Francisco Zmekhol Nascimentode Oliveira VC
Francisco Zmekhol Nascimentode Oliveira VC
Francisco Zmekhol Nascimentode Oliveira VC
São Paulo
2018
FRANCISCO ZMEKHOL NASCIMENTO DE OLIVEIRA
(Versão corrigida)
São Paulo
2018
Agradecimentos
Agradeço à Paul Sacher Stiftung, em especial à Sra. Isolde Degen e ao Dr. Simon Obert, por
propiciarem meu acesso ao acervo da fundação.
Agradeço a todos os membros da banca, Profa. Dra. Adriana Lopes da Cunha Moreira, Prof.
Dr. Maurício Funcia de Bonis, Prof. Dr. José Augusto Mannis, Prof. Dr. Norton Eloy
Dudeque, Profa. Dra. Denise Hortência Lopes Garcia, Prof. Dr. Tadeu Moraes Taffarello,
Prof. Dr. José Henrique Padovani Velloso, Profa. Dra. Silvia Maria Pires Cabrera Berg,
Prof. Dr. Paulo de Tarso Camargo Cambraia Salles, pela disposição, leitura e retorno.
Agradeço aos professores Maurício Funcia de Bonis e Sergio Kafejian Cardoso Franco pela
participação na Banca de Qualificação. Seus comentários e questionamentos foram de
grande valor ao rumo do trabalho, desde então.
Agradeço aos muitos professores que tive até aqui. Tenho o privilégio de trabalhar com o
que amo e sei que isso se deve ao longo histórico de felizes orientações que pude ter: ao
Guga Murray, ao João Luiz Rezende Lopes, ao José Ferraz de Toledo Neto, à Denise
Garcia, ao Mannis, ao Jônatas Manzolli e ao Silvio, que tem me acompanhado desde antes
da graduação e que me orientou na presente tese, a todos agradeço. Que eu possa retribuir
por meio de meus alunos o bem que me foi feito por cada um.
Agradeço ao Prof. Dr. Sandro Luiz de Andrade Matas e a toda a equipe de neurologia,
reumatologia, enfermagem, fisioterapia – e provavelmente algumas outras – do Hospital São
Camilo, pelo extremo cuidado e competência.
Agradeço a todo o amparo que tive, de família e amigos, ao longo desse complexo processo:
com muito carinho, agradeço à minha mãe e ao Pedro; ao Gabriel, ao Juliano, ao Felipe, ao
Lucas; a colegas e professores da época de escola; à minha família adquirida do Norte:
Alvarez, Mazé, Big, Marcos, Anne, Nonô e uns tantos mais; ao Lira e ao Max; ao Tiago de
Mello e ao Thiago Liguori; ao Tadeu, ao Penha, ao Jorge; ao Júnior, ao Edilson. Se eu
continuar lembrando, não paro.
À amabilis Violeta, pelo imenso carinho e compreensão, por dividir comigo a perplexidade
perante a vida e à criação.
Quanto mais me debruço – sei que este há de ser o sentimento de muitos colegas meus,
estudiosos de música – sobre a obra de homens como Bach, Monteverdi, Schubert,
Schumann, Chopin, Mozart, Brahms, Beethoven, Debussy etc. etc., mais pasmo fico com a
abismante inteligência e capacidade do homem. Sobre as condições para que esse exercício
sem fim seja sequer possível – que micro-variações de pressão se propaguem em ondas, que
tenhamos um ouvido capaz de captá-las em detalhe, que tenhamos um cérebro capaz de, de
algum modo, conhecê-las, atribuir-lhes algum sentido e encontrar nisso um inusitado deleite,
que… que… –, ainda mais espantosas estas são. Hão de se tratar da mesma… força?,
sentido?… do mesmo Verbo pelo qual os cupins, nos subsolos do cerrado, se organizam
para erguer seus edifícios, pelo qual as mariposas fazem seda e as abelhas, própolis e mel;
do Verbo que gera as gotas do orvalho, de cujo ventre procede o gelo e pelo qual opera o
princípio de Bernoulli. Senhor, desde a maravilha e da miséria da condição humana,
agradeço por poder viver para contemplar o Logos.
RESUMO
The vast abandonment of functional tonality within the first decade of the 20th century has
favored the emergence of various new approaches to musical composition. On the other
hand, it has also implied in abdicating some possibilities of formal structuring propitiated by
tonality itself, such as relating functionally different parts of a piece, representing tonal
regions through single chords, or changing the harmonic meaning of chords and notes
through modulation. The aim of this work is to offer means of conciliating such possibilities
of formal structuring with compositional procedures which would be independent of
functional tonality. Taking into consideration that the compositional results of alternative
approaches to tonality such as the above mentioned tend to suppress morphological
fundamentals (such as the triadic basis of chords, or the diatonic basis of tonal regions)
which are traditionally linked to the possibilities of formal structuring that interests us in this
thesis, we have set two primary questions which guide this research. Firstly, we have
investigated upon which principles functional relations would be founded and, within the
historical, morphological fundamentals of tonality, which are the key aspects for the
preservation of such principles. Therefore, this research pursues to verify how and to what
extent such morphological fundamentals might be susceptible to flexibilization, or even
suppressed due to being founded upon more elementary fundamentals. Secondly, supported
mostly by Schoenberg and by an extended concept of “emancipation of the dissonance”, we
have investigated the historical development of tonality, aiming to verify by what means a
tonality extended to the point it was when abandoned could give subsidy for harmonic
aggregates which had not been conceived functionally to become a posteriori reported to the
fundamentals of functional tonality. Amidst this historical examination of tonality, beyond
concluding that it would be vastly feasible to recognize functional relations a posteriori, we
have verified: (1) how a series of compositional procedures initially independent of tonality
did not only emerge within tonal-functional repertoire, but also, at times, seem to take
precedence over the elaboration of certain chords and passages and; (2) that there would be
instances in repertoire (exemplified within this thesis with Schubert and Strauss) in which
chords or passages which seem to have been conceived with procedures alternative to
functional tonality are not only imbued with more specific functionalities, but also get to
participate, in functional terms, in the formal structuring of the work they are inserted in. In
the final part of this thesis, after arguing that functionalities only to be recognized a
posteriori tend to be ambiguous and divergent from one another, we propose technical
means to enable: (a) to recognize, a posteriori, features of possible functionalities even
within chords and passages which had not been conceived functionally and; (b) to elect and
accentuate specific aspects of such functionalities a posteriori in order to compositionally
develop them and to confer to them participation in the formal structuring of the works in
which they are to be inserted. Finally, we have reported the compositional process of three
pieces I have written during this research – two of which written upon works by Schoenberg
and Silvio Ferraz, respectively – which are meant to exemplify the type of conciliation we
have proposed as the main objective of this thesis.
Parte I p. 1
I. 1. Introdução p. 2
I. 2. Sobre os fundamentos da tonalidade funcional p. 10
I. 2. 1. Tonalidade e centralidade p. 11
I. 2. 2. Dissonância, resolução e teleologia p. 16
I. 2. 3. Tonalidade, funcionalidade e hierarquia p. 22
Parte II p. 30
II. 1. Cromatismo p. 33
II. 2. Modulações e cadências ampliadas p. 42
II. 3. Acordes errantes p. 49
II. 4. Dissonância e emancipação p. 56
II. 4. 1. A ‘emancipação da dissonância’ segundo Schoenberg p. 56
II. 4. 2. Exame da noção schoenberguiana de ‘emancipação da dissonância’ p. 60
II. 4. 3. Conceituação estendida de ‘dissonância’ e de ‘emancipação’ p. 65
II. 4. 4. Emergência das dissonâncias processuais p. 73
II. 5. Abandono ou renúncia à tonalidade p. 92
Apontamentos p. 212
Referências p. 232
Prefácio
Não há linha reta, nem nas coisas nem na linguagem. A sintaxe é o conjunto dos
desvios necessários criados a cada vez para revelar a vida nas coisas (Deleuze:
Crítica e clínica, p. 12).
Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular (…), vou responder-vos que
o homem se tornará louco intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é
seu!
(…)
– Eh, senhores, como é que se pode ter, no caso, sua própria vontade, quando se trata
de uma tabela e da aritmética, quando está em movimento apenas o dois e dois são
quatro? Dois e dois são quatro mesmo sem a minha vontade. Acontece porventura
uma vontade própria deste tipo?! (2000[1864], pp. 44-5, trad. Boris Schnaiderman).
(…) se deve surgir vida, se deve nascer uma obra de arte, então há que interessar-se
por esse conflito gerador do movimento. A tonalidade tem que romper com o perigo
de perder sua soberania, dar uma oportunidade aos desejos de independência e
possibilitar que atuem as aspirações de rebelião, deixá-los obter vitórias, conceder-
lhes eventualmente o alargamento de suas fronteiras, pois um dominador apenas
sente prazer dominando os vivos; e os vivos querem a rapina (2001[1911], pp. 224-
5, trad. Marden Maluf).
1
I. 1. Introdução
2
1976[1926], p. 213, e; 1950[1941/1948], pp. 105-6), em seu entendimento, tal potencial de
estruturação formal propiciado pela tonalidade seria ainda assim redutível a dois princípios
elementares, ambos passíveis de se substituir por outros meios, independentes desta. Seriam eles,
grosso modo:
(1) a capacidade da tonalidade de propiciar unidade ou coesão formal sob a égide de uma
tônica – ou, mais amplamente, sob a relativa homogeneidade de um material harmônico de
base predominantemente triádica e diatônica (ver 2001[1911], p. 69, e; 1976[1934], p. 226-7)
– e;
(2) uma “função articuladora [gliedernde Funktion]” da tonalidade [Tonalität] (id. ibid.), em
expressa referência à possibilidade de se estabelecer contraste [Gegensatz] formal por meio
da modulação – ou, mais amplamente, da menção a, da incursão em (etc.) tonalidades
[Tonarten]1 outras que não a principal [Haupttonart] de uma obra.
Se, de fato, relações fundadas nesses princípios elementares de unidade e contraste podem
ser estabelecidas por uma diversidade de outros meios – Schoenberg se interessa em especial na
elaboração motívica para tanto (ver 1976[1934], pp. 227-9), um dos principais fatores que levaram
ao advento da série dodecafônica (ver 1950[1941/1948]) –, por outro lado, pode-se encontrar no
próprio repertório de tradição tonal extensa exemplificação da efetivação de possibilidades de
estruturação formal mais intimamente atreladas à tonalidade funcional. Ao menos dois tipos de
possibilidades formais mais peculiares à tonalidade podem ser já aqui exemplificados:
1 Por conta de a palavra “tonalidade”, em português, contemplar tanto uma acepção ampla do termo (como na
expressão “tonalidade funcional”), como uma acepção mais estreita, em que ela designe uma organização específica
de notas em torno de uma tônica também específica (como na expressão “tonalidade de Dó maior”), quando
necessário, empregaremos o termo alemão “Tonart” (plural: “Tonarten”) para designar a segunda dentre tais
acepções.
3
realizando-se uma espécie de movimento cadencial entre seções formais. Ainda uma série
de exemplos mais sofisticados podem ser encontrados nas próprias ‘formas sonata’ –
valendo-nos aqui da expressão empregada por Rosen (1980), a quem nos reportamos nesta
breve exemplificação –: que alusões, já próximo ao fim de sonatas, à tonalidade fundada na
subdominante (ou outras regiões mais próximas a esta) tendam a contrabalançar em maior-
escala a dissonância instalada pela tonalidade secundária de dominante e, assim, a fortalecer
o senso de resolução formal; que seções formais fundadas em dominantes secundárias
(como é o célebre caso do segundo grupo temático da Waldstein de Beethoven, ou da
Sinfonia no 3 de Brahms, ambas examinadas adiante) tendam também a ser
correspondentemente resolvidos, com recapitulações suas (via de regra) nas tonalidades
fundadas nas tríades em que tais dominantes secundárias tenderiam a resolver; que o caráter
modulatório dos ‘desenvolvimentos’ [Durchführungen] intensifique o senso de dissonância
formal geralmente estabelecido no segundo grupo temático ao opor sua instabilidade tonal à
estabilidade da tonalidade principal; entre outros exemplos possíveis. (Todos os exemplos
aqui mencionados – bem como os princípios em que tais relações funcionais se fundam –
serão melhor examinados adiante, já em nossa exposição, propriamente.)
Em especial, é notável que a tonalidade funcional possibilite, no limite, que a própria nota,
em sua individualidade, venha a ter participação no delineamento formal de uma obra. Assim, o
mero acréscimo de uma sétima ao que seria uma tríade de tônica, e. g., pode frustrar uma cadência
final e demandar uma frase suplementar de resolução; e a alteração em meio-tom da última nota de
um determinado tema ou motivo pode vir a implicar na modulação a uma tonalidade secundária
4
(dissonante) e, subsequentemente, em uma eventual resolução em larga escala desta – i. e., em uma
relação funcional em larga escala.
Para um exemplo extremo, é interessante examinar o Finale da Sinfonia no 8, Op. 93 (1812)
de Beethoven, em cujo primeiro tema, pianissimo, em Fá2 maior, interpõe-se, tanto na exposição
(cp. 17, Ex. 1), como na recapitulação (cp. 178), um dó# fortissimo, dobrado em oitavas, mas de
função harmônica não explicitada. (Tratar-se-ia de fato de um dó#, sensível de ré?; ou quiçá de um
ré bemol, fundamental da submediante cromática de fá? Ou… ou…?) Apenas na coda, já entre os
compassos 372 a 379 (Ex. 2), que, ao se realizar pela terceira vez tal tema, o dó# fortissimo é
finalmente relacionado com clareza a tonalidades específicas; sucessivamente, três tonalidades
distintas, todas relativamente distantes da tonalidade principal: Ré bemol maior (cp. 372-4), Dó#
menor (cp. 374-6) e Fá# menor (cp. 376-9), última tonalidade secundária de fato estabelecida na
peça antes do súbito retorno, sem intermediação de qualquer tonalidade subsidiária, a Fá maior no
cp. 391 (Ex. 3). Assim, podemos entender – como colocado por Rosen, ao examinar tal movimento
em Sonata Forms (pp. 330-351) –, que essa uma nota em fortissimo no cp. 17 do movimento teria
vindo a “implicar em um clímax trezentos e cinquenta compassos mais tarde” (op. cit., p. 342), bem
como em uma modulação imediata, possivelmente inaudita à época, de Fá# menor a Fá maior.
2 Ao longo de todo o trabalho, nomes de notas com inicial maiúscula serão empregados para designar Tonarten
fundadas sobre tais notas. Para designarmos as próprias notas, ou acordes, empregaremos inicial minúscula.
5
Ex. 3: Beethoven: Op. 93, Finale, cp. 389-393 (redução).
O presente trabalho tem por principal objetivo propor meios pelos quais se possa conciliar
possibilidades de estruturação formal propiciadas pela tonalidade funcional a procedimentos e
abordagens à composição que, ao menos a princípio, independam de uma lógica funcional.
A realização de um tal objetivo implica, de partida, em lidar com um problema de dupla face.
Por um lado, as possibilidades de estruturação formal mais peculiares à tonalidade funcional (como
o são, e. g., os supracitados casos das inter-relações funcionais em maior escala, ou da relação de
reciprocidade entre níveis locais e níveis mais amplos de organização harmônica) tendem a ser
também mais atreladas a esta, em termos tanto lógicos, como morfológicos. A título de exemplo: a
condição sine qua non para que um acorde possa representar uma Tonart, ou para que,
reciprocamente, um acorde ou uma nota possam ser ressignificados conforme se insiram em
distintas Tonarten, há de ser, é evidente, que haja Tonarten às quais o acorde ou a nota se possam
reportar, ou pelas quais eles possam ser ressignificados e, ao menos em sua acepção mais estrita,
uma Tonart há de pressupor uma tônica, um diatonismo de base a partir desta, tríades fundadas
sobre um tal diatonismo etc. Por outro lado, podemos entender (como de princípio colocado) que
parte da potência própria a abordagens e procedimentos composicionais que independam da
tonalidade funcional consista, precisamente, em que estes possam, no ato da composição, ser
conduzidos sem que se responda às demandas lógicas ou morfológicas da tonalidade funcional, o
que, no resultado composicional, pode implicar – e frequentemente implica – em que não se
estabeleça uma tônica, em que a obra ou passagem produzidos não manifestem uma morfologia
fundamentalmente triádica, diatônica etc. – i. e., que não se satisfaçam algumas das próprias
condições em que estariam tradicionalmente fundadas as possibilidades de estruturação formal em
que estamos aqui interessados. Frente a um tal problema, podemos nos colocar algumas questões:
6
• assumindo-se, como aqui o fazemos, a tonalidade funcional como historicamente dinâmica,
poderíamos entender que, quando de seu abandono no início do séc. XX, a tonalidade estaria
já suficientemente expandida para que (a) mesmo agregados harmônicos não concebidos
funcionalmente pudessem vir a ser, a posteriori e ainda que de maneira remota, reportados
aos fundamentos morfológicos da tonalidade e, ainda, para que (b) virtualmente quaisquer
agregados passíveis de serem reportados a tais fundamentos morfológicos pudessem vir a
ser – uma vez mais, a posteriori – postos em relação funcional entre si?;
7
um tal exame há de nos permitir verificar no próprio repertório – e não apenas logicamente – as
maneiras como a histórica expansão morfológica da tonalidade teria levado a uma dissolução das
relações funcionais. Em segundo lugar, (2) ao examinarmos passagens e obras de Chopin, Wagner,
Wolf, Strauss etc., poderemos verificar como uma tonalidade ‘expandida’ ao ponto em que ela
estaria na virada do séc. XIX ao XX daria subsídio para que, mesmo em música comumente dita
“atonal” – mas que atenda aos mínimos critérios acústicos demandados pela tonalidade funcional –,
agregados harmônicos não concebidos funcionalmente pudessem vir a ser, a posteriori, (a)
reportados aos históricos fundamentos morfológicos da tonalidade e, ademais, (b) inter-relacionados
funcionalmente. Além disso, (3) poderemos, ainda nessa segunda parte de nosso trabalho, verificar
como o processo histórico de expansão da tonalidade teria envolvido também a emergência, no
interior da própria tradição tonal-funcional, de procedimentos composicionais (como, e. g., o
cromatismo linear, ou a elaboração de acordes por empilhamento de terças e outros intervalos, pela
verticalização de material melódico etc.) progressivamente mais independentes de uma lógica
funcional, de modo a possibilitar que observemos, já em repertório, casos em que: (3a) acordes ou
passagens dificilmente concebidos funcionalmente venham, contextualmente, a assumir alguma
funcionalidade (ainda que profundamente ambígua) e; – já no início da terceira parte de nosso
trabalho – (3b) casos em que acordes ou passagens dificilmente concebidos funcionalmente venham
inclusive a assumir participação, em termos funcionais, na estruturação formal das obras em que se
inserem.
Na terceira e última parte de nosso trabalho, proporemos os meios técnicos pelos quais
entendemos que se possa: (a) grosso modo, reconhecer, mesmo em acordes e passagens não
concebidos funcionalmente – ou que, a princípio, não expressem sequer os fundamentos
morfológicos da tonalidade funcional –, traços de possíveis funcionalidades a posteriori e;
considerando que tais traços ‘aposteriorísticos’ de funcionalidade tendam de fato a ser – tal como
nos indagáramos pouco acima – ambíguos e possivelmente dispersos, (b) como se possa ressaltar
aspectos específicos de tais funcionalidades a posteriori e elaborá-los composicionalmente, a ponto
de que estes possam vir a assumir participação na estruturação formal das obras em que se insiram.
Encerraremos nossa exposição com relatos composicionais de três peças – duas das quais escritas
sobre obras, respectivamente, de Schoenberg e Silvio Ferraz – que exemplifiquem singularmente o
tipo de conciliação a que nos propuséramos em nosso objetivo.
Antes de iniciarmos nossa exposição, dois breves esclarecimentos devem ser feitos.
Primeiramente, embora entremos, ao longo deste trabalho, em diversas discussões de natureza
teórica – e proponhamos, e. g., conceituações estendidas de ‘dissonância’, ‘emancipação’, ou
‘diatonismo’, ou sustentemos uma concepção fundamentalmente diatônica da tonalidade funcional
etc. –, devemos ressaltar que temos sempre em vista um específico objetivo (já acima enunciado) de
8
cunho técnico-composicional; que é em função de um tal objetivo que conduzimos tais discussões
teóricas; e que, assim, não temos a intenção de suplantar quaisquer concepções teóricas alternativas
àquelas aqui sustentadas. Também à natureza de nosso objetivo se deve uma não-ortodoxia com
relação a quaisquer modelos teóricos específicos, o que se manifesta de maneira mais evidente, e. g.,
em nosso emprego híbrido de notação e terminologia oriundas de análise harmônica tanto por
funções, como por graus. Em segundo lugar, devemos ressaltar que estamos aqui interessados em
identificar e elaborar relações funcionais (tanto locais como em maior-escala) sobretudo em um
plano lógico, que possam se efetivar sobretudo no ato composicional. Assim, embora busquemos,
nas várias composições e intromissões composicionais expostas ao longo do trabalho, conceder
relevo a tais relações funcionais, esclarecemos que a eficácia destas na escuta é, ao menos nesta fase
de nossa pesquisa, uma preocupação secundária.
9
I. 2. Sobre os fundamentos da tonalidade funcional
10
I. 2. 1. Tonalidade e centralidade
Tal como amplamente se sabe, tanto Schoenberg (1922[1921], pp. 487-8; cf. 2001[1921], pp.
558-60, n., trad. Marden Maluf; 1934, pp. 183 ff.), como Berg (1985[1930], pp. 51-63) e Webern
(1963[1932], p. 42), em diversos textos e conferências, rejeitaram o termo “atonal” como
designante de suas obras pós-1908. Observando-se que “Ton”, cognato alemão do francês “ton” –
de que se originara, com Fétis, o termo ‘tonalité’ [Tonalität, em alemão] –, significa, em
terminologia musical, o próprio som dito “musical” (o som de espectro regular, de fundamental
apreensível, passível de se notar musicalmente3), faz-se evidente que o argumento de Schoenberg,
em sua recusa de tal adjetivação (então pejorativa), é de cunho etimológico e subentende, assim, um
conceito também etimológico (e extremamente abrangente) de tonalidade [Tonalität] quando o
autor escreve, em seu Tratado de Harmonia (1922[1921]), que “uma obra musical será sempre
necessariamente tonal [tonal], ao menos à medida em que, entre um som musical [Ton] e outro, se
estabeleça uma relação por meio da qual os sons [Töne] – justa- ou sobrepostos – resultem em uma
sucessão que possa ser entendida como tal” e que, assim, “atonal poderia apenas designar algo que
não corresponda plenamente à natureza do som musical [dem Wesen des Tons]” (op. cit., p. 487-8,
n., trad. nossa; cf. 2001[1921], pp. 558-9, n.).
Em Tonality in Modern Music (1962[1958]), Rudolph Réti diverge da conceituação
subentendida em Schoenberg ao apontar, também em um argumento de caráter etimológico, que o
termo ‘tonalité’, como conceituado por Fétis em seu Traité complet de la théorie et de la pratique
de l’harmonie, de 1844, teria sido “provavelmente escolhido meramente como uma abreviação
linguisticamente agradável de tonicalidade” (Réti: 1962[1958], p. 25, grifo nosso), i. e.: “um estado
musical (…) de acordo com o qual um agrupamento musical é concebido (…) como uma unidade
relacionada a, e, por assim dizer, derivada de, um fundamento tonal central, a tônica” (id. ibid.,
grifos nossos). (Dahlhaus, em artigo de 1987, p. 62, parece resumir ambas as posições, de
Schoenberg e Réti, ao apontar que a expressão “tonalidade” denotaria simplesmente “relações
centralizadas entre tons ou relações entre tons, como tais”.)
Se a equivalência entre tonalidade e a propriedade, em uma obra ou passagem, de portar um
centro tonal (“tonicalidade”) propicia, por um lado, uma conceituação do termo que efetivamente o
distinga de um estado (tal como idealizado por Schoenberg) em que nenhuma nota fosse sobre-
enfatizada a ponto de vir a ser interpretada como uma tônica (ver Schoenberg: 1954[1948], p. 105 e
108 e; Webern: 1963[1933], p. 39) – a dita “atonalidade” –; por outro, tal conceito, por si só, faz-se
ainda insuficiente para que se distinga o que seria próprio a essa específica tradição musical
3 Valendo-nos desta última propriedade, peculiar ao som dito “musical”, e para evitar confusões decorrentes da
multiplicidade de significados que a palavra “tom” porta em português, referir-nos-emos ao “som musical” mais
frequentemente pela palavra “nota”.
11
ocidental dita “tonal”, de uma série de outras práticas que estabeleçam também notas, ou sons
centrais. Assim, a fim de esclarecer uma tal distinção, torna-se determinante, na exposição de Réti,
a própria maneira como um tal centro tonal se estabelece.
Naquilo que Réti designara como ‘tonalidade melódica’ (ver 1962[1958], pp. 32-5) –
identificável sobretudo com os sistemas modais pré-tonais, ou de outras tradições musicais –, a
centralidade de uma dada nota seria estabelecida pela enfática recorrência desta (id., pp. 33-4), ou
por quaisquer recursos de natureza melódica – como, e. g., o privilégio fraseológico da nota
centralizada de iniciar e terminar a obra, ou muitas de suas frases; que a nota centralizada se situe
em algum ponto privilegiado do registro, ou se torne eixo de sucessivas ornamentações; que
ocorrências da nota centralizada coincidam mais frequentemente com acentos métricos etc.
Ex. 4: Canto judaico, empregado por Réti como exemplo de ‘tonalidade melódica’. Adaptado de Réti: 1962[1958], p.
155.
Na forma de tonalidade designada por Réti como ‘harmônica’ (id., pp. 25-31) – em boa
medida correspondente à tonalité moderne de Fétis (1867[1844], pp. 165 ff.)4 e mais próxima do
conceito de tonalidade mais difundido na literatura (ver p. 22, adiante) –, por sua vez, a tônica seria
estabelecida, em sua concepção, por relações de proximidade inerentes à série harmônica:
• “Verticalmente”, em suas palavras, “uma nota torna-se tônica [tonic; entendemos que o
termo mais adequado, no caso, seria ‘fundamental’] ao combinar-se com seus parciais
harmônicos mais próximos” (1962[1958], p. 26), vindo a formar, assim, uma tríade, ou
acorde de sétima, nona etc. cujas demais notas reforcem espectralmente a primeira –
argumento este que, embora aparentemente adequado ao tratar de tríades maiores, falha,
conforme repetidamente observado na literatura, na explicação a respeito de tríades menores
e do emprego também destas como tônicas possíveis –;
4
Embora se faça necessário esclarecer aqui que, em nossa compreensão, a ‘tonicalidade harmônica’ de Réti designa
uma maneira de estabelecer centralidade, ao passo que a ‘tonalité moderne’ de Fétis designa uma prática histórica
caracterizada por tal maneira de estabelecimento da tônica.
12
• “horizontalmente”, por sua vez, Réti entende que notas correspondentes aos parciais
superiores de uma dada série harmônica tenham uma espécie de tendência “natural” (ver op.
cit., p. 28) a progredir rumo à nota correspondente à fundamental da mesma série. Tal
tendência seria tão mais forte quanto mais próximos estiverem os harmônicos superiores de
tal fundamental e, a isto, o autor atribui a “qualidade de resolução” de progressões do tipo
V→I (id., pp. 26-7).
Desse modo, Réti, à semelhança de diversos outros autores – uma vez mais, Fétis é a
principal referência –, atribui à cadência de tipo V→I, ou a uma “urgência” da dominante em
direção à tônica (id., p. 27), o principal aspecto que caracterizaria a ‘tonalidade harmônica’, o qual
permitiria conectar as práticas composicionais de, e. g., Monteverdi, Bach, Beethoven ou Mahler; e
distingui-las, ainda assim, de práticas comumente designadas como “modais” ou “pré-tonais”,
“atonais”, “pantonais”, “pós-tonais” etc.
Assumindo-se essa distinção proposta por Réti entre dois tipos de “tonicalidade”, algumas
propriedades da centralidade tonal estabelecida por meio da cadência – i. e., “harmonicamente” –
devem ser aqui ressaltadas. Primeiramente, se por um lado a tonalidade dita “melódica” se vale
sobretudo da recorrência de alguma dada nota (ou acorde) para que esta se estabeleça como central
e, portanto, tende a demandar tempo, propriamente, para que isto ocorra; por outro, a tonalidade dita
“harmônica”, ao concentrar sobre progressões cordais do tipo V→I – e, sobretudo, sobre o acorde
de dominante – o estabelecimento de seus centros, faz-se mais ágil – no limite, instantânea – tanto
para que tais centros se estabeleçam, como para que ocorra a troca destes – i. e., grosso modo, a
modulação. Nesse sentido, é notável que Fétis, tendo também atribuído a fundação da tonalité
moderne a uma tendência do acorde de dominante (mais especificamente com acréscimo da sétima)
de progredir em direção à tônica, ressalte expressamente esse potencial modulatório – mais do que a
centralidade em si – propiciado pelo acorde de dominante e designe alternativamente tal tipo de
tonalidade por “ordem transitônica [ordre transitonique]” (1867[1844], pp. 165-6 e 174).
Em segundo lugar, embora Réti tenha associado, respectivamente, as tonalidades ditas
“harmônica” e “melódica” a repertórios distintos (cf. id., p. 26, n. 1 e p. 32), entendemos que: uma
vez que cada uma destas designe mais propriamente – como já apontado – uma maneira pela qual
se estabeleçam centros tonais e; que boa parte do repertório em que se possa identificar o
estabelecimento de centros tonais por meio de recursos “harmônicos” seja, ainda assim, em boa
medida organizado em termos melódicos; então, mais frequentemente do que não, será identificável
neste repertório a participação também de recursos de natureza melódica no jogo de
estabelecimento, obscurecimento, troca, concorrência etc. de centros, de modo que, em nosso
entendimento, haja frequentemente interação entre as duas formas de tonicalidade em questão. (Para
13
um exemplo de tal interação, na Ballade no 1, Op. 23 de Chopin, como se vê pelo trecho abaixo
reproduzido, a ênfase sobre a tríade de lá bemol maior parece estabelecer ‘melodicamente’ Lá
bemol como centro; a cadência de tipo V→I sobre sol menor entre os compassos 8 e 9, contudo,
estabelece por meios ‘harmônicos’ Sol menor como centro tonal, atribuindo retrospectivamente ao
lá bemol inicial um caráter de napolitana.)
14
cadência clássica”, muito embora esta se obscureça, em suas palavras, pelas “séries de acordes de
passagem, desvios harmônicos e relações tonais livres entre partes isoladas” (op. cit., p. 38).
15
I. 2. 2. Dissonância, resolução e teleologia
Semelhantemente ao que ocorre com relação ao termo “tonalidade”, também o par de termos
“consonância” e “dissonância” porta uma diversidade de conceituações na literatura musicológica.
Em estudo historiográfico de tais termos – A History of ‘Consonance’ and ‘Dissonance’ (1988) –,
James Tenney aponta para cinco principais concepções históricas, na cultura musical ocidental, de
tal par conceitual, quatro das quais, em suas palavras, “proximamente relacionadas às [respectivas]
práticas musicais dos extensos períodos durante os quais foram as formas predominantes de CDC
[‘consonance/dissonance-concept’, i. e., ‘conceito de consonância/dissonância’]” (op. cit., p. 95):
• a primeira destas (‘CDC-1’; id., pp. 9 ff.), associada à era pré-polifônica da música ocidental
– desde Pitágoras, séc. VI a.C., até aproximadamente o séc. IX, no entendimento do autor –,
entenderia como consonâncias, basicamente, intervalos entre notas relacionadas por
proporções numéricas simples, “intervalos que fossem diretamente afináveis: a quarta justa
[4:3], quinta [3:2], oitava [2:1] (…)” (id., p. 95, grifo do autor);
• a segunda concepção (‘CDC-2’; id., pp. 17 ff.), associada à polifonia medieval – entre ca.
900 e início do séc. XIV –, seria por sua vez relacionada a intervalos simultâneos e, mais
especificamente, “ao grau em que uma díade simultânea soaria [ou não] como uma única
nota” (id., p. 96, grifo do autor). A princípio – em Hucbald (ca. 900), ou Guido d’Arezzo (ca.
1026-8), e. g. –, os intervalos entendidos como consonantes, segundo tal concepção, seriam
os mesmos que no CDC-1; ao longo dos séculos XII a XIV, as díades de terças e sextas
viriam a ser gradualmente incluídas na categoria de consonâncias – ainda que com
diferentes gradações de consonâncias (“perfeitas”, “intermediárias” e “imperfeitas”), bem
como de dissonâncias (idem) (ver id., p. 1095);
• a terceira concepção (‘CDC-3’; id., pp. 39 ff.), associada pelo autor às práticas polifônicas
desde a Ars Nova (séc. XIV) à Seconda Pratica (fim do séc. XVI/ início do XVII) e a prática
do baixo-contínuo (séc. XVII), é de cunho operacional (id., p. 96) e categoriza
consonâncias (perfeitas e imperfeitas) e dissonâncias em função da manutenção de uma
clareza melódica (e textual) das linhas constituintes de texturas polifônicas (id., p. 97):
grosso modo, consonâncias seriam intervalos ou agregados que prescindissem, então, de
resolução e; dissonâncias, intervalos ou agregados que a requeressem;
5 Tenney expõe uma tabela com as classificações dos distintos intervalos em 30 tratados, desde o tratado anônimo
Musica enchiriadis (séc. IX) a Le institutioni harmoniche, de Zarlino (1558).
16
• a quarta concepção (‘CDC-4’; id., pp. 65 ff.), por fim – identificada por Tenney inicialmente
nos escritos de Rameau, desde o Tratado de Harmonia (1722) –, parte do conceito moderno
de tríade, estabelecido no início do séc. XVII, para determinar como ‘consonantes’ as notas
– não mais intervalos – constituintes de uma dada tríade e; como ‘dissonantes’ qualquer
nota estranha à tríade vigente (id., pp. 96-7). A exemplo da terceira concepção, também aqui
se entende que a nota dissonante – em oposição à consonante – tenda à resolução (id. ibid.).
17
dissonância e – se não necessidade – demanda por resolução como base para o conceito específico
de dissonância com que operaremos no presente trabalho (ver sobretudo Cap. II. 4. 3., pp. 65-9,
adiante).
Em Die Natur der Harmonik (1886[1882]), Riemann escreve que “o único acorde
consonante em qualquer tonalidade [key], no senso mais estrito do termo, é o acorde de tônica (…),
o único que não requer claramente uma progressão posterior” (op. cit., p. 29, grifos do autor).
Também Rosen, em seu livro sobre Schoenberg (1975), entende que, em uma obra “tonal”, a tríade
de tônica seja a “única consonância perfeita” (p. 28) e defende, assim, que “a distância de outras
tríades a partir da tônica seja uma relação de dissonância” (id. ibid., trad. nossa, grifo do autor).
Rosen entende também, em referência ao advento da tonalidade “moderna” (cf. op. cit., p. 27), que
esta tenha levado a uma extensão do que se faça passível de conceber – agora em termos
composicionais – como ‘dissonante’: “quando música se tornou triádica por natureza, um novo e
poderoso conceito de expressão foi adicionado: à ideia do intervalo dissonante [CDC-1 a 3], juntou-
se a ideia da frase dissonante, ou da seção dissonante” (id., p. 28, grifos nossos), sendo a primeira
destas qualquer frase que enfatize – ou que se conclua com – uma tríade outra que não a tônica e; a
segunda, qualquer seção de uma dada obra que provisoriamente estabeleça como central uma outra
tríade que não sua tônica principal – i. e., a modulação (id. ibid.), frequentemente referida pelo
autor como “dissonância em larga escala” (id., p. 29; 1997[1972], p. 26).
Partindo (a) da assunção de uma radical identificação entre dissonância e demanda por
resolução e das constatações de que: (b) por tal critério, nas práticas tidas por “tonais”, a tônica seja,
a rigor, a única consonância e; (c) de que o status de ‘dissonante’ possa ser expresso em
virtualmente qualquer nível de organização harmônica – da nota (CDC-4), do intervalo (CDC-1 a 3)
e do acorde, à frase ou região tonal (Rosen) –; entenderemos então por dissonância, neste trabalho,
todo e qualquer desvio da tônica no contexto da tonalidade funcional. A argumentação que nos leva
a tal formulação do conceito de dissonância será retomada com maior detalhamento e com
exemplificação exaustiva de suas implicações nos capítulos II. 4. 2. e II. 4. 3., no contexto de um
exame da noção de emancipação da dissonância em Schoenberg. Por ora, contudo, limitamo-nos a
ressaltar, dentre tais implicações, os seguintes pontos:
18
poderem pertencer a uma tríade pura, passível de ocupar a posição de tônica, de
consonância.
Em relação mais estreita com a argumentação que se segue, devemos ressaltar ainda que:
19
◦ que sejam portanto identificáveis no dissonante também as operações que
reverteriam tal desvio, i. e., suas resoluções possíveis;
20
em compreendê-lo como predestinado à resolução – e, de fato, abundam exemplos em virtualmente
qualquer obra da tradição tonal em que, de acordes ou tonalidades dissonantes (segundo o conceito
ora proposto), se progrida a acordes ou tonalidades ainda mais distantes da centralidade principal
da obra, sobretudo em passagens modulatórias, ou em passagens de desenvolvimento
[Durchführung]. Especialmente relevante é ressaltar aqui que, quer se efetive a resolução mais
provável de um dado dissonante (como uma cadência perfeita, no caso do acorde de dominante),
quer se efetive uma resolução menos provável (como, e. g., uma cadência deceptiva), quer se
progrida a um dissonante ainda mais distante da tônica, ou se siga a uma pausa (como
repetidamente ocorre no Ex. 6, p. 15, acima) etc.: em todos os casos, a teleologia própria ao dado
dissonante tende a participar do(s) sentido(s) que aquilo que se lhe segue assume e; por outro lado,
a resolução, a pausa, a elisão, a intensificação da dissonância etc., em função de tal teleologia
específica, conferem sentidos distintos à própria progressão em questão – de modo que a cadência
deceptiva, ou a pausa, e. g., não se caracterizem respectivamente como erro, ou falta etc., mas como
recursos expressivos e formais.
Por fim, se assumimos nesta exposição que (a) a teleologia própria a um dado dissonante se
dê em função da identificação das maneiras específicas como este é desviado de uma centralidade
de referência e; (b) que, de modo geral, a teleologia inerente a um dado dissonante não seja unívoca;
então se faz necessário colocar a pergunta sobre como, segundo o modelo ora proposto, viria a ser
estabelecida uma centralidade se não por ênfase, recorrência etc.; se não, ao menos inicialmente,
pela ‘tonicalidade melódica’ – lembrando-se aqui que, mais frequentemente do que não, obras
entendidas como “tonais” se iniciam e concluem com a tríade de tônica e confirmações desta, de
modo que, conforme já apontado, haja frequentemente participação, em obras inseridas na tradição
tonal, de recursos de natureza ‘melódica’ no estabelecimento de tônicas –; em suma: como é
possível que se estabeleça apenas por teleologia – e com relativa clareza – uma centralidade
ausente, a exemplo da primeira canção do Dichterliebe de Schumann, ou dos compassos iniciais do
prelúdio de Tristão…? Por ora, limitamo-nos a apontar que, se por um lado há, em um dado
dissonante, uma multiplicidade de resoluções possíveis – sobretudo se ainda não se faz claro o
centro de referência –, por outro, aquelas que por menos operações o conduzam a algo que se possa
contextualmente interpretar como consonante (em nosso entendimento, portanto, central) tendem a
ser mais claramente identificáveis, de modo que, dentre as resoluções possíveis, algumas possam
parecer mais iminentes do que outras – e os centros por elas apontados, mais prováveis –; à medida
em que as progressões e possíveis resoluções de distintos dissonantes pareçam convergir ou
divergir, as possíveis centralidades por eles apontadas tenderão a se pronunciar mais ou menos
claramente.
21
I. 2. 3. Tonalidade, funcionalidade e hierarquia
22
de Marchetto da Padova – previa o possível uso de alterações cromáticas: progressões polifônicas
de consonâncias imperfeitas (entendidas por Marchetto como “dissonâncias”) para consonâncias
perfeitas. Segundo a teoria da época, “uma consonância imperfeita deveria progredir para a
consonância perfeita mais próxima por movimento contrário” (Berger: op. cit., p. 122, trad. nossa,
grifo nosso), de modo que a terça menor progrediria ao uníssono; a terça maior à quinta justa e; a
sexta maior à oitava (id. ibid.). Quando a constituição interna de um dado modo não propiciasse a
progressão desejada, uma das notas da consonância imperfeita seria cromaticamente alterada, a fim
de produzir o intervalo necessário à progressão.
Segundo Berger, tal regra teria sido flexibilizada em tratados posteriores ao Lucidarium… –
como o Compendium de discantu mensurabili (1336), de Petrus frater dictus Palma ociosa, ou o
Contrapunctus (1412), de Prosdocimus de Belmandis –, admitindo-se: em Petrus frater, a
progressão de consonâncias imperfeitas para perfeitas por movimento paralelo, ou, ainda, com
apenas uma das vozes progredindo por grau conjunto (mais especificamente, um semitom); e
suplementarmente, em Prosdocimus, a progressão de consonâncias imperfeitas para outras
consonâncias imperfeitas, buscando-se “progredir por semitons sempre que possível”. (O Ex. 7,
extraído por Berger do Contrapunctus de Prosdocimus, exemplifica tanto a progressão mais
ortodoxa de Marchetto, como as progressões referentes a seu tratado e ao de Petrus frater.)
Dissociando-se, assim, a alteração cromática em progressões polifônicas de progressões entre
intervalos específicos e; somando-se às progressões propostas por Marchetto, Petrus e Prosdocimus,
as cadências de dupla sensível, amplamente empregadas por compositores da ars nova, em meados
do séc. XIV (ver Ex. 8, abaixo); faz-se claro que as notas elevadas cromaticamente eram
empregadas, via de regra, em função de progredir ascendentemente por passo cromático.
Ex. 7: Prosdocimus: contraponto a duas vozes (1412). Assinaladas por (a), as progressões ortodoxas, ao modo de
Marchetto; por (b), uma progressão menos ortodoxa, ao modo de Petrus frater; por (c), uma progressão entre
consonâncias imperfeitas com alterações cromáticas. Adaptado de Berger: 1987, p. 124. Os sinais de “bê duro”
correspondem ao moderno “#”.
23
Ex. 8: Machaut: La Messe de Nostre Dame (anterior a 1365), Kyrie, início. Cadências de dupla sensível assinaladas.
24
Ex. 9: (a) Modo I, com alteração do VII grau; (b) modo VII, com alteração do VII grau; (c) modo V, com IV grau
“mole” fixado.
25
tônica, i. e., a tríade central; a dominante, fundada sobre a quinta superior da tônica, e; a
subdominante, cuja quinta corresponde à fundamental da tônica (Ex. 10, abaixo) – todo outro
acorde em uma dada tonalidade [Tonart] seria classificável, em sua teoria, em um dentre esses três
tipos de funções (ver 1893, p. 9).
Por outro lado, deve-se observar que ‘função’ é frequentemente posto em equivalência
(explícita ou implícita), por Riemann, com “significado” [Bedeutung] harmônico (1890, p. 19; cf.
1893, p. 60 e 155 ff.), dando margem a um emprego flexibilizado do termo, passível de extensão, e.
g., aos níveis das notas, de progressões cordais, regiões tonais etc., e que, embora se possa valer de
um uso metonímico dos termos ‘tônica’, ‘dominante’ e ‘subdominante’, venha a designar mais
amplamente uma diversidade de relações possíveis com e/ou ‘em função de’ uma centralidade
tonal. Assim, Bukofzer, e. g., emprega o termo em sentido amplo ao apontar que, no barroco tardio,
todos os acordes de uma dada Tonart (não apenas a tônica, a dominante, ou a subdominante) “agora
serviam a uma nova função, a saber, a de circunscrever a tonalidade” (1975[1948], p. 220, trad.
nossa, grifo nosso) e atribui a hierarquia entre tais acordes às suas respectivas distâncias, no ciclo de
quintas, da tríade de tônica (id. ibid.; cf. Rosen: 1975, p. 28); Schoenberg, por sua vez, afora
nomear tonalidades secundárias com uma terminologia parcialmente correspondente à da teoria
funcional de Riemann (ver sobre ‘monotonalidade’, p. 29, pouco adiante), menciona, no capítulo
inicial de Funções Estruturais da Harmonia (2004[1948]), o que ele denomina “funções centrípeta”
e “centrífuga” de progressões cordais, associando-as, respectivamente, ao estabelecimento de
tonalidades e a passagens modulatórias (op. cit., pp. 17-9, grifo nosso).
Valendo-nos de uma concepção (a) mais ampla de ‘função’ e ‘funcionalidade’ (do que o
sentido estrito encontrado em Riemann), (a 1) extensível aos vários níveis de organização harmônica
(como notas, acordes, ou tonalidades [Tonarten]) e (a2) concernente às diversas possíveis relações
entre elementos harmônicos com um centro e; entre si, em função de um centro; (b) adaptada a uma
compreensão por meio dos conceitos acima formulados de ‘centralidade’, ‘dissonância’ e
‘teleologia’ e; (c) em que se assuma uma matriz diatônica (passível de flexibilizar-se, conforme já
26
apontado) como contexto para a identificação de tais relações harmônicas, podemos entender que
cada função stricto sensu porte uma diversidade de funções lato sensu e, mais especificamente:
◦ que, pelos mesmos meios, outros dissonantes sejam fortemente sugestivos de centros
alternativos a uma tônica já estabelecida ou pressuposta; que tais dissonantes tenham
uma tendência “centrífuga”, conduzindo à cromatização de uma Tonart, ao
obscurecimento da tônica já estabelecida ou pressuposta, à modulação, propriamente,
etc.; que a função lato sensu de tais dissonantes de apontar para outro possível centro,
que não o que então se entenda como tônica – de, portanto, intensificar o grau de
dissonância –, seja característica (embora não a única) da função comumente
denominada ‘dominante secundária’ – i. e., a dominante stricto sensu de um outro
centro –;
▪ que, portanto, nos termos de nossa exposição, ‘dominante’ não corresponda a uma
única função (lato sensu), mas, ao menos, às duas supracitadas, de: (1) estabelecer
ou confirmar um dado centro (a “função centrípeta” de Schoenberg); bem como de
27
(2) apontar para centros alternativos a uma tônica já estabelecida ou pressuposta (a
“função centrifuga”). Assim, se entendemos o termo ‘dominante’ como adequado
para designar certos tipos de funções lato sensu, isto se dá sob a condição de que tal
termo seja aqui compreendido como uma metonímia.
Considerando-se ainda que, na dominante dita “centrípeta”, sua sensível seja identificada
como tal em função da matriz diatônica da Tonart – mais especificamente, em função do caráter
dissonante que a sensível assume em sua relação de trítono com o IV grau – e; que as tríades de I e
de V graus (respectivamente ‘tônica’ e ‘dominante’), juntas, não apenas não contêm todas as notas
da Tonart, como – sobretudo no modo maior (mas também no modo menor, se assumido um
diatonismo flexibilizado) – o conjunto das notas constituintes de tais tríades poderia igualmente
pertencer à Tonart fundada sobre o V grau (ver Ex. 11, pouco abaixo; cf. de la Motte: 2011[1976],
pp. 33-4); então, entendemos que:
• apresentar os graus que complementem o diatonismo de base de uma Tonart constitua, em si,
uma função lato sensu; que esta função consista, mais precisamente, em evidenciar o caráter
dissonante da sensível e do acorde de V grau e, em consequência disso, fortalecer o senso de
centralidade do I grau; que essa função possa ser desempenhada por mais de um acorde (em
tonalidades maiores, e. g., as tríades sobre o II e IV graus); que, uma vez mais, por
metonímia, esta função possa ser designada – como comumente o é – ‘subdominante’.
Ex. 11: Excerto do Te Deum (ca. 1688-98), de Charpentier. In: de la Motte: 2011[1976], p. 33.
• Sobre as tríades denominadas por Riemann ‘paralelas’, por sua vez, o próprio autor lhes
atribui específicas funções lato sensu: de “substituir” a tônica em cadências deceptivas com
uma “falsa consonância [Scheinkonsonanz]” (1893, p. 79); ou de realizar uma transição
gradual do acorde de tônica àquele de subdominante, ao substituir a quinta daquele pela
terça deste (id., p. 80).
28
Ademais, se assumirmos, tal como Schoenberg o faz em seu conceito de ‘monotonalidade’
(ver 2004[1948], pp. 37 ff., 49 ff., 73 e 79 ff.), que as próprias tonalidades fundadas sobre as outras
tríades vinculadas a uma dada tonalidade principal [Haupttonart] mantenham, em maior escala,
uma relação funcional com a Haupttonart – e sejam, assim, entendidas como ‘regiões’ desta –,
então ainda outras funções lato sensu podem vir a ser identificadas em dominantes, subdominantes,
respectivas paralelas e dominantes individuais etc.: que as respectivas regiões de dominante e de
subdominante de uma dada Haupttonart, por serem ambas mais diretamente relacionadas a esta do
que entre si, tendam a se opor, uma à outra, e, ao mesmo tempo, a convergir na Haupttonart
(aprofundaremos e estenderemos um tal raciocínio no Cap. III. 4, pp. 151 ff., adiante); que esse
mesmo tipo de oposição – e consequente convergência na Haupttonart – tenda a se estender a
outros acordes e regiões proximamente relacionados, respectivamente, à dominante e à
subdominante da Haupttonart (idem); que as regiões tonais de paralelas, tendo suas bases
diatônicas semelhantes entre si, sejam facilmente intercambiáveis, podendo assim diluir entre si
suas respectivas centralidades, estabelecer uma tonalidade mais “difusa” etc. (De fato, Rosen, em
seu Sonata Forms, de 1980, entende que Chopin e Schumann, e. g., disponham de um “sistema
[tonal] mais difuso [a fuzzier system]”, precisamente por tratarem as regiões paralelas como “mais
ou menos uma mesma tonalidade [key]”; ver op. cit., pp. 368-9.)
Entendemos aqui como a mais característica, geral e relevante (ao menos quanto aos
específicos objetivos assumidos neste trabalho) propriedade da tonalidade o que possamos aqui
denominar – e este é o motivo pelo qual optamos aqui por adotar, dentre outras expressões
usualmente empregadas, o termo ‘tonalidade funcional’ para designá-la – ‘funcionalidade tonal’:
que o centro, ou os centros tonais, em seus vários níveis, não apenas se caracterizem por não
demandarem resolução, mas sirvam de referência aos demais objetos harmônicos (notas, acordes
etc.) para que estes se qualifiquem como dissonantes e, em especial, como dissonantes específicos,
porquanto se desviam de maneiras específicas do centro ou centros tonais; que, reciprocamente, os
dissonantes, ao apontarem para suas possíveis e específicas (e ora mais, ora menos diversas)
resoluções, apontem precisamente para os centros possíveis, estabelecendo-os, reforçando-os,
obscurecendo-os, substituindo-os etc. conforme convirjam ou não sobre tais centros; que essa
interação multilateral entre centros e dissonantes, entre dissonantes entre si, em função de efetivos
ou supostos centros, etc. forme, contextualmente, complexas e singulares hierarquias, nas quais: (1)
interajam diversos níveis de organização harmônica (notas, acordes, regiões tonais, tonalidades
principais etc.); (2) em que, em cada nível e entre níveis, os vários objetos harmônicos assumam,
com relação aos centros efetivos ou supostos e uns com relação aos outros, funções (lato sensu), a
rigor, singulares; (3) em que, ademais, influam uma diversidade de outros fatores, a princípio não
propriamente harmônicos (estruturação métrica, orquestração, texto, referencialidade etc.).
29
Parte II
30
A história de uma progressiva dissolução da tonalidade funcional rumo a seu abandono, ou à
renúncia de uma tônica em obras de Schoenberg, Webern e Berg – entre outros já mencionados –, a
partir de 1908-9, é bastante difundida na literatura sobre música do século XX. Em escritos dos
próprios compositores envolvidos, ela é abordada de maneira mais direta nas conferências “O
caminho para a composição com doze sons” [1932] e “O caminho para a música nova” 6 [1933], de
Webern, e permeia diversos textos de Schoenberg, desde seu Tratado de Harmonia7, sobretudo
aqueles em que se abordem noções como aquelas de ‘tonalidade expandida’ e ‘emancipação da
dissonância’8.
De modo geral, entende-se que a proliferação de relações cromáticas na música germânica
pós-wagneriana, as modulações sucessivas e para regiões remotas, a profusão de acordes alterados e
ambíguos (os ‘acordes errantes’), intensamente dissonantes e, não raro – em compositores como
Wagner, Bruckner, Mahler ou Strauss –, sem qualquer preparação ou resolução teriam reduzido
drasticamente o poder unificador da tônica, uma efetiva centralidade sua em maior escala. Em seu
livro sobre Schoenberg, Rosen escreve:
Ao final do século [XIX], a aparição final do acorde de tônica em diversas obras de Strauss,
Reger e outros soava como uma polida reverência em direção à teoria acadêmica; o restante
da música frequentemente procedia como se não fizesse diferença com qual tríade ela viria a
terminar. A obra está, por boa parte, em uma tonalidade [key] ou outra, mas já não há mais
qualquer senso de direção. É raramente evidente se a música está se afastando de ou se
estabelecendo em qualquer tonalidade e mesmo seções claras de tonalidades estáveis por
vezes não têm específica relação com um esquema total (1975, pp. 32-3, trad. nossa).
Para Schoenberg, o senso de que a presença de uma tônica no início e ao final de uma peça
ter-se-ia tornado uma espécie de “capricho formal” conduz, em sua versão mais branda, à questão
sobre se a tonalidade [Tonalität] seria de fato uma “necessidade construtiva” (2001 [1911], p. 70) e,
considerando que não o fosse, se ela não poderia ser abandonada, ou substituída por outros meios de
elaboração harmônica (ver, e. g., 1934, pp. 175 ff.). Em Webern, junto à constatação de que a
“relação com uma tônica [Grundton, som fundamental] se tornara cada vez mais solta”,
encontramos a afirmação categórica de que a tonalidade – de fato equivalida pelo autor, cerca de
um ano mais tarde, a “relação com um som fundamental [Grundton]” (1960[1933], pp. 38-9) –
estaria “morta” (id.[1932], p. 51).
6
“Der Weg zur Neuen Musik” e “Der Weg zur Komposition in zwölf Tonen”, no original em alemão (1960).
Traduzidas para o português por Carlos Kater em volume único sob o título O caminho para a música nova (1984).
7
Harmonielehre, no original em alemão [1911/1922]. Traduzido para o português por Marden Maluf sob o título
Harmonia (2001).
8
Ver, em especial, o ensaio “Gesinnung oder Erkenntnis?” [1926] e a terceira seção da conferência “Composition
with Twelve Tones” [1941], ambos inseridos na coleção de ensaios Style and Idea (1950); o ensaio “Probleme der
Harmonie” [1934]; para além dos capítulos sobre “Modulação”, “Sons ‘estranhos à harmonia’” e toda a parte final
(2001, pp. 507 ff.) do Tratado de Harmonia [1911/1922], ou dos capítulos sobre “Tonalidade Expandida” e toda a
parte final de Funções Estruturais da Harmonia (2004[1948], pp. 168 ff.).
31
Ao longo desta segunda parte do trabalho, examinaremos esse processo histórico de
expansão e dissolução da tonalidade funcional, desde suas bases morfológicas, até seu abandono ou
renúncia no início do séc. XX. Iniciaremos nossa exposição investigando as maneiras como cada
um dos três principais fatores aos quais Schoenberg e Webern atribuem esse processo histórico – a
saber, o cromatismo, a modulação (e ‘cadências ampliadas’) e a ambiguidade dos ‘acordes
errantes’ – (a) ter-se-ia desenvolvido e intensificado, teria assumido uma progressivamente maior
relevância nas várias práticas composicionais da tradição tonal até o final do séc. XIX e (b) como a
intensificação de cada um dentre tais fatores teria efetivamente participado de uma diluição das
relações funcionais. Em seguida, após discutirmos a noção de ‘emancipação da dissonância’ em
Schoenberg e propormos conceituações estendidas tanto de ‘emancipação’ – grosso modo, o
processo, inerente à tonalidade funcional e responsável por seu desenvolvimento histórico, pelo
qual algo que não se concebia funcionalmente vem a ser progressivamente absorvido em novas
práticas composicionais (ver pp. 69-72, adiante) –, como de ‘dissonância’ – grosso modo, quaisquer
operações de desvio da centralidade tonal, em seus vários níveis (pp. 65-9) –, buscaremos
demonstrar como diversas dentre as próprias operações produtoras de desvios de centros tonais e
das bases morfológicas da tonalidade – e não apenas a extensão dessas bases morfológicas – se
desenvolveram e intensificaram no interior da tradição tonal-funcional, a ponto de assumirem,
sobretudo a partir de Wagner, uma progressiva independência, enquanto procedimentos
composicionais, com relação aos princípios lógicos de uma funcionalidade tonal (ver p. 29, pouco
acima). Por fim, discutiremos se, quando de um abandono, no início do séc. XX, da tonalidade
funcional em favor de procedimentos composicionais alternativos a esta (alguns destes engendrados
no próprio seio da tradição tonal), a tonalidade não estaria já estendida ao ponto de possibilitar que
virtualmente qualquer material ou passagem, mesmo que não concebidos funcionalmente – mas que
atendessem aos mínimos critérios de afinação e qualidade espectral demandados pela tonalidade –,
viessem a ser, a posteriori, postos em relação em seus próprios termos.
32
II. 1. Cromatismo
Como já apontado por distintos comentadores de sua obra teórica, Schoenberg adota nesta
uma concepção – característica da tradição teórica vienense e herdada sobretudo de Sechter,
provavelmente através das aulas de Bruckner na Universidade de Viena – fundamentalmente
diatônica do sistema tonal (ver Wason: 1985; Dudeque: 2005, pp. 20-8), o que se manifesta em seus
escritos de distintas maneiras. A primeira e mais explícita é a ideia de que as tonalidades maior e
menor estariam respectivamente fundadas sobre o “modo maior” [Durtonart] (ver Schoenberg:
2001[1911], pp. 61-4) – identificado com o modo diatônico modernamente designado “jônico” – e o
“modo menor” [Molltonart] (id., pp. 153-9) – entendido por Schoenberg como derivado do modo
“eólio” 9 –, dos quais derivariam os acordes próprios a cada dada tonalidade [Tonart] 10 ,
respectivamente designados pelos graus da escalas em que se situam suas fundamentais.
Conforme ilustrado pelo Ex. 1, abaixo, Schoenberg (op. cit., pp. 61-3; 1934, pp. 169-70)
entende que a escala diatônica “natural”, o modo maior, corresponderia: (a) às três primeiras notas
(excluídas oitavações) a ocorrerem na série harmônica de seu I graus (i. e., dó, sol e mi, para Dó
maior); (b) acrescidas das três primeiras notas a ocorrerem na série harmônica do primeiro parcial
não-coincidente com a própria tônica (sol em Dó maior, resultando em sol, ré e si) e; (c) das três
primeiras notas ocorrentes na série harmônica cuja primeira nota distinta da fundamental
corresponderia a esse I grau da escala (fá em Dó maior, resultando em fá, dó e lá).
Ex. 1: Gênese do modo maior [Durtonart], in Schoenberg: 1922, p. 22. (A letra “b” designa o si bemol; a letra “h”, si
natural.)
9
Schoenberg (2001[1911], p. 153) reporta tal relação entre o modo menor e os modos eclesiásticos ao Lehrbuch der
Harmonie (1903), de Max Loewengaard. Em Preliminary Exercises in Counterpoint (1963[1936-51], p. 59), por
sua vez, Schoenberg remonta seu tratamento das tonalidades menores a Sechter.
10
Essa concepção é profundamente diferente daquela de Riemann, por exemplo, para quem a escala seria um
“resultado” da decomposição dos acordes de tônica, dominante e subdominante, “não um dado de base” (Dahlhaus:
1993[1967], p. 11; cf. Riemann, 1882).
33
o modo menor seria precisamente o resultado da elevação do VII grau em modos cuja terça fosse
menor.
Para Schoenberg, pode-se inferir, uma compreensão do modo maior como derivado de
propriedades acústicas de um dado ‘som fundamental’ [Grundton] – ainda que com as ligeiras
inflexões impostas pelo artificialismo do temperamento (op. cit., pp. 64-6) –, como “imitação do
som horizontalmente” (p. 67), parece implicar também na compreensão de que a centralidade da
tônica seria inerentemente expressa por tal escala 11 – e, por meio de uma tal assunção, faz-se
possível entender que alterações cromáticas, ao obscurecerem as diferenças entre os vários e
distintos modos maiores e menores, tendam também a enfraquecer a centralidade da tônica. Para
Webern – cuja explicação a respeito dos modos eclesiásticos e dos modos maior e menor é
notavelmente similar à de Schoenberg –, por sua vez, as próprias sensíveis, enquanto alterações
cromáticas, seriam já as “sementes fatais” das tonalidades maior e menor (1963[1933], p. 36; cf. id.,
p. 29). Ainda que se reconheça, como Schoenberg o faz, que, em última instância, toda nota da
escala cromática (feitos os devidos ajustes requeridos pelo temperamento) poderá ser eventualmente
encontrada entre os parciais mais distantes das séries harmônicas de I, IV e V (um dos argumentos
centrais em torno da ideia de ‘emancipação da dissonância’, examinada adiante), ainda assim, o
autor observa que “como (…) a escala cromática nivela as diferenças intervalares, a tônica
dificilmente poderá ser considerada como implícita de partida” em tal escala (Schoenberg: 1934, p.
170-1).
Nem toda alteração cromática, contudo, há de ser igualmente perturbadora de um
diatonismo de base e diversos dentre os casos mais típicos de alterações nas práticas tonais dos
séculos XVII a XIX são compreendidos por Schoenberg ainda como elaborações sobre um tal
diatonismo:
11
Também nós, embora por uma via bastante distinta (exposta acima, pp. 24-5, e aprofundada no Cap. III. 3, adiante),
entendemos que a escala diatônica tenda, no contexto da tonalidade funcional, a apontar para uma centralidade.
Aqui, contudo, nos ateremos ao específico argumento de Schoenberg, não ao nosso.
34
Ex. 2: in Schoenberg: 1969[1948], p. 10.
Ex. 4: Bach: “Ehr’ sei Gott in dem höchsten Thron”, BWV 33 (1724), coral, compassos finais, com terça de Picardia na
cadência final.
Assim, embora Webern cite, em sua conferência de 1933, uma harmonização coral de Bach
(o final da Cantata Der Friede sei mit dir, BWV 158, reproduzido adiante, no Ex. 17, p. 48) como
exemplo de “peça inteiramente baseada em (…) cromatismo” (p. 29), deve-se observar que as
explicações de Schoenberg acima elencadas permitirão reportar boa parte das alterações cromáticas
35
encontradas na peça em questão e nas harmonizações corais de Bach, de modo geral, a um
diatonismo fundamental. Tomemos como exemplo, por ora, o coral “Wer hat dich so geschlagen” –
Paixão segundo João, BWV 245, no 15 (1724) –, em Lá maior, em que ocorrem todas as 12 notas
da escala cromática (o coral citado por Webern será abordado apenas mais adiante, pp. 47-8).
Conforme indicado no exemplo abaixo, quase todas as ocorrências de alterações cromáticas
na peça: (a) ocorrem como parte de dominantes secundárias (a1) cujas fundamentais sejam graus
diatônicos de Lá maior e que (a2) resolvam sobre acordes cujas fundamentais sejam também graus
diatônicos de Lá e; (b) progridem melodicamente por semitom para graus diatônicos de Lá. Apenas
três casos requerem explicações adicionais: os acordes diminutos, tal como ocorridos no segundo
tempo dos cp. 4 e 8, são entendidos por Schoenberg como “acordes de [sétima e] nona com a
fundamental ausente” (2001[1911], pp. 282-3; cf. 2004[1948], p. 55-6), de modo que suas
fundamentais, no coral em questão, encontram-se respectivamente sobre VII (resolvendo sobre III)
e III (resolvendo sobre VI) de Lá; o ré# do cp. 4, embora não progrida para mi na própria voz de
tenor, o faz, virtualmente, sobre a voz de contralto; o lá# do cp. 8, por fim, única alteração não
associada a um acorde com função de dominante, em muito se assemelha à terça de Picardia. Se,
por um lado, é possível objetar que a peça em questão está em Lá maior, não Fá# menor (VI de Lá),
sobre cuja tríade ocorre essa alteração, e, desse modo, que o Fá# rivaliza brevemente com Lá,
enquanto tônica possível, por outro, a aproximação entre as tonalidades de I maior e VI menor
(paralelas entre si) é especialmente justificável de uma perspectiva diatônica do sistema tonal,
posto que suas escalas de base são, por tal perspectiva, quase idênticas. Assim, talvez seja de fato
possível identificar aqui, tal como Webern, as “sementes fatais” das tonalidades maior e menor,
mas considerar este ou o coral final do BWV 158 como peças “inteiramente baseadas em
cromatismo” seria um exagero.
Ex. 5: Bach: “Wer hat dich so geschlagen”, BWV 245, no 15, redução.
36
Com relação ainda aos segmentos acima notados de cromatismo linear – i. e., em que haja,
em uma dada voz, sucessivos passos cromáticos em uma mesma direção –, estes ocorrem,
sobretudo nos cp. 4 e 6-8, em perfeito acordo com uma recomendação de Schoenberg para que, em
seu entendimento, se preserve (paradoxalmente) uma tonalidade diatônica. Contrastando o
tratamento de dominantes secundárias com aquele conferido à dominante fundada sobre o V grau
(ver Schoenberg: 2001[1911], p. 280; 233, 237-8; 247; 2004[1948], p. 46), Schoenberg escreve:
Acordes cujas fundamentais sejam, elas próprias, alterações cromáticas com relação à
tonalidade [Tonart] parecem ser o ponto crucial a partir do qual Schoenberg vem a cogitar e,
eventualmente, esboçar (já na edição de 1922 do Tratado…) uma teoria propriamente cromática
para o sistema tonal. Por um lado, a explicação proposta para acordes como a napolitana (ré bemol
maior, para Dó maior; cf. Cap. II. 4. 3, pp. 70-1, adiante), ou a mediante e submediante rebaixadas
(ainda em Dó maior, respectivamente: mi bemol maior e lá bemol maior) ainda se reporta a um
diatonismo de base, ao se interpretarem tais acordes como oriundos da região da subdominante
menor (2001[1911], p. 323; ver Ex. 6, abaixo) – em que eles estariam respectivamente fundados
sobre o VI, VII e III graus da escala – e/ou das homônimas menores da tônica ou de seu V grau
(2004[1948], pp. 73-4).
Ex. 6: in Schoenberg: 1969[1948], p. 51. Acordes oriundos, respectivamente, das Tonarten de Dó menor (“t”), Fá
menor (“sd”) e Sol menor (“v”), com seus graus notados conforme suas relações com uma Haupttonart de Dó maior.
37
paradoxo: ao encadear, em Dó maior, um ré dominante com a napolitana ré bemol (id., p. 364, Ex.
189d) e interpretar a passagem como “o enlace de um II grau com outro II grau”, Schoenberg chega
a afirmar, em um ponto do Tratado…, que não haveria aí “nenhum movimento de fundamentais”
(id., p. 366); em outro, contudo, é proposta a hipótese de que,
no segundo grau da escala, existem duas fundamentais: ré e ré bemol (…). Esta é uma
suposição que se deixa transportar facilmente a toda escala, obtendo-se, assim, uma espécie
de princípio fundamental à consideração dos acontecimentos harmônicos: a escala cromática.
(…) Talvez se venha a estabelecer uma nova teoria fundamentada na escala cromática; e
também, provavelmente, designar-se-ão os graus com outros nomes (id., pp. 338-9).
Ex. 7: Schubert: “In der Ferne”, D. 957, no 6 (1828), cp. 17-18. Progressão cromática de fundamentais (si-si bemol). In
Schoenberg: 1950[1933/1947], p. 58.
Schoenberg chega a esboçar uma tal teoria na 3 a edição do Tratado…, publicada em 1922
(2001, pp. 529-36), sugerindo que talvez fosse mais adequado, para tanto, partir de 12 nomes de
notas independentes, ao invés de 7 (dó, ré, mi etc.) e suas alterações (op. cit., p. 533), mas não a
levou adiante. De fato, em Funções Estruturais da Harmonia, de 1948, Schoenberg não apenas
manteve sua concepção original dos acordes de napolitana e das mediantes cromáticas, como
também estendeu a explicação por empréstimo de outras regiões a, virtualmente, qualquer acorde
cuja fundamental pudesse ser identificada (2004[1948], pp. 37-9): através de seu conceito de
monotonalidade, todo acorde que pudesse ser, de alguma maneira, relacionado à tonalidade
principal [Haupttonart] de uma dada peça, mesmo que enquanto um empréstimo de outra região,
poderia ser, ele mesmo, representante de uma região da qual derivar-se-iam acordes ainda mais
remotos com relação a essa tonalidade principal, mas que estariam, ainda assim, subordinados a esta
(op. cit., p. 37).
Ora, se, mesmo em uma perspectiva teórica que atrele acordes a graus de escalas diatônicas,
uma dada tonalidade comporta, virtualmente, qualquer acorde – não apenas as 12 notas da escala
cromática, mas qualquer acorde que as tenha por fundamentais –, como então atuaria o cromatismo
em um processo de enfraquecimento da tônica, em uma dissolução da centralidade tonal? – e não
apenas em uma fusão dos modos maior e menor em tonalidades cromáticas que comportassem
indistintamente acordes derivados de um ou outro desses modos.
Entendemos que haja duas principais maneiras como isso se dê. Primeiramente, se cada
tonalidade [Tonart] comporta, potencialmente, os acordes oriundos da totalidade das demais, então,
inversamente, todo acorde poderia pertencer a qualquer tonalidade. A expansão das possibilidades
38
dilui a distinção entre as tonalidades e, em passagens mais intensamente cromáticas, em que se faça
amplo uso de acordes emprestados de outras regiões – como é frequentemente o caso no século
XIX –, haverá possivelmente uma tendência a maiores ambiguidades tonais, ao estabelecimento de
um senso contínuo de potenciais trocas de centralidade, da iminência de modulações. Os cp. 15-23
de “Es tönt ein voller Harfenklang”, Op. 17, no 1 (1862), de Brahms, reproduzidos no Ex. 8, abaixo,
servem-nos de exemplo: embora a passagem possa ser inteiramente reportada a Dó maior, as
tonalidades de Sol menor, Ré maior, Dó menor e Ré bemol maior são, todas, aludidas. (Os papéis
específicos dos acordes de funções múltiplas – i. e., que portem funções, simultaneamente, com
relação a diferentes tonalidades [Tonarten] – e das modulações no processo de dissolução da
tonalidade serão examinados em maior detalhe pouco adiante, nos capítulos II. 2 e II. 3.)
Ex. 8: Brahms: “Es tönt ein voller Harfenklang”, Op. 17, no 1, cp. 15-23, parte de harpa.
39
Uma segunda maneira como entendemos que o cromatismo atue em um processo de
dissolução da tonalidade é através de uma tendência, desde uma estabilização do sistema de
tonalidades maior e menor em meados do século XVII, a uma participação progressivamente mais
intensa do cromatismo linear na elaboração harmônica de obras inseridas na tradição tonal.
Em um primeiro momento, podem ser reconhecidos casos em que o cromatismo linear
resulte como contingência em determinadas progressões harmônicas. O caso mais claro é
provavelmente a origem dos acordes de sexta napolitana e de sexta aumentada (ou ‘sexta italiana’)
em meados do século XVII, em Cavalli, Carissimi e Cesti, se adotarmos, para tais acordes, a
explicação de Bukofzer, em Music in the Baroque Era, de 1948:
Ambos os acordes devem suas origens não a quaisquer “alterações” cordais, mas à fusão do
modo Frígio com a tonalidade [key = Tonart] de E (maior ou menor), o que se tornou
possível apenas após os rudimentos de um senso de tonalidade [key] terem sido
estabelecidos pela prática harmônica do barroco médio [ca. 1630-1680 (cf. op. cit., p. 17)].
(…) A sexta “Napolitana”, que poderia, mais adequadamente, ser chamada acorde de sexta-
Frígia, é derivada da progressão cadencial II6[i. e., II3]-V-I, em que a supertônica Frígia é
seguida pela dominante da tonalidade [key]; e a sexta aumentada resulta da inserção de uma
nota de passagem cromática na cadência Frígia ordinária, reforçando o efeito de uma semi-
cadência (op. cit., p. 386).
Ao se tratar o modo Frígio, portanto, no interior de uma prática tonal de afirmação da tônica
através da cadência V-I, torna-se necessário conciliar (melodicamente, no caso da napolitana;
harmonicamente, no caso da sexta aumentada) o II grau rebaixado, característico do modo, com o
VII grau elevado (i. e., a sensível) da Tonart correspondente, resultando, como demonstrado no
exemplo abaixo, no cromatismo linear associado a cada um dos acordes em questão.
Ex. 10: Carissimi: Jephte, “Plorate colles, dolete montes” (ca. 1650), cp. 64-66.
40
Ex. 11: Strozzi: Diporti di Euterpe, Op. 7 (1659), “Lagrime mie”, cp. 4-7.
41
II. 2. Modulações e cadências ampliadas
A ideia de que cada tonalidade comporte em si acordes oriundos de outras, entendidas como
regiões da primeira (Tratado de Harmonia, 1911), e de que mesmo tonalidades alternativas à
tonalidade principal [Haupttonart] de uma peça que sejam provisoriamente estabelecidas se tratem
ainda de regiões dessa Haupttonart (Funções Estruturais…, 1948) leva a um estreitamento, por
parte de Schoenberg – sobretudo se comparado a Fétis –, do que se venha a considerar como
‘modulação’. Para Schoenberg, uma passagem em que se desvie da tônica, por mais distantes que
sejam os desvios, por mais extensa que seja a passagem e mesmo que haja, localmente, uma troca
de centralidade, será ainda assim considerada uma ‘cadência ampliada’ [erweiterte Kadenz] se a
tônica for restabelecida antes de que se cadenciasse em uma nova tonalidade (2001[1911], p. 226).
Apenas passagens que, após um afastamento da tônica, cadenciem e estabeleçam, harmônica e
tematicamente, uma nova tonalidade serão entendidas por Schoenberg como, propriamente,
‘modulações’, mas não sem as observações de que “esta nova tonalidade não possui significação
autônoma dentro da unidade de uma obra” (id. ibid.) e de que tais desvios são considerados “regiões
da tonalidade, subordinadas ao poder central de uma Tônica” (id., 2001[1911], p. 37, grifos nossos).
Por uma tal perspectiva, é possível entender que o estabelecimento de centros tonais
provisórios alternativos à Haupttonart não dilua, ainda (ao menos em maior escala), a centralidade
desta, contanto que esteja claro: (1) qual seja essa tônica principal da peça, à qual toda outra
tonalidade aludida estará subordinada enquanto região sua e; (2) qual a específica relação funcional
de tais regiões com a tonalidade principal. Assim, embora Webern, em sua conferência de 1932,
aponte em formas típicas do estilo sonata uma “primeira violação” da tonalidade (1960, p. 47),
atribuída por ele à modulação que tipicamente ocorre na exposição dos Allegros, deve-se
reconhecer que, sobretudo no séc. XVIII, tais modulações seriam, via de regra, para regiões
fortemente relacionadas à tônica (mais comumente, a região da dominante, para tonalidades
maiores, e da mediante, para tonalidades menores); que elas apenas ocorreriam após confirmação
da tonalidade principal e; que material apresentado nas tonalidades secundárias seria normalmente
reexposto, em sua quase totalidade, na tonalidade principal da obra (ver Rosen: 1997[1972], pp. 72-
3), de modo que a tônica, em tais peças, tende, de fato, a governar mesmo as passagens em que se
tenham estabelecido outras tonalidades.
O Allegro da Sonata Waldstein, Op. 53 (1804) de Beethoven, oferece-nos exemplo de como
mesmo tonalidades secundárias estabelecidas sobre regiões não tão próximas da tônica podem ainda
ser tratadas de maneira que se enfatizem suas relações com a tonalidade principal. Ao invés da
habitual modulação para a região da dominante, após confirmada a tonalidade principal de Dó
42
maior, modula-se na peça para a mediante maior, Mi maior, estabelecendo-a no cp. 35 com novo
material temático (Ex. 12).
Localmente, a relação de tal região com Dó maior é explicitada tanto pela alusão, em seu
processo modulatório, a Mi menor, III grau natural de Dó (cp. 23-6, Ex. 13a, abaixo), como, de
maneira mais requintada, pelo emprego da napolitana de Mi (cp. 82, Ex. 13b), quando do retorno a
Dó maior, aludindo portanto ao modo Frígio de Mi, estreitamente relacionado (pelas notas próprias
a sua base diatônica) à Tonart de Dó.
Ex. 13: Beethoven: Sonata Waldstein, Op. 53, (a) cp. 23-6 e (b) cp. 82-3.
43
reexposição integral de tal material temático em Dó ocorrerá apenas na coda, já nos cp. 284-90 (Ex.
14b), satisfazendo finalmente um senso de resolução da região de Mi maior diretamente sobre Dó.
Evidencia-se assim que, para além de homônima maior do III grau de Dó, a tonalidade secundária
de Mi maior relaciona-se também à principal enquanto dominante de sua relativa menor e atua em
larga-escala, por extensão, como uma dominante de Dó12.
Ex. 14: Beethoven: Sonata Waldstein, Op. 53: (a) cp. 196-203 e (b) cp. 284-90.
12
Algo semelhante pode ser observado na Sonata no 16, Op. 31 (1802).
44
Ex. 15: Brahms: Sinfonia no 3, op. 90, (a) cp. 36-39 e (b) 149-53.
Tanto Schoenberg como Webern observam um paradoxo nas digressões mais frequentes e
rumo a regiões mais remotas em obras da segunda metade do séc. XIX e início do séc. XX: se, por
um lado, tais digressões põem em xeque, como já apontado, a “soberania” [Herrschaft] – para
utilizarmos a linguagem da metáfora já anteriormente evocada (ver nosso prefácio, acima) de
Schoenberg – da tonalidade principal, por outro, uma confirmação dessa soberania há de ser (ainda
nos termos de Schoenberg) tão mais “imponente” [überwältigender] quanto maior o esforço para
confirmá-la (2001[1911], p. 225). Isso explicaria por que, segundo Webern, os compositores viriam
a se distanciar da tonalidade “no exato lugar em que se sentia ser particularmente importante deixar
que a tonalidade [Tonart] emergisse com clareza” (1963[1932], p. 45), a cadência. Explicaria
também por que Webern, em sua história da dissolução da tonalidade, dá maior ênfase à cadência
ampliada do que à modulação, propriamente: a cadência ampliada apresentaria, no seio da
tonalidade principal, uma diluição das relações entre a tônica e suas regiões. Como exemplo,
Webern oferece os compassos finais (162-76) de Gesang der Parzen, Op. 89 (1882) de Brahms (id.,
p. 46).
45
Ex. 16: Brahms: Gesang der Parzen, op. 89, cp. 162-76. In Webern: 1963[1932], p. 46.
A passagem em questão exemplifica uma cadência ampliada sobre Ré, ainda que haja
alguma ambiguidade entre Ré maior e Ré menor tanto no início (terça maior; VII e VI graus
menores), como no fim da passagem (omissão da terça no último acorde). Já a partir do terceiro
compasso do trecho – mais precisamente, de sua anacruse – iniciam-se os desvios da tonalidade
principal: no cp. 165, há uma cadência sobre a mediante menor, Fá# menor; pela elevação de sua
terça (cp. 166) e manutenção de sua sétima (mi), essa mediante assume caráter de dominante da
submediante Si – menor, no cp. 166, maior, no cp. 167, com a introdução do ré# –; o fá# dominante
é enarmonizado (sol bemol, si bemol, ré bemol, mi) e cromaticamente resolvido sobre Ré bemol
maior (cp. 168), o qual, se entendido enquanto enarmonização de Dó# maior, representaria a região
da dominante da mediante (Fá#) de Ré; no cp. 170, a paralela dessa região de Ré bemol/Dó# maior
(i. e., si bemol/lá# menor) assume caráter de dominante por meio da elevação de sua terça (ré) e
manutenção de sua sétima (lá bemol) e; por nova resolução cromática, cadencia-se,
surpreendentemente, em Ré menor (cp. 172), a própria Haupttonart. Ora, se, no Allegro da Sinfonia
no 3, víramos regiões relativamente próximas da tonalidade principal serem apresentadas como
46
remotas, aqui a própria Haupttonart parece ser apresentada como uma região remota de si mesma.
Parece aplicar-se aqui a colocação de Webern de que “precisamente porque buscamos a
conservação da tonalidade [Tonart], nós quebramos seu pescoço” (1963[1932], p. 48; cf.
1963[1933], p. 38).
Entendemos, em suma, que haja, não apenas potencialmente, mas no próprio repertório, uma
diversidade de maneiras como modulações ou ‘cadências ampliadas’ possam obscurecer e tenham,
em obras, obscurecido a função (lato sensu) de referência com que a tônica e a Haupttonart tendem
a cumprir:
• que, e. g., tonalidades mais próximas às dominantes sejam alcançadas por meio de relações
de subdominantes e vice-versa, tal como exemplificado na Sinfonia no 3 de Brahms;
Quanto mais longe da tônica formos pelo ciclo de quintas, menos precisamente poderá ser
definido o significado da relação com a tônica. Quando a modulação é dramática e
surpreendente, frequentemente não sabemos dizer se a nova tonalidade [key] está sendo
abordada pela direção da dominante ou da subdominante, em que boa parte do significado
depende (Rosen: 1975, p. 32, n.).
Ademais:
• que tonalidades secundárias sejam introduzidas ainda antes de que a Haupttonart tenha sido
claramente estabelecida – como fora, e. g., o caso da Ballade no 1 de Chopin (ver Cap. I. 2. 1,
p. 14, acima), ou a que entendemos que possa ser atribuída a ambiguidade do coral final da
cantata BWV 158, citado por Webern na conferência de 1933 (op. cit., p. 29; cf. p. 35,
acima) –;
47
Ex. 17: Bach: “Hier ist das rechte Osterlamm”, BWV 158, Coral. In Webern, 1963[1933], p. 29.
◦ quer ao iniciar e terminar uma obra com Haupttonarten distintas entre si – como é o caso
da canção “Mignon II” de Hugo Wolf, abordada pouco adiante (pp. 52-5), ou da
Fantasia, Op. 77 de Beethoven (ver Schoenberg: 2004[1948], pp. 208-9) –;
◦ quer ao se estabelecer uma centralidade “difusa” (ver Cap. III. 2, adiante), em que tais
tonalidades distintas cheguem a coexistir enquanto centros rivais, o que seria o caso, e.
g., do “complexo de dupla tônica” apontado por Bailey e outros autores no prelúdio de
Tristão e Isolda (1985, p. 121), da fusão entre tonalidades paralelas apontada por Rosen
em obras como o Scherzo no 2, Op. 31 (1837) de Chopin, ou na peça “Aveu”, do
Carnaval, Op. 9 (1833-5) de Schumann, da “polifocalidade” apontada por Steinbron
(2011) em diversas obras de Schubert e, de modo geral, do que Schoenberg denominara
no Tratado... ‘tonalidade flutuante [schwebende Tonalität]’ (op. cit., pp. 226 e 527-9).
48
II. 3. Acordes Errantes
Conforme observado nos dois capítulos anteriores, a absorção, por parte de uma dada
tonalidade [Tonart], de (1) acordes oriundos de outras tonalidades a ela relacionadas e (2) mesmo
de tonalidades secundárias estabelecidas – entendidas por Schoenberg como regiões da tonalidade
principal [Haupttonart] – leva a uma diluição das diferenças entre as várias Tonarten, posto que, se
virtualmente qualquer acorde ou região poderia ser reportado a uma mesma dada tonalidade
principal, então, inversamente, cada acorde ou região poderia pertencer a qualquer tonalidade. Em
maior escala, uma expansão das possibilidades harmônicas de uma dada tonalidade tende a implicar,
no interior de uma peça, em um enfraquecimento do senso de centralidade de sua tonalidade
principal, ou em uma distribuição de tal senso, diluído, entre distintas Tonarten. Localmente,
manifesta-se uma ambiguidade no próprio nível dos acordes: em passagens ambíguas quanto às
suas centralidades, os vários acordes que delas participem poderão ser interpretados como portando
funções (stricto sensu) com relação a cada uma das tonalidades então aludidas (‘funções múltiplas’,
ou ‘significados múltiplos [multiple meaning]’, como se refere Schoenberg).
Há, contudo, no entendimento de Schoenberg, uma classe especial de acordes, os acordes
errantes [vagierende Akkorde], que seriam inerentemente ambíguos por conta de suas respectivas
fundamentais não poderem ser determinadas senão contextualmente e, portanto, por não poderem
ser univocamente reportados a qualquer específico grau de uma dada Tonart senão por meio de suas
resoluções (2001[1911], pp. 284-6). Os exemplos mais claros são as tríades aumentadas e as
tétrades diminutas. Dadas suas constituições intervalares simétricas, a cada tríade aumentada
poderiam ser atribuídas ao menos três fundamentais distintas;
e, a cada acorde de sétima diminuta, ao menos quatro (fundamentais), devendo-se esclarecer que,
por conta das semelhanças entre as resoluções comumente protagonizadas por estes acordes
(diminutos) e cadências do tipo V→I, Schoenberg os interpreta – conforme já mencionado – como
“acordes de [sétima e] nona com a fundamental ausente” (2001[1911], pp. 282-3; cf. 2004[1948], p.
55-6), situando-se-lhes essa fundamental ausente uma terça maior abaixo da nota que progrida
como uma sensível [Leitton] da fundamental do acorde seguinte. Por meio de alterações cromáticas,
tais acordes, embora respectivamente originados, na explicação Schoenberg, sobre o III (tríade
49
aumentada) e o VII (tétrade diminuta) graus do modo menor (ver 2001[1911], pp. 159-60), ocorrem,
em repertório, sobre virtualmente qualquer grau de tonalidades tanto menores como maiores (id.
ibid., pp. 282 e 349), ou de quaisquer dentre suas regiões.
Ex. 20: Mozart: Ave verum corpus, K. 618, cp. 18-25, redução.
O acorde (também errante) de sexta germânica – referido por Schoenberg e Webern como
“acorde aumentado de quinta e sexta” [übermässige Quintsextakkord] – parece dar um golpe ainda
mais profundo na tonalidade. Originada do acorde de sétima e nona menor sem fundamental, por
meio do rebaixamento de sua quinta, ou como uma elaboração ulterior do acorde de sexta italiana
(Ex. 21a e b, abaixo; cf. p. 40, acima), a sexta germânica tem a mesma constituição intervalar de
um acorde comum de dominante com sétima (Ex. 21c) e sua ambiguidade não se deve, como nos
50
casos da tríade aumentada ou da tétrade diminuta, a uma simetria interna, mas sobretudo ao fato de
sua fundamental – ao menos na perspectiva de Schoenberg (ver 2001[1911], pp. 354-5 e;
2004[1948], p. 70, Ex. 71) – situar-se a um trítono de distância da fundamental do acorde de
dominante que se lhe assemelha em constituição intervalar. Assim, não apenas a sexta germânica é
em si um acorde errante – no sentido de que sua fundamental não pode ser definida pela própria
constituição do acorde, mas somente por sua resolução –, como, em um contexto em que tal acorde
se faça presente, o próprio acorde regular de dominante com sétima tende a se tornar ambíguo,
porquanto à sua tendência à resolução convencional – i. e., a cadência de tipo V→I – soma-se a
possibilidade de um tipo de resolução completamente diversa, caso ele seja tratado como sua
equivalente germânica. Exemplifiquemos com “Am leuchtenden Sommermorgen”, do ciclo
Dichterliebe, Op. 48 (1840) de Schumann.
Ex. 21: Derivação da sexta germânica: (a) por meio do rebaixamento da quinta de uma tétrade diminuta e; (b) como
elaboração da sexta italiana. Em (c), correspondência entre acorde de sexta germânica e acorde regular de dominante.
51
esperadas nem de uma dominante convencional, nem de uma sexta germânica, parece perfeitamente
satisfatória enquanto um meio de se retornar à Haupttonart.
(a)
(b)
Ex. 22: Schumann: “Am leuchtenden Sommermorgen”, (a) cp. 1-3 e; (b) cp. 8-11.
Posto que a resolução dos acordes errantes é um dos principais fatores para que se
determinem suas fundamentais, acordes errantes que não se resolvam, ou que progridam a outros
acordes do mesmo tipo tendem a manter suas fundamentais indefinidas e, consequentemente –
produzindo-se assim um estado a que Schoenberg (2001[1922], p. 529) denominara “tonalidade
suspensa [aufgehobene Tonalität]” –, a não se reportar decisivamente a nenhuma tonalidade
específica até que haja uma cadência clara sobre um acorde que lhes dê sentido retrospectivamente.
Examinemos os cp. 33-48 de “Mignon II” (1888), sexta das Goethe-Lieder de Wolf (Ex. 23, abaixo),
em que doze compassos consecutivos constituídos exclusivamente por tríades aumentadas são
seguidos por uma sexta francesa, eventualmente revelada (cp. 47) como fundada sobre ré bemol.
52
Ex. 23: Wolf: “Mignon II”, cp. 26-49.
Embora a identificação de uma fundamental unívoca para cada uma das tríades aumentadas
da passagem em questão se faça virtualmente impossível – por conta de cada uma destas, sendo já
um acorde errante, se resolver sobre ainda outro de tais acordes –, a vizinhança, sobretudo no início
da passagem, com acordes de fundamentais definidas, bem como alguns dados melódicos e
correspondências à distância com outras passagens tonalmente mais claras, permitem ainda, em
parte do trecho, colher vestígios de certos centros tonais: a primeira destas tríades aumentadas (si
bemol-sol bemol-ré, cp. 33), e. g., vindo do V grau menor de Lá bemol (mi bemol menor) e tendo já
ocorrido, pelo mesmo percurso, no cp. 8 (Ex. 24a) da canção, quando retornara, pouco em seguida,
a I de Lá bemol (cp. 9), pode ser interpretada como uma dominante da dominante de Lá bemol; por
53
outro lado, a melodia que se lhe sobrepõe (“Es schwindelt mir”, mi bemol-ré-fá#), alude aos
compassos 13 e 14 (Ex. 24b), em Sol menor, em que também ocorrera tal tríade aumentada, como
um I grau (sol menor) com retardo de sua sensível.
Ex. 24: Wolf: “Mignon II”, (a) cp. 7-9 e (b) cp. 13-14.
A tríade aumentada do segundo tempo do cp. 34 (dó-mi-lá bemol), por sua vez, para além
de ter ocorrido em meio à tonalidade de Lá bemol já no cp. 2 da canção (Ex. 25a) – em que podia
ser interpretada como dominante de sua paralela (fá menor) –, alude, pela melodia de soprano (“es
brennt (…)”, fá-mi) e pela descida lá bemol-sol, na mão direita do piano, ao dó maior (dominante
de Fá menor) com retardos de quarta e sexta do cp. 21 (Ex. 25b). Também nos cp. 36 e 37, a
melodia sol bemol-ré bemol-dó, na mão direita do piano, pode se reportar à progressão de sol bemol
(napolitana de Fá menor), para dó dominante (V de Fá menor) dos cp. 20 e 21, mas a melodia de
soprano que se lhe sobrepõe (“(…) Eingeweide”, sol-mi bemol-ré-fá#) alude, uma vez mais, aos cp.
13 e 14 (ver Ex. 24b, acima), em Sol menor.
54
Ex. 25: Wolf: “Mignon II”, (a) cp. 1-3; (b) cp. 20-21.
A partir do cp. 40 ou 41, por fim, mesmo os sutis e conflitantes vestígios de centralidade
colhidos nos compassos anteriores parecem se ausentar e, até que se forme o ré bemol dominante
dos compassos 45 a 48 – introduzido enquanto uma sexta francesa (também errante) e resolvido,
no cp. 49, de maneira pouco convencional –, parece de fato impossível que quaisquer tonalidades
sejam especificadas, suspendendo-se provisoriamente qualquer senso de centralidade tonal.
55
II. 4. Dissonância e emancipação
Ex. 26: Representação da série harmônica de dó parcialmente ajustada ao temperamento, com intervalos ‘consonantes’
(“C”) e ‘dissonantes’ (“D”) assinalados, conforme entendimento de Schoenberg (2001[1911], p. 59).
13
Esta expressão, propriamente, é utilizada apenas em textos mais tardios (1950[1941/1948], p. 104; 2004[1948], p.
216), mas está subentendida já na argumentação do Tratado…, bem como nas definições de “consonância” e
“dissonância” então propostas: respectivamente: “as relações mais próximas e simples com o som fundamental” e
“as relações mais afastadas e complexas” (2001[1911], p. 59).
14
Conforme aponta Dahlhaus (1987[1968], p. 122), não é claro a quê, precisamente, Schoenberg se refere por
“compreensibilidade”. No Tratado… [1911], p. 58-9, Schoenberg parece referir-se à relação intervalar direta entre
duas notas; em “Opinion or insight?” [1926], p. 259, Schoenberg parece referir-se à relação de formações cordais
para com a tônica: “Os desvios mais fáceis de se compreender são aqueles que podem ser mais facilmente
reportados à tônica subjacente. (…) Quanto mais remotas as formações, maior o desvio, mais intermediários são
necessários para se identificar a conexão [com a tônica] e mais difícil é compreender a progressão e o sentido”
(1975[1926], p. 259). Apresentamos o questionamento de Dahlhaus (op. cit.) a respeito de tal noção pouco adiante,
p. 61, item 2.2.
56
que os intervalos entendidos, a cada dado momento histórico, como “dissonâncias” fossem então
apresentados com parcimônia, preparados e resolvidos (ver 2001[1911], pp. 95-96) e, à medida em
que tais intervalos se tornassem mais familiares e, portanto, mais ‘compreensíveis’, estes seriam
admitidos como consonâncias, não mais exigindo preparação ou resolução (id. ibid., pp. 443-4 e
453-4; ver também id. ibid., p. 59). Desse modo, teriam, e. g.: as terças, ainda não admitidas como
consonâncias em tratados anteriores ao séc. XII, sido deliberadamente admitidas como tal a partir
do séc. XIII15; ou os acordes com sétima, formados apenas de passagem até o século XVI, vindo a
ser atacados sem preparação com os compositores da seconda pratica, na virada para o séc. XVII
(ver Ex. 34a, p. 70, adiante). Igualmente, para Schoenberg, se já “não mais se esperavam
preparações das dissonâncias de Wagner ou resoluções dos acordes dissonantes de Strauss”
(1950[1941/1948], p. 104), então toda formação intervalar poderia vir a ser finalmente considerada
como “consonante” e ser, portanto, tratada como tal, dispensando qualquer preparação ou resolução.
Basicamente a isto, i. e., à possibilidade de que toda formação intervalar viesse a ser empregada
sem necessidade de preparação ou resolução, Schoenberg denominou “emancipação da dissonância”
(1975[1926], pp. 260-1; 1950[1941/1948], p. 104-5; 2004[1948], p. 216) – muito embora o termo
‘emancipação’ possa assumir, por vezes, um significado mais abrangente na obra teórica de
Schoenberg, como o demonstraremos pouco adiante.
A ideia de “emancipação da dissonância”, deve-se ressaltar, não se desenvolve de maneira
isolada. Frente à constatação de que o duplo movimento de expansão e dissolução da tonalidade –
discutiremos essa dupla tendência pouco adiante, sobretudo no Cap. II. 5 – reduzira o poder
unificador da tônica, em alguns dos mesmos textos em que tal ideia [i. e., a emancipação da
dissonância] é exposta, Schoenberg investiga se a tonalidade [Tonalität] seria o único meio de se
obter coerência e articulação formal em música (1934, pp. 175-81; ver também 1975[1926], pp.
261-3) e, argumentando que não, aponta, afora recursos extramusicais – o texto (libretos, poemas,
programas etc.) ou a dimensão expressiva da música (1975[1926], p. 260; 1950[1941/1948], pp.
104 e 106) –, para a elaboração motívica como meio de satisfazer os princípios formais de unidade
e articulação (1934, pp. 179-80; ver também 1950[1941/1948], pp. 107 ff., sobre dodecafonismo e
coesão motívica). Assim, e se entendermos, tal como aponta Dahlhaus (1987[1968], p. 126), que, na
concepção de Schoenberg, a noção de motivo se estende também a acordes (cf. Schoenberg:
2004[1948], p. 217), podemos compreender que certos procedimentos composicionais típicos de
Schoenberg (desde suas últimas obras entendidas como “tonais”, à prática dodecafônica) realizam
precisamente uma transferência de ênfase da funcionalidade harmônica para a dimensão motívica,
ao conceder a esta primazia mesmo na elaboração de acordes e progressões harmônicas.
15
Ver Tenney: 1988, p. 109. Schoenberg menciona o caso das terças no Tratado…, p. 453.
57
Tendo o próprio Schoenberg apontado o ano de 1908 como o momento a partir do qual ele e
seus alunos teriam escrito suas primeiras obras em acordo com a tese da emancipação da
dissonância (1950[1941/1948], p. 105) – abdicando, assim, de preparar e resolver quaisquer
formações cordais –, podemos entender as Três peças para piano, Op. 11 (1909) (provavelmente,
uma de suas obras mais analisadas) como um dos primeiros exemplos de tal prática composicional.
Conforme explicitado no Ex. 27, abaixo, o acorde sobre o último tempo do cp. 4 do Op. 11, no 1 é, à
exceção da linha de tenor, constituído pelo empilhamento das três primeiras notas da melodia da
peça (cp. 1-2) e pode ser, assim, entendido como derivado de um motivo proeminente na obra. Em
uma análise de 1951, Hugo Leichtentritt entende tal acorde como um sol maior “perturbado pelo
sol#”, mas, para sustentar tal interpretação, ignora tal nota, a despeito do fato de que ela não apenas
é atacada e sustentada junto ao acorde em questão, mas está, ademais, disposta no baixo de tal
acorde: “deve-se apenas substituí-lo [o sol#] por sol para que se veja como as quatro partes estão
pacificamente em acordo dentro dos moldes da tonalidade, no sentido de Sol maior” (op. cit., p.
430).
Ex. 27: Schoenberg: Op. 11, mov. I, cp. 1-5. Estão circulados no exemplo conjuntos de notas de mesmo conteúdo
intervalar. Adaptado de Perle (1991[1962], p. 11) e Straus (2005, p. 2).
Também na análise de Ogdon (1981) tal acorde é interpretado em Sol maior, mas o autor o
explica como a sobreposição de (1) um acorde de sol maior com (2) um arpejo, na linha de tenor, de
V de Sol, resolvendo na terça de I e (3) baixo pedal na napolitana (lá bemol) de Sol (pp. 172-3). Tal
interpretação nos parece plausível, mas seria igualmente possível argumentar que tal acorde se
tratasse, e. g., de um si menor com a sexta no baixo; que, enquanto um acorde com sexta, ele seria
uma subdominante de Fá# (maior ou menor); que o sol natural de soprano é que se tratasse de uma
napolitana de Fá# – ou de uma suspensão cromática não resolvida (ou resolvida uma oitava abaixo,
no tenor) sobre a quinta (fá#) do acorde, ou ainda de um fá ##, aproximação cromática do sol# do
baixo –; que o acorde do cp. 2 (sol bemol-fá-si-sol, no Ex. 27, acima) se tratasse de um dó#
dominante, com sétima, quinta rebaixada e sem fundamental, sobreposto a um baixo pedal no
hipotético I grau de Fá#, o que reforçaria tal interpretação alternativa.
58
Ex. 28: Interpretações dos cp. 4-5 de Schoenberg, Op. 11, no 1: (a) em Sol maior, adaptado de Ogdon (1981, p. 173); (b)
em Fá # (maior ou menor).
A exemplo do que víramos com relação aos acordes errantes (ver pp. 49-55, acima), o
acorde em questão é inerentemente ambíguo quanto à sua fundamental e, consequentemente, quanto
à sua funcionalidade, e só poderia expressar univocamente uma ou outra Tonart se resolvido, ou se
resolvidas suas dissonâncias: para que se confirmasse a interpretação de Ogdon, seria necessário
que o sol# (ou lá bemol) se resolvesse – provavelmente sobre sol –; para que se confirmasse, por
sua vez, a interpretação alternativa de que tal acorde se tratasse de IV 6 de Fá#, seria necessário que
o sol (ou fá##) se resolvesse sobre fá# ou sol#. Sua não-resolução mantém em suspenso seu
significado harmônico; seu encadeamento com outros acordes ambíguos não resolvidos –
corresponderiam as três notas que o precedem (ver Ex. 27, página acima) a um dó dominante ou a
uma sexta italiana sobre fá#?; seria o acorde do cp. 3 um lá dominante com suspensão de sexta para
quinta, ou um dó dominante com décima-terceira e suspensão de quarta para terça?; qual a
fundamental do acorde do cp. 2? – leva a uma suspensão (já observada com relação aos acordes
errantes, de modo geral) do próprio senso de uma centralidade tonal específica. A emancipação da
dissonância, ao permitir que qualquer acorde, com qualquer constituição intervalar, seja
considerado como consonância e, portanto, prescinda de preparação ou resolução, tende a prolongar
tal estado de suspensão do senso de centralidade tonal – ou, nos termos de Schoenberg, de
tonalidade suspensa [schwebende ou aufgehobene Tonalität] (2001[1911], pp. 527-9). Esse seria
um primeiro sentido em que poderíamos entender a colocação de Schoenberg de que um estilo
fundado na emancipação da dissonância renuncia ao estabelecimento de um centro tonal
(1950[1941/1948], p. 105).
59
II. 4. 2. Exame da noção schoenberguiana de ‘emancipação da dissonância’
Ex. 29: (a) Bach: BWV 903 (ca. 1720), cp. 33-36; (b) Chopin: Op. 10, no 3 (1832), cp. 39-41.
60
2. Vimos que Schoenberg (a) atribui às “consonâncias próximas” um maior grau de
compreensibilidade do que às “consonâncias remotas” e que (b) a dependência ou não de
preparação ou resolução de um intervalo seria condicionada, em sua argumentação, precisamente à
compreensibilidade deste. Conforme aponta Dahlhaus (1987[1968]), contudo:
2. 1. embora seja possível, de fato, observar correlação, na teoria e na prática do contraponto
tradicional, entre o tratamento dos intervalos e a complexidade destes: 2.1.1. tal correlação não é
totalizante [all-embracing] (op. cit., p. 122), na medida em que, e. g., a quarta justa no baixo,
embora se trate de uma relação intervalar relativamente simples (mais do que a terça menor, por
exemplo), seja tradicionalmente dependente de resolução; 2.1.2. a “compreensibilidade”, ao menos
no nível dos intervalos (ver item 2.2, abaixo), não parece ser o fator decisivo com relação à
dependência ou não de resolução, se assumirmos, e. g., que “o acorde de quartas C-F-B bemol-E
bemol (…) é mais simples [intervalarmente] do que o acorde de sexta, quarta e terça C-F-A-E
bemol, sobre o qual, em uma composição tonal, ele deve ser resolvido” (id. ibid., p. 123).
2.2. A ideia de “compreensibilidade” não é unívoca, sobretudo, no contexto da tonalidade.
Embora subentenda-se na premissa de Schoenberg uma associação do grau de compreensibilidade
dos intervalos aos intervalos per se, Dahlhaus ressalta que “a função de notas em uma tonalidade
deve ser distinguida da relação imediata entre notas” e exemplifica que se, por um lado, o trítono é,
enquanto relação imediata, um intervalo “mais difícil de compreender do que a sexta; ainda assim, a
função de dominante de um trítono é, de modo geral, mais fácil de captar do que a função de
subdominante de uma sexta Napolitana” (id. ibid., p. 122).
61
Mi bemol maior) – que tal acorde se trate de uma dominante (no caso, com sétima e nona). Talvez
fossem, assim, antes as dominantes com sétima que estariam ‘emancipadas’ (ver item 4, abaixo) da
necessidade de resolução em Haydn, do que os intervalos de sétima ou a segunda, propriamente.
Em “Composition with twelve tones” [1941/1948], de fato, Schoenberg emprega as expressões mais
específicas de “emancipação da dominante e outros acordes de sétima, sétimas diminutas e tríades
aumentadas” (op. cit., p. 105, grifo meu), mas isso evidentemente implicaria em conceitos mais
amplos de ‘dissonância’ e ‘consonância’ que se inflectissem em função dos contextos em que se
inserissem os intervalos examinados e/ou que ao menos abrangessem acordes (cf. item 4) enquanto
tais – e não apenas enquanto agregados de intervalos individualmente ‘consonantes’ ou não.
Ex. 30: Haydn: Sonata, Hob. XVI/20 (1771), (a) cp. 31-2; (b) cp. 25-6.
4. Resolução, nos domínios da tonalidade, pode ocorrer não apenas no nível dos intervalos (i.
e., em que um intervalo dissonante progrida linearmente a um intervalo consonante), mas também
(e não exclusivamente) no nível (a) das notas, individualmente (como no caso de uma sensível, ou
de uma suspensão); (b) dos acordes – nos Ex. 30a e b, acima, e. g., embora os intervalos,
propriamente, de sétima ou de quinta diminuta não se resolvam linearmente, os respectivos acordes
de dominante que os contêm são resolvidos por cadências do tipo V-I –; (c) das frases (como, e. g.,
na relação antecedente/consequente); (d) das regiões tonais (como no estilo sonata, ao se
recapitular na Haupttonart material originalmente introduzido em tonalidades secundárias) etc.
Assim, se Schoenberg identifica com as dissonâncias a necessidade (em cada dada prática
composicional) de resolução, há de se assumir que, em boa parte do repertório tonal sejam também
entendidos como ‘dissonâncias’ as sensíveis, as dominantes, os antecedentes, as tonalidades
secundárias etc. – e não apenas intervalos16.
16
Uma tal proposição é defendida por Rosen, ao discutir a respeito da emancipação da dissonância em seu livro
sobre Schoenberg (1996[1975], p. 23 ff.): que por dissonância se entenda “qualquer som musical que precise ser
resolvido” (op. cit., p. 24), de modo que o conceito de dissonância se aplique não apenas a intervalos e acordes,
mas também à “frase dissonante” ou à “seção dissonante” (id. ibid., pp. 27-8, grifos meus) – conformemente,
Rosen reexpõe aqui sua tese, originalmente proposta em The Classical Style, de que modulação se trate de
“dissonância em larga escala” (1996[1975], p. 29; 1997[1972], p. 26).
62
5. Levando-se aos limites a definição inerente à argumentação de Schoenberg (ver
2001[1911], p. 59) de ‘consonância’, em termos práticos, pela não-necessidade de resolução,
deveremos reconhecer, tal como apontara Riemann em Die Natur der Harmonik (1886[1882]), que,
de uma perspectiva própria à tonalidade funcional, “o único acorde consonante em qualquer
tonalidade [key], no senso mais estrito do termo, é o acorde de tônica (…), o único que não requer
claramente uma progressão posterior” (op. cit., p. 29, grifos do autor). Para que uma obra expresse
satisfatoriamente uma Haupttonart, toda modulação a uma tonalidade secundária demandará um
eventual regresso à principal e, no interior de qualquer Tonart estabelecida, é inerente à tonalidade
que todo acorde apontará (mais ou menos diretamente) para a tônica. Assim, se a emancipação da
dissonância for de fato entendida como a atribuição do status de ‘consonância’ a todo intervalo (e,
por extensão, a todo acorde), então a suspensão da tonalidade não é meramente um resultado da
efetivação composicional de tal noção (cf. p. 59, acima): a emancipação da dissonância, para que
se sustente nesses termos, há de abdicar a priori da tonalidade funcional.
Schoenberg, contudo, justifica historicamente a emancipação da dissonância e toma por
precedentes para esta processos ocorridos, em boa medida, em meio a práticas composicionais
propriamente tonais: por “emancipação da dominante” (1950[1941/1948], p. 105; cf. 2001[1911],
pp. 453-4), e. g., Schoenberg se refere ao processo pelo qual: (a) a sétima de um acorde de V grau,
que apenas ocorreria como suspensão ou nota de passagem, veio eventualmente a ser atacada junto
a tal acorde (2001[1911], pp. 136-8; cf. id., pp. 92-6); (b) o acorde de sétima veio a ocorrer sobre
qualquer grau da escala, que não apenas o V (ver id., pp. 257 ff.); (c) e pelo qual a necessidade de
resolução imediata de tal acorde foi progressivamente abstraída (id., p. 444). Cada um dentre tais
passos implica, de fato, em um tratamento mais livre do acorde em questão e liberdades ainda
maiores poderão ser observadas em Mozart, Chopin ou Wagner, mas em nenhum desses
compositores parece ser possível sustentar, com rigor, que uma dominante com sétima equivalha de
fato a uma consonância. O mesmo vale para diversos outros acordes da tradição tonal: Schoenberg
refere-se, como vimos, a uma emancipação das sétimas diminutas, tríades aumentadas e “outras
dissonâncias mais remotas”; menciona o tratamento conferido, e. g., às tétrades diminutas pelos
compositores clássicos – em que, a estas, “poderia preceder ou seguir qualquer outra harmonia,
consonante ou dissonante, como se absolutamente não houvesse dissonância” (1950[1941/1948], p.
104) – como precedente para o uso mais livre das dissonâncias na virada do séc. XIX para XX; e
subentende, assim, que a tal tratamento – observável no Ex. 29, p. 60, acima, tanto em Bach, como
em Chopin – se refira a expressão “emancipação”. Ainda assim, nem em Bach e Chopin, nem em
Haydn, Mozart ou Beethoven, caberá compreender a tétrade diminuta rigorosamente como uma
‘consonância’.
63
O termo “emancipação”, quando empregado por Schoenberg com relação a acordes
específicos da tradição tonal, não pode ter o exato mesmo sentido que Schoenberg lhe atribuíra na
expressão “emancipação da dissonância” – de simples conversão da ‘dissonância’ em ‘consonância’,
a qual implicava, como vimos, em uma abdicação a priori da tonalidade –, mas há de referir-se: (a)
a processos graduais (ainda que não necessariamente historicamente lineares) de progressiva
liberdade de tratamento de tais acordes – ao invés de uma sumária conversão da dissonância em
consonância –; (b) passíveis de ocorrer, e frequentemente ocorridos, no interior da própria tradição
tonal; (c) referentes (não exclusivamente) a acordes específicos – e não a toda dissonância,
indiscriminadamente, ou a um dado intervalo, em qualquer contexto em que este ocorresse –; (d)
que não necessariamente impliquem (ou implicassem), em última instância, na conversão de tais
‘dissonâncias’ em ‘consonâncias’. Devemos ainda acrescentar, frente à constatação de que a noção
de ‘dissonância’ não pode se limitar, ao menos em práticas tonais, a intervalos ou acordes, que
também os processos de ‘emancipação’, nesse segundo sentido do termo, não hão de se limitar a
tais níveis.
64
II. 4. 3. Conceituação estendida de ‘dissonância’ e de ‘emancipação’
Dissonância
Partindo de uma diferenciação histórica entre ‘consonâncias’ e ‘dissonâncias’ em função da
necessidade ou não de resolução, vimos que a única efetiva consonância em uma obra ou passagem,
sob a perspectiva da tonalidade funcional, há de ser, a rigor, a tônica. Em função de tal constatação,
65
entenderemos por ‘dissonância’ todo e qualquer desvio da tônica – e, se por ‘dissonância’
entendemos o desvio, propriamente, então o produto de um desvio será aqui entendido como
‘dissonante’.
Algumas implicações de tal conceito de dissonância devem ser aqui esclarecidas:
1. Dissonância, segundo tal conceito, não se expressa exclusivamente no nível dos
intervalos ou dos acordes.
Dentre a variedade de exemplos possíveis: a sensível individual da quinta de um acorde de
tônica, bem como uma nota de passagem entre sua fundamental e sua terça (i. e., notas,
individualmente) serão entendidas como dissonantes e também como dissonantes serão entendidas
quaisquer tonalidades secundárias (e as seções formais que as expressem) que venham a se
estabelecer em uma obra que expresse uma Haupttonart; a tríade de subdominante será entendida
como dissonante, assim como a tríade correspondente à de tônica, caso esta ocorra no interior de
uma tonalidade secundária; todo acorde errante, precisamente por não expressar uma fundamental,
bem como qualquer progressão entre acordes cuja relação funcional não esteja circunscrita em uma
única Tonart serão, por isso, entendidos como dissonantes.
2. Se a dissonância corresponde ao próprio desvio, então ela corresponde à própria maneira
como um produto seu se desvie de uma tônica, às operações específicas que produzem um tal
desvio. Em uma suspensão, e. g., a nota suspensa será entendida como dissonante e a dissonância
será a própria operação de suspensão; a modulação a uma tonalidade secundária será aqui
entendida como dissonância, ao passo em que a passagem modulatória ou a tonalidade por ela
estabelecida serão entendidas como dissonantes.
Assim, por um tal conceito de dissonância, podemos não apenas verificar se uma dada nota,
um acorde, progressão, região tonal etc. (i. e., os possíveis produtos de dissonâncias) são ou não
dissonantes, mas, sobretudo:
2.1. Podemos identificar um maior ou menor grau de dissonância em função do acúmulo de
operações de desvio manifestas em um dado dissonante – e já não em função de suas propriedades
acústicas.
A tríade de subdominante na Haupttonart (fá maior, em Dó maior), e. g., será entendida,
conforme já apontado, como dissonante, mas possivelmente em menor grau do que a tríade
correspondente à subdominante da subdominante na região da submediante rebaixada (sol bemol
maior), ainda que ambas compartilhem, virtualmente, as mesmas propriedades acústicas; a
tonalidade fundada sobre a homônima menor de uma Haupttonart maior (Dó menor, em Dó maior),
por conta de ambas compartilharem a mesma nota central, será normalmente entendida como
menos dissonante do que a tonalidade fundada sobre a submediante maior (Lá maior); e o “acorde
de quartas C-F-B bemol-E bemol”, mencionado por Dahlhaus (ver p. 61, acima), será mais
66
dissonante – a despeito de sua relativa simplicidade em termos intervalares – do que sua resolução
convencionada “C-F-A-E bemol” se entendermos este como uma dominante à qual se acresça a
sétima e aquele como virtualmente o mesmo acorde, suplementarmente submetido a uma suspensão
de quarta.
2.2. Na medida em que se identifiquem as operações específicas de desvio manifestas em
uma nota, acorde etc., podemos discernir qualidades distintas de como estes são dissonantes.
Assim, embora sejam, em si mesmos, idênticos, entenderemos, e. g., que o acorde formado
por sol-si-dó#-fá, em Dó menor (Ex. 31a) seja dissonante de maneira distinta de seu enarmônico
sol-si-ré bemol-fá (Ex. 31b), na medida em que a primeira dessas dominantes inclui uma sensível de
sua quinta – a qual tenderia a ser resolvida sobre essa quinta –, ao passo que a segunda altera
cromaticamente sua quinta – tendendo esta a resolver, juntamente a essa dominante, como um todo,
sobre a fundamental de um acorde de dó maior. Semelhantemente, entenderemos que a região da
mediante maior, em uma Haupttonart maior, seja dissonante de maneiras distintas caso tenha sido
alcançada, e. g., como homônima maior da mediante (como fora o caso da Sonata Waldstein de
Beethoven, pp. 42-4, acima), ou enquanto submediante rebaixada da submediante rebaixada (como
no Allegro da Sinfonia no 3 de Brahms, pp. 44-5, acima).
Ex. 31: Sol dominante com: (a) substituição da quinta por sua sensível e; (b) alteração cromática da quinta. A diferença
de resolução evidencia a diferença de qualidade das dissonâncias operantes nos acordes em questão.
67
uma tríade perfeita sobre o I grau (Ex. 32a), mas também se lhes sucederem, e. g., o acorde de
tônica com suspensão de quarta (Ex. 32b), um acorde de dominante cuja fundamental corresponda
ao I grau da Tonart (Ex. 32c), se a sensível dó# prosseguir à quinta ré (Ex. 32d) etc. – i. e., se
qualquer das operações pelas quais tal acorde se desviara da tônica for revertida.
Ex. 32: Resoluções do sol dominante com sétima e quinta rebaixada/sensível da quinta: (a) sobre a tônica dó maior
(consonante); (b) sobre a tônica com suspensão de quarta (dissonante); (c) sobre dó dominante (dissonante); (d) sobre
sol dominante (dissonante).
Semelhantemente, na Sonata Waldstein, abordada acima (pp. 42-4), entendemos que haja
resolução da seção formal na tonalidade secundária de Mi maior (cp. 35-84) não apenas quando da
recapitulação do material então apresentado na Haupttonart de Dó maior (cp. 208 ff.), mas também
ao se passar pelas tonalidades respectivamente mais próximas de Lá maior (homônima da paralela,
cp. 200-203) e Lá menor (paralela, cp. 204-205).
3.2. Que, analogamente ao conceito aqui proposto de dissonância – e tal como se observa
nos exemplos oferecidos no item 3.1, acima –, a resolução, em nosso entendimento, pode ocorrer
não apenas do nível dos intervalos ou dos acordes, mas em qualquer nível em que se possa
manifestar dissonância (cf. item 1, pouco acima). Ademais, entendemos que, para além de a tríade
de tônica ser consonante, a própria Haupttonart também o é, em seu devido nível.
3.3. Que, distintamente do que supõe a concepção de dissonância na técnica polifônica dos
séculos XIV a XVII (ou de como o concebera o próprio Schoenberg), a resolução, em qualquer um
dos diferentes níveis em que esta se possa dar, não necessariamente ocorre de maneira imediata:
uma sensível sucedida por um salto (Ex. 33) ou uma dominante que progrida por uma cadência
deceptiva podem por vezes ter suas resoluções satisfeitas apenas alguns compassos adiante; entre
uma suspensão e sua resolução podem, por vezes, interpor-se um arpejo ou uma aproximação
cromática e, para um exemplo em maior escala; entre uma seção formal que expresse uma
tonalidade secundária e sua recapitulação na Haupttonart, tal como abundantemente exemplificam
Allegros de sonatas, frequentemente estarão interpostas outras tonalidades, visitadas em seus
Durchführungen.
68
Ex. 33: Mozart: Fuga em Dó menor, K. 426 (1783), sujeito, cp. 1-4.
Emancipação
Compreendendo-se a tonalidade funcional como historicamente dinâmica – o que se faz
auto-evidente em um exame, tal como aqui conduzido, de seu desenvolvimento histórico –; visando
contemplar as propriedades que inferíramos do segundo uso do termo “emancipação” por nós
identificado em Schoenberg (ver pp. 63-4, acima, item 5) e; visando, ademais, abranger como
passíveis de atravessar processos de emancipação os diversos tipos de dissonantes e dissonâncias
que nosso conceito estendido de ‘dissonância’ nos leva a compreender como tais; propomos que,
por ‘emancipação’, se entenda um tipo de processo inerente à tonalidade funcional, pelo qual
aquilo que se desviava da norma expressa por práticas composicionais ou sistemas teóricos de um
dado momento histórico seu passa a ser progressivamente absorvido em novas práticas
composicionais. Por um lado, o princípio de emancipação pode ser entendido, como já colocado,
como responsável pelo desenvolvimento histórico da tonalidade funcional, por seu processo mais
geral de expansão e dissolução; por outro, entendemos que a emancipação seja inerente à
tonalidade na medida em que os processos de formação de seus próprios fundamentos morfológicos
69
– i. e., as tríades, os modos maior e menor, o acorde de dominante com sétima, a modulação etc. –
possam ser compreendidos como processos emancipatórios. (Oferecemos exemplo logo abaixo, ao
examinarmos o caso dos acordes de dominante.)
Com relação ao dissonante, a emancipação se trata, em uma primeira fase: (1) do processo
pelo qual seu contexto de origem (incluindo-se as dissonâncias que o produzem) é
progressivamente abstraído, ou absorvido como carga histórica em sua própria morfologia e; em
uma segunda fase, (2) do processo pelo qual o dissonante vem a se sujeitar a novas operações de
desvio. Abordando-se por essa perspectiva o supracitado caso dos acordes de dominante, podemos
entender que, se no séc. XVI acordes correspondentes à moderna dominante com sétima seriam
formados por contraponto, sendo a nota correspondente à sétima (dissonante) produzida por
passagem ou suspensão (dissonâncias) e empregada sobretudo em progressões cadenciais,
ulteriormente tais acordes: (1a) absorvem em suas constituições a nota correspondente a essa sétima,
vindo esta a prescindir de preparação (ver Ex. 34a, abaixo); (1b) absorvem de tal forma em sua
morfologia sua histórica função cadencial, que, em casos como o reproduzido no Ex. 34b, abaixo,
chegam a implicar em uma tônica, mesmo na completa ausência desta – e prescindem, assim, de
resolução para que cumpram com a funcionalidade que lhes é própria –; (2) sujeitam-se a uma
diversidade de desvios adicionais, tais como o acréscimo de nona, ou da característica décima-
terceira de Chopin (ver Ex. 50b, p. 86, adiante), o rebaixamento cromático de suas quintas em
dominantes francesas etc.
Ex. 34: (a) Monteverdi: Cruda Amarilli (1605), cp. 13-14; (b) R. Schumann: Dichterliebe (1840), no 1, cp. 24-26.
Processos análogos ocorrem com outros dissonantes. A sexta napolitana, e. g., assumindo-
se que esta se origine, tal como colocado por Bukofzer (1975[1948], p. 386), como um acorde de
terça e sexta sobre o IV grau de tonalidades ainda híbridas entre o modo menor e o modo frígio, no
séc. XVII, ela vem eventualmente a ocorrer: (1a) em outras inversões, que não apenas o acorde de
terça e sexta; (b) em quaisquer tonalidades, tanto menores como maiores; (c) e a ser tratada não
70
apenas como um acorde de sexta sobre o IV grau, mas também como uma tríade por si mesma,
fundada sobre o II grau rebaixado de qualquer dada Tonart, o que se atesta, por exemplo, por seu
eventual estabelecimento enquanto tônica secundária (Ex. 35a). Ademais, uma vez abstraída de seu
contexto de origem, a sexta napolitana vem – tal como visto acima com relação às dominantes – a
(2) sujeitar-se a novas operações de desvio, como (a) ter sua terça alterada cromaticamente,
apresentando-se como sua homônima menor (Ex. 35b); (b) ou, ao estabelecer-se como uma tônica
secundária, tornar-se ponto de partida para novas modulações a regiões que se reportem a ela e não
mais à Haupttonart (ver, e. g., o caso de “Mignon II”, de Wolf, examinado no Cap. II. 3, acima) etc.
Ex. 35: Schubert: (a) Erlkönig (1815), cp. 143-148; (b) Quarteto, D. 810, cp. 326-332, redução (cf. Phipps: 1984, p. 39.)
Com relação à dissonância, por sua vez, entendemos que o conceito ora proposto de
emancipação se trate mais especificamente: (1) em uma primeira fase (em termos lógicos, não
necessariamente cronológicos), do processo pelo qual uma operação de desvio originada como
atrelada à produção de um dissonante específico vem a se aplicar em outros contextos e a outros
71
dissonantes; (2) em uma segunda fase, do processo pelo qual aquilo que era uma operação local de
desvio se torna um procedimento composicional por si mesmo, potencialmente independente da
tonalidade funcional.
Exemplificaremos exaustivamente processos emancipatórios de dissonâncias no subcapítulo
que se segue.
72
II. 4. 4. Emergência das dissonâncias processuais
73
“portam uma tendência inata a expandir-se, levando-se, em última instância, à autodestruição” (op.
cit., p. 379). Mais amplamente, contudo, fundando-nos nos conceitos acima propostos de
dissonância enquanto operação de desvio e de dissonante enquanto produto do desvio, podemos
entender: (a) que o processo de emancipação de um dissonante específico (seja um acorde, uma
região etc.) tende, de modo geral, a portar consigo a emancipação também das operações de desvio
(dissonâncias) que o produziram; (b) que, em uma primeira fase, uma operação de desvio atrelada à
produção de um dissonante específico tende a ser experimentada e empregada em outros contextos,
a “expandir-se”, nos termos de Dahlhaus, e generalizar-se; (c) que, em uma segunda fase, a
dissonância que operava localmente, alterando um acorde, motivo, região etc. a priori funcionais,
tende a tornar-se (quer pontualmente, em um acorde ou progressão, quer em uma passagem ou obra)
um procedimento composicional por si mesmo, já não mais subordinado à elaboração de relações
funcionais. Os célebres compassos iniciais do prelúdio de Tristão e Isolda (1857-9) – se
assumirmos uma interpretação dos acordes dos cp. 2 e 6 como resultantes de alterações em sextas
francesas17 – podem ajudar-nos a elucidar essa extensão do processo de emancipação do dissonante
às suas dissonâncias.
Emancipada de uma origem nas tonalidades frígias do séc. XVII e amplamente empregada
como dominante (normalmente secundária) em diferentes tonalidades, tanto menores como maiores,
sobre diversos graus da escala, a sexta francesa pode ser em muitos casos entendida como uma
dominante com sétima e quinta rebaixada, i. e., uma dominante com sétima que porta também em
si, enquanto desvio, a alteração cromática (dissonância) de sua quinta. Assim, interpretando-se os
acordes dos cp. 2 e 6 de Tristão… (ver Ex. 37, pouco abaixo) como originados de sextas francesas
por meio da cromatização de suas sétimas (Ex. 36a-c) – a notação de Wagner sugere fortemente tal
interpretação –, podemos entender tais acordes como resultantes de uma operação suplementar de
desvio (a cromatização) em um acorde já dissonante, sendo, em especial, tal específica operação já
presente no modelo mais convencional da sexta francesa. Manifesta-se aqui, portanto, o que
apontáramos como uma primeira fase do processo de emancipação de uma dissonância: no caso
específico, que a cromatização originalmente implicada na quinta rebaixada da sexta francesa se
estenda a outros componentes do acorde (a sétima, no caso) e, se observados os acordes
subsequentes (cp. 3 e 7 respectivamente), às quintas também destes. Também notável é que, de tais
cromatizações (da sétima nos cp. 2 e 6; da quinta nos cp. 3 e 7), resulte um movimento cromático
17
Entendemos, como melhor defenderemos no Cap. III. 2, que uma tal interpretação não seja excludente de quaisquer
outras. Acrescentamos ainda que a interpretação em questão é bastante difundida, sendo assumida, sobretudo a
partir de Kurth (1920, pp. 42 ff.), em trabalhos como Cone (1962), Hill (1984), DeVoto (1995) e Barsky (1996) e,
sobretudo, estando implícita em Schoenberg, em Funções Estruturais da Harmonia, ao assinalar tal acorde como II
de Lá menor. Martin (2008), ao contestá-la, ignora a discussão de Schoenberg (2001[1911], pp. 435 ff.) a respeito
das “notas não-harmônicas” [“harmoniefremde Töne”] e os processos emancipatórios por Schoenberg descritos e
aqui aprofundados. Martin escreve: “[a] significant shortcoming, however, is that, in order to do so, the
interpretation must explain — or indeed explain away — the G# in measure 2 as a non-chord tone” (op. cit., p. 10).
74
que, afora tratar-se de um dos principais Leitmotive da ópera, exacerba a tendência inerente em
acordes de sexta aumentada de se resolverem por passos cromáticos na maior parte, se não na
totalidade, de suas vozes.
Ex. 36: (a) ré dominante, com sétima; (b) sexta francesa com fundamental em ré; (c) acorde do cp. 6 do prelúdio de
Tristão….
O acorde do cp. 10, apesar de equivaler, por enarmonia, a uma inversão dos acordes dos cp.
2 e 6, não pode ser interpretado da mesma maneira: vindo a resolver-se em um si dominante, ele
não corresponde, tomando-se por modelo os outros dois, a uma sexta francesa6#→ 7 sobre fá# (i. e.,
com fundamental correspondente à dominante individual do si que o sucede), nem tem a nota que
corresponderia, por analogia, à sensível de sua suposta sétima elevada a esta; tampouco o acorde em
questão é notado de forma análoga aos outros dois (o que equivaleria à grafia ré-sol#-si#-mi#).
Se os acordes dos cp. 2 e 6, enquanto derivados de sextas francesas, podem ser
funcionalmente entendidos, ao menos localmente, como dominantes das respectivas dominantes de
Lá e Dó (principais tonalidades da obra), também nesse sentido o acorde do cp. 10 parece escapar
ao modelo dos anteriores: Kurth (1920, p. 49) interpretara-o como derivado de um mi com sétima,
com suspensões de nona (fá) e sexta (dó), fazendo uma cadência do tipo IV-I sobre o si do cp. 11
(Ex. 38a, abaixo); Schoenberg, ao assinalá-lo, em Funções Estruturais… como II de Mi
(2004[1948], p. 100; cf. Barsky: 1996, p. 135), assume-o implicitamente como um fá menor com
75
sexta, uma espécie de napolitana menor da dominante de Lá (Ex. 38b), ou subdominante menor da
paralela (Dó) de Lá. Compreendê-lo, por analogia às frases anteriores, como dominante do si
dominante do cp. 11 seria também possível, mas exigiria, deve-se reconhecer, uma muito maior
sofisticação teórica do que aquela envolvida nos cp. 2 e 6: se uma sexta germânica sobre fá#
(dominante de si) seria enarmônica de um dó dominante, então o próprio dó (como resultado de um
processo de emancipação da sexta germânica) poderia vir a ser tratado como dominante de si – de
fato, casos análogos são observáveis no repertório, ao menos desde Mozart, K. 533 (1788), cp. 215-
6 (ver p. 145, adiante) – e, assim, o acorde do cp. 10 poderia ser entendido ainda como um dó
dominante, com quinta aumentada, nona e suspensão de sua quarta a sua terça (Ex. 38c).
Ex. 38: Interpretações distintas para o acorde do cp. 10 de Tristão…: (a) como uma espécie de mi dominante (adaptado
de Kurth: 1920, p. 49); (b) como um fá menor (adaptado de Schoenberg: 1969[1948], p. 77); (c) como uma espécie de
dominante germânica fundada em dó.
76
alterações cromáticas: de partida, o principal motivo do primeiro tema desenha apojaturas sobre a
tônica, de sua sexta menor para a quinta (Ex. 39a, abaixo), e, eventualmente, sobre a dominante, da
nona menor para a fundamental (Ex. 39b). Decorrentes – ou, ao menos, compreensíveis como
decorrentes – dessa substituição, em dominantes, de suas fundamentais pela nona menor, abundam
também na peça tétrades diminutas.
Ex. 39: Mozart: Sinfonia no 40, (a) cp. 1-2; (b) cp. 77, redução.
Conforme ilustram os cp. 110 a 113, reproduzidos abaixo (Ex. 40), Mozart põe em evidência
a tendência a encadeamentos cromáticos propiciada por tais acordes ao não apenas realizar, em
torno destes, seus encadeamentos mais convencionais, mas ao envolvê-los também – valendo-se por
vezes, para tanto, da ambiguidade inerente à tétrade diminuta – em progressões funcionalmente
menos convencionais, as quais mantenham, contudo, essa propriedade de encadear-se exclusiva- ou
quase exclusivamente por semitons. Manifesta-se, em tal tipo de progressão: por um lado, um
tratamento relativamente livre da tétrade diminuta, um estágio no processo de emancipação deste
acorde dissonante; por outro, uma extensão do próprio encadeamento cromático a uma progressão
dissonante, tratando-se portanto aquele [o encadeamento cromático] da operação de desvio
(dissonância) pela qual se engendra esta [a progressão dissonante].
77
procedimento por meio do qual se engendra o acorde sol-si-sol #-mi bemol do cp. 15018 (assinalado
em b). A exemplo do que observáramos com relação ao cp. 10 do prelúdio de Tristão…, o acorde
em questão parece gerado antes em função de encadear-se exclusivamente por semitons com o ré
dominante que o segue do que por meio de alterações sobre alguma tríade de origem. (Uma vez
mais, entendemos que seja possível interpretar funcionalmente tal acorde, mas que dificilmente
haverá para ele uma interpretação unívoca e, sobretudo, que qualquer funcionalidade por ele
assumida se dê a posteriori, sobretudo por conta de sua inserção em um contexto funcional.)
Também algumas progressões harmônicas entre acordes que, ainda que morfologicamente
convencionais, se encadeiem predominantemente por passos cromáticos – como, e. g., as mediantes
cromáticas entre si, a napolitana com relação à dominante da dominante (ver Bach, BWV 998, cp.
39-40) etc. – são frequentemente interpretáveis – e, por vezes, de fato interpretadas, sobretudo em
trabalhos de autores que advoguem pela chamada “teoria da transformação” [transformation theory]
– como resultantes antes de cromatismo linear do que de uma elaboração funcional a priori e seriam
portanto, em tais casos, também compreensíveis como manifestações de uma primazia do
cromatismo, enquanto procedimento composicional, com relação à funcionalidade.
Na passagem abaixo reproduzida da Polonaise no 1 (1875), S. 519, do inacabado oratório St.
Stanislaus, de Liszt, e. g., para além de a relação do dó menor (cp. 99) com os acordes de mi maior
que o circundam ser funcionalmente remota e, consequentemente, ambígua – representaria o dó
menor uma Tonart secundária em alternância com Mi? Haveria uma tônica oculta (como, e. g., Lá
bemol maior, Lá menor, ou Sol) por meio da qual se relacionassem os dois acordes em questão?
Seriam os acordes em questão as respectivas homônimas de mi menor e dó maior, mais
proximamente relacionados? –, não há qualquer consequência imediata de tal progressão que ajude
a elucidar a função desse dó menor com relação ao mi; por outro lado, é evidente (e a escrita de
Liszt valoriza tal aspecto) que os dois acordes em questão se encadeiam exclusivamente por
semitons e, nos compassos que se seguem, abundam progressões análogas, em outras transposições,
valorizando-se, assim, o encadeamento cromático per se, e não uma centralidade de mi. A exemplo
dos acordes acima examinados de Wagner e Mozart, contudo, é possível inferir do próprio
18
Schoenberg comenta o referido acorde no Tratado…, pp. 455 e 510.
78
repertório, bem como da obra em questão, processos de emancipação que conduziriam a um tal tipo
de progressão.
Primeiramente, deve-se reconhecer que algumas relações de mediantes cromáticas são não
apenas possíveis de se compreender por meio de relações funcionais convencionais (ainda que
indiretas), mas, ademais, ocorrem efetivamente em sucessão imediata em contextos funcionais 19 já
nos séculos XVII e XVIII, com abundantes exemplos em Purcell, Vivaldi e Bach, entre outros. Para
nos limitarmos a casos semelhantes ao de Liszt, de relações de mediantes cromáticas com
fundamentais que distem por terça maior, podemos tomar como exemplos: o coral final da cantata
BWV 148 (1723) de Bach, em que, após fermata no fim da primeira frase sobre dó# maior,
dominante de Fá# menor, a segunda frase se inicia diretamente na paralela, lá maior, e retorna, de
imediato, à dominante dó# maior (Ex. 43a); ou o coral Christ lag in Todesbanden, BWV 277, em
que, após cadência de engano na penúltima frase sobre si bemol, submediante de Ré menor, não
apenas se segue imediatamente ré maior, enquanto dominante de sol menor, como, no compasso
seguinte, realiza-se a cadência final sobre o mesmo acorde, agora como tônica, com terça de
Picardia (Ex. 43b). De modo geral, a mediante maior (como, e. g., mi maior com relação a Dó)
pode ser frequentemente entendida como dominante da submediante, em tonalidades maiores –
observáramos uma tal relação em larga-escala na Sonata Waldstein, de Beethoven, pp. 42-4, acima
–; e a submediante rebaixada (e. g., dó maior, com relação a Mi), como submediante da homônima
menor.
19
De fato, há exemplos de sucessões de tal tipo já no renascimento, como, e. g., entre diversos versos de Señora de
hermosura (ca. 1500), de Juán del Encina, em La mañana de San Juan (ca. 1550), de Diego Pisador, ou nos acordes
iniciais de “Moro, lasso, al mio duolo” (1613), de Gesualdo. David Kopp, em Chromatic Transformations in
Nineteenth-Century Music (2002), a respeito de relações de mediantes cromáticas na música do séc. XIX, menciona
(op. cit., p. 18, n. 1) que, em trabalho de caráter taxonômico de McKinley (1994), haveria volumosa exemplificação
de relações de tal tipo desde o renascimento. O referido trabalho de McKinley, contudo, permanece não-publicado,
de modo que não temos acesso a tal estudo.
79
Ex. 43: Bach: (a) BWV 148, “Führ auch mein Herz und Sinn”, cp. 1-3, redução; (b) BWV 277, final.
Se nos casos supracitados de Bach tais sucessões se dão em proximidade com os acordes por
meio dos quais elas seriam funcionalmente relacionadas, em Beethoven ou Schubert – a quem
David Kopp, em Chromatic Transformations in Nineteenth-Century Music (2002), atribui,
conformemente, o princípio de um uso normativo de relações de mediantes cromáticas (ver op. cit.,
p. 18) – observam-se passos nos processos de emancipação (a) da própria progressão (dissonante)
entre mediantes cromáticas, por um lado, ao empregarem-nas localmente isoladas de contextos que
explicitassem suas conexões funcionais e; (b) do próprio encadeamento cromático (enquanto
operação, i. e., a dissonância) inerente a tais sucessões, posto que este parece frequentemente se
tornar, em progressões por mediantes cromáticas em que não se evidenciem suas relações
funcionais, o principal fator de coesão.
Um exemplo em que se manifestariam tais processos emancipatórios pode ser encontrado no
primeiro movimento da Sonata no 30 em Mi maior, op. 109 (1820) de Beethoven. No segundo
grupo temático, na região da dominante (Si maior), após extensos arpejos de ré# maior no cp. 13,
retorna-se de imediato, por encadeamento cromático, a si maior, sem qualquer referência a sol#
menor (relativa de si), de quem ré# seria dominante (Ex. 44a, abaixo). Se aqui há ainda margem
para uma interpretação funcional de tal progressão – uma resolução da dominante de sol#
diretamente sobre sua paralela, por substituição –, em passagem análoga, na reexposição,
evidencia-se o próprio encadeamento cromático como operação de resolução (i. e., de desvio, em
sentido inverso) ao se retornar, também imediatamente, de uma incursão em Dó maior, submediante
bemol de Mi (cp. 61-62), para mi maior, tônica (Ex. 44b). O fato de que dó maior dificilmente seria
compreendido como uma dominante de Mi ajuda a explicitar que o que conecta as duas progressões
em questão é, sobretudo, o próprio encadeamento cromático, generalizado 20 – e, portanto,
emancipado – de uma resolução quase-convencional, para outra mais inusitada. Não deixa de ser
relevante, ainda assim, que o dó maior da passagem em questão assuma um caráter de
20
Um exemplo em Schubert, por sua vez, de uso generalizado do encadeamento cromático pode ser encontrado em
Die Sterne, D. 939 (1828). Para análise centrada nesse aspecto, ver Kopp: 2002, pp. 23-29.
80
subdominante (como paralela da subdominante menor de Mi), contrabalanceando, na reexposição,
o caráter de dominante que o ré# assumira na passagem análoga dos cp. 13-14. (Esse tipo de
oposição em larga-escala entre regiões estendidas de dominantes e subdominantes é observado por
Rosen, em seu Sonata Forms, e discutido adiante, no Cap. III. 4, pp. 151 ff.)
Ex. 44: Beethoven, Sonata no 30: (a) cp. 13-14; (b) cp. 61-63.
De volta à Polonaise S. 519, de Liszt, a progressão entre mi maior e dó menor dos cp. 98-
101 parece estender duplamente a operação em questão de encadeamento cromático entre mediantes,
tanto no sentido de que, aqui, todas as notas dos acordes envolvidos – não apenas duas – se movem
por semitom, como por conta de as possíveis relações funcionais entre tais acordes serem mais
remotas do que nos casos acima expostos de Bach e Beethoven. Sobretudo, a imediata repetição e a
proliferação sistemática que se segue de encadeamentos análogos, em outras transposições,
apontam aqui, uma vez mais (i. e., como nos acordes acima examinados de Wagner e Mozart), para
uma primazia do cromatismo – emancipado enquanto um procedimento por si mesmo – com
relação à funcionalidade.
Como nos demais exemplos, tal primazia não exclui a assunção de uma funcionalidade a
posteriori por parte dos acordes envolvidos, devendo-se reconhecer, contudo, que tal funcionalidade
81
tende a ser – precisamente porque remota e a posteriori – ambígua. Assim, sobre o dó menor dos cp.
99 e 101, se parece possível, por um lado, interpretá-lo, e. g., como uma espécie de subdominante
alterada da homônima menor de Mi e se, de fato, as primeiras ocorrências de dó menor, na peça, se
haviam dado precisamente em alternância com mi menor tônica, nos cp. 20-26 (Ex. 45, abaixo),
deve-se observar, ainda assim, que, mesmo nesses compassos iniciais, o dó menor assumira
paradoxalmente também um caráter de dominante, posto que não apenas sua terça equivalia
enarmonicamente à sensível (ré#) de mi, como a condução melódica da passagem valorizara tal
propriedade. Ainda outras interpretações funcionais dos acordes em questão hão de ser possíveis
(ver p. 78, acima, em que elencáramos, sob forma de perguntas, algumas dentre estas), sem que
sejam necessariamente excludentes entre si.
Tal como é inerente à concepção de emancipação aqui proposta, entendemos que todo tipo
de desvio seja potencialmente sujeito a um processo emancipatório rumo a seu estabelecimento
enquanto um procedimento por si mesmo, capaz de produzir acordes, progressões, passagens etc.
independentemente de uma funcionalidade a priori. O princípio de construção de acordes por
sobreposição de terças, já mencionado por Dahlhaus, e seu processo de emancipação oferecem-nos
exemplificação alternativa aos casos acima examinados da alteração cromática ou do cromatismo
linear.
Ainda que a tríade, tal como modernamente concebida, se tenha originado antes por
contraponto, enquanto única – uma vez reconhecida a relação de inversão, introduzida no início do
séc. XVII por Harnisch [1608] e Lippius [ca. 1610-2] 21 – formação sincrônica com três notas
distintas em que todas estas fossem consonantes entre si (ao menos, conforme os critérios de
contraponto do séc. XVI); e que a dominante com sétima se tenha originado, como já colocado, por
meio da absorção, em sua constituição morfológica, da nota de passagem responsável por seu
melhor encadeamento com o acorde subsequente nas fórmulas cadenciais convencionais; ainda
assim, Rameau, em seu Tratado de Harmonia (1722), explica o “acorde perfeito” (i. e., a tríade)
como resultante da divisão da quinta em duas terças e o acorde de sétima, dissonante, como
resultante da adição (operação de desvio), sobre o acorde perfeito, de uma terça suplementar (op.
cit., livro 3, cap. 6, art. 1, p. 192). Em conformidade com nosso modelo, uma emancipação do
21
Cf. Lester: 1992, pp. 96-100.
82
acorde de sétima implicaria consigo na emancipação também do desvio que lhe é inerente e, se tal
desvio é eventualmente (como em Rameau) entendido como o empilhamento de um novo intervalo
de terça à tríade, então sua emancipação, em uma primeira fase, há de se manifestar por meio da
extensão e generalização de tal empilhamento: trata-se precisamente do princípio de “harmonia por
sobreposição de terças” a que se referira Dahlhaus, donde se compreende sua “tendência inata a
expandir-se”.
Exemplos de tal extensão abundam já no início do séc. XVIII: afora os inúmeros casos de
tétrades diminutas, também dominantes que portem sétima e nona bemol sobre a efetiva ocorrência
de suas fundamentais são encontradas com relativa frequência, sobretudo em passagens com baixo
pedal – como, e. g., no Prelúdio no 6 do Cravo Bem-Temperado I (1722), ou na introdução à Paixão
de São Mateus (1727). No Tratado de Harmonia, Rameau especula ainda a respeito de acordes de
nona e décima primeira produzidos pela adição de terças suplementares sob o baixo de acordes de
sétima (“acordes por subposição”; ver op. cit., livro 2, cap. 10, pp. 73-7), oferecendo exemplos por
meio do encadeamento reproduzido abaixo (Ex. 12, adaptado de Rameau: op. cit., p. 75).
Os acordes apresentados em tal encadeamento, deve-se notar, não são mero produto de
especulação teórica, nem se restringem a Rameau, e mesmo o acorde ocorrido sobre a cabeça do cp.
3 (fá-lá-dó#-mi-sol) – para apenas um exemplo – é, embora raro, ocasionalmente encontrado em
Bach. No cp. 36 da Fantasia Cromática e Fuga, BWV 903 (ca. 1720), ainda que o acorde dó-mi-
sol#-si-ré (ver Ex. 29a, p. 60, acima) fosse interpretável como resultante de retardos – enquanto um
lá menor ainda sem fundamental, com todas as notas de sua dominante individual sobre ele
prolongados –, sua disposição peculiar põe em evidência uma construção por empilhamento de
terças. Na Fuga do BWV 998 (1735), por sua vez, temos um exemplo bastante mais próximo
83
daquele de Rameau: o si bemol-ré-fá#-lá-dó do cp. 48 (Ex. 47) parece de fato interpretável como
um ré dominante, com acréscimo de uma terça sob sua fundamental. Sua ambiguidade funcional,
contudo, é notável, posto que, se por um lado ele atua como dominante do acorde seguinte (também
ambíguo, entre sol menor e mi bemol), por outro ele parece introduzido como um acorde de si
bemol, propriamente, resolução do fá dominante que o precede.
Há, contudo, ainda uma segunda via pela qual o princípio de empilhamento se emancipa
rumo a seu estabelecimento como um procedimento por si mesmo, a qual tende a uma dissociação
mais radical com relação a uma morfologia triádica de base: que tal princípio se generalize para
84
outros intervalos que não apenas a terça. Em um primeiro momento, há de se notar que alguns
acordes relativamente convencionais na tradição tonal podem manifestar fortuitamente uma certa
regularidade intervalar em suas constituições morfológicas: as notas constituintes de dominantes
com sétima e suspensão de quarta, e. g., são potencialmente relacionáveis entre si por quartas ou
quintas sucessivas; em dominantes com sétima e nona em que se omita a quinta, por sua vez, ou em
certos acordes com retardos, suas notas constituintes são potencialmente relacionáveis por segundas
ou sétimas – e, por meio de uma disposição privilegiada das vozes, tais propriedades podem ser
postas em evidência (Ex. 49).
Ex. 49: (a) Bach: Prelúdio no 1, BWV 846, cp. 26; (b) Haydn: Sonata, Hob. XVI/20, cp. 25-6; (c) Beethoven, Sinfonia
no 6, “Szene am Bach” (mov. II), cp. 126-7, madeiras (clarineta em Bb).
85
característica é notada por Peter Sabbagh (2001, p. 41), ao compreender tal acorde como uma
espécie de protótipo [fore-form] do acorde de Prometheus, de Scriabin (ver id., pp. 16 ff.).
Ex. 50: Chopin: Sonata no 2, (a) cp. 117-122; (b) cp. 103-104.
86
Ex. 51: (a) Satie, Le Fils des étoiles, cp. 28-31; (b) Schoenberg, Sinfonia de Câmara No 1, cp. 1-4; (c) Debussy, Voiles,
cp. 15-16.
87
Ex. 52: Mozart: (a) Sonata no 17, cp. 130-132; (b) Sinfonia no 40, cp. 164-166.
Ex. 53: Chopin: (a) Barcarolle, cp. 48-49; (b) Barcarolle, cp. 110; (c) Polonaise-Fantaisie, cp. 145.
Grieg, por sua vez, ao escrever partes de piano adicionais para alguns obras de Mozart, entre
1876 e 1877, parece reconhecer o interesse deste por acordes internamente cromáticos, ao produzir
passagens em que tal tendência seja extremada. Sobre o cp. 5 da Sonata no 15 de Mozart (1788), e.
g., em que ocorria a inusitada formação fá-si bemol-fá#, parte de um dó dominante alterado – em
que fá# seria uma sensível de sua quinta (sol) e fá, a tônica, ocorre como baixo-pedal –, Grieg
88
acrescenta as notas faltantes dessa dominante, vindo a formar um acorde com mi, fá e fá# (Ex. 54a).
Em exemplo mais extremo, sobre o cp. 2 da Fantasia em Dó menor (1785), em que originalmente
ocorria um si natural dobrado em três oitavas distintas, Grieg acrescenta um baixo-pedal na tônica
dó, bem como uma cromatização da quinta (dó#-ré) da dominante originalmente subentendida,
formando, sobre a cabeça do referido compasso, um agregado dó-si-dó# (Ex. 54b). É interessante
notar que, ainda que extremamente cromática, tal formação cordal é ainda identificável como fruto
de desvios – cromatização e acréscimo de baixo-pedal, afora a omissão da fundamental – de um
acorde funcional, o que se explicita pela própria comparação com o original de Mozart,
integralmente presente e inalterado no piano I.
Ex. 54: Mozart/Grieg: (a) Sonata no 15, K. 533/EG113, cp. 4-5; (b) Fantasia em Dó menor, K. 475/EG113, cp. 1-2.
89
Ex. 55: Strauss: Salome: (a) número 355 de ensaio, início; (b) Leitmotiv de Salomé, cp. 2-3.
90
caso de hinos compostos em modos que não portassem sensível – em Mit Fried und Freud…, BWV
125 (1725), e. g., sobre hino homônimo de Lutero (1524) no modo I, é interessante observar o
intenso jogo de modulações (em sentido amplo) desencadeado por uma harmonização funcional de
frases que contivessem o VI ou VII graus dóricos da Haupttonart. O que parece, contudo, peculiar à
tonalidade do séc. XIX é que, uma vez que se lhe tenham tornado inerentes dissonâncias
processuais produzidas no seio da própria tonalidade funcional, estas parecem manifestar-se de
maneira progressivamente mais intensa – posto serem, frequentemente, objeto de interesse dos
compositores – e, sobretudo, ubíqua, posto que, sendo atreladas, por suas origens, a uma
diversidade de dissonantes emancipados – estes mesmos, ubíquos –, parecem impregnadas já na
simples ocorrência destes. Com Schoenberg e Webern, entre 1908 e 1909, o cerne de seus interesses
composicionais teria sido finalmente deslocado da lógica funcional da tonalidade para toda uma
“nova forma de ordem” (Schoenberg: 2001[1911], p. 226) em emergência, para as “[novas] leis
escondidas [geheime Gesetze] que estariam atreladas às doze notas” (Webern: 1960[1932], pp. 54-5;
id. [1933], p. 41).
91
II. 5. Abandono ou renúncia à tonalidade
(…) se deve surgir vida, se deve nascer uma obra de arte, então há que interessar-se por esse
conflito gerador de movimento. A tonalidade [Tonalität] tem que romper com o perigo de
perder sua soberania, dar uma oportunidade aos desejos de independência e possibilitar que
atuem as aspirações de rebelião, deixá-los obter vitórias, conceder-lhes eventualmente o
alargamento de suas fronteiras, pois um dominador apenas sente prazer dominando os vivos;
e os vivos querem a rapina.
Desse modo, originam-se talvez os esforços revolucionários dos subordinados, tanto de suas
próprias inclinações como da necessidade de dominação do tirano; esta não se satisfaz sem
aquelas. (…)
Mesmo o aparente completo abandono [Verlassen] da tonalidade [Tonalität] revela-se um
recurso para tornar mais esplêndida a vitória do som fundamental [Grundton, i. e., a tônica]
(2001[1911], pp. 224-5).
(…) as digressões não têm limite, se é que o poder da tonalidade é ilimitado. Existissem
fronteiras para esse poder, de nada serviria reprimir as tendências dos sons secundários [i. e.,
que não a tônica]; romperiam, de qualquer forma, todas as amarras, pois não possuem
limites. Logo, poderíamos perguntar: a tonalidade é forte o bastante para dominar a todos?
Sim e não [beides] (…) (id. ibid.).
Se, por um lado, Schoenberg entende a tonalidade como “dispensável” (ver, e. g., op. cit., p.
226; 1975[1926], p. 262; 1934, pp. 175 ff.); se Schoenberg fala, perante uma tonalidade ‘diluída’,
na necessidade de “renúncia a um centro tonal” (1950[1941/1948], p. 105) e de “evitar” a mera
sugestão de uma tônica e “mesmo uma ligeira reminiscência da antiga harmonia tonal” (id., p. 108);
mas, por outro, não apenas compreende que não haja “nenhuma outra diferença que não seja
gradual entre a tonalidade de ontem e a tonalidade de hoje [i. e., a dita ‘atonalidade’]” (1934, p. 184,
92
grifo do autor), ou que sua escola composicional “não exclui totalmente” o “estabelecimento de
uma tonalidade” (2004[1948], p. 216), como chega a apontar para que haja uma funcionalidade a
ser, a posteriori, descoberta em suas composições desse período22 (id., p. 217); se há, em suma,
contradições (ou aparentes contradições) nos escritos de Schoenberg a respeito de seu passo rumo à
dita “atonalidade”, tais contradições se fazem possivelmente compreensíveis por meio do
supracitado paradoxo, aqui entendido como inerente ao desenvolvimento histórico da tonalidade
funcional.
Podemos entender que haja, grosso modo, dois fatores motivadores de uma renúncia ou
abandono da tonalidade funcional em Schoenberg. Um primeiro, de cunho negativo, se dá em face à
constatação, por parte do compositor, de uma ‘diluição’ das relações funcionais, de uma menor
eficácia destas em boa parte da música escrita desde Wagner (ver 1975[1926], p. 258), de uma
menor participação, em tais obras, de suas supostas tônicas em suas elaborações formais (cf. id., pp.
261-2). Para Schoenberg, o emprego de uma tônica sem implicações formais se reduz a uma
questão de “estilo”, de “gosto” (id. ibid.); é, em suas palavras, “enganoso se não estiver baseado em
toda a relação da tonalidade” (1950[1941/1948], p. 108) e faz-se dispensável se não “brotar de uma
necessidade construtiva” (ver 2001[1911], pp. 70-1). Por essa via, pode-se entender que haja, de
fato, uma renúncia à tonalidade na maior parte de suas obras escritas a partir de 1909.
Um segundo motivo, de cunho positivo, se dá por sua vez em face à constatação da
progressiva emergência, em obras da tradição tonal, de elementos contraditórios às próprias bases
do que se tenha entendido por um “sistema tonal” (o que se examinou ao longo de toda esta segunda
parte do trabalho): bases escalares não-diatônicas (como a escala de tons inteiros; ver Schoenberg:
2001[1911], pp. 537 ff.), os acordes de origem não-triádica (como os acordes quartais; id., pp. 549
ff.), sucessões não-funcionais – ou, ao menos, não aprioristicamente funcionais – de acordes (id., pp.
226 e 529; 1975[1926], p. 260; 1934, p. 181; 1950[1941/1948], pp. 103-4; 2004[1948], pp. 19 e
187-8) etc. Já no Tratado de Harmonia, Schoenberg expressa tanto uma compreensão de que: (a) a
supressão [Wegfallen] dos vínculos estabelecidos pela tonalidade “favorece (…) o funcionamento
autônomo de outros vínculos”, o estabelecimento de “uma nova forma de ordem” (op. cit., p. 226),
como de que; (b) quando da composição das primeiras obras ditas “atonais” entre 1908 e 1909, bem
como da redação (iniciada, se não antes, em 1910) do Tratado..., o processo histórico de
emancipação de diversos dissonantes (acordes, progressões, tonalidades secundárias) e
dissonâncias (o cromatismo linear, a sobreposição de acordes, a construção de acordes pela
verticalização de material melódico) teria tornado possível que virtualmente qualquer acorde, ainda
que a posteriori, viesse a ser remetido a alguma suposta origem triádica – com alterações
22
“Haverá um dia em que uma teoria irá abstrair regras a partir destas composições [dodecafônicas]. Certamente, a
análise estrutural destas sonoridades estará novamente ancorada em suas potencialidades funcionais” (Schoenberg:
2004[1948], p. 217, trad. Eduardo Seincman; cf. 1954[1948], pp. 194-5).
93
cromáticas, empilhamento de terças, incorporação de notas originalmente ornamentais,
sobreposições a baixos-pedais ou a outros acordes etc. – e que virtualmente qualquer tríade viesse a
ser relacionável a qualquer Tonart (ver op. cit. [1922], p. 532).
Assim, ainda no Tratado…, Schoenberg demonstra, e. g., como o acorde de onze notas
reproduzido abaixo (Ex. 56) e extraído de Erwartung (1909) poderia ser reportado (a posteriori) a
“formas anteriores” mais comuns à tonalidade funcional (op. cit., pp. 574-5; cf. 1922, pp. 502-3): o
primeiro grupo de seis notas tratar-se-ia de uma tétrade diminuta acrescida de suspensões não-
resolvidas (Ex. 57a); o segundo, proveria as fundamentais (fá# e dó) de duas das dominantes que
poderiam vir assumir a forma de tais tétrades diminutas, acrescentando uma suspensão de quarta
comumente associada à segunda dessas fundamentais possíveis (Ex. 57b); embora Schoenberg não
prossiga em sua análise, os últimos dois pares de notas (respectivamente, si-ré# e lá-ré) poderiam
vir a ser entendidos como representativos de resoluções possíveis (si maior, com uma cadência
perfeita a partir de fá# dominante; ré maior, com uma cadência deceptiva) de tal tétrade diminuta
inicial.
94
Ex. 58: adaptado de Schoenberg: 1922, p. 443.
Acrescentando-se aí a concepção de que toda tonalidade que não a Haupttonart possa ser
compreendida como uma “região” desta – i. e., a ideia de monotonalidade, vagamente esboçada no
Tratado… (p. 226) e ulteriormente desenvolvida em Funções Estruturais… (pp. 37 ff., 49 ff., 73 e
79 ff.) –, faz-se possível entender que o argumento de Schoenberg de que toda relação entre notas
musicais seja, por definição, “tonal” (2001[1921], pp. 558-60, n.) não se limite a uma dimensão
etimológica – embora o autor o defenda nesses termos –, mas esteja também fundado, mesmo que
implicitamente, na compreensão de uma tal expansão da tonalidade funcional que tenha tornado
virtualmente qualquer elemento harmônico que cumpra com seus mínimos requisitos acústicos (de
qualidade espectral e de afinação) como passível de ser interpretado, ainda que a posteriori, sob
uma ótica tonal-funcional. Por essa via, compreende-se como que evitar o estabelecimento de
centros tonais possa não implicar, para Schoenberg, em uma “total exclusão da tonalidade”; ou
como Webern possa, em 1933, afirmar uma convicção de que mesmo em sua música ou na de
Schoenberg de então – escritas por procedimentos tipicamente dodecafônicos – devesse haver uma
tônica presente, ainda que esta não mais os interessasse (1963[1933], p. 39): não mais se interessar
pelo estabelecimento de uma centralidade tonal e mesmo evitá-lo, assumir radicalmente outras
abordagens à harmonia, ora empíricas e heurísticas, ora por meio de procedimentos composicionais
formalizados, significa, diante de uma tonalidade estendida a tal ponto, abandoná-la à sua própria
capacidade, historicamente adquirida, de pôr em relação, em seus termos, aquilo que já se relaciona,
no ato da composição, por lógicas que lhe seriam – não fosse tal capacidade da tonalidade funcional
de abarcá-las – estranhas.
De volta ao Op. 11, no 1 (cf. pp. 58-9, acima), interpretar tal peça como estando em uma
tonalidade [Tonart] unívoca, como sendo simplesmente “tonal”, nos mesmos termos em que
comumente se entendem Corelli, Beethoven ou Brahms, apenas atestaria a indesejada (por parte de
Schoenberg) presença de uma tônica com pouca participação na construção formal da obra;
identificar, contudo, uma outra ordem – como a relativa eficácia da aplicação de teoria de conjuntos
de pitch classes em sua análise – na construção da obra não exclui a possibilidade de que haja nesta
relações funcionais latentes (não necessariamente em torno de uma centralidade única ou unívoca),
95
nem de que estas possam ou pudessem participar, de algum modo, do próprio delineamento formal
da obra, em interação com outras relações harmônicas não aprioristicamente funcionais. Em ambos
os casos, são assumidos como parâmetros para a abordagem à obra modelos teóricos em alguma
medida pertinentes a esta, mas ignora-se o próprio repertório, o próprio processo histórico em que
Schoenberg se entende como fundado, o dinamismo histórico da tonalidade funcional como
também um parâmetro possível. (Em relativa consonância com nosso trabalho, Phipps, em artigo de
1984, questiona também a separação teórica entre a tonalidade [tonality] e a dita “atonalidade”,
fundamentando tal questionamento em uma concepção da primeira como “uma linguagem que se
desenvolveu para incorporar diversas novas possibilidades junto a sentidos mais antigos, oriundos
de seu passado musical”; op. cit., pp. 37-8.)
Por um lado, se uma análise do Op. 11, n o 1 por teoria de conjuntos é capaz de relacionar
boa parte do material harmônico de certas passagens a um mesmo dado agregado intervalar, isso se
dá: em parte, pelo próprio método de análise, por vezes arbitrário e tautológico, ao segmentar e
agrupar o material harmônico de tais passagens em função, precisamente, de suas semelhanças
intervalares – ora separando notas que ocorram em sincronia, ou que estivessem fraseologicamente
agrupadas, ora agrupando segmentos de acordes a segmentos de frases melódicas etc. (cf. Ex. 27, p.
58, acima) –; em parte – e isto sim há de concernir à prática composicional em questão –, pela já
mencionada concepção estendida de motivo em Schoenberg, a qual abarca também acordes, e não
apenas unidades melódicas. Notando-se que, (a) na ulterior prática dodecafônica, um de seus
princípios técnicos vem a ser precisamente a ambivalência da série e de segmentos desta para
formar tanto melodias, como acordes (ver Schoenberg: 1950[1941/1948], pp. 109 e 116 ff.); (b) que
Schoenberg, em Funções Estruturais… (p. 217), aponta para uma construção “melódica” – “mais
sucessiva que simultânea” – de seus acordes já em obras como o Pierrot Lunaire (1912) e Die
glückliche Hand (1913) e; (c) que, em obras suas e de seus discípulos, contemporâneas ou
anteriores ao Op. 11 – como sua Sinfonia de Câmara no 1 (1906), ou a Sonata, Op. 1 (1909) de
Berg (Ex. 59a e b) –, bem como na própria obra em questão (Ex. 59c), encontramos passagens em
que motivos melódicos proeminentes são acompanhados por acordes de mesma constituição
intervalar; faz-se razoável cogitar que diversos dos agregados harmônicos presentes na obra em
questão, cujas respectivas constituições intervalares sejam semelhantes àquelas dos principais
motivos melódicos da obra, sejam de fato derivados destes.
96
Ex. 59: (a) Schoenberg: Sinfonia de Câmara no 1, número 78 de ensaio. Adaptado de Leibowitz: 1949, p. 37; (b) Berg:
Sonata, Op. 1, cp. 8-9; (c) Schoenberg: Op. 11, no 1, cp. 34-5.
Por sua vez, abordagens ao Op. 11 – ou, de modo geral, a obras posteriores de Schoenberg e
seus discípulos – que visem a identificação, na peça, de relações funcionais hão de lidar com alguns
problemas colocados pela obra e pela prática composicional de Schoenberg de então.
Primeiramente, (1) que a reiterada necessidade de ‘renúncia’ à tonalidade, por parte de Schoenberg,
pudesse implicar em decisões composicionais que visassem, precisamente, o obscurecimento ou a
diluição de possíveis centralidades tonais e relações funcionais. Também perante tal ‘renúncia’ à
tonalidade, (2) que o processo composicional da obra se pudesse dar, em boa parte, por meio de
procedimentos fundados em lógicas alternativas à funcionalidade tonal e que fossem operados de
maneira independente a uma elaboração funcional prévia – i. e., aquilo que, sob uma perspectiva
funcional, denominei, pouco acima, ‘dissonância processual’ e de que a supracitada construção de
acordes por disposição vertical de material melódico é exemplo possível –; que, portanto, diversas
das relações funcionais identificadas na peça possam ser assumidas apenas a posteriori. Em terceiro
lugar, (3) que a obra seja passível de interpretação em diferentes tonalidades [Tonarten] – de fato,
Straus (2005, p. 166) aponta para análises do Op. 11, n o 1 tanto em Sol (a exemplo de Ogdon e
Leichtentritt, citados acima), como em Mi (Brinkmann: 1969) e Fa# dominante, ou uma espécie de
Si implícito (Benjamin: 1984) –, o que, em nossa compreensão, não exclui a possibilidade
(aparentemente simpática ao ideal schoenberguiano de “pantonalidade”) de que tais centralidades
coexistam e interajam (ver Cap. III. 2, pp. 122 ff., adiante). Por fim, (4) que poucos acordes no Op.
11 (ou demais obras de Schoenberg à época) serão sequer identificáveis de maneira unívoca com
qualquer dada tríade; que, assim, a exemplo dos acordes errantes (ver pp. 49 ff., acima), as
possíveis fundamentais de tais acordes permaneçam latentes até que haja resolução de tais acordes,
ou das notas que os desviem de suas supostas matrizes triádicas e; que, fundado em sua tese da
97
“emancipação da dissonância”, Schoenberg deliberadamente não resolva a maior parte das notas e
acordes que uma abordagem funcional deva assumir como dissonantes. Devemos, contudo, ressaltar
que alguns dos problemas ora elencados já se faziam presentes em obras anteriores ao Op. 11 e mais
claramente inseridas em uma tradição tonal-funcional, como o atestam alguns dos exemplos já
examinados em nossa exposição.
Primeiramente, quanto à possibilidade de interação entre funcionalidade tonal e lógicas
alternativas a esta, não apenas demonstramos no Cap. II. 4. 4, pouco acima, como procedimentos
fundados em tais lógicas alternativas podem ser, com frequência, encontrados em obras comumente
entendidas como tonais, como, em alguns dos casos examinados, demonstramos também como os
produtos de tais procedimentos poderiam, ainda assim, ser interpretados funcionalmente (ainda que
não-univocamente e a posteriori), ou, mais simplesmente, integrar-se aos contextos funcionais das
obras em questão. Ademais, dentre os casos abordados, devemos ressaltar que alguns envolviam,
precisamente, a constituição de acordes por meio de elaboração motívica, semelhantemente,
portanto, ao que comumente se encontra em Schoenberg: víramos, e. g., como Mozart, no Allegro
da Sinfonia no 40, produzira um acorde não aprioristicamente funcional por meio da sobreposição
de distintas formas do motivo principal da obra direcionando-se, encadeadas, à dominante da
Haupttonart (p. 78, acima, Ex. 41) – e cabe observar que Schoenberg aborda tal acorde no
Tratado… (pp. 455 e 510) –; como o acorde de Tristão, em Wagner, ao assumir caráter motívico,
vem a ser empregado (transposto e invertido) também em um encadeamento dificilmente
interpretável como aprioristicamente funcional; como, se em Tristão… esse mesmo acorde se
desdobrara eventualmente em um motivo melódico (sobretudo no motivo orquestral do “Lausch’,
Geliebter!”, ato II), em Salome, de Strauss, inversamente – e em procedimento bastante mais
próximo ao que ora se observa em Schoenberg –, as notas constituintes do Leitmotiv associado à
protagonista vêm a dispor-se verticalmente, no recitativo final, para constituir um acorde também,
por si mesmo, dificilmente interpretável como sequer originado de uma tríade. Em todos e cada um
dos casos, conforme já colocado, devemos observar que os acordes em questão vêm a integrar-se a
um contexto funcional, ainda que suas respectivas funcionalidades (não necessariamente unívocas)
possam ser entendidas como assumidas apenas a posteriori – o acorde do cp. 10 do Prelúdio de
Tristão… (bem como suas possíveis funções) foi já discutido acima (pp. 75-6, acima) e o acorde de
Strauss será discutido pouco adiante (pp. 100-4).
Quanto à dificuldade em interpretar as distintas relações funcionais identificáveis na obra
como integradas sob a égide de uma única centralidade tonal; ou à possibilidade de que diversos
acordes e passagens – e, em última instância, a obra, em sua totalidade – sejam igualmente passíveis
de interpretação em mais de uma tonalidade [Tonart], devemos lembrar que, afora tais propriedades
serem, ao menos localmente, bastante comuns em boa parte do repertório de tradição tonal – como
98
atestam, de modo geral, os acordes errantes, ou as passagens modulatórias (em que parte de suas
progressões harmônicas tende a ser interpretável tanto em função da Tonart de origem, como da
Tonart por vir) –, há, no processo de extensão da tonalidade, também uma tendência à
intensificação e à amplificação estrutural das ambiguidades concernentes à centralidade das obras.
Assim, tomando-se uma vez mais por exemplo o Prelúdio de Tristão…, já em 1904 (anteriormente,
portanto à escrita do Op. 11 de Schoenberg), Guido Adler comentara como a obra não deveria ser
entendida como relacionada a uma única tônica, mas a “Lá menor e Dó maior e menor” (op. cit., p.
274); Wagner, ele mesmo, concluíra em tonalidades distintas as versões para encenação (Dó menor)
e para concerto (Lá maior); e Bailey, em sua edição crítica da obra (1985), comenta como Wagner
emparelha as tonalidades de Lá (menor e maior) e Dó (maior e menor) de tal modo a estabelecer,
em larga-escala, “um complexo de dupla-tônica” (op. cit., pp. 121). Na Sonata, Op. 1 de Berg, por
sua vez, embora as respectivas cadências ao fim da primeira frase (cp. 2-3) e da peça (cp. 173-8)
afirmem enfaticamente si menor como uma tônica para a obra, é notável que seus compassos
iniciais (como o demonstra o Ex. 60, abaixo) sejam igualmente interpretáveis – sem que a
identificação de uma destas tonalidades possíveis demande recursos analíticos muito mais
sofisticados do que a outra – em Si menor e em Dó menor, a despeito de que tais tonalidades se
conectem apenas remotamente.
99
mencionados por Schoenberg – que a dispensa de resolução imediata de tais acordes se dá, em boa
parte, pela assunção de que suas respectivas e específicas tendências à resolução – i. e., a teleologia
que, historicamente, se lhes torna inerente – impliquem em que tais resoluções se façam, ainda que
não efetivadas, subentendidas já nos próprios dissonantes. Oferecêramos já como exemplo a
dominante final da primeira canção do Dichterliebe de Schumann (Ex. 34b, p. 70, acima) e, quanto
às dominantes ao fim das primeiras frases do Prelúdio de Tristão… – possivelmente um dos mais
claros exemplos históricos dessa assunção de uma tão íntima conexão entre dissonantes e suas mais
convencionais ou prováveis resoluções –, Bailey escrevera, em seu comentário à obra, como a
dominante viria então a “sugerir ou apresentar sua tônica por implicação e, portanto, substituí-la”
(1985, p. 125, trad. nossa).
Sobre o supracitado acorde do recitativo final de Salome – também sem imediata resolução
–, há dois fatores que tornam seu caso mais complexo do que o das dominantes de Schumann, ou de
Tristão… e que o aproximam do Op. 11 de Schoenberg23: primeiramente, que, ao contrário do caso
das dominantes com sétima (ou mesmo de tétrades diminutas, dominantes francesas, germânicas
etc.), tal acorde de Salome não seja de uso comum em qualquer prática composicional inserida na
tradição tonal e anterior à obra em questão; segundo, que tal acorde não se reporte mais claramente
a uma única tríade de origem; que tal acorde seja, portanto, errante e, por isso, tenda a ser mais
dependente de resolução [do que um acorde de dominante] para que se evidenciem suas possíveis
fundamentais e, em decorrência destas, suas possíveis funcionalidades; que, ao contrário dos
acordes errantes mais convencionais, tal acorde seja antes originado – conforme já apontado e em
semelhança a alguns dos acordes encontrados no Op. 11 de Schoenberg – de uma disposição
vertical do Leitmotiv da protagonista (ver Ex. 55b, p. 90, acima) do que de uma formação triádica e,
assim, não apresente sequer uma matriz triádica imediatamente evidente. Por outro lado, há também
fatores que favorecem uma integração funcional de tal acorde na passagem em questão e na obra:
• primeiramente, embora tenhamos apontado que tal acorde não seja de uso comum em
qualquer prática que preceda a composição de Salome, podemos, ainda assim, reconhecer
nele semelhança com outros acordes mais convencionais – ou, ao menos, eventualmente
empregados – em tais práticas precedentes. Afora o lá natural pedal que atravessa toda a
passagem e admitindo-se inversões, é possível, e. g., compreendê-lo como semelhante a um
acorde não apenas plausível em práticas composicionais anteriores, como mesmo
empregado em Bach: uma tétrade diminuta sobreposta à fundamental de uma de suas
resoluções possíveis. Assim, se no Prelúdio no 1 do Cravo Bem-Temperado, BWV 846,
23
É interessante observar que, segundo Ross (2010, p. 198), Schoenberg teria recebido de Mahler, em 1905, a
partitura de Salome e teria estado em sua estreia austríaca, em 1906.
100
encontramos no cp. 28 um ré dominante sem fundamental e com nona bemol ([ré]-fá#-lá-
dó-mi bemol) sobreposto ao baixo pedal em sol (dominante da Haupttonart Dó) (Ex. 61a),
podemos entender o acorde de Salome, em questão, como parcialmente correspondente a
este, transposto meio-tom acima (fá##-lá#-dó#-mi, sobreposto a sol#) e em outra inversão e
distribuição (Ex. 61b). Ademais, se em Bach tal acorde estivera integrado à Haupttonart de
Dó maior e progredira diretamente a uma inversão da tônica (sobre o baixo pedal na
dominante), a semelhança e possível afinidade entre ambos os acordes poderia apontar para
uma integração do acorde de Salome a uma tonalidade de Dó# (maior e/ou menor), vindo a
corresponder parcialmente – i. e., ainda com exclusão do lá natural – a um ré# dominante
(dominante da dominante de Dó#), sem fundamental e com nona bemol, sobre pedal em sol#
(dominante de Dó#);
Ex. 61: (a) Bach: BWV 846, cp. 28; (b) Strauss: Salome, acorde no no 355 de ensaio, excluído o lá natural (redução).
• se, por outro lado, examinarmos o conteúdo harmônico de tal acorde levando em conta o
pedal em lá natural e o trinado entre lá e si bemol, mas subtraindo-lhe o sol# – e, ademais,
observando que lá# é enarmonicamente equivalente a si bemol e fá##, a sol natural –, o
acorde passa a assemelhar-se antes a um lá dominante, com sétima e nona bemol, do que ao
ré# dominante a que nos havíamos referido. Devemos contudo lembrar que, afora lá
dominante ser de fato enarmônico a uma dominante germânica sobre ré#, há, na tradição
tonal, diversos casos em que uma dominante germânica é efetivamente tratada como sua
enarmônica, ou – compreendendo-se de maneira inversa – em que uma dada dominante é
resolvida tal como o seria sua correspondente germânica. Vimos claro exemplo disso em
Schumann (Cap. II. 3, Ex. 22, p. 52, acima) e o assumíramos como uma das interpretações
possíveis para o acorde do cp. 10 do Prelúdio de Tristão… (Ex. 38c, p. 76, acima). Assim,
faz-se possível uma hipotética interpretação do acorde de Salome como uma espécie de lá
dominante sobreposta a um representante (sol#) de sua resolução (por assim dizer)
“germânica”. Ainda nesse caso, o acorde em questão poderia ser considerado como
integrado a uma tonalidade de Dó# (maior e/ou menor), ou de Sol#.
101
Um segundo fator que favorece a integração funcional do acorde em questão (a despeito de
que este não seja imediatamente resolvido) é que, para além de sua possível afinidade com os
acordes mencionados nos tópicos anteriores – a qual, como vimos, apontaria já para algumas
tonalidades [Tonarten] nas quais seria mais plausível interpretá-lo funcionalmente –, há, no
recitativo, bem como em passagens anteriores e posteriores da ópera, indícios para sua integração
na já cogitada tonalidade de Dó#. Afora a própria notação adotada por Strauss ser condizente com
nossa interpretação hipotética (sol# corresponde, de fato, à dominante de Dó#; fá##, lá#, dó#, mi
constituem o ré# dominante; lá e si bemol seriam, respectivamente, a fundamental e a nona bemol
da correspondente germânica do ré# dominante [i. e., lá dominante]), deve-se observar que:
• a frase inicial de soprano no recitativo, acompanhada pelo acorde em questão, para além de
ser condizente com tal interpretação, encerra-se com um arpejo da tríade de dó# menor;
• dentre as demais passagens do recitativo, aquelas mais sugestivas de, ou mais estáveis sobre
algum dado centro local são, todas, proximamente relacionadas a uma possível Haupttonart
de Dó# maior, desde que consideradas enarmonicamente. Assim: a segunda frase de soprano
no recitativo (no 356 de ensaio), conclui-se com um arpejo de lá# menor, paralela de Dó#
maior; o primeiro momento arioso do trecho (no 357) é acompanhado por uma tríade estável
de fá maior, enarmônica a mi# maior, dominante da paralela (lá#) de Dó# maior; o segundo
momento arioso (no 358), por sua vez, transita entre fá# maior e fá# menor, subdominantes
maior e menor, respectivamente, de Dó#; ao fim do monólogo (nos 359-61), já em caráter
deliberadamente arioso, Dó# maior é de fato expresso de maneira inequívoca e enfática.
Encadeando-se as tríades localmente centrais (seja de maneira explícita ou implícita) nos
respectivos trechos mencionados e suprimindo-se retornos do acorde ora examinado, temos,
em larga escala, não apenas uma convergência sobre Dó#, mas, inclusive, uma progressão
relativamente convencional, como se vê pelo Ex. 63, abaixo;
102
Ex. 63: Sucessão das tríades (enarmonizadas) localmente centrais entre os nos 355 a 361 de ensaio de Salome,
suprimindo-se retornos imediatos a Dó#.
• se, por um lado, indicamos que o trinado lá-si bemol, no recitativo, corresponderia à
fundamental e à nona bemol de um lá dominante, por outro, é também possível (e não
excludente à primeira interpretação) compreender o lá natural como representativo da
tonalidade menor de Dó# e o si bemol (enarmônico de lá#), como representativo da
tonalidade maior, sendo assim tal trinado agente dessa ambiguidade. Nos compassos iniciais
da obra, em que, junto à exposição do Leitmotiv de Salome, violinos II e flauta 1 ascendem
consistentemente por passos cromáticos de sol# a ré (cp. 2-8), a passagem de lá natural para
lá# é acompanhada de uma progressão da forma menor de dó# para sua forma maior,
afirmando assim a associação – já inerente às bases diatônicas convencionais das Tonarten
em questão – de tais notas às respectivas homônimas de Dó#;
103
• finalmente, deve-se notar que a cadência final sobre dó# maior, no no 361 de ensaio,
consiste, basicamente, em uma progressão de lá dominante – conforme já colocado, uma
espécie de dominante germânica da dominante de Dó# – diretamente para a tônica dó# (Ex.
65a) – e já na chegada a Dó# maior via fá# menor, no no 359, uma progressão de lá maior
(agora, enquanto paralela da subdominante menor) a dó# maior ocorrera na harpa (Ex. 65b).
Ademais, ao lá dominante da cadência final, sobrepõem-se, melodicamente, notas
representativas do sol# dominante, produzindo, assim, apesar da maior clareza harmônica
dessa progressão, um efeito análogo ao do acorde do recitativo aqui examinado, de
sobreposição dessa dominante germânica a uma ou mais notas representativas de sua
resolução mais convencional – i. e., o sol# dominante que, normalmente, intermediaria sua
relação com a tônica dó# – e, em maior evidência aural, de um intenso cromatismo vertical.
Ex. 65: Strauss: Salome, (a) cadência sobre Dó# maior, no no 361 de ensaio, redução; (b) chegada a Dó# maior, no 359
de ensaio, parte de harpa.
Podemos entender, em suma, que, se o acorde em questão é raro – quiçá inédito, até então –
e, assim, dificilmente compreensível como historicamente emancipado quando da composição de
Salome, por outro lado, para além de haver precedentes, em repertório, tanto de acordes
morfologicamente semelhantes a este, como das dissonâncias que o desviariam de tais acordes,
parece haver esforços na própria obra (tanto localmente, como ao longo desta) para que se torne
específica e expressiva funcionalmente sua ocorrência densa, grave, brevemente encoberta, a cada
ataque, pelo cluster frequência do tam-tam e, sobretudo, sem resolução imediata. (A esse tipo de
processo em que, na elaboração de uma obra singular, um dissonante ou dissonância não
concebidos como funcionais vêm a assumir, em termos funcionais, uma participação também
singular em sua composição, denominamos aqui ‘integração funcional’. Podemos entender que
104
processos históricos de emancipação sejam subsidiados por processos singulares de integração
funcional. Esse conceito, antecipamos aqui, será central a toda a terceira parte deste trabalho,
adiante.)
Sobre o Op. 11 de Schoenberg, também aqui alguns indícios colhidos ao longo da peça
podem ajudar a endossar uma ou outra interpretação de seus dissonantes não resolvidos. Contudo,
se Ogdon, e. g., interpretara o acorde dos cp. 4-5 como um sol maior, tônica, sobre um baixo em
sua napolitana e do qual estaria desdobrado um arpejo de sua dominante (ver Ex. 28, p. 59, acima),
o fato de os cp. 9-10 serem interpretáveis como um ré dominante (com sétima, nona e quarta
aumentada), progredindo a uma espécie de sol maior/menor com sétima, no cp. 11 (Ex. 66a) e; de,
nos cp. 15-6 (antes de um parcial retorno ao material dos cp. 9-10), ser reiterada uma linha melódica
típica de progressões de napolitana a dominante (Ex. 66b) – intercalada com e sobreposta à
ressonância de uma espécie de dominante da dominante de Sol –; o fato de que ambas as passagens
citadas ocorram, ainda assim, deve ser examinado perante (a) a posição do próprio Schoenberg, à
época, de que a tonalidade seria “dispensável” e (b) perante sua manifesta experimentação, então,
(b1) com uma não-necessidade de resolução generalizada (por ele denominada “emancipação da
dissonância”) e (b2) com a decorrente renúncia a um centro tonal. Assim, para além da ausência
quase completa de resoluções convencionais e imediatas na obra, é possível supor que vestígios
como os supracitados se deem aqui antes intuitivamente, ou mesmo de maneira fortuita, do que por
um efetivo e consistente esforço por tornar funcionalmente plausíveis os dissonantes sem resolução
da obra. Distintamente do que observamos em Salome, a atribuição de funcionalidade a tais
dissonantes inauditos, em Schoenberg, dificilmente se daria no processo composicional da própria
obra, mas antes – ainda que diante do potencial ineditismo – na história, parecendo bastar que tais
dissonantes, parafraseando o autor, “quase pudessem ocorrer” em Bach, Mozart, Chopin, ou
Wagner. Como colocáramos pouco acima, a tonalidade, estendida ao ponto em que estava em
Mahler, Strauss, ou Reger, poderia ser – e, em boa medida, estaria já, na obra em questão –
abandonada à sua própria capacidade de pôr em relação, em seus termos – funcionais –, tais
dissonantes.
105
Ex. 66: Schoenberg: Op. 11, no 1, (a) cp. 9-11; (b) cp. 14-17.
Talvez caiba, então, a uma abordagem funcional ao Op. 11, mais do que supor tonalidades
consistentes para a obra, ou funções pretensamente inequívocas para seus acordes e progressões,
colocar questões como as seguintes: há, em repertório, precedentes – exatos, ou semelhantes – para
tais acordes, progressões e regiões tonais ‘dissonantes’ (i. e., compreensíveis como dissonantes em
uma abordagem funcional)?; como eles vieram a ocorrer, ou “quase poderiam ter ocorrido” em
práticas composicionais anteriores?; como, morfológica- e contextualmente, eles se desviam (se este
for o caso) de seus precedentes ou hipotéticos precedentes históricos? Examinemos, por meio de
tais questões, os onze compassos iniciais da obra (Ex. 67, p. 108, pouco abaixo) – os quais podem
ser entendidos como uma pequena unidade, antes da mudança de textura e andamento no cp. 12 –:
106
• o acorde (aqui enarmonizado) si bemol-lá-dó#, no cp. 3, associado ao fá-mi melódico que se
lhe sobrepõe, seria, no contexto de uma tonalidade mais convencional, facilmente
interpretável como um lá dominante, com baixo em sua nona bemol e suspensão de sexta
para quinta (cf. Ogdon: 1981, pp. 172-3): dominantes com nona bemol, mas sem sétima,
podem ser encontradas em repertório ao menos desde Beethoven (ver, e. g., Op. 109, cp. 9 e
10) – e, neste caso de Schoenberg, tal acorde estaria em uma inversão menos convencional,
mas, evidentemente, possível em repertório precedente –; e a presença do fá já no compasso
anterior fortalece a caracterização do fá-mi como suspensão.
Ademais, se o acorde anterior poderia ser interpretado como um dó# germânico (por meio
da comparação com Chopin), deve-se aqui notar que: (1) sua progressão não a fá# (maior ou
menor), mas a sua paralela maior (lá), seria não apenas possível em práticas precedentes,
mas mesmo comum – tivéramos exemplo já em Bach, no Ex. 43a, p. 80, acima – e; (2) que a
equivalência enarmônica entre mi# (cp. 2) e fá natural (cp. 3) seria, em práticas precedentes,
favorecida pela supracitada ambivalência, em tais práticas, entre dominantes germânicas
(como o suposto dó# dominante do compasso anterior) e suas correspondentes enarmônicas
(no caso, um sol maior com sétima).
• Nos cp. 4 e 5, embora os fragmentos (quase idênticos) constituídos por mi-dó-si bemol
sejam notados tal como o seria, convencionalmente, um dó dominante, tanto a reiterada
progressão melódica a si natural (cp. 4 e 6), como a relação mais próxima (conforme aqui
suposto) dos acordes anteriores com fá#, favorecem uma interpretação de tal fragmento
como representativo de uma dominante italiana fundada em fá#, em que – a exemplo de
Leichtentritt (1951, p. 429) e Ogdon (1981, p. 173) – o si bemol notado seria uma enarmonia
de lá#. Tal interpretação pode ser significativa quanto ao fragmento que, em ambas as
ocorrências, se lhe segue.
107
Ex. 67: Schoenberg: Op. 11, no 1, cp. 1-11.
• Como já apontado, o acorde sol#-ré-si-sol dos cp. 4, 6 e 8, junto ao segmento melódico que
o acompanha (ré-fá#-lá-lá#-si) fora interpretado por Ogdon como um sol maior, sobre um
baixo representativo de sua napolitana (lá bemol) e sobreposto a um arpejo de sua
dominante (ré-fá#-lá) e, de fato, haveria, sobretudo nos cp. 9-10 e 15-17, vestígios que
apontariam para uma integração de tal acorde a uma Tonart de Sol. Entendemos, contudo,
que, sobretudo em sucessão aos cp. 1-4, tal fragmento seja também passível de interpretação
em uma Tonart de Fá#.
Primeiramente, entendemos que a possibilidade de se interpretar o agregado mi-dó-si bemol
[lá#] como um fá# dominante, associada ao fato de que o segmento melódico ré-fá#-lá-lá#-
si delineia uma tríade de si menor (resolução convencional de tal fá# dominante), seja já
sugestiva de que o acorde em questão pudesse ser interpretado como um si menor,
subdominante menor de Fá#. Nesse caso, o sol# e o sol natural seriam respectivamente
compreendidos como sexta natural e bemol (napolitana) de si menor, sendo as sextas, desde
Rameau (ver 1726, pp. 61 ff.), comumente entendidas como as notas não-triádicas que
caracterizariam a subdominante. Essa coexistência das duas sextas encontraria precedentes,
ainda que menos explícitos, em Strauss: em “Blindenklage”, Op. 56, no 2, já no primeiro
compasso, um sol menor é alternativamente acompanhado por ambas suas sextas, natural e
bemol (Ex. 68, pouco abaixo); no acorde acima examinado de Salome, por sua vez,
apontáramos já como o trinado entre lá natural e si bemol [lá#] apresentaria
simultaneamente as respectivas sextas de ambas as tonalidades menor e maior de Dó#.
108
Ademais, há na referida passagem de Schoenberg bastante semelhança com o acorde de
Salome, sobretudo se considerarmos o lá natural e o lá# como cromatização em direção ao
si e, assim, omiti-los de nossa comparação. Conforme indicado no Ex. 69, abaixo, ao
agregado sol#-ré-fá#-si-sol faltaria apenas o mi# para que tal acorde fosse uma transposição
segunda maior abaixo (em outra inversão) do acorde de Salome. Se interpretáramos o
acorde de Salome como híbrido entre ré# e lá dominantes, com possível resolução em sol#
(dominante de Dó#), talvez esta quase transposição segunda abaixo pudesse ser entendida
como apontando para uma possível resolução sobre fá#. Se, (a) por um lado, falta ao acorde
do Op. 11 precisamente o mi#, sensível de fá#, (b) por outro, um si menor subdominante,
com o qual o acorde em questão se assemelha, apontaria, em práticas mais convencionais,
precisamente para uma progressão a dó# dominante – e se (c) consideráramos, a respeito de
Wagner, que as dominantes subentenderiam em si suas resoluções a ponto de quase as
substituírem, talvez possamos considerar que uma subdominante com sexta subentenda a
dominante que convencionalmente se lhe sucederia, de modo que o mi#, embora ausente,
possa ser subentendido enquanto parte de uma possível resolução do acorde em questão,
como virtual terça de um dó# dominante, parcialmente representado no segundo tempo do
cp. 5 e última colcheia do cp. 6 pelo sol# no baixo e pelo si que completa a ascensão
melódica de tais passagens. A repetição quase idêntica dos cp. 4-5 nos cp. 5-6 formaria um
ciclo em torno de fá#: fá# dominante (italiana), si subdominante (com duas sextas), dó#
dominante (virtual), fá# dominante etc.
Ex. 69: (a) Acorde formado no último tempo do cp. 4 de Schoenberg: Op. 11, no 1; (b) acorde do no 355 de Salome,
transposto segunda maior abaixo.
109
• No cp. 7, sobretudo pelo movimento melódico do baixo (ré bemol-dó), o fragmento mi-dó-si
bemol – acima entendido como uma possível dominante italiana sobre fá# – passa a integrar
mais explicitamente o que seria convencionalmente um dó dominante, com sétima e nona
bemol; nos cp. 9 e 10, por sua vez, desenha-se algo que, em Chopin (ver pp. 85-6, acima),
Liszt, ou no próprio Schoenberg do Quarteto no 1, Op. 7 (1905), poderia ser entendido como
um ré dominante, com sétima, nona e quarta aumentada (ou cromatização da quarta
aumentada [sol#] para a quinta [lá]) e, correspondentemente, tal acorde progride a uma
espécie de sol, com sétima e nona. Se em Wolf (p. 53, acima), ou na interpretação de Kurth
a respeito do acorde do cp. 10 do Prelúdio de Tristão… (cf. p. 75, acima), víramos o acorde
sobre o IV grau de uma dada Tonart, acrescido de sétima, progredir à tônica, podemos
entender que a passagem entre os compassos 7 e 11 do Op. 11, no 1, “quase poderia ocorrer”,
em Wagner, Wolf ou Strauss, em uma Tonart de Sol, de modo que, na terceira ocorrência do
agregado sol#[lá bemol?]-ré-fá#-si-sol, no cp. 8, parece ser mais plausível a interpretação de
tal agregado em Sol, como o propusera Ogdon, do que nossa interpretação, no contexto dos
cp. 4-5 e 6, de tal agregado como uma espécie de si menor com duas sextas, subdominante
de Fá#.
Que possamos atribuir funcionalidades (a posteriori) distintas – e em Tonarten distintas – a,
basicamente, um mesmo agregado harmônico em suas várias ocorrências não pode ser, em
si, entendido como uma novidade com relação a práticas precedentes da tradição tonal,
primeiramente, porque, como víramos, é característico dos acordes errantes, de modo geral
– e esse é, aqui, o caso –, que estes possam ser interpretados como portadores de distintas
fundamentais e como se reportando a distintas tonalidades. Em segundo lugar, devemos
lembrar que a conceituação primeira de tonalité moderne, em Fétis, propunha como um
aspecto determinante desta a possibilidade modulação – em oposição à “unitonicidade”
(para Fétis) de Palestrina e precursores – e que, consistindo a modulação, basicamente, na
tonicização de uma outra tríade que não a previamente tonicizada, a modulação há de
implicar, precisamente, em uma reinterpretação – “Umdeutungen”, em Riemann (1890 e
1893) –, em uma nova funcionalização dos distintos acordes nela envolvidos. Assim, se, em
práticas precedentes, parte dos acordes desse início do Op. 11, n o 1 poderia – ou “quase” –
ter ocorrido em Fá# e parte em Sol, talvez a passagem possa ser entendida, grosso modo,
como “modulatória” (cf. p. 125, adiante) – e a própria relação entre uma dada Tonart e a
região de sua napolitana, a exemplo do que aqui se observa, sob uma tal interpretação,
encontra diversos precedentes em repertório, tanto em Beethoven, Schubert, Chopin, ou
Wolf, como, de fato, mesmo em Bach.
110
Seria possível prosseguir: no cp. 11, se considerarmos o lá como nona de um sol dominante
executado pela mão esquerda e o si bemol como uma cromatização não resolvida, em direção a um
si natural, podemos identificar semelhança entre tal compasso e os tempos centrais do cp. 16 do
Prelúdio de Tristão… (ver Ex. 70, abaixo); conformemente, a passagem do primeiro para o segundo
tempo do cp. 12 poderia, de fato, ser efemeramente harmonizada por uma cadência de sol
dominante sobre um dó menor com sexta, subdominante de Sol; o gesto ascendente do segundo
tempo do cp. 12 tem, no início, conteúdo harmônico condizente com um dó menor com sexta e,
adiante (ré-sol#[lá bemol?]-dó-mi), conteúdo condizente (tal como nos cp. 9-10, comentados acima)
com um ré dominante, com nona e quarta aumentada, ou quinta bemol; a descida cromática (por
saltos de nona menor) ao fim desse compasso, com dó#-si bemol-lá-sol#-sol natural, assemelha-se
ao arpejo de um possível lá dominante, com sétima, nona bemol e sensível de sua fundamental – o
qual, como se demonstra no Ex. 71, pode ser encontrado com as exatas mesmas classes de alturas
no cp. 142 do Mov. I da Sinfonia no 9 de Mahler, também de 1909 –; e o fá# grave, no início do cp.
13, para além de sensível de Sol e, portanto, possível represente da dominante de tal Tonart, seria de
fato a resolução melódica mais convencional da sétima de tal lá dominante, embora aqui tal
progressão melódica não se dê por semitom, mas por nona menor.
111
Ex. 71: (a) Schoenberg: Op. 11, no 1, cp. 12; (b) Mahler: Sinfonia no 9, Mov. I, cp. 142.
Com um tal exame desses compassos iniciais do Op. 11, n o 1, temos por principal intenção
demonstrar como (a) o manifesto desinteresse de Schoenberg pelo estabelecimento de qualquer
dada tônica, (b) a ausência de resolução, na peça, da maior parte das notas e acordes que se possam
entender (sob uma perspectiva funcional) como dissonantes, ou (c) a possível primazia, no processo
composicional, de procedimentos alternativos à funcionalidade e independentes de uma elaboração
aprioristicamente funcional não apenas “não excluem totalmente” – parafraseando aqui o próprio
Schoenberg – “o estabelecimento de uma tonalidade”, como não excluem também a possibilidade
de que relações funcionais sejam estabelecidas (ainda que a posteriori) em vários níveis de
organização harmônica: entre notas, ou entre estas e os acordes supostos em meio aos quais elas se
dão; entre tais acordes supostos entre si, em progressões, bem como com relação às respectivas
Tonarten possivelmente representadas por eles; entre as distintas regiões tonais sugeridas ao longo
da obra etc. Que uma interpretação como a aqui proposta – orientada pela busca por possíveis
precedentes históricos para cada elemento harmônico da obra – seja em algum nível real na própria
peça (ainda que não unívoca, não excludente de outras interpretações e a posteriori) e; que a
realidade aqui clamada de uma tal interpretação não diga respeito apenas à extensão dos recursos de
análise, mas à própria obra, fazem-se demonstráveis pela possibilidade de que, sobre a obra
112
inalterada (a não ser por enarmonias) e com emprego de procedimentos semelhantes aos que se
possam deduzir do próprio Op. 11 – sua peculiar elaboração motívica, o intenso cromatismo etc. –,
se componha uma linha melódica ad libitum que integre funcionalmente os vários dissonantes
identificados na interpretação proposta. Uma tal linha se apresenta no Ex. 72, na página seguinte.
113
Ex. 72: Op. 11, cp. 1-13, acrescido de clarineta ad libitum.
114
Parte III
115
III. 1. Participação da integração funcional na estruturação formal de obras
116
Ex. 1: Schubert: “Auf dem Flusse”, cp. 1-15.
A partir do cp. 48, contudo, sobre o texto “Mein Herz, in diesem Bache erkennst du nun
dein Bild?, ob's unter seiner Rinde wohl auch so reißend schwillt?” (“Meu coração, reconheces
nesse riacho tua imagem?, se sob sua crosta também ele se incha violentamente?”), passam a
proliferar modulações, progressões, ou, mais simplesmente, proximidades diacrônicas entre regiões
tonais e acordes que, analogamente às tonalidades iniciais, distem entre si por um semitom
descendente, mas cujas relações funcionais, ainda que remotas e indiretas, se façam mais claras,
precisamente por serem intermediadas pela Haupttonart Mi. Assim:
• no cp. 48 se estabelece Sol# menor e, por meio de uma cadência deceptiva de sua
dominante sobre sua paralela (si maior) com sétima (cp. 52), retorna-se à Haupttonart, para
em seguida, nos cp. 56-57, enfatizar a região da própria paralela de Mi, i. e., Sol maior (ver
Ex. 2, abaixo). Desse modo, faz-se claro que Sol# menor se trate da paralela do V grau da
Haupttonart e Sol maior, da paralela da Haupttonart.
117
• Nos cp. 57-58, por um procedimento semelhante ao empregado nas modulações entre Mi
menor e Ré# menor, passa-se de Sol maior a Fá# menor por meio do acorde-pivô de ré
maior – comum às Tonarten convencionais de ambas as regiões aqui envolvidas. Nos
compassos 60 a 62, por uma progressão do tipo II-V-I, retorna-se de Fá# menor a Mi menor
(Ex. 2). Desse modo, Sol maior e Fá# menor relacionam-se aqui enquanto, respectivamente,
paralela e II grau da Haupttonart.
118
• Se, distintamente dos pares de tonalidades Sol# menor-Sol maior e Sol maior-Fá# menor, as
tonalidades iniciais da canção eram ambas menores, nos compassos 64 e 65, antes do
retorno definitivo à Haupttonart, a homônima menor de Sol vem a ser tonicizada (Ex. 3),
demonstrando-se, assim, a possibilidade de relação funcional entre Sol menor e Sol# menor
e entre Sol menor e Fá# menor.
Ex. 4: Sucessão das tríades localmente centrais ao longo da última estrofe de “Auf dem Flusse”.
Embora as relações sugeridas entre Sol# menor e Sol (inclusive menor), ou entre Sol (menor)
e Fá# menor não cheguem a esclarecer a específica relação funcional entre as duas tonalidades
iniciais, ainda assim, elas a enriquecem e singularizam, ao apresentarem, na própria peça, uma
variedade de maneiras como Mi menor e Ré# menor (ou Mi bemol menor) poderiam vir a ser
funcionalmente relacionadas.
Nessa intensa manobra modulatória, dois aspectos em especial devem ser ressaltados.
Primeiramente, há de se notar que, em todos os casos apresentados de possíveis relações funcionais
entre Mi menor e Ré# menor, tais relações se deem por intermédio de tonalidades inexprimidas na
canção, como: (a) por meio da Tonart fundada sobre o acorde-pivô – Si maior –, em que seriam,
respectivamente, sua subdominante menor e a paralela de seu V grau; (b) por meio – em analogia à
relação apresentada entre Sol# menor e Sol menor – de Dó maior/menor, em que seriam,
respectivamente, mediante da homônima maior e paralela menor (Mi bemol menor) da homônima
menor; ou, ainda – em analogia à relação apresentada entre Sol menor e Fá# menor – (c) por meio
119
de Dó# menor, em que seriam, respectivamente, sua paralela menor e seu II grau, i. e., uma espécie
de subdominante paralela. Assim, mesmo que a relação entre Mi menor e Ré# menor não se
aproxime, por meio desse processo, de qualquer univocidade, ela não deixa de se enriquecer, de se
especificar – ainda que a própria ambiguidade se lhe faça específica – e de assumir uma feição
singular na peça. (Ademais, se são múltiplas as tonalidades mediadoras de tais possíveis relações
funcionais entre Mi menor e Ré# menor; se elas, tão violentamente, constituem uma espécie de
cluster de regiões tonais; se elas, embora inexprimidas, podem subjazer às tonalidades expressas
pela canção – situar-se por sob a “crosta” destas –; então também esse cluster de “meta-tonalidades”
parece “encontrar sua imagem” no riacho congelado do poema.) Em segundo lugar, é notável o
vigor com que esse processo de enriquecimento e especificação das possíveis relações funcionais
entre as duas tonalidades iniciais da canção – i. e., o processo de integração funcional destas – se
manifesta na estruturação harmônica da peça, tanto ao protagonizar o específico delineamento do
processo modulatório da parte correspondente à última estrofe do poema de Müller, como ao traçar
na obra, como um todo, uma direção – intimamente vinculada ao poema – desde a relativa
estaticidade de seu início, a esse caráter intensamente modulatório de seu final.
Os processos singulares de integração funcional constituem, possivelmente, as melhores
sínteses, em termos pragmáticos, do que objetiváramos realizar neste trabalho – a saber, conciliar
abordagens à escrita harmônica que pudessem, a princípio, independer de uma lógica funcional às
possibilidades de estruturação harmônica propiciadas pela própria tonalidade (cf. p. 6, Cap. I. 1).
Por um lado, os processos de integração funcional se voltam, por definição, precisamente àquilo (o
dissonante, ou a dissonância) que não fora concebido funcionalmente, que não portaria ou
implicaria, de partida, em qualquer funcionalidade antevista e são, assim, especialmente permeáveis
à interação com abordagens à escrita harmônica alternativas (ao menos a princípio) à tonalidade
funcional. Por outro, por sua face “convexa”, a integração funcional não apenas constitui, ela
própria, uma possibilidade de estruturação harmônica peculiar à tonalidade, como tende a envolver,
singularmente, a cada vez, as várias outras dentre tais possibilidades, porquanto ela consiste
precisamente em conceder participação estrutural, em termos funcionais, ao objeto da integração.
Nesta última seção de nosso texto, buscamos finalmente cumprir com o objetivo por nós
assumido para este trabalho. Após argumentar, inicialmente, que centralidades e funcionalidades
identificadas a posteriori em dissonantes não concebidos funcionalmente tendem a ser não apenas
ambíguas, mas polivalentes – tendendo a coexistir, assim, em tais dissonantes, diferentes centros e
funções possíveis –, proporemos aqui os meios técnicos pelos quais entendemos que se possa,
consistentemente: (a) reconhecer possíveis centralidades locais e relações funcionais latentes
mesmo em acordes e passagens não concebidos funcionalmente, ou que, a princípio, não expressem
sequer os fundamentos morfológicos (triádicos, diatônicos etc.) da tonalidade funcional; (b)
120
ressaltar, seletivamente, centros e funções específicos dentre as centralidades e funcionalidades
‘difusas’ reconhecidas nos dissonantes examinados e; (c) elaborar composicionalmente as
funcionalidades e as possíveis inter-relações funcionais entre as centralidades locais identificadas.
Por fim, apresentaremos três relatos composicionais de obras distintas – uma inteiramente de minha
autoria; outras duas respectivamente compostas sobre obras pré-existentes de Schoenberg e de
Silvio Ferraz – que exemplifiquem singularmente processos de integração funcional.
121
III. 2. Funcionalidade ‘difusa’
122
fundamental e retardar em uma colcheia a ocorrência do mi bemol que caracteriza tal acorde como
menor, introduz-se na passagem o acorde em questão antes como uma subdominante dó, para que,
apenas em seguida, esta se caracterize como sua homônima menor. Por outro lado, quando do
retorno a mi menor, nos cp. 23-24, substitui-se na notação o mi bemol por um ré# e tal ré# vem a ser
efetivamente tratado como uma sensível de mi, vindo a ser resolvido sobre esta nota. Se, ademais,
notamos que a melodia do baixo nos cp. 22-23 – sobretudo se a comparamos à melodia dos cp. 1-4
da obra – poderia ocorrer não apenas em uma Tonart convencional de Dó menor, mas também – e
de maneira igualmente convencional – em uma Tonart de Mi menor, faz-se plausível interpretar que
os compassos em questão enunciam não tanto um dó menor, mas um si dominante, com a sexta sol
mantida como pedal, e com suspensões, no baixo, da nona bemol (dó) para sua fundamental, tanto
no cp. 22, como no 23. O dó menor, ou aparente dó menor da passagem em questão parece, em
suma, (a) introduzido como uma espécie de subdominante (dó), mas (b) resolvido como uma
dominante (si) e, em nosso entendimento, ele cumpre, ao menos parcialmente, com funções lato
sensu de ambas essas funções stricto sensu (cf. Cap. I. 2. 3, pp. 22 ff., acima), de modo que uma
interpretação não exclui a outra e que a funcionalidade de tal acorde possa ser entendida como
‘difusa’. Isto não significa necessariamente que ambas as funções em questão sejam igualmente
pronunciadas, nem que tal funcionalidade difusa seja estável: talvez possamos dizer que os
compassos em questão são ‘mais subdominantes’ no início e se tornam ‘mais dominantes’ ao se
aproximarem do retorno ao mi menor.
Uma interpretação semelhante se faz possível com relação ao acorde do cp. 10 de Tristão…,
embora este caso seja mais profundamente ambíguo do que aquele de Liszt. Víramos já ao menos
três interpretações possíveis para tal acorde. Grosso modo: como um mi dominante (de Lá), em
Kurth; como um fá menor com sexta, em Schoenberg; e, adicionalmente, demonstráramos como ele
poderia ser compreendido ainda enquanto uma espécie de dominante germânica de si, fundada
sobre dó. Uma vez mais, podemos defender que tais interpretações não se excluem, umas às outras,
e que cada uma destas se faça mais ou menos pronunciada conforme o compasso em questão venha
a ser relacionado a distintos segmentos do contexto em que se encontra: (1) vindo de sol dominante,
no cp. 7, e sendo o acorde do cp. 10 de fato enarmônico a um fá menor com sexta, parece ser de fato
123
reforçada, quando de sua introdução, sua relação com uma Tonart de Dó e, consequentemente, um
caráter de subdominante; (2) sendo a passagem introdutória do Prelúdio, como um todo, passível de
ser reportada a Lá menor, sendo o sol# do cp. 10 tratado, de fato, como uma sensível de lá (e
melodicamente resolvida no compasso seguinte), e havendo, respectivamente nas linhas de tenor e
baixo, progressões melódicas de fá a mi (cp. 10) e de dó a si (cp. 10-11), reforça-se, por outro lado,
uma interpretação de que tal compasso enuncie uma dominante de Lá, com suspensões da nona
bemol à fundamental e da sexta à quinta, e que progrida ao si dominante do cp. 11 por uma
cadência deceptiva; (3) sendo o compasso em questão sucedido por um si dominante,
assemelhando-se a formação cordal final do cp. 10 a uma tríade aumentada de dó, e sendo dó uma
espécie de correspondente germânica da dominante de si, faz-se possível entender que o compasso
em questão, ao se resolver, cumpre parcialmente com a função de dominante individual de si.
Semelhantemente ao caso de Liszt, talvez possamos dizer que o compasso em questão assuma
‘difusamente’ as três funções supracitadas; que ele é ‘mais subdominante’ do início e ‘mais
dominante’ – e mais ambíguo – ao se aproximar da cadência; que nem por isso ele deixa de ser
interpretável como ‘algo dominante’ já no acorde que o inicia; que, ademais, a centralidade de Dó
(maior ou menor) se faz mais pronunciada em seu início, enquanto que a centralidade de Lá menor
se faz progressivamente mais pronunciada conforme o compasso de desenvolve.
Ex. 6: Wagner: Tristão..., Prelúdio, cp. 10-11. Síntese das análises apresentadas no Ex. 38 do Cap. II. 4. 4., p. 76, acima.
Esta última formulação acrescenta um ponto importante com relação ao que observáramos
em Liszt: que não apenas a funcionalidade de um dado objeto harmônico, mas também a
centralidade à qual este se reporta possa ser concebida como ‘difusa’. Se distintos comentadores
haviam identificado no Prelúdio de Tristão… mais de uma tônica (ver pp. 98-9, acima); e se o
próprio compositor o parecera confirmar, ao encerrar as versões de encenação e de concerto em
Tonarten distintas; faz-se aqui possível formular que tal “complexo de dupla-tônica”, como o
124
denominara Bailey, não se constitua apenas por haver, em semelhantes proporções, passagens mais
diretamente relacionáveis a Lá (menor ou maior) e passagens mais diretamente relacionáveis a Dó
(maior ou menor), mas também porque tal complexo de dupla-tônica – não muito diferente, nesse
ponto, dos sistemas de estrelas binárias – parece por vezes constituir, ele mesmo, uma centralidade
difusa (nesse sentido, a expressão empregada por Bailey nos parece bastante adequada), em que
Tonarten distintas são concomitantemente expressas, ainda que não necessariamente com a mesma
proeminência o tempo todo. Com relação ao Op. 11, no 1 de Schoenberg, por sua vez, se
sustentáramos, por um lado, a possibilidade de interpretar que seus compassos iniciais passassem de
Fá# menor a Sol maior (p. 110, acima); mas reconhecemos como também possível, por outro, uma
interpretação como a de Leichtentritt ou Ogdon, e. g. (pp. 58-9, acima), nas quais se entendia que
mesmo os primeiros 5 compassos da peça já expressassem Sol; então, conciliar ambas as
interpretações implicará, também aqui, em reconhecer a centralidade da passagem em questão
como ‘difusa’. Mais preciso do que falarmos, então, em uma “modulação” de Fá# a Sol, será,
possivelmente, entendermos que a passagem expressa (não necessariamente de maneira exclusiva)
ambas as Tonarten de Fá# menor e Sol maior, sendo a primeira “mais proeminente” nos compassos
iniciais e a segunda progressivamente “mais pronunciada”, a ponto de, eventualmente, suplantar
aquela.
Conceber uma funcionalidade difusa pode ainda envolver, entre outras possibilidades:
• compreender que tanto uma Haupttonart, como um complexo de dupla, ou tripla tônica etc.
possam ser mais ou menos claramente delineados, mais ou menos estáveis etc.;
• compreender como funcionalmente relevante que um dado acorde ou passagem seja: mais
ou menos ambíguo; mais ou menos dissonante; mais ou menos modulatório etc. – Rosen
(1980), e. g., considera que os Durchführungen, em sonatas do séc. XVIII, cumpram com a
função de intensificar a dissonância formal nessas obras precisamente por meio do caráter
intensamente modulatório que lhes é característico (ver pp. 150-1, pouco adiante) –;
• conceber que as próprias funções stricto sensu, posto que estas envolvem uma diversidade
de possíveis funções lato sensu, possam ser mais ou menos plenamente representadas por
outros acordes ou regiões que não aqueles que as definem (cf. Cap. III. 4, pp. 151 ff.);
125
como unívocas – se é que tal univocidade é sequer possível. Primeiramente, deve-se reconhecer que
acordes errantes, ou mesmo acordes triádicos que sirvam como pivôs em passagens modulatórias
são exemplos claros e comuns, em repertório, de como objetos harmônicos já concebidos em função
de um plano tonal-funcional em maior escala – i. e., já a priori funcionais – podem portar o que
Schoenberg denominara “funções múltiplas [multiple meanings]” (1954[1948], pp. 44 ff.); ou que,
em tonalidades secundárias, de modo geral, pode-se entender – tal como é inerente ao conceito
schoenberguiano de ‘regiões’, empregado ao longo de todo este trabalho – que, se localmente estas
estabelecem uma nova tônica, ainda assim, em maior escala, tais tônicas representam alguma outra
função com relação à Haupttonart (ver, e. g., Ex. 7 e Ex. 8, abaixo). Ademais, mesmo um objeto
harmônico que venha a ser entendido, em seu contexto, como unívoco quanto à sua funcionalidade
não deixa de ser contemplado pela concepção ora proposta de uma funcionalidade difusa, bastando,
para isso, que se entenda a univocidade como o caso limite de uma “ambivalência nula”.
Ex. 7: D. Scarlatti: K. 119 (ca. 1749), cp. 90-95, seguidos dos cp. 1-6. Embora, ao final da exposição, Lá maior esteja
localmente estabelecida como uma tônica, o imediato retorno ao início da obra, em Ré, evidencia a função de
dominante que lá assume em maior escala.
Ex. 8: Beethoven: Sonata no 31, Op. 110 (1821), coda do mov. II e cp. 1 do mov. III. Se por um lado o fá maior cumpre,
no II mov., com a função de tônica, com terça de Picardia, por outro, o início do mov. III atribui retrospectivamente ao
mesmo acorde a função de dominante individual de si bemol menor.
126
Nos capítulos que se seguem, proponho os meios que para que possamos: (1) reconhecer
centralidades tonais locais mesmo em contextos produzidos por dissonâncias processuais – em que,
portanto, as relações funcionais se deem a posteriori –; (2) ressaltar centros tonais específicos
dentre aqueles que possam constituir uma centralidade local ‘difusa’ e; (3) inter-relacionar
funcionalmente as centralidades locais identificadas, levando em conta a não-univocidade destas.
Subsequentemente, demonstrarei, por meio de três relatos composicionais (4) como tais relações
funcionais difusas podem vir a ser elaboradas funcionalmente, de modo a assumir alguma
relevância na estruturação harmônica de obras singulares. Ressalto por fim que, porquanto
entendemos que dissonâncias processuais e relações funcionais a posteriori e difusas decorrem de
extensões de uma funcionalidade tonal histórica – e, como já demonstrado, são com frequência
encontradas em repertório mais comumente aceito como “tonal” – e porquanto, como pouco acima
enfatizado, a maneira como concebemos neste trabalho a tonalidade funcional não exclui relações
funcionais convencionais – mas, ao contrário, visa agregar a estas relações a posteriori –, os meios
técnicos abaixo propostos serão frequentemente conjugados a maneiras mais convencionais de se
identificar, compreender e elaborar relações funcionais.
127
III. 3. Representação de centralidades locais por diatonismo
Tal como amplamente se sabe – e conforme retomado acima, no Cap. I. 2. 3 deste trabalho –,
a base escalar da tonalité moderne tem origem histórica nos modos diatônicos medievais, com as
alterações implicadas nas respectivas sensíveis de suas notas centrais e outras alterações subsidiárias,
como, e. g., a alteração do IV grau nos modos de finalis fá – a fim de que a sensível se fizesse
contextualmente dissonante –, ou as ocasionais alterações do VI e VII graus no modo de finalis ré –
a fim de que se evitassem passos maiores do que a segunda maior entre os graus em questão etc.
(ver pp. 24-5, acima). Posto que a sensível, no contexto da tonalidade – e, de fato, desde sua origem
cadencial na musica ficta do séc. XIV (ver pp. 22-4, acima) –, aponta para uma resolução por
semitom ascendente; que, sendo a nota imediatamente superior à sensível objeto de resolução desta,
tal nota seja mais consonante do que a sensível e seja, assim, entendida como mais estável, como
mais passível de assumir centralidade; e posto que a sensível se faz caracterizada enquanto tal por
meio do trítono direta- ou indiretamente formado com o IV grau da escala; entendemos que, no
contexto da tonalité moderne, escalas diatônicas ou segmentos destas que contenham notas
passíveis de se interpretar (pelo conjunto de suas distâncias intervalares) como I, IV grau justo e
sensível de uma dada Tonart possam dar, por si mesmos, indícios de uma possível centralidade
tonal.
Também Schoenberg, como víramos (pp. 33-4), entendia que ao menos o modo maior
[Durtonart] poderia expressar, por si mesmo, a Tonart que lhe fosse correspondente. Dado seu
entendimento, contudo, de que o modo maior derivaria “naturalmente” da própria série harmônica
de uma suposta “fundamental original”, Schoenberg chegara a atribuir aos próprios modos
eclesiásticos tal propriedade de expressar inerentemente uma tônica, vindo a concluir que a
variedade de finalis em tais modos resultaria da busca empírica por tal “fundamental original” 24. Se
com relação à música medieval tal posição manifesta um patente anacronismo, deve-se, por outro
lado, observar que, em obras já inseridas na tradição da tonalité moderne, a ocasional ocorrência de
passagens em que o próprio diatonismo, mais do que a cadência, parece protagonizar o
delineamento de uma dada Tonart atesta, nesse contexto, a propriedade em questão.
Em Corelli, a harmonização diatônica dos passos descendentes da escala, embora “menos
conclusiva do que o ciclo de quintas”, constituiria, conforme apontado por Bukofzer (1975[1948]),
um meio típico para que se cumprisse com tal função de “circunscrever a tonalidade [key]” (op. cit.,
pp. 220-1). No terceiro movimento da sonata para violino Op. 5, no 1 (publicada em 1700), em Ré
maior, e. g., há uma passagem elucidativa de tal recurso. Após se ter estabelecido já no cp. 8 do
24 “(…) sentia-se o efeito de uma fundamental, mas não se sabia qual era. Por isso experimentava-se com todas. E as
alterações são talvez casualidades do modo escolhido, mas não do modo natural original” (Schoenberg: 2001[1911],
p. 64 n., trad. Marden Maluf).
128
movimento em questão a tonalidade secundária de Lá maior, o retorno à Haupttonart Ré envolve
alguns movimentos sequenciais: nos cp. 12 a 15, cadencia-se respectivamente sobre mi maior, lá, ré
e sol maior; nos cp. 16-17, tendo partido da cadência sobre sol, cadencia-se sobre lá maior e si
menor; após confirmação de si menor (cp. 19), cadencia-se, nos cp. 20 e 21, sobre mi maior e,
novamente, ré. Dados tais movimentos sequenciais, a passagem toda assume caráter modulatório e
mesmo as cadências sobre ré nos cp. 21 e 22 parecem ainda inconclusivas: é, em boa medida, por
meio da harmonização diatônica, nos cp. 22 a 25, dos passos descendentes do modo maior de Ré
que, ainda antes de uma nova cadência na tônica (cp. 26), se faz claro o reestabelecimento da
Haupttonart da peça (ver Ex. 9, abaixo).
129
especialmente pronunciada quando, nas últimas colcheias do trecho em questão, o encontro das
linhas melódicas, por um empilhamento de sétimas (dó#-si-lá#), delineia algo interpretável,
sobretudo em Chopin (cf. pp. 85-6, acima), como uma espécie de dó# dominante, com sétima e
décima-terceira (Ex. 10).
Mais adiante na obra, é realizada uma modulação para Lá maior por meio de um recurso
semelhante: após repetidas cadências sobre fá# maior nos cp. 33-34, tal acorde é convertido em sua
homônima menor (cp. 35) e seguido de uma melodia diatônica em que o VI e VII graus se mantêm
menores, não expressando, portanto, a sensível de fá#. Posto que a escala diatônica formada
corresponde plenamente ao modo maior de Lá, tal Tonart parece se delinear já nos cp. 35 a 38 e
vem a ser efetivamente estabelecida no cp. 39 sem que haja, para tanto, uma cadência sobre sua
tônica (Ex. 11).
130
Como se vê, sobretudo pelo exemplo de Chopin, a base diatônica de uma dada Tonart pode,
ainda que não de maneira definitiva, vir a expressar tal Tonart, mesmo prescindindo de uma
morfologia triádica, de progressões cadenciais, ou de ênfase sobre o centro tonal suposto. Assim,
em contextos em que tais aspectos morfológicos da tonalidade se façam raros, ausentes, fortuitos etc.
– como há de ser o caso de obras ou passagens que, escritas no sistema temperado, privilegiem, em
seus processos composicionais, o que temos denominado ‘dissonâncias processuais’ –, a
identificação de diatonismos, ainda que implícitos ou fragmentários, pode auxiliar a identificação
também de possíveis centralidades locais, a serem relacionadas entre si semelhantemente a como se
relacionam, na monotonalidade de Schoenberg, distintas regiões tonais.
Uma tal abordagem é brevemente experimentada – ainda que não de maneira sistemática –
por Dunsby e Whittall com relação ao Op. 19, n o 6 (1911) de Schoenberg, em meio a uma discussão,
em Análise Musical na Teoria e na Prática (2011[2010]), a respeito da adequação e dos problemas
de análises que assumam como “tonais” obras do primeiro período dito “atonal” do compositor (ver
op. cit., pp. 97 ff.). Primeiramente, a respeito do acorde sol-dó-fá-lá-fá#-si, formado nos cp. 1-2, 3-4,
5 e 9 (ver Ex. 12, abaixo), os autores anotam que cinco de suas seis notas “pertencem à escala de
Sol maior (ou Mi menor), e, até mesmo incluindo Fá natural, o espaçamento da ‘construção’ de seis
notas pode sugerir que ela representa a tônica de uma região tonal expandida de Sol maior” (id., p.
102, trad. Norton Dudeque).
131
Pouco adiante, após (a) observarem que o conjunto das demais notas do total cromático (i. e.,
sol#-lá#-dó#-ré-ré#-mi) “pertenceria provavelmente à região tonal em torno de Mi” (id. ibid.) e
após (b) se reportarem, de fato, à monotonalidade de Schoenberg; os autores apontam na obra uma
“tendência para as várias regiões de se interseccionarem em torno de Mi maior/menor” (id., p. 103),
ponderando em seguida, contudo, que tal argumentação poderia ser fortalecida “se Schoenberg
tivesse grafado as duas últimas notas [da peça] como Lá sustenido e Sol sustenido”, mas que a
efetiva grafia si bemol-lá bemol (Ex. 12, acima, cp. 9) seria “um fator importante para evitar
suposições loquazes sobre bases tonais quando nenhuma única tríade diatônica é expressa” (id.
ibid.).
Identificar possíveis diatonismos (ainda que fragmentários e implícitos), correlacioná-los a
possíveis centralidades locais (ainda que não-unívocas e não excludentes entre si) e, finalmente,
relacionar tais possíveis centralidades entre si corresponde, grosso modo, à maneira como
proporemos identificar relações funcionais mesmo em meio a passagens ou obras cujas respectivas
concepções independessem, a princípio, da tonalidade funcional e; inversamente, operar sobre um
tal diatonismo epistêmico, trazendo à tona o que se fazia implícito, articulando ou obscurecendo a
passagem entre diatonismos (virtuais) contíguos, ora intensificando ambiguidades, ora tornando
mais pronunciada uma determinada centralidade possível etc., corresponde, em boa medida, à
maneira como proporemos elaborar composicionalmente tais possíveis relações funcionais. Assim,
o supracitado experimento analítico por parte de Dunsby e Whittall nos é de especial interesse,
posto que, nele, se manifestam alguns dos principais problemas com os quais deveremos lidar em
uma tal abordagem.
Primeiramente, (1) deve-se reconhecer que a identificação de possíveis diatonismos e
mesmo a eventual convergência das centralidades sugeridas por tais diatonismos em torno de uma
suposta Haupttonart não necessariamente apontam para a participação de tais aspectos no processo
composicional da obra ou passagem abordada. No caso do Op. 19, no 6, se, por um lado, Dunsby e
Whittall apontaram para uma tal convergência sobre Mi maior/menor, por outro, como bem
observado pelos autores, a própria notação das últimas duas notas (“si bemol-lá bemol”, ao invés de
“lá#-sol#”) se faz, de fato, indício de uma escritura que não apenas se abstivesse, em sua concepção,
do estabelecimento de uma tônica, mas que inclusive visasse antes divergência do que a
convergência previamente apontada. Inversamente, contudo, e conforme argumentáramos sobretudo
no Cap. II. 4. 5 (pp. 92-114, acima), mesmo a deliberada recusa, em um dado processo
composicional, aos fundamentos morfológicos e procedimentais da tonalidade funcional não
necessariamente implica na total supressão de relações funcionais (locais ou em larga escala) na
obra ou passagem produzida. Assim, se uma abordagem como a que aqui se propõe se faz
insuficiente – e possivelmente inadequada – perante o eventual objetivo de esclarecer a gênese de
132
uma dada obra, ou de trazer à tona supostas intenções do compositor etc.; por outro lado, porquanto
tal abordagem prescinde de uma diversidade de aspectos morfológicos típicos da tonalidade
funcional (como as formações triádicas, as progressões cadenciais etc.) para que se identifiquem no
objeto centralidades às quais este possa remeter, ela se faz especialmente eficaz perante o objetivo
aqui assumido – e, ressaltemos, de cunho antes composicional do que musicológico – de integrar
funcionalmente objetos harmônicos e procedimentos composicionais que não tenham sido
concebidos funcionalmente, de conceder participação estrutural, em uma dada obra ou passagem, a
dissonâncias processuais e funcionalidades a posteriori.
Em segundo lugar, deve-se reconhecer que, (2a) na própria tradição tonal, mais
frequentemente do que não, outras notas que não apenas aquelas pertencentes à base diatônica de
uma dada Tonart estão envolvidas em passagens que expressam sua centralidade – como é o caso, e.
g., das sensíveis individuais dos distintos graus da escala, das alterações próprias ao VI e VII graus
do modo menor, do II grau rebaixado no acorde de napolitana, de alterações e ornamentações
cromáticas etc. (ver Cap. II. 1, pp. 33-42, acima). Ademais, deve-se reconhecer que, (2b) sobretudo
em acordes, passagens etc. não concebidos funcionalmente, serão frequentemente encontradas
formações que não se podem reduzir a qualquer diatonismo convencional e, de fato, mesmo em
repertório inserido na tradição tonal, há eventualmente formações verticais de tal tipo, as quais, nem
por isso, deixam de portar funcionalidades possíveis em seus respectivos contextos (ver sobretudo
Cap. II. 4. 4). Como compreender, então, em uma tal abordagem, notas que, frente a um diatonismo
suposto, se desviem de seu padrão convencional? Finalmente, se, pelos apontamentos acima
expressos, podemos concluir que virtualmente qualquer classe de altura pode participar da
expressão de uma dada centralidade25, (3) isto não significaria, então, que, inversamente, qualquer
conjunto de notas poderia, no limite, expressar qualquer centralidade? Como então correlacionar,
com alguma consistência, diatonismos a centralidades específicas?
Uma vez mais, tais problemas com que a abordagem em questão deverá lidar podem ser
exemplificados no experimento analítico de Dunsby e Whittall: se o agregado sol-dó-fá-lá-fá#-si se
faz majoritariamente circunscrito, como apontado pelos autores, nas respectivas bases diatônicas de
Sol maior e Mi menor, então como se relaciona o fá natural a tais bases diatônicas? Ademais, por
que não considerar, então, tal conjunto de notas como se reportando, e. g., a Dó maior, a cuja base
diatônica apenas o fá# não seria pertencente?; ou, ainda, a uma tonalidade Frígia de Fá#, em que, a
exemplo do cp. 2 do Op. 11, no 1 (cf. p. 106, acima), sol-mi#(fá natural)-si constituiriam uma
espécie de dominante italiana, fá#-lá constituiriam parte da tônica e, tal como em Sol maior, Mi
menor ou Dó, apenas uma nota (dó natural) fugiria à sua base escalar?
25
Riemann, e. g., toma parte de uma tal concepção. Ver Musiklexikon, verbete sobre Tonalität (1896[1882], p. 796).
133
A fim de sustentar, diante dos problemas ora elencados, a possibilidade de uma correlação
consistente entre diatonismos (ainda que implícitos, ou fragmentários) e centralidades específicas,
entendemos que devemos, primeiramente, assumir uma concepção de ‘diatonismo’ em que este não
se limite às ordenações escalares das notas ditas “naturais” (e. g., dó-ré-mi[…]-dó, ou mi-fá-sol[...]-
mi etc.), suas respectivas transposições (e. g., mi bemol-fá-sol[...]mi bemol, ou dó#-ré-mi[...]-dó#
etc.) e as variações comumente previstas do modo menor. Em uma concepção em boa medida
derivada de um diatonismo convencional, mas flexibilizada com relação a este, entenderemos como
‘escalas diatônicas’: (a) qualquer subconjunto escalar do total cromático que seccione a oitava em
sete graus, respectivamente representados pelos sete nomes de notas, individualmente naturais,
bemóis, sustenidas etc., conforme o caso; (b) em que tais sete graus, se dispostos no ciclo de
quintas, não completem ou ultrapassem um ciclo completo.
Por uma tal concepção, o agregado sol-dó-fá-lá-fá#-si, e. g., não pode ser circunscrito, ao
menos com essa específica grafia, em uma escala diatônica pura, porquanto em tal agregado,
contendo este fá natural e fá#, estaria duplicado o grau representado pela nota fá (Ex. 13a); por
outro lado, bastaria interpretar o fá natural como enarmonia de mi#, para que cada nota
representasse um grau diferente da escala e esta atendesse, assim, ao nosso primeiro critério para
que a considerássemos passível de circunscrever-se em um escala diatônica pura (Ex. 13b).
Ex. 13: Disposições escalares das classes de alturas dos cp. 1-2 do Op. 19, no 6, de Schoenberg.
Quanto ao segundo critério, também a este (conforme demonstrado no Ex. 14a, abaixo) tal
agregado atende, porquanto, ao ser disposto no ciclo de quintas, sua nota mais extrema em sentido
horário, mi#, não pode ser enarmonizada por qualquer nota que não estenda ou corresponda a seu
limite anti-horário, aqui estabelecido por dó natural. Ademais, caso o grau virtual não expresso por
tal agregado viesse a corresponder a ré natural (Ex. 14b), ou a ré sustenido (Ex. 14c), então, tal
agregado permaneceria compreensível, pelos critérios ora propostos, como puramente diatônico. Se
porventura se adicionasse a tal agregado, contudo, um ré bemol (Ex. 14d) ou um ré dobrado-
sustenido (Ex. 14e), e. g., tais notas, então: ultrapassariam, ambas, o ciclo de quintas completo,
respectivamente em sentido anti-horário e em sentido horário; seriam, por isso, aqui compreendidas
como enarmonias de dó# e de mi natural, respectivamente, e; assim, duplicariam, respectivamente,
os graus representados por dó, no primeiro caso, e por mi, no segundo (Ex. 15a e b), não sendo mais
possível então ao agregado em questão circunscrever-se a uma escala puramente diatônica, na
concepção aqui proposta.
134
Ex. 14: Disposições no ciclo de quintas das classes de alturas dos cp. 1-2 do Op. 19, no 6, de Schoenberg: (a) apenas
com as notas apresentadas no original; e, respectivamente, com compleição do grau correspondente ao nome de nota ‘ré’
(b) por ré natural; (c) por ré sustenido; (d) por ré bemol; (e) por ré dobrado-sustenido.
Ex. 15: Disposições escalares das classes de alturas dos cp. 1-2 do Op. 19, no 6, de Schoenberg, com compleição do
grau correspondente ao nome de nota ‘ré’, respectivamente: (a) por ré bemol e; (b) por ré dobrado-sustenido.
Tendo proposto uma concepção flexibilizada de escala diatônica, a qual nos permitirá
identificar possíveis diatonismos em uma gama mais ampla de combinações intervalares do que a
prevista por uma concepção convencional, permanecem ainda ao menos duas questões com as quais
devemos lidar, a saber: (1) identificadas, em um dado conjunto de alturas, uma ou mais possíveis
escalas diatônicas (nos termos ora propostos) que o possam conter, como relacionar tais
diatonismos supostos a centralidades específicas?; e (2) como relacionar às centralidades inferidas
as eventuais notas que não se circunscrevam nos diatonismos supostos?
Estendendo nossa argumentação acima a respeito de como o modernos modos maior e
menor tendem a indicar centralidades, podemos entender que, em conjuntos de notas que se possam
compreender – pelos critérios por nós propostos – como ‘diatônicos’, algumas dentre as notas que
os constituem tendem a ser mais responsáveis do que outras pelo delineamento de uma dada
135
centralidade, sobretudo: o próprio I grau, entendido como nota central; a sensível, por apontar para
uma resolução por semitom ascendente sobre o I grau; o IV grau justo, responsável por formar um
trítono com a sensível e caracterizá-la, assim, enquanto tal; e, possivelmente, o V grau justo, por,
entre outros motivos, corresponder – sobretudo se associado à sensível e ao IV grau – à fundamental
do acorde de dominante. Ademais, posto que o trítono é um intervalo simétrico e que, sobretudo
isolado de contexto, pode por isso apontar para resoluções bastante remotas (funcionalmente) entre
si, deve-se notar que, associado ao trítono entre IV e VII graus diatônicos, o I grau desfaz tal
simetria, tendendo a tornar mais pronunciada (mas não fatal) a tendência a uma resolução
específica e; que na eventual ausência do I grau, também o V grau, ao desfazer a simetria do trítono
e delinear, junto a este, parte de uma dominante convencional, favorece que se torne mais
pronunciada a tendência à resolução sobre tal específico I grau.
Em termos pragmáticos, transpor (a) tal entendimento de que algumas notas, em uma dada
Tonart, portam maior responsabilidade do que outras pelo delineamento de sua centralidade para (b)
a situação em que se deseje inferir de um dado agregado harmônico os possíveis centros aos quais
este se reporte – e em que não esteja dado de antemão, portanto, quais notas correspondem a quais
graus de quaisquer supostas escalas diatônicas – implica em que alguns intervalos ou conjuntos
intervalares identificados no objeto examinado venham a ser privilegiados – embora não
determinantes – no processo de identificação de centralidades supostas: frente, e. g., a notas que
estabeleçam entre si um semitom simples ou composto (segunda menor, sétima maior, nona menor
etc.), pode-se cogitar a possibilidade – a se verificar contextualmente como sustentável ou não – de
que a nota inferior em tal semitom corresponda a uma sensível; frente a um trítono,
semelhantemente, pode-se verificar se uma das duas notas que o constituem poderá ser entendida
como sensível e, no caso de o objeto examinado conter ainda outras notas, verificar se alguma
destas se situa um semitom acima ou uma terça maior abaixo de alguma dentre as notas que
compõem o trítono em questão – vindo estas, possivelmente, a corresponder, respectivamente, aos
supostos I ou V graus.
Perante um diatonismo suposto, entendemos que também as demais notas de um agregado
harmônico examinado (que não apenas aquelas correspondentes aos possíveis I, IV, V graus justos e
à sensível das escalas cogitadas) têm participações específicas no delineamento de sua centralidade.
Um suposto III grau, e. g., quer seja maior, quer seja menor, apenas qualificaria a escala e a
eventual tríade de I grau como respectivamente maiores ou menores, mas pouco influenciaria, em
nossa compreensão, em quão pronunciada se faz a centralidade de tal I grau – e não muito diferente
seria o caso do VI grau maior ou menor –; uma nota correspondente ao II grau menor da escala
cogitada, por sua vez, tornaria o I grau mais instável, posto que este poderia ser, em outra
interpretação, entendido como sensível daquele e que tal II grau menor, ademais, tornaria as notas
136
constituintes da dominante novamente simétricas (como em uma dominante francesa) e, portanto,
mais ambíguas quanto às suas resoluções possíveis; o I grau elevado (e. g., dó#, em Dó), pelo
princípio de que haja apenas sete graus em uma escala puramente diatônica, ora excluiria a presença
na escala do I grau justo – e tenderia, assim, a atenuar ou afastar a hipótese de que seu uníssono
aumentado inferior se trate de fato de um I grau possível –, ora constituiria um desvio do
diatonismo suposto (pp. 139 ff., pouco adiante), obscurecendo, assim, a relação entre o objeto que o
contivesse e a centralidade suposta; a nota correspondente ao I grau rebaixado da escala cogitada (e.
g. dó bemol, em Dó; ver Ex. 16, abaixo), por sua vez, seria ainda mais radicalmente centrífuga,
porquanto esta tenderia a excluir da escala suposta tanto o I grau justo – pelo princípio supracitado
–, como a sensível, posto ser o I grau rebaixado enarmônico desta. Ainda as participações de outras
notas no delineamento por diatonismo de uma dada centralidade podem ser examinadas por
raciocínios análogos aos aqui expostos.
Ex. 16: Haydn: Sonata, Hob. XVI/20, mov. I, cp. 23-26. No processo modulatório da Haupttonart Dó menor para a
tonalidade secundária de Mi bemol maior (cp. 9 ff.), ainda antes de que a segunda tonalidade seja afirmada (cp. 26), a
enfática recorrência do dó bemol, nos cp. 23-24, afasta a centralidade de Dó menor: dó bemol corresponde a seu I grau
rebaixado e é enarmônico à sensível si; com relação a Mi bemol, por sua vez, dó bemol, enquanto seu VI grau menor,
não interfere diretamente com a proeminência de sua centralidade. Ao se retomar, no cp. 25, o dó natural, tal nota tende
a ser já interpretada não como I grau de Dó, mas como VI de Mi bemol.
Se, por tais critérios, tornarmos a examinar o agregado harmônico dos compassos iniciais do
Op. 19, no 6, poderemos constatar que:
• em uma interpretação em Sol (tal como o haviam proposto Dunsby e Whittall), três das
notas que consideramos como mais diretamente responsáveis por uma suposta centralidade
sua – sol (I), fá# (sensível) e dó (IV grau justo) – estão presentes e, embora o ré natural (V
grau justo) não o esteja, não há no agregado, ao menos nos cp. 1-2, nenhuma nota (como ré#
ou ré bemol) que o contradiga. O II e o III graus (respectivamente, lá e si) estariam em
137
acordo com um tal centro. Quanto ao mi#, por fim, embora este possa vir a ser entendido,
em uma interpretação alternativa, como (a) uma sensível do próprio fá# (ver tópico seguinte),
obscurecendo assim a qualidade de sensível desta nota; ou mesmo como (b) um fá natural,
tal como notado – obscurecendo o diatonismo per se –; tal nota (mi#/fá), pelos critérios aqui
propostos, torna o agregado em questão mais ambíguo do que se ela estivesse ausente, ou
fosse substituída por um eventual mi natural ou mi bemol, mas não contradiz a interpretação
de que o agregado em questão seja, em alguma medida, representativo de Sol.
• Se, alternativamente, cogitarmos a hipótese de que o mi# se trate de uma sensível de Fá# e
propusermos uma interpretação nessa tonalidade do agregado em questão, notaremos que,
para além dessa nota, fazem-se também presentes o I e o IV justos (respectivamente, fá# e si)
de Fá#. O lá natural corresponderia a seu III grau menor e o sol natural ao II grau menor, o
qual, como colocado acima, tende a tornar a tonalidade suposta mais instável do que um
eventual II grau maior, mas não a contradiz. Sobre o dó natural, por sua vez,
correspondendo tal nota ao V grau diminuto de Fá#, podemos entender que tal nota tende a
excluir a possibilidade de que a escala inferida contivesse o V grau justo (dó#) da Tonart em
questão.
Ex. 17: Possível diatonismo para os cp. 1-2 do Op. 19, no 6, de Schoenberg, com as notas respectivamente relevantes às
centralidades de Sol e Fá# assinaladas.
138
mi natural, tende a implicar, por nossos critérios, em interpretar a centralidade vigente em
tais compassos como distinta daquela dos cp. 1-2: com o ré# e o mi natural integrados ao
agregado em questão, passamos a encontrar neste, para além do IV e V graus justos de Mi
(respectivamente, lá e si, já presentes nos cp. 1-2), também a sensível e o I grau dessa
Tonart, tornando-a agora mais pronunciada; inversamente, o ré# ocupa a posição diatônica
que teria o V grau de Sol e, sendo este V grau agora aumentado – não justo –, podemos
entender que a centralidade de Sol se faz menos pronunciada nestes cp. 3-4 do que nos dois
compassos iniciais.
Com a introdução de ré# e mi natural, deve-se também notar que, havendo agora oito notas
no agregado e, sobretudo, formando-se neste uma espécie de cluster com ré#-mi-fá(mi#?)-fá#-sol,
já não se faz possível, por nossos critérios, circunscrevê-lo em uma escala puramente diatônica e,
conforme indicado no Ex. 18, abaixo, fazem-se possíveis interpretações que considerem, dentre mi,
mi#/fá natural e fá#, uma dentre estas três notas como desviada do diatonismo suposto.
Ex. 18: cluster formado nos cp. 3-4 do Op. 19, no 6, de Schoenberg, com distintas notas assinaladas como desviadas do
diatonismo suposto.
Retomando a questão a respeito de como lidar com as eventuais notas que não se
circunscrevam em um diatonismo suposto, entendemos que haja ao menos três maneiras de
interpretá-las contextualmente. Primeiramente, porquanto o diatonismo é aqui: (a) epistêmico e; (b)
entendido como um indicador local de centralidade, entendido, portanto, como potencialmente
dinâmico ao longo de uma obra ou passagem; em casos em que duas versões de um mesmo grau
(como, e. g., fá# e fá natural) sejam apresentadas proximamente, mas não de maneira sincrônica,
faz-se possível interpretar a ocorrência da nova versão de tal dado grau como articuladora de uma
passagem entre uma dada escala diatônica virtual e outra. Assim, no cp. 1 do Op. 19, no 6, poder-se-
ia compreender, e. g.: que lá-fá#-si estivessem circunscritas em alguma dada escala diatônica e sol-
dó-fá, em outra; e que, se fá# e fá natural vêm a soar conjuntamente, o fá# seria, em uma tal
interpretação, ou um resíduo acústico da primeira escala, uma espécie de ‘ressonância’ desta; ou
uma espécie de suspensão de parte de um diatonismo sobre outro, a qual, como tal, demandaria
resolução (a qual pode ser ou não efetuada) sobre algum grau próprio à nova escala virtual. O
principal cuidado, contudo, que se deve tomar com uma tal solução é que o excesso de segmentação
pode resultar no agrupamento de conjuntos pequenos de notas (como, neste caso específico, os dois
139
grupos de três notas), os quais poderiam, por isso mesmo, vir a ser circunscritos em uma grande
diversidade de escalas diatônicas – sobretudo nos termos em que estas são aqui compreendidas.
Desse modo, deve-se atentar para que a correlação entre um dado agregado e as centralidades
possivelmente representadas por este tende a uma tão maior arbitrariedade quanto menor for o
agregado em questão.
Uma segunda maneira como entendemos que se possa lidar com tais notas que escapem ao
diatonismo suposto é compreendê-las como potenciais aproximações melódicas a notas que se
circunscrevam em tal diatonismo. Em repertório inserido na tradição tonal, tal como o atestam as
passagens de Mozart e Bach reproduzidas abaixo, é comum que a coincidência entre duas versões
de um mesmo dado grau da escala ocorra: ora em meio a linhas ou bordaduras cromáticas, em que
uma dentre as duas notas progrida cromaticamente a alguma nota que se possa interpretar como
propriamente ‘diatônica’ (Ex. 19a); ora no VI ou VII graus de Tonarten menores, ao haver direções
melódicas contrárias entre si e que requeiram, eventualmente, o rebaixamento do VII grau (Ex. 19b),
ou a elevação do VI grau (Ex. 19c). Também nesses casos, deve-se notar, as respectivas notas que
perturbem um diatonismo puro tendem a progredir imediata- ou proximamente a alguma nota
própria ao diatonismo da passagem, se não por passo cromático, ao menos por grau conjunto.
Ex. 19: Mozart: (a) Sonata no 15, cp. 5-7; (b) Sinfonia no 38, cp. 26-27, redução; (c) Bach: Prelúdio, BWV 869, cp. 23-
24.
140
Em casos mais distantes de uma morfologia tonal convencional, tal como no Op. 19, n o 6, se
as notas não circunscritas nos diatonismos supostos já não progridem consistentemente por passos
cromáticos ou grau conjunto, isto não impede a interpretação de que tais notas representem desvios
de tais escalas supostas; de que tais notas sejam, assim, compreendidas como dissonantes com
relação a tais escalas; de que, na condição de dissonantes, estas apontem para resoluções as quais,
ainda que não efetuadas, são especificáveis: se tais dissonantes se tratam de notas desviadas de uma
escala diatônica específica – ainda que hipotética –, então suas possíveis resoluções hão ou
haveriam de consistir na própria progressão a algum grau diatônico da escala em questão.
Em uma abordagem cujo propósito seja puramente analítico, deve-se reconhecer que tal
especulação a respeito de quais específicas notas seriam, a cada momento, dissonantes com relação
a um diatonismo epistêmico e de quais seriam suas possíveis resoluções não-efetuadas pode resultar
em uma radical abstração com relação à atualidade da obra, sobretudo se esta não tiver sido
concebida funcionalmente26. Se, por outro lado, a análise mira uma ulterior ação composicional
sobre o objeto examinado, então, uma tal especificação (a) das notas que fundamentariam este ou
aquele diatonismo hipotético; (b) das notas mais responsáveis pelo delineamento deste ou daquele
centro; (c) das notas que se desviam de tais diatonismos e contradizem ou obscurecem as
centralidades inferidas; (d) de suas possíveis resoluções em direção a que se torne ‘mais’
pronunciado este ou aquele centro etc.; uma tal especificação desses vários fatores dá margem para
e favorece que o compositor atue com precisão em tornar mais ou menos pronunciado, a cada
momento, este ou aquele centro possível, conforme suas intenções para o delineamento em maior
escala da passagem ou da obra em questão.
Tornemos a exemplificar com o Op. 19, no 6. Apontáramos, pouco acima, como, com a
introdução de ré# e mi natural nos cp. 3-4, far-se-ia possível uma interpretação de tais compassos
em Mi, reconhecendo-se, contudo, uma das notas do agregado harmônico formado – no caso desta
específica interpretação, o fá natural/mi# – como dissonante com relação a uma suposta escala
diatônica fundada em mi. Se, em uma dada ação composicional sobre tais compassos, desejarmos
tornar mais pronunciados tal diatonismo suposto e sua correspondente centralidade, bastará, e. g.,
efetuar uma resolução melódica de fá natural sobre mi, ou de mi# sobre fá#. A fim de não
descaracterizar o piano já escrito, podemos acrescentar uma linha melódica que realize uma tal
resolução, tal como no Ex. 20, abaixo, enquanto o fá natural do original permanece sustentado.
26
Tal crítica é formulada, e. g., em Rosen: 1975, pp. 26-7; Whittall: 1993, p. 2; ou Dunsby e Whittall: 2011[2010], p.
100. Lidamos com tal problema sobretudo no Cap. II. 5, pp. 92 ff.
141
Ex. 20: Schoenberg: Op. 19, no 6, cp. 3-4, com linha acrescentada, enfatizando a centralidade de Mi.
Se, com relação aos cp. 1-2, por sua vez, desejarmos valorizar uma centralidade em que Sol
se faça mais pronunciado – tal como de fato o entendêramos pouco acima – e, ademais, desejarmos
enfatizar o contraste com relação à proeminência assumida por Mi nos compassos seguintes,
podemos, por nova ação composicional: (a) acrescentar uma linha que efetue uma progressão de
mi# a fá#, contrastando o mi# ao fá natural por vir no cp. 3; (b1) introduzir o V grau justo de Sol (ré
natural), até então ausente e; (b2) introduzi-lo também por meio de um passo cromático, vindo de
mi bemol, de modo que, quer se considere mi# como próprio ao diatonismo vigente, quer se
considere mi bemol como tal, em qualquer das duas hipóteses o mi natural a ser centralizado nos cp.
3-4 se faz excluído desta versão dos compassos iniciais (Ex. 21).
Ex. 21: Schoenberg: Op. 19, no 6, cp. 1-2, com linha acrescentada, enfatizando a centralidade de Sol.
142
Por recursos semelhantes, ainda outros centros podem ser feitos mais pronunciados, quer a
fim de extremar o contraste entre os cp. 1-2 e os cp. 3-4, quer a fim de que, em cada uma das quatro
ocorrências do agregado sol-dó-fá-lá-fá#-si ao longo da peça, seja expressa por este uma
centralidade distinta etc. Nos exemplos reproduzidos abaixo, acrescentamos linhas aos cp. 1-2 (Ex.
22a-b) e ao cp. 9 (Ex. 22c) que tragam à tona, respectivamente, centralidades de Fá# Frígio, Dó
menor e Lá bemol maior – vindo esta última a integrar ao diatonismo suposto o si bemol e o lá
bemol do compasso final da obra.
Ex. 22: Schoenberg: Op. 19, no 6; (a) cp. 1-2, com linha acrescentada, enfatizando a centralidade de Fá#; (b) cp. 1-2,
com linha acrescentada, enfatizando a centralidade de Dó; (c) cp. 9, com linha acrescentada, enfatizando a centralidade
de Lá bemol.
A terceira maneira, finalmente, como entendemos que se possa lidar com tais notas não
circunscritas no diatonismo suposto é considerá-las como possíveis representantes de toda uma
outra escala diatônica concomitante àquela já suposta. O acorde do recitativo final de Salome, ao
menos da maneira como o interpretáramos no Cap. II. 5, oferece-nos um exemplo, em repertório,
143
em que o cromatismo vertical pode ser compreendido como resultante da interação, em um único
agregado harmônico, entre dois acordes diatônicos. Em tal acorde, formado por dó#-mi-fá##-sol#-
lá#-lá-si bemol, vemos que não apenas coexistem duas versões (sustenido e natural) do grau lá,
mas também duas versões enarmônicas de uma mesma classe de alturas: lá# e si bemol (Ex. 23a,
abaixo). Em parte, tal peculiaridade de sua grafia se explica mais simplesmente por sua
conveniência: se por um lado a grafia ‘lá#’ condiz com as relações – locais e em larga escala – de
tal passagem com as Tonarten maior e menor de Dó# (já apontadas em nossa análise da obra em
questão), por outro, havendo um trilo de semitom sobre lá natural a ser executado pelas flautas e
clarinetas, é evidentemente mais familiar ao músico a notação de um trilo de segunda menor do que
de um trilo de uníssono aumentado – e isto justificaria, pragmaticamente, a opção por ‘si bemol’.
Há, contudo, também aspectos concernentes à funcionalidade de tal acorde que justificam, em sua
grafia, tal coexistência entre lá# e si bemol: se tal acorde consistiu em uma espécie de dominante
germânica (ré#) da dominante (sol#) de Dó#; se tal dominante germânica é enarmônica a um lá
dominante e; se a própria relação entre lá dominante e dó# maior, ou entre lá maior e dó# maior
seria explorada pouco adiante, no final arioso da cena; então, faz-se possível compreender: (1) que
interagem, no agregado em questão, ambos os acordes de ré# dominante e de lá dominante, ambos
‘diatônicos’, no sentido amplo do termo aqui empregado (ver Ex. 23b, abaixo); (2) que, se ambos os
acordes são diatônicos, ambos podem ser reportados a diatonismos que os circunscrevam; (3) que,
assim, (3a) lá# consiste na quinta de ré# dominante e (3b) lá natural e si bemol consistem,
respectivamente, na fundamental e na nona bemol de lá dominante; (4) que a constatada
coexistência, no acorde, entre duas versões de um mesmo grau e entre duas versões enarmônicas de
uma mesma classe de alturas pode ser atribuída à coexistência, antes, entre duas escalas diatônicas,
ainda que ambas sejam, aqui, apenas parcialmente enunciadas (Ex. 23c); (5) que, assim, para além
da atual coexistência entre lá e lá#, ou entre lá# e si bemol, podem ser entendidos ainda como
virtualmente coexistentes, no acorde em questão: fá## (terça de ré#) e sol natural (sétima de lá),
este sol natural e o sol# já expresso (cf. Ex. 65, p. 104, acima), si bemol e si natural ou sustenido,
fá## e fá natural ou sustenido etc.
144
Ex. 23: (a) Strauss: acorde do recitativo final de Salome, redução; (b) decomposição do acorde em um ré# dominante e
em um lá dominante; (c) possíveis diatonismos implicados no ré# dominante e no lá dominante.
145
III. 4. Relações funcionais entre centralidades ‘difusas’
Propusemos acima uma maneira como entendemos que se possa, mesmo em contextos não-
triádicos e, ao menos a princípio, não-diatônicos: (a) identificar possíveis diatonismos locais, ainda
que não-unívocos e a posteriori, e; (b) correlacioná-los a possíveis centralidades por eles – também
a posteriori e de maneira não-unívoca – representadas. Mais fundamentalmente, deve-se notar ainda
que, para além da identificação de possíveis centralidades, uma tal abordagem propicia que, mesmo
em passagens não concebidas funcionalmente: (c) sejam especificados desvios com relação tanto
aos respectivos centros locais possíveis, como com relação aos próprios diatonismos supostos; (d)
que, assim, possam ser especificados notas, acordes etc. dissonantes e, sobretudo, as maneiras como
o são; e, finalmente, (e) que haja, localmente, uma manutenção epistêmica dos princípios funcionais
de (e1) hierarquia – porquanto cada nota, em uma dada passagem, é entendida como responsável de
maneira específica pelo delineamento ou obscurecimento das supostas centralidades vigentes – e
(e2) de teleologia – porquanto, sendo especificáveis as maneiras como os vários dissonantes se
desviam das centralidades supostas, são também especificáveis suas possíveis resoluções.
A fim de estendermos nossa capacidade de identificar possíveis relações funcionais de um
nível local para a globalidade de uma obra e, com isso, propiciarmos a elaboração e participação de
tais relações funcionais na estruturação ou delineamento formal de tal obra, entendemos que
possamos, a exemplo da monotonalidade de Schoenberg, compreender tais centralidades locais
como, elas próprias, passíveis de serem funcionalmente inter-relacionadas. Para tanto, contudo,
devemos reconhecer, também aqui – tal como o fizéramos com relação à identificação de
diatonismos virtuais –, alguns dos problemas com os quais uma tal abordagem haverá de lidar.
Primeiramente, deve ser posta em questão a própria adequação da noção schoenberguiana de
‘monotonalidade’ a obras que não sejam concebidas em função de expressar uma única tonalidade
principal [Haupttonart] à qual todas as demais tonalidades se reportem – quer porque tais obras, a
exemplo do Prelúdio de Tristão…, ou de “Mignon II”, de Wolf, pareçam fundadas sobre duas ou
mais Tonarten principais, quer porque tenham, mais simplesmente, abandonado a tonalidade
funcional, a exemplo dos Opp. 11 e 19 de Schoenberg. Em sentido estrito, se Schoenberg entende
por ‘monotonalidade’ o princípio pelo qual toda tonalidade secundária em uma dada obra está
subordinada a uma única tonalidade principal, então tal noção dificilmente se aplicará de maneira
adequada a tais casos – e, de fato, o próprio Schoenberg, ao abordar por tal princípio a Fantasia, Op.
77 (1809) de Beethoven, iniciada em Sol menor e terminada em Si maior, veio a considerar que o
produto de sua análise seria “muito artificial” e serviria, antes, “para demonstrar a ausência de um
centro tonal” (1954[1948]; p. 186; cf. 2004[1948], p. 209).
146
Por outro lado, podemos nos valer antes da própria premissa sobre a qual está fundada a
noção de ‘monotonalidade’ – i. e., de que as várias Tonarten visitadas ao longo de uma dada obra
possam ser funcionalmente relacionadas entre si – para que venhamos a compreender, em nossa
abordagem analítico/composicional, as várias centralidades locais por nós identificadas em uma
dada obra ou passagem como possíveis regiões umas das outras. Desse modo, mesmo que as várias
centralidades locais de uma obra não sejam convergentes em torno de uma única Haupttonart, elas
poderão, ainda assim, ser entendidas como constituintes de uma única rede de inter-relações
funcionais, em que (a) tais centralidades portam funções, umas com relação às outras; (b) em que
centralidades em torno das quais outras venham a convergir sejam entendidas, a exemplo de uma
Haupttonart, como hierarquicamente superiores com relação às demais; mas que (c) tais
centralidades privilegiadas não deixem de, elas próprias, serem compreendidas (c 1) como
funcionalmente relacionadas entre si e (c 2) como ainda portadoras de funções com relação àquelas
que lhes sejam subordinadas. Assim, far-se-ia relevante apontar que as duas Haupttonarten do
Prelúdio de Tristão… (Lá, Dó e suas homônimas) são paralelas entre si; que o Lá bemol maior
predominante em “Mignon II” é uma napolitana do Sol menor em que termina a canção e que o Sol
menor pode portar, reciprocamente, alguma funcionalidade com relação a Lá bemol etc.
Em segundo lugar, deve-se reconhecer que a consistência com que as centralidades poderão
ser inter-relacionadas tende a ser desafiada pelo fato de que tanto as centralidades locais, por si
mesmas, como as possíveis relações funcionais entre estas podem ser frequentemente entendidas de
duas ou mais maneiras distintas. Sobre as centralidades locais, entendemos que estas tendam a uma
maior ambiguidade (a) tanto à medida em que as respectivas passagens que supostamente as
expressem portem mais desvios com relação às suas respectivas bases diatônicas convencionais,
como (b) à medida em que tais centralidades locais, ou os diatonismos que as representem se façam,
a exemplo dos Durchführungen dos séc. XVIII e XIX, mais instáveis, obscurecendo-se as passagens
entre as possíveis centralidades vigentes a cada momento e havendo uma mais intensa interação
entre estas. Quanto às relações funcionais entre tais centralidades, por sua vez, podemos entender
que, a exemplo do que observáramos com relação às duas tonalidades iniciais de “Auf dem Flusse”,
de Schubert (Mi menor e Ré# menor: ver pp. 116 ff., acima; cf. Cap. II. 2, pp. 45 ff.), quanto mais
distantes, em termos funcionais, estiverem entre si duas Tonarten – ou, mais amplamente, duas
centralidades locais –, mais intermediada por outras regiões será a relação entre tais Tonarten, mais
possibilidades de intermediação haverá entre estas e, consequentemente, mais ambígua tenderá a ser
tal inter-relação funcional.
Em parte, a identificação de possíveis diatonismos locais, a especificação de notas
dissonantes com relação aos respectivos diatonismos supostos e, sobretudo, a especificação das
possíveis resoluções de tais dissonantes nos permitem em muitos casos, por meio de uma ação
147
composicional: (a) tornar mais pronunciado um ou outro dentre os possíveis centros expressos por
um dado acorde ou passagem, atenuando, assim, a ambiguidade de uma tal centralidade local e,
ademais; (b) eleger, dentre tais centros possíveis, aqueles mais diretamente relacionados entre si, ou
a uma possível Haupttonart que se deseje privilegiar, tornando, assim, mais claras e convergentes
as relações funcionais entre os acordes e passagens envolvidos em uma tal elaboração
composicional. No Op. 19, no 6 de Schoenberg, e. g., para além de ser possível, tal como
demonstrado pouco acima, inflectir um mesmo (ou basicamente um mesmo) dado agregado
harmônico em direção à expressão mais clara de ao menos cinco centros distintos por meio da
adição, ao piano original e inalterado, de uma única linha melódica; posto que alguns dentre tais
centros possíveis são mais proximamente relacionados a Sol – sobretudo Mi menor (paralela) e Dó
menor (subdominante menor), para além do próprio Sol –, poder-se-ia também (como o atesta o Ex.
25, na página seguinte) fazer convergir as várias ocorrências do agregado em questão em torno de
tal tonalidade, concedendo-se assim a esta um status privilegiado com relação às demais.
148
Ex. 25: Schoenberg: Op. 19, no 6, com adição de linha melódica. Convergência em torno de Sol maior/menor.
149
Por outro lado, se reconhecermos: que um procedimento como o supracitado – i. e., de
atenuar, por meio de uma ação composicional, a ambiguidade das centralidades locais – tenha sua
eficiência limitada conforme o objeto abordado seja mais intensamente cromático ou instável; que,
por vezes, a ação composicional possa ela própria conceder primazia a uma dada dissonância
processual identificada no objeto, limitar-se deliberadamente pelas possibilidades oferecidas por tal
dissonância processual e assumir como subordinada a tais possibilidades a busca por evidenciar
centralidades locais, inter-relacioná-las etc. (oferecemos exemplo especialmente claro de uma tal
conduta composicional em minha reelaboração do tema das Variações Orquestrais, Op. 31 de
Schoenberg, relatada adiante, pp. 178 ff.); ou, ainda, que, por vezes, a ação composicional possa
estar interessada antes na própria ambiguidade funcional do objeto do que em uma relação
funcional específica (ver relato composicional de estrada esquecida…, adiante, sobretudo pp. 210-
1); então, perante tais casos, recoloca-se a questão a respeito de como lidar com o caráter difuso das
centralidades locais e de suas funcionalidades recíprocas, sem que se abra mão de inter-relacioná-
las funcionalmente.
Uma vez mais, podemos encontrar em repertório inserido na própria tradição tonal um
modelo para que lidemos com o problema colocado. Embora o “estilo sonata”, como o denomina
Rosen, seja identificável não apenas em obras instrumentais, mas também em óperas e missas do
séc. XVIII, ou mesmo em eventuais obras com caráter programático – como o segundo movimento
da Sinfonia no 6, Op. 68 (1808) de Beethoven – e embora o texto ou o eventual conteúdo
programático costumem ter alguma influência no delineamento formal de tais obras, a estruturação
formal destas parece ser governada sobretudo por relações funcionais em larga-escala. Como o
demonstra Rosen em seu Sonata Forms (1980), especialmente nos Allegros, mas também em outros
tipos de movimentos, há frequentemente uma oposição em larga-escala entre a Haupttonart e sua
dominante – ou alguma outra tonalidade secundária –, em que material originalmente apresentado
nessa tonalidade dissonante tende a ser resolvido ao ser reexposto na Haupttonart (consonante) e
mesmo material originalmente exposto na própria Haupttonart será eventualmente reelaborado em
maior proximidade com a tônica, caso enfatizasse alguma outra função desta em sua primeira
apresentação. (Rosen, op. cit., pp. 301-4, o exemplifica com o Finale do quarteto Op. 17, no 1 de
Haydn, em que um tema exposto na Haupttonart, mas enfático de sua subdominante, vem a ser
reelaborado na tônica já nos últimos compassos da coda do movimento em questão.)
Deve-se notar, contudo, que são também características do estilo sonata as passagens
intensamente modulatórias de desenvolvimento motívico (os Durchführungen), nas quais, como já
observado, tal caráter modulatório, bem como a passagem por regiões distantes – não apenas da
Haupttonart, mas também entre si – tendem, muitas vezes, a obscurecer suas relações funcionais
internas. Com relação às seções tipicamente mais extensas de Durchführung que costumam suceder,
150
sobretudo em Allegros, a seção estabelecida sobre a tonalidade dissonante, Rosen aponta como tais
Durchführungen teriam a função de “intensificar a polarização [entre tônica e dominante, em larga-
escala] e retardar a resolução” formal sobre a Haupttonart (id., pp. 262-3 e 106) e, afora a textura
tipicamente polifônica e fragmentária, o próprio caráter modulatório de tais seções far-se-ia
responsável por estender tal dissonância formal: a instabilidade do Durchführung faz-se dissonante
em oposição à estabilidade consonante assumida pela Haupttonart na exposição e na recapitulação.
Com relação, por sua vez, às passagens de Durchführung comumente ocorridas já após o
retorno à Haupttonart – o ‘desenvolvimento secundário’ –, Rosen aponta como, aqui, as técnicas de
desenvolvimento já não têm a função de prolongar a tensão formal gerada na exposição, mas, ao
contrário, “de reforçar a resolução sobre a tônica” (id., p. 106): neles, a tensão harmônica gerada
pela oposição entre a Haupttonart e a tonalidade de sua dominante seria diminuída ao se introduzir
uma “alusão à subdominante ou às tonalidades ‘bemóis’ relacionadas” (id., p. 289). “A
subdominante”, escreve Rosen, “assume um papel especial no estilo sonata; ela age, ela mesma,
como uma força de resolução, uma anti-dominante, de fato, e há uma tendência na segunda metade
de uma sonata de mover-se em direção à subdominante e às tonalidades bemóis relacionadas” (id., p.
288).
Ao tratarmos, em nosso Cap. I. 2. 3, das funções lato sensu que as funções stricto sensu (i. e.,
as funções tal como conceituadas por Riemann) portariam, apontáramos já como uma das principais
funções (lato sensu) das tríades de subdominante (maior, menor e respectivas paralelas) seria a de
evidenciar que as tríades sobre o I e o V graus de uma dada Tonart portariam, respectivamente, as
funções (stricto sensu) de tônica e dominante – i. e., que o V grau não se trataria, no devido
contexto, de uma tônica da qual o I grau seria a subdominante – e, dentre as maneiras como isto se
dá, algumas não seriam exclusivas a tais tríades de subdominante. Primeiramente, podemos
entender que: (a) se, frente às tríades de I e V graus de uma dada Tonart, as tríades de
subdominante são mais diretamente relacionadas àquela do que a esta e; inversamente, (b) se a
tríade de dominante é mais diretamente relacionada ao I grau do que às tríades de subdominante;
então, (c) dadas três tríades hipotéticas respectivamente referentes aos graus/funções supracitados,
estas tendem a convergir em torno do I grau, concedendo-lhe, também por isso, centralidade e,
possivelmente, o status de tônica (ainda que local). Se, ainda, reportando-nos aos itens (a) e (b),
podemos entender que tríades proximamente relacionadas (em termos funcionais) às subdominantes
de uma dada Tonart tendem também a ser mais proximamente relacionadas à tônica desta Tonart
do que à dominante (ver Ex. 26, abaixo); então, perante a tônica e a dominante de uma dada Tonart,
também as tríades que, embora não correspondentes às suas subdominantes stricto sensu, sejam
funcionalmente relacionadas a estas tenderão a convergir sobre a tônica. Ademais, se temos, por
meio do conceito de regiões de Schoenberg, inter-relacionado funcionalmente centralidades locais
151
de maneira análoga a como seriam relacionadas suas respectivas tríades centrais, então, podemos
entender que tal propriedade das subdominantes e dos acordes mais proximamente relacionados a
esta se estenda também ao nível das regiões tonais: frente a uma Haupttonart e à região de sua
dominante, tanto as regiões de subdominantes como as regiões funcionalmente relacionadas a estas
tenderão a convergir sobre a Haupttonart.
Ex. 26: Tríades de (a) fá maior; (b) fá menor; (c) lá bemol maior; (d) ré bemol maior, respectivamente relacionadas a
uma Haupttonart de Dó maior, à região de sua subdominante (Fá maior) e à região de sua dominante (Sol maior). Os
números à direita de cada interpretação funcional, variando de 1 a 5, reportam-se à classificação das relações funcionais
como mais ou menos próximas de um dado centro tonal, conforme proposto por Schoenberg (2004[1948], pp. 91-8), e,
embora a objetividade de tal classificação possa ser posta em questão, ela tem aqui o mero intuito de favorecer uma
visualização das distâncias funcionais relativas.
Uma segunda maneira como podemos entender que se dê tal função (lato sensu) da
subdominante de centralizar o I grau, em oposição ao V – e que, igualmente, se estende para além
das tríades propriamente de subdominante –, reside no fato de que subdominantes e dominante se
equilibram em torno da tônica ao se situarem, com relação a esta, nas respectivas direções de
bemóis (i. e., à sinistra, no ciclo de quintas) e dos sustenidos (à destra; ver Ex. 27). Se observarmos
que, de modo geral, (a1) as tríades ou regiões funcionalmente mais próximas da subdominante do
que da dominante situam-se também, predominantemente, na direção dos bemóis, com relação à
tônica; que, inversamente, (a2) as tríades ou regiões funcionalmente mais próximas da dominante
do que da subdominante situam-se, via de regra – uma exceção é a homônima da dominante –, na
direção dos sustenidos; e, se considerarmos, ademais, que (b1) as sucessivas dominantes de
dominantes anteriores fazem-se progressivamente ‘mais sustenidas’ com relação a estas (Ex. 28a) e,
inversamente, (b2) que as sucessivas subdominantes de subdominantes anteriores fazem-se
progressivamente ‘mais bemóis’ (Ex. 28b) – o que explica a equivalência que Rosen faz entre
‘direção das subdominantes’ e ‘direção dos bemóis’ (ver, e. g., 1980, pp. 288-90) –; então,
poderemos considerar: (1) que as tríades e regiões ‘mais sustenidas’, com relação a uma dada
tônica, são, via de regra, mais próximas de sua dominante; (2) que, inversamente, as tríades e
regiões ‘mais bemóis’, com relação a uma dada tônica, são, via de regra, mais próximas de sua
subdominante; (3) que, de modo geral, as regiões ‘bemóis’ e ‘sustenidas’ com relação a uma dada
Haupttonart podem cumprir com as respectivas funções lato sensu da subdominante e da dominante
de se oporem, uma à outra, em torno de e convergindo na Haupttonart.
152
Ex. 27: Tríades de dominante e subdominante representadas no ciclo de quintas, com relação à tônica.
Ex. 28: Representação, no ciclo de quintas, de: (a) sucessivas dominantes de dominantes; (b) sucessivas subdominantes
de subdominantes.
Há ao menos dois cuidados a se tomar em uma tal correlação entre dominantes e sustenidos,
ou entre subdominantes e bemóis. Primeiramente, posto que, no temperamento moderno, ou em
sistemas afins de afinação, qualquer nota pode vir a ser enarmonizada, deve-se observar que: (1) em
boa medida, identificar se uma dada nota, acorde ou região é ‘mais sustenida’ ou ‘mais bemol’
(com relação a uma dada referência) depende da maneira como tal nota, acorde ou região vieram a
ser introduzidas; (2) que, assim, quanto mais remoto, no ciclo de quintas, for um dado acorde ou
região e quanto mais brusca a maneira como este se introduz, mais ambígua sua condição de
‘sustenido’ ou ‘bemol’ com relação ao acorde ou tonalidade de referência e; (3) que um progressivo
direcionamento às regiões bemóis conduzirá, eventualmente, às regiões sustenidas – e vice-versa –
e ainda, ulteriormente, de volta ao ponto de partida de uma tal progressão. A esse respeito,
153
demonstráramos já, na Sinfonia no 3 de Brahms, e. g., como a tonalidade secundária de Lá maior,
embora se tratasse de uma dominante da paralela da Haupttonart Fá maior (‘sustenida’, portanto,
com relação a essa Haupttonart), fora alcançada por meio da direção dos bemóis (ver pp. 44-5, Cap.
II. 2, acima), ou como no final de Gesang der Parzen Brahms partira e retornara à Haupttonart Ré
por meio de um contínuo direcionamento aos sustenidos (ver, pp. 45-7, acima Ex. 16). (Realizo algo
semelhante em canção sobre o poema “Debussy”, de Manuel Bandeira, reproduzida pouco adiante,
Ex. 40, p. 162).
Em segundo lugar, deve-se reconhecer que apenas parte da funcionalidade de dominantes e
de subdominantes – i. e., a função lato sensu de que estas se oponham, uma à outra, em torno da
tônica, como já colocado – pode ser generalizada às respectivas direções de sustenidos e bemóis e
que, assim, as funções de dominante e subdominante tendem a ser mais plenamente realizadas pelos
acordes ou regiões respectivamente fundados sobre as próprias dominantes e subdominantes de
uma dada tonalidade de referência do que por quaisquer outros acordes e regiões sustenidos ou
bemóis com relação a tal tonalidade central. Semelhantemente, entendemos que as funcionalidades
de demais tonalidades secundárias inclua, mas não se reduza ao fato de estas se situarem, conforme
o caso, na direção dos bemóis, ou dos sustenidos, com relação à tonalidade de referência e, assim,
identificar que uma dada tonalidade secundária se situe na direção das subdominantes ou das
dominantes não exclui a possibilidade de que se lhe atribua uma funcionalidade específica (e. g., de
homônima menor, de dominante da paralela, de napolitana etc.).
Feitas tais observações, uma correlação, como aqui se propõe, entre as direções sustenidas e
bemóis e as funcionalidades, respectivamente, de dominantes e subdominantes oferece-nos uma
diversidade de possibilidades, tanto analíticas (quanto à identificação de relações funcionais), como
composicionais (quanto à elaboração de tais relações).
Primeiramente, posto que identificar se um dado acorde ou passagem se situa na direção dos
sustenidos ou dos bemóis com relação a uma tonalidade de referência prescinde, em boa medida, da
especificação da centralidade vigente em tal acorde ou passagem, bem como da especificação de
sua função com relação à referência, uma correlação como a que ora se propõe favorece que, como
o desejáramos, inter-relacionemos funcionalmente centralidades locais, mesmo mediante a possível
ambiguidade de tais centralidades e de suas funcionalidades. Em “Betrachte meine Seele” – Paixão
segundo João, BWV 245, no 31 (1724) –, e. g., após estabelecida, nos compassos iniciais, a
Haupttonart de Mi bemol maior, há, dos compassos 3 a 9, uma longa e variada sucessão de
dominantes – algumas das quais diminutas e, portanto, errantes –, de modo que, como se observa
no Ex. 29, abaixo, nenhuma centralidade se faz claramente expressa na passagem até que haja, no
cp. 9, uma cadência sobre Sol menor. Ainda assim, faz-se claro na passagem o progressivo
direcionamento rumo aos sustenidos e, de fato, a própria visita a Sol menor – ao invés da mais
154
convencional cadência sobre a dominante Si bemol – favorece que tal direção seja extremada: ao
passar, pouco antes da cadência, pela dominante da dominante de Sol (i. e., lá dominante) e por sua
dominante individual (mi dominante), Bach vem a introduzir as notas dó# e sol# no cp. 8, notas
mais sustenidas do que normalmente se encontraria, sem que se recorresse a cromatismo linear, em
Mi bemol ou Si bemol maior. Assim, ainda que tal passagem não expresse centralidades locais
claras e pudesse vir a ser entendida, nos termos de Schoenberg, como um exemplo de ‘harmonia
errante’ (2004[1954], pp. 19 e 187-8), ou de ‘tonalidade suspensa [aufgehobene Tonalität]’
(2001[1922], p. 529), pelos critérios ora propostos podemos compreender que, grosso modo, ela
realiza uma incursão pela região mais ampla de dominantes de Mi bemol. Após um imediato retorno,
no cp. 10, a essa tonalidade principal, a ênfase sobre as regiões ‘mais bemóis’ da subdominante lá
bemol (cp. 11-13) e da homônima menor (Mi bemol menor, cp. 14-15) parece reequilibrar as duas
direções em torno da Haupttonart (ver Ex. 30).
155
Ex. 30: Representação, no ciclo de quintas, das seguintes tonalidades ou passagens de “Betrachte meine Seele”: (a) Mi
bemol maior, cp. 1-2; (b) primeiros dois tempos do cp. 8; (c) Sol menor, cp. 9; (d) ênfase sobre a subdominante (lá
bemol maior), cp. 11; (e) ênfase sobre a homônima (mi bemol menor), cp. 14; (f) Mi bemol maior, cp. 16-18.
156
Ex. 31: Representação no ciclo de quintas: (a) do convencional modo maior de Dó; (b) do convencional modo menor de
Dó; (c) de uma variedade frígia de Dó.
Na frase final do Ave verum corpus de Mozart (Ex. 32), e. g., em que a Haupttonart de Ré
maior está já restabelecida e os acordes de sol menor (cp. 39) e mi maior (cp. 40) podem ser
respectivamente compreendidos como subdominante menor de Ré e dominante da dominante de Ré,
parte do efeito obtido pode ser atribuído – para além da ambiguidade da tétrade diminuta que
intermedia linearmente os dois acordes em questão, ou da carga semântica da passagem – à súbita
transição de um polo bemol da Haupttonart a um polo sustenido da mesma (Ex. 33).
157
Ex. 33: Representação no ciclo de quintas dos acordes de sol menor, de mi maior e da tônica ré.
Para um exemplo de aplicação de tais critérios a uma obra menos provavelmente concebida
funcionalmente, em “Ein Vöglein singt am Deinem Fenster”, quarta peça de Amour (1976), de
Stockhausen, uma basicamente mesma sequência de classes de alturas e de valores rítmicos é, por
cinco vezes, reiterada ao longo da peça, sendo deformada, a cada vez, por deslocamentos de registro,
incrustações de apojaturas e variações dinâmicas e de mode de jeu. Para além de tais deformações
conferirem à obra um gestual fragmentário, tipicamente serial (ver Ex. 34, abaixo), a própria
elaboração da linha parece se dar por um procedimento pós-serial – uma dissonância processual, da
perspectiva aqui assumida –: as catorze primeiras notas da linha, ignorando-se apojaturas e trinados,
apresentam já as doze notas do total cromático e mesmo as duas notas a serem até então repetidas, i.
e., sol# e si, o são imediatamente (ver Ex. 35). (De fato, a própria repetição parece aqui tratada de
maneira pós-serial, posto que ela parece dar-se em uma máxima variedade de níveis possíveis:
localmente, por meio sobretudo dos trinados, apojaturas e tremolos; em larga escala, pelas
supracitadas reiterações de tal sequência melódica; no interior da própria sequência, com a repetição
de sol#-si, com a repetição também imediata de ré# e, ao cabo da apresentação do total cromático,
com a repetição, reordenada, das sete primeiras notas apresentadas, em que uma destas, o sol, é ela
própria reiterada por três vezes.)
Ex. 34: Stockhausen: “Ein Vöglein singt am Deinem Fenster”, cp. 1-8.
158
Ex. 35: Sequência de classes de alturas em “Ein Vöglein singt am Deinem Fenster”, ignorando-se apojaturas, trinados e
variações de registro. Estão assinalados segmentos diatônicos.
Ex. 36: Representação no ciclo de quintas dos respectivos segmentos diatônicos acima assinalados na seqüência
melódica de “Ein Vöglein singt am Deinem Fenster”.
No duo de violas reproduzido abaixo (Ex. 37), escrito no início de 2016, escrevi a viola 1 de
maneira em alguma medida semelhante à sequência melódica reiterada em “Ein Vöglein singt…”:
em uma melodia a cada momento diatônica, assumi como projeto apresentar todas as doze notas do
total cromático, de modo que a última destas fosse introduzida apenas na última frase da peça. Na
viola 2, escrita predominantemente em due corde e sempre em cordas soltas, as quatro cordas
deveriam ser todas, também, empregadas ao longo da peça, sendo a última destas executada apenas
ao final.
159
Ex. 37: Duo para professor e aluno de viola.
Após ter determinado a ordem em que os pares de cordas soltas seriam introduzidos – sol-ré,
ré-lá, sol-ré, dó-sol –, sendo as duas cordas mais agudas as ‘mais sustenidas’ e as mais graves, as
‘mais bemóis’, decidi escrever a viola 1 de modo que tal relação se invertesse: que os pares de
cordas ‘mais bemóis’ fossem inseridos no contexto ‘mais sustenido’ que permitisse preservar uma
centralidade clara – e, assim, tais pares foram tratados, basicamente, em Si menor – e que o par de
cordas ‘mais sustenido’ fosse tratado na região ‘mais bemol’ pela qual a peça viesse a passar – e tal
par foi tratado, basicamente, em Sol menor (Ex. 38). Assim, embora a relação funcional entre Si
menor e Sol menor seja indireta e difícil de se especificar se não por intermédio de uma terceira
tonalidade (e. g., Ré maior, ou Sol maior), faz-se claro no delineamento formal da peça um percurso
de Si à região ampla das subdominantes (i. e., dos bemóis) e de volta a Si e, sobretudo, deve-se
observar como tal percurso harmônico interage tanto local-, como globalmente com as
especificidades do material harmônico de que partira o processo composicional da peça – i. e., as
cordas soltas da viola, por um lado, e uma ordenação em larga-escala do total cromático, por outro.
160
Ex. 38: Representação no ciclo de quintas dos seguintes trechos do duo de viola: (a) cp. 5-6, Si menor, pedal em sol-ré;
(b) cp. 7-8, Sol menor, pedal em ré-lá; (c) cp. 13-14, Si menor, pedal em dó-sol.
Ex. 39: Brahms: Intermezzo, Op. 118, no 2: (a) fá maior, cp. 20-21; (b) mi# maior (grafado como fá maior), cp. 58-60.
161
Ex. 40: sobre ‘Debussy’.
162
III. 5. Relatos composicionais
Tendo até aqui proposto meios técnicos destinados a possibilitar – mesmo em acordes,
passagens e obras não concebidos funcionalmente, ou que não apresentem, a princípio, os principais
aspectos morfológicos da tonalidade funcional – a identificação (a posteriori) e elaboração
composicional de centralidades e relações funcionais difusas, nos subcapítulos que se seguem
realizo, finalmente, três relatos composicionais de peças que escrevi junto à elaboração deste
trabalho. Os processos composicionais de todas as três obras aqui apresentadas têm em comum um
mesmo objetivo de partida: de integrar funcionalmente distintos dissonantes e de dissonâncias
processuais e, assim, conceder-lhes participação, em termos funcionais, nas estruturações formais
de cada uma das peças em questão.
Entendendo que, de modo geral, os processos de estruturação harmônica de obras tendam,
ao menos potencialmente, a interagir com uma diversidade de outros aspectos da composição; que,
por isso, a estruturação harmônica de obras singulares tenda também à singularidade e; que,
portanto, seria virtualmente impossível elencar de maneira sistemática e exaustiva o conjunto de
possibilidades composicionais propiciadas pelos meios técnicos acima expostos; os relatos que se
seguem visam ademais, com relação à própria estratégia de exposição desta terceira e última seção
do trabalho, oferecer exemplos de como, em projetos composicionais singulares, tais meios técnicos
de identificação e elaboração de centralidades e funcionalidades difusas vêm a conjugar-se a
aspectos rítmicos, ao idiomatismo dos instrumentos para os quais as peças foram escritas, a
dissonâncias processuais, a procedimentos melhor sedimentados na história da tonalidade funcional
etc., para revelar, assim, ao menos parte de seu potencial de criação.
163
III. 5. 1. de mariposas e teares (sonata ao Mekong)
27
Ver, a esse respeito, Arom, 1989, pp. 91-99; Bouliane, 1990, pp. 98-132; Ligeti, 1990, pp. 8-9.
164
Ex. 41: Estruturação rítmica prévia de mariposas….
165
Ex. 42: de mariposas e teares: (a) rasgueado, no cp. 15; (b) tratamento motívico das semicolcheias tercinadas, nos
compassos 20-22; (c) arpejos, nos compassos 8-9.
Também quanto à organização em maior escala da peça tal estrutura rítmica fora, de partida,
propositiva, ao esboçar já em si mesma um delineamento formal: a interrupção do fluxo de
semicolcheias no cp. 15, e. g., sugeria já um momento de articulação formal e a segunda interrupção,
no cp. 31, viria a introduzir uma breve seção contrastante, com a predominância das quiálteras de
valores longos; nos cp. 35-38 haveria um gradual retorno ao comportamento rítmico inicial,
finalmente interrompido por um novo rasgueado no compasso final. Ademais, a alternância
irregular entre agrupamentos de duas ou três semicolcheias parece assumir caráter motívico, de
modo que os momentos em que um tal comportamento rítmico é iniciado ou retomado poderiam vir
a ser formalmente relacionados entre si.
Tanto a distribuição das principais tonalidades a serem estabelecidas ao longo da peça, como
a determinação de momentos específicos em que deveriam ocorrer os acordes cromáticos que eu
desejara integrar à sua estrutura harmônica se deram, em boa medida, em função desse
delineamento formal oferecido pela estrutura rítmica pré-estabelecida. Primeiramente, a fim de
favorecer a exequibilidade da figuração arpejada que viria a ser predominante na peça, optei por
privilegiar, em tais passagens, tonalidades em cujos diatonismos pudessem abundar notas
correspondentes às cordas soltas do violão (i. e., mi, si, sol, ré e lá). Assim, determinei que, ainda
que de maneira instável e difusa, os primeiros compassos (até o rasgueado do cp. 15), bem como os
compassos finais, a partir do cp. 39, expressariam sobretudo uma centralidade em Ré e; que, junto
ao restabelecimento do padrão de semicolcheias no cp. 17, seria sobretudo expressa a região da
dominante Lá, tendendo a um caráter mais instável e modulatório conforme se aproximasse o novo
rasgueado, no cp. 31. Quanto a este rasgueado, determinei ainda que este deveria ser tratado como
um clímax da peça, o que, para além do caráter instável e modulatório que o deveria circundar,
envolveria: (1) que este fosse o momento de apresentação de ao menos um dentre os acordes-alvo e;
(2) que, em torno desse ponto, se articulasse uma modulação entre tonalidades distantes no ciclo de
166
quintas. Desejando que essa peça fosse, ao modo de uma sonata, especialmente coesa, em termos de
suas relações funcionais – ainda que as centralidades locais, propriamente, pudessem ser, como já
colocado, instáveis e difusas –, e considerando que a seção precedente a esse rasgueado dar-se-ia na
região da dominante de Ré, determinei que a seção de quiálteras de valores longos seria, em
oposição ao trecho precedente, iniciada na região da subdominante de Ré, tendendo em seguida a
um movimento modulatório em direção aos bemóis; por sua parte, mantendo tal rasgueado do cp.
31 como o eixo em torno do qual as regiões amplas de dominantes e de subdominantes viriam a se
opor, o movimento modulatório que precedesse tal rasgueado deveria, então, se dar na direção dos
sustenidos e, a fim de manter uma relação direta com Ré, determinei que tal passagem iria em
direção à região de sua paralela, Si. O Ex. 43, abaixo, indica sobre o plano rítmico da peça tais
determinações a respeito de sua estruturação harmônica.
167
Sobre os acordes-alvo, haveria, em nossa concepção estendida de diatonismo, duas
principais maneiras como estes pudessem ser em si mesmos cromáticos, sem que deixassem de se
reportar a uma base diatônica: a primeira, como víramos, seria por meio da incorporação a um tal
acorde de uma ou mais notas que, embora desviadas de tal base diatônica, seriam tratadas como
sensíveis individuais de notas próprias a esta; a segunda, por sua vez, seria pela assunção de uma
ambiguidade funcional no próprio nível do diatonismo de base. A primeira, como o ilustra o Ex.
44a, permite uma via ‘mais sustenida’ de se obter um tal cromatismo sincrônico: em um acorde de
dominante, e. g., faz-se possível, para além da sétima e da nona bemol convencionais, acrescentar a
sensível de sua fundamental. A segunda maneira, por sua vez, permite uma via ‘mais bemol’ de se
obter um tal cromatismo: em uma dominante germânica (lá germânico, e. g.; ver Ex. 44b), faz-se
possível atribuir ao acorde que lhe é enarmônico (i. e., mi bemol dominante, no caso) sua nona
bemol e, ademais, sobrepô-lo a um pedal sobre a fundamental do acorde ou região em que se
pretende cadenciar. (Demonstráramos em repertório um tal caso com o acorde de Salome; ver Ex.
23, p. 145, acima.)
Ex. 44: (a) lá dominante com sétima, nona bemol e sensível de sua fundamental; (b) correspondente germânica do lá
dominante, com sua nona bemol e baixo correspondente à sua iminente resolução, ré.
168
já com o claro delineamento de um fá# dominante e sucedê-lo de maneira tal que o mi# de fato
progredisse a um fá# (ver Ex. 45c).
Ex. 45: (a) fá# dominante com sétima, nona bemol e sensível de sua fundamental; (b) acorde do cp. 31 de mariposas…;
(c) de mariposas e teares, cp. 30-32.
169
Ex. 46: (a) mi germânico; (b) si bemol dominante, enarmonicamente correspondente a mi germânico; (c) si bemol
dominante com acréscimo de nona bemol e baixo em lá; (d) de mariposas e teares, cp. 48.
Uma vez especificados tais acordes-alvo; uma vez atribuídas a eles funcionalidades com
relação a centralidades também específicas; uma vez funcionalmente inter-relacionados por suas
próprias construções, nesta oposição entre direções bemóis e sustenidas; uma vez constituídos de
modo a valorizar as respectivas figurações rítmicas e os respectivos gestos violonísticos em que se
realizariam; haveria ao menos duas maneiras como tais acordes poderiam ser ainda mais
profundamente integrados não apenas à estruturação harmônica da obra, mas a seu processo
composicional como um todo. Primeiramente, as próprias dissonâncias – i. e., as operações de
desvio – que produziram tais acordes poderiam vir a participar da elaboração de outras passagens,
de modo que, por meio da proliferação dessas mesmas operações que os produziram, tais acordes se
projetassem sobre o restante da peça. Nesse sentido, algumas decisões composicionais foram
tomadas:
• se, com relação a um modelo fundamentalmente triádico, tais acordes foram desviados por
meio de alterações cromáticas (e. g., o acréscimo da sensível no cp. 31, ou da nona bemol
no cp. 48, o rebaixamento da quinta inerente à matriz germânica desse segundo acorde etc.),
então determinei que tal tipo de desvio seria generalizado ao longo da peça. Assim, já na
primeira progressão de cunho cadencial da peça, e. g., o lá dominante do cp. 5 (Ex. 47a) tem
sua quinta rebaixada e o acréscimo de sua nona bemol; o mi dominante do cp. 23, por sua
vez, inclui as respectivas sensíveis – devidamente resolvidas – de sua terça e de sua sétima
(Ex. 47b).
170
Ex. 47: de mariposas e teares: (a) cp. 5-6; (b) cp. 23.
Ex. 48: Protagonismo melódico: (a) nos cp. 1-4 de mariposas… e; (b) nos cp. 17-21.
171
Como tais acordes seriam respectivamente equivalentes a um dó# menor e a um si
menor, ambos com acréscimo de sexta, decidi encadeá-los por meio do acorde menor
com sexta cromaticamente situado entre os dois (dó menor com sexta), ainda que tal
acorde não tivesse funcionalidade clara com relação aos acordes vizinhos, ou à
centralidade em questão – e algo semelhante se deu no cp. 32. Entre os compassos 33 e
34 (Ex. 50, pouco abaixo), semelhantemente ao exemplo já examinado da Polonaise S.
519 de Liszt (pp. 78-9 e 122-3, acima), encadeei um sol menor a uma espécie de dó
bemol maior basicamente por conta de todas as notas entre tais acordes se situarem a um
semitom de distância de alguma nota do outro e; semelhantemente a como
compreendêramos o dito “acorde de Mozart”, o acorde si#-ré#-fá#-si bemol arpejado no
cp. 45, por sua vez, é inteiramente concebido como cromatização do lá dominante que o
sucede (Ex. 49b).
Ex. 49: de mariposas e teares: (a) cp. 15-16; (b) cp. 45. Assinalados, acordes resultantes de cromatismo linear.
• Se, para além das alterações cromáticas, os acordes-alvo são desviados de uma base triádica
também por meio do acréscimo de cordas soltas do violão, ou de notas-pedal, então
determinei que também estas dissonâncias viriam a ser proliferadas na peça. Assim:
172
Ex. 50: de mariposas e teares: cp. 33-36.
Ex. 51: de mariposas e teares: (a) cp. 1-3; (b) cp. 31-32. Assinalados, acordes em cujas construções a presença de
cordas soltas foi um critério privilegiado.
173
• Se, no segundo dentre os acordes-alvo, sua cromatização vertical se devia, em boa medida, à
ambiguidade inerente à dominante germânica e à intercambialidade entre esta e a dominante
que lhe é enarmônica, então decidi valer-me de tal intercambialidade em outros momentos
da peça. Nos compassos 4 e 5 (Ex. 52a), e. g., logo antes de uma progressão cadencial sobre
Ré, a díade si bemol-mi bemol é sucessivamente tratada como quinta e fundamental de um
mi bemol dominante (cp. 4) e como nona bemol e quinta bemol de uma dominante
germânica fundada em lá (cp. 5), efetiva dominante de Ré; no cp. 14 (Ex. 52b), por sua vez,
aquela espécie de mi dominante cromaticamente alterada do cp. 15 (cf. Ex. 49a, pouco
acima) é antecipada não apenas por um fá dominante – enarmônico de si germânico –, mas
por todo um movimento cadencial do tipo iv-V-[I] que normalmente apontaria para Si bemol.
Ex. 52: de mariposas e teares: (a) cp. 4-6; (b) cp. 14-15.
◦ No cp. 22, ademais, conjuguei: (a) uma nova substituição da dominante de mi por sua
correspondente germânica (i. e., fá dominante) a; (b) uma substituição da terça e da
quinta deste fá dominante por suas respectivas sensíveis; e obtive, com isso, uma
inversão enarmônica do acorde de Tristão, a qual, por uma via bastante diversa à do
acorde original, cadencia também sobre um mi dominante:
174
Ex. 53: de mariposas e teares, cp. 22-23.
175
Ex. 54: de mariposas e teares: (a) cp. 29-30; (b) cp. 47-48.
◦ No cp. 49, logo antes do final da peça, incluí finalmente um acorde que, embora não
estivesse previsto em etapas anteriores do processo composicional, apresentava,
finalmente, quatro classes de altura cromáticas entre si em efetiva sincronia: um lá –
dominante da centralidade principal de Ré – com sétima, nona bemol, fundamental e
sensível de sua fundamental (Ex. 55). Observo que um tal acorde, embora em outra
disposição, ocorrera no primeiro movimento da Sinfonia no 9 (1908-9) de Mahler, cp.
142 (ver Ex. 71b do Cap. II. 4. 5, p. 112, acima).
Uma segunda maneira, finalmente, como os acordes-alvo poderiam estar ainda mais
arraigados na estruturação harmônica da peça seria apresentar parcialmente seus respectivos
conteúdos harmônicos em outras passagens e com relação a outras centralidades que não aquelas
inicialmente previstas ao concebê-los. Fiz isso apenas com o primeiro dos acordes-alvo (Ex. 56a), o
qual me parece morfologicamente mais inusitado e ambíguo do que o segundo: no cp. 1 (Ex. 56b),
suas três notas superiores são apresentadas em Ré, sendo sol e dó# respectivamente correspondentes
ao IV grau e à sensível e sendo o mi# uma sensível individual do III grau maior; no cp. 6 (Ex. 56c),
ainda em Ré, suas quatro notas superiores formam uma espécie de ré menor, com a sétima menor e
176
em que o sol sobra como uma ressonância do acorde anterior; no cp. 19 (Ex. 56d), suas quatro notas
superiores são tratadas como constituintes de uma dominante de fá# em que, afora a fundamental
(dó#) e a terça (mi#), estão presentes a nona bemol (ré) e a quinta rebaixada (sol); no cp. 23 (Ex.
56e), suas cinco notas inferiores participam de um mi dominante, em que, para além da fundamental,
da quinta e da sétima, são inclusas as respectivas sensíveis (fá## e dó#) de sua terça e de sua sétima;
no último compasso (Ex. 56f), por fim, suas cinco notas superiores, acrescidas do lá pedal, foram
concebidas como uma verticalização de um diatonismo de Ré, em que se faz ambíguo se a nota
mais aguda é o III grau (fá) de Ré menor, ou sensível individual (mi#) do III grau de Ré maior.
Ex. 56: de mariposas e teares: (a) cp. 31; (b) cp. 1; (c) cp. 6; (d) cp. 19-20; (e) cp. 23; (f) cp. 50.
177
III. 5. 2. palimpsesto à Calder – sobre o Op. 31 de Schoenberg
Ex. 57: Schoenberg: compassos iniciais do tema das Variações Orquestrais, com série original indicada.
178
Ex. 58: Schoenberg: início do tema das Variações Orquestrais, com a harmonização de 1931. Adaptado de Schoenberg:
1960[1931], p. 33.
179
linhas melódicas; mas em que (c) todo o material por mim acrescentado derivasse da mesma série
dodecafônica de que se constituíra o tema melódico; (d) em que os procedimentos de variação da
série original fossem os mesmos empregados por Schoenberg – transposição, inversão,
retrogradação, segmentação etc. –, ou, ao menos, proximamente relacionados aos procedimentos
mais tipicamente dodecafônicos; e (e) em que fossem, tanto quanto possível, mantidos acordes da
harmonização original de Schoenberg, apenas recontextualizados de modo a que assumissem
funcionalidades mais claras. Do efetivo instrumental original, decidi manter, para além de
violoncelo e violino – ambos solo, nesta nova versão –, a harpa e, no lugar dos sopros originalmente
empregados por Schoenberg, optei por empregar: um violão, para que dividisse com a harpa as
enunciações das séries que eu viria a acrescentar – posto que ele teria a possibilidade, como a harpa,
de executar não apenas segmentos melódicos, mas também acordes e fragmentos de polifonia –; e
uma viola, para que, tocada com arco, viesse a prolongar notas do violoncelo e do violino e, tocada
em pizzicato, viesse a se emaranhar com o violão e a harpa.
Antes de que eu começasse efetivamente a escrever, busquei, primeiramente, identificar nas
próprias melodias de violoncelo e violino, na série e nas formas da série empregadas por
Schoenberg na obra original, aspectos que pudessem apontar para a proeminência de uma ou outra
centralidades possíveis e; em seguida, busquei verificar como alguns dos acordes formados no
original poderiam vir a assumir funcionalidade com relação a tais centralidades inferidas. Sobre a
série, verifiquei que:
(1) havendo em cada forma da série dois trítonos, juntos, estes constituíam acordes
diminutos. Ademais, em todas as formas da série empregadas por Schoenberg, eram
mantidos exatamente os mesmos dois trítonos, a saber: si bemol-mi e dó#-sol (ver Ex. 59),
podendo estes representar as respectivas dominantes de Fá, Ré, Si, ou Lá bemol.
(2) Havendo em cada forma da série uma tríade enunciada entre a quinta e a sétima notas –
ou, em versões retrogradadas, entre a sexta e a oitava notas da série –, tais tríades seriam
respectivamente equivalentes a: ré menor (Ex. 59a), lá bemol maior (Ex. 59b) e fá menor
(Ex. 59c), parecendo as tríades convergir em torno de Fá, como, respectivamente: paralela
menor, paralela maior da homônima menor e homônima menor, propriamente.
180
Ex. 59: Formas da série empregadas no tema das Variações Orquestrais, Op. 31, excluindo-se retrogradações: (a) série
original (P0), iniciada em si bemol; (b) inversão, transposta para sol (I9); (c) transposição para dó# (P3).
(3) As respectivas notas iniciais e finais das formas da série empregadas por Schoenberg
correspondiam a: si bemol e dó (Ex. 59a), fá e sol (Ex. 59b) e dó#/ré bemol e mi bemol (Ex.
59c). Conforme assinalado no Ex. 60, abaixo, tais notas parecem convergir em torno de Si
bemol (menor), de Ré (frígio), ou, de maneira menos pronunciada, de Fá.
Ex. 60: Disposição escalar das notas iniciais e finais das formas da série empregadas no tema das Variações
Orquestrais, Op. 31.
• após o trítono si bemol-mi (grafado como fá bemol) inicial, e. g., as próximas notas, sol
bemol-mi bemol-fá-lá poderiam vir a ser entendidas como parte de um fá dominante com
sétima e nona bemol, sendo o trítono inicial representante de sua dominante individual (Ex.
61a, abaixo) e, semelhantemente, também as três primeiras notas da segunda enunciação
melódica da série – fá-sol bemol-lá (grafados como mi#-fá#-lá), cp. 39-40 (Ex. 61b) –, bem
181
como as últimas notas de violoncelo e violino – mi bemol-fá, cp. 57 (Ex. 61c) – poderiam
vir a ser entendidas como partes de fás dominantes;
Ex. 61: Schoenberg: Variações Orquestrais, tema: (a) cp. 34-36, parte de violoncelo; (b) cp. 39-40, parte de violoncelo;
(c) cp. 57, partes de violino e violoncelo.
• nos compassos 53 e 54, próximo ao fim, o violino e o violoncelo delineiam juntos uma
progressão quase triádica em Fá menor, de lá bemol maior, paralela, a dó dominante;
Ex. 62: Schoenberg: Variações Orquestrais, tema, cp. 53-54, linhas de violino e violoncelo.
• o acorde final, para além de conter o fá e sua possível sétima, envolve, na peça original, o dó,
possível quinta de um acorde de fá, e notas (sol#/lá bemol e si) que poderiam vir a ser
interpretadas ora como sensíveis individuais da terça e da quinta de um fá dominante, ora
como terça menor e sensível da quinta de um fá menor (Ex. 63a);
• ainda no trecho final do original, é notável que, no final do cp. 52 e início do cp. 53, se
formem, respectivamente: um mi bemol menor com sexta, sobre um baixo em fá,
interpretável como subdominante menor de Si bemol, com baixo em sua dominante (fá) e;
um ré menor puro, paralela de Fá (Ex. 63b);
182
dominante de Ré, com fundamental, terça, sétima e a nota representante de sua resolução
suposta e; (b) uma espécie de dominante de Si bemol, com fundamental (fá), sétima, nona
bemol, sensível individual de sua fundamental e, no baixo, o próprio si bemol, representante
da resolução suposta de tal acorde.
Ex. 63: Schoenberg: Variações Orquestrais, tema. Acordes respectivamente formados: (a) no cp. 57; (b) nos cp. 52-53;
(c) nos cp. 42-43.
183
Ex. 64: palimpsesto à Calder, cp. 1-5.
Ao prosseguir com a enunciação concomitante dessas duas séries iniciais, bastou: (a)
controlar os específicos momentos em que cada nota da RI9 seria introduzida e prolongar algumas
das notas de cada uma das duas séries, para que se formassem acordes mais claramente
compreensíveis como derivados de tríades – ou, ao menos, como diatônicos –; e (b) cuidar de que a
distribuição de registros propiciasse encadeamentos lineares entre tais acordes, ou resoluções
lineares de eventuais notas desviadas dos diatonismos vigentes a cada momento; para que se
pronunciassem as características das formas da série em questão que, como já observado,
apontariam para Si bemol, Fá e proximidades. Assim: a conjunção dos trítonos de ambas as séries
no cp. 3 (ver ainda Ex. 64, acima) veio a formar uma dominante inicialmente de ré menor (paralela
de Fá maior), linearmente transformada em uma dominante de lá bemol (paralela de Fá menor); o
acorde de cunho quartal formado no cp. 4, para além de conter o lá bemol maior – com suspensão
de quarta à terça maior – anunciado pela dominante anterior, veio a progredir a um acorde
interpretável como si bemol (I de Si bemol) dominante, ou como sol dominante; e a conjunção, no
cp. 5, da última nota (dó) da P0 com o trítono final (ré bemol-sol) da RI9 veio, a um só tempo, a
resolver essa espécie de sol dominante e a retornar ao dó dominante com que se iniciara a passagem.
Em diversas passagens posteriores, a fim de tornar a harmonização mais densa e de manter
alguma flexibilidade na elaboração das distintas partes instrumentais e das relações funcionais,
empreguei concomitante mais de uma forma da série no acompanhamento das melodias originais de
violoncelo e violino e, ademais, empreguei procedimentos de variação da série um pouco menos
ortodoxos do que a simples transposição, inversão e/ou retrogradação. Nos compassos 6 a 11 (Ex.
65a, abaixo), e. g., para além da melodia original de violoncelo, enunciando a RI9, distribuí ainda
três formas da série entre o violão e a harpa: no trecho, a harpa executa basicamente uma inversão
da série original, transposta para mi (I6), prolongando, além disso, algumas notas executadas ao
violão e; no violão, por sua vez, intercalam-se duas formas da série, a saber, a original (P0) e sua
inversão (I0). Como melhor demonstro no Ex. 65b, contudo, reordenei tais formas da série
executadas ao violão ao segmentar cada uma destas em três partes (assinaladas “a”, “b” e “c”) e
184
enunciá-las, em cada uma das séries, da última à primeira. Tal procedimento permitiu, por exemplo,
que nos compassos 6 e 7 o violão dobrasse parcialmente a parte de harpa, ou que, no cp. 8, o trítono
si bemol-mi (“a1” e “a2” da P0) se juntasse ao acorde lá-ré-sol-dó# (correspondente ao segmento “b”
da P0) para que se tornasse mais pronunciado o lá dominante delineado no compasso em questão.
Ex. 65: (a) palimpsesto à Calder, cp. 6-11; (b) segmentação e reordenação da P0 e da I0 nos compassos 6-11 da parte
de violão.
Empreguei o mesmo procedimento, uma vez mais na parte de violão, também nos
compassos 17 a 20 (Ex. 66a). Como se pode observar no Ex. 66b, ao segmentar as formas R9 e R6
da série em quatro partes, o fiz de modo que: juntos, seus respectivos segmentos “b” e “d”
formassem tétrades diminutas; que, também juntos, seus respectivos segmentos “a” pudessem
assumir uma feição quase escalar; e que cada um dos segmentos “c” pudesse assumir a forma de
uma tríade diminuta com duas de suas notas introduzidas por meio de sensíveis individuais.
185
Ex. 66: (a) palimpsesto à Calder, cp. 17-20, parte de violão; (b) segmentação e agrupamento da R9 e da R6, nos
compassos em questão.
Tais segmentações, tanto na passagem dos compassos 6 a 11, como nos compassos 17 a 20,
não se deram apenas em função de trazer à tona traços morfológicos da série mais
convencionalmente ligados à tonalidade funcional, mas, sobretudo, de possibilitar que específicas
relações funcionais latentes no original viessem a ganhar consistência. No cp. 42 do original, e. g. –
equivalente ao cp. 9 desta versão –, como já comentado (ver Ex. 63c, acima), formara-se um acorde
(lá-ré-sol-dó#) passível de se compreender como uma dominante de Ré. No contexto original (ver
Ex. 67a, abaixo), tal acorde coincidia com um salto mi bemol-lá bemol na parte de violoncelo e, se
por um lado tal salto seria mais fortemente identificável com Lá bemol do que com Ré, por outro –
como já abundantemente exemplificado ao longo deste trabalho –, essa espécie de lá dominante que
o acompanha poderia vir a ser interpretado como uma dominante germânica do próprio Lá bemol.
A fim de manter essa passagem, na nova versão, tão próxima quanto possível ao original e de tornar
mais pronunciada essa possível relação funcional entre o acorde lá-ré-sol-dó# e o salto melódico mi
bemol-lá bemol, cuidei:
186
enquanto um possível lá dominante, se agregassem, também no próprio violão, sua nona
bemol e sua quinta.
• Em segundo lugar, para que não deixasse de haver a coincidência, ainda que breve, entre
esse lá dominante e o salto mi bemol-lá bemol, prolonguei tal acorde na harpa, no cp. 9,
tratando tal coincidência como resultante de uma espécie de suspensão. Na harpa, tal como
assinalado no Ex. 65a, acima, duas das notas desse acorde (dó# e sol) estariam já na forma
da série então enunciada (I6).
Ex. 67: (a) Schoenberg: Variações Orquestrais, cp. 42; (b) palimpsesto à Calder, cp. 8-9.
187
Nos compassos 17 a 20, por sua vez, a segmentação e interpenetração das formas R9 e R6
da série permitiu que, de diferentes maneiras, a passagem de um mi bemol menor com sexta a um ré
menor nos compassos 19 e 20, já presente no original (Ex. 63b, pouco acima), ganhasse agora maior
relevo. Primeiro e mais simplesmente, marquei a passagem entre os dois acordes por uma súbita
mudança de densidade e textura, ao antecipá-la com uma escrita densa de violão – cuja fluência foi
possível precisamente por conta da interação entre as duas formas da série empregadas – e ao fazê-
la coincidir com a última nota executada ao violão em toda a peça. Em segundo lugar, o específico
tratamento da série nesse trecho, tanto na parte de violão, como na harpa e viola, permitiu que se
articulasse não apenas uma passagem entre dois acordes, mas entre duas centralidades relevantes na
peça. Se, por um lado, o mi bemol com sexta tenderia a apontar para uma centralidade de Si bemol,
tal centro foi valorizado: (a) pelo prolongamento, na viola, do si bemol (primeira nota da P0)
executado na harpa na cabeça do cp. 18 (Ex. 68, abaixo); (b) por eu ter situado imediatamente antes
da passagem ao cp. 20 as notas da P0 que delineavam um fá dominante (sobretudo mi bemol, fá e lá,
cp. 19) e; (c) por quase todo o trecho da linha de harpa que delineava esse fá dominante, desde o sol
bemol do cp. 18, coincidir com os segmentos “c” das formas R6 e R9 da série, no violão, os quais,
ressalvadas algumas sensíveis individuais, formam tríades diminutas igualmente identificáveis com
fá dominante (dó, mi bemol, lá, no cp. 18; mi bemol, sol bemol, dó, no cp. 19; ver Ex. 66, pouco
acima). Se, por outro lado, o ré menor poderia representar uma centralidade por si mesmo, e/ou
(difusamente) uma centralidade de Fá, do qual é a paralela, essa nova centralidade foi marcada,
sobretudo, ao se fazer coincidir esse ré menor com um mi natural no baixo, distanciando-se tanto
do mi bemol menor que o antecedia, como da própria centralidade de Si bemol. Ademais, se os
específicos trítonos dos segmentos “d” da R9 (ré bemol-sol) e da R6 (si bemol-mi), enunciados em
torno da articulação harmônica em questão, apontavam já para essa nova centralidade em Fá ou Ré
– ao delinearem, junto ao dó que se prolongara do segmento “c” da R9, um dó dominante, com
sétima e nona bemol –, tomei o cuidado de que as notas dentre estas que viessem a ocorrer ainda no
cp. 19 (ré bemol, sol e si bemol) não contradissessem a centralidade então vigente de Si bemol.
188
Ex. 68: palimpsesto à Calder, cp. 17-20.
Se demonstrei, até este ponto, como operei a série de modo que se tornassem localmente
mais pronunciadas certas centralidades e relações funcionais que eu interpretara como latentes na
obra original, resta fazer aqui alguns comentários também acerca de como elaborei em maior escala
tais aspectos da peça. Como comentado pouco acima, ainda com relação à peça original, haveria
nesta traços de sua série e das formas da série empregadas, bem como certas passagens formalmente
privilegiadas, que convergiriam em Si bemol, Fá e regiões próximas e, conformemente, na nova
versão da peça, ora relatada, concentrei-me em ressaltar esses mesmos centros já esboçados no
original. Ao invés, contudo, de conceder a um dentre tais centros primazia sobre o outro – e tratar
Fá como uma região de dominante de Si bemol, ou, inversamente, o Si bemol como uma região de
subdominante de Fá –, entendo que eu tenha estabelecido, ao longo da peça, um “complexo de
189
dupla-tônica”, uma centralidade específica, mas difusa. Entendo que haja na peça dois principais
aspectos de sua elaboração harmônica responsáveis por tal ambivalência.
Primeiro e mais simplesmente, sendo ambas as tonalidades em questão próximas entre si;
sendo Ré menor o único outro centro a assumir alguma proeminência na peça; e sendo Ré menor
igualmente (ou quase) próximo de ambas as tonalidades de Si bemol e Fá; nenhuma destas chega a
assumir primazia na peça por meio de tonalidades secundárias que se subordinem a uma, mas não à
outra.
Em segundo lugar, embora haja na peça, como mencionado, diversas passagens que
apontam para Si bemol, não há em nenhum momento uma efetiva confirmação, por cadência, de tal
tonalidade, nem sequer uma única tríade pura de sua tônica, mantendo-se o Si bemol – para utilizar
um termo de Schoenberg – “flutuante” [schwebende]. Por outro lado, se abundam na peça acordes
de fá, ou, ao menos, acordes passíveis de se interpretar como desviados de tríades fundadas sobre fá,
ora estes equivalem – ou se assemelham – a fás menores, os quais poderiam constituir uma
centralidade em si mesmos; ora estes equivalem – ou se assemelham – a fás dominantes, e
apontariam, assim, para Si bemol. Em especial, em diversas passagens esses dois tipos de acordes
de fá não apenas se apresentam proximamente, mas inclusive interagem:
• no cp. 6, e. g., a díade fá-lá bemol pode ser entendida como representante de um fá menor e,
no cp. 7, em imediata sequência, forma-se um fá maior, cuja quinta é introduzida por sua
sensível individual (Ex. 69a, abaixo). Por um lado, o fato de que tal passagem tivesse sido
introduzida por um dó dominante (com sétima e nona bemol) favorece que se interprete o fá
menor como um centro local, do qual o fá maior seria uma Picardia (ainda que atípica, pela
cromatização de sua quinta). Por outro, posto que a peça se iniciara com o delineamento de
um fá dominante com nona bemol (ver Ex. 61a e 64, pp. 182 e 184, acima) e que, agora,
essa espécie de fá menor é acompanhada de um sol bemol (correspondente a essa nona
bemol, característica da dominante), faz-se possível não apenas interpretar que o acorde do
cp. 6 fosse um I grau de uma tonalidade Frígia de Fá, mas também que tal acorde fosse já
uma cromatização do fá do cp. 7: ao invés (ou para além) de uma terça menor, o acorde do
cp. 6 portaria, por essa interpretação, a sensível individual da terça de um fá dominante com
nona bemol e apontaria para uma centralidade em Si bemol.
• No cp. 16, fiz com que se formasse um cluster (fá-mi-mi bemol-sol bemol) equivalente ao
que se formara no cp. 43 da obra original (cf. Ex. 63c, p. 183, acima) e, ao prolongar sobre
tal cluster um lá natural, favoreci que ele assumisse uma feição de fá dominante, com
sétima, nona bemol e sensível de sua fundamental (Ex. 69b, abaixo), o qual apontaria para a
190
centralidade em Si bemol. Ao invés de resolvê-lo, contudo, as próprias formas da série então
empregadas (R0 no violoncelo, R3 na harpa) o conduziram a se transformar, ainda no cp. 16,
em um fá menor, ao qual se sobrepôs um trítono (mi-si bemol) representativo de sua
dominante. No cp. 17, se, por um lado, o sol bemol e o lá natural na viola restituem
brevemente ao fá um caráter de dominante, à qual se segue, de fato, um acorde de si bemol
menor, por outro, o sol natural próximo ao fim do compasso, sexta do si bemol menor,
confere a este um caráter de subdominante de Fá.
Ex. 69: palimpsesto à Calder: (a) cp. 6-7; (b) cp. 15-17.
• O acorde final, mantido na nova versão quase inteiramente como no original – sendo-lhe
apenas subtraído o dó natural –, vem agora a se assemelhar ao acorde de Tristão e, como tal,
se faz potencialmente sujeito a uma grande variedade de interpretações. No contexto da peça,
contudo, em que (a) abundam sensíveis individuais, inclusive de componentes de acordes de
fá, e; (b) vindo de uma passagem em que se fizeram especialmente pronunciadas as
respectivas centralidades de Si bemol, no cp. 19, e de Fá, no cp. 21; tal acorde se faz em si
ambíguo, como já comentado, entre portar um lá bemol, terça menor do fá, ou um sol
sustenido, sensível individual da terça maior de um fá dominante (Ex. 70).
191
Ex. 70: palimpsesto à Calder: cp. 24.
192
Ex. 71: palimpsesto à Calder: cp. 11-15.
Ex. 72: Diatonismo no cp. 15 de palimpsesto à Calder: (a) com algumas das possíveis centralidades assinaladas e; (b)
representado no ciclo de quintas.
193
III. 5. 3. (…) estrada esquecida, nos vales, um vão (…) – sobre o intermezzo 1 de Silvio Ferraz
194
Ex. 73: (a) Brahms: Op. 119, no 1, cp. 55-57; (b) Ferraz: intermezzo 1, início.
195
Ex. 74: Ferraz: intermezzo 1, arpejo inicial, com tríades assinaladas.
Por outro lado, a sustentação, por meio do pedal, das várias notas dos arpejos favorece que,
ainda que acionadas à distância, tais notas acabem por se sobrepor, umas às outras, e que se
evidenciem, assim, suas relações cromáticas: o dó natural do suposto dó menor inicial, e. g., parece
progredir cromaticamente à quinta (si) do suposto mi maior; a suposta terça menor desse acorde
inicial, por sua vez, faz-se retrospectivamente interpretável como uma sensível (ré#) de mi,
resolvida, assim, na oitava inferior e; semelhantemente, o sol natural inicial, ao se sobrepor a um
sol# (tanto aquele de partida atacado, como aquele que participa do delineamento do mi maior,
próximo ao fim do arpejo), pode assumir a feição de sensível individual (fá##) deste (Ex. 75a).
Interessantemente, uma progressão semelhante ocorrera no Op. 117, n o 2 (1892) de Brahms, cp. 8-
10 (ver Ex. 75b, abaixo), entre um aparente sol bemol menor e a tônica Si bemol menor, em que o
primeiro acorde funcionara – e fora correspondentemente anotado – como um fá dominante, com
nona e sexta bemóis, abrindo precedente no próprio Brahms para que, de maneira análoga, se
pudesse compreender esse aparente dó menor inicial do intermezzo 1, entre outras interpretações
possíveis, como uma espécie de dominante (com nona bemol e quinta aumentada) do mi maior
formado em seguida.
Ex. 75: (a) Ferraz: intermezzo 1, arpejo inicial; (b) Brahms: Op. 117, no 2, cp. 8-10.
Ainda antes de que eu escrevesse a linha de flauta sobre o intermezzo 1, busquei identificar,
sobretudo (mas não exclusivamente) em momentos formalmente privilegiados da peça – início e
196
final, pontos de articulação entre texturas distintas, súbitas alterações de intensidade, ocorrência e
circunvizinhanças de gestos singulares ou contrastantes ao comportamento geral da peça etc. –, as
centralidades locais que estes poderiam expressar e como estas poderiam vir a se relacionar entre si.
Em especial, observei:
• que os arpejos iniciais, como já colocado, poderiam ser entendidos como passagens de uma
espécie de dó menor a tríades de mi maior – e/ou sua paralela dó# menor, no caso do
segundo arpejo. Por um lado, interpretando-se essa espécie de dó menor como um si
dominante com alterações, ou, mais simplesmente, como resultado de cromatismos a serem
resolvidos sobre o mi maior, considerei que Mi maior seria, possivelmente, o centro mais
pronunciado nesse início da peça. Ainda assim, caberia também interpretar o dó menor
como uma tríade por si mesma, a ser, enquanto tal, relacionada a Mi maior (ou à tríade de
mi), ou, ainda, a ser entendida como representante de sua própria centralidade.
• Que os dois primeiros sistemas (reproduzidos no Ex. 76, abaixo) poderiam ser interpretados
como estendendo essa ambiguidade inicial. Por um lado, boa parte do trecho em questão
poderia ser relacionada, se não a Mi, às suas regiões próximas, como de sua subdominante
Lá, de sua dominante Si, ou da paralela Dó#. Por outro, ao longo de toda a passagem se
encontram acordes interpretáveis como respectivamente derivados da tríade de dó menor ou
da correspondente em Si, sol menor.
197
Ex. 76: Ferraz: intermezzo 1. Trecho equivalente aos dois primeiros sistemas e ao primeiro acorde do terceiro sistema,
com possíveis funcionalidades assinaladas. Estão também assinalados acordes semelhantes a dó menor, ou sol menor.
• Que, em um contexto até então convergente em Mi, o primeiro acorde fortissimo da peça, no
início do terceiro sistema (Ex. 76, acima), embora profundamente ambíguo, poderia vir a ser
também interpretado em Mi, como a parte superior de uma dominante à Chopin, com sétima
(lá, neste caso) e décima-terceira (sol#). Bastaria que a flauta a ser acrescentada se
desenhasse de modo a conceder relevo a tal interpretação.
198
• Que, nas últimas duas páginas da peça, ao se retomar, em boa medida, conteúdo harmônico
dos dois primeiros sistemas, a centralidade de Mi se faz ainda mais claramente pronunciada:
Ex. 78: Ferraz: intermezzo 1, notas sustentadas pelo pedal tonal ao fim da peça.
199
◦ o penúltimo acorde da peça, lá-mi bemol/ré#-lá bemol/sol# (Ex. 79, pouco abaixo), é
idêntico àquele do início do terceiro sistema (cf. Ex. 76), sendo, assim, passível de se
interpretar como parte de um si dominante e; o último acorde, por sua vez, consiste de
sua repetição acrescida do sol natural no baixo, podendo ser este, no contexto da peça –
e entre outras interpretações possíveis – entendido como representativo de uma possível
resolução em mi menor;
◦ se esses dois últimos acordes podem ser interpretados como dominantes de Mi, os
arpejos que imediatamente os antecedem, por sua vez, são facilmente associáveis, feitas
as devidas enarmonizações, à dominante da dominante da mesma tonalidade e;
◦ ainda antes dos arpejos em questão, os três ataques que iniciam o último sistema da peça
(inteiramente reproduzido no Ex. 79, abaixo), se interpretados em Mi, correspondem
respectivamente: à sensível individual da dominante; à tríade menor de tônica, acrescida
de sua sensível e; finalmente, em forte, à própria nota central.
200
escala; ou a Sol menor, equivalente, com relação à região da dominante (Si), ao Dó menor com
relação a Mi. Posto, contudo, (a) que algumas dentre tais passagens são, por si mesmas, mais
ambíguas quanto às suas respectivas centralidades do que aquelas acima comentadas e; (b) que foi,
então, por meio do acréscimo da linha de flauta que eu pude conferir maior nitidez aos específicos
centros supracitados; comentarei algumas dentre tais passagens já conjuntamente ao relato acerca da
escrita de tal linha.
Para além de um cuidado, ao acrescentar a linha de flauta ao intermezzo 1, de que as
centralidades locais e relações funcionais que eu viesse a trazer à tona pudessem ser já identificadas,
ainda que não univocamente, na obra original, cuidei também de que tal linha de flauta se integrasse
à peça em termos de sua própria figuração. Assim, já nos sistemas iniciais, reproduzidos pouco
abaixo (Ex. 80), pode-se notar como: (a) iniciei a escrita da flauta tratando-a como uma espécie de
ressonância do piano; (b) incorporei progressivamente as apojaturas à articulação de novas notas da
linha; atribuí (c1) antes às apojaturas o caráter arpejado do piano e; (c2) em seguida, ao próprio
desenho da linha; (d) absorvi a fluidez métrica do piano, com suas sucessivas quiálteras irregulares
entre si e; (e) encerrei essa primeira entrada da flauta com a figuração de arpejos descendentes
predominante na escrita do piano. Quanto à participação da flauta acrescentada na funcionalidade
da passagem em questão, devo comentar sobretudo que:
• que, para além de delinear uma ascensão escalar desde a terça à fundamental de Mi maior,
as respectivas notas da primeira frase foram posicionadas não apenas de modo que a linha se
integrasse figuralmente ao piano original, mas também de modo a enfatizar ou delinear
acordes mais convencionais que estivessem latentes em seus pontos de articulação. Assim: o
lá veio a integrar um acorde que continha em si um lá maior, subdominante de Mi,
sobreposto à sensível ré#; o si veio a participar de um ré (antes maior e em seguida menor)
com sexta, subdominante da região de Lá; o dó veio a integrar um dos acordes com aspecto
de dó menor (com sexta), o qual, por sua sequência – e, sobretudo, por sua explícita relação
com o acorde sustentado ao final da obra (cf. Ex. 78, acima) –, poderia vir a ser também
interpretado como uma dominante de Mi; o ré natural e o mi, por fim, viriam a constituir um
mi dominante de Lá, apenas parcialmente delineado pelo piano original.
201
• Iniciando-se a segunda frase em um momento em que o piano volta a formar diatonismos
(assim entendidos conforme os específicos critérios propostos neste trabalho) passíveis de se
interpretar como centrados sobretudo em Mi, a flauta se concentra, a princípio, em articular
algumas das principais notas (mi, ré# e lá) responsáveis por apontar uma tal centralidade;
• no fim do segundo sistema, junto a uma das passagens que, conforme assinalado no Ex. 76
(p. 198, acima), eu interpretara como uma dominante individual da dominante si, introduzi
um arpejo por um lado correspondente, enarmonicamente, a sol menor, mas que, por outro,
funcionaria como uma espécie de fá# dominante, com nona bemol (sol) e sexta bemol (ré).
Ao fim do arpejo, o ré efetivamente se resolve sobre a quinta do acorde de fá#, de modo a
ressaltar seu caráter de dominante;
• finalmente, ao encerrar tal passagem com uma cadência ao menos melodicamente resolvida
em mi e; ao prolongar tal nota por sobre os arpejos seguintes; permiti que, mesmo que boa
parte do conteúdo harmônico dos arpejos em questão fosse, a princípio, dificilmente
relacionável a Mi, estes viessem, no contexto, a se relacionar a tal centralidade como, ao
menos, parte do ponto de chegada de uma espécie de cadência deceptiva.
202
Ex. 80: estrada esquecida…, sistemas iniciais.
203
Ex. 81: estrada esquecida…, última entrada da linha de flauta, no trecho correspondente à p. 7 de intermezzo 1.
Ainda cerca de dois sistemas antes do final do intermezzo 1, encerrei a linha de flauta, tal
como a iniciara, com um sol# longo. Por alguns motivos optei por deixar que o piano, por si mesmo,
concluísse a peça. Primeiramente, tendo sido o Mi maior inicial claramente restabelecido e sendo o
piano, como já observado, por si mesmo convergente sobre tal centro ao longo de todo o fim da
peça, considerei que já não haveria necessidade, nesses últimos sistemas, de que a flauta interviesse:
ao contrário, haveria aqui uma oportunidade para que se manifestasse, intocada, uma funcionalidade
própria à obra original, com sua específica, dinâmica- e heterogeneamente específica ambiguidade.
Voltarei nesse ponto pouco adiante.
Em segundo lugar, ao encerrar a linha de flauta antes do final da peça, pude estabelecer, ao
longo de toda a sua segunda metade, uma consistente direcionalidade, de um pleno protagonismo da
flauta (próximo à metade da obra) a um pleno protagonismo do piano original. Na p. 5 do original,
após o momento de maior densidade da peça, o piano subitamente se volta, quase até o final da p. 6,
a uma escrita predominantemente monódica, à qual se agregam, progressivamente, apojaturas em
204
arpejo e acordes sustentados pelo pedal (ver Ex. 82, abaixo). Posto que tal escrita monódica se dava
quase inteiramente em um âmbito adequado para tanto, decidi por transcrevê-la, em estrada
esquecida…, para a flauta, reintroduzindo o piano gradualmente ao atribuir-lhe as inserções cordais
da passagem em questão. No trecho correspondente à p. 7 do intermezzo 1, já comentado pouco
acima, embora o piano tornasse a ser integralmente executado como no original, o supracitado
resgate da figuração arpejada na escrita da linha acrescentada viria a manter na flauta o caráter de
Hauptstimme e; por fim, por sobre as últimas notas da linha de flauta, longas e em decrescendo, o
piano tornaria a emergir como protagonista, até que, já inteiramente solo, viesse a concluir a peça.
205
(ver Ex. 83a-c), havendo, ademais, alguns momentos em que se delinearia o si dominante (Ex. 83d),
ou em que se faria mais proeminente a centralidade de Si (Ex. 83e).
Ex. 83: Ferraz: intermezzo 1: (a) início da monodia, p. 5, segundo sistema; (b) desenvolvimento do início da monodia, p.
5, terceiro sistema; (c) inserção de acordes em meio à monodia, p. 6, segundo sistema; (d) si dominante, fim da p. 5; (e)
monodia, fim do segundo sistema da p. 6, excluídas as apojaturas; (f) apojatura ao fim do primeiro sistema da p. 6.
Posto que sol menor, em proximidade a si, poderia vir a assumir caráter de dominante deste
(enquanto uma espécie de fá# com nona e sexta bemóis; cf. Ex. 83f, acima) e, portanto, representá-
lo, considerei que toda a passagem poderia ser tratada como estando em uma região estendida de
dominante de Mi, em que Sol menor e Si de oporiam, em larga escala, ao Mi e ao Dó menor das
seções de início e fim da peça. Assim, ao transcrever para flauta boa parte do trecho em questão, ou
ao conciliar o que permanecesse do piano original à nova parte de flauta, cuidei de ressaltar os
acordes e as centralidades locais de Sol menor e Si (maior/menor), bem como a relação entre estes.
Para tanto, para além de acrescer a linha de flauta – em momentos (como sobretudo os acordes, ou
arpejos sustentados) a serem executados ao piano – de modo que, como nas demais passagens já
comentadas, esta trouxesse à tona centralidades e relações funcionais já latentes no piano, permiti-
me também, ao transcrever para a flauta trechos do piano, alterar pontualmente uma ou outra nota
206
do original. O fragmento reproduzido no Ex. 84, abaixo, exemplifica com clareza ambas as
operações.
Ex. 84: estrada esquecida…: fragmento correspondente à passagem do primeiro ao segundo sistema da p. 6 do original,
com centralidades locais e funções harmônicas assinaladas. Os trechos esfumados na parte original de piano não devem
ser executados.
Finalmente, considero que ainda algumas passagens sejam aqui dignas de nota, sobretudo
por exemplificarem distintas maneiras como a flauta acrescentada pôde vir a interagir com a obra
original:
207
Ex. 85: estrada esquecida…: fragmento correspondente ao início da p. 2 do intermezzo 1.
• no próprio intermezzo 1, no segundo sistema de sua p. 4, havia já margem para que boa parte
do trecho fosse interpretada em Mi – inicialmente menor e, em seguida, maior – e, ao
acrescentar a flauta, cuidei, como em outras passagens já comentadas, de conceder maior
proeminência a uma tal centralidade. Na sequência, com a profusão de fusas do piano
original e suas notas acentuadas, as primeiras dentre tais notas acentuadas, como se pode
observar no Ex. 86 abaixo, parecem ainda delinear um motivo em Mi, em seguida transposto
para Dó. As demais notas, contudo, parecem progressivamente se desvencilhar das
respectivas centralidades para as quais a melodia acentuada, por si só, apontaria.
208
Ex. 86: estrada esquecida…: fragmento correspondente ao segundo e terceiro sistemas da p. 4 do intermezzo 1.
209
Ex. 87: estrada esquecida…: fragmento correspondente ao primeiro e segundo sistemas da p. 5 do intermezzo 1. O
trecho esfumado na parte original de piano não deve ser executado.
Creio que, em termos do que foi proposto neste trabalho, o que mais interessa em passagens
tais como a acima reproduzida, como as cadências deceptivas – ou espécies de – dos finais do Ex.
80 e 85, ou como a manutenção do piano solo, ao final de estrada esquecida…, é que, em todos
esses casos, a funcionalidade expressa parece ser, mais do que aquela específica que eu vim a
identificar, aquela que, tendo sido entendida como ‘latente’ no original, preserva a própria
qualidade de latente. De fato, entendo que todas essas passagens e mesmo aquelas que mantive
intocadas (como, e. g., no Ex. 88, abaixo) interagem, de algum modo, com as centralidades locais e
a estruturação funcional em maior escala que, por meio da linha de flauta, eu pude trazer à tona: por
um lado, frente às passagens mais claramente funcionais, elas respondem de maneira singular e
heterogênea, ora absorvendo e estabelecendo novas potenciais relações funcionais, ora assumindo
um caráter ‘mais bemol’, ou ‘mais sustenido’, ‘mais’ ou ‘menos’ ambíguo, ‘mais’ ou ‘menos’
dissonante etc.; por outro, por meio delas, algo da específica funcionalidade da obra original, para
além do que qualquer sistematização proposta ao longo deste trabalho pudesse abarcar (lembro aqui
do “homem do subsolo”), vem a se disseminar por toda a estrutura funcional da nova versão.
210
Ex. 88: estrada esquecida…: fragmento correspondente ao segundo sistema da p. 2.
Em meio a extensa entrevista à revista Life, em 1965, Andrew Wyeth disse preferir, em sua
obra, “o inverno e o outono, quando se pode sentir a estrutura óssea da paisagem (…). Algo aguarda
por sob ela – a história toda não é revelada” (Wyeth in Meryman: 1965, p. 110) – e precisamente
em seu quadro Winter 1946, de 1946, creio encontrar uma das imagens que melhor exemplificam
visualmente o trabalho feito em estrada esquecida…: no quadro, a fisionomia quase escultural de
seu protagonista (em paradoxal movimento) e os mourões, suas sombras, a neve por derreter e os
arbustos, no canto superior esquerdo, distribuem por toda a obra tridimensionalidade e perspectiva.
Por um lado, a ampla textura (o quadro tem cerca de 122cm de largura, por 80cm de altura) de
pinceladas esverdeadas e alaranjadas que predomina na obra absorve à sua própria maneira esse
senso de profundidade e; por outro, a imediatez pictórica dessa textura confere algo de singular e
fantasioso à construção perspéctica do quadro, como um todo.
211
Apontamentos
28 Também a tese Dobra, redobra, desdobra: comentário e abertura composicional de obras musicais, de Max
Packer (2018), escrita concomitantemente a esta e em contínuo e intenso diálogo, parece apontar para uma tal
investigação ulterior.
212
futuros professores em Ensino Básico, saibam valorizar, afetiva- e tecnicamente, as mais diversas
ideias que seus próprios alunos possam vir a apresentar.
Em segundo lugar, a exemplo do dueto de violas reproduzido na p. 160 deste trabalho,
assumo como projeto composicional e de pesquisa, em sucessão a esta tese, o de escrever, em
parceria com professores de instrumentos, cadernos de estudos técnicos para distintos instrumentos
em forma de duetos professor-aluno, em que a parte de aluno possa se concentrar em isolar os
fundamentos técnicos a serem exercitados, enquanto a parte de professor é concebida de modo a
oferecer a cada dueto um projeto formal global e funcional, que confira maior sentido harmônico ao
que poderia ser, a princípio, um exercício insípido. Creio que uma tal iniciativa possa contribuir
para tornar o estudo de um dado instrumento mais prazeroso e mais integrado a uma diversidade de
outros aspectos da música – a interação com um segundo instrumento e instrumentista, a apreciação
de sua organização formal, de nuances afetivas etc. – que não apenas sua dimensão motora.
Finalmente – e talvez aqui soe antes a voz do príncipe Míchkin, em êxtase, do que aquela do
homem do subsolo –, se pudemos conciliar – e, de fato, se no próprio repertório tão frequentemente
se conciliaram – não apenas acordes e Tonarten distantes entre si, mas mesmo lógicas que talvez
um dia se tivessem mutuamente estranhado; e se, hoje, mais do que segmentos sociais claramente
delineados, ou interesses pessoais objetiváveis, o desacordo parece habitar já entre formas de vida;
então, quem sabe, não tenhamos em uma compreensão de nossa tradição harmônica como movida e
nutrida pelo esforço sisifeano de se compor com dissonâncias mais e mais profundas, mais e mais
estruturais, um modelo, ou ao menos uma perspectiva, para alguma conciliação onde não há
entendimento?
213
Partituras anexas
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217
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229
230
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