desenvolvedor das forças de produção. Para o francês, o equívoco
dessas duas posições se encontra no fato de que o Estado não é tão importante assim justamente
por ser uma abstração mitificada, e ter sobrevivido somente por ter se governamentalizado.
Deleuze (2006) observa que as instituições – Religião, Família, Produção, Arte, Moral
e o Estado – não são as fontes ou a essência do poder, mas mecanismos operatórios de uma
estatização contínua variável e diversa nas ordens pedagógica, judiciária, econômica, familiar,
sexual, que visam uma integração global, na qual a forma-Estado capturou muitas relações de
poder. Para ele, o caráter geral das instituições esteja justamente nas relações poder-governo,
especificamente microfísicas e moleculares, já definem o que é o Soberano ou a Lei, para o Es-
tado; Pai, na Família; Dinheiro, Ouro ou Dólar para o Mercado; e, arriscando aqui, e adiantando
o que será visto adiante, Ambiente e Ecologia para a Educação Ambiental.
No curso dado no ano seguinte, em 1979, intitulado “Nascimento da Biopolítica”,
Foucault (2008b) aborda a questão da prática governamental e da biopolítica a partir da lógica
do liberalismo, que foi observado não como uma ideologia ou forma de representação, mas
como um “princípio e método de racionalização do exercício de governo” (FOUCAULT, 2008b,
p. 432). Analisando a Escola de Chicago e os neoliberais alemães, Foucault afirma que longe
de querer fazer uma interpretação exaustiva dos princípios liberais, busca na crítica do excesso
de governo feita por esses teóricos os tipos de racionalidade governamental que são postas
em ação na conduta humana pelo Estado. No lugar dos riscos representados pelo governo
máximo – como o intervencionismo econômico, inflação dos aparelhos governamentais, uma
“superadministração”, burocracia, e o enrijecimento dos mecanismos de poder – era necessário
agora se pensar em uma economia máxima. As tecnologias dessa governamentalidade liberal,

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de acordo com Foucault, estão baseadas em dois elementos conceituais indissociáveis: o homo
oeconomicus e a sociedade civil.
O homo oeconomicus é uma noção que permeou todo o pensamento liberal desde o século
XVIII, e surge dentro da perspectiva na qual o poder soberano não consegue vigiar e controlar
todo o processo econômico. Afirma Foucault (2008b), baseado em suas leituras sobre Adam
Smith, que o liberalismo começa quando se formula a incompatibilidade entre a multiplicidade
não totalizável dos sujeitos de interesse econômicos e a tentativa de unidade totalizante do
soberano jurídico. O liberalismo clássico substitui o sujeito de direito, que se negativiza e se
anula para fazer parte do corpo político do soberano, por um sujeito que destrói o conjunto do
soberano, limitando suas ações, de forma que não interfira nos interesses do homem econômico,
já que não pode compreender toda a esfera da atividade econômica.
Se o soberano representava o conjunto centralizado e totalizado, cuja legitimidade
estava na representação de Deus sobre a Terra, nos desejos da Providência e nas leis de Deus
sobre a Terra, agora o que emergia era justamente uma perspectiva econômica atéia, uma dis-
ciplina sem totalidade, que manifestava a impossibilidade de um soberano governar e interferir
na vida dos sujeitos.

Ao soberano jurídico, ao soberano detentor de direitos e fundador do direito


positivo a partir do dreito natural dos indivíduos, o homo oeconomicus é
alguém que pode dizer: tu não deves, não porque eu tenha direitos e tu não
tens o direito de tocar neles; e isto é o que diz o homem de direito, o que
diz o homo juridicus ao soberano: tenho direitos, confiei alguns a ti, tu não
deves tocar nos outros, ou: confiei-te meus direitos para este ou aquele fim.
O homo oeconomicus não diz isso. Ele diz também ao soberano: tu não
deves, por quê? Tu não deves porque não podes. E tu não podes no sentido
de que “tu és impotente”. E tu és impotente, por que tu não podes? Tu
não podes porque tu não sabes porque tu não podes saber. (FOUCAULT,
2008a, p. 384-385).

Para evitar que a governamentalidade se dividisse em dois ramos, a arte de governar


econômica e a arte de governar jurídica, e se mantivesse unida em sua especificidade e autonomia
em relação à economia, Foucault (2008b) afirma que foi criado um “campo de referência” ou
“tecnologia governamental” chamado sociedade civil, um espaço povoado de sujeitos econô-
micos, a qual se impõe, luta e se ergue escapando ao governo e ao Estado. Mas que também,
no interior do liberalismo, é uma tecnologia que serve, justamente, para a própria autolimitação
do exercício de governo, evitando assim sua onipresença; sociedade civil que é superestimada
em suas perspectivas de insurgência e fuga dos governos, assim como a loucura e a sexualidade
haviam sido, mas que serve de ferramenta de controle da população, justamente para evitar sua
potência reivindicatória e revolucionária.
Se de um lado, o homo oeconomicus é um ponto abstrato e ideal que povoa a sociedade
civil, esta, por sua vez, é a realidade concreta no interior do qual esse modelo idealizado é re-
colocado e devidamente administrado e controlado. Para Foucault ambos são indissociáveis,
fazendo parte do conjunto da tecnologia da governamentalidade neoliberal.

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Da Educação para a governamentalidade...

Antes que seja abordada aqui a influência da governamentalidade sobre o campo da


educação ambiental, principalmente a chamada governamentalidade neoliberal, é necessário
fazer algumas considerações sobre o efeito que essa forma de poder exerce sobre a própria
educação, para que depois seja possível estabelecer alguns paralelos sobre o campo ecológico.
Talvez seja a partir de Deleuze uma análise mais propícia sobre o efeito que a gover-
namentalidade neoliberal exerça sobre a educação. Em “Post-Scriptum sobre as sociedades
de controle” (DELEUZE, 1992), ele afirma, em primeiro lugar, que a escola, entre as outras
instituições inseparáveis às sociedades disciplinares, esteja somente ainda sobrevivendo por não
existirem outros modos de se formar os indivíduos para essas novas sociedades. Enquanto isso
está sendo transformada em uma figura cifrada, decifrada e deformável de uma empresa que só
tem gerentes e/ou, entende-se aqui, esta se adaptando a criar somente os gerentes, destinados
a “matar um leão por dia”, “viver sob constante pressão e concorrência”, “tomar constantes
decisões”, “ser flexível” e “ter múltiplas competências e habilidades”, entre outros jargões
comuns na formação dos profissionais do futuro.
Gadelha (2009) ao analisar os conceitos de biopolítica e governamentalidade em Fou-
cault, e relacioná-los à educação, sugere que a economia neoliberal está impondo uma cultura
do empreendedorismo, enaltecendo e incentivando uma potência de individuação, a qual faz
de cada indivíduo uma micro-empresa, única e exclusivamente responsável por seu fracasso ou
sucesso. Se esse indivíduo não for mais um investidor, tanto de si próprio, quanto de um grupo
e/ou corporação onde está empregado, suas chances de sucesso se tornam irrisórias, pois sua
formação não foi eficiente o bastante para lhe dar as competências, habilidades e flexibilidade
suficiente para agir nesse novo mundo do trabalho.
A cultura do empreendedorismo, de acordo com Gadelha (2009), se dissemina nos
ambientes educativos com grande legitimidade e intensidade, pois está associada, aparentemente,
a tudo o que é bom e decisivo. Se cada indivíduo estiver preocupado e responsabilizado por seu
próprio desenvolvimento econômico, diretamente ele estará contribuindo com a corporação
para qual trabalha. Por outro lado, associado a essa cultura, está o fato que é cada vez mais difícil
esses indivíduos empreendedores se mobilizem entre si para criar novas formas de existência e
intervenção social, de modo que consigam contribuir para mudanças profundas na sociedade.
Para compreender melhor o papel fraco/forte que o Estado exerce no domínio
educacional, e para ajudar no melhor entendimento sobre seu papel no processo de institucio-
nalização/governamentalização da educação ambiental, a análise que Gallo (2012) faz sobre
os movimentos que reivindicaram e promoveram a inclusão da disciplina Filosofia no Ensino
Básico, é bem pertinente. O autor sugere o uso do termo “governamentalidade democrática”,
o qual não tinha sentido na Europa onde a democracia já estava devidamente instalada, porém
no Brasil cuja abertura política é recente, pensar em um governamentalidade liberal é possível
de maneira mais evidente após a redemocratização. Ele explica que:

A maquinaria de uma governamentalidade democrática pressupõe uma


sociedade civil organizada, em face do Estado; uma economia que re­gula
as trocas e garante a potência do mercado, com geração de riquezas; uma
população, que é alvo das ações preventivas do Estado nos mais varia­dos

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âmbitos, na garantia de sua qualidade de vida; a garantia da segurança dessa


população como dever do Estado; e, por fim, a liberdade e a não sub­missão
dos cidadãos como valor fundamental dessa organização social e política.
Nessa microfísica de relações, nada há de ideológico. A liberdade, por exem-
plo, não é tomada como objeto de uma defesa ideológica, mas peça material
e fundamental no funcionamento da máquina social. (GALLO, 2012, p. 59).

Nessa perspectiva, Gallo (2012) afirma que a presença da Filosofia no Ensino Básico
(mais especificamente no Ensino Médio) como reivindicação no processo de transição demo-
crática representava para os movimentos que então emergiam uma das formas de exercício de
cidadania, preparando os cidadãos para os desafios de uma sociedade futura. Mas ao se buro-
cratizar e se racionalizar demais – quando não, ser extremamente banalizado, fato mais evidente
na educação ambiental, como será visto adiante – acabou se tornando mais uma ferramenta do
exercício da governamentalidade nas práticas escolares, fazendo da filosofia não uma forma de
busca pela liberdade ou de entendimento e construção de si mesmo, mas mais um conhecimento
devidamente cristalizado nos currículos escolares.
Além disso, pode-se dizer que essa mesma filosofia segue, em diversos momentos,
justamente uma via oposta, já que muitas vezes é sugerida como mais um modo de inserção
nesse mercado de trabalho emergente, pois é possível buscar nela táticas e modos de conhecer
melhor os seres humanos e suas relações, obedecer convenientemente, comandar eficientemente,
dialogar e falar sabiamente, e estar devidamente preparado para as mais distintas situações no
campo profissional.

... à Educação Ambiental para o exercício da ecogovernamentalidade

O fato do processo de institucionalização da educação ambiental não ser analisado aqui


com o mesmo entusiasmo e otimismo de quem considera essa inclusão como uma vitória do
movimento ambientalista, ou como um passo a frente na resolução das questões ambientais a
partir da educação, não significa que esse ensaio queira desqualificar todo o esforço feito pela
educação ambiental em conquistar seu espaço em ambientes escolares e não escolares.
Muitas dessas conquistas foram realizadas a duras penas, após longos debates e dis-
cussões, mas que, muitas vezes, acabaram deixando de fora dos conceitos oficiais, diversas
contribuições que poderiam ser muito mais pertinentes do que as atualmente instituídas. Por
isso é preciso que o espaço que foi ganho pela educação ambiental não seja perdido pelo fato
dela se tornar – assim como Gallo (2012) alerta com a filosofia – uma ferramenta de domínio e
controle, deixando que todo o seu potencial transformador, múltiplo e libertário se torne apenas
uma contribuição secundária em um corpo cristalizado, unívoco e totalitário.
É preciso ainda observar outro fator desse processo, que é a imposição não somente
de uma biopolítica nacional, exercida sob a égide da governamentalidade, mas de uma ecopo-
lítica globalizada, que pretende, sob uma governança global, cuidar de todo o planeta a partir
do exercício de uma ecogovernamentalidade. O termo, sugerido por Malette (2011), reorganiza
os três conceitos de Foucault sobre a governamentalidade – população, segurança e economia
política – sob a lógica das preocupações ecológicas. Para ele, é possível incluir todas as preocu-
pações relativas à manutenção da vida no planeta à regulação das normas e condutas ambientais.

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Portanto, não somente algumas perspectivas criadas em âmbito nacional foram privilegiadas na
elaboração dos documentos oficiais de educação ambiental, mas também, e com grande ênfase,
as perspectivas presentes nas discussões internacionais.
E a educação ambiental, se não tem um espaço maior que a própria filosofia analisada
por Gallo (2012) nos currículos escolares, possui, no mínimo, o mesmo grau de importância.
Independente das diferenças curriculares – já que uma é uma disciplina obrigatória, com um
currículo definido em todo o território nacional, e outra é tida como um conhecimento trans-
versal, que deve permear todas as disciplinas, cujos conhecimentos, apesar de ser um pouco
mais flexíveis, também devem seguir as doutrinas estabelecidas nos PCN’s e na Política Nacional
de Educação Ambiental – sendo que as duas tem um histórico muito parecido de inserção na
educação escolar brasileira. Ambas surgiram aproximadamente no mesmo período e no mesmo
contexto social, ou seja, durante o combate à ditadura brasileira (1964-1985), e tem em seus
discursos um argumento muito semelhante, que é o seu potencial de despertar na mente dos
alunos e alunas que eles podem ser agentes de transformação social e ambiental.
Um dos maiores críticos do processo de institucionalização da educação ambiental
brasileiras é Marcos Reigota. Em diversos de seus artigos, alguns mais antigos, outros mais
recentes, ele afirma que longe de levar em consideração as diferenças presentes nos trabalhos
dos educadores ambientais brasileiros, a inserção da educação ambiental pelo Estado brasileiro
ocorre com a assimilação superficial do pensamento de alguns autores, e com a total exclusão
da contribuição de outros. Mas é preciso aprofundar um pouco mais suas observações.
Em um artigo publicado na conceituada revista mexicana Tópicos en Educación Ambiental,
Reigota (2000) faz uma análise da presença da Educação Ambiental nos Parâmetros Curricula-
res Nacionais da Educação Brasileira, elaborados e instituídos durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), afirmando que ela havia se transformado em não mais do que
uma mera banalidade pedagógica. Sua indignação se dava pelo fato de, além de ter sido um
modelo importado da Espanha e não dar a devida relevância aos pensadores nacionais – que
no caso da Educação Ambiental já desenvolviam trabalhos há quase duas décadas – os PCN’s
não levaram em consideração o gigantismo territorial e cultural brasileiro, estabelecendo uma
perspectiva única em todo o território brasileiro, sugerindo as mesmas resoluções de problemas
ambientais a partir da educação tanto para o contexto do Sul, do Nordeste e da Amazônia.
Além disso, Reigota (2000) critica de maneira veemente os equívocos feitos pelos PCN’s
no que diz respeito ao conceito de transversalidade. De acordo com ele – e uma boa revisão
dos Temas Transversais dos Parâmetros confirma esse fato – em nenhum momento o conceito
é minuciosamente descrito ou explicado, sendo que em algumas partes desses documentos, a
transversalidade é confundida com a interdisciplinaridade. Além de ter sido assimilada de modo
grosseiro e simplório, os principais pensadores responsáveis pela transversalidade foram com-
pletamente esquecidos, principalmente o filósofo e psicanalista francês Felix Guattari.
No texto Cidadania e educação ambiental, já no contexto do governo Lula (2003-2010), o
qual teve grande repercussão entre os educadores ambientais brasileiros e estrangeiros devido
à posição incisiva e ácida exposta durante todo o artigo, Reigota (2008) critica a postura de
diversos pensadores e educadores ambientais brasileiros, devido ao abandono das perspectivas
de solidariedade, colaboração e anseios de construção de uma sociedade justa, sustentável e
pacífica, em prol dos benefícios do capital – tanto o simbólico quanto o real – representado
pelo poder do Estado e das empresas que o rodeiam.

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Ele lamenta o silêncio dos educadores ambientais que prestavam serviço ao governo
federal e que se alinhavam politicamente ao posicionamento oficial, em questões ecológicas tão
graves e evidentes, como a transposição do Rio São Francisco, a liberação dos transgênicos, e a
mudança do Código Florestal, pelo simples fato da discordância em relação às atitudes governa-
mentais poder gerar a perda do cargo ou do financiamento de pesquisa. Durante todo o texto,
ele afirma que a educação ambiental teve sua cisão ainda mais intensificada entre os apoiadores
e dissidentes da esfera oficial, durante a crise ética que se abateu durante o governo Lula:

Evidentemente que a educação ambiental, pela sua própria discrição na


estrutura do poder, não esteve no centro das questões éticas e políticas
nacionais. Mas os respingos da crise ética e política atingiram os(as) edu-
cadores(as) ambientais dividindo-nos entre os favoráveis ao governo e os
dissidentes. A cooptação de educadores(as) ambientais se deu através de
apoio oficial, político e econômico, aos projetos e presença no sistema de
difusão (publicações, consultorias, direito a participação e voz em eventos)
ou convites a conhecidas ONGs na terceirização de serviços e atividades
financiados pelos Ministérios da Educação e Meio Ambiente. Muitas
ONGs têm atuado como organizações do aparelho ideológico de Estado,
e a própria denominação (“não governamental”) perdeu o seu sentido. A
desqualificação pública ou nos bastidores e a exclusão dos(as) educadores(as)
ambientais dissidentes da história domovimento foram os fatos políticos
mais relevantes e paradigmáticos. (REIGOTA, 2008, p. 66).

Ao abordar a educação ambiental como um campo científico emergente, Reigota (2012)


reitera suas análises e argumentações sobre o processo de assimilação da educação ambiental
pelo Estado, ao afirmar que ela não conseguirá se constituir como um campo emergente, ou uma
promessa futura que contribuirá com a construção de uma sociedade justa, pacífica e solidária
– requisitos não só para a manutenção da vida no planeta, mas também para que a educação
ambiental se possibilite como produtora de sentidos de vida – se manter em seus princípios e
bases conceituais as perspectivas racionalistas e produtivistas de fazer ciência.
As perspectivas que Reigota chama de liberais em ciência estão intimamente ligadas
ao processo produtivista pelo qual passa a ciência brasileira. Para Veiga-Neto (2009), todo esse
processo de validação de uma investigação e seu pesquisador, está atrelado a práticas intima-
mente fascistas. A construção de um currículo a partir da experiência profissional, pesquisa e
produção acadêmica, e vinculação a instituições universitárias estatais ou particulares, ocorre
para aceitação do cientista e suas teorias no mundo acadêmico – e sua própria sobrevivência
econômica – e conforme sua pesquisa se amplia e se torna mais difundida, maior referência ele
se torna. Desde que esteja de acordo com os padrões instituídos pela ciência oficial, que hoje,
no Brasil está consolidada no padrão Curriculum Lattes.
A partir dessa observação, Veiga-Neto (2009) questiona nesse mesmo artigo sobre o
nosso amor pelo poder que o currículo nos confere, já que somos através dele, constantemente
monitorados, rastreados, controlados e avaliados, e ainda assim nos esforçamos em enriquecer
e aumentar esse currículo. Além disso, fazemos com que nossos educandos e educandas sigam
essa lógica para que suas pesquisas – e nossas próprias práticas educativas e orientações – sejam

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legitimadas e aprovadas para que consigam atingir suas devidas formações como pesquisadores
e pesquisadoras.
Próxima a essas perspectivas, Godoy (2007) contesta o fato da educação para o meio
ambiente ainda estar refém da forma escolar, na qual as crianças e adolescentes ainda estão
submetidos univocamente a uma ação de conformidade ao espaço e adequação dos compor-
tamentos. Estando intimamente ligada a um modelo científico maior, hegemônico e homoge-
neizante das práticas, a ecologia binária precisa se perpetuar a partir de uma forma educativa
que faça com que os indivíduos entendam que se trata de uma nova luta do bem contra o mal
para que o planeta se mantenha vivo e sustentável.
Para se evitar que os seres humanos destruam o planeta em seus ímpetos consumistas e
predatórios, é preciso que meios reguladores e controladores sejam implantados e disseminados
de forma a docilizar o corpo individual e planetário:

Educar para o meio ambiente apresenta-se como o cumprimento de pres-


crições que reduzem os corpos e as relações à conservação. Tais prescri-
ções pautam-se no que se deve ou não fazer, no que se pode ou não fazer
segundo um modelo de perfeição e pureza permanentemente inalcançável,
pois frente à natureza a ser conservada nunca se faz o bastante, nunca se é
bom o bastante, nunca se sabe o bastante e todo cuidado permanece sendo
pouco. (GODOY, 2007, p. 124-125).

Ainda nesse sentido, Corrêa (2012) lembra que de maneira constante e quase incons-
ciente, costumamos relacionar a educação aos processos de escolarização. Enquanto que os
processos de escolarização estão submetidos às leis e políticas públicas, a educação é qualquer
movimento que produza mudança, seja ela no corpo, no espaço ou no pensamento. Afirma
ele que o entendimento da educação unicamente como escolarização, ao ser constantemente
positivado, é um processo atravessado por um movimento moralizante, que faz com que outros
quaisquer movimentos educativos sejam vitimas de preconceito, sendo assim, marginalizados
e excluídos.
Correa afirma que, consequentemente a isso, temos a inserção da ecologia na educação
escolar em forma de tema transversal, o que não a isenta de ser contaminada pelos preconceitos
reinantes nos processos de escolarização. Isso devido a educação ambiental estar permeada pe-
los modos moralizantes de estabelecimento de condutas, que transformam em certo ou errado
determinadas práticas cotidianas, como, por exemplo, jogar uma garrafa plástica na rua, e não
destiná-la à reciclagem, ou qualquer outra prática tida como ecologicamente correta.

Governança ambiental global


ou cosmopolitismo ecológico planetário

A educação ambiental brasileira aparenta estar atravessando no Brasil um processo de


estatização e oficialização que pode contribuir muito mais para a banalização e mercantilização
de suas propostas teóricas, do que ser a possibilidade de aberturas de caminhos algumas das
mudanças radicais reivindicadas pelos movimentos ecologistas. Ao se submeter à formalização

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Educação ambiental e (eco)governamentalidade

e ao enquadramento nos moldes das leis e das políticas públicas, a educação ambiental corre o
risco de se transformar muito mais em uma instauradora de condutas homogêneas e cristalizadas,
do que realmente uma potencializadora de novos modos de existência.
Além disso, a educação ambiental, institucionalizada, parece atender e se encaixar aos
três pilares da governamentalidade de modo bastante nítido e eficaz.
Em primeiro lugar, age sobre a população. Ao se instaurar como uma forma de conduta
que possibilita às pessoas participarem do processo de salvação do planeta, a institucionalização
da educação ambiental consegue tanto atender à demanda do processo de tomada de consciência
da população, quanto se permite agir como uma nova promotora de homogeneização de con-
dutas pedagógicas, já que se ela não tiver êxito, o que caberá aos seres humanos será somente
esperar o apocalipse ecológico previamente anunciado.
Em segundo lugar, a educação ambiental atende a economia política. Mesmo ao
recusar ser chamada de Educação para o Desenvolvimento Sustentável – noção muito cara
aos ecologistas promotores do capitalismo verde – a proposta da sustentabilidade presente
nos documentos oficiais brasileiros ainda se aproxima muito mais da ideia de adequação das
perspectivas ecológicas às governabilidades liberais, já que existe uma constante legitimação
e reforço da ideia do Estado se tornar o centro das ações em educação ambiental, apesar dos
discursos “críticos” às mazelas capitalistas, e da participação da sociedade civil na elaboração
dos programas federais.
Cabe a lembrança na qual Foucault entende a sociedade civil como uma construção
dessa governamentalidade, a qual, ao mesmo tempo em que não está totalmente submissa a uma
lógica do capital e dos governos, é capaz de impedir a sua ação em total potência, ao permitir
“a participação” na construção das tomadas de decisões.
Por último, essa educação ambiental legitimada, normalizada e legal serve aos anseios
por segurança, pois ela pode ser responsável tanto pela docilização dos indivíduos alvo dessa
educação, quanto pela criação de um inimigo em comum, capaz de unificar os interesses coletivos
no combate ao monstro ecológico. Monstro que pode estar presente nos próprios indivíduos,
já que a crise ecológica está estritamente vinculada às práticas de consumo, que precisam ser
direcionadas às formas menos predatórias. Monstro também presente nos outros, que também
são responsáveis pela crise e, por isso, é necessário que se mantenha a vigilância constante para
que o esforço do ecologista não seja jogado fora pelo não ecologista.
Nesse sentido, ao atender às três principais preocupações da governamentalidade, a
institucionalização da educação ambiental, mesmo em perspectivas cujas bases teóricas marxis-
tas se comprometem com uma noção de transformação radical do sistema socioeconômico, se
mantém presa ao estabelecimento de um controle e direcionamento das práticas cotidianas dos
indivíduos e dos coletivos. Não consegue escapar do discurso da sustentabilidade econômica,
cujos princípios estão estritamente atrelados às concepções ligadas a submissão da ecologia
aos mercados, apesar da constante reafirmação da diferença entre a educação ambiental e a
educação para a sustentabilidade.
É possível que a intensa institucionalização que a educação ambiental brasileira atraves-
sou nos últimos quinze anos esteja atrelada ao movimento internacional que exige dos países o
estabelecimento de Políticas Públicas de educação ambiental. Esse fato reforça o argumento que
afirma o estabelecimento de uma ecogovernamentalidade planetária, a qual, em muitos pontos,
é confundida com o conceito que Reigota (2008) sugere como cidadania planetária, o qual está

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muito mais próximo a um cosmopolitismo internacionalista, cujas intenções estão muito longe
da ideia de governança e controle global, onde as perspectivas libertárias, menores e autônomas
podem ser capazes de contribuir aos processos educativos de maneira aberta e criativa.
Esse ensaio buscou apenas levantar algumas questões relativas ao risco que a educação
ambiental corre em seus processos de legitimação, e sugere que as análises e investigações sobre
a sua transformação em ferramenta de exercício da governamentalidade se ampliem e aprofun-
dem. Ela foi proposta como uma força pedagógica e política de potencial revolucionário, capaz
de realizar mudanças radicais tanto nas relações humanas, quanto nas relações dos humanos
com o planeta. Aliás, e cabe sempre frisar esse fato, de que não foi uma, mas foram diversas
educações ambientais propostas pelos movimentos ecologistas e educacionais nos últimos 50
anos. Permitir sua cristalização sob um molde unívoco em formato de política pública, cuja
elaboração, implantação, manejo e avaliação de resultados estejam submetidos aos interesses
de um determinado grupo político, pode ter um resultado inverso àquele que esperam que a
educação ambiental se fortaleça e transforme as sociedades contemporâneas, promovendo assim
o apagamento das diferenças que possibilitam a ampliação da força e da consistência teórica e
prática das educações ambientais.

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Artigo recebido em 26/12/2014. Aceito em 18/01/2016.

Endereço para contato: Universidade de Sorocaba (Uniso), Câmpus


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