Introdução A Uma História Indígena: Manuela Carneiro Da Cunha

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Introdução a uma história indígena1

Manuela Carneiro da Cunha 2

Como eram e são tão bárbaros, e destituídos da razão, não trataram de Escritura,
ou de outros monumentos em que recomendassem à posteridade as suas Histórias
para que dela víssemos os seus Principados, alianças, Pazes, e discórdias de soberanos,
sucessos de Estados, conquistas de Províncias, defensas de Praças, admirássemos
vitórias e perdas de Batalhas, e todo o memorável com que a fortuna e a política
vão sempre, com os séculos, acrescentando às Histórias das Monarquias. Por esta
Cauza, ignoramos o que se conhece de todas as outras Nações do Mundo […].

Ignácio Barboza Machado3

1. Texto originalmente publicado em Manuela Carneiro da Cunha (org.), História dos Índios no
Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, pp. 9-24. Foram feitas adaptações para esta
edição, publicada pela Edusp.
2. Antropóloga, professora emérita da University of Chicago, Estados Unidos, e professora apo-
sentada da Universidade de São Paulo (usp), é membro da Academia Brasileira de Ciências
(abc). Graduou-se em matemática pela Faculté des Sciences de Paris, França, e doutorou-se
em ciências sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde foi professora.
Também foi titular da cátedra Savoirs Contre Pauvreté, no Collège de France (2011-2012),
presidente da Associação Brasileira de Antropologia (aba; 1986-1988) e cofundadora e pre-
sidente da Comissão Pró-índio de São Paulo (cpi-sp; 1979-1981). Pesquisadora premiada,
dedica-se a estudos nas áreas de teoria antropológica, história e direitos indígenas, conhe-
cimentos tradicionais, etnologia, etnicidade e escravidão negra, entre outras.
3. Ignácio Barboza Machado, Exercisios de Marte: Nova Escolla de Bellona, Guerra Brasillica Primeira
Parte, Segunda, Terceira e Quarta ou Dissertaçoens Criticas Jurídico Históricas do Descobrimento, e
Origens dos Povos, e Regioens desta América, Povoaçoens, e Conquistas Guerras, e Vitorias com [que]
a Nação Portugueza Conseguio o Dominio das Quatorze Capitanias, q[ue] Formam a Nova Luzitânia,
ou Brazil, Principado dos Primogênitos de Portugal, Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa,
[1725], fól. 90 (Biblioteca Nacional de Lisboa, Códices Alcobacenses, cód. 367 Res. 3-d-5;
cód. 848).

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Ao chegarem às costas brasileiras, os navegadores pensaram que haviam
atingido o paraíso terreal: uma região de eterna primavera, onde se vivia
comumente por mais de cem anos em perpétua inocência. Desse paraíso
assim descoberto, os portugueses eram o novo Adão. A cada lugar conferi-
ram um nome – atividade propriamente adâmica –, e a sucessão de nomes
era também a crônica de uma gênese que se confundia com a mesma via-
gem. A cada lugar, o nome do santo do dia:Todos os Santos, São Sebastião,
Monte Pascoal. Antes de se batizarem os gentios, batizou-se a terra encon-
trada. De certa maneira, dessa forma o Brasil foi simbolicamente criado.
Assim, apenas nomeando-o, se tomou posse dele, como se fora virgem4.
Assim também a história do Brasil, a canônica, começa invariavelmente
pelo “descobrimento”. São os “descobridores” que a inauguram e confe-
rem aos gentios uma entrada – de serviço – no grande curso da história.
Por sua vez, a história da metrópole não é mais a mesma após 1492. A
insuspeitada presença desses outros homens (e rapidamente se concorda,
e o papa reitera em 1537, que são homens) desencadeia uma reformula-
ção das ideias recebidas: como enquadrar, por exemplo, essa parcela da
humanidade, deixada por tanto tempo à margem da boa-nova, na história
geral do gênero humano? Se todos os homens descendem de Noé, e se
Noé teve apenas três filhos, Cam, Jafet e Sem, de qual desses filhos provi-
riam os homens do Novo Mundo? Seriam descendentes daqueles merca-
dores que ao tempo do rei Salomão singravam o mar para trazerem ouro
de Ofir – que poderia ser o Peru –, ou das dez tribos perdidas de Israel
que, reinando Salmanasar, se afastaram dos assírios para resguardar em sua
pureza seus ritos e sua fé? E mais, admitindo que se soubesse isso, restaria
descobrir por que meios teriam cruzado os oceanos antes que os descobri-
dores tivessem domesticado os mares.Talvez as terras do Novo e do Antigo
Mundo comunicassem, ou tivessem comunicado em tempos passados, por
alguma região ainda desconhecida do extremo norte ou do extremo sul do
mundo, ou talvez as correntes marinhas tivessem trazido esses homens à
deriva. Questões que, debatidas, por exemplo, pelo jesuíta José de Acosta

4. Tzvetan Todorov, A Conquista da América: A Questão do Outro, trad. Beatriz Perrone-Moisés,


São Paulo, Martins Fontes, 1983.

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em 15905, continuam colocadas hoje e não se encontram completamente
resolvidas6. Haveria múltiplas origens e rotas de penetração do homem
americano? Teria ele vindo, como se crê em geral, pelo estreito de Bering
e somente por ele? Quando se teria dado essa migração?

Origens

Sabe-se que entre cerca de 35 mil e 12 mil anos atrás, uma glaciação teria,
por intervalos, feito o mar descer a uns 50 m abaixo do nível atual. A faixa
de terra chamada Bering teria assim aflorado em vários momentos desse
período e permitido a passagem a pé da Ásia para a América. Em outros
momentos, como no intervalo entre 15 mil e 19 mil anos atrás, o exces-
so de frio teria provocado a coalescência de geleiras ao norte da América
do Norte, impedindo a passagem de homens. Sobre o período anterior a
35 mil anos, nada se sabe. De 12 mil anos para cá, uma temperatura mais
amena teria interposto o mar entre os dois continentes. Em vista disso,
é tradicionalmente aceita a hipótese de uma migração terrestre vinda do
nordeste da Ásia e se espraiando de norte a sul pelo continente americano,
que poderia ter ocorrido entre 14 mil e 12 mil anos atrás. No entanto, há
também possibilidades de entrada marítima no continente, pelo estreito
de Bering: se é verdade que a Austrália foi alcançada há uns 50 mil anos
por homens que, vindos da Ásia, atravessaram aproximadamente 60 km

5. José de Acosta, Historia Natural y Moral de las Indias, org. Edmundo O’Gorman, Cidade do
México, Fondo de Cultura Económica (fce), 1940 [1590] (Biblioteca Americana, 38/Cro-
nistas de Indias).
6. Francisco M. Salzano, “O Velho e o Novo: Antropologia Física e História Indígena”, em
Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 27-36; Niéde Guidon, “As Ocupações
Pré-históricas do Brasil (Excetuando a Amazônia)”, em Manuela Carneiro da Cunha (org.),
op. cit., 1992, pp. 37-52; Francisco M. Salzano, “The Peopling of the Americas as Viewed
from South America”, em Robert Kirk e Emöke Szathmáry (orgs.), Out of Asia: Peopling the
Americas and the Pacific, Canberra, The Journal of Pacific History Special Publication, 1985,
pp. 19-29; Francisco M. Salzano e Sidia M. Callegari-Jacques, South American Indians: A
Case Study in Evolution, Oxford, Clarendon Press, 1988 (Research Monographs on Human
­Population Biology, 6).

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de mar, nada impediria que outros viessem para a América, por navega-
ção costeira7.
Há considerável controvérsia sobre as datas dessa migração e sobre
ser ela ou não a única fonte de povoamento das Américas. Quanto à anti-
guidade do povoamento, as estimativas tradicionais falam de 12 mil anos,
mas muitos arqueólogos afirmam a existência de sítios arqueológicos no
Novo Mundo anteriores a essas datas: são particularmente importantes
nesse sentido as pesquisas feitas no sudeste do Piauí por Guidon8. Os sí-
tios para os quais se reivindicam as mais antigas datas estariam – compli-
cador adicional – antes a sul do que a norte do continente, contrariando
a hipótese de uma descida em que a América do Sul teria sido povoada
após a América do Norte. Não há consenso sobre o assunto, no entanto,
na comunidade arqueológica. Mas, recentemente uma linguista9, Nichols,
com base no tempo médio de diferenciação de estoques linguísticos, fez
suas próprias avaliações e afirmou um povoamento da América que ter­se-ia
iniciado por volta de 30 mil a 35 mil anos atrás. Mais conservadora quanto
à profundidade temporal é a estimativa de outro linguista, Greenberg10,
que mantém os fatídicos 12 mil anos, mas estabelece a existência de três
grandes línguas colonizadoras que teriam entrado no continente em vagas
sucessivas11. Tudo isso põe em causa a hipótese de uma migração única de
população siberiana pelo interior da Beríngia. A possibilidade de outras
fontes populacionais e de rotas alternativas se somando à do interior da
Beríngia não está, portanto, descartada.

7. David J. Meltzer, “Why Don’t We Know When the First People Came to North America?”,
American Antiquity, vol. 54, n. 3, pp. 471-490, jul. 1989. Disponível em http://www.latin
americanstudies.org/ancient/Meltzer.pdf, acesso em: 10 jan. 2018.
8. Niéde Guidon, op. cit., 1992.
9. Johanna Nichols, “Linguistic Diversity and the First Settlement of the New World”, Language,
v. 66, n. 3, pp. 475-521, set. 1990; idem, Linguistic Diversity in Space and Time, Chicago, Uni-
versity of Chicago Press, 1992.
10. Joseph H. Greenberg, Language in the Americas, Stanford, Stanford University Press, 1987.
11. Greg Urban, “A História da Cultura Brasileira segundo as Línguas Nativas”, em Manuela
Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 87-102.

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Presença da história indígena

Sabe-se pouco da história indígena: nem a origem, nem as cifras de popu-


lação são seguras, muito menos o que realmente aconteceu. No entanto,
progrediu-se: hoje está mais clara, pelo menos, a extensão do que não se
sabe. Os estudos de casos contidos, por exemplo, no livro História dos Ín-
dios no Brasil12 são fragmentos de conhecimento que permitem imaginar
– mas não preencher –, as lacunas de um quadro que gostaríamos que
fosse global. Permitem também, e isso é importante, não incorrer em
certas armadilhas.
A maior dessas armadilhas é talvez a ilusão de primitivismo. Na segun-
da metade do século xix, época de triunfo do evolucionismo, prosperou
a ideia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evolução,
e de que eram, portanto, algo como fósseis vivos que testemunhavam o
passado das sociedades ocidentais. Foi quando as sociedades sem Estado
se tornaram, na teoria ocidental, sociedades “primitivas”, condenadas a
uma eterna infância. E, porque tinham assim parado no tempo, não cabia
procurar-lhes a história. Como dizia Varnhagen, “de tais povos na infância
não há história: há só etnografia”13.
Hoje ainda, por lhes desconhecermos a história, por ouvirmos falar,
sem entender-lhe o sentido ou o alcance, em sociedades “frias”, sem his-
tória, porque há um tropo propriamente antropológico, que é o chamado
“presente etnográfico”, e porque nos agrada a ilusão de sociedades virgens,
somos tentados a pensar que as sociedades indígenas de agora são a imagem
do que foi o Brasil pré-cabralino, e que, como dizia Varnhagen por razões
diferentes, sua história se reduz estritamente à sua etnografia.
Na realidade, a história está onipresente. Está presente, primeiro, mol-
dando unidades e culturas novas, cuja homogeneidade reside em grande
parte numa trajetória compartilhada: é o caso, por exemplo, do conglome-

12. Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992.


13. Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil Antes da Sua Separação e Independência
de Portugal, rev. e notas de J. Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, São Paulo, Melhora-
mentos, 1978 [1854], p. 30 (Memória Brasileira).

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rado piro/conibo/cambeba, que forma uma cultura ribeirinha do Ucayali,
apesar de seus componentes pertencerem a três famílias linguísticas diver-
sas (arawak, pano e tupi), que se contrapõe às culturas do interflúvio14; é o
caso também das fusões arawak-tukano do Alto Rio Negro15, das culturas
neorribeirinhas do Amazonas16, das sociedades indígenas que Taylor17 cha-
ma apropriadamente de coloniais porque geradas pela situação colonial.
Está presente a história ainda na medida em que muitas das sociedades
indígenas ditas “isoladas” são descendentes de “refratários”, foragidos de
missões ou do serviço de colonos que se “retribalizaram” ou aderiram a
grupos independentes, como os muras. Os muras, aliás, provavelmente se
“agigantaram” na Amazônia18 porque reuniam trânsfugas de outras etnias.
Os xavantes também foram mais de uma vez contatados e mais de uma
vez fugiram19. A ideia de isolamento deve ser usada com cautela em qual-
quer hipótese, pois há um contato mediatizado por objetos, machados,
miçangas, capazes de percorrer imensas extensões, mediante comércio e
guerra, e de gerar uma dependência a distância20: objetos manufaturados
e micro-organismos invadiram o Novo Mundo numa velocidade muito
superior à dos homens que os trouxeram.
Está presente a história também no fracionamento étnico para o qual
Taylor chama a atenção e que vai de par, paradoxalmente, com uma ho-

14. Philippe Erikson, “Uma Singular Pluralidade: A Etno-história Pano”, trad. Beatriz Perrone-
-Moisés, em Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 239-252.
15. Robin M. Wright, “História Indígena do Noroeste da Amazônia: Hipóteses, Questões e
Perspectivas”, em Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 253-266.
16. Antônio Porro, “História Indígena do Alto e Médio Amazonas: Séculos xvi a xviii”, em
Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 175-196.
17. Anne Christine Taylor, “História Pós-colombiana da Alta Amazônia”, trad. Beatriz Perrone-
-Moisés, em Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 213-238.
18. Marta Rosa Amoroso, “Corsários no Caminho Fluvial: Os Mura do Rio Madeira”, em Ma-
nuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 297-310.
19. Aracy Lopes da Silva, “Dois Séculos e Meio de História Xavante”, em Manuela Carneiro da
Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 357-378.
20. Terence Turner, “Os Mebengokre Kayapó: História e Mudança Social – De Comunidades
Autônomas para a Coexistência Interétnica”, trad. Beatriz Perrone-Moisés, em Manuela
Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 311-338; Philippe Erikson, op. cit., 1992, pp.
239-252.

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mogeneização cultural: perda de diversidade cultural e acentuação das
microdiferenças que definem a identidade étnica. É provável, assim, que
as unidades sociais que conhecemos hoje sejam o resultado de um proces-
so de atomização cujos mecanismos podem ser percebidos em estudos de
caso como o de Turner sobre os kayapós, e de reagrupamentos de grupos
linguisticamente diversos em unidades ao mesmo tempo culturalmente
semelhantes e etnicamente diversas, cujos exemplos mais notórios são o
do Alto Xingu e o do Alto Rio Negro21. É notável que apenas os grupos
de língua jê pareçam ter ficado imunes a esses conglomerados multilin-
guísticos. Em suma, o que é hoje o Brasil indígena são fragmentos de um
tecido social cuja trama, muito mais complexa e abrangente, cobria pro-
vavelmente o território como um todo.
Nesse contexto está presente, sobretudo, a história na própria relação
dos homens com a natureza. As sociedades indígenas contemporâneas da
Amazônia são, como se apregoou, sociedades igualitárias e de população
diminuta. Durante os últimos quarenta anos, muita tinta correu para ex-
plicar essas características. Uns acharam que as sociedades indígenas ti-
nham, embutido em seu ser, um antídoto à emergência do Estado. Outros,
principalmente norte-americanos, acreditaram que a razão dessa limitação
demográfica se fundava numa limitação ambiental, e um acalorado debate
se travou quanto à natureza última dessa limitação: a pobreza dos solos, do
potencial agrícola ou de proteínas animais. A pesquisa arqueológica22 veio
corroborar o que os cronistas contavam23: a Amazônia, não só na sua várzea
mas em várias áreas de terra firme, foi povoada durante longo tempo por
populosas sociedades, sedentárias e possivelmente estratificadas, e essas
sociedades são autóctones, ou seja, não se explicam como o resultado da
difusão de culturas andinas mais “avançadas”. As sociedades indígenas de

21. Bruna Franchetto, “‘O Aparecimento dos Caraíba’: Para uma História Kuikuro e Alto-
-xinguana”, em Manuel Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 339-356; Robin M.
Wright, op. cit., 1992.
22. Anna Curtenius Roosevelt, “Arqueologia Amazônica”, trad. John Manuel Monteiro, em
Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 53-86.
23. Antônio Porro, op. cit., 1992.

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hoje não são, portanto, o produto da natureza; antes, suas relações com o
meio ambiente são mediatizadas pela história.

Mortandade e cristandade

Inúmeros povos indígenas desapareceram da face da terra como conse-


quência do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado, “o encon-
tro” de sociedades do Antigo e do Novo Mundo. Esse morticínio nunca
visto foi fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e
micro-organismos, mas cujos motores últimos poderiam ser reduzidos a
dois: ganância e ambição, formas culturais da expansão do que se conven-
cionou chamar de capitalismo mercantil. Motivos mesquinhos, e não uma
deliberada política de extermínio, conseguiram esse resultado espantoso
de reduzir uma população que estava na casa dos milhões em 1500 aos
parcos 200 mil índios que hoje habitam o Brasil.
As epidemias são normalmente tidas como o principal agente da de-
população indígena24. A barreira epidemiológica era, com efeito, favorável
aos europeus, na América, e era-lhes desfavorável na África. Na África,
os europeus morriam como moscas; aqui eram os índios que morriam:
agentes patogênicos da varíola, do sarampo, da coqueluche, da catapora,
do tifo, da difteria, da gripe, da peste bubônica, possivelmente a malária,
provocaram no Novo Mundo o que Dobyns chamou de “um dos maiores
cataclismos biológicos do mundo”. No entanto, é importante enfatizar que
a falta de imunidade, devido ao seu isolamento, da população aborígine,
não basta para explicar a mortandade, mesmo quando ela foi de origem
patogênica. Outros fatores, tanto ecológicos quanto sociais, tais como a al-
titude, o clima, a densidade de população e o relativo isolamento, pesaram
decisivamente. Em suma, os micro-organismos não incidiram num vácuo

24. Woodrow Borah, “America as Model: The Demographic Impact of European Expansion
upon the Non-European World”, em xxxv Congreso Internacional de Americanistas, Ci-
dade do México, Instituto Nacional de Antropología e Historia (Inah), 1964, vol. 1: Actas y
Memorias, pp. 379-387.

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social e político, e sim num mundo socialmente ordenado. Particular-
mente nefasta foi a política de concentração da população praticada por
missionários e pelos órgãos oficiais, pois a alta densidade dos aldeamentos
favoreceu as epidemias, sem, no entanto, garantir o aprovisionamento.
O sarampo e a varíola, que, entre 1562 e 1564, assolaram as aldeias da
Bahia, fizeram os índios morrer tanto das doenças quanto de fome, a tal
ponto que os sobreviventes preferiam vender-se como escravos do que
morrer à míngua25. Batismo e doença, como lembra Fausto26, ficaram as-
sociados no espírito dos tupinambás: é elucidativo que um dos milagres
atribuídos ao suave Anchieta fosse o de ressuscitar por alguns instantes
indiozinhos mortos para lhes poder dar o batismo. Os aldeamentos reli-
giosos ou civis jamais conseguiram se autorreproduzir biologicamente.
Reproduziam-se, isso sim, predatoriamente, na medida em que os índios
das aldeias eram compulsoriamente alistados nas tropas de resgates pa-
ra descer dos sertões novas levas de índios, que continuamente vinham
preencher as lacunas deixadas por seus predecessores.
Mas não foram só os micro-organismos os responsáveis pela catástrofe
demográfica da América. O exacerbamento da guerra indígena provocado
pela sede de escravos, as guerras de conquista e de apresamento em que
os índios de aldeia eram alistados contra os índios ditos hostis, as grandes
fomes que tradicionalmente acompanhavam as guerras, a desestruturação
social, a fuga para novas regiões das quais se desconheciam os recursos ou
se tinha de enfrentar os habitantes27, a exploração do trabalho indígena
etc., tudo isso pesou decisivamente na dizimação dos índios. Há poucos
estudos demográficos que nos possam esclarecer sobre o peso relativo
desses fatores, mas um deles, recente, é elucidativo. Maeder28 analisa a

25. Manuela Carneiro da Cunha, Antropologia do Brasil: Mito, História, Etnicidade, São Paulo, Bra-
siliense/Edusp, 1986.
26. Carlos Fausto, “Fragmentos de História e Cultura Tupinambá: Da Etnologia como Instru-
mento Crítico de Conhecimento Etno-Histórico”, em Manuela Carneiro da Cunha (org.),
op. cit., 1992, pp. 381-396.
27. Bruna Franchetto, op. cit., 1992; Robin M. Wright, op. cit., 1992.
28. Ernesto J. A. Maeder, “Las Misiones de Guaraníes: Historia Demográfica y Conflictos con
la Sociedad Colonial, 1641-1807”, em Sérgio Odilon Nadalin, Maria Luiza Marcílio e Altiva

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população das reduções guaranis após o término das expedições dos pau-
listas apresadores de índios, e cobre o período de 1641 a 1807. Resulta
dos dados, abundantes entre essas datas, que os períodos de descenso e
mesmo de colapso populacional são aqueles em que houve maior mobi-
lização de homens pelos poderes coloniais, com a consequente desestru-
turação do trabalho agrícola nos aldeamentos e seus corolários de fome
e de peste: desses dados quantitativos emerge uma situação semelhante
àquela de que sempre se queixavam os religiosos administradores de al-
deamentos indígenas.

A América invadida

As estimativas de população aborígine em 1492 ainda são assunto de grande


controvérsia. Para que se tenha uma ideia das cifras avançadas, adapto aqui
uma tabela de Denevan29, que, por sua vez, adapta e completa Steward30.

Tabela 1: Estimativas de população aborígine (1492)


Números (em milhões) para Terras baixas Total da América
da América do Sul
Karl Sapper 3a5 37 a 48,5
Alfred L. Kroeber 1 8,4
Ángel Rosenblat 2,03 13,38
Julian H. Steward 2,90 (1,1 no Brasil) 15,49
Woodrow Borah 100
Henry F. Dobyns 9 a 11,25 90,04 a 112,55

Pillati Balhana (orgs.), História e População: Estudos sobre a América Latina, São Paulo, Fundação
Seade, 1990, pp. 41-50 (Celade/Série oi, 49).
29. William M. Denevan, “The Aboriginal Population of Amazonia”, em William M. Denevan
(org.), The Native Population of the Americas in 1492, Madison, The University of Wisconsin
Press, 1976, pp. 205-235.
30. Julian H. Steward, “South American Cultures: An Interpretative Summary”, em Julian H.
Steward (org.), Handbook of South American Indians, Washington, Smithsonian Institution,
1949, vol. 5, pp. 669-772 (Bureau of American Ethnology Bulletin, 143).

14 8 ma n u e l a c a r n e i ro da c u n h a
Pierre Chaunu 80 a 100
William M. Denevan 8,5 (5,1 na Amazônia) 57,300
Fontes: Karl Sapper, “Die Zahl und die Volksdichte der indianischen Bevolkserung in Amerika vor der
Conquista und in den Gegenwart”, Proceedings of the 21st International Congress of Americanists, vol. 1, pp. 95-
104, 1924; Alfred L. Kroeber, “Native American Population”, American Anthropologist, vol. 36, n. 1, pp. 1-25,
1934; Ángel Rosenblat, La Población Indígena y el Mestizaje en América, Buenos Aires, Nova, 1954, 2 vols.;
Julian H. Steward, “The Native Population of South America”, em Julian H. Steward (org.), Handbook of
South American Indians, Washington, Smithsonian Institution, 1949, vol. 5, pp. 669-772 (Bureau of American
Ethnology Bulletin, 143); Woodrow Borah, “America as Model: The Demographic Impact of European
Expansion upon the Non-European World”, em xxxv Congreso Internacional de Americanistas, Cidade do
México, Instituto Nacional de Antropología e Historia (Inah), 1964, vol. 1: Actas y Memorias, pp. 379-387;
Henry F. Dobyns, “Estimating Aboriginal American Population: An Appraisal of Techniques with a New
Hemispheric Estimate”, Current Anthropology, vol. 7, n. 4, pp. 395-416, set. 1966; Pierre Chaunu, “La
population de l’Amérique indienne: nouvelles recherches”, Revue Historique, vol. 232, n. 471, pp. 111-118,
1964; William M. Denevan, “The Aboriginal Population of Amazonia”, em William M. Denevan (org.), The
Native Population of the Americas in 1492, Madison, The University of Wisconsin Press, 1976, pp. 205-235.

Quanto às regiões que nos ocupam mais de perto, Rosenblat31 infor-


ma 1 milhão para o Brasil como um todo; Moran32, uns modestos 500 mil
para a Amazônia; ao passo que Denevan33 avalia em 6,8 milhões a popu-
lação aborígine da Amazônia, do Brasil central e da costa nordeste, com a
altíssima densidade de 14,6 habitantes/km² na área da várzea amazônica
e apenas 0,2 habitante/km² para o interflúvio. Como cifra de compara-
ção, a península Ibérica pela mesma época teria a densidade de 17 habi-
tantes/km² 34.
Como se vê na tabela, as estimativas variam de 1 a 8,5 milhões de ha-
bitantes para as terras baixas da América do Sul. Diga-se de passagem,
sabe-se ainda menos da população da Europa ou da Ásia na mesma época:
a América é até bem servida desde os trabalhos de demografia histórica
da chamada Escola de Berkeley, cujos expoentes principais foram Cook e
Borah. Imagina-se, só como base de comparação, que a Europa teria, do

31. Ángel Rosenblat, La Población Indígena y el Mestizaje en América, Buenos Aires, Nova, 1954,
p. 316.
32. Emilio F. Moran, “The Adaptive System of the Amazonian Caboclo”, em Charles Wagley
(org.), Man in the Amazon, Nova York, Columbia University Press, 1974, p. 137.
33. William M. Denevan, op. cit., 1976, p. 230.
34. Fernand Braudel, Civilisation matérielle, économie et capitalisme, xv-xviii siècle, Paris, Armand
Colin, 1979, vol. 1, p. 42.

i n t roduç ão a u m a h i s t ór i a i n díge na 14 9
Atlântico aos Urais, de 60 a 80 milhões de habitantes em 150035. Se assim
tiver sido realmente, então um continente teria logrado a triste façanha de,
com punhados de colonos, despovoar um continente muito mais habitado.
Essas estimativas díspares resultam, sobretudo, de uma avaliação di-
ferente do impacto da depopulação indígena. Os historiadores parecem
concordar com um mínimo de população indígena para o continente situa-
do por volta de 1650: diferem quanto à magnitude da catástrofe. Alguns,
como Rosenblat36, avaliam que, de 1492 a esse nadir (1650), a América
perdeu um quarto de sua população; outros, como Dobyns37, acham que
a depopulação foi da ordem de 95% a 96%38.
Seja como for, as estimativas da população aborígine e da magnitude
do genocídio tendem, portanto, e com poucas exceções, a ser mais altas
desde os anos 1960. Um dos resultados laterais dessa tendência é o crédito
crescente de que passam a gozar os testemunhos dos cronistas. Ora, para
a várzea amazônica e para a costa brasileira, os cronistas são com efeito
unânimes em falar de densas populações e de indescritíveis mortandades39.
Se a população aborígine tinha, realmente, a densidade que hoje se
lhe atribui, esvai-se a imagem tradicional (aparentemente consolidada no
século xix), de um continente pouco habitado a ser ocupado pelos euro-
peus40. Como foi dito com força por Jennings41, a América não foi desco-
berta, foi invadida.

35. Woodrow Borah apud William M. Denevan, op. cit., 1976.


36. Ángel Rosenblat, op. cit., 1954.
37. Henry F. Dobyns, “Estimating Aboriginal American Population: An Appraisal of Tech­
niques with a New Hemispheric Estimate”, Current Anthropology, vol. 7, n. 4, pp. 395-416,
set. 1966.
38. Nicolás Sánchez-Albornoz, La Población de América Latina desde los Tiempos Precolombianos al
Año 2000, Madri, Alianza, 1973.
39. Antônio Porro, op. cit., 1992; Carlos Fausto, op. cit., 1992.
40. O grande historiador Varnhagen, cujo preconceito contra os índios era notório, foi um
dos principais apóstolos dessa visão: estima em menos de 1 milhão a população indígena.
É curioso perceber que as notas que Capistrano de Abreu, seu editor, acrescenta à monu-
mental História Geral do Brasil de Varnhagen desmentem as estimativas do autor (Francisco
Adolfo de Varnhagen, op. cit., 1978 [1854], vol. 1, p. 23).
41. Francis Jennings, The Invasion of America: Indians, Colonialism, and the Cant of Conquest, Chapel
Hill, University of North Carolina Press, 1975.

15 0 ma n u e l a c a r n e i ro da c u n h a
Política indigenista

Como se deu, esquematicamente, esse processo? Durante o primeiro meio


século, os índios foram, sobretudo, parceiros comerciais dos europeus,
trocando por foices, machados e facas o pau-brasil para tintura de tecidos e
curiosidades exóticas, como papagaios e macacos, em feitorias costeiras42.
Com o primeiro governo-geral do Brasil, a Colônia se instalou enquanto
tal e as relações alteraram-se, tensionadas pelos interesses em jogo que,
do lado europeu, envolviam colonos, governo e missionários, mantendo
entre si, como assinala Taylor43, uma complexa relação feita de conflito e
de simbiose.
Não eram mais parceiros para escambo que desejavam os colonos, mas
mão de obra para as empresas coloniais que incluíam a própria reprodução
da mão de obra, na forma de canoeiros e soldados para o apresamento de
mais índios: problema estrutural, e não de alguma índole ibérica. Quem
melhor o expressou foi aquele velho índio tupinambá do Maranhão que,
por volta de 1610, teria feito o seguinte discurso aos franceses que ensaia-
vam o estabelecimento de uma colônia:

Vi a chegada dos peró [portugueses] em Pernambuco e Potiú; e começaram eles


como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam senão traficar
sem pretenderem fixar residência […] Mais tarde, disseram que nos devíamos
acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e ci-
dades, para morarem conosco […]. Mais tarde afirmaram que nem eles nem os
paí [padres] podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem.
Mas, não satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também
os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nação […] Assim aconteceu
com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o fizeste somente para
traficar […] Nessa época não faláveis em aqui vos fixar; apenas vos contentáveis

42. Alexander Marchant, Do Escambo à Escravidão: As Relações Econômicas de Portugueses e Índios na


Colonização do Brasil, 1500-1580, trad. Carlos Lacerda, São Paulo/Brasília, Companhia Edi-
tora Nacional/Instituto Nacional do Livro, 1980 [1942] (Brasiliana, 225).
43. Anne Christine Taylor, op. cit., 1992.

i n t roduç ão a u m a h i s t ór i a i n díge na 151


com visitar-nos uma vez por ano […] Regressáveis então a vosso país, levando
nossos gêneros para trocá-los com aquilo de que carecíamos. Agora já nos falais
de vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas para defender-nos contra
os nossos inimigos. Para isso, trouxestes um Morubixaba e vários Paí. Em verda-
de, estamos satisfeitos, mas os peró fizeram o mesmo […] Como estes, vós não
queríeis escravos, a princípio; agora os pedis e os quereis como eles no fim […]44.

A Coroa tinha seus próprios interesses, fiscais e estratégicos acima de


tudo: queria de certo ver prosperar a Colônia, mas queria também ga-
ranti-la politicamente. Para tanto, interessava-lhe aliados índios nas suas
lutas com franceses, holandeses e espanhóis, seus competidores internos,
enquanto para garantir seus limites externos desejava “fronteiras vivas”,
formadas por grupos indígenas aliados45. Ocasionalmente também, como
no caso do rio Madeira na década de 1730, convinha-lhe a presença de um
grupo indígena hostil para obstruir uma rota fluvial e impedir o contraban-
do46. Em épocas mais tardias, principalmente na do marquês de Pombal, a
Coroa pretendia, enfim, numa visão mais ampla, promover a emergência
de um povo brasileiro livre, substrato de um Estado consistente47: índios e
brancos formariam esse povo enquanto os negros continuariam escravos.
Os interesses particulares dos colonos e os da Coroa podiam, portan-
to, eventualmente estar em conflito na época colonial: um terceiro ator,
importante, complicava ainda a situação, a saber, a Igreja, ou mais pre-
cisamente uma ordem religiosa, a jesuítica. A Igreja, com efeito, não era
monolítica, longe disso. À tradicional oposição entre clero secular e clero
regular, acrescentava-se a rivalidade entre as diversas ordens, que signi-
ficativamente eram chamadas de “religiões” no século xvii. O sistema do

44. Claude D’Abbeville, História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão e Terras Cir-
cunvizinhas, trad. Sérgio Milliet, São Paulo/Belo Horizonte, Edusp/Itatiaia, 1975 [1614],
pp. 115-116 (Reconquista do Brasil, 19).
45. Nádia Farage, As Muralhas dos Sertões: Os Povos Indígenas no Rio Branco e a Colonização, São Pau-
lo, Paz e Terra, 1991.
46. Marta Rosa Amoroso, op. cit., 1992.
47. Beatriz Perrone-Moisés, “Índios Livres e Índios Escravos: Os Princípios da Legislação Indi-
genista do Período Colonial (Séculos xvi a xviii)”, em Manuela Carneiro da Cunha (org.),
op. cit., 1992, pp. 115-132.

15 2 ma n u e l a c a r n e i ro da c u n h a
padroado, em que o rei de Portugal, por delegação papal, exercia várias
das atribuições da hierarquia religiosa e arcava também com as suas des-
pesas, conferia um poder excepcional à Coroa em matéria religiosa. Por
outro lado, o padroado se justificava pela obrigação imposta à Coroa de
evangelizar suas colônias, e era a base da partilha entre as duas potências
ibéricas que o papa Alexandre vi havia feito do Novo Mundo em 1493 e
contra a qual outros países se insurgiam. Se o padroado criava obrigações
para a Coroa, ele também lhe sujeitava o clero. Apenas os jesuítas, talvez
pela sua ligação direta com Roma, talvez pela independência financeira
que adquiriram, lograram ter uma política independente, e entraram em
choque ocasionalmente com o governo e regularmente com os moradores
– como atestam suas expulsões de São Paulo em 1640, do Maranhão e Pará
em 1661-1662 e do Maranhão em 1684, desta vez por influência tanto dos
colonos quanto das outras ordens religiosas. Em todas as ocasiões, o pomo
da discórdia sempre foi o controle do trabalho indígena nos aldeamentos,
e as disputas centravam-se tanto na legislação quanto nos postos-chaves
cobiçados: a direção das aldeias e a autoridade para repartir os índios para
o trabalho fora dos aldeamentos.
De meados do século xvii a meados do século xviii, quando Portugal
estava interessado em ocupar a Amazônia, os jesuítas talharam para si um
enorme território missionário. Foi o seu século de ouro, iniciado pela for-
midável influência junto a dom João iv e ao papa que Vieira, nosso maior
escritor, logrou obter. A partir da expulsão dos jesuítas por Pombal, em
1759, e, sobretudo, a partir da chegada de dom João vi ao Brasil, em 1808,
a política indigenista viu sua arena reduzida e sua natureza modificada:
não havia mais vozes dissonantes quando se tratava de escravizar índios e
de ocupar suas terras48. A partir de meados do século xix, com efeito, a
cobiça se desloca do trabalho para as terras indígenas49. Um século mais
tarde, deslocar-se-á novamente: do solo, passará para o subsolo indígena.

48. Manuela Carneiro da Cunha, “Política Indigenista no Século xix”, em Manuela Carneiro da
Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 133-154.
49. Nádia Farage e Paulo Santilli, “Estado de Sítio: Territórios e Identidades no Vale do Rio
Branco”, em Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 267-278.

i n t roduç ão a u m a h i s t ór i a i n díge na 15 3
O início do século xx verá um movimento de opinião dos mais im-
portantes, que culminará na criação do Serviço de Proteção aos Índios
(spi), em 191050. O spi extingue-se melancolicamente em 1966 em meio
a acusações de corrupção e é substituído em 1967 pela Fundação Nacio-
nal do Índio (Funai): a política indigenista continua atrelada ao Estado e a
suas prioridades. Os anos 1970 são os do “milagre”, dos investimentos em
infraestrutura e em prospecção mineral – é a época da Transamazônica,
das barragens de Tucuruí e de Balbina, do Programa Grande Carajás. Tu-
do cedia ante a hegemonia do “progresso”, diante do qual os índios eram
empecilhos: forçava-se o contato com grupos isolados para que os tratores
pudessem abrir estradas e realocavam-se os índios mais de uma vez, pri-
meiro para afastá-los da estrada, depois para afastá-los do lago da barragem
que inundava suas terras. É o caso, paradigmático, dos parakanãs, do Pará.
Esse período, crucial, desembocou na militarização da questão indígena,
a partir do início dos anos 1980: de empecilhos, os índios passaram a ser
riscos à segurança nacional. Sua presença nas fronteiras era agora um po-
tencial perigo. É irônico que índios de Roraima, que haviam sido no sé-
culo xviii usados como “muralhas dos sertões”51, garantindo as fronteiras
brasileiras, fossem agora vistos como ameaças a essas mesmas fronteiras.
No fim da década de 1970, multiplicam-se as organizações não go-
vernamentais de apoio aos índios, e, no início da década de 1980, pela
primeira vez, organiza-se um movimento indígena de âmbito nacional.
Essa mobilização explica as grandes novidades obtidas na Constituição de
1988, que abandona as metas e o jargão assimilacionistas e reconhece os
direitos originários dos índios, seus direitos históricos, à posse da terra de
que foram os primeiros senhores.

50. Antônio Carlos de Souza Lima, “O Governo dos Índios sob a Gestão do spi”, em Manuela
Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 155-172.
51. Nádia Farage, op. cit., 1991.

15 4 ma n u e l a c a r n e i ro da c u n h a
Política indígena

Por má consciência e boas intenções, imperou durante muito tempo a


noção de que os índios foram apenas vítimas do sistema mundial, vítimas
de uma política e de práticas que lhes eram externas e que os destruíram.
Essa visão, além de seu fundamento moral, tinha outro, teórico: é que a
história, movida pela metrópole, pelo capital, só teria nexo em seu epi-
centro. A periferia do capital era também o lixo da história. O resultado
paradoxal dessa postura “politicamente correta” foi somar à eliminação
física e étnica dos índios sua eliminação como sujeitos históricos52.
Ora, não há dúvida de que os índios foram atores políticos importantes
de sua própria história e de que, nos interstícios da política indigenista,
se vislumbra algo do que foi a política indígena. Sabe-se que as potências
metropolitanas perceberam desde cedo as potencialidades estratégicas das
inimizades entre grupos indígenas: no século xvi, os franceses e os por-
tugueses em guerra aliaram-se, respectivamente, aos tamoios e aos tupi-
niquins53; e, no século xvii, os holandeses pela primeira vez se aliaram a
grupos “tapuias” contra os portugueses54. No século xix, os mundurukus
foram usados para “desinfestar” o Madeira de grupos hostis e os krahôs,
no Tocantins, para combater outras etnias jês.
Essa política metropolitana requer a existência de uma política indí-
gena: os tamoios e os tupiniquins tinham seus próprios motivos para se
aliarem aos franceses ou aos portugueses. Os tapuias de Janduí tinham os
seus para aceitarem apoiar a Maurício de Nassau. Se nesses casos não é
certo a quem cabe a iniciativa, em outros a iniciativa é comprovadamente

52. Isso não é grande novidade: a partir de meados dos anos 1980, após a voga avassaladora do
modelo de sistema mundial de Wallerstein, vários antropólogos, entre os quais Marshall
Sahlins, insurgiram-se contra o esvaziamento da história local. Vide na mesma direção
­Jonathan D. Hill (“Introduction: Myth and History”, em Jonathan D. Hill (org.), Rethink­
ing History and Myth: Indigenous South American Perspectives on the Past, Urbana, University of
­I llinois Press, 1988, p. 2).
53. Carlos Fausto, op. cit., 1992.
54. Beatriz G. Dantas, José Augusto L. Sampaio e Maria Rosário G. de Carvalho, “Os Povos
Indígenas no Nordeste Brasileiro: Um Esboço Histórico”, em Manuela Carneiro da Cunha
(org.), op. cit., 1992, pp. 431-456.

i n t roduç ão a u m a h i s t ór i a i n díge na 15 5
indígena: no século xvii, grupos conibos (panos) quiseram aliados espa-
nhóis (missionários) para contestar o monopólio piro (arawak) das rotas
comerciais com os Andes55. A coalizão de karajás, xerentes e xavantes em
Goiás, que, em 1812, destruiu o recém-fundado presídio de Santa Maria,
no Araguaia56, é um exemplo da amplitude que podia alcançar a política
indígena em seu confronto com os recém-chegados.
Coalizões desse porte, no entanto, foram excepcionais. Ao contrário,
o efeito geral dessa imbricação da política indigenista com a política in-
dígena foi antes o fracionamento étnico57. Faltam, no entanto, estudos de
caso desses processos de fracionamento. Por isso, é particularmente va-
liosa a descrição feita por Turner de um processo desse tipo, mostrando a
articulação da política externa com a política interna dos grupos kayapós
ao longo de várias décadas: corrida armamentista e fissão ao longo de cli-
vagens já inscritas na sociedade (metades, sociedades masculinas) tornam-
-se inteligíveis à luz da estrutura social kayapó. E, reciprocamente, é essa
história etnográfica que ilumina a estrutura social kayapó. A história local
é, portanto, como advoga, entre outros, Sahlins58, elemento importante
de conhecimento etnográfico.

Os índios como agentes de sua história

A percepção de uma política e de uma consciência histórica em que os


índios são sujeitos, e não apenas vítimas, só é nova eventualmente para
nós. Para os índios, ela parece ser costumeira. É significativo o que dois
eventos fundamentais – a gênese do homem branco e a iniciativa do con-
tato – sejam frequentemente apreendidos nas sociedades indígenas como
o produto de sua própria ação ou vontade.

55. Philippe Erikson, op. cit., 1992.


56. Mary Karasch, “Catequese e Cativeiro: Política Indigenista em Goiás, 1780-1889”, trad.
Beatriz Perrone-Moisés, em Manuela Carneiro da Cunha (org.), op. cit., 1992, pp. 397-412.
57. Anne Christine Taylor, op. cit., 1992; Philippe Erikson, op. cit., 1992.
58. Marshall Sahlins, “Recognizing Historical Ethnography”, em Robert Borofsky (org.), Assess­
ing Cultural Anthropology, New York, McGraw-Hill, 1992.

15 6 ma n u e l a c a r n e i ro da c u n h a
A gênese do homem branco nas mitologias indígenas difere em geral
da gênese de outros “estrangeiros” ou inimigos porque introduz, além da
simples alteridade, o tema da desigualdade no poder e na tecnologia. O ho-
mem branco é muitas vezes, no mito, um mutante indígena59, alguém que
surgiu do grupo. Frequentemente também, a desigualdade tecnológica, o
monopólio de machados, espingardas e objetos manufaturados em geral,
que foi dado aos brancos, deriva, no mito, de uma escolha que foi dada aos
índios. Eles poderiam ter escolhido ou se apropriado desses recursos, mas
fizeram uma escolha equivocada. Os krahôs e os canelas, por exemplo,
quando lhes foi dada a opção, preferiram o arco e a cuia à espingarda e ao
prato. Os exemplos dessa mitologia são legião: lembro apenas, além dos
já citados, os waurás, que não conseguem manejar a espingarda que lhes
é oferecida em primeiro lugar pelo Sol60; os tupinambás setecentistas do
Maranhão, cujos antepassados teriam escolhido a espada de madeira em

59. Penso, por exemplo, na mitologia timbira em geral (Curt Nimuendaju, The Eastern Timbira,
trad. e org. Robert H. Lowie, Berkeley, University of California Press, 1946; Roberto Da
Matta, “Mito e Antimito entre os Timbira”, em Claude Lévi-Strauss et al., Mito e Linguagem
Social: Ensaios de Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1970, pp. 77-106
[Comunicação, 1]; Manuela Carneiro da Cunha, “Logique du mythe et de l’action: le mou-
vement messianique Canela de 1963”, L’Homme, vol. 13, n. 4, pp. 5-37, 1973); na mitologia
dos grupos de língua kayapó (Lux Vidal, Morte e Vida de uma Sociedade Indígena Brasileira: Os
Kayapó-Xikrin do Rio Cateté, São Paulo, Hucitec/Edusp, 1977; Terence Turner, “History,
Myth and Social Consciousness Among the Kayapó of Central Brazil”, em Jonathan D.
Hill [org.], op. cit., 1988, pp. 195-213; Terence Turner, “Ethno-ethnohistory: Myth and
History in Native South American Representations of Contact with Western Society”, em
Jonathan D. Hill [org.], op. cit., 1988); na mitologia de alguns grupos de língua tupi como
os k­ awahiwas (Miguel Angel Menéndez, Kawahiwa: Uma Contribuição para o Estudo dos Tupi
Centrais, tese de doutorado, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, 1989a); e na de grupos da etnia pano do interflúvio (Barbara
Kiefenheim e Patrick Deshayes, La conception de l’autre chez le kashinawa, tese de doutora-
do, Paris, Universidade de Paris vii, 1982). Em grupos da etnia pano ribeirinhos, como os
­shipibos, a história é diferente: os homens são criados do barro pelo Inca, que os molda e
assa. Os brancos são assados de menos: os negros, assados demais; finalmente são feitos os
índios assados a contento (Peter G. Roe, “The Josho Nahuanbo Are All Wet and Under-
cooked: Shipibo Views of the Whiteman and the Incas in Myth, Legend and History”, em
Jonathan D. Hill [org.], op. cit., 1988, pp. 106-135).
60. Emilienne Ireland, “Cerebral Savage: The Whiteman as Symbol of Cleverness and Savagery
in Waurá Mith”, em Jonathan D. Hill (org.), op. cit., 1988, p. 166.

i n t roduç ão a u m a h i s t ór i a i n díge na 15 7
vez da espada de ferro61. Para os kawahiwas, os brancos são os que aceita-
ram se banhar na panela fervente de Bahira: permaneceram índios os que
recusaram62. O tema recorrente que saliento é que a opção, no mito, foi
oferecida aos índios, que não são vítimas de uma fatalidade, mas agentes
de seu destino.Talvez escolheram mal. Mas fica salva a dignidade de terem
moldado a própria história.
Assim também a etno-história do contato é amiúde contada como uma
iniciativa que parte dos índios63 ou até como uma empresa de “pacificação
dos brancos”, como é o caso, por exemplo, dos cintas-largas de Rondô-
nia64. O que isso indica é que as sociedades indígenas pensaram o que lhes
acontecia em seus próprios termos, reconstruíram uma história do mun-
do em que elas pesavam e em que suas escolhas tinham consequências.

A história dos índios

Uma história propriamente indígena ainda está por ser feita. Não é só
obstáculo, real, e que a epígrafe destaca, da ausência de escrita e, portan-
to, da autoria de textos, não é só a fragilidade dos testemunhos materiais
dessa civilização a que Berta Ribeiro chamou, com acerto, de civilização
da palha, mas é também a dificuldade de adotarmos esse ponto de vista
outro sobre uma trajetória de que fazemos parte.
Os nossos livros de história se iniciam em 1500. Isso não é só desvan-
tagem: em outros países da América Latina, o culto a uma ancestralidade
pré-colombiana passa em geral por uma vasta mistificação que dissolve o
passado e, portanto, a identidade indígena em um magma geral. Ter uma
identidade é ter uma memória própria. Por isso, a recuperação da própria

61. Claude D’Abbeville, op. cit., 1975 [1614], pp. 60-61.


62. Miguel Angel Menéndez, op. cit., 1989a; idem, “O Branco na Mitologia Kawahiwa: História
e Identidade de um Povo Tupi”, Revista de Antropologia, n. 302, pp. 331-353, 1989b.
63. Terence Turner, op. cit., 1992; Bruna Franchetto, op. cit., 1992.
64. João Dal Poz Neto, No País dos Cinta-Larga: Uma Etnografia do Ritual, dissertação de mestrado,
São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
1991.

15 8 ma n u e l a c a r n e i ro da c u n h a
história é um direito fundamental das sociedades. É também, pela atual
Constituição, o fundamento dos direitos territoriais indígenas, e particu-
larmente da garantia de suas terras.
Sobre esse ponto, há, porém, que se entender. Os direitos especiais
que os índios têm sobre suas terras derivam de que eles foram, nas pala-
vras do Alvará Régio de 1680, “seus primeiros e naturais senhores”, ou
seja, derivam de uma situação histórica65. Isso não significa que caiba pro-
var a ocupação indígena com os documentos escritos, que não só são la-
cunares, mas cujos autores tinham também interesses, no mais das vezes,
antagônicos aos dos índios. Ao contrário, cabe restabelecer a importância
da memória indígena, transmitida por tradição oral, recolhendo-a, dando-
-lhe voz e legitimidade em justiça. A história dos índios não se subsume
na história indigenista.
Durante quase cinco séculos, os índios foram pensados como seres
efêmeros, em transição: em transição para a cristandade, a civilização, a
assimilação, o desparecimento. Hoje se sabe que as sociedades indígenas
são parte de nosso futuro, e não só de nosso passado. A nossa história co-
mum foi um rosário de iniquidades cometidas contra elas. Resta esperar
que as relações que com elas se estabeleçam a partir de agora sejam mais
justas: e talvez o sexto centenário do descobrimento da América tenha
algo a celebrar.

65. Manuela Carneiro da Cunha, Os Direitos do Índio: Ensaios e Documentos, São Paulo, Brasiliense,
1987 (Leituras Afins).

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