35832-Texto Do Artigo-151067-1-4-20211201

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BIOPOLÍTICA, NECROPOLÍTICA E PSICOPOLÍTICA, UMA

INTERLOCUÇÃO ENTRE CONCEITOS


BIOPOLITICS, NECROPOLITICS AND PSYCHOPOLITICS, AN
INTERLOCUTION BETWEEN CONCEPTS

Resumo: Este trabalho é baseado em uma reflexão teórica que objetiva relacionar os
conceitos de biopolítica, em Michel Foucault, de necropolítica, em Achille Mbembe, bem
como o de psicopolítica, em Byung-Chul Han, à luz da contemporaneidade e de suas
mudanças. A partir da problematização, entende-se que os termos, apesar de serem cunhados
para explicar insuficiências as quais os conceitos prévios abarcariam, não se excluem, dada a
complexidade das configurações sociais e a ideia de múltiplas modernidades que atravessam a
contemporaneidade.
Palavras-chave: Michel Foucault, Achille Mbembe, Byung-Chul Han.

Abstract: This paper is based on a theoretical reflection that aims to relate the concepts of
biopolitics, in Michel Foucault, of necropolitics, in Achille Mbembe, and of psychopolitics, in
Byung-Chul Han, in the view of contemporaneity and its changes. From the problematization,
it is understood that the terms, despite being coined to explain insufficiencies that the previous
concepts would cover, are not mutually exclusive, given the complexity of social
configurations and the idea of multiple modernities that cross contemporaneity.
Keywords: Michel Foucault; Achille Mbembe; Byung-Chul Han.

“Por isso a biopolítica é em última instância uma


política do medo que se centra na defesa contra o
assédio ou a vitimização potenciais”
(ŽIŽEK, 2014, p. 39).

As tentativas de observar fenômenos e elementos que constituem ou constituiriam a


sociedade e os seus entraves, levam os intelectuais a observação social, histórica e filosófica
do mundo que os cerca. Nesse aspecto, conjunturas levam os sujeitos a notarem questões
contextuais díspares, que podem, ou não, dar conta da explicação de uma outra “realidade” ou
momento na história.
Dessa maneira, os autores situados aos conceitos aqui trazidos: biopoder, necropoder e
psicopoder estão situados em contextos que os levam e levaram a demonstrar organizações
26

sociais e locus de enunciação que acentuam, assim, as dinâmicas sociais em determinadas


conceituações teóricas.
Por conseguinte, observa-se que as comparações entre os conceitos de biopoder e
necropoder ocorrem com uma frequência maior nos últimos tempos, bem como a interlocução
de trabalhos que observem a dinâmica entre o biopoder e o psicopoder. Todavia, a reflexão
quanto aos critérios dos três conceitos em simbiose não ocorre com essa frequência, pelo
contrário, buscas no: Google Acadêmico; Scielo; Open Library; Portal de Periódicos da
CAPES/MEC; Microsoft Academic; Redalyc; Directory of Open Access Journals (DOAJ),
por exemplo, não são encontrados trabalhos que correlacionassem os três conceitos.
O Microsoft Academic fornece um trabalho em língua espanhola, com autoria de
Rafael Güitrón Torres1, que é intitulado: “Biopoder, psicopoder e ecopoder”. Por conseguinte,
o Google Acadêmico localiza um trabalho em espanhol, com autoria de Sayak Valencia e
Katia Sepúlveda e intitulado “Del fascinante fascismo a la fascinante violencia:
psico/bio/necro/política y mercado gore”2, o trabalho analisa o que Sontag entendia como o
fascinante fascismo e a maneira como a mídia de massas e o Big Data lhe dá continuidade por
meio de regimes visuais violentos (a fascinante violência), as autoras pensam a rentabilidade e
consumo da violência visual no México, abordando a estetização da violência herdada do
colonialismo e do fascismo, (re)combinada com técnicas de gestão da subjetividade através
dos regimes psico/necro/biopolíticos.
As autoras encontram o regime de controle, produção e sedução através da violencia
que se consome contemporaneamente, de maneira estetizada como código comum na cultura
pop, como uma forma de dar continuidade a instrumentação da violência com herdada do
colonialismo; assim, o neocolonialismo surge na perspectiva das autoras como Capitalismo
Gore que se atualiza na produção de violências contemporâneas, que não interrompem o fluxo
histórico, mas se normalizam dentro dele e entram no mercado do desejo 3. É uma reflexão que
combina e faz, portanto, a intersecção das três óticas em seus instrumentos de controle
biopolíticos, necropolíticos e psicopolíticos.
Ou seja, uma pesquisa em três idiomas, português (Brasil), inglês e espanhol não
revelaram essa interlocução do biopoder, necropoder e psicopoder em português, mas dos

1
TORRES, Rafael Güitrón. Biopoder, psicopoder y ecopoder. Desenvolv. Meio Ambiente, v. 54, 26-39, jul./dez.
2020.
2
VALENCIA, Sayak; SEPÚLVEDA, Katia. Del fascinante fascismo a la fascinante violencia:
Psico/bio/necro/política y mercado gore. Mitologías hoy, [en línea], Vol. 14, pp. 75-91, 2016.
3
Ibidem, p. 79.

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conceitos de modo duplo são reveladas várias reflexões, as quais este trabalho também
procurou trazer, pois demonstram o ensejo existente na correlação de biopoder/biopolítica e
necropoder/necropolítica4; ou biopoder/biopolítica e psicopoder/psicopolítica5; bem como do
termo “necrobiopolítica” e/ou “necrobiopoder”, para Berenice Bento 6, o necrobiopoder
unifica estudos que tem apontado atos do Estado contra populações que devem desaparecer e,
ao mesmo tempo, políticas de cuidado da vida.
Importante lembrar e também intencionando outras reflexões e ensejos, falar dessas
perspectivas que Berenice Bento traz, vendo o aparecimento conceitual “centrado” em autores
como Michel Foucault, Giorgio Agamben, Achille Mbembe, Judith Butler e Gayatri Spivak,
por exemplo, ela aborda que tais intelectuais passaram a compor o cânone do que se pode
chamar de uma ciência social das identidades abjetas.

Quando as pesquisas se referem à violência do Estado contra os corpos abjetos,


geralmente se aciona a noção de “soberania” em contraposição à de governabilidade
(conjunto de técnicas voltadas para o cuidado da vida, da população). Sugiro outro
conceito: necrobiopoder”7.

Imprescindível notar que a Bento analisará a perspectiva brasileira, isso demonstra a


potencialidade dos conceitos, para ela, a governabilidade não se refere apenas ao cuidado da
vida, visto em Foucault, porque a sua hipótese é a de que a governabilidade, para existir,
precisa produzir zonas de morte. “[...] Ou seja, governabilidade e poder soberano não são
formas distintas de poder, mas têm, pensando no contexto brasileiro, uma relação de
dependência contínua [...]”8.
Os três conceitos aqui postos, biopoder, necropoder e psicopoder contam, cada um,
com seu locus enunciativo, ao passo que Bento parte de um outro a partir do que está posto.
Com essas noções e breves e apontamentos em mente, passemos ao conceito de biopoder.

Biopoder: o controle dos corpos e a regulação da vida

4
ESTÉVEZ, Ariadna. Biopolítica y necropolítica: ¿constitutivos u opuestos?. Espiral, Estudios sobre Estado y
Sociedad, vol. XXV, No. 73?, Septiembre/Diciembre de 2018.
5
AYMORÉ, Débora. Do biopoder à psicopolítica. Investigação Filosófica, Macapá, v. 10, n. 2, p. 101-111,
2019.
6
BENTO, Berenice. Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação?. Cad. Pagu [online]. 2018, n.53,
e185305. Epub 11-Jun, 2018.
7
Ibidem, p. 03.
8
Ibidem, p. 03.

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No pensamento do filósofo francês Michel Foucault 9, o biopoder é o domínio da vida


dos sujeitos sobre o qual o poder estabeleceu controle, esse biopoder foi um elemento
indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, garantido à custa da inserção controlada
dos corpos no aparelho de produção10.
O autor conduziu uma espécie de filosofia analítica do poder, nessa filosofia, o poder
conduz as condutas dos sujeitos, com isso, atua sobre as ações das pessoas, das populações,
facilitando ou dificultando, bem como podendo impedi-las, na biopolítica, o objetivo não é o
corpo individual, mas a regulação da população como corpo político 11. Nesse horizonte, os
discursos propiciados pelas relações engendradas nas relações saber-poder estabelecem
efeitos de verdade.
A partir disso, como argumenta Estévez 12, os aparelhamentos políticos e econômicos
vão determinando o que é verdadeiro, são esses dispositivos que permitem estabelecer essas
relações na visão foucaultiana, em que poderes soberanos, disciplinares e biopoderes foram
sendo contextualizados pelo autor em suas historicidades e foram se estabelecendo enquanto
outros poderes se desagregavam.

Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no político; o fato
de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em
tempos, no acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle
do saber e de intervenção do poder [...] Se pudéssemos chamar “bio-história” as
pressões por meio das quais os movimentos da vida e os processos da história
interferem entre si, deveríamos falar de “bio-política” para designar o que faz com
que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do
poder-saber um agente de transformação da vida humana13.

O biopoder “[…] modifica el objetivo soberano del poder disciplinario de dejar vivir y
hacer morir y lo invierte: en lugar de dejar vivir y hacer morir, ahora el poder tiene el objetivo
de hacer vivir y dejar morir [...]” 14. A contra-história, a genealogia em geral, expõe a maneira
como as relações de poder ativam as regras da lei através da produção de discursos da
verdade, o que Foucault15 chama de dispositivos de saber-poder e políticas de verdade.

9
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. curo dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo:
Martins Fontes, 2008.
10
Idem. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.
11
ESTÉVEZ, op. cit.
12
Ibidem.
13
FOUCAULT, Michel. Genelogía del racismo. La Plata, Argentina: Editora Altamira, 1998. p. 133.
14
ESTÉVEZ, op. cit., p. 12.
15
FOUCAULT, 1988, p. 08.

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Outra consequência do desenvolvimento do biopoder é a importância crescente


assumida pela atuação da norma. “[...] A lei não pode deixar de ser armada e sua arma por
excelência é a morte [...]”16, o autor afirma que já não se trata de pôr a morte em ação no
campo da soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e de utilidade.
O livro do filósofo Jeremy Bentham denominado “O Panóptico” é uma obra do século
XVIII que é composto por cartas nas quais ele apresenta uma “arquitetura do poder”, seria
dito, serve-se da vigilância e inspeção de sujeitos, como ele mesmo demonstra na carta de
número I, chamada de “a ideia do princípio da inspeção”17.
Ver-se-á que ele é aplicável, afirma Bentham, a todos os estabelecimentos, nos quais,
num espaço não tão grande para que possa ser controlado ou dirigido a partir de edifícios,
queira-se manter sob inspeção um certo número de pessoas, não importa quão diferentes
sejam os propósitos:

seja o de punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o


suspeito, empregar o desocupado, manter o desassistido, curar o doente [...] seja ele
aplicado aos propósitos das prisões perpétuas na câmara da morte, ou prisões de
confinamento antes do julgamento18.

Não importa quão diferentes, ou até mesmo quão opostos, sejam os propósitos: seja o de
punir o incorrigível, encerrar o insano, reformar o viciado, confinar o suspeito, empregar o
desocupado, manter o desassistido, curar o doente, instruir os que estejam dispostos em
qualquer ramo da indústria, etc.
De Foucault, ao plano do pensamento de Agamben19, que aparecem na reflexão
posterior em Mbembe20, afirma-se que a união impossível entre norma e realidade, e a
constituição do âmbito da norma, é operada sob a forma da exceção, isso significa que, para
aplicar uma norma, é necessário suspender sua aplicação, produzir uma exceção 21, assim, o
autor conclui que o estado de exceção marca um patamar em que uma pura violência sem
logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.
Com as ideais liberais sendo difundidas ao longo da era moderna em direção a era
contemporânea, o poder foi se dissociando da figura do soberano, do rei, da figura unívoca e
16
Ibidem, p. 134.
17
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
18
Ibidem, p. 19-20.
19
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
20
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. São Paulo: n-1
edições, 2018.
21
AGAMBEN, op. cit.

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detentora do poder, o qual, com isso, difunde-se em instituições, como a família, os hospitais,
as escolas, as prisões, etc., esses processos são disciplinadores, exercem controle, em Han 22, a
“sociedade da transparência” atual age enquanto dispositivo neoliberal, voltando ao
pensamento foucaultiana, são emaranhados em saberes-poderes que disciplinam, o corpus
social é, assim, controlado de diversos modos e em vários níveis.

Se é verdade que o projeto baconiano estimula, a partir do século XVI, o controle


sobre a natureza, a partir dos séculos XVII e XVIII, a Europa testemunhou o
nascimento de duas formas de poder moderno: o poder disciplinar e o biopoder.
Assim, a estratégia adotada para o exercício do controle sobre os seres humanos
assume proporções individuais (corpos individuais) e sociais (espécie) como
também as mentes23.

Essa disciplina é um dispositivo cujo objeto é o corpo e seu local de construção é a


instituição, é a política dos corpos organizados em quartéis, fábricas, hospitais, asilos, escolas
e prisões24. Butler25 lembra que para Foucault a “governamentalidade”, entendida como a
maneira como o poder político administra e regula tanto as populações como os bens, passou
a ser a forma como o poder estatal é vitalizado, tal governamentalidade operaria por meio de
políticas e departamentos por meio de instituições de gerência e de burocracia, ou seja, por
meio da lei, ao ser entendida como “conjunto de táticas”, bem como por meio de poderes do
estado. Ainda para a autora, é importante considerar que o surgimento da governamentalidade
nem sempre coincide com a “desvitalização” da soberania, com isso:

o surgimento da governamentalidade pode depender da desvitalização da soberania


em seu sentido tradicional: soberania como provendo uma função legitimadora para
o estado; soberania como um locus unificado para o poder estatal. A soberania neste
sentido não mais opera para apoiar ou vitalizar o estado, mas isso não exclui a
possibilidade de que possa surgir como um anacronismo reanimado dentro do
campo político desvinculado de suas âncoras tradicionais. Na verdade, enquanto a
soberania tem sido convencionalmente associada à legitimidade para o estado e o
Estado de Direito, proporcionando fonte unificada e símbolo do poder político, não
funciona mais dessa forma (tradução nossa)26.

A gestão das populações se apresenta como marca da governamentalidade, Foucault faz


a distinção analítica entre poder soberano e governamentalidade, sugerindo que a
governamentalidade é uma forma posterior de poder e abre a possibilidade de que essas duas
22
HAN, Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
23
AYMORÉ, op. cit., p. 101.
24
FOUCAULT, 1998.
25
BUTLER, Judith. Precarious life: the powers of mourning and violence. New York: Verso, 2004.
26
Ibidem, p. 53.

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formas de poder podem e coexistem de várias maneiras, especialmente em relação àquela


forma de poder que ele chamou de “disciplina”27.
São os pontos de referência foucaultianos, nas regras da lei que delimitam o poder e os
efeitos da verdade que esse poder produz e transmite, reproduzindo, então, o poder, formando
o triângulo entre poder, direito e verdade28, âmbito do direito o qual Giorgio Agamben
também localiza sua escrita. Quando Foucault29 fala em direito, não pensa apenas na lei, mas
em todos os dispositivos, instituições e regulamentos que a aplicam, assim como a
dominação, isto é, em múltiplas formas que pode ser exercida, em micropoderes.
Nas relações entre lei e poder, aplica-se o princípio de que nas sociedades ocidentais,
desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico era baseada no poder real, visto
que a ressurreição do direito romano foi um dos instrumentos que compunham o poder
autoritário, administrativo e monárquico absoluto, assim sendo, a construção legal da nossa
sociedade foi elaborada sob a pressão do poder do rei em que a lei (ocidental) é um direito
que daí é comissionado e em que os juristas tiveram um grande papel para organizá-lo30.

Necropoder: o controle por meio das políticas de morte

O filósofo camaronês Achille Mbembe31, cunha o termo necropolítica, o autor parte de


pontos de vista que visualizam o eixo colonial e suas operações enquanto formas pertinentes
para as relações de poder e as políticas de morte que são estabelecidas nas relações políticas e
sociais entre aparelhos de poder e de soberania, no qual ele transita na análise das políticas de
morte na época contemporânea. Nesse sentido, o autor entrelaça o pensamento de Giorgio
Agamben em sua reflexão, na discussão sobre o estado de exceção, ao passo que reflete, em
conjunto, sobre a referida política de morte (necropolítica) coadunados com o estado de
exceção no âmbito colonial.
Para o que se convencionou chamar de “segundo mundo” (países que estiveram sob o
socialismo) e o “terceiro mundo” (América Latina, África e Ásia) o contexto não é o mesmo
do “primeiro mundo” ou ao que Han32 visualiza, isto é, sociedades “pós-industriais” e ditas
desenvolvidas. Tendo isso em vista, nota-se que o contexto visto por Foucault é europeu,
27
Ibidem.
28
FOUCAULT, 1988, p. 27.
29
Idem, 1998.
30
Ibidem, p. 28-29.
31
MBEMBE, 2018.
32
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

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observando esse aspecto é que Mbembe parte em uma análise de um contexto outro e vê a
necessidade conceitual diferente para fenômenos e conjunturas que são, portanto, desiguais,
um aspecto mais voltado para a vida, o outro, para a morte, nas quais são gestadas mortes
reais (empobrecimentos massivos) e mortes simbólicas, com intervenções do capitalismo no
social, no político e no simbólico33.
O estado de exceção e a relação de inimizade se tornaram a base normativa desse direito
de matar, em tais casos, o poder (não necessariamente estatal) se refere e apela à exceção 34 e
trabalha para produzir a mesma exceção, emergência e inimigo fictício. Assim, a questão
posta é a relação entre política e morte nos sistemas que só podem funcionar em estado de
emergência.
Sob tais aspectos, criando conexões analíticas entre episódios e processos históricos,
Mbembe35 afirma que a ocupação colonial contemporânea da Palestina, por exemplo, é uma
forma bem-sucedida de necropoder, em que identidades são criadas em comunhão ou em
repúdio a alguém ou a algo, são poderes de cunho disciplinar, biopolítico e necropolítico.
Antes vamos observar essa noção da guerra cara ao que Mbembe explana e aborda em
seu ensaio. Recorre-se ao que traz Judith Butler, isto é, a ótica da guerra em relação aos
Estados Unidos da América e Iraque, na qual é preciso considerar as “[...] implicações
filosóficas e representacionais da guerra, porque as políticas e poderes trabalham, em parte,
através da regulação do que pode aparecer e do que pode ser ouvido” (tradução nossa) 36, esses
esquemas são do encargo das corporações que monopolizam o controle sobre o a grande
mídia e que são, com isso, interessadas na manutenção do poder.
Espaços e sujeitos que foram colonizados, lugares em conflitos no passado e no
presente, Iraque, Vietnã, Palestina37, o nazismo, entre outros, são todos postos enquanto
reveladores da precariedade e destruição trazida a partir da ótica do precário, do biopoder e do
necropoder, que nos enveredam para relações de subalternização e da construção imagética do
“Outro”, um não-eu, parafraseando Baudelaire38: “[...] é um eu insaciável do não-eu, que a
cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre

33
ESTÉVEZ, op. cit.
34
MBEMBE, Achille. Necropolitics. Public Culture, v. 15, n. 01, p. 11-40, 2003.
35
Idem, 2018.
36
BUTLER, 2004, p. 147.
37
BUTLER, 2004; MBEMBE, 2018; SONTAG, 2003.
38
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996,
p. 19.

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instável e fugidia”, inviabiliza-se o luto e o lamento pela perda, muitas vezes não vista
enquanto tal.
Nesses processos de guerra, de extermínio e violência direcionada pelos aparelhos de
política de morte, isto é, de necropolítica, promovem o processo em que “[...] cada inimigo
morto faz aumentar o sentimento de segurança sobrevivente [...]” 39. Sentimento de segurança
que é cada vez mais explorado, dada a sensação de insegurança presente permanentemente,
como Bauman40 elencara, nos aparelhamentos de segurança, em condomínios fechados, em
câmeras espalhadas e tudo mais que permita o sentimento de proteção contra algo ou alguém,
além disso, Mbembe também recorre ao Bauman para exemplificar as guerras da era da
globalização.
Nesse sentido, cada Outro precarizado e destruído é uma amostra do que seria a maior
seguridade pessoal e social, isso ao nível comunitário, de casa/condomínio, de bairro e de
região, até o nível global, de um país, de um continente, em ações do Estado no micro, ações
do Estado no macro, bem como no nível público e no privado para esses aparelhamentos, tais
como as empresas privadas de segurança.
Zygmunt Bauman41 também observa que o antigo “Big Brother” estava preocupado em
incluir, em integrar as pessoas e “colocá-las na linha”, assim as mantendo; no entanto, o novo
Big Brother está preocupado em excluir, isto é, identificar os “desajustados” no lugar em que
estão e deportá-los ao local “que é deles”, esses disciplinamentos da governamentalidade,
utilizando aqui as acepções foucaultianas, agem, por exemplo, em listas fornecidos pelo Big
Brother aos aparelhamentos dessa “governamentalidade”, isto é, em listas de pessoas cuja
entrada não deve ser permitida ou dos que devem ser detidos nas entradas, etc. Ademais, o
autor ainda afirma que o antigo Big Brother continua vivo e equipado, mas é encontrado com
mais facilidade em partes periféricas e marginalizadas dos espaços sociais.
Butler42 afirma que a cobertura de guerra trouxe à tona a necessidade de retirar essa
monopolização presente nos interesses midiáticos, dado que os processos engendrados nos
enquadramentos de mídia (fotos, vídeos, etc.) ocultam ou deslocam realidades, no sentido do
filósofo Emmanuel Lévinas, isto é, realidades que escapam ao poder totalizador da razão e de
seu poder, dado que o que nós vemos e ouvimos por meio de faces/rostos postos na mídia não

39
MBEMBE, 2018, p. 62.
40
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005.
41
Ibidem, 162-163.
42
BUTLER, 2004.

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apresentam vocalizações de dor, agonia ou sensações de precariedade da vida 43, ou seja,


ocultando e deslocando noções.
Dado o exposto, entende-se a interlocução entre o que pontua Butler (2004) quanto a
esse aparelhamento que caracteriza e enquadra corpos e subjetividades em uma ótica política
que hierarquiza o luto e a lamentação pelas vidas perdidas, na relação com a explanação de
Mbembe44 ao trazer o exemplo do que ocorre no caso da Palestina, bem como Butler45.

Como ilustra o caso palestino, a ocupação colonial contemporânea é um


encadeamento de vários poderes: disciplinar, biopolítico e necropolítico. A
combinação dos três possibilita ao poder colonial a dominação absoluta sobre os
habitantes do território ocupado. O “estado de sítio” em si é uma instituição militar
[...] A vida cotidiana é militarizada. É outorgada liberdade aos comandantes
militares locais para usar seus próprios critérios sobre quando e em quem atirar 46.

Nesse sentido, em contextos de análises das ocupações coloniais contemporâneas,


vemos que uma hierarquia de luto poderia ser enumerada, algumas vidas são rapidamente
humanizadas.

mas isso é apenas um sinal de outra relação diferencial com a vida, uma vez que
raramente, ou nunca, ouvimos os nomes dos milhares de palestinos que morreram
[...] eles têm nomes e rostos, histórias pessoais, família, passatempos favoritos,
slogans pelos quais vivem?47.

O louco, o criminoso, o perverso, etc., aparecem como os novos inimigos da


sociedade48, bem como o colonizado, o nativo, na leitura que observamos em Mbembe, ou
deixando mais amplo, o Outro. Com isso, observa-se que quanto mais distante o lugar a qual
os conflitos e matanças ocorram, maior a probabilidade de imagens frontais completas dos
mortos e dos agonizantes49, são os “quadros de guerra” se vermos pelo ângulo conceitual de
Butler.
No prisma da guerra e das problemáticas que dela decorrem, como no quesito da
cobertura midiática, em um estudo da relação entre imagem midiática e sofrimento humano,
Sontag ainda observa que as imagens que apresentam provas que contradizem devoções do

43
Ibidem, p. 142.
44
MBEMBE, 2018.
45
BUTLER, 2004.
46
MBEMBE, 2018, p. 48.
47
BUTLER, 2004, p. 32.
48
FOUCAULT, 1998.
49
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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público a certa posição, como na defesa das ações de exércitos de determinadas nações, por
exemplo, são descartadas como encenações montadas para as câmeras.
Mbembe50 aborda que a expressão máxima da soberania reside no poder e na capacidade
de ditar quem pode viver e quem deve morrer, esse pressuposto é, a priori, conjugado ao que
pontua Foucault51, trata-se de um assassinato indireto em que se morre como consequência de
que o Estado nada faça52 por determinadas populações/grupos/indivíduos.
A guerra, para Mbembe, é um meio de alcançar a soberania e também é uma forma de
exercer o direito de matar, assim, em seu ensaio “Necropolítica” 53, o filósofo baseia-se no
conceito de biopoder foucaultiano explorando sua relação com as noções de soberania e de
estado de exceção, como visto, a partir disso, é possível notar que “[...] biopolítica e
necropolítica não são opostos, mas constitutivos em fenômenos sociais [...]” (tradução
nossa)54.
Nesse sentido, a ideia da modernidade é importante em Mbembe, dado que está na
origem de vários preceitos de soberania, isto é, de biopolítica, assim, a soberania, para
Mbembe55, é expressa como o direito de matar. Os autores denominados como decoloniais,
por exemplo, como do Grupo Modernidade/Colonialidade56, notam essa relação entre
modernidade e o início de formas de controle, das amarras coloniais em criações de novas
formas de existência e de subjetividade, de ser e de estar no mundo, portanto, de controle.
Noções discutidas ou trazidas por autores que estão, inclusive, no âmbito daquele que
são vistos como clássicos nas reflexões pós-coloniais. Apesar de que, como põe Ballestrin 57,
aquilo que é considerado clássico na literatura pós-colonial é passível de questionamento, mas
existe um entendimento da importância e atualidade da “tríade francesa”, isto é, Aimé
Césaire, Albert Memmi e Frantz Fanon, sendo possível notar as reflexões das relações entre
colonizador e colonizado.
Nas ações de guerra imbrincada com a relação entre imagem, poder e mídia, está
localizada em enunciações que partem da imagem do Outro, lembrando esse “Outro/Other”

50
MBEMBE, 2018.
51
FOUCAULT, 1988.
52
ESTÉVEZ, 2018.
53
MBEMBE, op. cit.
54
ESTÉVEZ, op. cit., p. 33.
55
MBEMBE, 2003.
56
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, nº11.
Brasília, maio - agosto de 2013, pp. 89-117.
57
Ibidem.

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36

como posto por Butler58. Sontag59 revela que uma das maneiras de entender os crimes de
guerra cometidos no Sudeste da Europa na década de 1990 consistiu em dizer que os Bálcãs
nunca fizeram parte da Europa, discurso herdeiro do costume de exibir seres humanos
colonizados.
Sontag também afirma que africanos e habitantes de remotos países da Ásia foram
mostrados em exposições etnológicas montadas em Londres, Paris e outras capitais europeias,
desde o século XVI até o início do XX, promovendo um tipo de espetáculo, mas que é
esquecido quando se impede essa exposição ao se tratar das vítimas da violência, pois o
Outro60, mesmo quando não se trata de um inimigo, só é visto como alguém para ser visto, e
não como alguém que também vê. Quando consideramos as formas que pensamos sobre
humanização e desumanização:

nós encontramos a suposição de que quem ganha representação, especialmente


autorrepresentação, tem mais chances de ser humanizado, aqueles que não tem
chance de representar a si mesmos correm um grande risco de serem tratados como
menos humanos, considerados como menos que humanos ou, ainda, nem mesmo
serem considerados [...] há um uso do rosto/face, dentro da mídia, para efetivar a
desumanização. Parece que a personificação nem sempre humaniza (tradução
nossa)61.

Mbembe62 visualiza esse locus enunciativo desse que é caracterizado como o Outro, o
colonizado e sua deslegitimação, a qual legitima políticas de morte, de apaziguamento e de
não pertença ao mundo, os quais vivem uma morte na própria vida. Para o autor, o poder (que
como pontuado não está resumido ao Estado), refere-se e apela à exceção, esse inimigo
ficcional é construído, definindo-se em relação a um campo biológico que divide, que
categoriza e, utilizando o conceito de subalternidade com Spivak 63, subalterniza, que é,
portanto, o racismo.
Desse modo, o sujeito que não habita o centro hegemônico do poder ou que dele está
desvencilhado em algum nível, dos aparelhamentos que subsistem de formas complexas como
evidenciado até aqui. Assim, Mbembe 64 observa que na economia do biopoder, a função do
racismo é regular a distribuição da morte, estabelecendo condições para a aceitabilidade dessa

58
BUTLER, 2004.
59
SONTAG, op. cit.
60
Ibidem, p. 45; BUTLER, 2004.
61
BUTLER, 2004, p. 141.
62
MBEMBE, 2018.
63
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
64
MBEMBE, 2018.

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37

situação. O racismo, acrescenta Foucault 65, é a condição de aceitabilidade do abate em uma


sociedade em que a norma, o regime, a homogeneidade são as funções sociais, seria a
metafísica da morte no século XX.

En realidad, el discurso racista no fue otra cosa que la inversión, hacia fines del siglo
XIX, del discurso de la guerra de razas, o un retomar de este secular discurso en
términos sociobiológicos, esencialmente con fines de conservadorismo social y, al
menos en algunos casos, de dominación colonial (tradução nossa)66.

O autor fornece o nazismo como um dos exemplos para corroborar sua tese, visto que os
exemplos dados para essa política antecedem a própria constituição do nazismo, indo ao
âmbito colonial (por isso a referência de seu entrelaçamento nessa perspectiva), nos regimes
de exceção impostos pelos colonizadores pela conquista e soberania, o que sedimentaria os
processos de política de morte vindouros, como o nazismo que fora citado.
Nesse horizonte, são exemplos de políticas de morte que ocorreram nas colônias, como
no caso da própria América ao longo de séculos. Por esse ângulo, os processos tecnológicos e
industriais propiciaram novas maneiras de fazer morrer, isto é, com fórmulas e formas mais
rápidas e que agrupavam uma quantidade maior de indivíduos, Mbembe pontua que é como
“civilizar maneiras de matar”67.
Giorgio Agamben68, ao citar como exemplo o Estado nazista, lembra que do decreto
promulgado por Adolf Hitler, o qual nunca foi revogado, portanto, o Terceiro Reich pode ser
considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de exceção que durou 12 anos.

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por
meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física
não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que,
por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político69.

Assim, Agamben70 nota que, desde então, a criação voluntária de um estado de


emergência permanente se tornou uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos,
inclusive dos denominados democráticos. A partir de aspectos postos em Agamben, Achille
Mbembe71 aponta que uma nova sensibilidade cultural também emergirá, como vimos em
65
FOUCAULT, 1998.
66
Ibidem, p. 59.
67
MBEMBE, op. Cit., p. 22.
68
AGAMBEN, op. cit.
69
Ibidem, p. 14.
70
Ibidem.
71
MBEMBE, 2018.

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38

Foucault72, ao longo dos processos de “transposição” do poder soberano centrado no


indivíduo para o poder direcionado para instituições e saberes-poderes, as conformações
também mudam, acabam por gerar regulações de si mesmo na internalização de práticas,
mesmo com o universo disciplinar ao redor, o sujeito acaba por interiorizar essas
“normatividades”.
Agamben73 nota o significado biopolítico foucaultiano do estado de exceção como
estrutura em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão, o que
aparece na “military order”, promulgada pelo presidente dos Estados Unidos em 2001, e que
autoriza a “indefinite detention” e o processo perante as “military commissions” dos não
cidadãos suspeitos de envolvimento em atividades terroristas, as quais são, também,
esmiuçadas por Judith Butler na ótica do 11 de setembro.
No âmbito colonial, Mbembe74 vê a escravidão, que pode ser considerada uma das
primeiras manifestações da experimentação biopolítica, essa dominação sobre o indivíduo
seria a própria nascença de uma morte social, nas considerações do autor é uma morte-em-
vida.
A “vida nua” que Giorgio Agamben “descobriu” e que entusiasmou a mentalidade
europeia e norte-americana seria, tardiamente, o que nativos e africanos teriam conhecido e
sofrido desde o século XVI75, o que também é posto por Aimé Césaire 76 bem antes. Na
perspectiva de Bento77, nem todas as vidas são nuas, porque algumas nasceriam para viver,
enquanto outras se tornam vidas matáveis pelo Estado (lembrando sua análise no Brasil),
distanciando-se, assim, da posição de Agamben.
Ao passo que Mbembe também nota tal aspecto, isto é, de que essas políticas no
biopoder foram postas pela primeira vez no mundo colonial, portanto, o que é testemunhado
no período da Segunda Guerra Mundial é como uma extensão de métodos antes reservados
para as colônias e suas populações, mas que então foram estendidas, o que é posto por
Césaire78, como dito. Dessa maneira, a observação histórica posta em Sontag 79 na relação

72
FOUCAULT, 2008.
73
AGAMBEN, op. cit., p. 15.
74
MBEMBE, op. cit.
75
WALSH, Catherine. Interculturalidad, descolonización del Estado y del conocimiento. Catherine Walsh:
García Linera: Walter Mignolo - In ed. Buenos Aires: Del Signo. 2006.
76
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa, 1978.
77
BENTO, op. cit.
78
CÉSAIRE, 1978.
79
SONTAG, op. cit.

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39

imagem da mídia e sofrimento humano de acordo os locais de enunciação desses sujeitos


revelam a interlocução das reflexões em suas complementaridades conceituais.
Mbembe80 revela que as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da
morte, ou seja, à necropolítica, reconfiguram as relações entre resistência, sacrifício e terror.
Com isso, surgem aspectos vários na reflexão, indo até a discussão sobre o terrorismo, ou
seja, o autor parte para problemáticas e reflexões contemporâneas de seu tempo em uma
interlocução com o passado e os processos históricos mais longos.
Mbembe desenvolve o conceito que é por ele utilizado dado que o conceito foucaultiano
de biopolítica seria “insuficiente” para dar conta de formas contemporâneas de submissão da
vida, ou melhor, dos contextos que Mbembe tem em vista e que são analisados ao longo do
seu ensaio.
Não há a tentativa aqui de afirmar se um é melhor que o outro, pelo contrário, a
observação é de que os conceitos são próprios de seus contextos e servem para a análise de
dadas realidades e experienciais sociais na criticidade da “realidade”. Desse modo, essas
novas submissões são postas, esses poderes de morte são demonstrados, em que populações
são submetidas a condições que lhes conferem o estatuto, segundo o autor, de “mortos-vivos”.
Essa questão posta pelo autor também rememora ao pensamento da filósofa norte-
americana Judith Butler81, ao pontuar que enquanto algumas vidas são lamentadas, “[...]
outras são encaradas como questionavelmente vivas, talvez até mesmo socialmente mortas
(expressão cunhada por Orlando Patterson para descrever o estatuto de um escravo) [...]”.
Como pontua a autora, se alguém mata ou é morto na guerra, e a guerra é patrocinada
pelo Estado, ela passa a ser investida de legitimidade pelo meio social, portanto, é possível
que consideremos a morte passível de luto, mas ela não é vista como radicalmente injusta 82, o
luto é desigual, os elementos que engendram essas circunstâncias e possibilita sua
manutenção vai sendo formado, como na ação do Estado, nos aparelhamentos da mídia 83, das
propagandas e de outras frações socioculturais.
O sofrimento de determinadas pessoas (levando em conta também suas origens, seu
locus enunciativo, como no deslocamento feito por Mbembe em seu conceito com o

80
MBEMBE, 2018.
81
BUTLER, 2015, p. 70.
82
Ibidem, p. 68.
83
Idem, 2004.

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40

necropoder) possui um interesse mais intrínseco para um público (admitindo-se que o


sofrimento deva ter um público) do que o sofrimento de outros indivíduos84.
Esse luto e lamento pelo sofrimento ou pela perda/morte de um ser humano se relaciona
com o que foi posto em Butler, mas a fragmentação e sobretudo a hierarquização desse luto
perante o público (de mortes decorrentes dessas políticas de morte, de quem deve morrer ou
viver) também subalterniza85 subjetividades e rostos, geralmente a figura do Outro 86 e
legitima, assim, o necropoder em suas aplicabilidades.
Em tal perspectiva, as considerações feitas por Foucault e Mbembe propiciam traçar
essa noção da legitimação cunhada ao poder do Estado em sua política de morte, dotando-o de
uma legitimidade, visualiza-se, assim, a perspectiva colonial e, seguidamente, do nazismo e
de modos variados de necropolítica ou políticas de morte exemplificados pelos pensadores
citados. Com isso, o poder enquadra o olhar social sobre os corpos em seus significados e
valores.
Observa-se que Mbembe visualiza a necropolítica para falar de contextos e sociedades
não hegemônicas, dado que Foucault abordara uma conjuntura europeia, ao passo que
podemos dizer que Mbembe parte para uma perspectiva do colonizado, infere-se que há
colaboração e contribuição de uma perspectiva já existente, mas que não abarca tudo, dado
que a realidade não pode ser fechada no conceito ou no discurso unívoco.
As concepções de Mbembe são postas “[...] enquanto uma passagem de uma biopolítica
à uma necropolítica, no que se refere às realidades das periferias das sociedades capitalistas da
contemporaneidade, dando sentido a outros contextos sociais [...]” 87, assim, inicia dando
sentido a outros contextos sociais, os quais não se enquadram à realidade europeia, porque
essas novas “gestões da morte” sofreram seus tensionamentos e deslocamentos.
A situação dos sujeitos precarizados é, em si mesma, um campo de instabilidades e
paradoxos, dado que a vida precária88 é, como põe a autora, a condição de estar condicionado,
esses indivíduos “[...] não têm opção a não ser recorrer ao próprio Estado contra o qual
precisam de proteção. Em outras palavras, elas recorrem ao Estado em busca de proteção, mas
o Estado é precisamente aquilo do que elas precisam ser protegidas [...]”89.

84
SONTAG, op. cit., p. 72.
85
SPIVAK, op. cit., 2010.
86
BUTLER, 2004.
87
GRISOSKI, Daniela Cecilia; PEREIRA, Bruno César. Da biopolítica à necropolítica: notas sobre as formas de
controles sociais contemporâneas. Revista Espaço Acadêmico - n. 224 - set./out. 2020, p. 199.
88
BUTLER, 2004; 2015.
89
Idem, 2015, p. 47.

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41

Em entrevista recente, Butler90 aponta que a pandemia expôs uma vulnerabilidade


global, a vulnerabilidade que não é apenas a possibilidade de ser machucado pelo Outro, mas
o caráter interdependente do corpo e da vida. Ao passo que o ponto de convergência da
reflexão recente de Butler com a necropolítica/biopolítica é o fato de que ela expõe que, nessa
vulnerabilidade, a resposta tem sido a de identificar os “grupos vulneráveis”, isto é,
populações propensas a sofrerem de forma potencialmente pior com o patógeno, ou seja,
populações racializadas, migrantes, pessoas pobres, etc., as quais se tornam alvos mais
propensos.
Com isso, a lógica da necropolítica é exposta, por exemplo, na negação de
acessibilidade desses grupos, geralmente marginalizados e que dificilmente conseguem pagar
pelos cuidados à saúde, isso em um histórico mais amplo, o que expõe a ação do necropoder,
portanto, da política de morte, retirando ou minando possibilidades de que esses grupos mais
vulneráveis sobrevivam, propiciando, assim, suas mortes, alinhada ao eixo da própria morte-
em-vida, quando se está nessa condição, a morte não metafórica é tornada, assim, menos
passível de luto e de pesar, no qual, portanto, converge-se o pensamento filosófico em Butler 91
e em Mbembe92, mesmo em suas disparidades de lócus enunciativo.
Nessa lógica, é interessante coadunar os pressupostos observados com as reflexões de
Estévez93 ao analisar a biopolítica e a necropolítica em relação dialética de construção mútua
em fenômenos como a migração, no qual a autora pontua, por exemplo, a negação de serviços
de saúde primário para imigrantes sem documento, bem como o desmantelamento de políticas
sociais, a gestação de marginalizações, entre outros aspectos do necropoder de modos reais e
simbólicos. Slavoj Žižek aponta dois modos opostos, mas complementares de violência
excessiva:

a violência sistêmica ou “ultraobjetiva”, própria às condições sociais do capitalismo


global, que implica a criação “automática” de indivíduos excluídos e dispensáveis
(dos sem-teto aos desempregados); e a violência “ultrassubjetiva” dos novos
“fundamentalismos” emergentes, de caráter étnico e/ou religioso e, em última
instância, racistas94.

90
Idem, 2020.
91
Idem, 2004; 2015; 2020.
92
MBEMBE, 2018.
93
ESTÉVEZ, op. cit., p. 13.
94
ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 24.

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Bauman95 também chama a atenção para esses fatores citados, os quais podem ser
combinados com o aumento dos controles de imigração e a todo o contexto que foi e vai
sendo posto neste texto, inclusive rememorando e ligando ao que afirmou Agamben 96, nos
estados de exceção. É preciso lembrar também que a partir dos autores é possível entender
que nem toda violência advém do Estado-Nação, como visto em Bento97.

Essas populações são “perdíveis”, ou podem ser sacrificadas, precisamente porque


foram enquadradas como já tendo sido perdidas ou sacrificadas; são consideradas
como ameaças à vida humana como a conhecemos, e não como populações vivas
que necessitam de proteção contra a violência ilegítima do Estado, a fome e as
pandemias. Consequentemente, quando essas vidas são perdidas, não são objeto de
lamentação, uma vez que, na lógica distorcida que racionaliza sua morte, a perda
dessas populações é considerada necessária para proteger a vida dos “vivos” 98.

Essas observações de Judith Butler são postas aqui porque permitem notar que as
observações críticas para com o trato da vida de sujeitos marginalizados despertam a reflexão
filosófica em um escopo amplo, bem como no âmbito da sociologia, caso pensemos em
Zygmunt Bauman99, visto que a vida líquida é, também, uma vida precária. Portanto, vemos a
denúncia da ilegitimidade desses enquadramentos postos pelas práticas das políticas de morte,
políticas que são, com isso, arbitrárias.
Até aqui, observa-se que a biopolítica e a necropolítica são conceitos que se relacionam,
dialogam e propiciam olhar para realidades distintas e interpretá-las com o arcabouço teórico-
crítico proporcionado pelos autores, bem como contribuem e permitem dialogismos na
concepção da precariedade e destruição100 e de outros aspectos apontados ao longo deste texto.
Sob tais circunstâncias, precarizações implícitas e explícitas, simbólicas, físicas, que agem por
parâmetros diretos e indiretos, a destruição simbólica:

se dá pela morte simbólica, muitas vezes podendo ocorrer pelas superlotações em


presídios, onde indivíduos são “descartados” e esquecidos, vivendo em
aglomerações humanas dentro de pequenos espaços. Bem como através do
impedimento de investimento nas áreas de saúde, educação, assistência social,
segurança, etc., o que acaba causando um estado de precariedade. Com a diminuição
do orçamento de políticas públicas de saúde, educação, assistência social e
segurança, um sistema social permite-se escolher suas vítimas, produzindo assim
efeitos nas intersubjetividades cotidianas contemporâneas101.
95
BAUMAN, op. cit.
96
AGAMBEN, op. cit.
97
BENTO, op. cit.
98
BUTLER, 2015, p. 53.
99
BAUMAN, op. cit.
100
BUTLER, 2004.
101
GRISOSKI; PEREIRA, op. cit., p. 205.

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43

Psicopoder: o controle das mentes

A psicopolítica é um conceito difundido e discutido pelo filósofo sul-coreano Byung-


Chul Han102, o autor tem despontado como um pensador que traz reflexões que são complexas
e simples de modo concomitante, a sua linguagem e escrita direta proporciona o intricamento
de múltiplos elementos em uma mesma linha de pensamento, permitindo entrever as próprias
sociedades por ele analisada, isto é, sociedades tecnológicas e na era das mídias digitais
envoltas no discurso neoliberal.
Nesse sentido, Han ainda reflete, em suas várias obras (quase sempre curtas) sobre as
novas técnicas de poder, ele faz uma espécie de ruptura com a ótica de Foucault no sentido
daquele “universo disciplinar”, pois para ele o presente se define como uma um tempo que
revela um “universo do desempenho”, não mais da disciplina. Assim, o sul-coreano aponta
que a sensação de liberdade que vivemos pode fazer com que ocorram ainda mais restrições
do que o dever disciplinar foucaultiano.

A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e


fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou uma
outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de
escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A
sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de
desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da
obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção103.

Transita-se da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho, o dever tem um


limite, mas o poder de fazer, por outro lado, não tem esses limites, dado que introjetamos
possibilidades múltiplas em nossas mentes, é aí que a psicopolítica age, a biopolítica está
atrelada ao âmbito do corpo, ao passo que a psicopolítica tem, com o advento da internet, a
capacidade de interferir na psiche do indivíduo e da coletividade, naquilo que Han 104
denomina como o “enxame digital”.
Nesse sentido, direcionando o foco para aspectos psíquicos, é possível notar que as
questões como a depressão e a síndrome de burnout, por exemplo, são frequentes no trato que
o autor faz na abordagem, as quais seriam a expressão de uma profunda crise de liberdade. O

102
HAN, 2014.
103
Idem, 2015, p. 14.
104
Idem, 2018.

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44

“burnout”, isto é, o esgotamento, é constante nessa “sociedade do cansaço” exposta por Han.
Em Albert Camus:

o cansaço está no final dos atos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo
tempo o movimento da consciência. Ele a desperta e desafia a continuação. A
continuação é o retorno inconsciente à mesma trama ou o despertar definitivo. No
extremo do despertar vem, com o tempo, a consequência: suicídio ou
restabelecimento105.

Como revela Aymoré106, a liberdade passou a ser compreendida como a possibilidade de


superexposição da subjetividade, o que está em conformidade com a comunicação constante,
propiciando a captação de informações e de rastros das experiências virtuais, as quais podem
ser utilizadas para manter desejos ativos e insatisfeitos, reproduzindo, portanto, o consumo
conspícuo, isso passa a vir em troca de um “reconhecimento” volátil, fluído, no hedonismo de
cultuar a si próprio diante das novas condições econômicos e de produção que os indivíduos
estão, como revela a autora.
Arthur Schopenhauer observa que mesmo que os desejos sejam satisfeitos e aliviem o
sofrer, contra cada desejo satisfeito existem dez que não o são; assim, exige-se uma nova
satisfação, com o que a ilusão se renova, se são satisfeitos muito rapidamente, sobrevém o
tédio, se demoram, sobrevém angústia, em ambos os casos o homem tenta fugir de si mesmo,
e a razão é impotente para mudar isso, ao passo que “[...] nenhum desejo realizado pode nos
satisfazer duradouramente [...] Toda dor, por seu turno, baseia-se no desaparecimento de uma
tal ilusão [...]”107.
O sujeito da performance e do rendimento, que se diz livre, é um escravizado neoliberal,
dado que há a totalização do trabalho, pois hoje o trabalho se desloca para o ambiente
privado, não era possível levar as máquinas industriais para o lar, mas com o telefone celular,
o notebook ou o tablet essa situação muda, o trabalho passa a não ser mais o/um emprego,
mas uma tomada da vida do trabalhador de forma totalizante.
O capitalismo industrial se transforma em neoliberalismo ou capitalismo financeiro com
modos de produção imateriais pós-industriais (tendo em mente que existem problemáticas
postas por críticos a essa noção de sociedade pós-industrial, sendo ela mais voltada ao

105
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Portugal: Livros do Brasil, 1970, p. 13.
106
AYMORÉ, op. cit., p. 106.
107
SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. 2º reimpressão, São Paulo:
Editora Unesp, 2005, p. 144.

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espectro europeu), é notório perceber que Han não fala exatamente da mesma localização que
Mbembe.
Em tais noções de uma sociedade que se dirige, nos eixos hegemônicos, ao que seria
uma sociedade de trabalho focada em serviços, as condições de trabalho também são, cada
vez mais, precarizadas, situação que se desestrutura ainda mais em países mais pobres, em
ditas sociedades industriais.
Nessa vida líquida e precária, as condições de emprego imprevisíveis resultantes da
competição de mercado continuam sendo a principal fonte da incerteza quanto ao futuro, foi
contra isso que o Estado social procurou proteger seus súditos; entretanto, esse não é mais o
caso, o Estado contemporâneo não pode cumprir tal “requisito”, agora os seus programas
trazem prognósticos com apelos mais precários e envoltos em malabarismos, pedindo aos
eleitores “flexibilidade” (preparo para inseguranças futuras) e que busquem individualmente
soluções para problemas produzidos socialmente108.
Essa sociedade é o enlace de uma vida na sociedade da transparência em que vigora a
biopolítica neoliberal, ao passo que Foucault reaparece na abordagem do conceito, mas como
vimos, com o rompimento conceitual e da própria interpretação do fenômeno na
modernidade, não mais da disciplina, mas do desempenho. O individualismo exacerbado do
sujeito, como é exposto por Han, volta-se para um projeto de si e para si, o que oblitera a
compreensão de um processo estruturado em níveis mais amplos e coletivos, indo ao encontro
das argumentações de Bauman.
O neoliberalismo, como forma de mutação do capitalismo, transforma o trabalhador,
suas práticas, seus hábitos, sua psiche, etc., não há uma multidão cooperativa, mas uma
solidão do empresário isolado e voluntário de si mesmo, que constitui o modo de produção
atual, segundo Han109.
Com isso, ele continua ao pontuar que quem falha na sociedade neoliberal de
performance se responsabiliza, ao invés de questionar o sistema, como vimos na explanação
anterior em Bauman, para Han110, essa seria a inteligência especial do regime neoliberal,
porque essa autoagressão não faz do explorado um revolucionário, mas um depressivo.
Assim, vive-se na busca da referida “flexibilidade” e da solução de problemas sociais de
modo individual/isolado, a luta de classes se transforma em uma luta interna.

108
BAUMAN, op. cit., p. 112.
109
HAN, 2014.
110
HAN, 2014.

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46

As problemáticas passam a ser múltiplas, exige-se essa “proatividade”, como traz o


discurso neoliberal111, o que conjuga o fato de que “hoje em dia, toda espera, toda
procrastinação, todo atraso se transformam em estigma de inferioridade” 112, o sujeito é
motivado a ser o “empreendedor” de si mesmo, parar é agredir e culpar a si próprio, ao
mesmo tempo que a instabilidade e liquidez do trabalho/emprego (com durabilidade de
permanência cada vez menor nos postos) e, portanto, da sensação de segurança, amplia
margens de inquietação e medos futuros, ansiedades e crises, o plano para toda a vida é
quebrantado, há uma rotatividade desses trabalhadores.
Bento113 lembra que o desejo permanente de perseverar na existência é a definição da
vida, e a vida está a todo momento ameaçada, então o efeito é a demanda por mais proteção.
Nessa lógica, Žižek114 aponta que hoje a variedade predominante da política é a biopolítica
pós-política, a “pós-política” é uma política que afirma deixar para trás os velhos combates
ideológicos para se centrar na gestão e na administração especializadas, enquanto a
“biopolítica” designa como seu objetivo principal a regulação da segurança e do bem-estar
das vidas humanas.
Contudo, continua o autor, é evidente que hoje as duas dimensões se sobrepõem, ou
seja, com a administração objetiva, a única maneira de introduzir paixão e mobilizar as
pessoas é através do medo, um elemento fundamental da subjetividade de hoje. Ou seja, é por
isso que Žižek afirma que a biopolítica é, em última instância, uma política do medo.
Um dos pontos de encontro entre Foucault, Mbembe e Han se dá justamente no olhar
para o capital, os três o observam e o descrevem em sua relação com os sujeitos e com as
espacialidades, como visto, de formas e óticas distintas dada as suas disparidades de
localizações e contextos.
Ademais, observam aspectos distintos, mas que, de certo modo, ligam-se no choque que
produzem nas subjetividades e nas transformações que geram, seja no prisma corporal, o
biopoder, seja na esfera da psiche, o psicopoder, bem como na alçada da política de morte
(quem vive e quem morre), engendrada pelo necropoder.
O capital representa uma nova transcendência, ou seja, uma nova forma de
subjetivação115. A interlocução reaparece de forma mais acentuada novamente quando Han 116
111
Idem, 2018.
112
BAUMAN, 2005, p. 129.
113
BENTO, 2018.
114
ŽIŽEK, 2014, p. 39.
115
HAN, 2014, p. 19.
116
Ibidem.

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aponta que apenas na modernidade, quando os recursos fundacionais transcendentes já não


tinham validade, é que seria possível uma política, uma politização completa da sociedade, o
que nos rememora ao parâmetro foucaultiano anteriormente abordado.
A complexidade que Han expõe envolve muitos aspectos da sociedade contemporânea,
a tecnologia (tecnologias do poder) e as mídias digitais estão sempre permeadas nos
processos, é como se não desse para fugir, pois a liberdade e a comunicação ilimitadas
tornaram o controle e a vigilância totais, assim, ele recupera a noção do panóptico
benthamiano para demonstrar que as mídias sociais podem ser equiparadas aos panópticos, no
caso, seriam panópticos digitais, pois monitoram e exploram implacavelmente o social.
Segue o trecho em Bentham:

É óbvio que, em todos esses casos, quanto mais constantemente as pessoas a serem
inspecionadas estiverem sob a vista das pessoas que devem inspecioná-las, mais
perfeitamente o propósito do estabelecimento terá sido alcançado. A perfeição ideal,
se esse fosse o objetivo, exigiria que cada pessoa estivesse realmente nessa
condição, durante cada momento do tempo117.

Nota-se que essas palavras dão abertura para enxergar a constituição das mídias e redes
sociais como campos de exposição durante todo o tempo, servindo como plataformas de
controle, mas não mais um controle totalmente físico, por ser também psicológico e mental,
em uma estrutura que se constrói desde os movimentos da propaganda e, passando por outros
meios, bem mais recentemente a internet em seu turbilhão de informações expostas
voluntariamente por usuários diariamente, de modo que “[...] o Panóptico não seria outra
coisa, nessas condições, senão o espetáculo do inspetor [...]” 118, a iniciativa em Bentham era o
isolamento, impedir comunicações, mas como Han observa, isso não ocorre mais, pelo
contrário, há o estimulo dessa comunicabilidade, um movimento pós-panóptico.
Um esquema atribuído, no início, ao movimento de irrupção em espaços físicos,
biopolíticos como nota Foucault, agora é virtual, lembrando que a leitura pode ser a de que
não se excluem e coexistem em certos contextos, em conformidade à necropolítica, como
observa em um contexto brasileiro a necrobiopolítica observada por Berenice Bento 119, como
visto, portanto, é preciso estar atento aos textos e contextos em análises que também requerem
olhares geopolíticos e contextualmente localizados.

117
BENTHAM, op. cit., p. 20.
118
Ibidem, p. 96.
119
BENTO, 2018.

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A exposição diária e o julgamento público de figuras que é feito pelo enxame digital
marcam as relações sociais de hoje, vindo a ser tratado como “cultura”, por ter se tornado uma
prática. Conectando essa observação com os pressupostos em Han 120, entende-se o que ele
afirma ao pontuar que quando acabamos de nos libertar do panóptico disciplinar, entramos em
um novo que é mais eficiente. Nesse processo, a indignação é fragmentada em uma infinidade
de informações nas mídias digitais que direcionam esse julgamento para figuras e indivíduos
públicos ou anônimos em destaque e permitem o status quo.
A “sociedade da transparência” como denomina Han121, é um dispositivo neoliberal,
dado que mais informação e comunicação significa mais produtividade. Nesse contexto da
psicopolítica digital, o poder se manifesta de formas diferentes, é um poder inteligente que
torna os homens dependentes, lendo e avaliando os pensamentos.
O regime disciplinar é organizado como um “corpo”, é biopolítico, o regime neoliberal
se comporta como uma “alma”, e tanto o poder soberano quanto o disciplinar exerciam a
exploração de outros, mas a biopolítica (da sociedade disciplinar), é inadequado para o regime
neoliberal que explora a psique122.
A biopolítica não acessa os elementos psíquicos, mas agora isso já ocorre, a psique é
explorada, ao passo que a depressão e o burnout são mais presentes na nova era. Esses
pressupostos em Han são coadunados, novamente, com o que vemos em Bauman, em
intimidades congeladas e de emoções no capitalismo de consumo. A sociedade disciplinar é
uma sociedade da negatividade, ao passo que:

a sociedade de desempenho vai se desvinculando cada vez mais da negatividade. [...]


O plural coletivo da afirmação Yes, we can expressa precisamente o caráter de
positividade da sociedade de desempenho. [...] A sociedade disciplinar ainda está
dominada pelo não. Sua negatividade gera loucos e delinquentes. A sociedade do
desempenho, ao contrário, produz depressivos e fracassados123.

Albert Camus já lembrara que a Arte, por exemplo, um aspecto dessas dinâmicas sociais
e humanas, só pode ser bem servida por um pensamento negativo, visto que seus
procedimentos obscuros e humilhados são necessários à inteligência de uma grande obra 124. A
positivação do mundo faz surgir novas formas de violência, pensando em múltiplas

120
HAN, 2014.
121
Idem, 2017.
122
Idem, 2014.
123
Idem, 2015, p. 14-15.
124
CAMUS, op. cit., p. 67.

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modernidades e complexidades, pode haver a coexistência das violências postas por Mbembe
e também por Han, em suas complexificações, diferenciações e até coexistências.
Torna-se evidente, portanto, que a psicopolítica neoliberal é a técnica de dominação que
estabiliza e reproduz o sistema dominante por meio de programação e também pelo controle
psicológico125, é uma sociedade em que o modus vivendi é a competição sem limites, ditada
pelo biocapital126.
Nos autores o Estado aparece como um agente que distribui o reconhecimento de
humanidade, mas isso ocorre de formas distintas, mais humanidade para alguns sujeitos e
menos legitimidade de existência para outros. É assim que em Foucault é possível avistar um
contexto, ao passo que Mbembe viu nessa ótica uma explicação que não privilegiaria outras
conjunturas, como a de povos colonizados.
Não menos importante é o impasse avistado por Han, agora em um contexto mais
voltado para as nações modernizadas e do que é chamado por ele de “sociedade pós-
industrial”, em que existe uma ampla imersão dos sujeitos no âmbito da tecnologia, essa
vertente pode até abarcar países e contextos não hegemônicos, mas que apresentem grande
capacidade de inserção de sujeitos no âmbito da tecnologia e das mídias digitais, o que é cada
vez mais crescente.
Em termos abrangentes, notável a visão de Bento 127 ao anunciar que os rituais e ritos de
eliminação do Outro mudam, pois o extermínio de uma população segue ritos de morte
diferentes dos conhecidos por uma outra população, a autora identifica o Estado como o
responsável por determinadas mortes, sabe-se, portanto, que a recusa a reconhecer certos
grupos como humanos não se restringe ao Estado, segundo ela, isso é perceptível ao termos
em vista que os crimes direcionados a grupos/populações específicas não são cometidos
exclusivamente por membros do Estado. Essa ótica abrange a percepção dessas políticas de
morte e de sua ação na relação Estado e sociedade.
Ao fim, elementos como o Estado, o capital, o neoliberalismo e a tecnologia vão se
fazendo mais presentes nas visões dos autores, de formas mais ou também menos acentuadas.
Fato é que a contribuição do conceito e das reflexões de Foucault 128 com o biopoder
propiciam novas pressuposições teórico-críticas e conceituais, para novos contextos, agentes

125
HAN, 2014, p. 117.
126
TORRES, Rafael Güitrón. Biopoder, psicopoder y ecopoder. Desenvolv. Meio Ambiente, v. 54, 26-39,
jul./dez. 2020, p. 31.
127
BENTO, 2018, p. 05.
128
FOUCAULT, 1988; 1998; 2008.

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sociais e subjetividades imersas ou construídas na própria ótica da modernidade e dos


processos que, a partir dela, tiveram suas genealogias baseadas, como a colonização.
O capitalismo atual e os discursos neoliberais aparecem como centrais na regulação dos
processos de vida e de morte (ESTÉVEZ, 2018), a preferência epistemológica, no caso deste
estudo, de cada um dos três aspectos biopolíticos, necropolíticos e psicopolíticos, como visto,
têm a ver com o espaço em que se implementam e se localizam, mas que não precisam se
excluir e enriquecem análises contextuais e geopolíticas propiciando até mesmo novos
conceitos, aplicabilidades e ampliações, como em Bento 129, no Brasil, ao lado de outros
autores evidenciados, como no contexto do México, em Estévez 130 ou Valencia e
Sepúlveda131.
É possível encerrar esse tópico com o questionamento posto por Butler que resume os
confins centrados na biopolítica e na necropolítica: Por que é produzida a tentação de matar
ao mesmo tempo em que é solicitada a paz?

Considerações finais

Como visto, as observações insurgentes entre os conceitos de biopoder e necropoder


ocorrem com uma frequência maior nos últimos tempos, bem como a interlocução de
trabalhos que observem o biopoder e o psicopoder; todavia, a reflexão quanto aos critérios dos
três em simbiose não são tão frequentes, foi esse aspecto que o texto procurou entrever.
Todo esse cenário que foi exposto permite a inferência de que os sujeitos em lugares e
contextos múltiplos vivem em uma situação de precariedade constante, tanto o indivíduo e sua
coletividade que esteve/está sujeito ao biopoder, ou a sociedade que está exposta ao
necropoder, bem como a comunidade “pós-disciplinar” envolta nos mandos e desmandos do
psicopoder.
As relações e disparidades entre os termos e conceitos elencados enfatizam as
abordagens que cada um destes autores: Foucault, Mbembe e Han que, assim, possuem suas
bases analíticas articuladas na direção acerca do controle das populações e do(s) indivíduo(s),
ou seja, de controles sociais, seja no corpo ou na mente, no espaço do colonizador ou do que
fora colonizado, que caso pensemos nos termos decoloniais, ainda enfrenta resquícios do
colonialismo nas mentalidades, nas práticas, nas hierarquias, nas epistemes, etc. Ao passo que
129
BENTO, 2018.
130
ESTÉVEZ, 2018.
131
VALENCIA; SEPÚLVEDA, 2016.

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também é necessário destacar as relações dos três intelectuais com as suas realidades sociais e
as quais “pertencem” ou experienciam os processos socioculturais e históricos.
Em suma, os termos acabam indissociáveis e complementares na reflexão quanto ao
âmbito das tecnologias de poder no passado e no presente, bem como é notável que a lógica
da diferença e da desigualdade social perpetua as perspectivas postas em meio ao contexto da
sociedade capitalista e das novas formas de relações sociais (interferências da tecnologia e de
outros elementos constitutivos do mundo moderno) e entre Estados, o que altera as paisagens
e as políticas de morte e de vida, tornando hierarquizadas as subjetividades e os espaços em
concepções valorativas e de merecimento da preservação.

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