Introdução A Uma História Indigena PDF
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monumentos em que recomendassem posteridade as suas Histrias para que dela vssemos os seus Principados, alianas, Pazes, e discrdias de soberanos, sucessos de Estados, conquistas de Provncias, defensas de Praas, admirssemos vitrias e perdas de Batalhas, e todo o memorvel com que a fortuna e a poltica vo sempre, com os sculos, acrescentando s Histrias das Monarquias. Por esta Cauza, ignoramos o que se conhece de todas as outras Naes do Mundo [...] (Igncio Barboza Machado, Exerccios de Marte, 1725, fol. 90.) Ao chegarem s costas brasileiras, os navegadores pensaram que haviam atingido o paraso terreal: uma regio de eterna primavera, onde se vivia comumente por mais de cem anos cm perptua inocncia. Deste paraso assim descoberto, os portugueses eram o novo Ado. A cada lugar conferiram um nome - atividade propriamente admica - e a sucesso de nomes era tambm a crnica de uma gnese que se confundia com a mesma viagem. A cada lugar, o nome do santo do dia: Todos os Santos, So Sebastio, Monte Pascoal. Antes de se batizarem os gentios, batizou-se a terra encontrada. De certa maneira, desta forma, o Brasil foi simbolicamente criado. Assim, apenas nomeando-o, se tomou posse dele, Como se fora virgem ( Todorov, 1983 ). Assim tambm a Histria do Brasil, a cannica, comea invariavelmente pelo "descobrimento". So os "descobridores" que a inauguram e conferem aos gentios uma entrada - de servio - no grande curso da Histria. Por sua vez, a histria da metrpole no mais s mesma aps 1492. A insuspeitada presena desses outros homens (e rapidamente se concorda, e o papa reitera em 1337, que so homens) desencadeia uma reformulao das idias recebidas: como enquadrar por exemplo essa parcela da humanidade, deixada por tanto tempo margem da Boa Nova, na histria geral do gnero humano? Se todos os homens descendem de No, e se No teve apenas lias
trs filhos, Cam, Jafet e Sem, de qual desses filhos proviriam os homens do Mundo Novo? Seriam descendentes daqueles mercadores que ao tempo do rei Salomo singravam de o mar para trazerem ouro de Ofir - e que poderia ser o Peru -, ou das dez tribos perdidas de Israel que, reinando Salmanasar, se afastaram dos Assrios para resguardar em sua pureza seus ritos e sua f?
A histria cannica do Brasil comea com o "Descobrimento". Nesta cena,Amrico Vespucio desperta a Amrica, representada por uma ndiaTupinamb, deitada na rede. Rede, tacape e cenas de antropofagia, que se vem ao fundo, so emblemticas dos Tupinamb. Desenho de Janvan der Straet (tambm chamado Stradanus), gravura de Theodor Galle (1589). E mais, admitindo que se soubesse isso, restaria descobrir por que meios teriam cruzado os oceanos antes que os descobridores tivessem domesticado os mares. Talvez as terras do Novo e do Antigo Mundo comunicassem, ou tivessem comunicado em tempos passados, por alguma regio ainda desconhecida do extremo Norte ou do extremo Sul do Mundo, ou talvez as correntes marinhas tivessem trazido esses homens deriva. Questes que, debatidas por exemplo pelo jesuta Jos d'Acosta em 1590 (Acosta, 1940 [1590]), continuam colocadas hoje e no se encontram completamente resolvidas, conforme se ver neste volume (Salzano, Guidon1; ver tambm Salzano, 1985, e Salzano e Callegari-Jacques, 1988:2). Haveria
mltiplas origens e rotas de penetrao do homem americano? Teria ele vindo, como se cr em geral, pelo estreito de Bering e somente por ele? Quando se teria dado essa migrao?
Em 1612, seis ndios do Maranho foram levados pelos capuchinhos franceses para a Corte do jovem Lus XIII para conseguir apoio financeiro e poltico para a Colnia. Trs morreram quase ao chegar (entre os quais Francisco Caripira), trs outros sobreviveram, foram batizados com o nome de Lus e voltaram para o Maranho com esposas francesas e cobertos de honrarias. Vem-se em Francisco Caripira (figura direita) as tatuagens que, entre os Tupinamb, Celebravam o nmero de inimigos ritualmente abatidos (Claude Abbeville, Histoire da Ia mission des pres capucins, 1614). ORIGENS Sabe-se que entre de uns 35 mil a cerca de uns 12 mil anos atrs, uma glaciao teria, por intervalos, feito o mar descer a uns 50 m abaixo do nvel
atual. A faixa de terra chamada Berngia teria assim aflorado em vrios momentos deste perodo e permitindo a passagem a p da sia para a Amrica. Em outros momentos, como no intervalo entre 15 mil e 19 mil anos atrs, o excesso de frio teria provocado a coalescncia de geleiras ao norte da Amrica do Norte, impedindo a passagem de homens. Sobre o perodo anterior a 35 mil anos nada se sabe. De 12 mil anos para c, uma temperatura mais amena teria interposto o mar entre os dois continentes. Em vista disto , tradicionalmente aceita a hiptese de uma migrao terrestre vinda do nordeste da sia e se espraiando de norte a sul pelo continente americano, que poderia ter ocorrido entre 14 mil e 12 mil anos atrs. No entanto, h tambm possibilidades de entrada martima no continente, pelo estreito de Bering: se verdade que a Austrlia foi alcanada h uns 50 mil anos por homens que, vindos da sia, atravessaram uns 60 km de mar; nada impediria que outros viessem para a Amrica, por navegao costeira (Meltzer; 1989:474). H considervel controvrsia sobre as datas dessa migrao e sobre ser ela ou no a nica fonte de povoamento das Amricas. Quanto antigidade do povoamento, as estimativas tradicionais falam de 12 mil anos, mas muitos arquelogos afirmam a existncia de stios arqueolgicos no Novo Mundo anterior a essas datas: so particularmente importantes neste sentido as pesquisas feitas no sudeste do Piau por Nide Guidon (cf. neste volume). Os stios para os quais se reivindicam mais antigas datas estariam - complicador adicional - antes a sul do que a norte do continente, contrariando a hiptese de uma descida em que a Amrica do Sul teria sido povoada aps a do Norte. No h consenso sobre o assunto, no entanto, na comunidade arqueolgica (Lynch, 1990). Mas, recentemente, uma lingista (Nichols, 1990 e 1992), com base no tempo mdio de diferenciao de estoques lingsticos, fez suas prprias avaliaes e afirmou um povoamento da Amrica que Ter-se-ia iniciado h 30 mil - 35 mil anos. Mais conservadora quanto profundidade temporal a estimativa de outro lingista, Greenberg (1987), que mantm os fatdicos 12 mil anos mas estabelece a existncia de trs grandes lnguas colonizadoras que teriam entrado no continente em vagas sucessivas (Urbana). Tudo isto pe em causa a hiptese de uma migrao nica de populao siberiana pelo interior
da Berngia. A possibilidade de outras fontes populacionais e de rotas alternativas se somando do interior da Berngia no est portanto descartada. PRESENA DA HISTRIA INDGENA Sabe-se pouco da histria indgena: nem a origem, nem as cifras de populao so seguras, muito menos o que realmente aconteceu. Mas progrediu-se, no entanto: hoje est mais clara, pelo menos, a extenso do que no se sabe. Os estudos de casos contidos neste volume so fragmentos de conhecimento que permitem imaginar mas no preencher as lacunas de um quadro que gostaramos fosse global. Permitem tambm, e isto importante, no incorrer em certas armadilhas. A maior dessas armadilhas talvez a iluso de primitivismo. Na segunda metade do sculo XIX, essa poca de triunfo do evolucionismo, prosperou a idia de que certas sociedades teriam ficado na estaca zero da evoluo, e que eram portanto algo como fsseis vivos que testemunhavam do passado das sociedades ocidentais. Foi quando as sociedades sem Estado se tornaram, na teoria ocidental, sociedades "primitivas" condenadas a uma eterna infncia. E porque tinham assim parado no tempo, no cabia procurar-lhes a histria. Como dizia Varnhagen, "de tais povos na infncia no h histria: h s etnografia" (Varnhagen, 1978 [1854]:30). Hoje ainda, por lhes desconhecermos a histria, por ouvirmos falar; sem entender-lhe o sentido ou o alcance, em sociedades "frias" sem histria, porque h um tropo propriamente antropolgico que o chamado "presente etnogrfico", e porque nos agrada a iluso de sociedades virgens, somos tentados a pensar que as sociedades indgenas de agora so a imagem do que foi o Brasil pr-cabralino, e que, como dizia Varnhagen por razes diferentes, sua histria se reduz estritamente sua etnografia.
Na realidade, a histria est onipresente. Est presente, primeiro, moldando unidades e culturas novas, cuja homogeneidade reside em grande parte numa trajetria compartilhada: o caso, por exemplo, do conglomerado piro/coni bo/cambeba, que forma uma cultura ribeirinha do Ucayali, apesar de
seus componentes pertencerem a trs famlias lingsticas diversas (Arawak, Pano e Tupi), e que se contrape s culturas do interflvio (Erikson); e o caso tambm das fuses Arawak-Tukano do alto rio Negro (Wright), das culturas neo-ribeirinhas do Amazonas (Porro), das sociedades indgenas que Taylor chama apropriadamente de coloniais porque geradas pela situao colonial. Est presente a histria ainda na medida em que muitas das sociedades indgenas ditas "isoladas" so descendentes de refratrios, foragidos de misses ou do servio de colonos que se "retribalizaram" ou aderiram a grupos independentes, como os Mura. Os Mura, alis, provavelmente se agigantaram na Amaznia ( Amoroso) porque reuniam trnsfugas de outras etnias. Os Xavante dos quais se conta aqui a historia (Lopes da Silva) tambm foram mais de uma vez contatados e mais de urna vez fugiram. A idia de isolamento deve ser usada com cautela em qualquer hiptese pois h um contato mediatizado por objetos, machados, miangas, capazes de percorrerem imensas extenses, mediante comrcio e guerra, e de gerarem uma dependncia distncia (Turner, Erikson): objetos manufaturados e microorganismos invadiram o Novo Mundo numa velocidade muito superior dos homens que os trouxeram. Est presente a historia tambm no fracionamento tnico para o qual Taylor chama a ateno e que vai de paradoxalmente, com uma homogeneizao cultural: perda de diversidade cultural e acentuao das microdiferenas que definem a identidade tnica. provvel assim que as unidades sociais que conhecemos hoje sejam o resultado de um processo de atomizao cujos mecanismos os podem ser percebidos em estudos de caso como o de Turner sobre os Kayap, e de reagrupamentos de grupos lingisticamente diversos em unidades ao mesmo tempo culturalmente semelhantes e etnicamente diversas, cujos exemplos mais notrios so o do alto Xingu e o do alto rio Negro (vide Franchetto e Wright). notvel que apenas os grupos de lngua J paream ter ficado imunes a esses conglomerados multilingsticos. Em suma, o que hoje no Brasil indgena so fragmentos de um tecido social cuja trama, muito mais complexa e abrangente, cobria provavelmente o territrio como um todo.
Mas est presente sobretudo a historia na prpria relao dos homens com a natureza. As sociedades indgenas contemporneas da Amaznia so, como se apregoou, sociedades igualitrias e de populao diminuta. Durante os ltimos quarenta anos, muita tinta correu para explicar essas caractersticas. Uns acharam que as sociedades indgenas tinham, embutido em seu ser; um antdoto emergncia do Estado. Outros, principalmente norte-americanos, acreditaram que a razo dessa limitao demogrfica se fundava numa limitao ambiental, e um acalorado debate se travou quanto natureza ltima dessa limitao: a pobreza dos solos, do potencial agrcola ou de protenas animais. A pesquisa arqueolgica (Roosevelt) veio, no entanto, corroborar o que os cronistas contavam (Porro): a Amaznia, no na sua vrzea mas em vrias reas de terra firme foi povoada por longo tempo por populosas sociedades sedentrias e estratificadas, e essas sociedades so autctones, ou seja, no se explicam como o resultado da difuso de culturas andinas mais avanadas. As sociedades indgenas de hoje no so, portanto o produto da natureza, antes suas relaes com o meio ambiente so mediatizadas pela historia. MORTANDADE E CRISTANDADE Povos e povos indgenas desapareceram da face da terra como conseqncia do que hoje se chama, num eufemismo envergonhado, "o encontro" de sociedades do Antigo e do Novo Mundo. Esse morticnio nunca visto foi fruto de um processo complexo cujos agentes foram homens e microorganismos mas cujos motores ltimos poderiam ser reduzidos a dois: ganncia e ambio, formas culturais da expanso do que se convencionou chamar o capitalismo mercantil. Motivos mesquinhos e no uma deliberada poltica de extermnio conseguiram esse resultado espantoso de reduzir uma populao que estava na casa dos milhes em 1500 aos parcos 200 mil ndios que hoje habitam o Brasil. As epidemias so normalmente tidas como o principal agente da depopulao indgena (ver; por exemplo, Borah, 1964). A barreira epidemiolgica era, com efeito, favorvel aos europeus, na Amrica, e era-lhes desfavorvel na frica. Na frica, os europeus morriam como moscas; aqui eram os ndios que morriam: agentes patognicos da varola, do sarampo, da
coqueluche, da catapora, do tifo, da difteria, da gripe, da peste bubnica, possivelmente a malria, provocaram no Novo Mundo o que Dobyns chamou de ''um dos maiores cataclismos biolgicos do mundo". No entanto, importante enfatizar que a falta de imunidade, devido ao seu isolamento, da populao aborgine, no basta para explicar a mortandade, mesmo quando ela foi de origem patognica. Outros fatores, tanto ecolgicos quanto sociais, tais como a altitude, o clima, a densidade de populao e o relativo isolamento, pesaram decisivamente. Em suma, os microorganismos no incidiram num vcuo social e poltico, e sim num mundo socialmente ordenado. Particularmente nefasta foi a poltica de concentrao da populao praticada por missionrios e pelos rgos oficiais, pois a alta densidade dos aldeamentos favoreceu as epidemias, sem no entanto garantir o aprovisionamento. O sarampo e a varola entre 1562 e 1564, assolaram as aldeias da Bahia fizeram os ndios morrerem tanto das doenas quanto de fome, a tal ponto que os sobreviventes preferiam vender-se como escravos do que morrer mngua (Carneiro da Cunha, 1986). Batismo e doena, como lembra Fausto (neste volume), ficaram associados no esprito dos Tupinamb: elucidativo que um dos milagres atribudos ao suave Anchieta fosse o de ressuscitar por alguns instantes a indiozinhos mortos para lhes poder dar o batismo. Os aldeamentos religiosos ou civis jamais conseguiram se auto-reproduzir biologicamente. Reproduziam-se, isso sim, predatoriamente, na medida em que ndios das aldeias eram compulsoriamente alistados nas tropas de resgates para descer dos sertes novas levas de ndios, que continuamente vinham preencher as lacunas deixadas por seus predecessores.
Os ndios brasileiros fizeram grande sucesso na Corte francesa. A nobreza toda os convidava para jantares, embora torcesse o nariz para as suas esposas francesas. Um msico da Corte, Gauttier. chegou a compor uma sarabanda em que os Tupinamb tocavam com seus maracs, conforme se v nesta gravura. Mas no foram s os microorganismos os responsveis pela catstrofe demogrfica da Amrica. O exacerbamento da guerra indgena provocado pela sede de escravos, as guerras de conquista e de apresamento em que os ndios de aldeia eram alistados contra os ndios ditos hostis, as grandes fomes que tradicionalmente acompanhavam as guerras, a desestruturao social, a fuga para novas regies das quais se desconheciam os recursos ou se tinha de enfrentar os habitantes (vide, por exemplo, Franchetto e Wright), a explorao do trabalho indgena, tudo isto pesou decisivamente na dizimao dos ndios. H poucos estudos demogrficos que nos possam esclarecer sobre o peso relativo desses fatores, mas um deles, recente, elucidativo. Maeder (1990) analisa a populao das redues guarani aps o trmino das expedies dos paulistas apresadores de ndios, e cobre o perodo de 1641 a 1807. Resulta dos dados, abundantes entre essas datas, que os perodos de descenso e mesmo de colapso populacional so aqueles em que houve maior mobilizao de homens pelos poderes coloniais, com a conseqente desestruturao do trabalho agrcola nos aldeamentos e seus corolrios de fome e de peste:
desses dados quantitativos emerge urna situao semelhante quela de que sempre se queixavam os religiosos administradores de aldeamentos indgenas. A AMERICA INVADIDA As estimativas de populao aborgine em 1492 ainda so assunto de grande controvrsia. Para que se tenha uma idia das cifras avanadas, adapto aqui um quadro de Denevan (1976:3), que por sua vez adapta e completa Steward (1949:656) (tabela abaixo). Quanto s regies que nos ocupam mais de perto, Rosenblat (1954:316) d 1 milho para o Brasil como um todo, Moran (1974:137) d uns modestos 500 mil para a Amaznia, ao passo que Denevan (1976:230) avalia cm 6,8 milhes a populao aborgine da Amaznia, Brasil central e costa nordeste, com a altssima densidade de 14,6 habitantes/km na rea da vrzea amaznica e apenas 0,2 habitante/km para o interflvio. Como cifra de comparao, a pennsula ibrica pela mesma poca teria uma densidade de 17 habitantes/km (Braudel, 1979:42). Nmeros para (em milhes) Sapper (1924) Kroeber (1939:166) Rosenblat (1954:102) Steward (1949:666) Borah (1964) Dobyns (1966:415) Chaunu (1969:382) Denevan (1976:230, 291) Terras baixas da Am. do Sul 3a5 1 2,03 2,90 (1,1 no Brasil) 9 a 1125 9 a 1125 9 a 1125 8,5 (5,1 na Amaznia) Total Amrica 37 a 48,5 8,4 13,38 15,49 100 90,04 a 112.55 80 a 100 57,300
Corno se v no quadro, as estimativas variam de 1 a 8,5 milhes de habitantes para as terras baixas da Amrica do Sul. Diga-se de passagem, sabe-se ainda menos da populao da Europa ou da sia na mesma poca: a Amrica at bem servida desde os trabalhos de demografia histrica da chamada escola de Berkeley, cujos expoentes principais foram Cook e Borah. Imagina-se, s como base de comparao, que a Europa teria, do Atlntico aos Urais, de 60 a 80 milhes de habitantes em 1500 (Borah apud Denevan,
1976:5). Se assim tiver sido realmente, ento um continente teria logrado a triste faanha de, com punhados de colonos, despovoar um continente muito mais habitado. Estas estimativas dspares resultam sobretudo de uma avaliao diferente do impacto da depopulao indgena. Os historiadores parecem concordar com um mnimo de populao indgena para o continente situado por volta de 1650: diferem quanto magnitude da catstrofe. Alguns, como Rosemblt, avaliam que de 1492 a esse nadir (1650), a Amrica perdeu um quarto de sua populao; outros, corno Dobyns, acham que a depopulao foi da ordem de 95% a 96% (Snchez-Albornoz, 1973). Seja como for, as estimativas da populao aborgine e da magnitude do genocdio tendem portanto e com poucas excees a ser mais altas desde os anos 60. Um dos resultados laterais desta tendncia o crdito crescente de que passam a gozar os testemunhos dos cronistas. Ora, para a vrzea amaznica e para a costa brasileira, os cronistas so com efeito unnimes em falar de densas populaes e de indescritveis mortandades (vide. Porro e Fausto). Se a populao aborgine tinha, realmente, a densidade que hoje se lhe atribui, esvai-se a imagem tradicional (aparentemente consolidada no sculo XIX), de um continente pouco habitado a ser ocupado pelos europeus2 como foi dito com fora por Jennings (1975), a Amrica no foi descoberta, foi invadida. POLTICA INDIGENISTA Como se deu, esquematicamente esse processo? Durante o primeiro meio-sculo, os ndios foram, sobretudo parceiros comerciais dos europeus. Trocando por foices, machados e facas o pau-brasil para tintura de tecidos e curiosidades exticas como papagaios e macacos, benfeitorias costeiras (Marchant, 1980). Com o primeiro governo geral do Brasil, a Colnia se instalou enquanto tal e as relaes alteraram se, tensionadas pelos interesses em jogo que do lado europeu, envolviam colonos, governo e missionrios, mantendo entre si, como assinala Taylor, uma complexa relao feita de conflito e de simbiose.
No eram mais parceiros para escambo que desejavam os colonos, mas mo-de-obra para as empresas coloniais que incluam a prpria reproduo da mo-de-obra, na forma de canoeiros e soldados para o apresamento de mais ndios: problema estrutural e no de alguma ndole ibrica. Quem melhor o expressou foi aquele velho ndio Tupinamb do Maranho que, por volta de 1610, teria feito o seguinte discurso aos franceses que ensaiavam o estabelecimento de uma colnia: "Vi a chegada dos per [portugueses] em Pernambuco e Poti; e comearam eles como vs, franceses, fazeis agora. De incio, os per no faziam seno traficar sem pretenderem fixar residncia [...] Mais tarde, disseram que nos devamos acostumar a eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e cidades, para morarem conosco [...] Mais tarde afirmaram que nem eles nem os pa [padres] podiam viver sem escravos para os servirem e por eles trabalharem. Mas no satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram tambm os filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nao [...] Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vs o fizeste somente para traficar [...] Nessa poca no falveis em aqui vos fixar; apenas vos contentveis com visitar-nos uma vez por ano[...] Regressveis ento a vosso pas, levando nossos gneros para troc-los com aquilo de que carecamos. Agora j nos falais de vos estabelecerdes aqui, de construirdes fortalezas para defender-nos contra os nossos inimigos. Para isso, trouxestes um Morubixaba e vrios Pa. Em verdade, estamos satisfeitos, mas os per fizeram o mesmo [...] Como estes, vs no quereis escravos, a princpio; agora os pedis e os quereis como eles no fim [...]'' (Abbeville, trad. Srgio Milliet, 1975 [1614]:115-6). A Coroa tinha seus prprios interesses fiscais e estratgicos acima de tudo: queria decerto ver prosperar a Colnia, mas queria tambm garanti-la politicamente. Para tanto, interessavam-lhe aliados ndios nas suas lutas com franceses, holandeses e espanhis, seus competidores internos, enquanto para garantir seus limites externos desejava "fronteiras vivas" formadas por grupos indgenas aliados (Farage, 1991). Ocasionalmente tambm, como no caso do rio Madeira na dcada de 1730, convinha-lhe a presena de um grupo indgena hostil para obstruir uma rota fluvial e impedir o contrabando
(Amoroso). Em pocas mais tardias, principalmente na do marqus de Pombal, a Coroa pretendia enfim, numa viso mais ampla, promover a emergncia de um povo brasileiro livre, substrato de um Estado consistente (Perrone): ndios e brancos formariam este povo enquanto os negros continuariam escravos.
Painis de carvalho da "Ilha do Brasil" que decoravam uma casa em Rouen (c. 1500-14). Representam o escambo de pau-brasil praticado com
A converso dos ndios passava pelo Estado portugus (representado aqui pelo seu escudo em que se refletem os raios da f) e justificava as concesses territoriais que o papa fizera, em 1493, na Amrica. Este frontispcio obra de frei Joo Jos de Santa Thereza, Istoria del Regno de Brasile, de 1698, uma perfeita alegoria do sistema do padroado. Os interesses particulares dos colonos e os da Coroa podiam portanto eventualmente estar em conflito na poca colonial: um terceiro ator, importante, complicava ainda a situao, a Saber a Igreja, ou mais precisamente uma
ordem religiosa, a jesutica. A Igreja, com efeito, no era monoltica, longe disso. tradicional oposio entre clero secular e clero regular; acrescentavase a rivalidade entre as diversas ordens, que significativamente eram chamadas de "religies'' no sculo XVII. O sistema do padroado, em que o rei de Portugal, por delegao Papal, exercia vrias das atribuies da hierarquia religiosa e arcava tambm com as suas despesas, conferia. Um poder excepcional Coroa em matria religiosa. Por outro lado, o padroado se justificava pela obrigao imposta Coroa de evangelizar suas colnias, e era a base da partilha entre as duas potncias ibricas que O papa Alexandre VI havia feito do Novo Mundo em 1493 e contra a qual outros pases se insurgiam. Se o padroado criava obrigaes para a Coroa, ele tambm lhe sujeitava o clero. Apenas os jesutas, talvez pela sua ligao direta com Roma, talvez pela independncia financeira que adquiriram, lograram ter uma poltica independente, e entraram em choque ocasionalmente com o governo e regularmente com os moradores - como atestam suas expulses de So Paulo em 1640, do Maranho e Par em 1661-2 e do Maranho em 1684, desta vez por influncia tanto dos colonos quanto das outras ordens religiosas. Em todas as ocasies, o pomo da discrdia sempre foi o controle do trabalho indgena nos aldeamentos, e as disputas centravam-se tanto na legislao quanto nos postos-chaves cobiados: a direo das aldeias e a autoridade para repartir os ndios para o trabalho fora dos aldeamentos. De meados do sculo XVII a meados do sculo XVIII, quando Portugal estava interessado em ocupar a Amaznia, os jesutas talharam para si um enorme territrio missionrio. Foi o seu sculo de ouro, iniciado pela formidvel influncia junto a D. Joo IV e ao papa que Vieira, nosso maior escritor; logrou obter. A partir da expulso dos jesutas por Pombal, em l759 e sobretudo a partir da chegada de D. Joo VI ao Brasil, em 1808, a poltica indigenista viu sua arena reduzida e sua natureza modificada: no havia mais vozes dissonantes quando se tratava de escravizar ndios e de ocupar suas terras (Carneiro da Cunha). A partir de meados do sculo XIX, com efeito, a cobia se desloca do trabalho para as terras indgenas (Farage e Santilli). Um sculo mais tarde, deslocar-se- novamente: do solo, passar para o subsolo indgena.
O incio do sculo XX ver um movimento de Opinio dos mais importantes, que culminar na criao do Servio de Proteo aos ndios (SPI), em 1910 (Souza Lima). O SPI extingue-se melancolicamente em 1966 em meio a acusaes de corrupo e substitudo em 1967 pela Fundao Nacional do ndio (Funai): a poltica indigenista continua atrelada ao Estado e a suas prioridades. Os anos 70 so os do "milagre", dos investimentos em infraestrutura e em prospeco mineral - a poca da Transamaznica, da barragem de Tucuru e da de Balbina, do Projeto Carajs. Tudo cedia ante a hegemonia do "progresso", diante do qual os ndios eram empecilhos: foravase o contato com grupos isolados para que os tratores pudessem abrir estradas e realocavam-se os ndios mais de uma vez, primeiro para afasta-los da estrada, depois para afasta-los do lago da barragem que inundava suas terras. o caso, paradigmtico, dos Parakan, do Par. Este perodo, crucial, mas que no vem tratado neste livro, desembocou na militarizao da (questo indgena, a partir do incio dos anos 80: de empecilhos, os ndios passaram a ser riscos a segurana nacional. Sua presena nas fronteiras era agora um potencial perigo. irnico (que ndios de Roraima, que haviam sido no sculo XVIII usados como "muralhas dos sertes" (Farage, 1991), garantindo as fronteiras brasileiras, fossem agora vistos como ameaas a essas mesmas fronteiras.
Os ndios como "guardies das fronteiras", no limite entre o Brasil e a Guiana francesa. Ao lado de Rondon, um ndio segura a bandeira brasileira enquanto outro empunha a bandeira francesa. No fim da dcada de 70 multiplicam-se as organizaes no governamentais de apoio aos ndios, e no incio da dcada de 80, pela primeira vez, se organiza um movimento indgena de mbito nacional. Essa mobilizao explica as grandes novidades obtidas na Constituio de 1988, que abandona as metas e o jargo assimilacionistas e reconhece os direitos originrios dos ndios, seus direitos histricos, a posse da terra de que foram os primeiros senhores. POLITICA INDGENA Por m conscincia e boas intenes, imperou durante muito tempo a noo de que os ndios foram apenas vtimas do sistema mundial, vtimas de uma poltica e de prticas que lhes eram externas e que os destruram. Essa viso, alm de seu fundamento moral, tinha outro, terico: e que a historia, movida pela metrpole, pelo capital, s teria nexo em seu epicentro. A periferia do capital era tambm o lixo da histria. O resultado paradoxal dessa postura "politicamente correta" foi somar eliminao fsica e tnica dos ndios sua eliminao como sujeitos histricos3. Ora, no h dvida de que os ndios foram atores polticos importantes de sua prpria histria e de que, nos interstcios da poltica indigenista, se vislumbra algo do que foi a poltica indgena. Sabe-se que as potncias metropolitanas perceberam desde cedo as potencialidades estratgicas das inimizades entre grupos indgenas: no sculo XVI, os franceses e os portugueses em guerra aliaram-se respectivamente aos Tamoio e aos Tupiniquins (Fausto); e no sculo XVII os holandeses pela primeira vez se aliaram a grupos "tapuias" contra os portugueses (Dantas, Sampaio e Carvalho). No sculo XIX, os Munduruku foram usados para "desinfestar" o Madeira de grupos hostis e os Krah, no Tocantins, para combater outras etnias J. Essa poltica metropolitana requer a existncia de uma poltica indgena: os Tamoio e os Tupiniquins tinham seus prprios motivos para se aliarem aos franceses ou aos portugueses. Os Tapuia de Jandu tinham os seus para
aceitarem apoiar a Maurcio de Nassau. Se nesses casos no certo a quem cabe a iniciativa, em outros a iniciativa comprovadamente indgena: no sculo XVII, grupos Conibo (Pano) querem aliados espanhis (missionrios) para contestar o monoplio piro (arawak) das rotas comerciais com os Andes (Erikson). A coalizo de Karaj, Xerente e Xavante em Gois, que em 1812 destruiu o recm-fundado presdio de Santa Maria no Araguaia (Karasch), um exemplo da amplitude que podia alcanar a poltica indgena em seu confronto com os recm-chegados.
ndio Guajajara ( direita) e ndio Urubu-Kaapor ( esquerda) fotografados por Charles Wagley no Maranho (1942): a penetrao da influncia e das mercadorias trazidas plos europeus fez-se muitas vezes atravs de grupos indgenas intermedirios. Coalizes deste porte, no entanto, foram excepcionais. Ao contrrio, o efeito geral dessa imbricao da poltica indigenista com a poltica indgena foi antes o fracionamento tnico (Taylor, Erikson). Faltam no entanto estudos de caso desses processos de fracionamento. Por isso particularmente valiosa a descrio feita por Turner de um processo desse tipo mostrando a articulao da poltica externa com a poltica interna dos grupos kayap ao longo de vrias dcadas: corrida armamentista, fisso ao longo de clivagens j inscritas na sociedade (metades, sociedades masculinas) tornam-se inteligveis luz da
estrutura social kayap. E, reciprocamente, essa histria etnogrfica que ilumina a estrutura social kayap. A histria local portanto, como advoga, entre outros, Marshall Sahlins (1992), elemento importante de conhecimento etnogrfico. OS NDIOS COMO AGENTES DE SUA HISTRIA A percepo de uma poltica e de uma conscincia histrica em que os ndios so sujeitos e no apenas vtimas, s nova eventualmente para ns. Para os ndios, ela parece ser costumeira. significativo que dois eventos fundamentais - a gnese do homem branco e a iniciativa do contato - sejam freqentemente apreendidos nas sociedades indgena como o produto de sua prpria ao ou vontade. A gnese do homem branco nas mitologias indgenas difere em geral da gnese de outros "estrangeiros" ou inimigos porque introduz alm da simples alteridade, o tema da desigualdade no poder e na tecnologia. O homem branco muitas vezes, no mito, um mutante indgena4, algum que surgiu do grupo. Freqentemente tambm, a desigualdade tecnolgica, o monoplio de machados, espingardas e objetos manufaturados em geral, que foi dado aos brancos, deriva, no mito, de uma escolha que foi dada aos ndios. Eles poderiam ter escolhido ou se apropriado desses recursos, mas fizeram uma escolha equivocada. Os Krah e os Canela, por exemplo, quando lhes foi dada a opo, preferiram o arco e a cuia espingarda e ao prato. Os exemplos dessa mitologia so legio: lembro apenas, alm dos j citados os Waur que no conseguem manejar a espingarda que lhes oferecida em primeiro lugar pelo Sol ( Ireland, 1988:166), os Tupinamb, setecentistas do Maranho cujos antepassados teriam escolhido a espada de madeira em vez da espada de ferro ( Abbeville, 1975 [1612]: 60-1). Para os Kawahiwa, os brancos so os que aceitaram se banhar na panela fervente de Bahira: permaneceram ndios os que recusaram (Menndez, 1989). O tema recorrente que saliento que a opo no mito, foi oferecida aos ndios, que no so vtimas de uma fatalidade mas agentes de seu destino. Talvez escolheram mal. Mas fica salva a dignidade de terem moldado a prpria histria. Assim tambm a etno-histria do contato amide contada como uma iniciativa que parte dos ndios ( vide Turner e Franchetto neste volume) ou at
como uma empresa de "pacificao dos brancos" , como o caso por exemplo dos Cinta-Larga de Rondnia ( Dal Poz,1991). O que isto indica que as sociedades indgenas pensaram o que lhes acontecia em seus prprios termos, reconstruram uma histria do mundo em que elas pesavam e em que suas escolhas tinham conseqncias.
Planta de aldeia J e planta de Aldeamento oficial Pombalino, ambas do sculo XVIII O ESCOPO DESTE LIVRO Alguns esclarecimentos finais cabem aqui. Este livro transborda as fronteiras brasileiras, e isto por trs motivos. Primeiro, porque as fronteiras coloniais, como se sabe, no coincidem com as de hoje, e parte do Brasil de hoje era possesso espanhola. Segundo, porque apesar da diferena sempre mantida entre instituies portuguesas e espanholas - inclusive durante o perodo de Unio das duas Coroas -,os atores e processos so semelhantes: a expanso jesutica espanhola em Mojos, Maynas, nos Llanos de Venezuela dse com caractersticas semelhantes expanso jesutica no Amazonas. Terceiro, porque as redes de comunicao unem, sobretudo nos sculos XVI e
XVII, a populao amaznica como um todo, articulando desde os Arawak subandinos s etnias ribeirinhas do Solimes, do mdio Amazonas e provavelmente do rio Branco: truncar estas vastas redes seria truncar a compreenso desses processos histricos.
A 1 de outubro de 1550, a cidade normanda de Rouen, que fabrica tecidos e comercia regularmente em pau-brasil, oferece, para convenc-lo a investir dinheiro da Coroa e estabelecer uma Colnia, uma festa brasileira ao rei da Frana Henrique II e a sua mulher, Catarina de Mediei. O rei e a rainha so recepcionados por trezentos ndios tupis, dos quais uns cinqenta autnticos, e os outros marinheiros franceses falantes de tupi e prostitutas, todos despidos para a ocasio e que encenam, na margem esquerda do Sena, a vida tupinamb: amor na rede, caa, venda de pau-brasil, guerra. IMAGENS Foi dada, neste livro, grande importncia iconografia, e tentamos mostrar documentos pouco conhecidos ou inditos. Nos sculos XVI e XVII, o que talvez mais chame a ateno a ausncia de iconografia portuguesa (os portugueses parecem muito mais fascinados, na poca, pelo Oriente), que
contrasta com a sua importncia na Frana, na Holanda e, subsidiariamente, na Alemanha. a poca em que est mais viva a especulao sobre o significado dessa nova humanidade, a um tempo inocente e antropfaga. Rapidamente, as descries pictricas de primeira mo cedem o passo a esteretipos, e informam assim talvez mais sobre a Europa e sua reflexo moral do que sobre os ndios no Brasil. Data do fim do sculo XVIII a primeira, nica e valiosssima expedio de um naturalista portugus ao Brasil, Alexandre Rodrigues Ferreira: inaugurase com ele uma tradio cientfica que florescer no sculo XIX com naturalistas e viajantes de outros pases (alemes, russos, franceses, suos, americanos...), produzindo uma ampla documentao iconogrfica, que contrasta singularmente com a exaltao de um ndio genericamente Tupi (ou Guarani) orquestrada pelo indianismo tupiniquim. H portanto dois ndios totalmente diferentes no sculo XIX: o bom ndio Tupi-Guarani (convenientemente, um ndio morto) que smbolo da nacionalidade, e um ndio vivo que objeto de uma cincia incipiente, a antropologia. A partir da popularizao da fotografia e das viagens exticas, multiplicam-se as imagens: resta saber se elas nos revelam os ndios ou se revelam nossos antigos fantasmas. A HISTRIA DOS NDIOS Na realidade, essa mesma questo ultrapassa o problema da iconografia, que apenas a deixa mais patente: uma histria propriamente indgena ainda est por ser feita. No s o obstculo, real, e que a epgrafe destaca, da ausncia de escrita e portanto da autoria de textos, no s a fragilidade dos testemunhos materiais dessa civilizao a que Berta Ribeiro chamou, com acerto, de civilizao da palha, mas tambm a dificuldade de adotarmos esse ponto de vista outro sobre uma trajetria de que fazemos parte. Os nossos livros de histria se iniciam em 1500. Isso no s desvantagem: em outros pases da Amrica Latina, o culto a uma ancestralidade pr-colombiana passa em geral por uma vasta mistificao, que dissolve o passado e portanto a identidade indgena em um magma geral. Ter
uma identidade ter uma memria prpria. Por isso a recuperao da prpria histria um direito fundamental das sociedades. tambm, pela atual Constituio, o fundamento dos direitos territoriais indgenas, e particularmente da garantia de suas terras. Sobre este ponto, h porm que se entender. Os direitos especiais que os ndios tm sobre suas terras derivam de que eles foram, nas palavras do Alvar Rgio de 1680, "seus primrios e naturais senhores", ou seja, derivam de uma situao histrica (Carneiro da Cunha, 1987 ). Isso no significa que caiba provar a ocupao indgena com os documentos escritos, que no s so lacunares, mas cujos autores tinham tambm interesses, no mais das vezes, antagnicos aos dos ndios. Ao contrrio, cabe restabelecer a importncia da memria indgena, transmitida por tradio oral recolhendo-a, dando-lhe voz e legitimidade em justia. A histria dos ndios no se subsume na histria indigenista. Durante quase cinco sculos, os ndios foram pensados como seres efmeros, em transio: transio para a cristandade, a civilizao, a assimilao, o desaparecimento. Hoje se sabe que as sociedades indgenas so parte de nosso futuro e no s de nosso passado. A nossa histria comum - este livro o ilustra - foi um rosrio de iniqidades cometidas contra elas. Resta esperar que as relaes que com elas se estabeleam a partir de agora sejam mais justas: e talvez o sexto centenrio do descobrimento da Amrica tenha algo a celebrar.
O ndio no Imaginrio Europeu.Ao lado, A primeira gravura Conhecida, de Johann Froschauer, Que representa a Antropofagia Brasileira. No meio, esquerda, Imagem da cidade Mtica do Eldorado Ou Manoa. Abaixo, esquerda Gravura do sculo XIX mostrando um canibalismo "selvagem" que jamais existiu. Abaixo, direita, a Primeira gravura Representando as Amazonas: um Marinheiro enviado Em terra para Seduzi-las atacado para ser Devorado.
O ndio do Imaginrio dos Antroplogos o ndio tradicional. Acima, o grande Antroplogo Nimuendaju Posando nu em 1937, no meio de um ritual Xerente. Abaixo, fotos de ndios Canela de Nimuendaju. AGRADECIMENTOS Este livro foi elaborado graas ao projeto especial sobre "Histria Indgena e do Indigenismo" aprovado pela FAPESP ( 88/2564-5) e como parte das atividades do Ncleo de Pesquisa em Histria Indgena e Indigenismo, da Universidade de So Paulo. A maioria dos captulos deste livro foi encomendada desde 1989. A inteno era avaliar o estado atual do conhecimento sobre histria indgena e indicar direes promissoras para novas pesquisas. Em agosto de 1991, na USP, foi realizado um seminrio para uma discusso dos textos, antecedendo a publicao. Para sua realizao tambm contamos com o apoio crucial da FAPESP ( 91/1669-0). Aps o seminrio, Greg Urban aceitou tratar da contribuio lingstica e Snia Dorta realizou um extenso catlogo de colees etnogrficas, aqui publicado em anexo. Dois captulos que reputo essenciais para um livro que trata de Histria dos Povos Indgenas, encomendados desde o incio do projeto, nunca chegaram a ser escritos: um dizia respeito a situao atual dos povos indgenas, outro aos seus prospectos de futuro.
O ndio no Imaginrio. Ao lado Casal de ndios do Parque Nacional Do Xingu: imagem De ndios inocentes No Jardim do den. Abaixo, os ndios Como senhores da Terra: Adhemar de Barros entrega Solenemente a Dois ndios Carajs Perplexos uma Caixa contendo Terra do morro Do Jaragu . A pesquisa iconogrfica ficou a meu cargo, auxiliada por Oscar Calvia Saz e posteriormente por Marta Amoroso. Beneficiou-se muito dos recursos da Newberry Library, de Chicago, que me concedeu uma bolsa de pesquisador
em junho de 1990 e da acolhida, na Universidade de Coimbra, do Professor Manuel Laranjeira Rodrigues de Areia e do fotgrafo Carlos Barata, que cederam fotos da extraordinria coleo de Alexandre Rodrigues Ferreira. Muitos outros acervos permitiram que usssemos suas imagens: sua lista vem no final do volume e a todos queremos agradecer. Cabem, no entanto, especiais agradecimentos famlia de Hrcules Florence, Bosh do Brasil e Biblioteca Mrio de Andrade. Agradeo tambm a reviso de textos de arqueologia realizada pela professora Slvia Marranca, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. A publicao deste volume s se tornou possvel graas ao apoio da Secretaria Municipal de Cultura de So Paulo e da FAPESP ( Proc. 91/4450-0). Queremos prestar por fim, neste prefcio, uma homenagem a Miguel Menndez, um dos primeiros antroplogos a se interessar por pesquisas de histria indgena, e que faleceu prematuramente em novembro de 1991. membro do projeto e do Ncleo de Histria Indgena da USP desde suas primeiras horas, o captulo que produziu e que publicamos neste volume, sobre a histria do rio Madeira, seu ltimo trabalho.