Engenharia Da Santidade

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

Por que não se tem mais fé na santidade?

O bispo suplica ao Senhor pela santificação de seu clero porque sabe que a
santidade não é fruto dos esforços humanos, mas da graça de Deus que
atua no homem, configurando-o a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Santo Agostinho, o coração do homem foi feito para Deus e jamais
encontrará descanso enquanto nEle não repousar (cf. Confissões, I, I).
Não obstante a teologia católica sobre a santidade, o que se nota hoje em dia
é que grande parte dos fiéis — inclusive padres — não acredita mais na
possibilidade de ser totalmente de Jesus. Exatamente neste século em que
tanto se escreveu sobre o caminho da perfeição, sobre as maravilhas da
graça de Deus em um coração generoso, exatamente agora é que se ignora
a vocação das vocações. E isso se deve, sobretudo, à influência de um frade
agostiniano do século XVI que, com seus escritos e protestos, perverteu o
sentido da fé e da graça de Deus. Falamos de Martinho Lutero.
No aniversário dos 500 anos da Reforma, muito se falou a respeito da teologia
luterana da graça. Essa, aliás, teria sido a grande contribuição de Lutero para
o cristianismo; ele teria libertado a fé da escravidão da lei, das obrigações
jurídicas, das penitências extenuantes, porque ninguém se salvaria
pelas obras. Antes, como diz São Paulo, “o justo vive pela fé” (Rm 1, 17).
Lutero decretou, então, os “dogmas” da sola fide e da sola gratia e, a partir
disso, criou-se a ideia de que o homem não precisa ser santo, nem tampouco
fazer sacrifícios para santificar-se. Basta que ele creia em Jesus.
Na verdade, Lutero foi o rebento de uma época extremamente difícil para a
civilização, onde não havia mais ninguém que ensinasse o caminho da
santidade. Depois da peste negra, uma sede de viver apossou-se do espírito
humano, de modo que os homens se lançaram aos prazeres da vida como
um cão selvagem se lança sobre a sua presa. Os bons cidadãos e os bons
sacerdotes haviam todos sido mortos pela doença, restando apenas os
covardes e frívolos que, diante da nova ameaça, preferiram fugir a prestar
ajuda a quem necessitava. Com efeito, os vícios mais escandalosos
passaram a dominar o ambiente social: pornografia, orgias, bebedeiras,
adultério, homossexualismo. E esse período se sagrou pelo estranho nome
de Renascimento, porque se tratou do renascimento do paganismo grego.
O que significa ter fé?
A fé não é um sentimento, mas sim um dom que deve ser frequentemente exercido, a fim de
estarmos sempre em contato com a Palavra viva de Deus.

Por isso, ninguém pode ser santo sem rezar, e rezar muito, pois nosso organismo espiritual
desenvolve-se justamente pelos atos de fé exercidos na vida de oração.

Essa virtude ou hábito sobrenatural é infundida pelo sacramento do Batismo,


e o lugar próprio do seu exercício é a oração. Quando você faz uma leitura
orante, seja da Sagrada Escritura, seja de um livro espiritual, e esse verbo
exterior faz com que você se abra à graça divina — às vezes até produzindo
alguma emoção externa —, a sua fé está sendo exercida. A oração é um
momento de intimidade com Deus, um diálogo familiar entre dois amigos
que se amam. Com efeito, o processo de santificação depende
necessariamente do modo e da qualidade da vida de oração. Ninguém pode
ser santo sem rezar, e rezar muito, pois o organismo espiritual
desenvolve-se pela fé.

Como acontece uma conversão?


Como vimos, a perfeição cristã é o fruto mais nobre do hábito da fé, essa
virtude teologal que, se exercida constantemente na oração, age como uma
força dentro do homem, motivando-o a buscar a comunhão com
Deus. Por isso São Paulo afirmava que “o justo vive pela fé” (Rm 1, 17).
Quem pratica a sua fé, torna-se mais santo.

A história da conversão de Santo Agostinho mostra isso claramente. Como


qualquer pecador, Agostinho teve de enfrentar muitas hesitações e
dificuldades até finalmente abandonar a vida de pecado e assumir a vida
da graça.
Agostinho viveu o drama que muitos de nós vivemos: a luta entre as duas vontades,
a vontade de Deus e a vontade da carne. Nessa briga, ele percebeu que não podia
lutar sozinho, com as suas próprias forças. Para vencer o pecado, Agostinho
recorreu à graça de Deus, recusando-se a compactuar com as ideias de
Pelágio. Ao contrário deste, Agostinho via que a santidade era algo muito mais sério
que um conhecimento intelectual, e que para alcançá-la, todo homem deveria recorrer
a uma força extraordinária: as graças de Deus, as quais Jesus obteve para nós na
cruz. E assim, após um evento místico num jardim, onde escutou a voz de uma
criança dizendo-lhe para ler as Escrituras, viu toda a sua dúvida se dissipar ao
meditar a Epístola de São Paulo aos Romanos, que fala contra as obras da carne e
exalta as obras do Espírito.

Esse testemunho do grande Santo Agostinho ilustra o quanto Deus, por


seu verbo interior, procura a nossa conversão. Depois de tanto pedir o dom da
castidade perfeita, de tanto exercitar a sua fé — até entre lágrimas —, Agostinho
conseguiu livrar-se das obras da carne. A sua experiência, por assim dizer, deve se
repetir também em nossas vidas, se nos deixarmos guiar pelas graças
atuais que o Espírito Santo derrama em nossos corações diariamente.

O primeiro passo para a santidade


A santidade é uma obra divina, e não humana. É por isso que só podemos ser santos com
o auxílio da graça de Deus. Mas como se abrir à ação desse socorro divino, sem o qual é
impossível crescer espiritualmente?

Para inebriar-nos com um caudal abundante de graças, o Senhor instituiu o sacramento da


Eucaristia, na qual Ele, oferecendo seu próprio corpo em Comunhão, nos dá a garantia da
sua presença, como alimento da alma e ajuda preciosa para os principiantes na vida de
oração.

Mas para que o hábito da caridade aumente, para que as


virtudes, potencializadas e elevadas pelos dons do Espírito Santo, cheguem
ao grau de heroicidade típico dos santos, elas precisam ser exercitadas.
Sem esse esforço contínuo por secundar a graça divina e deixar-se modelar
pela ação do Espírito santificador, um cristão jamais poderá repetir com São
Paulo: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20) —
vida essa que, como acrescenta o mesmo Apóstolo, radica na fé no Filho de
Deus: fé viva, informada pela caridade, capaz de crescer por atos contínuos
e repetidos (cf. Rm 1, 17).

Eis porque a vida de oração é a principal forma de exercitarmos as virtudes


teologais e crescermos em santidade, já que é pela oração que nos abrimos
à ação santificadora de Deus, sem a qual não passamos de um corpo inerte,
incapaz de mover-se a si mesmo na ordem das realidades divinas. A oração,
portanto, é o “motor” da vida espiritual, já que é por meio dela que, ao menos
de modo ordinário, Deus quer agir em nossa alma, iluminando nossa
inteligência, movendo nossa vontade e aprofundando em nós aquela “vida da
fé” que o autor da Carta aos Hebreus atribui ao justo (cf. Hb 10, 38).

É preciso rezar, mas rezar meditando, buscando ou na Sagrada Escritura ou


num livro piedoso as verdades sobrenaturais que Deus nos revelou para
nossa salvação e para nosso alimento espiritual diário.

Ora, ninguém duvida de que orar assim exige esforço e perseverança. De


fato, são muitas as distrações e preocupações, cansaços e indisposições que,
via de regra, tornam pesadas as horas dedicadas à oração e desmotivam um
número não pequeno de iniciantes. Tendo em conta essas dificuldades e
imperfeições, Nosso Senhor quis providenciar-nos um meio de, já no início da
vida espiritual, termos a garantia da atuação de sua graça em nossos
corações: a Comunhão eucarística, na qual recebemos não só a graça, mas
o próprio Autor e fonte de toda graça.

Nesse sentido, o primeiro passo para a santidade é comungar bem: em


estado de graça, com fé e devoção, reservando um pouco de tempo —
dez, quinze minutos, pelo menos — a estar a sós com o Senhor, que se
digna descer aos nossos altares, que nos aguarda nos sacrários, que se
oculta sob as espécies eucarísticas, à espera do nosso amor e da nossa
adoração, sempre disposto a nos ajudar a aprender a conhecê-lo e amá-lo,
ou seja, a rezar.

Como progredir no caminho da santidade?


“O Reino dos céus é arrebatado à força”, diz o Evangelho, “e são os violentos que o
conquistam”. Não existe outro caminho.

Por isso, quem deseja progredir na santidade não pode deixar de rezar nunca, “aconteça o
que acontecer, sofra-se o que se sofrer, murmure quem murmurar, mesmo que não se
tenham forças para prosseguir, mesmo que se morra no caminho ou não se suportem os
padecimentos que nele há, ainda que o mundo venha abaixo”.
Esta pregação de nosso retiro trata justamente da necessidade da oração para o
crescimento na vida espiritual. Retomando a linguagem de Santa Teresa d’Ávila, Padre
Paulo Ricardo apresenta as três primeiras moradas da alma.
imprimir
Antes de qualquer coisa, na vida espiritual, é preciso estar em estado de graça,
situação que corresponde ao que Santa Teresa chama de Primeiras Moradas, onde
as almas, embora disponham da assistência divina, ainda se veem embaraçadas
pelos sentidos e paixões da vida pregressa, que as arrastam para novas e
sucessivas quedas. Assim Santa Teresa as descreve: “Nas primeiras salas ainda se
trata de pessoas absorvidas pelo mundo, engolfadas nos contentamentos,
desvanecidas com as honras e pretensões mundanas” (Primeiras Moradas, 12). A
alma nesse estado ainda não ama. Por isso, Santa Teresa recomenda-lhe tão
vivamente a oração, tomando por “intercessores a bendita Mãe de Deus e todos os
santos, para que venham lutar junto a si” (Primeiras Moradas, 12).

De fato, Deus deseja a nossa resposta de amor. A oração íntima, nesse sentido, é o
meio de que dispomos para entrarmos em diálogo com Aquele que sabemos
que nos ama. Oração é diálogo de amor e amizade. Com efeito, quem se mostra
generoso nessa prática vai, aos poucos, adquirindo virtudes e desenvolvendo afetos
semelhantes aos do Amado, até finalmente adentrar nas Segundas Moradas, ou seja,
naquele estado em que “as pessoas já começaram a ter oração e entendem quanto
lhes importa não ficar nas primeiras salas” (Segundas Moradas, 2).

O maior empecilho para uma alma nessa morada é a tibieza, a falta de firmeza
nos propósitos, que a faz abandonar a oração a fim de voltar aos divertimentos
de outrora. Para conseguir se estabelecer dentro do castelo, então, recomenda-se a
Comunhão eucarística diária e uma intensa ação de graças. No contato com a
Eucaristia, a alma consegue conectar-se melhor com a presença de Jesus em seu
íntimo, de modo que a oração se desenvolve mais facilmente. Comungar Cristo
ressuscitado nos leva a amá-lo e a preparar o nosso coração para Aquele que vem,
como indica o livro Mensis Eucharisticus, um ótimo auxílio para a ação de graças.

É claro que essa vida de oração não será sem esforço. Nas Segundas Moradas,
avisa Santa Teresa, a alma terá de se ver com o diabo, que “convocará todo o inferno
para obrigá-la a sair do castelo” (Segundas Moradas, 5). Ela diz assim:

Terrível é a guerra que aqui fazem, de mil maneiras, os demônios. Os tormentos são
maiores que na sala anterior, onde a alma estava surda e muda, ouvia muito pouco e
quase não resistia, como quem perdeu em parte a esperança de vencer. Nesta
segunda morada, o intelecto está mais vivo e as faculdades são mais hábeis. Os
golpes e descargas de artilharia são de tal modo estrondosos, que não podem deixar
de ser ouvidos. Os demônios põem-se a representar os prazeres mundanos — que
são as cobras — como sendo quase eternos. Relembram os amigos e parentes da
estima em que é tida a pessoa por toda parte. Sugerem mil outras dificuldades
imaginárias, inclusive a saúde, comprometida pela penitência. É que sempre, nesta
morada, começam a aparecer os desejos de fazer alguma penitência (Segundas
Moradas, 3).
A vida de oração é, portanto, um combate espiritual. A alma precisa enfrentar tudo e
todos para falar com Deus; “aconteça o que acontecer, sofra-se o que se sofrer,
murmure quem murmurar, mesmo que não se tenha força para prosseguir,
mesmo que se morra no caminho, não se suporte os padecimentos que nele há,
ainda que o mundo venha abaixo”, insiste Santa Teresa, a alma não pode deixar
de rezar nunca (Caminho de Perfeição, XXI). Desse modo, quem não estiver disposto
a lutar radicalmente jamais passará para as altas moradas da santidade, pois, como
diz Nosso Senhor, “o Reino dos céus é arrebatado à força e são os violentos que o
conquistam” (Mt 11, 12). Não há outro caminho.

Santa Teresa é bastante enfática na necessidade da oração porque é por meio da


intimidade divina que o homem adquire a força para vencer o inimigo e praticar as
grandes obras de caridade. Jesus não estava brincando quando disse aos
Apóstolos: “Sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Esse “nada” é o mais radical
que existe. A santidade não procede de um esforço humano, mas do contato com a
Trindade Santíssima que, como fogo que aquece o ferro até torná-lo incandescente,
transforma a alma humana, infundindo-lhe grandes virtudes e ardente devoção. O
único esforço que o homem precisa fazer, nesse sentido, é o de manter-se em
constante diálogo com o Senhor, pois é Ele que realiza em nós o “querer e o
executar” (Fl 2, 13). Ele ordenará nossas paixões ou afetos, inclinando-os para a
bem-aventurança eterna (cf. Catecismo, n. 1762).

Finalmente, nas Terceiras Moradas, a alma é chamada a viver uma intensa obra de
apostolado, doando-se integralmente pela salvação das almas. Para isso, ela precisa
viver o período da purificação ativa, isto é, aqueles atos de renúncia praticados
a fim de conformar-se à vontade de Deus. Trata-se de matar o homem velho para
que nasça o homem novo. Essa entrega abre caminho para a chamada purificação
passiva, que é o acolhimento generoso das provações e contrariedades que o Senhor
envia com o propósito de ensinar o coração do homem a amar de verdade. Assim a
alma começa a praticar todas as suas obras na presença de Deus, levando uma vida
de autêntica contemplação.

Sem essa entrega, porém, o destino dessa alma será o mesmo de Marta: agitar-se
com as panelas enquanto sua irmã ouve de bom grado os ensinamentos de Jesus!

As três conversões e o “mundo” na Igreja


A Igreja sempre creu no chamado universal à santidade. Mas, em tempos recentes, esse
chamado caiu em total descrédito, com muitos passando a acreditar que entre Igreja e
mundo não haveria mais fronteira alguma.

Nesta penúltima pregação de nosso retiro, Padre Paulo Ricardo denuncia os estragos da
teologia moderna sobre a missão dos cristãos e nos dá os fundamentos para uma autêntica
vida de santidade, fazendo-nos voltar ao que sempre foi a doutrina da Igreja a esse
respeito: o caminho das três conversões.
imprimir
Façamos um breve resumo da pregação anterior antes de entrarmos nesta nova
matéria. Vimos que precisamos dedicar-nos radicalmente à oração íntima para
chegarmos até as Terceiras Moradas do castelo interior. As Primeiras Moradas
correspondem à entrada no castelo, ou seja, ao estado de graça que se adquire com
o Batismo ou com a absolvição na Confissão. As Segundas Moradas dizem respeito
àquelas almas que se decidiram pela vida de oração, ainda que isso muito custe.
Finalmente, nas Terceiras Moradas habitam as almas que começaram a ordenar suas
paixões e afetos na direção das bem-aventuranças, buscando uma vida séria de
oração, ascese e apostolado.

Nas Terceiras Moradas, a alma sofre uma espécie de estancamento e não consegue
mais avançar para as fases posteriores. Essa alma já adquiriu um nível razoável de
virtudes, mas continua a procurar as próprias vontades. Trata-se de um período
deplorável de oscilações e contrariedades, que causam à pessoa uma verdadeira
aflição de ânimo. “Dar-lhes conselho é inútil”, explica Santa Teresa, “pois há anos
trilham o caminho da virtude” e “acham que podem ensinar aos outros e que têm
razão de sobra para sentirem tanto seus males” (Terceiras Moradas, II, 1). Santa
Teresa mesmo viveu nessa morada por vinte anos.

Com efeito, a passagem para as Quartas Moradas depende de uma intervenção


divina. Nessas moradas, a alma deixa de ter vontade própria e adquire o
chamado recolhimento infuso, isto é, uma capacidade sobrenatural de recolher-se
profundamente para falar com Deus. As almas de quarta morada têm, além
disso, uma caridade superior para suportar as contrariedades; elas sofrem
pacientemente todo e qualquer contratempo do dia a dia. Por isso, uma evidência de
que a pessoa se encontra nas Quartas Moradas é o seu testemunho diante das
provações, e não necessariamente o tipo de oração que faz. Antes de entrar nas
Quartas Moradas, Santa Teresa recebeu de Deus alguns dons místicos, pelo que
seus diretores já a consideravam uma grande santa. Todavia, ela mesma reconhece
que viveu durante muito tempo na fase purgativa, mesmo manifestando grandes dons
místicos.

A teologia mística divide a vida cristã comumente em três conversões ou fases: 1.º) a
fase dos principiantes, 2.º) a fase dos progredidos e 3.º) a fase dos perfeitos. Essas
três conversões em nada diferem daquilo que Santa Teresa fala sobre as Moradas.
Trata-se apenas de outra linguagem para dizer a mesma coisa. A fase dos
principiantes corresponde, em linguagem teresiana, às três primeiras moradas; a fase
dos progredidos, às quartas e quintas moradas; e a fase dos perfeitos, às sextas e
sétimas moradas. Conforme o estágio de conversão da pessoa, os pecados
mortais se tornam raros, ao passo que os veniais e as imperfeições passam a
ser decididamente combatidos.

Na primeira conversão, a alma experimenta a via purgativa, de modo que seus afetos
são todos orientados para o Senhor. Na passagem para a quarta morada, ou segunda
conversão, Deus intervém e permite que essa alma passe pela noite escura dos
sentidos. A partir desse momento, a alma começa a viver a via iluminativa, sentindo
que Deus a eleva para um amor maior do que ela mesma pode oferecer. Deus age
na sua vontade, fazendo com que a alma ame com um amor que não é
dela. Trata-se de um amor heróico. Na quinta morada, por sua vez, Deus começa a
agir no intelecto, preparando o coração da pessoa para a terceira conversão, para
a via unitiva, que consiste na união esponsal da alma humana com a Pessoa Divina
de Cristo. Essa união se dá por meio de uma noite escura da alma, uma purificação
da vontade e do intelecto — purificação severa —, que leva a alma para as Sextas
Moradas, onde a pessoa já não é mais capaz de pecar, pois tem o coração
completamente unido ao de Jesus. As Sétimas Moradas dependem de uma eleição
divina.

Meditação passo a passo


Um dos exercícios espirituais mais importantes no início da vida de perfeição é a
meditação. O problema é que, hoje em dia, são poucas as pessoas que sabem meditar, e
pouquíssimas as que sabem ensinar a meditar. Afinal, o que é meditação? Como aprender
a fazê-la passo a passo, sem complicações desnecessárias?
imprimir
Em sentido amplo, chamamos de meditação todo ato da inteligência pelo qual se
busca uma verdade de modo discursivo, isto é, por meio de
raciocínios; contemplação, por sua vez, é a visão admirada de alguma verdade. Essa
é a definição que dá às palavras o místico e filósofo Ricardo de São Vítor: “Meditação
é a estudiosa investigação de uma verdade oculta. Mas uma coisa é a meditação,
outra a contemplação. À meditação cabe perscrutar o que está oculto; à
contemplação, admirar o que foi descoberto” (De exterminio mali 2.1.15). Antes dele
já dissera o Pseudo-Agostinho: “Contemplação é a alegre admiração de uma verdade
perspícua” (De spiritu et anima 38), ou seja, feita evidente ou clara para a inteligência.

Ora, à meditação e à contemplação, consideradas como exercícios espirituais para


progredir nas virtudes, devemos acrescentar ainda o papel correspondente à vontade,
e assim completamos suas respectivas definições: a meditação espiritual é
o exercício das potências interiores da alma (inteligência, vontade e imaginação)
no qual refletimos sobre alguma verdade religiosa, a fim de que a nossa vontade
irrompa em afetos piedosos e formule assim determinações práticas para uma
vida cristã mais perfeita; a contemplação, por outro lado, é o exercício da inteligência
pelo qual, de modo intuitivo e sem discurso, admiramos alguma verdade revelada, de
forma que a vontade irrompe em afetos intensos em direção à Deus.

A diferença essencial e específica entre elas está no ato da inteligência, que é


discursivo na primeira, e intuitivo na segunda. Ambas diferem da oração em geral, na
medida em que esta, em si mesma, dispensa considerações de ordem intelectual, ao
passo que aquelas não exigem necessariamente pedidos e preces, ainda que estas
eventualmente as acompanhem (F. Naval, Theologiæ Asceticæ et Mysticæ Cursus.
2.ª ed., Turim: Marietti, 1925, p. 70s, n. 58).

Em outras palavras, a meditação nada mais é do que a consideração piedosa e


afetuosa das coisas divinas, pela qual somos movidos a louvar a Deus, a imitar as
virtudes de Cristo e dos santos, a abraçar o que é bom e a fugir ao que é mal. Diz-se
afetuosa porque consiste menos na ação da inteligência que no afeto da
vontade, na medida em que o seu objetivo é provocar-nos a amar a Deus, odiar o
pecado, desprezar as coisas caducas deste mundo etc.

Eis por que Davi, muito exercitado neste gênero de oração, dizia: No decorrer da
minha reflexão, um fogo se ateou (Sl 38,4), quer dizer, surgiu em sua alma um fervor
e prontidão para fugir ao que é mau e seguir o que é bom, para desprezar o que é
temporal e buscar o que é eterno.

Observação. — Ao falarem dos graus de oração na via ascética, ou purgativa, os autores espirituais costumam distinguir entre:
1.º a oração vocal, assim chamada não porque se reze com os lábios (pode ser feita interiormente, em silêncio), mas porque
consiste em recitar com atenção alguma fórmula preestabelecida, sem que haja, ao menos de regra, alguma consideração mais
profunda do que se diz ou se pensa; 2.º a meditação, também chamada oração discursiva ou mental, definida anteriormente; e
3.º a contemplação ativa, ou oração de simplicidade, identificado por alguns com a oração afetiva.

São quatro as partes da meditação: 1) preparação, 2) representação,


3) consideração e 4) colóquio e propósito, que convém terminar com alguma
petição.

1) A preparação necessária para meditar é tripla: remota, que é uma vida de luta
habitual contra o pecado e de esforço para dedicar-se, segundo as próprias
possibilidades, à perfeição cristã (afinal, quem faz do pecado uma vocação e vive
voltado só para as coisas do mundo não está em condições de elevar-se para
considerar as verdades da fé ou para falar a Deus com intimidade); próxima, que é ler
na noite anterior os pontos que se pretende meditar no dia seguinte (de preferência
pela manhã, recomendam os autores) e afastar da mente as preocupações com
cuidados e necessidades temporais (o espírito deve estar tranquilo e em paz para
poder refletir adequadamente); e imediata, que consiste em alguns atos para bem
dispor o corpo e a alma (por exemplo, traçar o sinal da cruz; rezar com calma um Pai-
nosso e uma Ave-Maria; fazer um ato de fé divina na presença de Deus, a quem
devemos tratar ali como um “tu” próximo e amável, não como um “ele” distante e
impessoal; de joelhos, adorá-lo humildemente e pedir-lhe a graça de realizar esse
santo exercício; implorar o patrocínio da Virgem Maria e dos santos).

2) A representação não é mais do que o uso da imaginação, pela qual buscamos


representar mentalmente os pontos a serem meditados. É como se tivéssemos diante
dos olhos o lugar, as pessoas e ações expressas numa cena do Evangelho ou num
determinado mistério. Assim, por exemplo, se formos meditar sobre a crucificação,
podemos imaginar o monte Calvário, Cristo sendo pregado na cruz, a multidão de
homens que assiste àquele cruel espetáculo etc. Se formos meditar sobre a morte,
podemos imaginar-nos no leito, pálidos e moribundos, e assim por diante. O objetivo
da representação é, por um lado, evitar as distrações e, por outro, estimular a
vontade a ter afetos de arrependimento, de compaixão, de temor etc. A representação
não é, portanto, a finalidade da meditação, mas um meio para alcançá-la; por isso,
não precisa (nem deve) durar todo o tempo da meditação, mas somente o necessário
para que o fiel experimente movimentos interiores de amor, penitência, alegria etc.

3) A consideração, que é como que o “corpo” da meditação, é o ato da inteligência


pelo qual ponderamos atentamente tudo o que está contido em cada ponto a ser
meditado, com o desejo e a intenção de colher dali algum fruto espiritual. É mais fácil
discorrer sobre as circunstâncias de uma cena ou mistério. Se, por exemplo, formos
meditar sobre a Paixão de Cristo, podemos considerar: Quem sofre? O Filho de Deus,
criador do céu e da terra. O que sofre? As maiores dores que jamais
houve. Como sofre? Pregado a um madeiro, com os membros todos chagados. Por
quem sofre? Por mim, criatura indigna e ingrata. Por que sofre? Para me salvar da
condenação eterna, e assim por diante.

4) Por fim, temos o colóquio. Tendo ponderado cuidadosamente a matéria de cada


ponto (ou daquele que mais nos chamou a atenção) e estimulado a vontade a realizar
atos de amor, de arrependimento ou de algum outro afeto, devemos falar a Deus a
esse respeito, como quem fala a um Senhor que é também Amigo. Embora a oração
de petição não seja essencial à meditação, como esta não será completa se não se
traduzir em algum propósito concreto, relacionado (de preferência) com o tema
meditado, convém concluir este piedoso exercício com algum pedido (por exemplo,
luzes e contrição para fazer bem a próxima confissão, paciência para suportar
cristãmente uma dificuldade, graças para progredir numa determinada virtude etc.).

Você também pode gostar