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Museus etnográficos: abordagens e

perspectivas na contemporaneidade

Renato Athias

Ainda acontece com frequência em coleções antropo-


lógicas que um vasto campo de pensamento pode ser
expresso por um único objeto ou nenhum objeto que
seja, porque esse aspecto particular da vida pode con-
sistir apenas em ideias; por exemplo, se uma tribo usa
um grande número de objetos em seu culto religioso,
enquanto, entre outros, praticamente não são utilizados
objetos materiais de culto, a vida religiosa dessas tribos,
que pode ser igualmente vigorosa, parece completamente
fora de suas verdadeiras proporções na coleção do museu
(Boas, 1907, p. 928).

Gosto deste trecho acima de Franz Boas – faz um século que foi pu-
blicado – pois nos oferece elementos para discutir objetos museológicos
em dois campos disciplinares: no da antropologia e no da museologia. Sa-
MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

bemos que um dos pais fundadores da antropologia nos EUA, Franz Boas
(1858-1942), iniciou sua vida profissional no Real Museu de Etnografia
de Berlim, logo em seguida migrou para os EUA e, ali, durante sessenta
anos foi responsável pela institucionalização da Antropologia no país.
Lévi-Strauss, em 1958, repete exatamente estas mesmas ideias de Boas
quando ele coloca em evidência um dos papéis dos Museus Etnográficos.
Para ele, esses museus são espaços singulares para a pesquisa, e os descreve
como um prolongamento do trabalho de campo, enfatizando serem lugar
de treinamento e de sensibilização de futuros etnólogos.
Boas e depois Lévi-Strauss configuram esses espaços como um la-
boratório voltado não somente para a coleta de material, mas sobretudo
para o estudo sistemático das sociedades. Podemos perceber as coleções
etnográficas na mesma perspectiva colocada por Belk (2003) e Pearce
(2003), que assinalavam sobre as possibilidades de interpretações. Um
estudo sistemático de uma coleção pode dar oportunidade de relacionar
os objetos com suas histórias individuais. Neste texto procuro desen-
volver um debate no sentido de que elementos da história de um povo
que produz um determinado objeto serão também parte dos estudos e
das pesquisas. Em outras palavras, não podemos dissociar os objetos e
as coisas produzidas por um povo da história e do contexto social nos
quais esse objeto teve sentido primeiro. “Esses objetos fazem parte de
nossa história”, nos disse o Tikuna Nino Fernandes no I Encontro de
Museus Indígenas em Pernambuco, Recife, em novembro de 2013.
No início do século XX, Franz Boas levanta importantes questões
para esses dois campos de saberes, a antropologia e a museologia, ques-
tões estas voltadas principalmente para as práticas em museus quanto
ao uso da classificação de objetos etnográficos desde 1887. Pois me
parece que esse debate ainda é bastante atual entre nós, antropólogos e
museólogos, nos dias de hoje.
Em texto publicado anteriormente (Athias, 2016a), eu abordei uma
questão relacionada ao espaço físico dos museus etnográficos para aco-

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RENATO ATHIAS

modar as coleções, espaço que todos eles reclamam faltar. O problema


crucial é buscar novos lugares para abrigar novas coleções. Nessa ocasião,
foi enfatizado que uma das soluções encontradas para a manutenção dos
museus foi a de justamente vender as coleções. Então, o que fazer com
as imensas coleções etnográficas ali guardadas com despesas enormes?
Elas perderam toda a utilidade? Essa estratégia foi sugerida para pôr em
prática a ideia de “descolonização de museus etnográficos”. Precisamos
“descolonizar” o museu e dar um novo sentido às suas coleções”.
Muitos antropólogos irão falar e propor outras soluções para esta
questão bem contemporânea, aliás, não só no mundo dos pesquisadores
da cultura, mas também entre os povos indígenas pertencentes a um
movimento indígena, que querem de volta os seus objetos que foram
retirados de suas terras no século XIX e que agora se encontram patri-
monializados e tombados como objetos de Estado em reservas de museus.
Este debate não é atual. Os museus são percebidos por pesquisadores e
artistas como instituições dispendiosas que acumulam grandes quan-
tidades de objetos, sempre buscando mais recursos para manterem as
suas coleções guardadas, muitas vezes justificando a sua existência com
exposições descontextualizadas para um público de diversas origens. Eles
se tornam museus sem uma identidade definida. Na realidade, grande
parte desses espaços museais precisa urgentemente reorganizar as suas
exposições permanentes, procurando novas orientações no mundo con-
temporâneo, já insistia James Clifford em sua conferência em Oxford
(2013) sobre os Museus Etnográficos.
No Brasil, Lux Vidal e Aracy Lopes da Silva preferem não fazer
nenhum manual, mas colocam as bases para a organização de um sistema
de objetos indígenas segundo suas experiências etnográficas ou, como
elas mesmo assinalam,

[um] sistema de objetos, no sentido amplo do termo, pelo fato


de apresentar um lado sensível, visual, auditivo, configura-se
em um recurso pedagógico inestimável para uma compreensão

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MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

rápida e direta de contextos transculturais [...] Configura-se,


portanto, como um canal de comunicação privilegiado, já
que permite o reconhecimento do outro como diferente de
si em suas concepções de mundo, em seu modo de vida e em
sua produção material e artística e, ao mesmo tempo, como
igual, dono de sensibilidade, inteligência, criatividade, capaz
de elaborações sobre aspectos fundamentais da existência
humana (Vidal; Silva, 1995, p. 360).

Berta Ribeiro, no entanto, irá estabelecer uma taxionomia e lançar


um amplo debate também sobre essas questões de classificação quando
se trata de coleções etnográficas. O seu livro se tornou hoje fundamen-
tal para quem trabalha com coleções de objetos dos povos indígenas do
Brasil em processos museológicos (Ribeiro, 2000, p. 30).
Ira Jacknis (1985, p. 78), apoiando-se nas análises de Stocking Jr.
(1974), apresenta elementos significativos sobre a racionalidade da clas-
sificação de objetos proposta por Boas e Mason, e busca problematizar
as questões relacionadas aos “sistemas de classificação” de objetos etno-
gráficos utilizados em museus e os coloca como resultado da prática das
ciências humanas enfatizada por Franz Boas. Na realidade, foi através
deste debate que Boas buscou o entendimento da “distribuição” de objetos
da cultura material dos povos da costa Noroeste dos EUA, que eram
expostos até então em diversos museus. Estes objetos estavam integrados
em exposições sobre inventos universais, tais como a invenção do fogo,
da cerâmica, da cestaria, e assim por diante, com amostras agrupadas de
modo a enfatizar a “evolução de um tipo tecnológico” (Bouquet, 2010).
Otis Mason era o curador do American National Museum desde
1884, onde introduziu um sistema classificatório baseado no desenvolvi-
mento das invenções que serviu de inspiração na prática de desenho da
história natural. Mason construiu o seu arranjo em termos de audiências
(músicos, ceramistas, soldados, artistas) que queriam ver justaposição,
mas Boas propôs mudar a organização dos conjuntos de artefatos para

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representar grupos étnicos, subconjuntos para mostrar especificidades


dos povos em que tais objetos foram coletados. A exposição, segundo
Boas, dava importância fundamental ao que ele chamava de “Conceito de
Classificação”, ancorado na ideia de que “todos os que tentam classificar
dados devem primeiro ter em mente certas noções, ideias ou caracterís-
ticas por meio das quais um objeto será separado do outro”.
Esta noção eu procuro problematizar em um outro texto (Athias,
2011) com o objetivo de abrir possibilidades para o estudo de coleções
etnográficas segundo a perspectiva já assinalada por Lévi-Strauss em
1958, e que Gilberto Freyre (1979) também enfatiza, por exemplo, quando
ele cria o “Museu do Homem do Nordeste”. Este debate sobre coleções
etnográficas, que no fundo se trata de “como melhor mostrar, traduzir
ou apresentar a cultura” de acordo com estes importantes pensadores,
nos leva a inferir que o estudo de objetos e coleções etnográficas tem
cada vez mais expressado a necessidade de um diálogo interdisciplinar,
sobretudo com as questões referentes às noções de patrimônio em voga em
vários países, envolvendo também os representantes dos povos indígenas.
Com isso, insisto que a cultura assume uma dimensão central na
compreensão das diversas linguagens que os indivíduos e os grupos
sociais desenvolvem na atualidade, exigindo, sobretudo, um entendi-
mento mais aprofundado não só do material, mas também dos objetos
etnográficos expostos em museus. A partir dessas dimensões assinaladas
acima, existe claramente uma disposição e uma possibilidade da ampliar
a pesquisa antropológica nos referidos campos disciplinares que estão
relacionados, principalmente, aos objetos de coleções etnográficas nos
museus. Nesse sentido, este texto explora as potencialidades de inves-
tigações existentes nesses museus com base nas experiências realizadas
nos últimos anos com os objetos da Coleção Etnográfica Carlos Estevão
de Oliveira (CECEO) do Museu do Estado de Pernambuco.
Este acervo é composto por mais de 3.000 artefatos arqueológicos,
documentos, fotografias e objetos etnográficos de inúmeros povos in-

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dígenas. Desde 2003, eu o vejo como um lugar de pesquisa no campo


dos estudos das coleções etnográficas, de acordo com as perspectivas
adotadas por Belk (2003) e Pearce (2003), que assinalam as possibili-
dades de interpretações e o sentido de agrupar esse acervo às peças
etnográficas que se encontram em outros lugares, possibilitando assim
a sua interpretação muito mais no sentido de completar as informações.
Estes objetos, aos quais tivemos acesso a partir de 2003, foram adquiri-
dos entre os anos de 1909 e 1946, quando o pernambucano, advogado,
poeta, naturalista e etnógrafo Carlos Estevão de Oliveira trabalhou na
região Amazônica, ocupando importantes cargos no estado do Pará
como promotor público em Alenquer, funcionário público em Belém e,
por fim, diretor do Museu Paraense Emílio Göeldi, cargo que exerceu
até sua morte em junho de 1946. Esta coleção, que compreende objetos
de 54 povos indígenas, mostra uma variedade de artefatos que faziam e
fazem parte da vida cotidiana desses povos. As exposições permanentes
e as diversas mostras itinerantes organizadas pelo Museu do Estado de
Pernambuco indicam quão importante é esta coleção para se visualizarem
as riquezas, a vida e a cultura material dos povos indígenas do Brasil.1

Documentação
Talvez uma das primeiras situações com que o pesquisador em
coleções etnográficas se depara é a questão da documentação e das
classificações dos objetos de tais coleções. Esta é uma preocupação que
vem desde o final do século XIX, levantada por Boas, mas também era
a de um grande número de viajantes, naturalistas e investigadores que
desenvolveram um modelo próprio de documentação e de organização
de áreas temáticas para falar dos artefatos indígenas, como está muito
bem assinalado no livro organizado por Jean-Perre Chaumeil, Leoncio

1 Maiores detalhes sobre a diversidade de objetos dessa coleção etnográfica podem


ser encontrados em Athias (2002), e consultando o museu virtual no seguinte
site: http://www.ufpe.br/carlosestevao.

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Lópe-Ocón e Ana Verde Casanova, intitulado: Los Americanistas del


Siglo XIX – La Construcción de una comunidad científica internacional,
publicado em 2006.
As coleções etnográficas hoje estão no foco dos estudos antropo-
lógicos e museológicos, mas também no dos militantes dos diversos
movimentos indígenas. Essas coleções, principalmente, têm um interesse
histórico, pois é através de seus objetos que se busca contextualizá-los
etnograficamente para, a partir daí, reconstruir suas relações com os
povos indígenas, pois estes acervos possibilitam criar uma materialidade
para determinada sociedade e cultura. Segundo esta ótica, desenvolve-se
todo um rigor metodológico proposto para novos modelos de documen-
tação sobre os objetos. Nessas novas formas, trabalha-se com o conceito
de memória, que se torna fundamental, pois está associado ao objeto e ao
povo que o produziu, e não menos dissociado do colecionador que teve
intencionalidade ao coletar tal objeto.
O trabalho de documentar os objetos (Pierce, 2003, p. 25) não pode
ser uma mera repetição das fichas museológicas, muitas delas preenchidas
de maneira errônea. Este trabalho deveria ser bem elaborado nas suas
diversas formas de descrição. A reconstrução da memória do objeto
etnográfico, presente na documentação da coleção, será um elemento
importante para contextualizar tais coleções na atualidade, mostrando
as possibilidades da investigação antropológica a ser feita.
Quando a reconstrução da memória dos objetos da coleção é reali-
zada por pessoas que não participaram do processo de coleta dos obje-
tos, cria-se uma narrativa que muitas vezes perde o sentido original do
objeto coletado. Para que isto não ocorra, será necessário mergulhar
na etnografia do povo para se chegar a uma melhor contextualização
dos objetos e à criação de uma narrativa sobre eles no conjunto da
coleção. Por isso, tais objetos, sujeitos à memória social, expostos alea-
toriamente, podem colocar o olhar em outra direção Para que isto não
venha a acontecer, será necessário aproximar o objeto do seu tempo

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MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

e do seu espaço geográfico, buscando entender a situação etnográfica


de quando o objeto foi coletado. E uma boa documentação da coleção
possibilita esse entendimento do contexto etnográfico dos objetos de
um determinado povo.
Um número significativo dos artefatos dessa coleção tem uma
descrição, e isto pode ser percebido através das fichas museológicas,
completamente descontextualizadas, pois toda a documentação da co-
leção está apenas dirigida ao objeto em si. Em outras palavras, é uma
descrição que só leva em consideração o tipo de material com que o
objeto foi produzido, ou é uma documentação do objeto que não vai além
da sua simples utilização, estando muitas vezes completamente fora de
qualquer contexto etnográfico em que o objeto foi retirado.
A título de exemplo desta questão vinculada à documentação de
objetos etnográficos, gostaria de me referir a uma pequena flauta de três
furos feita do osso do fêmur de veado. Encontramos flautas de osso na
Coleção Carlos Estevão, mas eu também me deparei com esse mesmo tipo
flautas, muito bem guardadas em acervos de coleções de vários museus,
tanto na Europa como nos Estados Unidos, que tenho visitado nesses
últimos anos para a investigação que estou desenvolvendo sobre obje-
tos xamânicos dos povos indígenas do Alto Rio Negro em tais museus.
Grande parte dessas flautas foi coletada do início do século XIX ao início
do século XX em toda a região do Alto Rio Negro. Pudemos encontrar
várias dessas flautas, e muitas delas sequer fizeram parte de algumas
exposições nesses museus. Quando olhamos a documentação existente
sobre esses objetos nos referidos museus, percebemos claramente que
o contexto etnográfico e etnológico do qual esta flauta faz parte está
completamente ausente da documentação existente.
Na realidade, para os povos indígenas da região do Alto Rio Negro,
essas flautas têm o tom musical específico de um determinado clã, com
um papel fundamental na organização rítmica e coreográfica da festa
na qual os tons musicais da flauta de jurupari serão ouvidos por todos,

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sendo elas visualizadas, porém, apenas pelos homens. Ou seja, mulhere


não podem ver essas flautas nas cerimônias de Jurupari. Os tons musicais
específicos de um determinado clã, produzidos por pequenas flautas,
possibilitam a abertura de uma caixa contendo todos os ornamentos
dos ancestrais deste clã, que estarão presentes na festa nos corpos dos
grupos de irmãos que lideram com base nesses objetos vivos. Entre
outras interpretações da caixa de enfeites, Stephen Hugh-Jones suge-
re que a caixa dos ornamentos, que era mantida na interior maloca e
aberta durante as festas e ao som desta pequena flauta de osso, “é um
operador espaço-temporal, uma manifestação do sol, um ser vestido
com uma brilhante coroa de penas que ordena a passagem do tempo”
(Hugh-Jones, 2014, p. 161).

Fig.1. Gaveta na reserva técnica com as flautas de osso no Weltmuseum


Wien (Foto: Athias, 2015)

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MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

Um outro exemplo que acho importante destacar aqui é o das más-


caras que foram retiradas de diversas aldeias indígenas da região do Alto
Rio Negro, e que podemos encontrar também em muitos museus. Talvez
a mais famosa delas seja aquela que se encontra no Museu Pigorini, em
Roma, cuja história está detalhada no diário do Frei Illuminato Coppi,
que se vangloria de a ter retirado deliberadamente da aldeia Tariana de
Yauaretê no ano de 1890, eliminando o “culto ao Diabo” (Rodrigues, 2017).

Fig. 2. Três máscaras que se usam em danças, dispostas numa instalação no


Museu do Índio em Manaus (Foto: Erlan Souza, 2015)

Esta máscara e as demais têm suas documentações completamente


descontextualizadas nas fichas técnicas dos museus. Elas aparecem em
vários museus, muitas vezes apenas com as descrições do material. Na
imagem acima (Fig. 2), em uma instalação no Museu do Índio em Manaus,
as máscaras constam como pertencentes a um ritual funerário. Quando

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eu organizei o livro com os textos de Curt Nimuendajú sobre os povos


indígenas do Alto Rio Negro, ele faz referência várias vezes à “dança
das máscaras” (Nimuendajú, 1955 [1927], p. 41) sem, no entanto, rela-
cioná-las a um ritual funerário. Em seu livro sobre os povos indígenas
do Alto Rio Negro, Theodor Koch-Grünberg (2006 [1910]), além de
fazer alusões bastante específicas a elas, descreve-as em diversas passa-
gens, e acrescenta inúmeras fotografias dessas máscaras em diferentes
contextos, mas sem ligá-las aos rituais funerários.
Elas desaparecerão completamente das cerimônias da região após os
anos 1930, quando os missionários fizeram a campanha para a destruição
das malocas (grandes casas comunais) e determinaram que esses objetos
dos índios desta região eram parte do culto ao diabo. Hoje, elas são confec-
cionadas apenas como objetos de artesanato, porém sem serem utilizadas
nas festas deles, pelo menos na região do Içana e do Ayari. Certamente,
ainda descobriremos mais elementos etnográficos sobre essas máscaras,
pois no presente os professores indígenas dessa região estão interessados
em recuperá-las, produzindo também informações sobre elas.
Ao ler os diversos textos produzidos sobre as máscaras para esses
museus, sente-se uma enorme falta de dados para compor pelo menos
uma história dos seus deslocamentos para lá. Quando olhamos as foto-
grafias de Koch-Grünberg sobre as máscaras, percebemos que nas que
fazem parte da instalação do Museu do Índio de Manaus estão faltando
alguns objetos que as pessoas têm nas mãos quando usam as máscaras.
Em outras palavras, as máscares que estão no Museu do índio parecem
estar incompletas. Em geral, essas máscaras nos museus estão associadas
aos ritos fúnebres, mas a literatura não aponta para este fato.

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MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

Fig 3. Máscaras Kubeo fotografadas por Koch-Grünberg, 1903

Assim, na apropriação dos conteúdos etnográficos que descrevem


os objetos preservando a sua trajetória como objetos de pesquisa, isto
é, nas mãos do pesquisador, o objeto obedece às ordens de seu novo
curador e realiza uma nova viagem para o mundo privado ou público.
Neste sentido, se faz necessário buscar alternativas para melhorar a
documentação dos objetos de coleções etnográficas que se encontram
em museus. E esse trabalho deveria ser com a colaboracão dos povos
indígenas. Os museus poderiam aproveitar-se muito bem de represen-
tantes indígenas para apoiar em um modelo colaborativo as ações de
documentação de objetos etnográficos.

Curadorias compartilhadas
Nesses últimos anos as atividades de curadorias compartilhadas – como
está sendo denominado o trabalho colaborativo entre índios, antropólo-

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RENATO ATHIAS

gos e museólogos – para a elaboração de exposições e instalações com


objetos etnográficos já se tornaram um elemento importante no diálogo
interdisciplinar, sobretudo nas montagens de exposições. Evidentemen-
te essas questões fazem parte do cotidiano dos estudos antropológicos,
já apontadas por Jean Rouch desde os anos 70, a que ele dá o nome de
Antropologia Compartilhada. Gostaria de retornar a alguns pontos co-
locados anteriormente por Kahn (2000), quando discute as questões da
representação e das exposições colaborativas, não necessariamente em
museus etnográficos. O trabalho colaborativo não é simples, exige bastante
das pessoas que estão envolvidas. Os próprios indígenas já sugeriram aos
museus o seu envolvimento na discussão sobre a conceituação de uma
determinada exposição ou instalação, tema, inclusive, de mesas redondas
em congresso, tanto nacionais como internacionais. Os documentos finais
dos encontros de Museus Indígenas, realizados nesses últimos anos, estão
apontando um envolvimento maior dos povos indígenas nas atividades de
museus e, sobretudo, nas políticas culturais.
José Reginaldo Gonçalves, em seu livro Antropologia dos Objetos: coleções,
museu e patrimônio, assinala o fato de que, acompanhando as narrativas e as
interpretações antropológicas resultantes de uma análise sobre os objetos
etnográficos, são necessárias mudanças nos paradigmas teóricos presentes
na história da antropologia, pois o “fazer antropológico sempre esteve
imbricado à guarda, exposição e interpretação dos modos de classificar
os objetos nos museus” (2007, p. 15). Esta, na realidade, era a questão
central do debate acima referido entre Otis Mason e Franz Boas. O que
nos interessa aqui é apontar alguns elementos que surgiram na pesquisa
que está sendo desenvolvida com coleções etnográficas em museus. Talvez
seja interessante destacar algumas referências sobre como a museologia
percebe os objetos e a relação com o campo disciplinar da antropologia
que, insistimos, vai além da pesquisa documental sobre os objetos.
Na realidade, Boas estabeleceu os parâmetros iniciais para o de-
senvolvimento de uma pesquisa antropológica em museus etnográficos,

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MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

ofereceu elementos para uma melhor contextualização das coleções e,


sobretudo, possibilitou um desenvolvimento sobre os povos e as culturas,
evitando a clássica distribuição tipológica dos objetos e criticando de
forma assertiva as perspectivas evolucionistas e difusionistas que não
faziam nenhuma referência aos contextos social e político dos objetos
que estão nos museus. No início dos anos 30, os museus deixam de ser o
lugar da produção antropológica (Stocking Jr., 1998), e esses espaços são
trocados em uma enorme guinada em relação à pesquisa antropológica,
que se desloca para os diversos lugares onde vivem as populações em
questão. A pesquisa etnográfica de campo torna-se uma das condições
fundamentais para uma autoridade antropológica. Nesse sentido, os
museus deixam de ser apenas um espaço de representação para se tor-
narem, literalmente, um campo de pesquisas. Fortalece-se, assim, uma
reaproximação da antropologia com a museologia, pois um museu é o
lugar especial para a produção e a reprodução do conhecimento, tendo
na “cultura material”, nos objetos, o seu instrumento de trabalho. Diante
disso, se deveria ir além das exposições, buscando entender o conjunto
dos objetos na coleção e, sobretudo, como esses objetos fazem parte da
construção de uma identidade.
Como foi dito anteriormente, a CECEO é uma coleção etnográfica
com objetos principalmente de grupos indígenas da Amazônia. No en-
tanto, seu colecionador, Carlos Estevão, visitou vários povos indígenas
dos estados do Nordeste e, para nossa surpresa, a documentação sobre
os objetos desses povos é muito escassa. Pode-se notar que, seja pela
falta de informação, seja por minimizar a sua importância, como se fosse
uma questão menor, esses objetos dos povos indígenas situados na região
Nordeste hoje em dia têm mais informações museológicas em função
das pesquisas em andamento, completando assim os dados fornecidos
pelo colecionador.

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Fig.4 Verso do cartaz-catálogo da Exposição, 2010

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MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

A exposição/instalação “Mitos, Danças e Rituais Indígenas”, rea-


lizada no Museu do Estado de Pernambuco entre abril e julho de 2010,
nos fornece pistas para problematizar a pesquisa antropológica e a
curadoria compartilhada em acervos etnográficos que são traduzidos
em uma exposição. Ao se fazer esta exposição/instalação, buscous-se um
recorte no qual a música, a dança e as fotografias estivessem presentes
dando vida aos objetos etnográficos, mostrando a relação dos povos
indígenas com práticas ritualisticas, inclusive práticas de pajelanças
usadas na atualidade nas comunidades indígenas.
Para esta exposição/instalação, foram selecionados os objetos de uso
de pajés e terapeutas tradicionais que pudessem interagir com a música e
com as imagens presentes do mesmo acervo. Neste contexto, utilizou-se
as fotografias realizadas tanto por Curt Nimuendajú quanto por Carlos
Estevão sobre as danças rituais, como o Toré, e imagens em que os índios
estão usando a bebida preparada para uso cerimonial, como os chás de
Jurema. Isto só foi possível devido à pesquisa antropológica feita com
os representantes indígenas que estiveram no museu apresentando suas
narrativas e a documentação existente sobre esses objetos da coleção.
Mostrar esses objetos da coleção, que têm uma relação bem especifica
com as práticas xamânicas atuais, foi uma tentativa de representar os
povos indígenas que estão vivendo hoje em dia em seus espaços terri-
toriais com objetos similares a esses coletados dezenas de anos atrás,
e que estão em profunda consonância com as práticas tradicionais de
cura realizadas no presente. Foi marcante o resultado da interação com
os índios que compareceram às sessões de preparação da exposição/
instalação para organizar a narrativa expográfica com esse recorte, em
uma coleção imensa com inúmeros objetos.
No processo de curadoria compartilhada, verificou-se que os búzios
dos Fulni-ô (instrumento musical – uma espécie de trompete de madeira
oca) da coleção estavam completamente deteriorados, não indicavam a
atualidade de um búzio, e não mais podiam ecoar qualquer tom musical.

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RENATO ATHIAS

Na ocasião, foi sugerido aos Fulni-ô que preparassem um novo par de


búzios para a coleção. Realizamos o projeto e os búzios foram confeccio-
nados pelos Fulni-ô em Águas Belas. No dia da abertura da exposição, um
grupo de Fulni-ô esteve presente com músicas apropriadas e utilizadas
em suas festas. Na ocasião, os búzios deteriorados foram subsitituidos
pelos novos. Ao introduzir os novos búzios na exposição, foi alcançada a
atualidade que se queria dar à coleção, tornando-a contemporânea com a
participação indígena na montagem dos objetos. Ao realizar a exposição
com os objetos que foram recolhidos por Carlos Estevão no início do
século passado, recortando-se aspectos bastante específicos de objetos de
uso xamânico, mostrou-se o seu uso no presente pelos próprios índios.

Fig.5 Fotografia do detalhe da exposicão no painel no fundo aà direita as


duas novas flautas/Toré Fulni-ô em vermelho.

Essa exposição e todo o processo curatorial de criação dos espaços


expositivos relançam o importante debate metodológico iniciado por

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MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

Franz Boas (1907) no que se refere às questões antropológicas e à im-


portância de tais estudos para uma compreensão maior dos objetos de
uma coleção etnográfica. Certamente, quando Carlos Estevão iniciou
a coleta de objetos para a coleção, ele não tinha em mente tal recorte e
nem mesmo um interesse específico quanto a esses aspectos das práticas
xamânicas. Contudo, uma pesquisa antropológica pode estabelecer as
diversas interfaces que os objetos de coleções permitem, desde que se
tenha um amplo estudo antropológico sobre eles.

Imagens, memória e exposições


Além de objetos e documentos, um grande acervo de fotografias
contempla a Coleção Carlos Estevão, cuja maioria se refere aos povos
indígenas do nordeste e da Amazônia brasileira, oriundas do colecionador
Carlos Estevão e das expedições de Curt Nimuendajú. As exposições
aqui abordadas não foram organizadas nas paredes ou no entorno de
museus. Desta forma, este trabalho se dedica a uma prática de pesquisa
e estudos que se iniciaram no Museu do Estado de Pernambuco, mas
alargou-se em outros espaços, abrangendo o alcance museológico dos
objetos da coleção e do próprio museu em novos lugares e com outro
público. Com base na Coleção Etnográfica Carlos Estevão como um
rico espaço de pesquisa antropológica, histórica, museal e artística, as
atividades de pesquisa realizadas pela equipe do “Projeto Pesquisa, Me-
mória e Documentação da CECEO”, desde 2009, foram impulsionadas
para dar maior visibilidade e divulgação a esse rico conjunto de objetos
etnográficos. Durante esse período, além do trabalho de organização
da documentação e digitalização da CECEO, foram feitas exposições
no próprio museu, como aquela relatada anteriormente.
Gostaria de mencionar quatro exposições de fotografias que incial-
mente foram montadas fora do Museu do Estado de Pernambuco, porém
com as fotografias que compõem o acervo etnográfico deste museu. Nós
nos deteremos brevemente em cada uma delas com o intuito de mostrar

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a possibilidade de trabalho colaborativo com os índios, bem como o tra-


balho de pesquisa com objetos de coleções em museus. A primeira foi
realizada com as fotografias de Carlos Estevão sobre os Fulni-ô, com
a curadoria de Wilke Torres de Melo, exposta inicialmente na escola
bilíngue da aldeia Fulni-ô em Águas Belas-PE. A segunda foi elaborada
com as fotografias de Curt Nimuendajú sobre os povos indígenas do
Alto Rio Negro, com curadoria de Renato Athias, inicialmente exibida
na 28ª. RBA em São Paulo e, em seguida, em outros lugares. A terceira
exposição contou com um conjunto de imagens que retratam o povo
Rankokamekrá-Canela, tiradas por Curt Nimuendajú entre os anos de
1929 e 1935, que se encontra desde março 2012 na aldeia Escalvado, do
povo Ramkokamekrá, no Maranhão. Esta exposição teve curadoria de
Nilvânia Barros, com trabalho colaborativo dos Rankokamekrá. A quarta
exposição foi organizada com as fotografias de Carlos Estevão de 1937
sobre o povo Pankararu, inicialmente montada na Casa de Memória do
Tronco Velho Pankararu, no Brejo dos Padres, e depois em outros lu-
gares (Barros; Athias; Melo, 2012; Athias, 2016c; Athias; Sarapo, 2017).
Existem cerca de 126 fotografias relacionadas aos Fulni-ô no acervo
da CECEO. Após uma análise, percebe-se que essas fotografias foram
realizadas em duas ocasiões distintas. Um conjunto de retratos data
do final dos anos 30, e se percebem as pessoas e os índios na aldeia do
Ouricuri. As outras foram tiradas nos anos 40, ao que tudo indica em
uma visita oficial, pois notam-se os automóveis e um grupo de pessoas
da cidade entre os Fulni-ô. O primeiro grupo, temos quase certeza, foi
fotografado por Carlos Estevão, pois no artigo “O Ossuário da Gruta
do Padre” ele se refere à sua câmara fotográfica Rolleiflex. Portanto,
podemos identificar esse conjunto como de Carlos Estevão. O outro
grupo de fotografias pode ter sido de autoria de alguém do Serviço de
Proteção dos Índios (SPI) durante uma viagem a Águas Belas, enviadas
depois a Carlos Estevão, que as guardou.

213
MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

Nessas fotografias, pode-se notar o interesse do fotógrafo em re-


gistrar o Toré, pois nelas há uma seqüência completa da dança. Existem
muitas imagens e, nesse conjunto, as pessoas não indígenas retratadas
podem ser autoridades que visitavam a aldeia Fulni-ô, mas elas ainda
não foram identificadas. Algumas dessas fotos estão selecionadas abaixo.
Elas representam uma sequência que nos interessa bastante e que devem
ter servido como elemento para a organização da memória sobre o Toré
Fulni-ô. As fotografias foram expostas na escola na aldeia, organizadas
pelo fulni-ô Wilke Torres Melo, com o apoio de Anaíra Mahin Galvão,
bolsista do projeto, que realizou a seleção das fotos e construiu uma
narrativa própria. Não tenho informações sobre a quantidade de pessoas
que já foram ver esta exibição em Águas Belas, mas como está numa
escola indígena, imagina-se que ela tenha despertado a curiosidade das
crianças e dos adolescentes fulni-ô. Em conversa com alguns fulni-ô que
puderam visitar a exposição, constatamos que intitulada: “Espelho” de
Memória: A Fotografia na Coleção Etnográfica Indígena Carlos Estevão
de Oliveira do Museu do Estado de Pernambuco” (2006).

Fig.6. Uma das fotografias de Carlos Estevão usada na exposição sobre os


Fulni-ô mostra o Toré e o par de búzios dos Fulni-ô

214
RENATO ATHIAS

A fotografia acima é a que mais chama a atenção e a que desperta o


maior interesse de todos. Outras fotos, existentes no acervo da CECEO
que foram tiradas no interior do Ouricuri, também atraem o olhar das
pessoas, sobretudo por mostrarem o estilo das casas/palhoças diferente
das casas nos dias atuais.
A outra exposição a que nos referimos aconteceu pela primeira vez
durante a 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, em julho de 2012. As
fotografias são dos índios do Rio Negro e também fazem parte da Cole-
ção Etnográfica Carlos Estevão, e foram atribuídas por Renato Athias
a Curt Nimuendajú. Não existe em nenhum lugar na documentação da
coleção algo que informe quem foi o fotógrafo desse conjunto de 33
fotografias dos índios do Rio Negro.
O acervo fotográfico da CECEO não possui negativos e seu estado
de conservação não é muito bom. As situações retratadas são de pessoas,
lugares e monumentos importantes na mitologia indígena dos índios
do Rio Negro. Essas fotografias foram tiradas por Nimuendajú, e ao ler
o seu texto “Reconhecimento dos Rios Içana, Ayari e Uaupés”,8 pode-
mos encontrar os detalhes dessas fotografias, como se fossem grandes
legendas. Nimuendajú, em uma de suas cartas a Carlos Estevão, muito
bem selecionadas por Thekla Hartmann no volume Cartas do Sertão
(Nimunedajú, 2001, p. 112), informa claramente que viajara em 1927,
em seu reconhecimento dos rios Içana, Ayari e Uaupés, com uma câmera
fotográfica. Portanto, acreditamos que estas fotografias encontradas no
acervo da CECEO e agora publicadas em livro (Athias, 2015) são fotos
de Curt Nimuendajú, pois nesta carta que ele escreve a Carlos Estevão
informa que gastou os últimos negativos em uma festa entre os Tariana
de Urubuquara. Outras informações sobre essas fotografias da CECEO
podem ser encontradas na dissertação de Karla Melanias Barbosa, Es-
pelho de Memória: A Fotografia na Coleção Etnográfica Indígena Carlos
Estevão de Oliveira do Museu do Estado de Pernambuco (2006).

215
MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

Fig.7. Fotografia de Curt Nimuendajú (1927) que fez parte da exposição


sobre os povos indígenas do Rio Negro. Nessa fotografia está retratada o
Tuxaua Leopoldino, um personagem histórico importante na relação com os
não indígenas nessa região

Um outro conjunto de fotografias que merece ser destacado refere-


-se aos Ramkokamekra. Em 1928 iniciaram-se as visitas e os primeiros
contatos de Curt Nimuendajú com os grupos Jê (centrais e setentrionais),
os Timbira. Entre estes, encontramos o povo Canela, conhecido como
Apaniekrá e Ramkokamekrá, tendo este último servido de referência aos
estudos de Nimuendajú sobre o grupo Timbira. A etnografia desse povo
corresponde ao núcleo central da mais importante monografia de Curt
Nimuendajú, The Easterns Timbira (1946) – primeiro grande trabalho
sobre esse grupo indígena, editada e traduzida por Robert Lowie – em

216
RENATO ATHIAS

que estão reproduzidas seis das 70 fotografias que compõem o acervo de


imagens do povo Canela da CECEO. Essas fotos são um registro etno-
lógico da década de 1930, e registram a vida diária desse povo antes da
intervenção do Serviço de Proteção do Índio (SPI), correspondendo a um
importante aspecto da organização social dos Rankokamekrá: o Kokrit,
grupo de grandes máscaras-vestimentas, que é uma das seis sociedades
cerimoniais do povo Canela. Mais informações sobre esse conjunto de
fotografias são encontradas em Barros (2013).
A exposição realizada pela antropóloga Nilvânia Amorim de Barros,
em um processo colaborativo com os Rankokamekrá, encontra-se atual-
mente na aldeia Escalvado. Ela é parte fundamental de sua dissertação
de mestrado (Barros, 2013). Os Rakamkomekrá decidiram sobre o local
e o número de fotografias a serem ampliadas para a exibição, além de
construírem uma narrativa expográfica na medida em que organizavam
as fotografias que lhes eram apresentadas.
A seguir destacaremos algumas fotos que mostram a confecção do
Kokrit, a entrada e os passos de uma festa que tem um forte significado
entre os Rankokamekrá. Esse significado supera as fotos realizadas por
Nimuendajú. Crianças, adultos e velhos estão interessados em processar
essas imagens com base em relatos de memórias que alguns devem pos-
suir, e que certamente vão colocar em evidência ao se completarem os
dias em que olham as fotografias da exposição sobre a dança do Kokrit
que atualmente se encontra na aldeia. Talvez, diferentemente das outras
duas exposições, esta tem mostrado um aspecto distinto, uma vez que os
Rankokamekrá revelam a Nilvânia seu interesse em voltar a fazer a festa.
As cerimônias realizadas na festividade Kokrit, amplamente descritas
por Curt Nimuendajú, principalmente no livro Os Timbiras, versão que
ainda está em inglês, compõem um amji kĩn (festa) há muitos anos não
realizado pelos Ramkokamekrá. Nilvânia conseguiu falar com pessoas
que eram crianças quando Nimuendajú fez as fotografias e, de acordo
com o seu relato, os Rankokamekrá receberam muito bem a exposição,

217
MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

e a colocaram em lugar privilegiado na aldeia. Essas fotografia trouxe-


ram inúmeras memórias e fizeram com que os Ramkokamekra desejem
retomar uma prática adormecida durante alguns anos.
O que nos interessou aqui, no relato dessas experiências colabo-
rativas, foi mostrar que tais lembranças dos índios estão associadas a
um determinado evento histórico. Neste caso, especificamente a festa
do Kokrit. Ao se levarem até eles as fotografias de 1929 a 1937 feitas
na antiga aldeia do Ponto, um grande interesse surgiu entre eles, so-
bretudo porque a maioria dos Rankokamecra jamais tinha visto essas
fotografias. Evidentemente, ao contemplarem as fotos, sua memória
foi acionada em diversas direções, tanto a memória individual quanto a
memória coletiva, lembrando fatos e histórias que por certo fazem parte
da tradição oral. Esse processo talvez tenha sido muito importante no
sentido de poder entender certas situações que têm a ver com o contato
com a sociedade nacional. As fotografias despertaram e ampliaram as
memórias que vinham sendo transmitidas oralmente.
A memória enquanto conceito vem sendo apropriada por discipli-
nas como a história e a antropologia, numa tentativa significativa de
relacionar o passado ao presente. E no caso destes três conjuntos de
fotografias, há o impacto que essas fotografias nos causam na atualidade.
Maurice Halbwachs (2004), um dos autores em que nos apoiamos neste
texto, afirma que a memória individual existe sempre baseada em uma
memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no
interior de um grupo. Halbwachs busca compreender esses aspectos da
memória porque está interessado em produzir um sistema sociológico
da memória. A origem de várias ideias, reflexões, sentimentos, paixões
que atribuímos a nós é, na verdade, inspirada pelo grupo. A disposição
de Halbwachs acerca da memória individual refere-se à existência do
que ele denomina de uma “intuição sensível”.
Como assinala Barros (2013, p. 25), as fotografias de um outro
periodo histórico, quando mostradas hoje, despertam as lembranças

218
RENATO ATHIAS

que equivalem a processar ou a reelaborar um passado. As exposições


realizadas com essas fotografias da CECEO nas aldeias dos índios em
que foram retratados mostram exatamente um lado mais sensível, em
que vários aspectos revelados nas fotografias são objeto de análise na
atualidade por esses índios de hoje, num processo de voltar o olhar para
a imagem de seus antepassados. Sem dúvida, constituem elementos do
pensamento social que vai se formando com as lembranças de outros
colocadas em comum.
O grupo reconhece nas fotografias situações emocionais que estão
vinculadas diretamente à sua memória. Quanto à referência à noção de
memória coletiva, caberia uma questão que nos parece ser importante.
De que maneira essa lembrança “comum” entre os integrantes das
aldeias onde estão expostas as fotografias selecionadas se propaga no
tempo de um indivíduo, ou como o indivíduo consegue se recordar de
fatos em circunstâncias e tempos diferentes?

219
MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

Fig. 8. Uma das fotografias de Curt Nimuendajú da máscara usada na festa


do Kokrit entre os Ramkokamekra, de 1935, foi usada na exposição na aldeia
Escalvado (Acervo da Coleção Carlos Estevão)

220
RENATO ATHIAS

Outra exposição também foi montada com as fotografias dos Panka-


raru da Coleção Carlos Estevão segundo um modelo colaborativo amplo e
participativo, cujo processo está descrito no trabalho de Jessica Francielle
(2013) e no ensaio fotográfico realizado por Sarapó Pankararu e Athias
(2017). A exposição com as fotografias dos Pankararu, de Carlos Este-
vão, teve um objetivo central: explicar as festas e os rituais pankararu
através das imagens. Os Pankararu que puderam ver essas fotografias
vivenciaram um despertar bastante forte, sobretudo os jovens, no sentido
de entender melhor os processos rituais. Eles perceberam a riqueza de
detalhes nas festas que hoje estão soltos, mas que as fotografias realçam.
Esse modelo tem sido seguido por outros pesquisadores e tem se
mostrado eficiente em apontar para os índios que participam diretamen-
te do processo um caminho de revitalização de sua cultura, sobretudo
porque envolve um número significativo de pessoas na identificação
e na descrição do material imagético. Na realidade, essas fotografias
foram como marcadores para os índios Fulni-ô, os do Rio Negro, os
Rankokamekrá-Canela e os Pankararu, ativando a lembrança de eventos
e fatos ocorridos que hoje fazem parte das narrativas orais. Em muitos
casos, essas imagens tiveram um caráter de verdade, de fato realmente
acontecido no sentido das narrativas por muito tempo ouvidas. Os tra-
balhos realizados com as fotografias da CECEO, além de darem mais
informação e de ampliarem a documentação sobre a coleção, puderam,
sem dúvida, fortalecer o conhecimento individual dos indígenas que
participaram dos processos descritos acima, além de permitirem uma
visão mais ampla quanto ao entendimento de suas próprias identidades
indígenas. Nesse sentido, o trabalho com acervos fotográficos tem podido
colaborar com o interesse dos índios pela documentação realizada em
colaboração sobre o seu povo.

221
MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

Fig. 9. Fotografia de Carlos Estevão (1937) utilizada na exposição dos


Pankararu sobre as festas das corridas do imbu

Abordagens e perspectivas
Este texto está apoiado na concepção de que o museu etnográfico
faz parte de um ato de comunicação e de construção social, cujo acervo
é composto por bens materiais e imateriais que expressam e traduzem o
modo de vida socialmente apreendido por determinados grupos humanos,
abarcando seus valores, motivações, pensamentos e comportamentos
(Chagas, 2003). Portanto, parte do pressuposto de que o conceito de
patrimônio vem sendo sistematicamente ampliado em sua dimensão
semântica e também, com ele, os princípios de seleção de objetos que
são passíveis de serem “patrimonializados” e “musealizados”.
A divulgação desses acervos através de atividades colaborativas com
os povos indígenas possibilitará apreender e valorizar os diferentes tipos

222
RENATO ATHIAS

de patrimônios por meio de ideias, sentidos e significados que determi-


nados grupos costumam atribuir às suas próprias ações com objetos que
são produzidos por eles mesmos ou por outros. Lux Vidal (2015), em seu
recente livro sobre os objetos etnográficos dos índios do Amapá, aborda
as diversas linguagens que os representantes indígenas utilizam e que,
por sua vez, dão origem a diversificadas formas de representação em mu-
seus. A perspectiva atual dos estudos em museologia amplia um diálogo
interdisciplinar aplicado a um vasto campo de atividades práticas e que
envolve questões relativas ao patrimônio cultural, assim como à gestão de
bens culturais, que estão sendo vivenciadas hoje pelas novas tecnologias
e que podem ser usadas em todos os níveis em uma exposição, ou mesmo
na documentação dos objetos etnográficos de acervos museológicos.
Ainda sobre esta perspectiva de buscar uma estratégia metodológica
para um trabalho sistemático em coleções etnográficas, é interessante
perceber a distinção entre um objeto étnico, por exemplo, e um objeto
etnográfico com um conteúdo semântico distinto, tal como Belk (2003)
apresenta em seu trabalho sobre os objetos de coleções etnográficas.
Nesse sentido, a pesquisa colaborativa se faz realmente necessária para
uma melhor compreensão dos diversos conteúdos que uma coleção
etnográfica pode abrigar. Porém, com o objetivo de completar a docu-
mentação prevista, nas atividades da CECEO, como estratégia metodo-
lógica, há a leitura das fichas museológicas existentes de cada objeto,
anteriormente realizadas pela antropóloga Lígia Oliveira, filha de Carlos
Estevão, que trabalhou por vários anos com essa coleção nas décadas de
70 e 80. Essas fichas têm duas finalidades explícitas: possibilitar uma
descrição da peça para o catálogo e ao mesmo tempo uma descrição re-
sumida que será veiculada no catálogo virtual com a imagem do objeto.
Ao se colocarem em evidência as diversas descrições existentes de um
determinado objeto, em outra literatura, adentra-se em uma atividade
de pesquisa que possibilitará entender as principais significações dessa
coleção não só sobre o que representou para o próprio Carlos Estevão

223
MUSEUS ETNOGRÁFICOS: ABORDAGENS E PERSPECTIVAS NA CONTEMPORANEIDADE

de Oliveira, mas também para os povos indígenas cujos objetos estão


dispostos nesse acervo.
Essa problematização é feita por vários museólogos e antropólo-
gos, entre eles James Clifford (2003, p. 265) e E. Lagrou (1998), que
discutem técnicas de análises sobre interpretações de coleções. Apesar
da objetividade pretendida pelas linguagens que descrevem os objetos
das coleções etnográficas, elas podem servir para desenvolver o inte-
resse e o olhar interpretativo daqueles que estão realizando tal tarefa,
marcando assim tanto uma gramática quanto uma semântica próprias.
Neste caso, pudemos perceber que as fichas museográficas realizadas
por Lygia Estevão estão repletas dos comentários do pai sobre o objeto,
numa perspectiva de transposição para a atualidade das interpretações
anteriormente feitas. Essas situações de mediações são sustentadas pelas
diversas linguagens étnicas no campo da ética, da moral, da cultura e
da história, os colecionismos sendo vistos como fenômenos sociais da
teia de significados estéticos, utilitários e sagrados.

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