Francisco Zmekhol Nascimentode Oliveira VC

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 250

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

FRANCISCO ZMEKHOL NASCIMENTO DE OLIVEIRA

Tonalidade e seus desvios:


reconhecimento e elaboração composicional de relações funcionais em
meio a procedimentos harmônicos não funcionais

São Paulo
2018
FRANCISCO ZMEKHOL NASCIMENTO DE OLIVEIRA

Tonalidade e seus desvios:


reconhecimento e elaboração composicional de relações funcionais em
meio a procedimentos harmônicos não funcionais

(Versão corrigida)

Tese apresentada à Escola de Comunicações e


Artes da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor pelo Programa de
Pós-Graduação em Música.

Área de Concentração: Processos de Criação


Musical

Orientador: Prof. Dr. Silvio Ferraz de Mello


Filho

São Paulo
2018
Agradecimentos

Agradeço à Fundação Rondônia de Amparo ao Desenvolvimento das Ações Científicas e


Tecnológicas e à Pesquisa do Estado de Rondônia.

Agradeço à Fundação Universidade Federal de Rondônia, a meus colegas e alunos na


instituição.

Agradeço à Paul Sacher Stiftung, em especial à Sra. Isolde Degen e ao Dr. Simon Obert, por
propiciarem meu acesso ao acervo da fundação.

Agradeço a todos os membros da banca, Profa. Dra. Adriana Lopes da Cunha Moreira, Prof.
Dr. Maurício Funcia de Bonis, Prof. Dr. José Augusto Mannis, Prof. Dr. Norton Eloy
Dudeque, Profa. Dra. Denise Hortência Lopes Garcia, Prof. Dr. Tadeu Moraes Taffarello,
Prof. Dr. José Henrique Padovani Velloso, Profa. Dra. Silvia Maria Pires Cabrera Berg,
Prof. Dr. Paulo de Tarso Camargo Cambraia Salles, pela disposição, leitura e retorno.

Agradeço aos professores Maurício Funcia de Bonis e Sergio Kafejian Cardoso Franco pela
participação na Banca de Qualificação. Seus comentários e questionamentos foram de
grande valor ao rumo do trabalho, desde então.

Agradeço aos muitos professores que tive até aqui. Tenho o privilégio de trabalhar com o
que amo e sei que isso se deve ao longo histórico de felizes orientações que pude ter: ao
Guga Murray, ao João Luiz Rezende Lopes, ao José Ferraz de Toledo Neto, à Denise
Garcia, ao Mannis, ao Jônatas Manzolli e ao Silvio, que tem me acompanhado desde antes
da graduação e que me orientou na presente tese, a todos agradeço. Que eu possa retribuir
por meio de meus alunos o bem que me foi feito por cada um.

Agradeço ao Prof. Dr. Sandro Luiz de Andrade Matas e a toda a equipe de neurologia,
reumatologia, enfermagem, fisioterapia – e provavelmente algumas outras – do Hospital São
Camilo, pelo extremo cuidado e competência.

Agradeço a todo o amparo que tive, de família e amigos, ao longo desse complexo processo:
com muito carinho, agradeço à minha mãe e ao Pedro; ao Gabriel, ao Juliano, ao Felipe, ao
Lucas; a colegas e professores da época de escola; à minha família adquirida do Norte:
Alvarez, Mazé, Big, Marcos, Anne, Nonô e uns tantos mais; ao Lira e ao Max; ao Tiago de
Mello e ao Thiago Liguori; ao Tadeu, ao Penha, ao Jorge; ao Júnior, ao Edilson. Se eu
continuar lembrando, não paro.

Agradeço ao Rooney, meu irmão, companheiro de viagens e pesquisa, espécie de


coorientador não oficial deste trabalho.

À amabilis Violeta, pelo imenso carinho e compreensão, por dividir comigo a perplexidade
perante a vida e à criação.

Quanto mais me debruço – sei que este há de ser o sentimento de muitos colegas meus,
estudiosos de música – sobre a obra de homens como Bach, Monteverdi, Schubert,
Schumann, Chopin, Mozart, Brahms, Beethoven, Debussy etc. etc., mais pasmo fico com a
abismante inteligência e capacidade do homem. Sobre as condições para que esse exercício
sem fim seja sequer possível – que micro-variações de pressão se propaguem em ondas, que
tenhamos um ouvido capaz de captá-las em detalhe, que tenhamos um cérebro capaz de, de
algum modo, conhecê-las, atribuir-lhes algum sentido e encontrar nisso um inusitado deleite,
que… que… –, ainda mais espantosas estas são. Hão de se tratar da mesma… força?,
sentido?… do mesmo Verbo pelo qual os cupins, nos subsolos do cerrado, se organizam
para erguer seus edifícios, pelo qual as mariposas fazem seda e as abelhas, própolis e mel;
do Verbo que gera as gotas do orvalho, de cujo ventre procede o gelo e pelo qual opera o
princípio de Bernoulli. Senhor, desde a maravilha e da miséria da condição humana,
agradeço por poder viver para contemplar o Logos.
RESUMO

OLIVEIRA, Francisco Zmekhol Nascimento de. Tonalidade e seus desvios:


reconhecimento e elaboração composicional de relações funcionais em meio a
procedimentos harmônicos não funcionais. 2018. Tese. (Doutorado em Música) – Escola
de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

O amplo abandono da tonalidade funcional no início do séc. XX possibilitou, por um lado, a


emergência de uma enorme diversidade de procedimentos e abordagens à composição
musical, mas implicou, por outro, na abdicação de possibilidades de estruturação formal
propiciadas pela tonalidade, tais como as relações funcionais entre seções formais, a
representação de regiões tonais por acordes ou notas, ou a ressignificação harmônica de
acordes e notas mediante a modulação. O presente trabalho tem por objetivo propor meios
pelos quais se possa conciliar tais possibilidades de estruturação formal a procedimentos e
abordagens à composição que, ao menos a princípio, independam da tonalidade funcional.
Considerando-se que os resultados composicionais de abordagens alternativas à tonalidade
tendam a não manifestar os caracteres morfológicos (tais como a base triádica dos acordes,
ou a base diatônica das regiões tonais) tradicionalmente atrelados às possibilidades de
estruturação formal em que estamos interessados, colocamo-nos duas principais questões
que orientam este trabalho. Primeiramente, investigamos quais seriam os princípios em que
estariam fundadas as relações funcionais e, nos históricos fundamentos morfológicos da
tonalidade, quais seriam seus aspectos cruciais para a manutenção de tais princípios. Assim,
visamos verificar como e em que medida tais fundamentos morfológicos seriam passíveis de
flexibilização, ou supridos já por fundamentos mais elementares. Em segundo lugar,
amparados sobretudo por Schoenberg e por uma concepção estendida de sua noção de
‘emancipação da dissonância’, investigamos o desenvolvimento histórico da tonalidade,
visando verificar como uma tonalidade expandida poderia dar subsídio para que agregados
harmônicos não concebidos funcionalmente pudessem vir a ser a posteriori reportados aos
fundamentos da tonalidade funcional. Em meio a esse exame histórico da tonalidade, para
além de constatarmos a ampla possibilidade de uma identificação de relações funcionais a
posteriori, verificamos ainda: (1) como uma série de procedimentos composicionais a
princípio independentes da tonalidade não apenas emergiram ainda em repertório da tradição
tonal, como, por vezes, parecem assumir primazia na elaboração de certos acordes e
passagens e; (2) como há, em repertório (exemplificamos com Schubert e Strauss), casos em
que acordes ou passagens patentemente concebidos por procedimentos alternativos à
tonalidade funcional vêm a assumir funcionalidade e a participar, em termos funcionais, da
estruturação formal das obras em que se inserem. Na última parte de nosso trabalho, após
argumentarmos que funcionalidades assumidas a posteriori tendam a ser ambíguas e
dispersas entre si, propomos os meios técnicos pelos quais entendemos: (a) que se possa
reconhecer traços de possíveis funcionalidades mesmo em acordes e passagens não
concebidos funcionalmente e; (b) como se possa eleger e ressaltar aspectos específicos de
tais funcionalidades e elaborá-los composicionalmente, a fim de conceder-lhes participação
na estruturação formal das obras em que se insiram. Por fim realizamos relatos
composicionais de três peças de minha autoria – duas das quais escritas sobre obras,
respectivamente, de Schoenberg e Silvio Ferraz – que exemplifiquem singularmente o tipo
de conciliação a que nos propuséramos em nosso objetivo.

Palavras-chave: Tonalidade expandida; Composição musical; Arnold Schoenberg;


Emancipação da dissonância; Dissonância processual.
ABSTRACT
OLIVEIRA, Francisco Zmekhol Nascimento de. Tonality and its diversions: recognition
and compositional development of functional relations amidst non-functional harmonic
procedures. 2018. Thesis. (Doctoral degree in Music) – School of Communications and
Arts, University of São Paulo, São Paulo, 2018.

The vast abandonment of functional tonality within the first decade of the 20th century has
favored the emergence of various new approaches to musical composition. On the other
hand, it has also implied in abdicating some possibilities of formal structuring propitiated by
tonality itself, such as relating functionally different parts of a piece, representing tonal
regions through single chords, or changing the harmonic meaning of chords and notes
through modulation. The aim of this work is to offer means of conciliating such possibilities
of formal structuring with compositional procedures which would be independent of
functional tonality. Taking into consideration that the compositional results of alternative
approaches to tonality such as the above mentioned tend to suppress morphological
fundamentals (such as the triadic basis of chords, or the diatonic basis of tonal regions)
which are traditionally linked to the possibilities of formal structuring that interests us in this
thesis, we have set two primary questions which guide this research. Firstly, we have
investigated upon which principles functional relations would be founded and, within the
historical, morphological fundamentals of tonality, which are the key aspects for the
preservation of such principles. Therefore, this research pursues to verify how and to what
extent such morphological fundamentals might be susceptible to flexibilization, or even
suppressed due to being founded upon more elementary fundamentals. Secondly, supported
mostly by Schoenberg and by an extended concept of “emancipation of the dissonance”, we
have investigated the historical development of tonality, aiming to verify by what means a
tonality extended to the point it was when abandoned could give subsidy for harmonic
aggregates which had not been conceived functionally to become a posteriori reported to the
fundamentals of functional tonality. Amidst this historical examination of tonality, beyond
concluding that it would be vastly feasible to recognize functional relations a posteriori, we
have verified: (1) how a series of compositional procedures initially independent of tonality
did not only emerge within tonal-functional repertoire, but also, at times, seem to take
precedence over the elaboration of certain chords and passages and; (2) that there would be
instances in repertoire (exemplified within this thesis with Schubert and Strauss) in which
chords or passages which seem to have been conceived with procedures alternative to
functional tonality are not only imbued with more specific functionalities, but also get to
participate, in functional terms, in the formal structuring of the work they are inserted in. In
the final part of this thesis, after arguing that functionalities only to be recognized a
posteriori tend to be ambiguous and divergent from one another, we propose technical
means to enable: (a) to recognize, a posteriori, features of possible functionalities even
within chords and passages which had not been conceived functionally and; (b) to elect and
accentuate specific aspects of such functionalities a posteriori in order to compositionally
develop them and to confer to them participation in the formal structuring of the works in
which they are to be inserted. Finally, we have reported the compositional process of three
pieces I have written during this research – two of which written upon works by Schoenberg
and Silvio Ferraz, respectively – which are meant to exemplify the type of conciliation we
have proposed as the main objective of this thesis.

Key-words: Extended tonality; Musical composition; Arnold Schoenberg; Emancipation of


the dissonance; Procedural dissonance.
SUMÁRIO
Prefácio –

Parte I p. 1

I. 1. Introdução p. 2
I. 2. Sobre os fundamentos da tonalidade funcional p. 10
I. 2. 1. Tonalidade e centralidade p. 11
I. 2. 2. Dissonância, resolução e teleologia p. 16
I. 2. 3. Tonalidade, funcionalidade e hierarquia p. 22

Parte II p. 30

II. 1. Cromatismo p. 33
II. 2. Modulações e cadências ampliadas p. 42
II. 3. Acordes errantes p. 49
II. 4. Dissonância e emancipação p. 56
II. 4. 1. A ‘emancipação da dissonância’ segundo Schoenberg p. 56
II. 4. 2. Exame da noção schoenberguiana de ‘emancipação da dissonância’ p. 60
II. 4. 3. Conceituação estendida de ‘dissonância’ e de ‘emancipação’ p. 65
II. 4. 4. Emergência das dissonâncias processuais p. 73
II. 5. Abandono ou renúncia à tonalidade p. 92

Parte III p. 115

III. 1. Participação da integração funcional na estruturação formal de obras p. 116


III. 2. Funcionalidade ‘difusa’ p. 122
III. 3. Representação de centralidades locais por diatonismo p. 128
III. 4. Relações funcionais entre centralidades ‘difusas’ p. 146
III. 5. Relatos composicionais p. 163
III. 5. 1. de mariposas e teares (sonata ao Mekong) p. 164
III. 5. 2. palimpsesto à Calder
– sobre o Op. 31 de Schoenberg p. 178
III. 5. 3. (…) estrada esquecida, nos vales, um vão (…)
– sobre o intermezzo 1 de Silvio Ferraz p. 194

Apontamentos p. 212

Partituras anexas p. 214

Referências p. 232
Prefácio

Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos
desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas (Deleuze:
Crítica e clínica, p. 12).

Em meio ao intenso exercício reflexivo com que se inicia Memórias do subsolo, de


Dostoiévski (1864), seu narrador e protagonista – o “homem do subsolo” – questiona o
positivismo cultivado pelos ditos “homens de ação” e em que estariam fundados alguns dos
utopistas sociais do séc. XIX. Em especial, frente à crença, por ele identificada em seus
interlocutores imaginários, de que, em última instância, a vontade e o livre-arbítrio do
homem viriam eventualmente a ser “explicados pela ciência”, “calculados sobre uma folha
de papel” em “fórmulas matemáticas” e tabelas, o fictício autor contra-argumenta que
haveria ao menos uma vontade do homem que desfaria toda regra: a de “demonstrar a si
mesmo que é um homem e não uma tecla”, que sua vida não se reduz à “extração de uma
raiz quadrada” e que suas vontades não cabem em uma tabela. Para o homem do subsolo,
diante de tudo o que fosse ao homem positivamente bom (“a razão, a honra, a tranquilidade,
o bem estar”…), este “inventaria a destruição e o caos, inventaria diferentes sofrimentos” a
fim, simplesmente, de afirmar ser um homem (e não uma tecla):

Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular (…), vou responder-vos que
o homem se tornará louco intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é
seu!
(…)
– Eh, senhores, como é que se pode ter, no caso, sua própria vontade, quando se trata
de uma tabela e da aritmética, quando está em movimento apenas o dois e dois são
quatro? Dois e dois são quatro mesmo sem a minha vontade. Acontece porventura
uma vontade própria deste tipo?! (2000[1864], pp. 44-5, trad. Boris Schnaiderman).

A maneira como o fictício autor de Dostoiévski compreende o homem, bem como a


identificação, de sua parte, de um princípio de afirmação de vida por meio da própria
possibilidade de autodestruição, parecem encontrar em 1911, quase meio século mais tarde,
ressonância na maneira como Schoenberg compreende a tonalidade funcional. Se por um
lado abundam, na literatura musicológica, concepções (frequentemente distintas entre si) da
tonalidade enquanto um sistema fechado; e se tais concepções promovem critérios pelos
quais se supõe possível determinar se uma obra é ou não ‘tonal’ – ou ainda, em autores mais
flexíveis, se não o é em um sentido “fraco” do termo –; por outro, Schoenberg, ainda que
reconhecendo certos aspectos de algumas dentre tais concepções como fundamentos da
tonalidade funcional, compreende a tonalidade como aberta e, em uma argumentação
prosopopéica, como necessariamente aberta, em termos bastante semelhantes aos postulados
pelo homem do subsolo:

(…) se deve surgir vida, se deve nascer uma obra de arte, então há que interessar-se
por esse conflito gerador do movimento. A tonalidade tem que romper com o perigo
de perder sua soberania, dar uma oportunidade aos desejos de independência e
possibilitar que atuem as aspirações de rebelião, deixá-los obter vitórias, conceder-
lhes eventualmente o alargamento de suas fronteiras, pois um dominador apenas
sente prazer dominando os vivos; e os vivos querem a rapina (2001[1911], pp. 224-
5, trad. Marden Maluf).

Para além de uma tensão constitutiva de obras, em suas individualidades – manifesta,


e. g., na contestação formal à centralidade de uma tônica, por meio da modulação –,
Schoenberg parece reconhecer como historicamente inerente à tonalidade sua própria
negação: o cromatismo próprio à sensível, e. g., embora fundador da tonalidade funcional,
seria também um princípio de destruição de sua base diatônica; o princípio de dissonância,
por sua vez, embora inerente ao próprio acorde (a dominante com sétima) ao qual Fétis, em
1844, atribuíra o nascimento da ‘tonalité moderne’, desafiaria, tanto mais quanto mais
exacerbado fosse, a base triádica da tonalidade; a modulação, distintiva para Fétis da
tonalité moderne com relação a práticas e sistemas teóricos precedentes, se por um lado
contesta a tônica de uma obra ao centralizar provisoriamente um outro acorde, por outro,
como defende Schoenberg, afirma, quando do retorno à tônica principal, a influência desta
sobre a forma.
Sobretudo, em sua concepção aberta da tonalidade, Schoenberg identifica um tipo de
mecanismo responsável por seu dinamismo histórico, por meio do qual aquilo que, em
outros momentos, fora porventura estranho às práticas composicionais ou aos sistemas
teóricos de então passa, em uma nova prática composicional, a integrar a tonalidade, numa
espécie de atualização desta. Designando por ‘emancipação’ um tal mecanismo, Schoenberg
veio a empregar o termo sobretudo para se reportar a uma emergência e a um uso
progressivamente mais livre de acordes mais e mais dissonantes, desde a própria dominante
com sétima, atacada sem preparação em Gabrieli ou Monteverdi, aos acordes de sétima
diminuta não resolvidos em compositores do séc. XVIII e às “dissonâncias mais remotas de
Wagner, Strauss, Mussorgsky, Debussy, Mahler, Puccini e Reger”. Mas não poderíamos
entender que o princípio da emancipação se estenda para além de acordes ou intervalos e
que também progressões entre acordes apenas remotamente relacionados, e. g., ou
modulações cada vez mais súbitas e remotas possam ser entendidas como frutos de
processos emancipatórios?; não poderíamos entender, ademais, que as “aspirações de
rebelião” da tonalidade se tenham dado também nas próprias maneiras de se conceber
relações harmônicas?; que junto a dominantes com sétima, nona, décima-terceira, a acordes
quartais, ou a tríades aumentadas com sétima e nona, e. g., se tenha ‘emancipado’ também
uma nova maneira de se conceber acordes (no caso, por empilhamento de terças, de quartas,
de segundas maiores etc.)?; que o intenso cromatismo linear já de Liszt ou Wagner, que a
elaboração de acordes por meio da verticalização de motivos melódicos em Salome, de
Strauss, ou no Op. 11 de Schoenberg, que a concisa saturação do total cromático no sujeito
da Fuga do BWV 869 de Bach, na introdução à Grande Fuga de Beethoven, ou já no
próprio dodecafonismo schoenberguiano etc. seriam, paradoxalmente, uma espécie de
afirmação de vida da tonalidade, de sua irredutibilidade a sistematizações e “tabelas”?…
Em especial, frente a seu abandono e à emergência, no séc. XX, de uma enorme
variedade de abordagens à composição que se lhe independessem, não poderíamos talvez, ao
invés de dá-la por “morta”, como o fizera Webern em 1932, conceber uma tonalidade
“subterrânea”, interessada precisamente naquilo que lhe há de escapar?
Parte I

1
I. 1. Introdução

O abandono ou renúncia à tonalidade funcional em torno de 1908-9 por Schoenberg e seus


discípulos, em Viena – e, em relativa sincronia, por Scriabin, na Rússia, Debussy, na França, e Ives,
nos EUA –, deixou às práticas composicionais do século XX até a atualidade, de um ponto de vista
estritamente técnico, o duplo legado de uma potência e de um problema.
Por um lado – a potência –, não mais responder a certos critérios morfológicos
tradicionalmente atrelados à tonalidade – seja quanto à constituição de acordes e às progressões
cordais, seja quanto à estruturação formal, rítmica, quanto à orquestração etc. –, nem às demandas
técnicas envolvidas, e. g., em estabelecer uma tônica, em modular com clareza etc., traz consigo a
possibilidade de experimentar ou de assumir radicalmente uma enorme diversidade de
procedimentos e abordagens ao domínio das alturas – e, de fato, à composição, de modo geral –
alternativos à lógica tonal-funcional. (Em uma formulação do próprio Schoenberg, ainda em 1911,
dir-se-ia que a revogação [Aufhebung] das “leis [Gesetze]” da tonalidade favoreceria um
“funcionamento autônomo de outros vínculos”: ver 2001[1911], p. 226, trad. Marden Maluf; cf.
1922[1911], p. 185.) Dentre os muitos exemplos possíveis, manifestações de uma tal potência são
evidentes: nas séries dodecafônicas da Segunda Escola de Viena e na subsequente generalização da
série na Escola de Darmstadt; nos experimentos de Debussy, Bartók ou Stravinsky com modos
antigos, sintéticos e poli modalidades; nos algoritmos generativos de Per Nørgård, com sua série
infinita, ou de Flo Menezes, com seus módulos cíclicos; na subordinação da harmonia a problemas
de timbre e orquestração, já nas transcrições de pássaros de Messiaen, mas mais radicalmente no
espectralismo de Grisey e Murail; em uma diversidade de práticas composicionais que abdicaram
dos próprios critérios de afinação e qualidade espectral requeridos para a articulação da tonalidade,
tal como o ilustram a musique concrète de Schaeffer, ou as paisagens sonoras de M. Schafer e Luc
Ferrari etc.; na primazia do gesto instrumental assumida por Lachenmann; ou ainda em práticas que
se tenham voltado precisamente à interação dessa enorme variedade de abordagens e procedimentos,
como bem ilustram as obras de Berio, Stockhausen ou Ferneyhough, dentre outros. Por outro lado,
muito embora diversos dentre os procedimentos e abordagens supracitados tenham trazido consigo
possibilidades formais que lhes fossem próprias – como a serialização de tempi e durações de
seções formais em Stockhausen, o processus espectral, ou os ‘grids’ de Ferneyhough –, ainda assim,
deve-se reconhecer que um abandono da tonalidade funcional tende a implicar também na
abdicação de uma série de possibilidades de estruturação formal por ela propiciadas.
Para Schoenberg, ainda que o compositor tenha, em distintos textos seus, atribuído à
“renúncia aos meios tradicionais de estruturação [Gliederung]” uma “temporária impossibilidade de
construção de formas maiores” quando da escrita de suas primeiras obras ditas “atonais” (ver

2
1976[1926], p. 213, e; 1950[1941/1948], pp. 105-6), em seu entendimento, tal potencial de
estruturação formal propiciado pela tonalidade seria ainda assim redutível a dois princípios
elementares, ambos passíveis de se substituir por outros meios, independentes desta. Seriam eles,
grosso modo:

(1) a capacidade da tonalidade de propiciar unidade ou coesão formal sob a égide de uma
tônica – ou, mais amplamente, sob a relativa homogeneidade de um material harmônico de
base predominantemente triádica e diatônica (ver 2001[1911], p. 69, e; 1976[1934], p. 226-7)
– e;

(2) uma “função articuladora [gliedernde Funktion]” da tonalidade [Tonalität] (id. ibid.), em
expressa referência à possibilidade de se estabelecer contraste [Gegensatz] formal por meio
da modulação – ou, mais amplamente, da menção a, da incursão em (etc.) tonalidades
[Tonarten]1 outras que não a principal [Haupttonart] de uma obra.

Se, de fato, relações fundadas nesses princípios elementares de unidade e contraste podem
ser estabelecidas por uma diversidade de outros meios – Schoenberg se interessa em especial na
elaboração motívica para tanto (ver 1976[1934], pp. 227-9), um dos principais fatores que levaram
ao advento da série dodecafônica (ver 1950[1941/1948]) –, por outro lado, pode-se encontrar no
próprio repertório de tradição tonal extensa exemplificação da efetivação de possibilidades de
estruturação formal mais intimamente atreladas à tonalidade funcional. Ao menos dois tipos de
possibilidades formais mais peculiares à tonalidade podem ser já aqui exemplificados:

• Primeiramente, a tonalidade funcional possibilita o estabelecimento, precisamente, de inter-


relações funcionais, (a) não apenas entre acordes – nível ao qual originalmente se reporta a
teoria funcional de Riemann –, mas também em maior escala (entre frases, ou seções
formais, e. g., ou mesmo entre movimentos de uma obra maior); e (b) não apenas imediatas,
mas também à distância.
Um exemplo especialmente claro e abundante, em repertório, de relações funcionais em
maior escala e à distância se dá em Allegros de sonata, sobretudo em tonalidades maiores,
em que, via de regra, material originalmente exposto na tonalidade secundária fundada na
dominante tende a ser, próximo ao fim da obra, recapitulado na tonalidade principal (tônica),

1 Por conta de a palavra “tonalidade”, em português, contemplar tanto uma acepção ampla do termo (como na
expressão “tonalidade funcional”), como uma acepção mais estreita, em que ela designe uma organização específica
de notas em torno de uma tônica também específica (como na expressão “tonalidade de Dó maior”), quando
necessário, empregaremos o termo alemão “Tonart” (plural: “Tonarten”) para designar a segunda dentre tais
acepções.

3
realizando-se uma espécie de movimento cadencial entre seções formais. Ainda uma série
de exemplos mais sofisticados podem ser encontrados nas próprias ‘formas sonata’ –
valendo-nos aqui da expressão empregada por Rosen (1980), a quem nos reportamos nesta
breve exemplificação –: que alusões, já próximo ao fim de sonatas, à tonalidade fundada na
subdominante (ou outras regiões mais próximas a esta) tendam a contrabalançar em maior-
escala a dissonância instalada pela tonalidade secundária de dominante e, assim, a fortalecer
o senso de resolução formal; que seções formais fundadas em dominantes secundárias
(como é o célebre caso do segundo grupo temático da Waldstein de Beethoven, ou da
Sinfonia no 3 de Brahms, ambas examinadas adiante) tendam também a ser
correspondentemente resolvidos, com recapitulações suas (via de regra) nas tonalidades
fundadas nas tríades em que tais dominantes secundárias tenderiam a resolver; que o caráter
modulatório dos ‘desenvolvimentos’ [Durchführungen] intensifique o senso de dissonância
formal geralmente estabelecido no segundo grupo temático ao opor sua instabilidade tonal à
estabilidade da tonalidade principal; entre outros exemplos possíveis. (Todos os exemplos
aqui mencionados – bem como os princípios em que tais relações funcionais se fundam –
serão melhor examinados adiante, já em nossa exposição, propriamente.)

• Em segundo lugar, a tonalidade funcional propicia que se estabeleçam, de diversas maneiras,


relações de reciprocidade entre níveis locais (motivos, ou acordes, e. g.) e níveis mais
amplos (frases, seções formais etc.) de organização harmônica.
Assim: um tema melódico, um motivo, um acorde de morfologia característica etc. podem
enfatizar um ponto de articulação formal de uma obra, ao marcarem localmente, e. g., o
estabelecimento de uma dada tonalidade secundária, a chegada à cadência final de uma dada
seção, o início de um processo modulatório etc. e; reciprocamente, o tema, o motivo, o
acorde característico são inflectidos em função de tais articulações formais e das respectivas
tonalidades em que eles venham a ocorrer. Um acorde pode representar toda uma tonalidade
[Tonart] secundária, uma nota pode representar um acorde e; reciprocamente, uma nova
tonalidade tende a ressignificar (‘umdeuten’, nos termos de Riemann) um acorde ou nota.

Em especial, é notável que a tonalidade funcional possibilite, no limite, que a própria nota,
em sua individualidade, venha a ter participação no delineamento formal de uma obra. Assim, o
mero acréscimo de uma sétima ao que seria uma tríade de tônica, e. g., pode frustrar uma cadência
final e demandar uma frase suplementar de resolução; e a alteração em meio-tom da última nota de
um determinado tema ou motivo pode vir a implicar na modulação a uma tonalidade secundária

4
(dissonante) e, subsequentemente, em uma eventual resolução em larga escala desta – i. e., em uma
relação funcional em larga escala.
Para um exemplo extremo, é interessante examinar o Finale da Sinfonia no 8, Op. 93 (1812)
de Beethoven, em cujo primeiro tema, pianissimo, em Fá2 maior, interpõe-se, tanto na exposição
(cp. 17, Ex. 1), como na recapitulação (cp. 178), um dó# fortissimo, dobrado em oitavas, mas de
função harmônica não explicitada. (Tratar-se-ia de fato de um dó#, sensível de ré?; ou quiçá de um
ré bemol, fundamental da submediante cromática de fá? Ou… ou…?) Apenas na coda, já entre os
compassos 372 a 379 (Ex. 2), que, ao se realizar pela terceira vez tal tema, o dó# fortissimo é
finalmente relacionado com clareza a tonalidades específicas; sucessivamente, três tonalidades
distintas, todas relativamente distantes da tonalidade principal: Ré bemol maior (cp. 372-4), Dó#
menor (cp. 374-6) e Fá# menor (cp. 376-9), última tonalidade secundária de fato estabelecida na
peça antes do súbito retorno, sem intermediação de qualquer tonalidade subsidiária, a Fá maior no
cp. 391 (Ex. 3). Assim, podemos entender – como colocado por Rosen, ao examinar tal movimento
em Sonata Forms (pp. 330-351) –, que essa uma nota em fortissimo no cp. 17 do movimento teria
vindo a “implicar em um clímax trezentos e cinquenta compassos mais tarde” (op. cit., p. 342), bem
como em uma modulação imediata, possivelmente inaudita à época, de Fá# menor a Fá maior.

Ex. 1: Beethoven: Op. 93, Finale, cp. 15-18 (redução).

Ex. 2: Beethoven: Op. 93, Finale, cp. 372-379 (redução).

2 Ao longo de todo o trabalho, nomes de notas com inicial maiúscula serão empregados para designar Tonarten
fundadas sobre tais notas. Para designarmos as próprias notas, ou acordes, empregaremos inicial minúscula.

5
Ex. 3: Beethoven: Op. 93, Finale, cp. 389-393 (redução).

O presente trabalho tem por principal objetivo propor meios pelos quais se possa conciliar
possibilidades de estruturação formal propiciadas pela tonalidade funcional a procedimentos e
abordagens à composição que, ao menos a princípio, independam de uma lógica funcional.
A realização de um tal objetivo implica, de partida, em lidar com um problema de dupla face.
Por um lado, as possibilidades de estruturação formal mais peculiares à tonalidade funcional (como
o são, e. g., os supracitados casos das inter-relações funcionais em maior escala, ou da relação de
reciprocidade entre níveis locais e níveis mais amplos de organização harmônica) tendem a ser
também mais atreladas a esta, em termos tanto lógicos, como morfológicos. A título de exemplo: a
condição sine qua non para que um acorde possa representar uma Tonart, ou para que,
reciprocamente, um acorde ou uma nota possam ser ressignificados conforme se insiram em
distintas Tonarten, há de ser, é evidente, que haja Tonarten às quais o acorde ou a nota se possam
reportar, ou pelas quais eles possam ser ressignificados e, ao menos em sua acepção mais estrita,
uma Tonart há de pressupor uma tônica, um diatonismo de base a partir desta, tríades fundadas
sobre um tal diatonismo etc. Por outro lado, podemos entender (como de princípio colocado) que
parte da potência própria a abordagens e procedimentos composicionais que independam da
tonalidade funcional consista, precisamente, em que estes possam, no ato da composição, ser
conduzidos sem que se responda às demandas lógicas ou morfológicas da tonalidade funcional, o
que, no resultado composicional, pode implicar – e frequentemente implica – em que não se
estabeleça uma tônica, em que a obra ou passagem produzidos não manifestem uma morfologia
fundamentalmente triádica, diatônica etc. – i. e., que não se satisfaçam algumas das próprias
condições em que estariam tradicionalmente fundadas as possibilidades de estruturação formal em
que estamos aqui interessados. Frente a um tal problema, podemos nos colocar algumas questões:

• seriam todos os históricos fundamentos morfológicos da tonalidade funcional necessários,


ou igualmente necessários, para que se estabelecessem os tipos de relações formais pelos
quais aqui nos interessamos?; ou ao menos alguns dentre tais fundamentos morfológicos
seriam dispensáveis, ou passíveis de flexibilização, ou supridos já por outros fundamentos
mais elementares etc.?;

6
• assumindo-se, como aqui o fazemos, a tonalidade funcional como historicamente dinâmica,
poderíamos entender que, quando de seu abandono no início do séc. XX, a tonalidade estaria
já suficientemente expandida para que (a) mesmo agregados harmônicos não concebidos
funcionalmente pudessem vir a ser, a posteriori e ainda que de maneira remota, reportados
aos fundamentos morfológicos da tonalidade e, ainda, para que (b) virtualmente quaisquer
agregados passíveis de serem reportados a tais fundamentos morfológicos pudessem vir a
ser – uma vez mais, a posteriori – postos em relação funcional entre si?;

• seriam tais traços ‘aposteriorísticos’ de funcionalidade passíveis de serem elaborados


composicionalmente, a ponto de poderem assumir participação estrutural em uma obra?; ou
tenderiam estes a uma demasiada ambiguidade e dispersão para que pudessem sequer
assumir alguma proeminência na obra e, quanto mais, convergir em torno de um projeto
formal?

É basicamente em função de responder ao problema colocado e às questões por ele


suscitadas que se estrutura nossa exposição, até que venhamos, finalmente, a cumprir com o
objetivo por nós assumido.
Em um primeiro momento, partiremos de escritos e conceitos de diversos autores (de Fétis e
Riemann a Schoenberg, Réti e Rosen) a respeito de e em torno da tonalidade (‘funcional’, como
aqui o preferimos, ou ‘moderne’, ‘harmônica’ etc.) para investigarmos tanto os princípios lógicos
sobre os quais estariam fundadas as relações harmônicas (mais especificamente, ‘funcionais’) por
ela propiciadas, como as maneiras como seus históricos fundamentos morfológicos (o diatonismo, a
tríade, o acorde de sétima etc.) relacionar-se-iam a tais princípios lógicos. Com isso, temos a dupla
intenção de: (a) esclarecermos, de partida, os principais termos e conceitos de que nos valeremos ao
longo deste trabalho (tais como ‘funcionalidade’, ‘dissonância’, ‘regiões [tonais]’ etc.) e; (b) de
ressaltarmos, nos fundamentos morfológicos da tonalidade, o que entendemos ser os aspectos
cruciais para uma manutenção das relações harmônicas funcionais, o que há de possibilitar, em
etapas posteriores do trabalho, (b1) que melhor compreendamos, por um lado, as específicas
maneiras como uma expansão morfológica da tonalidade teria levado a uma dissolução das relações
funcionais na virada do séc. XIX ao XX, mas, sobretudo, (b 2) que, quando do efetivo cumprimento
de nossos objetivos principais, possamos propor flexibilizações de tais bases morfológicas sem que
abdiquemos, propriamente, de uma funcionalidade tonal.
Na segunda parte de nosso trabalho, examinaremos o processo histórico de expansão e
dissolução da tonalidade funcional tendo, em um tal exame, alguns principais interesses.
Primeiramente, (1) estendendo um dos interesses já incipientes na etapa inicial de nossa exposição,

7
um tal exame há de nos permitir verificar no próprio repertório – e não apenas logicamente – as
maneiras como a histórica expansão morfológica da tonalidade teria levado a uma dissolução das
relações funcionais. Em segundo lugar, (2) ao examinarmos passagens e obras de Chopin, Wagner,
Wolf, Strauss etc., poderemos verificar como uma tonalidade ‘expandida’ ao ponto em que ela
estaria na virada do séc. XIX ao XX daria subsídio para que, mesmo em música comumente dita
“atonal” – mas que atenda aos mínimos critérios acústicos demandados pela tonalidade funcional –,
agregados harmônicos não concebidos funcionalmente pudessem vir a ser, a posteriori, (a)
reportados aos históricos fundamentos morfológicos da tonalidade e, ademais, (b) inter-relacionados
funcionalmente. Além disso, (3) poderemos, ainda nessa segunda parte de nosso trabalho, verificar
como o processo histórico de expansão da tonalidade teria envolvido também a emergência, no
interior da própria tradição tonal-funcional, de procedimentos composicionais (como, e. g., o
cromatismo linear, ou a elaboração de acordes por empilhamento de terças e outros intervalos, pela
verticalização de material melódico etc.) progressivamente mais independentes de uma lógica
funcional, de modo a possibilitar que observemos, já em repertório, casos em que: (3a) acordes ou
passagens dificilmente concebidos funcionalmente venham, contextualmente, a assumir alguma
funcionalidade (ainda que profundamente ambígua) e; – já no início da terceira parte de nosso
trabalho – (3b) casos em que acordes ou passagens dificilmente concebidos funcionalmente venham
inclusive a assumir participação, em termos funcionais, na estruturação formal das obras em que se
inserem.
Na terceira e última parte de nosso trabalho, proporemos os meios técnicos pelos quais
entendemos que se possa: (a) grosso modo, reconhecer, mesmo em acordes e passagens não
concebidos funcionalmente – ou que, a princípio, não expressem sequer os fundamentos
morfológicos da tonalidade funcional –, traços de possíveis funcionalidades a posteriori e;
considerando que tais traços ‘aposteriorísticos’ de funcionalidade tendam de fato a ser – tal como
nos indagáramos pouco acima – ambíguos e possivelmente dispersos, (b) como se possa ressaltar
aspectos específicos de tais funcionalidades a posteriori e elaborá-los composicionalmente, a ponto
de que estes possam vir a assumir participação na estruturação formal das obras em que se insiram.
Encerraremos nossa exposição com relatos composicionais de três peças – duas das quais escritas
sobre obras, respectivamente, de Schoenberg e Silvio Ferraz – que exemplifiquem singularmente o
tipo de conciliação a que nos propuséramos em nosso objetivo.
Antes de iniciarmos nossa exposição, dois breves esclarecimentos devem ser feitos.
Primeiramente, embora entremos, ao longo deste trabalho, em diversas discussões de natureza
teórica – e proponhamos, e. g., conceituações estendidas de ‘dissonância’, ‘emancipação’, ou
‘diatonismo’, ou sustentemos uma concepção fundamentalmente diatônica da tonalidade funcional
etc. –, devemos ressaltar que temos sempre em vista um específico objetivo (já acima enunciado) de

8
cunho técnico-composicional; que é em função de um tal objetivo que conduzimos tais discussões
teóricas; e que, assim, não temos a intenção de suplantar quaisquer concepções teóricas alternativas
àquelas aqui sustentadas. Também à natureza de nosso objetivo se deve uma não-ortodoxia com
relação a quaisquer modelos teóricos específicos, o que se manifesta de maneira mais evidente, e. g.,
em nosso emprego híbrido de notação e terminologia oriundas de análise harmônica tanto por
funções, como por graus. Em segundo lugar, devemos ressaltar que estamos aqui interessados em
identificar e elaborar relações funcionais (tanto locais como em maior-escala) sobretudo em um
plano lógico, que possam se efetivar sobretudo no ato composicional. Assim, embora busquemos,
nas várias composições e intromissões composicionais expostas ao longo do trabalho, conceder
relevo a tais relações funcionais, esclarecemos que a eficácia destas na escuta é, ao menos nesta fase
de nossa pesquisa, uma preocupação secundária.

9
I. 2. Sobre os fundamentos da tonalidade funcional

Ao se falar em ‘tonalidade’, ou, como preferiremos neste trabalho, ‘tonalidade funcional’,


há de se levar em conta uma série de fatores que dificultam – e talvez impeçam – uma conceituação
sua suficiente e que contemple o vasto e diverso repertório normalmente entendido como ‘tonal’.
Primeiramente, com relação estritamente a uma história do próprio termo, o problema maior é,
possivelmente, o fato de que se lhe tenha atribuído, na literatura musicológica, uma grande
diversidade de definições (algumas das quais tangidas ao longo da exposição que se segue), por
vezes profundamente divergentes entre si – e o mesmo se aplica a termos subsidiários à tonalidade,
tais como ‘função [harmônica]’, ou ‘dissonância’.
Em segundo lugar, a assunção – tal como a que de partida fizéramos – de que seja inerente
ao que venhamos a entender por ‘tonalidade funcional’ seu dinamismo histórico implica não apenas
(a) na necessidade de se responder, como supracitado, a práticas composicionais tão diversas como
as de D. Scarlatti e Schubert, Corelli e Mahler, ou mesmo, talvez, Monteverdi (ver Fétis:
1867[1844], pp. 165 ff., ou; Chafe: 1992) ou Josquin (ver Lowinsky: 1961, pp. 15 ff.), por um lado,
e Schoenberg e seus discípulos (ver, e. g., Schoenberg: 1934 e 1954[1948], ou; Phipps: 1984), por
outro; mas, sobretudo, implica também (b) em que qualquer conceituação estrita tenda ou,
idealmente, a estar atrelada a um repertório finito e passado – paradoxalmente circunscrevendo a
este tal dinamismo histórico –, ou, mais simplesmente, a fadar-se à insuficiência. Desse modo,
abdicaremos aqui de propor uma conceituação, propriamente, de ‘tonalidade funcional’, para
expormos, ao invés disso, o que entendemos ser suas principais propriedades – seus fundamentos
morfológicos e seus princípios lógicos. Ademais, ao nos concentrarmos sobre propriedades da
tonalidade funcional – e não sobre uma definição sua –, privilegiamos aqui uma abordagem a
materiais, obras e práticas musicais que vise, ao invés de molarmente os definir como “tonais”,
“atonais”, “pré-tonais” etc., identificar neles – para que venhamos subsequentemente a elaborar
composicionalmente – funcionalidades possíveis.
Há ainda ao menos um terceiro problema, de cunho etimológico, com o qual deveremos
lidar. Partiremos dele em nossa exposição, logo abaixo.

10
I. 2. 1. Tonalidade e centralidade

Tal como amplamente se sabe, tanto Schoenberg (1922[1921], pp. 487-8; cf. 2001[1921], pp.
558-60, n., trad. Marden Maluf; 1934, pp. 183 ff.), como Berg (1985[1930], pp. 51-63) e Webern
(1963[1932], p. 42), em diversos textos e conferências, rejeitaram o termo “atonal” como
designante de suas obras pós-1908. Observando-se que “Ton”, cognato alemão do francês “ton” –
de que se originara, com Fétis, o termo ‘tonalité’ [Tonalität, em alemão] –, significa, em
terminologia musical, o próprio som dito “musical” (o som de espectro regular, de fundamental
apreensível, passível de se notar musicalmente3), faz-se evidente que o argumento de Schoenberg,
em sua recusa de tal adjetivação (então pejorativa), é de cunho etimológico e subentende, assim, um
conceito também etimológico (e extremamente abrangente) de tonalidade [Tonalität] quando o
autor escreve, em seu Tratado de Harmonia (1922[1921]), que “uma obra musical será sempre
necessariamente tonal [tonal], ao menos à medida em que, entre um som musical [Ton] e outro, se
estabeleça uma relação por meio da qual os sons [Töne] – justa- ou sobrepostos – resultem em uma
sucessão que possa ser entendida como tal” e que, assim, “atonal poderia apenas designar algo que
não corresponda plenamente à natureza do som musical [dem Wesen des Tons]” (op. cit., p. 487-8,
n., trad. nossa; cf. 2001[1921], pp. 558-9, n.).
Em Tonality in Modern Music (1962[1958]), Rudolph Réti diverge da conceituação
subentendida em Schoenberg ao apontar, também em um argumento de caráter etimológico, que o
termo ‘tonalité’, como conceituado por Fétis em seu Traité complet de la théorie et de la pratique
de l’harmonie, de 1844, teria sido “provavelmente escolhido meramente como uma abreviação
linguisticamente agradável de tonicalidade” (Réti: 1962[1958], p. 25, grifo nosso), i. e.: “um estado
musical (…) de acordo com o qual um agrupamento musical é concebido (…) como uma unidade
relacionada a, e, por assim dizer, derivada de, um fundamento tonal central, a tônica” (id. ibid.,
grifos nossos). (Dahlhaus, em artigo de 1987, p. 62, parece resumir ambas as posições, de
Schoenberg e Réti, ao apontar que a expressão “tonalidade” denotaria simplesmente “relações
centralizadas entre tons ou relações entre tons, como tais”.)
Se a equivalência entre tonalidade e a propriedade, em uma obra ou passagem, de portar um
centro tonal (“tonicalidade”) propicia, por um lado, uma conceituação do termo que efetivamente o
distinga de um estado (tal como idealizado por Schoenberg) em que nenhuma nota fosse sobre-
enfatizada a ponto de vir a ser interpretada como uma tônica (ver Schoenberg: 1954[1948], p. 105 e
108 e; Webern: 1963[1933], p. 39) – a dita “atonalidade” –; por outro, tal conceito, por si só, faz-se
ainda insuficiente para que se distinga o que seria próprio a essa específica tradição musical

3 Valendo-nos desta última propriedade, peculiar ao som dito “musical”, e para evitar confusões decorrentes da
multiplicidade de significados que a palavra “tom” porta em português, referir-nos-emos ao “som musical” mais
frequentemente pela palavra “nota”.

11
ocidental dita “tonal”, de uma série de outras práticas que estabeleçam também notas, ou sons
centrais. Assim, a fim de esclarecer uma tal distinção, torna-se determinante, na exposição de Réti,
a própria maneira como um tal centro tonal se estabelece.
Naquilo que Réti designara como ‘tonalidade melódica’ (ver 1962[1958], pp. 32-5) –
identificável sobretudo com os sistemas modais pré-tonais, ou de outras tradições musicais –, a
centralidade de uma dada nota seria estabelecida pela enfática recorrência desta (id., pp. 33-4), ou
por quaisquer recursos de natureza melódica – como, e. g., o privilégio fraseológico da nota
centralizada de iniciar e terminar a obra, ou muitas de suas frases; que a nota centralizada se situe
em algum ponto privilegiado do registro, ou se torne eixo de sucessivas ornamentações; que
ocorrências da nota centralizada coincidam mais frequentemente com acentos métricos etc.

Ex. 4: Canto judaico, empregado por Réti como exemplo de ‘tonalidade melódica’. Adaptado de Réti: 1962[1958], p.
155.

Na forma de tonalidade designada por Réti como ‘harmônica’ (id., pp. 25-31) – em boa
medida correspondente à tonalité moderne de Fétis (1867[1844], pp. 165 ff.)4 e mais próxima do
conceito de tonalidade mais difundido na literatura (ver p. 22, adiante) –, por sua vez, a tônica seria
estabelecida, em sua concepção, por relações de proximidade inerentes à série harmônica:

• “Verticalmente”, em suas palavras, “uma nota torna-se tônica [tonic; entendemos que o
termo mais adequado, no caso, seria ‘fundamental’] ao combinar-se com seus parciais
harmônicos mais próximos” (1962[1958], p. 26), vindo a formar, assim, uma tríade, ou
acorde de sétima, nona etc. cujas demais notas reforcem espectralmente a primeira –
argumento este que, embora aparentemente adequado ao tratar de tríades maiores, falha,
conforme repetidamente observado na literatura, na explicação a respeito de tríades menores
e do emprego também destas como tônicas possíveis –;

4
Embora se faça necessário esclarecer aqui que, em nossa compreensão, a ‘tonicalidade harmônica’ de Réti designa
uma maneira de estabelecer centralidade, ao passo que a ‘tonalité moderne’ de Fétis designa uma prática histórica
caracterizada por tal maneira de estabelecimento da tônica.

12
• “horizontalmente”, por sua vez, Réti entende que notas correspondentes aos parciais
superiores de uma dada série harmônica tenham uma espécie de tendência “natural” (ver op.
cit., p. 28) a progredir rumo à nota correspondente à fundamental da mesma série. Tal
tendência seria tão mais forte quanto mais próximos estiverem os harmônicos superiores de
tal fundamental e, a isto, o autor atribui a “qualidade de resolução” de progressões do tipo
V→I (id., pp. 26-7).

Desse modo, Réti, à semelhança de diversos outros autores – uma vez mais, Fétis é a
principal referência –, atribui à cadência de tipo V→I, ou a uma “urgência” da dominante em
direção à tônica (id., p. 27), o principal aspecto que caracterizaria a ‘tonalidade harmônica’, o qual
permitiria conectar as práticas composicionais de, e. g., Monteverdi, Bach, Beethoven ou Mahler; e
distingui-las, ainda assim, de práticas comumente designadas como “modais” ou “pré-tonais”,
“atonais”, “pantonais”, “pós-tonais” etc.
Assumindo-se essa distinção proposta por Réti entre dois tipos de “tonicalidade”, algumas
propriedades da centralidade tonal estabelecida por meio da cadência – i. e., “harmonicamente” –
devem ser aqui ressaltadas. Primeiramente, se por um lado a tonalidade dita “melódica” se vale
sobretudo da recorrência de alguma dada nota (ou acorde) para que esta se estabeleça como central
e, portanto, tende a demandar tempo, propriamente, para que isto ocorra; por outro, a tonalidade dita
“harmônica”, ao concentrar sobre progressões cordais do tipo V→I – e, sobretudo, sobre o acorde
de dominante – o estabelecimento de seus centros, faz-se mais ágil – no limite, instantânea – tanto
para que tais centros se estabeleçam, como para que ocorra a troca destes – i. e., grosso modo, a
modulação. Nesse sentido, é notável que Fétis, tendo também atribuído a fundação da tonalité
moderne a uma tendência do acorde de dominante (mais especificamente com acréscimo da sétima)
de progredir em direção à tônica, ressalte expressamente esse potencial modulatório – mais do que a
centralidade em si – propiciado pelo acorde de dominante e designe alternativamente tal tipo de
tonalidade por “ordem transitônica [ordre transitonique]” (1867[1844], pp. 165-6 e 174).
Em segundo lugar, embora Réti tenha associado, respectivamente, as tonalidades ditas
“harmônica” e “melódica” a repertórios distintos (cf. id., p. 26, n. 1 e p. 32), entendemos que: uma
vez que cada uma destas designe mais propriamente – como já apontado – uma maneira pela qual
se estabeleçam centros tonais e; que boa parte do repertório em que se possa identificar o
estabelecimento de centros tonais por meio de recursos “harmônicos” seja, ainda assim, em boa
medida organizado em termos melódicos; então, mais frequentemente do que não, será identificável
neste repertório a participação também de recursos de natureza melódica no jogo de
estabelecimento, obscurecimento, troca, concorrência etc. de centros, de modo que, em nosso
entendimento, haja frequentemente interação entre as duas formas de tonicalidade em questão. (Para

13
um exemplo de tal interação, na Ballade no 1, Op. 23 de Chopin, como se vê pelo trecho abaixo
reproduzido, a ênfase sobre a tríade de lá bemol maior parece estabelecer ‘melodicamente’ Lá
bemol como centro; a cadência de tipo V→I sobre sol menor entre os compassos 8 e 9, contudo,
estabelece por meios ‘harmônicos’ Sol menor como centro tonal, atribuindo retrospectivamente ao
lá bemol inicial um caráter de napolitana.)

Ex. 5: Chopin: Ballade no 1 (1831-5), cp. 1-9.

Finalmente, é sobretudo notável que, sendo a cadência de tipo V→I – e, mais


especificamente, a propriedade frequentemente atribuída à dominante de tender à tônica –
comumente entendida como fundamento da tonalidade dita “harmônica”, “moderna”, “funcional”
etc., ainda assim, sejam tão frequentemente consideradas como “tonais” – ou “tonais expandidas”
(ver Schoenberg: 2004[1948], pp. 99 ff.; Réti, op. cit., p. 38) – obras em que se pareça
deliberadamente evitar progressões de tal tipo, ou obras em que, embora abundem dominantes,
dificilmente se efetive uma cadência perfeita. Tomando-se como exemplo os emblemáticos
compassos iniciais do prelúdio de Tristão e Isolda (1857-9), embora cada frase de tal passagem se
encerre em uma dominante não-resolvida (Ex. 6, abaixo), é virtualmente um consenso em
comentários da obra (ver p. 99, adiante) que a passagem tenha por tônica a ausente tríade de lá
menor, com as seguidas dominantes não resolvidas, respectivamente fundadas em mi (dominante de
Lá), sol (dominante da paralela maior de Lá menor) e si (dominante da dominante de Lá), antes da
cadência deceptiva de mi dominante sobre a submediante fá maior; na canção inicial do
Dichterliebe (1840) de Schumann, por sua vez, embora proliferem cadências de tipo V→I,
nenhuma destas se dá sobre a tônica subentendida de fá# menor e, de fato, tal tríade não ocorre
sequer uma vez na canção; é em especial surpreendente, por fim, que Réti, no capítulo seguinte a
sua exposição a respeito dos dois tipos de tonicalidade, mencione expressamente Salome – abordada
adiante, sobretudo no Cap. II. 5, pp. 100 ff. – e Elektra, de Strauss, como “firmemente baseadas na

14
cadência clássica”, muito embora esta se obscureça, em suas palavras, pelas “séries de acordes de
passagem, desvios harmônicos e relações tonais livres entre partes isoladas” (op. cit., p. 38).

Ex. 6: Wagner: Tristão e Isolda, prelúdio, cp. 1-11.

Dos exemplos supracitados, podemos deduzir uma oposição – particularmente relevante à


sequência de nossa exposição – entre os dois meios em questão de estabelecimento de centros
tonais: se, por um lado, o que Réti denomina “tonalidade melódica” estabelece centros tonais por
meio da efetiva e atual recorrência destes; por outro, na tonalidade dita “harmônica”, o centro tonal
é passível de estabelecer-se mesmo em sua completa ausência: na tonalidade “harmônica”, é antes a
dominante – ou, mais abrangentemente, o dissonante, conforme proporemos no tópico seguinte –
que aponta um centro.

15
I. 2. 2. Dissonância, resolução e teleologia

Semelhantemente ao que ocorre com relação ao termo “tonalidade”, também o par de termos
“consonância” e “dissonância” porta uma diversidade de conceituações na literatura musicológica.
Em estudo historiográfico de tais termos – A History of ‘Consonance’ and ‘Dissonance’ (1988) –,
James Tenney aponta para cinco principais concepções históricas, na cultura musical ocidental, de
tal par conceitual, quatro das quais, em suas palavras, “proximamente relacionadas às [respectivas]
práticas musicais dos extensos períodos durante os quais foram as formas predominantes de CDC
[‘consonance/dissonance-concept’, i. e., ‘conceito de consonância/dissonância’]” (op. cit., p. 95):

• a primeira destas (‘CDC-1’; id., pp. 9 ff.), associada à era pré-polifônica da música ocidental
– desde Pitágoras, séc. VI a.C., até aproximadamente o séc. IX, no entendimento do autor –,
entenderia como consonâncias, basicamente, intervalos entre notas relacionadas por
proporções numéricas simples, “intervalos que fossem diretamente afináveis: a quarta justa
[4:3], quinta [3:2], oitava [2:1] (…)” (id., p. 95, grifo do autor);

• a segunda concepção (‘CDC-2’; id., pp. 17 ff.), associada à polifonia medieval – entre ca.
900 e início do séc. XIV –, seria por sua vez relacionada a intervalos simultâneos e, mais
especificamente, “ao grau em que uma díade simultânea soaria [ou não] como uma única
nota” (id., p. 96, grifo do autor). A princípio – em Hucbald (ca. 900), ou Guido d’Arezzo (ca.
1026-8), e. g. –, os intervalos entendidos como consonantes, segundo tal concepção, seriam
os mesmos que no CDC-1; ao longo dos séculos XII a XIV, as díades de terças e sextas
viriam a ser gradualmente incluídas na categoria de consonâncias – ainda que com
diferentes gradações de consonâncias (“perfeitas”, “intermediárias” e “imperfeitas”), bem
como de dissonâncias (idem) (ver id., p. 1095);

• a terceira concepção (‘CDC-3’; id., pp. 39 ff.), associada pelo autor às práticas polifônicas
desde a Ars Nova (séc. XIV) à Seconda Pratica (fim do séc. XVI/ início do XVII) e a prática
do baixo-contínuo (séc. XVII), é de cunho operacional (id., p. 96) e categoriza
consonâncias (perfeitas e imperfeitas) e dissonâncias em função da manutenção de uma
clareza melódica (e textual) das linhas constituintes de texturas polifônicas (id., p. 97):
grosso modo, consonâncias seriam intervalos ou agregados que prescindissem, então, de
resolução e; dissonâncias, intervalos ou agregados que a requeressem;

5 Tenney expõe uma tabela com as classificações dos distintos intervalos em 30 tratados, desde o tratado anônimo
Musica enchiriadis (séc. IX) a Le institutioni harmoniche, de Zarlino (1558).

16
• a quarta concepção (‘CDC-4’; id., pp. 65 ff.), por fim – identificada por Tenney inicialmente
nos escritos de Rameau, desde o Tratado de Harmonia (1722) –, parte do conceito moderno
de tríade, estabelecido no início do séc. XVII, para determinar como ‘consonantes’ as notas
– não mais intervalos – constituintes de uma dada tríade e; como ‘dissonantes’ qualquer
nota estranha à tríade vigente (id., pp. 96-7). A exemplo da terceira concepção, também aqui
se entende que a nota dissonante – em oposição à consonante – tenda à resolução (id. ibid.).

A classificação das categorias de consonância e dissonância, sobretudo na terceira dentre


tais concepções (CDC-3), em função da necessidade ou não de resolução é especialmente relevante
ao presente trabalho em, ao menos, dois sentidos. Primeiramente, se lembrarmos que, conforme os
critérios de contraponto predominantes da segunda metade do séc. XIV ao séc. XVII, os únicos
intervalos consonantes seriam os intervalos justos de oitava e quinta – e quarta, desde que não
estabelecida sobre a voz mais grave de uma textura polifônica –, bem como as terças, sextas e seus
compostos; então se faz claro que os acordes de terça e quinta ou de terça e sexta – respectivamente
correspondentes às tríades modernas (maiores ou menores) em posição fundamental, ou primeira
inversão – seriam os únicos agregados harmônicos com mais de duas classes de altura inteiramente
consonantes, i. e., que prescindiriam de resolução. Mais do que uma correspondência com o
fenômeno natural da série harmônica – correspondência esta que, para além de insatisfatória no que
tange à tríade menor, deixa inexplicado o porquê de acordes maiores com acréscimo de sétima
menor, ou sétima e nona etc., ocuparem na tonalidade funcional o papel de dominantes, não de
tônicas –, residiria na estabilidade contrapontística das tríades maior e menor a peculiar vocação
destas, na tradição ocidental, para constituírem centralidades cordais na tonalidade dita “harmônica”
ou “moderna”. No mesmo sentido, a necessidade de resolução atribuída às dissonâncias ajudaria a
explicar – outros fatores serão abordados pouco adiante – a tendência das dominantes com sétima à
resolução sobre a tônica. (Conforme escreve Fétis, op. cit., p. 174, “estes acordes [dissonantes], ao
porem em relação o quarto grau, a dominante [i. e., o quinto grau] e o sétimo grau, vieram a
caracterizar a nota sensível, imprimindo sobre esta a necessidade de resolução ascendente” [trad. e
grifos nossos].)
Em segundo lugar, embora o CDC-3 seja especificamente concernente a intervalos ou a
agregados intervalares, a identificação da dissonância com a necessidade de resolução favorece que
(a) se estenda, por um lado, a abrangência do que se designe por ‘dissonante’ a tudo aquilo que, em
uma dada prática composicional, demande resolução e; (b) que se restrinja, por outro, o que se
designe por ‘consonante’ somente àquilo que prescinda completamente de resolução. Tendo
precedentes em Riemann e sobretudo Rosen, assumiremos radicalmente tal identificação entre

17
dissonância e – se não necessidade – demanda por resolução como base para o conceito específico
de dissonância com que operaremos no presente trabalho (ver sobretudo Cap. II. 4. 3., pp. 65-9,
adiante).
Em Die Natur der Harmonik (1886[1882]), Riemann escreve que “o único acorde
consonante em qualquer tonalidade [key], no senso mais estrito do termo, é o acorde de tônica (…),
o único que não requer claramente uma progressão posterior” (op. cit., p. 29, grifos do autor).
Também Rosen, em seu livro sobre Schoenberg (1975), entende que, em uma obra “tonal”, a tríade
de tônica seja a “única consonância perfeita” (p. 28) e defende, assim, que “a distância de outras
tríades a partir da tônica seja uma relação de dissonância” (id. ibid., trad. nossa, grifo do autor).
Rosen entende também, em referência ao advento da tonalidade “moderna” (cf. op. cit., p. 27), que
esta tenha levado a uma extensão do que se faça passível de conceber – agora em termos
composicionais – como ‘dissonante’: “quando música se tornou triádica por natureza, um novo e
poderoso conceito de expressão foi adicionado: à ideia do intervalo dissonante [CDC-1 a 3], juntou-
se a ideia da frase dissonante, ou da seção dissonante” (id., p. 28, grifos nossos), sendo a primeira
destas qualquer frase que enfatize – ou que se conclua com – uma tríade outra que não a tônica e; a
segunda, qualquer seção de uma dada obra que provisoriamente estabeleça como central uma outra
tríade que não sua tônica principal – i. e., a modulação (id. ibid.), frequentemente referida pelo
autor como “dissonância em larga escala” (id., p. 29; 1997[1972], p. 26).
Partindo (a) da assunção de uma radical identificação entre dissonância e demanda por
resolução e das constatações de que: (b) por tal critério, nas práticas tidas por “tonais”, a tônica seja,
a rigor, a única consonância e; (c) de que o status de ‘dissonante’ possa ser expresso em
virtualmente qualquer nível de organização harmônica – da nota (CDC-4), do intervalo (CDC-1 a 3)
e do acorde, à frase ou região tonal (Rosen) –; entenderemos então por dissonância, neste trabalho,
todo e qualquer desvio da tônica no contexto da tonalidade funcional. A argumentação que nos leva
a tal formulação do conceito de dissonância será retomada com maior detalhamento e com
exemplificação exaustiva de suas implicações nos capítulos II. 4. 2. e II. 4. 3., no contexto de um
exame da noção de emancipação da dissonância em Schoenberg. Por ora, contudo, limitamo-nos a
ressaltar, dentre tais implicações, os seguintes pontos:

• primeiramente, que, se entendemos como única consonância, a rigor, a própria


tônica, então nenhum intervalo será consonante por si mesmo, mas apenas
contextualmente; por outro lado, no contexto de uma tonalidade triádica, intervalos
sincrônicos de segundas, sétimas ou trítonos, e. g., tenderão a ser entendidos como
dissonantes, não mais por conta de suas relações na série harmônica, mas por não

18
poderem pertencer a uma tríade pura, passível de ocupar a posição de tônica, de
consonância.

Em relação mais estreita com a argumentação que se segue, devemos ressaltar ainda que:

• se por dissonância entendemos o desvio, propriamente, então: por ‘dissonância’


designaremos as operações, os procedimentos composicionais que produzem o
desvio. O produto de um desvio, por sua vez, será entendido como dissonante.
Assim: uma alteração cromática, ou a suspensão de uma dada nota sobre um novo
acorde, e. g., serão designadas ‘dissonâncias’, ao passo que a nota cromaticamente
alterada, ou em suspensão será designada ‘dissonante’; semelhantemente, a
modulação, propriamente, será entendida como ‘dissonância’, enquanto a região
tonal estabelecida por tal modulação será ‘dissonante’;

• que, se por dissonância entendemos as operações que produzem desvios da tônica,


por resolução, inversamente, entenderemos toda operação de aproximação à tônica,
não se limitando, portanto, à sucessão do dissonante ao consonante.
O retorno à tonalidade principal (se houver), após estabelecimento de uma
tonalidade secundária, e. g., será entendido como resolução, mesmo antes de uma
cadência final sobre a tríade (ou nota) central; a progressão de uma suspensão de
quarta à terça de uma dominante será igualmente entendida como resolução, posto
que, ainda que a dominante seja, na concepção ora defendida, dissonante, haveria em
tal progressão uma aproximação à morfologia triádica da tônica;

• que, se por dissonância entendemos o desvio da tônica, então esta, em seus


diferentes níveis (sua tríade, a nota fundamental de tal tríade, a tonalidade sobre ela
fundada etc.), serve de referência ao desviado (i. e., o dissonante), de modo que:

◦ sejam em alguma medida identificáveis no dissonante as operações que


produziram seu desvio – a relativa eficácia da notação convencional de análise
harmônica funcional em identificar (ainda que não inequivocamente) funções de
acordes, retardos, alterações cromáticas etc., é, ela própria, suficiente evidência
para tal constatação –;

19
◦ que sejam portanto identificáveis no dissonante também as operações que
reverteriam tal desvio, i. e., suas resoluções possíveis;

◦ que, ao menos no contexto da tonalidade funcional, o dissonante, no nível em


que se der (nota, acorde, frase etc.), aponte, portanto, para a tônica, no nível
correspondente, independentemente da efetivação ou não (e imediata ou não) de
uma resolução.

A propriedade inerente (no contexto da tonalidade funcional) ao dissonante de apontar para


centralidades estabelecidas ou contextualmente supostas corresponde ao que aqui entendemos por
teleologia e; a relação entre (a) um dissonante e (b) o produto (não necessariamente consonante) de
uma dada resolução sua (imediata ou não) corresponde ao que entendemos por ‘conexão
teleológica’. Antes de prosseguirmos com nossa exposição, fazem-se aqui necessários alguns
esclarecimentos a respeito da teleologia inerente aos dissonantes e sua potencial participação no
estabelecimento de centralidades tonais.
Primeiramente, embora entendamos que sejam objetivamente identificáveis, em um dado
dissonante, as operações que reverteriam os desvios que o produziram, i. e., suas resoluções
possíveis, devemos esclarecer que, mais frequentemente do que não (à exceção, possivelmente, das
sensíveis, na musica ficta do século XIV; ver pp. 22-4, pouco abaixo), tais resoluções possíveis
tendem a ser múltiplas – i. e., a teleologia inerente a um dado dissonante, embora objetiva, não é
unívoca. O próprio acorde maior acrescido de sétima serve-nos de exemplo: embora tal acorde
tenda, mais normalmente, a uma resolução sobre a tríade de fundamental situada quinta abaixo da
sua, veremos ao longo deste trabalho, entre os inúmeros exemplos possíveis: em Wolf, e. g., um tal
acorde resolver-se (de fato) por progressão de quarta descendente (p. 54, adiante, Ex. 24, cp. 8-9);
em Schumann, por sua vez, veremos um acorde idêntico a uma dominante em termos de sua
constituição intervalar (a saber, uma dominante germânica) aproximar-se da tônica ao progredir
descendentemente por segunda menor e, ulteriormente, na mesma obra, ao progredir, de fato, por
quinta descendente (quarta ascendente, no caso), aproximar-se, por um lado, do tipo de progressão
cordal (a cadência perfeita) que, repetidamente, na obra, confirma sua tônica, mas, por outro,
afastar-se desta ao conduzir a uma tonalidade secundária (ver pp. 51-2, adiante). (De fato, os
acordes errantes – examinados adiante, Cap. II. 3., pp. 49 ff. –, de modo geral, põem em evidência
esta relação – a qual, ressaltamos, não se restringe a eles – entre objetividade e não-univocidade da
teleologia tonal.)
Em segundo lugar, devemos esclarecer que compreender o dissonante como teleológico – i.
e., como portador de uma propriedade inerente de apontar para centralidades tonais – não implica

20
em compreendê-lo como predestinado à resolução – e, de fato, abundam exemplos em virtualmente
qualquer obra da tradição tonal em que, de acordes ou tonalidades dissonantes (segundo o conceito
ora proposto), se progrida a acordes ou tonalidades ainda mais distantes da centralidade principal
da obra, sobretudo em passagens modulatórias, ou em passagens de desenvolvimento
[Durchführung]. Especialmente relevante é ressaltar aqui que, quer se efetive a resolução mais
provável de um dado dissonante (como uma cadência perfeita, no caso do acorde de dominante),
quer se efetive uma resolução menos provável (como, e. g., uma cadência deceptiva), quer se
progrida a um dissonante ainda mais distante da tônica, ou se siga a uma pausa (como
repetidamente ocorre no Ex. 6, p. 15, acima) etc.: em todos os casos, a teleologia própria ao dado
dissonante tende a participar do(s) sentido(s) que aquilo que se lhe segue assume e; por outro lado,
a resolução, a pausa, a elisão, a intensificação da dissonância etc., em função de tal teleologia
específica, conferem sentidos distintos à própria progressão em questão – de modo que a cadência
deceptiva, ou a pausa, e. g., não se caracterizem respectivamente como erro, ou falta etc., mas como
recursos expressivos e formais.
Por fim, se assumimos nesta exposição que (a) a teleologia própria a um dado dissonante se
dê em função da identificação das maneiras específicas como este é desviado de uma centralidade
de referência e; (b) que, de modo geral, a teleologia inerente a um dado dissonante não seja unívoca;
então se faz necessário colocar a pergunta sobre como, segundo o modelo ora proposto, viria a ser
estabelecida uma centralidade se não por ênfase, recorrência etc.; se não, ao menos inicialmente,
pela ‘tonicalidade melódica’ – lembrando-se aqui que, mais frequentemente do que não, obras
entendidas como “tonais” se iniciam e concluem com a tríade de tônica e confirmações desta, de
modo que, conforme já apontado, haja frequentemente participação, em obras inseridas na tradição
tonal, de recursos de natureza ‘melódica’ no estabelecimento de tônicas –; em suma: como é
possível que se estabeleça apenas por teleologia – e com relativa clareza – uma centralidade
ausente, a exemplo da primeira canção do Dichterliebe de Schumann, ou dos compassos iniciais do
prelúdio de Tristão…? Por ora, limitamo-nos a apontar que, se por um lado há, em um dado
dissonante, uma multiplicidade de resoluções possíveis – sobretudo se ainda não se faz claro o
centro de referência –, por outro, aquelas que por menos operações o conduzam a algo que se possa
contextualmente interpretar como consonante (em nosso entendimento, portanto, central) tendem a
ser mais claramente identificáveis, de modo que, dentre as resoluções possíveis, algumas possam
parecer mais iminentes do que outras – e os centros por elas apontados, mais prováveis –; à medida
em que as progressões e possíveis resoluções de distintos dissonantes pareçam convergir ou
divergir, as possíveis centralidades por eles apontadas tenderão a se pronunciar mais ou menos
claramente.

21
I. 2. 3. Tonalidade, funcionalidade e hierarquia

Uma concepção (possivelmente, a mais difundida) bastante mais estrita de tonalidade do


que os conceitos de cunho etimológico que apontáramos respectivamente em Schoenberg e Réti diz
respeito a um sistema harmônico em particular, o qual, embora formulado, em termos teóricos,
apenas posteriormente a um tal período, seria identificável em sua forma mais plena e pura em
práticas composicionais da segunda metade do séc. XVII e início do séc. XVIII (Corelli é,
possivelmente, o exemplo mais claro): “um sistema graduado de relações cordais”, conforme
sintetizado por Bukofzer, “entre um centro tonal (a tríade de tônica, maior ou menor) e as outras
tríades (ou acordes com sétima) da escala diatônica” (1975[1948], pp. 219-20, trad. nossa, grifo
nosso; cf. Rosen: 1975, pp. 27-8).
Embora a abordagem que proporemos neste trabalho, especialmente voltada à composição
(ver sobretudo Cap. III. 2 a Cap. III. 4, pp. 122-62, adiante), demande uma concepção bastante mais
abrangente de ‘tonalidade’ do que a supracitada, o reconhecimento de uma matriz diatônica da
tonalidade funcional – a exemplo de Rameau, Fétis, Schenker e Schoenberg, mas distintamente, e.
g., de Riemann (cf. 1896[1882], p. 796) – se faz de extrema relevância para nós por ao menos dois
motivos. O primeiro destes, de ordem composicional, é que a identificação, em passagens e acordes,
de diatonismos possíveis – ainda que sob uma concepção também flexibilizada de ‘diatonismo’, tal
como detalhadamente o exporemos no Cap. III. 3 – nos servirá de base para uma interpretação de
tais passagens e acordes como possíveis representantes de centralidades tonais específicas – embora
não necessariamente unívocas – e, subsequentemente, para uma elaboração composicional das
inter-relações funcionais entre os centros locais inferidos. Abordaremos tais procedimentos em
detalhes e com a devida exemplificação na terceira parte deste trabalho. O segundo motivo, por sua
vez, mais propriamente concernente à corrente exposição, é que um exame das origens das escalas
maior e menor em função de suas relações internas de dissonância será elucidativo a respeito de
como, em nosso modelo, tais escalas e seus acordes tenderiam a apontar para seus respectivos
centros.
Sabidamente, os distintos modos empregados na música ocidental de tradição escrita desde a
Idade Média ao séc. XVI, dos quais se derivam as modernas escalas maior e menor, constituíam-se
eles próprios, grosso modo, de escalas diatônicas (mais especificamente, heptatônicas), com uma
nota, a finalis (via de regra: ré, mi, fá ou sol), centralizada por recursos ‘melódicos’, e uma nota (via
de regra, o moderno si) móvel em um semitom (em termos modernos: si natural ou si bemol), a fim
de evitar, melódica- ou harmonicamente, a ocorrência de trítonos (‘mi contra fa’, no antigo sistema
de hexacordes). Conforme apontado por Berger, em Musica ficta (1987), ainda um terceiro caso –
teorizado ao menos desde o início do séc. XIV, com o Lucidarium in arte musicae planae (1317-8),

22
de Marchetto da Padova – previa o possível uso de alterações cromáticas: progressões polifônicas
de consonâncias imperfeitas (entendidas por Marchetto como “dissonâncias”) para consonâncias
perfeitas. Segundo a teoria da época, “uma consonância imperfeita deveria progredir para a
consonância perfeita mais próxima por movimento contrário” (Berger: op. cit., p. 122, trad. nossa,
grifo nosso), de modo que a terça menor progrediria ao uníssono; a terça maior à quinta justa e; a
sexta maior à oitava (id. ibid.). Quando a constituição interna de um dado modo não propiciasse a
progressão desejada, uma das notas da consonância imperfeita seria cromaticamente alterada, a fim
de produzir o intervalo necessário à progressão.
Segundo Berger, tal regra teria sido flexibilizada em tratados posteriores ao Lucidarium… –
como o Compendium de discantu mensurabili (1336), de Petrus frater dictus Palma ociosa, ou o
Contrapunctus (1412), de Prosdocimus de Belmandis –, admitindo-se: em Petrus frater, a
progressão de consonâncias imperfeitas para perfeitas por movimento paralelo, ou, ainda, com
apenas uma das vozes progredindo por grau conjunto (mais especificamente, um semitom); e
suplementarmente, em Prosdocimus, a progressão de consonâncias imperfeitas para outras
consonâncias imperfeitas, buscando-se “progredir por semitons sempre que possível”. (O Ex. 7,
extraído por Berger do Contrapunctus de Prosdocimus, exemplifica tanto a progressão mais
ortodoxa de Marchetto, como as progressões referentes a seu tratado e ao de Petrus frater.)
Dissociando-se, assim, a alteração cromática em progressões polifônicas de progressões entre
intervalos específicos e; somando-se às progressões propostas por Marchetto, Petrus e Prosdocimus,
as cadências de dupla sensível, amplamente empregadas por compositores da ars nova, em meados
do séc. XIV (ver Ex. 8, abaixo); faz-se claro que as notas elevadas cromaticamente eram
empregadas, via de regra, em função de progredir ascendentemente por passo cromático.

Ex. 7: Prosdocimus: contraponto a duas vozes (1412). Assinaladas por (a), as progressões ortodoxas, ao modo de
Marchetto; por (b), uma progressão menos ortodoxa, ao modo de Petrus frater; por (c), uma progressão entre
consonâncias imperfeitas com alterações cromáticas. Adaptado de Berger: 1987, p. 124. Os sinais de “bê duro”
correspondem ao moderno “#”.

23
Ex. 8: Machaut: La Messe de Nostre Dame (anterior a 1365), Kyrie, início. Cadências de dupla sensível assinaladas.

Valendo-nos de nossas respectivas conceituações de ‘dissonância’ e de ‘teleologia’, pouco


acima formuladas, podemos interpretar tais notas elevadas cromaticamente, na musica ficta, como
desviadas do padrão escalar, como dissonantes e, portanto, teleológicas: suas resoluções não
necessariamente apontam para a finalis, mas para a nota mais próxima dentre as pertencentes ao
modo em questão – e, se nos respectivos modos do sistema modal medieval a finalis era a nota
central, assim estabelecida por meios ‘melódicos’, a incorporação, em cada modo, do VII grau
cromaticamente elevado (i. e., da sensível) viria a intensificar o senso de centralidade da finalis por
meio da teleologia inerente, em tal sistema, a um VII grau desviado, dissonante (por um meio,
portanto, ‘harmônico’). Nos modos I e II (finalis ré), a incorporação da sensível para fins cadenciais,
associada à mobilidade da nota correspondente ao si moderno, o aproxima do moderno modo menor
(Ex. 9a); nos modos VII e VIII (finalis sol), a incorporação da sensível o aproxima do moderno
modo maior (Ex, 9b). Nos modos V e VI (finalis fá), em que a nota inferior à finalis já se lhe fazia
próxima em meio-tom, o IV grau móvel poderia constituir trítono: (a) com a própria finalis (caso tal
grau correspondesse ao si natural) e pôr assim em xeque sua estabilidade enquanto centro; ou (b)
com o VII grau (caso o IV correspondesse a si bemol), atribuindo a este a qualidade de dissonante e,
portanto, teleológico, em direção à finalis. Fixando-se o IV grau de tais modos em sua posição
“mole”, bemol, também os modos V e VI – a exemplo dos modos VII e VIII – se aproximam do
moderno modo maior (Ex. 9c). Quanto, por fim, aos modos III e IV (finalis mi e caracterizados por
um II grau menor), ou, na nomenclatura moderna, o modo frígio, o fato de a sexta entre seu II e seu
VII graus ser já maior pode ter contribuído para sua maior longevidade – “o único modo a
sobreviver” no séc. XVII, conforme apontado por Bukofzer (1975[1948], p. 386). Eventualmente,
contudo, tal modo viria a fundir-se com as tonalidades [Tonarten] menor ou maior de Mi (id. ibid.),
absorvendo, a exemplo dos demais, a sensível, e deixando como legado às demais tonalidades
[Tonarten] os acordes de sexta aumentada e de sexta napolitana (cf. pp. 40-1, adiante).

24
Ex. 9: (a) Modo I, com alteração do VII grau; (b) modo VII, com alteração do VII grau; (c) modo V, com IV grau
“mole” fixado.

Em conformidade com a concepção e os critérios de ‘consonância’ e ‘dissonância’ vigentes


na segunda metade do séc. XVI e todo o séc. XVII – período de formação do conceito de tríade e ao
qual tanto Fétis, como Bukofzer (e, de fato, uma diversidade de outros autores) atribuem a formação
da tonalité moderne, do moderno ‘sistema tonal’ –, podemos entender que a tríade fundada sobre o
V grau dos modernos modos maior e menor seria, por si mesma, ‘consonante’. É nos específicos
contextos dos modernos modos diatônicos maior e menor, com VII grau “duro” (maior) e IV grau
justo, que a nota correspondente à terça do acorde de V grau assume o caráter de sensível,
apontando para a nota que se lhe segue um semitom acima (o I grau); que o senso de centralidade
atribuído a esta nota de I grau se intensifica; que sobre o I grau se funda a tônica, uma tríade
central teleologicamente (‘harmonicamente’) estabelecida ou reforçada; que, por nosso conceito de
dissonância enquanto desvio, a tríade de V grau, i. e., a dominante, se faz dissonante e; que, sendo
a dominante portadora da sensível, tal acorde aponta, em seu devido nível (cordal), para a tríade de
tônica e tenda à específica resolução sobre esta – ressaltando-se, ainda assim (e conforme já
exposto), que esta resolução não seja predestinada. É em face a uma base diatônica da tonalité
moderne (e não simplesmente por relações próprias à série harmônica, conforme sugerira Réti), em
suma, que entendemos que: (a) a tríade fundada sobre o V grau tenda a assumir o sentido, a função
de apontar para a tônica mesmo na ausência desta e; que, associada ainda à histórica tendência de
resolução das sensíveis por semitom, bem como a fórmulas cadenciais históricas decorrentes de tal
tendência e dos critérios de condução polifônica predominantes nos séc. XVI e XVII (a “arte do
contraponto”, conforme sintetizada por Zarlino em 1558), (b) a dominante se trate do acorde mais
próximo da tônica em termos cadenciais.
O emprego do termo ‘função’ em música (‘função harmônica’, ou ‘função tonal’ [Tonale
Funktion]), deve ficar claro, foi introduzido já no final do séc. XIX – posteriormente, portanto, a
uma introdução prática das específicas relações cordais que viriam a caracterizar as assim
denominadas ‘funções’, e. g., de ‘tônica’, ‘dominante’ etc. – por Riemann, em seu Handbuch der
Harmonie- und Modulationslehre, de 1890, e subsequentemente elaborado em seu Vereinfachte
Harmonielehre, de 1893. Por um lado, o termo ‘função’, em Riemann, assume um sentido estrito ao
associar-se especificamente a três acordes principais (embora suas notas constituintes os possam
representar, para Riemann, no interior de outros acordes) de uma dada tonalidade [Tonart]: sua

25
tônica, i. e., a tríade central; a dominante, fundada sobre a quinta superior da tônica, e; a
subdominante, cuja quinta corresponde à fundamental da tônica (Ex. 10, abaixo) – todo outro
acorde em uma dada tonalidade [Tonart] seria classificável, em sua teoria, em um dentre esses três
tipos de funções (ver 1893, p. 9).

Ex. 10: adaptado de Riemann: 1893, p. 8.

Por outro lado, deve-se observar que ‘função’ é frequentemente posto em equivalência
(explícita ou implícita), por Riemann, com “significado” [Bedeutung] harmônico (1890, p. 19; cf.
1893, p. 60 e 155 ff.), dando margem a um emprego flexibilizado do termo, passível de extensão, e.
g., aos níveis das notas, de progressões cordais, regiões tonais etc., e que, embora se possa valer de
um uso metonímico dos termos ‘tônica’, ‘dominante’ e ‘subdominante’, venha a designar mais
amplamente uma diversidade de relações possíveis com e/ou ‘em função de’ uma centralidade
tonal. Assim, Bukofzer, e. g., emprega o termo em sentido amplo ao apontar que, no barroco tardio,
todos os acordes de uma dada Tonart (não apenas a tônica, a dominante, ou a subdominante) “agora
serviam a uma nova função, a saber, a de circunscrever a tonalidade” (1975[1948], p. 220, trad.
nossa, grifo nosso) e atribui a hierarquia entre tais acordes às suas respectivas distâncias, no ciclo de
quintas, da tríade de tônica (id. ibid.; cf. Rosen: 1975, p. 28); Schoenberg, por sua vez, afora
nomear tonalidades secundárias com uma terminologia parcialmente correspondente à da teoria
funcional de Riemann (ver sobre ‘monotonalidade’, p. 29, pouco adiante), menciona, no capítulo
inicial de Funções Estruturais da Harmonia (2004[1948]), o que ele denomina “funções centrípeta”
e “centrífuga” de progressões cordais, associando-as, respectivamente, ao estabelecimento de
tonalidades e a passagens modulatórias (op. cit., pp. 17-9, grifo nosso).
Valendo-nos de uma concepção (a) mais ampla de ‘função’ e ‘funcionalidade’ (do que o
sentido estrito encontrado em Riemann), (a 1) extensível aos vários níveis de organização harmônica
(como notas, acordes, ou tonalidades [Tonarten]) e (a2) concernente às diversas possíveis relações
entre elementos harmônicos com um centro e; entre si, em função de um centro; (b) adaptada a uma
compreensão por meio dos conceitos acima formulados de ‘centralidade’, ‘dissonância’ e
‘teleologia’ e; (c) em que se assuma uma matriz diatônica (passível de flexibilizar-se, conforme já

26
apontado) como contexto para a identificação de tais relações harmônicas, podemos entender que
cada função stricto sensu porte uma diversidade de funções lato sensu e, mais especificamente:

• que o termo ‘tônica’, empregado metonimicamente, possa designar o que se identifique


como centro tonal, nos diferentes níveis em que se possa dar tal centralidade (i. e., a própria
tríade de tônica, a nota fundamental de tal tríade, a tonalidade sobre ela fundada etc.); que a
tônica, enquanto centro, possa, nos respectivos níveis, servir de referência para que todo
outro elemento harmônico venha a ser compreendido como dissonante e, sobretudo, como
dissonante de maneira específica, portador de teleologia específica, uma vez que seja
desviado também de maneira específica do que então se identifique como centro tonal; que
seja em função da tônica, portanto, que todo outro elemento harmônico assuma sentidos
harmônicos (funções lato sensu) específicos;

• que, no contexto fundamentalmente diatônico de uma dada tonalidade [Tonart], alguns


dissonantes, como, e. g., a sensível, ou o acorde de V grau – o qual porta a sensível enquanto
sua terça –, apontem de maneira mais pronunciada para uma resolução (não predestinada)
especificamente sobre o centro tonal (no nível correspondente); que tais dissonantes sejam
de tal maneira “centrípetos”, que podem, no devido contexto, implicar em um centro tonal
específico, mesmo na ausência deste; que a função lato sensu de tais dissonantes de apontar
para – ou, na ausência da tônica, quase implicar em – um centro específico seja
característica (embora não a única) da função stricto sensu denominada ‘dominante’;

◦ que, pelos mesmos meios, outros dissonantes sejam fortemente sugestivos de centros
alternativos a uma tônica já estabelecida ou pressuposta; que tais dissonantes tenham
uma tendência “centrífuga”, conduzindo à cromatização de uma Tonart, ao
obscurecimento da tônica já estabelecida ou pressuposta, à modulação, propriamente,
etc.; que a função lato sensu de tais dissonantes de apontar para outro possível centro,
que não o que então se entenda como tônica – de, portanto, intensificar o grau de
dissonância –, seja característica (embora não a única) da função comumente
denominada ‘dominante secundária’ – i. e., a dominante stricto sensu de um outro
centro –;

▪ que, portanto, nos termos de nossa exposição, ‘dominante’ não corresponda a uma
única função (lato sensu), mas, ao menos, às duas supracitadas, de: (1) estabelecer
ou confirmar um dado centro (a “função centrípeta” de Schoenberg); bem como de

27
(2) apontar para centros alternativos a uma tônica já estabelecida ou pressuposta (a
“função centrifuga”). Assim, se entendemos o termo ‘dominante’ como adequado
para designar certos tipos de funções lato sensu, isto se dá sob a condição de que tal
termo seja aqui compreendido como uma metonímia.

Considerando-se ainda que, na dominante dita “centrípeta”, sua sensível seja identificada
como tal em função da matriz diatônica da Tonart – mais especificamente, em função do caráter
dissonante que a sensível assume em sua relação de trítono com o IV grau – e; que as tríades de I e
de V graus (respectivamente ‘tônica’ e ‘dominante’), juntas, não apenas não contêm todas as notas
da Tonart, como – sobretudo no modo maior (mas também no modo menor, se assumido um
diatonismo flexibilizado) – o conjunto das notas constituintes de tais tríades poderia igualmente
pertencer à Tonart fundada sobre o V grau (ver Ex. 11, pouco abaixo; cf. de la Motte: 2011[1976],
pp. 33-4); então, entendemos que:

• apresentar os graus que complementem o diatonismo de base de uma Tonart constitua, em si,
uma função lato sensu; que esta função consista, mais precisamente, em evidenciar o caráter
dissonante da sensível e do acorde de V grau e, em consequência disso, fortalecer o senso de
centralidade do I grau; que essa função possa ser desempenhada por mais de um acorde (em
tonalidades maiores, e. g., as tríades sobre o II e IV graus); que, uma vez mais, por
metonímia, esta função possa ser designada – como comumente o é – ‘subdominante’.

Ex. 11: Excerto do Te Deum (ca. 1688-98), de Charpentier. In: de la Motte: 2011[1976], p. 33.

• Sobre as tríades denominadas por Riemann ‘paralelas’, por sua vez, o próprio autor lhes
atribui específicas funções lato sensu: de “substituir” a tônica em cadências deceptivas com
uma “falsa consonância [Scheinkonsonanz]” (1893, p. 79); ou de realizar uma transição
gradual do acorde de tônica àquele de subdominante, ao substituir a quinta daquele pela
terça deste (id., p. 80).

28
Ademais, se assumirmos, tal como Schoenberg o faz em seu conceito de ‘monotonalidade’
(ver 2004[1948], pp. 37 ff., 49 ff., 73 e 79 ff.), que as próprias tonalidades fundadas sobre as outras
tríades vinculadas a uma dada tonalidade principal [Haupttonart] mantenham, em maior escala,
uma relação funcional com a Haupttonart – e sejam, assim, entendidas como ‘regiões’ desta –,
então ainda outras funções lato sensu podem vir a ser identificadas em dominantes, subdominantes,
respectivas paralelas e dominantes individuais etc.: que as respectivas regiões de dominante e de
subdominante de uma dada Haupttonart, por serem ambas mais diretamente relacionadas a esta do
que entre si, tendam a se opor, uma à outra, e, ao mesmo tempo, a convergir na Haupttonart
(aprofundaremos e estenderemos um tal raciocínio no Cap. III. 4, pp. 151 ff., adiante); que esse
mesmo tipo de oposição – e consequente convergência na Haupttonart – tenda a se estender a
outros acordes e regiões proximamente relacionados, respectivamente, à dominante e à
subdominante da Haupttonart (idem); que as regiões tonais de paralelas, tendo suas bases
diatônicas semelhantes entre si, sejam facilmente intercambiáveis, podendo assim diluir entre si
suas respectivas centralidades, estabelecer uma tonalidade mais “difusa” etc. (De fato, Rosen, em
seu Sonata Forms, de 1980, entende que Chopin e Schumann, e. g., disponham de um “sistema
[tonal] mais difuso [a fuzzier system]”, precisamente por tratarem as regiões paralelas como “mais
ou menos uma mesma tonalidade [key]”; ver op. cit., pp. 368-9.)
Entendemos aqui como a mais característica, geral e relevante (ao menos quanto aos
específicos objetivos assumidos neste trabalho) propriedade da tonalidade o que possamos aqui
denominar – e este é o motivo pelo qual optamos aqui por adotar, dentre outras expressões
usualmente empregadas, o termo ‘tonalidade funcional’ para designá-la – ‘funcionalidade tonal’:
que o centro, ou os centros tonais, em seus vários níveis, não apenas se caracterizem por não
demandarem resolução, mas sirvam de referência aos demais objetos harmônicos (notas, acordes
etc.) para que estes se qualifiquem como dissonantes e, em especial, como dissonantes específicos,
porquanto se desviam de maneiras específicas do centro ou centros tonais; que, reciprocamente, os
dissonantes, ao apontarem para suas possíveis e específicas (e ora mais, ora menos diversas)
resoluções, apontem precisamente para os centros possíveis, estabelecendo-os, reforçando-os,
obscurecendo-os, substituindo-os etc. conforme convirjam ou não sobre tais centros; que essa
interação multilateral entre centros e dissonantes, entre dissonantes entre si, em função de efetivos
ou supostos centros, etc. forme, contextualmente, complexas e singulares hierarquias, nas quais: (1)
interajam diversos níveis de organização harmônica (notas, acordes, regiões tonais, tonalidades
principais etc.); (2) em que, em cada nível e entre níveis, os vários objetos harmônicos assumam,
com relação aos centros efetivos ou supostos e uns com relação aos outros, funções (lato sensu), a
rigor, singulares; (3) em que, ademais, influam uma diversidade de outros fatores, a princípio não
propriamente harmônicos (estruturação métrica, orquestração, texto, referencialidade etc.).

29
Parte II

30
A história de uma progressiva dissolução da tonalidade funcional rumo a seu abandono, ou à
renúncia de uma tônica em obras de Schoenberg, Webern e Berg – entre outros já mencionados –, a
partir de 1908-9, é bastante difundida na literatura sobre música do século XX. Em escritos dos
próprios compositores envolvidos, ela é abordada de maneira mais direta nas conferências “O
caminho para a composição com doze sons” [1932] e “O caminho para a música nova” 6 [1933], de
Webern, e permeia diversos textos de Schoenberg, desde seu Tratado de Harmonia7, sobretudo
aqueles em que se abordem noções como aquelas de ‘tonalidade expandida’ e ‘emancipação da
dissonância’8.
De modo geral, entende-se que a proliferação de relações cromáticas na música germânica
pós-wagneriana, as modulações sucessivas e para regiões remotas, a profusão de acordes alterados e
ambíguos (os ‘acordes errantes’), intensamente dissonantes e, não raro – em compositores como
Wagner, Bruckner, Mahler ou Strauss –, sem qualquer preparação ou resolução teriam reduzido
drasticamente o poder unificador da tônica, uma efetiva centralidade sua em maior escala. Em seu
livro sobre Schoenberg, Rosen escreve:

Ao final do século [XIX], a aparição final do acorde de tônica em diversas obras de Strauss,
Reger e outros soava como uma polida reverência em direção à teoria acadêmica; o restante
da música frequentemente procedia como se não fizesse diferença com qual tríade ela viria a
terminar. A obra está, por boa parte, em uma tonalidade [key] ou outra, mas já não há mais
qualquer senso de direção. É raramente evidente se a música está se afastando de ou se
estabelecendo em qualquer tonalidade e mesmo seções claras de tonalidades estáveis por
vezes não têm específica relação com um esquema total (1975, pp. 32-3, trad. nossa).

Para Schoenberg, o senso de que a presença de uma tônica no início e ao final de uma peça
ter-se-ia tornado uma espécie de “capricho formal” conduz, em sua versão mais branda, à questão
sobre se a tonalidade [Tonalität] seria de fato uma “necessidade construtiva” (2001 [1911], p. 70) e,
considerando que não o fosse, se ela não poderia ser abandonada, ou substituída por outros meios de
elaboração harmônica (ver, e. g., 1934, pp. 175 ff.). Em Webern, junto à constatação de que a
“relação com uma tônica [Grundton, som fundamental] se tornara cada vez mais solta”,
encontramos a afirmação categórica de que a tonalidade – de fato equivalida pelo autor, cerca de
um ano mais tarde, a “relação com um som fundamental [Grundton]” (1960[1933], pp. 38-9) –
estaria “morta” (id.[1932], p. 51).

6
“Der Weg zur Neuen Musik” e “Der Weg zur Komposition in zwölf Tonen”, no original em alemão (1960).
Traduzidas para o português por Carlos Kater em volume único sob o título O caminho para a música nova (1984).
7
Harmonielehre, no original em alemão [1911/1922]. Traduzido para o português por Marden Maluf sob o título
Harmonia (2001).
8
Ver, em especial, o ensaio “Gesinnung oder Erkenntnis?” [1926] e a terceira seção da conferência “Composition
with Twelve Tones” [1941], ambos inseridos na coleção de ensaios Style and Idea (1950); o ensaio “Probleme der
Harmonie” [1934]; para além dos capítulos sobre “Modulação”, “Sons ‘estranhos à harmonia’” e toda a parte final
(2001, pp. 507 ff.) do Tratado de Harmonia [1911/1922], ou dos capítulos sobre “Tonalidade Expandida” e toda a
parte final de Funções Estruturais da Harmonia (2004[1948], pp. 168 ff.).

31
Ao longo desta segunda parte do trabalho, examinaremos esse processo histórico de
expansão e dissolução da tonalidade funcional, desde suas bases morfológicas, até seu abandono ou
renúncia no início do séc. XX. Iniciaremos nossa exposição investigando as maneiras como cada
um dos três principais fatores aos quais Schoenberg e Webern atribuem esse processo histórico – a
saber, o cromatismo, a modulação (e ‘cadências ampliadas’) e a ambiguidade dos ‘acordes
errantes’ – (a) ter-se-ia desenvolvido e intensificado, teria assumido uma progressivamente maior
relevância nas várias práticas composicionais da tradição tonal até o final do séc. XIX e (b) como a
intensificação de cada um dentre tais fatores teria efetivamente participado de uma diluição das
relações funcionais. Em seguida, após discutirmos a noção de ‘emancipação da dissonância’ em
Schoenberg e propormos conceituações estendidas tanto de ‘emancipação’ – grosso modo, o
processo, inerente à tonalidade funcional e responsável por seu desenvolvimento histórico, pelo
qual algo que não se concebia funcionalmente vem a ser progressivamente absorvido em novas
práticas composicionais (ver pp. 69-72, adiante) –, como de ‘dissonância’ – grosso modo, quaisquer
operações de desvio da centralidade tonal, em seus vários níveis (pp. 65-9) –, buscaremos
demonstrar como diversas dentre as próprias operações produtoras de desvios de centros tonais e
das bases morfológicas da tonalidade – e não apenas a extensão dessas bases morfológicas – se
desenvolveram e intensificaram no interior da tradição tonal-funcional, a ponto de assumirem,
sobretudo a partir de Wagner, uma progressiva independência, enquanto procedimentos
composicionais, com relação aos princípios lógicos de uma funcionalidade tonal (ver p. 29, pouco
acima). Por fim, discutiremos se, quando de um abandono, no início do séc. XX, da tonalidade
funcional em favor de procedimentos composicionais alternativos a esta (alguns destes engendrados
no próprio seio da tradição tonal), a tonalidade não estaria já estendida ao ponto de possibilitar que
virtualmente qualquer material ou passagem, mesmo que não concebidos funcionalmente – mas que
atendessem aos mínimos critérios de afinação e qualidade espectral demandados pela tonalidade –,
viessem a ser, a posteriori, postos em relação em seus próprios termos.

32
II. 1. Cromatismo

Como já apontado por distintos comentadores de sua obra teórica, Schoenberg adota nesta
uma concepção – característica da tradição teórica vienense e herdada sobretudo de Sechter,
provavelmente através das aulas de Bruckner na Universidade de Viena – fundamentalmente
diatônica do sistema tonal (ver Wason: 1985; Dudeque: 2005, pp. 20-8), o que se manifesta em seus
escritos de distintas maneiras. A primeira e mais explícita é a ideia de que as tonalidades maior e
menor estariam respectivamente fundadas sobre o “modo maior” [Durtonart] (ver Schoenberg:
2001[1911], pp. 61-4) – identificado com o modo diatônico modernamente designado “jônico” – e o
“modo menor” [Molltonart] (id., pp. 153-9) – entendido por Schoenberg como derivado do modo
“eólio” 9 –, dos quais derivariam os acordes próprios a cada dada tonalidade [Tonart] 10 ,
respectivamente designados pelos graus da escalas em que se situam suas fundamentais.
Conforme ilustrado pelo Ex. 1, abaixo, Schoenberg (op. cit., pp. 61-3; 1934, pp. 169-70)
entende que a escala diatônica “natural”, o modo maior, corresponderia: (a) às três primeiras notas
(excluídas oitavações) a ocorrerem na série harmônica de seu I graus (i. e., dó, sol e mi, para Dó
maior); (b) acrescidas das três primeiras notas a ocorrerem na série harmônica do primeiro parcial
não-coincidente com a própria tônica (sol em Dó maior, resultando em sol, ré e si) e; (c) das três
primeiras notas ocorrentes na série harmônica cuja primeira nota distinta da fundamental
corresponderia a esse I grau da escala (fá em Dó maior, resultando em fá, dó e lá).

Ex. 1: Gênese do modo maior [Durtonart], in Schoenberg: 1922, p. 22. (A letra “b” designa o si bemol; a letra “h”, si
natural.)

Dessa escala, conforme o entendimento de Schoenberg, derivar-se-iam os demais modos


eclesiásticos [Kirchentonarten] através da tentativa de centralizar outras notas que não seu
“verdadeiro som fundamental” (1934, p. 171; cf. 2001[1911], p. 64, n.), o que seria melhor
realizado, em tais modos, elevando-se o VII grau para que se obtivesse, a exemplo do modo jônico,
uma sensível [Leitton, “nota condutora”] (2001[1911], p. 154; 1934, p. 171). Por uma tal concepção,

9
Schoenberg (2001[1911], p. 153) reporta tal relação entre o modo menor e os modos eclesiásticos ao Lehrbuch der
Harmonie (1903), de Max Loewengaard. Em Preliminary Exercises in Counterpoint (1963[1936-51], p. 59), por
sua vez, Schoenberg remonta seu tratamento das tonalidades menores a Sechter.
10
Essa concepção é profundamente diferente daquela de Riemann, por exemplo, para quem a escala seria um
“resultado” da decomposição dos acordes de tônica, dominante e subdominante, “não um dado de base” (Dahlhaus:
1993[1967], p. 11; cf. Riemann, 1882).

33
o modo menor seria precisamente o resultado da elevação do VII grau em modos cuja terça fosse
menor.
Para Schoenberg, pode-se inferir, uma compreensão do modo maior como derivado de
propriedades acústicas de um dado ‘som fundamental’ [Grundton] – ainda que com as ligeiras
inflexões impostas pelo artificialismo do temperamento (op. cit., pp. 64-6) –, como “imitação do
som horizontalmente” (p. 67), parece implicar também na compreensão de que a centralidade da
tônica seria inerentemente expressa por tal escala 11 – e, por meio de uma tal assunção, faz-se
possível entender que alterações cromáticas, ao obscurecerem as diferenças entre os vários e
distintos modos maiores e menores, tendam também a enfraquecer a centralidade da tônica. Para
Webern – cuja explicação a respeito dos modos eclesiásticos e dos modos maior e menor é
notavelmente similar à de Schoenberg –, por sua vez, as próprias sensíveis, enquanto alterações
cromáticas, seriam já as “sementes fatais” das tonalidades maior e menor (1963[1933], p. 36; cf. id.,
p. 29). Ainda que se reconheça, como Schoenberg o faz, que, em última instância, toda nota da
escala cromática (feitos os devidos ajustes requeridos pelo temperamento) poderá ser eventualmente
encontrada entre os parciais mais distantes das séries harmônicas de I, IV e V (um dos argumentos
centrais em torno da ideia de ‘emancipação da dissonância’, examinada adiante), ainda assim, o
autor observa que “como (…) a escala cromática nivela as diferenças intervalares, a tônica
dificilmente poderá ser considerada como implícita de partida” em tal escala (Schoenberg: 1934, p.
170-1).
Nem toda alteração cromática, contudo, há de ser igualmente perturbadora de um
diatonismo de base e diversos dentre os casos mais típicos de alterações nas práticas tonais dos
séculos XVII a XIX são compreendidos por Schoenberg ainda como elaborações sobre um tal
diatonismo:

• as alterações normalmente encontradas no VII e no VI graus do modo menor, e. g., são


explicadas como oriundas da inclusão da sensível no modo menor para fins cadenciais (com
adaptação do VI grau para que se evitasse um intervalo aumentado com o VII elevado), de
modo que tais alterações ocorreriam sobretudo em movimentos escalares ascendentes rumo
a I, em si diatônicos e distintos do movimento escalar (descendente) também diatônico que
conteria o VI e VII graus próprios ao modo originário (2001[1911], pp. 156-9; 2004[1948],
pp. 27-8; 1963, pp. 61-3; ver Ex. 2, abaixo);

11
Também nós, embora por uma via bastante distinta (exposta acima, pp. 24-5, e aprofundada no Cap. III. 3, adiante),
entendemos que a escala diatônica tenda, no contexto da tonalidade funcional, a apontar para uma centralidade.
Aqui, contudo, nos ateremos ao específico argumento de Schoenberg, não ao nosso.

34
Ex. 2: in Schoenberg: 1969[1948], p. 10.

• analogamente, alterações próprias às dominantes secundárias são explicadas como


emprestadas dos movimentos cadenciais dos vários modos iniciados sobre os demais graus
da escala, de modo que tais alterações tendem ainda à resolução sobre graus próprios à
tonalidade [Tonart] (2001[1911], pp. 257-60; 2004[1948], pp. 33-6; ver Ex. 3, abaixo);

Ex. 3: in Schoenberg: 1969[1948], p. 15.

• finalmente, levando-se em conta que Schoenberg considerava o modo menor “artificial”


(2001[1911], p. 71; cf. op. cit., p. 154), produto de uma imitação do modo maior, a
substituição de acordes menores por maiores – como é o caso, e. g., da terça de Picardia – é,
de modo geral, explicada pelo autor como uma imposição, por parte da fundamental do
acorde, de seus harmônicos superiores, em que a terça seria maior, a despeito do que
indicasse a escala vigente (op. cit., p. 260; cf. id. ibid., pp. 71 e 530).

Ex. 4: Bach: “Ehr’ sei Gott in dem höchsten Thron”, BWV 33 (1724), coral, compassos finais, com terça de Picardia na
cadência final.

Assim, embora Webern cite, em sua conferência de 1933, uma harmonização coral de Bach
(o final da Cantata Der Friede sei mit dir, BWV 158, reproduzido adiante, no Ex. 17, p. 48) como
exemplo de “peça inteiramente baseada em (…) cromatismo” (p. 29), deve-se observar que as
explicações de Schoenberg acima elencadas permitirão reportar boa parte das alterações cromáticas

35
encontradas na peça em questão e nas harmonizações corais de Bach, de modo geral, a um
diatonismo fundamental. Tomemos como exemplo, por ora, o coral “Wer hat dich so geschlagen” –
Paixão segundo João, BWV 245, no 15 (1724) –, em Lá maior, em que ocorrem todas as 12 notas
da escala cromática (o coral citado por Webern será abordado apenas mais adiante, pp. 47-8).
Conforme indicado no exemplo abaixo, quase todas as ocorrências de alterações cromáticas
na peça: (a) ocorrem como parte de dominantes secundárias (a1) cujas fundamentais sejam graus
diatônicos de Lá maior e que (a2) resolvam sobre acordes cujas fundamentais sejam também graus
diatônicos de Lá e; (b) progridem melodicamente por semitom para graus diatônicos de Lá. Apenas
três casos requerem explicações adicionais: os acordes diminutos, tal como ocorridos no segundo
tempo dos cp. 4 e 8, são entendidos por Schoenberg como “acordes de [sétima e] nona com a
fundamental ausente” (2001[1911], pp. 282-3; cf. 2004[1948], p. 55-6), de modo que suas
fundamentais, no coral em questão, encontram-se respectivamente sobre VII (resolvendo sobre III)
e III (resolvendo sobre VI) de Lá; o ré# do cp. 4, embora não progrida para mi na própria voz de
tenor, o faz, virtualmente, sobre a voz de contralto; o lá# do cp. 8, por fim, única alteração não
associada a um acorde com função de dominante, em muito se assemelha à terça de Picardia. Se,
por um lado, é possível objetar que a peça em questão está em Lá maior, não Fá# menor (VI de Lá),
sobre cuja tríade ocorre essa alteração, e, desse modo, que o Fá# rivaliza brevemente com Lá,
enquanto tônica possível, por outro, a aproximação entre as tonalidades de I maior e VI menor
(paralelas entre si) é especialmente justificável de uma perspectiva diatônica do sistema tonal,
posto que suas escalas de base são, por tal perspectiva, quase idênticas. Assim, talvez seja de fato
possível identificar aqui, tal como Webern, as “sementes fatais” das tonalidades maior e menor,
mas considerar este ou o coral final do BWV 158 como peças “inteiramente baseadas em
cromatismo” seria um exagero.

Ex. 5: Bach: “Wer hat dich so geschlagen”, BWV 245, no 15, redução.

36
Com relação ainda aos segmentos acima notados de cromatismo linear – i. e., em que haja,
em uma dada voz, sucessivos passos cromáticos em uma mesma direção –, estes ocorrem,
sobretudo nos cp. 4 e 6-8, em perfeito acordo com uma recomendação de Schoenberg para que, em
seu entendimento, se preserve (paradoxalmente) uma tonalidade diatônica. Contrastando o
tratamento de dominantes secundárias com aquele conferido à dominante fundada sobre o V grau
(ver Schoenberg: 2001[1911], p. 280; 233, 237-8; 247; 2004[1948], p. 46), Schoenberg escreve:

A introdução cromática [de notas alteradas em dominantes secundárias] oferece a vantagem


de o perigo para a tonalidade ser menor, porque os sons assim alcançados mal poderiam ser
considerados como pertencentes à escala (…). Dessa maneira, o dó# [e. g.], vindo
cromaticamente de um dó natural do VI grau de Dó-Maior, impedirá que se entenda como
tônica o acorde seguinte sobre o II grau (2001[1911], pp. 273-4).

Acordes cujas fundamentais sejam, elas próprias, alterações cromáticas com relação à
tonalidade [Tonart] parecem ser o ponto crucial a partir do qual Schoenberg vem a cogitar e,
eventualmente, esboçar (já na edição de 1922 do Tratado…) uma teoria propriamente cromática
para o sistema tonal. Por um lado, a explicação proposta para acordes como a napolitana (ré bemol
maior, para Dó maior; cf. Cap. II. 4. 3, pp. 70-1, adiante), ou a mediante e submediante rebaixadas
(ainda em Dó maior, respectivamente: mi bemol maior e lá bemol maior) ainda se reporta a um
diatonismo de base, ao se interpretarem tais acordes como oriundos da região da subdominante
menor (2001[1911], p. 323; ver Ex. 6, abaixo) – em que eles estariam respectivamente fundados
sobre o VI, VII e III graus da escala – e/ou das homônimas menores da tônica ou de seu V grau
(2004[1948], pp. 73-4).

Ex. 6: in Schoenberg: 1969[1948], p. 51. Acordes oriundos, respectivamente, das Tonarten de Dó menor (“t”), Fá
menor (“sd”) e Sol menor (“v”), com seus graus notados conforme suas relações com uma Haupttonart de Dó maior.

Por outro, a incompatibilidade de tais acordes com o diatonismo implicado em tal


explicação se faz imediatamente explícita através, primeiramente, de um problema de notação: no
primeiro dos exemplos em que se encadeiam tais acordes com aqueles próprios ao modo maior de
Dó (2001[1911], pp. 326-7, Ex. 156), são atribuídos, a estes, seus respectivos graus em Dó e,
àqueles, seus respectivos graus em Fá menor, ainda que Schoenberg não considere que o simples
uso dos acordes de fundamental cromática implique já em modulação (id., p. 334). A tentativa de
atribuir a esses mesmos acordes seus graus em função da tonalidade de Dó dá nova forma ao

37
paradoxo: ao encadear, em Dó maior, um ré dominante com a napolitana ré bemol (id., p. 364, Ex.
189d) e interpretar a passagem como “o enlace de um II grau com outro II grau”, Schoenberg chega
a afirmar, em um ponto do Tratado…, que não haveria aí “nenhum movimento de fundamentais”
(id., p. 366); em outro, contudo, é proposta a hipótese de que,

no segundo grau da escala, existem duas fundamentais: ré e ré bemol (…). Esta é uma
suposição que se deixa transportar facilmente a toda escala, obtendo-se, assim, uma espécie
de princípio fundamental à consideração dos acontecimentos harmônicos: a escala cromática.
(…) Talvez se venha a estabelecer uma nova teoria fundamentada na escala cromática; e
também, provavelmente, designar-se-ão os graus com outros nomes (id., pp. 338-9).

Ex. 7: Schubert: “In der Ferne”, D. 957, no 6 (1828), cp. 17-18. Progressão cromática de fundamentais (si-si bemol). In
Schoenberg: 1950[1933/1947], p. 58.

Schoenberg chega a esboçar uma tal teoria na 3 a edição do Tratado…, publicada em 1922
(2001, pp. 529-36), sugerindo que talvez fosse mais adequado, para tanto, partir de 12 nomes de
notas independentes, ao invés de 7 (dó, ré, mi etc.) e suas alterações (op. cit., p. 533), mas não a
levou adiante. De fato, em Funções Estruturais da Harmonia, de 1948, Schoenberg não apenas
manteve sua concepção original dos acordes de napolitana e das mediantes cromáticas, como
também estendeu a explicação por empréstimo de outras regiões a, virtualmente, qualquer acorde
cuja fundamental pudesse ser identificada (2004[1948], pp. 37-9): através de seu conceito de
monotonalidade, todo acorde que pudesse ser, de alguma maneira, relacionado à tonalidade
principal [Haupttonart] de uma dada peça, mesmo que enquanto um empréstimo de outra região,
poderia ser, ele mesmo, representante de uma região da qual derivar-se-iam acordes ainda mais
remotos com relação a essa tonalidade principal, mas que estariam, ainda assim, subordinados a esta
(op. cit., p. 37).
Ora, se, mesmo em uma perspectiva teórica que atrele acordes a graus de escalas diatônicas,
uma dada tonalidade comporta, virtualmente, qualquer acorde – não apenas as 12 notas da escala
cromática, mas qualquer acorde que as tenha por fundamentais –, como então atuaria o cromatismo
em um processo de enfraquecimento da tônica, em uma dissolução da centralidade tonal? – e não
apenas em uma fusão dos modos maior e menor em tonalidades cromáticas que comportassem
indistintamente acordes derivados de um ou outro desses modos.
Entendemos que haja duas principais maneiras como isso se dê. Primeiramente, se cada
tonalidade [Tonart] comporta, potencialmente, os acordes oriundos da totalidade das demais, então,
inversamente, todo acorde poderia pertencer a qualquer tonalidade. A expansão das possibilidades

38
dilui a distinção entre as tonalidades e, em passagens mais intensamente cromáticas, em que se faça
amplo uso de acordes emprestados de outras regiões – como é frequentemente o caso no século
XIX –, haverá possivelmente uma tendência a maiores ambiguidades tonais, ao estabelecimento de
um senso contínuo de potenciais trocas de centralidade, da iminência de modulações. Os cp. 15-23
de “Es tönt ein voller Harfenklang”, Op. 17, no 1 (1862), de Brahms, reproduzidos no Ex. 8, abaixo,
servem-nos de exemplo: embora a passagem possa ser inteiramente reportada a Dó maior, as
tonalidades de Sol menor, Ré maior, Dó menor e Ré bemol maior são, todas, aludidas. (Os papéis
específicos dos acordes de funções múltiplas – i. e., que portem funções, simultaneamente, com
relação a diferentes tonalidades [Tonarten] – e das modulações no processo de dissolução da
tonalidade serão examinados em maior detalhe pouco adiante, nos capítulos II. 2 e II. 3.)

Ex. 8: Brahms: “Es tönt ein voller Harfenklang”, Op. 17, no 1, cp. 15-23, parte de harpa.

39
Uma segunda maneira como entendemos que o cromatismo atue em um processo de
dissolução da tonalidade é através de uma tendência, desde uma estabilização do sistema de
tonalidades maior e menor em meados do século XVII, a uma participação progressivamente mais
intensa do cromatismo linear na elaboração harmônica de obras inseridas na tradição tonal.
Em um primeiro momento, podem ser reconhecidos casos em que o cromatismo linear
resulte como contingência em determinadas progressões harmônicas. O caso mais claro é
provavelmente a origem dos acordes de sexta napolitana e de sexta aumentada (ou ‘sexta italiana’)
em meados do século XVII, em Cavalli, Carissimi e Cesti, se adotarmos, para tais acordes, a
explicação de Bukofzer, em Music in the Baroque Era, de 1948:

Ambos os acordes devem suas origens não a quaisquer “alterações” cordais, mas à fusão do
modo Frígio com a tonalidade [key = Tonart] de E (maior ou menor), o que se tornou
possível apenas após os rudimentos de um senso de tonalidade [key] terem sido
estabelecidos pela prática harmônica do barroco médio [ca. 1630-1680 (cf. op. cit., p. 17)].
(…) A sexta “Napolitana”, que poderia, mais adequadamente, ser chamada acorde de sexta-
Frígia, é derivada da progressão cadencial II6[i. e., II3]-V-I, em que a supertônica Frígia é
seguida pela dominante da tonalidade [key]; e a sexta aumentada resulta da inserção de uma
nota de passagem cromática na cadência Frígia ordinária, reforçando o efeito de uma semi-
cadência (op. cit., p. 386).

Ao se tratar o modo Frígio, portanto, no interior de uma prática tonal de afirmação da tônica
através da cadência V-I, torna-se necessário conciliar (melodicamente, no caso da napolitana;
harmonicamente, no caso da sexta aumentada) o II grau rebaixado, característico do modo, com o
VII grau elevado (i. e., a sensível) da Tonart correspondente, resultando, como demonstrado no
exemplo abaixo, no cromatismo linear associado a cada um dos acordes em questão.

Ex. 9: in Bukofzer: 1975[1948], p. 386.

Ex. 10: Carissimi: Jephte, “Plorate colles, dolete montes” (ca. 1650), cp. 64-66.

40
Ex. 11: Strozzi: Diporti di Euterpe, Op. 7 (1659), “Lagrime mie”, cp. 4-7.

Em um segundo momento, progressões harmônicas que resultassem em cromatismos


lineares – certas sucessões de dominantes secundárias (como no Ex. 5, cp. 6-8, p. 36, acima), o uso
da napolitana no modo menor convencional etc. – parecem ser privilegiadas e o cromatismo ganha
um status, por assim dizer, ‘proto-motívico’ (como, e. g., no passus duriusculus dos lamentos
barrocos). Em uma terceira e quarta fases, o cromatismo se torna, respectivamente: uma operação,
seja de alteração de acordes (o rebaixamento da quinta em dominantes francesas, e. g., ou a
introdução, em um acorde, de sua terça maior por meio, antes, da segunda aumentada etc.), seja de
encadeamento em progressões entre acordes funcionalmente remotos entre si (como costuma ser o
caso, e. g., entre mediantes cromáticas) e; finalmente, um procedimento composicional por si
mesmo, potencialmente independente da tonalidade funcional. Em 1911, Schoenberg escreve:

Há um recurso que será sempre adequado ao estabelecimento de semelhantes encadeamentos,


convincentemente, redondamente: o cromatismo. Outrora, nos casos mais elementares, onde
as afinidades eram muito próximas, aceitava-se uma parte da escala da tonalidade básica, ou
de alguma outra tonalidade afim, como justificativa para os processos harmônicos. Agora, e
cada vez mais, é uma única escala a que vai assumindo todas estas funções: a escala
cromática. (…) Sua força melódica auxilia a encadear o que só possui uma afinidade distante
(Schoenberg: 2001[1911], p. 332, trad. Marden Maluf).

Essas últimas etapas, de uma emergência do cromatismo enquanto procedimento, serão


examinadas com detalhamento e ampla exemplificação no Cap. II. 4. 4, sobretudo nas pp. 74-82,
adiante.

41
II. 2. Modulações e cadências ampliadas

A ideia de que cada tonalidade comporte em si acordes oriundos de outras, entendidas como
regiões da primeira (Tratado de Harmonia, 1911), e de que mesmo tonalidades alternativas à
tonalidade principal [Haupttonart] de uma peça que sejam provisoriamente estabelecidas se tratem
ainda de regiões dessa Haupttonart (Funções Estruturais…, 1948) leva a um estreitamento, por
parte de Schoenberg – sobretudo se comparado a Fétis –, do que se venha a considerar como
‘modulação’. Para Schoenberg, uma passagem em que se desvie da tônica, por mais distantes que
sejam os desvios, por mais extensa que seja a passagem e mesmo que haja, localmente, uma troca
de centralidade, será ainda assim considerada uma ‘cadência ampliada’ [erweiterte Kadenz] se a
tônica for restabelecida antes de que se cadenciasse em uma nova tonalidade (2001[1911], p. 226).
Apenas passagens que, após um afastamento da tônica, cadenciem e estabeleçam, harmônica e
tematicamente, uma nova tonalidade serão entendidas por Schoenberg como, propriamente,
‘modulações’, mas não sem as observações de que “esta nova tonalidade não possui significação
autônoma dentro da unidade de uma obra” (id. ibid.) e de que tais desvios são considerados “regiões
da tonalidade, subordinadas ao poder central de uma Tônica” (id., 2001[1911], p. 37, grifos nossos).
Por uma tal perspectiva, é possível entender que o estabelecimento de centros tonais
provisórios alternativos à Haupttonart não dilua, ainda (ao menos em maior escala), a centralidade
desta, contanto que esteja claro: (1) qual seja essa tônica principal da peça, à qual toda outra
tonalidade aludida estará subordinada enquanto região sua e; (2) qual a específica relação funcional
de tais regiões com a tonalidade principal. Assim, embora Webern, em sua conferência de 1932,
aponte em formas típicas do estilo sonata uma “primeira violação” da tonalidade (1960, p. 47),
atribuída por ele à modulação que tipicamente ocorre na exposição dos Allegros, deve-se
reconhecer que, sobretudo no séc. XVIII, tais modulações seriam, via de regra, para regiões
fortemente relacionadas à tônica (mais comumente, a região da dominante, para tonalidades
maiores, e da mediante, para tonalidades menores); que elas apenas ocorreriam após confirmação
da tonalidade principal e; que material apresentado nas tonalidades secundárias seria normalmente
reexposto, em sua quase totalidade, na tonalidade principal da obra (ver Rosen: 1997[1972], pp. 72-
3), de modo que a tônica, em tais peças, tende, de fato, a governar mesmo as passagens em que se
tenham estabelecido outras tonalidades.
O Allegro da Sonata Waldstein, Op. 53 (1804) de Beethoven, oferece-nos exemplo de como
mesmo tonalidades secundárias estabelecidas sobre regiões não tão próximas da tônica podem ainda
ser tratadas de maneira que se enfatizem suas relações com a tonalidade principal. Ao invés da
habitual modulação para a região da dominante, após confirmada a tonalidade principal de Dó

42
maior, modula-se na peça para a mediante maior, Mi maior, estabelecendo-a no cp. 35 com novo
material temático (Ex. 12).

Ex. 12: Beethoven: Sonata Waldstein, Op. 53, cp. 35-43.

Localmente, a relação de tal região com Dó maior é explicitada tanto pela alusão, em seu
processo modulatório, a Mi menor, III grau natural de Dó (cp. 23-6, Ex. 13a, abaixo), como, de
maneira mais requintada, pelo emprego da napolitana de Mi (cp. 82, Ex. 13b), quando do retorno a
Dó maior, aludindo portanto ao modo Frígio de Mi, estreitamente relacionado (pelas notas próprias
a sua base diatônica) à Tonart de Dó.

Ex. 13: Beethoven: Sonata Waldstein, Op. 53, (a) cp. 23-6 e (b) cp. 82-3.

Na reexposição, após recapitulação do primeiro tema em Dó maior, a melodia-coral que fora


apresentada como novo material temático em Mi maior não é imediatamente reexposta em Dó, mas:
em Lá maior (cp. 196-9), da qual Mi maior seria a dominante e; em seguida, em Lá menor, paralela
de Dó, finalizando a frase em Dó maior, propriamente (cp. 200-3, Ex. 14a, abaixo). Uma

43
reexposição integral de tal material temático em Dó ocorrerá apenas na coda, já nos cp. 284-90 (Ex.
14b), satisfazendo finalmente um senso de resolução da região de Mi maior diretamente sobre Dó.
Evidencia-se assim que, para além de homônima maior do III grau de Dó, a tonalidade secundária
de Mi maior relaciona-se também à principal enquanto dominante de sua relativa menor e atua em
larga-escala, por extensão, como uma dominante de Dó12.

Ex. 14: Beethoven: Sonata Waldstein, Op. 53: (a) cp. 196-203 e (b) cp. 284-90.

Também no Allegro da Sinfonia no 3 em Fá maior, op. 90 (1883) de Brahms, há efetiva


modulação (i. e., com cadência e apresentação de material temático na nova tonalidade) para a
região que corresponderia à mediante maior (Lá maior), mas seu tratamento é radicalmente distinto
daquele observado na Waldstein. Também aqui o retorno à tonalidade principal é feito através da
região da mediante menor (i. e., Lá menor, cp. 65-72) e, como na Waldstein, o material temático
introduzido na região da mediante maior (cp. 36-40, ver Ex. 15a, abaixo) vem a ser recapitulado na
submediante maior (Ré maior, cp. 149-53, Ex. 15b) antes de que se retorne definitivamente à
Haupttonart Fá maior. Por tais meios, a exemplo do que observáramos na Waldstein, seria posta
em evidência a relação de Lá maior com a tonalidade principal enquanto homônima maior do III
grau desta, e/ou enquanto dominante de sua relativa (submediante), Ré. Os respectivos processos
modulatórios a Lá e a Ré, contudo, parecem contradizer tal relação: Lá maior é alcançada (cp. 31)
enquanto submediante bemol de Ré bemol maior (cp. 23), que, por sua vez, é a submediante bemol
de Fá maior; Ré maior é alcançada (cp. 144) como submediante bemol da napolitana (Sol bemol, cp.
142) de Fá. Assim, tonalidades a princípio não tão distantes da tonalidade principal de Fá maior são
primeiro apresentadas enquanto regiões extremamente remotas e o caráter de dominante que a
mediante maior tenderia normalmente a assumir é diluído em sua apresentação por meio de relações
de subdominantes (ver citação a Rosen, reproduzida na p. 47, pouco abaixo).

12
Algo semelhante pode ser observado na Sonata no 16, Op. 31 (1802).

44
Ex. 15: Brahms: Sinfonia no 3, op. 90, (a) cp. 36-39 e (b) 149-53.

Tanto Schoenberg como Webern observam um paradoxo nas digressões mais frequentes e
rumo a regiões mais remotas em obras da segunda metade do séc. XIX e início do séc. XX: se, por
um lado, tais digressões põem em xeque, como já apontado, a “soberania” [Herrschaft] – para
utilizarmos a linguagem da metáfora já anteriormente evocada (ver nosso prefácio, acima) de
Schoenberg – da tonalidade principal, por outro, uma confirmação dessa soberania há de ser (ainda
nos termos de Schoenberg) tão mais “imponente” [überwältigender] quanto maior o esforço para
confirmá-la (2001[1911], p. 225). Isso explicaria por que, segundo Webern, os compositores viriam
a se distanciar da tonalidade “no exato lugar em que se sentia ser particularmente importante deixar
que a tonalidade [Tonart] emergisse com clareza” (1963[1932], p. 45), a cadência. Explicaria
também por que Webern, em sua história da dissolução da tonalidade, dá maior ênfase à cadência
ampliada do que à modulação, propriamente: a cadência ampliada apresentaria, no seio da
tonalidade principal, uma diluição das relações entre a tônica e suas regiões. Como exemplo,
Webern oferece os compassos finais (162-76) de Gesang der Parzen, Op. 89 (1882) de Brahms (id.,
p. 46).

45
Ex. 16: Brahms: Gesang der Parzen, op. 89, cp. 162-76. In Webern: 1963[1932], p. 46.

A passagem em questão exemplifica uma cadência ampliada sobre Ré, ainda que haja
alguma ambiguidade entre Ré maior e Ré menor tanto no início (terça maior; VII e VI graus
menores), como no fim da passagem (omissão da terça no último acorde). Já a partir do terceiro
compasso do trecho – mais precisamente, de sua anacruse – iniciam-se os desvios da tonalidade
principal: no cp. 165, há uma cadência sobre a mediante menor, Fá# menor; pela elevação de sua
terça (cp. 166) e manutenção de sua sétima (mi), essa mediante assume caráter de dominante da
submediante Si – menor, no cp. 166, maior, no cp. 167, com a introdução do ré# –; o fá# dominante
é enarmonizado (sol bemol, si bemol, ré bemol, mi) e cromaticamente resolvido sobre Ré bemol
maior (cp. 168), o qual, se entendido enquanto enarmonização de Dó# maior, representaria a região
da dominante da mediante (Fá#) de Ré; no cp. 170, a paralela dessa região de Ré bemol/Dó# maior
(i. e., si bemol/lá# menor) assume caráter de dominante por meio da elevação de sua terça (ré) e
manutenção de sua sétima (lá bemol) e; por nova resolução cromática, cadencia-se,
surpreendentemente, em Ré menor (cp. 172), a própria Haupttonart. Ora, se, no Allegro da Sinfonia
no 3, víramos regiões relativamente próximas da tonalidade principal serem apresentadas como

46
remotas, aqui a própria Haupttonart parece ser apresentada como uma região remota de si mesma.
Parece aplicar-se aqui a colocação de Webern de que “precisamente porque buscamos a
conservação da tonalidade [Tonart], nós quebramos seu pescoço” (1963[1932], p. 48; cf.
1963[1933], p. 38).
Entendemos, em suma, que haja, não apenas potencialmente, mas no próprio repertório, uma
diversidade de maneiras como modulações ou ‘cadências ampliadas’ possam obscurecer e tenham,
em obras, obscurecido a função (lato sensu) de referência com que a tônica e a Haupttonart tendem
a cumprir:

• que, e. g., tonalidades mais próximas às dominantes sejam alcançadas por meio de relações
de subdominantes e vice-versa, tal como exemplificado na Sinfonia no 3 de Brahms;

• que regiões funcionalmente distantes da Haupttonart, ou remotas entre si sejam alcançadas


subitamente. (Rosen sintetiza essas duas primeiras maneiras no comentário abaixo transcrito,
a respeito das modulações remotas de Reger. Entre outros exemplos abordados ao longo
deste trabalho, um especialmente interessante é o de “Auf dem Flusse”, de Schubert,
abordado no início da Parte III, pp. 116-20, adiante.)

Quanto mais longe da tônica formos pelo ciclo de quintas, menos precisamente poderá ser
definido o significado da relação com a tônica. Quando a modulação é dramática e
surpreendente, frequentemente não sabemos dizer se a nova tonalidade [key] está sendo
abordada pela direção da dominante ou da subdominante, em que boa parte do significado
depende (Rosen: 1975, p. 32, n.).

Ademais:

• que, ao se introduzir em um dada tonalidade uma diversidade de outras, enquanto suas


regiões – ou uma diversidade de acordes representativos de tais regiões –, se estabeleça uma
tendência a que essas próprias tonalidades secundárias se reportem funcionalmente umas às
outras, tanto quanto à pretendida Haupttonart (vindo assim tais tonalidades secundárias a
rivalizar com a centralidade da principal);

• que tonalidades secundárias sejam introduzidas ainda antes de que a Haupttonart tenha sido
claramente estabelecida – como fora, e. g., o caso da Ballade no 1 de Chopin (ver Cap. I. 2. 1,
p. 14, acima), ou a que entendemos que possa ser atribuída a ambiguidade do coral final da
cantata BWV 158, citado por Webern na conferência de 1933 (op. cit., p. 29; cf. p. 35,
acima) –;

47
Ex. 17: Bach: “Hier ist das rechte Osterlamm”, BWV 158, Coral. In Webern, 1963[1933], p. 29.

• que se conceda a mais de uma tonalidade a função lato sensu de referência:

◦ quer ao iniciar e terminar uma obra com Haupttonarten distintas entre si – como é o caso
da canção “Mignon II” de Hugo Wolf, abordada pouco adiante (pp. 52-5), ou da
Fantasia, Op. 77 de Beethoven (ver Schoenberg: 2004[1948], pp. 208-9) –;

◦ quer ao se estabelecer uma centralidade “difusa” (ver Cap. III. 2, adiante), em que tais
tonalidades distintas cheguem a coexistir enquanto centros rivais, o que seria o caso, e.
g., do “complexo de dupla tônica” apontado por Bailey e outros autores no prelúdio de
Tristão e Isolda (1985, p. 121), da fusão entre tonalidades paralelas apontada por Rosen
em obras como o Scherzo no 2, Op. 31 (1837) de Chopin, ou na peça “Aveu”, do
Carnaval, Op. 9 (1833-5) de Schumann, da “polifocalidade” apontada por Steinbron
(2011) em diversas obras de Schubert e, de modo geral, do que Schoenberg denominara
no Tratado... ‘tonalidade flutuante [schwebende Tonalität]’ (op. cit., pp. 226 e 527-9).

48
II. 3. Acordes Errantes

Conforme observado nos dois capítulos anteriores, a absorção, por parte de uma dada
tonalidade [Tonart], de (1) acordes oriundos de outras tonalidades a ela relacionadas e (2) mesmo
de tonalidades secundárias estabelecidas – entendidas por Schoenberg como regiões da tonalidade
principal [Haupttonart] – leva a uma diluição das diferenças entre as várias Tonarten, posto que, se
virtualmente qualquer acorde ou região poderia ser reportado a uma mesma dada tonalidade
principal, então, inversamente, cada acorde ou região poderia pertencer a qualquer tonalidade. Em
maior escala, uma expansão das possibilidades harmônicas de uma dada tonalidade tende a implicar,
no interior de uma peça, em um enfraquecimento do senso de centralidade de sua tonalidade
principal, ou em uma distribuição de tal senso, diluído, entre distintas Tonarten. Localmente,
manifesta-se uma ambiguidade no próprio nível dos acordes: em passagens ambíguas quanto às
suas centralidades, os vários acordes que delas participem poderão ser interpretados como portando
funções (stricto sensu) com relação a cada uma das tonalidades então aludidas (‘funções múltiplas’,
ou ‘significados múltiplos [multiple meaning]’, como se refere Schoenberg).
Há, contudo, no entendimento de Schoenberg, uma classe especial de acordes, os acordes
errantes [vagierende Akkorde], que seriam inerentemente ambíguos por conta de suas respectivas
fundamentais não poderem ser determinadas senão contextualmente e, portanto, por não poderem
ser univocamente reportados a qualquer específico grau de uma dada Tonart senão por meio de suas
resoluções (2001[1911], pp. 284-6). Os exemplos mais claros são as tríades aumentadas e as
tétrades diminutas. Dadas suas constituições intervalares simétricas, a cada tríade aumentada
poderiam ser atribuídas ao menos três fundamentais distintas;

Ex. 18: Adaptado de Schoenberg: 1969[1948], p. 44 (Ex. 64b).

e, a cada acorde de sétima diminuta, ao menos quatro (fundamentais), devendo-se esclarecer que,
por conta das semelhanças entre as resoluções comumente protagonizadas por estes acordes
(diminutos) e cadências do tipo V→I, Schoenberg os interpreta – conforme já mencionado – como
“acordes de [sétima e] nona com a fundamental ausente” (2001[1911], pp. 282-3; cf. 2004[1948], p.
55-6), situando-se-lhes essa fundamental ausente uma terça maior abaixo da nota que progrida
como uma sensível [Leitton] da fundamental do acorde seguinte. Por meio de alterações cromáticas,
tais acordes, embora respectivamente originados, na explicação Schoenberg, sobre o III (tríade

49
aumentada) e o VII (tétrade diminuta) graus do modo menor (ver 2001[1911], pp. 159-60), ocorrem,
em repertório, sobre virtualmente qualquer grau de tonalidades tanto menores como maiores (id.
ibid., pp. 282 e 349), ou de quaisquer dentre suas regiões.

Ex. 19: in Schoenberg: 1969[1948], p. 44 (Ex. 64a).

Dada a ambiguidade inerente aos acordes errantes, mesmo em momentos de aparente


estabilidade tonal eles portam potenciais relações com outras tonalidades, podendo ser, assim,
agentes de trocas súbitas de centralidade. Os cp. 22 e 23 de Ave verum corpus, K. 618 (1791) de
Mozart, oferecem-nos exemplo: após passagem em Lá maior (região da dominante de Ré maior,
Haupttonart da peça), com cadência sobre essa nova tonalidade no cp. 18 e confirmação da
cadência no cp. 21, o acorde de lá maior do cp. 22 é introduzido em um contexto aparentemente
estável, em que ele próprio seria o I grau da tonalidade vigente. A tétrade diminuta do cp. 23, obtida
por uma alteração cromática do lá maior e um acréscimo a este de sua sétima, confere ao acorde do
cp. 22, retrospectivamente, o caráter de dominante e tende a ser interpretada, em um primeiro
momento, como um acorde de sétima e nona sobre lá; o rebaixamento cromático de dó# para dó,
contudo, e sua subsequente resolução, no cp. 25, sobre fá maior (paralela de Ré menor, região da
homônima da Haupttonart) revelam uma ressignificação da tétrade diminuta do cp. 23 enquanto
uma espécie de dó dominante e, por meio dessa ambiguidade, estabelece-se uma súbita troca de
centralidade de Lá maior para Fá maior (cp. 24-5) ou Ré menor (cp. 27-9), partindo de um acorde
(lá maior) que seria, ao menos a princípio, tonalmente estável.

Ex. 20: Mozart: Ave verum corpus, K. 618, cp. 18-25, redução.

O acorde (também errante) de sexta germânica – referido por Schoenberg e Webern como
“acorde aumentado de quinta e sexta” [übermässige Quintsextakkord] – parece dar um golpe ainda
mais profundo na tonalidade. Originada do acorde de sétima e nona menor sem fundamental, por
meio do rebaixamento de sua quinta, ou como uma elaboração ulterior do acorde de sexta italiana
(Ex. 21a e b, abaixo; cf. p. 40, acima), a sexta germânica tem a mesma constituição intervalar de
um acorde comum de dominante com sétima (Ex. 21c) e sua ambiguidade não se deve, como nos

50
casos da tríade aumentada ou da tétrade diminuta, a uma simetria interna, mas sobretudo ao fato de
sua fundamental – ao menos na perspectiva de Schoenberg (ver 2001[1911], pp. 354-5 e;
2004[1948], p. 70, Ex. 71) – situar-se a um trítono de distância da fundamental do acorde de
dominante que se lhe assemelha em constituição intervalar. Assim, não apenas a sexta germânica é
em si um acorde errante – no sentido de que sua fundamental não pode ser definida pela própria
constituição do acorde, mas somente por sua resolução –, como, em um contexto em que tal acorde
se faça presente, o próprio acorde regular de dominante com sétima tende a se tornar ambíguo,
porquanto à sua tendência à resolução convencional – i. e., a cadência de tipo V→I – soma-se a
possibilidade de um tipo de resolução completamente diversa, caso ele seja tratado como sua
equivalente germânica. Exemplifiquemos com “Am leuchtenden Sommermorgen”, do ciclo
Dichterliebe, Op. 48 (1840) de Schumann.

Ex. 21: Derivação da sexta germânica: (a) por meio do rebaixamento da quinta de uma tétrade diminuta e; (b) como
elaboração da sexta italiana. Em (c), correspondência entre acorde de sexta germânica e acorde regular de dominante.

A canção em questão inicia-se já com um acorde passível de se interpretar como uma


dominante germânica, semelhante em constituição a um sol bemol dominante, mas que, por sua
resolução sobre Si bemol maior (cp. 3) através da dominante fá, tende a ser entendida como fundada
sobre dó, i. e., como uma dominante da dominante de Si bemol (Ex. 22a). Ao se resolver o mesmo
acorde, no cp. 8 (Ex. 22b), sobre um si maior (enarmônico de dó bemol maior, napolitana da
Haupttonart) por meio de uma progressão de tipo V→I, ele passa a ser mais propriamente
interpretável como um fá# dominante, ou, levando-se em conta a enarmonização, como o sol bemol
dominante que aparentara ser no início. No cp. 9, o acorde sobre o I grau da região alcançada por
uma tal cadência é apresentado com acréscimo de sétima, assumindo imediatamente caráter de
dominante, mas, a esse ponto, a ambiguidade já exercida entre dominante germânica e dominante
convencional parece ter diluído sua direcionalidade a tal ponto que a subsequente progressão rumo
a um dó dominante no cp. 10 – seria esta uma espécie de cadência de engano estendida?; seria o si
dominante uma espécie de antecipação do fá do cp. 10, enquanto sua equivalente germânica?; seria
a progressão resultante puramente de cromatismo linear? –, embora não corresponda às resoluções

51
esperadas nem de uma dominante convencional, nem de uma sexta germânica, parece perfeitamente
satisfatória enquanto um meio de se retornar à Haupttonart.

(a)

(b)

Ex. 22: Schumann: “Am leuchtenden Sommermorgen”, (a) cp. 1-3 e; (b) cp. 8-11.

Posto que a resolução dos acordes errantes é um dos principais fatores para que se
determinem suas fundamentais, acordes errantes que não se resolvam, ou que progridam a outros
acordes do mesmo tipo tendem a manter suas fundamentais indefinidas e, consequentemente –
produzindo-se assim um estado a que Schoenberg (2001[1922], p. 529) denominara “tonalidade
suspensa [aufgehobene Tonalität]” –, a não se reportar decisivamente a nenhuma tonalidade
específica até que haja uma cadência clara sobre um acorde que lhes dê sentido retrospectivamente.
Examinemos os cp. 33-48 de “Mignon II” (1888), sexta das Goethe-Lieder de Wolf (Ex. 23, abaixo),
em que doze compassos consecutivos constituídos exclusivamente por tríades aumentadas são
seguidos por uma sexta francesa, eventualmente revelada (cp. 47) como fundada sobre ré bemol.

52
Ex. 23: Wolf: “Mignon II”, cp. 26-49.

Embora a identificação de uma fundamental unívoca para cada uma das tríades aumentadas
da passagem em questão se faça virtualmente impossível – por conta de cada uma destas, sendo já
um acorde errante, se resolver sobre ainda outro de tais acordes –, a vizinhança, sobretudo no início
da passagem, com acordes de fundamentais definidas, bem como alguns dados melódicos e
correspondências à distância com outras passagens tonalmente mais claras, permitem ainda, em
parte do trecho, colher vestígios de certos centros tonais: a primeira destas tríades aumentadas (si
bemol-sol bemol-ré, cp. 33), e. g., vindo do V grau menor de Lá bemol (mi bemol menor) e tendo já
ocorrido, pelo mesmo percurso, no cp. 8 (Ex. 24a) da canção, quando retornara, pouco em seguida,
a I de Lá bemol (cp. 9), pode ser interpretada como uma dominante da dominante de Lá bemol; por

53
outro lado, a melodia que se lhe sobrepõe (“Es schwindelt mir”, mi bemol-ré-fá#), alude aos
compassos 13 e 14 (Ex. 24b), em Sol menor, em que também ocorrera tal tríade aumentada, como
um I grau (sol menor) com retardo de sua sensível.

Ex. 24: Wolf: “Mignon II”, (a) cp. 7-9 e (b) cp. 13-14.

A tríade aumentada do segundo tempo do cp. 34 (dó-mi-lá bemol), por sua vez, para além
de ter ocorrido em meio à tonalidade de Lá bemol já no cp. 2 da canção (Ex. 25a) – em que podia
ser interpretada como dominante de sua paralela (fá menor) –, alude, pela melodia de soprano (“es
brennt (…)”, fá-mi) e pela descida lá bemol-sol, na mão direita do piano, ao dó maior (dominante
de Fá menor) com retardos de quarta e sexta do cp. 21 (Ex. 25b). Também nos cp. 36 e 37, a
melodia sol bemol-ré bemol-dó, na mão direita do piano, pode se reportar à progressão de sol bemol
(napolitana de Fá menor), para dó dominante (V de Fá menor) dos cp. 20 e 21, mas a melodia de
soprano que se lhe sobrepõe (“(…) Eingeweide”, sol-mi bemol-ré-fá#) alude, uma vez mais, aos cp.
13 e 14 (ver Ex. 24b, acima), em Sol menor.

54
Ex. 25: Wolf: “Mignon II”, (a) cp. 1-3; (b) cp. 20-21.

A partir do cp. 40 ou 41, por fim, mesmo os sutis e conflitantes vestígios de centralidade
colhidos nos compassos anteriores parecem se ausentar e, até que se forme o ré bemol dominante
dos compassos 45 a 48 – introduzido enquanto uma sexta francesa (também errante) e resolvido,
no cp. 49, de maneira pouco convencional –, parece de fato impossível que quaisquer tonalidades
sejam especificadas, suspendendo-se provisoriamente qualquer senso de centralidade tonal.

55
II. 4. Dissonância e emancipação

II. 4. 1. A ‘emancipação da dissonância’ segundo Schoenberg

Do Tratado de Harmonia [1911/1922] a Funções Estruturais da Harmonia [1948], permeia


os escritos teóricos de Schoenberg a ideia de que consonâncias e dissonâncias não sejam
fundamentalmente opostas entre si, mas apenas difiram em grau (2001[1911/1922], pp. 58-9, 449,
531 e 574; 1975[1926], pp. 260-1; 1950[1941/1948], pp. 104-5; 2004[1948], p. 216; cf. 1934, pp.
182-3). Argumentando que (1) os intervalos tradicionalmente entendidos como consonantes são, via
de regra, aqueles que primeiro ocorrem na série harmônica, que (1.1) é precisamente isto que lhes
confere o caráter de consonância e que (2) todo intervalo – feitas as aproximações inerentes ao
temperamento – será eventualmente encontrado entre os parciais superiores da série harmônica (ver
Ex. 26, abaixo), Schoenberg propõe que os intervalos normalmente entendidos como “dissonâncias”
se tratem, mais propriamente, de “consonâncias mais remotas” [entfernteren Konsonanzen]13.

Ex. 26: Representação da série harmônica de dó parcialmente ajustada ao temperamento, com intervalos ‘consonantes’
(“C”) e ‘dissonantes’ (“D”) assinalados, conforme entendimento de Schoenberg (2001[1911], p. 59).

Para Schoenberg, seguindo tal argumentação, seria um menor grau de ‘compreensibilidade’


[Auffassbarkeit ou Fasslichkeit] 14 das consonâncias “mais remotas”, se comparadas às “mais
próximas” (1975[1926], pp. 260-1; 1950[1941/1948], pp. 104-5; 1934, pp. 182-3), o que exigiria

13
Esta expressão, propriamente, é utilizada apenas em textos mais tardios (1950[1941/1948], p. 104; 2004[1948], p.
216), mas está subentendida já na argumentação do Tratado…, bem como nas definições de “consonância” e
“dissonância” então propostas: respectivamente: “as relações mais próximas e simples com o som fundamental” e
“as relações mais afastadas e complexas” (2001[1911], p. 59).
14
Conforme aponta Dahlhaus (1987[1968], p. 122), não é claro a quê, precisamente, Schoenberg se refere por
“compreensibilidade”. No Tratado… [1911], p. 58-9, Schoenberg parece referir-se à relação intervalar direta entre
duas notas; em “Opinion or insight?” [1926], p. 259, Schoenberg parece referir-se à relação de formações cordais
para com a tônica: “Os desvios mais fáceis de se compreender são aqueles que podem ser mais facilmente
reportados à tônica subjacente. (…) Quanto mais remotas as formações, maior o desvio, mais intermediários são
necessários para se identificar a conexão [com a tônica] e mais difícil é compreender a progressão e o sentido”
(1975[1926], p. 259). Apresentamos o questionamento de Dahlhaus (op. cit.) a respeito de tal noção pouco adiante,
p. 61, item 2.2.

56
que os intervalos entendidos, a cada dado momento histórico, como “dissonâncias” fossem então
apresentados com parcimônia, preparados e resolvidos (ver 2001[1911], pp. 95-96) e, à medida em
que tais intervalos se tornassem mais familiares e, portanto, mais ‘compreensíveis’, estes seriam
admitidos como consonâncias, não mais exigindo preparação ou resolução (id. ibid., pp. 443-4 e
453-4; ver também id. ibid., p. 59). Desse modo, teriam, e. g.: as terças, ainda não admitidas como
consonâncias em tratados anteriores ao séc. XII, sido deliberadamente admitidas como tal a partir
do séc. XIII15; ou os acordes com sétima, formados apenas de passagem até o século XVI, vindo a
ser atacados sem preparação com os compositores da seconda pratica, na virada para o séc. XVII
(ver Ex. 34a, p. 70, adiante). Igualmente, para Schoenberg, se já “não mais se esperavam
preparações das dissonâncias de Wagner ou resoluções dos acordes dissonantes de Strauss”
(1950[1941/1948], p. 104), então toda formação intervalar poderia vir a ser finalmente considerada
como “consonante” e ser, portanto, tratada como tal, dispensando qualquer preparação ou resolução.
Basicamente a isto, i. e., à possibilidade de que toda formação intervalar viesse a ser empregada
sem necessidade de preparação ou resolução, Schoenberg denominou “emancipação da dissonância”
(1975[1926], pp. 260-1; 1950[1941/1948], p. 104-5; 2004[1948], p. 216) – muito embora o termo
‘emancipação’ possa assumir, por vezes, um significado mais abrangente na obra teórica de
Schoenberg, como o demonstraremos pouco adiante.
A ideia de “emancipação da dissonância”, deve-se ressaltar, não se desenvolve de maneira
isolada. Frente à constatação de que o duplo movimento de expansão e dissolução da tonalidade –
discutiremos essa dupla tendência pouco adiante, sobretudo no Cap. II. 5 – reduzira o poder
unificador da tônica, em alguns dos mesmos textos em que tal ideia [i. e., a emancipação da
dissonância] é exposta, Schoenberg investiga se a tonalidade [Tonalität] seria o único meio de se
obter coerência e articulação formal em música (1934, pp. 175-81; ver também 1975[1926], pp.
261-3) e, argumentando que não, aponta, afora recursos extramusicais – o texto (libretos, poemas,
programas etc.) ou a dimensão expressiva da música (1975[1926], p. 260; 1950[1941/1948], pp.
104 e 106) –, para a elaboração motívica como meio de satisfazer os princípios formais de unidade
e articulação (1934, pp. 179-80; ver também 1950[1941/1948], pp. 107 ff., sobre dodecafonismo e
coesão motívica). Assim, e se entendermos, tal como aponta Dahlhaus (1987[1968], p. 126), que, na
concepção de Schoenberg, a noção de motivo se estende também a acordes (cf. Schoenberg:
2004[1948], p. 217), podemos compreender que certos procedimentos composicionais típicos de
Schoenberg (desde suas últimas obras entendidas como “tonais”, à prática dodecafônica) realizam
precisamente uma transferência de ênfase da funcionalidade harmônica para a dimensão motívica,
ao conceder a esta primazia mesmo na elaboração de acordes e progressões harmônicas.

15
Ver Tenney: 1988, p. 109. Schoenberg menciona o caso das terças no Tratado…, p. 453.

57
Tendo o próprio Schoenberg apontado o ano de 1908 como o momento a partir do qual ele e
seus alunos teriam escrito suas primeiras obras em acordo com a tese da emancipação da
dissonância (1950[1941/1948], p. 105) – abdicando, assim, de preparar e resolver quaisquer
formações cordais –, podemos entender as Três peças para piano, Op. 11 (1909) (provavelmente,
uma de suas obras mais analisadas) como um dos primeiros exemplos de tal prática composicional.
Conforme explicitado no Ex. 27, abaixo, o acorde sobre o último tempo do cp. 4 do Op. 11, no 1 é, à
exceção da linha de tenor, constituído pelo empilhamento das três primeiras notas da melodia da
peça (cp. 1-2) e pode ser, assim, entendido como derivado de um motivo proeminente na obra. Em
uma análise de 1951, Hugo Leichtentritt entende tal acorde como um sol maior “perturbado pelo
sol#”, mas, para sustentar tal interpretação, ignora tal nota, a despeito do fato de que ela não apenas
é atacada e sustentada junto ao acorde em questão, mas está, ademais, disposta no baixo de tal
acorde: “deve-se apenas substituí-lo [o sol#] por sol para que se veja como as quatro partes estão
pacificamente em acordo dentro dos moldes da tonalidade, no sentido de Sol maior” (op. cit., p.
430).

Ex. 27: Schoenberg: Op. 11, mov. I, cp. 1-5. Estão circulados no exemplo conjuntos de notas de mesmo conteúdo
intervalar. Adaptado de Perle (1991[1962], p. 11) e Straus (2005, p. 2).

Também na análise de Ogdon (1981) tal acorde é interpretado em Sol maior, mas o autor o
explica como a sobreposição de (1) um acorde de sol maior com (2) um arpejo, na linha de tenor, de
V de Sol, resolvendo na terça de I e (3) baixo pedal na napolitana (lá bemol) de Sol (pp. 172-3). Tal
interpretação nos parece plausível, mas seria igualmente possível argumentar que tal acorde se
tratasse, e. g., de um si menor com a sexta no baixo; que, enquanto um acorde com sexta, ele seria
uma subdominante de Fá# (maior ou menor); que o sol natural de soprano é que se tratasse de uma
napolitana de Fá# – ou de uma suspensão cromática não resolvida (ou resolvida uma oitava abaixo,
no tenor) sobre a quinta (fá#) do acorde, ou ainda de um fá ##, aproximação cromática do sol# do
baixo –; que o acorde do cp. 2 (sol bemol-fá-si-sol, no Ex. 27, acima) se tratasse de um dó#
dominante, com sétima, quinta rebaixada e sem fundamental, sobreposto a um baixo pedal no
hipotético I grau de Fá#, o que reforçaria tal interpretação alternativa.

58
Ex. 28: Interpretações dos cp. 4-5 de Schoenberg, Op. 11, no 1: (a) em Sol maior, adaptado de Ogdon (1981, p. 173); (b)
em Fá # (maior ou menor).

A exemplo do que víramos com relação aos acordes errantes (ver pp. 49-55, acima), o
acorde em questão é inerentemente ambíguo quanto à sua fundamental e, consequentemente, quanto
à sua funcionalidade, e só poderia expressar univocamente uma ou outra Tonart se resolvido, ou se
resolvidas suas dissonâncias: para que se confirmasse a interpretação de Ogdon, seria necessário
que o sol# (ou lá bemol) se resolvesse – provavelmente sobre sol –; para que se confirmasse, por
sua vez, a interpretação alternativa de que tal acorde se tratasse de IV 6 de Fá#, seria necessário que
o sol (ou fá##) se resolvesse sobre fá# ou sol#. Sua não-resolução mantém em suspenso seu
significado harmônico; seu encadeamento com outros acordes ambíguos não resolvidos –
corresponderiam as três notas que o precedem (ver Ex. 27, página acima) a um dó dominante ou a
uma sexta italiana sobre fá#?; seria o acorde do cp. 3 um lá dominante com suspensão de sexta para
quinta, ou um dó dominante com décima-terceira e suspensão de quarta para terça?; qual a
fundamental do acorde do cp. 2? – leva a uma suspensão (já observada com relação aos acordes
errantes, de modo geral) do próprio senso de uma centralidade tonal específica. A emancipação da
dissonância, ao permitir que qualquer acorde, com qualquer constituição intervalar, seja
considerado como consonância e, portanto, prescinda de preparação ou resolução, tende a prolongar
tal estado de suspensão do senso de centralidade tonal – ou, nos termos de Schoenberg, de
tonalidade suspensa [schwebende ou aufgehobene Tonalität] (2001[1911], pp. 527-9). Esse seria
um primeiro sentido em que poderíamos entender a colocação de Schoenberg de que um estilo
fundado na emancipação da dissonância renuncia ao estabelecimento de um centro tonal
(1950[1941/1948], p. 105).

59
II. 4. 2. Exame da noção schoenberguiana de ‘emancipação da dissonância’

Um exame da argumentação de Schoenberg a respeito da emancipação da dissonância


revela algumas inconsistências, tanto internas a tal argumentação, como com relação ao repertório
que precede historicamente sua proposição:

1. A premissa de que intervalos entendidos como “dissonâncias” tratem-se, a rigor, de


“consonâncias remotas” é justificada por Schoenberg, como vimos, com base no fenômeno acústico
da série harmônica: as consonâncias convencionadas corresponderiam aos intervalos entre seus
primeiros parciais; as dissonâncias convencionadas, aos intervalos que apenas ocorreriam entre
parciais mais agudos. Posto, contudo, que Schoenberg leva em conta, em sua tese, as aproximações
inerentes ao temperamento – e que toda a sua exposição sobre harmonia pressupõe o sistema
temperado –, deve-se observar que, em termos acústicos e em tais condições de afinação, não há
qualquer diferença entre, e. g., uma segunda aumentada e uma terça menor, ou entre uma terça
maior e uma quarta diminuta. O que justificaria, então, que o próprio Schoenberg, pouco após
expor sua premissa no Tratado…, viesse a distinguir intervalos aumentados e diminutos dos demais,
considerando, e. g., a terça maior como consonância, mas a quarta diminuta como dissonância (op.
cit., p. 60)? Ou, inversamente, que Mattheson, em Der vollkommene Capellmeister, de 1739, viesse
a considerar a sexta aumentada como consonância (op. cit., p. 253), mas a sétima menor como
dissonância (id. ibid., p. 328)? E o que justificaria que tríades aumentadas – as quais, em termos
acústicos, contêm apenas terças maiores (e inversões) – fossem consistentemente resolvidas em
Bach, Mozart ou Chopin, ao passo que progressões imediatas entre acordes diminutos – os quais
contêm trítonos, para além das terças menores – são eventualmente encontradas nesses mesmos
autores?

Ex. 29: (a) Bach: BWV 903 (ca. 1720), cp. 33-36; (b) Chopin: Op. 10, no 3 (1832), cp. 39-41.

60
2. Vimos que Schoenberg (a) atribui às “consonâncias próximas” um maior grau de
compreensibilidade do que às “consonâncias remotas” e que (b) a dependência ou não de
preparação ou resolução de um intervalo seria condicionada, em sua argumentação, precisamente à
compreensibilidade deste. Conforme aponta Dahlhaus (1987[1968]), contudo:
2. 1. embora seja possível, de fato, observar correlação, na teoria e na prática do contraponto
tradicional, entre o tratamento dos intervalos e a complexidade destes: 2.1.1. tal correlação não é
totalizante [all-embracing] (op. cit., p. 122), na medida em que, e. g., a quarta justa no baixo,
embora se trate de uma relação intervalar relativamente simples (mais do que a terça menor, por
exemplo), seja tradicionalmente dependente de resolução; 2.1.2. a “compreensibilidade”, ao menos
no nível dos intervalos (ver item 2.2, abaixo), não parece ser o fator decisivo com relação à
dependência ou não de resolução, se assumirmos, e. g., que “o acorde de quartas C-F-B bemol-E
bemol (…) é mais simples [intervalarmente] do que o acorde de sexta, quarta e terça C-F-A-E
bemol, sobre o qual, em uma composição tonal, ele deve ser resolvido” (id. ibid., p. 123).
2.2. A ideia de “compreensibilidade” não é unívoca, sobretudo, no contexto da tonalidade.
Embora subentenda-se na premissa de Schoenberg uma associação do grau de compreensibilidade
dos intervalos aos intervalos per se, Dahlhaus ressalta que “a função de notas em uma tonalidade
deve ser distinguida da relação imediata entre notas” e exemplifica que se, por um lado, o trítono é,
enquanto relação imediata, um intervalo “mais difícil de compreender do que a sexta; ainda assim, a
função de dominante de um trítono é, de modo geral, mais fácil de captar do que a função de
subdominante de uma sexta Napolitana” (id. ibid., p. 122).

3. Como vimos, Schoenberg atrela, em sua argumentação – e é da natureza de sua premissa


que se atrelem –, as noções de consonância e dissonância a intervalos per se e distingue-as, em
termos práticos, em função da dependência ou não de preparação e resolução. Deve-se contudo
observar que a dependência ou não de resolução de um dado intervalo é frequentemente contextual
e não se deve exclusivamente a tal intervalo per se. A título de exemplo, sétimas menores e
segundas maiores em Haydn são, pela maior parte, tratadas como dissonâncias; se, em sua obra,
contudo, é frequente que encontremos, sobretudo em pontos de articulação formal, dominantes com
sétima que não sejam linearmente resolvidas (ver Ex. 30a, abaixo), isto não há de significar que a
sétima ou a segunda em Haydn prescindam, elas mesmas, de resolução, mas, antes, que em
dominantes com sétima tais intervalos podem prescindir. Mesmo no acorde formado nos cp. 25-6 da
Sonata no 33 (Ex. 30b, abaixo), composto pela sobreposição de duas sétimas menores (si bemol-lá
bemol e ré-dó), ainda que Haydn tome medidas para ressaltar tal constituição intervalar, é
evidentemente relevante – pela progressão harmônica em que tal acorde se encontra, bem como por
sua posição formal (imediatamente antes de que se introduza um tema na tonalidade secundária de

61
Mi bemol maior) – que tal acorde se trate de uma dominante (no caso, com sétima e nona). Talvez
fossem, assim, antes as dominantes com sétima que estariam ‘emancipadas’ (ver item 4, abaixo) da
necessidade de resolução em Haydn, do que os intervalos de sétima ou a segunda, propriamente.
Em “Composition with twelve tones” [1941/1948], de fato, Schoenberg emprega as expressões mais
específicas de “emancipação da dominante e outros acordes de sétima, sétimas diminutas e tríades
aumentadas” (op. cit., p. 105, grifo meu), mas isso evidentemente implicaria em conceitos mais
amplos de ‘dissonância’ e ‘consonância’ que se inflectissem em função dos contextos em que se
inserissem os intervalos examinados e/ou que ao menos abrangessem acordes (cf. item 4) enquanto
tais – e não apenas enquanto agregados de intervalos individualmente ‘consonantes’ ou não.

Ex. 30: Haydn: Sonata, Hob. XVI/20 (1771), (a) cp. 31-2; (b) cp. 25-6.

4. Resolução, nos domínios da tonalidade, pode ocorrer não apenas no nível dos intervalos (i.
e., em que um intervalo dissonante progrida linearmente a um intervalo consonante), mas também
(e não exclusivamente) no nível (a) das notas, individualmente (como no caso de uma sensível, ou
de uma suspensão); (b) dos acordes – nos Ex. 30a e b, acima, e. g., embora os intervalos,
propriamente, de sétima ou de quinta diminuta não se resolvam linearmente, os respectivos acordes
de dominante que os contêm são resolvidos por cadências do tipo V-I –; (c) das frases (como, e. g.,
na relação antecedente/consequente); (d) das regiões tonais (como no estilo sonata, ao se
recapitular na Haupttonart material originalmente introduzido em tonalidades secundárias) etc.
Assim, se Schoenberg identifica com as dissonâncias a necessidade (em cada dada prática
composicional) de resolução, há de se assumir que, em boa parte do repertório tonal sejam também
entendidos como ‘dissonâncias’ as sensíveis, as dominantes, os antecedentes, as tonalidades
secundárias etc. – e não apenas intervalos16.

16
Uma tal proposição é defendida por Rosen, ao discutir a respeito da emancipação da dissonância em seu livro
sobre Schoenberg (1996[1975], p. 23 ff.): que por dissonância se entenda “qualquer som musical que precise ser
resolvido” (op. cit., p. 24), de modo que o conceito de dissonância se aplique não apenas a intervalos e acordes,
mas também à “frase dissonante” ou à “seção dissonante” (id. ibid., pp. 27-8, grifos meus) – conformemente,
Rosen reexpõe aqui sua tese, originalmente proposta em The Classical Style, de que modulação se trate de
“dissonância em larga escala” (1996[1975], p. 29; 1997[1972], p. 26).

62
5. Levando-se aos limites a definição inerente à argumentação de Schoenberg (ver
2001[1911], p. 59) de ‘consonância’, em termos práticos, pela não-necessidade de resolução,
deveremos reconhecer, tal como apontara Riemann em Die Natur der Harmonik (1886[1882]), que,
de uma perspectiva própria à tonalidade funcional, “o único acorde consonante em qualquer
tonalidade [key], no senso mais estrito do termo, é o acorde de tônica (…), o único que não requer
claramente uma progressão posterior” (op. cit., p. 29, grifos do autor). Para que uma obra expresse
satisfatoriamente uma Haupttonart, toda modulação a uma tonalidade secundária demandará um
eventual regresso à principal e, no interior de qualquer Tonart estabelecida, é inerente à tonalidade
que todo acorde apontará (mais ou menos diretamente) para a tônica. Assim, se a emancipação da
dissonância for de fato entendida como a atribuição do status de ‘consonância’ a todo intervalo (e,
por extensão, a todo acorde), então a suspensão da tonalidade não é meramente um resultado da
efetivação composicional de tal noção (cf. p. 59, acima): a emancipação da dissonância, para que
se sustente nesses termos, há de abdicar a priori da tonalidade funcional.
Schoenberg, contudo, justifica historicamente a emancipação da dissonância e toma por
precedentes para esta processos ocorridos, em boa medida, em meio a práticas composicionais
propriamente tonais: por “emancipação da dominante” (1950[1941/1948], p. 105; cf. 2001[1911],
pp. 453-4), e. g., Schoenberg se refere ao processo pelo qual: (a) a sétima de um acorde de V grau,
que apenas ocorreria como suspensão ou nota de passagem, veio eventualmente a ser atacada junto
a tal acorde (2001[1911], pp. 136-8; cf. id., pp. 92-6); (b) o acorde de sétima veio a ocorrer sobre
qualquer grau da escala, que não apenas o V (ver id., pp. 257 ff.); (c) e pelo qual a necessidade de
resolução imediata de tal acorde foi progressivamente abstraída (id., p. 444). Cada um dentre tais
passos implica, de fato, em um tratamento mais livre do acorde em questão e liberdades ainda
maiores poderão ser observadas em Mozart, Chopin ou Wagner, mas em nenhum desses
compositores parece ser possível sustentar, com rigor, que uma dominante com sétima equivalha de
fato a uma consonância. O mesmo vale para diversos outros acordes da tradição tonal: Schoenberg
refere-se, como vimos, a uma emancipação das sétimas diminutas, tríades aumentadas e “outras
dissonâncias mais remotas”; menciona o tratamento conferido, e. g., às tétrades diminutas pelos
compositores clássicos – em que, a estas, “poderia preceder ou seguir qualquer outra harmonia,
consonante ou dissonante, como se absolutamente não houvesse dissonância” (1950[1941/1948], p.
104) – como precedente para o uso mais livre das dissonâncias na virada do séc. XIX para XX; e
subentende, assim, que a tal tratamento – observável no Ex. 29, p. 60, acima, tanto em Bach, como
em Chopin – se refira a expressão “emancipação”. Ainda assim, nem em Bach e Chopin, nem em
Haydn, Mozart ou Beethoven, caberá compreender a tétrade diminuta rigorosamente como uma
‘consonância’.

63
O termo “emancipação”, quando empregado por Schoenberg com relação a acordes
específicos da tradição tonal, não pode ter o exato mesmo sentido que Schoenberg lhe atribuíra na
expressão “emancipação da dissonância” – de simples conversão da ‘dissonância’ em ‘consonância’,
a qual implicava, como vimos, em uma abdicação a priori da tonalidade –, mas há de referir-se: (a)
a processos graduais (ainda que não necessariamente historicamente lineares) de progressiva
liberdade de tratamento de tais acordes – ao invés de uma sumária conversão da dissonância em
consonância –; (b) passíveis de ocorrer, e frequentemente ocorridos, no interior da própria tradição
tonal; (c) referentes (não exclusivamente) a acordes específicos – e não a toda dissonância,
indiscriminadamente, ou a um dado intervalo, em qualquer contexto em que este ocorresse –; (d)
que não necessariamente impliquem (ou implicassem), em última instância, na conversão de tais
‘dissonâncias’ em ‘consonâncias’. Devemos ainda acrescentar, frente à constatação de que a noção
de ‘dissonância’ não pode se limitar, ao menos em práticas tonais, a intervalos ou acordes, que
também os processos de ‘emancipação’, nesse segundo sentido do termo, não hão de se limitar a
tais níveis.

64
II. 4. 3. Conceituação estendida de ‘dissonância’ e de ‘emancipação’

Vimos, em nosso exame da argumentação de Schoenberg a respeito da emancipação da


dissonância, que (1) Schoenberg parece empregar o termo “emancipação” em sentidos distintos ao
(1a) propor a noção de “emancipação da dissonância” e (1b) ao referir-se, em alguns de seus textos,
à “emancipação” de acordes específicos; (2) que o primeiro desses sentidos há de abdicar a priori
da tonalidade, ao passo que o segundo se reporta a processos em boa medida ocorridos no interior
da própria tradição tonal; (3) que um conceito de dissonância em que (3a) esta seja definida, tal
como Schoenberg o faz, em função da necessidade ou não de resolução e que seja (3b) inclusivo das
práticas composicionais que se valham da tonalidade funcional não se pode limitar ao intervalo
dissonante. Assim, se por um lado a argumentação de Schoenberg em torno da emancipação da
dissonância apresenta inconsistências quanto a ambos os conceitos de ‘emancipação’ e de
‘dissonância’, por outro, conceituações mais abrangentes de ambos os termos – e capazes de incluir
as próprias concepções mais estreitas apresentadas pelo autor – podem ser inferidas de seus próprios
escritos, ou derivadas de suas contradições.
Abaixo, proponho conceituações estendidas de ambos os termos em questão. Sobre o
conceito de ‘emancipação’, busquei elaborá-lo de maneira que ele contemplasse, tanto quanto
possível, o segundo dentre os usos de tal termo por parte de Schoenberg, i. e., aquele em que
emancipação se concebe como um tipo de processo histórico inerente à tonalidade funcional e
responsável por seu desenvolvimento [Herausarbeitung] (ver 1976[1926], p. 210; cf. 1975[1926], p.
259] histórico. Sobre o conceito de ‘dissonância’ aqui proposto, por sua vez, este se relaciona
apenas à distância com aquele adotado por Schoenberg: se Schoenberg partira da concepção
histórica de dissonância, ligada sobretudo às práticas polifônicas do séc. XIV ao início do séc. XVII
(cf. pp. 16-7, Cap. I. 2. 2, acima), em que esta se classificaria como tal em função de sua
necessidade de resolução e; se Riemann atentara para que, por um tal tipo de concepção, a única
efetiva consonância em uma dada tonalidade seria sua tônica; elaboro aqui o conceito de
‘dissonância’ por sua diferenciação com relação à ‘consonância’, o que efetivamente, em obras
musicais, implica em assumi-la [a dissonância] como desvio da tônica. Ambos os conceitos haviam
sido já introduzidos, ainda que de maneira sumária, respectivamente em nosso prefácio e em nossa
introdução. Aqui, torno a formulá-los, aprofundando-os e exemplificando-os amplamente.

Dissonância
Partindo de uma diferenciação histórica entre ‘consonâncias’ e ‘dissonâncias’ em função da
necessidade ou não de resolução, vimos que a única efetiva consonância em uma obra ou passagem,
sob a perspectiva da tonalidade funcional, há de ser, a rigor, a tônica. Em função de tal constatação,

65
entenderemos por ‘dissonância’ todo e qualquer desvio da tônica – e, se por ‘dissonância’
entendemos o desvio, propriamente, então o produto de um desvio será aqui entendido como
‘dissonante’.
Algumas implicações de tal conceito de dissonância devem ser aqui esclarecidas:
1. Dissonância, segundo tal conceito, não se expressa exclusivamente no nível dos
intervalos ou dos acordes.
Dentre a variedade de exemplos possíveis: a sensível individual da quinta de um acorde de
tônica, bem como uma nota de passagem entre sua fundamental e sua terça (i. e., notas,
individualmente) serão entendidas como dissonantes e também como dissonantes serão entendidas
quaisquer tonalidades secundárias (e as seções formais que as expressem) que venham a se
estabelecer em uma obra que expresse uma Haupttonart; a tríade de subdominante será entendida
como dissonante, assim como a tríade correspondente à de tônica, caso esta ocorra no interior de
uma tonalidade secundária; todo acorde errante, precisamente por não expressar uma fundamental,
bem como qualquer progressão entre acordes cuja relação funcional não esteja circunscrita em uma
única Tonart serão, por isso, entendidos como dissonantes.
2. Se a dissonância corresponde ao próprio desvio, então ela corresponde à própria maneira
como um produto seu se desvie de uma tônica, às operações específicas que produzem um tal
desvio. Em uma suspensão, e. g., a nota suspensa será entendida como dissonante e a dissonância
será a própria operação de suspensão; a modulação a uma tonalidade secundária será aqui
entendida como dissonância, ao passo em que a passagem modulatória ou a tonalidade por ela
estabelecida serão entendidas como dissonantes.
Assim, por um tal conceito de dissonância, podemos não apenas verificar se uma dada nota,
um acorde, progressão, região tonal etc. (i. e., os possíveis produtos de dissonâncias) são ou não
dissonantes, mas, sobretudo:
2.1. Podemos identificar um maior ou menor grau de dissonância em função do acúmulo de
operações de desvio manifestas em um dado dissonante – e já não em função de suas propriedades
acústicas.
A tríade de subdominante na Haupttonart (fá maior, em Dó maior), e. g., será entendida,
conforme já apontado, como dissonante, mas possivelmente em menor grau do que a tríade
correspondente à subdominante da subdominante na região da submediante rebaixada (sol bemol
maior), ainda que ambas compartilhem, virtualmente, as mesmas propriedades acústicas; a
tonalidade fundada sobre a homônima menor de uma Haupttonart maior (Dó menor, em Dó maior),
por conta de ambas compartilharem a mesma nota central, será normalmente entendida como
menos dissonante do que a tonalidade fundada sobre a submediante maior (Lá maior); e o “acorde
de quartas C-F-B bemol-E bemol”, mencionado por Dahlhaus (ver p. 61, acima), será mais

66
dissonante – a despeito de sua relativa simplicidade em termos intervalares – do que sua resolução
convencionada “C-F-A-E bemol” se entendermos este como uma dominante à qual se acresça a
sétima e aquele como virtualmente o mesmo acorde, suplementarmente submetido a uma suspensão
de quarta.
2.2. Na medida em que se identifiquem as operações específicas de desvio manifestas em
uma nota, acorde etc., podemos discernir qualidades distintas de como estes são dissonantes.
Assim, embora sejam, em si mesmos, idênticos, entenderemos, e. g., que o acorde formado
por sol-si-dó#-fá, em Dó menor (Ex. 31a) seja dissonante de maneira distinta de seu enarmônico
sol-si-ré bemol-fá (Ex. 31b), na medida em que a primeira dessas dominantes inclui uma sensível de
sua quinta – a qual tenderia a ser resolvida sobre essa quinta –, ao passo que a segunda altera
cromaticamente sua quinta – tendendo esta a resolver, juntamente a essa dominante, como um todo,
sobre a fundamental de um acorde de dó maior. Semelhantemente, entenderemos que a região da
mediante maior, em uma Haupttonart maior, seja dissonante de maneiras distintas caso tenha sido
alcançada, e. g., como homônima maior da mediante (como fora o caso da Sonata Waldstein de
Beethoven, pp. 42-4, acima), ou enquanto submediante rebaixada da submediante rebaixada (como
no Allegro da Sinfonia no 3 de Brahms, pp. 44-5, acima).

Ex. 31: Sol dominante com: (a) substituição da quinta por sua sensível e; (b) alteração cromática da quinta. A diferença
de resolução evidencia a diferença de qualidade das dissonâncias operantes nos acordes em questão.

3. Se por dissonância entendemos as operações de desvio da tônica, por resolução,


inversamente, entenderemos toda operação de aproximação à tônica. A respeito de uma tal
concepção, devemos ressaltar:
3.1. Que resolução, nesses termos, não se limita à sucessão do dissonante ao consonante,
mas abarca também o movimento do mais dissonante ao menos dissonante – entendendo-se, tal
como expuséramos acima, que o grau de dissonância se determine pelo acúmulo de operações de
desvio, não em termos acústicos.
Assim, tomando-se novamente por exemplo as dominantes sol-si-dó#/ré bemol-fá do Ex. 31,
acima, na medida em que entendemos tais acordes como dissonantes por (a) fundarem-se sobre um
grau diverso ao da tônica, (b) portarem um acréscimo de sétima e (c) portarem uma sensível ou uma
alteração de suas respectivas quintas, entendemos que haja resolução não apenas se lhes sucederem

67
uma tríade perfeita sobre o I grau (Ex. 32a), mas também se lhes sucederem, e. g., o acorde de
tônica com suspensão de quarta (Ex. 32b), um acorde de dominante cuja fundamental corresponda
ao I grau da Tonart (Ex. 32c), se a sensível dó# prosseguir à quinta ré (Ex. 32d) etc. – i. e., se
qualquer das operações pelas quais tal acorde se desviara da tônica for revertida.

Ex. 32: Resoluções do sol dominante com sétima e quinta rebaixada/sensível da quinta: (a) sobre a tônica dó maior
(consonante); (b) sobre a tônica com suspensão de quarta (dissonante); (c) sobre dó dominante (dissonante); (d) sobre
sol dominante (dissonante).

Semelhantemente, na Sonata Waldstein, abordada acima (pp. 42-4), entendemos que haja
resolução da seção formal na tonalidade secundária de Mi maior (cp. 35-84) não apenas quando da
recapitulação do material então apresentado na Haupttonart de Dó maior (cp. 208 ff.), mas também
ao se passar pelas tonalidades respectivamente mais próximas de Lá maior (homônima da paralela,
cp. 200-203) e Lá menor (paralela, cp. 204-205).
3.2. Que, analogamente ao conceito aqui proposto de dissonância – e tal como se observa
nos exemplos oferecidos no item 3.1, acima –, a resolução, em nosso entendimento, pode ocorrer
não apenas do nível dos intervalos ou dos acordes, mas em qualquer nível em que se possa
manifestar dissonância (cf. item 1, pouco acima). Ademais, entendemos que, para além de a tríade
de tônica ser consonante, a própria Haupttonart também o é, em seu devido nível.
3.3. Que, distintamente do que supõe a concepção de dissonância na técnica polifônica dos
séculos XIV a XVII (ou de como o concebera o próprio Schoenberg), a resolução, em qualquer um
dos diferentes níveis em que esta se possa dar, não necessariamente ocorre de maneira imediata:
uma sensível sucedida por um salto (Ex. 33) ou uma dominante que progrida por uma cadência
deceptiva podem por vezes ter suas resoluções satisfeitas apenas alguns compassos adiante; entre
uma suspensão e sua resolução podem, por vezes, interpor-se um arpejo ou uma aproximação
cromática e, para um exemplo em maior escala; entre uma seção formal que expresse uma
tonalidade secundária e sua recapitulação na Haupttonart, tal como abundantemente exemplificam
Allegros de sonatas, frequentemente estarão interpostas outras tonalidades, visitadas em seus
Durchführungen.

68
Ex. 33: Mozart: Fuga em Dó menor, K. 426 (1783), sujeito, cp. 1-4.

4. Entendemos que os possíveis desvios da consonância, da plena estabilidade da tônica, não


se restrinjam a operações harmônicas, mas possam se dar em uma diversidade de domínios da
composição. Assim, as hemíolas que tipicamente precedem progressões cadenciais, e. g., ou
irregularidades métricas, de modo geral, são aqui incluídas em nossa concepção de dissonância
(exploro irregularidades métricas e a interação destas com a funcionalidade harmônica de uma obra
sobretudo na composição da sonata ao Mekong, relatada adiante, no Cap. III. 5. 1, pp. 164 ff.,
adiante). No acorde do recitativo final de Salome (1905), de Strauss (examinado pouco adiante, pp.
89-90 e 100 ff.), por sua vez, é notável que o compositor o introduza junto a um ataque de tam-tam,
o qual adiciona ao profundo cromatismo do acorde em questão uma espécie de cluster frequencial
(Ex. 55, p. 90, adiante) – aqui, a própria orquestração é dissonante.
Nesse sentido, se a tonalidade funcional for entendida, tal como o propõe Rosen (1975, pp.
30-2), como portadora – para além de um tipo de lógica harmônica – de “um complexo conjunto de
pressuposições [interdependentes] sobre melodia, rítmica, forma”, orquestração etc., há de se
reconhecer que, também nesses domínios, o repertório de tradição tonal-funcional produziu desvios
progressivamente mais acentuados de suas convenções (ver id. ibid., p. 32), de modo que, também a
tais domínios, há de se aplicar o princípio histórico de emancipação.

Emancipação
Compreendendo-se a tonalidade funcional como historicamente dinâmica – o que se faz
auto-evidente em um exame, tal como aqui conduzido, de seu desenvolvimento histórico –; visando
contemplar as propriedades que inferíramos do segundo uso do termo “emancipação” por nós
identificado em Schoenberg (ver pp. 63-4, acima, item 5) e; visando, ademais, abranger como
passíveis de atravessar processos de emancipação os diversos tipos de dissonantes e dissonâncias
que nosso conceito estendido de ‘dissonância’ nos leva a compreender como tais; propomos que,
por ‘emancipação’, se entenda um tipo de processo inerente à tonalidade funcional, pelo qual
aquilo que se desviava da norma expressa por práticas composicionais ou sistemas teóricos de um
dado momento histórico seu passa a ser progressivamente absorvido em novas práticas
composicionais. Por um lado, o princípio de emancipação pode ser entendido, como já colocado,
como responsável pelo desenvolvimento histórico da tonalidade funcional, por seu processo mais
geral de expansão e dissolução; por outro, entendemos que a emancipação seja inerente à
tonalidade na medida em que os processos de formação de seus próprios fundamentos morfológicos

69
– i. e., as tríades, os modos maior e menor, o acorde de dominante com sétima, a modulação etc. –
possam ser compreendidos como processos emancipatórios. (Oferecemos exemplo logo abaixo, ao
examinarmos o caso dos acordes de dominante.)
Com relação ao dissonante, a emancipação se trata, em uma primeira fase: (1) do processo
pelo qual seu contexto de origem (incluindo-se as dissonâncias que o produzem) é
progressivamente abstraído, ou absorvido como carga histórica em sua própria morfologia e; em
uma segunda fase, (2) do processo pelo qual o dissonante vem a se sujeitar a novas operações de
desvio. Abordando-se por essa perspectiva o supracitado caso dos acordes de dominante, podemos
entender que, se no séc. XVI acordes correspondentes à moderna dominante com sétima seriam
formados por contraponto, sendo a nota correspondente à sétima (dissonante) produzida por
passagem ou suspensão (dissonâncias) e empregada sobretudo em progressões cadenciais,
ulteriormente tais acordes: (1a) absorvem em suas constituições a nota correspondente a essa sétima,
vindo esta a prescindir de preparação (ver Ex. 34a, abaixo); (1b) absorvem de tal forma em sua
morfologia sua histórica função cadencial, que, em casos como o reproduzido no Ex. 34b, abaixo,
chegam a implicar em uma tônica, mesmo na completa ausência desta – e prescindem, assim, de
resolução para que cumpram com a funcionalidade que lhes é própria –; (2) sujeitam-se a uma
diversidade de desvios adicionais, tais como o acréscimo de nona, ou da característica décima-
terceira de Chopin (ver Ex. 50b, p. 86, adiante), o rebaixamento cromático de suas quintas em
dominantes francesas etc.

Ex. 34: (a) Monteverdi: Cruda Amarilli (1605), cp. 13-14; (b) R. Schumann: Dichterliebe (1840), no 1, cp. 24-26.

Processos análogos ocorrem com outros dissonantes. A sexta napolitana, e. g., assumindo-
se que esta se origine, tal como colocado por Bukofzer (1975[1948], p. 386), como um acorde de
terça e sexta sobre o IV grau de tonalidades ainda híbridas entre o modo menor e o modo frígio, no
séc. XVII, ela vem eventualmente a ocorrer: (1a) em outras inversões, que não apenas o acorde de
terça e sexta; (b) em quaisquer tonalidades, tanto menores como maiores; (c) e a ser tratada não

70
apenas como um acorde de sexta sobre o IV grau, mas também como uma tríade por si mesma,
fundada sobre o II grau rebaixado de qualquer dada Tonart, o que se atesta, por exemplo, por seu
eventual estabelecimento enquanto tônica secundária (Ex. 35a). Ademais, uma vez abstraída de seu
contexto de origem, a sexta napolitana vem – tal como visto acima com relação às dominantes – a
(2) sujeitar-se a novas operações de desvio, como (a) ter sua terça alterada cromaticamente,
apresentando-se como sua homônima menor (Ex. 35b); (b) ou, ao estabelecer-se como uma tônica
secundária, tornar-se ponto de partida para novas modulações a regiões que se reportem a ela e não
mais à Haupttonart (ver, e. g., o caso de “Mignon II”, de Wolf, examinado no Cap. II. 3, acima) etc.

Ex. 35: Schubert: (a) Erlkönig (1815), cp. 143-148; (b) Quarteto, D. 810, cp. 326-332, redução (cf. Phipps: 1984, p. 39.)

Com relação à dissonância, por sua vez, entendemos que o conceito ora proposto de
emancipação se trate mais especificamente: (1) em uma primeira fase (em termos lógicos, não
necessariamente cronológicos), do processo pelo qual uma operação de desvio originada como
atrelada à produção de um dissonante específico vem a se aplicar em outros contextos e a outros

71
dissonantes; (2) em uma segunda fase, do processo pelo qual aquilo que era uma operação local de
desvio se torna um procedimento composicional por si mesmo, potencialmente independente da
tonalidade funcional.
Exemplificaremos exaustivamente processos emancipatórios de dissonâncias no subcapítulo
que se segue.

72
II. 4. 4. Emergência das dissonâncias processuais

Nos escritos de Schoenberg e Webern, podemos encontrar como um quarto fator no


processo de dissolução da tonalidade funcional o tratamento progressivamente mais livre que se
vinha atribuindo a acordes progressivamente mais dissonantes, i. e., os processos de emancipação
desses acordes dissonantes, no segundo sentido que identificáramos do termo em Schoenberg.
Webern, em sua conferência de 1933, aponta como não apenas “as consonâncias originais
das tríades” haviam sido alteradas para que se engendrassem as dominantes com sétima e os
acordes errantes, mas como também estes acordes [errantes] e outros de origem não-triádica – tais
como os acordes quartais [Quartenakkorde] – vieram a ser eles mesmos alterados; e como, ainda,
os “novos acordes” resultantes de tais alterações suplementares teriam vindo a ser mais e mais
ostensivamente empregados nos anos que precederam o abandono da tonalidade por sua parte e de
Schoenberg, em 1908-9 (op. cit., pp. 38-9). Schoenberg, por sua vez, aponta em “Composition with
Twelve Tones” [1941/1948], como víramos, que, a exemplo de como se tratavam os acordes
diminutos no séc. XVIII, podendo preceder-lhes ou suceder-lhes outros acordes dissonantes,
também as tríades aumentadas, acordes de sexta aumentada e “as dissonâncias [i. e., dissonantes]
mais remotas de Wagner, Strauss, Mussorgsky, Debussy, Mahler, Puccini e Reger” teriam sido
emancipadas (op. cit., pp. 104-5) na obra dos compositores mencionados.
Por um lado, uma ênfase no estado gerado pelo uso ostensivo e pelo tratamento
relativamente livre desses “novos acordes”, dessas “dissonâncias remotas”, tenderia a remeter-nos
de volta à discussão a respeito dos acordes errantes (pp. 49 ff., acima): à medida em que desvios de
uma origem triádica se acumulem em um dado acorde, essa origem triádica tende, evidentemente, a
ser obscurecida – ainda que o acorde em questão seja enarmônico de outro mais convencional (tal
como é o caso do próprio acorde de Tristão, examinado pouco abaixo) –; conforme se obscureça a
origem triádica de um acorde, obscurece-se também sua fundamental, dependendo esta da resolução
do acorde em questão para se expressar e; finalmente, a não-resolução e o encadeamento de um tal
acorde com outros morfologicamente ambíguos tendem a manter em suspenso as fundamentais dos
sucessivos acordes empregados e, consequentemente, o próprio senso de centralidade tonal (no que
Schoenberg denominara “schwebende”, ou “aufgehobene Tonalität”). Diversamente, no trecho que
se segue, examinaremos os próprios processos de emancipação – mais do que a ambiguidade
morfológica de tais dissonantes emancipados – enquanto fator da dissolução da tonalidade
funcional.
De partida, é fácil compreender como, tal como formulado por Dahlhaus (1989[1980]),
certos princípios de construção de acordes “como a harmonia por sobreposição de terças [compound
tertial harmony] e a alteração cromática”, observáveis já em repertório do início do séc. XVIII,

73
“portam uma tendência inata a expandir-se, levando-se, em última instância, à autodestruição” (op.
cit., p. 379). Mais amplamente, contudo, fundando-nos nos conceitos acima propostos de
dissonância enquanto operação de desvio e de dissonante enquanto produto do desvio, podemos
entender: (a) que o processo de emancipação de um dissonante específico (seja um acorde, uma
região etc.) tende, de modo geral, a portar consigo a emancipação também das operações de desvio
(dissonâncias) que o produziram; (b) que, em uma primeira fase, uma operação de desvio atrelada à
produção de um dissonante específico tende a ser experimentada e empregada em outros contextos,
a “expandir-se”, nos termos de Dahlhaus, e generalizar-se; (c) que, em uma segunda fase, a
dissonância que operava localmente, alterando um acorde, motivo, região etc. a priori funcionais,
tende a tornar-se (quer pontualmente, em um acorde ou progressão, quer em uma passagem ou obra)
um procedimento composicional por si mesmo, já não mais subordinado à elaboração de relações
funcionais. Os célebres compassos iniciais do prelúdio de Tristão e Isolda (1857-9) – se
assumirmos uma interpretação dos acordes dos cp. 2 e 6 como resultantes de alterações em sextas
francesas17 – podem ajudar-nos a elucidar essa extensão do processo de emancipação do dissonante
às suas dissonâncias.
Emancipada de uma origem nas tonalidades frígias do séc. XVII e amplamente empregada
como dominante (normalmente secundária) em diferentes tonalidades, tanto menores como maiores,
sobre diversos graus da escala, a sexta francesa pode ser em muitos casos entendida como uma
dominante com sétima e quinta rebaixada, i. e., uma dominante com sétima que porta também em
si, enquanto desvio, a alteração cromática (dissonância) de sua quinta. Assim, interpretando-se os
acordes dos cp. 2 e 6 de Tristão… (ver Ex. 37, pouco abaixo) como originados de sextas francesas
por meio da cromatização de suas sétimas (Ex. 36a-c) – a notação de Wagner sugere fortemente tal
interpretação –, podemos entender tais acordes como resultantes de uma operação suplementar de
desvio (a cromatização) em um acorde já dissonante, sendo, em especial, tal específica operação já
presente no modelo mais convencional da sexta francesa. Manifesta-se aqui, portanto, o que
apontáramos como uma primeira fase do processo de emancipação de uma dissonância: no caso
específico, que a cromatização originalmente implicada na quinta rebaixada da sexta francesa se
estenda a outros componentes do acorde (a sétima, no caso) e, se observados os acordes
subsequentes (cp. 3 e 7 respectivamente), às quintas também destes. Também notável é que, de tais
cromatizações (da sétima nos cp. 2 e 6; da quinta nos cp. 3 e 7), resulte um movimento cromático

17
Entendemos, como melhor defenderemos no Cap. III. 2, que uma tal interpretação não seja excludente de quaisquer
outras. Acrescentamos ainda que a interpretação em questão é bastante difundida, sendo assumida, sobretudo a
partir de Kurth (1920, pp. 42 ff.), em trabalhos como Cone (1962), Hill (1984), DeVoto (1995) e Barsky (1996) e,
sobretudo, estando implícita em Schoenberg, em Funções Estruturais da Harmonia, ao assinalar tal acorde como II
de Lá menor. Martin (2008), ao contestá-la, ignora a discussão de Schoenberg (2001[1911], pp. 435 ff.) a respeito
das “notas não-harmônicas” [“harmoniefremde Töne”] e os processos emancipatórios por Schoenberg descritos e
aqui aprofundados. Martin escreve: “[a] significant shortcoming, however, is that, in order to do so, the
interpretation must explain — or indeed explain away — the G# in measure 2 as a non-chord tone” (op. cit., p. 10).

74
que, afora tratar-se de um dos principais Leitmotive da ópera, exacerba a tendência inerente em
acordes de sexta aumentada de se resolverem por passos cromáticos na maior parte, se não na
totalidade, de suas vozes.

Ex. 36: (a) ré dominante, com sétima; (b) sexta francesa com fundamental em ré; (c) acorde do cp. 6 do prelúdio de
Tristão….

Ex. 37: Wagner: Tristão e Isolda, Prelúdio, cp. 1-11, redução.

O acorde do cp. 10, apesar de equivaler, por enarmonia, a uma inversão dos acordes dos cp.
2 e 6, não pode ser interpretado da mesma maneira: vindo a resolver-se em um si dominante, ele
não corresponde, tomando-se por modelo os outros dois, a uma sexta francesa6#→ 7 sobre fá# (i. e.,
com fundamental correspondente à dominante individual do si que o sucede), nem tem a nota que
corresponderia, por analogia, à sensível de sua suposta sétima elevada a esta; tampouco o acorde em
questão é notado de forma análoga aos outros dois (o que equivaleria à grafia ré-sol#-si#-mi#).
Se os acordes dos cp. 2 e 6, enquanto derivados de sextas francesas, podem ser
funcionalmente entendidos, ao menos localmente, como dominantes das respectivas dominantes de
Lá e Dó (principais tonalidades da obra), também nesse sentido o acorde do cp. 10 parece escapar
ao modelo dos anteriores: Kurth (1920, p. 49) interpretara-o como derivado de um mi com sétima,
com suspensões de nona (fá) e sexta (dó), fazendo uma cadência do tipo IV-I sobre o si do cp. 11
(Ex. 38a, abaixo); Schoenberg, ao assinalá-lo, em Funções Estruturais… como II de Mi
(2004[1948], p. 100; cf. Barsky: 1996, p. 135), assume-o implicitamente como um fá menor com

75
sexta, uma espécie de napolitana menor da dominante de Lá (Ex. 38b), ou subdominante menor da
paralela (Dó) de Lá. Compreendê-lo, por analogia às frases anteriores, como dominante do si
dominante do cp. 11 seria também possível, mas exigiria, deve-se reconhecer, uma muito maior
sofisticação teórica do que aquela envolvida nos cp. 2 e 6: se uma sexta germânica sobre fá#
(dominante de si) seria enarmônica de um dó dominante, então o próprio dó (como resultado de um
processo de emancipação da sexta germânica) poderia vir a ser tratado como dominante de si – de
fato, casos análogos são observáveis no repertório, ao menos desde Mozart, K. 533 (1788), cp. 215-
6 (ver p. 145, adiante) – e, assim, o acorde do cp. 10 poderia ser entendido ainda como um dó
dominante, com quinta aumentada, nona e suspensão de sua quarta a sua terça (Ex. 38c).

Ex. 38: Interpretações distintas para o acorde do cp. 10 de Tristão…: (a) como uma espécie de mi dominante (adaptado
de Kurth: 1920, p. 49); (b) como um fá menor (adaptado de Schoenberg: 1969[1948], p. 77); (c) como uma espécie de
dominante germânica fundada em dó.

A ambiguidade funcional implicada no acorde em questão parece sugerir que, mais


relevantes do que sua funcionalidade são os fatos de que ele: (1) é, se invertido e transposto,
enarmonicamente equivalente aos dois acordes de Tristão anteriores e; (2) de que ele se encadeia ao
acorde do cp. 11 exclusivamente por cromatismo linear. Mais do que um acorde que de partida
assumisse função clara – ou se fundasse sobre um grau específico de alguma das tonalidades
envolvidas na passagem – e sobre o qual incidissem alterações cromáticas, ele parece engendrado
pela própria lógica do cromatismo linear, pela coordenação de vozes cromáticas que encadeassem
(a) um acorde morfologicamente semelhante àqueles dos cp. 2 e 6 ao (b) mais claramente funcional
si dominante (dominante da dominante de Lá). O cromatismo (dissonância), sob a perspectiva de
uma tal interpretação, não estaria aqui subordinado à lógica da funcionalidade harmônica, mas, ao
contrário, assumiria primazia, enquanto procedimento composicional, com relação a esta: seria a
posteriori, por estar inserido em um contexto funcional, que também o acorde (dissonante) gerado
assumiria uma funcionalidade (ainda que não unívoca, como vimos).
Levando-se em conta as diferenças decorrentes dos cerca de setenta anos que o separam do
exemplo de Wagner, também no primeiro movimento da Sinfonia no 40, K. 550 (1788) de Mozart,
são proeminentes os cromatismos melódicos (de que o tema em Si bemol, cp. 44 ff., é exemplo) e

76
alterações cromáticas: de partida, o principal motivo do primeiro tema desenha apojaturas sobre a
tônica, de sua sexta menor para a quinta (Ex. 39a, abaixo), e, eventualmente, sobre a dominante, da
nona menor para a fundamental (Ex. 39b). Decorrentes – ou, ao menos, compreensíveis como
decorrentes – dessa substituição, em dominantes, de suas fundamentais pela nona menor, abundam
também na peça tétrades diminutas.

Ex. 39: Mozart: Sinfonia no 40, (a) cp. 1-2; (b) cp. 77, redução.

Conforme ilustram os cp. 110 a 113, reproduzidos abaixo (Ex. 40), Mozart põe em evidência
a tendência a encadeamentos cromáticos propiciada por tais acordes ao não apenas realizar, em
torno destes, seus encadeamentos mais convencionais, mas ao envolvê-los também – valendo-se por
vezes, para tanto, da ambiguidade inerente à tétrade diminuta – em progressões funcionalmente
menos convencionais, as quais mantenham, contudo, essa propriedade de encadear-se exclusiva- ou
quase exclusivamente por semitons. Manifesta-se, em tal tipo de progressão: por um lado, um
tratamento relativamente livre da tétrade diminuta, um estágio no processo de emancipação deste
acorde dissonante; por outro, uma extensão do próprio encadeamento cromático a uma progressão
dissonante, tratando-se portanto aquele [o encadeamento cromático] da operação de desvio
(dissonância) pela qual se engendra esta [a progressão dissonante].

Ex. 40: Mozart: Sinfonia no 40, cp. 110-113, redução.

Em passagem já próxima ao final do desenvolvimento, em meio a uma profusão do motivo


principal e aos funcionalmente convencionais encadeamentos entre subdominantes com sexta e
dominantes de Sol menor (cp. 146-7 e 148-9, Ex. 41, abaixo), o encadeamento cromático: (a)
estende-se, uma vez mais, a uma progressão funcionalmente menos direta (assinalada em a, no Ex.
41, cp. 148) entre duas tétrades diminutas – manifestando-se, assim, o que designáramos como uma
primeira fase no processo de emancipação da dissonância em questão – e; (b) pouco em seguida,
parece assumir, ainda que pontualmente, primazia com relação à funcionalidade enquanto

77
procedimento por meio do qual se engendra o acorde sol-si-sol #-mi bemol do cp. 15018 (assinalado
em b). A exemplo do que observáramos com relação ao cp. 10 do prelúdio de Tristão…, o acorde
em questão parece gerado antes em função de encadear-se exclusivamente por semitons com o ré
dominante que o segue do que por meio de alterações sobre alguma tríade de origem. (Uma vez
mais, entendemos que seja possível interpretar funcionalmente tal acorde, mas que dificilmente
haverá para ele uma interpretação unívoca e, sobretudo, que qualquer funcionalidade por ele
assumida se dê a posteriori, sobretudo por conta de sua inserção em um contexto funcional.)

Ex. 41: Mozart: Sinfonia no 40, cp. 146-50, redução.

Também algumas progressões harmônicas entre acordes que, ainda que morfologicamente
convencionais, se encadeiem predominantemente por passos cromáticos – como, e. g., as mediantes
cromáticas entre si, a napolitana com relação à dominante da dominante (ver Bach, BWV 998, cp.
39-40) etc. – são frequentemente interpretáveis – e, por vezes, de fato interpretadas, sobretudo em
trabalhos de autores que advoguem pela chamada “teoria da transformação” [transformation theory]
– como resultantes antes de cromatismo linear do que de uma elaboração funcional a priori e seriam
portanto, em tais casos, também compreensíveis como manifestações de uma primazia do
cromatismo, enquanto procedimento composicional, com relação à funcionalidade.
Na passagem abaixo reproduzida da Polonaise no 1 (1875), S. 519, do inacabado oratório St.
Stanislaus, de Liszt, e. g., para além de a relação do dó menor (cp. 99) com os acordes de mi maior
que o circundam ser funcionalmente remota e, consequentemente, ambígua – representaria o dó
menor uma Tonart secundária em alternância com Mi? Haveria uma tônica oculta (como, e. g., Lá
bemol maior, Lá menor, ou Sol) por meio da qual se relacionassem os dois acordes em questão?
Seriam os acordes em questão as respectivas homônimas de mi menor e dó maior, mais
proximamente relacionados? –, não há qualquer consequência imediata de tal progressão que ajude
a elucidar a função desse dó menor com relação ao mi; por outro lado, é evidente (e a escrita de
Liszt valoriza tal aspecto) que os dois acordes em questão se encadeiam exclusivamente por
semitons e, nos compassos que se seguem, abundam progressões análogas, em outras transposições,
valorizando-se, assim, o encadeamento cromático per se, e não uma centralidade de mi. A exemplo
dos acordes acima examinados de Wagner e Mozart, contudo, é possível inferir do próprio

18
Schoenberg comenta o referido acorde no Tratado…, pp. 455 e 510.

78
repertório, bem como da obra em questão, processos de emancipação que conduziriam a um tal tipo
de progressão.

Ex. 42: Liszt: Polonaise no 1, S. 519, cp. 98-103.

Primeiramente, deve-se reconhecer que algumas relações de mediantes cromáticas são não
apenas possíveis de se compreender por meio de relações funcionais convencionais (ainda que
indiretas), mas, ademais, ocorrem efetivamente em sucessão imediata em contextos funcionais 19 já
nos séculos XVII e XVIII, com abundantes exemplos em Purcell, Vivaldi e Bach, entre outros. Para
nos limitarmos a casos semelhantes ao de Liszt, de relações de mediantes cromáticas com
fundamentais que distem por terça maior, podemos tomar como exemplos: o coral final da cantata
BWV 148 (1723) de Bach, em que, após fermata no fim da primeira frase sobre dó# maior,
dominante de Fá# menor, a segunda frase se inicia diretamente na paralela, lá maior, e retorna, de
imediato, à dominante dó# maior (Ex. 43a); ou o coral Christ lag in Todesbanden, BWV 277, em
que, após cadência de engano na penúltima frase sobre si bemol, submediante de Ré menor, não
apenas se segue imediatamente ré maior, enquanto dominante de sol menor, como, no compasso
seguinte, realiza-se a cadência final sobre o mesmo acorde, agora como tônica, com terça de
Picardia (Ex. 43b). De modo geral, a mediante maior (como, e. g., mi maior com relação a Dó)
pode ser frequentemente entendida como dominante da submediante, em tonalidades maiores –
observáramos uma tal relação em larga-escala na Sonata Waldstein, de Beethoven, pp. 42-4, acima
–; e a submediante rebaixada (e. g., dó maior, com relação a Mi), como submediante da homônima
menor.

19
De fato, há exemplos de sucessões de tal tipo já no renascimento, como, e. g., entre diversos versos de Señora de
hermosura (ca. 1500), de Juán del Encina, em La mañana de San Juan (ca. 1550), de Diego Pisador, ou nos acordes
iniciais de “Moro, lasso, al mio duolo” (1613), de Gesualdo. David Kopp, em Chromatic Transformations in
Nineteenth-Century Music (2002), a respeito de relações de mediantes cromáticas na música do séc. XIX, menciona
(op. cit., p. 18, n. 1) que, em trabalho de caráter taxonômico de McKinley (1994), haveria volumosa exemplificação
de relações de tal tipo desde o renascimento. O referido trabalho de McKinley, contudo, permanece não-publicado,
de modo que não temos acesso a tal estudo.

79
Ex. 43: Bach: (a) BWV 148, “Führ auch mein Herz und Sinn”, cp. 1-3, redução; (b) BWV 277, final.

Se nos casos supracitados de Bach tais sucessões se dão em proximidade com os acordes por
meio dos quais elas seriam funcionalmente relacionadas, em Beethoven ou Schubert – a quem
David Kopp, em Chromatic Transformations in Nineteenth-Century Music (2002), atribui,
conformemente, o princípio de um uso normativo de relações de mediantes cromáticas (ver op. cit.,
p. 18) – observam-se passos nos processos de emancipação (a) da própria progressão (dissonante)
entre mediantes cromáticas, por um lado, ao empregarem-nas localmente isoladas de contextos que
explicitassem suas conexões funcionais e; (b) do próprio encadeamento cromático (enquanto
operação, i. e., a dissonância) inerente a tais sucessões, posto que este parece frequentemente se
tornar, em progressões por mediantes cromáticas em que não se evidenciem suas relações
funcionais, o principal fator de coesão.
Um exemplo em que se manifestariam tais processos emancipatórios pode ser encontrado no
primeiro movimento da Sonata no 30 em Mi maior, op. 109 (1820) de Beethoven. No segundo
grupo temático, na região da dominante (Si maior), após extensos arpejos de ré# maior no cp. 13,
retorna-se de imediato, por encadeamento cromático, a si maior, sem qualquer referência a sol#
menor (relativa de si), de quem ré# seria dominante (Ex. 44a, abaixo). Se aqui há ainda margem
para uma interpretação funcional de tal progressão – uma resolução da dominante de sol#
diretamente sobre sua paralela, por substituição –, em passagem análoga, na reexposição,
evidencia-se o próprio encadeamento cromático como operação de resolução (i. e., de desvio, em
sentido inverso) ao se retornar, também imediatamente, de uma incursão em Dó maior, submediante
bemol de Mi (cp. 61-62), para mi maior, tônica (Ex. 44b). O fato de que dó maior dificilmente seria
compreendido como uma dominante de Mi ajuda a explicitar que o que conecta as duas progressões
em questão é, sobretudo, o próprio encadeamento cromático, generalizado 20 – e, portanto,
emancipado – de uma resolução quase-convencional, para outra mais inusitada. Não deixa de ser
relevante, ainda assim, que o dó maior da passagem em questão assuma um caráter de
20
Um exemplo em Schubert, por sua vez, de uso generalizado do encadeamento cromático pode ser encontrado em
Die Sterne, D. 939 (1828). Para análise centrada nesse aspecto, ver Kopp: 2002, pp. 23-29.

80
subdominante (como paralela da subdominante menor de Mi), contrabalanceando, na reexposição,
o caráter de dominante que o ré# assumira na passagem análoga dos cp. 13-14. (Esse tipo de
oposição em larga-escala entre regiões estendidas de dominantes e subdominantes é observado por
Rosen, em seu Sonata Forms, e discutido adiante, no Cap. III. 4, pp. 151 ff.)

Ex. 44: Beethoven, Sonata no 30: (a) cp. 13-14; (b) cp. 61-63.

De volta à Polonaise S. 519, de Liszt, a progressão entre mi maior e dó menor dos cp. 98-
101 parece estender duplamente a operação em questão de encadeamento cromático entre mediantes,
tanto no sentido de que, aqui, todas as notas dos acordes envolvidos – não apenas duas – se movem
por semitom, como por conta de as possíveis relações funcionais entre tais acordes serem mais
remotas do que nos casos acima expostos de Bach e Beethoven. Sobretudo, a imediata repetição e a
proliferação sistemática que se segue de encadeamentos análogos, em outras transposições,
apontam aqui, uma vez mais (i. e., como nos acordes acima examinados de Wagner e Mozart), para
uma primazia do cromatismo – emancipado enquanto um procedimento por si mesmo – com
relação à funcionalidade.
Como nos demais exemplos, tal primazia não exclui a assunção de uma funcionalidade a
posteriori por parte dos acordes envolvidos, devendo-se reconhecer, contudo, que tal funcionalidade

81
tende a ser – precisamente porque remota e a posteriori – ambígua. Assim, sobre o dó menor dos cp.
99 e 101, se parece possível, por um lado, interpretá-lo, e. g., como uma espécie de subdominante
alterada da homônima menor de Mi e se, de fato, as primeiras ocorrências de dó menor, na peça, se
haviam dado precisamente em alternância com mi menor tônica, nos cp. 20-26 (Ex. 45, abaixo),
deve-se observar, ainda assim, que, mesmo nesses compassos iniciais, o dó menor assumira
paradoxalmente também um caráter de dominante, posto que não apenas sua terça equivalia
enarmonicamente à sensível (ré#) de mi, como a condução melódica da passagem valorizara tal
propriedade. Ainda outras interpretações funcionais dos acordes em questão hão de ser possíveis
(ver p. 78, acima, em que elencáramos, sob forma de perguntas, algumas dentre estas), sem que
sejam necessariamente excludentes entre si.

Ex. 45: Liszt: Polonaise No 1, S. 519, cp. 20-26.

Tal como é inerente à concepção de emancipação aqui proposta, entendemos que todo tipo
de desvio seja potencialmente sujeito a um processo emancipatório rumo a seu estabelecimento
enquanto um procedimento por si mesmo, capaz de produzir acordes, progressões, passagens etc.
independentemente de uma funcionalidade a priori. O princípio de construção de acordes por
sobreposição de terças, já mencionado por Dahlhaus, e seu processo de emancipação oferecem-nos
exemplificação alternativa aos casos acima examinados da alteração cromática ou do cromatismo
linear.
Ainda que a tríade, tal como modernamente concebida, se tenha originado antes por
contraponto, enquanto única – uma vez reconhecida a relação de inversão, introduzida no início do
séc. XVII por Harnisch [1608] e Lippius [ca. 1610-2] 21 – formação sincrônica com três notas
distintas em que todas estas fossem consonantes entre si (ao menos, conforme os critérios de
contraponto do séc. XVI); e que a dominante com sétima se tenha originado, como já colocado, por
meio da absorção, em sua constituição morfológica, da nota de passagem responsável por seu
melhor encadeamento com o acorde subsequente nas fórmulas cadenciais convencionais; ainda
assim, Rameau, em seu Tratado de Harmonia (1722), explica o “acorde perfeito” (i. e., a tríade)
como resultante da divisão da quinta em duas terças e o acorde de sétima, dissonante, como
resultante da adição (operação de desvio), sobre o acorde perfeito, de uma terça suplementar (op.
cit., livro 3, cap. 6, art. 1, p. 192). Em conformidade com nosso modelo, uma emancipação do
21
Cf. Lester: 1992, pp. 96-100.

82
acorde de sétima implicaria consigo na emancipação também do desvio que lhe é inerente e, se tal
desvio é eventualmente (como em Rameau) entendido como o empilhamento de um novo intervalo
de terça à tríade, então sua emancipação, em uma primeira fase, há de se manifestar por meio da
extensão e generalização de tal empilhamento: trata-se precisamente do princípio de “harmonia por
sobreposição de terças” a que se referira Dahlhaus, donde se compreende sua “tendência inata a
expandir-se”.
Exemplos de tal extensão abundam já no início do séc. XVIII: afora os inúmeros casos de
tétrades diminutas, também dominantes que portem sétima e nona bemol sobre a efetiva ocorrência
de suas fundamentais são encontradas com relativa frequência, sobretudo em passagens com baixo
pedal – como, e. g., no Prelúdio no 6 do Cravo Bem-Temperado I (1722), ou na introdução à Paixão
de São Mateus (1727). No Tratado de Harmonia, Rameau especula ainda a respeito de acordes de
nona e décima primeira produzidos pela adição de terças suplementares sob o baixo de acordes de
sétima (“acordes por subposição”; ver op. cit., livro 2, cap. 10, pp. 73-7), oferecendo exemplos por
meio do encadeamento reproduzido abaixo (Ex. 12, adaptado de Rameau: op. cit., p. 75).

Ex. 46: in Rameau: 1722, p. 75.

Os acordes apresentados em tal encadeamento, deve-se notar, não são mero produto de
especulação teórica, nem se restringem a Rameau, e mesmo o acorde ocorrido sobre a cabeça do cp.
3 (fá-lá-dó#-mi-sol) – para apenas um exemplo – é, embora raro, ocasionalmente encontrado em
Bach. No cp. 36 da Fantasia Cromática e Fuga, BWV 903 (ca. 1720), ainda que o acorde dó-mi-
sol#-si-ré (ver Ex. 29a, p. 60, acima) fosse interpretável como resultante de retardos – enquanto um
lá menor ainda sem fundamental, com todas as notas de sua dominante individual sobre ele
prolongados –, sua disposição peculiar põe em evidência uma construção por empilhamento de
terças. Na Fuga do BWV 998 (1735), por sua vez, temos um exemplo bastante mais próximo

83
daquele de Rameau: o si bemol-ré-fá#-lá-dó do cp. 48 (Ex. 47) parece de fato interpretável como
um ré dominante, com acréscimo de uma terça sob sua fundamental. Sua ambiguidade funcional,
contudo, é notável, posto que, se por um lado ele atua como dominante do acorde seguinte (também
ambíguo, entre sol menor e mi bemol), por outro ele parece introduzido como um acorde de si
bemol, propriamente, resolução do fá dominante que o precede.

Ex. 47: Bach: BWV 998, Fuga, cp. 48-49.

Levado ao limite, o empilhamento de terças deixa de ser mera operação de desvio, de


acréscimo de notas dissonantes a tríades ou acordes de dominante, para engendrar acordes em que
múltiplas dentre suas notas constituintes poderiam ser assumidas como fundamentais de alguma
tríade empilhada sobre outras tríades: obscurecem-se quaisquer distinções entre uma origem (ou
suposta origem) triádica e as supostas notas desviadas de tal origem, reduzindo-se a relevância de
tal distinção, de modo que – a exemplo do que observáramos com relação ao cromatismo – o
procedimento em si de empilhamento parece assumir primazia, em tais casos-limite, com relação à
funcionalidade que possa vir a ser assumida pelos acordes engendrados. Os acordes iniciais de Ossa
arida, S. 55 (1879) de Liszt, ou da introdução ao recitativo de barítono da Sinfonia no 9, Op. 125
(1822-4) de Beethoven, oferecem-nos exemplos.

Ex. 48: Liszt: Ossa arida, cp. 3-10.

Há, contudo, ainda uma segunda via pela qual o princípio de empilhamento se emancipa
rumo a seu estabelecimento como um procedimento por si mesmo, a qual tende a uma dissociação
mais radical com relação a uma morfologia triádica de base: que tal princípio se generalize para

84
outros intervalos que não apenas a terça. Em um primeiro momento, há de se notar que alguns
acordes relativamente convencionais na tradição tonal podem manifestar fortuitamente uma certa
regularidade intervalar em suas constituições morfológicas: as notas constituintes de dominantes
com sétima e suspensão de quarta, e. g., são potencialmente relacionáveis entre si por quartas ou
quintas sucessivas; em dominantes com sétima e nona em que se omita a quinta, por sua vez, ou em
certos acordes com retardos, suas notas constituintes são potencialmente relacionáveis por segundas
ou sétimas – e, por meio de uma disposição privilegiada das vozes, tais propriedades podem ser
postas em evidência (Ex. 49).

Ex. 49: (a) Bach: Prelúdio no 1, BWV 846, cp. 26; (b) Haydn: Sonata, Hob. XVI/20, cp. 25-6; (c) Beethoven, Sinfonia
no 6, “Szene am Bach” (mov. II), cp. 126-7, madeiras (clarineta em Bb).

Em um segundo momento (correspondente ao que entendemos como uma primeira fase do


processo emancipatório de uma dissonância), tais regularidades intervalares parecem mesmo
motivar a introdução de dissonâncias em certos acordes. O primeiro movimento da Sonata no 2, Op.
35 (1839) de Chopin, oferece-nos múltiplos exemplos: em seu desenvolvimento, parcialmente
reproduzido abaixo (Ex. 50a), vemos dominantes com sétima e quinta aumentada ou sexta bemol,
ou com quarta e quinta aumentadas, e. g., formarem internamente cadeias de tons inteiros; também
abundante na peça e presente em todos os principais pontos de articulação formal (introdução,
passagem da primeira à segunda tonalidades estabelecidas, fim da exposição etc.), o comumente
designado “acorde de Chopin”, por sua vez – uma dominante com sétima e décima-terceira –, por
conta da disposição em que é mais frequentemente empregado e da omissão sistemática de sua
quinta, apresenta virtualmente uma constituição por quartas sobrepostas (Ex. 50b) – tal

85
característica é notada por Peter Sabbagh (2001, p. 41), ao compreender tal acorde como uma
espécie de protótipo [fore-form] do acorde de Prometheus, de Scriabin (ver id., pp. 16 ff.).

Ex. 50: Chopin: Sonata no 2, (a) cp. 117-122; (b) cp. 103-104.

Um terceiro momento, finalmente, da generalização do princípio de empilhamento a outros


intervalos (que não a terça) corresponde propriamente à sua emancipação enquanto procedimento
composicional: que certos acordes não apenas contenham em si fortuitas regularidades intervalares,
ou desvios de uma origem triádica destinados a uma exacerbação de tais regularidades, mas que
sejam antes engendrados pelo próprio empilhamento de algum dentre tais intervalos (ou tipos de
intervalos). Em Le Fils des étoiles (1891), de Satie, e. g., encontramos uma longa e consistente
sucessão de acordes quartais [Quartenakkorde] de seis notas (Ex. 51a); a Sinfonia de Câmara No 1,
Op. 9 (1906) de Schoenberg, por sua vez, não apenas se inicia pela formação gradual de um tal
acorde por quartas sobrepostas, como o encadeia (cromaticamente) a outro constituído por cinco
notas relacionáveis entre si por tons inteiros (Ex. 51b); no célebre exemplo de Voiles (1909), de
Debussy, a primazia das relações de tons inteiros se faz explicita pelo uso quase exclusivo da escala
de tons inteiros na maior parte da obra (Ex. 51c).

86
Ex. 51: (a) Satie, Le Fils des étoiles, cp. 28-31; (b) Schoenberg, Sinfonia de Câmara No 1, cp. 1-4; (c) Debussy, Voiles,
cp. 15-16.

Mesmo com relação a sobreposições de segundas menores e intervalos derivados destas


(sétima maior, nona menor etc.) é possível observar um processo emancipatório semelhante àquele
referente ao empilhamento de quartas e segundas. Já em Mozart, ainda que de passagem, parece
haver um interesse em gerar acordes que portem internamente grupos de até três notas relacionadas
cromaticamente entre si: na Sonata no 17, K. 570 (1789), em Si bemol maior, o último acorde a ser
atacado antes da reexposição do primeiro tema, um fá dominante (cp. 130, Ex. 52a, abaixo), é
atacado não apenas com a sétima convencional, mas também com a sensível de sua fundamental,
formando internamente, virtualmente, uma cadeia mi bemol-mi-fá; semelhantemente, no Allegro da
Sinfonia no 40 (1788), o primeiro tema fora reintroduzido junto a uma dominante germânica sobre
lá, sem fundamental e sobreposta a um ré pedal (dominante da Haupttonart), de modo a formar
brevemente um acorde com dó#, ré e mi bemol (cp. 164, Ex. 52b).

87
Ex. 52: Mozart: (a) Sonata no 17, cp. 130-132; (b) Sinfonia no 40, cp. 164-166.

Tais dominantes germânicas com baixo na fundamental do acorde em que tendem


normalmente a resolver ocorrem de maneira mais estável em Chopin: na Barcarolle, Op. 60 (1846),
após algumas passagens em que se insiste sobre um tal acorde (cp. 48-49 e 59-60; Ex. 53a, abaixo),
seu cromatismo interno é surpreendentemente exacerbado no cp. 110, em que se atacam apenas a
terça e a quinta rebaixada de uma dominante germânica de fá#, com baixo no próprio fá#,
formando-se, na cabeça do compasso, o agregado fá#-mi#-sol (Ex. 53b); na Polonaise-Fantaisie,
Op. 61, também de 1846, o mesmo acorde é enunciado em sua forma completa, no cp. 145 (Ex.
53c).

Ex. 53: Chopin: (a) Barcarolle, cp. 48-49; (b) Barcarolle, cp. 110; (c) Polonaise-Fantaisie, cp. 145.

Grieg, por sua vez, ao escrever partes de piano adicionais para alguns obras de Mozart, entre
1876 e 1877, parece reconhecer o interesse deste por acordes internamente cromáticos, ao produzir
passagens em que tal tendência seja extremada. Sobre o cp. 5 da Sonata no 15 de Mozart (1788), e.
g., em que ocorria a inusitada formação fá-si bemol-fá#, parte de um dó dominante alterado – em
que fá# seria uma sensível de sua quinta (sol) e fá, a tônica, ocorre como baixo-pedal –, Grieg

88
acrescenta as notas faltantes dessa dominante, vindo a formar um acorde com mi, fá e fá# (Ex. 54a).
Em exemplo mais extremo, sobre o cp. 2 da Fantasia em Dó menor (1785), em que originalmente
ocorria um si natural dobrado em três oitavas distintas, Grieg acrescenta um baixo-pedal na tônica
dó, bem como uma cromatização da quinta (dó#-ré) da dominante originalmente subentendida,
formando, sobre a cabeça do referido compasso, um agregado dó-si-dó# (Ex. 54b). É interessante
notar que, ainda que extremamente cromática, tal formação cordal é ainda identificável como fruto
de desvios – cromatização e acréscimo de baixo-pedal, afora a omissão da fundamental – de um
acorde funcional, o que se explicita pela própria comparação com o original de Mozart,
integralmente presente e inalterado no piano I.

Ex. 54: Mozart/Grieg: (a) Sonata no 15, K. 533/EG113, cp. 4-5; (b) Fantasia em Dó menor, K. 475/EG113, cp. 1-2.

Em Salome, op. 54 (1905) de Strauss, por fim, o procedimento parece se estender em um


acorde dificilmente interpretável como de partida funcional (cf. pp. 100 ff., adiante, em que
propomos uma interpretação funcional a posteriori para tal acorde): a formação cordal dó#-mi-fá##-
sol#-lá#-lá (Ex. 55a, abaixo), afora conter internamente um grupo de quatro notas relacionáveis
entre si por semitons (fá##-sol#-lá-lá#), é repetidamente sustentada ao longo do recitativo final
(“Ich habe deinen Mund geküsst”) sem nunca encadear-se a qualquer outro acorde e, portanto, sem
nunca ser diretamente resolvida; sua disposição predominantemente grave e o ataque de tam-tam
que frequentemente o acompanha (já mencionado acima, p. 69, item 4) valorizam ainda a
rugosidade inerente a seu cromatismo interno, em detrimento da clareza aural de sua constituição
harmônica específica. O acorde é, mais do que fruto de mero empilhamento de segundas menores,
uma enunciação sincrônica do Leitmotiv associado à protagonista Salomé (sol#-lá-fá##-dó#-mi-dó#,
Ex. 55b), acrescido do lá#, presente no trinado (lá-si bemol) que atravessa todo o recitativo final e,
sobretudo, responsável por estender tanto a cadeia cromática interna ao acorde, como uma cadeia de
terças menores latente no motivo de origem, vindo a formar a tétrade diminuta fá##-lá#-dó#-mi.

89
Ex. 55: Strauss: Salome: (a) número 355 de ensaio, início; (b) Leitmotiv de Salomé, cp. 2-3.

Como vemos pelos vários exemplos acima examinados, se compreendemos o dissonante


como produto e, portanto, portador de uma dissonância, de uma operação de desvio que o produzira,
compreendemos também como seu processo de emancipação – a emancipação de um acorde, de
uma progressão, região etc. – tende a portar consigo a emancipação das próprias operações de
desvio, rumo ao estabelecimento destas enquanto procedimentos composicionais por si mesmos,
potencialmente independentes da funcionalidade tonal: a emancipação dos acordes de sexta
aumentada, e. g., ou das progressões de mediantes cromáticas, porta potencialmente consigo a
emancipação das cromatizações, das progressões cromáticas e, em última instância, do cromatismo
linear como um procedimento composicional por si mesmo; a emancipação de acordes de sétima e
nona, ou de sétima e suspensão de quarta etc., portam potencialmente a emancipação do próprio
empilhamento enquanto procedimento (e o fato de haver exemplos de acordes gerados por
empilhamento de virtualmente todos os tipos de intervalos atesta uma independência de tal
procedimento com relação a qualquer intervalo específico).
A todo procedimento composicional que, coexistindo com a tonalidade funcional, seja
operado, a princípio, de maneira independente à funcionalidade tonal e que tenda, assim, a produzir
desvios das morfologias e relações convencionais à tonalidade – i. e., a todo desvio que se dê no
nível do próprio processo composicional – denominaremos ‘dissonância processual’.
A presença de dissonâncias processuais não é, de modo algum, exclusiva à música do séc.
XIX, ou início do séc. XX. Em Bach, ou em compositores luteranos, de modo geral, temos
frequente exemplo de dissonância processual na harmonização de hinos do séc. XVI, sobretudo no

90
caso de hinos compostos em modos que não portassem sensível – em Mit Fried und Freud…, BWV
125 (1725), e. g., sobre hino homônimo de Lutero (1524) no modo I, é interessante observar o
intenso jogo de modulações (em sentido amplo) desencadeado por uma harmonização funcional de
frases que contivessem o VI ou VII graus dóricos da Haupttonart. O que parece, contudo, peculiar à
tonalidade do séc. XIX é que, uma vez que se lhe tenham tornado inerentes dissonâncias
processuais produzidas no seio da própria tonalidade funcional, estas parecem manifestar-se de
maneira progressivamente mais intensa – posto serem, frequentemente, objeto de interesse dos
compositores – e, sobretudo, ubíqua, posto que, sendo atreladas, por suas origens, a uma
diversidade de dissonantes emancipados – estes mesmos, ubíquos –, parecem impregnadas já na
simples ocorrência destes. Com Schoenberg e Webern, entre 1908 e 1909, o cerne de seus interesses
composicionais teria sido finalmente deslocado da lógica funcional da tonalidade para toda uma
“nova forma de ordem” (Schoenberg: 2001[1911], p. 226) em emergência, para as “[novas] leis
escondidas [geheime Gesetze] que estariam atreladas às doze notas” (Webern: 1960[1932], pp. 54-5;
id. [1933], p. 41).

91
II. 5. Abandono ou renúncia à tonalidade

O processo histórico acima examinado, de extensão da tonalidade funcional rumo à sua


renúncia ou abandono, porta consigo um interessante paradoxo – no qual está implicada a própria
opção por se falar, com relação ao passo dado por Schoenberg e discípulos, em ‘renúncia’ ou
‘abandono’ da tonalidade. Por um lado, tal processo pode ser entendido como um acúmulo histórico
de relações tonais progressivamente mais diluídas, menos efetivas em termos funcionais
(modulações para regiões remotas, acordes errantes ou de origem não-triádica, progressões
motivadas antes por cromatismo linear do que por relações funcionais etc.). Por outro, esse mesmo
processo pode ser compreendido como uma expansão da tonalidade funcional, vindo a incorporar,
sob sua égide, essas mesmas relações; vindo a tornar progressivamente mais integrados a si
morfologias e procedimentos que lhe eram antes estranhos.
Schoenberg, ainda que com uma curiosa metáfora, belicosa e prosopopéica, não apenas
expressa tal paradoxo em seu Tratado..., como demonstra compreendê-lo como inerente, se não à
tonalidade per se, ao menos a uma abordagem “artística” a esta:

(…) se deve surgir vida, se deve nascer uma obra de arte, então há que interessar-se por esse
conflito gerador de movimento. A tonalidade [Tonalität] tem que romper com o perigo de
perder sua soberania, dar uma oportunidade aos desejos de independência e possibilitar que
atuem as aspirações de rebelião, deixá-los obter vitórias, conceder-lhes eventualmente o
alargamento de suas fronteiras, pois um dominador apenas sente prazer dominando os vivos;
e os vivos querem a rapina.
Desse modo, originam-se talvez os esforços revolucionários dos subordinados, tanto de suas
próprias inclinações como da necessidade de dominação do tirano; esta não se satisfaz sem
aquelas. (…)
Mesmo o aparente completo abandono [Verlassen] da tonalidade [Tonalität] revela-se um
recurso para tornar mais esplêndida a vitória do som fundamental [Grundton, i. e., a tônica]
(2001[1911], pp. 224-5).

E pouco adiante, segue:

(…) as digressões não têm limite, se é que o poder da tonalidade é ilimitado. Existissem
fronteiras para esse poder, de nada serviria reprimir as tendências dos sons secundários [i. e.,
que não a tônica]; romperiam, de qualquer forma, todas as amarras, pois não possuem
limites. Logo, poderíamos perguntar: a tonalidade é forte o bastante para dominar a todos?
Sim e não [beides] (…) (id. ibid.).

Se, por um lado, Schoenberg entende a tonalidade como “dispensável” (ver, e. g., op. cit., p.
226; 1975[1926], p. 262; 1934, pp. 175 ff.); se Schoenberg fala, perante uma tonalidade ‘diluída’,
na necessidade de “renúncia a um centro tonal” (1950[1941/1948], p. 105) e de “evitar” a mera
sugestão de uma tônica e “mesmo uma ligeira reminiscência da antiga harmonia tonal” (id., p. 108);
mas, por outro, não apenas compreende que não haja “nenhuma outra diferença que não seja
gradual entre a tonalidade de ontem e a tonalidade de hoje [i. e., a dita ‘atonalidade’]” (1934, p. 184,

92
grifo do autor), ou que sua escola composicional “não exclui totalmente” o “estabelecimento de
uma tonalidade” (2004[1948], p. 216), como chega a apontar para que haja uma funcionalidade a
ser, a posteriori, descoberta em suas composições desse período22 (id., p. 217); se há, em suma,
contradições (ou aparentes contradições) nos escritos de Schoenberg a respeito de seu passo rumo à
dita “atonalidade”, tais contradições se fazem possivelmente compreensíveis por meio do
supracitado paradoxo, aqui entendido como inerente ao desenvolvimento histórico da tonalidade
funcional.
Podemos entender que haja, grosso modo, dois fatores motivadores de uma renúncia ou
abandono da tonalidade funcional em Schoenberg. Um primeiro, de cunho negativo, se dá em face à
constatação, por parte do compositor, de uma ‘diluição’ das relações funcionais, de uma menor
eficácia destas em boa parte da música escrita desde Wagner (ver 1975[1926], p. 258), de uma
menor participação, em tais obras, de suas supostas tônicas em suas elaborações formais (cf. id., pp.
261-2). Para Schoenberg, o emprego de uma tônica sem implicações formais se reduz a uma
questão de “estilo”, de “gosto” (id. ibid.); é, em suas palavras, “enganoso se não estiver baseado em
toda a relação da tonalidade” (1950[1941/1948], p. 108) e faz-se dispensável se não “brotar de uma
necessidade construtiva” (ver 2001[1911], pp. 70-1). Por essa via, pode-se entender que haja, de
fato, uma renúncia à tonalidade na maior parte de suas obras escritas a partir de 1909.
Um segundo motivo, de cunho positivo, se dá por sua vez em face à constatação da
progressiva emergência, em obras da tradição tonal, de elementos contraditórios às próprias bases
do que se tenha entendido por um “sistema tonal” (o que se examinou ao longo de toda esta segunda
parte do trabalho): bases escalares não-diatônicas (como a escala de tons inteiros; ver Schoenberg:
2001[1911], pp. 537 ff.), os acordes de origem não-triádica (como os acordes quartais; id., pp. 549
ff.), sucessões não-funcionais – ou, ao menos, não aprioristicamente funcionais – de acordes (id., pp.
226 e 529; 1975[1926], p. 260; 1934, p. 181; 1950[1941/1948], pp. 103-4; 2004[1948], pp. 19 e
187-8) etc. Já no Tratado de Harmonia, Schoenberg expressa tanto uma compreensão de que: (a) a
supressão [Wegfallen] dos vínculos estabelecidos pela tonalidade “favorece (…) o funcionamento
autônomo de outros vínculos”, o estabelecimento de “uma nova forma de ordem” (op. cit., p. 226),
como de que; (b) quando da composição das primeiras obras ditas “atonais” entre 1908 e 1909, bem
como da redação (iniciada, se não antes, em 1910) do Tratado..., o processo histórico de
emancipação de diversos dissonantes (acordes, progressões, tonalidades secundárias) e
dissonâncias (o cromatismo linear, a sobreposição de acordes, a construção de acordes pela
verticalização de material melódico) teria tornado possível que virtualmente qualquer acorde, ainda
que a posteriori, viesse a ser remetido a alguma suposta origem triádica – com alterações

22
“Haverá um dia em que uma teoria irá abstrair regras a partir destas composições [dodecafônicas]. Certamente, a
análise estrutural destas sonoridades estará novamente ancorada em suas potencialidades funcionais” (Schoenberg:
2004[1948], p. 217, trad. Eduardo Seincman; cf. 1954[1948], pp. 194-5).

93
cromáticas, empilhamento de terças, incorporação de notas originalmente ornamentais,
sobreposições a baixos-pedais ou a outros acordes etc. – e que virtualmente qualquer tríade viesse a
ser relacionável a qualquer Tonart (ver op. cit. [1922], p. 532).
Assim, ainda no Tratado…, Schoenberg demonstra, e. g., como o acorde de onze notas
reproduzido abaixo (Ex. 56) e extraído de Erwartung (1909) poderia ser reportado (a posteriori) a
“formas anteriores” mais comuns à tonalidade funcional (op. cit., pp. 574-5; cf. 1922, pp. 502-3): o
primeiro grupo de seis notas tratar-se-ia de uma tétrade diminuta acrescida de suspensões não-
resolvidas (Ex. 57a); o segundo, proveria as fundamentais (fá# e dó) de duas das dominantes que
poderiam vir assumir a forma de tais tétrades diminutas, acrescentando uma suspensão de quarta
comumente associada à segunda dessas fundamentais possíveis (Ex. 57b); embora Schoenberg não
prossiga em sua análise, os últimos dois pares de notas (respectivamente, si-ré# e lá-ré) poderiam
vir a ser entendidos como representativos de resoluções possíveis (si maior, com uma cadência
perfeita a partir de fá# dominante; ré maior, com uma cadência deceptiva) de tal tétrade diminuta
inicial.

Ex. 56: in Schoenberg: 1922, p. 502.

Ex. 57: adaptado de Schoenberg: 1922, p. 503.

Por meio também da incorporação de suspensões, conduções cromáticas, sobreposições e


baixos-pedal, Schoenberg, pouco antes, apontara, com demonstração composicional (Ex. 58b),
como o acorde de oito notas reproduzido abaixo (Ex. 58a), “quase poderia ocorrer em Bach” (id., pp.
510-1; cf. 1922, p. 442-3).

94
Ex. 58: adaptado de Schoenberg: 1922, p. 443.

Acrescentando-se aí a concepção de que toda tonalidade que não a Haupttonart possa ser
compreendida como uma “região” desta – i. e., a ideia de monotonalidade, vagamente esboçada no
Tratado… (p. 226) e ulteriormente desenvolvida em Funções Estruturais… (pp. 37 ff., 49 ff., 73 e
79 ff.) –, faz-se possível entender que o argumento de Schoenberg de que toda relação entre notas
musicais seja, por definição, “tonal” (2001[1921], pp. 558-60, n.) não se limite a uma dimensão
etimológica – embora o autor o defenda nesses termos –, mas esteja também fundado, mesmo que
implicitamente, na compreensão de uma tal expansão da tonalidade funcional que tenha tornado
virtualmente qualquer elemento harmônico que cumpra com seus mínimos requisitos acústicos (de
qualidade espectral e de afinação) como passível de ser interpretado, ainda que a posteriori, sob
uma ótica tonal-funcional. Por essa via, compreende-se como que evitar o estabelecimento de
centros tonais possa não implicar, para Schoenberg, em uma “total exclusão da tonalidade”; ou
como Webern possa, em 1933, afirmar uma convicção de que mesmo em sua música ou na de
Schoenberg de então – escritas por procedimentos tipicamente dodecafônicos – devesse haver uma
tônica presente, ainda que esta não mais os interessasse (1963[1933], p. 39): não mais se interessar
pelo estabelecimento de uma centralidade tonal e mesmo evitá-lo, assumir radicalmente outras
abordagens à harmonia, ora empíricas e heurísticas, ora por meio de procedimentos composicionais
formalizados, significa, diante de uma tonalidade estendida a tal ponto, abandoná-la à sua própria
capacidade, historicamente adquirida, de pôr em relação, em seus termos, aquilo que já se relaciona,
no ato da composição, por lógicas que lhe seriam – não fosse tal capacidade da tonalidade funcional
de abarcá-las – estranhas.
De volta ao Op. 11, no 1 (cf. pp. 58-9, acima), interpretar tal peça como estando em uma
tonalidade [Tonart] unívoca, como sendo simplesmente “tonal”, nos mesmos termos em que
comumente se entendem Corelli, Beethoven ou Brahms, apenas atestaria a indesejada (por parte de
Schoenberg) presença de uma tônica com pouca participação na construção formal da obra;
identificar, contudo, uma outra ordem – como a relativa eficácia da aplicação de teoria de conjuntos
de pitch classes em sua análise – na construção da obra não exclui a possibilidade de que haja nesta
relações funcionais latentes (não necessariamente em torno de uma centralidade única ou unívoca),

95
nem de que estas possam ou pudessem participar, de algum modo, do próprio delineamento formal
da obra, em interação com outras relações harmônicas não aprioristicamente funcionais. Em ambos
os casos, são assumidos como parâmetros para a abordagem à obra modelos teóricos em alguma
medida pertinentes a esta, mas ignora-se o próprio repertório, o próprio processo histórico em que
Schoenberg se entende como fundado, o dinamismo histórico da tonalidade funcional como
também um parâmetro possível. (Em relativa consonância com nosso trabalho, Phipps, em artigo de
1984, questiona também a separação teórica entre a tonalidade [tonality] e a dita “atonalidade”,
fundamentando tal questionamento em uma concepção da primeira como “uma linguagem que se
desenvolveu para incorporar diversas novas possibilidades junto a sentidos mais antigos, oriundos
de seu passado musical”; op. cit., pp. 37-8.)
Por um lado, se uma análise do Op. 11, n o 1 por teoria de conjuntos é capaz de relacionar
boa parte do material harmônico de certas passagens a um mesmo dado agregado intervalar, isso se
dá: em parte, pelo próprio método de análise, por vezes arbitrário e tautológico, ao segmentar e
agrupar o material harmônico de tais passagens em função, precisamente, de suas semelhanças
intervalares – ora separando notas que ocorram em sincronia, ou que estivessem fraseologicamente
agrupadas, ora agrupando segmentos de acordes a segmentos de frases melódicas etc. (cf. Ex. 27, p.
58, acima) –; em parte – e isto sim há de concernir à prática composicional em questão –, pela já
mencionada concepção estendida de motivo em Schoenberg, a qual abarca também acordes, e não
apenas unidades melódicas. Notando-se que, (a) na ulterior prática dodecafônica, um de seus
princípios técnicos vem a ser precisamente a ambivalência da série e de segmentos desta para
formar tanto melodias, como acordes (ver Schoenberg: 1950[1941/1948], pp. 109 e 116 ff.); (b) que
Schoenberg, em Funções Estruturais… (p. 217), aponta para uma construção “melódica” – “mais
sucessiva que simultânea” – de seus acordes já em obras como o Pierrot Lunaire (1912) e Die
glückliche Hand (1913) e; (c) que, em obras suas e de seus discípulos, contemporâneas ou
anteriores ao Op. 11 – como sua Sinfonia de Câmara no 1 (1906), ou a Sonata, Op. 1 (1909) de
Berg (Ex. 59a e b) –, bem como na própria obra em questão (Ex. 59c), encontramos passagens em
que motivos melódicos proeminentes são acompanhados por acordes de mesma constituição
intervalar; faz-se razoável cogitar que diversos dos agregados harmônicos presentes na obra em
questão, cujas respectivas constituições intervalares sejam semelhantes àquelas dos principais
motivos melódicos da obra, sejam de fato derivados destes.

96
Ex. 59: (a) Schoenberg: Sinfonia de Câmara no 1, número 78 de ensaio. Adaptado de Leibowitz: 1949, p. 37; (b) Berg:
Sonata, Op. 1, cp. 8-9; (c) Schoenberg: Op. 11, no 1, cp. 34-5.

Por sua vez, abordagens ao Op. 11 – ou, de modo geral, a obras posteriores de Schoenberg e
seus discípulos – que visem a identificação, na peça, de relações funcionais hão de lidar com alguns
problemas colocados pela obra e pela prática composicional de Schoenberg de então.
Primeiramente, (1) que a reiterada necessidade de ‘renúncia’ à tonalidade, por parte de Schoenberg,
pudesse implicar em decisões composicionais que visassem, precisamente, o obscurecimento ou a
diluição de possíveis centralidades tonais e relações funcionais. Também perante tal ‘renúncia’ à
tonalidade, (2) que o processo composicional da obra se pudesse dar, em boa parte, por meio de
procedimentos fundados em lógicas alternativas à funcionalidade tonal e que fossem operados de
maneira independente a uma elaboração funcional prévia – i. e., aquilo que, sob uma perspectiva
funcional, denominei, pouco acima, ‘dissonância processual’ e de que a supracitada construção de
acordes por disposição vertical de material melódico é exemplo possível –; que, portanto, diversas
das relações funcionais identificadas na peça possam ser assumidas apenas a posteriori. Em terceiro
lugar, (3) que a obra seja passível de interpretação em diferentes tonalidades [Tonarten] – de fato,
Straus (2005, p. 166) aponta para análises do Op. 11, n o 1 tanto em Sol (a exemplo de Ogdon e
Leichtentritt, citados acima), como em Mi (Brinkmann: 1969) e Fa# dominante, ou uma espécie de
Si implícito (Benjamin: 1984) –, o que, em nossa compreensão, não exclui a possibilidade
(aparentemente simpática ao ideal schoenberguiano de “pantonalidade”) de que tais centralidades
coexistam e interajam (ver Cap. III. 2, pp. 122 ff., adiante). Por fim, (4) que poucos acordes no Op.
11 (ou demais obras de Schoenberg à época) serão sequer identificáveis de maneira unívoca com
qualquer dada tríade; que, assim, a exemplo dos acordes errantes (ver pp. 49 ff., acima), as
possíveis fundamentais de tais acordes permaneçam latentes até que haja resolução de tais acordes,
ou das notas que os desviem de suas supostas matrizes triádicas e; que, fundado em sua tese da

97
“emancipação da dissonância”, Schoenberg deliberadamente não resolva a maior parte das notas e
acordes que uma abordagem funcional deva assumir como dissonantes. Devemos, contudo, ressaltar
que alguns dos problemas ora elencados já se faziam presentes em obras anteriores ao Op. 11 e mais
claramente inseridas em uma tradição tonal-funcional, como o atestam alguns dos exemplos já
examinados em nossa exposição.
Primeiramente, quanto à possibilidade de interação entre funcionalidade tonal e lógicas
alternativas a esta, não apenas demonstramos no Cap. II. 4. 4, pouco acima, como procedimentos
fundados em tais lógicas alternativas podem ser, com frequência, encontrados em obras comumente
entendidas como tonais, como, em alguns dos casos examinados, demonstramos também como os
produtos de tais procedimentos poderiam, ainda assim, ser interpretados funcionalmente (ainda que
não-univocamente e a posteriori), ou, mais simplesmente, integrar-se aos contextos funcionais das
obras em questão. Ademais, dentre os casos abordados, devemos ressaltar que alguns envolviam,
precisamente, a constituição de acordes por meio de elaboração motívica, semelhantemente,
portanto, ao que comumente se encontra em Schoenberg: víramos, e. g., como Mozart, no Allegro
da Sinfonia no 40, produzira um acorde não aprioristicamente funcional por meio da sobreposição
de distintas formas do motivo principal da obra direcionando-se, encadeadas, à dominante da
Haupttonart (p. 78, acima, Ex. 41) – e cabe observar que Schoenberg aborda tal acorde no
Tratado… (pp. 455 e 510) –; como o acorde de Tristão, em Wagner, ao assumir caráter motívico,
vem a ser empregado (transposto e invertido) também em um encadeamento dificilmente
interpretável como aprioristicamente funcional; como, se em Tristão… esse mesmo acorde se
desdobrara eventualmente em um motivo melódico (sobretudo no motivo orquestral do “Lausch’,
Geliebter!”, ato II), em Salome, de Strauss, inversamente – e em procedimento bastante mais
próximo ao que ora se observa em Schoenberg –, as notas constituintes do Leitmotiv associado à
protagonista vêm a dispor-se verticalmente, no recitativo final, para constituir um acorde também,
por si mesmo, dificilmente interpretável como sequer originado de uma tríade. Em todos e cada um
dos casos, conforme já colocado, devemos observar que os acordes em questão vêm a integrar-se a
um contexto funcional, ainda que suas respectivas funcionalidades (não necessariamente unívocas)
possam ser entendidas como assumidas apenas a posteriori – o acorde do cp. 10 do Prelúdio de
Tristão… (bem como suas possíveis funções) foi já discutido acima (pp. 75-6, acima) e o acorde de
Strauss será discutido pouco adiante (pp. 100-4).
Quanto à dificuldade em interpretar as distintas relações funcionais identificáveis na obra
como integradas sob a égide de uma única centralidade tonal; ou à possibilidade de que diversos
acordes e passagens – e, em última instância, a obra, em sua totalidade – sejam igualmente passíveis
de interpretação em mais de uma tonalidade [Tonart], devemos lembrar que, afora tais propriedades
serem, ao menos localmente, bastante comuns em boa parte do repertório de tradição tonal – como

98
atestam, de modo geral, os acordes errantes, ou as passagens modulatórias (em que parte de suas
progressões harmônicas tende a ser interpretável tanto em função da Tonart de origem, como da
Tonart por vir) –, há, no processo de extensão da tonalidade, também uma tendência à
intensificação e à amplificação estrutural das ambiguidades concernentes à centralidade das obras.
Assim, tomando-se uma vez mais por exemplo o Prelúdio de Tristão…, já em 1904 (anteriormente,
portanto à escrita do Op. 11 de Schoenberg), Guido Adler comentara como a obra não deveria ser
entendida como relacionada a uma única tônica, mas a “Lá menor e Dó maior e menor” (op. cit., p.
274); Wagner, ele mesmo, concluíra em tonalidades distintas as versões para encenação (Dó menor)
e para concerto (Lá maior); e Bailey, em sua edição crítica da obra (1985), comenta como Wagner
emparelha as tonalidades de Lá (menor e maior) e Dó (maior e menor) de tal modo a estabelecer,
em larga-escala, “um complexo de dupla-tônica” (op. cit., pp. 121). Na Sonata, Op. 1 de Berg, por
sua vez, embora as respectivas cadências ao fim da primeira frase (cp. 2-3) e da peça (cp. 173-8)
afirmem enfaticamente si menor como uma tônica para a obra, é notável que seus compassos
iniciais (como o demonstra o Ex. 60, abaixo) sejam igualmente interpretáveis – sem que a
identificação de uma destas tonalidades possíveis demande recursos analíticos muito mais
sofisticados do que a outra – em Si menor e em Dó menor, a despeito de que tais tonalidades se
conectem apenas remotamente.

Ex. 60: Berg: Sonata, Op. 1, cp. 1-3.

Finalmente, se entendemos que: afora o argumento acústico para a “emancipação da


dissonância”, Schoenberg justifica tal tese, conforme já observado (pp. 63-4, acima, item 5), com
base nos respectivos processos históricos pelos quais distintos acordes dissonantes (como os
acordes com sétima, sétima diminuta, tríades aumentadas etc.) passaram a prescindir de preparação
e de resolução imediata; então, podemos tanto (a) lembrar que há, na tradição tonal (nos acordes de
dominante, de sexta aumentada, em tétrades diminutas etc.), diversos precedentes históricos para
essa ausência de resolução de dissonantes ora observada no Op. 11, como (b) entender – sobretudo
mediante exame dos específicos processos de emancipação de diversos dentre os dissonantes

99
mencionados por Schoenberg – que a dispensa de resolução imediata de tais acordes se dá, em boa
parte, pela assunção de que suas respectivas e específicas tendências à resolução – i. e., a teleologia
que, historicamente, se lhes torna inerente – impliquem em que tais resoluções se façam, ainda que
não efetivadas, subentendidas já nos próprios dissonantes. Oferecêramos já como exemplo a
dominante final da primeira canção do Dichterliebe de Schumann (Ex. 34b, p. 70, acima) e, quanto
às dominantes ao fim das primeiras frases do Prelúdio de Tristão… – possivelmente um dos mais
claros exemplos históricos dessa assunção de uma tão íntima conexão entre dissonantes e suas mais
convencionais ou prováveis resoluções –, Bailey escrevera, em seu comentário à obra, como a
dominante viria então a “sugerir ou apresentar sua tônica por implicação e, portanto, substituí-la”
(1985, p. 125, trad. nossa).
Sobre o supracitado acorde do recitativo final de Salome – também sem imediata resolução
–, há dois fatores que tornam seu caso mais complexo do que o das dominantes de Schumann, ou de
Tristão… e que o aproximam do Op. 11 de Schoenberg23: primeiramente, que, ao contrário do caso
das dominantes com sétima (ou mesmo de tétrades diminutas, dominantes francesas, germânicas
etc.), tal acorde de Salome não seja de uso comum em qualquer prática composicional inserida na
tradição tonal e anterior à obra em questão; segundo, que tal acorde não se reporte mais claramente
a uma única tríade de origem; que tal acorde seja, portanto, errante e, por isso, tenda a ser mais
dependente de resolução [do que um acorde de dominante] para que se evidenciem suas possíveis
fundamentais e, em decorrência destas, suas possíveis funcionalidades; que, ao contrário dos
acordes errantes mais convencionais, tal acorde seja antes originado – conforme já apontado e em
semelhança a alguns dos acordes encontrados no Op. 11 de Schoenberg – de uma disposição
vertical do Leitmotiv da protagonista (ver Ex. 55b, p. 90, acima) do que de uma formação triádica e,
assim, não apresente sequer uma matriz triádica imediatamente evidente. Por outro lado, há também
fatores que favorecem uma integração funcional de tal acorde na passagem em questão e na obra:

• primeiramente, embora tenhamos apontado que tal acorde não seja de uso comum em
qualquer prática que preceda a composição de Salome, podemos, ainda assim, reconhecer
nele semelhança com outros acordes mais convencionais – ou, ao menos, eventualmente
empregados – em tais práticas precedentes. Afora o lá natural pedal que atravessa toda a
passagem e admitindo-se inversões, é possível, e. g., compreendê-lo como semelhante a um
acorde não apenas plausível em práticas composicionais anteriores, como mesmo
empregado em Bach: uma tétrade diminuta sobreposta à fundamental de uma de suas
resoluções possíveis. Assim, se no Prelúdio no 1 do Cravo Bem-Temperado, BWV 846,

23
É interessante observar que, segundo Ross (2010, p. 198), Schoenberg teria recebido de Mahler, em 1905, a
partitura de Salome e teria estado em sua estreia austríaca, em 1906.

100
encontramos no cp. 28 um ré dominante sem fundamental e com nona bemol ([ré]-fá#-lá-
dó-mi bemol) sobreposto ao baixo pedal em sol (dominante da Haupttonart Dó) (Ex. 61a),
podemos entender o acorde de Salome, em questão, como parcialmente correspondente a
este, transposto meio-tom acima (fá##-lá#-dó#-mi, sobreposto a sol#) e em outra inversão e
distribuição (Ex. 61b). Ademais, se em Bach tal acorde estivera integrado à Haupttonart de
Dó maior e progredira diretamente a uma inversão da tônica (sobre o baixo pedal na
dominante), a semelhança e possível afinidade entre ambos os acordes poderia apontar para
uma integração do acorde de Salome a uma tonalidade de Dó# (maior e/ou menor), vindo a
corresponder parcialmente – i. e., ainda com exclusão do lá natural – a um ré# dominante
(dominante da dominante de Dó#), sem fundamental e com nona bemol, sobre pedal em sol#
(dominante de Dó#);

Ex. 61: (a) Bach: BWV 846, cp. 28; (b) Strauss: Salome, acorde no no 355 de ensaio, excluído o lá natural (redução).

• se, por outro lado, examinarmos o conteúdo harmônico de tal acorde levando em conta o
pedal em lá natural e o trinado entre lá e si bemol, mas subtraindo-lhe o sol# – e, ademais,
observando que lá# é enarmonicamente equivalente a si bemol e fá##, a sol natural –, o
acorde passa a assemelhar-se antes a um lá dominante, com sétima e nona bemol, do que ao
ré# dominante a que nos havíamos referido. Devemos contudo lembrar que, afora lá
dominante ser de fato enarmônico a uma dominante germânica sobre ré#, há, na tradição
tonal, diversos casos em que uma dominante germânica é efetivamente tratada como sua
enarmônica, ou – compreendendo-se de maneira inversa – em que uma dada dominante é
resolvida tal como o seria sua correspondente germânica. Vimos claro exemplo disso em
Schumann (Cap. II. 3, Ex. 22, p. 52, acima) e o assumíramos como uma das interpretações
possíveis para o acorde do cp. 10 do Prelúdio de Tristão… (Ex. 38c, p. 76, acima). Assim,
faz-se possível uma hipotética interpretação do acorde de Salome como uma espécie de lá
dominante sobreposta a um representante (sol#) de sua resolução (por assim dizer)
“germânica”. Ainda nesse caso, o acorde em questão poderia ser considerado como
integrado a uma tonalidade de Dó# (maior e/ou menor), ou de Sol#.

101
Um segundo fator que favorece a integração funcional do acorde em questão (a despeito de
que este não seja imediatamente resolvido) é que, para além de sua possível afinidade com os
acordes mencionados nos tópicos anteriores – a qual, como vimos, apontaria já para algumas
tonalidades [Tonarten] nas quais seria mais plausível interpretá-lo funcionalmente –, há, no
recitativo, bem como em passagens anteriores e posteriores da ópera, indícios para sua integração
na já cogitada tonalidade de Dó#. Afora a própria notação adotada por Strauss ser condizente com
nossa interpretação hipotética (sol# corresponde, de fato, à dominante de Dó#; fá##, lá#, dó#, mi
constituem o ré# dominante; lá e si bemol seriam, respectivamente, a fundamental e a nona bemol
da correspondente germânica do ré# dominante [i. e., lá dominante]), deve-se observar que:

• a frase inicial de soprano no recitativo, acompanhada pelo acorde em questão, para além de
ser condizente com tal interpretação, encerra-se com um arpejo da tríade de dó# menor;

Ex. 62: Strauss: Salome, no 355 de ensaio, parte de soprano.

• dentre as demais passagens do recitativo, aquelas mais sugestivas de, ou mais estáveis sobre
algum dado centro local são, todas, proximamente relacionadas a uma possível Haupttonart
de Dó# maior, desde que consideradas enarmonicamente. Assim: a segunda frase de soprano
no recitativo (no 356 de ensaio), conclui-se com um arpejo de lá# menor, paralela de Dó#
maior; o primeiro momento arioso do trecho (no 357) é acompanhado por uma tríade estável
de fá maior, enarmônica a mi# maior, dominante da paralela (lá#) de Dó# maior; o segundo
momento arioso (no 358), por sua vez, transita entre fá# maior e fá# menor, subdominantes
maior e menor, respectivamente, de Dó#; ao fim do monólogo (nos 359-61), já em caráter
deliberadamente arioso, Dó# maior é de fato expresso de maneira inequívoca e enfática.
Encadeando-se as tríades localmente centrais (seja de maneira explícita ou implícita) nos
respectivos trechos mencionados e suprimindo-se retornos do acorde ora examinado, temos,
em larga escala, não apenas uma convergência sobre Dó#, mas, inclusive, uma progressão
relativamente convencional, como se vê pelo Ex. 63, abaixo;

102
Ex. 63: Sucessão das tríades (enarmonizadas) localmente centrais entre os nos 355 a 361 de ensaio de Salome,
suprimindo-se retornos imediatos a Dó#.

• a primeira ocorrência do Leitmotiv de Salome – da qual, como já indicado, parece derivar o


acorde em questão –, nos cp. 2-3, expressa Dó# menor e fora, de fato, acompanhada pela
tríade da tônica correspondente (ver Ex. 64, pouco abaixo);

• se, por um lado, indicamos que o trinado lá-si bemol, no recitativo, corresponderia à
fundamental e à nona bemol de um lá dominante, por outro, é também possível (e não
excludente à primeira interpretação) compreender o lá natural como representativo da
tonalidade menor de Dó# e o si bemol (enarmônico de lá#), como representativo da
tonalidade maior, sendo assim tal trinado agente dessa ambiguidade. Nos compassos iniciais
da obra, em que, junto à exposição do Leitmotiv de Salome, violinos II e flauta 1 ascendem
consistentemente por passos cromáticos de sol# a ré (cp. 2-8), a passagem de lá natural para
lá# é acompanhada de uma progressão da forma menor de dó# para sua forma maior,
afirmando assim a associação – já inerente às bases diatônicas convencionais das Tonarten
em questão – de tais notas às respectivas homônimas de Dó#;

Ex. 64: Strauss: Salome, cp. 1-8, redução.

103
• finalmente, deve-se notar que a cadência final sobre dó# maior, no no 361 de ensaio,
consiste, basicamente, em uma progressão de lá dominante – conforme já colocado, uma
espécie de dominante germânica da dominante de Dó# – diretamente para a tônica dó# (Ex.
65a) – e já na chegada a Dó# maior via fá# menor, no no 359, uma progressão de lá maior
(agora, enquanto paralela da subdominante menor) a dó# maior ocorrera na harpa (Ex. 65b).
Ademais, ao lá dominante da cadência final, sobrepõem-se, melodicamente, notas
representativas do sol# dominante, produzindo, assim, apesar da maior clareza harmônica
dessa progressão, um efeito análogo ao do acorde do recitativo aqui examinado, de
sobreposição dessa dominante germânica a uma ou mais notas representativas de sua
resolução mais convencional – i. e., o sol# dominante que, normalmente, intermediaria sua
relação com a tônica dó# – e, em maior evidência aural, de um intenso cromatismo vertical.

Ex. 65: Strauss: Salome, (a) cadência sobre Dó# maior, no no 361 de ensaio, redução; (b) chegada a Dó# maior, no 359
de ensaio, parte de harpa.

Podemos entender, em suma, que, se o acorde em questão é raro – quiçá inédito, até então –
e, assim, dificilmente compreensível como historicamente emancipado quando da composição de
Salome, por outro lado, para além de haver precedentes, em repertório, tanto de acordes
morfologicamente semelhantes a este, como das dissonâncias que o desviariam de tais acordes,
parece haver esforços na própria obra (tanto localmente, como ao longo desta) para que se torne
específica e expressiva funcionalmente sua ocorrência densa, grave, brevemente encoberta, a cada
ataque, pelo cluster frequência do tam-tam e, sobretudo, sem resolução imediata. (A esse tipo de
processo em que, na elaboração de uma obra singular, um dissonante ou dissonância não
concebidos como funcionais vêm a assumir, em termos funcionais, uma participação também
singular em sua composição, denominamos aqui ‘integração funcional’. Podemos entender que

104
processos históricos de emancipação sejam subsidiados por processos singulares de integração
funcional. Esse conceito, antecipamos aqui, será central a toda a terceira parte deste trabalho,
adiante.)
Sobre o Op. 11 de Schoenberg, também aqui alguns indícios colhidos ao longo da peça
podem ajudar a endossar uma ou outra interpretação de seus dissonantes não resolvidos. Contudo,
se Ogdon, e. g., interpretara o acorde dos cp. 4-5 como um sol maior, tônica, sobre um baixo em
sua napolitana e do qual estaria desdobrado um arpejo de sua dominante (ver Ex. 28, p. 59, acima),
o fato de os cp. 9-10 serem interpretáveis como um ré dominante (com sétima, nona e quarta
aumentada), progredindo a uma espécie de sol maior/menor com sétima, no cp. 11 (Ex. 66a) e; de,
nos cp. 15-6 (antes de um parcial retorno ao material dos cp. 9-10), ser reiterada uma linha melódica
típica de progressões de napolitana a dominante (Ex. 66b) – intercalada com e sobreposta à
ressonância de uma espécie de dominante da dominante de Sol –; o fato de que ambas as passagens
citadas ocorram, ainda assim, deve ser examinado perante (a) a posição do próprio Schoenberg, à
época, de que a tonalidade seria “dispensável” e (b) perante sua manifesta experimentação, então,
(b1) com uma não-necessidade de resolução generalizada (por ele denominada “emancipação da
dissonância”) e (b2) com a decorrente renúncia a um centro tonal. Assim, para além da ausência
quase completa de resoluções convencionais e imediatas na obra, é possível supor que vestígios
como os supracitados se deem aqui antes intuitivamente, ou mesmo de maneira fortuita, do que por
um efetivo e consistente esforço por tornar funcionalmente plausíveis os dissonantes sem resolução
da obra. Distintamente do que observamos em Salome, a atribuição de funcionalidade a tais
dissonantes inauditos, em Schoenberg, dificilmente se daria no processo composicional da própria
obra, mas antes – ainda que diante do potencial ineditismo – na história, parecendo bastar que tais
dissonantes, parafraseando o autor, “quase pudessem ocorrer” em Bach, Mozart, Chopin, ou
Wagner. Como colocáramos pouco acima, a tonalidade, estendida ao ponto em que estava em
Mahler, Strauss, ou Reger, poderia ser – e, em boa medida, estaria já, na obra em questão –
abandonada à sua própria capacidade de pôr em relação, em seus termos – funcionais –, tais
dissonantes.

105
Ex. 66: Schoenberg: Op. 11, no 1, (a) cp. 9-11; (b) cp. 14-17.

Talvez caiba, então, a uma abordagem funcional ao Op. 11, mais do que supor tonalidades
consistentes para a obra, ou funções pretensamente inequívocas para seus acordes e progressões,
colocar questões como as seguintes: há, em repertório, precedentes – exatos, ou semelhantes – para
tais acordes, progressões e regiões tonais ‘dissonantes’ (i. e., compreensíveis como dissonantes em
uma abordagem funcional)?; como eles vieram a ocorrer, ou “quase poderiam ter ocorrido” em
práticas composicionais anteriores?; como, morfológica- e contextualmente, eles se desviam (se este
for o caso) de seus precedentes ou hipotéticos precedentes históricos? Examinemos, por meio de
tais questões, os onze compassos iniciais da obra (Ex. 67, p. 108, pouco abaixo) – os quais podem
ser entendidos como uma pequena unidade, antes da mudança de textura e andamento no cp. 12 –:

• o primeiro dentre os acordes da obra, lido enarmonicamente (fá#-mi#-si-sol), é bastante


semelhante a dois acordes escritos em 1846 por Chopin, respectivamente nos Op. 60 e 61.
Na Barcarolle (Op. 60), como já visto no Ex. 53b (p. 88, acima), é atacado, no cp. 110, um
acorde constituído por fá#-sol-mi#, tratado como um dó# germânico – do qual mi# é a terça,
sol natural, sua quinta rebaixada, e fá#, um baixo-pedal representativo da tônica – e
devidamente resolvido, no cp. 111, sobre fá# maior (o si, sétima de tal dominante
germânica e responsável por completar o acorde em questão de Schoenberg, é atacado no
meio do compasso, junto à terça [mi#] e à nona bemol [ré]); na Fantasia Polonesa (Op. 61),
por sua vez, víramos ser atacado no cp. 145 um acorde constituído por fá#-mi#-sol-si-ré (Ex.
53c), também um dó# germânico com baixo em fá#, fundamental do acorde que se segue:
um fá# dominante do Si maior que será confirmado no cp. 148;

106
• o acorde (aqui enarmonizado) si bemol-lá-dó#, no cp. 3, associado ao fá-mi melódico que se
lhe sobrepõe, seria, no contexto de uma tonalidade mais convencional, facilmente
interpretável como um lá dominante, com baixo em sua nona bemol e suspensão de sexta
para quinta (cf. Ogdon: 1981, pp. 172-3): dominantes com nona bemol, mas sem sétima,
podem ser encontradas em repertório ao menos desde Beethoven (ver, e. g., Op. 109, cp. 9 e
10) – e, neste caso de Schoenberg, tal acorde estaria em uma inversão menos convencional,
mas, evidentemente, possível em repertório precedente –; e a presença do fá já no compasso
anterior fortalece a caracterização do fá-mi como suspensão.
Ademais, se o acorde anterior poderia ser interpretado como um dó# germânico (por meio
da comparação com Chopin), deve-se aqui notar que: (1) sua progressão não a fá# (maior ou
menor), mas a sua paralela maior (lá), seria não apenas possível em práticas precedentes,
mas mesmo comum – tivéramos exemplo já em Bach, no Ex. 43a, p. 80, acima – e; (2) que a
equivalência enarmônica entre mi# (cp. 2) e fá natural (cp. 3) seria, em práticas precedentes,
favorecida pela supracitada ambivalência, em tais práticas, entre dominantes germânicas
(como o suposto dó# dominante do compasso anterior) e suas correspondentes enarmônicas
(no caso, um sol maior com sétima).

• Nos cp. 4 e 5, embora os fragmentos (quase idênticos) constituídos por mi-dó-si bemol
sejam notados tal como o seria, convencionalmente, um dó dominante, tanto a reiterada
progressão melódica a si natural (cp. 4 e 6), como a relação mais próxima (conforme aqui
suposto) dos acordes anteriores com fá#, favorecem uma interpretação de tal fragmento
como representativo de uma dominante italiana fundada em fá#, em que – a exemplo de
Leichtentritt (1951, p. 429) e Ogdon (1981, p. 173) – o si bemol notado seria uma enarmonia
de lá#. Tal interpretação pode ser significativa quanto ao fragmento que, em ambas as
ocorrências, se lhe segue.

107
Ex. 67: Schoenberg: Op. 11, no 1, cp. 1-11.

• Como já apontado, o acorde sol#-ré-si-sol dos cp. 4, 6 e 8, junto ao segmento melódico que
o acompanha (ré-fá#-lá-lá#-si) fora interpretado por Ogdon como um sol maior, sobre um
baixo representativo de sua napolitana (lá bemol) e sobreposto a um arpejo de sua
dominante (ré-fá#-lá) e, de fato, haveria, sobretudo nos cp. 9-10 e 15-17, vestígios que
apontariam para uma integração de tal acorde a uma Tonart de Sol. Entendemos, contudo,
que, sobretudo em sucessão aos cp. 1-4, tal fragmento seja também passível de interpretação
em uma Tonart de Fá#.
Primeiramente, entendemos que a possibilidade de se interpretar o agregado mi-dó-si bemol
[lá#] como um fá# dominante, associada ao fato de que o segmento melódico ré-fá#-lá-lá#-
si delineia uma tríade de si menor (resolução convencional de tal fá# dominante), seja já
sugestiva de que o acorde em questão pudesse ser interpretado como um si menor,
subdominante menor de Fá#. Nesse caso, o sol# e o sol natural seriam respectivamente
compreendidos como sexta natural e bemol (napolitana) de si menor, sendo as sextas, desde
Rameau (ver 1726, pp. 61 ff.), comumente entendidas como as notas não-triádicas que
caracterizariam a subdominante. Essa coexistência das duas sextas encontraria precedentes,
ainda que menos explícitos, em Strauss: em “Blindenklage”, Op. 56, no 2, já no primeiro
compasso, um sol menor é alternativamente acompanhado por ambas suas sextas, natural e
bemol (Ex. 68, pouco abaixo); no acorde acima examinado de Salome, por sua vez,
apontáramos já como o trinado entre lá natural e si bemol [lá#] apresentaria
simultaneamente as respectivas sextas de ambas as tonalidades menor e maior de Dó#.

108
Ademais, há na referida passagem de Schoenberg bastante semelhança com o acorde de
Salome, sobretudo se considerarmos o lá natural e o lá# como cromatização em direção ao
si e, assim, omiti-los de nossa comparação. Conforme indicado no Ex. 69, abaixo, ao
agregado sol#-ré-fá#-si-sol faltaria apenas o mi# para que tal acorde fosse uma transposição
segunda maior abaixo (em outra inversão) do acorde de Salome. Se interpretáramos o
acorde de Salome como híbrido entre ré# e lá dominantes, com possível resolução em sol#
(dominante de Dó#), talvez esta quase transposição segunda abaixo pudesse ser entendida
como apontando para uma possível resolução sobre fá#. Se, (a) por um lado, falta ao acorde
do Op. 11 precisamente o mi#, sensível de fá#, (b) por outro, um si menor subdominante,
com o qual o acorde em questão se assemelha, apontaria, em práticas mais convencionais,
precisamente para uma progressão a dó# dominante – e se (c) consideráramos, a respeito de
Wagner, que as dominantes subentenderiam em si suas resoluções a ponto de quase as
substituírem, talvez possamos considerar que uma subdominante com sexta subentenda a
dominante que convencionalmente se lhe sucederia, de modo que o mi#, embora ausente,
possa ser subentendido enquanto parte de uma possível resolução do acorde em questão,
como virtual terça de um dó# dominante, parcialmente representado no segundo tempo do
cp. 5 e última colcheia do cp. 6 pelo sol# no baixo e pelo si que completa a ascensão
melódica de tais passagens. A repetição quase idêntica dos cp. 4-5 nos cp. 5-6 formaria um
ciclo em torno de fá#: fá# dominante (italiana), si subdominante (com duas sextas), dó#
dominante (virtual), fá# dominante etc.

Ex. 68: Strauss: “Blindenklage”, Op. 56, no 2, início.

Ex. 69: (a) Acorde formado no último tempo do cp. 4 de Schoenberg: Op. 11, no 1; (b) acorde do no 355 de Salome,
transposto segunda maior abaixo.

109
• No cp. 7, sobretudo pelo movimento melódico do baixo (ré bemol-dó), o fragmento mi-dó-si
bemol – acima entendido como uma possível dominante italiana sobre fá# – passa a integrar
mais explicitamente o que seria convencionalmente um dó dominante, com sétima e nona
bemol; nos cp. 9 e 10, por sua vez, desenha-se algo que, em Chopin (ver pp. 85-6, acima),
Liszt, ou no próprio Schoenberg do Quarteto no 1, Op. 7 (1905), poderia ser entendido como
um ré dominante, com sétima, nona e quarta aumentada (ou cromatização da quarta
aumentada [sol#] para a quinta [lá]) e, correspondentemente, tal acorde progride a uma
espécie de sol, com sétima e nona. Se em Wolf (p. 53, acima), ou na interpretação de Kurth
a respeito do acorde do cp. 10 do Prelúdio de Tristão… (cf. p. 75, acima), víramos o acorde
sobre o IV grau de uma dada Tonart, acrescido de sétima, progredir à tônica, podemos
entender que a passagem entre os compassos 7 e 11 do Op. 11, no 1, “quase poderia ocorrer”,
em Wagner, Wolf ou Strauss, em uma Tonart de Sol, de modo que, na terceira ocorrência do
agregado sol#[lá bemol?]-ré-fá#-si-sol, no cp. 8, parece ser mais plausível a interpretação de
tal agregado em Sol, como o propusera Ogdon, do que nossa interpretação, no contexto dos
cp. 4-5 e 6, de tal agregado como uma espécie de si menor com duas sextas, subdominante
de Fá#.
Que possamos atribuir funcionalidades (a posteriori) distintas – e em Tonarten distintas – a,
basicamente, um mesmo agregado harmônico em suas várias ocorrências não pode ser, em
si, entendido como uma novidade com relação a práticas precedentes da tradição tonal,
primeiramente, porque, como víramos, é característico dos acordes errantes, de modo geral
– e esse é, aqui, o caso –, que estes possam ser interpretados como portadores de distintas
fundamentais e como se reportando a distintas tonalidades. Em segundo lugar, devemos
lembrar que a conceituação primeira de tonalité moderne, em Fétis, propunha como um
aspecto determinante desta a possibilidade modulação – em oposição à “unitonicidade”
(para Fétis) de Palestrina e precursores – e que, consistindo a modulação, basicamente, na
tonicização de uma outra tríade que não a previamente tonicizada, a modulação há de
implicar, precisamente, em uma reinterpretação – “Umdeutungen”, em Riemann (1890 e
1893) –, em uma nova funcionalização dos distintos acordes nela envolvidos. Assim, se, em
práticas precedentes, parte dos acordes desse início do Op. 11, n o 1 poderia – ou “quase” –
ter ocorrido em Fá# e parte em Sol, talvez a passagem possa ser entendida, grosso modo,
como “modulatória” (cf. p. 125, adiante) – e a própria relação entre uma dada Tonart e a
região de sua napolitana, a exemplo do que aqui se observa, sob uma tal interpretação,
encontra diversos precedentes em repertório, tanto em Beethoven, Schubert, Chopin, ou
Wolf, como, de fato, mesmo em Bach.

110
Seria possível prosseguir: no cp. 11, se considerarmos o lá como nona de um sol dominante
executado pela mão esquerda e o si bemol como uma cromatização não resolvida, em direção a um
si natural, podemos identificar semelhança entre tal compasso e os tempos centrais do cp. 16 do
Prelúdio de Tristão… (ver Ex. 70, abaixo); conformemente, a passagem do primeiro para o segundo
tempo do cp. 12 poderia, de fato, ser efemeramente harmonizada por uma cadência de sol
dominante sobre um dó menor com sexta, subdominante de Sol; o gesto ascendente do segundo
tempo do cp. 12 tem, no início, conteúdo harmônico condizente com um dó menor com sexta e,
adiante (ré-sol#[lá bemol?]-dó-mi), conteúdo condizente (tal como nos cp. 9-10, comentados acima)
com um ré dominante, com nona e quarta aumentada, ou quinta bemol; a descida cromática (por
saltos de nona menor) ao fim desse compasso, com dó#-si bemol-lá-sol#-sol natural, assemelha-se
ao arpejo de um possível lá dominante, com sétima, nona bemol e sensível de sua fundamental – o
qual, como se demonstra no Ex. 71, pode ser encontrado com as exatas mesmas classes de alturas
no cp. 142 do Mov. I da Sinfonia no 9 de Mahler, também de 1909 –; e o fá# grave, no início do cp.
13, para além de sensível de Sol e, portanto, possível represente da dominante de tal Tonart, seria de
fato a resolução melódica mais convencional da sétima de tal lá dominante, embora aqui tal
progressão melódica não se dê por semitom, mas por nona menor.

Ex. 70: Wagner: Tristão e Isolda, Prelúdio, cp. 16, redução.

111
Ex. 71: (a) Schoenberg: Op. 11, no 1, cp. 12; (b) Mahler: Sinfonia no 9, Mov. I, cp. 142.

Com um tal exame desses compassos iniciais do Op. 11, n o 1, temos por principal intenção
demonstrar como (a) o manifesto desinteresse de Schoenberg pelo estabelecimento de qualquer
dada tônica, (b) a ausência de resolução, na peça, da maior parte das notas e acordes que se possam
entender (sob uma perspectiva funcional) como dissonantes, ou (c) a possível primazia, no processo
composicional, de procedimentos alternativos à funcionalidade e independentes de uma elaboração
aprioristicamente funcional não apenas “não excluem totalmente” – parafraseando aqui o próprio
Schoenberg – “o estabelecimento de uma tonalidade”, como não excluem também a possibilidade
de que relações funcionais sejam estabelecidas (ainda que a posteriori) em vários níveis de
organização harmônica: entre notas, ou entre estas e os acordes supostos em meio aos quais elas se
dão; entre tais acordes supostos entre si, em progressões, bem como com relação às respectivas
Tonarten possivelmente representadas por eles; entre as distintas regiões tonais sugeridas ao longo
da obra etc. Que uma interpretação como a aqui proposta – orientada pela busca por possíveis
precedentes históricos para cada elemento harmônico da obra – seja em algum nível real na própria
peça (ainda que não unívoca, não excludente de outras interpretações e a posteriori) e; que a
realidade aqui clamada de uma tal interpretação não diga respeito apenas à extensão dos recursos de
análise, mas à própria obra, fazem-se demonstráveis pela possibilidade de que, sobre a obra

112
inalterada (a não ser por enarmonias) e com emprego de procedimentos semelhantes aos que se
possam deduzir do próprio Op. 11 – sua peculiar elaboração motívica, o intenso cromatismo etc. –,
se componha uma linha melódica ad libitum que integre funcionalmente os vários dissonantes
identificados na interpretação proposta. Uma tal linha se apresenta no Ex. 72, na página seguinte.

113
Ex. 72: Op. 11, cp. 1-13, acrescido de clarineta ad libitum.

114
Parte III

115
III. 1. Participação da integração funcional na estruturação formal de obras

Ao examinarmos, próximo ao fim da seção anterior, o acorde profundamente cromático do


recitativo final de Salome, pudemos observar como que, por meio de uma série de eventos e
passagens subsidiários (o desenho da linha de soprano que se lhe sobrepõe, a sucessão de
modulações que se lhe seguem, as atípicas cadências sobre Dó# maior no arioso final…), Strauss
pôde, mais do que vestígios de funcionalidade – os quais seriam já legados pela próprio fundo
histórica de uma tonalidade que se expandira (como viemos em seguida a observar em Schoenberg)
–, conceder a um dissonante inaudito, fruto de dissonâncias processuais, uma participação singular
e em termos funcionais no plano harmônico, se não da obra, ao menos de sua cena final. Se, por um
lado, uma das faces desse tipo de processo a que denomináramos ‘integração funcional’ consiste no
enriquecimento e na especificação a posteriori das funcionalidades latentes em dissonantes não
concebidos, a princípio, como funcionais, por outro, podemos entender que o processo de
integração funcional tenha também uma face, por assim dizer, “convexa”: que as decisões
composicionais tomadas em função de integrar um dado dissonante influam sobre uma série de
outros momentos e passagens da obra que não apenas aquele de sua ocorrência e que, assim, o
próprio processo de integração funcional – e não apenas o dissonante integrado – tenha participação
na estruturação da obra. Dentre os muitos exemplos possíveis em repertório – que outros acordes e
passagens da Barcarolle de Chopin, e. g., teriam vindo a abrir caminho para aquele extraordinário
compasso 110? (ver Cap. II. 4. 4., Ex. 53b, p. 88) –, há um caso especialmente interessante e
elucidativo em “Auf dem Flusse”, sétima canção do ciclo Winterreise, D. 911 (1827), de Schubert.
Ainda nas frases iniciais (entre compassos 8 e 9) e, posteriormente, nos compassos 17-18 e
44-45, há, na canção, súbitas trocas de centralidade da Haupttonart Mi menor para a tonalidade
secundária de Ré# menor. Embora em ambas estas Tonarten os acordes de si maior e de si
dominante/mi# germânica assumam funções relativamente convencionais (respectivamente:
dominantes de Mi; subdominante paralela de Ré#; dominante [germânica] da dominante de Ré#) e,
de fato, tais acordes sejam empregados como pivôs em todas as modulações entre tais tonalidades,
na peça (ver Ex. 1, abaixo); ainda assim, tais tonalidades parecem, ao menos a princípio, mais
fortemente relacionadas entre si por uma relação “melódica” – de transposição por semitom
descendente – do que por qualquer relação propriamente funcional.

116
Ex. 1: Schubert: “Auf dem Flusse”, cp. 1-15.

A partir do cp. 48, contudo, sobre o texto “Mein Herz, in diesem Bache erkennst du nun
dein Bild?, ob's unter seiner Rinde wohl auch so reißend schwillt?” (“Meu coração, reconheces
nesse riacho tua imagem?, se sob sua crosta também ele se incha violentamente?”), passam a
proliferar modulações, progressões, ou, mais simplesmente, proximidades diacrônicas entre regiões
tonais e acordes que, analogamente às tonalidades iniciais, distem entre si por um semitom
descendente, mas cujas relações funcionais, ainda que remotas e indiretas, se façam mais claras,
precisamente por serem intermediadas pela Haupttonart Mi. Assim:

• no cp. 48 se estabelece Sol# menor e, por meio de uma cadência deceptiva de sua
dominante sobre sua paralela (si maior) com sétima (cp. 52), retorna-se à Haupttonart, para
em seguida, nos cp. 56-57, enfatizar a região da própria paralela de Mi, i. e., Sol maior (ver
Ex. 2, abaixo). Desse modo, faz-se claro que Sol# menor se trate da paralela do V grau da
Haupttonart e Sol maior, da paralela da Haupttonart.

117
• Nos cp. 57-58, por um procedimento semelhante ao empregado nas modulações entre Mi
menor e Ré# menor, passa-se de Sol maior a Fá# menor por meio do acorde-pivô de ré
maior – comum às Tonarten convencionais de ambas as regiões aqui envolvidas. Nos
compassos 60 a 62, por uma progressão do tipo II-V-I, retorna-se de Fá# menor a Mi menor
(Ex. 2). Desse modo, Sol maior e Fá# menor relacionam-se aqui enquanto, respectivamente,
paralela e II grau da Haupttonart.

Ex. 2: Schubert: “Auf dem Flusse”, cp. 48-62.

118
• Se, distintamente dos pares de tonalidades Sol# menor-Sol maior e Sol maior-Fá# menor, as
tonalidades iniciais da canção eram ambas menores, nos compassos 64 e 65, antes do
retorno definitivo à Haupttonart, a homônima menor de Sol vem a ser tonicizada (Ex. 3),
demonstrando-se, assim, a possibilidade de relação funcional entre Sol menor e Sol# menor
e entre Sol menor e Fá# menor.

Ex. 3: Schubert: “Auf dem Flusse”, cp. 62-65.

Ex. 4: Sucessão das tríades localmente centrais ao longo da última estrofe de “Auf dem Flusse”.

Embora as relações sugeridas entre Sol# menor e Sol (inclusive menor), ou entre Sol (menor)
e Fá# menor não cheguem a esclarecer a específica relação funcional entre as duas tonalidades
iniciais, ainda assim, elas a enriquecem e singularizam, ao apresentarem, na própria peça, uma
variedade de maneiras como Mi menor e Ré# menor (ou Mi bemol menor) poderiam vir a ser
funcionalmente relacionadas.
Nessa intensa manobra modulatória, dois aspectos em especial devem ser ressaltados.
Primeiramente, há de se notar que, em todos os casos apresentados de possíveis relações funcionais
entre Mi menor e Ré# menor, tais relações se deem por intermédio de tonalidades inexprimidas na
canção, como: (a) por meio da Tonart fundada sobre o acorde-pivô – Si maior –, em que seriam,
respectivamente, sua subdominante menor e a paralela de seu V grau; (b) por meio – em analogia à
relação apresentada entre Sol# menor e Sol menor – de Dó maior/menor, em que seriam,
respectivamente, mediante da homônima maior e paralela menor (Mi bemol menor) da homônima
menor; ou, ainda – em analogia à relação apresentada entre Sol menor e Fá# menor – (c) por meio

119
de Dó# menor, em que seriam, respectivamente, sua paralela menor e seu II grau, i. e., uma espécie
de subdominante paralela. Assim, mesmo que a relação entre Mi menor e Ré# menor não se
aproxime, por meio desse processo, de qualquer univocidade, ela não deixa de se enriquecer, de se
especificar – ainda que a própria ambiguidade se lhe faça específica – e de assumir uma feição
singular na peça. (Ademais, se são múltiplas as tonalidades mediadoras de tais possíveis relações
funcionais entre Mi menor e Ré# menor; se elas, tão violentamente, constituem uma espécie de
cluster de regiões tonais; se elas, embora inexprimidas, podem subjazer às tonalidades expressas
pela canção – situar-se por sob a “crosta” destas –; então também esse cluster de “meta-tonalidades”
parece “encontrar sua imagem” no riacho congelado do poema.) Em segundo lugar, é notável o
vigor com que esse processo de enriquecimento e especificação das possíveis relações funcionais
entre as duas tonalidades iniciais da canção – i. e., o processo de integração funcional destas – se
manifesta na estruturação harmônica da peça, tanto ao protagonizar o específico delineamento do
processo modulatório da parte correspondente à última estrofe do poema de Müller, como ao traçar
na obra, como um todo, uma direção – intimamente vinculada ao poema – desde a relativa
estaticidade de seu início, a esse caráter intensamente modulatório de seu final.
Os processos singulares de integração funcional constituem, possivelmente, as melhores
sínteses, em termos pragmáticos, do que objetiváramos realizar neste trabalho – a saber, conciliar
abordagens à escrita harmônica que pudessem, a princípio, independer de uma lógica funcional às
possibilidades de estruturação harmônica propiciadas pela própria tonalidade (cf. p. 6, Cap. I. 1).
Por um lado, os processos de integração funcional se voltam, por definição, precisamente àquilo (o
dissonante, ou a dissonância) que não fora concebido funcionalmente, que não portaria ou
implicaria, de partida, em qualquer funcionalidade antevista e são, assim, especialmente permeáveis
à interação com abordagens à escrita harmônica alternativas (ao menos a princípio) à tonalidade
funcional. Por outro, por sua face “convexa”, a integração funcional não apenas constitui, ela
própria, uma possibilidade de estruturação harmônica peculiar à tonalidade, como tende a envolver,
singularmente, a cada vez, as várias outras dentre tais possibilidades, porquanto ela consiste
precisamente em conceder participação estrutural, em termos funcionais, ao objeto da integração.
Nesta última seção de nosso texto, buscamos finalmente cumprir com o objetivo por nós
assumido para este trabalho. Após argumentar, inicialmente, que centralidades e funcionalidades
identificadas a posteriori em dissonantes não concebidos funcionalmente tendem a ser não apenas
ambíguas, mas polivalentes – tendendo a coexistir, assim, em tais dissonantes, diferentes centros e
funções possíveis –, proporemos aqui os meios técnicos pelos quais entendemos que se possa,
consistentemente: (a) reconhecer possíveis centralidades locais e relações funcionais latentes
mesmo em acordes e passagens não concebidos funcionalmente, ou que, a princípio, não expressem
sequer os fundamentos morfológicos (triádicos, diatônicos etc.) da tonalidade funcional; (b)

120
ressaltar, seletivamente, centros e funções específicos dentre as centralidades e funcionalidades
‘difusas’ reconhecidas nos dissonantes examinados e; (c) elaborar composicionalmente as
funcionalidades e as possíveis inter-relações funcionais entre as centralidades locais identificadas.
Por fim, apresentaremos três relatos composicionais de obras distintas – uma inteiramente de minha
autoria; outras duas respectivamente compostas sobre obras pré-existentes de Schoenberg e de
Silvio Ferraz – que exemplifiquem singularmente processos de integração funcional.

121
III. 2. Funcionalidade ‘difusa’

Frequentemente em nossas análises – em especial, quando o objeto destas era entendido


como produto de dissonância processual –, observamos como as respectivas funcionalidades dos
acordes, passagens, regiões tonais etc. abordados não seriam unívocas e, em diversos dentre tais
casos, o demonstramos oferecendo mais de uma interpretação funcional para os acordes ou
passagens em questão. Na literatura musicológica, tal como o atestam, e. g., as discussões acerca do
acorde de Tristão, ou do Op. 11, no 1 de Schoenberg (respectivamente abordados nas pp. 74-6 e 58-
6 deste trabalho), é comum que ora se argumente por uma interpretação funcional específica do
objeto estudado, a despeito de outras possíveis; ora se aponte, mediante a constatação de uma não-
univocidade do objeto de análise, para uma suposta inadequação, a este, de abordagens funcionais
(ver, e. g., Rosen: 1995, p. 475, a respeito de Tristão, ou; Straus: 2005, pp. 166-7, a respeito do Op.
11, no 1 e casos similares). Tendo sido contudo assumido neste trabalho – e demonstrado sobretudo
no Cap. II. 4. 5, pp. 92 ff., acima – que mesmo em acordes, passagens, obras etc. concebidos por
abordagens não-funcionais à escrita harmônica, sob a condição de que estes atendam aos mínimos
requisitos de afinação e qualidade espectral demandados pela tonalidade funcional, tenda a ser
possível reconhecer relações funcionais e elaborá-las composicionalmente; tendo sido constatado
que funcionalidades a posteriori tendem a ser ambíguas e; tendo o objetivo – neste trabalho e, em
especial, nesta sua terceira parte – de propor meios consistentes para que funcionalidades a
posteriori (e, portanto, potencialmente ambíguas) possam vir a ser identificadas e elaboradas
composicionalmente; faz-se aqui necessário que se conceba uma potencial ambiguidade funcional
em que os termos de tal ambiguidade não sejam excludentes entre si (i. e., em que não se trate de
identificar “esta ou aquela função”), mas, ao contrário, possam coexistir no objeto, considerando-se
assim ser possível que se identifique neste “esta e aquela funções (e, quiçá, ainda outras possíveis)”.
Por uma tal abordagem, o contexto, ou mesmo a imediata resolução de um dado dissonante não
serão entendidos como cabalmente determinantes de sua função – como Schoenberg o propusera
com relação aos ‘acordes errantes’ (ver Cap. II. 3, pp. 49 ff. acima) –, mas apontarão, difusamente,
para que se entenda um ou outro aspecto de sua funcionalidade como mais ou menos pronunciado.
Retomemos uma passagem da Polonaise S. 519, de Liszt, a fim de exemplificar tal
concepção ‘difusa’ da funcionalidade tonal: nos cp. 20-24 da obra (reproduzidos no Ex. 5, abaixo),
conforme já anteriormente notado (pp. 78-9, acima), há uma alternância entre mi menor – tratada,
ao menos por ênfase, como tônica – e um dó menor, ou, ao menos, um aparente dó menor, cuja
funcionalidade desejamos examinar aqui. Primeiramente, se notarmos que o acorde de dó maior,
mais convencional em uma Tonart de Mi menor, assumiria mais comumente uma função (lato
sensu) de subdominante, haveremos de notar também que, ao atacar, no cp. 22, antes o dó

122
fundamental e retardar em uma colcheia a ocorrência do mi bemol que caracteriza tal acorde como
menor, introduz-se na passagem o acorde em questão antes como uma subdominante dó, para que,
apenas em seguida, esta se caracterize como sua homônima menor. Por outro lado, quando do
retorno a mi menor, nos cp. 23-24, substitui-se na notação o mi bemol por um ré# e tal ré# vem a ser
efetivamente tratado como uma sensível de mi, vindo a ser resolvido sobre esta nota. Se, ademais,
notamos que a melodia do baixo nos cp. 22-23 – sobretudo se a comparamos à melodia dos cp. 1-4
da obra – poderia ocorrer não apenas em uma Tonart convencional de Dó menor, mas também – e
de maneira igualmente convencional – em uma Tonart de Mi menor, faz-se plausível interpretar que
os compassos em questão enunciam não tanto um dó menor, mas um si dominante, com a sexta sol
mantida como pedal, e com suspensões, no baixo, da nona bemol (dó) para sua fundamental, tanto
no cp. 22, como no 23. O dó menor, ou aparente dó menor da passagem em questão parece, em
suma, (a) introduzido como uma espécie de subdominante (dó), mas (b) resolvido como uma
dominante (si) e, em nosso entendimento, ele cumpre, ao menos parcialmente, com funções lato
sensu de ambas essas funções stricto sensu (cf. Cap. I. 2. 3, pp. 22 ff., acima), de modo que uma
interpretação não exclui a outra e que a funcionalidade de tal acorde possa ser entendida como
‘difusa’. Isto não significa necessariamente que ambas as funções em questão sejam igualmente
pronunciadas, nem que tal funcionalidade difusa seja estável: talvez possamos dizer que os
compassos em questão são ‘mais subdominantes’ no início e se tornam ‘mais dominantes’ ao se
aproximarem do retorno ao mi menor.

Ex. 5: Liszt: Polonaise S. 519, cp. 20-24.

Uma interpretação semelhante se faz possível com relação ao acorde do cp. 10 de Tristão…,
embora este caso seja mais profundamente ambíguo do que aquele de Liszt. Víramos já ao menos
três interpretações possíveis para tal acorde. Grosso modo: como um mi dominante (de Lá), em
Kurth; como um fá menor com sexta, em Schoenberg; e, adicionalmente, demonstráramos como ele
poderia ser compreendido ainda enquanto uma espécie de dominante germânica de si, fundada
sobre dó. Uma vez mais, podemos defender que tais interpretações não se excluem, umas às outras,
e que cada uma destas se faça mais ou menos pronunciada conforme o compasso em questão venha
a ser relacionado a distintos segmentos do contexto em que se encontra: (1) vindo de sol dominante,
no cp. 7, e sendo o acorde do cp. 10 de fato enarmônico a um fá menor com sexta, parece ser de fato

123
reforçada, quando de sua introdução, sua relação com uma Tonart de Dó e, consequentemente, um
caráter de subdominante; (2) sendo a passagem introdutória do Prelúdio, como um todo, passível de
ser reportada a Lá menor, sendo o sol# do cp. 10 tratado, de fato, como uma sensível de lá (e
melodicamente resolvida no compasso seguinte), e havendo, respectivamente nas linhas de tenor e
baixo, progressões melódicas de fá a mi (cp. 10) e de dó a si (cp. 10-11), reforça-se, por outro lado,
uma interpretação de que tal compasso enuncie uma dominante de Lá, com suspensões da nona
bemol à fundamental e da sexta à quinta, e que progrida ao si dominante do cp. 11 por uma
cadência deceptiva; (3) sendo o compasso em questão sucedido por um si dominante,
assemelhando-se a formação cordal final do cp. 10 a uma tríade aumentada de dó, e sendo dó uma
espécie de correspondente germânica da dominante de si, faz-se possível entender que o compasso
em questão, ao se resolver, cumpre parcialmente com a função de dominante individual de si.
Semelhantemente ao caso de Liszt, talvez possamos dizer que o compasso em questão assuma
‘difusamente’ as três funções supracitadas; que ele é ‘mais subdominante’ do início e ‘mais
dominante’ – e mais ambíguo – ao se aproximar da cadência; que nem por isso ele deixa de ser
interpretável como ‘algo dominante’ já no acorde que o inicia; que, ademais, a centralidade de Dó
(maior ou menor) se faz mais pronunciada em seu início, enquanto que a centralidade de Lá menor
se faz progressivamente mais pronunciada conforme o compasso de desenvolve.

Ex. 6: Wagner: Tristão..., Prelúdio, cp. 10-11. Síntese das análises apresentadas no Ex. 38 do Cap. II. 4. 4., p. 76, acima.

Esta última formulação acrescenta um ponto importante com relação ao que observáramos
em Liszt: que não apenas a funcionalidade de um dado objeto harmônico, mas também a
centralidade à qual este se reporta possa ser concebida como ‘difusa’. Se distintos comentadores
haviam identificado no Prelúdio de Tristão… mais de uma tônica (ver pp. 98-9, acima); e se o
próprio compositor o parecera confirmar, ao encerrar as versões de encenação e de concerto em
Tonarten distintas; faz-se aqui possível formular que tal “complexo de dupla-tônica”, como o

124
denominara Bailey, não se constitua apenas por haver, em semelhantes proporções, passagens mais
diretamente relacionáveis a Lá (menor ou maior) e passagens mais diretamente relacionáveis a Dó
(maior ou menor), mas também porque tal complexo de dupla-tônica – não muito diferente, nesse
ponto, dos sistemas de estrelas binárias – parece por vezes constituir, ele mesmo, uma centralidade
difusa (nesse sentido, a expressão empregada por Bailey nos parece bastante adequada), em que
Tonarten distintas são concomitantemente expressas, ainda que não necessariamente com a mesma
proeminência o tempo todo. Com relação ao Op. 11, no 1 de Schoenberg, por sua vez, se
sustentáramos, por um lado, a possibilidade de interpretar que seus compassos iniciais passassem de
Fá# menor a Sol maior (p. 110, acima); mas reconhecemos como também possível, por outro, uma
interpretação como a de Leichtentritt ou Ogdon, e. g. (pp. 58-9, acima), nas quais se entendia que
mesmo os primeiros 5 compassos da peça já expressassem Sol; então, conciliar ambas as
interpretações implicará, também aqui, em reconhecer a centralidade da passagem em questão
como ‘difusa’. Mais preciso do que falarmos, então, em uma “modulação” de Fá# a Sol, será,
possivelmente, entendermos que a passagem expressa (não necessariamente de maneira exclusiva)
ambas as Tonarten de Fá# menor e Sol maior, sendo a primeira “mais proeminente” nos compassos
iniciais e a segunda progressivamente “mais pronunciada”, a ponto de, eventualmente, suplantar
aquela.
Conceber uma funcionalidade difusa pode ainda envolver, entre outras possibilidades:

• compreender que tanto uma Haupttonart, como um complexo de dupla, ou tripla tônica etc.
possam ser mais ou menos claramente delineados, mais ou menos estáveis etc.;

• compreender como funcionalmente relevante que um dado acorde ou passagem seja: mais
ou menos ambíguo; mais ou menos dissonante; mais ou menos modulatório etc. – Rosen
(1980), e. g., considera que os Durchführungen, em sonatas do séc. XVIII, cumpram com a
função de intensificar a dissonância formal nessas obras precisamente por meio do caráter
intensamente modulatório que lhes é característico (ver pp. 150-1, pouco adiante) –;

• conceber que as próprias funções stricto sensu, posto que estas envolvem uma diversidade
de possíveis funções lato sensu, possam ser mais ou menos plenamente representadas por
outros acordes ou regiões que não aqueles que as definem (cf. Cap. III. 4, pp. 151 ff.);

… e, embora a abordagem ora em questão se destine sobretudo a abranger em uma lógica


tonal-funcional relações funcionais estabelecidas apenas a posteriori, devemos ressaltar que ela não
exclui relações funcionais já concebidas como tal, nem mesmo relações normalmente entendidas

125
como unívocas – se é que tal univocidade é sequer possível. Primeiramente, deve-se reconhecer que
acordes errantes, ou mesmo acordes triádicos que sirvam como pivôs em passagens modulatórias
são exemplos claros e comuns, em repertório, de como objetos harmônicos já concebidos em função
de um plano tonal-funcional em maior escala – i. e., já a priori funcionais – podem portar o que
Schoenberg denominara “funções múltiplas [multiple meanings]” (1954[1948], pp. 44 ff.); ou que,
em tonalidades secundárias, de modo geral, pode-se entender – tal como é inerente ao conceito
schoenberguiano de ‘regiões’, empregado ao longo de todo este trabalho – que, se localmente estas
estabelecem uma nova tônica, ainda assim, em maior escala, tais tônicas representam alguma outra
função com relação à Haupttonart (ver, e. g., Ex. 7 e Ex. 8, abaixo). Ademais, mesmo um objeto
harmônico que venha a ser entendido, em seu contexto, como unívoco quanto à sua funcionalidade
não deixa de ser contemplado pela concepção ora proposta de uma funcionalidade difusa, bastando,
para isso, que se entenda a univocidade como o caso limite de uma “ambivalência nula”.

Ex. 7: D. Scarlatti: K. 119 (ca. 1749), cp. 90-95, seguidos dos cp. 1-6. Embora, ao final da exposição, Lá maior esteja
localmente estabelecida como uma tônica, o imediato retorno ao início da obra, em Ré, evidencia a função de
dominante que lá assume em maior escala.

Ex. 8: Beethoven: Sonata no 31, Op. 110 (1821), coda do mov. II e cp. 1 do mov. III. Se por um lado o fá maior cumpre,
no II mov., com a função de tônica, com terça de Picardia, por outro, o início do mov. III atribui retrospectivamente ao
mesmo acorde a função de dominante individual de si bemol menor.

126
Nos capítulos que se seguem, proponho os meios que para que possamos: (1) reconhecer
centralidades tonais locais mesmo em contextos produzidos por dissonâncias processuais – em que,
portanto, as relações funcionais se deem a posteriori –; (2) ressaltar centros tonais específicos
dentre aqueles que possam constituir uma centralidade local ‘difusa’ e; (3) inter-relacionar
funcionalmente as centralidades locais identificadas, levando em conta a não-univocidade destas.
Subsequentemente, demonstrarei, por meio de três relatos composicionais (4) como tais relações
funcionais difusas podem vir a ser elaboradas funcionalmente, de modo a assumir alguma
relevância na estruturação harmônica de obras singulares. Ressalto por fim que, porquanto
entendemos que dissonâncias processuais e relações funcionais a posteriori e difusas decorrem de
extensões de uma funcionalidade tonal histórica – e, como já demonstrado, são com frequência
encontradas em repertório mais comumente aceito como “tonal” – e porquanto, como pouco acima
enfatizado, a maneira como concebemos neste trabalho a tonalidade funcional não exclui relações
funcionais convencionais – mas, ao contrário, visa agregar a estas relações a posteriori –, os meios
técnicos abaixo propostos serão frequentemente conjugados a maneiras mais convencionais de se
identificar, compreender e elaborar relações funcionais.

127
III. 3. Representação de centralidades locais por diatonismo

Tal como amplamente se sabe – e conforme retomado acima, no Cap. I. 2. 3 deste trabalho –,
a base escalar da tonalité moderne tem origem histórica nos modos diatônicos medievais, com as
alterações implicadas nas respectivas sensíveis de suas notas centrais e outras alterações subsidiárias,
como, e. g., a alteração do IV grau nos modos de finalis fá – a fim de que a sensível se fizesse
contextualmente dissonante –, ou as ocasionais alterações do VI e VII graus no modo de finalis ré –
a fim de que se evitassem passos maiores do que a segunda maior entre os graus em questão etc.
(ver pp. 24-5, acima). Posto que a sensível, no contexto da tonalidade – e, de fato, desde sua origem
cadencial na musica ficta do séc. XIV (ver pp. 22-4, acima) –, aponta para uma resolução por
semitom ascendente; que, sendo a nota imediatamente superior à sensível objeto de resolução desta,
tal nota seja mais consonante do que a sensível e seja, assim, entendida como mais estável, como
mais passível de assumir centralidade; e posto que a sensível se faz caracterizada enquanto tal por
meio do trítono direta- ou indiretamente formado com o IV grau da escala; entendemos que, no
contexto da tonalité moderne, escalas diatônicas ou segmentos destas que contenham notas
passíveis de se interpretar (pelo conjunto de suas distâncias intervalares) como I, IV grau justo e
sensível de uma dada Tonart possam dar, por si mesmos, indícios de uma possível centralidade
tonal.
Também Schoenberg, como víramos (pp. 33-4), entendia que ao menos o modo maior
[Durtonart] poderia expressar, por si mesmo, a Tonart que lhe fosse correspondente. Dado seu
entendimento, contudo, de que o modo maior derivaria “naturalmente” da própria série harmônica
de uma suposta “fundamental original”, Schoenberg chegara a atribuir aos próprios modos
eclesiásticos tal propriedade de expressar inerentemente uma tônica, vindo a concluir que a
variedade de finalis em tais modos resultaria da busca empírica por tal “fundamental original” 24. Se
com relação à música medieval tal posição manifesta um patente anacronismo, deve-se, por outro
lado, observar que, em obras já inseridas na tradição da tonalité moderne, a ocasional ocorrência de
passagens em que o próprio diatonismo, mais do que a cadência, parece protagonizar o
delineamento de uma dada Tonart atesta, nesse contexto, a propriedade em questão.
Em Corelli, a harmonização diatônica dos passos descendentes da escala, embora “menos
conclusiva do que o ciclo de quintas”, constituiria, conforme apontado por Bukofzer (1975[1948]),
um meio típico para que se cumprisse com tal função de “circunscrever a tonalidade [key]” (op. cit.,
pp. 220-1). No terceiro movimento da sonata para violino Op. 5, no 1 (publicada em 1700), em Ré
maior, e. g., há uma passagem elucidativa de tal recurso. Após se ter estabelecido já no cp. 8 do

24 “(…) sentia-se o efeito de uma fundamental, mas não se sabia qual era. Por isso experimentava-se com todas. E as
alterações são talvez casualidades do modo escolhido, mas não do modo natural original” (Schoenberg: 2001[1911],
p. 64 n., trad. Marden Maluf).

128
movimento em questão a tonalidade secundária de Lá maior, o retorno à Haupttonart Ré envolve
alguns movimentos sequenciais: nos cp. 12 a 15, cadencia-se respectivamente sobre mi maior, lá, ré
e sol maior; nos cp. 16-17, tendo partido da cadência sobre sol, cadencia-se sobre lá maior e si
menor; após confirmação de si menor (cp. 19), cadencia-se, nos cp. 20 e 21, sobre mi maior e,
novamente, ré. Dados tais movimentos sequenciais, a passagem toda assume caráter modulatório e
mesmo as cadências sobre ré nos cp. 21 e 22 parecem ainda inconclusivas: é, em boa medida, por
meio da harmonização diatônica, nos cp. 22 a 25, dos passos descendentes do modo maior de Ré
que, ainda antes de uma nova cadência na tônica (cp. 26), se faz claro o reestabelecimento da
Haupttonart da peça (ver Ex. 9, abaixo).

Ex. 9: Corelli: Op. 5, no 1, mov. III, cp. 11-26.

Em meio a uma prática composicional bastante diversa à de Corelli, também na Barcarolle


de Chopin podemos ver o diatonismo ser empregado como meio para o delineamento de tonalidades.
Nos compassos iniciais, sobre um baixo-pedal em dó#, uma trama polifônica predominantemente
não-triádica constituída, basicamente, por uma sequência motívica descendente por passos
diatônicos – e em que as ocasionais tríades parecem formadas propriamente por contraponto –
introduz integralmente o modo maior de Fá#. Talvez a tonalidade em questão só se faça claramente
estabelecida no cp. 4, mas, já nos três primeiros compassos, o dó# ‘melodicamente’ enfatizado pelo
baixo parece ceder progressivamente ao delineamento de uma centralidade ‘harmônica’ em torno
do fá#, propriamente – e, ainda antes de que haja uma cadência, tal centralidade se faz

129
especialmente pronunciada quando, nas últimas colcheias do trecho em questão, o encontro das
linhas melódicas, por um empilhamento de sétimas (dó#-si-lá#), delineia algo interpretável,
sobretudo em Chopin (cf. pp. 85-6, acima), como uma espécie de dó# dominante, com sétima e
décima-terceira (Ex. 10).

Ex. 10: Chopin: Barcarolle, cp. 1-4.

Mais adiante na obra, é realizada uma modulação para Lá maior por meio de um recurso
semelhante: após repetidas cadências sobre fá# maior nos cp. 33-34, tal acorde é convertido em sua
homônima menor (cp. 35) e seguido de uma melodia diatônica em que o VI e VII graus se mantêm
menores, não expressando, portanto, a sensível de fá#. Posto que a escala diatônica formada
corresponde plenamente ao modo maior de Lá, tal Tonart parece se delinear já nos cp. 35 a 38 e
vem a ser efetivamente estabelecida no cp. 39 sem que haja, para tanto, uma cadência sobre sua
tônica (Ex. 11).

Ex. 11: Chopin: Barcarolle, cp. 32-39.

130
Como se vê, sobretudo pelo exemplo de Chopin, a base diatônica de uma dada Tonart pode,
ainda que não de maneira definitiva, vir a expressar tal Tonart, mesmo prescindindo de uma
morfologia triádica, de progressões cadenciais, ou de ênfase sobre o centro tonal suposto. Assim,
em contextos em que tais aspectos morfológicos da tonalidade se façam raros, ausentes, fortuitos etc.
– como há de ser o caso de obras ou passagens que, escritas no sistema temperado, privilegiem, em
seus processos composicionais, o que temos denominado ‘dissonâncias processuais’ –, a
identificação de diatonismos, ainda que implícitos ou fragmentários, pode auxiliar a identificação
também de possíveis centralidades locais, a serem relacionadas entre si semelhantemente a como se
relacionam, na monotonalidade de Schoenberg, distintas regiões tonais.
Uma tal abordagem é brevemente experimentada – ainda que não de maneira sistemática –
por Dunsby e Whittall com relação ao Op. 19, n o 6 (1911) de Schoenberg, em meio a uma discussão,
em Análise Musical na Teoria e na Prática (2011[2010]), a respeito da adequação e dos problemas
de análises que assumam como “tonais” obras do primeiro período dito “atonal” do compositor (ver
op. cit., pp. 97 ff.). Primeiramente, a respeito do acorde sol-dó-fá-lá-fá#-si, formado nos cp. 1-2, 3-4,
5 e 9 (ver Ex. 12, abaixo), os autores anotam que cinco de suas seis notas “pertencem à escala de
Sol maior (ou Mi menor), e, até mesmo incluindo Fá natural, o espaçamento da ‘construção’ de seis
notas pode sugerir que ela representa a tônica de uma região tonal expandida de Sol maior” (id., p.
102, trad. Norton Dudeque).

Ex. 12: Schoenberg: Op. 19, no 6.

131
Pouco adiante, após (a) observarem que o conjunto das demais notas do total cromático (i. e.,
sol#-lá#-dó#-ré-ré#-mi) “pertenceria provavelmente à região tonal em torno de Mi” (id. ibid.) e
após (b) se reportarem, de fato, à monotonalidade de Schoenberg; os autores apontam na obra uma
“tendência para as várias regiões de se interseccionarem em torno de Mi maior/menor” (id., p. 103),
ponderando em seguida, contudo, que tal argumentação poderia ser fortalecida “se Schoenberg
tivesse grafado as duas últimas notas [da peça] como Lá sustenido e Sol sustenido”, mas que a
efetiva grafia si bemol-lá bemol (Ex. 12, acima, cp. 9) seria “um fator importante para evitar
suposições loquazes sobre bases tonais quando nenhuma única tríade diatônica é expressa” (id.
ibid.).
Identificar possíveis diatonismos (ainda que fragmentários e implícitos), correlacioná-los a
possíveis centralidades locais (ainda que não-unívocas e não excludentes entre si) e, finalmente,
relacionar tais possíveis centralidades entre si corresponde, grosso modo, à maneira como
proporemos identificar relações funcionais mesmo em meio a passagens ou obras cujas respectivas
concepções independessem, a princípio, da tonalidade funcional e; inversamente, operar sobre um
tal diatonismo epistêmico, trazendo à tona o que se fazia implícito, articulando ou obscurecendo a
passagem entre diatonismos (virtuais) contíguos, ora intensificando ambiguidades, ora tornando
mais pronunciada uma determinada centralidade possível etc., corresponde, em boa medida, à
maneira como proporemos elaborar composicionalmente tais possíveis relações funcionais. Assim,
o supracitado experimento analítico por parte de Dunsby e Whittall nos é de especial interesse,
posto que, nele, se manifestam alguns dos principais problemas com os quais deveremos lidar em
uma tal abordagem.
Primeiramente, (1) deve-se reconhecer que a identificação de possíveis diatonismos e
mesmo a eventual convergência das centralidades sugeridas por tais diatonismos em torno de uma
suposta Haupttonart não necessariamente apontam para a participação de tais aspectos no processo
composicional da obra ou passagem abordada. No caso do Op. 19, no 6, se, por um lado, Dunsby e
Whittall apontaram para uma tal convergência sobre Mi maior/menor, por outro, como bem
observado pelos autores, a própria notação das últimas duas notas (“si bemol-lá bemol”, ao invés de
“lá#-sol#”) se faz, de fato, indício de uma escritura que não apenas se abstivesse, em sua concepção,
do estabelecimento de uma tônica, mas que inclusive visasse antes divergência do que a
convergência previamente apontada. Inversamente, contudo, e conforme argumentáramos sobretudo
no Cap. II. 4. 5 (pp. 92-114, acima), mesmo a deliberada recusa, em um dado processo
composicional, aos fundamentos morfológicos e procedimentais da tonalidade funcional não
necessariamente implica na total supressão de relações funcionais (locais ou em larga escala) na
obra ou passagem produzida. Assim, se uma abordagem como a que aqui se propõe se faz
insuficiente – e possivelmente inadequada – perante o eventual objetivo de esclarecer a gênese de

132
uma dada obra, ou de trazer à tona supostas intenções do compositor etc.; por outro lado, porquanto
tal abordagem prescinde de uma diversidade de aspectos morfológicos típicos da tonalidade
funcional (como as formações triádicas, as progressões cadenciais etc.) para que se identifiquem no
objeto centralidades às quais este possa remeter, ela se faz especialmente eficaz perante o objetivo
aqui assumido – e, ressaltemos, de cunho antes composicional do que musicológico – de integrar
funcionalmente objetos harmônicos e procedimentos composicionais que não tenham sido
concebidos funcionalmente, de conceder participação estrutural, em uma dada obra ou passagem, a
dissonâncias processuais e funcionalidades a posteriori.
Em segundo lugar, deve-se reconhecer que, (2a) na própria tradição tonal, mais
frequentemente do que não, outras notas que não apenas aquelas pertencentes à base diatônica de
uma dada Tonart estão envolvidas em passagens que expressam sua centralidade – como é o caso, e.
g., das sensíveis individuais dos distintos graus da escala, das alterações próprias ao VI e VII graus
do modo menor, do II grau rebaixado no acorde de napolitana, de alterações e ornamentações
cromáticas etc. (ver Cap. II. 1, pp. 33-42, acima). Ademais, deve-se reconhecer que, (2b) sobretudo
em acordes, passagens etc. não concebidos funcionalmente, serão frequentemente encontradas
formações que não se podem reduzir a qualquer diatonismo convencional e, de fato, mesmo em
repertório inserido na tradição tonal, há eventualmente formações verticais de tal tipo, as quais, nem
por isso, deixam de portar funcionalidades possíveis em seus respectivos contextos (ver sobretudo
Cap. II. 4. 4). Como compreender, então, em uma tal abordagem, notas que, frente a um diatonismo
suposto, se desviem de seu padrão convencional? Finalmente, se, pelos apontamentos acima
expressos, podemos concluir que virtualmente qualquer classe de altura pode participar da
expressão de uma dada centralidade25, (3) isto não significaria, então, que, inversamente, qualquer
conjunto de notas poderia, no limite, expressar qualquer centralidade? Como então correlacionar,
com alguma consistência, diatonismos a centralidades específicas?
Uma vez mais, tais problemas com que a abordagem em questão deverá lidar podem ser
exemplificados no experimento analítico de Dunsby e Whittall: se o agregado sol-dó-fá-lá-fá#-si se
faz majoritariamente circunscrito, como apontado pelos autores, nas respectivas bases diatônicas de
Sol maior e Mi menor, então como se relaciona o fá natural a tais bases diatônicas? Ademais, por
que não considerar, então, tal conjunto de notas como se reportando, e. g., a Dó maior, a cuja base
diatônica apenas o fá# não seria pertencente?; ou, ainda, a uma tonalidade Frígia de Fá#, em que, a
exemplo do cp. 2 do Op. 11, no 1 (cf. p. 106, acima), sol-mi#(fá natural)-si constituiriam uma
espécie de dominante italiana, fá#-lá constituiriam parte da tônica e, tal como em Sol maior, Mi
menor ou Dó, apenas uma nota (dó natural) fugiria à sua base escalar?

25
Riemann, e. g., toma parte de uma tal concepção. Ver Musiklexikon, verbete sobre Tonalität (1896[1882], p. 796).

133
A fim de sustentar, diante dos problemas ora elencados, a possibilidade de uma correlação
consistente entre diatonismos (ainda que implícitos, ou fragmentários) e centralidades específicas,
entendemos que devemos, primeiramente, assumir uma concepção de ‘diatonismo’ em que este não
se limite às ordenações escalares das notas ditas “naturais” (e. g., dó-ré-mi[…]-dó, ou mi-fá-sol[...]-
mi etc.), suas respectivas transposições (e. g., mi bemol-fá-sol[...]mi bemol, ou dó#-ré-mi[...]-dó#
etc.) e as variações comumente previstas do modo menor. Em uma concepção em boa medida
derivada de um diatonismo convencional, mas flexibilizada com relação a este, entenderemos como
‘escalas diatônicas’: (a) qualquer subconjunto escalar do total cromático que seccione a oitava em
sete graus, respectivamente representados pelos sete nomes de notas, individualmente naturais,
bemóis, sustenidas etc., conforme o caso; (b) em que tais sete graus, se dispostos no ciclo de
quintas, não completem ou ultrapassem um ciclo completo.
Por uma tal concepção, o agregado sol-dó-fá-lá-fá#-si, e. g., não pode ser circunscrito, ao
menos com essa específica grafia, em uma escala diatônica pura, porquanto em tal agregado,
contendo este fá natural e fá#, estaria duplicado o grau representado pela nota fá (Ex. 13a); por
outro lado, bastaria interpretar o fá natural como enarmonia de mi#, para que cada nota
representasse um grau diferente da escala e esta atendesse, assim, ao nosso primeiro critério para
que a considerássemos passível de circunscrever-se em um escala diatônica pura (Ex. 13b).

Ex. 13: Disposições escalares das classes de alturas dos cp. 1-2 do Op. 19, no 6, de Schoenberg.

Quanto ao segundo critério, também a este (conforme demonstrado no Ex. 14a, abaixo) tal
agregado atende, porquanto, ao ser disposto no ciclo de quintas, sua nota mais extrema em sentido
horário, mi#, não pode ser enarmonizada por qualquer nota que não estenda ou corresponda a seu
limite anti-horário, aqui estabelecido por dó natural. Ademais, caso o grau virtual não expresso por
tal agregado viesse a corresponder a ré natural (Ex. 14b), ou a ré sustenido (Ex. 14c), então, tal
agregado permaneceria compreensível, pelos critérios ora propostos, como puramente diatônico. Se
porventura se adicionasse a tal agregado, contudo, um ré bemol (Ex. 14d) ou um ré dobrado-
sustenido (Ex. 14e), e. g., tais notas, então: ultrapassariam, ambas, o ciclo de quintas completo,
respectivamente em sentido anti-horário e em sentido horário; seriam, por isso, aqui compreendidas
como enarmonias de dó# e de mi natural, respectivamente, e; assim, duplicariam, respectivamente,
os graus representados por dó, no primeiro caso, e por mi, no segundo (Ex. 15a e b), não sendo mais
possível então ao agregado em questão circunscrever-se a uma escala puramente diatônica, na
concepção aqui proposta.

134
Ex. 14: Disposições no ciclo de quintas das classes de alturas dos cp. 1-2 do Op. 19, no 6, de Schoenberg: (a) apenas
com as notas apresentadas no original; e, respectivamente, com compleição do grau correspondente ao nome de nota ‘ré’
(b) por ré natural; (c) por ré sustenido; (d) por ré bemol; (e) por ré dobrado-sustenido.

Ex. 15: Disposições escalares das classes de alturas dos cp. 1-2 do Op. 19, no 6, de Schoenberg, com compleição do
grau correspondente ao nome de nota ‘ré’, respectivamente: (a) por ré bemol e; (b) por ré dobrado-sustenido.

Tendo proposto uma concepção flexibilizada de escala diatônica, a qual nos permitirá
identificar possíveis diatonismos em uma gama mais ampla de combinações intervalares do que a
prevista por uma concepção convencional, permanecem ainda ao menos duas questões com as quais
devemos lidar, a saber: (1) identificadas, em um dado conjunto de alturas, uma ou mais possíveis
escalas diatônicas (nos termos ora propostos) que o possam conter, como relacionar tais
diatonismos supostos a centralidades específicas?; e (2) como relacionar às centralidades inferidas
as eventuais notas que não se circunscrevam nos diatonismos supostos?
Estendendo nossa argumentação acima a respeito de como o modernos modos maior e
menor tendem a indicar centralidades, podemos entender que, em conjuntos de notas que se possam
compreender – pelos critérios por nós propostos – como ‘diatônicos’, algumas dentre as notas que
os constituem tendem a ser mais responsáveis do que outras pelo delineamento de uma dada

135
centralidade, sobretudo: o próprio I grau, entendido como nota central; a sensível, por apontar para
uma resolução por semitom ascendente sobre o I grau; o IV grau justo, responsável por formar um
trítono com a sensível e caracterizá-la, assim, enquanto tal; e, possivelmente, o V grau justo, por,
entre outros motivos, corresponder – sobretudo se associado à sensível e ao IV grau – à fundamental
do acorde de dominante. Ademais, posto que o trítono é um intervalo simétrico e que, sobretudo
isolado de contexto, pode por isso apontar para resoluções bastante remotas (funcionalmente) entre
si, deve-se notar que, associado ao trítono entre IV e VII graus diatônicos, o I grau desfaz tal
simetria, tendendo a tornar mais pronunciada (mas não fatal) a tendência a uma resolução
específica e; que na eventual ausência do I grau, também o V grau, ao desfazer a simetria do trítono
e delinear, junto a este, parte de uma dominante convencional, favorece que se torne mais
pronunciada a tendência à resolução sobre tal específico I grau.
Em termos pragmáticos, transpor (a) tal entendimento de que algumas notas, em uma dada
Tonart, portam maior responsabilidade do que outras pelo delineamento de sua centralidade para (b)
a situação em que se deseje inferir de um dado agregado harmônico os possíveis centros aos quais
este se reporte – e em que não esteja dado de antemão, portanto, quais notas correspondem a quais
graus de quaisquer supostas escalas diatônicas – implica em que alguns intervalos ou conjuntos
intervalares identificados no objeto examinado venham a ser privilegiados – embora não
determinantes – no processo de identificação de centralidades supostas: frente, e. g., a notas que
estabeleçam entre si um semitom simples ou composto (segunda menor, sétima maior, nona menor
etc.), pode-se cogitar a possibilidade – a se verificar contextualmente como sustentável ou não – de
que a nota inferior em tal semitom corresponda a uma sensível; frente a um trítono,
semelhantemente, pode-se verificar se uma das duas notas que o constituem poderá ser entendida
como sensível e, no caso de o objeto examinado conter ainda outras notas, verificar se alguma
destas se situa um semitom acima ou uma terça maior abaixo de alguma dentre as notas que
compõem o trítono em questão – vindo estas, possivelmente, a corresponder, respectivamente, aos
supostos I ou V graus.
Perante um diatonismo suposto, entendemos que também as demais notas de um agregado
harmônico examinado (que não apenas aquelas correspondentes aos possíveis I, IV, V graus justos e
à sensível das escalas cogitadas) têm participações específicas no delineamento de sua centralidade.
Um suposto III grau, e. g., quer seja maior, quer seja menor, apenas qualificaria a escala e a
eventual tríade de I grau como respectivamente maiores ou menores, mas pouco influenciaria, em
nossa compreensão, em quão pronunciada se faz a centralidade de tal I grau – e não muito diferente
seria o caso do VI grau maior ou menor –; uma nota correspondente ao II grau menor da escala
cogitada, por sua vez, tornaria o I grau mais instável, posto que este poderia ser, em outra
interpretação, entendido como sensível daquele e que tal II grau menor, ademais, tornaria as notas

136
constituintes da dominante novamente simétricas (como em uma dominante francesa) e, portanto,
mais ambíguas quanto às suas resoluções possíveis; o I grau elevado (e. g., dó#, em Dó), pelo
princípio de que haja apenas sete graus em uma escala puramente diatônica, ora excluiria a presença
na escala do I grau justo – e tenderia, assim, a atenuar ou afastar a hipótese de que seu uníssono
aumentado inferior se trate de fato de um I grau possível –, ora constituiria um desvio do
diatonismo suposto (pp. 139 ff., pouco adiante), obscurecendo, assim, a relação entre o objeto que o
contivesse e a centralidade suposta; a nota correspondente ao I grau rebaixado da escala cogitada (e.
g. dó bemol, em Dó; ver Ex. 16, abaixo), por sua vez, seria ainda mais radicalmente centrífuga,
porquanto esta tenderia a excluir da escala suposta tanto o I grau justo – pelo princípio supracitado
–, como a sensível, posto ser o I grau rebaixado enarmônico desta. Ainda as participações de outras
notas no delineamento por diatonismo de uma dada centralidade podem ser examinadas por
raciocínios análogos aos aqui expostos.

Ex. 16: Haydn: Sonata, Hob. XVI/20, mov. I, cp. 23-26. No processo modulatório da Haupttonart Dó menor para a
tonalidade secundária de Mi bemol maior (cp. 9 ff.), ainda antes de que a segunda tonalidade seja afirmada (cp. 26), a
enfática recorrência do dó bemol, nos cp. 23-24, afasta a centralidade de Dó menor: dó bemol corresponde a seu I grau
rebaixado e é enarmônico à sensível si; com relação a Mi bemol, por sua vez, dó bemol, enquanto seu VI grau menor,
não interfere diretamente com a proeminência de sua centralidade. Ao se retomar, no cp. 25, o dó natural, tal nota tende
a ser já interpretada não como I grau de Dó, mas como VI de Mi bemol.

Se, por tais critérios, tornarmos a examinar o agregado harmônico dos compassos iniciais do
Op. 19, no 6, poderemos constatar que:

• em uma interpretação em Sol (tal como o haviam proposto Dunsby e Whittall), três das
notas que consideramos como mais diretamente responsáveis por uma suposta centralidade
sua – sol (I), fá# (sensível) e dó (IV grau justo) – estão presentes e, embora o ré natural (V
grau justo) não o esteja, não há no agregado, ao menos nos cp. 1-2, nenhuma nota (como ré#
ou ré bemol) que o contradiga. O II e o III graus (respectivamente, lá e si) estariam em

137
acordo com um tal centro. Quanto ao mi#, por fim, embora este possa vir a ser entendido,
em uma interpretação alternativa, como (a) uma sensível do próprio fá# (ver tópico seguinte),
obscurecendo assim a qualidade de sensível desta nota; ou mesmo como (b) um fá natural,
tal como notado – obscurecendo o diatonismo per se –; tal nota (mi#/fá), pelos critérios aqui
propostos, torna o agregado em questão mais ambíguo do que se ela estivesse ausente, ou
fosse substituída por um eventual mi natural ou mi bemol, mas não contradiz a interpretação
de que o agregado em questão seja, em alguma medida, representativo de Sol.

• Se, alternativamente, cogitarmos a hipótese de que o mi# se trate de uma sensível de Fá# e
propusermos uma interpretação nessa tonalidade do agregado em questão, notaremos que,
para além dessa nota, fazem-se também presentes o I e o IV justos (respectivamente, fá# e si)
de Fá#. O lá natural corresponderia a seu III grau menor e o sol natural ao II grau menor, o
qual, como colocado acima, tende a tornar a tonalidade suposta mais instável do que um
eventual II grau maior, mas não a contradiz. Sobre o dó natural, por sua vez,
correspondendo tal nota ao V grau diminuto de Fá#, podemos entender que tal nota tende a
excluir a possibilidade de que a escala inferida contivesse o V grau justo (dó#) da Tonart em
questão.

• Não sendo excluídas ainda outras possibilidades de interpretação do agregado em questão


(expostas logo abaixo), podemos até este ponto interpretá-lo como ‘difusamente’
representativo de ambas as tonalidades supracitadas, compreendendo-se Sol, ainda assim,
como um centro ‘mais’ pronunciado do que Fá#.

Ex. 17: Possível diatonismo para os cp. 1-2 do Op. 19, no 6, de Schoenberg, com as notas respectivamente relevantes às
centralidades de Sol e Fá# assinaladas.

• Sobre a interpretação em Mi menor, também assinalada por Dunsby e Whittall, a assunção


do fá natural anotado como uma enarmonia de mi# tende a afastar tal possibilidade ou, ao
menos, a propor que uma participação de Mi na centralidade do agregado em questão seja
atenuada pela presença de seu I grau aumentado. A introdução nos cp. 3-4, contudo, de ré# e

138
mi natural, tende a implicar, por nossos critérios, em interpretar a centralidade vigente em
tais compassos como distinta daquela dos cp. 1-2: com o ré# e o mi natural integrados ao
agregado em questão, passamos a encontrar neste, para além do IV e V graus justos de Mi
(respectivamente, lá e si, já presentes nos cp. 1-2), também a sensível e o I grau dessa
Tonart, tornando-a agora mais pronunciada; inversamente, o ré# ocupa a posição diatônica
que teria o V grau de Sol e, sendo este V grau agora aumentado – não justo –, podemos
entender que a centralidade de Sol se faz menos pronunciada nestes cp. 3-4 do que nos dois
compassos iniciais.

Com a introdução de ré# e mi natural, deve-se também notar que, havendo agora oito notas
no agregado e, sobretudo, formando-se neste uma espécie de cluster com ré#-mi-fá(mi#?)-fá#-sol,
já não se faz possível, por nossos critérios, circunscrevê-lo em uma escala puramente diatônica e,
conforme indicado no Ex. 18, abaixo, fazem-se possíveis interpretações que considerem, dentre mi,
mi#/fá natural e fá#, uma dentre estas três notas como desviada do diatonismo suposto.

Ex. 18: cluster formado nos cp. 3-4 do Op. 19, no 6, de Schoenberg, com distintas notas assinaladas como desviadas do
diatonismo suposto.

Retomando a questão a respeito de como lidar com as eventuais notas que não se
circunscrevam em um diatonismo suposto, entendemos que haja ao menos três maneiras de
interpretá-las contextualmente. Primeiramente, porquanto o diatonismo é aqui: (a) epistêmico e; (b)
entendido como um indicador local de centralidade, entendido, portanto, como potencialmente
dinâmico ao longo de uma obra ou passagem; em casos em que duas versões de um mesmo grau
(como, e. g., fá# e fá natural) sejam apresentadas proximamente, mas não de maneira sincrônica,
faz-se possível interpretar a ocorrência da nova versão de tal dado grau como articuladora de uma
passagem entre uma dada escala diatônica virtual e outra. Assim, no cp. 1 do Op. 19, no 6, poder-se-
ia compreender, e. g.: que lá-fá#-si estivessem circunscritas em alguma dada escala diatônica e sol-
dó-fá, em outra; e que, se fá# e fá natural vêm a soar conjuntamente, o fá# seria, em uma tal
interpretação, ou um resíduo acústico da primeira escala, uma espécie de ‘ressonância’ desta; ou
uma espécie de suspensão de parte de um diatonismo sobre outro, a qual, como tal, demandaria
resolução (a qual pode ser ou não efetuada) sobre algum grau próprio à nova escala virtual. O
principal cuidado, contudo, que se deve tomar com uma tal solução é que o excesso de segmentação
pode resultar no agrupamento de conjuntos pequenos de notas (como, neste caso específico, os dois

139
grupos de três notas), os quais poderiam, por isso mesmo, vir a ser circunscritos em uma grande
diversidade de escalas diatônicas – sobretudo nos termos em que estas são aqui compreendidas.
Desse modo, deve-se atentar para que a correlação entre um dado agregado e as centralidades
possivelmente representadas por este tende a uma tão maior arbitrariedade quanto menor for o
agregado em questão.
Uma segunda maneira como entendemos que se possa lidar com tais notas que escapem ao
diatonismo suposto é compreendê-las como potenciais aproximações melódicas a notas que se
circunscrevam em tal diatonismo. Em repertório inserido na tradição tonal, tal como o atestam as
passagens de Mozart e Bach reproduzidas abaixo, é comum que a coincidência entre duas versões
de um mesmo dado grau da escala ocorra: ora em meio a linhas ou bordaduras cromáticas, em que
uma dentre as duas notas progrida cromaticamente a alguma nota que se possa interpretar como
propriamente ‘diatônica’ (Ex. 19a); ora no VI ou VII graus de Tonarten menores, ao haver direções
melódicas contrárias entre si e que requeiram, eventualmente, o rebaixamento do VII grau (Ex. 19b),
ou a elevação do VI grau (Ex. 19c). Também nesses casos, deve-se notar, as respectivas notas que
perturbem um diatonismo puro tendem a progredir imediata- ou proximamente a alguma nota
própria ao diatonismo da passagem, se não por passo cromático, ao menos por grau conjunto.

Ex. 19: Mozart: (a) Sonata no 15, cp. 5-7; (b) Sinfonia no 38, cp. 26-27, redução; (c) Bach: Prelúdio, BWV 869, cp. 23-
24.

140
Em casos mais distantes de uma morfologia tonal convencional, tal como no Op. 19, n o 6, se
as notas não circunscritas nos diatonismos supostos já não progridem consistentemente por passos
cromáticos ou grau conjunto, isto não impede a interpretação de que tais notas representem desvios
de tais escalas supostas; de que tais notas sejam, assim, compreendidas como dissonantes com
relação a tais escalas; de que, na condição de dissonantes, estas apontem para resoluções as quais,
ainda que não efetuadas, são especificáveis: se tais dissonantes se tratam de notas desviadas de uma
escala diatônica específica – ainda que hipotética –, então suas possíveis resoluções hão ou
haveriam de consistir na própria progressão a algum grau diatônico da escala em questão.
Em uma abordagem cujo propósito seja puramente analítico, deve-se reconhecer que tal
especulação a respeito de quais específicas notas seriam, a cada momento, dissonantes com relação
a um diatonismo epistêmico e de quais seriam suas possíveis resoluções não-efetuadas pode resultar
em uma radical abstração com relação à atualidade da obra, sobretudo se esta não tiver sido
concebida funcionalmente26. Se, por outro lado, a análise mira uma ulterior ação composicional
sobre o objeto examinado, então, uma tal especificação (a) das notas que fundamentariam este ou
aquele diatonismo hipotético; (b) das notas mais responsáveis pelo delineamento deste ou daquele
centro; (c) das notas que se desviam de tais diatonismos e contradizem ou obscurecem as
centralidades inferidas; (d) de suas possíveis resoluções em direção a que se torne ‘mais’
pronunciado este ou aquele centro etc.; uma tal especificação desses vários fatores dá margem para
e favorece que o compositor atue com precisão em tornar mais ou menos pronunciado, a cada
momento, este ou aquele centro possível, conforme suas intenções para o delineamento em maior
escala da passagem ou da obra em questão.
Tornemos a exemplificar com o Op. 19, no 6. Apontáramos, pouco acima, como, com a
introdução de ré# e mi natural nos cp. 3-4, far-se-ia possível uma interpretação de tais compassos
em Mi, reconhecendo-se, contudo, uma das notas do agregado harmônico formado – no caso desta
específica interpretação, o fá natural/mi# – como dissonante com relação a uma suposta escala
diatônica fundada em mi. Se, em uma dada ação composicional sobre tais compassos, desejarmos
tornar mais pronunciados tal diatonismo suposto e sua correspondente centralidade, bastará, e. g.,
efetuar uma resolução melódica de fá natural sobre mi, ou de mi# sobre fá#. A fim de não
descaracterizar o piano já escrito, podemos acrescentar uma linha melódica que realize uma tal
resolução, tal como no Ex. 20, abaixo, enquanto o fá natural do original permanece sustentado.

26
Tal crítica é formulada, e. g., em Rosen: 1975, pp. 26-7; Whittall: 1993, p. 2; ou Dunsby e Whittall: 2011[2010], p.
100. Lidamos com tal problema sobretudo no Cap. II. 5, pp. 92 ff.

141
Ex. 20: Schoenberg: Op. 19, no 6, cp. 3-4, com linha acrescentada, enfatizando a centralidade de Mi.

Se, com relação aos cp. 1-2, por sua vez, desejarmos valorizar uma centralidade em que Sol
se faça mais pronunciado – tal como de fato o entendêramos pouco acima – e, ademais, desejarmos
enfatizar o contraste com relação à proeminência assumida por Mi nos compassos seguintes,
podemos, por nova ação composicional: (a) acrescentar uma linha que efetue uma progressão de
mi# a fá#, contrastando o mi# ao fá natural por vir no cp. 3; (b1) introduzir o V grau justo de Sol (ré
natural), até então ausente e; (b2) introduzi-lo também por meio de um passo cromático, vindo de
mi bemol, de modo que, quer se considere mi# como próprio ao diatonismo vigente, quer se
considere mi bemol como tal, em qualquer das duas hipóteses o mi natural a ser centralizado nos cp.
3-4 se faz excluído desta versão dos compassos iniciais (Ex. 21).

Ex. 21: Schoenberg: Op. 19, no 6, cp. 1-2, com linha acrescentada, enfatizando a centralidade de Sol.

142
Por recursos semelhantes, ainda outros centros podem ser feitos mais pronunciados, quer a
fim de extremar o contraste entre os cp. 1-2 e os cp. 3-4, quer a fim de que, em cada uma das quatro
ocorrências do agregado sol-dó-fá-lá-fá#-si ao longo da peça, seja expressa por este uma
centralidade distinta etc. Nos exemplos reproduzidos abaixo, acrescentamos linhas aos cp. 1-2 (Ex.
22a-b) e ao cp. 9 (Ex. 22c) que tragam à tona, respectivamente, centralidades de Fá# Frígio, Dó
menor e Lá bemol maior – vindo esta última a integrar ao diatonismo suposto o si bemol e o lá
bemol do compasso final da obra.

Ex. 22: Schoenberg: Op. 19, no 6; (a) cp. 1-2, com linha acrescentada, enfatizando a centralidade de Fá#; (b) cp. 1-2,
com linha acrescentada, enfatizando a centralidade de Dó; (c) cp. 9, com linha acrescentada, enfatizando a centralidade
de Lá bemol.

A terceira maneira, finalmente, como entendemos que se possa lidar com tais notas não
circunscritas no diatonismo suposto é considerá-las como possíveis representantes de toda uma
outra escala diatônica concomitante àquela já suposta. O acorde do recitativo final de Salome, ao
menos da maneira como o interpretáramos no Cap. II. 5, oferece-nos um exemplo, em repertório,

143
em que o cromatismo vertical pode ser compreendido como resultante da interação, em um único
agregado harmônico, entre dois acordes diatônicos. Em tal acorde, formado por dó#-mi-fá##-sol#-
lá#-lá-si bemol, vemos que não apenas coexistem duas versões (sustenido e natural) do grau lá,
mas também duas versões enarmônicas de uma mesma classe de alturas: lá# e si bemol (Ex. 23a,
abaixo). Em parte, tal peculiaridade de sua grafia se explica mais simplesmente por sua
conveniência: se por um lado a grafia ‘lá#’ condiz com as relações – locais e em larga escala – de
tal passagem com as Tonarten maior e menor de Dó# (já apontadas em nossa análise da obra em
questão), por outro, havendo um trilo de semitom sobre lá natural a ser executado pelas flautas e
clarinetas, é evidentemente mais familiar ao músico a notação de um trilo de segunda menor do que
de um trilo de uníssono aumentado – e isto justificaria, pragmaticamente, a opção por ‘si bemol’.
Há, contudo, também aspectos concernentes à funcionalidade de tal acorde que justificam, em sua
grafia, tal coexistência entre lá# e si bemol: se tal acorde consistiu em uma espécie de dominante
germânica (ré#) da dominante (sol#) de Dó#; se tal dominante germânica é enarmônica a um lá
dominante e; se a própria relação entre lá dominante e dó# maior, ou entre lá maior e dó# maior
seria explorada pouco adiante, no final arioso da cena; então, faz-se possível compreender: (1) que
interagem, no agregado em questão, ambos os acordes de ré# dominante e de lá dominante, ambos
‘diatônicos’, no sentido amplo do termo aqui empregado (ver Ex. 23b, abaixo); (2) que, se ambos os
acordes são diatônicos, ambos podem ser reportados a diatonismos que os circunscrevam; (3) que,
assim, (3a) lá# consiste na quinta de ré# dominante e (3b) lá natural e si bemol consistem,
respectivamente, na fundamental e na nona bemol de lá dominante; (4) que a constatada
coexistência, no acorde, entre duas versões de um mesmo grau e entre duas versões enarmônicas de
uma mesma classe de alturas pode ser atribuída à coexistência, antes, entre duas escalas diatônicas,
ainda que ambas sejam, aqui, apenas parcialmente enunciadas (Ex. 23c); (5) que, assim, para além
da atual coexistência entre lá e lá#, ou entre lá# e si bemol, podem ser entendidos ainda como
virtualmente coexistentes, no acorde em questão: fá## (terça de ré#) e sol natural (sétima de lá),
este sol natural e o sol# já expresso (cf. Ex. 65, p. 104, acima), si bemol e si natural ou sustenido,
fá## e fá natural ou sustenido etc.

144
Ex. 23: (a) Strauss: acorde do recitativo final de Salome, redução; (b) decomposição do acorde em um ré# dominante e
em um lá dominante; (c) possíveis diatonismos implicados no ré# dominante e no lá dominante.

Também alguns dos acordes da passagem abaixo reproduzida da Sonata no 15 (1788) de


Mozart podem ser compreendidos de maneira semelhante:

Ex. 24: Mozart: Sonata no 15, K. 533, mov. I, cp. 215-216.

145
III. 4. Relações funcionais entre centralidades ‘difusas’

Propusemos acima uma maneira como entendemos que se possa, mesmo em contextos não-
triádicos e, ao menos a princípio, não-diatônicos: (a) identificar possíveis diatonismos locais, ainda
que não-unívocos e a posteriori, e; (b) correlacioná-los a possíveis centralidades por eles – também
a posteriori e de maneira não-unívoca – representadas. Mais fundamentalmente, deve-se notar ainda
que, para além da identificação de possíveis centralidades, uma tal abordagem propicia que, mesmo
em passagens não concebidas funcionalmente: (c) sejam especificados desvios com relação tanto
aos respectivos centros locais possíveis, como com relação aos próprios diatonismos supostos; (d)
que, assim, possam ser especificados notas, acordes etc. dissonantes e, sobretudo, as maneiras como
o são; e, finalmente, (e) que haja, localmente, uma manutenção epistêmica dos princípios funcionais
de (e1) hierarquia – porquanto cada nota, em uma dada passagem, é entendida como responsável de
maneira específica pelo delineamento ou obscurecimento das supostas centralidades vigentes – e
(e2) de teleologia – porquanto, sendo especificáveis as maneiras como os vários dissonantes se
desviam das centralidades supostas, são também especificáveis suas possíveis resoluções.
A fim de estendermos nossa capacidade de identificar possíveis relações funcionais de um
nível local para a globalidade de uma obra e, com isso, propiciarmos a elaboração e participação de
tais relações funcionais na estruturação ou delineamento formal de tal obra, entendemos que
possamos, a exemplo da monotonalidade de Schoenberg, compreender tais centralidades locais
como, elas próprias, passíveis de serem funcionalmente inter-relacionadas. Para tanto, contudo,
devemos reconhecer, também aqui – tal como o fizéramos com relação à identificação de
diatonismos virtuais –, alguns dos problemas com os quais uma tal abordagem haverá de lidar.
Primeiramente, deve ser posta em questão a própria adequação da noção schoenberguiana de
‘monotonalidade’ a obras que não sejam concebidas em função de expressar uma única tonalidade
principal [Haupttonart] à qual todas as demais tonalidades se reportem – quer porque tais obras, a
exemplo do Prelúdio de Tristão…, ou de “Mignon II”, de Wolf, pareçam fundadas sobre duas ou
mais Tonarten principais, quer porque tenham, mais simplesmente, abandonado a tonalidade
funcional, a exemplo dos Opp. 11 e 19 de Schoenberg. Em sentido estrito, se Schoenberg entende
por ‘monotonalidade’ o princípio pelo qual toda tonalidade secundária em uma dada obra está
subordinada a uma única tonalidade principal, então tal noção dificilmente se aplicará de maneira
adequada a tais casos – e, de fato, o próprio Schoenberg, ao abordar por tal princípio a Fantasia, Op.
77 (1809) de Beethoven, iniciada em Sol menor e terminada em Si maior, veio a considerar que o
produto de sua análise seria “muito artificial” e serviria, antes, “para demonstrar a ausência de um
centro tonal” (1954[1948]; p. 186; cf. 2004[1948], p. 209).

146
Por outro lado, podemos nos valer antes da própria premissa sobre a qual está fundada a
noção de ‘monotonalidade’ – i. e., de que as várias Tonarten visitadas ao longo de uma dada obra
possam ser funcionalmente relacionadas entre si – para que venhamos a compreender, em nossa
abordagem analítico/composicional, as várias centralidades locais por nós identificadas em uma
dada obra ou passagem como possíveis regiões umas das outras. Desse modo, mesmo que as várias
centralidades locais de uma obra não sejam convergentes em torno de uma única Haupttonart, elas
poderão, ainda assim, ser entendidas como constituintes de uma única rede de inter-relações
funcionais, em que (a) tais centralidades portam funções, umas com relação às outras; (b) em que
centralidades em torno das quais outras venham a convergir sejam entendidas, a exemplo de uma
Haupttonart, como hierarquicamente superiores com relação às demais; mas que (c) tais
centralidades privilegiadas não deixem de, elas próprias, serem compreendidas (c 1) como
funcionalmente relacionadas entre si e (c 2) como ainda portadoras de funções com relação àquelas
que lhes sejam subordinadas. Assim, far-se-ia relevante apontar que as duas Haupttonarten do
Prelúdio de Tristão… (Lá, Dó e suas homônimas) são paralelas entre si; que o Lá bemol maior
predominante em “Mignon II” é uma napolitana do Sol menor em que termina a canção e que o Sol
menor pode portar, reciprocamente, alguma funcionalidade com relação a Lá bemol etc.
Em segundo lugar, deve-se reconhecer que a consistência com que as centralidades poderão
ser inter-relacionadas tende a ser desafiada pelo fato de que tanto as centralidades locais, por si
mesmas, como as possíveis relações funcionais entre estas podem ser frequentemente entendidas de
duas ou mais maneiras distintas. Sobre as centralidades locais, entendemos que estas tendam a uma
maior ambiguidade (a) tanto à medida em que as respectivas passagens que supostamente as
expressem portem mais desvios com relação às suas respectivas bases diatônicas convencionais,
como (b) à medida em que tais centralidades locais, ou os diatonismos que as representem se façam,
a exemplo dos Durchführungen dos séc. XVIII e XIX, mais instáveis, obscurecendo-se as passagens
entre as possíveis centralidades vigentes a cada momento e havendo uma mais intensa interação
entre estas. Quanto às relações funcionais entre tais centralidades, por sua vez, podemos entender
que, a exemplo do que observáramos com relação às duas tonalidades iniciais de “Auf dem Flusse”,
de Schubert (Mi menor e Ré# menor: ver pp. 116 ff., acima; cf. Cap. II. 2, pp. 45 ff.), quanto mais
distantes, em termos funcionais, estiverem entre si duas Tonarten – ou, mais amplamente, duas
centralidades locais –, mais intermediada por outras regiões será a relação entre tais Tonarten, mais
possibilidades de intermediação haverá entre estas e, consequentemente, mais ambígua tenderá a ser
tal inter-relação funcional.
Em parte, a identificação de possíveis diatonismos locais, a especificação de notas
dissonantes com relação aos respectivos diatonismos supostos e, sobretudo, a especificação das
possíveis resoluções de tais dissonantes nos permitem em muitos casos, por meio de uma ação

147
composicional: (a) tornar mais pronunciado um ou outro dentre os possíveis centros expressos por
um dado acorde ou passagem, atenuando, assim, a ambiguidade de uma tal centralidade local e,
ademais; (b) eleger, dentre tais centros possíveis, aqueles mais diretamente relacionados entre si, ou
a uma possível Haupttonart que se deseje privilegiar, tornando, assim, mais claras e convergentes
as relações funcionais entre os acordes e passagens envolvidos em uma tal elaboração
composicional. No Op. 19, no 6 de Schoenberg, e. g., para além de ser possível, tal como
demonstrado pouco acima, inflectir um mesmo (ou basicamente um mesmo) dado agregado
harmônico em direção à expressão mais clara de ao menos cinco centros distintos por meio da
adição, ao piano original e inalterado, de uma única linha melódica; posto que alguns dentre tais
centros possíveis são mais proximamente relacionados a Sol – sobretudo Mi menor (paralela) e Dó
menor (subdominante menor), para além do próprio Sol –, poder-se-ia também (como o atesta o Ex.
25, na página seguinte) fazer convergir as várias ocorrências do agregado em questão em torno de
tal tonalidade, concedendo-se assim a esta um status privilegiado com relação às demais.

148
Ex. 25: Schoenberg: Op. 19, no 6, com adição de linha melódica. Convergência em torno de Sol maior/menor.

149
Por outro lado, se reconhecermos: que um procedimento como o supracitado – i. e., de
atenuar, por meio de uma ação composicional, a ambiguidade das centralidades locais – tenha sua
eficiência limitada conforme o objeto abordado seja mais intensamente cromático ou instável; que,
por vezes, a ação composicional possa ela própria conceder primazia a uma dada dissonância
processual identificada no objeto, limitar-se deliberadamente pelas possibilidades oferecidas por tal
dissonância processual e assumir como subordinada a tais possibilidades a busca por evidenciar
centralidades locais, inter-relacioná-las etc. (oferecemos exemplo especialmente claro de uma tal
conduta composicional em minha reelaboração do tema das Variações Orquestrais, Op. 31 de
Schoenberg, relatada adiante, pp. 178 ff.); ou, ainda, que, por vezes, a ação composicional possa
estar interessada antes na própria ambiguidade funcional do objeto do que em uma relação
funcional específica (ver relato composicional de estrada esquecida…, adiante, sobretudo pp. 210-
1); então, perante tais casos, recoloca-se a questão a respeito de como lidar com o caráter difuso das
centralidades locais e de suas funcionalidades recíprocas, sem que se abra mão de inter-relacioná-
las funcionalmente.
Uma vez mais, podemos encontrar em repertório inserido na própria tradição tonal um
modelo para que lidemos com o problema colocado. Embora o “estilo sonata”, como o denomina
Rosen, seja identificável não apenas em obras instrumentais, mas também em óperas e missas do
séc. XVIII, ou mesmo em eventuais obras com caráter programático – como o segundo movimento
da Sinfonia no 6, Op. 68 (1808) de Beethoven – e embora o texto ou o eventual conteúdo
programático costumem ter alguma influência no delineamento formal de tais obras, a estruturação
formal destas parece ser governada sobretudo por relações funcionais em larga-escala. Como o
demonstra Rosen em seu Sonata Forms (1980), especialmente nos Allegros, mas também em outros
tipos de movimentos, há frequentemente uma oposição em larga-escala entre a Haupttonart e sua
dominante – ou alguma outra tonalidade secundária –, em que material originalmente apresentado
nessa tonalidade dissonante tende a ser resolvido ao ser reexposto na Haupttonart (consonante) e
mesmo material originalmente exposto na própria Haupttonart será eventualmente reelaborado em
maior proximidade com a tônica, caso enfatizasse alguma outra função desta em sua primeira
apresentação. (Rosen, op. cit., pp. 301-4, o exemplifica com o Finale do quarteto Op. 17, no 1 de
Haydn, em que um tema exposto na Haupttonart, mas enfático de sua subdominante, vem a ser
reelaborado na tônica já nos últimos compassos da coda do movimento em questão.)
Deve-se notar, contudo, que são também características do estilo sonata as passagens
intensamente modulatórias de desenvolvimento motívico (os Durchführungen), nas quais, como já
observado, tal caráter modulatório, bem como a passagem por regiões distantes – não apenas da
Haupttonart, mas também entre si – tendem, muitas vezes, a obscurecer suas relações funcionais
internas. Com relação às seções tipicamente mais extensas de Durchführung que costumam suceder,

150
sobretudo em Allegros, a seção estabelecida sobre a tonalidade dissonante, Rosen aponta como tais
Durchführungen teriam a função de “intensificar a polarização [entre tônica e dominante, em larga-
escala] e retardar a resolução” formal sobre a Haupttonart (id., pp. 262-3 e 106) e, afora a textura
tipicamente polifônica e fragmentária, o próprio caráter modulatório de tais seções far-se-ia
responsável por estender tal dissonância formal: a instabilidade do Durchführung faz-se dissonante
em oposição à estabilidade consonante assumida pela Haupttonart na exposição e na recapitulação.
Com relação, por sua vez, às passagens de Durchführung comumente ocorridas já após o
retorno à Haupttonart – o ‘desenvolvimento secundário’ –, Rosen aponta como, aqui, as técnicas de
desenvolvimento já não têm a função de prolongar a tensão formal gerada na exposição, mas, ao
contrário, “de reforçar a resolução sobre a tônica” (id., p. 106): neles, a tensão harmônica gerada
pela oposição entre a Haupttonart e a tonalidade de sua dominante seria diminuída ao se introduzir
uma “alusão à subdominante ou às tonalidades ‘bemóis’ relacionadas” (id., p. 289). “A
subdominante”, escreve Rosen, “assume um papel especial no estilo sonata; ela age, ela mesma,
como uma força de resolução, uma anti-dominante, de fato, e há uma tendência na segunda metade
de uma sonata de mover-se em direção à subdominante e às tonalidades bemóis relacionadas” (id., p.
288).
Ao tratarmos, em nosso Cap. I. 2. 3, das funções lato sensu que as funções stricto sensu (i. e.,
as funções tal como conceituadas por Riemann) portariam, apontáramos já como uma das principais
funções (lato sensu) das tríades de subdominante (maior, menor e respectivas paralelas) seria a de
evidenciar que as tríades sobre o I e o V graus de uma dada Tonart portariam, respectivamente, as
funções (stricto sensu) de tônica e dominante – i. e., que o V grau não se trataria, no devido
contexto, de uma tônica da qual o I grau seria a subdominante – e, dentre as maneiras como isto se
dá, algumas não seriam exclusivas a tais tríades de subdominante. Primeiramente, podemos
entender que: (a) se, frente às tríades de I e V graus de uma dada Tonart, as tríades de
subdominante são mais diretamente relacionadas àquela do que a esta e; inversamente, (b) se a
tríade de dominante é mais diretamente relacionada ao I grau do que às tríades de subdominante;
então, (c) dadas três tríades hipotéticas respectivamente referentes aos graus/funções supracitados,
estas tendem a convergir em torno do I grau, concedendo-lhe, também por isso, centralidade e,
possivelmente, o status de tônica (ainda que local). Se, ainda, reportando-nos aos itens (a) e (b),
podemos entender que tríades proximamente relacionadas (em termos funcionais) às subdominantes
de uma dada Tonart tendem também a ser mais proximamente relacionadas à tônica desta Tonart
do que à dominante (ver Ex. 26, abaixo); então, perante a tônica e a dominante de uma dada Tonart,
também as tríades que, embora não correspondentes às suas subdominantes stricto sensu, sejam
funcionalmente relacionadas a estas tenderão a convergir sobre a tônica. Ademais, se temos, por
meio do conceito de regiões de Schoenberg, inter-relacionado funcionalmente centralidades locais

151
de maneira análoga a como seriam relacionadas suas respectivas tríades centrais, então, podemos
entender que tal propriedade das subdominantes e dos acordes mais proximamente relacionados a
esta se estenda também ao nível das regiões tonais: frente a uma Haupttonart e à região de sua
dominante, tanto as regiões de subdominantes como as regiões funcionalmente relacionadas a estas
tenderão a convergir sobre a Haupttonart.

Ex. 26: Tríades de (a) fá maior; (b) fá menor; (c) lá bemol maior; (d) ré bemol maior, respectivamente relacionadas a
uma Haupttonart de Dó maior, à região de sua subdominante (Fá maior) e à região de sua dominante (Sol maior). Os
números à direita de cada interpretação funcional, variando de 1 a 5, reportam-se à classificação das relações funcionais
como mais ou menos próximas de um dado centro tonal, conforme proposto por Schoenberg (2004[1948], pp. 91-8), e,
embora a objetividade de tal classificação possa ser posta em questão, ela tem aqui o mero intuito de favorecer uma
visualização das distâncias funcionais relativas.

Uma segunda maneira como podemos entender que se dê tal função (lato sensu) da
subdominante de centralizar o I grau, em oposição ao V – e que, igualmente, se estende para além
das tríades propriamente de subdominante –, reside no fato de que subdominantes e dominante se
equilibram em torno da tônica ao se situarem, com relação a esta, nas respectivas direções de
bemóis (i. e., à sinistra, no ciclo de quintas) e dos sustenidos (à destra; ver Ex. 27). Se observarmos
que, de modo geral, (a1) as tríades ou regiões funcionalmente mais próximas da subdominante do
que da dominante situam-se também, predominantemente, na direção dos bemóis, com relação à
tônica; que, inversamente, (a2) as tríades ou regiões funcionalmente mais próximas da dominante
do que da subdominante situam-se, via de regra – uma exceção é a homônima da dominante –, na
direção dos sustenidos; e, se considerarmos, ademais, que (b1) as sucessivas dominantes de
dominantes anteriores fazem-se progressivamente ‘mais sustenidas’ com relação a estas (Ex. 28a) e,
inversamente, (b2) que as sucessivas subdominantes de subdominantes anteriores fazem-se
progressivamente ‘mais bemóis’ (Ex. 28b) – o que explica a equivalência que Rosen faz entre
‘direção das subdominantes’ e ‘direção dos bemóis’ (ver, e. g., 1980, pp. 288-90) –; então,
poderemos considerar: (1) que as tríades e regiões ‘mais sustenidas’, com relação a uma dada
tônica, são, via de regra, mais próximas de sua dominante; (2) que, inversamente, as tríades e
regiões ‘mais bemóis’, com relação a uma dada tônica, são, via de regra, mais próximas de sua
subdominante; (3) que, de modo geral, as regiões ‘bemóis’ e ‘sustenidas’ com relação a uma dada
Haupttonart podem cumprir com as respectivas funções lato sensu da subdominante e da dominante
de se oporem, uma à outra, em torno de e convergindo na Haupttonart.

152
Ex. 27: Tríades de dominante e subdominante representadas no ciclo de quintas, com relação à tônica.

Ex. 28: Representação, no ciclo de quintas, de: (a) sucessivas dominantes de dominantes; (b) sucessivas subdominantes
de subdominantes.

Há ao menos dois cuidados a se tomar em uma tal correlação entre dominantes e sustenidos,
ou entre subdominantes e bemóis. Primeiramente, posto que, no temperamento moderno, ou em
sistemas afins de afinação, qualquer nota pode vir a ser enarmonizada, deve-se observar que: (1) em
boa medida, identificar se uma dada nota, acorde ou região é ‘mais sustenida’ ou ‘mais bemol’
(com relação a uma dada referência) depende da maneira como tal nota, acorde ou região vieram a
ser introduzidas; (2) que, assim, quanto mais remoto, no ciclo de quintas, for um dado acorde ou
região e quanto mais brusca a maneira como este se introduz, mais ambígua sua condição de
‘sustenido’ ou ‘bemol’ com relação ao acorde ou tonalidade de referência e; (3) que um progressivo
direcionamento às regiões bemóis conduzirá, eventualmente, às regiões sustenidas – e vice-versa –
e ainda, ulteriormente, de volta ao ponto de partida de uma tal progressão. A esse respeito,

153
demonstráramos já, na Sinfonia no 3 de Brahms, e. g., como a tonalidade secundária de Lá maior,
embora se tratasse de uma dominante da paralela da Haupttonart Fá maior (‘sustenida’, portanto,
com relação a essa Haupttonart), fora alcançada por meio da direção dos bemóis (ver pp. 44-5, Cap.
II. 2, acima), ou como no final de Gesang der Parzen Brahms partira e retornara à Haupttonart Ré
por meio de um contínuo direcionamento aos sustenidos (ver, pp. 45-7, acima Ex. 16). (Realizo algo
semelhante em canção sobre o poema “Debussy”, de Manuel Bandeira, reproduzida pouco adiante,
Ex. 40, p. 162).
Em segundo lugar, deve-se reconhecer que apenas parte da funcionalidade de dominantes e
de subdominantes – i. e., a função lato sensu de que estas se oponham, uma à outra, em torno da
tônica, como já colocado – pode ser generalizada às respectivas direções de sustenidos e bemóis e
que, assim, as funções de dominante e subdominante tendem a ser mais plenamente realizadas pelos
acordes ou regiões respectivamente fundados sobre as próprias dominantes e subdominantes de
uma dada tonalidade de referência do que por quaisquer outros acordes e regiões sustenidos ou
bemóis com relação a tal tonalidade central. Semelhantemente, entendemos que as funcionalidades
de demais tonalidades secundárias inclua, mas não se reduza ao fato de estas se situarem, conforme
o caso, na direção dos bemóis, ou dos sustenidos, com relação à tonalidade de referência e, assim,
identificar que uma dada tonalidade secundária se situe na direção das subdominantes ou das
dominantes não exclui a possibilidade de que se lhe atribua uma funcionalidade específica (e. g., de
homônima menor, de dominante da paralela, de napolitana etc.).
Feitas tais observações, uma correlação, como aqui se propõe, entre as direções sustenidas e
bemóis e as funcionalidades, respectivamente, de dominantes e subdominantes oferece-nos uma
diversidade de possibilidades, tanto analíticas (quanto à identificação de relações funcionais), como
composicionais (quanto à elaboração de tais relações).
Primeiramente, posto que identificar se um dado acorde ou passagem se situa na direção dos
sustenidos ou dos bemóis com relação a uma tonalidade de referência prescinde, em boa medida, da
especificação da centralidade vigente em tal acorde ou passagem, bem como da especificação de
sua função com relação à referência, uma correlação como a que ora se propõe favorece que, como
o desejáramos, inter-relacionemos funcionalmente centralidades locais, mesmo mediante a possível
ambiguidade de tais centralidades e de suas funcionalidades. Em “Betrachte meine Seele” – Paixão
segundo João, BWV 245, no 31 (1724) –, e. g., após estabelecida, nos compassos iniciais, a
Haupttonart de Mi bemol maior, há, dos compassos 3 a 9, uma longa e variada sucessão de
dominantes – algumas das quais diminutas e, portanto, errantes –, de modo que, como se observa
no Ex. 29, abaixo, nenhuma centralidade se faz claramente expressa na passagem até que haja, no
cp. 9, uma cadência sobre Sol menor. Ainda assim, faz-se claro na passagem o progressivo
direcionamento rumo aos sustenidos e, de fato, a própria visita a Sol menor – ao invés da mais

154
convencional cadência sobre a dominante Si bemol – favorece que tal direção seja extremada: ao
passar, pouco antes da cadência, pela dominante da dominante de Sol (i. e., lá dominante) e por sua
dominante individual (mi dominante), Bach vem a introduzir as notas dó# e sol# no cp. 8, notas
mais sustenidas do que normalmente se encontraria, sem que se recorresse a cromatismo linear, em
Mi bemol ou Si bemol maior. Assim, ainda que tal passagem não expresse centralidades locais
claras e pudesse vir a ser entendida, nos termos de Schoenberg, como um exemplo de ‘harmonia
errante’ (2004[1954], pp. 19 e 187-8), ou de ‘tonalidade suspensa [aufgehobene Tonalität]’
(2001[1922], p. 529), pelos critérios ora propostos podemos compreender que, grosso modo, ela
realiza uma incursão pela região mais ampla de dominantes de Mi bemol. Após um imediato retorno,
no cp. 10, a essa tonalidade principal, a ênfase sobre as regiões ‘mais bemóis’ da subdominante lá
bemol (cp. 11-13) e da homônima menor (Mi bemol menor, cp. 14-15) parece reequilibrar as duas
direções em torno da Haupttonart (ver Ex. 30).

Ex. 29: Bach: “Betrachte meine Seele”, cp. 3-9.

155
Ex. 30: Representação, no ciclo de quintas, das seguintes tonalidades ou passagens de “Betrachte meine Seele”: (a) Mi
bemol maior, cp. 1-2; (b) primeiros dois tempos do cp. 8; (c) Sol menor, cp. 9; (d) ênfase sobre a subdominante (lá
bemol maior), cp. 11; (e) ênfase sobre a homônima (mi bemol menor), cp. 14; (f) Mi bemol maior, cp. 16-18.

Conciliada à nossa concepção estendida de ‘diatonismo’, uma consideração de tal gradação


entre bemóis e sustenidos pode ser aplicada não apenas às relações entre Tonarten, mas também à
própria constituição interna destas e, assim, subsidiar a manutenção de uma concepção diatônica da
tonalidade funcional. Ao invés de considerarmos as várias Tonarten possíveis como classificáveis
em dois ou três tipos de modos estritamente diatônicos (a saber: maior, menor e frígio), nos quais
qualquer outra nota seria incondicionalmente considerada como desviada (ou representante de uma
modulação, ou ‘emprestada’ etc.); ou, ao contrário, ao invés de considerarmos qualquer Tonart
como continente a priori do total cromático – e assumirmos, assim, como indistintas as tonalidades
maior, menor etc. –; podemos entender, como já colocado, que cada dada centralidade tonal possa
ser representada por uma variedade de escalas diatônicas (lato sensu) e que os convencionais modos
maior e menor sejam versões respectivamente ‘mais sustenidas’ e ‘mais bemóis’ de uma dada
Tonart, havendo entre estes e para além destes outros diatonismos possíveis, ora ‘mais bemóis’, ora
‘mais sustenidos’, que expressem – de maneira ora mais, ora menos pronunciada – o mesmo dado
centro tonal (Ex. 31).

156
Ex. 31: Representação no ciclo de quintas: (a) do convencional modo maior de Dó; (b) do convencional modo menor de
Dó; (c) de uma variedade frígia de Dó.

Na frase final do Ave verum corpus de Mozart (Ex. 32), e. g., em que a Haupttonart de Ré
maior está já restabelecida e os acordes de sol menor (cp. 39) e mi maior (cp. 40) podem ser
respectivamente compreendidos como subdominante menor de Ré e dominante da dominante de Ré,
parte do efeito obtido pode ser atribuído – para além da ambiguidade da tétrade diminuta que
intermedia linearmente os dois acordes em questão, ou da carga semântica da passagem – à súbita
transição de um polo bemol da Haupttonart a um polo sustenido da mesma (Ex. 33).

Ex. 32: Mozart: Ave verum corpus, cp. 37-43.

157
Ex. 33: Representação no ciclo de quintas dos acordes de sol menor, de mi maior e da tônica ré.

Para um exemplo de aplicação de tais critérios a uma obra menos provavelmente concebida
funcionalmente, em “Ein Vöglein singt am Deinem Fenster”, quarta peça de Amour (1976), de
Stockhausen, uma basicamente mesma sequência de classes de alturas e de valores rítmicos é, por
cinco vezes, reiterada ao longo da peça, sendo deformada, a cada vez, por deslocamentos de registro,
incrustações de apojaturas e variações dinâmicas e de mode de jeu. Para além de tais deformações
conferirem à obra um gestual fragmentário, tipicamente serial (ver Ex. 34, abaixo), a própria
elaboração da linha parece se dar por um procedimento pós-serial – uma dissonância processual, da
perspectiva aqui assumida –: as catorze primeiras notas da linha, ignorando-se apojaturas e trinados,
apresentam já as doze notas do total cromático e mesmo as duas notas a serem até então repetidas, i.
e., sol# e si, o são imediatamente (ver Ex. 35). (De fato, a própria repetição parece aqui tratada de
maneira pós-serial, posto que ela parece dar-se em uma máxima variedade de níveis possíveis:
localmente, por meio sobretudo dos trinados, apojaturas e tremolos; em larga escala, pelas
supracitadas reiterações de tal sequência melódica; no interior da própria sequência, com a repetição
de sol#-si, com a repetição também imediata de ré# e, ao cabo da apresentação do total cromático,
com a repetição, reordenada, das sete primeiras notas apresentadas, em que uma destas, o sol, é ela
própria reiterada por três vezes.)

Ex. 34: Stockhausen: “Ein Vöglein singt am Deinem Fenster”, cp. 1-8.

158
Ex. 35: Sequência de classes de alturas em “Ein Vöglein singt am Deinem Fenster”, ignorando-se apojaturas, trinados e
variações de registro. Estão assinalados segmentos diatônicos.

Se seccionarmos tal sequência melódica em fragmentos diatônicos, nos termos acima


expostos, e considerarmos, assim, o dó#, em suas duas ocorrências, como uma aproximação
cromática entre ré e dó naturais, mesmo que tais fragmentos diatônicos não sejam unívocos quanto
às possíveis centralidades por eles expressas, ou quanto às específicas relações funcionais entre tais
centralidades, podemos ainda assim compreender que tal sequência cumpra, grosso modo, com um
direcionamento aos sustenidos – i. e., às dominantes, lato sensu – e um subsequente retorno à região
inicial (Ex. 36).

Ex. 36: Representação no ciclo de quintas dos respectivos segmentos diatônicos acima assinalados na seqüência
melódica de “Ein Vöglein singt am Deinem Fenster”.

No duo de violas reproduzido abaixo (Ex. 37), escrito no início de 2016, escrevi a viola 1 de
maneira em alguma medida semelhante à sequência melódica reiterada em “Ein Vöglein singt…”:
em uma melodia a cada momento diatônica, assumi como projeto apresentar todas as doze notas do
total cromático, de modo que a última destas fosse introduzida apenas na última frase da peça. Na
viola 2, escrita predominantemente em due corde e sempre em cordas soltas, as quatro cordas
deveriam ser todas, também, empregadas ao longo da peça, sendo a última destas executada apenas
ao final.

159
Ex. 37: Duo para professor e aluno de viola.

Após ter determinado a ordem em que os pares de cordas soltas seriam introduzidos – sol-ré,
ré-lá, sol-ré, dó-sol –, sendo as duas cordas mais agudas as ‘mais sustenidas’ e as mais graves, as
‘mais bemóis’, decidi escrever a viola 1 de modo que tal relação se invertesse: que os pares de
cordas ‘mais bemóis’ fossem inseridos no contexto ‘mais sustenido’ que permitisse preservar uma
centralidade clara – e, assim, tais pares foram tratados, basicamente, em Si menor – e que o par de
cordas ‘mais sustenido’ fosse tratado na região ‘mais bemol’ pela qual a peça viesse a passar – e tal
par foi tratado, basicamente, em Sol menor (Ex. 38). Assim, embora a relação funcional entre Si
menor e Sol menor seja indireta e difícil de se especificar se não por intermédio de uma terceira
tonalidade (e. g., Ré maior, ou Sol maior), faz-se claro no delineamento formal da peça um percurso
de Si à região ampla das subdominantes (i. e., dos bemóis) e de volta a Si e, sobretudo, deve-se
observar como tal percurso harmônico interage tanto local-, como globalmente com as
especificidades do material harmônico de que partira o processo composicional da peça – i. e., as
cordas soltas da viola, por um lado, e uma ordenação em larga-escala do total cromático, por outro.

160
Ex. 38: Representação no ciclo de quintas dos seguintes trechos do duo de viola: (a) cp. 5-6, Si menor, pedal em sol-ré;
(b) cp. 7-8, Sol menor, pedal em ré-lá; (c) cp. 13-14, Si menor, pedal em dó-sol.

Para além de possibilitar que se identifiquem, se estabeleçam, se elaborem (etc.) relações


funcionais entre acordes, regiões tonais, passagens etc. difusos, i. e., ambíguos e instáveis quanto às
suas respectivas centralidades, ou quanto às suas recíprocas funcionalidades, uma tal consideração
das direções aos bemóis e aos sustenidos como funcionalmente relevantes pode ainda, ao contrário,
oferecer parâmetros precisamente para uma diluição das relações funcionais. Entre outras maneiras
como isso possa se dar: que se aborde, e. g., uma dominante (lato sensu) por meio da direção bemol
(como no Allegro da Sinfonia no 3 de Brahms); que um mesmo dado acorde seja abordado, em
momentos distintos de uma peça, por ambas as direções (ver, também em Brahms, os respectivos
acordes de fá maior nos cp. 20 e 60 do Intermezzo, Op. 118, no 2, Ex. 39, abaixo); que, tal como nos
compassos finais de Gesang der Parzen, ou no Durchführung do primeiro movimento do Quarteto
no 13, Op. 29 (1824) de Schubert, se parta de uma dada tonalidade e se retorne a esta por meio de
um contínuo direcionamento aos sustenidos, ou aos bemóis.

Ex. 39: Brahms: Intermezzo, Op. 118, no 2: (a) fá maior, cp. 20-21; (b) mi# maior (grafado como fá maior), cp. 58-60.

Na canção reproduzida na próxima página, escrita em 2016, sobre o poema “Debussy”


(1919), de Manuel Bandeira, após tê-la iniciado em um diatonismo em torno de Ré menor (cp. 1-3)
e, em seguida, tangido a região ‘mais bemol’ de Dó menor (cp. 4), fiz com que um consistente
movimento em direção aos sustenidos conduzisse a canção de volta a Ré menor, no cp. 7, então
alcançado como um Dó## menor enarmonizado.

161
Ex. 40: sobre ‘Debussy’.

162
III. 5. Relatos composicionais

Tendo até aqui proposto meios técnicos destinados a possibilitar – mesmo em acordes,
passagens e obras não concebidos funcionalmente, ou que não apresentem, a princípio, os principais
aspectos morfológicos da tonalidade funcional – a identificação (a posteriori) e elaboração
composicional de centralidades e relações funcionais difusas, nos subcapítulos que se seguem
realizo, finalmente, três relatos composicionais de peças que escrevi junto à elaboração deste
trabalho. Os processos composicionais de todas as três obras aqui apresentadas têm em comum um
mesmo objetivo de partida: de integrar funcionalmente distintos dissonantes e de dissonâncias
processuais e, assim, conceder-lhes participação, em termos funcionais, nas estruturações formais
de cada uma das peças em questão.
Entendendo que, de modo geral, os processos de estruturação harmônica de obras tendam,
ao menos potencialmente, a interagir com uma diversidade de outros aspectos da composição; que,
por isso, a estruturação harmônica de obras singulares tenda também à singularidade e; que,
portanto, seria virtualmente impossível elencar de maneira sistemática e exaustiva o conjunto de
possibilidades composicionais propiciadas pelos meios técnicos acima expostos; os relatos que se
seguem visam ademais, com relação à própria estratégia de exposição desta terceira e última seção
do trabalho, oferecer exemplos de como, em projetos composicionais singulares, tais meios técnicos
de identificação e elaboração de centralidades e funcionalidades difusas vêm a conjugar-se a
aspectos rítmicos, ao idiomatismo dos instrumentos para os quais as peças foram escritas, a
dissonâncias processuais, a procedimentos melhor sedimentados na história da tonalidade funcional
etc., para revelar, assim, ao menos parte de seu potencial de criação.

163
III. 5. 1. de mariposas e teares (sonata ao Mekong)

Ao iniciar o processo composicional de mariposas e teares..., para violão (2017), coloquei-


me, de partida, dois desafios. Primeiramente, deveriam ser funcionalmente integrados na
estruturação harmônica da peça acordes que não pudessem ser reduzidos a qualquer base diatônica,
por conterem em si, efetiva- ou virtualmente, ao menos quatro classes de alturas consecutivas na
gama cromática. Referir-me-ei a tais acordes, ao longo deste relato, como ‘acordes-alvo’. Em
segundo lugar, antes de qualquer outra efetiva decisão composicional – inclusive a respeito de quais,
especificamente, seriam tais acordes cromáticos a serem empregados –, escrevi integralmente o que
viria a ser a estrutura rítmica da peça, assumindo como um desafio ulterior que as demais etapas do
processo composicional e sobretudo sua estruturação harmônica respondessem a aspectos tanto
locais, como globais, de tal estruturação rítmica prévia.
Tendo tomado como modelo os Estudos para piano (1985-2001) de Ligeti, predomina na
estruturação rítmica de mariposas… uma pulsação elementar, i. e., um pulso breve (neste caso, em
semicolcheia) e constante, do qual os demais valores derivam como seus múltiplos, ou como
resultantes de acentuações 27 . Como se nota no Ex. 41, abaixo, ora tal pulsação elementar é
irregularmente acentuada em grupos de duas ou três semicolcheias (assinalados acima pela letra ‘a’),
ora são simulados ralentandos e acelerandos por meio, respectivamente, de agrupamentos
progressivamente maiores ou menores desses pulsos mínimos (assinalados por ‘b’ e ‘c’). Em
oposição à regularidade das semicolcheias, participam também de tal estruturação rítmica:
ralentandos não-medidos (‘d’); quiálteras de valores longos (‘e’); e eventuais tercinas de
semicolcheias (‘f’).

27
Ver, a esse respeito, Arom, 1989, pp. 91-99; Bouliane, 1990, pp. 98-132; Ligeti, 1990, pp. 8-9.

164
Ex. 41: Estruturação rítmica prévia de mariposas….

Conciliada às características ergonômicas e às possibilidades do violão, tal estrutura rítmica


fizera-se já de início propositiva à figuração local da peça: os ralentandos não-medidos, e. g.,
poderiam ser realizados com rasgueados e envolveriam, assim, acordes de, ao menos, quatro notas
(Ex. 42a, abaixo); as semicolcheias tercinadas, por sua vez, poderiam ser realizadas por bordaduras
legato, assumindo, com isso, um caráter quase motívico e facilitando sua execução por parte do
instrumentista (Ex. 42b). A fim de efetivamente se destacarem no continuum de semicolcheias e de
tornarem claros, assim, os agrupamentos irregulares dessa pulsação elementar, as notas a serem
acentuadas, finalmente, poderiam ser – tal como Ligeti frequentemente o faz em seus Estudos –
destacadas também em registro. No violão, uma maneira idiomática como isso poderia ser realizado
seria distribuir as semicolcheias de cada dado agrupamento entre suas várias cordas, produzindo,
assim, uma figuração predominantemente arpejada (Ex. 42c).

165
Ex. 42: de mariposas e teares: (a) rasgueado, no cp. 15; (b) tratamento motívico das semicolcheias tercinadas, nos
compassos 20-22; (c) arpejos, nos compassos 8-9.

Também quanto à organização em maior escala da peça tal estrutura rítmica fora, de partida,
propositiva, ao esboçar já em si mesma um delineamento formal: a interrupção do fluxo de
semicolcheias no cp. 15, e. g., sugeria já um momento de articulação formal e a segunda interrupção,
no cp. 31, viria a introduzir uma breve seção contrastante, com a predominância das quiálteras de
valores longos; nos cp. 35-38 haveria um gradual retorno ao comportamento rítmico inicial,
finalmente interrompido por um novo rasgueado no compasso final. Ademais, a alternância
irregular entre agrupamentos de duas ou três semicolcheias parece assumir caráter motívico, de
modo que os momentos em que um tal comportamento rítmico é iniciado ou retomado poderiam vir
a ser formalmente relacionados entre si.
Tanto a distribuição das principais tonalidades a serem estabelecidas ao longo da peça, como
a determinação de momentos específicos em que deveriam ocorrer os acordes cromáticos que eu
desejara integrar à sua estrutura harmônica se deram, em boa medida, em função desse
delineamento formal oferecido pela estrutura rítmica pré-estabelecida. Primeiramente, a fim de
favorecer a exequibilidade da figuração arpejada que viria a ser predominante na peça, optei por
privilegiar, em tais passagens, tonalidades em cujos diatonismos pudessem abundar notas
correspondentes às cordas soltas do violão (i. e., mi, si, sol, ré e lá). Assim, determinei que, ainda
que de maneira instável e difusa, os primeiros compassos (até o rasgueado do cp. 15), bem como os
compassos finais, a partir do cp. 39, expressariam sobretudo uma centralidade em Ré e; que, junto
ao restabelecimento do padrão de semicolcheias no cp. 17, seria sobretudo expressa a região da
dominante Lá, tendendo a um caráter mais instável e modulatório conforme se aproximasse o novo
rasgueado, no cp. 31. Quanto a este rasgueado, determinei ainda que este deveria ser tratado como
um clímax da peça, o que, para além do caráter instável e modulatório que o deveria circundar,
envolveria: (1) que este fosse o momento de apresentação de ao menos um dentre os acordes-alvo e;
(2) que, em torno desse ponto, se articulasse uma modulação entre tonalidades distantes no ciclo de

166
quintas. Desejando que essa peça fosse, ao modo de uma sonata, especialmente coesa, em termos de
suas relações funcionais – ainda que as centralidades locais, propriamente, pudessem ser, como já
colocado, instáveis e difusas –, e considerando que a seção precedente a esse rasgueado dar-se-ia na
região da dominante de Ré, determinei que a seção de quiálteras de valores longos seria, em
oposição ao trecho precedente, iniciada na região da subdominante de Ré, tendendo em seguida a
um movimento modulatório em direção aos bemóis; por sua parte, mantendo tal rasgueado do cp.
31 como o eixo em torno do qual as regiões amplas de dominantes e de subdominantes viriam a se
opor, o movimento modulatório que precedesse tal rasgueado deveria, então, se dar na direção dos
sustenidos e, a fim de manter uma relação direta com Ré, determinei que tal passagem iria em
direção à região de sua paralela, Si. O Ex. 43, abaixo, indica sobre o plano rítmico da peça tais
determinações a respeito de sua estruturação harmônica.

Ex. 43: Indicações harmônicas sobre a estruturação rítmica de mariposas….

167
Sobre os acordes-alvo, haveria, em nossa concepção estendida de diatonismo, duas
principais maneiras como estes pudessem ser em si mesmos cromáticos, sem que deixassem de se
reportar a uma base diatônica: a primeira, como víramos, seria por meio da incorporação a um tal
acorde de uma ou mais notas que, embora desviadas de tal base diatônica, seriam tratadas como
sensíveis individuais de notas próprias a esta; a segunda, por sua vez, seria pela assunção de uma
ambiguidade funcional no próprio nível do diatonismo de base. A primeira, como o ilustra o Ex.
44a, permite uma via ‘mais sustenida’ de se obter um tal cromatismo sincrônico: em um acorde de
dominante, e. g., faz-se possível, para além da sétima e da nona bemol convencionais, acrescentar a
sensível de sua fundamental. A segunda maneira, por sua vez, permite uma via ‘mais bemol’ de se
obter um tal cromatismo: em uma dominante germânica (lá germânico, e. g.; ver Ex. 44b), faz-se
possível atribuir ao acorde que lhe é enarmônico (i. e., mi bemol dominante, no caso) sua nona
bemol e, ademais, sobrepô-lo a um pedal sobre a fundamental do acorde ou região em que se
pretende cadenciar. (Demonstráramos em repertório um tal caso com o acorde de Salome; ver Ex.
23, p. 145, acima.)

Ex. 44: (a) lá dominante com sétima, nona bemol e sensível de sua fundamental; (b) correspondente germânica do lá
dominante, com sua nona bemol e baixo correspondente à sua iminente resolução, ré.

Ao estabelecer quais seriam, na peça, os específicos acordes-alvo e quais os momentos de


suas respectivas ocorrências, determinei que um cumpriria com o cromatismo pela via ‘mais
sustenida’ e o outro, pela via ‘mais bemol’. O primeiro destes acordes, como já colocado, dar-se-ia
sobre o rasgueado do cp. 31, ao fim de um direcionamento aos sustenidos e, assim, decidi que seria
cromático pela via sustenida. Posto que, por meu plano harmônico, o momento de ocorrência de tal
acorde coincidiria com uma chegada à região da paralela de Ré (Si), determinei que esse primeiro
acorde-alvo seria uma espécie de fá# dominante, com sétima, nona bemol e sensível de sua
fundamental (Ex. 45a). A fim de integrar ao acorde mais cordas soltas do que ele normalmente teria
e de tornar, assim, sua digitação mais confortável ao instrumentista, cheguei à disposição
reproduzida no Ex. 45b, com a quinta (dó#), a sétima (mi) e a nona bemol (sol) de um fá#, com a
sensível de sua fundamental (mi#) e duas notas representantes do acorde ou região de resolução (si e
ré natural, i. e., fundamental e terça menor de Si), mas sem a própria fundamental (fá#), nem a
terça. Para que estas duas notas participassem, ainda que virtualmente, do acorde, decidi antecipá-lo

168
já com o claro delineamento de um fá# dominante e sucedê-lo de maneira tal que o mi# de fato
progredisse a um fá# (ver Ex. 45c).

Ex. 45: (a) fá# dominante com sétima, nona bemol e sensível de sua fundamental; (b) acorde do cp. 31 de mariposas…;
(c) de mariposas e teares, cp. 30-32.

Sobre o segundo dentre os acordes-alvo, decidi que, se este contrabalançaria o primeiro ao


ser cromatizado pela via bemol, então ele também deveria contrabalançar o primeiro em termos
formais: se o primeiro antecipava o momento de maior dissonância formal – i. e., a súbita
modulação da região ‘mais sustenida’ da paralela Si à região ‘mais bemol’ da subdominante menor
(Sol) –, o segundo anteciparia a resolução final, a última confirmação da centralidade de Ré. Decidi,
assim, que, nos compassos que precedessem o final da peça, haveria um baixo-pedal na dominante
lá (corda solta, no violão); que tal baixo-pedal poderia participar da cromatização desejada ao
representar, em meio ao acorde-alvo em questão, a resolução de uma dominante germânica; que o
acorde em questão seria então derivado de um mi germânico (Ex. 46a), o qual, sendo enarmônico
de si bemol dominante (Ex. 46b), seria tratado como um si bemol dominante e assumiria sua nona
bemol (Ex. 46c). Aproveitando as semicolcheias tercinadas do final da estrutura rítmica da peça e
aproveitando o caráter motívico que tal figura rítmica assumiria na peça (pp. 165-6, pouco acima),
fiz com que respectivamente incidissem sobre a bordadura em tercina do cp. 48 a sétima de si bemol
dominante e sua fundamental. A forma como o acorde se apresenta na peça está reproduzida no Ex.
46d, abaixo.

169
Ex. 46: (a) mi germânico; (b) si bemol dominante, enarmonicamente correspondente a mi germânico; (c) si bemol
dominante com acréscimo de nona bemol e baixo em lá; (d) de mariposas e teares, cp. 48.

Uma vez especificados tais acordes-alvo; uma vez atribuídas a eles funcionalidades com
relação a centralidades também específicas; uma vez funcionalmente inter-relacionados por suas
próprias construções, nesta oposição entre direções bemóis e sustenidas; uma vez constituídos de
modo a valorizar as respectivas figurações rítmicas e os respectivos gestos violonísticos em que se
realizariam; haveria ao menos duas maneiras como tais acordes poderiam ser ainda mais
profundamente integrados não apenas à estruturação harmônica da obra, mas a seu processo
composicional como um todo. Primeiramente, as próprias dissonâncias – i. e., as operações de
desvio – que produziram tais acordes poderiam vir a participar da elaboração de outras passagens,
de modo que, por meio da proliferação dessas mesmas operações que os produziram, tais acordes se
projetassem sobre o restante da peça. Nesse sentido, algumas decisões composicionais foram
tomadas:

• se, com relação a um modelo fundamentalmente triádico, tais acordes foram desviados por
meio de alterações cromáticas (e. g., o acréscimo da sensível no cp. 31, ou da nona bemol
no cp. 48, o rebaixamento da quinta inerente à matriz germânica desse segundo acorde etc.),
então determinei que tal tipo de desvio seria generalizado ao longo da peça. Assim, já na
primeira progressão de cunho cadencial da peça, e. g., o lá dominante do cp. 5 (Ex. 47a) tem
sua quinta rebaixada e o acréscimo de sua nona bemol; o mi dominante do cp. 23, por sua
vez, inclui as respectivas sensíveis – devidamente resolvidas – de sua terça e de sua sétima
(Ex. 47b).

170
Ex. 47: de mariposas e teares: (a) cp. 5-6; (b) cp. 23.

• Se tais alterações cromáticas frequentemente resultam de ou implicam em progressões


melódicas cromáticas, então determinei que, de várias maneiras, o cromatismo linear
participaria da composição da peça. Assim:

◦ ao invés de assumir propriamente um ‘tema’, no sentido convencional do termo, como


protagonista melódico da peça, concedi tal protagonismo – a ser realizado pelas notas
acentuadas – a movimentos cromáticos que, embora tortuosos (uma vez mais, o modelo
se encontra em Ligeti, no ‘sujeito’ de seu Estudo no 6), fossem claramente direcionais,
ora ascendente-, ora descendentemente, e consistentemente completassem, em seus
decursos, a totalidade das classes de alturas constituintes do segmento percorrido do
total cromático (Ex. 48).

Ex. 48: Protagonismo melódico: (a) nos cp. 1-4 de mariposas… e; (b) nos cp. 17-21.

◦ Alguns acordes na peça foram inteiramente concebidos como resultantes de cromatismo


linear (exemplos disso em repertório foram já dados acima, sobretudo no Cap. II. 4. 4
deste trabalho). Nos compassos 15 e 16, e. g., tanto o acorde em rasgueado como o
último acorde da passagem (ver Ex. 49a, abaixo) haviam sido concebidos como
desviados de um mi dominante, preparando a centralidade em Lá dos compassos
seguintes: o primeiro, por meio da substituição de sua quinta e de sua sétima (i. e., si e
ré naturais) pelas respectivas sensíveis de tais notas (lá# e dó#, enarmonizadas na
partitura); o último, por meio do acréscimo de sua nona e omissão de sua fundamental.

171
Como tais acordes seriam respectivamente equivalentes a um dó# menor e a um si
menor, ambos com acréscimo de sexta, decidi encadeá-los por meio do acorde menor
com sexta cromaticamente situado entre os dois (dó menor com sexta), ainda que tal
acorde não tivesse funcionalidade clara com relação aos acordes vizinhos, ou à
centralidade em questão – e algo semelhante se deu no cp. 32. Entre os compassos 33 e
34 (Ex. 50, pouco abaixo), semelhantemente ao exemplo já examinado da Polonaise S.
519 de Liszt (pp. 78-9 e 122-3, acima), encadeei um sol menor a uma espécie de dó
bemol maior basicamente por conta de todas as notas entre tais acordes se situarem a um
semitom de distância de alguma nota do outro e; semelhantemente a como
compreendêramos o dito “acorde de Mozart”, o acorde si#-ré#-fá#-si bemol arpejado no
cp. 45, por sua vez, é inteiramente concebido como cromatização do lá dominante que o
sucede (Ex. 49b).

Ex. 49: de mariposas e teares: (a) cp. 15-16; (b) cp. 45. Assinalados, acordes resultantes de cromatismo linear.

• Se, para além das alterações cromáticas, os acordes-alvo são desviados de uma base triádica
também por meio do acréscimo de cordas soltas do violão, ou de notas-pedal, então
determinei que também estas dissonâncias viriam a ser proliferadas na peça. Assim:

◦ algumas seções da peça foram demarcadas, precisamente, pelo estabelecimento de


pedais. Um exemplo já mencionado são os compassos finais, com baixo pedal na corda
solta lá. Na breve seção contrastante dos compassos 33 a 36, por sua vez, apesar da
instabilidade quanto à sua centralidade, mantive o baixo consistentemente em si bemol
(Ex. 50, abaixo).

172
Ex. 50: de mariposas e teares: cp. 33-36.

◦ Em diversos momentos da peça, privilegiei, na formação dos acordes, a presença de


cordas soltas do violão, cuidando de que tais cordas soltas correspondessem a notas
representativas (por diatonismo) das respectivas tonalidades que eu desejasse expressar,
mas abdicando, em alguns casos, do estabelecimento de uma base triádica clara. Nos cp.
1 a 3 e 6 a 9, e. g., a corda solta sol foi mantida como uma espécie de pedal sobretudo
para favorecer a execução, ao violão, da figuração arpejada – e tornar a passagem mais
ressonante, no instrumento – e por participar de diatonismos em torno de Ré, tonalidade
que eu desejara expressar nesse início da peça. Embora alguns dos acordes formados
nesse trecho sejam facilmente identificáveis com tríades específicas, a construção de
acordes como aqueles assinalados no Ex. 51a, abaixo, prescindiu de qualquer origem
triádica. No cp. 32, semelhantemente, embora o acorde assinalado no Ex. 51b contenha
em si uma tríade de sol menor – devido, em boa medida, à presença neste das cordas
soltas sol e ré –, este foi concebido, antes, para manter o caráter ressonante do acorde-
alvo que o antecede e para expressar subitamente – em contraste com o Si menor do
trecho imediatamente precedente – uma Tonart de Sol menor, por meio de uma
verticalização das principais notas que delineariam, por diatonismo, tal tonalidade.

Ex. 51: de mariposas e teares: (a) cp. 1-3; (b) cp. 31-32. Assinalados, acordes em cujas construções a presença de
cordas soltas foi um critério privilegiado.

173
• Se, no segundo dentre os acordes-alvo, sua cromatização vertical se devia, em boa medida, à
ambiguidade inerente à dominante germânica e à intercambialidade entre esta e a dominante
que lhe é enarmônica, então decidi valer-me de tal intercambialidade em outros momentos
da peça. Nos compassos 4 e 5 (Ex. 52a), e. g., logo antes de uma progressão cadencial sobre
Ré, a díade si bemol-mi bemol é sucessivamente tratada como quinta e fundamental de um
mi bemol dominante (cp. 4) e como nona bemol e quinta bemol de uma dominante
germânica fundada em lá (cp. 5), efetiva dominante de Ré; no cp. 14 (Ex. 52b), por sua vez,
aquela espécie de mi dominante cromaticamente alterada do cp. 15 (cf. Ex. 49a, pouco
acima) é antecipada não apenas por um fá dominante – enarmônico de si germânico –, mas
por todo um movimento cadencial do tipo iv-V-[I] que normalmente apontaria para Si bemol.

Ex. 52: de mariposas e teares: (a) cp. 4-6; (b) cp. 14-15.

◦ No cp. 22, ademais, conjuguei: (a) uma nova substituição da dominante de mi por sua
correspondente germânica (i. e., fá dominante) a; (b) uma substituição da terça e da
quinta deste fá dominante por suas respectivas sensíveis; e obtive, com isso, uma
inversão enarmônica do acorde de Tristão, a qual, por uma via bastante diversa à do
acorde original, cadencia também sobre um mi dominante:

174
Ex. 53: de mariposas e teares, cp. 22-23.

• Se, na maneira como foram originalmente concebidos, os acordes-alvo da peça envolviam


um empilhamento de classes de alturas distantes entre si por passos cromáticos, decidi que
outros acordes na peça viriam a ser concebidos por empilhamento. Assim:

◦ nos compassos 29 e 30, e. g., escrevi uma sequência cromaticamente ascendente de


acordes de quatro notas constituídos pelo empilhamento de quartas, alternadamente
aumentadas e justas (Ex. 54a, abaixo). Embora tais acordes, para além de não-triádicos,
dificilmente se circunscrevam em qualquer diatonismo puro, integrei-os ao plano
harmônico da peça ao tratar o último dentre tais acordes como um fá# francês, cuja
fundamental (fá#) e a quinta rebaixada (dó) foram precedidas por suas respectivas
sensíveis. Nos compassos 47 e 48, por sua vez, escrevi, sobre o baixo-pedal em lá, uma
sequência cromaticamente descendente de acordes de três notas, também constituídos
pelo empilhamento de quartas aumentadas e justas (Ex. 54b). Sendo tais acordes
proximamente relacionados a dominantes mais convencionais (com nona bemol, ou, tal
como o “acorde de Chopin”, com sétima e décima terceira, e. g.), a sequência em
questão se assemelha a uma sucessão de dominantes errantes, terminando com o acorde-
alvo do cp. 48.

175
Ex. 54: de mariposas e teares: (a) cp. 29-30; (b) cp. 47-48.

◦ No cp. 49, logo antes do final da peça, incluí finalmente um acorde que, embora não
estivesse previsto em etapas anteriores do processo composicional, apresentava,
finalmente, quatro classes de altura cromáticas entre si em efetiva sincronia: um lá –
dominante da centralidade principal de Ré – com sétima, nona bemol, fundamental e
sensível de sua fundamental (Ex. 55). Observo que um tal acorde, embora em outra
disposição, ocorrera no primeiro movimento da Sinfonia no 9 (1908-9) de Mahler, cp.
142 (ver Ex. 71b do Cap. II. 4. 5, p. 112, acima).

Ex. 55: (a) de mariposas e teares, cp. 49.

Uma segunda maneira, finalmente, como os acordes-alvo poderiam estar ainda mais
arraigados na estruturação harmônica da peça seria apresentar parcialmente seus respectivos
conteúdos harmônicos em outras passagens e com relação a outras centralidades que não aquelas
inicialmente previstas ao concebê-los. Fiz isso apenas com o primeiro dos acordes-alvo (Ex. 56a), o
qual me parece morfologicamente mais inusitado e ambíguo do que o segundo: no cp. 1 (Ex. 56b),
suas três notas superiores são apresentadas em Ré, sendo sol e dó# respectivamente correspondentes
ao IV grau e à sensível e sendo o mi# uma sensível individual do III grau maior; no cp. 6 (Ex. 56c),
ainda em Ré, suas quatro notas superiores formam uma espécie de ré menor, com a sétima menor e

176
em que o sol sobra como uma ressonância do acorde anterior; no cp. 19 (Ex. 56d), suas quatro notas
superiores são tratadas como constituintes de uma dominante de fá# em que, afora a fundamental
(dó#) e a terça (mi#), estão presentes a nona bemol (ré) e a quinta rebaixada (sol); no cp. 23 (Ex.
56e), suas cinco notas inferiores participam de um mi dominante, em que, para além da fundamental,
da quinta e da sétima, são inclusas as respectivas sensíveis (fá## e dó#) de sua terça e de sua sétima;
no último compasso (Ex. 56f), por fim, suas cinco notas superiores, acrescidas do lá pedal, foram
concebidas como uma verticalização de um diatonismo de Ré, em que se faz ambíguo se a nota
mais aguda é o III grau (fá) de Ré menor, ou sensível individual (mi#) do III grau de Ré maior.

Ex. 56: de mariposas e teares: (a) cp. 31; (b) cp. 1; (c) cp. 6; (d) cp. 19-20; (e) cp. 23; (f) cp. 50.

177
III. 5. 2. palimpsesto à Calder – sobre o Op. 31 de Schoenberg

Em um programa na rádio de Frankfurt em 1931, Schoenberg apresentou uma versão


alternativa do tema de suas Variações Orquestrais, Op. 31 (1926-8), em que este, originalmente
concebido e harmonizado dodecafonicamente (ver Ex. 57, abaixo), estaria agora harmonizado “com
acordes tonais” e “atado” a uma centralidade em Fá maior (1960[1931], p. 32; ver Ex. 58, na
próxima página).

Ex. 57: Schoenberg: compassos iniciais do tema das Variações Orquestrais, com série original indicada.

178
Ex. 58: Schoenberg: início do tema das Variações Orquestrais, com a harmonização de 1931. Adaptado de Schoenberg:
1960[1931], p. 33.

Ao comentar, na ocasião, tal harmonização alternativa, Schoenberg aponta, por um lado,


para o relativo sucesso de seu experimento, ao afirmar que este estaria “em um bom Fá maior, que
insistentemente flerta com Sol bemol maior, correspondente à [região da] sexta napolitana” (id., p.
33). Ainda assim, o compositor não apenas expressa sua predileção pela versão original, mas a
defende sobre a harmonização funcional, argumentando, basicamente, que esta última seria estranha
à própria maneira como o tema fora originalmente concebido e iria, assim, “contra sua natureza” (id.
ibid.). Nos termos desenvolvidos neste trabalho, podemos entender que a melodia dissonante de que
se trata o tema foi funcionalmente integrada, mas não a dissonância processual que a produziu – e,
nesta segunda versão, isso se manifesta, e. g., na introdução de acordes, progressões e passagens
melódicas que, ao responderem ao projeto de centralizar funcionalmente Fá maior, abdicam, por
outro lado, de se reportar à série de que se constituíra o tema.
Frente a tal experimento por parte de Schoenberg, coloquei-me o desafio de escrever ainda
uma terceira versão do tema do Op. 31, em que: como na versão alternativa de Schoenberg, (a) as
linhas de violoncelo e violino (Hauptstimme e Nebenstimme) fossem mantidas idênticas ao original
e; (b) as demais partes instrumentais fossem reescritas de modo a integrar funcionalmente tais

179
linhas melódicas; mas em que (c) todo o material por mim acrescentado derivasse da mesma série
dodecafônica de que se constituíra o tema melódico; (d) em que os procedimentos de variação da
série original fossem os mesmos empregados por Schoenberg – transposição, inversão,
retrogradação, segmentação etc. –, ou, ao menos, proximamente relacionados aos procedimentos
mais tipicamente dodecafônicos; e (e) em que fossem, tanto quanto possível, mantidos acordes da
harmonização original de Schoenberg, apenas recontextualizados de modo a que assumissem
funcionalidades mais claras. Do efetivo instrumental original, decidi manter, para além de
violoncelo e violino – ambos solo, nesta nova versão –, a harpa e, no lugar dos sopros originalmente
empregados por Schoenberg, optei por empregar: um violão, para que dividisse com a harpa as
enunciações das séries que eu viria a acrescentar – posto que ele teria a possibilidade, como a harpa,
de executar não apenas segmentos melódicos, mas também acordes e fragmentos de polifonia –; e
uma viola, para que, tocada com arco, viesse a prolongar notas do violoncelo e do violino e, tocada
em pizzicato, viesse a se emaranhar com o violão e a harpa.
Antes de que eu começasse efetivamente a escrever, busquei, primeiramente, identificar nas
próprias melodias de violoncelo e violino, na série e nas formas da série empregadas por
Schoenberg na obra original, aspectos que pudessem apontar para a proeminência de uma ou outra
centralidades possíveis e; em seguida, busquei verificar como alguns dos acordes formados no
original poderiam vir a assumir funcionalidade com relação a tais centralidades inferidas. Sobre a
série, verifiquei que:

(1) havendo em cada forma da série dois trítonos, juntos, estes constituíam acordes
diminutos. Ademais, em todas as formas da série empregadas por Schoenberg, eram
mantidos exatamente os mesmos dois trítonos, a saber: si bemol-mi e dó#-sol (ver Ex. 59),
podendo estes representar as respectivas dominantes de Fá, Ré, Si, ou Lá bemol.

(2) Havendo em cada forma da série uma tríade enunciada entre a quinta e a sétima notas –
ou, em versões retrogradadas, entre a sexta e a oitava notas da série –, tais tríades seriam
respectivamente equivalentes a: ré menor (Ex. 59a), lá bemol maior (Ex. 59b) e fá menor
(Ex. 59c), parecendo as tríades convergir em torno de Fá, como, respectivamente: paralela
menor, paralela maior da homônima menor e homônima menor, propriamente.

180
Ex. 59: Formas da série empregadas no tema das Variações Orquestrais, Op. 31, excluindo-se retrogradações: (a) série
original (P0), iniciada em si bemol; (b) inversão, transposta para sol (I9); (c) transposição para dó# (P3).

(3) As respectivas notas iniciais e finais das formas da série empregadas por Schoenberg
correspondiam a: si bemol e dó (Ex. 59a), fá e sol (Ex. 59b) e dó#/ré bemol e mi bemol (Ex.
59c). Conforme assinalado no Ex. 60, abaixo, tais notas parecem convergir em torno de Si
bemol (menor), de Ré (frígio), ou, de maneira menos pronunciada, de Fá.

Ex. 60: Disposição escalar das notas iniciais e finais das formas da série empregadas no tema das Variações
Orquestrais, Op. 31.

Além disso, ao examinar as linhas de violoncelo e violino em suas totalidades formais, ou


em relação aos acordes formados na obra original, pude verificar que, de fato, algumas passagens
formalmente importantes do original pareciam já convergir em torno de Si bemol, Fá, ou regiões
próximas a tais centralidades:

• após o trítono si bemol-mi (grafado como fá bemol) inicial, e. g., as próximas notas, sol
bemol-mi bemol-fá-lá poderiam vir a ser entendidas como parte de um fá dominante com
sétima e nona bemol, sendo o trítono inicial representante de sua dominante individual (Ex.
61a, abaixo) e, semelhantemente, também as três primeiras notas da segunda enunciação
melódica da série – fá-sol bemol-lá (grafados como mi#-fá#-lá), cp. 39-40 (Ex. 61b) –, bem

181
como as últimas notas de violoncelo e violino – mi bemol-fá, cp. 57 (Ex. 61c) – poderiam
vir a ser entendidas como partes de fás dominantes;

Ex. 61: Schoenberg: Variações Orquestrais, tema: (a) cp. 34-36, parte de violoncelo; (b) cp. 39-40, parte de violoncelo;
(c) cp. 57, partes de violino e violoncelo.

• nos compassos 53 e 54, próximo ao fim, o violino e o violoncelo delineiam juntos uma
progressão quase triádica em Fá menor, de lá bemol maior, paralela, a dó dominante;

Ex. 62: Schoenberg: Variações Orquestrais, tema, cp. 53-54, linhas de violino e violoncelo.

• o acorde final, para além de conter o fá e sua possível sétima, envolve, na peça original, o dó,
possível quinta de um acorde de fá, e notas (sol#/lá bemol e si) que poderiam vir a ser
interpretadas ora como sensíveis individuais da terça e da quinta de um fá dominante, ora
como terça menor e sensível da quinta de um fá menor (Ex. 63a);

• ainda no trecho final do original, é notável que, no final do cp. 52 e início do cp. 53, se
formem, respectivamente: um mi bemol menor com sexta, sobre um baixo em fá,
interpretável como subdominante menor de Si bemol, com baixo em sua dominante (fá) e;
um ré menor puro, paralela de Fá (Ex. 63b);

• os acordes formados como acompanhamento nos compassos 42 e 43 (Ex. 63c, abaixo),


finalmente, poderiam vir a ser respectivamente interpretados como: (a) uma espécie de

182
dominante de Ré, com fundamental, terça, sétima e a nota representante de sua resolução
suposta e; (b) uma espécie de dominante de Si bemol, com fundamental (fá), sétima, nona
bemol, sensível individual de sua fundamental e, no baixo, o próprio si bemol, representante
da resolução suposta de tal acorde.

Ex. 63: Schoenberg: Variações Orquestrais, tema. Acordes respectivamente formados: (a) no cp. 57; (b) nos cp. 52-53;
(c) nos cp. 42-43.

A fim de favorecer que, de partida, essa centralidade difusa em torno de Si bemol, Fá e


regiões próximas se pronunciasse, iniciei a composição acompanhando a primeira enunciação da
série (P0: si bemol-mi-sol bemol etc.) com a segunda forma da série originalmente empregada por
Schoenberg (RI9: fá-sol bemol-lá etc.), a qual, como já observado, delineia, em suas primeiras notas
parte de um fá dominante. Assim, como se observa no Ex. 64, abaixo, o fá, primeira nota da RI9, ao
se prolongar sob as notas iniciais da série original, favoreceu que o trítono si bemol-mi, a princípio
representativo de quaisquer dentre quatro dominantes distintas, assumisse mais claramente o caráter
de dominante de fá e; quanto às notas seguintes da série original (sol bemol-mi bemol-fá-lá), que
estas se desenhassem mais claramente como integrantes de um fá dominante, confirmado pela RI9.

183
Ex. 64: palimpsesto à Calder, cp. 1-5.

Ao prosseguir com a enunciação concomitante dessas duas séries iniciais, bastou: (a)
controlar os específicos momentos em que cada nota da RI9 seria introduzida e prolongar algumas
das notas de cada uma das duas séries, para que se formassem acordes mais claramente
compreensíveis como derivados de tríades – ou, ao menos, como diatônicos –; e (b) cuidar de que a
distribuição de registros propiciasse encadeamentos lineares entre tais acordes, ou resoluções
lineares de eventuais notas desviadas dos diatonismos vigentes a cada momento; para que se
pronunciassem as características das formas da série em questão que, como já observado,
apontariam para Si bemol, Fá e proximidades. Assim: a conjunção dos trítonos de ambas as séries
no cp. 3 (ver ainda Ex. 64, acima) veio a formar uma dominante inicialmente de ré menor (paralela
de Fá maior), linearmente transformada em uma dominante de lá bemol (paralela de Fá menor); o
acorde de cunho quartal formado no cp. 4, para além de conter o lá bemol maior – com suspensão
de quarta à terça maior – anunciado pela dominante anterior, veio a progredir a um acorde
interpretável como si bemol (I de Si bemol) dominante, ou como sol dominante; e a conjunção, no
cp. 5, da última nota (dó) da P0 com o trítono final (ré bemol-sol) da RI9 veio, a um só tempo, a
resolver essa espécie de sol dominante e a retornar ao dó dominante com que se iniciara a passagem.
Em diversas passagens posteriores, a fim de tornar a harmonização mais densa e de manter
alguma flexibilidade na elaboração das distintas partes instrumentais e das relações funcionais,
empreguei concomitante mais de uma forma da série no acompanhamento das melodias originais de
violoncelo e violino e, ademais, empreguei procedimentos de variação da série um pouco menos
ortodoxos do que a simples transposição, inversão e/ou retrogradação. Nos compassos 6 a 11 (Ex.
65a, abaixo), e. g., para além da melodia original de violoncelo, enunciando a RI9, distribuí ainda
três formas da série entre o violão e a harpa: no trecho, a harpa executa basicamente uma inversão
da série original, transposta para mi (I6), prolongando, além disso, algumas notas executadas ao
violão e; no violão, por sua vez, intercalam-se duas formas da série, a saber, a original (P0) e sua
inversão (I0). Como melhor demonstro no Ex. 65b, contudo, reordenei tais formas da série
executadas ao violão ao segmentar cada uma destas em três partes (assinaladas “a”, “b” e “c”) e

184
enunciá-las, em cada uma das séries, da última à primeira. Tal procedimento permitiu, por exemplo,
que nos compassos 6 e 7 o violão dobrasse parcialmente a parte de harpa, ou que, no cp. 8, o trítono
si bemol-mi (“a1” e “a2” da P0) se juntasse ao acorde lá-ré-sol-dó# (correspondente ao segmento “b”
da P0) para que se tornasse mais pronunciado o lá dominante delineado no compasso em questão.

Ex. 65: (a) palimpsesto à Calder, cp. 6-11; (b) segmentação e reordenação da P0 e da I0 nos compassos 6-11 da parte
de violão.

Empreguei o mesmo procedimento, uma vez mais na parte de violão, também nos
compassos 17 a 20 (Ex. 66a). Como se pode observar no Ex. 66b, ao segmentar as formas R9 e R6
da série em quatro partes, o fiz de modo que: juntos, seus respectivos segmentos “b” e “d”
formassem tétrades diminutas; que, também juntos, seus respectivos segmentos “a” pudessem
assumir uma feição quase escalar; e que cada um dos segmentos “c” pudesse assumir a forma de
uma tríade diminuta com duas de suas notas introduzidas por meio de sensíveis individuais.

185
Ex. 66: (a) palimpsesto à Calder, cp. 17-20, parte de violão; (b) segmentação e agrupamento da R9 e da R6, nos
compassos em questão.

Tais segmentações, tanto na passagem dos compassos 6 a 11, como nos compassos 17 a 20,
não se deram apenas em função de trazer à tona traços morfológicos da série mais
convencionalmente ligados à tonalidade funcional, mas, sobretudo, de possibilitar que específicas
relações funcionais latentes no original viessem a ganhar consistência. No cp. 42 do original, e. g. –
equivalente ao cp. 9 desta versão –, como já comentado (ver Ex. 63c, acima), formara-se um acorde
(lá-ré-sol-dó#) passível de se compreender como uma dominante de Ré. No contexto original (ver
Ex. 67a, abaixo), tal acorde coincidia com um salto mi bemol-lá bemol na parte de violoncelo e, se
por um lado tal salto seria mais fortemente identificável com Lá bemol do que com Ré, por outro –
como já abundantemente exemplificado ao longo deste trabalho –, essa espécie de lá dominante que
o acompanha poderia vir a ser interpretado como uma dominante germânica do próprio Lá bemol.
A fim de manter essa passagem, na nova versão, tão próxima quanto possível ao original e de tornar
mais pronunciada essa possível relação funcional entre o acorde lá-ré-sol-dó# e o salto melódico mi
bemol-lá bemol, cuidei:

• primeiramente, de antecipar a formação do referido acorde para o compasso anterior, em


que a parte de violoncelo (si bemol-mi; ver Ex. 67b) participaria de seu delineamento
enquanto um lá dominante. No mesmo sentido, como comentado pouco acima, operei sobre
a ordenação da série de que se formaria tal acorde (P0, ao violão) de modo que, a este,

186
enquanto um possível lá dominante, se agregassem, também no próprio violão, sua nona
bemol e sua quinta.

• Em segundo lugar, para que não deixasse de haver a coincidência, ainda que breve, entre
esse lá dominante e o salto mi bemol-lá bemol, prolonguei tal acorde na harpa, no cp. 9,
tratando tal coincidência como resultante de uma espécie de suspensão. Na harpa, tal como
assinalado no Ex. 65a, acima, duas das notas desse acorde (dó# e sol) estariam já na forma
da série então enunciada (I6).

• Finalmente, ao interpor a essa enunciação da P0, ao violão, a I0 segmentada (tal como


demonstrado no Ex. 65), tive em vista possibilitar que a suspensão do referido lá dominante
viesse a ser efetivamente tratada como tal: a nota “c1” da I0, dó#/ré bemol, serviria tanto de
terça do lá dominante, como de suspensão de quarta sobre o lá bemol e, conformemente, as
notas subsequentes desse segmento “c” da I0 viriam não apenas a resolver melodicamente
tal suspensão, mas também a delinear parte de um lá bemol dominante (com nona bemol),
complementado com sua sétima (sol bemol) e sua quinta (mi bemol) pelas notas 10 e 11 da
forma da série então enunciada na parte de harpa (I6).

Ex. 67: (a) Schoenberg: Variações Orquestrais, cp. 42; (b) palimpsesto à Calder, cp. 8-9.

187
Nos compassos 17 a 20, por sua vez, a segmentação e interpenetração das formas R9 e R6
da série permitiu que, de diferentes maneiras, a passagem de um mi bemol menor com sexta a um ré
menor nos compassos 19 e 20, já presente no original (Ex. 63b, pouco acima), ganhasse agora maior
relevo. Primeiro e mais simplesmente, marquei a passagem entre os dois acordes por uma súbita
mudança de densidade e textura, ao antecipá-la com uma escrita densa de violão – cuja fluência foi
possível precisamente por conta da interação entre as duas formas da série empregadas – e ao fazê-
la coincidir com a última nota executada ao violão em toda a peça. Em segundo lugar, o específico
tratamento da série nesse trecho, tanto na parte de violão, como na harpa e viola, permitiu que se
articulasse não apenas uma passagem entre dois acordes, mas entre duas centralidades relevantes na
peça. Se, por um lado, o mi bemol com sexta tenderia a apontar para uma centralidade de Si bemol,
tal centro foi valorizado: (a) pelo prolongamento, na viola, do si bemol (primeira nota da P0)
executado na harpa na cabeça do cp. 18 (Ex. 68, abaixo); (b) por eu ter situado imediatamente antes
da passagem ao cp. 20 as notas da P0 que delineavam um fá dominante (sobretudo mi bemol, fá e lá,
cp. 19) e; (c) por quase todo o trecho da linha de harpa que delineava esse fá dominante, desde o sol
bemol do cp. 18, coincidir com os segmentos “c” das formas R6 e R9 da série, no violão, os quais,
ressalvadas algumas sensíveis individuais, formam tríades diminutas igualmente identificáveis com
fá dominante (dó, mi bemol, lá, no cp. 18; mi bemol, sol bemol, dó, no cp. 19; ver Ex. 66, pouco
acima). Se, por outro lado, o ré menor poderia representar uma centralidade por si mesmo, e/ou
(difusamente) uma centralidade de Fá, do qual é a paralela, essa nova centralidade foi marcada,
sobretudo, ao se fazer coincidir esse ré menor com um mi natural no baixo, distanciando-se tanto
do mi bemol menor que o antecedia, como da própria centralidade de Si bemol. Ademais, se os
específicos trítonos dos segmentos “d” da R9 (ré bemol-sol) e da R6 (si bemol-mi), enunciados em
torno da articulação harmônica em questão, apontavam já para essa nova centralidade em Fá ou Ré
– ao delinearem, junto ao dó que se prolongara do segmento “c” da R9, um dó dominante, com
sétima e nona bemol –, tomei o cuidado de que as notas dentre estas que viessem a ocorrer ainda no
cp. 19 (ré bemol, sol e si bemol) não contradissessem a centralidade então vigente de Si bemol.

188
Ex. 68: palimpsesto à Calder, cp. 17-20.

Se demonstrei, até este ponto, como operei a série de modo que se tornassem localmente
mais pronunciadas certas centralidades e relações funcionais que eu interpretara como latentes na
obra original, resta fazer aqui alguns comentários também acerca de como elaborei em maior escala
tais aspectos da peça. Como comentado pouco acima, ainda com relação à peça original, haveria
nesta traços de sua série e das formas da série empregadas, bem como certas passagens formalmente
privilegiadas, que convergiriam em Si bemol, Fá e regiões próximas e, conformemente, na nova
versão da peça, ora relatada, concentrei-me em ressaltar esses mesmos centros já esboçados no
original. Ao invés, contudo, de conceder a um dentre tais centros primazia sobre o outro – e tratar
Fá como uma região de dominante de Si bemol, ou, inversamente, o Si bemol como uma região de
subdominante de Fá –, entendo que eu tenha estabelecido, ao longo da peça, um “complexo de

189
dupla-tônica”, uma centralidade específica, mas difusa. Entendo que haja na peça dois principais
aspectos de sua elaboração harmônica responsáveis por tal ambivalência.
Primeiro e mais simplesmente, sendo ambas as tonalidades em questão próximas entre si;
sendo Ré menor o único outro centro a assumir alguma proeminência na peça; e sendo Ré menor
igualmente (ou quase) próximo de ambas as tonalidades de Si bemol e Fá; nenhuma destas chega a
assumir primazia na peça por meio de tonalidades secundárias que se subordinem a uma, mas não à
outra.
Em segundo lugar, embora haja na peça, como mencionado, diversas passagens que
apontam para Si bemol, não há em nenhum momento uma efetiva confirmação, por cadência, de tal
tonalidade, nem sequer uma única tríade pura de sua tônica, mantendo-se o Si bemol – para utilizar
um termo de Schoenberg – “flutuante” [schwebende]. Por outro lado, se abundam na peça acordes
de fá, ou, ao menos, acordes passíveis de se interpretar como desviados de tríades fundadas sobre fá,
ora estes equivalem – ou se assemelham – a fás menores, os quais poderiam constituir uma
centralidade em si mesmos; ora estes equivalem – ou se assemelham – a fás dominantes, e
apontariam, assim, para Si bemol. Em especial, em diversas passagens esses dois tipos de acordes
de fá não apenas se apresentam proximamente, mas inclusive interagem:

• no cp. 6, e. g., a díade fá-lá bemol pode ser entendida como representante de um fá menor e,
no cp. 7, em imediata sequência, forma-se um fá maior, cuja quinta é introduzida por sua
sensível individual (Ex. 69a, abaixo). Por um lado, o fato de que tal passagem tivesse sido
introduzida por um dó dominante (com sétima e nona bemol) favorece que se interprete o fá
menor como um centro local, do qual o fá maior seria uma Picardia (ainda que atípica, pela
cromatização de sua quinta). Por outro, posto que a peça se iniciara com o delineamento de
um fá dominante com nona bemol (ver Ex. 61a e 64, pp. 182 e 184, acima) e que, agora,
essa espécie de fá menor é acompanhada de um sol bemol (correspondente a essa nona
bemol, característica da dominante), faz-se possível não apenas interpretar que o acorde do
cp. 6 fosse um I grau de uma tonalidade Frígia de Fá, mas também que tal acorde fosse já
uma cromatização do fá do cp. 7: ao invés (ou para além) de uma terça menor, o acorde do
cp. 6 portaria, por essa interpretação, a sensível individual da terça de um fá dominante com
nona bemol e apontaria para uma centralidade em Si bemol.

• No cp. 16, fiz com que se formasse um cluster (fá-mi-mi bemol-sol bemol) equivalente ao
que se formara no cp. 43 da obra original (cf. Ex. 63c, p. 183, acima) e, ao prolongar sobre
tal cluster um lá natural, favoreci que ele assumisse uma feição de fá dominante, com
sétima, nona bemol e sensível de sua fundamental (Ex. 69b, abaixo), o qual apontaria para a

190
centralidade em Si bemol. Ao invés de resolvê-lo, contudo, as próprias formas da série então
empregadas (R0 no violoncelo, R3 na harpa) o conduziram a se transformar, ainda no cp. 16,
em um fá menor, ao qual se sobrepôs um trítono (mi-si bemol) representativo de sua
dominante. No cp. 17, se, por um lado, o sol bemol e o lá natural na viola restituem
brevemente ao fá um caráter de dominante, à qual se segue, de fato, um acorde de si bemol
menor, por outro, o sol natural próximo ao fim do compasso, sexta do si bemol menor,
confere a este um caráter de subdominante de Fá.

Ex. 69: palimpsesto à Calder: (a) cp. 6-7; (b) cp. 15-17.

• O acorde final, mantido na nova versão quase inteiramente como no original – sendo-lhe
apenas subtraído o dó natural –, vem agora a se assemelhar ao acorde de Tristão e, como tal,
se faz potencialmente sujeito a uma grande variedade de interpretações. No contexto da peça,
contudo, em que (a) abundam sensíveis individuais, inclusive de componentes de acordes de
fá, e; (b) vindo de uma passagem em que se fizeram especialmente pronunciadas as
respectivas centralidades de Si bemol, no cp. 19, e de Fá, no cp. 21; tal acorde se faz em si
ambíguo, como já comentado, entre portar um lá bemol, terça menor do fá, ou um sol
sustenido, sensível individual da terça maior de um fá dominante (Ex. 70).

191
Ex. 70: palimpsesto à Calder: cp. 24.

Finalmente, se vim a estabelecer no palimpsesto à Calder uma espécie de “complexo de


dupla-tônica” entre Si bemol e Fá, há também momentos, sobretudo próximo ao meio da peça, mais
profundamente dissonantes com relação a essa centralidade ‘difusa’. Não apenas as centralidades se
tornam mais instáveis nos compassos 8 a 15; não apenas se realizam progressões difíceis de serem
reportadas a qualquer hipotética Tonart, como aquela do cp. 14 (ver Ex. 71, abaixo); não apenas se
formam acordes mais intensamente cromáticos (como o cluster do cp. 16, Ex. 69b, pouco acima),
ou diatonismos mais distantes dos padrões escalares convencionais, como nos dois primeiros
tempos do cp. 15 (Ex. 72). Para além de tudo isso, em alguns desses mesmos momentos, a
dissonância processual – neste caso, o dodecafonismo schoenberguiano – prevalece e abdico de
qualquer tentativa de atribuir a seus produtos (dissonantes) qualquer funcionalidade específica: uma
vez mais, há de haver nessas passagens funcionalidade, mas ela virá a ser reconhecida apenas a
posteriori. Tocarei em um ponto semelhante ao fim do próximo relato.

192
Ex. 71: palimpsesto à Calder: cp. 11-15.

Ex. 72: Diatonismo no cp. 15 de palimpsesto à Calder: (a) com algumas das possíveis centralidades assinaladas e; (b)
representado no ciclo de quintas.

193
III. 5. 3. (…) estrada esquecida, nos vales, um vão (…) – sobre o intermezzo 1 de Silvio Ferraz

Ao acrescentar linhas instrumentais monódicas ao Op. 19, n o 6 de Schoenberg (p. 149,


acima), ou aos compassos iniciais do Op. 11, no 1 (p. 114) – ambas as peças para piano –, eu
buscara dar relevo a relações funcionais as quais, ainda que não tivessem originalmente participação
na concepção de tais obras, e ainda que não excludentes de outras possíveis relações funcionais a
posteriori (quiçá significativamente distintas daquelas por mim identificadas), estariam já latentes
nas próprias obras em questão. Mesmo na reelaboração do Op. 31, em que efetivamente alterei boa
parte do acompanhamento à melodia original, busquei, tanto quanto possível – como demonstrado
pouco acima –, trazer à tona e dar consistência a relações funcionais que eu identificara na própria
peça original. Em (…) estrada esquecida, nos vales um vão (…), de 2018, afora uma ou outra
alteração suplementar, eu basicamente acresci uma linha de flauta ao intermezzo 1 (2013) para
piano de Silvio Ferraz e, ao fazê-lo, busquei sobretudo oferecer relevo às específicas relações
funcionais – dentre as muitas possíveis de ali se identificar – que, latentes no original, pareciam
coesas entre si a ponto de que, em torno destas, se esboçasse uma estrutura funcional em larga
escala para a peça.
Tal como o sugere seu próprio título, o intermezzo 1 se reporta aos Intermezzi para piano de
Brahms e, em conversa sobre a peça com Silvio, o compositor apontou, entre trechos de distintas
obras tardias para piano de Brahms que teriam influenciado sua escrita, os compassos 55 a 57 do Op.
119, no 1 (1893), reproduzidos no Ex. 73a, abaixo, como principal referência. Na passagem em
questão, ao menos dois aspectos teriam sido especialmente relevantes para a escrita do intermezzo 1.
Primeiramente, sua figuração arpejada, tal como assinalado no exemplo abaixo, permite que, ao
serem seletivamente sustentadas, no teclado, algumas dentre as notas constituintes de tais arpejos,
se formem extensos acordes por empilhamento de terças. Na peça de Brahms, tais arpejos ainda
delineiam progressões funcionais convencionais, em que os acordes de terças empilhadas assumem
o caráter de suspensões e são efetivamente resolvidos como tal. Na peça de Silvio, por sua vez, o
empilhamento resultante de tal figuração arpejada parece emancipar-se de uma elaboração
funcional a priori e, ao invés de suspensões de acordes claramente delineados, uns sobre os outros
(como no caso de Brahms), o que se obtém, em cada gesto arpejado, é uma harmonia em contínua
transformação, em que as várias notas de cada arpejo, sustentadas pelo pedal ad libitum, se
sobrepõem às conseguintes enquanto ressonâncias, prescindindo, ao menos enquanto tais, de
qualquer resolução (Ex. 73b).

194
Ex. 73: (a) Brahms: Op. 119, no 1, cp. 55-57; (b) Ferraz: intermezzo 1, início.

Em segundo lugar, também as cromatizações presentes na passagem de Brahms parecem, na


escrita do intermezzo 1, emancipar-se de uma elaboração funcional a priori. Na passagem de
Brahms, sobretudo nos compassos 55 e 57, tais cromatizações parecem formar brevemente tríades
relativamente remotas (respectivamente, ré# menor e fá maior) à região então vigente de Mi menor,
mas são, todas, tratadas como sensíveis individuais e imediatamente resolvidas, restituindo a
funcionalidade relativamente convencional do trecho em questão. No intermezzo 1, distintamente, o
cromatismo é introduzido na própria constituição dos arpejos e, ao invés de se manifestar na forma
de sensíveis individuais, se dá mais frequentemente à distância, tanto diacrônica, como de registro.
Disto, em associação à supracitada ação do pedal de sustentação, resulta um paradoxo, ao menos ao
se abordar a obra sob uma perspectiva funcional. Por um lado, a quase ausência de passos
cromáticos imediatos permite que, apesar de efêmeras e em sucessiva fusão, umas com as outras, as
várias tríades formadas em meio aos arpejos pareçam assumir alguma independência das demais
tríades que se lhes avizinhem. Tomando-se ainda como exemplo os arpejos iniciais, é possível
interpretar, e. g., que, nestes, estejam justapostas tríades de dó menor a tríades de mi maior (Ex. 74),
as quais seriam, em termos funcionais, demasiado remotas, uma à outra, para que estabelecessem
entre si uma clara e inequívoca relação funcional. (Discutíramos já a relação entre essas exatas duas
tríades na Polonaise S. 519 de Liszt.)

195
Ex. 74: Ferraz: intermezzo 1, arpejo inicial, com tríades assinaladas.

Por outro lado, a sustentação, por meio do pedal, das várias notas dos arpejos favorece que,
ainda que acionadas à distância, tais notas acabem por se sobrepor, umas às outras, e que se
evidenciem, assim, suas relações cromáticas: o dó natural do suposto dó menor inicial, e. g., parece
progredir cromaticamente à quinta (si) do suposto mi maior; a suposta terça menor desse acorde
inicial, por sua vez, faz-se retrospectivamente interpretável como uma sensível (ré#) de mi,
resolvida, assim, na oitava inferior e; semelhantemente, o sol natural inicial, ao se sobrepor a um
sol# (tanto aquele de partida atacado, como aquele que participa do delineamento do mi maior,
próximo ao fim do arpejo), pode assumir a feição de sensível individual (fá##) deste (Ex. 75a).
Interessantemente, uma progressão semelhante ocorrera no Op. 117, n o 2 (1892) de Brahms, cp. 8-
10 (ver Ex. 75b, abaixo), entre um aparente sol bemol menor e a tônica Si bemol menor, em que o
primeiro acorde funcionara – e fora correspondentemente anotado – como um fá dominante, com
nona e sexta bemóis, abrindo precedente no próprio Brahms para que, de maneira análoga, se
pudesse compreender esse aparente dó menor inicial do intermezzo 1, entre outras interpretações
possíveis, como uma espécie de dominante (com nona bemol e quinta aumentada) do mi maior
formado em seguida.

Ex. 75: (a) Ferraz: intermezzo 1, arpejo inicial; (b) Brahms: Op. 117, no 2, cp. 8-10.

Ainda antes de que eu escrevesse a linha de flauta sobre o intermezzo 1, busquei identificar,
sobretudo (mas não exclusivamente) em momentos formalmente privilegiados da peça – início e

196
final, pontos de articulação entre texturas distintas, súbitas alterações de intensidade, ocorrência e
circunvizinhanças de gestos singulares ou contrastantes ao comportamento geral da peça etc. –, as
centralidades locais que estes poderiam expressar e como estas poderiam vir a se relacionar entre si.
Em especial, observei:

• que os arpejos iniciais, como já colocado, poderiam ser entendidos como passagens de uma
espécie de dó menor a tríades de mi maior – e/ou sua paralela dó# menor, no caso do
segundo arpejo. Por um lado, interpretando-se essa espécie de dó menor como um si
dominante com alterações, ou, mais simplesmente, como resultado de cromatismos a serem
resolvidos sobre o mi maior, considerei que Mi maior seria, possivelmente, o centro mais
pronunciado nesse início da peça. Ainda assim, caberia também interpretar o dó menor
como uma tríade por si mesma, a ser, enquanto tal, relacionada a Mi maior (ou à tríade de
mi), ou, ainda, a ser entendida como representante de sua própria centralidade.

• Que os dois primeiros sistemas (reproduzidos no Ex. 76, abaixo) poderiam ser interpretados
como estendendo essa ambiguidade inicial. Por um lado, boa parte do trecho em questão
poderia ser relacionada, se não a Mi, às suas regiões próximas, como de sua subdominante
Lá, de sua dominante Si, ou da paralela Dó#. Por outro, ao longo de toda a passagem se
encontram acordes interpretáveis como respectivamente derivados da tríade de dó menor ou
da correspondente em Si, sol menor.

197
Ex. 76: Ferraz: intermezzo 1. Trecho equivalente aos dois primeiros sistemas e ao primeiro acorde do terceiro sistema,
com possíveis funcionalidades assinaladas. Estão também assinalados acordes semelhantes a dó menor, ou sol menor.

• Que, em um contexto até então convergente em Mi, o primeiro acorde fortissimo da peça, no
início do terceiro sistema (Ex. 76, acima), embora profundamente ambíguo, poderia vir a ser
também interpretado em Mi, como a parte superior de uma dominante à Chopin, com sétima
(lá, neste caso) e décima-terceira (sol#). Bastaria que a flauta a ser acrescentada se
desenhasse de modo a conceder relevo a tal interpretação.

198
• Que, nas últimas duas páginas da peça, ao se retomar, em boa medida, conteúdo harmônico
dos dois primeiros sistemas, a centralidade de Mi se faz ainda mais claramente pronunciada:

◦ da indicação pianissimo, no primeiro sistema da p. 7 da obra, às fermatas do início do


primeiro sistema da p. 8, são executadas, quase que exclusivamente, as classes de alturas
correspondentes a mi, sol#, lá, si, dó, ré#, redutíveis, pelos critérios propostos neste
trabalho (ver Cap. III. 3), a um diatonismo puro, convergente sobretudo em Mi – mas em
que seriam também relativamente pronunciadas as centralidades de sua subdominante
Lá (Ex. 77a) – ou, com a substituição do si por dó#, próximo ao fim do trecho (e
consequente conversão, por nossos critérios, do dó natural em si#), em sua paralela Dó#
(Ex. 77b);

Ex. 77: Diatonismos formados: (a) na p. 7 do intermezzo 1 e; (b) no início da p. 8 da peça.

◦ o conjunto de notas, no primeiro sistema da p. 8, sustentadas ao teclado (tal como


Brahms o fizera) e, subsequentemente, pelo pedal tonal até o final da peça (Ex. 78,
abaixo) – o qual é parcialmente correspondente ao quinto gesto arpejado do início da
obra (cf. Ex. 76, pouco acima) – contém em si, integralmente, um si dominante com
sétima, ademais acrescido de uma décima-terceira bemol (sol) e da sensível individual
(mi#, aqui grafado como fá) de sua quinta;

Ex. 78: Ferraz: intermezzo 1, notas sustentadas pelo pedal tonal ao fim da peça.

199
◦ o penúltimo acorde da peça, lá-mi bemol/ré#-lá bemol/sol# (Ex. 79, pouco abaixo), é
idêntico àquele do início do terceiro sistema (cf. Ex. 76), sendo, assim, passível de se
interpretar como parte de um si dominante e; o último acorde, por sua vez, consiste de
sua repetição acrescida do sol natural no baixo, podendo ser este, no contexto da peça –
e entre outras interpretações possíveis – entendido como representativo de uma possível
resolução em mi menor;

◦ se esses dois últimos acordes podem ser interpretados como dominantes de Mi, os
arpejos que imediatamente os antecedem, por sua vez, são facilmente associáveis, feitas
as devidas enarmonizações, à dominante da dominante da mesma tonalidade e;

◦ ainda antes dos arpejos em questão, os três ataques que iniciam o último sistema da peça
(inteiramente reproduzido no Ex. 79, abaixo), se interpretados em Mi, correspondem
respectivamente: à sensível individual da dominante; à tríade menor de tônica, acrescida
de sua sensível e; finalmente, em forte, à própria nota central.

Ex. 79: Ferraz: intermezzo 1, último sistema.

Ainda outras passagens, no interior da peça, seriam relacionáveis: a Mi e regiões próximas; a


Dó menor, cuja insistente presença no início poderia, com isso, vir a assumir relevância em maior

200
escala; ou a Sol menor, equivalente, com relação à região da dominante (Si), ao Dó menor com
relação a Mi. Posto, contudo, (a) que algumas dentre tais passagens são, por si mesmas, mais
ambíguas quanto às suas respectivas centralidades do que aquelas acima comentadas e; (b) que foi,
então, por meio do acréscimo da linha de flauta que eu pude conferir maior nitidez aos específicos
centros supracitados; comentarei algumas dentre tais passagens já conjuntamente ao relato acerca da
escrita de tal linha.
Para além de um cuidado, ao acrescentar a linha de flauta ao intermezzo 1, de que as
centralidades locais e relações funcionais que eu viesse a trazer à tona pudessem ser já identificadas,
ainda que não univocamente, na obra original, cuidei também de que tal linha de flauta se integrasse
à peça em termos de sua própria figuração. Assim, já nos sistemas iniciais, reproduzidos pouco
abaixo (Ex. 80), pode-se notar como: (a) iniciei a escrita da flauta tratando-a como uma espécie de
ressonância do piano; (b) incorporei progressivamente as apojaturas à articulação de novas notas da
linha; atribuí (c1) antes às apojaturas o caráter arpejado do piano e; (c2) em seguida, ao próprio
desenho da linha; (d) absorvi a fluidez métrica do piano, com suas sucessivas quiálteras irregulares
entre si e; (e) encerrei essa primeira entrada da flauta com a figuração de arpejos descendentes
predominante na escrita do piano. Quanto à participação da flauta acrescentada na funcionalidade
da passagem em questão, devo comentar sobretudo que:

• com o prolongamento do sol# inicial, busquei afirmar a participação dessa nota no


diatonismo latente no trecho e favorecer que o sol natural do piano assumisse o caráter de
sua sensível individual (fá##);

• que, para além de delinear uma ascensão escalar desde a terça à fundamental de Mi maior,
as respectivas notas da primeira frase foram posicionadas não apenas de modo que a linha se
integrasse figuralmente ao piano original, mas também de modo a enfatizar ou delinear
acordes mais convencionais que estivessem latentes em seus pontos de articulação. Assim: o
lá veio a integrar um acorde que continha em si um lá maior, subdominante de Mi,
sobreposto à sensível ré#; o si veio a participar de um ré (antes maior e em seguida menor)
com sexta, subdominante da região de Lá; o dó veio a integrar um dos acordes com aspecto
de dó menor (com sexta), o qual, por sua sequência – e, sobretudo, por sua explícita relação
com o acorde sustentado ao final da obra (cf. Ex. 78, acima) –, poderia vir a ser também
interpretado como uma dominante de Mi; o ré natural e o mi, por fim, viriam a constituir um
mi dominante de Lá, apenas parcialmente delineado pelo piano original.

201
• Iniciando-se a segunda frase em um momento em que o piano volta a formar diatonismos
(assim entendidos conforme os específicos critérios propostos neste trabalho) passíveis de se
interpretar como centrados sobretudo em Mi, a flauta se concentra, a princípio, em articular
algumas das principais notas (mi, ré# e lá) responsáveis por apontar uma tal centralidade;

• a fim de conceder caráter diatônico ao acorde lá-mi bemol-dó-dó#, no segundo sistema,


escrevi a flauta de modo que ela conectasse melodicamente um dó natural ocorrido pouco
antes ao dó# do referido acorde, de modo que o dó natural se assumisse enquanto sensível
do dó# (i. e., como um si#);

• no fim do segundo sistema, junto a uma das passagens que, conforme assinalado no Ex. 76
(p. 198, acima), eu interpretara como uma dominante individual da dominante si, introduzi
um arpejo por um lado correspondente, enarmonicamente, a sol menor, mas que, por outro,
funcionaria como uma espécie de fá# dominante, com nona bemol (sol) e sexta bemol (ré).
Ao fim do arpejo, o ré efetivamente se resolve sobre a quinta do acorde de fá#, de modo a
ressaltar seu caráter de dominante;

• junto ao acorde em forte lá-ré#-sol#, o qual eu interpretara como parte de um si dominante,


com sétima e décima-terceira, introduzi uma breve cadenza de flauta, em que: (a) ao dispor
tal acorde em arpejo e resolvê-lo melodicamente em um mi, pude efetivar a supracitada
interpretação e; (b) ao antecedê-lo com o arpejo de um acorde equivalente a dó menor, pude,
por um lado, pôr tal acorde em evidência e, por outro, explicitar sua relação, no contexto,
com o si dominante e, portanto, com a centralidade de Mi;

• finalmente, ao encerrar tal passagem com uma cadência ao menos melodicamente resolvida
em mi e; ao prolongar tal nota por sobre os arpejos seguintes; permiti que, mesmo que boa
parte do conteúdo harmônico dos arpejos em questão fosse, a princípio, dificilmente
relacionável a Mi, estes viessem, no contexto, a se relacionar a tal centralidade como, ao
menos, parte do ponto de chegada de uma espécie de cadência deceptiva.

202
Ex. 80: estrada esquecida…, sistemas iniciais.

Quando da retomada, na p. 7 do original, do conteúdo harmônico do início e da


proeminência de Mi enquanto centro (cf. p. 199, acima, Ex. 77), posto que, apesar da manutenção
do conteúdo harmônico, já não haveria na parte de piano a característica figuração de arpejos
descendentes, enfatizei a conexão com o início da peça ao atribuir à linha de flauta uma tal
figuração (ver Ex. 81, abaixo). Tendo entendido que, na própria parte de piano, a centralidade de Mi
far-se-ia já claramente pronunciada, escrevi a linha de flauta não apenas de modo a confirmá-la,
mas também a: (a) oferecer nuances à expressão de tal centralidade, ora empregando seu VI grau
maior, ora seu VI grau menor; ora seu II grau bemol (Frígio), ora seu II grau natural ou sustenido; e
(b) a formar, no interior desse Mi maior final, acordes enarmonicamente equivalentes – tal como no
início da obra – a dó menor: para tanto, fiz coincidir com alguns dos acordes lá-mi bemol-dó
executados ao piano o II grau sustenido de Mi (fá##), enarmonicamente correspondente à quinta de
um tal acorde.

203
Ex. 81: estrada esquecida…, última entrada da linha de flauta, no trecho correspondente à p. 7 de intermezzo 1.

Ainda cerca de dois sistemas antes do final do intermezzo 1, encerrei a linha de flauta, tal
como a iniciara, com um sol# longo. Por alguns motivos optei por deixar que o piano, por si mesmo,
concluísse a peça. Primeiramente, tendo sido o Mi maior inicial claramente restabelecido e sendo o
piano, como já observado, por si mesmo convergente sobre tal centro ao longo de todo o fim da
peça, considerei que já não haveria necessidade, nesses últimos sistemas, de que a flauta interviesse:
ao contrário, haveria aqui uma oportunidade para que se manifestasse, intocada, uma funcionalidade
própria à obra original, com sua específica, dinâmica- e heterogeneamente específica ambiguidade.
Voltarei nesse ponto pouco adiante.
Em segundo lugar, ao encerrar a linha de flauta antes do final da peça, pude estabelecer, ao
longo de toda a sua segunda metade, uma consistente direcionalidade, de um pleno protagonismo da
flauta (próximo à metade da obra) a um pleno protagonismo do piano original. Na p. 5 do original,
após o momento de maior densidade da peça, o piano subitamente se volta, quase até o final da p. 6,
a uma escrita predominantemente monódica, à qual se agregam, progressivamente, apojaturas em

204
arpejo e acordes sustentados pelo pedal (ver Ex. 82, abaixo). Posto que tal escrita monódica se dava
quase inteiramente em um âmbito adequado para tanto, decidi por transcrevê-la, em estrada
esquecida…, para a flauta, reintroduzindo o piano gradualmente ao atribuir-lhe as inserções cordais
da passagem em questão. No trecho correspondente à p. 7 do intermezzo 1, já comentado pouco
acima, embora o piano tornasse a ser integralmente executado como no original, o supracitado
resgate da figuração arpejada na escrita da linha acrescentada viria a manter na flauta o caráter de
Hauptstimme e; por fim, por sobre as últimas notas da linha de flauta, longas e em decrescendo, o
piano tornaria a emergir como protagonista, até que, já inteiramente solo, viesse a concluir a peça.

Ex. 82: Ferraz: intermezzo 1, segundo sistema da p. 5, a segundo sistema da p.6.

Quanto à potencial participação desse trecho predominantemente monódico na estruturação


funcional de estrada esquecida..., observei primeiramente que, tal como evidenciado no Ex. 83,
abaixo, Sol menor seria especialmente presente na centralidade ao longo da passagem em questão

205
(ver Ex. 83a-c), havendo, ademais, alguns momentos em que se delinearia o si dominante (Ex. 83d),
ou em que se faria mais proeminente a centralidade de Si (Ex. 83e).

Ex. 83: Ferraz: intermezzo 1: (a) início da monodia, p. 5, segundo sistema; (b) desenvolvimento do início da monodia, p.
5, terceiro sistema; (c) inserção de acordes em meio à monodia, p. 6, segundo sistema; (d) si dominante, fim da p. 5; (e)
monodia, fim do segundo sistema da p. 6, excluídas as apojaturas; (f) apojatura ao fim do primeiro sistema da p. 6.

Posto que sol menor, em proximidade a si, poderia vir a assumir caráter de dominante deste
(enquanto uma espécie de fá# com nona e sexta bemóis; cf. Ex. 83f, acima) e, portanto, representá-
lo, considerei que toda a passagem poderia ser tratada como estando em uma região estendida de
dominante de Mi, em que Sol menor e Si de oporiam, em larga escala, ao Mi e ao Dó menor das
seções de início e fim da peça. Assim, ao transcrever para flauta boa parte do trecho em questão, ou
ao conciliar o que permanecesse do piano original à nova parte de flauta, cuidei de ressaltar os
acordes e as centralidades locais de Sol menor e Si (maior/menor), bem como a relação entre estes.
Para tanto, para além de acrescer a linha de flauta – em momentos (como sobretudo os acordes, ou
arpejos sustentados) a serem executados ao piano – de modo que, como nas demais passagens já
comentadas, esta trouxesse à tona centralidades e relações funcionais já latentes no piano, permiti-
me também, ao transcrever para a flauta trechos do piano, alterar pontualmente uma ou outra nota

206
do original. O fragmento reproduzido no Ex. 84, abaixo, exemplifica com clareza ambas as
operações.

Ex. 84: estrada esquecida…: fragmento correspondente à passagem do primeiro ao segundo sistema da p. 6 do original,
com centralidades locais e funções harmônicas assinaladas. Os trechos esfumados na parte original de piano não devem
ser executados.

Finalmente, considero que ainda algumas passagens sejam aqui dignas de nota, sobretudo
por exemplificarem distintas maneiras como a flauta acrescentada pôde vir a interagir com a obra
original:

• no trecho de estrada esquecida… correspondente ao início da p. 2 do intermezzo, embora o


caráter subitamente efusivo do piano – associado a seu já característico cromatismo e à sua
contínua fusão de arpejos – tornasse qualquer vestígio de funcionalidade especialmente
difuso, adicionei a linha de flauta de modo que: (a) se formassem, ainda que de maneira
efêmera, alguns acordes proximamente relacionados a Mi (como assinalado no Ex. 85,
abaixo); (b) que se delineasse um direcionamento cromático à nota mi e; (c) que, ao fim do
trecho, havendo uma vez mais uma espécie de si dominante à Chopin – tal como no início
do terceiro sistema do intermezzo 1 (cf. Ex. 76, p. 198, acima) – e sendo este ao menos
melodicamente resolvido na nota mi, se delineasse uma espécie de cadência deceptiva, em
que aquilo que substitui o acorde de mi se assemelha justamente a um dó menor, ou a um dó
dominante;

207
Ex. 85: estrada esquecida…: fragmento correspondente ao início da p. 2 do intermezzo 1.

• no próprio intermezzo 1, no segundo sistema de sua p. 4, havia já margem para que boa parte
do trecho fosse interpretada em Mi – inicialmente menor e, em seguida, maior – e, ao
acrescentar a flauta, cuidei, como em outras passagens já comentadas, de conceder maior
proeminência a uma tal centralidade. Na sequência, com a profusão de fusas do piano
original e suas notas acentuadas, as primeiras dentre tais notas acentuadas, como se pode
observar no Ex. 86 abaixo, parecem ainda delinear um motivo em Mi, em seguida transposto
para Dó. As demais notas, contudo, parecem progressivamente se desvencilhar das
respectivas centralidades para as quais a melodia acentuada, por si só, apontaria.

208
Ex. 86: estrada esquecida…: fragmento correspondente ao segundo e terceiro sistemas da p. 4 do intermezzo 1.

• No trecho correspondente ao início da p. 5 do intermezzo, no trecho de maior densidade do


piano original – o qual precede, como já comentado, a passagem monódica que marca o
início da segunda metade da peça –, recuperei na flauta, com algumas alterações, o desenho
escalar ascendente em notas longas com que a linha acrescentada se iniciara. Uma vez mais,
tal movimento ascendente interage figuralmente com o piano, ao prolongar, ainda que em
eventual defasagem, notas já presentes neste. Em termos funcionais, as notas longas da
flauta até chegam a participar, em alguns momentos, da formação efêmera de acordes
proximamente relacionados a Mi, mas, ademais, a relação do piano com uma tal centralidade
se limita ao fato de que ele, à maneira de uma re-harmonização, se concilia com um material
melódico que fora já, no início da peça, exposto em tal tonalidade.

209
Ex. 87: estrada esquecida…: fragmento correspondente ao primeiro e segundo sistemas da p. 5 do intermezzo 1. O
trecho esfumado na parte original de piano não deve ser executado.

Creio que, em termos do que foi proposto neste trabalho, o que mais interessa em passagens
tais como a acima reproduzida, como as cadências deceptivas – ou espécies de – dos finais do Ex.
80 e 85, ou como a manutenção do piano solo, ao final de estrada esquecida…, é que, em todos
esses casos, a funcionalidade expressa parece ser, mais do que aquela específica que eu vim a
identificar, aquela que, tendo sido entendida como ‘latente’ no original, preserva a própria
qualidade de latente. De fato, entendo que todas essas passagens e mesmo aquelas que mantive
intocadas (como, e. g., no Ex. 88, abaixo) interagem, de algum modo, com as centralidades locais e
a estruturação funcional em maior escala que, por meio da linha de flauta, eu pude trazer à tona: por
um lado, frente às passagens mais claramente funcionais, elas respondem de maneira singular e
heterogênea, ora absorvendo e estabelecendo novas potenciais relações funcionais, ora assumindo
um caráter ‘mais bemol’, ou ‘mais sustenido’, ‘mais’ ou ‘menos’ ambíguo, ‘mais’ ou ‘menos’
dissonante etc.; por outro, por meio delas, algo da específica funcionalidade da obra original, para
além do que qualquer sistematização proposta ao longo deste trabalho pudesse abarcar (lembro aqui
do “homem do subsolo”), vem a se disseminar por toda a estrutura funcional da nova versão.

210
Ex. 88: estrada esquecida…: fragmento correspondente ao segundo sistema da p. 2.

Em meio a extensa entrevista à revista Life, em 1965, Andrew Wyeth disse preferir, em sua
obra, “o inverno e o outono, quando se pode sentir a estrutura óssea da paisagem (…). Algo aguarda
por sob ela – a história toda não é revelada” (Wyeth in Meryman: 1965, p. 110) – e precisamente
em seu quadro Winter 1946, de 1946, creio encontrar uma das imagens que melhor exemplificam
visualmente o trabalho feito em estrada esquecida…: no quadro, a fisionomia quase escultural de
seu protagonista (em paradoxal movimento) e os mourões, suas sombras, a neve por derreter e os
arbustos, no canto superior esquerdo, distribuem por toda a obra tridimensionalidade e perspectiva.
Por um lado, a ampla textura (o quadro tem cerca de 122cm de largura, por 80cm de altura) de
pinceladas esverdeadas e alaranjadas que predomina na obra absorve à sua própria maneira esse
senso de profundidade e; por outro, a imediatez pictórica dessa textura confere algo de singular e
fantasioso à construção perspéctica do quadro, como um todo.

211
Apontamentos

Concluo e defendo o presente trabalho em um momento de profunda crise institucional em


nosso país: em nível nacional, soma-se a um já fragilizado regime de representação democrática um
processo eleitoral notavelmente marcado por violência, intolerância e por ameaças mais ou menos
explícitas à própria ordem democrática; nas universidades, a falta de professores e o estreitamento,
ao menos momentâneo, da perspectiva profissional dos egressos são alguns dos problemas com que
já lidamos – outros acenam desde a linha do horizonte. Se, por um lado, entendo que a produção de
conhecimento tenha valor em si, por outro, entendo ser – ao menos de minha parte e nesse
específico momento que vivemos – conveniente que se faça um esforço por apontar os caminhos
pelos quais uma pesquisa como esta – a princípio hermética e, creio, de difícil leitura – possa vir a
estender-se para além dos círculos acadêmicos.
Assim, afora os potenciais desdobramentos artísticos – sobretudo em direção ao diálogo
composicional, tal como exemplificado acima, com o intermezzo 1 de Silvio Ferraz, mas também
realizado, ao longo desta pesquisa, sobre a peça Pato no Tucupi (2015), de Claudia Caldeira, ou
sobre a terceira leitura (2015-7), de Max Packer – e acadêmicos – caberia talvez investigar pelos
critérios propostos neste trabalho a tonalidade em obras de compositores como Pousseur ou
Dallapiccola?; caberia aprofundar uma investigação sobre o potencial analítico de uma intromissão
composicional sobre uma obra anterior28, tal como o fiz no Op. 11, no 1, ou no Op. 19, no 6 de
Schoenberg, a fim de trazer à tona funcionalidades latentes em tais obras? –, vejo algumas possíveis
contribuições deste trabalho ao próprio ensino de música.
Primeiramente, entendo que a possível conciliação, defendida neste trabalho, entre a
tonalidade funcional e virtualmente quaisquer outras abordagens a um material harmônico
temperado favoreça tanto que, (a) no ensino de composição, a tonalidade funcional possa ser
entendida antes como uma potência criativa – passível de se somar e conjugar à enorme diversidade
de ideias composicionais que o aluno possa vir a ter – do que como uma morfologia limitadora;
como que, (b) inversamente, em aulas de harmonia o professor possa valorizar uma dimensão
criativa de tal estudo e abrir espaço para que os alunos proponham e experimentem abordagens
heterodoxas à própria harmonia funcional, compreendendo e objetivando à classe como tais
abordagens, por mais que se desviem dos padrões de uma tonalidade sistematizada, hão de ter
implicações singulares e especificáveis nas relações funcionais estabelecidas nos contextos em que
se apresentem. Em especial, lecionando em um curso de licenciatura, vejo como uma tal abertura à
participação criativa dos alunos no estudo de harmonia há de propiciar que, eles mesmos, como

28 Também a tese Dobra, redobra, desdobra: comentário e abertura composicional de obras musicais, de Max
Packer (2018), escrita concomitantemente a esta e em contínuo e intenso diálogo, parece apontar para uma tal
investigação ulterior.

212
futuros professores em Ensino Básico, saibam valorizar, afetiva- e tecnicamente, as mais diversas
ideias que seus próprios alunos possam vir a apresentar.
Em segundo lugar, a exemplo do dueto de violas reproduzido na p. 160 deste trabalho,
assumo como projeto composicional e de pesquisa, em sucessão a esta tese, o de escrever, em
parceria com professores de instrumentos, cadernos de estudos técnicos para distintos instrumentos
em forma de duetos professor-aluno, em que a parte de aluno possa se concentrar em isolar os
fundamentos técnicos a serem exercitados, enquanto a parte de professor é concebida de modo a
oferecer a cada dueto um projeto formal global e funcional, que confira maior sentido harmônico ao
que poderia ser, a princípio, um exercício insípido. Creio que uma tal iniciativa possa contribuir
para tornar o estudo de um dado instrumento mais prazeroso e mais integrado a uma diversidade de
outros aspectos da música – a interação com um segundo instrumento e instrumentista, a apreciação
de sua organização formal, de nuances afetivas etc. – que não apenas sua dimensão motora.
Finalmente – e talvez aqui soe antes a voz do príncipe Míchkin, em êxtase, do que aquela do
homem do subsolo –, se pudemos conciliar – e, de fato, se no próprio repertório tão frequentemente
se conciliaram – não apenas acordes e Tonarten distantes entre si, mas mesmo lógicas que talvez
um dia se tivessem mutuamente estranhado; e se, hoje, mais do que segmentos sociais claramente
delineados, ou interesses pessoais objetiváveis, o desacordo parece habitar já entre formas de vida;
então, quem sabe, não tenhamos em uma compreensão de nossa tradição harmônica como movida e
nutrida pelo esforço sisifeano de se compor com dissonâncias mais e mais profundas, mais e mais
estruturais, um modelo, ou ao menos uma perspectiva, para alguma conciliação onde não há
entendimento?

213
Partituras anexas

214
215
216
217
218
219
220
221
222
223
224
225
226
227
228
229
230
231
Referências

ADLER, G. Richard Wagner: Vorlesungen gehalten na der Universität zu Wien. Leipzig: Breitkopf
und Härtel, 1904.

ADORNO, T. Berg: O Mestre da Transição Mínima. Trad. Mario Videira. São Paulo: Editora
UNESP, 2010.

AROM, S. “Time Structure in the Music of Central Africa: Periodicity, Meter, Rhythm and
Polyrhythmics”. In:Leonardo, No 22, Vol. 1, pp. 91-99. Cambridge: The MIT Press, 1989.

BAILEY, R. (ed.). Wagner: Prelude and Transfiguration from Tristan and Isolde. New York: W.
W. Norton & Company, 1985.

BARSKY, V. Chromaticism. New York: Routledge, 1996.

BERG, A. Écrits. Paris: Bourgois, 1985.

BERGER, K. Musica Ficta: Theories of Accidental Inflections in Vocal Polyphony from Marchetto
da Padova to Gioseffo Zarlino. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

BOULIANE, D. “Six Études pour piano de György Ligeti”. In: Contrechamps, Vol. 12-13.
Lausane: L’Age d’Homme, 1990.

BUKOFZER, M. Music in the Baroque Era: from Monteverdi to Bach. New York: W. W. Norton
& Company, 1975.

CHAFE, E. Monteverdi’s Tonal Language. New York: Schirmer Books, 1992.

CONE, E. “Analysis Today”. In: LANG, P (ed.). Problems of Modern Music, pp. 34–50. New
York: W. W. Norton & Company, 1962.

DAHLHAUS, C. Schoenberg and the New Music. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

_____. La Tonalité Harmonique: Étude des origines. Liège: Mardaga, 1993.

_____. Nineteenth-Century Music. Berkeley: University of California Press, 1989

DE VOTO, M. “The Strategic Half-Diminished Seventh Chord and the Emblematic Tristan Chord:
A Survey from Beethoven to Berg”. In: International Journal of Musicology, Vol. 4, pp. 139–153.
Bern: Peter Lang International Academic Publishers, 1995.

DELEUZE, G. Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2011.

DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do Subsolo. Trad. Boris Schnaiderman. São Paulo: Editora 34, 2009.

DUDEQUE, N. Music Theory and Analysis in the Writings of Arnold Schoenberg (1874-1951).
Aldershot: Ashgate Publishing, 2005.

DUNSBY, J.; WHITTALL, A. Análise Musical na Teoria e na Prática. Trad. Norton Dudeque.
Curitiba: Ed. UFPR, 2011.

232
FÉTIS, F. Esquisse de l’histoire de l’harmonie considérée comme art et comme science
systématique. Paris: Bourgogne & Martinet, 1840.

_____. Traité Complet de la Théorie et de la Pratique de l’Harmonie. Paris: G. Brandus et S.


Dufour, 1867.

HILL, C. “That Wagner-Tristan Chord”. In: The Music Review, Vol. 45, pp. 7–10, 1984.

JUDD, C. Tonal Structures in Early Music. New York: Routledge, 1998.

KOPP, D. Chromatic Transformations in Nineteenth-Century Music. Cambridge: Cambridge


University Press, 2002.

KURTH, E. Romantische Harmonik und ihre Krise in Wagners “Tristan”. Berlin: Max Hesses
Verlag, 1920.

LEIBOWITZ, R. Introduction à la Musique de Douze Sons. Paris: L’Arche, 1949.

_____. Schoenberg and His School. New York: Da Capo Press, 1975.

LEICHTENTRITT, H. Musical Form. Cambridge: Harvard University Press, 1951.

LESTER, J. Compositional Theory in the Eighteenth Century. Cambridge: Harvard University


Press, 1992.

LIGETI, G. “Ma position comme compositeur aujourd’hui”. In: Contrechamps, Vol. 12-13.
Lausanne: l’Âge d’Homme, 1990.

LOWINSKY, E. Tonality and Atonality in Sixteenth-Century Music. Berkeley: University of


California Press, 1961.

MARTIN, N. “The Tristan Chord Resolved”. In: Intersections, Vol. 28, No. 2. Toronto: Canadian
University Music Society, 2008.

MATTHESON, J. Der vollkommene Capellmeister. Hamburg: Herold, 1739.

MERYMAN, R. “Andre Wyeth: An Interview by Richard Meryman”. In: Life Magazine, May 14,
1965, pp. 92-122.

MOTTE, D. Harmonielehre. München: Bärenreiter, 2011.

OGDON, W. “How Tonality Functions in Schoenberg’s Opus 11, Number 1”. In: Journal of the
Arnold Schoenberg Institute, V: No. 2 (pp. 169-181). Los Angeles: University of Southern
California, 1981.

PACKER. M. Dobra, redobra, desdobra: comentário e abertura composicional de obras musicais.


Tese de Doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018.

PERLE, G. Serial Composition and Atonality: An Introduction to the Music of Schoenberg, Berg,
and Webern. Berkeley: University of California Press, 1991.

233
PHIPPS, G. “Comprehending Twelve-Tone Music: ‘As an Extension of the Primary Musical
Language of Tonality’”. In: College Music Symposium, Vol. 24, No. 2, pp. 35-54. Missoula: College
Music Society, 1984.

POUSSEUR, H. Apoteose de Rameau e outros ensaios. Trad. Flo Menezes e Mauricio Oliveira
Santos. Ed. Flo Menezes. São Paulo: Editora UNESP, 2008.

RAMEAU, J. Traité de l’harmonie réduite à ses principes naturels. Paris: Ballard, 1722.

_____. Nouveau système de musique théorique. Paris: Ballard, 1726.

RÉTI, R. Tonality in Modern Music. New York: Collier Books, 1962.

RIEMANN, H. Dictionary of Music. London: Augener & Co., 1896.

_____. Vereinfachte Harmonielehre oder die Lehre von den Tonalen Funktionen der Akkorde.
London: Augener & Co. [1893].

_____. Harmony Simplified or the Theory of the Tonal Functions of Chords. London: Augener Ltd.,
ca. 1895.

_____. Handbuch der Harmonie- und Modulationslehre (Praktische Anleitung zum mehrstimmigen
Tonsatz). Berlin: Max Hesses Verlag, 1920.

_____. The Nature of Harmony. Philadelphia: Theo. Presser, 1886.

ROSEN, C. Arnold Schoenberg. New York: The Viking Press, 1975.

_____. Sonata Forms. New York: W. W. Norton & Company, 1980.

_____. The Romantic Generation. Cambridge: Harvard University Press, 1995.

_____. The Classical Style: Haydn, Mozart, Beethoven. New York: W. W. Norton & Company,
1997.

ROSS, A. “Strauss’s place in the twentieth century”. In: YOUMANS, C. (ed.). The Cambridge
Companion to Richard Strauss. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

SABBAGH, P. The Development of Harmony in Scriabin’s Works. Irvine: Universal-Publishers,


2001.

SAMS, E. The Songs of Hugo Wolf. Bloomington: Indiana University Press, 1992.

SCHOENBERG, A. Harmonielehre. Wien: Universal-Edition, 1922.

_____. Harmonia. Trad. Marden Maluf. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

_____. “Problems of Harmony”. In: Modern Music: A Quarterly Review. number 4, pp. 167-187.
New York: The League of Composers, 1934.

_____. Structural Functions of Harmony. London: Faber & Faber, 1954.

234
_____. Funções Estruturais da Harmonia. Trad. Eduardo Seincman. São Paulo: Via Lettera, 2004.

_____. “The Orchestral Variations, Op. 31: A Radio Talk”. In: The Score, pp. 27-40. London: W.
Glock, 1960.

_____. Stil und Gedanke. Aufsätze zur Musik. Frankfurt: S. Fischer, 1976.

_____. Style and Idea. New York: Philosophical Library, 1950

_____. Style and Idea. London: Faber & Faber, 1975.

_____. Preliminary Exercises in Counterpoint. New York: St. Martin’s Press, 1963.

STEINBRON, M. Polyfocal Structures in Franz Schubert’s Lieder. Baton Rouge: Lousiana State
University, 2011.

STRAUS, J. Introduction to Post-Tonal Theory. Upper Saddle River: Prentice Hall, 2005.

TENNEY, J. A History of ‘Consonance’ and ‘Dissonance’. New York: Excelsior Music Publishing
Co., 1988.

WASON, R. Viennese Harmonic Theory from Albrechtsberger to Schenker and Schoenberg.


Rochester: University of Rochester Press, 1995.

WEBERN, A. Der Weg zur Neuen Musik. Wien: Universal Edition, 1960.

_____. The Path to the New Music. Pennsylvania: Theodore Presser Co., 1963.

WHITTALL, A. “Tonality and the Emancipated Dissonance: Schoenberg and Stravinsky”. In:
DUNSBY, J. (ed.). Models of Musical Analysis: Early Twentieth-Century Music, pp. 1-19. Oxford:
Blackwell, 1993.

235

Você também pode gostar