Os Cavaleiros 3 Olivier Ou Os Tesouros

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JULIETTE BENZONI

Olivier ou Os Tesouros Templários

Os Cavaleiros – Volume III


À minha filha Anne minha prestosa colaboradora...
PRÓLOGO – A DAMA DE VALCROZE
Sancie olhava para a estrela.
Os cinco braços prateados, brasonando o azul do céu, brilhavam ao
sol, suspensos da longa corrente que uns homens intrépidos tinham
estendido entre os dois picos gémeos erguidos como dois dedos por
cima da aldeia de Moustiers. Aquele fantástico testemunho de gratidão,
colocado como um colar no pescoço da montanha em homenagem a
Nossa Senhora, sonhara-o o cavaleiro Guilherme de Blacas na prisão de
Mansurá. Do fundo da sua miséria, ele jurara à Virgem Maria formar,
com as suas correntes de cativo e a estrela do seu escudo, uma
homenagem deslumbrante e intemporal que atravessaria os séculos
proclamando a glória da mãe do Cristo Rei. E Sancie gostava daquela
estrela, assim como gostava da capela de Notre-Dame-d'entre-les-Monts
onde fora, várias vezes, depositar o seu fardo e pedir ajuda, já que a
tradição e a fé populares atribuíam grandes poderes ao pequeno
santuário ornamentado de maneira tão magnífica. Dizia-se, até, que os
bebés nascidos mortos recuperavam ali a vida...
Nunca Sancie pedira tanto. As suas preces eram mais modestas e,
talvez por isso, eram, muitas vezes, atendidas. Desse modo, a cada
visita, as suas esperanças mantinham-se intactas, apesar de, daquela
vez, admitir que seria precisa muita boa vontade por parte da Virgem
Maria.
O Sol, ao bater na estrela, provocava relâmpagos, insuportáveis
para os seus olhos um pouco cansados. Sancie benzeu-se e entrou na
capela. A espessura das paredes, sob a abóbada romana, permitia que a
atmosfera fosse fresca e penumbrosa, na qual se fundia rapidamente a
mancha vermelha provocada pela contemplação daquele astro
espantoso que a noite apagava.
A jovem depositou em frente do altar, dominado por uma antiga e
primitiva mas comovente estátua da Virgem Maria, o braçado de giestas
que trazia consigo. A sua cor amarela iluminou de um golpe o pequeno
santuário onde ardia apenas um grande círio, aceso todas as manhãs
pelos monges beneditinos, emigrados desde o século V do mosteiro
Saint-Honorat-en-Lérins e cujo priorado fizera nascer a aldeia. Sancie
era a única, naquela manhã, o que era raro, já que a capela era um local
de peregrinação, mas a montanha fora varrida na noite anterior por uma
tempestade e o mau tempo esvaziara os caminhos. Mas era preciso
mais do que uma tempestade para deter a dama de Valcroze. Assim, o
irmão Ausbert, o velho monge encarregado naquela manhã de receber
os peregrinos, que a conhecia bem, a ela e à sua generosidade,
reservou-lhe um acolhimento caloroso e, sabendo que ela ficaria
reconhecida por alguns momentos de solidão, retirou-se com uma
piscadela de olhos e um ligeiro sorriso de lábios cerrados para que ela
não visse a falta de dentes provocada pela idade avançada. Mas não
sem antes lhe ter entregado a vela que ela pedia habitualmente.
Senhora do santuário, Sancie colocou as flores em jarros ali
existentes para o efeito, acendeu a sua longa vela, colocou-a de maneira
a iluminar o rosto de Maria, ajoelhou-se e, juntando as mãos, começou a
rezar... Primeiro as orações rituais, as Avés-Maria alternando com
ladainhas, mas o que tinha a pedir era muito difícil.
Mais, talvez, do que o regresso à vida de um bebé nascido morto.
Que palavras usar, quantas lágrimas verter para que Nossa Senhora se
deixasse comover e consentisse em expulsar do espírito de Olivier
aquele desejo terrível de se fazer templário? Como fazer com que a mãe
de Jesus admitisse que a humilde Sancie lhe queria recusar o dom de
uma vida consagrada ao Seu filho? E nas condições mais gratificantes
possíveis, já que não se tratava de se enterrar, por baixo do burel e do
silêncio, num mosteiro qualquer, mas sim por baixo das armas de
cavaleiro e combatendo à luz do dia para a glória de Deus onde o Seu
serviço o exigisse.
Ainda e sempre agarrados à Terra Santa naquele ano de 1288, onde
a morte do terrível sultão Baybars, onze anos antes, lhes permitia
respirar um pouco nos lugares que ainda possuíam, tal como os
Hospitalários e os Teutónicos, os cavaleiros do Templo não deixavam de
aumentar a sua rede de domínios e comenda-dorias em toda a Europa
Ocidental. Eram ricos devido aos bens recebidos durante o último século
e meio, o que fazia deles os primeiros e mais poderosos banqueiros do
Ocidente, já que chegavam a emprestar aos próprios Reis. Orgulhosos e
arrogantes na sua coragem jamais posta em dúvida fosse por quem
fosse, salvo raras excepções, ofereciam uma imagem capaz - oh
quantas vezes! - de fazer sonhar qualquer jovem. Sancie sabia que era
assim, mas guardava no fundo do coração a recordação terrível de uma
fogueira no interior de uma antiga cratera, próximo do lago de
Tiberíades, do homem que para ela se lançara e da maldição que ele
proferira. O Templo era maldito, o Templo pereceria e seria um Rei, cujos
olhos nunca se fechavam, que o destruiria.
Ora, o neto do Rei Luís IX {1} ocupava há já três anos o trono de
França. Filipe IV tinha agora vinte anos e era apelidado, desde a sua
adolescência, o Belo. Mais belo senhor não havia... nem mais frio, ou
mais secreto. Diziam que o peso do seu olhar, azul e gelado, era difícil
de suportar porque era impossível de decifrar; que ele nunca
pestanejava, ao ponto de os do seu séquito, impressionados,
perguntarem a si próprios se ele fecharia os olhos durante o sono. Além
disso, o velho profetizara que o Templo correria para a sua perdição
dentro de meio século e já se tinham passado trinta e sete anos. Faltava
pouco tempo. E Sancie de Courtenay, dama de Valcroze, ia àquela
capela suplicar a Nossa Senhora que afastasse o seu filho daquele
projecto tão funesto que a gelava de terror. Tanto mais que ela duvidava,
no fundo do seu coração, da realidade de uma vocação que se
manifestara subitamente aquando do noivado da delicada Inês de
Barjols com um Esparron. Porém, interrogado suavemente pela sua
mãe, Olivier dissera nunca ter sonhado em casar com a jovem e Olivier
nunca mentia: era demasiado orgulhoso para isso e Sancie não insistira,
pensando que era possível o filho não ter consciência de um sentimento
secreto...
Olivier!. Sancie amava-o acima de tudo pois nunca acreditara que
ele pudesse vir a este mundo. Para ela e para Renaud, o seu marido,
era uma espécie de milagre...
Ao deixar São João de Acra depois do seu casamento nocturno,
feito à pressa pelo Rei Luís IX, desejoso de se ver livre de um homem
por quem a sua bela mulher, Margarida de Provença, sentia uma
inclinação demasiado terna, Sancie de Signes, dama de Valcroze, sabia
que o seu embarque apressado num navio marselhês não tinha como
destino a felicidade, apesar de a primeira escala ser em Pafo {2} , na ilha
de Chipre. Amava Renaud com toda a sua alma desde os doze anos e
esse amor resistira a um casamento - não consumado, era verdade! -
com o velho mas adorável Ademar de Valcroze, que soubera fazê-la feliz
sem nunca ter feito dela uma mulher. Mas Renaud amava a Rainha
Margarida desde o momento em que dobrara o joelho diante dela pela
primeira vez. Sancie sabia-o e apesar de persuadida de nunca ser
correspondida, aceitara casar com ele porque Margarida, a madrinha
que ela tanto amava, lho suplicara. Era a única maneira de salvar a
cabeça daquele Courtenay demasiado sedutor, surpreendido pelo Rei na
câmara da sua mulher. Em circunstâncias dramáticas, sem dúvida, mas
suficientemente equívocas para acordarem o ciúme num homem que a
Igreja colocaria um dia, disso estavam todos cientes, na galeria dos
santos. Fora, talvez, por essa razão e porque descobrira em si próprio
um sentimento tão bestialmente humano, sentindo por isso a devida
humilhação, que a cólera de Luís o tornara, por alguns momentos, surdo
a qualquer explicação. E o casamento tivera lugar sem que Sancie
sentisse outra coisa que não um sofrimento acrescido. Aquele
casamento, tal como o primeiro, permaneceria casto, mas este por sua
própria vontade. Mesmo que, um dia, Renaud lho pedisse, não cederia,
a ele ou a si própria, a despeito da sua paixão: a jovem considerava o
seu corpo indigno de ser oferecido ao homem amado depois de ter sido
sujo pelo príncipe infiel que se apoderara dele por meio de um
estratagema... deixando nele a sua marca {3}...
Passada a ilha de Chipre, onde não se demoraram, a viagem foi
abominável. Todas as tempestades do Mediterrâneo pareciam ter
marcado encontro com o navio cuja carga humana, sofrendo ao mesmo
tempo de falta de espaço e da instabilidade do meio ambiente, passou
as passas do Algarve em matéria de náuseas e sensações terríveis de
vertigem, rezando perdidamente entre vómitos que empestavam a
atmosfera. E quando o mal lhes dava algumas tréguas, ou quando
advinha alguma aclimatação, ficavam sem forças por se agarrarem a
tudo o que parecia sólido e fiável para não serem lançados borda fora ou
bateram no cavername, se queriam respirar um pouco de ar puro.
A excepção da tripulação e - sabe Deus porquê - de Renaud, do seu
velho escudeiro Gilles Pernon, de Basile, seu jovem companheiro grego
e da inútil Honorine, dama-de-companhia de Sancie, toda a gente a
bordo ficou doente e a própria Sancie ainda mais. Em particular numa
determinada noite durante a qual, depois de ter caído na escada do
castelo-da-popa, passou martírios durante horas com os dentes cerrados
num pedaço de pano torcido para abafar os gritos enquanto perdia o
fruto detestado concebido nas margens do lago de Huleh. Honorine
assistiu-a com tanta calma como se estivessem num quarto, não no
canto de um navio enlouquecido. A dama-de-companhia conseguiu
mantê-la afastada dos - bem raros! - olhares indiscretos que pudessem
manifestar-se e quando o dia nasceu no estreito de Messina por fim
calmo, os vestígios do acontecimento desapareceram nas ondas, ao
mesmo tempo que Sancie, esgotada, mergulhava no sono. Por
comodidade e decência, as mulheres viviam, a bordo, separadas dos
homens e Renaud ignorou tudo.
Quando chegaram a Marselha, o estranho casal, que trocara
apenas algumas palavras sem importância, em particular para a galeria,
separou-se. A fim de preservar a dignidade da jovem e dar alguma
credibilidade à urgência de uma partida brusca, o Rei entregara ao
cavaleiro de Courtenay - a quem dera o solar e as terras dos Courtils,
seus pais adoptivos - uma carta destinada à sua nobre mãe, a regente,
cuja saúde o preocupava. Uma carta cuja resposta devia ser confiada a
um outro mensageiro, já que Renaud ficaria, em seguida, livre de fazer o
que lhe apetecesse. Quanto a Sancie, não tinha qualquer vontade de
regressar a Paris, ao palácio da Cité e, sobretudo, de ver de novo
Branca de Castela, a quem chamava, em tempos, a Velha com uma
desenvoltura impressionante. Além disso, a viagem fora fatigante e
impunha-se algum repouso.
A jovem decidira gozá-lo na casa das Bernardinas de São Vic-tor,
cuja prioresa era sua prima, e foi na soleira da abadia que os dois
esposos se separaram. Sancie com uma indiferença que estava longe
de sentir, mas Renaud não escondeu a sua inquietação:
- Estais esgotada. Permiti-me, ao menos, acompanhar-vos até ao
vosso feudo. Se compreendi bem, tendes ainda um longo caminho a
percorrer antes de lá chegar.
- Eu não vou partir já amanhã, ficai tranquilo! Farei a viagem por
pequenas etapas, parando, por exemplo, em Signes, em casa da minha
família...
- As estradas são assim tão seguras na Provença, que vos
permitam percorrê-las apenas na companhia de Honorine? Ficai com
Pernon... e Basílio. Ele ainda só tem doze anos, mas é esperto!
- Nem um nem outro querem deixar-vos. Sem vós, sentir-se-iam
perdidos nesta região que lhes é desconhecida.
- Não quereis mesmo nada de mim, não é verdade?
- Não é isso e pensei bem nas palavras que disse. Mas isso não
significa que Valcroze lhes esteja vedado. Ou a vós - acrescentou ela
com alguma hesitação. - Mas estais com pressa, ao passo que eu não.
Assim, regressarei tranquilamente, estou certa, sob a protecção da
escolta que a minha prima Catarina me fornecerá. Terminada a vossa
missão, não vos impedirá de vir ter comigo. O nosso casamento fez de
vós o castelão de Valcroze...
- Estais certa de que é o que desejais? Com o tempo, talvez, mas
nos tempos mais próximos seria estranho. Entretanto e como ao casar
comigo me salvastes a vida, cabe-vos a vós fazer o que mais vos
agradar...
Os profundos olhos negros de que Sancie gostava tanto - olhos de
sarraceno numa pele de sarraceno contrastando de maneira tão feliz
com a cor loura dos seus cabelos! - esperavam uma resposta, mas a
voz, essa, soava sem emoção e ela sentiu que Renaud se limitava a
enunciar o que considerava como uma obrigação e um reconhecimento;
assim, absteve-se de lhe dizer que, ao regressar para ela, dar-lhe-ia a
maior das alegrias, porque seria confessar que precisava
desesperadamente da sua presença.
A jovem virou a cabeça:
- Não é assim que o entendo. Se vos tivesse executado por uma
falta de que estáveis inocente, o Rei Luís teria cometido uma grande
injustiça. limitei-me a evitá-la e a vossa vida só a vós pertence... assim
como o vosso passado. Sois tão livre quanto possais desejar!
Nos dias que se seguiram, Sancie lamentaria muitas vezes a secura
das suas palavras. De facto, lamentou-as assim que as pronunciou
porque, ao ouvi-las, Renaud empalidecera e, por trás dele, o velho
Guilherme Pernon, antigo mestre-de-armas de Courcy e agora seu
escudeiro, abanara a cabeça com um ar infeliz, mas não podia voltar
atrás.
O pensamento de Renaud surpreendido no quarto de Margarida, a
madrinha de quem tanto gostava, envenenava-lhe a alma. Além disso,
sofria demasiado com a mancha que lhe impusera o sultão, apesar de
Renaud ignorar o que se seguira. Naquelas condições, mais valia que
ele se afastasse dela. Pelo menos durante algum tempo! Bem precisava,
para que tudo aquilo se esfumasse e voltasse a ter paz. Apenas a
paisagem sublime de Valcroze, a meio caminho entre o céu e a terra,
seria, talvez, capaz de lhe devolver alguma serenidade. Mas foi com um
terrível aperto no coração que ela viu afastar-se a galope a alta e
orgulhosa silhueta daquele cujo nome usaria doravante.
Sancie ficou pouco tempo em Marselha. A turbulenta cidade do
Lacydon acabava de sofrer o cerco imposto por Carlos d'Anjou, irmão do
Rei de França e novo conde da Provença, a quem recusava prestar
vassalagem. Vencida, lambia as feridas com um rancor que prejudicava
a sua imagem acolhedora. Até na casa das Bernardinas se queixavam e
se eram obrigadas a rezar pelo novo suserano, faziam-no em voz baixa.
Sancie tinha necessidade de uma atmosfera mais tranquila e, por isso,
demorou-se ali apenas uma semana, partindo escoltada por dois
servidores do convento armados até aos dentes e na companhia da sua
fiel Honorine, que não deixaria de resmungar durante toda a viagem por
causa das incomodidades do caminho.
Para o voo rápido de uma ave, a distância entre Marselha e as
gargantas profundas do Verdon, à entrada das quais se aninhava
Valcroze, não excedia vinte e cinco léguas, mas representava mais do
dobro para quem viajava rente ao solo por uma paisagem magnífica,
sinuosa, acidentada e marcada por recordações para a nova recém-
casada.
Sancie ainda a tornou mais longa ao recusar passar por Sainte-
Baume, a gruta de Maria Madalena - a pecadora que amava Cristo e que
para ali foi viver e morrer na maior miséria - sem fazer uma
peregrinação. Desde que se chamava Sancie de Signes que a jovem
votava por Madalena uma devoção particular, apesar de a pecadora não
ser a sua santa padroeira. Mas todas as mulheres da sua aldeia de
infância partilhavam essa devoção porque esperavam da cortesã
arrependida o casamento para algumas das suas filhas e a fecundidade
para as que já tinham marido. Trepando o duro caminho através da
abundante floresta de faias, de áceres, de tílias, de carvalhos brancos,
de pinheiros, de choupos, de sicômoros, de teixos e de cornizos,
escalando depois o caminho de cabras que se parecia vagamente com
uma escadaria a meia altura da parede vertical da crista onde se abria a
gruta húmida e de onde a água pingava durante todo o ano, Sancie
levava uma intenção bem diferente das precedentes: o seu corpo não
fora manchado, tal como o da rapariga de Magdala, que fora para ali em
busca da coroa da santidade? A jovem ia pedir a Madalena que a
ajudasse a suportar a vergonha e a dor ardente do seu amor por
Renaud.
A jovem rezou durante muito tempo, depositou uma esmola para o
minúsculo mosteiro implantado há pouco na base da imponente
escalada e retomou a viagem em direcção a casa, na certeza de a
encontrar como a tinha deixado. Não a confiara ao seu primo, o irmão
Clement de Salernes, cuja comendadoria de Saint-Mayme-de-Trigance
se encontrava próxima? Porque se colocara nas mãos de um dignitário
do Templo e mesmo depois da terrí- vel cena vivida nos Cornos de
Hattin, nunca se arrependera porque gostava muito do irmão Clement e
não era tola ao ponto de imaginar por um só instante que todos os
Cavaleiros do Templo eram iguais a Roncelin.
Erguido a pouca distância da cidadela de Castellane, num pequeno
outeiro de onde se avistava a fantástica paisagem de uma garganta
acidentada bordejada de falésias cobertas de florestas, no fundo da qual
se precipitava uma inacessível torrente cor de esmeralda, o castelo de
Valcroze, a despeito das suas pedras amareladas e ocres, oferecia o
aspecto rebarbativo comum a todas as fortalezas construídas durante o
século XI. Torres redondas com seteiras protegidas por palanques de
madeira e ligadas entre si por altas muralhas, que as defendiam. Não
tinha um torreão, mas no alto de um vasto pátio ligeiramente inclinado -
o terreno fora nivelado para que o castelo se harmonizasse com a curva
do morro! - tinha uma grande habitação cuja rudeza era amenizada por
algumas janelas com colunas. Para desimpedir Valcroze, tinham feito
recuar a densa floresta que vestia as encostas já acentuadas,
transformando-as em falésias abruptas e atormentadas, inclinadas sobre
profundidades inquietantes e misteriosas onde se precipitavam as águas
do Verdon. O caminho requer cavalos e homens, bons jarretes, mas as
pequenas plantas odoríferas como o tomilho, a manjerona, a flor-de-lis e
as peónias selvagens chegam às portas do castelo. Acima deste, as
cristas rochosas vestem-se de pinheiros, de carvalhos verdes, de
vidoeiros e de ulmeiros, abrigando uma caça numerosa apreciada pelos
habitantes de uma região rica em rebanhos de ovelhas e cabras que vão
a pastar nos altos planaltos, afastados das vertiginosas falhas das
gargantas. A pequena aldeia esconde-se num cotovelo da torrente. As
lavadeiras do castelo vão ali lavar a roupa porque a distância não é
longa e, ao menor alerta, os camponeses tinham tempo para se pôr a
salvo com os seus bens, sabendo que encontravam asilo.
Aquela região da Provença, cuja beleza grandiosa era de tirar a
respiração, era menos rude do que parecia e os castelões de Valcroze
podiam rivalizar em fausto com os maiores senhores, como o
proclamavam os tapetes e tapeçarias do grande salão, os aparadores
carregados de maravilhas de prata, de cristal ou de ouro, as arcas bem
trabalhadas, as armas e tudo o que atestava a riqueza dos barões do
lugar!
Entalado entre as imensas terras dos templários que dependiam da
grande comendadoria de Riou-Lorgues e de Draguig-nan, cujas
fortalezas guardavam o sul das gargantas e as do poderoso vizinho de
Castellane, o domínio de Valcroze não era muito grande, mas para além
de possuir em Bédarrides, a norte de Avinhão, uma bela alcaidaria, o
seu senhor passava por ser um dos mais ricos senhores da Provença
porque, para além dos rebanhos, dos bosques, das herdades e dos
baldios, dizia-se que o barão Ademar teria trazido das cruzadas um
tesouro que o seu herdeiro mantinha bem escondido e do qual se servia
quando a necessidade se fazia sentir, mas com moderação.
Se no castelo se levava uma vida larga e generosa, não se lançava
o ouro pela janela.
Sancie conhecera ali uma felicidade inesperada, tranquila, doce e
alegre junto de um homem de idade que soubera amá-la à maneira de
um pai - e bem melhor do que o seu, autoritário e muitas vezes
insensível. A jovem aprendera a amar aquela natureza imensa, habitada
pela voz das águas saltitantes do rio, cuja cor Ademar dizia ser a mesma
dos seus olhos. Assim, regressava ali com alegria e uma espécie de
alívio, parecendo-lhe a casa o melhor asilo para um coração magoado.
De facto, sabia que tinham lamentado a sua partida e que a sombra
benevolente do seu velho marido defunto a esperava.
- Finalmente, eis-nos em casa! - suspirara Honorine quando, ao
chamamento do corno soprado por um dos criados, a grande porta de
carvalho, armada com pesadas dobradiças de ferro, se abriu perante as
suas montadas e se ergueu, rangendo, a grade de bicos temíveis. Mas o
pequeno cortejo já tinha sido avistado ao longe e o castelo já zumbia
como uma colmeia enlouquecida. Uma casa feudal é um mundo fechado
e aquele acabava de acordar no meio de uma algazarra onde se
misturavam os gritos dos palafreneiros, os risos das servas, as ordens
contraditórias e afobadas das cozinhas, o cacarejar do galinheiro e, na
muralha, as notas alegres de uma trombeta soando as boas-vindas: a
dama de Valcroze regressava a casa. Assim, nem lhe deram tempo de
descer do cavalo. A jovem foi rodeada, ovacionada, aclamada, e sentiu o
coração aquecido. Era de amor que precisava e aquele valia bem um
outro. Além disso, o céu estava bem azul e cheio de andorinhas!
Sancie sorriu a Maximin, o intendente, a Barbette, que comandava o
pequeno batalhão de servas e que velava pelas refeições. Algumas, que
conhecera rapariguinhas, tinham crescido e ofereciam-lhe ramos de
alfazema e de alecrim colhidos à pressa na charneca vizinha quando os
vigias tinham assinalado a aproximação dos viajantes.
E também apareceu o irmão Clement, que efectuava naquele dia
uma das suas inspecções semanais. E Sancie sentiu-se feliz por vê-lo
de novo porque gostava muito dele e reencontrava aquele afecto intacto
a despeito da túnica templária com a cruz vermelha que ela não via,
agora, sem algum desassossego, mas como era possível acreditar que
aquele homem de mais ou menos trinta e cinco anos, talhado para a
cota de malha, não matinha a pureza e a fé ardente dos primeiros
tempos da Ordem? Da sua cabeça morena e enérgica, onde as rugas
das preocupações apareciam precocemente, irradiava, através dos olhos
de um cinzento-doce, uma luz e uma real alegria de viver!
- Como agradecer-vos tudo o que tendes feito por todos os que
vivem aqui, irmão Clement? Nada mudou, parece que saí daqui ontem!
- É natural, porque foi o que vos prometi! Mas entrai, dama Sancie,
entrai em vossa casa! Ela esperou-vos com paciência e serenidade,
certa de que regressaríeis um dia. Mas não tão cedo, talvez? O Rei Luís
regressou ao seu reino?
- Não, mas eu regresso casada de novo. Por sua e por minha
vontade, casei com sire Renaud de Courtenay, um dos seus mais
valentes cavaleiros que é, doravante, meu senhor.
- Que maravilha! - exclamou o irmão Clement com um grande
sorriso. - É uma excelente notícia, pela qual devemos dar graças a
Deus... Mas, por que não vem ele convosco?
- O Rei encarregou-o de entregar uma mensagem à sua mãe e eu
não tinha vontade nenhuma de ver de novo Madame Branca.
O irmão Clement desatou a rir:
- Continuais a gostar dela, pelo que vejo? Bem, esperemos,
portanto, pelo regresso do vosso marido para o conhecermos.
- Pode ser que demore... e que eu precise ainda da vossa ajuda e
dos... vossos conselhos no que respeita aos meus domínios...
De repente, a jovem sentira-se desamparada e o templário
compreendeu rapidamente que nem tudo ia bem para a dama de
Valcroze e que talvez aquele novo casamento não lhe estivesse a trazer
a felicidade; mas ele conhecia a sua jovem prima desde a infância e
sabia que era quase impossível fazê-la falar quando ela não queria.
Naquele dia, o irmão Clement limitou-se a concluir com bom humor:
- Esperá-lo-emos juntos. Sabeis perfeitamente, minha querida
Sancie, que nunca vos deixarei em dificuldades.
Era bom poder contar com ele e, por um momento, Sancie sentiu-se
tentada a contar-lhe tudo, mas temia que ele fizesse do seu marido uma
imagem afastada da realidade e preferiu calar-se.
Mas a verdade acabou por surgir, um dia, quando se tornou
evidente que Valcroze não veria tão cedo o seu novo senhor. De facto,
depois de ter entregado a mensagem real a Branca de Castela que,
doente, o recebeu no seu leito, o encheu de perguntas que giravam
todas em redor do desejo angustiado de ver o filho regressar e que, por
fim, o despediu sem sequer lhe ter perguntado como estava, Renaud
partira para Courtenay onde continuava Maria, Imperatriz de
Constantinopla, para se encontrar com Guillain d'Aulnay, o único amigo
que tinha no mundo e para rezar na capela do castelo, diante da laje sob
a qual repousava Thibaut, o seu avô. Então, soubera - coisa que já
esperava, mais ou menos! - que no seu palácio meio deserto o
Imperador Balduíno continuava a debater-se com enormes dificuldades
devidas a uma falta de dinheiro crónica e a uma rarefacção das suas
tropas. Recordando-se de que, à semelhança de outros cruzados, jurara
que depois da cruzada iria em socorro de Balduíno, Renaud de
Courtenay decidira muito simplesmente colocar a sua espada ao serviço
de um príncipe a quem devia muito e de que, aliás, gostava muito.
Assim, voltara a partir para Marselha, de onde queria embarcar. Foi de lá
que fez chegar uma carta à sua mulher, anunciando-lhe a sua intenção.
Foi Gilles Pernon que a levou a Valcroze. Não sem refilar, mas desde o
regresso da Terra Santa que a saúde do velho escudeiro deixava muito a
desejar. Gilles sofria de reumatismo, o que lhe dificultava as longas
cavalgadas, assim como de crises de asma. O Sol e o clima seco da
Provença ser-lhe-iam benéficos e Renaud acabara por fazê-lo ouvir a
voz da razão. Desse modo, foi sozinho que embarcou para
Constantinopla...
Ao receber aquela carta, Sancie chorou, persuadida de que nunca
mais veria o marido que, era evidente, não queria saber dela e foi
apenas nessa noite que ela contou ao irmão Clement a verdadeira
história do seu casamento. A jovem tinha os nervos em franja e perante
o desespero que não conseguiu esconder, este teve de fazer um esforço
para não desobedecer à lei da Ordem que lhe proibia qualquer contacto
com uma mulher, porque teria desejado oferecer àquelas lágrimas o
refúgio do seu ombro.
No entanto, não deixou de lhe pegar na mão:
- Não sei que dizer-vos, minha querida, ao ver como sofreis, e a
vossa dor aflige-me. Mas sinto - acrescentou ele com uma certeza súbita
que não sabia de onde vinha - que um dia as vossas penas terão um
fim... e que o vosso marido regressará para vós!
- É muita amabilidade da vossa parte dizerdes isso. Tanto mais que
pareceis acreditar, irmão Clement. Ele regressará, dizeis? Mas quando?
- Isso só Deus sabe!
A jovem esperaria dez anos.
Dez anos de solidão afastada dos sons do mundo que lhe
chegavam apenas pela boca dos cavaleiros do Templo ou dos
trovadores que passavam de boa vontade por um castelo que acolhia
bem as pessoas simples e onde uma castelã jovem e um pouco austera,
mas ao mesmo tempo graciosa, sabia ouvir, sorrir e proporcionar uma
hospitalidade generosa. Começavam a correr algumas lendas a seu
respeito, uma mulher cujo marido nunca mais regressava mas pelo qual
esperava sempre, desencorajando, assim, os senhores das redondezas,
suficientemente temerários para pedir a sua mão, ou, pelo menos, para
lhe prodigalizarem consolações. Sancie soube, por acaso, da morte de
Branca de Cas- tela; e depois do regresso, dois anos mais tarde, do filho
que tanta falta lhe fazia. Por um dos seus irmãos, aparecido um belo dia
para saber dela, Sancie soube - esse irmão regressava de Paris - que ao
regressar ao seu reino, Luís, ainda impregnado das piedosas emoções
sentidas na Terra Santa e ainda por cima desesperado com a morte da
mãe, pensara seriamente em fazer-se monge. Ao que a sua mulher
Margarida respondera, com uma cólera inesquecível, que, nesse caso,
partiria para a Provença, deixando o reino desenvencilhar-se sozinho. E
nunca mais se falara de convento: Luís continuou, assim, um reinado
que provocaria a admiração do seu povo, assim como a dos outros Reis
do Ocidente.
Com o irmão Clement, que ela não via muitas vezes porque as mais
altas funções o chamavam para longe de Trigance, a castelã aprendera
a arte de gerir os seus domínios com a ajuda do fiel Maximin. E também
com a de Gilles Pernon, a quem o Sol quente e o uso quotidiano do
tomilho, do alecrim e do alho davam uma nova juventude e que a seguia
por toda a parte. Havia muito que fazer: durante vários anos, Carlos
d'Anjou tivera de lutar para arrancar, cidade após cidade, o seu condado
da Provença à sogra, a condessa Beatriz de Sabóia. A guerra fizera
chegar enormes quantidades de refugiados às terras altas do vale do
Verdon. Ora, alguns tinham-se dado bem e agora que a reconciliação
era um facto, tinham decidido ficar, provocando um aumento da
população que, longe de pesar, ajudava ao desenvolvimento da região.
Uma família de oleiros, que soubera conservar as tradições dos Gregos,
expulsa sucessivamente de Marselha e depois de Brig-noles, instalou-se
em Moustiers, onde não faltava a argila, a água ou a lenha e ficou,
dando o primeiro renome a um povoado já frequentado por numerosos
peregrinos {4}.
Depois, aconteceu aquela noite de Natal cuja recordação, quando
Sancie a evocava, lhe provocava um arrepio na espinha...
Fazia frio, naquela noite. O vento, vindo dos Alpes, soprava sobre a
região, levando até ao mais profundo dos vales o tilintar dos sinos
chamando para a missa da meia-noite os camponeses das aldeias. O
céu, cintilante de estrelas, parecia um manto real estendido sobre toda
aquela gente corajosa, armada de archotes ou lanternas, que ia celebrar
a Natividade nas igrejas e capelas.
O de Valcroze tilintava como os outros, guiando os da pequena
aldeia - uma vintena de fogos! - até ao castelo, onde eram esperados. A
entrada do pátio, as feições desanuviavam-se ao cheirarem os odores
apetitosos emanados da cozinha, porque todos sabiam que depois da
missa teriam lugar na grande sala onde a sua dama partilharia com eles
as coisas boas que se estavam a preparar.
Sancie recebia-os à entrada do pequeno santuário iluminado.
Usando um belo vestido verde, da cor dos seus olhos e bordado a ouro,
com uma grande pelica orlada de arminho, um véu da mesma cor
envolvendo-lhe o rosto e um pequeno chapel bordado no pescoço,
estava tão bela como uma imagem apesar do nariz um pouco comprido
de mais que sempre fora o seu desespero. A jovem acolhia cada um
com a graça sorridente que atraía os corações daquela gente corajosa,
na companhia da qual, desde o seu regresso, passava o Natal,
preferindo-a a convidados mais abastados. Eles estavam-lhe
reconhecidos e a Natividade, em Valcroze, era aguardada com
ansiedade ao longo do ano. Caminhavam na direcção daquela luz como
os Reis Magos tinham seguido a estrela de Belém. Junto dela, um pouco
mais atrás, estava Honorine vestida de escarlate e Gilles Pernon com a
sua melhor cota orlada de pele de esquilo, assim como a gorda Barbette,
mulher de Maximin, e toda a sua família vestida com os melhores fatos,
visivelmente orgulhosos da proximidade da castelã.
Subitamente, Pernon tocou no braço de Sancie:
- Dama! - disse ele com a voz estrangulada - vede quem chega!
Segurando no seu cavalo pela brida devido à rude subida final, um
cavaleiro transpunha a soleira do castelo. Era muito grande e deslocava-
se ligeiramente curvado, cansado, sem dúvida, por ter percorrido um
longo caminho. Sob o amplo manto luzia a malha de aço do lorigão, ao
mesmo tempo que o carnal, descido sobre os ombros, descobria, sob
uma calote de cabelos louros, um rosto rude, moreno e belo, de olhos
negros profundos, desfeado, sem lhe tirar o encanto, por um longo corte
cujo sulco ia de um dos cantos da boca à têmpora.
Sancie sentiu parar o coração. A jovem devorou com os olhos o
cavaleiro que avançava para ela com uma chama nos olhos que ela
nunca vira. Então, correu para ele, obrigando-o a ficar de pé, quando ele
queria dobrar o joelho, para melhor o observar.
- Renaud! Sois mesmo vós?
- Ou o que resta de mim! Tinha pouca esperança de que me
reconhecêsseis... minha doce dama!
- Por causa desse ferimento? É pouca coisa, visto que não
mudastes nada!
- Oh sim, mudei! Quanto a vós, não podíeis estar mais bela. Tal
como sonho há muito tempo!
- Sonháveis comigo? Nesse caso, mudastes muito, de facto... mas
vinde! A missa vai começar e só faltamos nós! Quando acabar,
apresentarei à nossa gente o senhor cuja vinda todos nós esperávamos.
- Isso quer dizer que me aceitais... que me quereis depois de uma
ausência tão longa?
- Em Marselha, disse-vos que podíeis vir quando vos agradasse.
Estais aqui! Está tudo bem. Vinde! - acrescentou ela, segurando-lhe na
mão.
Juntos, entraram na capela, onde foram recebidos por uma vaga de
aclamações. Pernon, chorando de alegria, não esperara que ele
entrasse para anunciar a chegada do castelão, o que provocou um
pouco de desordem, interrompida pelo tilintar da campainha agitada pelo
menino de coro que precedia a entrada do padre, na ocorrência o
capelão do castelo com os seus paramentos de festa.
Na igreja, modesta com a sua pequena abóbada e os seus grossos
pilares atarracados, mas cheirando a pinho e a todas as plantas da
charneca misturadas com o fumo do incenso, foi uma bela missa. Muitas
outras se seguiram ao longo dos dias, mas aquela ficou gravada para
sempre no coração de Sancie. Porque acontecia o inacreditável, porque
pelo olhar com que ele a cobria, pela quente pressão da sua mão que,
durante toda a missa, não largou a sua, ela soube que Renaud a amava.
Tanto quanto, tal- vez, amara a Rainha e sem dúvida mais porque,
passados trinta e cinco anos, ele era agora um homem maduro, certo da
sua escolha e dos seus sentimentos.
E quando, terminada a ceia, se viram sós, face-a-face, na grande
câmara senhorial onde foram conduzidos com toda a cerimónia como se
se tratasse da sua noite de núpcias, Sancie, esquecendo todas as suas
angústias e os escrúpulos deixados pela antiga mancha, permitiu que
Renaud lhe desatasse o laço da camisa e abandonou-se a uma paixão
que ela sabia agora não ser a única a sentir e que os encheu a ambos
de esperança...
Só falaram no dia seguinte.
Renaud mais do que Sancie, naturalmente. Renaud tinha tanto para
contar! Primeiro a sua vida em Constantinopla, numa cidade cheia de
emboscadas, junto de um Imperador reduzido a uma ração miserável
mas que, no entanto, fizera frente a Michel Paléologue, o pretendente
grego ao trono da antiga Bizâncio. Escaramuças assassinas, expedições
cada vez mais arriscadas, deserções, até à noite em que um habitante
da cidade fez entrar o inimigo por um subterrâneo sem que o Imperador,
que dormia tranquilamente no seu palácio de Boucoléon, se
apercebesse minimamente. Os gregos acabavam de recuperar a sua
cidadela imperial e nunca mais a largariam. Era preciso fugir. Balduíno II,
protegido pelas espadas dos poucos fiéis que lhe restavam, conseguiu
arranjar um lugar numa galera depois de ter deixado cair, pelo caminho,
o seu diadema, os seus coturnos cor de púrpura, todos os sinais da sua
dignidade imperial. O império latino, fundado no seguimento de uma
cruzada desviada do seu objectivo religioso, afundava-se após cinquenta
e sete anos de existência.
- Chegámos a Négrepont {5}, depois à Sicília, depois a Nápoles e
depois uma longa viagem até Courtenay onde, doente e despojado de
todas as suas ilusões se reuniu, finalmente, à Imperatriz Maria, a sua
mulher... tal como eu me reúno a vós sem qualquer glória!
- Mas de boa saúde, pelo que nunca agradecerei o suficiente a
Nosso Senhor! Assim, daqueles que, em Chipre, juraram ir ajudar aquele
infeliz soberano, sois, por assim dizer, o único a ter cumprido a sua
palavra?
- Mais ou menos, mas ficai a saber que entre os outros muitos
morreram e outros ainda, mal foram libertados das prisões egípcias após
um duro cativeiro, só desejavam regressar a casa. O Rei também
regressou e a despeito do empobrecimento do tesouro, provocado pela
cruzada falhada, recomeçou um reinado sábio e sensato, que lhe vale o
amor dos seus súbditos e a admiração dos seus vizinhos. Na Terra
Santa, aliás, ele reconstruiu as defesas de várias cidades, fortalezas e
deixou o país numa espécie de tranquilidade...
- Mas sem Rei nomeado, sem exército constituído e sem um poder
real, enquanto os Mongóis por um lado e o cruel Baibars por outro,
cobiçam o que resta do reino franco!
O nosso sire pode, talvez, ter conseguido a paz para a sua alma ao
cumprir a peregrinação com que sonhava, mas eu acho que teria feito
melhor em ter ficado em casa...
Renaud desatara a rir:
- Dir-se-ia que os vossos sentimentos pela família real não
mudaram? Continuais a ser muito severa!
- Não para todos. Tenho pena de Madame Margarida... de quem
nunca deixei de gostar. E vós?
Ao fazer-lhe aquela pergunta tão brutal quanto imprevista, Sancie
sentira o seu coração parar por um instante. O rosto do marido, no
entanto, não perdeu nada da alegria que reflectia. E sem responder de
imediato, apertou Sancie nos braços e pousou-lhe os lábios nos cabelos.
Finalmente, suspirou:
- Esse fogo está extinto há muito tempo. Nasceu da incrível
semelhança entre ela e a minha avó Isabel de Jerusalém, pela qual,
creio, me apaixonei um pouco ao descobrir o seu retrato, já que nunca
tinha visto um rosto tão belo. A imaginação fez o resto, mas depois do
nosso casamento, durante aquela viagem em que vos mantínheis
sempre tão longe de mim e depois a nossa separação... enfim, durante
todos estes anos naquelas terras mais bizantinas do que nunca, onde
nunca percebi nada, onde me sentia um verdadeiro estrangeiro a
despeito da amizade do Imperador, vi as coisas de outro modo e pouco a
pouco implantou-se em mim o desgosto de vos ter perdido sem vos ter,
nunca, conquistado. Vós só pensáveis em Deus e por amor à Rainha
aceitastes casar comigo...
- Quem vos disse que foi por amor da Rainha? O Rei, quer se tenha
dado conta ou não, estava doente de ciúmes. Ele queria a vossa
cabeça... e eu teria morrido de dor se ele vos tivesse matado. Não tenho
mais qualquer razão para vo-lo esconder, meu doce senhor. Foi porque
vos amava que me tornei vossa mulher. Foi a única razão!
Mas com grande vergonha da minha parte, que trazia comigo a
mancha infligida pelo Sultão... e as suas consequências.
- Tivestes um... filho dele?
- Deus teve piedade: perdi-o no meio daquela grande tempestade.
Apenas Honorine o sabe. Eu teria preferido cortar a garganta a dizer-vo-
lo...
- Não pensemos mais nisso, meu amor, teremos os nossos próprios
filhos. Mesmo nossos!
- Não será demasiado tarde? Eu tenho trinta anos!
- E eu trinta e seis! Estamos longe de estar velhos!
- A propósito de filhos, que fizestes do jovem Basílio? Na minha
alegria por vos ver de novo, não pensei nele, mas espero que não lhe
tenha acontecido nada... de mal?
- Oh não! Casou-se, simplesmente. Em Bizâncio, encontrou uma
bela rapariga, filha de um mercador de tecidos grego do bairro do
Boucoléon. Ficou imediatamente apaixonado e os pais dessa Melissa,
amolecidos pelo dote que o nosso Imperador lhe constituiu, acolheram-
no de braços abertos. Regressou ao ofício que já era dos pais dele.
É feliz... e até já tem dois filhos. Confesso que tive inveja dele. Por
isso, minha querida, gostaria muito que fizésseis de mim um pai...
- Também quereis rapazes, evidentemente!
- Não tenho nada contra as raparigas, se se parecerem convosco!
Infelizmente, a espera foi longa. Sancie ficou grávida quatro vezes,
mas o bebé nascia morto ou vivia apenas algumas horas para desespero
dos seus pais. Sancie foi várias vezes em peregrinação a Sainte-Baume,
o que representava uma viagem longa e muitas vezes difícil e,
finalmente, acabou por renunciar a pedido insistente do seu marido, a
quem ela nunca permitia que a acompanhasse. Foi ele que, um dia, a
conduziu a Moustiers depois de ter declarado que era melhor rezar ao
Bom Deus do que aos seus santos e que, na ocorrência, Nossa Senhora
lhe parecia mais apta a tratar dos assuntos referentes a bebés do que
Madalena alguma vez fora. E o desejo de ambos foi atendido: na noite
de Natal de 1270, quando os sinos falavam uns com os outros por toda a
Provença sob um céu tão azul e tão estrelado como na noite do regresso
do seu pai, Olivier lançou o seu primeiro grito. Que não foi, nem de
longe, o último, porque parecia dotado dos pulmões mais potentes do
condado.
Depois dele, o casal cujo amor não podia ser desmentido não teve
outros filhos, mas Olivier parecia talhado para ocupar o lugar todo
sozinho. Do pai teve os cabelos louros e da mãe as grandes e verdes
pupilas cuja cor fugia para um cinzento leve e que, com o tempo, se
tornaram meditativas. Dos dois, um carácter forte, recto e intrépido como
a espada de que o velho Pernon o ensinou a servir-se apesar da
avançada idade. No castelo, adoravam-no. Entretanto, o pai e a mãe
souberam educá-lo sem fraqueza nem afectação. Um outro homem
interveio, involuntariamente, talvez, na formação do jovem: o irmão
Clemente, regressado à região após uma ausência de vários anos.
Era, agora, um alto dignitário da Ordem. No seguimento de uma
estadia bastante longa no Norte, onde conheceu Guilherme de Beaujeu
recentemente eleito Grão-Mestre, partiu com ele para São João de Acra.
Parente do Rei de França, grande senhor se o tivesse sido e de
grande rigor moral juntamente com uma bravura excepcional, o irmão
Guilherme conseguiu, na Palestina, devolver ao Templo a sua grandeza
e auréola demasiadas vezes ameaçadas. Foi ele quem, apesar do
desgosto de se separar de um braço direito por quem tinha uma afeição
muito particular, o voltou a mandar para a Provença onde, entre as
exigências do conde, Carlos d'Anjou fora investido como Rei de
Nápoles-Sicília, e a turbulência das cidades, entre as quais várias
reclamavam privilégios à semelhança de Marselha, a situação das casas
do Templo nem sempre era fácil.
O irmão Clement regressou, portanto, mas, renunciando a Marselha,
preferiu instalar-se à cabeça da importante comendadoria de Ruou, o
que, para além de lhe permitir ficar na sua região natal, fazia com que o
seu grão-mestrado atingisse a sua dimensão, tanto na paisagem como
no espírito dos homens, afastando-o das agitações urbanas.
Naturalmente, as relações com os de Valcroze foram reatadas.
Nasceu uma amizade entre Renaud e ele. O pequeno Olivier foi disso
uma testemunha admirada. Pouco a pouco, a poderosa personalidade
do templário, a sua fé exemplar e a pureza do seu compromisso
monástico e guerreiro impuseram-se na criança, ao ponto de esta ver
nele uma espécie de arcanjo descido à terra para redenção dos pobres
humanos.
Sancie, como mãe atenta, foi a primeira a aperceber-se daquela
admiração, mas inquietou-se pouco, pensando que, com a puberdade,
as aspirações do seu filho virar-se-iam mais para as raparigas do que
para a vida austera de um templário. Ela sabia o que tinham sido os
apetites carnais do seu marido, o que continuavam a ser para sua
grande felicidade e pensava, não sem razão, que um cão não se pode
transformar num gato. Mas Olivier, apesar de gostar de cavalos, de
armas, de caça, das canções dos trovadores celebrando os grandes
feitos e até o amor das damas, não parecia interessar-se por nenhuma,
preferindo grandes conversas com o capelão Anselm, um padre afável e
letrado que o ensinara a ler e tudo o mais que ele sabia. Os pais
acabaram por se inquietar:
- Não vai acabar, um dia, por nos pedir que o deixemos tonsurar o
cabelo? - explodiu um dia Renaud, chamando à parte o padre Anselmo
para lhe pedir que dirigisse os pensamentos do seu filho único para
regiões menos etéreas do que o reino de Deus.
O padre respondeu que não fazia nada para que isso acontecesse,
mas que o adolescente era uma daquelas almas superiores que não se
satisfaziam apenas com um quotidiano demasiado terra-a-terra:
- No entanto - acrescentou ele - vós não tendes nada, creio eu,
contra o sacerdócio ou o hábito beneditino, franciscano ou outros. Olivier
gosta demasiado das armas, dos grandes fei- tos, das belas histórias
guerreiras. Aguarda a investidura como se fosse uma profissão-de-fé,
um verdadeiro compromisso para com os fracos, os aflitos e as vítimas,
o melhor meio de servir a Deus.
- Vós sois o seu confessor: não se aloja no seu coração nenhum
rosto feminino? Não vos peço para trair o segredo da confissão. Não
quero nomes...
- Que ele, aliás, não me teria confiado, mas, sire Renaud, sabeis tão
bem como eu: amar nunca foi pecado de que nos possamos acusar, do
mesmo modo que o amor não ofende nenhum mandamento divino!
- Tendes razão. Perdoai-me! Talvez ele ainda seja muito novo...
Renaud quis ficar mais tranquilo e contou a entrevista a Sancie, mas
na sua sensibilidade de mulher e de mãe, esta mostrou-se mais
clarividente:
- E isso satisfaz-vos? Demasiado novo, dizeis vós? Pode ser-se
criança e amar com todo o ser. Não compreendestes, portanto, o destino
que o padre Anselm vos descreveu?
O destino de um templário! Esqueceis que o irmão Clement, nosso
parente, é, juntamente convosco... mais até, talvez, o seu herói, o seu
modelo?
- Não, não esqueço - disse Renaud subitamente muito sombrio, e
que, finalmente, barafustou:
- Mas, por todos os santos do Paraíso, não existe apenas o Templo!
Os Hospitalários também são cavaleiros e sabem combater tão bem
como os seus... rivais, visto que sempre o foram!
- Não tenteis enganar-vos! Não é a mesma coisa e vós sabeis que
tenho razão...
Sim, ele sabia e também sabia que tentava tranquilizar-se a si e à
sua mulher sem grande fé. Como não teriam outro filho, sentiam-se
prontos a qualquer sacrifício para o desviar de um caminho que ia dar a
uma destruição sem glória que eles sabiam ser inevitável. Renaud
pensou com raiva que, se Deus lhe tivesse permitido encontrar Roncelin
e fazê-lo pagar os seus crimes, a alma de Aymar de Rayaq, o velho
templário salvo dos Cornos de Hattin, que preferira morrer pelo fogo para
tentar salvar a Verdadeira Cruz, ter-se-ia apaziguado, retirando, assim, a
maldição. Mas o demónio desaparecera de tal maneira que Courtenay
acabou por pensar - e falara nisso a Sancie! - que talvez ele não fosse
um homem verdadeiro, antes um daqueles sequazes de Satanás
dedicados à perdição das almas puras: na ocorrência a do Templo
abençoado por Bernardo de Citeaux, que já era grande quando ainda
era pobre e ainda não tinha acumulado riquezas...
Por momentos, os pais de Olivier recuperaram a coragem. No
torneio de Pentescostes, no castelo de Bonifácio de Castellane, onde se
juntou a nobreza da região, uma jovem pareceu atrair a atenção de
Olivier. Essa jovem chamava-se Inês de Barjols, tinha catorze anos e
evocava todas as flores da Primavera sob a massa dourada de uma
cabeleira de fazer ciúmes ao próprio Sol. Olivier tinha quinze, mas,
grande para a idade, justificava plenamente o orgulho da sua mãe.
Naturalmente, foram muitos os que se juntaram em redor daquele jovem
astro radiante chamado Inês: adolescentes, cavaleiros e até barões, mas
a bela rapariga parecia ter distinguido Olivier e, era evidente, lamentava
que ele não pudesse usar as suas cores nas justas, já que ainda não
fora armado cavaleiro. Todos os puderam ver juntos, tanto quanto o
permitia a decência. O que não era muito, mas, sem ter recebido
qualquer confidência, Sancie juraria, pela luz nova nos olhos do rapaz,
que o seu coração falara, por fim. Olivier, aliás, mostrou-se subitamente
desejoso de apressar a sua chegada à cavalaria.
- Está desejoso de brilhar nos torneios - confiou Renaud, encantado,
à mulher. - E como dá mostras de competência, pode ser que isso
aconteça no próximo Pentecostes.
Daremos, então, uma grande festa...
Aquela perspectiva concedeu a ambos alguns meses de alegre
esperança. Ao casar-se, Olivier receberia o rico feudo de Bédarrides,
que faria dele um senhor bastante abastado e que, pelo menos, seria
gerido no local, não à distância e por intermédio de um "castelão", por
mais devotado que fosse. Mas, depois, chegou a notícia:
Inês de Barjols ia casar com o senhor de Esparron.
Se Olivier sofreu, não o mostrou. Silencioso por natureza, mostrava
pouco os seus sentimentos. O jovem prosseguiu a sua preparação como
se nada se passasse e deu mostras de uma virtuosidade excepcional
nas justas que se seguiram à sua investi- dura como cavaleiro no
decurso de uma festa memorável que reuniu todo o condado. O seu
sucesso junto das damas e das donzelas foi proporcional. Eram muitas
as que olhavam para ele docemente e a esperar receber, na ponta da
sua lança, a coroa de rainha do torneio. Mas foi aos pés da mãe, ao
mesmo tempo confusa e encantada, que ele a depositou. O que não o
impediu de dançar, à noite, com todas as damas presentes, como se não
tivesse passado a noite a rezar.
Seis meses mais tarde, o jovem pediu permissão ao pai para entrar
para o Templo. Para Renaud e Sancie, foi como se o céu lhes tivesse
caído em cima da cabeça.
A vez, tentaram chamar Olivier à razão. Este opôs-lhes uma firmeza
calma mas inabalável. Ao pai, disse:
- Quero servir a Deus, com a alma e com a espada!
- Isso não quer dizer que entres para a Ordem. É possível, no
século em que vivemos, fazê-lo tendo mulher e filhos!
- E ao serviço de quem poderia combater? Os condes da Provença,
agora Reis de Nápoles mal se lembram de nós e, no entanto, são
nossos suseranos. O Rei de França está em luta quase aberta com o
Papa e os nossos príncipes, os imperadores Courtenay já não existem
senão na figura de uma jovem que também vive em Itália visto que o seu
pai casou com a filha do defunto Carlos de Anjou, Rei de Nápoles. O
velho feudo dos Courtenay pertence agora a um ramo co-lateral que vós
nem sequer conheceis.
Sozinho, o Templo continua a combater na Terra Santa. É por essa
razão que quero entrar para a Ordem. No seio dela, tenho a certeza de
que a minha espada está ao serviço de Deus!
A mãe que, quase a chorar e retendo corajosamente as lágrimas lhe
objectou que, se ele se obstinasse, a família tão dificilmente constituída
extinguir-se-ia, que ela própria não teria, nunca, a alegria de beijar os
seus netos e que os seus bens se perderiam na imensidão dos do
Templo, ele respondeu:
- Melhor do que ninguém, o Templo sabe proteger e fazer frutificar o
que lhe confiam. Devíeis saber isso, mãe, já que o irmão Clement geriu
tão bem os domínios durante a vossa peregrinação. Vós também
tivestes a alegria de pisar o solo da Terra Santa. Seríeis capaz de ma
recusar, essa alegria?
Não havia nada a responder. Senão rezar. Então, Sancie,
acompanhada de Maximin, foi implorar a Nossa Senhora, ao santuário
de Moustiers...
Um pouco entorpecida pela longa prostração, durante a qual, depois
das orações, permitira que as suas recordações aparecessem, Sancie
levantou-se e sorriu para o monge que, preocupado com a sua longa
conversa com o Senhor e com a Sua Mãe, entrara na ponta dos pés.
Uma última genuflexão. Ao passar por ele, a dama de Valcroze
entregou-lhe uma generosa esmola. Sancie sentia-se um pouco
reconfortada e ao transpor a soleira ainda demasiado nova para que os
passos dos peregrinos já tivessem desgastado a pedra, exalou um
profundo suspiro. O assunto estava, agora, nas mãos da Virgem Maria e
do Seu Divino Filho...
Na base da encosta íngreme onde se erguia a capela, o sólido
Maximin esperava-a, sentado num muro de pedra junto dos cavalos,
mas não estava só: a seu lado, um homem de grande estatura e cujo
longo manto negro lhe chegava às esporas de ouro, esperava
conversando tranquilamente e o coração de Sancie parou subitamente,
como sempre que revia o marido após qualquer separação, por mais
breve que fosse. A chegada aos sessenta anos não afectara a vitalidade
nem a silhueta de Renaud: limitara-se a esbranquiçar-lhe em parte os
cabelos louros e a acrescentar rugas ao seu rosto, que acentuavam o
golpe e não lhe retiravam o encanto. Sancie pensou que nem a idade
avançada conseguiria curvar aquela lâmina de aço: teria cada vez mais
o ar de um velho leão, mais nada!
Ao vê-la, ele começou a subir, juntou-se a ela a meio da encosta e
segurou nas suas grandes mãos as mãos delicadas e finas da mulher:
- Rezastes bem, minha querida?
- Com toda a minha alma, sabei-lo bem, mas como é que estais
aqui?
- Depois da vossa partida, resolvi-me a ir à comendadoria do irmão
Clement para conversar com ele. Em seguida, pensei em juntar-me a
vós e aqui estou.
- Que dissestes ao irmão Clement?
- Tudo! Enfim, tudo o que ele devia saber, sem me alargar naquilo
que só a nós dois diz respeito. Não foi a primeira vez que falámos
daquele Roncelin, do qual ninguém parece saber o que foi feito, mas
desta vez contei-lhe o episódio de Hattin... a maldição em forma de
profecia. Tinha de lhe explicar a nossa repugnância por ver Olivier entrar
para a Ordem - acrescentou ele num tom de desculpa, que Sancie
refutou de imediato:
- Não podíeis ter feito de outro modo. Que respondeu ele?
- Abanou a cabeça. Durante um longo momento, mergulhado em
meditação, permaneceu em silêncio e eu não ousei interrompê-lo,
inquieto por vê-lo tão sombrio de repente.
Por fim, ele disse: "Portanto, segundo a vossa profecia, será o Rei
Filipe a destruir-nos? O retrato é gritante, de verdadeiro, e eu sei que ele
não gosta de nós.
Por outro lado, também sei que existem estranhos desvios entre
aqueles que estiveram muito tempo no Oriente e que tiveram relações
com os Infiéis, mas posso assegurar-vos que a Ordem é pura na sua
grande maioria e que, apesar de termos os nossos segredos, eles não
ofendem a Deus nem aos Seus Mandamentos sagrados. Eu tenho
confiança na Sua justiça e na Sua Misericórdia para apagar esse
anátema por ser demasiado injusto! Connosco, Olivier poderá atingir o
cume..." Acrescentou que o amava como um filho e que velaria por ele.
Que queríeis que lhe respondesse?
- Nada, meu amigo! Desde a minha infância que conheço Clement
de Salernes, a sua fé e a sua intransigência. Ele é a própria encarnação
do Templo e apesar de, no seu íntimo, dar alguma fé ao que lhe
revelastes, nunca o admitirá. Mas, se acontecer, um dia, o mal
anunciado, talvez ele saiba fazer o que for preciso para limitar o desastre
e preservar, pelo menos, alguns dos seus irmãos! Fizestes bem em falar
com ele, mas eu espero, com toda a minha alma, que a Mãe de Deus
me terá ouvido e que nos poupará...
Renaud pegou na mão da mulher para nela depositar ternamente os
lábios.
- Eu penso - disse ele - que devemos colocar-nos nas mãos de
Deus. Os nossos destinos estão escritos não sei onde, mas rezando e
virando-nos para aqueles que precisam de ajuda, deve ser possível
modificar-lhes o curso. E vós sois a mulher mais generosa do mundo...
Oh, a consolação daquele beijo, daquela voz, daquela presença
forte e terna! Sancie sentiu aligeirar-se o peso que a oprimia. Já era uma
graça extrema aquele amor sem falha que os unia. O melhor abrigo, a
melhor protecção contra as situações difíceis da vida, escavadas no
caminho comum. E Sancie sabia que haveria mais. Que as haveria
sempre. Uma estrada bem lisa não existia.
A primeira falha apresentou-se quando, juntos, regressaram ao seu
castelo de Valcroze: com o joelho em terra e uma grande luz de
esperança no fundo dos olhos, Olivier pediu humildemente aos seus pais
que lhe permitissem professar. Com lágrimas nos olhos e sem emitir a
menor objecção, permitiram-lho.
No dia seguinte, Olivier abandonava Valcroze, sem olhar para trás,
em direcção ao seu destino. Seis meses mais tarde, em Marselha,
embarcava numa galera do Templo destinada a São João de Acra...
Iria ficar na Terra Santa três anos, até ao último combate, tanto mais
fabuloso quanto desesperado. Depois de prodígios de coragem e da
morte do Grão-Mestre Guilherme de Beaujeu, o Templo teve de deixar a
Terra Santa para sempre, deixando nela a recordação fulgurante de uma
longa e grande aventura humana.
Concentraram-se em Chipre. Foi lá quem em 1292 foi eleito Grão-
Mestre um cavaleiro do Franco-Condado chamado Jacques de Molay.
PARTE 1 – "DA PARTE DO REI!..."
I – A CRIPTA POR BAIXO DO CHARCO
Presa na espessura de uma das paredes da capela, a escada
mergulhava no solo. Os seus degraus gastos devido às muitas idas e
vindas curvavam-se ligeiramente sob os pés, mas, iluminada por um
archote fixado na parede por meio de grampos de ferro e desprovida de
humidade, não oferecia a menor dificuldade. O que era normal, já que ia
dar à grande adega onde se amontoavam barricas, salgadeiras, sacos
de sal, ânforas de azeite e outras provisões! O irmão Raul limitou-se a
atravessá-la até chegar a uma enorme vasilha encostada à parede do
fundo. Ali chegado, estendeu a Olivier o archote que tinha acendido no
da escada e inclinou-se para fazer força em qualquer coisa que os seus
companheiros não distinguiram. O gigantesco tonel afastou-se da parede
com uma facilidade extraordinária, descobrindo uma abertura pela qual o
irmão meteu resolutamente:
- Vinde - disse ele - e tende paciência! Temos algum caminho a
percorrer pela frente...
Sem responder mas com um acenar de cabeça aprovador, Olivier e
Hervé seguiram-no. Desceram primeiro alguns degraus que iam dar a
um subterrâneo solidamente abobadado de pedra que mergulhava
numas trevas cujo fundo da chama não permitia aperceber. Por
precaução, o irmão Raul munira os dois cavaleiros de archotes
semelhantes ao seu sem, no entanto, os acender. Caminharam assim
durante um tempo que pareceu interminável aos visitantes, mas que não
excedeu cinco minutos. Coisa estranha para o subsolo de uma casa
cercada por uma floresta cortada por charcos e pântanos, as paredes da
longa galeria não tinham traços de humidade, assim como a cave onde
desembocava depois de ter desenhado um cotovelo.
Aquela estava vazia. Não tinha nada senão um círculo de pedras no
solo e que os dois cavaleiros viram tratar-se, ao aproximarem-se, de um
poço, mas não um poço como os outros. O seu fundo de alvenaria sem
qualquer sinal de água situava-se a cerca de quatro metros e meio de
profundidade. Outra singularidade: dois grampos de ferro estavam
soldados no interior do parapeito a pouca distância da borda.
- É aqui que é preciso descer - disse o irmão Raul.
Sem esperar pelas perguntas dos outros dois, foi a um dos cantos
escuros da cave buscar uma escada de corda e uma lanterna munida de
uma grossa vela, que acendeu e prendeu ao pescoço. Num instante, os
anéis terminais da escada foram enfiados nos grampos de ferro e o
irmão Raul começou a descer sob o olhar vagamente inquieto dos seus
companheiros. Como a escada era um pouco mais comprida do que o
poço, as traves formavam um pequeno monte no fundo.
- Que vai ele fazer lá abaixo? - sussurrou Hervé d'Aulnay, ao que
Olivier respondeu com um ligeiro encolher de ombros, ao mesmo tempo
que o seu amigo dizia, encolhido de surpresa: "Oh! Meu Deus!" De facto,
quando o irmão Raul atingiu o fundo, agarrando-se mais do que
firmemente à sua escada, a alvenaria sob os seus pés oscilou e o
monge desapareceu na obscuridade, não sem ter bloqueado com um
gesto o disco de pedra, espesso como uma mó. Não foi longe e os dois
cavaleiros puderam vê-lo de pé sobre o que devia ser uma escadaria.
- É a vossa vez - gritou ele. - Eu seguro na escada...
- Primeiro tu! - sorriu Hervé, afastando-se para dar lugar a Olivier,
que desceu em alguns segundos e se juntou ao irmão Raul no que era
mesmo uma escadaria que mergulhava no subsolo até tão longe que a
luz pobre da lanterna não conseguia avistar. O mestre da casa templária
esperou que Hervé se lhes juntasse e depois, após lhes ter
recomendado que não saíssem de onde estavam, prosseguiu a sua
descida. Os dois cavaleiros puderam vê-lo, quando chegou ao fundo,
acender três archotes presos à parede em frente, após o que lhes disse:
- Descei e vede!
Quando se juntaram ao monte, abriram a boca de espanto. Os dois
cavaleiros emitiram um "oh!" que era mais um suspiro do que uma
palavra articulada com nitidez. No cumprimento da missão de que os
tinham encarregado, sabiam apenas que deviam levar um objecto
sagrado, mas ignoravam de que natureza. E o que tinham na frente era
fabuloso: pousado numa mesa de pedra esculpida estava uma espécie
de relicário, ou antes, um sarcófago, porque as paredes não eram
translúcidas, mas talhado em madeira que lhes disseram ser de cedro e
inteiramente coberta de ouro, guardado em cada extremidade por
serafins com um triplo par de asas abertas, mas de garras de leão
trabalhadas de maneira sublime. As chamas dos archotes arrancavam
cintilações às pedras preciosas engastadas em redor da arca, assim
como nas asas daqueles anjos da primeira hierarquia. E Olivier soube o
que estava diante dos seus olhos, porque aquela obra, vinda do fundo
dos tempos, pertencia um pouco à sua tradição familiar!
- A Arca da Aliança! - disse ele com a respiração entrecortada. -
Com que então, é aqui que ela repousa!
- Foi aqui, de facto, que o irmão Adam Pellicorne a depositou, nesta
cripta talhada para ela no calcário do subsolo de um charco.
Era mesmo uma cripta, com poderosos pilares erguidos na mais
pura tradição dos construtores romanos. As paredes estavam cobertas
de pinturas de cores violentas representando cenas da Bíblia,
misturadas com flores e animais fantásticos queridos dos iluministas do
século precedente. Em redor da Arca, uns candelabros de ferro forjado
sustinham grossas velas de cera amarela que o monge acendeu, e o
receptáculo da Palavra iluminou-se e pareceu flutuar em cima do seu
suporte como se fosse, subitamente, deixar-se levar por aquela glória de
ouro até à imensidão divina do Céu através da abóbada aberta para ele.
Fascinados, os cavaleiros tinham caído de joelhos e rezavam, Hervé em
voz poderosa, Olivier no silêncio que era a sua segunda natureza.
Alguns enganavam-se. Diziam-no arrogante quando era apenas
severo, calculista quando era apenas reflectido, desdenhoso por causa
da maneira como erguia a sua cabeça loura de traços tão belamente
esculpidos e os seu olhar claro meditativo por onde passava, por vezes e
segundo as circunstâncias, um relâmpago selvagem; mas apesar de o
criticarem em voz baixa, ninguém se atrevia a defrontá-lo abertamente,
porque sabiam que era temível no combate, de físico poderoso a
despeito da sua esbelteza e infatigável quando manejava a espada, a
lança ou a acha de armas. Rigoroso nos seus deveres religiosos mas
sem ostentação, assíduo no estudo, atraído, depois da longa estadia em
Chipre e devido à companhia de um irmão inspirado, pela arte de aliviar
os sofrimentos humanos, juntando-se assim, através do tempo, ao seu
avô Thibaut, o templário expulso, o eremita da Torre esquecida a quem a
floresta revelara todos os seus segredos. Quanto às mulheres,
desconfiava delas e não amava nenhuma para além da sua mãe - mas a
essa amava-a de mais! - opondo aos seus convites o desdém gelado do
seu olhar verde-acinzentado...
Tão diferente dele quanto possível era Hervé d'Aulnay. Da mesma
estatura mas duas vezes mais espesso, com ombros poderosos e coxas
como troncos de árvore, sem um grama de gordura, o mais novo dos
Aulnay de Grandmoulin oferecia à admiração geral um rosto largo de
traços finos sob uma abundância capilar de um belo castanho-claro.
Os olhos eram cor de avelã atravessados por centelhas vivas e
alegres, harmonizando-se com a expressão habitual da figura que era de
uma grande doçura, na qual, todavia, era preferível não confiar em
demasia porque acontecia por vezes ao afável Hervé sofrer de cóleras
homéricas cujo resultado podia ser devastador. Mas amável e bom
companheiro em condições normais, entrava, no momento do combate,
numa espécie de furor sagrado, tal como o conheciam os antigos Nor-
mandos, Reis do mar vindos do Norte gelado, que o transformava numa
espécie de máquina de guerra dotada, no entanto, de inteligência, mas
capaz de esmagar tudo à sua passagem. Apesar de muito diferentes,
aqueles dois homens tinham-se tomado de amizade em Marselha, no
Falcão, o navio do Templo que os conduzia a São João de Acra.
Porque o ideal de ambos era o mesmo e porque, juntos, queriam
viver a vida na ponta de uma espada dedicada inteiramente ao serviço
de Deus, viver e morrer por Ele, fosse no rasto de uma batalha ou na
sombra de uma floresta, numa qualquer rota de peregrinação assinalada
por túmulos, tinham-se reconhecido mutuamente, compreendendo que
falariam sempre a mesma língua, apesar de um vir do Norte e o outro do
Sul. A fraternidade do Templo aproximou-os ainda mais. Naquela época,
os cavaleiros já não comiam da mesma escudela, assim como não
partilhavam o mesmo cavalo como no tempo da santa pobreza que o
selo da Ordem gostava de recordar, mas continuava escrito que os
irmãos deviam andar aos pares. E irmãos eram-no ambos, mais do que
se fossem do mesmo sangue. Para Olivier, filho único e, portanto,
solitário, foi uma extraordinária experiência, uma espécie de revelação
que, à sua maneira muito secreta, guardou no coração.
No seio das casas templárias, quer na Abóbada de Acra, depois na
de limassol em Chipre depois do último combate e agora no Templo de
Paris, onde o irmão Clement de Salernes, eleito visitador de França
apesar de manter a superintendência da Provença, conseguiu que eles
fossem colocados, o par temível constituído pelos dois cavaleiros
tornara-se famoso. Era a eles que eram confiadas as missões delicadas,
as escoltas difíceis, porque, a menos que houvesse um golpe de azar
imparável, era certo que as levavam a bom termo.
Era por isso que naquele dia agreste de Primavera do ano de 1307
estavam os dois naquela casa perdida no coração da floresta do Oriente,
a fim de irem buscar um objecto sagrado cuja natureza ignoravam até ao
momento: era preciso transportá-lo no maior segredo para a Provença,
para um local que lhes seria revelado em devido momento. Mas, para ali
chegarem, o caminho não fora fácil: sem o mapa, minuciosamente
desenhado pelo irmão Clement, não teriam chegado ao seu destino.
Como, de facto, encontrar o caminho naquela maciça floresta encantada
semeada de dezenas de charcos de acesso pantanoso, naquela
infinidade de árvores e arbustos onde apenas as três vias transversais -
o caminho das Visites de Troyes, o da Belle Epine e o de La Fontaine
aux Oiseaux - eram seguros e conhecidos? Infeliz daquele que se metia
ao acaso por um dos múltiplos carreiros que iam dar a lado nenhum,
senão a becos sem saída ou a charcos, sobretudo na época das
grandes chuvas da Primavera e do Outono: nunca sabia se regressava.
No entanto, aquela floresta misteriosa e abundante, a norte da estrada
de Troyes para Bar, recebera os monges de São Bernardo cuja abadia
de Clairvaux lhe era vizinha, um arranjo subtil destinado a afastar os
curiosos e preservar as casas templárias que escondia, já que era o
próprio berço da Ordem. Hughes de Payns, o criador e primeiro Grão-
Mestre partido um dia para a Palestina com oito cavaleiros, tinha nela - e
com ela fazia fronteira - a sua casa familiar, transformada em bailio.
Aquela onde os dois companheiros tinham chegado encontrava-se em
plena floresta: tinha o nome de Casa Florestal do Templo, mas nela
viviam sete monges da caça e da pesca. Sete monges devidamente
tonsurados cujas cogulas negras escondiam corpos forjados nos
trabalhos da floresta e também nos das armas. Sete guardiães
silenciosos dirigidos pelo irmão Raul.
Ao chegarem até ele depois de uma esgotante e lenta cavalgada de
ponto de referência em ponto de referência, Olivier entregara-lhe uma
carta lacrada com sete selos cujo conteúdo ignorava. O irmão Raul
pusera um joelho em terra para a receber e afastara-se para a ler,
confiando os mensageiros a dois dos seus irmãos para os alimentar e
providenciar repouso. Estes não o tinham voltado a ver senão na
pequena capela por ocasião do ofício da noite e foi na manhã seguinte
que ele os conduziu à cripta tão bem escondida...
Os dois cavaleiros rezaram durante muito tempo, petrificados de
respeito, tanto quanto de um receio vago perante aquele objecto sagrado
vindo da noite dos tempos, pelo qual tinham sido construídos templos já
desaparecidos e cuja perda o povo judeu continuava a chorar porque
sempre o considerara como sua propriedade. Como se a palavra de
Deus, a lei de Deus, escrita pela mão invisível de Deus se destinasse
unicamente a um único povo, quando todo o universo esperava socorro
e esperança.
Finalmente, com um último sinal da cruz, Hervé levantou-se e falou.
Por ambos, como fazia muitas vezes, certo de não ser repreendido por
Olivier:
- A honra que nos é concedida - disse ele - ao confiarem-nos este
Relicário insigne, é grande, mas pergunto a mim próprio como vamos
fazer para o tirar desta cripta?
Nem sequer percebo como a puseram aqui: esta cave é tão
fechada!
- Foi construída para a Arca e obturada sobre ela, mas é, podeis
acreditar, possível tirá-la sem demolir seja o que for e vós permitir-me-eis
que guarde disso o segredo. Sabei apenas que amanhã ao nascer do
Sol levar-vos-ei ao local onde podereis tomar conta dela. Recebereis,
então, novas instruções, mas estará tudo pronto e só tereis de partir...
Olivier levantara-se por sua vez e, com o pescoço estendido,
observava a abóbada, particularmente perto de um dos cantos da cave
onde se via um círculo escavado:
- O que é isto? - perguntou ele.
- O último recurso, no caso de um perigo extremo nos impedir, aos
meus irmãos e a mim, de defender o tesouro. Esta cripta, como podeis
ver, foi escavada no calcário, que é impermeável à água, mas se eu
puser em marcha este mecanismo, que não é outra coisa senão um
tampão, a água do charco inundá-la-á.
- Isso quer dizer que estamos por baixo do charco?
- Estamos, de facto.
- Nesse caso, não percebo por que havemos de tirar de um
esconderijo tão perfeito este inestimável tesouro para o levar para a
Provença por caminhos ao acaso, se compreendi bem?
Há muito tempo que Olivier, o reservado, não pronunciava um tal
discurso e Hervé escutou-o, meio a rir meio a sério. Era verdade que o
assunto era capaz de fazer um homem perder a cabeça. Com as mãos
no fundo das mangas, o irmão Raul, com a cabeça inclinada, guardou
um instante de silêncio.
- Acontece - disse ele, por fim - que os tempos vão revoltos.
Augúrios e presságios chegaram até ao irmão Clement e ele sabe que,
por mais densa que seja, a nossa floresta - o berço do Templo! - seria
vasculhada metódica e minuciosamente e que a sua descoberta, caso
não tivéssemos tempo de accionar o mecanismo de alagamento, nos
causaria grande dano. Poderíamos ser acusados de adesão ao
Judaísmo. O que nos seria fatal! O irmão Clement acha que é preciso
agir enquanto ainda é tempo.
Olivier abanou a cabeça, achando-se satisfeito, mas não era o caso
de Hervé e este tomou a palavra:
- Como é possível que seja o irmão Clement, por mais distinto que
seja na hierarquia templária, a tomar tais decisões, sabendo que o Grão-
Mestre, Jacques de Molay, deixou Chipre há quase um ano para vir para
França para se encontrar com o nosso sire Filipe e com Sua Santidade o
Papa Clemente?
-Justamente. O Grão-Mestre reside em Limassol e preocupa-se
pouco com o Templo de França, salvo para obter toda a ajuda possível
visando uma nova cruzada. No reino, o irmão Clement tem mais peso do
que ele. É ele que sabe!
- Mas porquê a Provença, tão longe?
- Não recebi explicações a esse respeito - respondeu o "guardião"
em tom seco. - Unicamente ordens, como vós mesmos e eu executo
essas ordens. Amanhã sabereis, se não o vosso destino exacto, pelo
menos os caminhos a tomar.
Encerrado o assunto, voltaram a subir. Tinha chegado a hora de se
dirigirem à capela onde ia começar um dos numerosos ofícios do dia...
Por cima das suas cabeças, um sino de voz débil tinia e como o irmão
Raul deixasse os seus hóspedes em duas estalas antes de ir vestir o
hábito sacerdotal, Hervé não conseguiu deixar de repetir em voz baixa:
- Mas, enfim, porquê a Provença e não um dos nossos castelos
sobre o mar, ao longo da costa?
- A Provença tem costa, meu amigo, e fortalezas sobre o mar.
Não sabias?
- Sabia vagamente...
- Além disso, pertence ao Rei Carlos II de Nápoles, que também é
duque de Anjou... e Rei titular de Jerusalém, de onde a Arca veio.
Apesar de estar próximo da coroa de França, é preciso ter cuidado com
ele. E agora rezemos!
Todavia, e pela primeira vez, Olivier não encontrou na oração o
apaziguamento das suas dúvidas nem a habitual devoção por Deus. Por
mais virado que estivesse para a espiritualidade, a revelação do que ia
escoltar esmagava-o. Como atravessar a França, a Borgonha, os
Estados do Papa e a Provença - até onde? - com aquela Arca
flanqueada por dois anjos sem despertar a curió- sidade e sobretudo o
fanatismo das gentes que encontrariam? A Arca da Aliança vinha da
Bíblia, não dos Evangelhos e essa circunstância podia criar confusões
dramáticas e movimentos perigosos de multidões. As pessoas quereriam
ver, aproximar-se, talvez, das Tábuas trazidas por Moisés do alto do
Sinai. O cavaleiro media a amplitude de tudo aquilo por si mesmo,
confessando a si próprio que ardia de curiosidade por contemplar e até
por tocar na escrita de Deus! Habituado a dominar-se, Olivier procurou
conforto no pensamento de que os nove templários de São Bernardo
tinham conseguido transportar discretamente o insigne sarcófago e que
mais tarde, Adam Pellicorne, sozinho, por assim dizer, regressara de
Jerusalém com as Tábuas tiradas da Arca pela prudência de um sumo
sacerdote no tempo das guerras romanas. Era tranquilizador. Mau grado
aqueles pensamentos apaziguadores, não conseguiu, naquela noite,
conciliar o sono. E Aulnay também não, porque quando tinham acabado,
finalmente, de adormecer, o sino das Matinas e depois o das Primas
encarregaram-se de os tirar dos catres: deslocados ou não, a Regra da
Ordem aplicava-se inexoravelmente a todos os seus filhos.
Depois da missa da madrugada, o irmão Raul recebeu-os em
particular.
- Está tudo pronto - disse-lhes ele - vou conduzir-vos ao local onde
vos espera a carroça e a sua carga.
A pergunta saiu de imediato da boca de Hervé:
- Tirastes a Arca? Como é que fizestes?
Um sorriso iluminou por breves instantes o rosto fatigado do prior:
- Permiti-me que guarde, pelo menos, esse segredo! E agora,
escutai o que vos vou dizer: a carroça que vos espera, atrelada a dois
cavalos sólidos, transporta supostamente, até Digne, o caixão de um dos
nossos irmãos, Martin de Fenestrel, morto há pouco na nossa
comendadoria de Bonlieu mas originário da Provença. Sua Santidade o
Papa, de quem ele era amigo, ordenou, como favor especial, que ele
pudesse repousar na sua terra natal.
O monge virou-se para a modesta mesa de madeira bruta onde
fazia as contas da casa e pegou num pequeno pergaminho:
- Isto é uma espécie de recibo assinado pelo irmão Etienne, o nosso
comendador, entregando-vos o despojo e os seus instrumentos de
alquimia - o irmão Martin, que era muito idoso, trabalhava há muito
tempo na Grande Obra. Se compreendi bem a sua mensagem, esta
certidão foi pedida por Paris pouco antes da vossa partida. Nós fizemos
a nossa parte, ele e eu, neste importante assunto. Agora, é a vossa vez.
Fareis curtas etapas e só parareis nas nossas casas: há as suficientes
ao longo da vossa viagem - graças a Deus! - para que não tenhais
qualquer problema.
- Quem é que vai conduzir a carroça? - perguntou Olivier.
- O irmão Aniceto, um dos nossos, vestido com um hábito agostinho.
Ele também é da Provença e poderá integrar-se numa das
comendadorias de lá, ou regressar, se bem que - acrescentou ele com
um sorriso um pouco triste - esta casa já não tenha grande razão de
existir. E agora, vinde!
O irmão Raul conduziu-os por um dique que atravessava o charco e
depois por um caminho pelo meio da floresta que contornava uma
pequena colina arborizada até ao cruzamento dos dois caminhos onde
os esperava uma sólida carroça cuidadosamente coberta e um monge
vestido de negro que parecia conversar com o seu par de cavalos de tiro
cinzentos, como que incitando-os a ter paciência. Sorriu ao vê-los chegar
e depois de ter dado uma palmada no focinho dos seus animais subiu
para a boleia, pegou nas rédeas e esperou. Era um homem de aparência
pobre, pequeno, com um rosto esguio e uns olhos castanhos redondos e
vivos, mas os braços e as pernas, descobertos por um instante aquando
da subida para a boleia, mostravam músculos apreciáveis sob a
abundante pilosidade que os cobria.
No interior do veículo estava um enorme caixão, tão alto como um
sarcófago, sem outro ornamento que não uma cruz da mesma madeira e
duas caixas cúbicas sobre cujas tampas estava aposto em vários locais
o selo do Templo:
- O nosso irmão Martin - que Deus tenha na Sua santa guarda! - era
muito corpulento - explicou o irmão Raul com alguma malícia. - Daí as
dimensões do seu último refúgio. Quanto às caixas, encerram os
serafins que nós desmontámos e envolvemos em tela para evitar os
choques, mas supostamente levam um alambique e umas grandes e
frágeis retortas, assim como outros instrumentos. Ninguém se espantará.
- No entanto, não é costume um templário, que de seu não tem
nada para além da sua faca e do seu cinto, embarcar para a última
viagem com este aparato todo - observou Hervé.
- Sem dúvida, mas o aparato, como vós dizeis, pertence ao Templo
e se acompanha o seu utilizador não é para ser enterrado com ele, mas
para ser entregue à comendadoria que vai acolher o despojo. Há lá um
parente dele que se dedica às mesmas pesquisas...
Decididamente, o irmão Raul tinha resposta para tudo. Até tinha o ar
de acreditar no que dizia, pensou Olivier, desejando ao mesmo tempo
que ele tivesse razão. Devia ser duro, para o guardião fiel daquele
fantástico símbolo do poder divino vindo da noite dos tempos, separar-se
do que fora o precioso tesouro de um povo que, por ele, construíra
templos de mármore e ouro e vê-lo abandonar o modesto mas tranquilo
santuário no meio das águas e das árvores onde estava há tanto tempo.
A casa do irmão Raul nunca mais seria o coração sagrado do Templo.
Assim, percebendo nele uma espécie de tristeza, Olivier sentiu-se
comovido. Ao ponto de murmurar no momento do adeus:
- Sinto-me desolado. Perdão...
O velho templário olhou-o no fundo dos olhos.
- Obrigado... mas não precisais de estar. A nossa casa, tão bem
escondida, continuará a ser um refúgio para quem conhecer o caminho.
Se tiverdes necessidade...
- Não o esqueceremos. Nem um, nem outro.
O irmão Aniceto deu um estalo com a língua para fazer andar a
atrelagem. Os cavaleiros colocaram-se, lado-a-lado, atrás dele.
Avançaram por baixo do espesso berço de ramos entrelaçados, como
um tecido, mas cujas folhas, ainda em botão, ainda não ocultavam a luz
do dia. Começava a longa viagem.
Alagados pelo Inverno e pelas chuvas recentes, os caminhos eram
autênticos lamaçais e nem nas antigas estradas romanas, uma rede de
comunicações mais ou menos suportável, a progressão era sempre fácil.
Apenas com os seus cavaleiros, os cavalos não teriam dificuldades, mas
o peso da carroça retardava a marcha e não percorriam mais de cinco
léguas por dia. Desse modo, levaram mais de três semanas para chegar
a Montélimar. De comendadorias em herdades ou granjas pertencentes
à Ordem, as coisas correram pelo melhor. A cada etapa, o acolhimento
templário era sempre semelhante: discreto, cortês e generoso.
Espalhado por todo o país, de Norte a Sul e de Leste a Oeste como uma
imensa teia de aranha, o Templo oferecia aos seus filhos, lançados à
aventura pelos grandes caminhos, a sua rede de possessões como
outras tantas paragens onde o ritual, imutável, dava ao viajante a
impressão de regressar a casa: homens e animais eram "extremamente
bem recebidos", como o exigia a tradição e até tinham a possibilidade de
ter uma escolta para ultrapassar qualquer etapa difícil; mas a sorte
acompanhava a Arca e os seus cavaleiros e nenhum malandrim os
obrigara a forçar a passagem pela força das armas.
Uma noite de Abril, fria apesar do clima mais doce depois de terem
passado Lyon, chegaram a Richerenques...
Uma imponente comendadoria da qual dependiam, desde
Montélimar ao norte, a Orange ao sul, numerosas casas. O seu recinto
quadrangular, reforçado por quatro torres redondas poderosamente
armadas em cada ângulo, fazia dela uma verdadeira cidadela e muito
certamente um dos mais temíveis bastiões templários do vale do
Ródano.
A Baucent, o estandarte preto e branco da Ordem, flutuava nas
quatro torres para dar às redondezas a impressão de um olhar múltiplo
apontado a cada um. O hábito queria que, durante o dia, as portas
estivessem abertas, mas não era o caso em Richerenques, apesar de a
noite ainda vir longe. Na base do fosso profundo, Olivier tirou a trompa
que trazia à cintura, levou-a aos lábios e lançou três apelos nitidamente
destacados. Foi só ao terceiro que surgiu um elmo entre duas seteiras:
- Quem vem lá?
Olivier franziu as sobrancelhas: a cruz vermelha de oito pontas que
se via na sua cota de armas branca fazia daquela pergunta uma injúria:
- É visível, parece-me? - grunhiu ele.
- Sim, sim, mas isso não me diz os vossos nomes e o irmão
comendador exige saber quem recebemos desde que uns falsos
templários se introduziram aqui vergonhosamente.
- Deviam ser um exército para fazer tremer assim os defensores de
uma tal praça-forte? - lançou, em eco, Hervé, que nunca perdia uma
ocasião para dizer de sua justiça.
- Talvez, mas ordens são ordens! Os vossos nomes!
- Acabemos com isto! - continuou o primeiro. Vai dizer ao teu senhor
que o irmão Olivier de Courtenay e o irmão Hervé d'Aulnay,
acompanhados do irmão Aniceto, pedem hospitalidade para a noite que
se aproxima. Escoltamos uma urna!
A cabeça desapareceu e, um momento mais tarde, a ponte levadiça,
feita de enormes pranchas, desceu, rangendo e revelando uma grade de
barras cerradas que se ergueu simultaneamente. O caminho estava
livre, exceptuando três sargentos vestidos com cotas negras que se
mantinham à entrada do pátio. Os guardas avançaram para segurar na
brida dos cavalos - o que era pouco habitual! Olivier, rápido como um
relâmpago, afastou o seu.
- Para trás! - ordenou ele apenas, num tom tal que nenhum dos
homens ousou avançar mais e foi a trote que o cavaleiro atravessou o
pátio até aos alojamentos tradicionais dos cavaleiros, seguido por Hervé
no mesmo ritmo e, mais lentamente, pela carroça.
O interior do vasto pátio reforçava a impressão de força das defesas
exteriores. Em três dos lados alinhavam-se as grandes cavalariças, a
selaria, a forja e o armeiro, e na parte mais baixa o estábulo e as
diferentes actividades dos "irmãos de ofício": padaria, tanoaria,
marcenaria, etc, tudo visivelmente em plena actividade ao serviço do que
parecia ser uma comunidade numerosa: havia alguns sargentos e um
grupo de templários exercitando-se no manejo das armas perto do
armeiro, envoltos na nuvem de poeira erguida pelos cascos das
montadas.
Olivier e Hervé pararam as suas em frente da escadaria que ia dar à
casa propriamente dita, no alto da qual o comendador, reconhecível pelo
bastão e pela autoridade que dele emanava, acabava de aparecer.
Alto e extremamente magro, o seu rosto, de arcadas supraciliares
proeminentes, encimando, no fundo das órbitas profundas, uns olhos de
um cinzento-metálico frio, era sulcado por rugas profundas, dispostas em
redor de uma boca delgada e desdenhosa.
Uma barba rala, de um branco-amarelado, prolongava aquele rosto,
mas o homem devia ser calvo porque nenhum cabelo saía do gorro liso
e branco. O seu traje, o hábito branco com a cruz vermelha estampada,
era o do uniforme, mas o punho e a bainha do gládio suspenso da sua
cintura, onde brilhavam o ouro e os rubis, pareciam de uma riqueza
verdadeiramente desusada num "pobre cavaleiro de Cristo".
A despeito da idade - se não era octogenário não devia andar longe
- mantinha-se direito como um i, numa pose plena de arrogância que
predispunha contra ele apesar de arvorar um sorriso revelando algumas
ausências lastimáveis na sua dentadura. Um sorriso que não atingia o
olhar gelado que ele assestou em Olivier. - Sede bem-vindos em nome
de Cristo, meus irmãos - deixou ele cair. - Dizem-me que sois um
Courtenay. Acontece que conheci alguns ao longo da minha vida, por
isso não ficareis surpreendido se vos perguntar que Courtenay?
- Da Terra Santa, onde nasceram os meus pais - respondeu
secamente Olivier, nada encantado com aquela recepção um tudo nada
inquisitorial. Não era costume, ao receber um visitante, preocuparem-se
com o seu parentesco e, por isso, acrescentou: - Podemos saber, pela
nossa parte, com que nome devemos saudar o senhor desta casa?
Vinda de um simples cavaleiro, a atitude era insolente, mas o
comendador não pareceu ficar chocado:
- Eu sou o irmão Antonin d'Arros - disse ele em tom negligente.
O centro do seu interesse deslocou-se para a carroça e para o seu
conteúdo. Ao mesmo tempo que os visitantes punham pé em terra,
aproximou-se seguido do seu capelão e de dois cavaleiros que se lhe
juntaram. Antonin d'Arros ordenou que a cobertura fosse levantada e
contemplou por um momento a grande urna com ar pensativo, ao
mesmo tempo que Hervé d'Aulnay, sem esperar pelas perguntas que
sentia estarem a chegar, se apressou a apresentar-lhe o pretenso
ocupante. Finalmente, o irmão Antonin observou:
- Esse irmão Martin deve ter sido uma personagem muito
excepcional para lhe terem concedido um favor tão... estranho?
Não é costume um templário ser sepultado no local da sua morte?
Na condição, evidentemente, de esse local ter sido consagrado? O tom
falsamente ingénuo, disfarçando mal uma curiosidade deslocada porque
no Templo não era conveniente fazer tantas perguntas a um hóspede de
passagem, desagradou a Olivier, ao ponto de, fechando-se no seu
silêncio, deixar que o seu companheiro prosseguisse o diálogo.
- Excepcional é mesmo a palavra - disse este com um bom humor
pleno de reverência. - É preciso que assim tenha sido para que Sua
Santidade se tenha dignado autorizar o seu regresso à terra natal com
tudo o que servia para o seu importante trabalho. Era um grande sábio...
- Ainda bem! Nesse caso, vamos levá-lo para a capela para que os
nossos irmãos lhe possam prestar homenagem.
- Infelizmente, isso não é possível. Foi-nos ordenado que não
tirássemos a urna da carroça senão no seu destino, visto que é muito
pesada. E é suposto velá-la de noite, para o que nos revezamos, o irmão
Olivier, o irmão Aniceto e eu.
- Mas porquê?
- Ignoramos - cortou Olivier - e não queremos saber. Limitamo-nos a
obedecer às ordens que nos dão, como deve ser e sem discutir.
O tom era breve, cortante. Antonin d'Arros não insistiu. A carroça foi
conduzida até um guarda-vento próximo da capela e os cavalos à
cavalariça, após o que os viajantes foram convidados a partilhar a
refeição da noite. Era tarde. Os dois cavaleiros apressaram-se a fazer
algumas abluções e tirar o melhor possível a poeira dos seus trajes: as
regras templárias prescreviam que só se devia comer convenientemente
vestido. Em seguida, ao apelo da campainha, um irmão conduziu-os ao
refeitório onde duas mesas conventuais, cobertas por toalhas brancas,
esperavam os convivas. Todos os lugares tinham uma escudela, um
hanap {6} , uma colher à qual se juntaria a faca que todos usavam e um
grande pedaço de pão. Como em todos os conventos, havia um
pequeno púlpito, onde se sentava um irmão, à vez, para ler em voz alta
um texto das Sagradas Escrituras durante a refeição, no decurso da qual
o silêncio era obrigatório.
Os templários alinharam-se, portanto, com as suas túnicas brancas
e esperaram, de pé, que o capelão, colocado à direita do comendador,
que se sentava à cabeceira, dissesse o Benediáte seguido do
PaterNoster. Em seguida, instalaram-se, os recém-chegados perto do
dono da casa - à excepção do irmão Aniceto, que assegurara o primeiro
turno de guarda da carroça - tiraram as facas para cortar o pão de uma
determinada maneira, tal como o fariam com a carne, já que a Regra
chamada "Respeito" prescrevia que todos deixassem para os pobres
uma parte da refeição. O leitor abriu o livro, que era naquele dia os Actos
dos Apóstolos e uns servos trouxeram os grandes pratos de estanho
com as carnes e os legumes, ao mesmo tempo que outros enchiam os
hanaps de vinho, água ou as duas coisas ao mesmo tempo.
Habituados há muito a um ritual que privilegiava a reflexão, os
viajantes encontraram muito naturalmente o seu lugar no seio daquela
comunidade meridional, satisfeitos por poderem escapar, pelo menos
durante algum tempo, às perguntas do seu anfitrião. Também não se
espantaram com uma circunstância que viam pela primeira vez:
acocorado por terra, perto da cadeira do irmão Antonin, um homem
recebia pedaços de pão ou outra comida qualquer que ele lhe atirava
negligentemente como a um cão. Eles sabiam que era uma penitência
por uma falta relativamente leve, como ter-se irritado com um irmão,
mostrado distracção durante a recitação das horas ou outra falta benigna
aos deveres quotidianos. O culpado - um jovem irmão de uns vinte anos
- dava mostras, aliás, de uma humildade muito satisfatória.
Terminada a refeição, Hervé foi substituir Aniceto para que ele
pudesse tomar parte no segundo serviço destinado aos escudeiros e
sargentos, enquanto Olivier e os outros se dirigiam para a capela para as
últimas orações do dia dedicadas a Nossa Senhora, após o que se foram
deitar. Olivier participou naquele ofício com uma espécie de alívio. Não
se sentia à-vontade desde a chegada a Richerenques e tendo uma
devoção muito particular pela Virgem Maria, sentia-se bem ao refugiar-
se num ritual de que gostava. Assim, rezou com mais fervor do que de
costume, tentando libertar-se daquela sensação de mal-estar, pouco
costumeira nele.
Ao juntar a sua voz às daqueles irmãos desconhecidos, o cavaleiro
conseguiu-o porque encontrou a indizível sensação de se fundir num
coro espiritual dedicado inteiramente e da maneira mais pura, como o
dos anjos, à celebração da glória divina: cantando-a, exaltando o tema
musical, pela sua beleza, o fervor das palavras. Foi, portanto,
descontraído e apaziguado que saiu da capela para se juntar aos seus
companheiros, para velar e dormir com eles na palha que tinham pedido
e obtido sem grandes dificuldades.
Mas, no caminho, encontrou um sargento que lhe pediu, com a
maior cortesia, que o seguisse até aos aposentos do comendador. E o
estado de graça esfumou-se. Decididamente, não gostava daquele
homem e ainda sob a influência da cerimónia, reprovou-se a si próprio.
No fim de contas, o irmão Antonin não tinha culpa se o seu aspecto
físico provocava alguma repulsa e foi em passo resignado que seguiu o
mensageiro.
Este conduziu-o a uma das torres, a uma sala onde, numas
prateleiras, se amontoavam rolos de pergaminho e livros mais ou menos
em ordem em redor de uma mesa, também ela cheia, assim como duas
estantes de coro. O comendador estava de pé em frente de uma destas,
sobre a qual estava desenrolado um antifonário {7} com iluminuras
preciosas, onde as notas de música, negras e vermelhas, dançavam em
pautas negras e douradas. O irmão Antonin parecia mergulhado numa
reflexão tão profunda que se passou um longo minuto antes que se
virasse para Olivier. Este emitiu um ligeiro tossicar para assinalar a sua
presença. O que o fez estremecer:
- Desculpai-me, irmão Olivier! Tenho de tomar uma... decisão
importante e pergunto a mim próprio se a vossa chegada não será uma
resposta do Céu às minhas interrogações.
Dissestes-me que íeis a Gréoux para entregar um irmão defunto à
sua terra natal?
- De facto.
Antonin d'Arros voltou a cair no silêncio. Ao mesmo tempo, começou
a andar de um lado para o outro com as mãos metidas nas mangas,
mergulhado em pensamentos que lhe aumentavam as rugas da fronte;
dessa vez, o seu visitante esperou, sem protestar, que ele continuasse o
seu discurso. O que ele fez, enfim, detendo-se diante de Olivier:
- Reparastes, suponho, no penitente que eu alimentava há pouco?
Sabeis o que significa?
- Que ele cometeu uma falta e que está a pagar por isso.
- Sim, mas chegou ao meu conhecimento, nas últimas horas, que
essa falta - que eu não vos vou dizer qual é! - merece uma sanção mais
severa e o capítulo reunido à pressa, antes da refeição, decidiu excluir
Huon de Mana: ele deve sair desta casa. Como não o ignorais, não se
trata de o devolver ao mundo. No fundo, é o que ele deseja... Mas não
pode ser. Assim, deve ir para um convento de regras mais severas do
que as nossas para nele expiar no silêncio, na meditação e nos
trabalhos duros, tomar consciência da sua falta e arrepender-se. Estais a
seguir o meu raciocínio?
Olivier acenou com a cabeça. Então, o irmão Antonin continuou:
- Existe na montanha, não muito longe de Gréoux, um priorado
muito severo de nome São Julião, dos irmãos de Saint Benoít e eu
pensei, como a vossa missão vos leva nessa direcção, que me
pudésseis fazer o favor de levar Huon de Mana até Gréoux com uma
carta minha para o irmão Bertrand de Makucène, que é lá o prior. Ele
encarregar-se-á do resto da viagem. Aceitais?
Olivier levou algum tempo para responder. O cavaleiro não gostava
da ideia de se encarregar de um passageiro, sobretudo indisciplinado e
talvez mal-intencionado, que ainda por cima poderia mostrar-se curioso.
Sabendo que a urna continha algo infinitamente mais precioso do que
um corpo humano e que a menor indiscrição podia ter consequências
dramáticas, sentia-se tentado a recusar. Por outro lado, que argumento
usar sem ferir um homem que não lhe agradava mas que não deixava de
ser um dignitário da Ordem?
Adivinhando, sem dúvida, as suas hesitações, o irmão Antonin
mudou de tom e chegou a sorrir ao dizer:
- Receio ter-vos "eriçado" um pouco. Quando vos perguntei a que
ramo dos Courtenay pertencíeis, não quis que vísseis nisso uma
manifestação de curiosidade vulgar.
Acontece que vivi muitos anos na Abóbada de Acra. Foi no tempo
anterior à primeira cruzada do Rei Luís doravante na glória celeste e foi-
me dado encontrar-me por diversas ocasiões com um dos seus
escudeiros. Chamava-se Renaud de Courtenay, tinha nascido em
Antioquia e creio saber que poucos terão lá nascido. Sire Renaud seria
vosso parente?
Não sem alguma surpresa, Olivier descobriu que o comendador
tinha um certo encanto, inimaginável ao primeiro contacto. A voz também
podia ser calorosa e o cavaleiro baixou a guarda:
- Era meu pai. Conheceste-lo, portanto?
- Conhecer é dizer muito! Nunca fomos íntimos. Sobretudo da minha
parte. Mas pude apreciar a sua coragem, a sua rectidão. Ele continua a
pertencer a este mundo?
- Graças a Deus!
- Sinto-me feliz! A julgar por mim próprio, deve agora um homem
idoso?
- De facto, mas os anos passam por ele - como pela minha mãe,
aliás! - sem o destruir. As suas forças declinaram um pouco, talvez, mas
ainda consegue abater uma árvore sem dificuldade. Apesar de os
cabelos lhe terem embranquecido, continua esbelto e direito como um
jovem...
O amor que sentia pelo seu pai tornava Olivier quase loquaz e o seu
belo rosto ficava um pouco menos severo. Entretanto, o irmão Antonin
continuava a ler, acauteladamente, as páginas do antifonário aberto:
- Tendes irmãos, irmãs?
- Sou filho único... para desgosto dos meus pais!
- E escolhestes o Templo em vez de fundar uma família e continuar
a vossa? Não é uma coisa dolorosa para eles?
- Penso que me amam o suficiente para me quererem ver feliz. Além
disso, desde a minha infância que desejo servir a Deus e combater por
Ele - acrescentou ele, benzendo-se em sinal de respeito.
- Nesse caso, está tudo bem, porque não poderíeis ter escolhido
caminho mais nobre! Se, por acaso, vos for dado rever o vosso pai, dai-
lhe cumprimentos meus. Ele continua em Cour-tenay?
- Não. Possui um domínio nos arredores, gerido por um intendente,
mas vive na Provença, de onde a minha mãe é originária.
- A sério? E é longe daqui?
Feita um tudo nada negligentemente, a pergunta era excessiva.
Olivier fechou-se:
- Bastante, sim... Regressando ao vosso penitente, venerável irmão
- acrescentou ele um pouco abruptamente - gostaria que pensásseis que
nós somos forçados a viajar lentamente e que um prisioneiro - é o que
lhe devemos chamar, não é verdade? - seria para nós uma preocupação
constante, porque seria preciso vigiá-lo permanentemente, quando dois
dos vossos cavaleiros...
- Mas é que, justamente, não posso prescindir de ninguém neste
momento. Eu próprio tenho de ir a Avinhão, o que privará o castelo de
uma parte dos seus defensores.
Ora, nós somos muitas vezes alvo de ataques sorrateiros por parte
de bandos de saqueadores que vivem nas montanhas próximas. Por
outro lado, não tendes nada a temer desse infeliz. A coragem não é a
sua virtude principal e manter-se-á tranquilo.
Olivier compreendeu que o caminho da recusa lhe estava
definitivamente vedado. Acedeu, portanto, pediu licença para se retirar e
foi prevenir os companheiros do que fora forçado a aceitar. Tal como
esperava, Hervé resmungou:
- Saqueadores? Contra um castelo desta importância? Vós
acreditais?
- Infelizmente, tenho de acreditar. Como simples cavaleiros,
devemos obediência aos nossos superiores hierárquicos, salvo se, no
decurso de uma missão, esta estiver em risco.
- Oh, eu sei! Por outras palavras, ainda temos de agradecer porque
nos pediram permissão? Mais valia termos ficado a dormir ao relento,
esta noite!
- Partilho o vosso sentimento, mas quando o vinho já está tirado,
mais vale bebê-lo. Que dizeis vós, sargento?
Aniceto, que nunca dizia nada, contentou-se em encolher os ombros
e disse:
- Onde é que o vamos meter?
- É verdade - disse Hervé. Temos um problema: não podemos
instalá-lo no meio das caixas. Como ignoramos qual foi a falta que ele
cometeu, mas que deve ter sido o roubo, talvez se sinta tentado a ver o
que há lá dentro?
- Suponho que lhe vão dar um cavalo? Se foi destituído da
cavalaria, devia estar numa masmorra, não a comer com os outros...
Porém, quando de madrugada o irmão Antonin lhes levou Huon de
Mana, este tinha os punhos metidos em braceletes de ferro ligados por
uma curta corrente, mas as pernas estavam livres e não se via qualquer
cavalo. Ao ver aquilo, Aniceto fez sinal para que o instalassem junto
dele, na boleia, suficientemente comprida para dois homens.
- Entrego-vos este homem para que o leveis até onde deve ir. Tratai-
o como melhor vos parecer - disse o irmão Antonin com desprezo. - É
um poltrão indigno da piedosa casa onde vai desaparecer a sua
desonra. Se ele fizer menção de se revoltar, não hesiteis em o matar!
- Como havia ele de se revoltar... se é um poltrão? - perguntou
Olivier que, olhando melhor para o condenado, não pôde deixar de sentir
uma vaga piedade, de tal maneira se parecia com um animal
encurralado. Pequeno e de ossatura tão leve que era difícil imaginá-lo
sob o peso do traje de batalha, curvava os ombros magros cobertos por
uma cota negra semelhante aos calções gastos. Mantinha os olhos
obstinadamente baixos, o que não permitia ver a sua cor ou expressão,
mas Courtenay adivinhou, pela contracção do dorso, que ele cerrava os
dentes para não tremer. Devia ter dezassete ou dezoito anos. O seu
rosto estava marcado por arranhões e a cabeça rapada não permitia
discernir a cor dos seus cabelos. O sargento segurou-o por um braço
para o ajudar a subir para a boleia, enquanto o comendador proferia,
com um dedo apontado para ele:
- Vai e não peques mais, se queres obter a remissão das tuas faltas!
Pensa nas consequências e arrepende-te, para que Deus tenha
misericórdia de ti!
A voz e o gesto eram grandiloquentes.
- Quem quer ele impressionar? - sussurrou Hervé enquanto os dois
amigos subiam para as selas das suas montadas. - Se é a nós, não
olhou bem para as nossas caras.
Quanto a este infeliz, só quer uma coisa, afastar-se daqui o mais
depressa possível. E eu compreendo-o!
- Achas que será mais feliz no sítio para onde vai?
-Algo me diz que poderá não ser pior. Já viste alguma comendadoria
onde a regra da cortesia não é aplicada, onde a disciplina é relaxada ao
ponto de cada um parecer fazer o que lhe apetece? Onde o comendador
arvora uma arma forrada a ouro? Pergunto a mim próprio o que terá feito
este pobre rapaz. Não tem grande aparência!
- Não é preciso tê-la para praticar o mal. Um rato pode provocar a
peste.
- - Ficaria muito surpreendido se este fosse capaz. Ele é que parece
doente... ou esfomeado. Se só tinha o que o irmão Antonin lhe atirava
por debaixo da mesa, enquanto a escudela do comendador
transbordava, não admira que esteja pele e osso.
Olivier admitiu interiormente que o seu amigo tinha razão. No
entanto, ainda lhe restava a emoção sentida durante os ofícios. Aqueles
templários de feições patibulares cantavam como anjos. De facto, não
sabia que dizer mais e ficou reconhecido a Hervé por mudar de assunto
quando este perguntou:
- Onde paramos, esta noite?
- Em parte nenhuma. Não há nenhuma comendadoria antes de
Gréoux, nem granjas ou herdades. Pedi, por isso, provisões para o
caminho. A água, essa, não nos fará falta e o tempo está bom. Em
Carpentras, estaremos nos Estados do Papa, onde não teremos
dificuldade em encontrar comida: os peregrinos que vão rezar ao túmulo
da Venerável Ana, mãe de Nossa Senhora, são numerosos. O mesmo
em Apt, onde o bispado nos ajudará. Depois, a seguir a Manosque,
passaremos Durance e estaremos perto do fim...
oficial. Quer dizer, a fortaleza de Gréoux, que devemos contornar
sem lá entrar, porque só à chegada é que devo abrir o bilhete selado do
irmão Clemente.
- Mas vai ser preciso entrarmos lá, visto que levamos um forçado!
- É isso que me contraria! Enfim - acrescentou ele com um suspiro
resignado - esperemos que se mostrem menos curiosos do que em
Richerenques... Aquilo não foi nada natural!
O caminho prosseguiu através das terras coloridas da Provença,
que Olivier reencontrava com uma felicidade duplicada pelo prazer de as
dar a descobrir ao seu irmão de eleição, feliz por constatar que ele
parecia gostar. Na etapa da noite instalaram-se nas margens do Aygues,
numa pequena enseada vestida de salgueiros e olmos, repousante após
a secura da charneca e o sargento Aniceto, que os seus companheiros
tinham descoberto ser um excelente pescador, demonstrou uma vez
mais o seu talento acrescentando algumas trutas, grelhadas em cima de
umas pedras lisas, ao presunto, queijo e pão devidos à generosidade do
irmão Antonin. Tal como o supunha Aulnay, o jovem Huon de Mana
estava esfomeado e devorou a sua parte com tanta avidez que lhe
devolveu um pouco de cor às faces pálidas. Apesar de ter mostrado
reconhecimento por um tratamento que, sem dúvida, não esperava, foi
impossível arrancar-lhe outras palavras que não as de cortesia. O jovem
foi dormir para perto de Olivier, que o tinha prendido ao seu cinto e cujo
tempo de sono partilhou - mas não o de vigília, porque dormiu como uma
pedra - sem ter articulado mais de dez palavras para além do responso
às orações obrigatórias para qualquer templário, num convento ou em
campo aberto.
Durante seis dias viajaram, assim, através de colinas cobertas de
vegetação que mostravam, por vezes, grandes rasgões, a carne da
terra, de cores quentes indo do ocre ao vermelho, charnecas já secas
cortadas por falésias sobre raros cursos de água, uma paisagem
sedutora e rude, quase selvagem, onde apareciam, por vezes, as
poucas casas de uma aldeia alcandorada ou o humilde campanário de
um priorado. Por fim, transpostas sem dificuldade graças a uma velha
ponte romana as águas tumultuosas do Durance, fizeram etapa na outra
margem, a uma pequena légua daquilo a que chamavam o Kerak
templário {8} , cujas formidáveis muralhas se perfilavam contra o céu.
Ninguém ficou surpreendido, já que Courtenay anunciara que antes
de subirem ao castelo parariam para se desembaraçar da poeira e da
sujidade acumuladas ao cabo de tantos dias, a fim de escoltar mais
dignamente o defunto cuja vigilância asseguravam.
Foram tomadas as disposições habituais e Hervé fez o primeiro
turno de guarda.
Foi ao nascer do Sol que se aperceberam do desaparecimento do
prisioneiro. A corda que o ligava ao seu guardião estava cortada e ele
conseguira - só o Diabo sabia como! - afastar-se sem fazer mais barulho
do que um gato e sem o menor tilintar da corrente que lhe ligava os
punhos. Hervé d'Aulnay, que velava perto de uma fogueira acesa entre
algumas pedras, não ouvira nem vira nada porque o fugitivo soubera
passar por Olivier e pelo sargento com tanta ligeireza que não mexera
um único seixo:
- A pequena serpente! - indignou-se Hervé. - Por que nos fez ele
isto? Não o tratamos bem?
- Talvez o convento lhe meta mais medo do que nós pensamos -
disse Aniceto. - E não devemos estar longe...
Olivier contentou-se em acenar com a cabeça. O cavaleiro reflectia.
Passada a primeira surpresa com o amargo vexame sentido por Aulnay,
a única decisão inteligente a tomar era não perseguir Huon de Mana
como a Regra obrigava quando um prisioneiro fugia. Antes de mais
estava a sua missão, à qual o comendador de Richerenques se permitira
acrescentar um corolário desagradável, obrigando-os a desviarem-se - e
por pouco que fosse era muito! - do itinerário traçado pelo irmão
Clement.
- Deixemos a Deus o cuidado de o punir de acordo com os seus
pecados! - concluiu ele. - Com ferros nos braços, não há-de ir longe.
Quanto a nós, a sua fuga remete-nos para o caminho certo, já que nos
foi prescrito que não entrássemos em Gréoux.
- Nesse caso, onde vamos agora? - perguntou Hervé. - Está na hora
de sabermos.
Olivier desagrafou o lorigão de malha que não abandonava desde a
floresta do Oriente, salvo para umas abluções rápidas, e tirou do peito
um bilhete dobrado e selado a vermelho, cuja cera quebrou com os
dedos. A missiva continha apenas algumas palavras cuja leitura lhe fez
arquear as sobrancelhas. Em seguida, estendeu-a a Hervé, que as leu
com estupor: "O destino definitivo é o castelo dos teus pais. O teu pai foi
avisado. Tirai as vos- sas cotas e substitui-as pelas que vos aconselhei a
levar e que pertencem às vossas armas. Ide com Deus." - Valcroze! -
murmurou Olivier. Vamos para Valcroze! Mas porquê? É uma
responsabilidade terrível para os meus pais.
- Lembra-te do que nos disse o irmão Clement ao encarregar-nos
desta missão: o Templo corre grande perigo e deve pôr em lugar seguro
os seus bens mais preciosos.
Ele estava a pensar, sem dúvida, que num castelo secular eles
ficariam mais bem guardados do que nos da Ordem. No entanto, e
apesar de não conhecer a tua casa, pergunto a mim próprio se ele tem
razão: onde pode a Arca ficar mais bem guardada do que naquela cripta
defendida pelos pântanos da floresta do Oriente?
Olivier teve um daqueles raros sorrisos que lhe restituíam a sua
infância, dando um encanto extraordinário ao seu belo rosto meditativo:
- Vê-se bem que não conheces Valcroze! Para além de que a nossa
casa, não pertencendo ao Templo, não pode ser alvo de uma qualquer
inquisição, existe por baixo dela uma rede espantosa de subterrâneos,
dos quais alguns foram feitos pelas águas e outros pelos antigos. Alguns
ligam o castelo a duas capelas das redondezas: Saint-Trophime e Saint-
Thyrse. Outros mergulham na montanha até tão longe que, por
segurança, nunca foram explorados. Um deles, no entanto, vai dar a um
lago subterrâneo que eu só vi uma vez, mas que o irmão Clement
conhece bem. Quando ele era comendador de Trigance, o meu pai e ele
iam lá muitas vezes. A minha mãe até ficou cheia de medo, uma vez,
quando eles estiveram desaparecidos durante cerca de cinquenta
horas...
A medida que ele falava, Hervé ia serenando e a figura afável do
sargento alegrou-se.
- Ainda estamos longe? - perguntou o primeiro.
- Cerca de cinco dias porque os caminhos vão tornar-se mais
difíceis e porque é preciso, mais do que nunca, ter cuidado com os
cavalos... Mas o tempo está bom - acrescentou ele com um olhar para o
céu que envolvia a região com o seu manto de um azul-intenso - e com a
ajuda de Deus não passaremos grandes dificuldades.
-Vamos! Não percamos mais tempo e punhamo-nos a caminho... E,
primeiro, mudemos as nossas túnicas!
Tal como tinha previsto Olivier, cujo regresso à sua terra natal
encantava visivelmente, o percurso através de uma região magnífica
mas rude alternava com planaltos calcários desérticos e caminhos
guarnecidos de pinheiros, subidas e descidas que era preciso muitas
vezes fazer a pé para melhor guiar os cavalos, mas de onde o olhar se
evadia, por vezes, na direcção de distâncias sublimes, para paisagens
de uma beleza de lenda.
Por volta do fim do quinquagésimo dia, meteram pelo atalho que,
das margens da torrente cor de esmeralda subia na direcção do castelo
cuja visão arrancou a Hervé d'Aulnay um assobio de admiração e a
Olivier algo que se parecia com um gemido: na torre de menagem, o
estandarte baronial tinha um fumo negro.
- Meu Deus! - disse ele, benzendo-se precipitadamente. - Aconteceu
uma desgraça! O meu pai...
Era normal que pensasse nele porque era o mais idoso. No entanto,
ao vê-lo aproximar-se, vestido de negro e apoiando a sua alta silhueta
dobrada pela dor a uma bengala, Olivier compreendeu que a dor ia ser
na mesma cruel, senão mais. Largando a brida do seu cavalo, o
cavaleiro correu para o barão, que o abraçou:
- Sim... - murmurou ele - ela morreu! A tua querida mãe deixou-nos
ontem... e eu amava-a mais do que nunca...
Um soluço cortou-lhe a palavra e Olivier, com lágrimas nos olhos,
sentiu-o apertar-se contra si, aumentando assim o peso do seu
desespero. E foi nos braços um do outro que subiram na direcção do
castelo.
II – A DOR

Sancie repousava na grande sala de honra, num leito coberto de


seda verde, a sua cor preferida, e encimado por um dossel com as
armas de Valcroze, de Signes e de Courtenay, estas com a barra da
bastardia. Em redor, o gosto e a fortuna do barão Ademar, seu primeiro
marido, estavam patentes nas paredes cobertas de grandes "tapetes"
napolitanos de seda representando cenas de caça. Na imensa chaminé
apagada, tal como na base de um cadafalso, a piedade das mulheres da
região depositara grandes ramos de giesta em flor, hissopos azuis e
zimbro verde. A dama de Valcroze repousava à luz dourada das velas de
cera branca espetadas em grandes candelabros de bronze colocados a
seus pés. Branca era também a cor do vestido fino, muito simples, quase
monacal, sobre o qual repousavam as espessas tranças ruivas,
ligeiramente raiadas de cabelos prateados e entrançadas com delgadas
fitas douradas. Sobre o véu da cabeça, prolongando o lenço que lhe
encerrava o rosto, um aro de ouro e pérolas, semeado de esmeraldas,
trazido para ela de Constantinopla pelo seu marido, recebia a luz e
devolvia-a, cintilando. Dois guardas armados de bisarmas {9} brilhantes,
velavam à entrada, canalizando sem brutalidade a longa fila daqueles
que vinham prestar homenagem, por vezes de longe, mas eram as
mulheres do castelo, damas-de-companhia ou mesmo servas, vestidas
de negro, que formavam, em redor da defunta, um semicírculo ajoelhado
e em lágrimas cujas vozes desoladas respondiam às litanias de Nossa
Senhora recitadas pelo capelão, que se mantinha de pé. Junto dele,
Honorine, destroçada no seu traje de luto, parecia quase inconsciente.
Afastaram-se com um sussurrar onde se percebia um pouco de
alegria perante o senhor que regressava apoiado ao filho e cujo nome
saiu de todas as bocas, mas ninguém fez menção de se afastar, porque
partilhavam a mesma dor. Era tanto sua como deles, porque apesar de
serem do mesmo sangue, as famílias, muitas vezes, não sentiam a
mesma necessidade de participar para melhor amar.
Afastando-se do pai, Olivier aproximou-se e, durante um instante,
através das lágrimas que lhe enchiam os olhos e que ele afastou com as
costas de uma mão irritada, contemplou a sua mãe, pensando que
estava muito bela. O sono, que nunca mais terminaria, devolvia-lhe uma
espécie de juventude graças à ossatura perfeita do rosto sobre o qual a
pele parecia esticada e se o nariz longo, que sempre fora o seu
desespero, era mais aparente do que nunca, revestia-se de um orgulho
e dignidade admiráveis.
Os lábios cerrados esboçavam a sombra de um sorriso, como se,
por trás das longas pálpebras um pouco enrugadas, os belos olhos,
verdes como a água tumultuosa do Verdon, contemplassem uma
qualquer imagem agradável.
O filho de Sancie deixou-se cair de joelhos e com a fronte apoiada
na seda verde, permitiu que o seu desgosto o submergisse e soluçou
sem vergonha ou reserva; ela era a sua mãe, adorava-a e fizera-a infeliz
ao virar-se para o Templo em vez de casar com uma mulher, de viver
junto dela e de lhe dar os netos que ela tanto desejara...
Renaud, esse, permanecera de pé. Aterrado perante a intensidade
da dor daquele filho cuja reserva tomara muitas vezes por indiferença,
compreendia que tinha de dominar a sua para ajudar a daquele homem
de trinta e cinco anos que, sempre e apesar de tudo, continuava a ser o
seu filho.
Do fundo das lágrimas, Olivier perguntou:
- Como é que isto aconteceu?... Uma doença?
Renaud avançou a mão e colocou-a num dos ombros do filho:
- Não - disse ele com voz doce. - Foi uma queda. Ela soubera que
Siméone, a velha da Cadière que diziam ser feiticeira, estava a morrer
de um mal tão repugnante que ninguém se queria aproximar dela.
Levando um saco de remédios e um frasco de água benta, a tua mãe
aproveitou o facto de eu ter ido a Roug-non para levar lá o padre
Anselmo "na esperança, dizia ela, de salvar a sua alma, levando-lhe um
pouco de apaziguamento, já que não era possível salvar o seu corpo".
- Era mesmo dela! - murmurou Olivier.
- Sim. Ela foi lá com Barbette, que não a deixou ir sozinha, mas
Siméone teve forças para a repelir com injúrias e até com empurrões. As
duas fugiram a correr. Foi então que o pé da tua mãe escorregou e ela
caiu pela encosta abaixo até ao ribeiro, onde um rochedo lhe quebrou os
rins. Trouxeram-na moribunda...
A voz disse a última palavra com dificuldade. Sem se virar, Olivier
perguntou com dureza:
- E a velha? Continua lá?
- Os da aldeia subiram lá acima durante a noite. Mataram-na e
queimaram a cabana...
Com um aceno de cabeça, Olivier levantou-se, mantendo os olhos
fixos na mãe, mas desta vez sem lágrimas. No dia da sua entrada para o
Templo, jurara nunca mais "beijar qualquer mulher, rapariga, mãe ou
irmã", mas todo o seu ser se revoltava ao pensar em separar-se dela
para sempre sem a beijar pela última vez. Deus, que lhe permitira vê-la
uma última vez, não deixaria de lhe perdoar! Debruçando-se, o cavaleiro
depositou os lábios na fronte, na face e nas mãos tão belas que
seguravam no crucifixo pousado no peito. Em seguida, virando-se
bruscamente, dirigiu-se para a capela para ali se deixar cair de bruços e
de braços abertos nas lajes frias. Apenas a oração o podia ajudar a
ultrapassar a tempestade que o devastava...
Um longo momento mais taíde, Hervé encontrou-o no mesmo sítio.
O cavaleiro nunca imaginara que Courtenay pudesse, um dia, inspirar-
lhe piedade: era um sentimento que lhe ia mal e que, aliás, o seu orgulho
intransigente não aceitaria. Era preciso que o golpe tivesse sido muito
duro para o deixar assim prostrado diante do altar de Deus. Mas
invejava-lhe aquela dor, já que a sua mãe morrera ao dá-lo à luz. Uma
dor provocada por horas infinitas de alegria e vida feliz. No entanto, era
preciso acabar com aquilo.
Hervé começou por uma breve oração e depois, inclinando-se para
o comprido corpo estendido, agarrou-o pelos ombros com punhos de
ferro, para o obrigar a levantar-se:
- Chega de choro! - disse ele rudemente. - Tens de te recompor:
temos de fazer!
Olivier mal o ouviu:
- Era minha mãe, Aulnay! Amava-a tanto!
- Porquê o passado? Já não a amas?
- Oh sim! Mais do que nunca...
- Esse amor nunca te abandonará! Tens sorte!
- Talvez. Porque me protegeu das mulheres e continuará a proteger.
Ela será sempre a única que eu amei.
- Estás a esquecer-te de Maria, Nossa Senhora, Rainha do Templo,
a que tu dedicaste a tua vida. Ela saberá suavizar a tua dor e tu deves,
doravante, pensar no teu pai!
- Tens razão! Ele vai ficar só... com a responsabilidade que nós lhe
trazemos... Deus me perdoe! Tinha-me esquecido do que vimos fazer
aqui! Onde está a carroça?
- Numa espécie de granja onde a gente do castelo guarda a lã das
ovelhas. Está quase vazia e bem fechada com uma chave que o barão
Renaud me deu. Naturalmente, não lhe tocaremos senão depois do
funeral. Há muita gente aqui, neste momento...
A noite chegara, uma daquelas noites tão belas de Primavera que,
na Provença, anunciam as outras, intensas do Verão. Os visitantes do
dia regressavam a suas casas.
O castelo fechava-se para a última vigília. Olivier, que tencionava
velar a sua mãe até de manhã, quis obrigar o seu pai a comer qualquer
coisa e a repousar um pouco.
- Tenho a certeza de que não dormis desde o acidente - afirmou ele.
- Estais cansado e não precisais de enfraquecer mais. O dia vai ser
longo, amanhã!
Renaud aceitou partilhar a refeição que tomaram na grande cozinha,
como se regressassem da caça, em frente da lareira imensa onde
assava um cordeiro junto de uma panela bojuda onde cozia lentamente
um guisado de pato, cheirando a ervas da montanha. Era o domínio de
Barbette, a mulher de Maximin, que reinava ali sobre um universo de
potes, tigelas, terrinas, presuntos pendurados das traves por ganchos de
ferro ao lado de tranças de cebolas, de alhos e de pequenos pimentos...
Barbette também fazia reinar o terror no meio do seu pequeno
esquadrão de raparigas ajudantes e aprendizes de cozinheiras, mas não
passava por ali um único miserável, ao alcance da sua caridade, que
não matasse a fome por alguns dias e quando a sua "dama Sancie", que
ela venerava, partia para uma das suas digressões de caridade, durante
a última das quais perdera a vida, Barbette sabia sempre o que ela devia
levar, rivalizando com a sua senhora em generosidade e compaixão. A
sua morte perturbara-a, mas apesar de também já não ser nova,
afastava o desgosto em honra dos convidados cujo estômago e forças
dependiam dela, assim como muito mais gente naquele castelo tão
importante! Assim, as cozinhas continuavam a funcionar como
habitualmente. Ainda mais, porque era preciso preparar a refeição
tradicionalmente oferecida àqueles, grandes ou pequenos, que
apareceriam para o funeral.
Barbette sentiu-se feliz, e também aliviada, por ver Renaud aparecer
para tomar parte na refeição, apesar de a comida não ser grande coisa,
mas pela alegria de o ver sentado com o filho. Uma verdadeira bênção
do Céu, o facto de Olivier ter aparecido a tempo de apoiar o pai! Barbette
sentira uma ponta de esperança quando reparara na sua cota com o
escudo da família e não com a cruz que ela detestava cordialmente
desde que o "pequeno" decidira aderir ao Templo. Era lá possível o filho
único de uma casa tão nobre condená-la à extinção, o pai e a mãe ao
desgosto de se separarem dele para sempre e de nunca segurarem nos
braços os netos, para além de estar condenada a engrossar os imensos
bens e possessões de uma Ordem que, segundo a sua lógica, já não
tinha razão de existir já que tinham regressado todos a França depois de
terem perdido aquilo para que tinham sido criados:
defender e assistir os peregrinos nos caminhos da Terra Santa e
proteger o túmulo do Divino Senhor! Aqueles pensamentos roíam os
pensamentos de Barbette e, por um instante, pensou que a Virgem e os
santos do seu conhecimento, a quem confiara o problema, acabavam de
a atender. Infelizmente, esse sentimento não durou muito!
Quando ele a cumprimentara, ela quisera atirar-se-lhe ao pescoço
para o abraçar como fazia sempre, mas ele repelira-a docemente:
- Sabes muito bem, Barbette, que um templário não tem o direito de
dar um beijo a uma mulher!
- Um templário, sim, eu sei... mas vós já não o sois, visto que já não
trazeis a vossa grande cogula branca e vermelha?
- Oh sim, continuo a ser! Mas por razões, graves, que não te posso
explicar, tive de a tirar para chegar aqui o mais discretamente possível...
- Ah!
A decepção foi à medida da esperança e Barbette não conseguiu
reter a amargura sentida: - O que é que eles têm a mais do que nós,
esses senhores orgulhosos de manto branco, para que tenhais
abandonado por eles a vossa família, as vossas terras e o que a boa
vontade de Deus vos deu?
- Nada, e foi justamente por Deus que eu vos deixei. Para o servir
sob o sol das batalhas!
- Mas já não há batalhas, visto que já não há Terra Santa! Portanto,
para além do dinheiro, ides servir o quê?
- Muitas coisas. Queres um exemplo? As belas igrejas e catedrais
que se constróem um pouco por toda a parte, é o dinheiro do Tempo que
as paga, que paga os mestres-de-obras e os companheiros que
aprendem com eles a arte de bem construir.
- Ides tornar-vos pedreiro, ou carpinteiro? - perguntou ela, irritada.
- Sabes muito bem que não... Mas conheço alguns e admiro a sua
arte.
- Conheceis? De onde?
- Quando era escudeiro de monsenhor d'Artois, o meu pai era amigo
de Pierre de Montreuil quando ele estava a construir a Santa Capela
para o Rei Luís, no seu palácio. Já morreu, mas eu conheço os filhos e
os netos dele.
Mas Barbette ainda não estava pronta para depor as armas:
- Que vos faça bom proveito! Mas por que fostes para Paris? Como
se não houvesse bastantes comendadorias por aqui! Pelo menos,
podíamos ver-vos de vez em quando!
- Fica tranquila, eu volto! Com o irmão Clement... se ele quiser! De
facto, não me sinto muito à-vontade por aquelas bandas. É como se... o
Sol deles não fosse igual ao nosso.
Apesar de ter aceite partilhar a refeição com o seu filho e com o
irmão Hervé, que ele conhecia há muito tempo porque era sobrinho do
seu velho amigo Guilherme d'Aulnay {10} , Renaud recusou retirar-se para
o seu quarto para repousar um pouco enquanto Olivier e o seu
camarada velavam junto do corpo.
- Não me impedirás de passar junto da minha mulher amada a sua
última noite neste mundo! - declarou ele. - A partir de amanhã nunca
mais verei o seu rosto nem lhe tocarei na mão...
Não havia discussão possível. Tudo o que Olivier conseguiu do seu
pai foi que aceitasse a cadeira que ele colocou junto do leito, mas o
cavaleiro recusou as almofadas visto que eram demasiado propícias ao
sono. E Renaud ficou ali, bem direito, encostado ao espaldar, rígido, as
mãos agarradas ao um rosário e a cabeça, cujos cabelos brancos
tornavam mais morena a sua tez de "sarraceno", virada para o perfil
imóvel aureolado pela luz móvel das velas...
Ao amanhecer, o corpo de Sancie foi colocado no ataúde de
carvalho confeccionado para ele e levado, de rosto descoberto, para a
capela onde em breve se juntaria a nobreza da região, ao mesmo tempo
que a sala de honra, entregue aos servos, era preparada para a refeição
fúnebre. Tomaria nela lugar uma assembleia de fantasmas
uniformemente vestidos de negro e cujos rostos Olivier não reteria, nem
sequer o da bela Inês de Barjols, apesar de a sua mãe ter pensado, em
tempos, que ele sentia algo por ela. No fundo de si mesmo, Olivier sabia
que, por instantes, ela o atraíra, que pensara estar apaixonado, mas fora
demasiado fugitivo para que lhe concedesse, sequer, a sombra de uma
mágoa. Deixando o seu marido, Jean d'Esparron, entregue aos
costumes habituais em ocasiões semelhantes, ela aproximou-se para o
observar durante o ofício, impressionada com o traje guerreiro sob o
longo manto branco, que os largos ombros suportavam com tanta
facilidade...
E, se desgosto houvesse, era apenas da sua parte, mais larga
devido às repetidas maternidades, ao passo que o templário se
aureolava, perante os seus olhos entristecidos, com as sublimes cores
das terras longínquas e das grandes aventuras... enquanto o seu marido,
demasiado amigo das grandes patuscadas e dos grandes manjares,
tinha cada vez mais barriga.
No fim da silenciosa refeição, onde não apareceram jograis nem
menestréis, mas que foi longa porque foram numerosos os que quiseram
prestar homenagem à defunta, Olivier pôde avaliar a que ponto a mãe
era respeitada e amada. Com a aproximação da noite e como o tempo
se tivesse encoberto até se tornar ameaçador, aqueles que não
moravam longe partiram à pressa; para os que viviam mais longe, o
barão mandou preparar alojamentos. A beleza extrema da região fazia-
se pagar com perigos equivalentes quando estalavam as tempestades.
Inês e Jean d'Esparron foram destes últimos.
Na verdade, podiam ter regressado, já que o caminho que ia dar ao
seu feudo não era difícil; mas no momento em que o seu marido dava a
ordem de partida, Inês sentiu-se mal e quase desfaleceu. Naquelas
condições, era imperioso transportá-la para os aposentos das damas,
coisa de que Honorine, um pouco recomposta do desgosto a que a
reduzira o choque da morte de Sancie graças a um certo licor produzido
pelos monges de Thoronet, de que abusara um pouco, se encarregou
sem perder um milímetro da sua dignidade.
A sua presença no castelo durante aquela noite, que gostaria de ver
dedicada ao silêncio e ao repouso de que todos tinham grande
necessidade, desagradou a Olivier.
O templário sabia que Esparron não era homem para se deitar com
as galinhas e que fazer-lhe companhia seria, para o seu pai, esgotado
de dor, um acréscimo de fadiga. Tanto mais que os três ou quatro
senhores que também tinham ficado não teriam, então, razão para se
fecharem nos seus quartos. O cavaleiro chamou Esparron à parte:
- Posso pedir-vos - disse-lhe ele - a graça de não forçar o meu pai a
fazer-vos companhia esta noite? A idade e o desgosto abateram-no e
precisa de repousar!
O barão não era mau tipo e, desde que tivesse algum conforto, não
pedia mais nada.
- Deus é testemunha que não quero ser inoportuno! - disse ele com
um sorriso que lhe dividiu em dois o largo rosto. - Acontece que tenho
alguma dificuldade para adormecer quando me deito cedo, o que
aborrece a minha mulher. Com a vossa permissão, ficarei ao pé desta
bela lareira durante mais algum tempo... Além disso gosto de jogar
xadrez! Fazeis-me companhia, já que sei que éreis um bom jogador?
- Obrigado por vos lembrardes, mas um templário não joga! O vosso
cunhado Bérenger de Barrême também fica cá esta noite. Podíeis jogar
juntos.
- Por que não? Mas isso não impede que eu não lamente não jogar
convosco: ele não é muito bom...
Com um gesto de indiferença, Olivier deixou-o para se juntar a
Renaud, que encontrou ocupado a dar ordens a Maximin.
- Vinde! - disse-lhe ele. - Vou levar-vos ao vosso quarto...
- Mas... e os meus hóspedes?
- Essa questão está resolvida. Dizei a Maximin e a Barbette que
velem para que o vinho não lhes falte e vinde descansar. Estais a
precisar muito!
De facto, o velho rosto, ainda tão belo apesar da longa cicatriz que
lhe cortava uma das faces, ostentava o estigma de um cansaço infinito.
- Achas?
- Tenho a certeza! Ficarei convosco durante alguns momentos.
Falaremos dela.
- És um bom filho! - disse Renaud, comovido, segurando no braço
que o filho lhe oferecia. - Estou mesmo a precisar... Este quarto, agora,
parece-me terrivelmente vazio! Ficas comigo durante a noite?
- Não, pai! O irmão Hervé e eu temos as nossas orações. Decidimos
retirar-nos para a granja da lã para nos isolarmos e...
- Vigiar a vossa preciosa carga? É natural, num sítio cheio de gente.
Já há muita gente a fazer perguntas acerca da tua presença pouco
habitual, visto que um templário nunca sai do seu convento senão
obedecendo a ordens superiores e tu vens de Paris!
- Compreendeis sempre tudo às mil maravilhas!
Um momento mais tarde, o cavaleiro juntou-se a Hervé junto do
falso caixão. O sargento Aniceto tinha arranjado palha e cobertores para
os três. Tratava-se de repousarem seriamente porque, na noite seguinte,
teriam muito que fazer e dormiriam pouco: o castelo estaria vazio de
estranhos e a Arca seria levada em segredo para onde ficaria bem
escondida. Aulnay e o sargento deitaram-se, mas Olivier sentiu que,
apesar da fadiga, não conseguiria adormecer e, sem incomodar os
outros, que já roncavam com convicção, saiu para o pátio e dirigiu-se
para a capela.
O templário sabia que nunca a fechavam e que a lamparina velava
dia e noite. A sua intenção era rezar mais um pouco pela mãe. Uma
maneira de se aproximar dela, como fazia sempre quando era pequeno
e tinha alguma mágoa. Era o caso naquela noite, em que a dor era,
talvez, mais encoberta, mas à qual se juntava uma indefinível sensação
de mal-estar, como se a vida, da qual estava longe de se sentir cansado,
se tivesse tornado pesada perante um horizonte que parecia fechar-se.
As palavras de Barbette regressaram-lhe ao espírito. Ela dissera: "Não
haverá mais batalhas, visto que já não há Terra Santa. Que servireis vós,
nesse caso?" Naquela noite, o cavaleiro fazia a si próprio a mesma
pergunta. O Grão-Mestre Jacques de Molay que, sem dúvida, não
regressaria mais a Chipre, não cessava de reclamar uma nova cruzada,
mas ninguém o queria ouvir. Sobretudo o Rei Filipe, preocupado com o
seu reino empobrecido pelas duas cruzadas tão dispendiosas quanto
inúteis de São Luís, entre as quais a última se saldara pela peste em
frente de Tunis, pela sua morte e pela do seu filho João Tristão. O
impassível soberano andava mais preocupado com os incessantes
ataques da rica Flandres a Mons-en-Puelle, mas por quanto tempo? De
qualquer maneira, era um assunto do Rei, não do Templo! A Inglaterra
do rude Eduardo I mantinha-se tranquila e o Templo, que geria a fortuna
dos seus Reis, possuía naquele país grandes bens.
Assim, que restava a quem queria combater por Deus? Pedir para ir
para uma das comendadorias de Aragão, ou de Castela, cujos Reis
tentavam em vão repelir para as terras de África os guerreiros
muçulmanos dos reis almóadas? Não era nada para quem sonhava
reconquistar Jerusalém e seguir os passos do Senhor.
Olivier seguia lentamente pelo pátio quando uma sombra mais
densa se destacou da dos edifícios e se lhe juntou. O templário viu, pelo
grande manto em que vinha envolta, que se tratava de uma mulher e
quis afastar-se, mas ela correu para ele:
- Sire Olivier! Escutai-me um instante, por favor.
Pela voz mais do que pelo rosto que a noite escondia, ele
reconheceu Inês e fechou-se:
- Que fazeis aqui a esta hora, nobre dama? O vosso lugar não é
junto do vosso marido? - perguntou ele e a sua voz dura era cortante
como a lâmina de uma espada.
- Eu sei, mas tenho de vos falar, nem que seja só por um momento.
É que eu pensei que nunca mais vos veria!
- E tínhamos, mesmo, de nos ver?
- Pela vossa parte talvez não, mas eu espero há meses, há anos,
pelo impensável. E esse impensável aconteceu visto que estamos aqui
os dois, frente-a-frente e sem testemunhas!
- Que temos nós a dizer um ao outro que, sem faltar à honra,
precise tanto de um encontro secreto? Pela minha parte, não me parece
que vos queira ouvir... E dou-vos as boas-noites!
- Não! Esperai mais um pouco! Só quero fazer-vos uma pergunta, só
uma...
Os olhos de Olivier possuíam o privilégio de ver bem na escuridão.
O cavaleiro distinguia o rosto da mulher e sobretudo o seu olhar,
demasiado brilhante para que as lágrimas estivessem ausentes.
- Qual?
O templário ouviu-a respirar profundamente e depois perguntar:
- Foi por eu me ter casado que vos tornastes templário?
Era, portanto, aquilo? As mulheres decididamente, eram animais
bem estranhos com a sua mania de chamar tudo a si.
- Onde fostes buscar essa ideia? Eu professei porque o desejava há
muito tempo!
- Ora vamos, Olivier...
- Irmão Olivier, se fazeis favor!
- Não faço, não senhor! E, se já vos esquecestes, eu não! Lembro-
me do torneio de Castellane, onde o vosso olhar me disse outra coisa.
Pude ler nele que me acháveis bela e que me desejáveis. E eu também
vos desejava! Oh, mais do que ninguém, desejei ser vossa mulher! Mas
o meu pai, sem me prevenir, já me tinha destinado a Jean d'Esparron... e
eu nunca soube porquê. Ele não era o mais velho, não era belo nem tão
rico como as suas bravatas deixavam supor.
- Madame, peço-vos. Isso não me interessa!
- Agora já não, talvez, mas ousai dizer, vós, que não tendes o direito
de mentir, que não me amáveis? Ninguém teve dúvidas quando se
soube, mal o meu noivado foi anunciado, que escolhíeis o convento!
- O convento, não! O combate por Deus e pela Terra Santa, sim!
Não é a mesma coisa! E vós não tendes nada a ver com uma decisão
que tinha sido tomada anos antes.
Perdoai-me a franqueza, se vos parece brutal!
O cavaleiro ouviu um riso desagradável, rangente.
- Franqueza? Não acredito. Vós amáveis-me, tal como eu vos
amava!
- Sinto-me desolado, mas não vos amava. Pelo menos, como vós o
entendeis! Vós éreis... e continuais muito bela - apressou-se ele a
corrigir, avaliando o que a frase podia ter de ofensivo para a vaidade de
Inês. - Não nego que não tenhais perturbado o meu corpo. Mas não o
meu coração!
- Sois capaz de o jurar?
- Um templário nunca jura... e nunca mente, como dizíeis há um
momento atrás. Perdoai-me!
Seguiu-se um silêncio, durante o qual Olivier teve a impressão de
que Inês se encolhia sobre si mesma, como para reunir forças antes de
atacar. Finalmente, a dama silvou:
- Nunca, ouvis? Nunca vos perdoarei! Maldito sejais!
Inês girou nos calcanhares para fugir a correr na direcção dos
aposentos senhoriais, com o vento da tempestade que se aproximava a
insuflar-lhe a capa, como se fosse um véu sinistro. No mesmo instante,
um violento trovão estalou, ao mesmo tempo que o céu se iluminava
com o clarão de um relâmpago fulgurante. Quase de imediato, a nuvem
abriu-se por cima do castelo, deixando cair uma verdadeira tromba de
água. Olivier correu a refugiar-se na capela como era sua intenção antes
de se encontrar com Inês e recuperou a paz mal se ajoelhou junto da
laje coberta de flores ainda frescas, sob a qual repousava a mãe. O
templário mergulhou nela o rosto, tal como fazia, na infância, nas pregas
do seu vestido e escutou enquanto o seu coração se acalmava...
Quando a chuva parou, foi dormir...
O castelo esvaziou-se no dia seguinte e Olivier não voltou a ver a
mulher de Jean d'Esparron. Deixando para o pai os deveres mundanos
das despedidas, levou a cabo na capela, com Hervé, as obrigações
religiosas rituais de uma manhã templária e foi com um verdadeiro alívio
que, ao sair, viu, sob um sol regressado, que Valcroze regressava com
serenidade às suas ocupações quotidianas. Chegara a hora de
proporcionar um local de repouso definitivo - pelo menos assim o
supunha - ao que era, talvez, o maior tesouro da humanidade: as
Tábuas da Lei gravadas pelo dedo abrasador de Deus.
Estando todos conscientes da importância que se ia seguir, a
refeição do meio-dia foi silenciosa. Apenas depois de terem dado graças,
o barão Renaud e Maximin pegaram nas candeias de azeite e numa
provisão de archotes, que repartiram entre Olivier e Hervé. O primeiro
não fazia a sua primeira descida às entranhas do castelo, mas Hervé,
esse, sentia-se tremer de impaciência na soleira daquele desconhecido
novo que ia descobrir: tal como o seu amigo, e talvez ainda mais, tinha o
gosto dos enigmas, do segredo das coisas. Sentia-se atraído pelo
mistério. O seu espírito vivo e a sua cultura tinham-lhe permitido o
acesso a certos segredos do Templo, como a sua criptografia especial e
o estranho código de sinais particulares que os sábios da Ordem tinham
concebido para que as gerações futuras pudessem lê-los ao primeiro
olhar. De que espécie, por exemplo, eram os esconderijos desta ou
daquela comendadoria; como aceder-lhes e que poderiam eles
esconder. Um conhecimento que não era proporcionado, bem entendido,
a todos.
Sobretudo àqueles cujas faculdades intelectuais não eram
suficientemente desenvolvidas. Assim, perguntou, enquanto raspava,
literalmente, o solo com o pé:
- O irmão Olivier disse-me, sire barão, que há no vosso castelo e
sob os nossos pés vastos subterrâneos?
- É exacto, mas não é sob os nossos pés que está o mais
interessante.
- Na capela, talvez? Não é raro elas encobrirem criptas...
- Há um subterrâneo, de facto, que vai dar ao que emerge das
cozinhas e que muitos, na aldeia, conhecem. Aqueles que sabem da sua
existência através dos pais, que vinham aqui refugiar-se quando o toque
a rebate do sino anunciava bandos sarracenos. A sua vantagem, nesse
caso, eram as falhas na rocha, que permitiam o arejamento, um lençol
de água subterrâneo e a possibilidade de poderem chegar a duas
capelas dos arredores. Mas o que eu vos vou mostrar é o verdadeiro
segredo do castelo. Nem sequer tu, meu filho, o conheces. Segui-me!
Flanqueado pelos três homens, o barão saiu da sala de honra e
dirigiu-se para a escada de caracol, mas em vez de a descer na direcção
das caves, como os seus companheiros esperavam, começou a subi-la.
Quando chegaram ao andar superior, Renaud seguiu o estreito corredor
escuro para o qual davam as salas de habitação e seguiu-o até ao fim:
uma porta baixa, que ele abriu, revelou uma divisão redonda, bastante
desordenada, parecida ao mesmo tempo com a "livraria" de um mosteiro
e um gabinete de alquimista, porque no meio de livros poeirentos mais
ou menos bem alinhados em pranchas fixadas à parede, havia, em cima
de uma mesa de pedra, uma quantidade sortida de retortas, jarros, potes
e, por baixo do alto capuchão de uma chaminé apagada, um pequeno
fogareiro levemente enferrujado.
- Estamos - disse o barão Renaud - no que era o gabinete de
alquimia do barão Ademar de Valcroze, o primeiro e notá- vel marido da
tua mãe, Olivier, coisa que não ignoras. Aliás, conheces o local.
- Também não ignoro que se entregava a ciências ocultas, que sabia
servir-se das plantas e que tratava muitos males. E a sua reputação -
acrescentou ele com um meio sorriso. - Diziam que, se era tão rico, era
porque sabia transformar os metais vis em ouro. Isso divertia-me e
maravilha-me um pouco quando era criança porque não tinha o direito
de entrar aqui onde o padre Anselmo, o nosso capelão, tentava
redescobrir os segredos do barão Ademar.
- Ele desistiu depressa, se bem que venha aqui muitas vezes
consultar estes livros, pelos quais nunca me senti atraído.
- Perdoai-me, sire Renaud - interveio Hervé, que já mexia nos livros
- mas há aqui obras muito valiosas...
- É bem possível. O interesse real desta sala não reside nestes
velhos livros nem nesta miscelânea científica. Primeiro, devo dizer-vos
que só se chega a esta torre pelo sítio de onde viemos. No rés-do-chão
armazenam-se as frutas e as reservas alimentares. Não há qualquer
comunicação. Mas há isto...
Entrando na chaminé depois de ter pegado numa vassoura que se
encontrava a um canto, afastou as cinzas que cobriam a lareira, levantou
um braço, accionou qualquer coisa que não viram porque o manto o
escondia e o fundo de pedra afastou-se rangendo horrivelmente e
descobrindo um buraco escuro.
- Acendei os archotes! - ordenou ele, no que foi obedecido num
silêncio e com uma rapidez que diziam tudo sobre a emoção e
expectativa dos seus companheiros. Salvo Maximin, que já devia estar
ao corrente. O que provocou uma ligeira reprovação da parte de Olivier:
- Por que razão nunca me mostrastes este esconderijo, pai?
- Eras demasiado jovem. Depois, fizeste-te templário e não
quisemos, a tua mãe e eu, entregar ao Templo o verdadeiro segredo
deste castelo: o segredo do barão Ademar.
- Mas, dir-se-ia que Maximin o conhece?
- Não te sintas ofendido por isso. Ele conheceu-o antes de nós. Na
sua juventude, o velho barão de Valcroze tinha toda a confiança nele.
Tens alguma coisa contra ele?
- Bem pelo contrário, e peço-lhe desculpa se a minha pergunta o
ofendeu.
O sorriso do intendente mostrou-lhe que não havia qualquer
ressentimento. Os archotes ardiam. Renaud pegou num e penetrou na
passagem, um corredor talhado na rocha pela mão do homem que, após
alguns passos, se alargava, transformando-se numa espécie de galeria
natural, escavada, sem dúvida, pelas águas durante milénios. E aquela
galeria era o oposto dos subterrâneos habituais. Em vez de mergulhar
no subsolo, subia. Não durante muito tempo, aliás. Ao cabo de uma
quinzena de toesas {11} desembocava numa gruta cujo ambiente
arrancou um grito de surpresa aos dois templários: continha um
verdadeiro tesouro bastante bizarro: havia objectos e moedas de
diversas épocas: romanos, sarracenos e medievais e eram, muitas
vezes, jóias ou pedras soltas.
- Incrível! - articulou Hervé d'Aulnay. - De onde veio isto tudo?
O barão Renaud explicou:
- Estamos perto do cume que domina o castelo. Os antigos
Romanos ergueram ali um templo a Júpiter, deus das tempestades, do
trovão e dos relâmpagos em que esta região é pródiga. Os sacerdotes
que o serviam encontraram esta caverna e dissimularam nela as suas
riquezas. Vedes além degraus talhados na rocha, que não levam a parte
nenhuma. São o resto da escadaria que ia dar às entranhas do
templo. Foi o barão Ademar que a fechou, assim como fez desaparecer
a entrada cobrindo o que restava
das ruínas com terra e arbustos espinhosos. O acaso permitiu-lhe,
na adolescência, descobrir este esconderijo e a galeria que
desembocava numa pequena falha no flanco da montanha. Foi ele que
construiu a torre de maneira a que ela dissimulasse a entrada do buraco
que ele mesmo escavou. Era um homem de grande saber, de grande
curiosidade e dotado de uma força, senão prodigiosa, pelo menos
largamente superior à média. Fez, portanto, desta sala, o seu tesouro,
aumentado com alguns bens abandonados pelos piratas sarracenos...
que eu não vos sei dizer como os arranjou. Devo à sua memória silêncio
e discrição... apesar de a tua mãe, meu filho, me ter confiado certos
pormenores...
O barão pôs-se, então, a tossicar, como se alguma poeira lhe
tivesse entrado para a garganta, o que evitou quaisquer perguntas.
Quando se acalmou, os seus companheiros compreenderam que mais
valia mudar de assunto e Olivier perguntou:
- O irmão Clement estava ao corrente desta história?
- Claro. Quando a tua mãe deixou Valcroze para se juntar em
Damiette à Rainha Margarida, revelou-lhe os segredos da casa antes de
lhe confiar a gestão dos seus bens.
Foi por isso que, com conhecimento de causa, ele escolheu este
castelo para esconder o que vós trouxestes...
- Sire, meu pai, não estou a compreender! Devemos deixar a Arca
no meio destas riquezas cuja proveniência, se não suspeita, é, pelo
menos...
O cavaleiro procurou uma palavra que não saiu e foi Hervé quem,
com um grande sorriso, se encarregou da conclusão:
- Por que não vos limitais a "suspeita", já que os vossos pais são os
herdeiros desse Ademar que parece ter sido, no seu tempo, muito
engenhoso? Confesso que eu próprio acho o local... muito pouco
respeitável!
- A Arca não vai repousar neste local. Caso o castelo seja atacado
e, a despeito das precauções tomadas, o segredo da chaminé e da
galeria seja descoberto, esta sala, aparentemente sem outra saída, será
suficiente para acalmar a cupidez de quem aqui vier. Ninguém irá
procurar seja o que for depois de ver isto...
- Porquê há mais, além disto?
- Há, e o irmão Clement não o ignora. Vinde ver! Seguido por
Maximin, o barão dirigiu-se para o extremo mais recuado da caverna
deslocando arcas e três ânforas seladas com cera que, aparentemente,
não tinham nada que estar ali. O barão Renaud sopesou uma e sorriu.
- Guardo aqui alguns vinhos e licores preciosos que prefiro não
deixar nas caves, expostos a uma cobiça sempre possível. Bebemos
três em honra da tua investidura como cavaleiro, Olivier. As outras
estavam destinadas ao teu casamento e aos baptizados que se lhe
seguiriam, mas agora...
- Nunca se sabe! - disse o intendente com o afecto que sentia pelo
seu senhor. - Além disso, os cacos das que partimos são bem úteis.
De facto, por trás das grandes ânforas de barro havia um tapete de
detritos que ia dar à parede rochosa que formava, naquele local, uma
saliência. Debruçando-se, Maximin afastou os detritos mais ou menos
uns trinta centímetros, mostrando os estreitos rolos de ferro sobre os
quais repousava o rochedo e os que, ao lado, duplicavam a superfície.
Após o que ele e o barão empurraram o plano de pedra, fazendo-o
deslizar à custa de um grande esforço, mas que valeu a pena: no lado
de lá havia uma larga abertura, na qual, um pouco esbaforido, ele enfiou,
erguendo bem alto o archote em que pegara de novo. Os que o seguiam
descobriram, com uma admiração plena de respeito, uma gruta vasta
como uma catedral, no fundo da qual se via o olho verde de um pequeno
lago alimentado pelas águas caídas de alturas invisíveis. Formações
calcárias compunham formas estranhas de uma grande beleza. Perto do
lago, para onde se descia por uns degraus naturais bastante praticáveis,
a rocha transformava-se numa grande mesa, para a qual Renaud
apontou:
- Eis - disse ele - o local escolhido pelo irmão Clement! Foi o barão
Ademar que a descobriu, mas deve ter servido de refúgio em tempos
recuados... e talvez de santuário.
O barão apontou para umas formas bizarras esculpidas na rocha,
representando cabras de longos cornos e algumas figuras humanas.
- É magnífico! - suspirou Olivier, ao mesmo tempo que Hervé,
passado o primeiro espanto, se interessava pelo sistema de fecho. No
interior, o rochedo tinha um grosso punho de ferro grosseiramente
forjado, fixo com solidez e que, quando a "porta" era aberta, a mantinha
bloqueada contra a muralha. Era o que permitia fechá-la de novo.
- Absolutamente incrível! - conseguiu ele dizer, por fim. - Isto é
trabalho de quem?
- Do barão Ademar, naturalmente! Ele era, já vo-lo disse, um homem
complexo e de uma inteligência capaz de apreender muitas coisas
obscuras para os seres humanos menos versados do que ele nas
ciências mais ou menos ocultas.
- Não há outra saída da sala? - perguntou Hervé.
- Que eu saiba, não, à excepção do escoamento - respondeu
Renaud, mostrando o buraco no rochedo por onde corria a água. - É
impraticável, mas esta é a água que alimenta o poço do castelo.
- Bem, suponho que não podíamos sonhar com um local melhor e,
de qualquer maneira, se o irmão Clement o escolheu, para mim basta.
Com vossa permissão, meu pai, viremos aqui esta noite depositar a
Arca.
Não foi tarefa fácil, apesar do facto de serem quatro homens fortes,
mais o barão, que os guiava e os iluminava. O mais difícil foi içar o
grande sarcófago até ao antigo gabinete de alquimia por causa da
configuração da escadaria, uma bela escada de caracol, entretanto, mas
que obrigou muitas vezes os carregadores a colocarem a arca na
vertical. O barão Renaud, de sobrolho franzido, vigiava a progressão, ao
mesmo tempo que dava uma mão. Por fim, o pesado fardo foi
depositado em frente da chaminé, onde se detiveram para recuperar o
fôlego e limpar o suor. Então, Maximin perguntou, ao acaso:
- Não era possível no pátio, nem no fundo da escada, mas não seria
mais fácil abrir esta caixa e levar o conteúdo isoladamente até à sala
subterrânea? A madeira, só por si, já é bastante pesada.
- Tens razão - aprovou Renaud, que fechava com cuidado a porta da
sala.
Alguns instantes mais tarde, a Arca, livre dos tecidos de linho
destinados a evitar os choques, iluminava o gabinete poeirento com
todos os seus dourados antigos.
Ao vê-la, o barão não conseguiu dissimular a emoção ao pensar,
não apenas no que ela continha, mas também na recordação daquele
que fora em busca do seu conteúdo às entranhas do antigo templo de
Salomão, em Jerusalém, e que o levara para as terras de Champagne: o
irmão Adam Pellicorne, o comendador de Joigny, que tomara conta dele
numa hora de grande perigo e que o levara para Paris, onde começara a
sua vida... Renaud ajoelhou-se diante dela para uma oração fervorosa
de boas-vindas, já que a sua casa seria, doravante, a sua guardiã e
depois beijou a base antes de meter ele próprio, nos anéis previstos para
o efeito nos flancos do relicário, um dos longos paus de cedro com
cabeças douradas de leão nas pontas, que permitiam o seu transporte a
dois homens, como ia ser o caso, ou a quatro quando os querubins nela
eram fixados.
Olivier e Hervé meteram-lhe debaixo os ombros sólidos assim que
passaram a abertura bastante baixa da chaminé, mas depois o caminho
não apresentou mais dificuldades, sendo tudo mais aberto e mais amplo
e alguns minutos mais tarde o fantástico tesouro repousava no tapete
precioso com que Renaud cobrira o antigo altar pagão.
Ainda um pouco mais tarde, os querubins, livres da sua embalagem,
retomaram o seu lugar nos entalhes de metal e Renaud acendeu, num
defumador de bronze, os pedaços de incenso trazidos pelos templários,
ao mesmo tempo que todos, conscientes da solenidade daquele
instante, rezavam em voz contida para que o Senhor Deus guardasse
para sempre as Suas Escrituras, longe da avidez dos homens...
Para que as trevas não engolissem depressa de mais aquela
maravilha, acenderam duas velas de cera branca e depois, em silêncio,
quase na ponta dos pés, os cinco homens retiraram. O rochedo voltou
ao seu lugar, as ânforas e os cacos ao seu e viram-se de novo, um
pouco esgazeados e sem fôlego, em frente da chaminé onde as cinzas,
por sua vez, foram de novo espalhadas, suprimindo qualquer vestígio da
passagem.
Faltavam o falso ataúde e as caixas. Alguns golpes de machado
reduziram-nos a bocados que arderam no local até restarem apenas
cinzas. Misturaram-nas cuidadosamente com as antigas e quando
Renaud voltou a fechar a porta nada subsistia da estranha arca vinda de
tão longe, tanto mais perigosa quanto mais sagrada. Nada senão, para
aqueles que acabavam de cumprir aquela tarefa, uma recordação que
nunca mais se apagaria.
Tinham penado muito para chegar ali e a noite já ia avançada
quando desceram, por fim, às cozinhas onde Barbette, que ficara a rezar
sem saber bem porquê, os esperava com malgas de vinho quente com
ervas, para que se recompusessem.
Beberam em silêncio, em pé em frente da lareira, cada um imerso
nos seus pensamentos. Foi Olivier o primeiro a falar:
- Com a vossa permissão, meu pai, partimos de manhã para darmos
conta da nossa missão.
- Com a carroça? - perguntou Aniceto, cuja perspectiva não
encantava.
- Somente até à comendadoria de Trigance, onde a deixaremos com
os cavalos, tal como disse o irmão Clement. Em troca, dar-te-ão uma
montada... conveniente para um cavaleiro. E regressaremos a Paris...
- Pelo mesmo caminho? - grunhiu Hervé. - A ideia de rever
Richerenques e o seu comendador não me agrada nada.
- Devíamos os dois pedir perdão a Deus por este mau sentimento,
mas... a mim também não. Ficai tranquilo! Em Carpentras mudaremos
de estrada e seguiremos por Montélimar, Vaison e Valréas...
Antes de ir repousar um pouco na granja da lã, Olivier acompanhou
o pai até ao quarto que fora dos dois esposos. O antigo cavaleiro de
Courtenay parecia muito cansado, de repente, e o seu dorso, sempre tão
direito, curvava-se sob um peso que o filho adivinhava sem dificuldade.
De facto, o barão foi sentar-se com uma lassidão que não lhe era
conhecida na poltrona de ébano de espaldar guarnecida de alegres
almofadas verdes onde Sancie gostava tanto de se instalar para fiar ou
bordar com as suas damas-de-companhia. Renaud perguntou:
- Tens mesmo de ir para Paris? É tão longe... e eu tenho tanto medo
de nunca mais te ver!
- É ela que eu sirvo. Tenho de regressar... mesmo que me doa
deixar-vos aqui... sem ela!
- Por que não regressa o irmão Clement para esta região e tu com
ele? Ele já não é o preceptor da Provença?
- Também é visitador, o que faz com que vá a muitos sítios... e eu
com ele! Não percais a coragem, pai! É possível que eu regresse em
breve. E vós ainda tendes muitos anos pela frente.
- Sem a tua mãe amada, duvido! Ela era a minha força e a minha
razão de existir. Não sabes a que ponto a amava! Desde o dia em que a
conheci, creio... apesar de se terem passado muitos anos antes de me
aperceber disso.
- Éreis felizes juntos. Recordar-vos disso ajudar-vos-á a viver...
assim como, talvez, este fardo que acabais de aceitar! Dora- vante, sois
o guardião do maior tesouro do Templo. Graças a vós e aconteça o que
acontecer, está salvo.
- De quê? Sabes? Sabes por que razão trememos - ela mais do que
eu! - quando nos disseste do teu desejo de entrar para o Templo?
- Tínheis preferido ver-me casar e dar-vos descendentes. É normal!
- Não. Teria sido egoísmo e teríamos aceitado a tua escolha com o
coração sereno se não tivéssemos a certeza de que, ao tornares-te
membro da Ordem, corrias para a tua perda! Como o próprio Templo,
aliás!
Olivier franziu o sobrolho, provocando uma ruga profunda na base
do nariz:
- O Templo destruído? Ora vamos, isso é impossível! Ele estende-se
por todo o Ocidente, tem mais cem cavaleiros do que o próprio Rei, mais
riquezas e inumeráveis praças-fortesL.
- Será isso, provavelmente, a causa da sua perda. Escuta o que a
tua mãe e eu nunca te contamos...
E Renaud retratou para o filho o dramático episódio a que tinham
assistido, ele e Sancie, junto dos Cornos de Hattin, como se vira forçado
a entregar a Verdadeira Cruz a Roncelin de Fos, o que este tinha feito
dela, o Anátema lançado pelo eremita e o que se seguira, mas omitindo
o que a dama de Valcroze sofrera às mãos do malik de Alepo. - Chegou
a hora - disse ele, concluindo. - O Templo, não estando já na Terra
Santa, já não tem razão de existir e o Rei que reina em França possui
um olhar imóvel, cujas pálpebras não piscam e que, dizem, nunca se
fecham.
- Por que nunca me contastes essa história terrível?
- Teria mudado a tua decisão?
- Não. Não me arrependo de nada e estou pronto a bater-me até ao
fim pelo manto que uso, porque amo o Templo e até o venero de uma
certa maneira...
Abandonando subitamente o tom meditativo por outro mais
vigoroso, Olivier perguntou:
- Contastes essa história a mais alguém?
- O irmão Clement ouviu-a com o mesmo interesse que tu. Eu
queria... esperava que ele te desencorajasse de seguires uma via tão
perigosa! Mas ele recusou-se, bem entendido, como também recusou
para ele mesmo. Talvez não tenha acreditado?
-Juraria que sim, se eu tivesse o direito de jurar. E pergunto a mim
próprio se não será melhor procurar na vossa confidência a razão
profunda desta missão que nada, pelo menos na aparência, justifica,
senão o desejo de afastar o mais possível a Arca do domínio real!
- Que te disse ele?
- Mais ou menos o que acabo de vos repetir, e também que, para
ele, não existe qualquer dúvida de que Filipe, o Belo, não gosta de nós.
Admitindo, aliás, que possa haver uma razão.
- Ele deu-ta?
- Deu, se bem que não ignoremos muito do que se passa neste
momento. As relações entre o irmão Jacques de Molay, o nosso Grao-
Mestre, e o Rei não são as melhores, se bem que o irmão Jacques tenha
sido padrinho do príncipe Luís, o herdeiro do reino, quando foi investido
como cavaleiro. Para além da cruzada que não cessa de reclamar, o
nosso Grão-Mestre recusou ao Rei, assim como ao Papa, a fusão com
os Hospitalários, fusão que estes desejavam, tanto mais que se
lançaram à conquista da ilha de Rodes para nela se estabelecerem.
- Não é má ideia - arriscou o barão. - Ouvi dizer que em Chipre as
duas ordens rivais tinham tendência para se estorvarem...
Olivier fez um gesto, como que varrendo a observação com um
certo desdém:
- Isso é com eles! O Grão-Mestre dos Hospitalários, Folque de
Villaret, está decididamente virado para o mar e já mandou construir
galeras. Talvez porque, no Ocidente, os bens do Hospital são menos
importantes do que os nossos. Aliás, no Mediterrâneo, nós já temos a
ilha de Maiorca.
Renaud, que observava o seu filho com uma atenção mais aguda,
franziu as sobrancelhas:
- Sabes o que é que o homem vulgar mais reprova no Templo? O
orgulho. Dir-se-ia que tu tens uma boa parte.
- Nós somos todos assim quando se trata da Ordem - respondeu
Olivier que, entretanto, corara. -Amamo-la demasiado para não
sentirmos orgulho. A fusão com os Hospitalários
não agradaria a nenhum de nós.
- Não me cabe a mim julgar o bom fundamento da vossa política,
mas se é isso que separa o vosso Grão-Mestre do Rei, não é grande
coisa...
- Não. Não é tudo. A última vez que o irmão Jacques veio a França,
soube que o tesoureiro de Paris, o irmão Jean du Tour, consentira um
empréstimo importante a Filipe IV Coisa que não tinha o direito de fazer.
Assim, o Rei foi obrigado a devolver o que já lhe tinham adiantado.
- Eu pensava que éreis depositários do tesouro real?
- E somos, mas o Rei precisa muitas vezes, devido à sua política, de
grandes quantias de dinheiro e as contas ainda não foram feitas. Além
disso, está em dívida connosco por lhe termos salvo a vida o ano
passado. Ele joga muitas vezes com a taxa de câmbio das moedas e
quando andava a passear por Paris, como gosta de fazer, levantou-se
um motim contra ele. Talvez tivesse sido morto se o Templo não lhe
tivesse aberto as portas. Ficou connosco dois dias, qual javali acossado
por caçadores.
Eu estava lá e bem o vi...
Renaud levantou-se bruscamente e agarrou no filho pelos ombros:
- Dois dias? Ele ficou convosco dois dias? A vossa casa não tinha
homens de armas?
- Tinha, mas...
- Sois loucos, por minha fé! Permitistes, durante dois dias, que o Rei
avaliasse a vossa força inútil em vez de o levardes para o palácio da Cite
solidamente enquadrado pelas vossas lanças e espadas? Um soberano
tão temível como ele? O vosso orgulho atingiu o auge, suponho, com o
espectáculo da sua humilhação?
- Não foi bom ele ter podido avaliar a força da Ordem? Nós não
dependemos dele. Apenas o Papa...
- Loucos! Verdadeiros loucos! - gemeu Renaud, deixando-se cair na
sua cadeira com a cabeça metida nas mãos. - O irmão Clement tem toda
a razão em esconder o que o Templo possui de mais precioso, porque
estais perdidos! O velho guardião da Verdadeira Cruz também tinha
razão. O Rei nunca vos perdoará!
Um pouco atrapalhado, Olivier ajoelhou-se em frente do seu pai
para lhe afastar as mãos e procurar o seu olhar:
- Pai, suplico-vos, não deis demasiado valor a essa velha profecia!
Não nego que o irmão Clement tenha agido de boa-fé ao tomar certas
precauções, mas Filipe não pode nada contra nós. Nós podemos reunir
rapidamente um exército de setenta mil homens, pelo menos, ao passo
que ele dispõe apenas de um terço...
- Se ele sabe isso, ainda é pior! Peço-te, meu filho, fica aqui com o
teu amigo d'Aulnay. Não sois indispensáveis ao ponto de regressardes
imediatamente. Ficai um pouco para ver no que isto tudo dá!
- Não, meu pai, é impossível e vós sabeis que assim é. Temos de
partir. O irmão Clement deve estar ansioso por saber se nós levamos a
bom porto a nossa missão. Além disso, ele gosta de nós! Se
pressentisse um perigo imediato, creio que nos teria dito para nos
dirigirmos à Casa provincial de Ruou, esperando ali outras ordens, ou
até a sua vinda. Quanto a nós, é uma questão de honra! Que faríeis vós
no meu lugar?
Renaud ergueu para o filho o seu olhar negro, que parecia de
repente ainda mais sombrio, mas onde se viam algumas lágrimas...
- Tens razão - suspirou ele. - Perdoa-me o que te pode parecer um
apelo à deserção! Coisa de que somos incapazes, tanto tu como eu...
Mas já estou velho e só te tenho a ti!
O barão pôs-se de pé com esforço e abraçou Olivier:
- Vai dormir! Orgulho-me de ti...
Durante a manhã do dia seguinte, os cavaleiros e o seu sargento
dispunham-se a partir enquanto, no patamar, o barão Renaud, apoiado
numa bengala, observava os preparativos.
Aniceto tinham retomado o seu lugar na carroça e os dois amigos
acabavam de subir para a sela quando, do alto da torre de entrada, o
vigia anunciou que um grupo de cavaleiros subia na direcção do castelo
e depois, quando os viu melhor:
- Cavaleiros do Templo! - gritou ele.
Imobilizaram-se todos. A grade estava levantada e a porta aberta.
Por um instante, o coração de Renaud bateu ao ritmo da esperança: e
se fosse o irmão Clement? O barão já se preparava para descer ao seu
encontro quando, em formação perfeita, dois a dois, os templários
entraram no pátio. A cabeça seguia o seu chefe, um comendador que
Olivier e Hervé viram chegar com um espanto do qual não estava isenta
a inquietação: era o comendador de Richerenques, Antonin d'Arros. Que
vinha ele fazer a Valcroze?
- Repara quem vem logo a seguir a ele! - disse Hervé. - Não é Huon
de Mana, a pequena serpente?
Olivier não respondeu. O cavaleiro olhava para o pai que, com o
rosto subitamente crispado, voltava a subir os degraus do patamar onde
se imobilizou, branco de cólera porque, para ele, o velho templário que
avançava com o punho na anca e um sorriso mau na boca enrugada não
se chamava Antonin d'Arros...
III – DOIS ÓDIOS

Sem parecer prestar atenção ao castelão quase petrificado no


patamar, o recém-chegado dirigiu o seu cavalo para a carroça e para os
seus guardas.
- Eu sabia que vós tramáveis uma vilania qualquer! - disse ele com
um desprezo que desencadeou nos dois homens o mesmo movimento
perfeitamente síncrono de levar a mão à espada. - Não conseguistes
enganar-me: roubastes bens do Templo em proveito da vossa família!
Estais presos!
Sob o aço do elmo, acendeu-se um fulgor verde nos olhos de
Olivier, que terminou o gesto de desembainhar a espada:
- Nós não roubamos nada e não tendes o direito de nos prender!
Cumprimos uma missão que nos foi confiada pelo irmão Clement de
Salemes, preceptor da Provença e visitador de França...
- ... é vosso amigo! O que explica tudo!
- Não explica nada e vós mentis com a boca toda! Aliás, quem sois
vós para ousardes duvidar dos propósitos de um alto dignitário do
Templo?
- Não sejais imbecil! Sabeis muito bem que sou o irmão Anto-nin
d'Arros, comendador de Richerenques...
- É falso! - troou a voz ainda poderosa do barão Renaud. - Esse
homem é o maior inimigo do Templo porque - ficais a saber! - queimou a
Verdadeira Cruz e, por esse crime, foi amaldiçoado pelo seu guardião.
Não se chama Antonin d'Arros, mas sim Roncelin de Fos!
Uma dupla exclamação saudou aquela afirmação, que o acusado
não negou. Pelo sorriso de lobo que lhe fendeu em dois o rosto
descorado pela velhice, dir-se-ía que até lhe agradou e, virando o seu
cavalo para aquele que o atacava, aproximou-se dele lentamente:
- Ainda tens bons olhos para a idade, Renaud de Courtenay!
- Tu és mais velho do que eu!
- E possível, mas não os sinto! Sim, sou Roncelin de Fos... mestre
Roncelin para uma grande parte da Ordem, onde tenho mais poder do
que tu imaginas. Aqueles que vêm comigo sabem-no e são-me
dedicados. Por isso, quer queiras quer não, vamos apoderar-nos do teu
filho e do seu companheiro...
O longo ranger da grade, que baixava, cortou-lhe a palavra. O
templário virou-se e disse, trocista, com um encolher de ombros:
- Teremos que a levantar de novo! Somos um grupo poderoso e
bem armado, ao passo que vós sois quantos? Um punhado às ordens de
um velho senil...
- Olha bem! - grunhiu Renaud com o braço estendido para o
palanque, onde cada abertura deixava ver um arqueiro pronto a largar a
sua flecha. Dessa vez, Roncelin desatou a rir. A um sinal seu e com uma
rapidez incrível, quatro dos seus homens atiraram-se a Olivier, a
Renaud, a Hervé e deitaram-nos por terra. Num abrir e fechar de olhos,
os dois cavaleiros viram-se ameaçados com um punhal na garganta:
- Atirai! Berrou Olivier, louco de raiva.
- Não atireis! - gritou o seu pai.
As flechas partiram, no entanto, mas as mãos dos arqueiros
tremiam, talvez, porque nenhuma atingiu o alvo.
- Bando de desajeitados! - rugiu Olivier. Renaud estendeu uma mão
ao aproximar-se dele:
- Paz, meu filho! Nós não somos da laia desta gente. Que queres tu,
no fim de contas? - acrescentou ele, virando-se para o seu inimigo.
- Já to disse: prender estes dois e castigá-los como merecem. Mas,
primeiro, quero ver o que contém esta carroça!
Com a tranquila imprudência de quem se sabe mais forte, o
comendador de Richerenques pôs pé em terra e aproximou-se do
veículo que se encontrava no meio do pátio com Pons Aniceto imóvel na
boleia. Alguns dos "cavaleiros" de Roncelin já tinham tomado posse dos
pontos estratégicos, como a forja, ou o armeiro, fazendo entrar à força
no interior os que ali trabalhavam. Alguns outros tiravam a enorme caixa
que substituía o falso ataúde. Abriram-no num abrir e fechar de olhos,
revelando o que ela continha: algumas pedras de cantaria envoltas em
lã. Com um gesto imperioso, o templário traidor levou até elas os dois
prisioneiros:
- Estranho, não? - disse ele em voz suave. - Que fizestes do pobre
irmão de Fenestrel que tanto veneráveis e que não abandonáveis de dia
ou de noite? Creio bem que nunca existiu senão na imaginação brilhante
de Clement de Salernes e que, em vez de um cadáver, devia haver aqui
dentro objectos bem mais preciosos. Aliás, a arca não é a mesma. Que
fizestes dela?
- Que se faz a um ataúde? - ironizou Hervé. - Enterra-se e foi o que
fizemos... em Gréoux, como no-lo disseram.
A bofetada, dada com a manápula, atingiu-lhe a face, fazendo correr
o sangue:
- Mentis! Vós nunca fostes a Gréoux! Vinde aqui, irmão Huon e
explicai a estes dois ladrões o que eles fizeram.
O jovem avançou, tremendo visivelmente e, com os olhos no chão,
sem olhar para ninguém. No entanto, não evitou a escarradela que
Olivier lhe atirou, revoltado de nojo.
- Com que então, não passas de um espião, miserável? E a
comédia que representaste, foi-te ensinada pelo teu senhor?
- Eu... não tinha outra hipótese... eu...
- Chega! - cortou Roncelin. - Evidentemente, ele limitou-se a
obedecer-me! Quando fugiu de vós, foi, primeiro, a Manos-que, onde
encontrou o que eu tinha mandado preparar para ele: uma mula sólida e
uma cogula de monge, graças aos quais pôde seguir-vos de longe,
deixando à sua passagem os sinais que eu lhe tinha ordenado para
deixar. Quanto chegastes aqui, foi ter comigo onde já nos
encontrávamos porque, para vos dizer a verdade, nós pusemo-nos a
caminho dois dias depois de vós.
Era o suficiente dada a lentidão obrigatória da vossa marcha... E
agora, ides dizer-me o que transportáveis e onde o pusestes.
- Trata-se de um segredo que não nos pertence - respondeu Olivier.
- Um segredo do Templo, e nós estamos obrigados à ordem que nos foi
dada pelo irmão Clement e pela breve papal que lhe está junta. Só
prestamos contas a ele e a Sua Santidade Clemente V.
- Uma breve papal? Que dizeis? Que interessante! E pode saber-se
onde está ela?
- No interior da minha cota de armas, numa bolsa. Dizei à vossa
gente que me largue!
- Não é preciso. Revista-o, Huon! Vamos! Depressa! Visivelmente
aterrorizado pelo receio de ser escarrado de novo, o interpelado fez o
que lhe mandavam e não teve qualquer dificuldade em encontrar os
pergaminhos, que estendeu ao comendador. Dessa vez, Olivier
contentou-se com um sorriso de desprezo:
- Um templário, isto?
- Pergunto a mim próprio se haverá algum neste bando alegre -
acrescentou Hervé.
- Se calhar, são os únicos, porque conhecem a Verdade! - disse
Roncelin, sentencioso.
O que provocou a resposta indignada de Renaud:
- A que renega Cristo, odeia o Crucifixo e o pisa aos pés? É a isso
que chamais Verdade? Será esse vosso evangelho diabólico a causa da
vossa perda! Infelizmente, toda a Ordem soçobrará convosco...
- Irritais-me com essa velha história - disse o outro - e eu faria bem
em matar-vos para não vos ouvir falar mais!
- Não te faças rogado, bandido! Mata-me, fazes-me um favor.
Poderei, então, juntar-me à minha doce mulher sem o pecado mortal do
suicídio!
- A dama de Valcroze morreu?... Oh, é verdade - acrescentou ele,
batendo na testa. O irmão Huon disse-me que à chegada dos vossos
dois ladrões, os estandartes, no alto das torres, tinham um fumo negro!
Foi por causa disso, suponho?
- Foi sepultada ontem...
- Por que lhe respondeis, meu pai? - exclamou Olivier, - Em vez
disso, intimai-o a retirar-se com estes pretensos cavaleiros, que estão
em vias de se apoderar do castelo!
De facto, os homens do dito irmão Antonin, aproveitando-se da
surpresa criada, não pela sua chegada, mas pela sua súbita atitude
agressiva, tinham neutralizado sem grande dificuldade os servos e os
poucos soldados que compunham uma defesa que a paz, de que gozava
a região há já alguns anos, mal justificava. Alguns tinham tentado resistir,
mas tinham sido mortos e os seus cadáveres, atirados do alto das
muralhas, jaziam agora no meio do pátio. Atados como estavam, Olivier
e Hervé só podiam assistir, impotentes e com a raiva no coração.
Roncelin de Fos virou-se para eles:
- Que não entregarei... senão quanto tiver o que quero! Portanto, a
vossa mãe acaba de ser sepultada? Na capela que vejo além, suponho?
E, se calhar, aproveitastes para esconder ao mesmo tempo, no mesmo
local, esse misterioso carregamento que eu imagino muito precioso?
- Imaginais mal - fulminou-o Olivier - acreditando-nos tão vis que
fossemos capazes de usar a nossa dor...
- Veremos...
- Deixai repousar a minha mãe, demónio! - gritou Olivier ao vê-lo
dirigir-se para a capela, sem que aquele lhe concedesse a menor das
atenções.
- Acalma-te, peço-te! - sussurrou Hervé, inquieto por ver o seu
amigo, sempre tão calmo, mesmo tão frio, num tal estado de raiva. - Este
homem é um monstro e a tua cólera inútil só lhe dá prazer...
- Deus Todo-Poderoso, escuta-me! - berrou o filho de Sancie. -
Impede este miserável de profanar os nossos túmulos!
- Ele ouviu! - disse, em resposta, uma voz grave...
Na soleira da capela apareceu o padre Anselm, erguendo nas duas
mãos uma grande hóstia, cuja brancura foi exaltada por um raio de sol:
- Vade retro, Satanás!- gritou ele. - Para trás, filho da iniquidade!
Demónio encarnado! Não sujarás este local sagrado com a tua pessoa
infame!
Se bem que de estatura mediana, o bom padre Anselm parecia,
subitamente, imenso, e todos olharam para ele com uma espécie de
terror sagrado, como se ele se tivesse, subitamente revés- tido de uma
majestade divina. Passou, por aqueles que estavam no pátio, um
murmúrio e Roncelin de Fos ouviu-o. O comendador soube, pela
intensidade, que tinham sido os seus homens a emiti-lo e que, assim,
mais valia não ir demasiado longe. E permanecer prudente.
O templário traidor recuou, fazendo uma vaga careta parecida com
um sorriso:
- Quem fala em sujar, padre? Eu só ia visitar a capela...
- Não creio que seja de grande interesse para ti! Em nome do
Senhor, cujo corpo tenho aqui, ficas a saber que ela abriga apenas os
despojos mortais dos senhores destes lugares! E agora liberta os que
deténs com desprezo por todas as leis! Eles, aqui, estão em sua casa...
- Esperai mais um pouco. Preciso de falar com eles. Roncelin
inclinou-se profundamente e reuniu-se aos seus homens aos quais, com
um gesto, ordenou que os levasse para o interior do castelo. Ele próprio
quis segurar no barão pelo braço, mas este afastou-se com nojo...
- Que mais queres?
- Sempre a mesma coisa: saber onde está o conteúdo da carroça.
Além disso... acontece que tenho fome e os meus cavaleiros também.
Vamos ver o que vale a tua hospitalidade...
Levaram os prisioneiros para a grande sala, onde o "irmão Antonin"
se instalou confortavelmente sob o seu olhar indignado. Indignado e
incrédulo perante os rostos fechados e ameaçadores que não podiam
pertencer a templários, a irmãos, por outra palavra, e apesar de Olivier já
não ignorar nada acerca daquele que o seu pai, não sem razão,
considerava como seu inimigo mortal, o cavaleiro não conseguia
compreender por que magia satânica aquele homem que a idade devia
ter virado para Deus e tornado razoável, conseguira afastar a totalidade
da sua comendadoria daquilo que era ponto de honra do Templo: as
regras puras da cavalaria, a extrema cortesia, a protecção dos fracos e a
preocupação constante de agradar a Deus, ao Seu Divino Filho e a
Nossa Senhora. Aqueles homens tinham feições de bandidos,
comportavam-se como tal e ver o grande manto branco com a cruz
vermelha estampada sobre tais ombros dava-lhe vontade de vomitar...
O próprio castelo manifestava, à sua maneira, a sua reprovação.
Desse modo, foi impossível pôr a mão em Barbette nem em nenhum dos
da cozinha, servas ou moços de cozinha. Tinham desaparecido todos.
Os fogões estavam apagados, Só restava a velha Honorine. Sentada por
baixo da chaminé cujas cinzas maculavam a bainha do seu vestido
preto, com um rosário entre os dedos deformados pelo reumatismo,
rezava e chorava em silêncio com o olhar no vazio. Tiraram-na do sítio
onde estava e puseram-na na rua.
- Elas devem ter tido medo e esconderam-se num sítio qualquer -
cochichou Maximin cujo olhar, aparecendo por baixo das pálpebras, via
as coisas sem ter o ar de estar a olhar. - Não é costume homens de
Deus, cavaleiros, conduzirem-se assim...
- Quem és tu? - perguntou Roncelin.
- O intendente - disse Renaud - Bem, ele deve saber onde está
tudo... Presunto, pão e queijo servem. Traz essas coisas para aqui e dá
as chaves da adega ao irmão Gontrand! Ele sabe escolher bom vinho!
Ao mesmo tempo, verá se não há nada de especial nas caves!
Era preciso obedecer. Os "templários" alambazaram-se à vez sob o
olhar do chefe instalado na cadeira senhorial no topo da longa mesa
preparada à pressa. Sentado à parte, perto da chaminé apagada, o
barão evitava olhar para o seu filho e os seus dois companheiros, que
tinham amarrado a uns pilares. Em determinado momento, Roncelin
ordenou ao "irmão Huon" que lhes desse comida e bebida, mas Olivier
atirou-a ao chão:
- Não te mexas! Nós não queremos nada! Não partilhamos o pão e
o sal com malandrins!
- Estais enganado, sire Olivier! Ides precisar de forças, vós e os
vossos companheiros...
- Deus providenciará!
- Como queirais! Eh lá, intendente! Estou a sentir um pouco de frio e
esta chaminé devia estar acesa! Faz-nos um bom fogo para aquecer
toda a gente!
- Eis uma coisa que não pressagia nada de bom - disse Hervé
entredentes. - Esta grande necessidade de calor não me diz nada de
bom!
- Nem a mim, mas com a ajuda de Deus tudo é possível...
Entretanto, a voz de Renaud erguia-se, mordaz, tão carregada de ódio
que Olivier quase não a reconheceu:
- Transformaste-te num verdadeiro friorento, Roncelin de Fos!
Queres habituar-te, sem dúvida, ao fogo do inferno que te espera, mas
que não esperará muito mais tempo!
Não passas de um velho caduco e está próximo o dia do
Julgamento que te condenará!
- Não tenhas tanta certeza! O Senhor tratará comigo de potência
para potência. E tu não sabes nada da que eu adquiri ao longo dos
anos...
- Não, nem quero saber. Isso ajuda-te a dormir à noite? Não ouves a
voz terrível que te amaldiçoou?
Branco como a cal, Roncelin empurrou para trás a cadeira, que caiu,
e quase se atirou a Renaud, mas parou e encolheu os ombros:
- Atem-no também a ele! - ordenou e alguns segundos mais tarde o
barão era solidamente atado à sua cátedra.
Renaud não opôs qualquer resistência. De que serviria? A decisão
do seu inimigo estava tomada e os homens do castelo nas mãos
daquela gente de quem, devido às relações sempre corteses mantidas
com as suas casas dos arredores, não tinham desconfiado. O barão
fixava o fogo que ardia na chaminé, perguntando a si próprio qual dos
cativos teria a primazia. Ele próprio para obrigar Olivier a falar, ou Olivier
para obrigar o pai a revelar o esconderijo? E o ancião rezou
intensamente para que o supliciassem a ele. Estava tão perto do fim -
que desejava, aliás! - e Olivier, na força da vida, devia ter a alma
suficientemente temperada para conseguir vê-lo sofrer. Mas, se
torturassem Olivier, Renaud temia não ter forças para assistir, sem
confessar, ao seu suplício. Ele era seu filho, filho de Sancie, carne da
carne de ambos e tudo o que lhe restava. Então, rezou com fervor para
que Deus lhe concedesse a graça de o chamar à Sua presença antes
que a provação começasse...
Curiosamente, Roncelin não parecia apressado. Meio deitado na
poltrona senhorial, virara-a para o fogo e aquecia-se com os olhos meio
fechados, como um gato satisfeito.
Estava sozinho, já que os seus homens tinham recebido a missão
de vasculhar o castelo do rés-do-chão ao telhado. Era possível ouvir o
eco da algazarra e Renaud sentiu a dor a invadi-lo de novo. Não que
tivesse grande apego aos bens terrestres, mas Sancie amava aquele
castelo. Providenciara-lhe tantos cuidados, tanto amor, até, para que os
seus se sentissem bem nele! Que restaria depois da passagem daqueles
vândalos? As lágrimas deslizaram-lhe, então, pelas faces, porque tinha a
impressão de que Sancie morria uma segunda vez...
Aquilo durou muito tempo. Até ao regresso dos pesquisadores
visivelmente de mãos a abanar.
- Não encontramos nada - disse aquele que tinha o ar de ser o
braço direito de Roncelin, um tal irmão Didier - mas é preciso não perder
a esperança: descobrimos a entrada para uns grandes subterrâneos,
que os meus homens já estão a explorar...
- Oh, eu não perco a esperança! Continuai as buscas, mas não por
muito mais tempo. É inútil cansar os nossos irmãos mais do que o
necessário, quando temos aqui guias que eu não desespero de
convencer a ajudar-nos.
- Devíeis vir vós mesmo ver, meu irmão! A vossa experiência...
- Seria preciosa, eu sei, mas também sei que a humidade
subterrânea é nefasta para as minhas articulações, que eu devo
preservar para que possam servir o meu espírito o mais possível para
maior glória da nossa causa!
- Nesse caso, por que não dais a ordem de fazer falar aqueles?
Ganharíamos tempo e não cansaríamos os nossos irmãos. Os
subterrâneos parecem bastante complexos e estendem-se por uma área
muito grande!
- Não há pressa! Temos tempo e algo me diz que aqueles, como vós
dizeis, ainda não estão prontos para se mostrar conciliadores!
- E quando se mostrarão?
Olivier resistiu à tentação de lançar um "Nunca!" tão provocador
quanto em vão, até prejudicial, porque poderia excitar o furor daquela
gente e levá-los a uma decisão rápida e extrema. O templário conteve-
se, portanto, esperando pelo que iria dizer aquele "mestre Roncelin",
cuja autoridade não sabia de onde vinha e que, para ele, não passava
de um malfeitor.
- Talvez amanhã! Parece-me que uma boa noite de reflexão é capaz
de os levar a tornarem-se sensatos.
- Não nos põem a assar? - cochichou Hervé. - Que grandeza de
alma!
- Não lhe chamaria isso... - respondeu Olivier, preocupado com o pai
cuja respiração parecia sofrer com as cordas demasiado apertadas.
O que se seguiu foi penoso e convenceu-o de que aquela gente não
era composta por verdadeiros templários porque, chegada a noite,
recomeçaram a empanturrar-se. Dessa vez sem oferecer o que quer que
fosse aos prisioneiros, mas, sobretudo, sem dizerem nenhuma das
orações a que a Regra obrigava os irmãos da Ordem. Não foram à
capela - na qual, aliás, o padre Anselm se barricara para impedir
qualquer tentativa de sacrilégio - não rezaram nenhum dos numerosos
PaterNoster obrigatórios, nenhuma pequena Avé-Maria e nem sequer o
Benediáte antes de se lançarem sobre a comida. Dessa vez, Olivier não
se conteve:
- Vergonha para vós, que esqueceis o essencial do Respeito!
Pensais que, esquecendo Deus, Ele também se esquece?
- Nós damos a Deus o que devemos dar-Lhe - disse Roncelin em
tom altivo - e não vos cabe a vós repreender-nos. Pensai na sorte que
vos espera. Estais prontos a falar?
- Não temos nada a dizer!
- Nesse caso, fazei como eu. Tende paciência! Quando estiverdes
dispostos a revelar o local onde escondestes a arca, soltar-vos-emos...
- Para fazerdes o quê? - perguntou Hervé. - Se vos dermos o que
quereis, matar-nos-eis a seguir, para que o Grão-Mestre nunca venha a
saber da vossa empreitada.
Pagá-lo-íeis caro, não é verdade?
Roncelin não respondeu. O templário terminou a sua refeição,
ordenou os turnos de guarda, mandou acrescentar uns cavacos à lareira
e sem se preocupar mais com os prisioneiros instalou-se tão
comodamente quanto possível na sua cátedra, na intenção visível de
dormir um pouco.
A voz de Olivier elevou-se de novo:
- Rezemos, meus irmãos!
E começou o ofício das Completas, que é a última das horas
canónicas e que se canta à noite, antes do repouso. Apoiada pelas dos
seus companheiros, a sua voz elevou-se, ampla, poderosa e quente,
plena, sentia-se, das graves sonoridades que se bastavam a si mesmas,
não necessitando da assistência de nenhum instrumento de música.
Renaud escutou-o com lágrimas nos olhos, mas Roncelin não achou
graça nenhuma:
- Calai-vos, se não quereis que vos amordacem! - gritou ele. - Quero
descansar!
Olivier obedeceu, mas para começar em voz baixa, rendido por
Hervé e depois pelo sargento, uma longa série de orações, criando
assim uma espécie de zumbido que, aos poucos, adormeceu o seu
inimigo. Os roncos deste tomaram uma amplitude que permitiu às suas
vítimas conversar sem o acordar:
- Não consigo desatar os nós - disse Hervé. - Estão muito apertados
e, se me mexo, ainda os aperto mais...
- Comigo é a mesma coisa - disse o sargento Aniceto. - O que me
dá mais raiva é que tenho uma faca na minha túnica, mas não consigo lá
chegar.
- O que eu gostaria de saber - disse por sua vez Olivier - é o que
fizeram eles a Maximin! Não o vimos esta noite e eles serviram-se
sozinhos.
Apenas o barão se mantinha calado, mas estava demasiado
afastado dos outros três e teria sido preciso falar mais alto. Muito direito
na cadeira onde estava amarrado, parecia absorto, o que inquietou
Olivier: no decurso daquela noite interminável em que sofreram de fome,
de sede, de cansaço e da mordedura das cordas, pôde ver descair,
pouco a pouco, a cabeça do ancião. Mas quando o galo lançou o seu
grito no pátio, anunciando um dia que ia ser mais do que doloroso, teve
esperança de que a morte já tivesse passado, evitando-lhe assim
horríveis sofrimentos físicos e morais. Infelizmente, quando o seu
carrasco, que tivera, talvez, o mesmo pensamento, o abanou, Renaud
ergueu a cabeça e não voltou a baixá-la... Nada lhe seria poupado,
portanto.
À sua volta, o castelo acordou, mas não como habitualmente. Nada
de sons provindos da forja, nada de gritos por parte dos servos e nem
sequer por parte dos animais - mas o tilintar das armas e o ranger da
roldana do poço, de onde alguém tirava água. Vozes de homens,
também, respondendo ao seu senhor das diversas partes do castelo
que, do patamar, os interrogava com voz forte. O Sol nascia. Reavivaram
o fogo da Grande Sala. Trouxeram mais comida. Os homens comeram,
beberam e depois Roncelin aproximou-se dos seus prisioneiros, que
observou um a um com o seu sorriso mau:
- Sempre decididos a guardar silêncio, meus bons irmãos?
- Sempre! - grunhiu Hervé. - E que o Diabo vos estripe!
- Não é a sua primeira maldição - observou Olivier, encolhendo os
ombros. - Não é coisa que o aflija.
- Um velho louco e um jovem presunçoso! Vejamos por onde iremos
começar... Primeiro a idade, talvez? Dir-se-ia, meu caro barão, que
tendes aqui um filho afectuoso?
Seria interessante ver até que ponto ele suportará ver-vos sofrer!
Olivier estremeceu ao ver os preparativos a que se entregavam os
esbirros de Roncelin. Da cozinha trouxeram o grelhador, que colocaram
na lareira em cima das brasas para assar os pequenos pedaços de
carne. O horror que aquilo deixava prever submergiu Olivier. O cavaleiro
retorceu-se, tentando libertar-se das cordas que lhe prendiam os
músculos, berrando a plenos pulmões:
- Não ides fazer isso? Espécie de...
- Ora vamos, ora vamos! Onde está a cortesia tão cara ao Templo e
de que vós tanto gostais, meu irmão? Mas é claro que sim! A menos que
faleis, vou assar o vosso pai debaixo dos vossos olhos depois de o ter
untado com o vosso melhor azeite...
- Não o oiças, meu filho! Fecha os ouvidos e os olhos! Eu estou
velho e o meu coração não suportará o sofrimento durante muito
tempo... Apesar de o caminho ser terrível, sinto-me feliz por ir ter com a
tua mãe!
- Chega de discursos! Vamos embora! Vocês aí, peguem no barão e
dispam-no!
Mas ninguém se mexeu. Talvez por causa da tarefa ignóbil que era
exigida aos homens presentes - dos quais um apenas, aliás, o irmão
Didier, era cavaleiro, pertencendo o resto à categoria dos que serviam a
Ordem, um sargento e dois turcopoles, morenos e impassíveis. Uma
breve esperança acendeu-se em Olivier. Foi a Didier que se dirigiu:
- Vós, que trazeis essa cruz vermelha que eu também uso, ides
aceitar desonrar-vos diante de Deus que vos vê e a Quem prestareis
contas, um dia?
Didier hesitava, desviava o olhar, mas foi apenas por um instante:
- Saí, meu irmão, se não vos sentis disposto. E ide juntar-vos aos
outros - grunhiu Roncelin. Os que estão aqui chegam.
O templário saiu a correr. Desataram Renaud e tiraram-lhe a roupa
antes de o atarem de novo, enquanto um dos negros atiçava o fogo e um
segundo se aproximava com um frasco de azeite. O estômago vazio de
Olivier retorceu-se com uma náusea penosa que o cavaleiro dominou
antes de gritar, quase fazendo estoirar os pulmões e as cordas vocais:
- Socorro, Deus Todo-Poderoso! Socorro! Respondeu-lhe o fragor
das armas, os relinchos dos cavalos e alguns gritos. Roncelin lançou-se
para a porta e levou com ela em pleno rosto, o que o atirou por terra, ao
mesmo tempo que um grande templário, totalmente armado, de elmo na
cabeça e de espada na mão entrava na sala, imediatamente seguido de
vários cavaleiros. Bastou-lhe um olhar para compreender o que se
estava a passar. Com a ponta da sua arma, apontou para Roncelin,
aturdido pelo choque e que ainda não se tinha levantado. A sua voz fria
ordenou:
- Este vai preso! Os outros, matai-os!
O cavaleiro foi obedecido num abrir e fechar de olhos. Entretanto,
Olivier que, aliviado, quase desmaiara, conseguiu dizer:
- Irmão Clement! Que Deus vos abençoe!
- Como é possível estardes aqui? - perguntou Hervé.
- Cada coisa a seu tempo! - respondeu este sucintamente. O
templário foi direito a Renaud e cortou, com a sua faca, as cordas, antes
de lhe envolver a nudez com o seu grande manto branco e de o fazer
sentar com uma solicitude infinita. Enquanto isso, os seus cavaleiros
libertavam os outros prisioneiros. Devido à fadiga e à emoção, Aniceto
perdeu a consciência, mas Hervé e Olivier, apesar de esgotados,
mexeram-se e friccionaram os membros gelados e entorpecidos; em
seguida, enquanto Hervé se atirava à comida abandonada em cima da
mesa para beber água de uma bilha e morder um pedaço de pão com
visível alegria, Olivier ajoelhava-se junto do seu pai e segurava-lhe na
mão. Esta estava gelada. Todo o seu corpo tremia, reacção normal
depois da tensão nervosa que acabava de suportar. O seu rosto estava
pálido e as narinas comprimidas, mas não estava desmaiado e aceitou
com gratidão o copo de vinho que o irmão Clement lhe fora buscar. Até
encontrou a sombra de um sorriso para lhe dizer:
- Sempre acreditei em milagres sem ousar esperar ser, um dia,
objecto de um, mas vós sois um verdadeiro prodígio, meu amigo! Como
agradecer-vos?
- Restaurando as forças o mais depressa possível!
- Tentarei! Como é que estais aqui? É incrível! Fostes avisado?
- Fui. Acabava de chegar a Trigance quando a vossa Barbette lá
chegou, noite fechada. Ia avisar o comendador Valérien de Rians do que
se estava a passar aqui...
Trouxemo-la connosco. Aliás, ei-la!
Saindo da cozinha como se nunca a tivesse abandonado, Barbette,
à cabeça das jovens servas também elas reaparecidas, fazia uma
entrada tonitruante na sala, chamando todos os santos do Paraíso como
testemunhas dos estragos causados pelo invasor e distribuindo ordens
entre duas invocações. Enquanto as raparigas punham tudo em ordem,
ela foi beijar a mão do seu senhor:
- Sire Renaud! Em que estado eles vos puseram, os malvados!
Tendo dito aquilo e sem esperar pela resposta, regressou à cozinha,
que começou a ressoar com a actividade intensa que ela ali desenvolvia,
clamando que dentro de uma hora a refeição estaria pronta. A mulher
arrastara com ela o sargento Aniceto, ainda um pouco trémulo das
pernas. Entretanto, o irmão Clement, de regresso ao pátio, foi ver onde
estavam o irmão Valérien e os seus templários. A despeito dos seus
protestos, Roncelin de Fos, devidamente acorrentado, assim como o
irmão Didier e o jovem Huon de Mana, esperavam, na carroça vazia, que
os conduzissem à prisão de Trigance... Aqueles que os tinham apoiado
na sua operação de pilhagem tinham-se rendido quase sem combate,
mas não sem levarem alguns murros dos habitantes do castelo que
tinham aterrorizado e maltratado durante aquelas dramáticas vinte e
quatro horas.
Também eles iriam para Trigance, antes de serem levados para a
fortaleza provincial de Ruou-Lor-gues, onde os esperava uma longa
penitência.
Valérien de Rians e os seus templários, aos quais o irmão Clement
juntara um forte contingente à sua passagem pelo bailio de Ruou, só se
demoraram para comer e beber qualquer coisa. Partiram com os
prisioneiros, que o barão Renaud viu afastarem-se com mais cólera do
que alívio:
- Só fico descansado quando este Roncelin estiver morto! Por que
não me deixais defrontá-lo em combate singular, irmão Clement, perante
Deus?
- Sabeis muito bem que um templário não se bate em duelo! Além
disso, meu amigo - acrescentou ele com um meio sorriso - pensai na
idade, tanto de um como de outro!
- O ódio dá forças!
- Isso também vale para ele. Além disso, não gostaria de ver o leal
cavalheiro que vós sois nas mãos de messire Satanás, do qual não
tenho a certeza se este homem não é um dos sequazes!
- Eu a falar de Deus, irmão Clement, e vós a falar do Diabo? Achais
que o Senhor não me daria a energia necessária para o vencer?
- Os desígnios do Senhor são impenetráveis, meu amigo... e eu
prefiro evitar riscos inúteis. Ficai tranquilo, ele será julgado com toda a
severidade e castigado como merece. E agora entremos, temos de
conversar!
Valcroze saía do seu pesadelo e reencontrava com alegria os
trabalhos humildes da vida quotidiana. Enterraram-se os mortos, deu-se
graças a Deus e regressou-se ao trabalho como sempre se fazia depois
de um cerco ou de um alerta. Para as gentes da terra, as horas eram
contadas e toda a gente se apressou a reparar os danos...
No castelo, esses danos eram importantes, já que os homens do
falso Antonin d'Arros se tinham entregado a uma busca fre- nética sem
procurar roubar nada, aliás, mas virando de pantanas os móveis com o
seu conteúdo e arrancando as tapeçarias para tentar descobrir eventuais
passagens que fossem dar ao que queriam encontrar.
- A minha mãe choraria! - observou Olivier.
- Não - corrigiu o pai. - Ficaria furiosa, mas primeiro agradeceria a
Deus por ter salvo aqueles que amava...
O laboratório do barão Ademar não escapara aos vândalos. Tinham
quebrado as retortas e arrancado as prateleiras das paredes para ver o
que havia por trás. Apenas a chaminé permanecera inviolada, como o
atestavam as cinzas intactas. O irmão Clement olhou para elas um
instante de braços cruzados e com uma mão cofiando a curta barba que
o tempo prateava:
- Conseguistes? - perguntou ele apenas.
- Sim - respondeu-lhe Renaud. - Está tudo em ordem e as cinzas
que vedes aqui são as do falso ataúde.
- Deixai-as envelhecer tranquilamente, nesse caso. Quanto ao local,
se vos posso dar um conselho, dai-lhe uma certa ordem sem tirar
demasiada poeira. A menos que queirais dedicar-vos à... grande arte?
- Oh não! A alquimia não é para mim...
- Nesse caso, quanto mais abandonado parecer, melhor...
- Podemos fechar definitivamente a porta, se desejardes?
- Não. Fechada ou murada, poderia intrigar alguém. Abrindo para
uma espécie de arrecadação, parecerá inofensiva.
- Como quiserdes! E se me dissésseis, agora, como chegastes aqui
a tempo de nos salvar...
A história contava-se em poucas palavras. Mais ou menos quinze
dias após a partida dos dois cavaleiros e do sargento, um ancião,
visivelmente esgotado, caíra aos pés do irmão Clement mais por
cansaço do que por respeito, se bem que este existisse na realidade;
mas o homem percorrera uma longa distância para lhe apresentar a sua
queixa. Só ele, segundo o homem, podia por fim às pilhagens e abusos
de que eram muitas vezes culpados os templários de Richerenques
desde que o irmão Antonin d'Arros ali comandava. Simples senhor da
região, tinham-lhe tirado os bens e ficado com o seu neto como refém
para o recrutar à força.
O ancião conseguira escapar da prisão onde o tinham metido,
beneficiando da dedicação de um servo que conseguira ajuda no seio da
comendadoria, junto de um irmão que reprovava a maneira como ali se
vivia.
- Esse ancião chamava-se Paul de Mana e...
- De Mana? - interrompeu-o Hervé d'Aulnay. - Esse é o nome da
pequena serpente que nós devíamos levar a Gréoux e que, à vista da
fortaleza, nos fugiu... mas para melhor nos seguir e informar, depois,
aquele demónio...
- Perdoai-lhe! Não podia, certamente, agir de outro modo, senão
obedecer fielmente ao que lhe ordenavam. Ele pensava que o avô
continuava prisioneiro do "irmão Antonin"...
Seja como for, a história fez com que eu me lançasse no vosso
encalço. Como Richerenques fazia parte das paragens previstas na
vossa viagem, tinha de me assegurar de que não seríeis retidos, ou que
não sofreríeis qualquer dano. E, se necessário, tirar-vos da armadilha.
Estava arrependido de vos ter enviado como escolta, apenas três
homens, do mais precioso dos tesouros do Templo, cuja existência é
desconhecida da maior parte dos nossos irmãos...
- Seria revelá-lo a muito mais pessoas - observou Olivier. - A
maneira como viajávamos era a ideal para aquilo que escoltávamos: o
corpo de um dos nossos irmãos, um modesto homem de ciência, ao qual
a amizade do Papa concedia o privilégio de regressar à sua terra para o
repouso eterno. Sem aquela paragem malfadada, tudo teria corrido às
mil maravilhas. Trouxestes muita gente convosco, irmão Clement,
apenas para vir em nosso socorro! Não vos arriscais...
- De maneira nenhuma! Quando deixámos Paris éramos apenas
quatro: dois cavaleiros e dois escudeiros. Em Richerenques, onde só
encontrei metade da guarnição, compreendi que os meus receios se
justificavam, em particular quando o irmão que salvou Paul de Mana me
falou das condições em que se efectuara a vossa passagem, a missão
de que vos tinham encarregado com desprezo pelas nossas regras e,
sobretudo, a partida, nos vossos calcanhares, do "irmão Antonin". Temi o
pior e o pior quase aconteceu.
O poderoso grupo de cavaleiros que vistes, recrutei-o, em parte, em
Gréoux, de onde enviei um mensageiro a Ruou com ordem de
despachar gente para Trigance e a quase totalidade da minha velha
comendadoria. Ninguém teve dúvidas sobre a realidade do que vós
transportáveis. Quando, pouco depois da nossa vinda para Trigance, a
vossa Barbette lá apareceu, percebemos o perigo que corríeis. Tomámos
as disposições necessárias. Aliás, devo prestar a minha homenagem à
sua coragem e inteligência.
- Ela conseguiu fugir antes que baixassem a grade? - perguntou o
barão.
- Sim, mas antes, compreendendo que o castelo, uma vez fechado,
só depois de um cerco se renderia, teve o cuidado de esconder as suas
jovens servas junto das ânforas de azeite cujo conteúdo, durante a noite,
elas espalharam na engrenagem da grade e nos gonzos da porta que o
inimigo, demasiado seguro de si, achou que não valia a pena guardar.
- E Maximin, para onde foi? Barbette não pode ter falado com ele,
porque o homem não me deixou durante aquilo a que se pode chamar o
ataque e a colocação fora de serviço da minha gente.
- Uma das raparigas conseguiu chamá-lo e entregou-lhe as
recomendações da mulher. Então, ele juntou-se a elas no esconderijo e
foi ele que levantona grade e abriu a porta... E é tudo! Foi tão simples
como isto...
- Não pensastes nos subterrâneos? No entanto, conhecei-los bem?
- Sim, mas a entrada, do lado de dentro do castelo, não é muito
difícil de encontrar e a luta naquelas galerias teria sido arriscada. Eu
tinha de chegar aqui em força...
- Nunca vos agradeceremos o suficiente, meu amigo! Quanto a
Barbette e a Maximin, vou inscrevê-los no meu testamento e fazer deles
os meus herdeiros de Valcroze, já que, depois da minha morte, o
domínio irá, naturalmente, para o Templo, já que o meu filho abandonou
a sua herança ao entrar para a Ordem. Espero que não me queirais mal
por vo-lo subtrair?
- Pelo contrário! Em caso de... infelicidade, que eu temo cada vez
mais, prefiro que Valcroze não esteja incluído nos nossos bens. Foi,
como sabeis, uma das razões pelas quais o escolhi para subtrair a Arca
à Ordem do Templo. Assim, eis-vos instituído como guardião desse
tesouro extraordinário, vós e esse corajoso casal!
- Fico consciente da honra... e do seu peso, podeis crer. Quanto a
eles...
- Talvez seja preferível - interrompeu-o o irmão Clement - e como só
Maximin vos acompanhou ao novo santuário, que Barbette não partilhe
da totalidade do segredo.
Ela é uma mulher notável, eu sei - acrescentou ele à pressa perante
os protestos que via surgir da boca de pai e filho - mas ela "ferve em
pouca" água, fala muito e por inadvertência, no meio de uma altercação
qualquer, pode escapar-lhe qualquer coisa. Além disso, a curiosidade
não é o pecado favorito das filhas de Eva?
- Ou eu a conheço mal - interveio Olivier muito sério - ou aposto que
Barbette nem sequer tentará saber mais. Ela é uma mulher cumpridora e
de grande sabedoria.
Ficai descansado, irmão Clement!
- É com esse espírito que regresso a Paris. Irmão Olivier, irmão
Hervé, amanhã, de madrugada, por-nos-emos a caminho!
- Só mais uma palavra, meu amigo! - disse Renaud. - Que ides
fazer, ao certo, de Roncelin? Ides levá-lo convosco?
- Para Paris? Com todos os incidentes que podem produzir-se no
caminho? Certamente que não! Vamos escoltá-lo até ao meu bailio de
Ruou-Lorgues, onde o capítulo se reunirá para dizer de sua justiça. Ao
mesmo tempo, escolherá um novo comendador para Richerenques...
- Gostava de o ter podido levar a um julgamento de Deus, de armas
na mão! - resmungou o barão Renaud. - Deus, estou certo, ter-me-ia
permitido vencê-lo...
- Não duvido, mas para que desonrar a vossa espada? Aquele
miserável será mais facilmente vencido pela masmorra subterrânea onde
vai ser enterrado vivo até que a morte o leve... Já agora, tendes a
certeza de que se trata mesmo do Roncelin de cujos crimes me falastes?
- O meu ódio reconheceu-o, mesmo antes de lhe ter visto o rosto!
- Além disso - acrescentou Hervé - ele não negou quando o barão
Renaud o reconheceu. E os homens dele deviam sabê-lo, porque
nenhum pareceu surpreendido... Mas, no fundo, por que não entregá-lo
à justiça do bispo, ou até do Papa? O Templo, de facto, não pronuncia
sentenças de morte!
- Ele é templário, meu irmão e deve ser julgado pelos seus irmãos. A
sentença fa-lo-á perder o hábito depois de lhe traçarem o destino... E eu
não posso fazer nada - acrescentou o irmão Clement com um gesto de
desculpa na direcção de Renaud. - São as nossas Regras e o próprio
Grão-Mestre lhes obedece...
- Uma boa execução capital arrumaria melhor o assunto! - grunhiu
Olivier. - Os mortos não regressam...
- Um homem condenado à "masmorra" até ao fim dos seus dias
também não regressa...
- Eu não posso ir denunciar os ultrajes de que foram vítimas a
Verdadeira Cruz, a minha defunta mulher e eu mesmo? - pediu Renaud.
Penso que era capaz de encontrar as palavras...
- É impossível, meu amigo. Os capítulos são secretos, mas o vosso
filho estará presente. Ele poderá falar por vós.
- Fá-lo-ei! - afirmou Olivier. - É preciso que esse demónio não volte a
escapar...
- Ajudar-vos-ei o melhor que puder e souber - assegurou o irmão
Clement - mas leis são leis! Pensai apenas que o inpace faz sofrer um
homem mais cruelmente... e dura muito mais do que um golpe de
machado.
Tal como predissera o irmão Clement, Roncelin de Fos, aliás
Antonin d'Arros, foi despojado do manto branco e ligado, com correntes
fortes, ao fundo de uma cave tenebrosa, para onde o desceram por um
alçapão aberto no tecto. Ficaria ali até que a morte o levasse.
- Na sua idade - disse o irmão Clement para tranquilizar Olivier - não
falta muito!
IV – REQUIEM POR UMA PRINCESA

Naquele dia, sexta-feira 12 de Outubro do mesmo ano de 1307, o


aparato dos grandes funerais desenrolava-se para a Mui Alta e Mui
Poderosa Dama Catarina de Courtenay, condessa de Valois, de Alençon,
de Chartres e de Perche, Imperatriz titular de Constantinopla e cunhada
do Rei, morta no castelo de Saint-Ouen aos trinta e três anos na
sequência de uma doença breve. O tempo estava cinzento, com um
tecto uniforme e baixo mas sem chuva, no entanto, que dava a
impressão de uma cobertura colocada sobre Paris, cujos horizontes se
esfumavam na bruma. O selo do luto marcava a cidade capital com as
suas lúgubres tapeçarias suspensas das janelas à passagem do cortejo.
Velas ardiam diante das santas efígies dos montjoie {12} quando se
atingiu o grande caminho que ligava Saint-Denis ao coração da capital.
Pequenas chamas, muito fracas no ar húmido, eram ainda mais tristes
do que os archotes transportados por uma multidão de criados. No
entanto, não deixava muita pena, aquela jovem casada há seis anos
com o mais velho dos irmãos do Rei, o pomposo, o arrogante Carlos de
Valois, que só retinha dela aquele título ao mesmo tempo prestigioso e
irrisório de Imperador da România, onde nunca poria, certamente, os pés
e os quatro filhos que lhe dera durante seis anos de casamento. Ela
vivera aqueles poucos anos quase todos na sua residência de Saint-
Ouen, provida de um belo jardim que descia até ao Sena, onde nos dias
de Verão, e quase sempre grávida, podia esquecer os maus cheiros da
grande cidade e sonhar, perante um céu azul reflectido pelo rio, com o
reino de Nápoles, banhado pelo Mediterrâneo, onde nascera.
No entanto, estava próxima da coroa de França por parte da mãe,
Beatriz de Anjou-Sicília, filha do Rei Carlos, último irmão de São Luís, e
de Beatriz da Provença, última irmã da Rainha Margarida, sua bela
mulher. O seu pai era Filipe de Courtenay, o último do nome nascido na
púrpura - Porfirogeneta {13} - o que fazia dela a neta de Balduíno II, o
eternamente falido Imperador {14} que tivera de fugir do seu palácio
semeando pelo caminho as insígnias do poder imperial...
Quando casara com Carlos de Valois, Catarina tivera direito a um
casamento quase real e, agora, ia rodeada de um cerimonial que não o
era menos, mas entre os dois, só existira a título de reprodutora, senão a
título de ornamento prestigioso, porque o Céu a fizera bela... e o seu
marido ardente nos jogos do amor. Em cinco anos de um primeiro
casamento, tivera cinco filhos, todos vivos e as duas primeiras filhas
casadas. Com os quatro que lhe devia, ou antes três - o pequeno Jean
não tinha sobrevivido! - achava-se à cabeça de uma família de oito filhos
e não tencionava ficar por ali. Enquanto seguia o cadáver da defunta,
todo de negro do chapéu aos sapatos, já sonhava com quem substituiria
a pobre Catarina no seu leito. Por que não a encantadora Mahaut de
Châtillon, ainda um pouco jovem, sem dúvida, mas que, à sua beleza,
acrescentava um dote interessante? Amigo do fausto, era, de facto, um
homem para quem o dinheiro contava muito.
Quando o cortejo, onde figuravam vários grandes do reino, chegou
ao palácio da Cité, abriu-se para o Rei e para os seus filhos e depois,
pela Petit-Pont, dirigiu-se para a margem esquerda do Sena para meter
pela Grand-Rue Saint-Jacques-des-Prêcheurs, escalando a montanha
Sainte-Geneviève, no topo da qual estava o importante convento dos
Jacobinos, cuja capela {15} ia receber o corpo da princesa. Antigo
hospício destinado aos peregrinos a caminho de Santiago de
Compostela - a partida da peregrinação era em frente de Notre-Dame -
era, à excepção do Templo, o maior e mais rico convento de Paris
graças aos incessantes benefícios de São Luís, muito ligado à ordem
dos frades pregadores de São Domingos que, por causa daquela casa,
levavam a todo o reino o nome dos Jacobinos. Os corpos dos filhos do
Rei santo estavam ali depositados e o último ainda vivo, Roberto de
Clermont, teria ali a sua sepultura, assim como o próprio Carlos de
Valois e o seu irmão Luís d'Evreux O lugar de Catarina, portanto, era
mais do que merecido.
Como a Grand-Rue Saint-Jacques era uma das duas ruas mais
importantes de Paris, a que separava a cidade do norte da do sul, os
mirones amontoavam-se por trás do duplo cordão de franco-arqueiros
armados de bisarmas, colocados ali tanto para a homenagem como para
reprimir uma qualquer agitação vinda dos numerosos estudantes, que
estavam no seu bairro. A morte era coisa grave, demasiado respeitável e
também demasiado silenciosa para suscitar perturbações. A multidão
estava silenciosa, recolhida. Contentava-se em olhar.
Mais do que todos, talvez, uma jovem, que se mantinha de pé nos
degraus da igreja de Saint-Benoit-le-Betourné, entre dois homens bem-
vestidos, como ela própria, de aparência respeitável, um jovem - vinte,
vinte e dois anos! - o outro bastante mais velho e que devia ser o pai de
ambos, sem dúvida irmão e irmã a julgar pelas parecenças, se bem que
o jovem não tivesse nada de feminino e a jovem prometesse vir a ser
uma grande beleza. Ela era muito jovem - talvez uns quinze anos! - mas
os seus cabelos, de um louro de linho, suaves como a seda, escondidos
em parte pelo capuz de lã azul, os traços delicados do seu rosto fresco
como uma flor de cameleira e sobretudo os seus olhos extraordinários,
de um cinzento-pálido ligeiramente azulado que tinham sem o ar de
reflectir o céu cambiante de Paris, já atraíam a atenção dos rapazes, ao
ponto de o seu irmão Remi ter chegado ao ponto de corrigir alguns.
Assim, a jovem nunca saía da casa paterna sem ir escoltada pela mãe,
pela serva ou, como naquele dia, pelo elemento masculino da família.
Mas as circunstâncias eram excepcionais, mestre Machieu de Montreuil,
construtor de profissão, cedera aos pedidos da adolescente, desejosa de
ver o Rei, as damas e a corte por ocasião do funeral da princesa. Um
espectáculo um pouco triste, talvez, mas magnífico que ela, na sua
aldeia, não tinha oportunidade de contemplar. Desse modo, mestre
Machieu escolhera, com conhecimento de causa, os degraus de Saint-
Benoít, onde tinha, então, uma oficina de reconstrução do coro, para ali
instalar a sua pequena Aude, flanqueada pelo grande Remi. Dali, via-se
perfeitamente o cortejo começando a subir a encosta e podiam segui-o
com os olhos até à porta de entrada dos Jacobinos.
A passagem de Carlos de Valois, caminhando diante da sumptuosa
carruagem de veludo negro bordado a prata fez franzir o pequeno nariz
de Aude, depois de o seu pai lhe ter dito quem era:
- Não parece ir muito desgostoso - segredou ela. - O rosto dele está
tão seco e tão rígido como os das imagens de pedra que nascem do
cinzel do meu irmão!
- Um príncipe não chora em público - sussurrou Remi. - É contrário
à dignidade... além disso, desarranja as linhas do rosto.
- Uma pessoa preocupa-se com isso quando sente desgosto? As
lágrimas correm por si próprias e pouco importa se o rosto fica marcado
com rugas de aflição. Este príncipe não sente nada. No entanto, ela era
bela... e jovem - acrescentou ela, olhando com compaixão para o belo
rosto imóvel da defunta que, segundo o costume da época, descia à
terra descoberta. A morte tinha apagado os traços dos últimos
sofrimentos e no esplendor do traje verdadeiramente imperial que lhe
tinham vestido, a princesa aparecia tão serena e tão bela como no dia do
seu casamento. A boca, mantida fechada pela fita de musselina que lhe
passava por baixo do queixo e sob a coroa trabalhada, oferecia, até, o
esboço de um sorriso. Aude dobrou por um instante o joelho, benzeu-se
e continuou:
- Dá a impressão de que ela vai contente por deixar este mundo!
- Talvez tenha sofrido o suficiente para merecer o Paraíso -
murmurou o seu pai. - E se os olhos da sua alma já viram o caminho
radioso que vai lá dar, tem razão para se sentir feliz... E, repara, são só
príncipes os que seguram os cordões do pano mortuário.
- Nem todos! Aquele que eu vejo ali não é um templário, aquela
personagem de feições graves com uma barba tão bela?
- É o próprio Grão-Mestre da Ordem, monsenhor Jacques de Molay,
que veio da ilha de Chipre há cerca de um mês. E se "leva" a defunta é
porque merece ser príncipe...
Aliás, foi padrinho do herdeiro do trono, o príncipe Luís, quando ele
foi investido como cavaleiro...
- É o único templário a assistir ao funeral?
- Não, os dignitários e a escolta vêm mais atrás. Olha, vem ali o
nosso sire, o Rei, que tu tanto desejavas ver!
- Meu Deus, como ele é belo, imponente... e tão frio!
Aos trinta e nove anos, Filipe IV, neto de São Luís e de Margarida
da Provença, era, sem dúvida, o homem mais belo do seu reino. De
grande estatura, como todos os Capetos, mas sem a magreza que fizera
o seu avô parecer-se com um caniço ambulante, não deixava de ter o
arcaboiço necessário para vestir a armadura com tanto à-vontade como
o manto negro que lhe envolvia os largos ombros. O rosto altivo, de
traços puros mas de cor pálida, fazia pensar numa estátua sem os
cabelos algo compridos de um louro quente a atirar para o ruivo que a
idade ainda não prateara. Os olhos, esses, eram inolvidáveis: umas
grandes pupilas de um azul-gelado, onde as pálpebras, imóveis, nunca
pestanejavam, ao ponto de correr o boato de que o Rei de França
dormia de olhos abertos. Entretanto, a boca, bem desenhada, mostrava
uma ruga ligeira, revelando que a encarnação da majestade real era
capaz de ironia.
- No entanto, ele amou, e apaixonadamente, a falecida mulher, a
Rainha Joana de Navarra, que morreu há dois anos, como sabes. Dizem
que ele não se conforma, já que sempre considerou com desprezo a
ideia de um novo casamento...
- Por que havia de o fazer? - perguntou Remi. - Tem três filhos, dos
quais dois já se casaram e uma filha, que está prometida ao Rei de
Inglaterra. Vede, minha irmã, lá vêm eles!
Atrás do Rei, de facto, vinham os seus três filhos: Luís, dezanove
anos, Rei de Navarra desde a morte da sua mãe e já cognominado de
Cabeçudo devido à sua mania de implicar com toda a gente, não
importava quando e sob qualquer pretexto. Ainda por cima pouco
inteligente, portanto o oposto de um pai com o qual, aliás, não se parecia
muito, mais parecido com a mãe mas menos do que o seu irmão mais
novo, Filipe, conde de Poitiers, uma grande verga de quinze anos, todo
ele pernas e moreno como uma castanha, com um rosto estreito
precocemente meditativo e com uns olhos brilhantes de inteligência. Não
sendo Rei como o seu irmão mais novo, caminhava um pouco atrás dele
com o mais novo dos três, Carlos, conde de la Marche, doze anos
acabados de fazer mas belo como um anjo, a efígie infantil de um pai do
qual tinha os cabelos claros, os olhos azuis e os traços perfeitos, mas se
a máscara imóvel do Rei escondia um espírito profundo, o rosto
encantador do filho parecia vazio. Naturalmente, ainda não era casado,
ao contrário dos seus irmãos mais velhos...
O Cabeçudo casara-se, dois anos antes, com a sua prima
Margarida de Borgonha, filha do duque Roberto II e de Inês de França, a
filha mais nova de São Luís, e o grande Filipe acabava de se casar com
Joana, uma das duas filhas do conde Otão IV de Borgonha {16} e da
condessa Maháut d'Artois. E essas também estavam presentes,
seguindo, com as suas damas-de-companhia, o grupo dos "homens".
Atraentes as duas, a morena Margarida de quinze anos e a loura Joana
de treze, um pouco atrapalhadas nos seus trajes fúnebres a que não
estavam habituadas, eram namoradeiras e muito amigas de adornos
sedutores, de jóias e de tecidos ricos, que lhes ficavam muito bem. Unia-
as uma verdadeira cumplicidade, tendo sido criadas juntas e
esforçavam-se, caminhando gravemente, por não olhar uma para a
outra, evitando assim por fazer pouco, com uma risada, daquela pompa
que as aborrecia de morte e serem chamadas à atenção pela sua única
companheira, Isabel, a única filha do Rei que, a despeito dos seus
quinze anos, já dava mostras da seriedade e da majestade que
convinham à Rainha de Inglaterra que seria dali a poucos meses. Em
toda a família, era ela a que mais se parecia com Filipe. O que queria
dizer que era de uma grande beleza, mas que tinha, também, grande
discernimento, juntamente com um sentido de realeza pouco frequente
numa rapariga tão nova. Aliás, bastava Isabel saber que o seu pai,
apaixonadamente admirado, sentia orgulho nela, para se sentir feliz. O
severo Filipe era muitas vezes indulgente para com as suas duas jovens
noras e a sua alegria fazia-o sorrir, mas Isabel não era ciumenta. A
jovem princesa considerava-se prometida a um grande destino e não
desgostava nada trocar em breve Paris por Londres e colocar a sua
pequena mão na do jovem príncipe de Gales {17} Eduardo, que diziam
amável e belo.
Tendo a mesma idade das princesas, Aude examinou-as com
curiosidade. A jovem achava-as encantadoras, mas não as invejava.
Sobretudo Margarida, que tinha um marido cuja vida ela não gostaria de
partilhar, mesmo no trono. Luís tinha qualquer coisa de sonso e também,
no canto da boca, uma ruga cruel muito desagradável. Era de desejar
que os futuros reis de França saídos daquele casal se parecessem com
a mãe, não com o pai. Com a sua fronte obstinada, a sua tez de flor, os
seus imensos olhos negros e a sua maneira de manter bem direita a sua
bela cabeça, Margarida saberia usar a coroa. O que não era o caso do
Cabeçudo.
- Que idade tem o Rei nosso sire?- perguntou Aude ao seu pai.
Este entregou-se a um rápido cálculo:
- Deve estar próximo dos quarenta. Trinta e nove, penso eu... Por
que perguntas?
- Para saber se ainda vai viver muito tempo. Machieu permitiu-se um
riso discreto e silencioso:
- Queres que o reinado dele dure? Eu acho que é um grande Rei
porque aboliu a servidão e deu hipótese a homens que não pertencem à
nobreza, mas governa com punho de ferro...
- Sem dúvida, mas o filho não me agrada muito... Ah, já estou a ver
os cavaleiros do Templo!
Em ordem impecável com as suas armas cintilantes e grandes
mantos brancos, os dignitários do Templo e a escolta do Grão-Mestre
fechavam o cortejo, levando com eles o cavalo de Jacques de Molay.
Aude viu-os aproximarem-se sem dizer uma palavra e só quando eles
passaram perto dela e que perguntou:
- Quem são estes dignitários? Sabeis os nomes deles?...
A jovem parecia nervosa, subitamente, tal como indicava a sua voz
sempre tão doce, agora algo brusca, mas, dessa vez, foi Remi que
respondeu à sua irmã:
- Estais muito curiosa! Que vos interessa? Não os conhecemos a
todos...
- Mas conheceis alguns, porque acenais muitas vezes para eles...
Antes de responder, o jovem apercebeu-se de que Aude não estava
a olhar para ele e que, no fundo, o que dissesse não a interessaria. A
atenção da jovem estava fixa em alguns dos cavaleiros que seguiam os
seus três chefes e o jovem tentou seguir a direcção do seu olhar.
Quando pensou tê-lo encontrado, franziu o sobrolho, mas prosseguiu a
frase interrompida:
- As relações com o irmão tesoureiro, por exemplo, são do foro do
nosso pai. E esse não está aqui hoje. Mas estou a ver um cavaleiro que
conhecemos bem, ele e eu, e que vós tivestes, suponho, a possibilidade
de ver quando ele nos visitou... Ou me engano muito ou é o irmão Olivier
que vejo atrás do marechal...
Vendo estremecer os ombros da sua irmã, que naquele instante lhe
virava as costas, o jovem soube que acertara no alvo e que o perigo
estava perto. Aliás, Aude não respondeu, mas era evidente que o seu
olhar seguia a progressão dos templários, dos quais - o jovem jurá-lo-ia!
- ela só fixava um. Machieu, esse, não reparara em nada. No momento
em que o filho tomara a palavra, desinteressara-se do assunto e
conversava com o seu vizinho, o sacristão da igreja.
Assim, Remi sentiu-se com coragem para tentar saber mais. O
jovem pousou uma mão no ombro de Aude:
- Não me respondeis, minha irmã?
- Perdão? Que dizíeis?
- Não sei o que tenho, mas sinto os olhos cansados esta manhã.
Não é o irmão Olivier de Courtenay que eu vejo além?
Dessa vez, a pequena virou-se e ele pôde ver o seu rosto corado,
os olhos brilhantes e Remi compreendeu que a sua impressão estava
correcta. A força de observar fisionomias, atitudes e comportamentos
dos seus próximos e daqueles com quem era obrigado a dar-se, o jovem
"escultor" tornara-se bom juiz dos seus contemporâneos.
E apesar de não ter muita experiência com mulheres, soube - talvez
com uma ponta de ciúme inconsciente no coração - que a sua bela irmã
estava apaixonada pelo templário.
A jovem murmurou, aliás, com um constrangimento enternecedor:
- Tenho a impressão de que tendes razão, meu irmão. Deve ser ele!
E o seu amigo Hervé d'Aulnay vai junto dele...
A menção do segundo desconcertou um pouco Remi. Estaria
enganado na personagem? Ou teria sonhado com aquele rubor, com
aquela cintilação dos seus belos olhos claros?
No fim de contas, era normal que o pudor, por parte de uma jovem
de quinze anos, a fizesse corar quando lhe falavam de um homem!... O
jovem pensou subitamente que tinha um meio simples de esclarecer
aquele assunto: tinham-lhe encomendado, para o púlpito de Notre-
Dame, uma estátua de São João Baptista. Então, decidiu dar-lhe os
traços do irmão Olivier e ver-se-ia como Aude reagiria perante aquele
retrato de pedra. Ainda por cima, Remi reconhecia honestamente que
teria dificuldade em encontrar modelo mais belo para o Precursor do que
aquele rosto orgulhoso cuja gravidade escondia, juraria ele, o fogo
ardente de uma alma apaixonada. O escultor não temia, se Aude
amasse o irmão Olivier, que esse amor lhe fosse devolvido, ou a levasse
à sua perda: o cavaleiro monge pertencia à parte mais pura e mais
intransigente de uma Ordem sobre a qual corriam cada vez mais uns
rumores bizarros. Era, oferecida pelo céu, uma lâmina de aço da melhor
têmpera... na qual o coração novo de uma jovem só pode- ria ferir-se
cruelmente. E isso Remi não queria, fosse a que preço fosse...
Sob os sinos das igrejas, os tocadores deixaram extinguir-se as
notas lúgubres do toque a finados: o corpo da princesa acabava de
transpor a soleira do convento dos Jacobinos e avançava para o portal
da capela, aberto para uma plateia de velas chamejantes. O abade,
rodeado pelos seus monges, saiu para o receber...
- Não há mais nada para ver - disse mestre Machieu, esfregando as
mãos para as aquecer porque se estava a levantar um vento fresco. -
Regressemos! Já tenho a minha conta de cantos fúnebres e choradeira
por hoje e ficarei contente por regressar a casa. Estás contente,
pequena?
- Oh sim, meu pai! Foi tudo muito belo e eu agradeço-vos. Foram
buscar a carroça à qual estava atrelado um sólido cavalo, que tinham
deixado por baixo do alpendre da oficina onde, por respeito pela
princesa, ninguém trabalhava naquele dia. Remi ajudou a irmã a subir
para junto do pai, pegou nas rédeas e desceram em direcção ao Sena
para atravessar a ilha da Cité, depois o outro braço do rio, atingir a
estrada de Vincennes e, finalmente, a aldeia de Montreuil, onde a família
morava perto da igreja de São Pedro e São Paulo.
Construída pelo avô, o grande arquitecto Pierre de Montreuil, que
também construíra a Sainte-Chapelle e outras coisas admiráveis, o que
lhe valia estar sepultado na igreja de Saint-Germain-des-Prés com a sua
mulher, era a casa mais bela da aldeia depois dos edifícios do mosteiro e
do senhor do local. Construída com bela pedra, enquanto as outras
tinham utilizado argamassa - como o subsolo de Montreuil era de
calcário, este, misturado com palha picada, formava um material ao
mesmo tempo barato e fácil de trabalhar - erguia-se à entrada de um
recinto fechado que continha um jardim onde cresciam algumas flores,
diversas dependências, um pequeno pomar e até uma pequena vinha.
Como a aldeia estava situada numa colina, avistava-se a floresta e o
castelo real de Vincennes, uma curva do Sena e a cidade de Paris
inteira.
Naquela casa reinavam as mulheres. A dona chamava-se Juliana,
mulher de Machieu, ainda agradável apesar de já ter entrado nos
quarenta. O cabelo e os olhos castanhos, umas formas amplas mas
firmes, olhos vivos e alegres, uma boca carnuda onde o riso surgia
facilmente, amava a sua casa, dirigindo-a com mão de ferro, tanto o
jardim onde fazia crescer couves, beterrabas, espinafres, ervilhas {18} e
outras plantas tão bem como um monge ervanário, como a roupa
impecável e, naturalmente, a família. Até a sogra, a velha Matilde, ainda
verde e capaz mas que, por morte do marido, lhe abandonara sem uma
piscadela de olhos o governo da casa. Esta continuava a secundá-la o
melhor que podia, mas, com a idade, passava cada vez mais tempo à
lareira sem, no entanto, permanecer desocupada:
fiava a mais fina lã e cosia como uma fada, na condição de uns
olhos mais jovens do que os seus se encarregarem de enfiar a linha na
agulha. A despeito de umas costas que se dobravam um pouco,
esforçava-se por permanecer direita no banco de dossel que Remi lhe
fabricara, o neto que adorava tanto como a neta Aude, mas sem o
demonstrar demasiado, achando que as ternuras e outras pieguices não
eram coisa boa para o desenvolvimento harmonioso de um bom
carácter. Eram dela os olhos grandes e azuis-claros de Aude e era
normal que, por entre as pálpebras enrugadas quase constantemente
fixas num trabalho qualquer, se filtrasse um relâmpago azul para reforçar
uma observação para onde a caridade cristã nem sempre era chamada.
A anciã tinha os dentes duros, apesar de lhe faltarem alguns...
A terceira mulher da casa era Aude e a quarta Margot, a criada, uma
rapariga da aldeia que tivera uma "infelicidade" graças aos bons ofícios
do moleiro do qual a sua mãe era ao mesmo tempo criada e amante, o
que equivalia a dizer que a pobre Margot devia ter sido, provavelmente,
violada pelo próprio pai. Matilde tkara-a daquele sarilho mais ou menos
no momento em que o seu Machieu casava com Juliana, uma das duas
filhas de Isambart, o intendente da residência real de Vincennes. Margot
dedicara-se, tanto à recém-casada como à sua benfeitora e depois às
crianças, já que tinha visto, não sem algum alívio, a sua maternidade
contra-natura aniquilada por um desmancho.
No seguimento, o moleiro deixara este mundo com o crânio fendido
por um machado manejado pela mãe de Margot, após o que ninguém
soube o que foi feito dela. O desaparecimento de uma mulher que não
soubera defendê-la das intenções do moleiro e que, além disso, via nela
uma rival, não afectou Margot, entrincheirada por trás das paredes
seguras da casa de mestre Mateus. Fisicamente, era vermelha como
uma cenoura, vigorosa e teimosa como uma mula e alegre como um
tentilhão, tendo, de facto, encontrado, naquela família de acolhimento
um equilíbrio e uma serenidade que nunca teria imaginado do tempo da
sua primeira juventude.
Quando o mestre construtor e os seus filhos regressaram a casa,
encontraram uma quinta mulher que, sentada ao lado de Matilde no
banco da sala e em frente de Juliana, instalada no escabelo que puxara
para junto das outras duas, conversava animadamente. Era Bertrade, a
irmã de Juliana. Era viúva de um retroseiro da rue Quiquenpoist {19} que
fornecera, em tempos, a Rainha Joana, mulher de Filipe o Belo, possuía
um balcão na Grande Galerie du Palais {20} e mantinha, por isso, boas
relações com a corte. Por morte do marido, Bertrade, não tendo filhos,
entregara o seu comércio a um sobrinho, com o qual se entendia
bastante bem. Mas como era uma mulher de gosto reconhecido e hábil
com os dedos, propuseram-lhe entrar para o serviço da Rainha Joana a
fim de secundar as damas de linhagem que não possuíam o seu talento
para harmonizar as cores dos tecidos, decidir dos ornamentos e,
sobretudo, imaginar - e realizar, por vezes! - os motivos dos bordados ou
as aplicações das pérolas e pedras coloridas. Assim, só raramente saía
do solar de Nesle, pouco tempo antes uma possessão da Rainha Joana
que o Rei, pouco depois do desaparecimento da sua mulher, doara ao
filho mais velho por ocasião do seu casamento. Bertrade tornara-se
ainda mais indispensável do que no tempo de Joana, já que Margarida
de Borgonha adorava tudo o que se relacionava com adornos, podendo,
assim realçar uma beleza de que se orgulhava.
Para que Bertrade Imbert tivesse feito o caminho um pouco longo
entre a residência de Nesle e Montreuil, era preciso que fosse por algo
importante, a julgar pela maneira como tentava persuadir as duas
mulheres que a escutavam:
-... com Madame Margarida eu já tinha muito que fazer, mas
Madame de Poitiers descobriu os meus talentos, assim como a sua irmã
mais nova, a delicada Branca de Borgonha, que vai casar na próxima
Primavera com o nosso jovem príncipe Carlos. Essa ainda é mais louca
por vestidos novos, tecidos ricos, jóias e bordados! Preciso de ajuda!
- Não conseguis arranjar ninguém noutro lado, minha irmã, sem ser
entre as vossas parentes? Em Paris não faltam operárias capazes e...
- Demasiadas, talvez! Vede se compreendeis, Juliana! Eu estou
muito próxima de Madame de Courcelles, a primeira dama e é através
dela que tenho acesso às jóias.
Necessito de ter a maior confiança naquela que me secundará, que
me assistirá e para esse papel delicado não veja mais ninguém senão a
minha sobrinha Aude! Apesar de ainda ser muito nova, é quase tão boa
como eu!...
Absorvidas como estavam na discussão, as três mulheres - se bem
que Matilde ainda não tivesse aberto a boca! - não se aperceberam da
chegada de Machieu e dos filhos.
Mas o mestre não precisava de grandes explicações para se
aperceber do sentido da conversa apanhada no ar e entrou à-vontade no
assunto:
- Mais devagar, minha irmã mais devagar! - disse ele com a sua voz
de baixo. -Viestes a esta casa para nos levar Aude?
Bertrade virou-se para ele e levantou-se. De pé, ela era quase tão
alta como ele, apesar de não ter o mesmo físico. A estatura conferia-lhe
um aspecto imponente, ao qual ela acrescentava o véu severo de fina
tela de Flandres de uma brancura imaculada que lhe envolvia a cabeça,
o pescoço e o rosto. Com as feições um pouco altivas - uma versão das
da sua irmã mas mais enérgicas e mais idosas! - parecia-se com a
prioresa de um qualquer convento, na condição de a dita prioresa poder
usar uma túnica de bom tecido de Gand cinzento, uma sobreveste
ornamentada com pêlo de esquilo e um cinto bordado a fio de prata com
uma bolsa a condizer fechada por um botão de ametista, igual, em ponto
mais pequeno, à que agrafava, no pescoço, o amplo manto negro atirado
para cima de uma cadeira.
- É exactamente o que venho fazer - declarou ela em tom calmo,
plantando o seu olhar castanho no do seu cunhado. - E não vejo por que
vos haveis de queixar: nem toda a gente pode servir uma rainha que
ainda será mais Rainha no futuro, quando Deus chamar a Si o nosso sire
Filipe... o mais tarde possível, evidentemente!
- O que pode só acontecer daqui a muito tempo! O Rei está na força
da vida, mas não direi o mesmo do seu herdeiro, cujo peito me parece
bem fraco.
- Eu não vim aqui para calcular convosco a longevidade do reino,
mas sim do futuro da vossa filha...
- É disso que eu também estou a falar! Não está nos meus projectos
fazer da minha filha uma criada!
O rosto de Bertrade passou do branco ao vermelho-vivo com uma
rapidez espantosa:
- Terei eu, por acaso, ar de criada? Pelo facto de ter acedido à corte,
não perdi o meu estatuto de burguesa e apesar de não ser de extracto
nobre, não sou tratada, por isso, com menos consideração do que outra
dama qualquer do séquito das princesas! E moro na residência de Nesle!
- Não digo que não, mas não seria o caso de Aude... Bruscamente,
Mathieu virou-se, viu atrás de si a filha e o filho que escutavam com os
ouvidos bem abertos e, no caso da adolescente, uma pequena cintilação
nos olhos que o fez fungar:
- Que fazeis aí os dois, plantados como duas velas, a ouvir o que se
diz? Ide à cozinha ver se eu lá estou!
Assim apostrofados, os jovens desapareceram imediatamente. Pelo
fremir do seu nariz, adivinharam que o mestre construtor estava a chocar
um estado de cólera e que seria ofender a tia se assistissem à
discussão.
Bertrade seguiu-os com um olhar divertido. Em seguida, cruzou os
braços e esperou pelo seguimento do assalto, que não tardou:
- Que estais para aí a olhar para mim com esse ar de bravata,
minha irmã! - grunhiu Machieu. - E, antes de mais, sentai-vos!
- Mais tarde, com a vossa permissão! Seria colocar-me em posição
de inferioridade e permitir que despejásseis a vossa bílis sobre a minha
cabeça! Mas, regressemos à questão! Onde fostes buscar essa ideia de
que Aude seria mais maltratada do que eu? Ela partilhará o meu quarto
e eu não a perderei de vista, de dia ou de noite!
Não vos convém?
- Para ser franco, não. Tenho outros projectos para ela. O meu
compadre, Bernard de Sarcelles, o mestre do machado {21} com quem
trabalho há muito tempo, tem um enteado, Alain, que promete vir a ser
tão bom como o pai. Ele é como eu, rico e considerado. No outro dia...
ele deu a entender que veria com bons olhos a entrada da minha filha na
sua casa...
Dessa vez, Bertrade não teve tempo de responder: foi a velha
Matilde que tomou a palavra, cortando de imediato, aliás, o protesto da
nora:
- Que história é essa, meu filho? E por que é que a vossa mulher e
eu, vossa mãe, ainda não sabíamos de nada?
- Ainda não tinha tido tempo!... Mas tê-lo-ia feito, não tenhais dúvida.
Foi a urgência que me levou a dizê-lo.
- Pergunto a mim mesma se não acabais de inventar isso tudo?
- Não! Onde fostes buscar isso? Bernard falou mesmo comigo... há
alguns dias atrás! Mas, confesso, já me tinha esquecido e...
- Que lhe respondestes?
Machieu tirou o capuz, que colocou em cima da mesa e começou a
mexer no colmo grisalho que cobria a cabeça. Era visível que o ataque
da mãe o apanhara desprevenido.
- Oh... mantive-me... evasivo! Apesar de o projecto me parecer bom,
dada a qualidade de Bernard e do filho - e também o facto de que ele é
viúvo e que, casada com Alain, Aude ficaria senhora da casa - sinto que
a minha filha ainda é demasiado nova para se casar...
- Imagine-se! E com quem, o casamento? Com o filho... ou com ele?
- Em que estais a pensar, minha mãe? Ele tem a minha idade...
- E depois? Aquando do último Saint-Couronnés, quando reuniste
aqui os mestres-de-obras, eu bem vi como ele olhava para ela. De lado e
às escondidas e aposto os dentes que me restam contra o tesouro de
Saint-Denis em como, se a casares com o pateta do filho, ele arranja
maneira de a meter na própria cama. A menos que não case ele com
ela. Ele ainda está cheio de vida, o malandro!
- Machieu também, minha mãe, Machieu também - conseguiu dizer
Juliana com um certo orgulho.
- Não duvido, mas eu digo que casar a pequena naquela casa não
lhe trará a felicidade! Caso ainda não tenhais reparado ela está a
transformar-se na mais bela rapariga da região! Se não de mais longe
ainda!
- É por isso que eu digo que uma residência real, com toda a
espécie de janotas a rondar-lhe as saias como moscas em redor de um
pote de mel, não é bom para ela - rugiu Machieu, deixando cair com
força o punho em cima da mesa.
- Na câmara das damas, sejam ou não Rainhas, aparecem poucos
janotas, meu irmão e constato com tristeza que vós continuais a achar
que eu não sou ninguém! Já vo-lo disse: eu nunca a abandonarei. Por
outro lado, talvez não seja mau para ela conhecer algum fornecedor
importante da corte, um peleiro, um comerciante de tecidos ou um
joalheiro, que possuem bens e belas casas na Cité. Ficaria melhor em
casa de um desses do que em casa do teu amigo Bernard, que vive no
campo no meio das aparas!
- Um mercador rico? - troçou o pai. - Deixais-me de boca aberta! E
se ela se apaixonar por um senhor qualquer que, mesmo sem dinheiro,
nunca casará com a filha de um construtor?
A voz de Remi, que regressara discretamente, fez-se então ouvir:
- Quanto a isso, posso assegurar-vos que não há nada a temer.
Viraram-se todos para ele, o que o fez corar, mas o jovem manteve-se
firme.
- Conta-nos lá como chegaste a essa conclusão, pequeno! - disse a
avó com uma doçura que traduzia bem o amor que lhe tinha, mas
perante aqueles pares todos de olhos interrogativos, Remi limitou-se a
sorrir:
- Pelo que tenho observado, avó. Não teria dito nada se não se
tratasse do futuro da minha irmã, mas tenho a certeza de que o coração
dela já tem dono e que se o próprio Rei se lhe declarasse, ela dir-lhe-ia
que não.
- Bela comparação! - resmungou Matilde. - O nosso sire nunca olha
para mulher nenhuma!
- E o que ela ama também não.
- Como é que sabes? - perguntou Mathieu.
- Oh, é muito simples: o homem que ela ama é templário. É...
- Messire Olivier de Courtenay! - murmurou a mãe. -Já desconfiava:
a última vez que ele esteve aqui, no Verão passado, surpreendi Aude a
espiá-lo por trás da janela meio fechada do quarto, mas preferi afastar-
me sem fazer barulho e sem dizer nada. Ninguém é senhor do seu
coração e já é bastante triste amar sem a menor esperança...
- É por isso que vos suplico, meu pai, que não caseis Aude com um
homem qualquer: ela será infeliz, ao passo que, confiando-a à nossa tia
Bertrade, não correrá qualquer perigo, porque um amor impossível, livre
de qualquer pus, é uma defesa poderosa. No séquito de Madame de
Navarra ela ficará tão afastada dele como se o mar os separasse.
O Templo não fica longe daqui, ao passo que a residência de Nesle
está na outra ponta de Paris. E todos sabemos que nunca nenhum
templário penetrará naquela porta.
Machieu escutara o filho sem o interromper, pesando cada um dos
argumentos do jovem. No entanto, os olhos de Juliana encheram-se de
lágrimas:
- Isso significa que nunca mais verei a minha filha...
- Também me vês a mim, basta quereres - ripostou Bertrade. - E
Aude pode vir a casa quando não necessitarmos dela. Além disso, se
aceitardes, ela ficará ligada à casa da futura Rainha de França e isso
vale muito. E eu ensinar-lhe-ei tudo o que sei e farei dela minha herdeira.
Ficará com a propriedade de Passiacum {22} que me deixou o meu
defunto Imbert, juntamente com a pequena casa da rua próxima da
retrosaria do meu sobrinho... e mais algumas economias. Que dizeis?
- Tenho de pensar - disse Machieu cuja defesa enfraquecia segundo
a segundo perante os argumentos sólidos avançados pela cunhada. -
Mas é verdade, minha mulher, que se Aude casasse com Alain, também
não a veríamos muitas vezes...
- E se nós lhe pedíssemos a opinião? - propôs a avó. - Sempre foi
costume, entre nós, as mulheres terem acesso ao debate.
- As mulheres, não as raparigas que não têm outro remédio senão
obedecer!
- Faz-lhe a pergunta, mesmo assim... sem esquecer a alegre
perspectiva de ir viver para Sarcelles no meio das aparas...
- Se ela amasse - disse Juliana - esse pormenor não entraria em
linha de conta. Nós não temos as aparas, mas temos o pó da pedra.
A jovem foi, portanto, chamada e Bertrade teve a graça de deixar
Machieu propor-lhe o que acabavam de discutir, mas quando ele evocou
a união projectada com o filho do carpinteiro, ela teve um movimento de
recuo nervoso de tal modo vivo que foi evidente para todos que a sua
escolha não era aquela. A jovem limitou-se a perguntar:
- Não posso ficar em casa do meu pai? Não desejo outra coisa!
- Se não te queres casar - suspirou o pai - o melhor para nós é
seguires a tua tia. Será mais fácil recusar as propostas se te souberem
na corte...
Aude olhou à vez para aqueles rostos de que ela gostava e pelo que
leu neles soube como era querida por cada um deles. Eles só queriam o
seu bem, a sua felicidade e seguir o destino que a sua tia propunha era
o único meio de evitar um casamento, fosse ele qual fosse, que lhe
repugnaria, estava certa, já que nunca poderia pertencer ao seu bem-
amado. Seguiria, portanto, aquele caminho com coragem.
- Farei segundo a vossa vontade, meu pai e minha mãe - disse ela
com doçura antes de se lhes atirar ao pescoço para os beijar.
- Muito bem! - concluiu Machieu. - Podeis levá-la amanhã, minha
irmã. Deus queira que lhe tenhamos escolhido o melhor caminho!...
Quase no momento em que se decidia, assim, o destino da pequena
Aude, quatro personagens estavam reunidas na grande sala capitular do
Templo de Paris: o Grão-Mestre, Jacques de Molay, o seu sobrinho, o
irmão Jean de Longwy, o Grão-Mestre de França Gerard de ViUiers e o
irmão Clement de Salemes. Quatro figuras brancas, iluminadas por três
grandes velas de cera vermelha nas trevas onde se perdiam as
abóbadas, em pleno arco suportado ao centro por um poderoso pilar. O
irmão Jacques estava sentado na sua cadeira magistral. Era um homem
de uns sessenta anos, um Comtois {23} vigorosamente constituído, de
pele tisnada pelo sol de Acra e depois de Chipre, locais onde passara
dois terços da sua vida, um rosto maciço marcado pela ruga obstinada
da boca e um grande ar de altivez. De uma coragem indiscutível, de
inteligência média mas com um sentido político praticamente nulo, o
irmão Jacques, a despeito dos reveses sofridos e da Terra Santa perdida
para sempre - coisa em que ele se recusava a acreditar! - elevado até o
topo daquele Estado dentro do Estado que representava a Ordem, não
estava longe de se ver, no Templo que dependia unicamente do Papa,
como a única entidade capaz de impor a sua vontade aos soberanos do
Ocidente. Não queria dar fé aos boatos inquietantes que surgiam um
pouco por toda a parte. Não tinha ele próprio pedido ao Papa Clemente
V que fizesse um inquérito sobre a vida interior da Ordem, não vendo
naquilo mais do que uma simples formalidade cujo resultado não
oferecia qualquer dúvida aos seus olhos? O seu pedido fora feito em
termos onde transpareciam essas certezas. Assim, era com um certo
cansaço que, com o rosto de barba cuidada apoiado na palma da mão,
escutava o irmão Clement, que terminava o que parecia ser uma defesa
acirrada:
- ... e afirmo que não podemos continuar a encolher os ombros!
Chegou a hora de ordenar a partida! Porque, pelo que sei, já é tarde!
- Não estais a dramatizar a situação, meu irmão? Ainda hoje vi o Rei
Filipe e ele falou-me bem. Ele sabe muito bem que meter-se connosco
pode colocá-lo numa situação muito difícil perante os outros soberanos e
até perante o seu povo...
- O povo não gosta de nós. Quanto aos outros soberanos, para além
de estarem longe, não esqueçais que o Rei é o mais poderoso deles
todos... - disse o irmão Gerard que, tinha a vantagem sobre o Grão-
Mestre de conhecer bem Paris.
- Sem dúvida, mas eu continuo persuadido de que a minha visão é
boa! Ele nunca ousará! Somos nós que gerimos o tesouro dele e ele
precisa de nós...
Sem dar ao seu tio a oportunidade de continuar, Jean de Longwy
interpôs-se:
- Seja como for, estamos prontos. As carroças estão carregadas.
Escondamos os nossos arquivos e o nosso tesouro! Se se provar que o
irmão Clement está enganado...
tanto melhor, basta trazer tudo de volta. Com a ajuda de Deus, tudo
correrá bem. Resta-nos apenas saber para onde ir. Vós falastes de
Inglaterra, parece-me, irmão Clement?
- De facto. Dirigir-vos-eis para Dieppe, de onde partem os nossos
correios para o Templo de Londres. A estrada, balizada há muito, não
provocará surpresas. Espera-vos um navio na enseada Guillaume de La
Hougue. Já escolhestes aqueles que vos acompanharão? Sob as vossas
ordens, evidentemente, já que tendes o estatuto de comendador.
-Já. Uma escolha que conta com a vossa adesão, irmão Clement.
Temos três carroças, são precisos seis cavaleiros e três sargentos para
as conduzir. Uma escolta maior chamaria as atenções. Com vossa
permissão, irmão Gerard - acrescentou ele com um esboço de saudação
na direcção de Gerard de Villiers - escolhi para a primeira carroça o
irmão Olivier de Courtenay, o irmão Hervé d'Aulnay e o sargento Aniceto,
que já desempenharam este tipo de missão. Para a segunda o irmão
Guilherme de Gy, meu primo e preboste dos arreios e dos animais, e o
irmão Martin de Lamusse com o sargento Richard le Normand e por fim,
para a terceira, Gaucher de Iiancourt, enfermeiro, e Adam Cronvalle,
nosso confrade inglês, vindo em delegação e que, assim, regressa a
casa, juntamente com o sargento Robert de Pontoise, Tenho a vossa
aprovação, meus irmãos?
- Plena e total - disse o irmão Gérard, de imediato seguido pelo
irmão Clement.
O Grão-Mestre. Jacques de Molay parecia mergulhado em
profundas reflexões, tão profundas que talvez não tivesse ouvido nada.
Perante aquilo, o Grão-Mestre de França franziu as sobrancelhas e
reteve um gesto de impaciência.
- Venerado irmão - disse ele com uma voz de onde não estava
ausente o timbre metálico - estamos à espera da vossa decisão
suprema... e ouso lembrar-vos que o tempo urge.
Jacques de Molay levantou-se, fixou o olhar alternadamente nos
outros três e, finalmente, encolheu os ombros:
- Tratastes de tudo tão bem que eu não me atrevo a pôr-me de
permeio. Tendes a minha aprovação. Levai as vossas carroças, irmão
Jean! As minhas orações acompanhar-vos-ão...
mas acredito sinceramente que será tempo perdido e que tereis de
ir novamente em busca do que escondestes...
O Grão-Mestre acompanhou-os até ao pátio onde as carroças,
atreladas cada uma a dois cavalos normandos, esperavam, carregadas
aparentemente com palha e cobertas com fortes telas para proteger o
conteúdo, tanto das intempéries como do olhar dos curiosos, difícil de
evitar a uma tal distância. O irmão tesoureiro estava junto delas,
assegurando-se, justamente, da solidez da embalagem. Era Jean du
Tour, com quem Molay tivera uma pega a propósito do empréstimo
consentido ao Rei no ano anterior.
Aquele até fora expulso do Templo, mas o Rei - de quem, a
propósito, era também tesoureiro! - interviera, primeiro sem grande
sucesso, e fora preciso uma ordem do Papa para que o obstinado
Comtois revogasse a sua decisão. O que era o mesmo que dizer que os
dois homens não gostavam muito um do outro, mas sem o
demonstrarem.
O Grão-Mestre não dirigia a palavra ao tesoureiro e este, sabendo
de cor e com exactidão as suas contas e a sua gestão, consagrava-seao
seu trabalho, mostrando apenas pelo seu superior supremo a cortesia
exigida pela Regra. Nada mais, nada menos.
Ao ver sair os quatro dignitários, o irmão Jean du Tour dirigiu-se a
eles e saudou-os como convinha:
- As carroças e a escolta estão prontas como podeis constatar,
meus irmãos! As duas primeiras levam os objectos preciosos e a maior
parte do ouro e prata que tínhamos aqui.
- Tivestes o cuidado de deixar para trás o tesouro do Rei Filipe? -
perguntou Molay meio a rir meio a sério.
- Só tirei o que pertence à Ordem, venerado Grão-Mestre. As
finanças reais continuam no seu cofre, assim como, aliás, a quantia em
ouro e prata necessária para vida quotidiana desta casa. Em caso de
controlo, seria perigoso não ter aqui nada. Também guardei os livros de
contas e creio que, se examinassem a nossa tesouraria, não
encontrariam nada que dizer...
- Bem feito! - admitiu Molay - mas, que há dentro da terceira
carroça?
- As peças mais importantes do cartolário, livros... infinitamente
preciosos, títulos de propriedade... e, por vim, os nossos arquivos!
- Que direis se alguém se espantar com a sua ausência? Havia uma
certa ironia na pergunta, mas o irmão Jean tinha- a previsto. O templário
inclinou-se com as mãos no fundo das mangas:
- Que vão para a nossa casa de limassol a pedido do Grão-Mestre,
que deseja ter perto de si aquilo que atesta o poder da Ordem. Ele pediu
o mesmo aos outros reinos com vista aos preparativos para uma nova
cruzada.
- Isso é mentira, e vós sabei-lo?
- Não absolutamente - respondeu o irmão Jean, inclinando-se de
novo. Escrevi, nesse sentido, aos templários estrangeiros... mas em
cifra. Sob esta mentira está a realidade dos nossos receios.
- Nesse caso, não tenho mais nada a dizer. Irmão Gerard, eles
partirão quando desejardes...
Tendo dito aquilo, o Grão-Mestre regressou ao convento enquanto o
Grão-Mestre de França, o preceptor da Provença e Jean de Longwy se
juntavam ao pequeno grupo de cavaleiros que esperavam junto dos seus
cavalos.
- Chegou a hora - disse Villiers muito sério. - Parti, meus irmãos, e
que Deus, Nossa Senhora e todos os santos vos tenham na sua santa
guarda! Levais convosco uma das maiores fortunas do Templo, assim
como a maior parte das suas raízes! Tende cuidado! Mas, se por acaso,
se erguerem obstáculos diante de vós - que Deus não o queira! - não
hesiteis em esconder, o melhor possível, tudo o que possa cair em más
mãos, tendo o cuidado de predispor, como deve ser, os nossos sinais de
reconhecimento com vista a uma recuperação posterior. Nós, aqui,
rezaremos sem descanso pelo sucesso da vossa viagem!...
Um instante mais tarde estavam todos a cavalo ou nas boleias das
carroças. Nenhum levava o manto branco com a cruz, antes amplos
mantos negros com capuz. Uma vez aberta a porta fortificada {24} e
protegida, tal como a cerca de Paris, por duas torres de cerca de sete
metros de altura, a grade, a ponte levadiça e transpostos os fossos,
fundiram-se na escuridão. A caravana afastou-se sem ruído da cidade, já
que as rodas das carroças tinham sido convenientemente oleadas.
Dirigiram-se para norte...
Não havia Lua, mas Jean de Longwy, que ia à cabeça, guiava a sua
tropa com uma segurança absoluta. Olivier e Hervé marchavam lado a
lado, enquanto os outros quatro cavaleiros asseguravam a retaguarda da
caravana.
Não estava frio, no entanto Olivier sentiu um arrepio pelas costas
abaixo. Percorriam, então, o caminho de Courtille e, levado por um
pressentimento, o cavaleiro virou-se na sela. Talvez fosse o reflexo dos
fogos acesos nas muralhas, mas Olivier teve a impressão de que subia
da cidade adormecida um nevoeiro vermelho e à vista daquele nevoeiro
um novo arrepio fê-lo contrair os ombros. Invadido por uma súbita
inquietação, tentou libertar-se dela rezando, mas, pela primeira vez na
sua vida, a sua oração não subia, parecendo lutar contra um obstáculo
invisível. A noite ainda lhe pareceu mais escura...
V – O DIA DA CÓLERA

Quando a madrugada daquela sexta-feira de 13 de Outubro,


cinzenta e enevoada, se levantou, as carroças e a sua escolta tinham
percorrido, mais ou menos, nove léguas.
Acabavam de atravessar um bosque denso e espesso e podiam ver-
se os telhados de uma aldeia com as duas torres e o campanário de
uma comendadoria.
- Eis Ivry - disse Jean de Longwy que, com um gesto, deteve a
caravana. - É a primeira paragem importante na estraga que liga o
Templo de Paris a Dieppe. Vamos repousar aqui um pouco, seguir os
ofícios do dia e voltamos a partir assim que começar a cair a noite...
O sobrinho do Grão-Mestre conhecia aquele itinerário, que já
percorrera várias vezes, que tinha a vantagem de evitar Pontoise, cidade
real, para perto da qual Filipe, o Belo se retirava frequentemente para
reflectir em paz na abadia de Malbuisson {25}, construída pela sua bisavó
Branca de Castela. Atravessaram o rio sem dificuldades e sem
portagem, bem entendido, pela velha ponte vigiada do seu castelo,
construído no meio do rio, pelo senhor do local, Nicolau de Villiers, irmão
do próprio Gerard, o Grão-Mestre de França. O que equivalia a dizer
que, na Ilha de Adão, os templários gozavam de uma simpatia
particular... Depois de Ivry, o caminho para Dieppe passaria por
Chaumont, Gisors, Gournay e Forges. À excepção de Gisors,
encontrariam sempre ajuda, da qual poderiam precisar.
- Se bem percebi, irmão Jean - disse Hervé - estamos a ir bem:
depois da passagem do Oise, o mais difícil já passou! Estamos agora
numa região mais familiar e portanto amiga?
- Podemos dizer que sim, meu irmão. As pessoas da região
chamam a este caminho a estrada do Templo. Isso significa...
O templário interrompeu-se subitamente, mandou parar de novo a
caravana que se tinha posto em marcha, içou-se nos estribos e estendeu
um braço:
- Olhai! Não será fogo, aquilo?
Do interior do castelo subia uma coluna de fumo negro e depois
ouviram gritos, choques, gemidos e sons diversos. Era evidente que se
passava qualquer coisa na comendadoria de Ivry. Qualquer coisa de
grave. No dia que tardava em nascer, os olhos agudos de Olivier
distinguiram uma tropa armada, chuços e chapéus de ferro perto da
entrada:
- Irmão Jean! Parece que está gente armada a atacar o castelo!
Temos de os socorrer...
- Não! Nós somos poucos... e temos a nossa missão! Meu Deus!...
Será já demasiado tarde?
O cavaleiro virou-se na sela e deu ordem para recuar e procurar
abrigo na floresta de onde tinham saído...
- Mas, enfim - protestou Aulnay - temos de ir ver o que se passa!
O olhar severo que lhe lançou Jean de Longwy fê-lo corar.
- Se fôssemos um simples destacamento livre de movimentos, a
questão não se punha, já que a Regra nos obriga a atacar quando o
número é, no mínimo, de um contra três. Mas temos de proteger as
carroças.
O templário foi obedecido sem mais discussões. Os cavaleiros
puseram pé em terra. A caravana abandonou o caminho e foi colocado
ao abrigo por trás de um grande silvado.
Enquanto isso, o chefe permanecia na orla, observando os
acontecimentos. O fumo era menor e parecia que o incêndio tinha sido
circunscrito, mas o súbito silêncio não era nada tranquilizador. Por trás
da árvore onde estava escondido, o irmão Jean, destroçado de
inquietação, tentava compreender, tentando extrair da memória as
palavras do irmão Clement, quando ele lhe confiara a sua missão. O
cavaleiro espantara-se ao ponto de ousar interrogar o alto dignitário da
Ordem, mas o preceptor da Provença não se sentira ofendido. Jean de
Longwy era um borgonhês de cabeça dura, de carácter íntegro corajoso
como a sua espada e não tinha medo de nada neste mundo, senão da
cólera de Deus. Inteligente mas obstinado, teria transposto as portas dos
infernos para cumprir as tarefas de que o encarregavam. E tinha
incontestáveis qualidades de chefe. Fora por todas essas razões que o
irmão Clement o escolhera para comandar a escolta do tesouro. A
pergunta do cavaleiro, respondera:
- Penso que se aproxima uma grande infelicidade para o Templo.
Certos indícios, certos rumores, ligeiros mas reais, deixam-no supor.
Temos de tomar precauções.
Não era a opinião - já o vimos! - do Grão-Mestre e também podia ter
ficado espantado, mas Jean de Longwy conhecia bem o seu tio e a sua
maneira de enfrentar um obstáculo sem se preocupar com as
consequências graças a uma espécie de ingenuidade e até, poder-se-ia
dizer, a uma certa frescura de alma, que o impedia de pensar nas
reacções dos outros. Para ele, o Templo era o que havia de maior, de
mais puro e de mais poderoso na terra, mais nada. Assim, Longwy não
se espantou por ver Clement de Salernes substituí-lo de certa maneira,
sugerindo primeiro e argumentando depois com uma força que acabara
por arrastá-lo. Por isso, ao observar o que se passava em Ivry, temia que
fosse o princípio da infelicidade anunciada.
Subitamente, o templário viu qualquer coisa mais. Ao longe, um
homem fugia. Meio acocorado, acabava de sair de detrás de um arbusto
para ir para outro, não sem se virar para se assegurar de que não o
seguiam, procurando, certamente, atingir o bosque. A julgar pela roupa
que vestia, tratava-se de um servo do Templo. Quando ele se aproximou
mais, mais lentamente, como se estivesse a perder as forças, Longwy
compreendeu que o homem estava ferido. Não aguentando mais, o
cavaleiro saiu do seu abrigo, precipitou-se ao seu encontro e arrastou-o
para o arvoredo, cobrindo-o com o seu manto negro. Surpreendido, o
homem opôs apenas uma débil defesa. Esta cedeu quando ele ouviu:
- Eu também sou do Templo! Vinde!
O fugitivo emitiu um gemido de dor e Longwy quase o transportava
quando chegou junto de Olivier e de Hervé, que o ajudaram.
- Vamos para junto das carroças! - disse ele. - Ele está a perder
sangue!
O sargento estava desmaiado e quando o estenderam no tapete de
erva e de folhas, viram que o sangue, de facto, corria de um ferimento
que tinha no flanco... Hervé, inclinando-se, desapertou-lhe o cinto e
despiu-lhe a cota rasgada, que se lhe colava à pele. A cada respiração,
cada vez mais penosa, o fluxo vital saía com mais força...
- Não posso fazer nada por ele. O ferimento é profundo e ele vai
morrer. É um milagre o facto de ter conseguido chegar até aqui...
- Tendes razão, parece grave - disse Gaucher de Iiancourt, o irmão
enfermeiro, ajoelhando-se por sua vez junto do ferido. - Mas talvez
possamos saber o que se passa?
Este procurou no seu saco de medicina, que nunca o abandonava,
um cordial à base de plantas, mas o ferido recobrava a consciência e
tinha-o ouvido:
- ... Gente do Rei... de madrugada... acabávamos de nos levantar...
para cantar as Primas... quando bateram à porta... Alguém... gritou: "Da
parte do Rei..." e nós abrimos sem desconfiar... Era o bailio de
Chaumont e... homens de armas... Eles vinham... eles vinham prender-
nos!
- Prender-vos? - exclamou Jean de Longwy. - Que fizestes?
- Nada... mas acusam-nos de sermos heréticos, simoníacos e
sodomitas... mentirosos, adoradores... do Diabo! E... vós também sereis
presos... se não fugirdes...
O sargento teve uma crispação de dor, empalideceu ainda mais e
eles pensaram que estava a morrer. O irmão Gaucher elevou-lhe um
pouco a cabeça e os ombros para o apoiar e obrigá-lo a beber algumas
gotas do seu licor. O homem engasgou-se e tossiu, mas recuperou um
pouco de cor. O seu olhar era pleno de angústia:
- Acabou... para mim... Fugi... para onde puderdes! Escondei-vos!
Nem que seja no fundo de uma leprosaria... porque a esta hora... por
toda a parte... em todo o reino... estão a prender os nossos irmãos... e a
vasculhar... as casas todas... Fugi! Meu Deus! Porquê?
Foram as suas últimas palavras. Um soluço violento trouxe-lhe à
boca um fluxo de sangue e depois o irmão Gaucher sentiu-o fazer peso
sobre o seu braço, ao mesmo tempo que os olhos, muito abertos, se
fixavam. Estendendo o frasco a Olivier, o irmão enfermeiro fechou-lhe
docemente os olhos.
- Está morto - disse ele. - Que Deus tenha a sua alma. Oremos!
Ajoelharam-se todos para uma oração que o irmão Jean não
permitiu que se eternizasse. O chefe da caravana levantou-se. Os outros
ficaram de joelhos, visivelmente fulminados pelo que acabavam de ouvir.
O homem de acção, nele, nunca estava longe e, perante aquela situação
catastrófica, era preciso reagir. E depressa!
- Vamos, meus irmãos! De pé! Não podemos ficar aqui!
O inglês, Adam Cronvalle, encolheu uns ombros desiludidos:
- E para onde havemos de ir, meu irmão? Não ouvistes? Por toda a
parte, em toda a França, estão a prender-nos a todos!
- Espero que isso não esteja a acontecer no vosso país, itmão
Adam?
- Fora do Templo de Londres somos muito poucos e não damos
preocupações ao Rei Eduardo. Mas receio nunca mais regressar a
Inglaterra. Que propondes de imediato, meu irmão?
- Primeiro, recuar para o mais profundo da floresta...
- Primeiro, é preciso enterrar este infeliz - disse um deles.
- Certamente que não! - cortou o irmão Jean. - Alguém pode ter
reparado na fuga dele. Se andam à procura dele, é preciso que o
encontrem! E agora tentemos esconder-nos o melhor possível...
Manobrar as pesadas carroças no meio da floresta não era fácil,
mas o irmão Guilherme de Gy, como preboste dos arreios e dos animais,
era um verdadeiro mágico quando se tratava de cavalos. O monge-
cavaleiro conseguiu pôr em marcha as atrelagens que os sargentos
guiavam pela brida e afastá-las o suficiente para que um bando, de
passagem por ali, não suspeitasse, sequer, da sua presença. O tempo
estava cinzento, mas tinha deixado de chover há um momento e o solo
não estava alagado. Além disso, enquanto faziam avançar os veículos,
os cavaleiros tinham feito os possíveis por apagar o rasto das rodas na
vizinhança do cadáver que tinham abandonado. Após três quartos-de-
hora de esforços, pararam, por fim, entre um aglomerado rochoso
coberto de musgo e uma encosta suave que descia na direcção de um
rio, mas cujo marulhar ainda não conseguiam ouvir.
Trataram dos cavalos. Sempre e em toda a parte, era a primeira
tarefa e primeira preocupação dos templários, mesmo em circunstâncias
tão dramáticas como as que estavam a viver. Sem os desatrelar, deram-
lhes a aveia que tinham trazido e o irmão Guilherme mandou dois
homens buscar água. Ao atingirem a linha de salgueiros ao longo da
margem que naquele local fazia uma curva, os três homens
aperceberam, na outra margem e meio escondida por uma cortina de
árvores, uma vasta clareira, no meio da qual se erguiam uns edifícios
encerrados dentro de uma paliçada feita de troncos aguçados. Viram um
pequeno campanário, o que assinalava uma capela e, em redor das
construções baixas, um trecho de torre meio arruinada. Aquilo parecia-se
com uma herdade, com a diferença de que não existem herdades no
meio dos bosques. Mas exalava-se daquele conjunto uma grande
tristeza e quando a grossa porta, bem armada de ferro, se abriu para
deixar passar duas personagens transportando umas bilhas, os
templários compreenderam por que razão o local parecia tão sinistro: um
dos homens usava o hábito de São Lázaro e o segundo, cujo rosto não
estava escondido por baixo do capuz da sua túnica cinzenta, não se
sabendo observado, mostrava um fácies inchado e deformado pela
lepra...
- Uma leprosaria! - murmurou o irmão Guilherme. - Não perturbemos
a sua paz...
Os cavaleiros tiraram a água de que necessitavam e regressaram
para junto das carroças sem terem despertado a atenção do monge e do
doente, mas relataram o que acabavam de ver. Quanto acabaram de
tratar dos cavalos, comeram o pão e o queijo que tinham por costume
transportar consigo por precaução e reuniram-se em conselho. Um
conselho onde ninguém se apressou a tomar a palavra, cada um
tentando assimilar a incrível catástrofe que se estava a abater sobre a
Ordem. Presos! Todos presos pelo país fora e, sem dúvida, metidos em
prisões! Eles que, ainda ontem tão poderosos, senhores de tantos
castelos, de tantas terras, de tantas riquezas? Como era possível? E sob
acusações infames! Que dissera o irmão antes de morrer? Simoníacos?
Sodomitas? Adoradores do Diabo?...
Não fazia sentido! O mundo estava de pernas para o ar! Finalmente,
alguém quebrou o silêncio:
- Que vamos fazer?
- Primeiro, rezemos! - disse Olivier. - Estamos nas mãos de Deus.
Talvez Ele ilumine as nossas trevas...
Com um sinal de cabeça, o irmão Jean aprovou e durante longos
minutos, com vozes contidas, invocaram o Pai, a Virgem Maria, sua
terna padroeira, terminando com um Veni Creatormut-murado, não
cantado.
Jean de Longwy levantou-se e, com uma grande calma, tirou a
longa cota branca, beijou a cruz púrpura e dobrou-a cuidadosamente.
- Imitai-me, meus irmãos! Temos de nos desfazer destes sinais de
distinção de que nos orgulhávamos tanto! Que o Céu faça com que nos
seja feita justiça e que possamos, um dia, usá-los de novo.
Todos o imitaram com lágrimas nos olhos. O mesmo aconteceu
quando foi necessário desfazerem-se dos lorigões de malha de aço que
completavam o carnal que envolvia por completo o pescoço e a cabeça,
deixando ver apenas o rosto. Uma protecção suficiente para escoltar
bens em tempo de paz. O que equivalia a dizer que não usariam, a partir
dali, elmos ou chapéus de ferro e todos, ao ajudarem-se mutuamente a
tirar a estreita túnica, tiveram a impressão de lhes arrancarem a pele.
Por baixo, tinham, sobre as camisas e bragas de linho, calções e
gibões de lã negra. Evidentemente, vestidos daquela maneira, ainda
eram mais semelhantes. Entretanto, a prudência do irmão Clement
ordenara semanas antes, àqueles que escolhera há muito, que
deixassem crescer os cabelos que a Regra queria muito curtos e que
aparassem as barbas e bigodes.
O irmão Jean olhou para eles por um instante e suspirou:
- Não vamos poder seguir caminho em conjunto. Vamos ter de nos
separar: uma carroça de palha acompanhada por três camponeses - se
nos sujarmos um pouco parecer-nos-emos com eles - pode passar
despercebida, mas três, seguidas por um grupo de cavaleiros tão
uniforme, não passarão.
- Separarmo-nos como? - perguntou Olivier. - Vamos para Dieppe
por caminhos diferentes ou segue cada um o seu caminho deixando
alguma distância entre nós? Um dia cada, por exemplo... A dificuldade é
que só vós conheceis esta estrada e esta região e se cada carroça vai
pelo seu caminho, arriscamo-nos a perder-nos...
- Teríeis razão se fôssemos para Dieppe, mas se o Rei Filipe
mandou prender todos os templários de França, podeis ter a certeza de
que a nossa casa não escapou...
nem os navios da Ordem, se não tiveram tempo de se pôr ao largo...
Não encontraremos nada... senão os sargentos dos prebostes locais...
- Nesse caso, para onde vamos? Não podemos ficar aqui! - disse
Hervé d'Aulany.
- Neste local, não! Temos de pensar, antes da nossa própria
segurança, de esconder este grande tesouro das garras do Rei! Temos
de escondê-lo em três sítios diferentes.
Ora, já não podemos confiar em nenhuma das nossas
comendadorias: seria atirarmo-nos para outras tantas armadilhas. Por
consequência, teremos de encontrar esconderijos em locais onde
ninguém tenha a ideia de ir procurar.
- Em residências de nobres, por exemplo? - disse Olivier, que estava
a pensar na Arca escondida na gruta secreta de Valcroze.
- Na condição de os senhores serem da máxima confiança, de outro
modo como poderemos ter a certeza de que os nossos anfitriões,
mesmo que nos recebam bem, não se apressarão, depois da nossa
partida, a pilhar as riquezas que lhes confiamos? Eu nem sequer tenho a
certeza de que Nicolas de Villiers, que nos ajudou esta noite a
atravessar o Oise sem problemas, será capaz de resistir à tentação. A
portagem da ponte dá-lhe belas quantias, mas ele ama o ouro...
- Nesse caso, os mosteiros beneditinos? O Templo é filho de São
Bernardo, que fez dos seus conventos portos de abrigo para a ordem, a
oração e a beleza - disse Gaucher de Larchant. - Não nos podem
recusar asilo?
- É uma possibilidade. Mas também aí, apesar de o asilo ser dado
sem hesitar às nossas pessoas, receio que tais riquezas não fiquem
verdadeiramente ao abrigo...
- Nesse caso?
- Nesse caso...
Os olhos escuros do borgonhês pousaram-se à vez em cada um
dos rostos ansiosos que o rodeavam, esperando dele a salvação com
uma tensão que se sentia nos seus corpos.
- Ouvistes o conselho que aquele infeliz irmão moribundo nos deu
antes de nos morrer nos braços? "Escondei-vos, nem que seja no fundo
de uma leprosaria." E, se bem compreendi o que o irmão Guilherme
disse, há uma na outra margem deste rio...
A proposta era tão aterradora que, de repente, ninguém reagiu. Um
vento de dor passou por aqueles homens no entanto habituados aos
cadáveres disformes nos campos de batalha e às abominações da
guerra, mas a lepra que devora o homem vivo fazia-os tremer.
O primeiro a protestar foi o inglês Adam Cronvalle:
- Quereis enterrar-nos naquela ignomínia? Prefiro a fogueira. É mais
rápido...
- Não nós, o conteúdo de uma das carroças, por exemplo. Os
irmãos de São Lázaro têm obrigações para connosco desde sempre e
podemos, sem grande risco, pedir-lhes ajuda. Dissestes que no centro
da leprosaria há uma torre meio arruinada. Talvez fosse possível
esconder lá uma parte do tesouro. Aliás, vou lá agora mesmo...
Cronvalle fez tenção de o impedir:
- Pensai no que ides encontrar, meu irmão!
Longwy contentou-se em repelir a mão com doçura, mas foi Olivier
que se encarregou da resposta:
- O meu avô Thibaut de Courtenay era escudeiro e amigo fiel de
Balduíno IV de Jerusalém, o sublime Rei leproso. Foi criado com ele e
nunca o deixou senão quando foi feito prisioneiro de Saladino, mas
depois, e até à sua morte, partilhou sempre a sua tenda ou o seu quarto.
E nunca o mal o atingiu... Têm todos tanto medo, em Londres?
O frio desdém da entoação acendeu uma centelha no olhar do
inglês, que corou. Hervé d'Aulnay interpôs-se de imediato:
- Paz, meus irmãos! Somos, talvez, os únicos templários ainda
livres. Que acontecerá se começarmos com querelas? O irmão Jean só
pensa em salvar o que nos foi confiado!
Havia um pedido urgente no seu olhar, fixado no do amigo. Este
teve um sorriso crispado:
- Desculpai-me, irmão Adam! A observação escapou-me.
- Não foi nada...
Enquanto isso, Jean de Longwy afastara-se com Guilherme de Gy,
que decidira acompanhá-lo. Esperaram por eles durante algum tempo,
esforçando-se por seguir as horas canónicas, tal qual a Regra os
obrigava, mas não era fácil. Apesar de todos terem o hábito daqueles
exercícios de piedade, era precisamente aquele hábito que os fazia
sentir, naquelas terríveis circunstâncias, um certo vazio, sem uma
verdadeira ressonância. O mundo, em redor daquela floresta, parecia-
lhes hostil. Até Olivier, que sentia por Cristo e por Nossa Senhora um
amor filial tão caloroso que era como se eles fizessem parte da sua
família, não sentia o habitual eco das palavras rituais. Era como se as
portas do Céu se tivessem fechado. Atormentava-o, sobretudo, a velha
maldição trazida da Palestina pelo seu pai. Teria chegado o dia de cólera
anunciado pelo Velho de Hattin! Teria Deus tirado a Sua mão de cima do
Templo, abandonando-o à sua perda?
Quando, por fim, Jean de Longwy regressou, já a noite se
aproximava e vinha acompanhado de um monge de cogula negra:
- Este é o irmão Sebastião, prior da piedosa casa de São Lázaro...
ele aceitou ajudar-nos e acompanha-me para nos ajudar a atravessar o
rio graças a um vau que ele conhece. Púnhamo-nos a caminho!
- Todos? - perguntou Cronvalle. - Pensava que só uma parte de nós
é que ia lá.
- Esta noite vamos lá todos! Pelo menos, homens e cavalos ficarão
abrigados se o tempo piorar. O que me parece que vai acontecer...
- Temos espaço para as três carroças - disse o prior com uma voz
doce. Neste momento, a leprosaria está quase vazia.
- Os vossos leprosos morreram? - perguntou o inglês com a
desconfiança que não conseguia deixar de sentir.
- Não, mas, levados por um santo homem que chegou aqui há
pouco, puseram-se a caminho da cidade de Tours, nas margens do
Loire, para rezar no túmulo do grande São Martinho, cuja festa será
daqui a um mês. Disseram-lhes que os leprosos encontravam ali, muitas
vezes, a cura... e eu não pude impedi-los! Deus tenha piedade daquela
pobre gente! - acrescentou ele, inclinando-se e fazendo o sinal da cruz...
- Além disso - continuou Longwy - podemos esconder por baixo da
velha torre o conteúdo de uma das carroças...
- E as outras? - continuou o inglês.
- Dar-vos-ei um guia, que vos levará a um certo esconderijo -
respondeu o padre Sebastião. - E agora vinde! A noite aproxima-se e
quando está escuro o vau é mais difícil de encontrar...
Puseram-se em marcha e depois de terem caminhado alguns
minutos desceram na direcção da margem, que seguiram durante uma
curta distância até um ponto marcado com uma grande pedra junto da
qual o padre Sebastião, que ia à frente, se deteve:
- Eis a passagem - designou ele. - Não se vê, mas o leito do rio
chega a este local. Os antigos Romanos construíram aqui um dique para
poderem atravessar comodamente.
Agora, está arruinado, mas o caminho sob a água é suficientemente
largo para as vossas carroças... na condição de me seguirem passo-a-
passo e de não se desviarem...
- Comandai! - disse simplesmente Jean de Longwy. - Nós
obedeceremos...
Apesar de ser delicada e exigir tempo, a travessia da vau operou-se
sem incidentes e pouco depois a caravana completa chegava à outra
margem, ao caminho de terra batida que ia dar à leprosaria. A escuridão
reinava, apenas atenuada por um único archote pendurado na parede da
capela, à entrada. Tal como tinha pensado Longwy, era uma antiga
mansão e se a única torre estava reduzida a metade, se a casa em si já
não existia, ainda estavam de pé alguns edifícios de serviço e em bom
estado. Assim, as carroças encontraram o abrigo de um grande alpendre
e os cavalos o de uma velha estrebaria. Os próprios doentes estavam
alojados num curral reconstruído e os três monges que se ocupavam
deles num pequeno edifício anexo. Mas a entrada dos viajantes fez-se
sem atrair a atenção de ninguém, salvo a dos dois religiosos vindos ao
seu encontro, que os saudaram com a cortesia habitual de todas as
casas de Deus.
Os templários, tendo repousado mais ou menos durante a maior
parte do dia, se bem que a angústia não lhes permitisse um verdadeiro
descanso, trataram imediatamente de esvaziar a primeira carroça e de
levar o conteúdo para a torre onde não subsistia, tal como Jean de
Longwy se dera conta, senão a sala do rés-do-chão - apesar de o tecto
mostrar um rasgão! - e a entrada de uma escada que mergulhava no
subsolo.
- Tal como mostrei ao irmão Jean - disse o padre Sebastião - para lá
de uma cave que nós usamos para conservar as nossas provisões, há
um subterrâneo com duas ramificações, dos quais um ia dar à casa do
Templo de Ivry, enquanto o outro desemboca no campo. O do Templo
está cortado por degraus que permitem passar por baixo do rio, mas foi
completamente tapado quando esta velha herdade se transformou numa
leprosaria. O outro vai ter, para lá da floresta, à cripta de uma capela,
destruída há muito tempo, e que hoje não passa de um monte de
destroços e de rochas, cobertos por um grande silvado e cuja saída é
impraticável...
- É lá que vamos esconder a nossa carga. Em seguida, fecharemos
a entrada deste lado...
- Nesse caso - disse Guilherme de Gy - por que não esconder
também aqui o conteúdo das duas outras carroças?
- Porque esta cripta é exígua e já encerra um túmulo - respondeu o
chefe. -Além disso, podemos deixar ao padre Sebastião a carroça, de
que ele se poderá servir ou reduzir a lenha, e os dois cavalos que a
puxam - eles podem muito bem ter fugido das cavalariças de Ivry, já que,
como vimos, houve um incêndio e não será difícil vendê-los, para
benefício desta casa, a um qualquer fazendeiro dos arredores - é
impossível deixar-lhe três veículos e seis cavalos, dos quais ele não
saberia que fazer. E mais vale dividir o tesouro. Seria bem
surpreendente se, caso a sorte permita que alguém faça a descoberta
antes que tenha sido possível àqueles que, assim o espero, continuarão
o Templo, a mesma sorte privilegie outras duas pessoas ao mesmo
tempo.
Durante uma parte da noite, transportaram tabuleiros, caixas e
barris até ao extremo do subterrâneo, que em seguida fizeram
desmoronar mais ou menos a meio caminho, após o que os cavaleiros
comeram qualquer coisa oferecida pelo padre Sebastião e também
algum repouso na palha que estenderam ao longo da sala baixa da torre.
Apenas Jean de Longwy não dormiu. O cavaleiro foi fechar-se com o
prior numa espécie de cubículo no alojamento dos monges, onde este
fazia as contas da pequena comunidade.
Ali, falaram os dois durante muito tempo com os cotovelos em cima
da mesa e uma candeia acesa entre os dois...
Quando o padre Sebastião a apagou com um sopro, já o dia se
avizinhava, tão cinzento como na véspera, tão triste com as suas nuvens
baixas que, no entanto, não previam chuva, mas para o irmão Jean que,
finalmente, se deixara acabrunhar por um instante pelo drama que todos
viviam, era preferível que fosse assim: um sol alegre ter-lhes-ia parecido
insultuoso perante a amplitude do cataclismo. O templário ficou sentado
um bom momento na pedra da soleira da torre enquanto, de vez em
quando, os galos respondiam uns aos outros e os três monges se
dirigiam à capela antes de iniciarem o trabalho quotidiano, assim como
os cuidados aos seus pensionistas habituais.
Só restavam dois, que estavam quase no fim do seu calvário, um
idoso ainda capaz de se deslocar e um petiz, seu neto.
O borgonhês nem sequer pensava em rezar, pensava apenas no
futuro do seu pequeno grupo, admitindo que a perigosa aventura tivesse
sucesso. Ele, pessoalmente, estava a pensar em ir para as terras
familiares, às portas de Dijon, enquanto o seu primo Guilherme de Gy
podia fazer o mesmo, mas os outros, para quem o Templo de Paris era o
seu lar normal?
Após uma pausa, o cavaleiro levantou-se agitando os ombros como
que para se livrar de um fardo demasiado pesado e foi acordar a escolta
da carroça vazia: Olivier de Courtenay, Hervé d'Aulnay e o sargento
Aniceto.
- Chegou a hora de nos separarmos, irmãos! - disse-lhes. - Podeis
partir para onde quiserdes com os dois cavalos que vos trouxeram. Um
de vós levará o sargento na garupa. Somos demasiado numerosos neste
local, se bem que deserto, para não despertar a curiosidade se, por
acaso, alguém se apercebesse da nossa presença.
Apesar de habituado a obedecer sem discutir, Hervé perguntou:
- Que vai ser das carroças restantes e dos nossos companheiros?
- Falei acerca disso durante muito tempo com o padre Sebastião.
Ele conhece a fundo esta região, onde nasceu e, durante a noite, ele
guiar-nos-á, a mim e à segunda carroça, até Neaufles onde, perto de
Gisors, existe um poderoso castelo pertencente à sua família. Esse
castelo está ligado, justamente, ao de Gisors por um subterrâneo {26}...
- Gisors é uma fortaleza real, se não me engano e foi de lá que
vieram os que prenderam os nossos irmãos de Ivry - interveio Olivier. -
Não ides lançar-vos na boca do lobo?
- O risco existe, sem dúvida, mas, para além das leprosarias, que
melhor esconderijo para a parte restante do tesouro do que um domínio
pertencendo àquele que acaba de se declarar nosso inimigo? O padre
Sebastião sabe como nos meter lá dentro. Além disso, uma das
passagens do subterrâneo vai dar à igreja de Santa Catarina, que fica
fora dos muros. Em seguida, regressaremos aqui e mandarei embora a
escolta dessa carroça. Após o que, com a terceira e se Deus quiser,
conduzi-la-ei, com os irmãos Gau-cher e Adam até à leprosaria do Vale
dos Leprosos, em Saint-Laviers, nos arredores de Abbeville. Segundo o
padre Sebastião, foi o Templo que a fundou e entregou aos religiosos de
São Lázaro para que eles ali tratassem os nossos irmãos que a
contraíram na Terra Santa...
- Abbeville? - perguntou Hervé. - Mas isso é muito longe!
- Não é mais do que Dieppe e o irmão Adam servir-nos-á de guia,
visto que já lá esteve. Passaremos por leprosos a caminho do nosso
último refúgio. Abbeville fica situada perto do mar, o que permitirá, pelo
menos assim o espero, que o irmão Adam regresse a Inglaterra e que o
irmão Gaucher o possa seguir...
- E por que não vós mesmo, meu irmão? E por que não embarcar
também o carregamento?
- Seria demasiado arriscado. Não previmos as maquinações do Rei
e não sabemos se ele não estará conluiado com Eduardo de Inglaterra.
Prefiro um refúgio mais seguro.
Quanto a mim, vou tentar regressar à Borgonha, onde conto que a
duquesa Inês {27} não tenha subscrito as vontades do seu sobrinho. Lá,
farei de maneira a que Filipe de França pague o mal que nos causou. Na
pior das hipóteses, encontrarei abrigo na abadia de Citeaux... enquanto
espero!
Enquanto falava, o seu rosto severo tornara-se ainda mais sombrio.
No entanto, o sargento Aniceto ousou perguntar:
- Não posso acompanhar-vos, sire? Eu sou dessa região e gostaria
de regressar...
- Pensava que éreis escudeiro do irmão Olivier?
- Não - corrigiu este último. - O sargento Aniceto partilhou com o
irmão Hervé e comigo mesmo uma missão difícil, mais nada. Finalmente,
a catástrofe que se abateu sobre nós liberta-o...
- Mas, e vós, que ides fazer?
- Regressar a Paris para saber mais sobre a extensão do desastre,
como reagiu o Grão-Mestre... e, sobretudo, o que aconteceu ao irmão
Clement de Salernes, que é o meu segundo pai.
- E eu vou com ele - disse tranquilamente Hervé. - Talvez
consigamos encontrar refúgio em casa do meu irmão mais velho, em
Moussy-le-Noble, que não fica muito longe da Provença do irmão Olivier.
Vamos todos precisar, os que ainda restamos, de reflectir...
- Reflectir em quê se o Rei jurou a nossa perda? - perguntou
amargamente Courtenay, pensando que a maldição se cumpria e que
não podiam fazer nada. - Para nós, só há dois caminhos possíveis: o
exílio longe do reino, se o Templo ainda subsistir para lá das nossas
fronteiras, ou a entrada para um mosteiro, tal como vós acabais de
evocar, irmão Jean! Quanto a uma rebelião, a Regra proíbe-no-la...
Peço-vos que não o esqueçais!
- Seja como for, se mudardes de opinião e se eu conseguir lá
chegar, ficais a saber que no castelo de Longwy sereis acolhidos como...
irmãos! E agora, preparai-vos!
Comei qualquer coisa! Em seguida, o irmão Adriano guiar-vos-á
através da floresta até ao caminho da Ilha de Adão sem vos perderdes...
Enquanto se dirigiam à estrebaria em busca dos seus cavalos,
Olivier viu sair da sala dos doentes um idoso de rosto roído pela lepra,
que se sentou num banco de pedra em frente da porta. A sua mão
estava pousada no ombro de um rapazito louro e esse rapazito era a
criança mais bela que ele alguma vez vira. Teria seis ou sete anos e o
seu rosto cor-de-rosa, cujos olhos se pareciam com duas flores do linho,
era a imagem da saúde. O gaiato conversava animadamente com o
ancião que, por ele, conseguia ainda sorrir. Olivier virou-se para o padre
Sebastião:
- Aquela criança, padre, que faz ela neste local, nesta casa de
morte, quando não há qualquer vestígio do mal nele?
- Ainda não há, quereis vós dizer. O pai e a mãe dele morreram do
mal aqui mesmo e o velho Fabiano, avô dele, está bem contagiado,
como vedes...
- Mas ele é são? Não pode ficar...
- Mas vai ficar - suspirou o religioso. - Ele só tem seis anos, mas
podeis ter a certeza de que tem lepra. Simplesmente, no caso das
crianças, a lepra só aparece por volta dos nove ou dez anos, quando a
puberdade se aproxima...
Então, Olivier recordou-se da história do jovem Rei leproso, contada
pelo seu pai. Também ele era belo, radioso e cheio de vida quando o seu
preceptor, Guilherme de Tiro, se apercebera de que, ao ferir-se, não
sentia qualquer dor. Tinha nove anos! Mas aquela criança não era Rei.
Só tinha, como família, aquele ancião a caminho da tumba...
- Que lhe vai acontecer quando o avô morrer? - perguntou ele.
- Ficará connosco... e nós tratá-lo-emos o melhor que pudermos e
soubermos porque o amamos! Confesso que, por vezes, perante uma tal
injustiça, me interrogo...
O padre interrompeu-se e entrou no abrigo dos cavalos.
Um momento mais tarde, os que partiam disseram adeus aos seus
companheiros. Foi simples, um adeus quase silencioso mas pleno de
emoção naquele instante em que as suas vidas, tão bem traçadas até
àquele momento numa bela linha direita, quebrava-se contra uma
parede cuja dureza ou dimensões nenhum deles podia calcular. Era
preciso continuar o caminho, ao encontro de um ideal do qual não
tinham a certeza de encontrar. Abraçaram-se e depois Hervé e Olivier
pegaram nas rédeas das suas montadas e seguiram o irmão Adriano
para fora da cerca de troncos aguçados e ao longo do rio, que subiram
na direcção da nascente.
Depois de terem percorrido mais ou menos uma meia légua, depois
de o curso de água ter desaparecido, chegaram a um cruzamento. O
lazarista estendeu então um braço em direcção a sul e disse apenas:
- Ide a direito. A um quarto de légua daqui encontrareis o caminho
que seguistes à vinda. Deus esteja convosco!
E sem sequer esperar pelos agradecimentos, meteu as mãos nas
mangas e desapareceu por baixo da cobertura das árvores...
Três dias mais tarde, dois monges franciscanos - túnica e cogula de
capuz de burel cinzento e cinto de corda de três nós, seguiam a grande
estrada de São Dinis que, através dos campos, terminava na porta do
mesmo nome para continuar pela mais importante das artérias
parisienses, a que, até ao Sena, atravessava os bairros da margem
direita de um lado ao outro. Para dar descanso aos pés calçados com
grosseiras sandálias de correias, sentaram-se num talude à entrada de
uma vereda que ia dar ao topo de uma pequena colina onde se erguia
uma estranha construção: sobre um grande amontoado de pedras em
bruto, quatro pilares de cada lado e quatro ao centro, ligados por vigas,
formavam, em dois andares, quarenta e oito armações que se
recortavam no céu. Cada uma daquelas vigas sustinha uma corrente de
ferro e quase todas sustinham o corpo de um enforcado, alguns ainda
reconhecíveis, mas outros já reduzidos, pelos corvos, ao estado de
farrapos humanos. Era o patíbulo de Montfaucon, que o intendente dos
edifícios, Enguerrand de Marigny, mandara construir. Dois guardas
armados de bisarmas mantinham-se na base dos degraus que partiam
da base e junto deles estava um pequeno grupo de homens, mulheres e
crianças, alguns deles chorando. Acabava, sem dúvida, de se proceder a
uma execução. Outras pessoas observavam de mais longe, perto dos
dois monges. Então, estes ouviram:
- Achais que estão ali alguns templários, vizinho? - dizia um deles,
um homenzinho insignificante com um barrete verde na cabeça que não
tinha ar de inteligente.
- Ainda é muito cedo para isso! Primeiro, é preciso julgá-los! -
respondeu o outro, que era duas vezes maior e que se dava ares de
importante. - E espantar-me-ia muito se viessem aqui parar. A julgar por
aquilo de que são acusados: heresia, sodomia, sacrilégio, não terão
direito a uma corda honesta: vão para a fogueira!
- Achais mesmo que eles fizeram tudo isso? - perguntou de novo o
primeiro.
- É o que diz a carta do nosso sire Filipe, que publicaram ontem e o
Rei deve saber o que escreve...
- Ah, lá isso é verdade! Mas, se quereis saber o que eu penso,
vizinho, não me espanta! Aquela gente, desde que veio da Terra Santa,
não presta para nada e disseram-me que se passam coisas lindas nas
casas ricas deles...
O seguimento do discurso perdeu-se para os que o escutavam, já
que os dois compadres se tinham posto de novo a caminho, regressando
à cidade... Passaram ambos, sem reparar, pelos dois monges. Hervé
d'Aulnay suspirou:
- Se o resto do povo pensa como aqueles dois, a Ordem não vai ter
muitos defensores!
- Que esperavas tu? Nunca é bom suscitar inveja e para aquele
homem não passamos de uns inúteis instalados em cima de grandes
riquezas...
- Inúteis? As nossas casas dão muitas esmolas e o Grão-Mestre
não cessa de reclamar uma nova cruzada! E... a propósito de esmolas,
não é suposto nós sermos irmãos mendigos?
- Se não pedires nada, não recebes nada, meu filho! - disse Olivier,
que não conseguiu deixar de rir. - E aqueles dois, como dizes, nem
sequer olharam para nós...
- Ou não quiseram. Seja como for, tenho medo de não conseguir.
Teria preferido outro hábito...
- Era tudo o que tinha sire Jean de Villiers. Temos de lhe estar
gratos: mesmo barbeados, ele achava que nós continuávamos a parecer
dois templários.
O senhor da Ilha de Adão, de facto, apesar de os ter acolhido sem
discutir, não lhes escondera que recebera, no dia 13 de Outubro, a visita
de um mensageiro real portador de um edital onde se estipulava que
quem quer que desse asilo a um templário incorria em graves sanções,
podendo ir, desde a confiscação dos bens até à prisão pura e simples.
Ora, ele era irmão de Gerard de Villiers, o Grão-Mestre de França e era
natural que se encontrasse à cabeça da lista dos suspeitos, mas era um
homem de carácter, inteiramente capaz de defender a sua fortaleza
insular contra quem quer que fosse, nem que fosse o Rei, se este
tentasse expulsá-lo:
- Quanto ao meu nobre irmão - acrescentou ele - não o deixarei ser
massacrado em frente dos meus muros sem tentar socorrê-lo.
- Não somos vossos irmãos? - perguntou Olivier.
- Sois irmãos dele, visto que ele vos chama assim. E por isso que
vos ajudo. Para mim, o Templo está inocente das ignomínias de que o
acusam há dois dias.
- O que ouvimos dizer é verdade? - inquietou-se Olivier. - Todas as
comendadorias de França foram atacadas ao mesmo tempo, à mesma
hora? É incrível.
- No entanto, é verdade: o Rei Filipe conseguiu um feito
extraordinário, o que comprova o seu poder em todo o reino... Se quereis
regressar a Paris, tendes de mudar de aparência.
Olivier e Hervé tinham, portanto, trocado os seus trajes por dois
hábitos cinzentos e os seus cavalos por dois pares de sandálias, calçado
a que, evidentemente, eles não estavam habituados e que tinha feito
recordar a Olivier o que o seu pai lhe contara acerca do seu percurso
entre a Torre esquecida e a comendadoria de Joigny quando fugia das
gentes do bailio de Châteaurenard {28}. Abandonar umas botas sólidas
que protegiam os pés por aquelas palmilhas com correias de couro era
uma verdadeira penitência, sobretudo quando o tempo, já húmido, se
punha frio. Hervé só aceitara por amizade. O cavaleiro não via uma
razão válida para se arriscarem a ir até Paris quando era tão fácil chegar
no espaço de quatro horas ao seu castelo paternal de Moussy, também
ele a norte da capital... e sem se separarem dos cavalos, mas Olivier
queria saber o que acontecera ao irmão Clement e, por isso, tinham sido
obrigados a regressar até à muralha do Templo para escutar o que se
dizia nas ruas... Aulnay bem dissera que Moussy ficava apenas a seis
léguas da Cité, que lá, pelo menos, poderiam reflectir na calma, já que
não tinham o menor asilo. Olivier obstinara-se, admitindo que o seu
amigo não tinha qualquer razão para o acompanhar, mas que ele tinha
de ir.
- Talvez Deus queira que os nossos caminhos se separem aqui -
dissera-lhe ele com uma grande doçura. - Regressa a casa! Prometo-te
que vou ter contigo assim que souber o que aconteceu àquele a quem
quero tanto!
- Ter comigo? Nunca farás o caminho sozinho! - resmungara Hervé.
- A nossa Moussy não é uma grande metrópole. Nem todas as estradas
lá vão dar. Tentaremos a aventura juntos e nem mais uma palavra!
E foi assim que, embrulhados, mais do que vestidos, com hábitos
cinzentos um pouco curtos de mais para as suas grandes pernas, os
dois amigos se viram no meio do fluxo contínuo de carretas com
legumes, mulheres sentadas de lado em cima de burros, soldados,
camponeses ou simples viajantes vindos da Flandres ou de outros lados
que Paris escoava para a nobre estrada das entradas folgazonas e dos
funerais reais: gente das aldeias enxameadas de gente no semicírculo
que ia de Pontoise à Ilha do Adão, Chantilly, Senlis, Nanteuil-le-Haudoin
e Meaux.
Tendo-se posto de novo a caminho, transpuseram sem dificuldade a
porta de São Diniz, vigiada por dois soldados mais atentos aos que
saíam do que aos que entravam...
A atmosfera, aliás, tinha mudado. Animada, alegre, até, em tempos
normais, reflectia o grande drama que se representava no reino. Não se
ouviam canções ou interpelações alegres, antes conciliábulos entre duas
ou três pessoas falando em voz baixa sob o guarda-vento de uma
barraca; as pessoas iam aos seus afazeres em passo rápido, o capuz ou
o barrete enfiado até às sobrancelhas e olhar desconfiado. Até os gritos
dos pequenos comerciantes de rua se ouviam em surdina. Os anúncios
vocais aos quatro ventos do queijo de Brie, do agrião de nascente, das
ervilhas quentes, dos bolos ou do peixe dos charcos de Bondy e mil
outras coisas pareciam estrangular-se na garganta dos vendedores
ambulantes. As mulheres também passavam envoltas nas suas capas a
caminho da igreja ou da loja de um fornecedor, mas sem olhar em redor.
Uma, de passagem, deixou cair uma moeda na mão de Hervé,
pedindo-lhe que rezasse por ela. Era como se um imenso cobertor se
tivesse abatido sobre Paris...
Em redor do recinto murado do Templo, cujas saídas estavam
guardadas por cordões de soldados, ainda era pior. Também ali se
formavam grupos, as pessoas olhando sem saber bem o que
esperavam. A multidão habitual de miseráveis, que aparecia todos os
dias para receber comida e esmola do Templo estava presente, mas em
vez de se pressionarem na direcção das torres de entrada, onde estava
o corpo da guarda, permaneciam sentados a alguma distância, olhando
também eles para aqueles homens de rostos fechados sob os chapéus
de ferro como se fossem outros tantos anjos exterminadores munidos de
espadas flamejantes guardando o Paraíso perdido.
Os dois falsos monges tinham um sentimento próximo daquele.
Com a diferença de que não se tratava, para eles, de um éden proibido,
mas sim a sua casa, da qual conheciam cada aspecto, cada recanto. O
Templo era uma cidade dentro de uma cidade com os seus numerosos
edifícios, a sua magnífica capela redonda encimada por uma cúpula
lembrando o Oriente, o seu hospital, os seus alojamentos, a sua torre de
César edificada no século anterior: três andares quadrados com uma
única divisão por andar e também a esplêndida obra terminada pouco
antes pelo irmão Hubert: a Grande Torre a que chamavam, também, o
Torreão, uma verdadeira fortaleza por si só, também ela quadrada mas
flanqueada por torres redondas, erguendo a cinquenta metros de altura
as suas guaritas de ardósia azul. Tinham-na construído para albergar o
Tesouro {29}...
Havia, também, a bela sala capitular, as grandes cavalariças, a
herdade, o bebedouro, o cemitério, a prisão e o pelourinho da Ordem.
Sem contar com o moinho, a padaria e aquilo a que chamavam a terra
enfeudada, o espaço regido pelas leis feudais onde viviam os pedreiros,
os talhadores de pedra e os carpinteiros que trabalhavam no Templo. Tal
como o resto da fortaleza, a terra enfeudada encontrava-se fora do
poder real, beneficiando, entre outras coisas, como todos os corpos de
profissões nobres dos construtores, de isenções acordadas no reinado
de São Luís.
As altas muralhas escondiam o conjunto, mas a memória dos dois
templários era fiel... Os dois cavaleiros aproximaram-se de um dos
mendigos, um homem dos seus quarenta anos que se mantinha de pé e
de braços cruzados encostado a uma cerca e convenientemente
escorado pelos seus ramos ligeiros. O homem não se parecia nada com
os seus confrades. Apesar de as suas roupas terem sofrido ao ponto de
mostrarem numerosos buracos e esfoladelas, parecia ter conhecido
melhores dias visto que o tecido gasto era de qualidade, tendo sido
cortado por uma tesoura hábil. Os seus cabelos grisalhos eram
compridos, emaranhados e a barba flocosa, mas os seus olhos
castanhos continuavam vivos apesar de ser difícil adivinhar-lhes a
expressão.
- A paz do Senhor esteja convosco, meu irmão - disse Hervé após
uma leve tosse. - Posso perguntar o que fazeis aqui?
O homem lançou-lhe uma olhadela rápida e depois encolheu os
ombros:
- Como podeis ver, faço como os outros. Espero!
Se bem que a voz fosse um pouco rouca, talvez devido à bebida, o
homem exprimia-se com nobreza e Hervé pensou que ele não viera,
certamente, do lodo do rio.
- E que esperais vós? Perdoai-me, por favor, a minha curiosidade,
mas o meu irmão e eu, como percorremos um longo caminho e vimos de
longe, não estamos a par do que se passa em Paris.
- Vindes assim de tão longe que não tenhais ouvido o rumor que
percorre o reino?
- De facto! Disseram-nos que o Rei se tinha apoderado de todas as
comendadorias do país. Isso parece tão incrível! E mais ainda neste
momento, em que vemos que aqui - onde nos disseram que era o
Templo de Paris - tanta gente à espera da esmola... Foi, então, um boato
falso?...
- Foi um boato verdadeiro... E ninguém está à espera de nada dos
que estão ali dentro.
- Os templários já não estão lá dentro?
- Estão. O Grão-Mestre e os seus dignitários estão, segundo parece,
fechados no Torreão e alguns dos irmãos na prisão, mas muitos dos
cavaleiros foram levados para Saint-Martin-des-Champs e para outras
masmorras para serem interrogados. Eram, mais ou menos, cento e
cinquenta, mais os sargentos e os servos. Só resta um punhado -
acrescentou o mendigo num tom onde se percebia alguma cólera. - E foi
o Rei em pessoa que tratou de tudo!
- O Rei? Mas nós ouvimos dizer que ele estava no castelo de
Pontoise.
- De onde vindes vós, afinal?
- Da... Normandia. O convento que nos acolheu ardeu...
- A sério? E onde era esse convento, dizei lá?
Olivier deu um pontapé discreto nas pernas do seu companheiro
para o incitar à prudência. O mendigo estava a fazer demasiadas
perguntas.
- Nos arredores de Dieppe!
Hervé juraria que se acendera uma chama nos olhos do homem,
mas, a ser verdade, apagou-se de imediato. Assim, para evitar dar mais
indicações, disse:
- Tendes a certeza de que o Rei está cá?
- É claro que está! Chegou nos calcanhares dos que estiveram
encarregues das prisões. Ignorais, bem entendido, como foi executada a
operação?
- Bem entendido.
- Então, ficais a saber que na madrugada da última sexta-feira,
décimo terceiro dia deste mês, o novo chanceler Guilherme de Nogaret.
Acompanhado do capitão da guarda Raynald de Roye, entrou no Templo
depois de ter mandado abrir a porta com uma mentira, dizendo que ia
"da parte do Rei" para falar com o Grão-Mestre acerca de um assunto
que não podia ser adiado. Entrou, de facto, mas com uma tropa bem
armada, que se apoderou logo do recinto sem desferir um tiro.
Apanhados, por assim dizer, com as calças na mão, os templários não
se defenderam. - Um templário só tem o direito de lutar contra os
inimigos da Fé, ou os inimigos da Ordem. Não contra os seus - observou
Olivier.
O homem estremeceu. O seu olhar, até ali fixo na porta bem
guardada do recinto, virou-se para ele:
- Como é que sabeis isso?
- O Templo existe há tempo suficiente para que toda a gente o
saiba. Sobretudo nas comunidades...
- Talvez... Para terminar com o que queríeis saber, direi que logo a
seguir ao guarda dos Selos - de facto ele só o é há duas semanas, como
que por acaso! - entrou Guilherme Humbert, a quem chamam Guilherme
de Paris. É o confessor do Rei, mas esse dominicano implacável já era o
Grande Inquisidor de França. Quanto a Nogard, desde o atentado contra
o Papa Bonifácio VIII em Agnani, é conhecido como um homem tão cruel
quanto brutal. É só para saberdes o que os templários vão sofrer!
- Seria injusto! Eles dependem apenas do Papa Clemente V Se têm
algo contra eles, penso que se limitarão a prendê-los para os entregar
em seguida a Sua Santidade?
O desconhecido, que ouvia com um interesse crescente, sorriu:
- Que chama a defendê-los, da parte de um monge mendigo! A
menos que tenhais parentes... ou amigos na Ordem. A menos que...
Compreendendo demasiado tarde que ele, o silencioso, se estava a
deixar levar pela indignação, Olivier corou.
- A menos o quê? - perguntou ele com uma altivez que era, também
ela, uma imprudência.
O homem inclinou-se para ele para murmurar:
- Que sejais um deles... como eu!
- Vós?
O pé de Hervé esmagou o seu para o incitar à prudência. Podiam
estar a lidar com um provocador, mas Olivier estava demasiado excitado
para parar. O seu olhar fixou o do homem, que não se virou, continuando
antes com um ardor sombrio:
- Eu, Pedro de Montou! Fui desonrado e expulso da Ordem há cinco
anos e escapei por pouco à morte por ter ousado atacar o monstro que
desviou uma parte do Templo com uma doutrina satânica de rituais
infames, rituais esses que vão ser a sua perdição, já que o Rei acredita -
graças a denúncias anónimas! - que o Templo está podre na sua
totalidade.
Olivier trocou um olhar com Hervé, que cessara de lhe esmagar os
dedos dos pés doloridos e se interessara pelo diálogo. A dúvida já não
era possível porque o rancor e a dor reflectidos naquela voz surda não
eram fingidos. Acabavam de ter ambos a mesma ideia, mas foi Olivier
que segredou:
- Esse... esse monstro não se chamava Roncelin de Fos?
Montou virou para ele uns olhos terríveis, de tal modo chamejavam
de raiva.
- Conhecei-lo?
- O meu pai conheceu-o e eu também, assim como aqui o meu
irmão... Não para nosso bem, mas sinto-me feliz por poder trazer-vos
alguma tranquilidade...
- Tranquilidade? Apenas a sua morte me pode tranquilizar.
- Talvez, se ela já se apoderou dele a esta hora, porque na última
Primavera a mão do preceptor da Provença, Clement de Salernes,
abateu-se sobre ele. Foi julgado e condenado ao "muro" do
esquecimento do castelo de Ruou. Na sua idade, não deve resistir muito
tempo...
- Por fim, Deus fez justiça!
Uma intensa expressão de felicidade inundou o rosto daquele
cavaleiro, cuja miséria obrigara a mendigar. Pierre de Montou atirou a
cabeça para trás, fechou os olhos e as lágrimas, de alívio, sem dúvida,
correram por entre os pêlos e a sujidade do seu rosto. Quando os
reabriu, teve, para aqueles que acabavam de o libertar, um sorriso
alegre:
- Não sei quem sois, mas muito obrigado! Libertastes-me e agora já
posso morrer feliz!
- Por que razão haveis de morrer? Não tendes família, domínio, para
estardes reduzido a esse estado?
- Não. Os meus rejeitaram-me, tal como o Templo. Não lhes quero
mal, assim como não quero mal à Ordem. Ela pensou julgar bem e eu
continuo a ser um templário de coração. Até lhe quero prestar um último
serviço... Mas agora separemo-nos, irmãos! Fazei-me o favor de vos
afastardes de mim! Acreditai-me, abandonai este local!
Até com esse hábito estais em perigo...
- Não estamos mais do que vós com esses farrapos! - disse
tranquilamente Hervé. - A propósito, perguntamos-vos de que estáveis à
espera, assim como aqueles infelizes...
Ninguém vos virá dar esmola...
- Vem, vem! Desde a madrugada das detenções que o Rei Filipe
está no recinto e deve sair durante o dia para regressar ao palácio da
Cité! E ele vai ser generoso - é-o sempre quando se passeia sozinho
pelas ruas - para que o povo goste cada vez mais dele... Assim, vou
aproveitar!
- E por que não nós também? - perguntou Aulnay. - Os errantes que
nós somos precisam muito de assistência...
- Sem dúvida. No entanto, segui o conselho que eu vos dou... peço-
vos: ide-vos daqui!
- Não pode ser - ripostou Olivier. - Eu ando à procura de notícias do
irmão Clement de Salernes, que venero, e não sairei daqui sem as ter
conseguido...
- Sois tão louco que acreditais que vo-las darão? Se ele estava aqui
na noite do golpe de força de Nogaret, ainda aqui continua! Não espereis
mais! Regressai depois de o Rei partir.
- Mas, enfim - resmungou Hervé entredentes - por que razão não
quereis que fiquemos aqui convosco? Nós somos o que supondes e
temos tanto direito como vós!
O mendigo desatou a rir com um riso seco, sem alegria, que não lhe
iluminou os olhos, ao mesmo tempo que dizia com uma estranha doçura:
- Qual direito? O de morrer na tortura comigo? Eu vou matar Filipe
no momento em que ele me der a esmola. Para mim, é a única maneira
de salvar o Templo! O herdeiro é um cobarde, que não terá coragem
para prosseguir. Aliás, se o tio dele, Carlos de Valois, que gostava de
nós, sonhasse, tê-lo-ia impedido...
Os dois amigos já tinham visto demasiado durante aqueles últimos
dias para se espantarem com aquela determinação regicida. Podiam
compreendê-la, mas era preciso fazer com que aquele homem desistisse
do seu projecto:
- Não conseguireis - disse Olivier. - Ides ser massacrado para
nada... e talvez todos estes infelizes que aqui estão.
- Serei o último.
O homem abandonara a cerca a que estava encostado e já se ia
colocar a seguir aos outros quando a fortaleza do Templo se animou: a
ponte levadiça desceu com lenta e majestosamente, a grade ergueu-se
e o cortejo de Filipe, o Belo apareceu. Muito simples! Vestido de
cinzento-claro forrado com pele de esquilo e com um capuz a condizer, o
Rei seguia a pé, com muitas vezes e conversava com o seu secretário
Raul de Presle, seguido por uma ligeira escolta de arqueiros às ordens
do seu capitão Alain de Pareilles. A multidão - engrossara depois da
chegada dos falsos monges - aclamou-o. O Rei saudou-a com um gesto
da mão enluvada sem deixar de ouvir o que lhe dizia Presle. No entanto,
interrompeu-o para distribuir as moedas tiradas de um saco seguro por
um servo. O ar encheu-se com as bênçãos daqueles a quem ele valia e,
coisa extraordinária, o seu belo rosto impassível de olhos tão frios teve,
para eles, o esboço de um sorriso.
Não sabendo que fazer, Olivier e Hervé, loucos de ansiedade
perante o que ia acontecer, viam diminuir a fila de mendigos entre
Montou e o seu alvo. Mais um... e ainda um! Subitamente, quando só
restavam apenas três homens, Olivier teve uma ideia. Com toda a força
dos seus pulmões, gritou:
- Roncelin de Fos! Está ali!
Pedro de Montou teve um sobressalto, virou-se, viu Courte-nay
erguer um braço estendido na direcção oposta a Filipe e, de imediato,
correu nessa direcção. O ex-templário hesitou apenas um instante e,
girando nos calcanhares, atirou-se pelo meio da multidão para se juntar
aos dois homens.
Ora, o que acabava de acontecer era insensato, incrível, no limite da
razão porque, no momento em que evocava o seu nome, nesse mesmo
instante, Olivier vira, na verdade, o templário maldito. O cavaleiro nem
procurara dizer a si próprio que não era possível, que Fos não pudera
escapar à masmorra onde o tinham metido, apoderando-se dele um furor
cego, e lançara-se ao ataque daquele que encarnava tudo aquilo que
odiava.
A multidão era densa e opunha-lhe a resistência da sua massa. O
cavaleiro opôs-lhe uma força que não era de esperar de um monge
franciscano, não sem alguns protestos, mas sentia-se como que atraído
por um íman na direcção daquele ângulo do castelo onde, içado, sem
dúvida em cima de uma pedra, ou de um apeadeiro de cavalo, vira, com
extraordinária nitidez, o rosto execrável; mas, quando lá chegou, só
havia uma meia dúzia de rostos enfurecidos, não se parecendo em nada
com o que procurava...
- Eu vi-o, por Deus! Estava ali um velho alto todo vestido de negro...
- Eu também vi - secundou-o Hervé.
- Estava ali, mas já não está - disse um dos descontentes. - É uma
maneira como outra qualquer de pisar os pobres. Se é assim que
procurais a caridade...
- Pergunto a mim próprio para onde terá ido?
- Para ali ou para além - disse o outro, trocista. - Que sei eu? Em
todo o caso, faríeis bem em desaparecer! O nosso sire Filipe é capaz de
querer algumas explicações da vossa parte...
De facto, no rasto de Montou, que acorria, Pareilles enviara um
destacamento de arqueiros para restabelecer a ordem. Sempre
apreciadora de belas zaragatas, prisões musculadas ou outra ruptura
qualquer da rotina quotidiana - ou pouco desejosa de se ver molestada! -
a multidão abriu-se sensatamente perante o seu avanço.
Compreendendo rapidamente que iam ser presos e, sem dúvida,
rapidamente reconhecidos, Hervé arrastou o amigo:
- Fujamos!
Olivier seguiu-o sem discutir e sem se preocupar mais com Montou.
Os dois amigos fugiram às cegas, não sabendo bem para onde ir.
Juntos, representavam quase a força de um aríete e toda a gente se
afastou perante a sua carga. A multidão era cada vez menos densa, mas
nas suas costas os arqueiros continuavam a persegui-los. Os dois falsos
monges acabavam de abrandar para virar para uma ruela estreita, no
ângulo da qual estava a tenda de um padeiro cujo odor a pão quente
quase os fez desfalecer, lembrando-lhes que tinham fome, quando
apareceu subitamente na sua frente um homem que os agarrou a ambos
por uma manga e os atirou para a entrada de uma cave em risco de lhes
partir os ossos, seguindo-os logo a seguir e fechando a entrada. O
movimento, muito rápido e protegido pelo ângulo da ruela, de tal modo
estreita que a luz do dia mal penetrava nela, escamoteou-os literalmente
sem atrair a atenção de ninguém. Pouco depois, o passo ferrado dos
homens de armas, continuando na sua perseguição, disse-lhes que, por
alguns instantes, pelo menos, o perigo passara.
Na cave para que tinham sido atirados brutalmente por uns degraus
abaixo felizmente curtos, não se via nada, mas a voz do estranho, para o
qual não tinham tido tempo de olhar, ergueu-se:
- Peço-vos desculpa por vos ter maltratado, sire Olivier, mas não
havia tempo para cerimónias!
- Dir-se-ia... - disse o templário, para quem aquela voz não era
estranha. - Sois Machieu de Montreuil?
- É verdade! E bem feliz por estar presente e por vos ter
reconhecido a tempo! Estão todos preocupado convosco, não sabendo
se também tínheis sido preso na outra noite. Não partistes nada,
espero?
- Não. E, antes de mais, obrigado, mas explicai-me o porquê da
vossa presença.
- Desde as detenções que venho todos os dias para ter a certeza de
que não estáveis em Saint-Martin-des-Champs, onde conheço toda a
gente, visto que trabalhei lá.
E reconheci-vos quando estáveis a falar com o mendigo e estava a
pensar em esperar que o Rei se fosse embora para vos oferecer a minha
ajuda... Confesso que não percebi muito bem o que aconteceu. Vós
gritastes, ficou tudo confuso... e eu disse para mim mesmo que era
preciso fazer qualquer coisa...
- Mas como é que chegastes aqui antes de nós?
- Eu conheço a cidade melhor do que vós. Segundo o percurso que
estáveis a tomar, devíeis passar em frente desta casa, que pertencia a
uma velha prima e que eu herdei.
Então, corri abri a tampa... e já sabeis o resto... E agora é preciso
ter paciência! Só poderemos sair daqui quando cair a noite, mas antes
do fecho das portas!
- Não sei que dizer-vos, mestre Machieu, senão obrigado!
- disse Olivier, comovido. Correstes um grande risco, vindo em
nossa ajuda... E tendes família!
- Teríeis feito o mesmo no meu lugar. A amizade que existiu entre o
vosso pai e o meu não continua viva?
- Oh sim, e é por isso que me recuso a abusar dela, se vos puser
em perigo. Se conseguirdes fazer-nos sair de Paris esta noite, por-nos-
emos ao largo e será melhor assim.
- E para onde ireis? O domínio provençal de messire Renaud fica
longe!
- É verdade - interveio Hervé - mas não iremos até tão longe.
Apenas até Moussy, onde o meu irmão nos acolherá, espero. Ele está
bem visto na corte. O filho mais velho, Gautier, já é pajem de monsenhor
de Poitiers e estava previsto o mais novo, Filipe, entrar para o serviço de
monsenhor de Valois...
- Por agora, vindes comigo para Montreuil. Deveis precisar - pelo
menos é o que parece! - de um pouco de repouso e de uma boa
refeição...
- Confesso que temos fome e que estamos cansados - murmurou
Olivier com um pouco de vergonha. - É lamentável dois templários
estarem reduzidos à mendicidade...
- Por isso mesmo, está fora de questão deixar-vos continuar.
Pensai, sire Olivier, que é apenas uma questão de amor-próprio ferido,
ao passo que os vossos camaradas...
Desde que foram presos, messire de Nogaret e o Grande Inquisidor
interrogam-nos com tudo o que este nome sugere.
- Quereis dizer que estão a torturá-los? - perguntou Hervé, que
sentiu os cabelos eriçarem-se-lhe...
- Com que direito? - insurgiu-se Olivier. - Apenas o Papa pode
julgar-nos e é a ele que os nossos irmãos devem ser entregues...
- Os factos de que os acusam são demasiado graves para que o Rei
e os seus homens de leis se contentem com a expulsão. Não sabíeis?
- Sei que falam em nos atirar para a fogueira, mas só Sua Santidade
tem o direito de fazer isso. Ora, nós nunca cometemos aquilo de que nos
acusam! Nesse caso, porquê a tortura?
- Porque o Rei está convencido da culpa e exige confissões rápidas,
justamente para as apresentar ao Papa!
Olivier não respondeu. O cavaleiro sabia que Machieu tinha razão,
que os seus protestos eram em vão e que ele próprio não acreditava
neles. O que não ousava perguntar a si próprio era qual seria o seu
futuro se conseguisse escapar à perseguição, porque aquilo não era
outra coisa! E até que Machieu abrisse de novo o alçapão para os fazer
sair, ficou fechado nos seus pensamentos e não pronunciou uma única
palavra. O pensamento do irmão Clement obcecava-o e a ideia de que
ele tivesse sido entregue aos atormentadores despedaçava-lhe o
coração. O cavaleiro não via como socorrê-lo e sentia-se terrivelmente
miserável e impotente...
A noite cerrada encontrou os três homens a caminho do porto
tranquilo de Montreuil e do lar do mestre construtor. Uma paragem
reconfortante numa estrada eriçada de perigos...
Olivier não imaginava, por um só instante, que ia ficar naquela casa
mais do que uma noite...
PARTE 2 – A CATEDRAL REBELDE
VI – AS ANGÚSTIAS DA DAMA BERTRADE
Mesmo na palma da mão, que se erguia como se numa oferenda na
direcção das chamas das grandes velas a jóia encheu-se de uma luz
escarlate e cintilou como se um minúsculo vulcão tivesse explodido na
palma da mão da Rainha de Navarra. Para provocar outras cintilações,
das quais algumas se reflectiam no seu rosto, ela virou a mão em volta
do seu delgado punho e, finalmente, suspirou:
- É maravilhosa, mestre Pedro, mas já gastei muito dinheiro este
mês com as minhas toilettes. Uma nova compra não seria razoável...
Pedro de Mantes era o joalheiro do Rei Filipe e limitou-se a sorrir,
inclinando-se:
- A beleza e a razão não se dão bem, Madame e nada é demais
para a futura Rainha de França. Sobretudo para uma circunstância tão
importante.
O pequeno discurso fazia parte do jogo. Seria preciso, talvez,
acrescentar mais algumas palavras, mas o orador estava seguro de
atingir o seu fim. Margarida adorava os rubis, como tudo o que era
vermelho, a sua cor favorita, e ele sabia que ela não resistiria muito
mais. Sem tirar os olhos da jóia, ela perguntou:
- Estais a pensar na vinda anunciada da minha cunhada de
Inglaterra?
- De facto, e quando recebemos de Veneza estas pedras
admiráveis, que vieram ainda de mais longe, esta fivela compôs-se por si
própria com o seu entrançado de ouro e esmalte. As pérolas que
sobressaem são de uma grande pureza e de um grão raríssimo.
Exactamente o que é preciso para exaltar o esplendor daquilo a que os
Orientais chamam "as gotas de sangue do coração da Terra Mãe"!
Margarida levantou-se da sua cadeira incrustada de prata, cristal e
topázios {30} e foi até à grande chaminé onde crepitava um belo fogo -
estava-se em Março e o Inverno ainda se fazia sentir - arrastando
consigo o longo vestido de veludo púrpura, aquecido por uma sobreveste
bordada a arminho. Os olhos do joalheiro tornaram-se maiores:
com o lento oscilar dos passos, o vestido abria-se até às ancas,
revelando, por brevíssimos instantes, umas pernas encantadoras. O
espectáculo era perturbador, mas Pedro de Mantes era suficientemente
sensato para não se deixar desviar dos seus propósitos. O joalheiro
perguntou simplesmente a si próprio o que pensaria o Rei Filipe de um
vestido daqueles, ele, que nunca esquecera a sua mulher e que não
gostava que se usasse, na sua corte, vestuário ligeiro.
Margarida, entretanto, continuava com a fivela na mão. Era em
frente das chamas da chaminé que ela mirava, agora, os três grandes
rubis. O seu belo rosto reflectia o seu fascínio, o desejo que tinha por
aquela jóia. Pedro de Mantes tossicou:
- Fica-vos tão bem, Madame... e, quanto ao pagamento, talvez se
possa fazer qualquer coisa?
Com a ponta do dedo, Margarida acariciou as pedras, como o teria
feito a um gato.
- Que lhe fareis se eu não a comprar? - perguntou ela sem olhar
para ele.
- Irei oferecê-la ao nosso sire Filipe. Talvez ele a queira oferecer à
Rainha Isabel quando ela chegar...
Um lampejo de cólera atravessou os profundos olhos negros da
Rainha de Navarra:
- Isabel? Porquê Isabel?
- É uma jóia de Rainha, Madame, que não pode ir para outra dama
qualquer, mas confesso que me custaria muito. Madame Isabel é loura.
O rubi é um adorno de mulher morena e nenhuma é mais magnífica do
que vós, Madame-acrescentou ele, atrevendo-se a uma olhadela
apreciadora que, depois de uma passagem rápida por um corpo que
devia ser, sem qualquer dúvida, soberbo, se demorou nos lábios
carnudos e nas grandes pupilas de um negro de veludo ornamentadas
de longas pestanas de um negro de veludo, pousadas, como uma
máscara, na pele cor de marfim nacarado. Pequena mas extremamente
bem proporcionada, Margarida tinha o brilho e a perfeição de uma rosa
no instante em que desabrocha. Mãe há três anos de uma rapariga,
continuava a ter a esbelteza de uma jovem. De carácter orgulhoso, não
se ofendeu, no entanto, com o olhar do comerciante. Ele era um homem
de gosto e ela gostava de seduzir, gostava de ver a perturbação nos
olhos masculinos.
Virando-se subitamente para a dama que, perto da janela, lia um
livro das horas, disse:
- Madame de Courcelles, tende a bondade de me ir chamar Aude.
Dizei-lhe que me traga o manto de camocas que tem andado a preparar
para mim...
A dama, uma jovem de rosto fino e inteligente encerrado num véu
de seda branca a condizer com o capuz bordado a violeta, levantou-se e
saiu para regressar quase de imediato com uma jovem cujos cabelos
longos, de um louro-prateado, lhe caíam livremente sobre as costas, por
baixo da pequena touca lisa de seda azulada presa por uma fita de
musselina que lhe dava a volta ao queixo. Aude segurava nos braços
estendidos um tecido de brocado branco tecido a ouro e forrado de
tafetá carmesim, com que tapou os ombros que Margarida lhe ofereceu.
Vestida com aquelas pregas cor de neve, a jovem Rainha foi até um
espelho de bronze bastante grande pendurado numa das paredes e
colocou a fivela na base do pescoço, onde ainda não tinha estado
qualquer fecho. Junto do seu rosto radiante, o efeito era mágico e Aude
juntou as mãos com um sorriso fascinante:
- Oh, Madame! É o fecho que lhe fica bem!
- Creio que vou ficar com ele...
Em seguida, virando-se para Pedro de Mantes enquanto segurava
nas pregas do manto sumptuoso com uma mão, ela exclamou:
- Muito bem, mestre Pedro, seduzistes-me uma vez mais. Aliás,
penso que era o que esperáveis!
- Esperava, Madame - disse ele, inclinando-se profundamente. -
Esperava...
- Está dito! E agora ide ter com Madame de Comminges, que trata
do meu cofre e tratai com ela o preço de que falastes {31}...
O joalheiro saiu, saudando, enquanto Margarida, subitamente de
excelente humor, se ia admirar de novo, ajudada por Aude, feliz por ver a
sua obra tão maravilhosamente completada.
- Isto vai admiravelmente com aquele belo cinto que... monsenhor
Luís vos deu aquando da vossa festa - disse ela. - Os rubis são maiores,
mas a cor é semelhante!
- Tens toda a razão!
Ao longo dos anos, Margarida ligara-se cada vez mais à filha de
Machieu de Montreuil. A beleza radiante da jovem não a preocupava,
bem pelo contrário: a jovem Rainha gostava de a ter junto de si por
causa do contraste com o seu esplendor moreno. Margarida estava
demasiado segura dela mesma para temer fosse quem fosse. Além
disso, Aude, tímida e reservada, era sensata e repelia, suave e
firmemente, aqueles que se arriscavam a dirigir-lhe galanteios, e isso
não desagradava à jovem rainha. Um dia. Por ocasião do último Natal,
fizera-lhe a pergunta:
- Há poucas jovens aqui tão belas como tu - disse-lhe - e os pedidos
de casamento... ou outra coisa, não te faltam! Alguns vêm de jovens
senhores bastante sedutores.
Como é possível nenhum ter chegado a tocar-te? Que idade tens?
- Vou fazer vinte anos, Madame.
- E o teu coração ainda não falou? É inacreditável! Então, Aude
pousara em Margarida o seu olhar transparente, subitamente sonhador:
- O meu coração já falou há muito tempo, Madame e, depois disso,
nunca mais mudou de opinião.
- A sério? Fico mais descansada! E quem é esse feliz jovem?
Porque suponho que não é nenhum velho.
- Velho, não, isso nunca há-de ser. Assim como eu nunca serei sua -
acrescentou ela, levada por uma necessidade espontânea de se
confessar.
A jovem aprendera a conhecer Margarida, sabia-a orgulhosa mas
boa e generosa. Longe de troçar, como o teria feito a sua tia Bertrade,
para quem subir na vida exigia um bom casamento.
- Mas porquê? Não me digas que ele ama outra, porque é
impossível! Só se fosse eu - acrescentou ela, rindo.
- Não. Ele não ama outra... a não ser Nossa Senhora! Os olhos
negros ainda ficaram maiores:
- Um padre? Ou um monge? É verdade que os há agradáveis, mas
seria um grande azar...
- Pior ainda, Madame - disse Aude quase a chorar. - É... um
templário - confessou ela de repente.
Uma sincera expressão de piedade adoçou o rosto da jovem. A
Rainha colocou um braço em redor dos braços da sua dama-de-
companhia:
- Pobre, pobre pequena! E, naturalmente, tu não sabes se ele ainda
está vivo?
- Está vivo, mas não sei onde... Mas não importa, ele nunca olhou
para mim e eu não tenho nada a esperar dele...
- E apesar disso, ama-lo?
- Oh sim, Madame!
- Que desperdício! Tu és jovem, bonita, inteligente, bordas como
uma fada e podias reinar ao mesmo tempo numa casa e no coração de
um belo rapaz, que amarias muito.
E escolheste o impossível...
- Não podemos escolher, Madame!
- A quem o dizes! Escuta, se, por acaso, o teu templário - em fuga,
imagino! - precisar de ajuda, diz-me. Dar-te-ei... dinheiro para pagar a
um carcereiro, por exemplo, ou para um salvo-conduto... Gostava tanto -
exclamou ela num daqueles impulsos do coração que ela não controlava
e que eram raros, mas que lhe valiam muitas amizades - de te ver feliz!
Ao menos tu!
Perturbada, Aude deixou-se cair por terra para beijar os pés daquela
que se declarava tão abertamente sua protectora, mas Margarida fê-la
levantar-se e beijou-a:
- Nestes dias maus, durante os quais nunca mais acaba a
perseguição ao Templo, o julgamento do Templo, a tortura do Templo, o
Templo à fogueira, hão-de acabar - disse ela. E há-de chegar o dia em
que serei Rainha de França e veremos, então, o que poderá ser feito
para te ajudar...
A partir daquele dia, Aude passou a sentir por Margarida uma
espécie de veneração...
Margarida ainda se admirava ao espelho quando o meirinho abriu a
grande porta para deixar passar o grupo mais alegre, mais brilhante... e
mais barulhento que havia:
as primas e cunhadas de Margarida, Joana de Poitiers e Branca de
La Marche, escoltadas por um belo fidalgo de uns trinta anos que elas
pareciam conduzir à força, segurando-o cada uma por uma mão. Ele
defendia-se, rindo, mas com pouca energia:
- Margarida - exclamou Branca - trazemos-te aqui messire d'Aulnay.
Encontrámo-lo lá em baixo, com uma mensagem do marido de Joana
para o teu... Oh, como é belo!
- acrescentou ela, deixando a sua presa para se precipitar para a
prima e dando um ligeiro encontrão em Aude...
- Atenção - protestou Margarida - vais-me rasgar toda! Deixai a
vossa mensagem, messire Gautier. O meu marido não está: foi à caça
para Vincennes, com o Rei. Os homens da família não estão lá todos?
- Não, nem monsenhor de Poitiers... nem monsenhor de Valois -
respondeu o interpelado com uma voz quente que provocou um sorriso
nos olhos de Margarida.
- Por que é que, nesse caso, o vosso irmão não vos acompanha, já
que, salvo quando estais em serviço, nunca vos separais? Branca, está
quieta e devolve-me a fivela!
Acabo de a comprar e sabes muito bem que nunca ta darei!
A Rainha de Navarra tirou a jóia das mãos da jovem louca, tirou o
manto dos ombros e deu o conjunto a Aude que, à entrada das
princesas, dobrara o joelho.
- Ide acabar a obra, pequena - disse ela num tom mais doce -
depois entregai-o a Madame de Courcelles para que o guarde...
Sob os protestos de Branca, que a impediram de ouvir a resposta do
fidalgo, Aude saiu da sala por uma porta discreta que dava para o
guarda-roupa de Margarida. Ali encontrou a sua tia Bertrade que,
apoiada numa bengala - fizera uma entorse oito dias antes! - coxeara até
ali vinda do alojamento que as duas ocupavam no andar superior e,
sentada junto da janela, bordava de cor-de-rosa um vestido de veludo
branco destinado à filha de Margarida, a pequena Joana, de três anos.
- Minha tia! - reprovou-a Aude. - Que fazeis aqui apesar de o médico
vos ter dito para não deixardes o vosso quarto durante duas semanas?
Descer uma escadaria tão íngreme foi uma verdadeira imprudência!
- Deixa lá! Aborreço-me tanto lá em cima! Mas, falando de
imprudências, conheço alguém que as comete muito piores!
- De quem estais a falar?
Bertrade sacudiu a cabeça com impaciência, fungou e disse:
- Não é um dos irmãos d'Aulnay que eu acabo de ver chegar ao
mesmo tempo que as princesas?
- De facto! Messire Gautier! Elas encontraram-no lá em baixo,
quando ele trazia uma mensagem para o nosso sire Luís!
- Tretas! Chegaram juntos, o cavalo de messire Gautier logo a
seguir à liteira das princesas! Ainda bem que o irmão não vinha com ele!
Isto ainda vai acabar mal!
- Isto? Isto o quê?
Bertrade parecia de mau humor; bruscamente, ela abandonou a
agulha e olhou para a sobrinha com um ar infeliz:
- Mais uma vez, falei demais! Faz de conta que não disse nada e
falemos de outra coisa!
Com muita doçura, Aude tirou a obra das mãos da tia e ajoelhou-se
a seus pés:
- Querida tia - disse ela - sentis-vos infeliz e eu compreendo por que
razão. Tenho a impressão de que temeis algo! Não me quereis dizer o
que é? Eu já tenho vinte anos, como sabeis...
Com a ponta do dedo, Bertrade acariciou a face fresca:
- Tantos? Continuo com a impressão de que ainda ontem entraste
para aqui. Coisa de que me arrependo! Não devia ter-te tirado da casa
do teu pai...
- Mas porquê? Porquê? Não estou bem ao pé de vós... e também de
Madame Margarida, que é tão boa para mim? Dediquei-me a ela e
deixá-la ser-me-ia, agora, muito doloroso!
Além do mais, não estais a pensar no que dissestes.
- Oh sim, estou! Acontece que se passam coisas bem estranhas
nesta casa e, a princípio, recusei-me a acreditar nelas, mas os meus
receios estão em vias de se transformar em certezas! Nunca reparaste
em nada? A sério? Em Madame Margarida e na velha torre - prosseguiu
ela - que ela mandou transformar num pequeno apartamento há... quatro
anos, para se retirar e meditar, afastar-se dos ruídos da casa, ver o pôr
do Sol no Sena, que sei eu?
- Sem dúvida, mas não está no seu direito? Um capricho como
qualquer outro, acho eu - acrescentou a jovem sorrindo. - Além disso, vai
lá poucas vezes!
- De dia não. De dia nunca lá vai. Mas, à noite, é outra coisa:
garanto-te que vai...
- Por que não? Reza-se e medita-se melhor à noite, quando os
ruídos da cidade e da casa se extinguem!
Bertrade ergueu os olhos para o tecto. A pureza daquela criança
fazia-a achar naturais as menores bizarrias da vida humana! A anciã
perguntou a si própria se devia continuar, mas sentiu que a curiosidade
de Aude tinha acordado e, não importava como, já não era possível
voltar atrás:
- Tens, sem dúvida, razão - suspirou ela - mas, em certas noites,
monsenhor Luís fica retido no palácio, acompanhado pelo pai num
assunto qualquer. Além disso, essas noites, a sua prima Branca vem
passá-las com ela. Sempre Branca e nunca Joana, quando monsenhor
de Poitiers, também ele, se ausenta.
- Madame Branca é mais nova, mais alegre...
- Isso é verdade! E é muito mais fácil meditar e rezar na companhia
de uma jovem louca que ri e brinca o tempo todo!
Aude afastou as mãos num gesto de ignorância. Não tinha mais
argumentos e limitou-se a esperar pelo seguimento. Que não se fez
esperar:
- Já foste lá foste, à torre?
- Fazer o quê? Está isolada, afastada dos alojamentos {32} e Madame
Margarida não tem razão nenhuma para me chamar para lá.
- É verdade, mas nunca achaste estranho não entrar lá, nunca,
nenhum servo da casa, à excepção de Marta, a camareira de Madame
Margarida que está com ela desde a infância, e Severino que, também
ele, veio com ela?
- Meu Deus, não! Parece-me natural, pelo contrário, já que se trata
de um retiro muito pessoal! É normal que ela confie totalmente neles...
Dessa vez, Bertrade confessou-se vencida e um pouco aliviada.
Para quê, no fundo, perturbar a paz daquele coração puro, do qual
Margarida possuía, agora, uma parte?
Para quê contar-lhe que, numa das famosas noites em que
Margarida e a prima estavam na torre, Bertrade saíra do seu quarto e,
tomando infinitas precauções para não
acordar Aude, aproximara-se, pelo corredor rigorosamente deserto
que a jovem Rainha mandara arranjar para não passar pelos jardins
quando o tempo estava mau, daquele "retiro" que tanto a intrigava. Ao
fundo da galeria debilmente iluminada, havia um pequeno patamar,
diante do qual Severino - um borgonhês de uns trinta anos, grande como
um urso e pouco mais gracioso! - dormitava sentado num escabelo
iluminado pela luz amarela de um archote pendurado na parede. A anciã
ficou ali um momento a olhar, não ousando avançar mais, mas
estendendo o ouvido na esperança de ouvir o menor ruído. As paredes
eram espessas e ela preparava-se para se retirar quando, subitamente,
a porta diante da qual Severino estava sentado se abriu e o tronco de
Margarida apareceu para perguntar qualquer coisa. Ora, ela só estava
vestida com uma espécie de dalmática cujas pregas apertava contra os
seios, mas que lhe deixava nus os ombros, nos quais se retorciam as
madeixas negras dos seus cabelos soltos. Ao mesmo tempo, um riso
feminino - o de Branca - fez-se ouvir no interior, respondendo a uma voz
de homem que Bertrade reconheceu sem dificuldade: era o timbre grave,
um pouco velado, de Gautier d'Aulnay que, desde há algum tempo, era
visto muitas vezes com o irmão Filipe na esteira das princesas. Sem
esperar pelo resto, Bertrade fugiu a correr e regressou ao seu quarto
sem fôlego. O coração batia-lhe com tanta força no peito que se sentou
por um momento no último degrau da escadaria, tentando acalmar-se. A
anciã tinha a impressão de que a sua respiração soava como uma forja,
capaz de acordar a casa inteira. Finalmente, conseguiu recuperar o ritmo
normal e regressou ao seu leito, mas não conseguiu adormecer. Nas
noites seguintes também não, porque não conseguia deixar de imaginar
o que aconteceria se a marosca fosse descoberta. O conde de La
Marche era um pateta, que adorava tolamente a sua bela e pequena
Branca. Esse contentar-se-ia, sem dúvida, em chorar, mas o Teimoso,
violento e cruel à maneira dos fracos e que já não amava a mulher, à
qual invejava o brilho e a desenvoltura, era capaz do pior. Esse não
ousaria, talvez, matá-la, porque temia o seu pai - que ainda era capaz de
se deixar levar por uma das suas fúrias cegas! - mas atirar-se-ia
certamente às mulheres do seu séquito, que consideraria, certamente,
coniventes. Quando ao próprio Rei Filipe, tão preocupado com a honra
das damas, nada nem ninguém podia prever como reagiria. De qualquer
maneira, se aquele comércio amoroso que, reflectindo bem, durava,
certamente, há mais de dois anos, não terminasse rapidamente, as
nuvens negras que Bertrade via acumularem-se por cima da torre de
Nesle abrir-se-iam num futuro próximo: Com o tempo, os amantes,
tranquilizados por um silêncio cúmplice, andariam cada vez mais
descansados e cometeriam cada vez mais imprudências.
Bertrade sentia-se roída por aqueles pensamentos. Minada pela
insónia, tinha sonolências durante o dia e os seus passos tornavam-se
hesitantes. Daí a queda na escadaria, onde quase quebrara as costas.
Daí, também, o acesso de angústia que a levara a tentar abrir os olhos
da sobrinha.
Como a empresa fracassou, ela resignou-se, mas apenas até um
certo ponto. Era, sem dúvida, melhor que Aude guardasse as suas
ilusões. Era melhor contornar o obstáculo.
O melhor era afastar a jovem da residência de Nesle durante algum
tempo, até que passasse... fosse o que fosse? A pobre não conseguia
explicá-lo, mas o medo que sentia refinava-lhe o olfacto e dizia-lhe que o
que ela temia não estava longe.
Só havia uma solução: levar Aude para a casa paterna sob um
pretexto qualquer. A primeira coisa a fazer era ir a Montreuil falar com a
irmã Juliana, dar-lhe parte
das suas angústias - Juliana era a discrição em pessoa! - e ver com
ela a possibilidade de lhes pôr termo. Provisoriamente, aliás, o tempo
suficiente para que Bertrade
recuperasse a tranquilidade, porque, se nada acontecesse, ser-lhe-
ia impossível não levar de novo para junto de Margarida a sua
bordadeira preferida que muita gente lhe invejava, a começar pelas
cunhadas, e da qual a Rainha de Navarra fizera uma dama-de-
companhia, se bem que Aude não fosse nobre; sem grandes
contestações, estava-se numa época em que o Rei fazia sentar no seu
conselho juristas saídos da burguesia.
Entretanto, era preciso encontrar um pretexto para ir a Montreuil, o
que não era fácil quando se pertencia a uma casa real onde o trabalho
nunca faltava. Ainda por cima com aquela perna que arrastava
miseravelmente e que tardava em sarar. Aquele tempo de espera
forçado permitiu a Bertrade recuperar um pouco de calma e até
tranquilizar-se um pouco. Ia-se entrar na Quaresma e sempre seriam
quarenta dias ganhos, já que as princesas estariam demasiado
ocupadas com os seus deveres religiosos para se divertirem com os
seus amantes - era, infelizmente, o termo indicado! - durante aquele
período sagrado.
Um incidente veio pôr as coisas em questão, precisamente três dias
antes da Terça-Feira Gorda. Naquela manhã, ao mesmo tempo que a
liteira de Branca levava a jovem a sua casa depois de ter passado a
noite junto da irmã e enquanto Margarida dormia, Madame de Courcelles
foi encontrar Bertrade visivelmente contrariada:
- Lembrais-vos - disse-lhe ela - daquela bolsa ornamentada com
rubis e pérolas que Madame Margarida recebeu de presente no último
Natal?
- Com duas outras semelhantes para as princesas, que a Rainha
Isabel mandou para Londres. Por que me perguntais?
- Porque não a encontro! Madame Margarida, que ainda está
deitada, pediu-me que lhe preparasse o vestido púrpura novo bordado a
ouro e veio-me à ideia juntar-lhe esse objecto, cujas cores vão
perfeitamente com a toilette.
- Sem dúvida, mas não esqueçais que a Rainha de Navarra nunca a
usa porque não gosta dela, achando-a muito grande?
- Ela muda com tanta facilidade de opinião quando se trata de
toilettes! Pensei que se sentisse seduzida. De qualquer maneira, tenho
de lhe mostrar outra porque, mais uma vez, não a consigo encontrar.
- É espantoso! Eu vi-a mais tarde, naquela segunda-feira, quando fui
buscar aquela de veludo preto para lhe reparar o bordado, que estava
um pouco rasgado! Ela estava com as outras na arca de ébano e
marfim...
- Eu também pensava que sim, mas vede por vós mesma.
- Meu Deus, Madame, não me atrevo a duvidar da palavra de uma
dama nobre!
- Deixai a minha nobreza em paz! Por agora, somos apenas duas
mulheres ao serviço da Rainha, a quem falta um objecto de toilette.
Segui-me!
Bertrade seguiu-lhe os passos, sem insistir mais, até à sala onde se
guardavam as toilettes da futura Rainha de França, numa colecção de
armários e arcas à altura da sua garridice. As jóias, essas, repousavam
numa enorme arca cravejada de ferro e munida de fechaduras à prova
de roubo, no próprio quarto de Margarida. A maleta de ébano e marfim
aberta de par em par mostrava uma colecção de bolsas de formas, cores
e tamanhos diversos, todas ricamente ornamentadas, mas aquela que
procuravam não estava lá.
Aude, que trazia umas camisas acabadas de passar, afirmou que
também a vira junto das outras no dia assinalado pela sua tia. Mas, à
sua maneira simples e clara, não fez a si própria quaisquer perguntas:
- Não seria melhor perguntar a Madame Margarida? Pode ser que
ela tenha tido a fantasia de a usar e a tenha deixado em qualquer parte?
- Tendes razão, minha pequena! Vamos levar este vestido que
Madame pediu. Ela nos dirá se a usou.
A despeito da hora já avançada, Margarida ainda não tinha saído do
leito, mas o fogo que ardia na grande chaminé espalhava um calor tão
suave que a jovem saíra do seu casulo de lençóis sedosos e de peles e
repousava nua em cima da cama, enquanto as suas servas lhe
preparavam um banho numa barrica vestida com um lençol para o efeito.
Ela gostava de mostrar o corpo esplêndido que a Natureza lhe dera e as
suas damas-de-companhia, habituadas, já não lhe prestavam atenção.
Aliás, a Rainha parecia de mau humor e acolheu com rudeza a sua
dama-de-honor quando esta lhe falou da bolsa:
- Que ideia querer que eu a use quando sabeis perfeitamente que
não gosto dela!
- Mas é bonita, Madame e eu esperava que a Rainha tivesse
mudado de opinião...
- Por que havia de mudar? Basta que o presente tenha vindo de
Londres para me fazer ficar maldisposta! É inútil procurá-la mais! Desfiz-
me dela!
- Desfizeste-vos dela? Mas, Madame Isabel vem visitar-nos em
breve...
Margarida sentou-se na cama e dardejou o seu olhar negro na sua
dama-de-companhia, ao mesmo tempo que a sua voz furiosa martelava:
- E depois? É costume, em dias de festas, trocar de presentes entre
família. A minha cunhada não me vai perguntar por uma bolsa sem
importância! Basta que eu não use nada que dê com ela... a começar
por esse vestido! E agora quero o meu banho!
As três mulheres saíram em silêncio enquanto as servas
começavam a tratar da sua senhora. O quarto enchera-se de uma ligeira
névoa de vapor cheirando a jasmim do Oriente, de que Margarida
gostava muito e elas foram às suas ocupações sem trocarem uma
palavra. Aude porque, para ela, era coisa sem importância, Madame de
Courcelles porque, habituada há muito aos caprichos da jovem Rainha e
Bertrade... porque encontrava de novo os seus receios intactos, que
estavam quase a transformar-se em terror. Apenas um pensamento a
atormentava: a quem dera Margarida a escarcela com granadas. Esta
era, de facto, um pouco grande para uma mulher e daí a pensar que
talvez estivesse nas mãos de um homem, a distância era mínima e
Bertrade transpô-la sem hesitar. Qual dos dois irmãos d'Aulnay usaria
um presente real que Margarida, felizmente, ainda não tinha usado...
Como aquelas cogitações não lhe valiam de nada, Bertrade decidiu
que era tempo de ir ver a irmã e para poder partir sem dificuldade,
entregou-se a uma pequena comédia a propósito da sua perna - que ia
bastante melhor! - devido à qual, com suspiros e gemidos, ela se dizia
cansada e desejosa de ir a Montreuil onde, não muito longe da casa da
sua irmã, oficiava um endireita de quem diziam maravilhas e que a poria
a andar sobre os dois pés em menos de nada. Como o dito endireita só
existia na sua imaginação, ela tomara o cuidado, antes, de advertir Aude
do seu estratagema:
- Tenho, absolutamente, de ver a tua mãe! Tenho coisas importantes
para lhe dizer... Por isso, não te espantes!
Bertrade preparou, portanto, uma pequena trouxa - só regressaria
no dia seguinte! - e coxeou até às cavalariças, onde o chefe palafreneiro
lhe preparou de boa vontade Eglantine, a sua mula preferida.
- Tendes sorte por ficardes fora da residência até amanhã - disse-lhe
ele com um suspiro. - Como podeis ver, a cavalariça está cheia.
Monsenhor Luís acaba de chegar para se ir deitar e tomar o remédio, o
que o põe sempre de mau humor. Vão chover murros e pragas!
- Madame Margarida também está com a lua! Dormiu mal. Vão
arranjar os dois maneira de discutir um com o outro. Os servos de um
lado e de outro é que vão pagar as favas! Quanto o monsenhor Luís, se
passasse mais tempo em casa em vez de passar os dias e metade das
noites no Palácio, talvez as coisas estivessem melhor entre ele e a
mulher!
- No Palácio ou noutro sítio qualquer-disse o grande Denis, piscando
o olho. - É capaz de ter apanhado gosto pelas prostitutas onde o leva
monsenhor d'Artois. Se não é uma infelicidade quando se tem uma
mulher tão bela!
- Ele não a ama. Isso diz tudo. Mas como ela também não o ama a
ele, os filhos não lhes custarão a criar! Pergunto mesmo a mim própria
como conseguiram engendrar a pequena Joana!
Denis baixou a voz até esta se transformar num sussurro:
- Chhh! Não faleis tão alto!... Não sois a única a fazer essa
pergunta: eles são morenos, tanto um como o outro, ao passo que a
criança é loura!
- Oh, isso pode acontecer! O Rei é louro e o príncipe Carlos
também, ao passo que o príncipe Filipe é moreno... Chega de conversa!
Tenho de me pôr a caminho. Muito obrigada, mestre Denis!
Como única resposta, ele aplicou uma palmada na garupa da mula,
que partiu em passo apressado. Dirigindo-se para a Petit-Pont, que a
faria atravessar a Cite antes de chegar à margem direita do Sena pela
Grand-Pont, Bertrade ia pensando no que acabava de ouvir e que, de
facto, levava água ao seu moinho. Não era segredo para ninguém -
salvo, talvez, para o Rei! - que o assunto Navarra ia mal, admitindo que
alguma vez tivesse ido bem, e se o pessoal da residência se interrogava
acerca da legitimidade da pequena Joana, que seria se se soubesse que
Margarida tinha um amante? Denis era bom homem, um homem que ela
conhecia há muito tempo e apesar de lhe dizer aquelas coisas não
andava a mexericar pelos cantos, mas já era suficientemente inquietante
que fizesse a si próprio as perguntas que lhe envenenavam a vida.
E enquanto traçava o seu caminho através da cidade lamacenta e
cheia de gente, Bertrade começou a tentar adivinhar há quanto tempo
um dos irmãos d'Aulnay andaria a substituir Luís porque, infelizmente,
ambos eram louros...
Bertrade ia tão absorvida nos seus pensamentos que não prestou
atenção à agitação que reinava na Cite, mal reparando, ao passar na
vizinhança de Notre-Dame, que uns carpinteiros estavam a construir
uma tribuna em frente da porta principal. Não era raro haver cerimónias
com a catedral como centro.
Mas sentiu a vontade de ir ver se o seu cunhado e o sobrinho
estavam lá a trabalhar, Machieu nos grandes arcobotantes {33} com que
se escorava o edifício e Remi no grande púlpito. Mas disse para si
própria que seria tempo perdido. Com um pouco de sorte, encontraria a
casa sem homens e era disso mesmo que ela precisava.
Quando chegou a casa da irmã, viu que não estavam nem o dono,
nem a dona da casa e nem sequer a criada. Apenas a velha Matilde, fiel
no seu posto ao canto da lareira onde ardiam uns ramos odoríferos de
pinho, mas as suas mãos estavam inactivas em cima da roca
abandonada em cima dos joelhos. A anciã estava encalhada na sua
cadeira, a cabeça apoiada no espaldar e as lágrimas caíam-lhe pelas
rugas da face abaixo. Nenhum som na casa, senão o ronronar do gato
que dormia perto do fogo. Inquieta, Bertrade precipitou-se:
- Boa mãe, que se passa? Onde estão Juliana e Margot? Matilde
abriu os olhos, reconheceu a recém-chegada, franziu as sobrancelhas,
endireitou-se e resmungou, pegando de novo no fuso:
- No lavadouro! - disse ela em tom arrogante.
- E é por isso que chorais?
- Eu não estou a chorar, estúpida! Os olhos lacrimejam sozinhos por
causa da idade... E vós, que vos traz aqui?
- Venho falar com Juliana... e convosco também, porque sei que
sois sábia e de bons conselhos.
- Ela só regressa ao cair da noite. Mas podeis começar por mim. E
espero que as vossas preocupações não tenham nada a ver com a
minha neta?
- Sim, justamente! Mas ficai descansada, ela está bem, dá-se cada
vez melhor com Madame Margarida, que lhe dá valor e gosta muito
dela... mas receio que isso não vá durar muito mais...
- Quereis dizer que ela poderá desagradar-lhe? Pergunto a mim
mesma porquê?
- Oh, não é o seu comportamento que está em causa... É... antes o
de... mas, estamos mesmo sozinhas? - acrescentou Bertrade com uma
olhadela de suspeita em volta.
- A parte o gato, posso assegurar-vos que não há mais ninguém.
Instintivamente, no entanto, a anciã baixou o tom de voz, ao mesmo
tempo que os seus olhos fatigados perscrutavam o rosto preocupado da
sua visitante.
- É assim tão grave? - perguntou ela.
- Mais do que imaginais. Madame Margarida e Madame Branca, a
sua prima, desonram os maridos com fidalgos da corte...
- Que dizeis? - articulou Matilde, a ponto de se engasgar...
- Infelizmente é verdade! Não se trata de uma bisbilhotice qualquer,
vi-o com... estes olhos!
E em voz baixa, como se se estivesse a confessar e com o mesmo
sentimento de alívio que sentiria se tivesse sido ela mesma a pecar,
porque o peso que arrastava consigo ameaçava sufocá-la, Bertrade
confiou o seu segredo à anciã.
- Se, por infelicidade, se vier a saber - disse ela, concluindo - a
cólera do marido e talvez mais ainda a do Rei nosso sire, aba-ter-se-á
sobre todo o pessoal de Nesle. O príncipe Luís é cruel, vingativo e fará
com que aquelas que possam ter sido eventualmente testemunhas
paguem a sua vergonha. Na minha idade, não temo por mim, mas
Aude...
- Não há idade para expiar as faltas dos outros. Eu não estou a par
da vida da corte senão por vosso intermédio, quando - raramente! - nos
visitais, vós e a pequena, mas o que acabais de me dizer é terrível!
Como é que uma jovem, já Rainha, e que ainda o será mais no futuro,
comete uma imprudência dessas? Ela é idiota?
- De maneira nenhuma, e até é uma mulher espirituosa. Mas é de
natureza ardente, mesmo apaixonada e deseja viver à sua maneira,
achando-se colocada demasiado alto para ser submetida ao destino
comum das outras mulheres cristãs.
- A oração é uma ajuda poderosa contra as tentações do demónio.
Ela não reza?
- Não é a sua ocupação favorita. Prefere os prazeres, todos os
prazeres, o que lhe deve parecer uma compensação justa para um
casamento que não a satisfaz. Os dois maridos detestam-se... Seja
como for, a ameaça que pesa sobre as nossas cabeças não se deve
abater sobre a da minha sobrinha. Quando a levei comigo, pensava
sinceramente colocá-la num caminho de uma vida mais fácil, como a
minha, agradável, junto de um marido capaz de a amar e de a acarinhar.
E essa hipótese aconteceu. É normal:
ela é tão bela!...
- ... Mas ela recusou-os a todos porque continua a amar sire Olivier,
o belo templário que nunca olhou para ela. Não estou surpreendida e
podia tê-lo previsto, já que a conheço bem. Coração dado não é
retribuído, podia ser essa a sua divisa...
- Isso é verdade, mas esse perigo já não existe. O Templo acabou
por ordem do Rei e os cavaleiros que não foram presos fugiram para
fora do reino, ou refugiaram-se nos conventos que os quiseram receber
e Aude nunca mais verá Olivier de Courte-nay! E nada se opõe a que ela
regresse à casa do seu pai. Resta encontrar um pretexto forte para a
arrancar à residência de Nesle... nem que seja apenas até que as
nuvens pesadas, que me metem tanto medo, se afastem. No fundo...
talvez seja imaginação minha, mas... é para descanso da minha alma,
sobretudo, que desejo trazer-vo-la. Devíeis estar contente? - continuou
ela com um sorriso na direcção de Matilde. Um sorriso que não suscitou
qualquer reflexo no rosto ainda mais sombrio, se possível, da velha
dama.
- Oh sim! - suspirou ela após um momento de silêncio. - Nada me
agradaria mais, nem à vossa irmã, bem entendido... do que ter outra vez
Aude nesta casa, mas isso seria, penso, uma grande imprudência.
Primeiro por causa do que está para acontecer... Depois... porque sire
Olivier encontrou aqui refúgio... e continua cá!
De facto, continuava.
- Ninguém virá procurar um orgulhoso cavaleiro do Templo entre os
talhadores de pedra - dissera-lhe Machieu quando os levara, a ele e a
Hervé, para a sua casa de Montreuil.
No espírito dos dois templários, tratava-se apenas de passar a noite
antes de continuarem o caminho que, na ideia de Aulnay, os levaria ao
castelo do seu irmão.
Porém, depois do que se passara em frente do Recinto, Olivier não
queria sair de Paris. A despeito dos protestos do seu amigo, que lhe
dizia que o que ele tinha visto não passara de uma simples ilusão devido
ao facto de ele pensar muito no seu inimigo no instante em que gritara o
seu nome, estava certo de não estar enganado:
vira, realmente, Roncelin de Fos, por mais incrível que pudesse
parecer! Exactamente o mesmo que - até no traje! - lançara sobre
Valcroze a sua operação de banditismo. Parecia que a sua estadia na
masmorra de Ruou não passara de uma calma pausa na paz de uma
cela confortável! Parecia, também, que aquele homem era o Diabo em
pessoa, já que parecia gozar de uma extraordinária longevidade!
Portanto, se estava em Paris, era preciso que Olivier também ali ficasse
e tencionava regressar no dia seguinte:
- No fim de contas - disse ele - que há de mais anónimo, mais
incolor, do que um monge franciscano no seu hábito cinzento de burel?
Estavam, então, à mesa em casa de Machieu e Margot servia a
sopa. Fora a velha Matilde que lhe respondera:
- Acreditais sinceramente que vos pareceis com aqueles ratos
cinzentos que, muitas vezes, não são mais monges do que eu? São uns
preguiçosos que vivem da caridade melhor do que pensais e a sujidade
que os cobre oculta, muitas vezes, umas panças bem alimentadas. Vós,
messire, vós pareceis-vos demasiado com aquilo que sois:
um cavaleiro treinado para o combate, um fidalgo de espinha
demasiado direita para o exercício da mendicidade. Vê-se perfeitamente,
acreditai-me... e isto também vale para o vosso amigo.
- O facto é que não temos o estilo e este hábito não é, para nós,
senão um tapa-buracos - observou Hervé. - Um meio de chegar sem
muitas dificuldades até ao castelo do meu irmão. O que é, por agora, a
melhor solução. Aliás, Moussy não fica longe de Paris...
- Tendes a certeza, messire, de que o vosso irmão vos receberá
hospitaleiramente? - interveio Machieu. - É coisa grave, nos nossos dias,
acolher um templário em fuga! Ouvi dizer que até os conventos se
recusam porque não estão ao abrigo das buscas da gente de Nogaret.
Não vos esqueçais que, neste assunto, o Rei tem o acordo do Papa...
- O meu irmão é um homem generoso... pelo menos assim o creio!
- Tem de ser para receber, não um, mas dois templários! Se me
permitis um conselho, ide sozinho, primeiro, ver como estão as coisas.
- Admitindo que tenhais razão, se Moussy não nos acolher, temos
sempre a possibilidade de ir até à Borgonha, para junto do irmão Jean
de Longwy...
- Não - cortou Olivier. - Ignoramos se ele conseguiu regressar a
casa. Se ele não estiver lá, só nos restará a fuga para o estrangeiro.
Coisa que eu não quero enquanto não souber qual foi o destino do irmão
Clement. Sobretudo depois de saber que Roncelin, que o odeia, está em
Paris. Mas seria egoísmo da minha parte arrastar-te comigo...
- Queres que nos separemos?
- Seria o mais sensato - disse suavemente Machieu. - Se messire
Olivier quiser confiar em mim, poderei escondê-lo dando-lhe sempre a
possibilidade de ir a Paris, mas o que vale para o vosso irmão, messire
Hervé, também vale para mim: um templário, é fácil, ao passo que dois é
perigoso. Sabereis onde está o vosso amigo e podereis vir vê-lo quando
quiserdes. Tomando algumas precauções, bem entendido.
- Por que fazeis isto, mestre Machieu? - perguntou Olivier. - Vós
tendes uma família, bens e grandes obras pela frente.
- Porque somos amigos, amigos verdadeiros, tal como o vosso pai e
o meu. Além disso, a exemplo de todos os construtores, eu sou,
também, um pouco filho do Templo.
O Templo e os monges de Bernardo de Citeaux ensinaram-nos tudo
o que nos permitiu construir as nossas catedrais e foram eles que,
muitas vezes, pagaram. Foram eles que trouxeram da Terra Santa os
segredos de Hirão, o ilustre arquitecto que concebeu o Templo de
Salomão e também muitos outros. Por isso, "irmão" Olivier, estais aqui
em vossa casa enquanto quiserdes e desejardes. Por isso mesmo,
também, ajudarei o Templo enquanto puder fazê-lo...
- Deveis-lhe assim tanto?
- E muito mais. Eram os cavaleiros que asseguravam a nossa
protecção, construtores exteriores ou interiores do seu Recinto. Foram
eles ainda que obtiveram, do santo Rei Luís, os privilégios reais que nos
protegem das diabruras dos cobradores de impostos. Devemos respeito
ao Rei, mas graças ao Templo somos homens livres...
Não havia mais nada a acrescentar. Acabaram por ceder à sua
vontade e foi assim que, na manhã seguinte, Remi conduziu Hervé
através dos bosques, sempre envolto na sua cogula cinzenta, mas com
algumas provisões, até à antiga via romana que ia na direcção de
Soissons. A distância entre Montreuil e Moussy era, mais ou menos, de
sete léguas. Chegaria lá ao cair da noite.
Entretanto, Machieu levava Olivier ao extremo do seu pomar, até
uma pequena construção semelhante às cabanas que os mestres-de-
obras construíam nos seus estaleiros para o diferente pessoal. Mas
apenas semelhante, porque, em vez de madeira, era feita de boa pedra.
Encostada ao muro, para lá do qual se estendiam os bosques que
ligavam a floresta de Vincennes à de Bondy, era uma construção baixa,
de rés-do-chão, com um guarda-vento sob o qual havia madeira e
pedras, uma oficina, a de Remi, e uma divisão estreita, construída como
a cela de um monge e mobilada do mesmo modo: muitas vezes, o
escultor repousava ali quando a febre criativa o assolava e não tinha
tempo de regressar a casa.
- Ofereço-vos isto - disse Machieu. - Podeis viver aqui em paz, creio,
e também afastado de todos, como desejais. Mandar-vos-ei as refeições
e tendes, a dois passos, um ribeiro que vos dará a água de que
necessitardes. Em caso de uma surpresa desagradável - pode sempre
acontecer! - o muro é fácil de trepar para um homem ágil como vós... e o
bosque fica logo a seguir.
- - Estais a dizer-me que ides privar Remi de um local que ele adora
e onde, sem dúvida, trabalha melhor do que noutro lado qualquer?
Enquanto falava, Olivier aproximara-se de uma espécie de mesa
feita de um bloco de pedra sobre a qual estava pousado um outro de
grés. O cinzel do artista - porque Remi era um verdadeiro artista! -
começara a esculpir os traços de uma silhueta, um homem barbudo
envolto num tecido e segurando um livro. Não passava, ainda, de um
esboço, mas já deixava adivinhar o que seria, na sua força, a obra
acabada. O templário passou um dedo admirador pela fenda de uma
prega do tecido, enquanto Machieu, adivinhando a sua admiração, disse,
orgulhoso do seu filho:
- Uma estátua de São João Evangelista para a capela de
Vincennes... bem bonita, não é verdade, quando estiver terminada?
- Muito bela! É por isso que me recuso a ficar aqui! Por nada neste
mundo quero expulsar Remi da sua casa!
- A casa dele é a minha e as dependências não faltam, ao passo
que vós tendes de ter um abrigo. Suplico-vos que aceiteis. Ele fará o
mesmo quando regressar. Se recusardes, ele ficará desapontado...
Olivier ficou calado, com a mão sempre pousada na pedra.
Finalmente, olhou para Machieu e leu nos seus olhos a sinceridade:
- Nesse caso, aceito... mas apenas o quartito, que me recordará a
minha cela no Templo. Viverei nele retomando a longa litania das
orações quotidianas de que já tinha perdido o hábito e não incomodarei
Remi: farei de maneira a que ele possa esquecer a minha presença.
- Agireis como muito bem vos apetecer... mas, seja qual for o vosso
desejo, peço-vos, por favor, que não saiais daqui, que não tenteis
regressar a Paris senão daqui a algum tempo -insistiu Machieu. Se
conheço bem o Rei, as estradas e saídas da cidade vão estar vigiadas
depois do escândalo de ontem. Lembrai-vos que se gritou templários... e
que vós ainda vos pareceis com um...
- Ficai tranquilo! Fico a dever-vos...
Foi assim que Olivier entrou na propriedade de Montreuil.
A princípio, e tal como prometera, não saiu da cela junto da oficina
senão para ir ao ribeiro lavar-se e meditar num futuro que lhe parecia
sombrio. Era capaz de ficar no local horas, sob o vento agreste do
Outono e sob um sol parcimonioso que dourava as folhas das árvores
antes de caírem. Por mais generosa que fosse a hospitalidade de
Machieu e da sua família, não podia ficar ali eternamente levando uma
vida de eremita bem alimentado sem fazer mais nada senão rezar e
meditar. Mais valia entrar, com um nome falso, para o primeiro mosteiro
que encontrasse. Ora, aquela via conventual no seu estado puro, sem o
brio e a excitação das armas gloriosamente usadas em nome do Cristo
Rei, nunca a quisera. O que ele queria era o Templo, mas o Templo já
não existia, apesar de ainda se terem de pé as suas quase duas mil
comendado- rias, vazias doravante da substância que era a sua e que
ele sentia fluir-lhe do corpo como o sangue de um ferimento. Então, teve
uma estranha tentação: abandonar o seu asilo, transpor as portas de
Paris e ir bater à do Recinto para reclamar a sua parte das infe-licidades
da Ordem. Seria entregar-se, sem dúvida, aos carrascos, já que nas
caves das prisões interrogavam ou torturavam os cavaleiros para os
obrigar a confessar torpezas incríveis, mas, pelo menos, estaria com o
irmão Clement e partilharia do seu destino. A coroa de mártir substituiria
o elmo, que nunca mais reflectiria o sol das batalhas...
Era Remi que lhe levava as refeições. Em silêncio a maior parte das
vezes porque o jovem temia perturbar os pensamentos sombrios do seu
hóspede, mas, sobretudo, porque este o impressionava. E ainda mais na
sua indigência presente do que na época em que ele ia ver Machieu ao
estaleiro ou a sua casa com o grande manto branco e a cruz vermelha.
Talvez porque o homem se revelava melhor naquelas circunstâncias do
que sob o uniforme imposto pela Regra. Barbeado e com os cabelos
crescendo pouco a pouco, Olivier era, aos olhos do artista, mais belo do
que o Rei Filipe, o Belo, e Remi reencontrava o desejo de fixar na pedra
ou na madeira aquele rosto magro e orgulhoso de ossatura perfeita. Por
seu lado, Olivier sentia um respeito novo pelo artista cujo trabalho
prometera não incomodar e daquela espécie de reverência mútua
poderia ter nascido uma distância cada vez maior se, ao chegar uma
manhã à sua oficina, mais cedo do que o costume já que se tinha
ausentado durante dois dias, Remi não tivesse surpreendido o antigo
templário de pé em frente da estátua, as suas grandes mãos acariciando
o grão da pedra e com o olhar brilhante de admiração.
Remi imobilizara-se para não o perturbar, mas Olivier, sentindo a
sua presença, corara um pouco e virara-se para se retirar murmurando:
- Perdoai-me por ter entrado, mas admiro tanto a vossa obra que o
desejo de a ver mais uma vez foi mais forte...
- Por favor, ficai!... Não só a vossa presença não me incomoda
como me sinto feliz com ela. Não ousava pedir-vos com medo de
perturbar as vossas orações...
- As minhas orações?... Rezo muito menos do que vós pensais
porque tenho a impressão que Deus está cada vez mais longe de mim.
Se calhar, é por isso que esta imagem me atrai, pela simples razão de
que, em si própria, é uma oração mais bela e mais forte do que as
minhas.
- Com vossa permissão, estais demasiado só, messire! Estáveis
acostumado a um companheiro...
- É verdade. O irmão Hervé faz-me falta. Partilhámos tudo durante
anos e ignoro se ainda está vivo, se foi bem recebido pelo irmão...
Enquanto falava, Olivier deslocara-se e aproximara-se de uma
pequena mesa sobre a qual estava um pequeno pedaço de argila. O
templário pousou nela um dedo cauteloso e depois fê-lo deslizar numa
espécie de carícia...
- Bela matéria! - apreciou ele. - Tão suave! Observei-vos um dia, em
que as vossas mãos faziam aparecer uma forma humana. Nesse
instante, tive a impressão de que éreis semelhante a Deus, quando Ele
fez Adão a partir de um pedaço de terra. E invejei-vos, eu, que não sei
fazer outra coisa senão rezar e combater...
Remi aproximou-se dele com uma ideia súbita:
- Por que não tentais? As vossas mãos são belas, fortes mas
sensíveis. É através da argila que começa a aprendizagem do escultor. A
pedra, dura, que se parte muitas vezes sob o cinzel infeliz, vem depois.
- Tentar? Eu?
O cavaleiro largou a terra húmida como se, subitamente, ela lhe
metesse medo, mas Remi apoderou-se dos seus dedos para os obrigar
a tocar de novo na argila.
- Dai-me esse prazer! Modelai essa argila! Vereis: sentireis uma
grande alegria, tenho a certeza.
Primeiro a medo, Courtenay obedeceu, mergulhou os dedos e
apoderou-se daquela matéria elástica, procurando precisar a vaga forma
do animal deitado que ela evocava naturalmente. Era pouco hábil, era
verdade, mas o cavaleiro sentiu-se invadido por um contentamento
infantil... mas depois, bruscamente, abandonou a tarefa,
desencorajado...
Porém, o que fizera parecia-se um pouco com a garupa de um leão
a que se seguia a espinha, mas o seguimento era mais difícil!
- É inútil... nunca conseguirei...
- Deixai-me ensinar-vos e vereis! Será uma ajuda, para pensardes
menos no vosso amigo! A propósito, sabei que a minha mãe tem um
primo perto de Dammartin, da qual Moussy não está muito afastada.
Posso lá ir um dia... e talvez saber notícias quando as coisas estiverem
um pouco melhores. Ou menos mal! - acrescentou ele com um suspiro.
As coisas não melhoravam, de facto e Machieu foi, naquela noite,
dizê-lo ao seu hóspede. Havia muita emoção em Paris porque o Grão-
Mestre, que teria confessado os rituais estranhos na recepção aos
cavaleiros arguidos pela acusação e, decidido a defendê-los, recusando
com energia a sodomia, acabava de repetir as mesmas confissões
perante os doutores da Universidade levados ao Templo para a ocasião.
Aparentemente, o mais estranho era que não fora torturado, mas como
os rituais eram do foro interno da Ordem, apenas o Papa podia julgá-los
e condená-los. Assim, Molay regressara à prisão enquanto se tomavam
disposições para que fosse conduzido juntamente com os outros
dignitários encarcerados em Paris a Avinhão...
- Num certo sentido - disse Machieu - vai de encontro às confissões
arrancadas a tantos irmãos infelizes, o que levanta uma série de
problemas. Não importa porquê, mas o processo que se anuncia vai ser
longo, difícil e depois de o Papa julgar não sabemos o que dali vai
resultar e qual será o destino dos dignitários e do próprio "mestre
Jacques". A prisão ou o exílio, acho eu. Os soberanos estrangeiros não
estão de acordo e apesar de o Rei Filipe ser o maior de todos, deve ter
muito cuidado...
Mas o perigo para os templários em fuga é maior do que nunca por
causa da cólera do povo...
- É por isso que não vou ficar em vossa casa mais tempo... Deus é
testemunha de que vos estou profundamente reconhecido, mas tenho de
me ir embora.
- Para ir para onde?
- Por que não para o Templo para me declarar prisioneiro? - disse
Olivier em tom cansado. - No fim de contas, não há razão para eu
escapar ao destino comum e, pelo menos, saberei o que aconteceu ao
irmão Clement.
- O irmão Clement foi feito prisioneiro juntamente com os outros
dignitários. Não foi maltratado e deve, também ele, ser levado até junto
do Papa...
- Como é que sabeis isso?
- Na terra enfeudada do Templo ainda estão alojados os pedreiros
que eu, por vezes, emprego. Eles estão, tal como eu, muito atentos ao
destino dos cavaleiros. Ouvem, vigiam. O que quer dizer que, em caso
de perigo extremo estão prontos a ajudar. É por isso que, entregar-vos
não servirá para nada senão para aumentar o número dos simples
irmãos que são entregues ao carrasco para lhes arrancar... não importa
o quê, susceptível de fazer chegar a água ao moinho de Nogaret e da
Inquisição. Ficai connosco! Um dia haveis de combater de novo pela
Ordem... A menos que desejeis regressar à Provença para junto do
vosso pai, o que não será fácil e que o colocará em perigo, já que será
no castelo dele que vos irão procurar. Mais vale ficar aqui.
- Oh, eu já pensei nisso, mas o meu pai não está em perigo
imediato, como o irmão Clement. Pelo menos, assim espero.
- Nesse caso, escutai-me e ficai aqui connosco!
- Seja... mas não sem fazer nada! Não sem ganhar, por pouco que
seja, o pão que me dais. Ensinai-me a talhar a pedra para que me torne
num dos vossos operários!
Eu sou forte... e de boa saúde graças a vós. Ficar enclausurado
sem fazer nada é-me insuportável. A... a oração não chega -
acrescentou ele, embaraçado e virando a cabeça.
O rosto sombrio de mestre Machieu suavizou-se com um sorriso e
ele estendeu as mãos para pegar nas que se lhe ofereciam, mas Remi
foi mais rápido e foi ele que segurou nas mãos do templário.
- Olhai para estes dedos, meu pai! Longos, delgados e ágeis... Vi-os
hoje cedo a mexer num bloco de argila com um cuidado e uma
delicadeza enormes. Seria uma pena endurecê-los com os maços e os
calços nas fendas da pedra. Deixai-me ensinar-lhe o meu ofício...
- Remi! - cortou Olivier - é impossível. Vós sois um grande artista e o
talento não se aprende...
-Até um certo ponto aprende - disse Machieu. - Pode ser-se um
escultor honesto, um bom executante, sem possuir génio criador. Nem
toda a gente pode ser Gislebert d'Autun! O meu filho também ainda não
chegou lá e se vós quiserdes experimentar...
- Sim... creio que gostaria - respondeu Olivier, corando subitamente
e com o tom de voz de uma criança a quem propõem um presente...
- Nesse caso, está tudo dito! - concluiu Machieu. - Ficareis connosco
e isso faz-me muito feliz...
Foi assim que Olivier aprendeu com Remi as pedras, a escolhê-las,
a talhá-las e, evidentemente, a modelar a argila para começar. Surgiu
uma verdadeira amizade entre ele e o jovem, este feliz por ver que tinha
razão e que o seu aluno mostrava disposição para aprender. Entretanto,
Olivier continuava a viver no seu pequeno cubículo próximo da oficina
sem partilhar nunca da vida da casa, respeitando de certo modo a lei do
Templo, que prescrevia que se mantivesse à parte dos sítios onde viviam
mulheres. Desde que não usava o lorigão de malha de aço, a cota e o
grande manto branco, tinha a impressão de estar despojado de um
escudo tão poderoso como os muros de uma fortaleza e exposto, sem
defesa, ao mais perigoso dos seus demónios interiores: aquele que leva
um homem a aproximar-se do corpo de uma mulher. Até ali, combatera-o
com eficácia graças à existência movimentada que levava, mas
presentemente acontecia-lhe ter sonhos estranhos, dos quais saía
alagado em suor e cheio de vergonha.
Então, atirava-se por terra, rezava com uma espécie de
encarniçamento e depois saltava o muro e corria através dos bosques
até que o seu sangue se acalmasse. O cavaleiro também dava muita
atenção à sua forma física, obrigando-se a fazer os exercícios impostos
pela Ordem e, a pedido, ensinava por seu lado a Remi o ofício das
armas, as técnicas de combate. A pé, pela força das circunstâncias, mas
era o cavalo que mais falta lhe fazia.
Num certo sentido, Machieu e Remi sentiam-se contentes por ele ter
recusado ficar com eles na casa familiar. Nem um nem outro tinham
esquecido a razão profunda pela qual Aude se afastara. Menos
perspicazes do que Juliana ou Matilde, achavam que o tempo exerceria
os seus direitos sobre a jovem e que mais tarde ou mais cedo ela
esqueceria por completo, casando com o belo partido de que Bertrade
estava sempre a falar.
Quando, com ou sem Ber-trade, ela ia ver os pais, Olivier ficava
fechado no seu quarto e nunca a jovem imaginou, sequer, que aquele
cuja recordação estava sempre na sua alma se encontrava tão perto
dela...
Porém, logo que a efervescência dos primeiros meses seguintes à
detenção maciça dos templários acalmou um pouco, logo que o aspecto
do recluso se modificou o suficiente, logo que ele se familiarizou com o
seu segundo "ofício", foi várias vezes a Paris ao estaleiro de Notre-Dame
ou até ao Templo, onde os companheiros continuavam a trabalhar na
abside da igreja. O novo tesoureiro, imposto pelo poder real, tinha ordem
para continuar a pagar os trabalhos. Não foi sem emoção que ele reviu
os lugares tão familiares e, sobretudo, o grande torreão sempre
severamente guardado, no qual sabia estarem ainda o Grão-Mestre e
Clemente de Salernes, mas sentiu um certo consolo ao descobrir o
entendimento perfeito, a espécie de cumplicidade que reinava entre
Machieu de Montreuil e os trabalhadores que ele ali empregava. Estes
usavam uma linguagem inocente na aparência, mas, na realidade,
hermética, cuja chave Remi lhe entregou, concluindo ele que existia, na
verdade, um laço profundo e sólido entre os construtores e aquele
Templo que destruíam perante os seus olhos e que, de facto, todos
estavam vigilantes e prontos e ajudar, sem hesitar, se viesse a acontecer
o pior aos que eram, para eles, a própria essência do Templo, a sua
cabeça pensadora: "mestre Jacques" e os seus próximos {34}...
Mas não encontrou, em parte nenhuma, vestígios de Roncelin de
Fos. Não por não ter procurado. Com a ajuda de uma miniatura feita por
Remi por indicação de Olivier quando este não saía de Montreuil,
Machieu fizera múltiplas perguntas, mas não se encontrou uma única
pessoa que tivesse visto o templário maldito e, à medida que o tempo
passava, Olivier começou a interrogar-se, a perguntar a si próprio se o
teria realmente visto ou se não fora vítima de uma parecença, mesmo de
uma alucinação...
A despeito das torturas e das fogueiras acesas aqui e ali, o processo
dos templários arrastava-se. No começo do ano de 1308, o Papa
suspendeu a acção dos Inquisidores depois de o Grão-Mestre se ter
retratado das confissões perante dois cardeais. O Rei reuniu os estados
gerais em Tours e foi a Poitiers para se encontrar com Clemente V. Por
essa altura, Jacques de Molay e os seus irmãos foram retirados da sua
prisão e foram enviados para Poitiers... mas não chegaram lá. Como que
por acaso, o Grão-Mestre caiu doente em Chinon e foi fechado com os
outros no castelo, na Torre do Coudray, um torreão enorme mandado
construir por Filipe Augusto. Para os interrogar, o Papa enviou gente
para os interrogar e como os prisioneiros estavam, de novo, a ser
sujeitos a pressões psicológicas, Molay voltou a confessar... O Papa teve
de ordenar inquéritos episcopais e concílios provinciais para julgar os
templários por todo o país, enquanto um concílio geral se reunia para
estatuir sobre a Ordem.
Essas comissões pontifícias trabalharam durante dois anos, mas um
grupo de prisioneiros decidiu defender-se das suas ordens voltando
atrás nas suas confissões. O arcebispo de Sens, Jean de Marigny, irmão
de Enguerrand, recém-eleito coadjutor do reino, resolveu mandá-los para
a fogueira sem a autorização da Comissão pontifícia.
Cinquenta e quatro prisioneiros morreram ao mesmo tempo...
Entretanto, o Papa não se rendia. Durante dois anos, esforçou-se
por evitar o pior. O Concílio reuniu-se em Viena, mas o Rei convocou os
estados gerais ao mesmo tempo e não hesitou em fazer pressão sobre
Clemente V. A 22 de Março de 1312, a Ordem do Templo era abolida e
os seus bens transferidos para os Hos-pitalários...
Os prisioneiros de Chinon, esses, já tinham regressado a Paris.
Nos estaleiros dos construtores, essas notícias gelavam o sangue
dos homens, mas alimentavam uma cólera ainda surda que os dias, as
semanas, os meses e os anos sustentavam.
Na casa de Montreuil, o humor do mestre-de-obras piorava e, bem
entendido, os de Remi e de Olivier. Tanto mais que este nunca mais vira
Hervé nem tivera notícias dele. Na região de Soissonais, onde o Templo
estivera fortemente implantado e possuía numerosos bens, a detenção
maciça aterrorizara a população e as pessoas tinham aprendido a calar-
se...
Em casa de Machieu, apareciam, à noite, alguns homens de
expressão resoluta e mãos calosas. Havia conciliábulos uma vez as
mulheres retiradas para os seus quartos sem que, aliás, nenhuma delas
fizesse a menor pergunta ou tivesse a menor curiosidade. Se as
reuniões não duravam até à hora da abertura das portas de Paris, os
discretos visitantes terminavam a noite, segundo o tempo, na sala ou
numa granja. Olivier assistia a elas com frequência.
Uma dessas reuniões tivera lugar, justamente, na véspera do dia em
que Bertrade chegara a Montreuil...
- Eis por que - concluiu a velha Matilde - não é possível trazer Aude
para aqui...
- Porque o templário vive aqui? Mas ela nunca se apercebeu da
presença dele, e veio cá várias vezes!
- Se bem vos compreendi - disse a velha dama em tom cansado -
seria uma estadia prolongada. Mas não é só isso e eu não devo ter sido
bem clara. Passam-se coisas nesta casa que eu não sei como vão
acabar e penso sinceramente que, nas próximas semanas, Aude ficará
mais segura junto de vós e da Rainha Margarida...
Um som de vozes masculinas fez-se ouvir no exterior e a porta
abriu-se pela mão de Machieu. Vendo que a mãe não estava só, franziu
as sobrancelhas, virou-se, murmurou algumas palavras aos que o
acompanhavam, Remi e Olivier e este último afastou-se na direcção da
oficina. Em seguida, entrou na sala com o filho.
- Dou-vos as boas-noites, minha irmã! Que vento vos traz? Pela
severidade do tom, Bertrade não teve qualquer dificuldade em adivinhar
que aquele vento não era bem-vindo...
O de Março, que entrava com ele, era agreste a preceito.
VII – A FOGUEIRA

Surpreendida com aquele acolhimento tão abrupto, Bertrade não


encontrou que dizer e foi Matilde que se encarregou da resposta:
- Bertrade quer que a nossa querida Aude regresse por algum
tempo. Ela teme pela sua segurança durante os próximos dias...
- Porquê? Que se passou? Ela cometeu alguma falta grave?
- De maneira nenhuma e se falta há - e há! - não é dela nem
minha...
A anciã hesitou um instante, consultando o rosto fechado do seu
cunhado, o seu olhar duro mas honesto, e depois decidiu-se:
- A Rainha Margarida tem um amante e comete muitas
imprudências. Quando o Teimoso souber - e o Rei também! - a sua
cólera atingirá cegamente todo o pessoal da sua casa porque,
infelizmente, a coisa passa-se em sua casa...
Machieu não emitiu o "Oh!" escandalizado de Remi, mas a ruga de
desgosto da sua boca era explícita. O mestre-de-obras, aliás,
acrescentou:
- Não gostei nada que a minha filha tenha ido roçar-se para junto
das belas damas da corte e vós sabei-lo. No entanto, nunca imaginei
que pudesse estar metida numa tal traição! Essa princesa deve estar
louca para pôr assim em risco os seus... mas, por agora, está fora de
questão Aude regressar a casa. Mesmo por alguns dias apenas!
-Já lho disse - cortou a velha dama. - Mas precisava de uma razão...
Então, falei-lhe do nosso hóspede...
- Fizestes bem. Uma das qualidades da dama Bertrade é saber
manter a boca calada...
- De facto, acabo de fazer uma bela demonstração disso! - disse ela
com azedume.
- Tínheis, também, de ter uma razão. A vossa visita só prova como
gostais de Aude e como vos preocupais com a família. No entanto,
minha irmã, não é por causa de Olivier que me recuso a receber Aude:
ele mantém-se fiel à regra do Templo, que lhe proíbe o contacto com as
mulheres e nunca entra aqui quando elas aqui estão.
A melhor prova é que ela nunca se apercebeu da sua presença
quando vinha passar alguns dias connosco... A propósito, achais que ela
continua a amá-lo?
Foi Remi que respondeu:
-Juraria que sim! Sempre que a fui ver à residência de Nesle, ela
arranjava sempre maneira de me fazer uma pergunta acerca dele. Ela
pensa que ele está escondido numa parte qualquer do reino. Talvez, até,
na Provença... Mas, esquecê-lo, não!
- Oh, estou de acordo! - suspirou Bertrade. - Nenhum rapaz, por
mais bonito que seja, lhe atrai o olhar. Receio que seja mulher de um só
amor!
- Como a mãe! - afirmou Machieu não sem satisfação. - Mas é pena
que um tão belo amor se prenda, não a quem não é digno dele, mas,
pelo contrário, a quem não o pode devolver. Mas chega de conversa! As
loucuras de uma princesa não estão na ordem do dia. O acontecimento
de amanhã é que está... e, por isso mesmo, não estou descontente com
a vossa vinda!
- Que quereis dizer?
- Dir-vos-ei mais tarde! Onde estão a minha mulher e a minha
criada?
- No lavadouro, como todas as sextas-feiras - grunhiu Matilde. -
Aliás, até estão atrasadas...
- Prefiro assim, por agora. Dizei-me uma coisa, minha irmã, não
reparastes em nada ao passar por Notre-Dame?
- De facto! Estão a construir uma tribuna em frente do portal... O
estranho é que o estaleiro dos contrafortes estava deserto...
- É para lá que vão ser levados amanhã, solenemente, mestre
Jacques e os dignitários detidos no Templo para serem julgados.
- Meu Deus! Pensava que se tinham esquecido deles. Por que tanta
solenidade? Eles, segundo dizem, confessaram tudo o que quiseram e a
Comissão pontifícia não os vai fazer sair de uma prisão para os fazer
entrar noutra!
- Sem dúvida, mas resta saber qual... e esse é, vede lá vós, um
pormenor que nos interessa.
Os laços que uniam há tanto tempo os construtores de santuários
ao Templo eram demasiado conhecidos para que Bertrade os ignorasse.
Ela sabia, igualmente, que o cunhado lhes estava solidamente ligado,
mas a determinação que sentia na sua voz meteu-lhe medo
subitamente. A dama olhou para o sobrinho e viu a mesma resolução no
seu rosto sombrio.
- Em que estais a pensar a esta hora? - perguntou ela baixando o
tom até a sua voz se tornar inquietante.
- Salvo o devido respeito, minha irmã, isso não vos diz respeito!
Ficais a saber apenas que um certo perigo pode ameaçar esta casa num
futuro próximo. E, quanto a isso, a vossa visita trouxe-me à memória a
vossa propriedade de Passiacum e pergunto a mim próprio se não seria
bom convidar a vossa irmã e a minha mãe a passarem lá uns dias?...
Aude podia ir ter com elas e assim o problema que trazíeis à chegada
ficava resolvido. Que achais?
Machieu parecia tão feliz, de repente, que Bertrade sentiu uma
súbita - e perfeitamente incongruente! - vontade de rir:
- Que talvez elas não gostem! No fim da Primavera, com as árvores
em flor, talvez, mas com este tempo o Sena vai com muita água e elas
arriscam-se a molhar os pés!
Dito isto - acrescentou ela vendo franzirem-se de novo as
sobrancelhas do seu cunhado - a minha casa está à sua disposição.
Tanto mais que eu vou lá cada vez menos, apesar de Blandine e Aubin,
a quem o meu marido deu asilo há muito tempo a tenham em bom
estado. Se Remi me quiser acompanhar amanhã, dou-lhe as chaves...
Com um movimento espontâneo, Machieu apoderou-se das mãos
da sua cunhada e apertou-as com força:
- Muito obrigado, minha irmã! Tirais-me um espinho do pé...
- No vosso lugar - interveio Matilde - esperava pelo regresso da
minha nora para saber o que ela pensa. Como a conheço bem, ficaria
muito surpreendida se ela aceitasse sair da sua casa.
Juliana e Margot regressavam naquele momento com a carroça
cheia de roupa molhada que iam pôr a secar, não no prado, como nos
dias bonitos, mas em cordas estendidas e sob um alpendre. Era, de
facto, a última grande barrela do ano. Só voltariam a lavar na selha a
roupa pessoal...
A mulher de Machieu beijou a irmã com uma alegria visível. Primeiro
porque a amava e depois porque lhe levava notícias de uma filha cujo
afastamento não cessava de lamentar. Porém, quando o marido instalara
Olivier em sua casa, causa primeira daquele afastamento, nem uma vez,
na sua generosidade, tivera a ideia de mostrar ressentimento, sabendo
pertinentemente que o templário não fizera nada para atrair ou encorajar
um amor que ignorava por completo. Aliás, via-o tão pouco que quase o
esquecia, porque não era possível alguém ser mais discreto. Porém,
quando lhe acontecia avistá-lo, não conseguia deixar de compreender o
sentimento tenaz que sentia por ele a sua filha e surpreendia-se a
lamentar que um homem tão atraente - e ainda mais porque estava fora
de alcance! - estivesse definitivamente perdido para as mulheres...
Algumas, no seu lugar, talvez se tivessem entregado a algumas
tentativas de sedução - o que não seria ridículo: Juliana, apesar da
idade, ainda era bela - mas tinha uma alma demasiado altiva para tais
libertinagens. Por outro lado, o seu marido, que ela sentia preparar
qualquer coisa, ocupava suficientemente os seus pensamentos.
Entretanto, Matilde - sem, no entanto, saber o que lhe ia no espírito -
conhecia bem a sua nora. Quando Machieu lhe anunciou o seu desejo
de a ver ir morar para o outro lado de Paris com a sogra e logo no dia
seguinte, ouviu uma recusa formal:
- Abandonar a nossa casa e arrancar dela a nossa mãe? Não
conteis com isso! Deveis ter perdido a razão para me propor isso!
- Com a ajuda de Deus, não partireis definitivamente! É só durante
algum tempo para que, sabendo-vos protegida, eu possa ter o espírito
livre. E Aude irá ter convosco...
-Aude não está em perigo imediato, ao passo que, juraria, não vai
acontecer o mesmo convosco. Eu sou vossa mulher, a guardiã natural
da nossa casa e nunca aceitarei abandoná-la de boa vontade. Pelo
contrário - acrescentou ela virando-se para Matilde - talvez fosse boa
ideia, de facto, proteger a nossa mãe. Ela já não é ágil e...
- Chega, minha filha! - protestou a velha dama, indignada.
- Se, em caso de ameaça, fosse preciso fugir daqui, é verdade que
as minhas pernas não me permitiriam uma corrida louca, mas a
catástrofe não seria grande. Tenho idade suficiente para morrer e as
ruínas desta casa onde vivi os mais belos dias da minha vida serão um
bom túmulo para mim.
Não havia nada a acrescentar àquilo. Bertrade emitiu um suspiro e
declarou:
- Espantar-me-ia muito se tivesse ouvido outra coisa! Que Remi vá,
mesmo assim, buscar as chaves! Não sei o que estais a magicar, mas
ficais com a possibilidade de um refúgio...
Assim que se abriram as portas, no dia seguinte, Bertrade,
flanqueada por Machieu, por Remi e também por Olivier, entrou em
Paris. Era a primeira vez que Bertrade via o hóspede invisível do seu
cunhado, mas ele não lhe foi apresentado quando apareceu no pátio
levando pela brida os dois grandes cavalos que iam transportar Machieu
e Remi. O cavaleiro esboçou uma saudação na sua direcção como o
teria feito qualquer assistente do construtor. Assim que o viu, ela sentiu
um arrepio bizarro devido à simpatia imediata que ele lhe inspirou e a
uma certa inquietação. Apesar das roupas simples - uma cota
semicomprida de lã castanha deixando ver os calções a condizer e
completada por um capuz de pontas muito alongadas rebaixadas sobre
uns ombros poderosos que ele mantinha um pouco dobrados - emanava
daquele homem uma indiscutível nobreza. O rosto estreito, esculpido a
grandes traços como o de um santo de catedral, era impassível e frio,
mas quanto encanto tinham os olhos cinzentos-esverdeados no
entablamento direito das sobrancelhas! Tal como a irmã, não se
espantou com o amor tenaz da sua sobrinha a despeito dos vinte anos
de diferença e foi com um suspiro reprimido que subiu para a sua mula.
Ainda era cedo, mas o Rei mandara anunciar por toda a cidade que,
em frente de Notre-Dame, os dignitários do Templo iam, enfim, ser
julgados. Assim, as ruas estavam cheias de gente que se dividia em
duas metades: aqueles que iam para o Recinto para assistir à saída dos
prisioneiros com a intenção de os acompanhar e aqueles que se dirigiam
directamente para o pátio da catedral.
Machieu e os que o acompanhavam faziam parte destes últimos.
A atmosfera de Paris não era a habitual. Tendas e lojas estavam
fechadas. Toda a gente estava na rua como se fossem para uma festa.
O que iam ver era um espectáculo como outro qualquer e o povo
adorava espectáculos. Todos, desde as alegres "entradas" reais até às
execuções capitais, passando pelos "mistérios" interpretados nas praças
e pelos truques dos saltimbancos e outros palhaços que aconteciam à
esquina das ruas. Mas, naquela manhã, nada daquilo ia acontecer: o
que iam ver, com uma curiosidade cruel, era o que perto de sete anos de
prisão tinha feito àqueles soberbos senhores que eram o Grão-Mestre e
os mais notáveis dos seus irmãos. Mas sem os lastimarem: eles tinham
confessado práticas horríveis e acções tão odiosas que mais pareciam
feiticeiros suficientemente vis para pisarem a Cruz, cuspir-lhe em cima e
adorar a cabeça de um ídolo que só podia ser a de Satanás. Só esse, o
Maldito, os podia ter tornado tão ricos! Sobre aquilo, as opiniões
dividiam-se: alguns pretendiam que nas suas casas-fortes tinham
encontrado montes de ouro e outros que, prevenidos pelo Diabo, tinham
escondido as suas riquezas nas entranhas da terra.
Conduzindo prudentemente o seu cavalo na peugada do de
Machieu, que era conhecido e saudado por muitos, Olivier escutava,
observava, reparava nas malevolências e nos propósitos estúpidos que
só lhe inspiravam desprezo. O templário sentia uma espécie de alívio
pleno de expectativa: por fim, ia poder ver o irmão Clement, esperando
ao mesmo tempo que as masmorras não lhe tivessem diminuído a
energia. Ia, sobretudo, saber para onde seria conduzido depois da
sentença para poder fazer aquilo com que sonhava há muito tempo:
arrancá-lo aos seus guardiães. Coisa impossível enquanto estivesse
retido no torreão, mas mais acessível, talvez, numa qualquer fortaleza da
província... Por mais difícil que fosse, não lhe metia medo, bem pelo
contrário! Enfim, ia poder dedicar a sua vida à mais nobre das causas!
Até a alegria - verdadeira!
- sentida quando descobrira que as suas mãos eram capazes de
criar "imagens" não era nada comparada com aquela esperança.
Quando chegaram à praça de Greve, viram que a nova ponte de
Notre-Dame - uma bela obra de carpintaria! - que substituíra um ano
antes a velha "Prancha Mibray" estava negra de tanta gente em marcha
lenta na direcção das impressionantes torres brancas da catedral.
- Nunca nos deixarão passar - disse Machieu. - Temos de ir a pé
como toda a gente... e utilizar os cotovelos. Deixaremos os cavalos no
alpendre do Parlatório dos Burgueses...
- Eu também? - protestou Bertrade. - Não me apetece nada ser
pisada...
- Nesse caso, ou ficais com os animais, ou Remi vos leva à Grand-
Pont, mas tereis de regressar através da Cité até à Petit-Pont... que deve
estar também cheia...
- Fico aqui! - grunhiu ela. - Basta esperar que a cerimónia acabe!
Os três homens partiram a pé, e mergulharam na multidão com uma
paciência e uma obstinação que deu os seus frutos. Pela rue de la
Lanterne, a rue de la Juiverie e a rue Neuve-Notre-Dame, atravessaram
a estreita rede de artérias da Cite até verem a catedral erguer-se na sua
frente sem poderem aceder ao adro já atulhado, mas onde um largo
espaço vazio era delimitado pelos guardas do Prebostado {35}. Ali, não
tiveram de esperar muito tempo: no meio de um rumor cada vez mais
audível à medida que se aproximava, os prisioneiros chegavam e em
breve a carroça que os transportava desembocava na praça rodeada por
uma densa fila de arqueiros... E o coração de Olivier apertou-se. Eram
quatro, quatro anciãos descarnados e vestidos de farrapos,
acorrentados, agarrando-se o melhor que podiam às pranchas do
veículo. Mas reconhecíveis. O Grão-Mestre, o preceptor da Normandia,
Geoffroy de Charnay, o da Aquitânia, Geoffroy de Gonneville e Hugo de
Pairaud, visitador de França... Mas o quinto, Clement de Salernes,
preceptor da Provença, não estava. A menos que, incapaz de se manter
de pé após as torturas, estivesse estendido na palha que revestia o chão
da carroça...
Sentindo um súbito terror, Olivier quis lançar-se na direcção dos
prisioneiros para ter a certeza, mas o punho de Machieu reteve-o: o
mestre-de-obras vira instantaneamente o que se passava no espírito do
seu amigo:
- Não vos mexais! Eu vou lá! A mim, o preboste conhece- me...
Com pouca suavidade dessa vez, ele fendeu a multidão
impressionada ao mesmo tempo com o seu arcaboiço e a qualidade do
traje. Em cima de um apeadeiro de cavalos do Hotel-Dieu, Olivier viu o
seu capuz de veludo negro voar até junto da montada do preboste de
Paris, Jean Ployebaut, que observava com um olhar aborrecido a
aproximação da carroça até à base da escadaria, mas que teve para ele
um sorriso amigável e que se inclinou para lhe falar. Um instante mais
tarde, Machieu regressava, muito sombrio. Olivier sentiu secar a sua
boca:
- Ele está lá, na palha? - perguntou ele.
- Não. Esta manhã encontraram-no morto na cela. Ontem, Nogaret
torturou-o outra vez depois de uma denúncia anónima - a menos que
tenham querido omitir o nome - ter dito que ele era o autor do
desaparecimento dos principais tesouros do Templo. Ainda estava vivo
no momento em que o levaram para a cela, mas quando o foram buscar
para o trazer para aqui... Deus teve piedade, penso, porque, segundo
Ployebaut, era o único a nunca ter confessado nada. Por esse facto,
estava destinado à fogueira, ao passo que para estes é a prisão
perpétua...
Olivier fechou os olhos, invadido por uma dor que ele não imaginava
que pudesse ser tão grande. Era a mesma que sentira em Valcroze
quando o imundo Roncelin se aprestava a deitar o seu pai num
grelhador em brasa. Devia ao irmão Clement a sua vocação, os seus
mais belos sonhos. Com uma voz sem emoção perguntou:
- Não se sabe quem o denunciou?
- Não...
- Eu sei... Só pode ter sido ele...
- Estais a pensar naquele Roncelin que eu procurei por vós depois
das detenções? Já lá vão sete anos, esse homem já deve estar morto!
-Juraria que está vivo... A sua sede de ouro e Satanás, o seu
senhor, mantêm-no vivo para semear a infelicidade e o sofrimento! -
Acalmai-vos, peço-vos! Assim, chamais a atenção...
De facto, não havia grande coisa a temer daquele lado visto que a
multidão só tinha olhos e ouvidos para o que ia começar. Sobre a tribuna
em frente das portas acabavam de aparecer os trajes violetas, negros e
brancos dos inquisidores Guilherme de Paris e Bernardo Gui, ou
vermelho borra-de-vinho de um dos três cardeais da Comissão pontifícia.
O de Jean de Marigny, arcebispo de Sens, era particularmente rico: o
prelado fazia questão de sobressair. Em frente deles, os templários, que
tinham deixado na carroça para que a multidão pudesse vê-los melhor.
Esta estava silenciosa. Apesar de se terem ouvido algumas
maldições, alguns gritos "à morte" aqui e ali - sem dúvida homens de
Nogaret encarregados de arrastar os outros - calaram-se rapidamente. Ia
começar o último acto do grande drama. Pelo menos, todos pensavam
que era o último...
Tendo-se sentado os prelados, o cardeal de Sainte-Sabine, Arnaud
Nouvel, avançou até à orla da escadaria segurando na mão um espesso
rolo de pergaminho que desenrolou.
Em seguida, com voz nítida, perante aqueles quatro homens
quebrados, embrutecidos, começou a ler a longa lista de confissões, não
apenas as dos que estavam presentes, mas também as dos outros,
mortos queimados ou desmembrados e estropiados pela tortura:
- ... Cúmplices o irmão Guy Dauphin... o irmão Géraud de
Passage... o irmão...
A lista era longa de confissões arrancadas no fundo de caves
horríveis com ferro e fogo. Outras também, cedidas espontaneamente
por medo ou, por vezes, por qualquer estranha contrição. Os prisioneiros
escutavam-nas sem dizer nada, como se não as ouvissem, como se
aquela litania aterradora passasse por cima das suas cabeças.
Por fim, a sentença:
- "... São condenados à masmorra e ao silêncio para o resto dos
seus dias para que possam obter a remissão dos seus pecados através
das lágrimas do arrependimento {36}." Em seguida, enquanto o cardeal se
encaminhava para a sua cadeira, fez-se um grande silêncio:
- O quê, é tudo? - sussurrou Machieu. - Não nos dizem em que
castelos, em que abadia vão metê-los?
Mas, subitamente, elevou-se uma voz de tal modo forte, de tal modo
poderosa que era difícil acreditar que saía do peito encovado do Grão-
Mestre. Galvanizado por um sobressalto vindo das profundezas
misteriosas que o levavam ao mais aceso das batalhas, Jacques de
Molay clamou:
- Eu sou culpado, sim... mas não do que me acusam! Culpado de ter
confessado tudo o que exigiram de mim para salvar a vida. Culpado de
ter traído o Templo do qual era Grão-Mestre, culpado de ter cedido ao
medo, às ameaças e às bajulações do Papa e do Rei, mas o Templo é
puro, o Templo é santo e tudo aquilo de que o acusam é falso e falsas
são, também, as confissões!
Uma outra voz repetiu as suas palavras, a de Geoffroy de Charnay,
quase nos mesmos termos... mas os outros dois dignitários esforçaram-
se por fazê-los calar. Aqueles queriam viver, nem que fosse na pior das
prisões.
- Meu Deus! - gemeu Machieu - que fizeram eles? Vão ser
declarados reincidentes e, como tal, expulsos da Igreja e entregues à
justiça do Rei!
De facto, o tribunal, no meio da algazarra suscitada pelo protesto do
Grão-Mestre, entregava à pressa os prisioneiros ao preboste e reentrava
prontamente em Notre-Dame para deliberar.
A multidão espalhou-se à excepção de alguns homens, entre os
quais Olivier reconheceu vários daqueles que iam à noite a Montreuil, ou
que pertenciam ao estaleiro da catedral. Era evidente que esperavam
ordens.
- Que fazemos? - perguntou um deles. - Regressamos a Montreuil
para reflectir?
- Certamente que não. É a Filipe que cabe decidir, agora, e ele vai
decidir rapidamente. Não podemos sair de Paris. Passai palavra:
encontramo-nos na casa da rue du Plâtre para aqueles que não têm
arma e para os outros nas cabanas do porto Saint-Landry... o preboste
correu a direito para o palácio. Eu vou lá para esperar por ele e tentar
saber qualquer coisa. Tu, Remi, vai procurar a tua tia e leva-a à
residência de Nesle... e não te esqueças de trazer a chave.
- E eu? - perguntou Olivier.
- Segui-me, por favor!
A distância que ia do adro às portas do Palácio não era grande, já
não pelo Sena, como no tempo de São Luís, mas por uma vasta entrada
pelo grande pátio de Mai, mesmo em frente da rue de la Dreperie e da
junção das ruas de la Barillerie e de la Courle-Roi {37}. Plyebaut, de facto,
precipitara-se aos pés do Rei. A espera de Machieu e de Olivier durou
apenas alguns momentos, mas quando o preboste reapareceu vinha
numa tal agitação que o construtor teve de o deter quase à força para
lhe poder falar antes que ele subisse para o cavalo.
- Então? - perguntou ele. - Que decidiram?
Se estivesse no seu estado normal, Ployebaut teria mandado
passear o insolente que ousava interrogá-lo - e em que tom! - a ele, o
preboste de Paris, mas Machieu não era qualquer um e conheciam-se
ambos há muito tempo... Ployebaut, naquele momento, não estava em
si: o seu olhar estava esgazeado.
- O fogo! - lançou ele. - Esta noite mesmo, os dois templários serão
queimados e eu tenho de mandar acender a fogueira na ilha dos Judeus
para que o nosso sire Filipe possa assistir à execução do palácio...
Pergunto a mim próprio como é que o povo vai receber a notícia... se
não vai haver agitação. Vieram dizer ao Rei que a retratação do Grão-
Mestre deixou uma grande impressão... E agora deixai-me passar!
Tenho muito que fazer!
Ajudado por Machieu, o preboste subiu para o cavalo e não ouviu o
"Eu também" murmurado pelo mestre-de-obras, Mas Olivier, esse, ouviu:
- Em que estais a pensar, mestre Machieu? Compreendestes? "Ele"
vai matá-los esta noite mesmo e eu não vou poder impedi-lo...
- Mas nós talvez, os homens da pedra e da madeira, que somos
mais numerosos do que vós pensais... e se Deus, como eu espero, se
dignar ajudar-nos! Vinde! Não há um minuto a perder.
Olivier seguiu-o sem dizer mais nada, com o que lhe pareceu ser
uma certa alegria no coração: em frente dos seus olhos, o tranquilo
Machieu, o homem nas mãos do qual toda a pedra se transformava
numa oração, erguendo-se para o céu para tomar o seu lugar entre as
suas irmãs, estava em vias de se transformar num chefe de guerra.
Não havia que enganar ao ouvir a sua voz breve e o seu olhar
cintilante: o construtor preparava-se para atacar as tropas reais, entrar
em rebelião aberta contra o temível Filipe para lhe arrancar aquele a
quem chamava "mestre Jacques" com tanta veneração, pronto, talvez, a
sacrificar tudo... o que era extremamente excitante após um período tão
longo de inactividade!
Depois de terem recuperado o único cavalo deixado por Remi, para
a garupa do qual subiram ambos, os dois homens regressaram a
Montreuil, mas para lá ficar. Por intermédio de algumas frases rápidas,
Machieu deu o que não era outra coisa senão as suas ordens: assim que
Remi regressasse, as mulheres tomariam lugar na carroça com o que
tinham de mais precioso mas sem bagagem excessiva que pudesse
chamar a atenção. O rapaz conduzi-las-ia a Saint-Maurice, onde o
veículo seria deixado com os monges, como era hábito quando, nos dias
bonitos, se ia passear de barco. Aquele que lhes emprestavam com
frequência fá-las-ia descer o Sena até Passiacum {38} onde Remi as
instalaria em casa de Bertrade...
Compreendendo que a hora era grave e que qualquer discussão
seria tempo perdido, ninguém levantou objecções, senão Juliana que
ousou perguntar:
- A nossa querida casa vai ficar abandonada?
- Porquê abandonada? Vós ides visitar, perto de... Meaux, um
parente que está em apuros. Espero trazer-vos de novo para aqui
quando já não houver perigo. E vós, minha mãe, nada de ficar para trás,
porque eu sei em que estais a pensar! Quero ver-vos em casa de
Bertrade.
Machieu abraçou-as e depois, sempre com Olivier a seu lado e
reduzido ao papel de testemunha muda, voltou a partir. Dessa vez a pé,
foram até à casa da rue au Plâtre onde escondera os dois templários
depois do tumulto no Templo.
Ainda havia muita gente nas ruas. As pessoas paravam,
conversavam, comentavam o acontecimento inaudito que acabava de se
produzir e muito certamente, à parte os doentes, ninguém iria para a
cama antes do terrível fim da tragédia. Naquela noite haveria uma
multidão enorme nas margens do Sena. Entretanto, os poucos homens
que foram bater à porta não atraíram a atenção de ninguém. Olivier
conhecia alguns: Cauvin le Montois, François le Dauphiné, Lucien
d'Arras, Joseph d'Argenteuil e Ronan le Breton, todos pertencentes aos
companheiros "estrangeiros" que punham o seu saber ao serviço desta
ou daquela igreja ou catedral em construção ou em remodelação.
Todos trabalhando há muito com Machieu e tendo quase todos
recebido a sua formação do Templo.
Machieu distribuiu-lhes armas fáceis de esconder por baixo das
túnicas curtas, como adagas ou fundas, ou das mais longas, como
espadas. Olivier, esse, fora buscar à sua cela aquilo de que se servia
para ensinar Remi... O templário aceitou, entretanto, uma adaga
suplementar. Em seguida, abandonaram a casa cuja chave, em caso de
necessidade, todos sabiam onde encontrar e desapareceram no meio da
animação das ruas para se encontrarem no porto de Saint-Landry, no
flanco norte da ilha de la Cite.
Usando o nome de uma igreja romana vizinha, o porto existia desde
sempre. Fora, durante muito tempo, o único desde a época em que Paris
se chamava Lutécia e durante a qual a cidade se resumia à Cite.
Rapidamente atravancado de tráfego, fora substituído pelo da Greve,
criado pelo Rei Luís VII, pai de Filipe Augusto. No entanto, continuava a
servir as necessidades da Cite e, singularmente, para as descargas dos
materiais trazidos pelo Sena durante a construção de Notre-Dame -
ainda por terminar naqueles dias - que começara um século e meio
antes, quando o mesmo Luís VII lançou a primeira pedra da obra-prima
sonhada pelo arcebispo Maurice de Sully. Servia, também, para o
reabastecimento dos cónegos da catedral e de uma parte da Cite.
Ao chegar à Greve, o pequeno grupo viu que já lá estava gente,
mas a margem estava severamente guardada por soldados: no fim do
dia, os condenados seriam ali embarcados para serem conduzidos ao
local do suplício: uma das duas ilhotas que confinavam com os jardins
do Rei {39}. Sem prestarem grande atenção, meteram pela ponte e já
tinham começado a atravessá-la quando Cauvin le Montois, chefe de
estaleiro de Machieu, deitando uma olhadela ao porto, uma parte do qual
estava escondida pelo priorado de Saint-Denis-de-la-Châtre e pelo Haut
Moulin, plantado no rio, apercebeu-se de que se passava qualquer coisa:
alguns homens estavam a vestir blusas de tela branca iguais às dos
pedreiros para proteger a própria roupa dos salpicos do gesso ou da
argamassa:
- Quem são aqueles? - perguntou ele ao mestre. - Não os conheço
e, além disso, as ordens são para passarmos despercebidos o mais
possível!
- Vamos ver!
Partiram a correr e, transposta a ponte, desembocaram no porto
pela encosta ao longo da qual se içavam as mercadorias pesadas. Ali,
viram-se frente a frente com uma dúzia de homens abundantemente
cabeludos e barbudos que se tinham aproximado de uma barca vazia na
intenção evidente de a ocuparem.
- Quem sois vós? Que procurais aqui? - gritou Machieu. Essa barca
é minha...
Um dos maiores, que parecia o chefe, aproximou-se dele, enquanto
os outros se mantinham na sua retaguarda:
- Desculpai, burguês, mas precisamos dela e temos pressa. Faríeis
bem se não vos intrometêsseis!
Tanto o tom, como a atitude, eram hostis mas pacientes. No entanto,
nem Machieu nem os seus homens estavam dispostos a deixar-se
impressionar.
- Dizemos o mesmo! E, primeiro, dizei os vossos nomes se não sois
uns malandrins quaisquer. O meu nome é Machieu de Montreuil, mestre
construtor de Notre-Dame.
- O meu é Jean d'Aumont e saúdo-vos, sabendo-vos homem de
bem e é por isso que vos conjuro a não vos opordes a...
- Ele não se oporá - disse um dos falsos pedreiros que, entretanto,
se aproximara. - E talvez, até, esteja disposto a ajudar-nos? Nós
estamos aqui para...
Olivier, precipitando-se para ele e segurando-o pelos ombros,
cortou-lhe a palavra. Tinham-lhe bastado algumas palavras para
reconhecer aquela voz.
- Hervé, meu irmão! - exclamou ele. - Que milagre ver-te! Por onde
andaste?
Enquanto Machieu segurava os seus homens prontos a lançarem-se
sobre os intrusos, os dois amigos abraçaram-se, esquecendo por
instantes as circunstâncias que os levavam a encontrar-se, mas esta
apanhou-os rapidamente e depois de algumas explicações deixaram
para mais tarde uma história que só aos dois interessava.
Os falsos pedreiros perseguiam o mesmo objectivo de Machieu e
dos seus homens: arrancar os condenados aos seus guardiães e, a
coberto da escuridão que se aproximava, fazê-los descer o Sena, cuja
corrente naquela noite era forte, até às encostas arborizadas de Saint-
Cloud. Ali, havia um pequeno priorado para onde se retirara Jean
d'Aumont, inteiramente adquirido ao Templo e que ofereceria, pelo
menos, um refúgio durante alguns dias, permitindo decidir o que fazer a
seguir. Tal como Machieu, Aumont fora apanhado de surpresa pela
súbita necessidade de verdade por parte do Grão-Mestre e as
dramáticas consequências que desse gesto advieram. Tendo ido a Paris
com os seus companheiros para assistir ao julgamento e saber os locais
de encarceramento, via-se confrontado com uma situação que era
preciso resolver urgentemente tomando riscos enormes porque, tal como
o mestre-de-obras, não tinha ilusões sobre a dificuldade que teria para
arrancar as duas vítimas aos seus carrascos em pleno leito do rio.
- Nós somos pouco numerosos e estamos mal armados face a
arqueiros e outros homens de armas do Rei, mas veio-nos à ideia que,
se não pudermos libertar o Grão-Mestre e o preceptor da Normandia,
podemos matá-los com as nossas mãos, oferecendo-lhes assim uma
morte menos cruel e mais rápida do que a que os espera. Deixar apenas
dois cadáveres nas mãos de Filipe já seria uma vitória! Pela qual
estamos dispostos a morrer...
- Também nós. De onde vindes vós? - perguntou Machieu com um
último resto de desconfiança.
Vinham da região de Soissons, onde as comendadorias eram tão
numerosas que, nas malhas do golpe de sexta-feira 13, vários tinham
conseguido desaparecer, particularmente os das que estavam inseridas
numa granja ou num recinto florestal. O próprio Aumont pertencia à casa
mãe da região, o poderoso bailio do Mont-de-Soissons, mas fora enviado
na véspera para a comendadoria de Rozières e, graças à densidade
florestal da vizinhança, conseguira escapar e encontrar refúgio na
grande abadia de Long-pont onde os Cistercienses lhe tinham oferecido
asilo. O cavaleiro podia lá ter ficado mas sentia um profundo sentimento
de injustiça e apesar de já não ser novo, queria preparar-se e preparar
outros para o combate contra o Rei. Corria o tempo em que o sobrinho
do Grão-Mestre, Jean de Longwy, formava com os Borgonheses uma
liga protegida mais ou menos pelo duque e que daria alguns problemas
ao poder antes de desaparecer na clandestinidade. Abandonando
Longpont, Aumont estabeleceu-se - com a ajuda dos monges - na
imensa floresta de Villers-Cotterêts, onde se lhe juntaram outros fugitivos
transformados em breve numa comunidade de lenhadores na
expectativa, esperando que o Papa acabasse por lhes fazer justiça e
lhes permitisse reaparecer, menos ricos e menos poderosos, talvez, mas
com honra e pela glória de Deus...
Hervé d'Aulnay fora um deles.
Como o explicou mais tarde a Olivier, o seu regresso a Moussy não
fora marcado pelo entusiasmo. O seu irmão Gautier negociava um
casamento entre o seu filho mais velho, Gautier, o Jovem e Inês de
Montmorency. Além disso, os seus dois rapazes pertenciam à corte.
Assim, a chegada do templário fugitivo - apesar de ser seu irmão -
punha-lhe alguns problemas.
Esconderam cuidadosamente Hervé numa parte retirada do castelo,
não numa masmorra, se bem que não lhes faltasse vontade, e se lhe
forneceram o suficiente para sobreviver não foi no meio do luxo nem no
conforto. De tal maneira que o infeliz decidiu afastar-se. A cólera era
permanente e o cavaleiro rendeu homenagem à clarividência de
Machieu de Montreuil: Olivier teria sido atirado para as trevas exteriores
em três tempos. Mas ir para onde? Tanto mais que o seu querido irmão
não queria deixá-lo partir ao acaso, arriscando-se a ser reconhecido pelo
que era e detido, o que significaria um desastre para a sua casa.
Cansado daquelas hesitações, Hervé acabou por fugir vestido de
camponês e com alguns víveres fornecidos pela sua irmã-de-leite que
casara com Hamelin, um camponês da aldeia, um bom homem e a
generosidade em pessoa. Hervé tinha na ideia tentar chegar à Flandres,
sempre mais ou menos num estado de "delicadeza" com o Rei de
França, mas Hamelin disse-lhe que se falava lá de templários torturados
e queimados e que talvez encontrasse asilo na floresta de Villers-
Cotterêts, onde havia uns lenhadores...
indulgentes. Foi assim que o cavaleiro d'Aulnay se juntou ao
cavaleiro d'Aumont. Hervé pensava muito em Olivier, mas teria sido
imprudente, visto que tinha um abrigo seguro, regressar a Paris.
O reencontro dos dois amigos foi a ligação entre aqueles dois
grupos prestes a enfrentarem-se. Como perseguiam o mesmo objectivo,
confraternizaram, mas sem perderem um tempo precioso. Aproximava-
se a hora em que embarcariam os condenados e o conselho de guerra
foi breve. Em vez da barca pesada e difícil de manobrar, escolheram três
barcos suficientemente grandes mas mais ligeiros e repartiram por eles
as forças: um levava Machieu e Cauvin com metade dos homens, o
segundo Jean d'Au-mont e os seus e o terceiro o resto comandado por
Olivier e Hervé. Este foi o primeiro a partir, atravessou o Sena e foi
esperar perto do Port au Foin onde um cordão de soldados se esforçava
por conter a multidão quase a invadir a praia e o caminho de sirgagem.
Devido à corrente, foi preciso lançar borda fora a grande pedra de
ancoragem. O segundo fixou-se a um dos pilares da Grand-Pont para
seguir de perto o barco das vítimas. Por fim, Machieu aportou ao Moulin
de la Monnaie {40}, o mais perto possível da ilhota onde os ajudas do
carrasco se afadigavam a perfazer a alta e grande fogueira de onde
surgiam dois postes. Os movimentos não atraíram as atenções porque
se dirigiam para a extrema do Jardim do Rei, onde se encontrava uma
torre provida de uma varanda, várias embarcações: seria ali que Filipe, o
Belo, juntamente com os homens da sua família e os seus conselheiros,
assistiria ao espectáculo.
A noite caía rapidamente. Estava frio no rio e nos barcos todos se
recolhiam, encomendando as suas almas a Deus sem se iludirem por
um instante quanto às dificuldades do golpe de mão previsto. O Sol
pusera-se no meio de uma explosão sangrenta e a ilhota vizinha
transbordava de curiosos que tinham chegado ao cúmulo e encostar
escadas à residência de Nesle que se perdia, pouco a pouco, na
obscuridade. Fortemente guardada, apenas a fogueira estava iluminada
por centenas de archotes. A atmosfera era pesada. Ninguém falava,
sussurrava-se, escutando o rumor que se ia aproximando. Na Greve, os
condenados, acompanhados pelo preboste, entravam para uma barca
eriçada de chuços e bisarmas. Uma dúzia de archotes iluminava
tragicamente as duas altas silhuetas a quem tinham vestido os mantos
brancos com a cruz vermelha para dar ainda mais solenidade à sua
morte. Os dois homens mantinham-se de pé, muito direitos, procurando
em si próprios a força necessária para calar as dores que os tinham
dobrado e os seus rostos, devastados pela idade e pela longa detenção,
estavam serenos. A despeito dos agitadores semeados um pouco por
toda a parte para excitar a multidão, esta estava calada. Os que
manobravam a barca lançaram-na na corrente.
Quando passou por Jean d'Aumont, este colocou o seu barco na
sua esteira, remando com força para se manter perto no momento em
que Olivier chegava vindo do flanco direito e Machieu e os seus do
esquerdo. Ao mesmo tempo, a barca era assaltada por três lados. A
golpes de machado, de martelo e adaga, os últimos defensores
defendiam-se. Foi uma luta furiosa em redor dos dois anciãos vestidos
de branco, um tumulto violento, mas já das torres do Palácio os
arqueiros disparavam, ao mesmo tempo que, a princípio surpreendidos
em redor do preboste desvairado, os guardas defendiam-se
vigorosamente. Por um instante, Machieu pensou que estava quase a
vencer e tomou Molay nos braços:
- Vinde, mestre Jacques! Os vossos construtores precisam de vós!
Mas este repeliu-o:
- Não! Foge, infeliz, antes que seja demasiado tarde! Eu é que
escolhi o meu destino, não só para expiar mas para que seja grande a
última imagem do Templo!
Com um empurrão, atirou com o construtor para a água onde já
flutuavam alguns cadáveres, no momento em que a espada do preboste
o atingia no ombro. Com um grito, Machieu desapareceu na água. Ao
ver aquilo, Olivier mergulhou, conseguiu agarrá-lo e içou-o para a barca,
para onde subiu logo a seguir ajudado por Cauvin.
- Isto está a transformar-se num desastre! - disse este, sem fôlego. -
É preciso fugir...
- E abandonar os outros? Nunca!
O número dos outros reduzia-se de maneira trágica. O cavaleiro
d'Aumont fora um dos primeiros a morrer e sobre a barca, prestes a
acostar, os homens do preboste desembaraçavam-se do resto dos
assaltantes no meio de uma algazarra indescritível, substituída pelos
uivos da multidão que, na margem direita e galvanizada pela heróica
tentativa, empurrava o cordão de soldados, atirava-os à água e
apoderava-se dos seus chuços para não os deixar sair. De pé na barca,
Olivier ainda se batia e, armado com um remo, Cauvin le Montois
afastava o esquife do barco vizinho. O gesto foi tão violento que Olivier
caiu sobre o corpo de Machieu, ao mesmo tempo que Cauvin começava
a remar com a energia do desespero para escapar às flechas que
vinham de todos os sentidos... De novo em pé, Olivier chamou:
- Hervé! Onde estás? Estás a ouvir-me?
- Estou! Atrás de ti!
Virando-se, o cavaleiro avistou, entre ele e a margem direita, uma
pequena embarcação com dois jovens lá dentro, dos quais um estava
inclinado na amurada, tentando içar para bordo um Hervé demasiado
pesado para ele.
- Deixai-o! - gritou Olivier. - Eu puxo-o!
Já Cauvin se aproximava da barca. Um instante mais tarde, Hervé
era içado, ensopado mas aparentemente intacto e Olivier empunhava os
remos para lançar a embarcação na corrente e aumentar a velocidade.
Passaram como uma flecha em frente da fortaleza do Louvre de onde,
dos caminhos de ronda, os arqueiros atiravam sobre eles sem se
preocuparem com as embarcações onde estavam alguns curiosos.
O ponto perigoso foi ultrapassado ao mesmo tempo que as
muralhas de Paris. Olivier, protegido pela escuridão, parou de remar
para lançar uma última olhadela ao drama que atingia o seu fim. Contra
o fundo negro das torres do Palácio, no qual, sobre a varanda, se
adivinhava a alta silhueta azul do Rei, a ilhota, cuja água que a banhava
reflectia as luzes, parecia uma daquelas cenas brilhantes nas quais se
interpretavam os mistérios, mas aquele era um mistério de horror. Os
templários, despojados dos seus mantos brancos e apenas vestidos com
farrapos, tinham sido içados para a enorme fogueira, que os colocava
quase à mesma altura daquele que os observava.
Tinham-nos atado aos postes - mais tarde, soube-se que o Grão-
Mestre pedira que lhe permitissem unir as mãos e olhar para Notre-
Dame - e os carrascos giravam, com os seus archotes, em redor da pilha
de troncos, acendendo a palha que tinha sido colocada nos interstícios.
Activada pelo vento agreste que soprava de leste, uma espessa
fumarada subiu, juntamente com as primeiras labaredas. Foi possível vê-
las ao assalto daquelas frágeis silhuetas humanas e ouvir gritar o Grão-
Mestre. Mas não era de dor. Tal como em frente da catedral, naquela
manhã, a sua voz encontrava, naquele supremo instante, a força sobre-
humana que parecia vinda do outro mundo e após um último protesto de
inocência proferiu uma maldição. Maldição dirigida ao Papa Clemente,
ao Rei Filipe e ao seu executor, intimando-os a comparecer, no espaço
de um ano, no tribunal de Deus!
Então, foi possível ver os carrascos activar o fogo, mas Jacques de
Molay não tinha mais nada para dizer. Sufocado pelas negras nuvens de
fumo, a sua voz apagou-se.
Quando o vento as afastou, as chamas envolviam os dois mártires...
Fascinado, tal como os seus companheiros, com aquela imagem
terrível, Olivier não se dera conta de que Machieu, tendo recuperado a
consciência, estava de pé e também observava.
- É o fim do Templo - disse ele em voz rouca, pesada de cólera e dor
- e também o das catedrais... Nunca mais trabalharei para elas, visto que
Deus abandonou o Templo!
Olivier não contestou aquelas últimas palavras. Podia ter dito que
alguns "irmãos" já tinham abandonado Deus há muito tempo por outras
crenças estranhas e por apetites ainda mais estranhos. Podia ter
evocado a outra maldição proferida naquela outra fogueira acesa nas
encostas dos Cornos de Hattin onde ardera a Verdadeira Cruz, mas,
com o seu heroísmo, Jacques de Molay devolvera ao Templo a sua
pureza inicial e cobrira com o seu manto as obscuridades, as sombras,
as insuficiências e os crimes. Aquele delicado pallium manter-se-ia, puro
como a neve da Primavera...
Vencido pelo sofrimento do seu ferimento acrescido pelo esforço
que fizera para se levantar, Machieu deixou-se cair de novo no fundo do
barco. Fascinados, também eles, com a fogueira, cujo odor chegava até
eles levado pelo vento, Cauvin e Hervé não lhe tinham prestado atenção.
Olivier, pegando de novo nos remos, lembrou-o a este último, pedindo-
lhe que tratasse dele:
- Pelo que posso ver - respondeu ele - tem um golpe profundo no
ombro esquerdo e sangra muito... e não temos nada para parar o
sangue...
Olivier parou de remar, tirou a cota, a camisa e estendeu esta ao
amigo.
- Toma, arranja-te com isto!
Hervé fez um tampão, que apoiou com força na chaga.
- Sabes para onde vamos?
- Só sei que temos de avistar uma lanterna na margem direito do rio.
Um lugarejo chamado Passiacum, mas não sei onde é...
- A uma légua daqui, mais ou menos - grunhiu Machieu. - Remai,
rapazes, remai! Quanto mais depressa lá chegarmos, melhor... mas rezai
para que Remi já lá tenha chegado com as mulheres, senão, nesta
escuridão, arriscamo-nos a perder-nos...
- Nós, era em Saint... Cloud, creio, que o irmão Jean d'Au-mont
queria esconder o Grão-Mestre...
- Isso ainda fica mais longe e fica no meio da floresta... Passicaum é
mais perto... E agora lembrei-me: por cima da aldeia há uma casa com
uma grande torre que se deve ver contra o céu...
De repente, Machieu desatou a rir:
- Essa casa pertence... ao nosso bom sire Filipe, que gosta de ir
para lá meditar quando não se quer afastar muito de Paris... E nós
vamos refugiar-nos lá! É engraçado, não é? Confessai que é engraçado!
- Estais a ficar com febre, mestre Machieu - disse entredentes
Cauvin, que desde a partida se contentara em fazer avançar a
embarcação sem dizer palavra. - Falais demasiado e muito alto. Ouve-se
através da água... e nós estamos em fuga.
- Eu encarrego-me dele! - disse Hervé em voz baixa, acocorando-se
junto do ferido para o segurar, ao mesmo tempo que fazia pressão no
tampão e, lhe fechava a boca.
O contramestre tinha razão: a febre estava a chegar e, com ela,
uma certa agitação que podia ser perigosa e Aulnay precisou de todas
as suas forças para conseguir um pouco de calma da parte de um
homem mais idoso do que ele, sem dúvida, mas ainda cheio de força.
Por um momento, até pensou em lhe dar um murro para o manter
tranquilo.
Os minutos que se seguiram foram extremamente longos.
Vigorosamente accionado pelos dois pares de braços, o barco deslizava
rapidamente para jusante, mas estava tão escuro que aquela fuga às
cegas tinha qualquer coisa de angustiante visto que não tinham qualquer
ponto de referência. Até podiam, muito bem, ultrapassar o lugarejo sem
se darem conta. No entanto, podiam ver que uma colina se perfilava na
margem direita, ao passo que a esquerda se mantinha lisa. E,
subitamente, a silhueta de uma torre, ainda mais negra do que a noite,
destacou-se e, quase de imediato, Olivier sussurrou:
- Olhai! Na margem... Uma lanterna!
O alívio fez esvaziar os peitos oprimidos. Remi cumprira a sua
missão. O refúgio estava ao seu alcance e manobraram para o atingir.
Mas o barulho dos remos devia ter atraído a atenção de alguém, porque
a lanterna começou a agitar-se. Quando se aproximaram, acabaram por
distinguir um pequeno cabeço, sobre o qual estava um homem de pé.
Olivier, enquanto o barco ainda estava a alguns metros de distância e
podia ainda ser manobrado, perguntou:
- Remi?
- Sim, sou eu... vou guiar-vos.
A dúvida dissipara-se e o barco aproximou-se suavemente da
margem, onde encalhou na areia quase aos pés do jovem que erguia a
lanterna para ver melhor.
- Os templários? Onde estão? - sussurrou ele, desiludido.
- Mortos, e o teu pai está ferido!
- É grave?
- A espada do preboste atingiu-o no ombro. O osso deve estar
quebrado. Sofre e está cheio de febre... Mas, se não te importas,
falaremos disso mais tarde - grunhiu Olivier.
Com precaução, tiraram Machieu da barca e depositaram-no na
areia. O construtor devia ter perdido a consciência, porque não
protestou.
- Vamos levá-lo - continuou Olivier. - A casa fica longe?
- Não. É perto. Mesmo por cima do grande caminho da Normandia,
que segue o Sena vindo do Louvre.
Enquanto isso, Cauvin prendera a barca depois de a terem
empurrado para uns caniços à sombra de uns amieiros.
- Pergunto a mim mesmo se ficará ali bem escondido? - reflectiu ele.
- Há mais a algumas toesas daqui - respondeu Remi. - Trataremos
disso quando nascer o dia. O melhor, se calhar, é afundá-lo. E agora
vamos!
Hervé e Olivier encarregaram-se de Machieu. Remi seguiu à frente
com a lanterna e Cauvin fechou a marcha. Subiram o talude e depois,
transposta a estrada, seguiram por uma vereda enlameada que levou o
pequeno grupo até uma cerca espinhosa onde havia uma cancela de
madeira, que abriram para entrar no pomar onde estava a casa de
Bertrade. De dois andares sob um grande telhado e com uma porta
baixa no alto de três degraus, não era muito grande, mas por trás havia
duas ou três dependências. As janelas estavam fechadas e não se via
nenhuma luz, mas, ao som dos seus passos, a porta abriu-se deixando
sair a luz de uma candeia recortando a silhueta negra de uma mulher.
Era Juliana.
- Aqui estão eles, finalmente, minha mãe - disse Remi - mas o golpe
falhou e o pai está ferido... No ombro - acrescentou ele perante a
angústia que viu nos olhos da mãe. -A dor fê-lo perder a consciência.
Esperemos que não seja demasiado grave...
A seguir a ela apareceram Matilde, apoiada na bengala e a coifa de
Margot, de olhos esgazeados, as mãos unidas e quase a chorar. Matilde
repreendeu-a com dureza e mandou-a buscar com que limpar e pensar o
ferimento.
- Estendei-o em cima do banco - disse Juliana depois de se ter
debruçado por um momento sobre o rosto cor de cera do marido,
designando a comprida cadeira junto da chaminé onde ardia um bom
fogo.
- É melhor em cima da mesa, se tiverdes a gentileza de tirar tudo o
que tivestes a boa vontade de preparar. Nenhum de nós tem fome
depois do que acabamos de passar...
De facto, as mulheres tinham posto pão, queijo, presunto e uns
picheis de vinho em cima da mesa. Apesar de só ali ir raramente desde
que estava ao serviço da Rainha Margarida, Bertrade, como boa dona
de casa, fazia questão de que a sua "casa de campo" estivesse sempre
pronta a receber alguém. Esta era mantida - e guardada por um velho
casal a quem o falecido Imbert permitira que adquirisse o pequeno
pedaço de terra quando o Rei abolira a servidão. O casal morava numa
choupana no lado de lá do pomar com galinhas, coelhos e um porco e,
para além de outras coisas, tratava das colmeias que o honesto
retroseiro ali instalara. E como tinham direito a metade da colheita de
frutos e mel, abençoavam todos os dias o Céu por ter levado para o seu
seio Imbert, cuja morte tinham chorado como se fosse seu próprio irmão.
Os dois anciãos conheciam bem a família de Bertrade e a chegada
de Remi e das três mulheres não os surpreendera, mas tinham-se
retirado discretamente ao perceberem que se passava algo de anormal.
Chamavam-se Aubin e Blandine e eram muito unidos, desde há muito,
sem dúvida, de tal modo que tinham acabado por se assemelhar.
Um momento mais tarde, Machieu, despido e tratado depois de
Olivier lhe ter lavado o ferimento com vinho e azeite, era levado para o
andar superior onde havia dois quartos, deitado numa cama e velado
pelo filho e pela mulher. Apenas ele e Remi ficariam naquela casa.
Olivier e Hervé foram dormir numas enxergas ao fundo do pomar, um
sítio muito frio mas onde cheirava bem a maçãs e a pêras, conservadas
ali desde a última colheita. Assim, continuavam a respeitar a lei do
Templo, que lhes proibia que dormissem sob o mesmo tecto das
mulheres. Cauvin, aliás, seguiu-os e antes de adormecer rezou com eles
pelas almas dos mártires e também pelas dos seus companheiros, cujas
vidas tinham sido sacrificadas em vão...
- Amanhã - disse Olivier antes de fechar os olhos - regresso a Paris.
É preciso saber o que se passa...
- Muito bem, iremos juntos - respondeu Hervé, dando uns murros na
enxerga para a tornar mais cómoda. - Pelo menos, este drama fez com
que nos juntássemos de novo...
VIII – A VOZ DE NOTRE-DAME

Quando regressaram a Paris, no dia seguinte, seguindo a margem


do rio, Olivier e Hervé viram que ainda havia gente por baixo das
muralhas do Louvre e no Port au Foin, observando os ajudas do
carrasco a varrer os restos da enorme fogueira que ardera durante toda
a noite. As cinzas eram atiradas às pazadas para o Sena e as pessoas
permaneciam ali, imóveis e mudas.
Reparando nos soldados que vigiavam a operação, Hervé pensou
em voz alta:
- Para que são os homens de armas? Não há nada para guardar.
- Excepto as cinzas! - respondeu uma mulher com uma coifa escura
que lhe envolvia o dorso. - De madrugada, quando as brasas se
apagaram, apareceram aqui pessoas a chorar e com muito respeito em
busca de alguns punhados dos restos do Grão-Mestre e do seu
companheiro, para fazerem relíquias.
Virando-se, enfim, ela olhou para o grande diabo barbudo que
falara:
- Não sois daqui para perguntardes isso, pois não? Não sabeis,
portanto, que a noite passada queimaram...
- Sim, sim! Ouvimos dizer em caminho. O meu primo e eu vimos de
além - acrescentou ele com um gesto vago em direcção a oeste - em
busca de trabalho. Parámos nas fábricas de telha, mas estão fechadas...
- Qual é o vosso ofício?
- A madeira, mas também a pedra. Fazemos muita coisa.
Infelizmente, a capela onde trabalhávamos ardeu...
Um carregador segredou pelo canto da boca:
- Faríeis melhor em regressar para o sítio de onde vindes se não
quereis ir parar à palha de um calabouço... Ontem, os pedreiros de
Notre-Dame e do Templo tentaram raptar os condenados. Vários
morreram e esta manhã messire Nogaret anda à caça dos que
escaparam... É melhor fugirdes!
Como se seguissem o seu conselho, os dois homens afastaram-se,
mas em vez de voltarem para trás, prosseguiram na direcção da Greve.
O que acabavam de ouvir era ainda mais inquietante, apesar de, no
fundo, esperarem aquela reacção brutal dos homens do Rei. Por isso,
agora, queriam medir exactamente o perigo e ver por si mesmos o que
se passava. E viram...
Quando chegaram ao Chatelêt, uns soldados escoltavam vários
prisioneiros, entre os quais havia um talhador de pedra de nome Gobert,
que Olivier vira várias vezes no estaleiro de Notre-Dame e nas reuniões
nocturnas em casa de Machieu. Com as mãos atadas atrás das costas e
com uma corda ao pescoço, pela qual o puxavam, o homem fazia
esforços furiosos para se libertar enquanto gritava a plenos pulmões:
- Vede bem a justiça do Rei Filipe, boa gente! Depois de ter
exterminado os templários, também quer abater aqueles que constróem
as vossas igrejas!
Um puxão cruel da corda - cujo nó não era corrediço - atirou-o por
terra, que ficou manchada com o sangue que lhe corria do nariz. Dois
outros companheiros seguiam-no, atados da mesma maneira, mas
esses iam calados. Seguiam de cabeça baixa, visivelmente
acabrunhados com o que lhes estava a acontecer. Os soldados
apressaram-se, aliás, a meter os prisioneiros no interior da prisão:
alguns murmúrios, aqui e ali, começaram a ouvir-se entre aqueles que
observavam a cena. Alguém gritou:
- É natural defender quem lhes paga, não? Os estaleiros estão
vazios esta manhã e os construtores que não foram presos estão em
fuga...
- Há muito que já não é o Templo que paga - respondeu uma voz
anónima. - Em Notre-Dame é o bispo e os cónegos!
- Mas o saber vem do Templo...
O diálogo parou mal começara. Temendo um motim, o preboste
acabava de dar ordem aos arqueiros para que dispersassem a multidão.
Uma dezena deles saiu do Chatelêt com as mãos nas cordas dos arcos,
prontos a disparar. Todos regressaram à sua vida. No local ficou apenas
um mendigo cego que passava habitualmente o dia no degrau de um
calvário erigido à entrada do Apport-Paris {41} rezando pelos prisioneiros
com uma voz nasalada. A sua falta de visão não devia ser total -
admitindo que tivesse alguma - porque estendeu a escudela para Olivier
quando os dois amigos passaram perto dele, reclamando a caridade em
nome de todos os santos do Paraíso.
- Não tenho vintém, pobre homem! - suspirou Hervé. Olivier, cujos
trabalhos como escultor lhe tinham valido algum dinheiro - se bem que
Machieu tivesse a maior das dificuldades em fazê-lo aceitá-lo, evocando
os dias maus que ele tinha pela frente já que o Templo proibia qualquer
possessão aos seus cavaleiros! - tirou uma moeda da sua escarcela e
colocou-a na mão do mendigo, que reteve a sua e a apalpou com um
meio sorriso:
- Tu és um homem da pedra e o teu companheiro também deve ser.
Faríeis bem se não ficásseis por aqui. Há uma hora atrás, o Rei mandou
um arauto pelos bairros a dizer que andavam à procura, vivo ou morto,
do mestre-de-obras Machieu de Montreuil, que foi reconhecido durante a
tentativa para libertar os templários.
- E em que é que isso nos diz respeito? - perguntou Hervé. - Nós
somos dois...
- Não te canses! Sabes perfeitamente que tenho razão. Eu vou pedir
muitas vezes para os lados de Notre-Dame. Os trabalhadores
conhecem-me e eu também os conheço!
Sobretudo Machieu! Tem um grande coração e é um grande
companheiro... Se o encontrardes... dizei-lhe que vá para longe, para o
mais longe possível...
E sem querer dizer mais, o estranho cego regressou para junto da
cruz salmodiando a sua litania...
- Que fazemos? - perguntou Hervé.
- Vamo-nos embora. É inútil ficar aqui mais tempo. E partiram como
tinham chegado...
Do outro lado do Sena, mais alguém estava preocupado com a sorte
de Machieu e dos seus. Apesar de Bertrade se ter recusado a olhar para
o suplício que lhe fazia horror do alto da residência de Nesle e se tenha
fechado no seu alojamento com uma Aude aterrorizada com o
pensamento de que iam queimar os templários, sabia o que se passara
no Sena. O seu amigo, o gordo Denis, que não perdera pitada, tinha-a
informado logo ao nascer do dia.
Mas a inquietação transformou-se em terror quando um arauto se
aproximou da vizinhança da residência e ela ficou a saber que o seu
cunhado era procurado vivo ou morto. Terror que ela sentiu não por si
mesma, porque não era senão irmã da sua mulher, mas por Aude. Não
estava nos hábitos do Rei atirar-se às mulheres e filhos de um acusado -
à excepção dos rapazes quando eles tinham idade para ser cúmplices! -
mas a posição da pequena, junto da futura Rainha de França ficaria
seriamente comprometida. A jovem podia ser atirada para o meio da rua
sem saber para onde ir - e nessas circunstâncias Bertrade iria com ela -
ou talvez pior ainda se o abominável Nogaret se lembrasse de utilizar a
pequena para fazer sair o pai da sua toca, se toca havia porque
Ployebaut, no seu relatório, não se esquecera de mencionar o ferimento
que infligira ao mestre-de-obras. E como essa hipótese era,
provavelmente, a certa, Bertrade pensou que o melhor era adiantar-se
indo, imediatamente, juntamente com Aude, pedir à Rainha de Navarra
que dispensasse os seus serviços.
A dama encontrou Margarida ainda na cama mas de excelente
humor e Bertrade sabia porquê: como os príncipes tinham ficado retidos
no palácio da Cite para assistir à execução e ao Conselho que se lhe
seguira, Branca viera passar a noite com a sua prima e tinha passado
com ela uma parte da noite na Torre.
Meio estendida por trás das cortinas de brocado e no meio dos
lençóis e dos cobertores, Margarida, com os magníficos cabelos escuros
espalhados sobre os ombros nus, bebia leite e rilhava um bolo com ar
sonhador. Os seus devaneios deviam ser singularmente agradáveis a
julgar pelo meio sorriso dos seus lábios inchados e pelas olheiras por
baixo dos seus olhos negros. A Rainha de Navarra aceitou sem
dificuldade o momento privado pedido por Bertrade. Madame de
Courcelles retirou-se, aliás, prontamente sem esperar que lhe pedissem
para o fazer. A expressão preocupada da dama-de-companhia não lhe
passara despercebida.
- Então, minha boa Imbert, que se passa? - disse Margarida que,
presa ainda no seu sonho interior, não se apercebera de nada.
- Madame, venho pedir à Rainha que dispense os meus serviços e
os da minha sobrinha. Já hoje.
Aquelas palavras fizeram estremecer a jovem que, perante elas,
olhou com estupor para a sua dama-de-companhia.
- Dispensar os vossos serviços? As duas? Agora, que a minha
cunhada de Inglaterra anuncia a sua chegada? Nem pensar!
- Por favor, Madame. Sobretudo para Aude, a hora é grave! E
Bertrade ajoelhou-se nos degraus que sobrelevavam o leito.
Margarida viu mais de perto o seu rosto crispado e os seus olhos
cheios de lágrimas. Uma atitude absolutamente incrível naquela mulher
sempre tão sensata.
- Mas, enfim, de que se trata? A mãe dela morreu e o pai quer que
ela volte para casa?
- A esta hora ela não sabe - e eu também não! - se o pai ainda está
vivo.
Abandonando a sua pose lânguida, Margarida endireitou-se nas
almofadas e fez sinal a Bertrade para se sentar na borda do leito.
- Contai! - ordenou ela.
Com a voz sufocada apesar da proximidade da sua senhora e da
protecção das grandes cortinas vermelhas, Bertrade contou o que lhe
contara Denis, acrescentando o conteúdo da proclamação.
- Se Machieu não morreu, é um fòra-da-lei. Eu tenho de saber o que
aconteceu à minha irmã e pôr Aude ao abrigo da cólera do Rei... e de
monsenhor Luís - concluiu ela.
- Nem pensar! - exclamou a jovem Rainha com autoridade. - Em
mais lugar nenhum estareis em tanta segurança como junto de mim. O
meu marido não quer saber das minhas damas para nada. Além disso,
conheceis-lo suficientemente bem para saber que ele não tem cabeça
para a política. Ainda ontem se sentia encantado por o caso dos
templários ter terminado definitivamente com a morte do Grão-Mestre,
porque acha que messire de Marigny e Nogaret vão, enfim, acalmar um
pouco. Todo este barulho lhe estragou os prazeres. Ele deve ter achado
muito divertido o facto de um punhado de pedreiros ter tentado raptar os
condenados no rio. Quanto ao Rei...
- Não se pode dizer que ele não tenha cabeça para a política -
suspirou Bertrade.
- Não. Até tem a mais, para meu gosto, mas é um soberano bom
demais para incriminar mulheres... e uma rapariga! Além disso, creio que
ele gosta muito de mim, porque me sorri de vez em quando. Assim, ficai
descansada porque, se qualquer perigo vos ameaçar, a vós e a Aude,
saberei defender-vos. Aqui, estais em casa da Rainha de Navarra, não
de França. Os esbirros de Nogaret não são aqui admitidos.
- Salvo o Rei de Navarra...
- O Rei de Navarra detesta Nogaret. Nunca lhe permitirá transpor a
soleira da sua casa! Por isso, ficai tranquila, minha boa Imbert. A Rainha
Isabel está a chegar e nós vamos partir para Maubuisson, onde
esperaremos por ela. Vós e Aude ides comigo!
Em seguida, a jovem Rainha acrescentou num tom mais suave,
inclinando-se para segurar nas mãos da sua dama-de-companhia:
- Eu gosto muito de Aude e o seu futuro é da minha
responsabilidade... assim como o vosso.
- Oh, o meu... com esta idade!
- A vida é boa para se viver em qualquer idade, Bertrade e a vossa
está longe de estar acabada. Aude está a par dos acontecimentos de
ontem à noite?
- Não. Deixei-a no nosso quarto a refazer o bordado a ouro da
túnica de veludo nacarada...
Margarida teve um grande sorriso:
- E queríeis privar-me de uma tal artista? Trazei-ma cá: quero falar
com ela! A propósito, tendes notícias da vossa irmã?
- Não - respondeu Bertrade cujo rosto ficou de novo sombrio. -
Espero que, antes de se ter lançado nesta aventura insensata, o marido
dela tenha tido o cuidado de a fazer sair de Montreuil...
- Nogaret deve ter mandado para lá os seus molossos - disse
Margarida com desprezo. Vou mandar... não, pensando melhor, vou
pedir a Madame de Poitiers que mande lá alguém seguro para saber o
que foi feito dela... Ela far-me-á esse serviço de boa vontade.
Apesar de tentada a sorrir, pensando que aquele "alguém seguro"
podia muito bem ser um d'Aulnay, Bertrade limitou-se a agradecer
sinceramente àquela que se declarava sua protectora e da sua sobrinha
e foi à procura da jovem para a enviar a Margarida.
Quando Aude se lhe juntou no quarto de ambas, tinha os olhos
vermelhos e as lágrimas ainda lhe corriam pelas faces. Bertrade abriu-
lhe os braços e as duas mulheres ficaram apertadas uma contra a outra
durante um longo momento. Até se acalmarem os soluços da jovem e
ela estar em estado de ouvir o que a sua tia tinha para lhe dizer:
- Não te atormentes! O teu pai deve ter levado ontem à noite
Juliana, Matilde e Margot para a minha Quinta das Abelhas...
- Mas, e ele, o meu pai? Madame Margarida disse que ele foi ferido,
que pode até estar morto por ter perdido muito sangue! E Remi, que não
estava com ele! Como pôde deixá-lo sozinho...
- Quando o teu pai dá uma ordem, as pessoas obedecem-lhe e foi o
que o teu irmão fez. Não vais censurá-lo por ter posto em segurança as
mulheres da casa? Além disso...
o teu pai não estava sozinho. Tinha com ele alguém que, nem eu,
nem tu, sabíamos da sua presença em Montreuil, alguém que se teria
deixado matar antes de o abandonar.
E esse sabe bater-se...
- Alguém que...
As lágrimas de Aude secaram instantaneamente, ao mesmo tempo
que a jovem erguia para a sua tia um olhar aterrorizado e carregado de
interrogações, mas onde se acendia uma frágil centelha de esperança.
Bertrade, apesar de não o desejar, emitiu uma pequena risada seca:
- Não estás enganada! É mesmo ele! O homem que tu amas há
tanto tempo tem vivido estes últimos anos na oficina do teu irmão! Até se
tornou escultor! E bem bom a acreditar no que o teu pai e o teu irmão
dizem! Estava ontem com Machieu e Remi em Notre-Dame e... depois
também, suponho! Por isso, ou estão mortos os dois ou estão
escondidos algures, juntos. E por que não em minha casa?
- Meu Deus! Seria bom de mais, maravilhoso de mais! Oh, minha
doce tia, é preciso que tenhais razão! É preciso ir lá imediatamente...
- Estás louca, não? Ir lá e levar a reboque os homens de Nogaret?
Para além da tua família, ninguém sabe que eu possuo a Quinta...
- E o vosso sobrinho, o retroseiro?
- Gontran? Ele tem um comércio próspero que lhe arredonda a
bolsa e a barriga. Por nada deste mundo iria meter o nariz num assunto
tão perigoso como o do Templo!
Ele não é louco. Além disso, gosta de ti! Quanto a saber se há gente
ou não em Passiacum, é preciso ter paciência e não fazer nada que
possa arriscar a vida deles.
Vai refrescar o rosto e regressa ao trabalho!
Aude obedeceu, mas, uma vez de regresso ao seu tamborete, as
suas mãos ficaram inactivas durante muito tempo, esquecendo a agulha
enfiada no fio de ouro que segurava sem pensar em a espetar no
espesso veludo de um belo vermelho-claro que enfeitava de maneira tão
bela a tez cor de marfim de Margarida. A alegria e a inquietação dividiam
o seu coração, mas aquela - da qual se envergonhava um pouco -
predominava. Saber Olivier vivo, saber que na véspera ele estivera e
respirara na casa da sua infância enchia-a de uma imensa felicidade. E
era por causa dessa felicidade que a inquietação era menor. Com um tal
homem perto de si, Machieu só podia estar salvo. A jovem não ignorava
- e há muito tempo! - que nenhum laço era possível entre Olivier e ela,
mas acendia-se uma pequena chama de esperança no seu coração,
apesar de tudo, e ela via a mão de Deus naquela longa coabitação com
a sua família. Além disso, o Templo já não existia. Condenado pela Igreja
e pelo Rei, não passava de uma recordação e Aude desejou
apaixonadamente que os votos pronunciados por aqueles que se
esforçavam por sobreviver tivessem desaparecido com ele. Seria tão
bom se o cavaleiro se pudesse tornar num homem como os outros, um
homem que talvez se decidisse, um dia, a olhar para ela como uma
mulher, não como uma rapariguita!
Naquele instante operou-se nela uma estranha transformação
porque, pela primeira vez, o sonho parecia-lhe possível. Não, já não era
uma criança, antes uma mulher decidida a tudo para conseguir o amor
de Olivier. Ia - por fim! - existir para ele. A jovem sabia-se bela e queria
sê-lo mais ainda, fazendo-o esquecer tudo o não fosse o seu amor...
Deus, que escolhera o seu pai para o salvar, não condenaria aquele
amor... E Madame Margarida protegê-lo-ia. Aude tinha a certeza disso.
Nos dias que se seguiram, ela tinha de tal modo o ar de viver um
sonho acordada que Bertrade não teve coragem de lhe dizer o que
Margarida soubera através do "enviado" de Madame de Poi-tiers: a casa
de Montreuil não passava de um monte de escombros e cinzas sobre o
qual os sicários de Nogaret tinham espetado o édito real que fazia de
Machieu e do seu filho caça a abater.
Bertrade também soube - pelo que ficou aterrorizada! - que uma
mão misteriosa pregara, com uma flecha na porta central de Notre-Dame
um aviso aos cónegos da catedral e ao bispo de Paris, Guilherme de
Bausset, nos termos do qual a catedral em pessoa reivindicava para os
seus construtores o direito aos antigos privilégios de São Luís e a uma
justiça equitativa "... Nenhum trabalhará mais para a minha glória, que é
a glória de Deus, enquanto forem acossados, perseguidos e
massacrados os filhos daqueles que me erigiram com amor e devoção e
eu farei de maneira a que, por todo o reino, parem os trabalhos dos
meus outros santuários enquanto não for possível trabalhar neles na
paz, na honra e no amor de Nosso Senhor. O sangue não cimentará as
pedras... E o de Jacques de Molay bradou aos Céus." Era um apelo, se
não à revolta, pelo menos ao êxodo. Bem entendido, o bispo de Paris,
que o mandou arrancar, proclamou-o um sacrilégio e ordenou que os
arredores de Notre-Dame fossem guardados, mas no dia seguinte
estava fixado no mesmo local, através de outra flecha, outro pergaminho
e o mesmo aconteceu nos dias seguintes.
O efeito no povo, que ainda tinha nos ouvidos a voz do Grão-Mestre
no meio das chamas da fogueira, foi considerável. O Rei mandou
arautos pelos bairros apelando à calma e garantindo àqueles que
retomassem o trabalho o fim da perseguição e a segurança sob o
piedoso bastão de comando de um arquitecto monástico vindo de uma
grande abadia construtora, mas ficou tudo em letra morta... e o estaleiro
deserto. Nogaret conseguiu dos cónegos a lista dos operários, mas, ao
mesmo tempo, no recinto do Templo, os alojamentos dos trabalhadores
permaneciam vazios e não foi encontrado nenhum daqueles que
trabalhavam com Machieu de Montreuil.
Uma terrível notícia veio aumentar a inquietação do povo: o Papa
Clemente V acabava de morrer no castelo de Roque-maure, onde tivera
de fazer uma paragem na viagem de Avinhão para o seu castelo natal de
Villandraut, no Bordelais. A notícia explodiu como uma bomba em Paris
e também no palácio, sem que ninguém ousasse admiti-lo.
Ninguém soube como o Rei a recebeu, já que o seu silêncio era
impenetrável, tanto em relação às más notícias como às boas, mas fez
frequentes visitas à Sainte-Chapelle, onde ficava muito tempo...
Foram dias ainda mais difíceis para Bertrade e também para Aude,
porque não lhes chegou nenhuma informação. As duas mulheres
ignoravam se estava alguém na Quinta das Abelhas e Bertrade, por mais
vontade que tivesse, não ousava ir lá ver. Até ao presente, ninguém
aparecera para as deter ou, na residência de Nesle, ninguém se
lembrara do grau de parentesco com o mestre-de-obras. Mas era preciso
rezar para que aquela situação durasse o maior período de tempo
possível.
Aliás, chegara a hora de se porem a caminho de Maubuisson, onde
Filipe, o Belo ia esperar a chegada da sua filha Isabel. Tal como
prometera, Margarida levou as duas mulheres consigo.
Perto de Pontoise, a abadia de Notre-Dame-la-Royale fora fundada
no século anterior por Branca de Castela, mãe de São Luís, que
desejara ser lá enterrado como um simples religioso e cujo túmulo, na
capela, ocupava o centro do coro. Muitas religiosas cistercienses,
pertencendo na sua maior parte a grandes famílias, tomavam ali o véu e
a abadessa era, então, Isabel de Mont-morency. São Luís mandara
construir, à parte dos edifícios conventuais, um pequeno castelo para
onde gostava de se retirar para se sentir mais próximo daquela que,
depois de ter governado firmemente o reino durante a sua menoridade,
ficara para sempre para ele como uma preciosa conselheira, sempre
escutada salvo quando ele partira para a cruzada que ela tanto temia e
que se mostrou desastrosa.
Já Rei, Filipe, o Belo adoptou Maubuisson. O soberano gostava da
calma dos jardins que se estendiam entre a residência real e a igreja
abacial, onde ia frequentemente, sozinho, para escutar, escondido na
sombra da nave, as vozes leves das monjas cantando as litanias da
Virgem Maria. Ia até ali, como ele próprio dizia, aconselhar-se com o seu
silêncio. Foi ali que tomou - não sem uma profunda reflexão! - a decisão
mais grave do seu reinado: a de prender os templários. Para aquele Rei
"com a ideia da França no espírito {42}, o Templo, poderosamente rico e
poderosamente armado, cuja autonomia fazia com que preferisse
frequentemente o seu próprio interesse à causa geral, representava o
mais grave dos perigos. Numa situação que podia vir a ser perigosa, não
ignorando Filipe que o seu papel na desintegração do reino franco de
Jerusalém, que deviam, porém, proteger. Perdido o Oriente, restava-lhes
a França e Filipe não queria entregar a França ao Templo.
Ora, o soberano não tinha nenhuma arma política contra eles,
apenas pesavam sobre os seus costumes íntimos sérias suspeitas,
assim como sobre a ortodoxia da sua fé cristã. Era o seu único ponto
vulnerável. Filipe percebeu-o e, de acordo com as suas convicções,
atacou {43}...
O Rei também gostava da Primavera em Montbuisson, a
proximidade da floresta e ficava lá sempre que podia. Daquela vez, ia
esperar a sua filha Isabel cuja viagem fora anunciada há pouco para
apresentar ao seu pai o filho Eduardo de dezoito meses de idade e, até à
data, único neto de Filipe. Tendo sabido que ela viajava só, sem o
marido, o Rei decidira recebê-la de maneira menos oficial do que em
Paris, ou noutro sítio qualquer, já que os festejos reais logo a seguir à
trágica conclusão do processo dos templários teriam sido de mau gosto.
Além de que a Primavera estava a chegar e as margens do Oise seriam
mais agradáveis para uma reunião familiar.
Isabel chegava com uma escolta razoável, da qual se encarregaria a
cidade vizinha de Pontoise, assim como dos membros do séquito real
que o pequeno castelo da abadia não podia receber. Apenas o Rei e os
seus filhos ficariam ali alojados.
Margarida não gostava de Maubuisson, apesar de ir na companhia
das cunhadas. A atmosfera ressentia-se com a proximidade das
religiosas e também com a do Rei. Era verdade que os irmãos d'Aulnay
também iam, já que um deles pertencia a Filipe de Poitiers e o outro a
Carlos de Valois, mas qualquer encontro seria impossível. Além do mais,
os belos adornos previstos para o brilho de uma visita real não serviriam
de grande coisa. A jovem Rainha de Navarra não resistiu, no entanto, ao
prazer de levar o seu belo manto de camocas branco, sobre o qual os
rubis de Pierre de Mantes faziam um efeito maravilhoso. A Rainha de
Inglaterra, cujas jóias eram pilhadas alegremente pelo marido em
benefício dos seus favoritos, segundo rumores de além-Mancha, não
poderia fazer o mesmo... e isso seria uma grande satisfação face ao
humor arrogante de Isabel, que não permitia que ninguém se
esquecesse, por pouco que fosse, que era ela quem usava a coroa de
Inglaterra, um verdadeiro e grande reino, ao pé do qual Navarra fazia
fraca figura.
A chegada da soberana, ao encontro da qual tinham ido até
Clermont os seus tios Carlos de Valois, Luís d'Evreux e o seu irmão
Filipe, teve, no entanto, brilho. Montada numa hacaneia branca, pela
garupa da qual se estendia um manto de veludo do mesmo azul dos
seus olhos, Isabel, com uma tiara trabalhada e ornamentada com
safiras, tinha um ar nobre quando transpôs o portal ogi- val da abadia,
em frente do qual estava uma grande cruz de pedra. Com os tios e o seu
irmão a seu lado e com o filho e as suas damas atrás, avançou até ao
patamar onde o pai a esperava com Luís, Carlos e as noras a seu lado.
Apesar da palidez e de uma ligeira bruma de melancolia no rosto puro e
altaneiro, era uma mulher muito bela, de uma beleza cuja semelhança
com a de Filipe era mais gritante do que nunca. Talvez porque os seus
olhos azuis pestanejavam pouco e também porque a sua boca de lábios
ternos, mas orgulhosos, pareciam ter desaprendido de sorrir.
Abandonando o protocolo, o Rei desceu os degraus para a ajudar a
desmontar num dos gestos de afecto em que era pouco pródigo, mas
com uma chama de orgulho no olhar perante a imagem perfeita de
majestade real da filha. Em seguida, ela dobrou o joelho diante dele,
abraçando-o depois mas sem efusões supérfluas. Depois, a viajante
saudou Isabel de Montmorency, a abadessa de Maubuisson, que, de
cruz na mão, a recebeu à frente de todas as religiosas do convento. Em
seguida, a Rainha de Inglaterra mandou avançar a ama com um
magnífico bebé louro nos braços, visivelmente de boa saúde e que
chilreava estendendo as pequeninas mãos para a coroa do seu avô.
Dessa vez, Filipe abriu-se e, pegando nele, disse:
- Esta não é para vós, sire Eduardo! - disse ele, afastando a cabeça.
- Tereis de vos contentar com a do vosso pai... Pelo menos, assim
espero - acrescentou virando-se para os seus filhos, que não acharam
graça à observação.
Depois, Isabel beijou as cunhadas com uma frieza que Margarida
atribuiu à sumptuosidade do seu próprio traje, o que a satisfez. Por fim,
entraram nos aposentos reais para que a Rainha de Inglaterra pudesse
recolher-se e repousar um pouco antes do grande banquete da noite.
Tal como as outras damas-de-companhia das princesas, Aude e
Bertrade tinham assistido um pouco afastadas à chegada de Isabel. A
jovem sentia-se muito contente por ter podido admirar a sua senhora tão
magnificamente vestida com obras suas, sentindo uma alegria infantil
que rapidamente se apagou ao constatar que a sua tia não partilhava
esse sentimento. Bertrade tinha, até, uma expressão tão sombria que
ficou inquieta.
- Estais muito pensativa... e até assustada! Dir-se-ia... que vistes o
Diabo!
Bertrade lançou-lhe um olhar furibundo:
- Tens cada coisa! Mas não estás completamente enganada. Se não
é ele, é uma das suas obras!
- Não é Madame Isabel que vos inspira esses pensamentos tão
sombrios, espero? Ela é muito arrogante e não parece muito feliz, mas é
magnífica! Menos do que Madame Margarida, evidentemente, mas muito
bela e verdadeiramente majestosa!
Uma vez mais, Bertrade renunciou a denegrir o prazer puramente
artístico da sua sobrinha, demonstrando-lhe que a expressão "arrogante"
de Isabel e a frieza ao saudar as princesas podia ter sido provocada
pelas bolsas arvoradas pelos irmãos d'Aul-nay que, com os príncipes
respectivos, tinham ido recebê-la e que ainda andavam pelos jardins de
Maubuisson. Daquela vez, a dúvida - admitindo que a pobre mulher
ainda tivesse alguma! - já não era possível: os irmãos d'Aulnay eram
amantes de Margarida e de Branca, amantes suficientemente amados
para receberem presentes de uma cunhada de quem, tudo levara a crer,
era preciso desconfiar:
Felizmente que não são três os belos fidalgos, pensou ela. Pelo
menos, resta a hipótese de Madame Joana ser uma mulher honesta, a
menos que seja ainda mais maligna e mais irreflectida...
Mas, no fundo, duvidava. Joana, tímida e discreta, parecia amar
sinceramente o marido. Era verdade que Filipe de Poitiers era muito
mais brilhante e atraente do que o pateta do Carlos e, sobretudo, do que
o tinhoso do Luís! Restava esperar que Isabel, orgulhosa por poder
mostrar o seu magnífico filho e sem dúvida preocupada com coisas mais
graves do que a conduta das cunhadas - diziam-na infeliz já que o
marido preferia abertamente os rapazes bonitos às mulheres bonitas! -
não tivesse reparado em nada.
A doce ilusão não durou muito tempo. Na mesma noite, o drama tão
temido por Bertrade explodiu.
Para que a Rainha se pudesse deitar cedo, o banquete foi curto e
quando terminou e o Rei se dispôs a regressar à pequena sala para
onde gostava de se retirar para reflectir, esta pediu-lhe que a deixasse
acompanhá-lo. O que ele aceitou. As três princesas, depois de lhe terem
desejado boas-noites, regressaram aos quartos que partilhavam quando
visitavam Maubuisson, ao mesmo tempo que os respectivos maridos
ficavam entre si.
Desembaraçadas dos seus trajes de cerimónia e com roupões
sedosos vestidos pelas suas damas-de-companhia, conversavam no
quarto de Margarida estendidas em almofadas empilhadas em frente da
chaminé onde ardia um belo fogo, comentando com malícia a atitude de
Isabel e a sua expressão lúgubre, quando a viagem não tinha nada de
desagradável. Em redor delas, Aude e Marta, a camareira preferida,
dobravam e arrumavam os trajes que as princesas acabavam de despir
quando o camareiro do Rei apareceu para lhes dizer que este as
mandava chamar.
- Mas, nós já estamos despidas - protestou Margarida. - Não pode
esperar para amanhã?
Hugo de Bouville, camareiro e um dos mais fiéis servidores de
Filipe, era um homem de idade e experiente, mas também muito fino.
Perante a expressão chocada da jovem Rainha, limitou-se a dizer
gentilmente:
- Sabeis muito bem, Madame, que o Rei não gosta de esperar.
Aliás, ele está sozinho com Madame Isabel: basta levardes uns
mantos...
Aude quis dar a Margarida o camocas branco que ela acabava de
tirar, mas esta repeliu-o:
- Dai-me a minha dalmática, minha querida! Faz frio nos corredores.
Uma vez prontas, as três jovens seguiram Hugo de Bouville com a
alegria subitamente desaparecida. Era tão pouco usual, aquela
convocação! No meio do quarto, Aude viu-as sair e depois virou-se para
Bertrade que, de olhar fixo, se mantinha perto da chaminé triturando com
os dedos o xaile de musselina que segurava nas mãos.
A dama ficara pálida de repente! Aude sentiu um arrepio:
- Sentis-vos bem?
Aquelas palavras não pareciam ter chegado aos ouvidos da tia, esta
estava hipnotizada por aquela porta transposta pelas princesas, como se
um dedo de fogo tivesse escrito nela "Vós, que aqui entrais, deixai lá
fora toda a esperança", como no Inferno de Dante Alighieri, o poeta
florentino de quem Carlos de Valois fizera um exilado {44}. Aude
aproximou-se dela para repetir a pergunta e, dessa vez, Bertrade virou o
olhar para ela. Os olhos da dama reflectiam uma tal angústia que a
jovem assustou-se e acrescentou:
- Por piedade, dizei-me o que se passa! Estais a meter-me medo...
Bertrade deixou cair o xaile e tomou a sua sobrinha nos braços:
- Vem! Vamos rezar! É a única coisa inteligente a fazer...
As duas mulheres foram ajoelhar-se diante de uma bela estátua da
Virgem que compunha, com duas velas permanentemente acesas, uma
espécie de oratório no quarto de Margarida. Ao fazer aquilo, Aude
sussurrou:
- As nossas princesas... estão em perigo?
- Temo que sim! É por isso que é preciso rezar, para que eu me
engane.
Aude não insistiu e rezou. A jovem gostava demasiado de Margarida
para não se sentir perturbada com a ideia de que lhe pudesse acontecer
qualquer infelicidade...
mas o mal já estava feito! As duas mulheres ainda estavam de
joelhos quando a porta se abriu de novo, mas dessa vez pela mão de
Alain de Pareilles, o capitão da guarda do Rei. Atrás dele entraram,
primeiro Margarida, lívida mas de cabeça direita, e depois as duas irmãs,
Joana e Branca, chorando e apoiando-se mutuamente, seguidas por
uma Madame de Courcelles visivelmente assustada. A sua voz
indignada protestava:
- Mas, enfim, messire de Pareilles, é impossível! O Rei não pode ter
ordenado que...
- Sim. As suas ordens são formais, Madame. As princesas ficarão
aqui, guardadas pelos meus homens. Estão proibidas de sair ou de falar
seja com quem for, mesmo com os seus parentes ou maridos. Quanto às
damas-de-companhia, servas... e até vós mesma, Madame, vão ser
entregues às damas cistercienses, onde Madame de Montmorency
velará pelo seu alojamento...
- Não!... Oh não!
Era Aude, que desatara a soluçar e se atirara aos pés de Margarida
e lhe abraçara os joelhos. Aquele abraço traduzia uma tal dor, que a
Rainha de Navarra pareceu reanimar-se. A Rainha inclinou-se, segurou
na jovem pelas mãos e beijou-lhe a fronte:
- Coragem, minha querida! - murmurou ela. - É preciso ter
esperança.
- Madame!... Oh, Madame!
Entretanto, Madame de Courcelles ainda não tinha acabado com o
capitão da guarda:
- Vamos, nesse caso, ficar prisioneiras?
- De maneira nenhuma! Eu disse alojamento. Não enclausuramento.
Cada uma de vós é livre de poder movimentar-se no interior da abadia
até ao regresso a Paris. E agora abandonai este local, levai os vossos
pertences e ide ter com as monjas... Não vejais nisto uma ofensa -
acrescentou ele perante a expressão daquela dama de grande linhagem,
daquela viúva de um grande barão que se via tratada como uma simples
camareira, mesmo que por pouco tempo - é por pouco tempo e a
abadessa receber-vos-á como deve ser...
Enquanto ele reunia aquelas que deviam seguir para o convento,
Margarida deteve Aude:
- Um momento! Vai buscar o meu belo manto de camocas com a
fivela de rubis e guarda-mo! Seria uma pena se outra qualquer, que só
veio aqui para prejudicar, ficasse com ele!
- Madame... Não sei se posso - disse a jovem com uma olhadela na
direcção do capitão da guarda:
- Por que não hás-de poder? Continuo a ser Rainha de Navarra, que
eu saiba! Confio-te esse manto. Entregar-mo-ás... quando eu regressar,
senão...
Aquela simples palavra continha tantas ameaças que Margarida
gaguejou, apertou uma contra a outras as suas pequenas mãos ainda
cheias de anéis, respirou profundamente e continuou:
- Senão, guardá-lo-ás para ti como recordação minha! Será o teu
dote, mas espero, um dia, poder comprar-to bastante mais caro... Vai!
Obedece-me! Eu fico bem!
Aude foi buscar o esplêndido manto, dobrou-o cuidadosamente e
juntou-se às suas companheiras.
As três prisioneiras - não eram outra coisa! - estavam sozinhas no
meio do vasto quarto que as damas-de-companhia abandonavam uma a
seguir à outra, de cabeça baixa e o coração pesado, abatidas com
aquele golpe do destino que não compreendiam, a começar pelo que o
suscitava. Madame de Courcelles, depois Bertrade e depois Aude foram
beijar a mão de Margarida. Marta, a sua fiel serva, chorava de tal
maneira que foi preciso segurá-la para descer a escada de caracol que
ia dar ao jardim e depois ao convento. Como se houvesse algo a temer
por parte daquelas mulheres desoladas, quatro arqueiros escoltaram-nas
até aos edifícios conventuais. As damas-de-companhia de Branca e de
Joana juntaram-se a elas. A noite estava bela e doce e sobre aquele azul
profundo anunciador do Verão a linha dos telhados destacava-se em
redor dos dois campanários da capela. Bertrade aproximou-se de
Madame de Courcelles...
- Sabeis o que se passou? - sussurrou ela.
- Lembrais-vos da bolsa que procuráveis ainda não há muito tempo?
- Aquela que veio de Londres no último Natal? E da qual Madame
Margarida não gostava?
- Essa mesma. Ora, a Rainha Isabel reconheceu-a... na cintura de
um fidalgo de monsenhor de Valois...
- Pode ter-se perdido... sido roubada e vendida? - disse Bertrade,
imediatamente na defensiva...
- Sem dúvida, mas a da condessa de la Marche também se
encontrava na cintura do irmão dele, que pertence ao serviço de
monsenhor de Poitiers. A Rainha Isabel assinalou-o ao Rei, confirmando
assim os rumores ouvidos em Inglaterra e que ela já tencionava contar
ao Rei. Esta viagem, de facto, não tinha outro objectivo: prevenir o seu
pai dos actos condenáveis das cunhadas.
- E agora?
- Os irmãos d'Aulnay foram presos e entregues a messire de
Nogaret, que os levou para Pontoise para os "interrogar". Pobres
rapazes! São jovens e, se Nogaret lhes aplicar os mesmos métodos que
aplicou nos templários, confessarão seja o que for!
- É verdade, mas que imprudentes! E as princesas?
- Sabeis tanto como eu. Serão julgadas segundo as confissões dos
seus amantes.
- Mas, e Madame de Poitiers? Não correm boatos acerca dela,
senão o facto de estar sempre com as outras duas?
- Ela bem o disse em voz alta ao Rei e a Madame Isabel: "Eu sou
uma mulher honesta!" No entanto, pagará, tal como as outras duas, se
bem que o Rei tenha dito que de acordo com as respectivas faltas.
- Mas... como tomastes conhecimento desses factos? Estáveis junto
do Rei?
A noite escondeu pudicamente o rubor que subia ao rosto da dama-
de-companhia de Margarida.
- Não... Mas, tendo visto as princesas entrar nos aposentos do
nosso sire vestidas de maneira pouco usual, eu... desci ao jardim e...
- ... e como a janela estava aberta para deixar entrar o perfume dos
lilases, ouvistes o que se passava no interior?
- Exactamente! - disse a dama-de-honor.
- Os príncipes já foram avisados?
- Devem estar a sê-lo neste momento. Que história horrível! Que vai
acontecer àqueles infelizes? Nunca ouvi uma voz tão severa, tão dura,
como a do nosso sire Filipe!
Tenho medo, dama Imbert...
- Também eu, mas a condessa Mahaut d'Artois, mãe de Joana e de
Branca, uma mulher forte, e o duque Hugo de Borgonha, irmão de
Margarida, vão esforçar-se, certamente, por defendê-las, e nem ela nem
ele são uns quaisquer...
- É verdade... mas o duque está em Dijon, a condessa Mahaut em
Paris e eu pergunto a mim própria se chegarão a tempo de impedir a
justiça do Rei. Receio que esta seja rápida e muito dura!
E foi. Logo no dia seguinte, tendo reunido um pequeno conselho
com os seus dois irmãos Valois e Evreux, os seus três filhos e
Enguerrand de Marigny, Filipe, o Belo ditava a sua sentença de acordo
com as confissões transmitidas por Nogaret, que torturara os irmãos
d'Aulnay durante o resto da noite: Margarida e Branca seriam
encerradas para toda a vida na fortaleza de Châ-teau-Gaillard, em
Andelyz, e Joana, para a qual não tinham descoberto qualquer falta ao
seu dever conjugal, mas a quem foi imputada uma forte cumplicidade,
seria conduzida ao torreão de Dourdan, ficando ali encerrada enquanto
agradasse ao Rei. Quanto aos irmãos d'Aulnay, o que os esperava era a
morte. E uma morte singularmente terrível. Tratava-se de retirar, para
sempre, o desejo de quem quer que fosse de se aproximar demasiado
das pessoas reais.
Na manhã do dia seguinte, as damas-de-companhia das princesas,
que a abadessa tratara com uma bondade tanto mais meritória quanto
um dos irmãos d'Aulnay era seu sobrinho por aliança, foram metidas
numa grande liteira e abandonaram Maubuisson sem terem visto mais
ninguém. A abadessa deu-lhes, simplesmente, a conhecer os termos do
julgamento e também que iriam ser levadas para Paris e que
regressariam às residências dos seus senhores respectivos. O que não
tinha nada de tranquilizador para as mulheres que regressavam à
residência de Nesle: os muros de Notre-Dame-la-Royale não eram
suficientemente espessos para lhes evitar o eco dos furores do Rei de
Navarra, que fora preciso encerrar nos seus alojamentos para o fazer
calar. A ideia de serem entregues num futuro mais ou menos próximo
àquele louco furioso gelava o sangue daquelas que pertenciam à sua
casa, já que as outras tinham menos a temer dos seus senhores. E
Bertrade começou a procurar um meio de fugir antes que as levassem
para Paris, a Aude e a ela, ao aperceber-se de que entravam em
Pontoise em vez de seguirem para leste... A dama compreendeu e sentiu
o pavor a assaltá-la quando o veículo em que seguiam se imobilizou na
parca do Martroi já negra de gente contida por homens de armas em
redor de um cadafalso sobre o qual, junto de um duplo patíbulo, havia
duas rodas, um cepo e alguns carrascos preparando os seus
instrumentos.
Desaustinada, Marta desatou a gritar:
- É para nós? Vão-nos matar? Oh meu Deus, meu Deus! Ao mesmo
tempo, a jovem tentava saltar para terra e os seus gritos atingiram uma
tal intensidade que Bertrade foi obrigada a esbofeteá-la:
- Chega! Acalma-te! Não é para nós... Trouxeram-nos aqui para que
assistamos ao suplício dos que servimos sem querer, sem saber... Nada
mais, senão estaríamos numa carroça, não numa liteira! Entretanto,
rezai, porque vamos ver coisas terríveis...
As mulheres acalmaram-se um pouco, mas era possível ouvir
alguns dentes a bater. Quanto a Aude, agarrada à tia, olhava para os
instrumentos do suplício com os olhos dilatados de horror. A jovem era
daquelas a quem o espectáculo da morte aterrorizava. A sua vida em
Montreuil, e até na residência de Nesle, tinha-a mantido afastada
daqueles espectáculos abomináveis dos quais, porém, o povo gostava
muito, talvez porque não havia outros e aqueles tempos eram muito
duros...
- Temos mesmo de ver... isto? - balbuciou ela.
- Só vê quem olha! Fecha os olhos e tenta tapar os ouvidos
porque...
- Oh meu Deus... vede! Vede quem está a chegar... Não são... não
são as nossas princesas?
Três carroças cobertas de lona negra, com um dos lados
intencionalmente descoberto, acabavam de entrar na praça e tinham
parado em frente do cadafalso. Agarradas aos taipais de cada uma delas
viam-se umas pequenas silhuetas vestidas de burel negro e com as
cabeças rapadas e Aude teve um soluço de horror ao reconhecer
Margarida na primeira e Joana e Branca nas seguintes. Apesar de se
encontrar naquele veículo sinistro, a primeira continuava a parecer uma
Rainha pelo ar orgulhoso da sua postura. Branca, encostada ao taipal da
sua carroça, soluçava perdidamente, enquanto Joana parecia ter perdido
os sentidos. O povo, ao vê-las reduzidas àquele estado, calou-se, preso
de uma espécie de terror sagrado perante o rigor da justiça do Rei. No
mesmo momento, a carroça dos condenados, onde estes vinham meio
desfalecidos na palha, aparecia, e a atenção virou-se para eles.
A tortura deixara-os num triste estado. Foi preciso ampará-los para
que conseguissem subir para o cadafalso, onde foram amarrados, cada
um deles, a uma roda, após o que o cerimonial bárbaro que iria conduzir
à morte dos culpados de lesa-majestade começou. Partiram-lhes os
ossos dos dedos, das pernas e do peito e, em seguida, castraram-nos.
Em seguida, esfolaram-nos e arrastaram-nos sobre uma camada de
palha recentemente cortada antes de lhes concederem a graça de os
decapitar. Finalmente, penduraram-nos no cadafalso pelas axilas, uns
farrapos sangrentos que já não tinham nada de humano.
Na liteira, as mulheres, aterrorizadas, agarravam-se umas às outras.
Duas desmaiaram. A própria Bertrade mantinha os olhos fechados e
rezava por aqueles dois infelizes cuja má sorte conduzira ao leito de
umas princesas demasiado belas para que fosse possível resistir-lhes.
Refugiada no seio de Bertrade, Aude não quisera ver nada, mas não
pudera deixar de ouvir os uivos, os gritos que, finalmente, acabaram por
diminuir antes de extinguirem, apesar de ter as mãos crispadas nos
ouvidos.
Quando deixou de ouvir fosse o que fosse, Bertrade abriu os olhos.
- Acabou - murmurou ela. - Estão mortos e as carroças vão-se
embora.
Então, Aude procurou Margarida com os olhos. Sempre de pé e
agarrada ao taipal de madeira onde tinha fincado as unhas, esta, lívida
até aos lábios e com os olhos negros de tal modo abertos que mais
pareciam fazer parte de uma máscara em cima do seu rosto, seguira até
ao fim o martírio do seu amante. Branca perdera a consciência.
Quanto a Joana, meio louca de terror, desatara a chorar, ao mesmo
tempo que o soldado que conduzia a sua carroça fazia virar o cavalo:
- Dizei ao meu senhor Filipe que estou inocente, que não o
envergonhei e que não traí o nosso casamento! Dizei-lhe, por piedade!
Dizei-lhe!
A multidão começava a espalhar-se, empurrada pelos soldados, e a
calar-se. Manifestara-se muito durante o duplo suplício que era, para ela,
um espectáculo de primeira categoria, do qual se falaria durante muito
tempo à lareira, mas o destino trágico daque- las três jovens, ainda no
dia anterior tão respeitadas, tão belas e tão brilhantes, acabara por
merecer a sua piedade porque, dali a pouco, seriam encerradas em
masmorras húmidas onde estava sempre muito frio. Nunca mais veriam
o céu azul e sentiriam o vento leve da Primavera carregado de odores,
como era privilégio de todos aqueles que se encontravam ali presentes.
Os apelos desesperados de Joana, sobretudo, encontravam eco noutros
corações femininos. Se, realmente, não havia nada a censurar-lhe,
senão ter ajudado os amores da sua irmã e da sua prima, com a qual
fora criada, era muito cruel fazê-la pagar o mesmo preço que as outras...
A saída de Pontoise, as carroças, rodeadas de cavaleiros,
separaram-se, duas delas dirigindo-se para noroeste. A de Joana rumou
a sul e era aquela a diferença, arrancada a ferros pelo conde de Poitiers
ao Rei seu pai: Château-Gaillard, em tempos a residência do
governador, só tinha prisões; o torreão de Dourdan era severo, mas era
tão possível viver no seu interior como noutro castelo qualquer da época:
Joana seria ali estreitamente guardada, ficaria fechada, mas teria uma
cama como deve ser e uma lareira. Face a toda aquela miséria, fazia
uma diferença enorme... Significava poder viver.
O veículo das damas do seu serviço afastou-se, por sua vez, para
executar a segunda parte do programa: o regresso a Paris, onde
chegaram ao cair da noite. A residência de la Marche e a residência de
Poitiers receberam cada uma o seu contingente de viajantes esgotadas,
tanto pela provação da manhã como pela viagem. Finalmente, as portas
da de Nesle fecharam-se sobre aquelas que restavam e que iriam
esperar ali o regresso do Teimoso. Se Bertrade esperava poder fugir
com Aude, rapidamente se apercebeu de que era impossível. As ordens
eram claras: a casa de Margarida seria guardada de perto...
IX – CADÁVERES NA TORRE DE NESLE

Paris soube do caso das princesas com um estupor próximo do


terror. O facto era que as más notícias pareciam seguir-se com um rigor
implacável. Depois da morte do Papa Clemente um mês depois da
intimação do Grão-Mestre, que tivera o efeito de uma bomba, depois dos
cartazes de Notre-Dame afixados regularmente por um arqueiro
diabólico e inacessível, os naufrágios conjugais dos três filhos do Rei,
que numa outra ocasião qualquer teriam sido motivo de chacota,
ganhavam, naqueles dias sombrios, foros de maldição, coisa que muito
inquietava o povo.
Com a sua frieza habitual e para cortar pela raiz todas as
interpretações fantasistas, Filipe, o Belo mandou proclamar pela cidade
o édito de condenação de Margarida, das suas primas e dos seus
amantes, para que todos compreendessem que o estatuto não livrava
ninguém do castigo em questões de honra. Pelo contrário: quanto mais
alto o estatuto, maior a queda e maior a punição. Com o seu
consentimento, o bispo ordenou que, nas paróquias, os padres deviam
fazer pender os seus sermões para a santidade do casamento e o perigo
que corriam as almas daqueles que ousassem transgredi-la.
O cavalo do arauto que, com o pergaminho enrolado, prosseguia o
seu caminho em direcção a outros bairros, deixava atrás de si um
silêncio sufocado, mas que não durava muito, substituído por
exclamações e numerosos comentários, lembrando que a mulher do
Teimoso tinha uma filha pequena, que Joana, a menos culpada, tinha
três e que Branca não tinha nenhuma. O que significava que, se o Rei
morresse, à falta de um homem para cingir a coroa, o reino cairia nas
mãos de uma mulher, a menos que o Céu se lembrasse de colocar
ordem nas coisas. Mas não se podia dizer que, nos próximos tempos, a
França pudesse receber quaisquer favores celestes.
Naquela manhã, Olivier fora a Paris, sozinho. O mestre Machieu
fazia questão de receber, todos os dias, notícias frescas e, à vez, um dos
seus companheiros deslocava-se à cidade para sentir o vento e ouvir os
rumores. Apenas um, para que houvesse sempre, para ele e para as três
mulheres, protecção suficiente em caso de surpresa.
O construtor recuperava mal, de facto, de um ferimento que o
mantivera durante muito tempo num estado febril e que ressumava ao
menor movimento involuntário. A sua clavícula, quebrada pela espada do
preboste, fazia-o sofrer apesar do engenhoso aparelho colocado por
Hervé, que vira em tempos, em Chipre, um semelhante empregado por
um médico judeu: um pedaço de tecido passando pelo pescoço, sob as
axilas e atado nas costas com o objectivo de imobilizar as espáduas,
mas Machieu agitava-se e a cura avançava tanto mais devagar quanto
mais baixo era o moral. O mestre-de-obras sentia-se furioso por estar
preso dentro de casa, sem poder meter o nariz no exterior, já que o seu
desejo era levar a revolta a todos os estaleiros de catedrais: a Beau-vais,
cujo coro caíra trinta anos antes e cuja reconstrução estava longe de
estar acabada, a Orleães, a Bourges e a outros. Levado por um ódio que
lhe envenenava o sangue, queria que as obras-primas inacabadas
proclamassem a todo o reino a iniquidade do Rei e a vingança do Grão-
Mestre. Não podendo deslocar-se, encarregara Cauvin da ligação com
as pedreiras de Gentilly onde, antes do golpe de força, os seus
companheiros que conseguissem escapar se reagrupariam e esperariam
pelas suas ordens, mas os dias sucediam-se e o pedreiro, sempre que
regressava, não ousava confessar que, pouco a pouco, os homens
estavam a desertar, um após outro, para tentarem refazer uma
existência suportável. Infelizmente, mestre Jacques estava morto, mas
era preciso que os que restavam vivessem...
Encostado à parede do Hotel-Dieu, Olivier, de braços cruzados,
desinteressava-se do homem do pergaminho que se afastava e olhava
para Notre-Dame, deslumbrante sob o Sol de Maio, brilhante como um
imenso livro de horas com as cores e os dourados com que estavam
pintadas as suas estátuas e esculturas. Ainda três dias antes tinha
afixada no vermelho da sua grande porta central a sua cólera e o seu
apelo a Deus para que fossem anulados os éditos iníquos que atingiam,
sem excepção, todos aqueles que continuassem a trabalhar na sua
solidez e na sua beleza. Olivier pensava no arqueiro desconhecido. A
despeito de toda a vigilância, não tinha sido possível capturá-lo e o
cavaleiro admirava a sua audácia, assim como a sua quase diabólica
habilidade. Apesar de não ter feito mais do que excitar a cólera do bispo,
dos cónegos e do preboste, ter dado voz à catedral, uma voz rebelde,
parecia-lhe coisa de génio... Com o drama íntimo abatendo-se sobre os
filhos do Rei, essa voz ia ter uma razão magnífica para invocar a justiça
transcendente!... Entretanto, era preciso regressar à quinta para pôr os
outros ao corrente...
No preciso momento em que se ia pôr a caminho, fez-se ouvir nas
suas costas uma voz azeda:
- Espero que estejais satisfeito? Se não vos tivésseis metido de
permeio no meu projecto, em frente do Templo, o Cabeçudo reinaria
agora com a sua bela garça, o futuro do reino não estaria em perigo e o
Grão-Mestre ainda estaria vivo...
Antes mesmo de olhar para aquele que lhe dirigia a palavra, Olivier
já tinha reconhecido, pela voz rouca dificilmente olvidável, o mendigo
que ele impedira de matar o Rei e que dissera chamar-se Pierre de
Montou. Virando-se, o cavaleiro pôde constatar que o homem não tinha
mudado: continuava filiforme, magro, com a sua barba e cabelos
grisalhos emaranhados, no meio dos quais, todavia, o longo nariz, em
forma de bico de águia, lhe pareceu menos vermelho. Mas os seus olhos
brilhavam de cólera quando acrescentou:
- ... Além disso, mentistes-me! A palavra irritou Olivier.
- Noutros tempos, ter-vos-ia esbofeteado porque, para além de ter
achado bem empregar esse meio vil para impedir que fos- ses
massacrado, não teríeis sido o único, e para nada! Acontece que vi,
realmente, Roncelin de Fos. E o meu companheiro também o viu no
momento em que eu gritava o seu nome. Aliás, corremos os dois para o
alcançar...
- E conseguistes? - troçou o seu interlocutor.
- Não. Devíeis saber que os arqueiros nos perseguiram, o que vos
permitiu ir para onde queríeis. Só conseguimos escapar-lhes graças... a
um amigo. Quanto a ele, tinha desaparecido como o pesadelo que é.
- E esse pesadelo regressou, nos anos que se seguiram?
- Nunca me abandonou na reclusão a que fui obrigado a resignar-
me para poder continuar a viver. Mas não por não o ter mandado
procurar por aqueles que me deram asilo.
Mas não sou obrigado a dar-vos explicações que mais se parecem
com desculpas. Certamente que também vos pusestes à sua procura,
não?
- Não estava persuadido de que tínheis gritado o seu nome para que
o meu projecto falhasse...
- Falemos desse projecto! O que não se faz num dia, faz-se no
outro. Não encontrastes outra ocasião para receber esmola de Filipe?
Tivestes tempo, parece-me, no espaço de sete anos?
- Quer acrediteis, quer não, não tive oportunidade - grunhiu Montou.
- No entanto, não foi por não ter tentado; por exemplo, quando ele foi a
Poitiers para se encontrar com o Papa, mas ele tinha, na altura, muitos
inimigos e Marigny cercou-o, sem ele saber, com um verdadeiro cordão
de ferro. Além disso... eu tinha de viver e, para viver, roubei comida no
mercado de Beau-gency... e vi-me no torreão do castelo, onde quase fui
enforcado.
- E por que não fostes?
- Por uma sorte que só acontece uma vez na vida. O castelão era
um pouco meu parente. Reconheceu-me e salvou-me da corda, para
que a vergonha não caísse sobre toda a família. Preferiu-me reter-me
prisioneiro durante meses e mais meses. E não fui muito maltratado.
Então, ele teve de trocar Beaugency por Loches, um outro castelo e
decidiu libertar-me com, por única riqueza, a minha liberdade
recuperada... Entretanto, consegui regressar a Paris, onde vivi... como
pude... Até àquela noite terrível - continuou ele, baixando o tom de voz
até se transformar numa nota de dor verdadeira - em que ousaram
queimar o Grão-Mestre e o preceptor da Normandia!
- Alguns tentaram salvá-lo? Por que não estáveis lá?
- Estava... Com alguns companheiros, estava no rio, numa barca,
para ajudar, quando vimos o Grão-Mestre recusar seguir Machieu de
Montreuil. Então, afastámo-nos...
- Reconhecestes Mestre Machieu?
- Reconheci! Houve tempos em que o vi muitas vezes. Além disso,
sou bom fisionomista. Foi assim que vos reconheci quando vos vi.
Batestes-vos bem e conseguistes, creio, salvar Machieu. Portanto...
feitas as contas, perdoo-vos!
- Que indulgência - ironizou Olivier, que não sabia bem se havia de
dar um murro àquele homem ou estender-lhe a mão. - Mas, perdoais-me
o quê? O ter-vos impedido de matar o Rei?
- Exactamente! Se bem que... tenha perguntado a mim mesmo se
colocar o Cabeçudo no trono seria uma boa ideia... E apesar de estar
muito ligado àquele pavão pomposo do Carlos de Valois, é um frouxo e
os frouxos são perigosos. Em particular os frouxos cruéis como ele.
Basta ver o que se passa na Torre de Nesle desde ontem...
A pergunta foi imediata:
- O quê?
- Cadáveres, meu caro, cadáveres que são atirado à noite ao Sena
depois de saírem pela porta pequena que dá para a praia: dois homens
antes e dois esta manhã, além de uma mulher. Nada bom de ver!
- Achais que é ele o autor dos crimes?
- Quem mais havia de ser? Matou-os, sim, depois de os ter torturado
para tentar saber há quanto tempo é corno! Reparai, se Filipe d'Aulnay
andou metido com a mulher dele durante dois anos, a futura Rainha de
França - por outras palavras, a pequena Joana! - pode muito bem não
ser dele.
Invadido pelo estupor, Olivier sentiu os cabelos eriçarem-se-lhe na
cabeça. Apesar de nunca ter visto Aude na casa do seu pai senão na
infância, sabia, por intermédio de Remi, que a jovem estava ao serviço
da Rainha de Navarra sob a alçada da sua tia Bertrade Imbert. E num
serviço muito próximo, já que tratava dos vestidos. Ora, Montou acabava
de dizer que tinham sido atirados cinco corpos ao rio e que um deles era
de mulher.
- Meu Deus - disse ele - o homem deve ter enlouquecido! Por que
razão?
- Que pergunta! Porque acha que foram cúmplices da bela
Margarida, ora essa! Mas, que se passa? Tendes alguém de família lá?
- Não, mas mestre Machieu sim! A filha dele... Aude, que estava ao
serviço de Madame Margarida... Perdoai-me, mas tenho de me ir
embora!
Esboçando uma saudação, o cavaleiro já se preparava para se
afastar, mas o interminável braço de Montou estendeu-se e agarrou o
seu:
- Para onde?
- Desculpai-me, mas creio que não tendes nada com isso!
- Estais enganado! Nada do que se passa em casa do Cabeçudo
me é indiferente. Acontece que também temos alguém na casa dele.
- Nós?
- Vinde! Explico-vos depois. Não importa como, mas o que
acabamos de saber explica os cadáveres da Torre e temos de nos reunir
em conselho! Vinde, estou a dizer-vos!
Não há tempo a perder se a filha daquele bravo Machieu foi
apanhada na armadilha do Cabeçudo.
O tom imperioso e grave era convicto e Courtenay seguiu o antigo
templário sem pedir mais explicações. Meteu com ele pelo dédalo de
ruelas escuras - cinco ao todo!
- e malcheirosas que tinham abrigado os Judeus até à última
expulsão por ordem de Filipe, o Belo, em 1330. Aquele conjunto de ruas
era um amontoado de telhados mais ou menos extravagantes, de casas
leprosas e tão inclinadas por cima dos bueiros a que chamavam ruas
que, por cima do ribeiro central, sempre cheio de imundícies, era
perfeitamente possível dar a mão ao vizinho da frente. Havia ali pouco
comércio, a não ser duas lojas de mobília velha e três tabernas que
serviam de ponto de encontro aos vagabundos de toda a espécie que a
má reputação da antiga Judiaria - diziam que os Judeus assavam as
crianças cristãs para as comer e cujo passa- tempo preferido era
profanar as hóstias da maneira mais repugnante - não afastara, bem
pelo contrário. Apesar da presença de três igrejas em redor daquela
pasta envenenada, era um sítio nada agradável de dia e francamente
perigoso de noite. Até os arqueiros de piquete evitavam entrar ali
durante as suas rondas.
Na peugada de Montou, Olivier penetrou numa espécie de cloaca
malcheirosa. O cavaleiro desceu os três degraus de uma taberna de
tabuleta ilegível onde ardiam umas velas de sebo de odor forte mas
indispensáveis mesmo em pleno dia devido à sujidade das janelas
estreitas e baixas da fachada. A taberna tinha algumas mesas e
escabelos, nos quais estava sentada uma meia dúzia de homens de
mau aspecto discutindo com o proprietário, um homenzarrão cujo ventre
quase rebentava com uma camisa de tal modo cheia de nódoas que
mais se parecia com um ornamento de um género um pouco estranho.
De rosto avermelhado, cabelos lisos de cor incerta saindo, revoltos, do
barrete cor de vinho, de nariz parecido com uma batata e olhar
penetrante, o taberneiro chamava-se, normalmente, Leon, mas
respondia mais frequentemente pela alcunha de Grande-Estafado por
causa das queixas constantes na coluna devidas ao peso excessivo da
pança e ao manuseamento das barricas. "Estou estafado!" tinha ele o
costume de dizer, gemendo e segurando os rins com as duas mãos...
Quando Montou entrou, o taberneiro foi ter com ele, ao mesmo
tempo que todas as cabeças se viravam, e saudou-o com uma
espantosa delicadeza:
- Sois esperado, messire. Depois de terem ouvido o arauto, vieram
todos para aqui.
- Era o que eu pensava. Trago um amigo. É um companheiro de
Machieu de Montreuil, mas vós não sabereis o seu nome, assim como
ele não saberá os vossos. No entanto, lutareis juntos esta noite...
- Onde? - perguntou um dos homens, que devia ser um antigo
soldado.
O homem conservava vestígios do seu uniforme e sob a túnica
desfiada via-se o aço de uma cota de malha.
- Na residência de Nesle. O que nos acabam de dizer explica os
cadáveres: fechado lá dentro, o Cabeçudo tortura e mata a sua gente
para tentar saber tudo sobre a infidelidade da mulher. Ora, não somente
temos lá Martin Ia Caille, como este companheiro me acaba de dizer que
a filha de Machieu de Montreuil, que pertencia ao serviço da dita mulher,
também lá está, por isso em maior perigo do que Martin, que trabalha
nas cozinhas.
- Que idade tem ela? - perguntou o antigo soldado. Olivier pensou
por um momento e respondeu:
- Uns vinte anos, creio... Ela ainda era pequena quando a vi pela
última vez. Foi antes do grande golpe do Rei.
Um dos presentes ergueu um sobrolho negro como carvão por cima
de um olho - o outro estava escondido por uma venda - frio como o gelo:
- Éreis companheiro do pai dela e nunca mais a vistes depois disso?
A nota de desconfiança era perceptível. Montou preparava-se para
responder, mas Olivier reteve-o com um gesto:
- Foi quando ela entrou para o serviço de Madame Margarida,
graças a uma tia. Além disso, acontece que, quando ela ia visitar o pai,
eu nunca lá estava. Chega-vos?
- Tem de chegar - interveio Pierre de Montou. - Todos nós temos
algo a esconder e a nossa associação baseia-se na vontade comum de
não procurar desvendar os segredos uns dos outros...
- Estou de acordo... Mas era preciso saber como é essa rapariga!
Só para ter a certeza de que não era ela a que flutuava esta manhã no
rio... Eu estava a pedir esmola em Saint-Germain e vi quando um irmão
a atirou à água... Era uma rapariga, morena, nada feia. Quanto aos
olhos, que estavam muito abertos, eram escuros...
A memória de Olivier restituiu-lhe subitamente a imagem de uma
rapariga de cabelos tão louros que até espantava. O mesmo aconteceu
com a cor de água límpida das pupilas que ela, a despeito da timidez,
erguera por um instante para ele, corando. Não, a vítima daquela manhã
não podia ser Aude e o cavaleiro afirmou-o de imediato.
- Bem - concluiu Montou. - Nesse caso, temos de entrar esta noite
na residência de Nesle.
- És louco? - protestou o Zarolho. - Aquilo está cheio de homens de
armas! O Cabeçudo está mais bem guardado no seu covil do que Filipe
no seu palácio. Vamos deixar-nos estripar!
- Não, se soubermos fazer as coisas. Da entrada ocupo-me eu.
Contentai-vos em procurar os outros. Encontrar-nos-emos na doca de
Garin ao cair da noite. No caso de alguns se sentirem com falta de
coragem - acrescentou ele - pensai em três coisas: devemo-lo a Machieu
de Montreuil, que sacrificou tudo pelo Grão-Mestre e que, a menos que
nos mantenhamos escondidos, estamos todos inscritos na lista do
carrasco façamos o que fizermos e, por fim, que a residência de Nesle
encerra o suficiente para nos encher as bolsas, na condição de não nos
aproximarmos dos objectos demasiado grandes!...
Em seguida, virando-se para Grande-Estafado:
- Dá-nos pão, presunto e um jarro de hipocraz {45}. Vou a minha casa
com o meu amigo!
Enquanto os outros se reinstalavam nas suas mesas para terminar o
que tinham nos púcaros, Montou, munido de um tabuleiro com o que
tinha pedido e de uma vela que entregou a Olivier, dirigiu-se a um canto
escuro de onde partia uma escada íngreme, pelo meio da qual se
chegava, no alto da casa, a um sótão que ocupava a totalidade do
espaço entre as duas empenas do telhado muito inclinado. Havia ali uma
enxerga de tela grossa com dois cobertores bem dobrados por cima e
algumas roupas cuidadosamente arrumadas numa arca aberta. Para
surpresa de Courtenay, aquela pequena divisão estava asseada e
perfeitamente em ordem. O seu espanto foi tão evidente que o seu
anfitrião desatou a rir:
- É verdade, os bons hábitos não se esquecem. Uma vez templário,
fica sempre qualquer coisa! Mas sentai-vos e comecemos por comer e
beber qualquer coisa!
Comeram e beberam em silêncio - sempre os hábitos da Ordem! -
sem esquecer o Benediáte e a acção de graças. A vantagem estava em
poderem pensar sem deixarem de restaurar as forças, mas, mal
terminaram, Olivier perguntou:
- Tencionais mesmo entrar em casa do Cabeçudo esta noite? Eu
nunca prestei grande atenção à residência de Nesle. No entanto, parece-
me que, protegida pela muralha de Paris, é quase inexpugnável...
- Nós não vamos tomá-la à força, vamos introduzir-nos nela. Os
detritos e as gorduras saem todas as noites das cozinhas e são atirados
ao rio. É essa porta que vamos vigiar e é por ela que vamos entrar...
- Sem ferir ninguém?
- Não foi o que eu disse e espero que isso não vos meta medo!
Temos de nos desembaraçar dos guardas, ao mesmo tempo que os
nossos companheiros imobilizam os moços de cozinha...
- Sem dúvida - continuou Olivier, fazendo de advogado do diabo
para se inteirar melhor do plano imaginado por Mantou - mas como?
- Para eles, temos isto...
Montou dirigiu-se ao centro do sótão, a sua cabeça atingindo quase
o vértice da empena e as suas mãos procuraram qualquer coisa que
tinha escondida entre as vigas e a cobertura do telhado. O que Olivier
viu aparecer era um grande arco de freixo que Montou lhe estendeu
antes de tirar, de outro local, um monte de longas flechas.
- Imagine-se! - sussurrou Olivier, siderado e acariciando a madeira
lisa e experimentando, com o dedo, a firmeza da corda.
- Onde encontrastes uma arma destas?
- Não se "encontra" esse tipo de objecto. Compra-se, se se tem os
meios necessários, ou rouba-se!
- Roubar? - emitiu Olivier sem reter uma careta. - A vossa estadia
em Beaugency não vos curou desse... defeito?
Montou inclinou-se, segurou o seu convidado pelos ombros e olhou-
o fixamente:
- Aquilo a que chamais de defeito permite-me viver... tal como os
que estão lá em baixo. São, todos eles, vagabundos e, se o são, não é
por vocação, antes porque todos, entendeis, todos têm queixas do Rei e,
em determinado momento das suas vidas, foram todos socorridos pelo
Templo. Um ou dois deles até são antigos sargentos, enquanto outros
vêm de companhias de cons- trutores, como vós. Outros ainda são
autênticos ladrões de coração, mas quando regressei a Paris sem um
vintém no bolso, quase a morrer de fome, eles ajudaram-me, assistiram-
me, puseram-me de novo de pé... e ensinaram-me um ou dois truques.
Neste momento, sou o seu chefe e não há nenhuma razão para que os
prive de encherem os bolsos quando a ocasião se presta.
Compreendido?
- Oh, fostes muito claro e peço-vos que me perdoeis se vos ofendi...
O cavaleiro continuava a manejar o arco como homem apreciador
da força, ao mesmo tempo que uma ideia lhe germinava na cabeça.
- ... Um arco desta potência deve alcançar longe! Aposto que... do
telhado desta casa, por exemplo, é possível atingir o portal de Notre-
Dame! Sem grande dificuldade!
A espessa barba de Montou abriu-se num largo sorriso:
- Sem grande dificuldade para vós, talvez, mas não para um
arqueiro qualquer. Quereis tentar?
- Não, obrigado. Penso que não serei capaz. É preciso ser
verdadeiramente muito aguerrido e hábil e eu só queria ter a certeza de
que tínheis sido mesmo vós. O que fazeis é uma loucura porque
arriscais sempre a vida, mas confesso que vos admiro!
- Achais? - perguntou Montou, trocista. - Fazer tremer o bispo e os
cónegos gordos e dar a Notre-Dame esta voz vingativa é um prazer
sublime. Inquietar até aquele Rei sem piedade, que embriaguez! Vale
bem a vida, podeis ter a certeza! E a minha, finalmente, não vale grande
coisa!
- Vale o que vale a causa que defendeis... Muito cara, na
ocorrência... Mas, e se falássemos da residência de Nesle? O assunto
vai ser quente, tenho a impressão e eu só tenho esta faca para vos
ajudar, apesar de saber servir-me dela! A minha arma preferida é a
espada - acrescentou ele com um suspiro.
- É só pedir!
De um outro canto do vigamento, Pierre de Montou tirou uma longa
espada de aço azul cujo punho e guardas estavam incrustados de
filigrana dourada, pegou nela pela ponta e estendeu-lha esboçando o
gesto de pôr um joelho em terra.
- Pegai nela sem receio de me ofender - disse ele tranquilamente. -
Tenho outra... Ah, já me esquecia: roubei-a numa noite amena a um
janota que nem sequer sabia tirá-la da bainha! Sentis-vos contrariado?
Dessa vez, Olivier desatou a rir. Uma boa risada, alegre e satisfeita:
o diabo do homem era irresistível! Para além de que aquela espada era
a mais magnífica que empunhava há muito tempo! Uma arma esplêndida
- mais pela qualidade do metal do que pela ornamentação, que era
bastante modesta! - bem melhor do que a que Machieu lhe entregara no
momento de se lançar em socorro de Molay e de Charnay e que
deixava, evidentemente, em Passiacum quando ia a Paris.
- Venha ela de onde vier, pouco me importa! - exclamou ele. -
Encheis-me de alegria... meu irmão!
-Já nem me lembro da última vez que alguém me chamou assim...
mas é bom ouvir! - disse Montou subitamente muito sério.
Sem uma palavra, os dois homens olharam-se nos olhos,
aproximaram-se um do outro e, tal como no interior do Templo, o punho
fechado de um bateu na omoplata do outro.
Naquele momento, reconheceram-se como dois membros de uma
fraternidade templária, na qual tinham esperado viver e morrer. E que já
não existia...
- Como é que vamos fazer? - perguntou Courtenay, passado aquele
momento de emoção.
O plano era relativamente simples: a única entrada praticável era na
base da Torre, ao nível da água, muito mais baixa, portanto, do que a
porta principal que dava para a ponte levadiça sobre o fosso constituído
por um braço morto do Sena. Esperariam pela saída dos despejos
depois de Montou ter abatido os dois soldados de guarda àquela saída e
lançar-se-iam na praça matando aqueles que tentassem opor-se.
- Libertaremos o mais possível de servidores em perigo. Eu ocupar-
me-ei de Caille, bem entendido, enquanto vós procurareis a filha de
Machieu... É preciso tentar levá-la para junto do pai.
- Nesse caso, preciso de uma barca. Machieu está refugiado em
Passiacum com o filho, a mulher e a mãe - disse ele calmamente.
- Eu bem sabia que, se estivesse vivo, devia estar algures nas
margens do rio. Tereis a barca... Talvez até várias para os outros cativos,
a menos que prefiram fugir pelos campos.
- São muitos?
- Uns vinte, certamente, não contando com os que já estão mortos.
As damas do serviço de Madame Margarida e alguns do Cabeçudo. É
verdade que são muitos - acrescentou Montou, bruscamente pensativo. -
Não sei quantos esquifes encontraremos no areal de Saint-Germain...
- Em caso de grande dificuldade, não poderemos pedir asilo para
eles em Saint-Germain-des-Prés? Pierre de Montreuil, o pai de mestre
Machieu, repousa na igreja junto da mulher...
- É uma ideia, de facto, mas só a utilizaremos se as coisas correrem
mesmo mal...
O resto do dia passou-se a afinar os pormenores da expedição tanto
quanto os podiam imaginar. Repousaram também um pouco e, quando
chegou o crepúsculo, armaram-se.
Montou, munido de dois punhais, pôs o arco e as flechas a tiracolo
e, em cima de tudo, um manto cor de fumo cheio de buracos e rasgões,
mas que o cobria da cabeça aos pés. O antigo templário arranjou um
parecido para Olivier para que este escondesse a espada que levava à
cintura e, por fim, depois de terem apagado a vela com um sopro, aberto
por um instante a janela para "cheirar" a noite, como ele dizia, desceram
à sala onde só estava Grande-Estafado a lavar as canecas numa bacia
cheia de água.
- Regressais esta noite? - limitou-se ele a perguntar.
- Não posso dizer, sequer, se regressarei. Se não puder... e a menos
que morra, espero poder prevenir-te, para que possas alugar de novo o
meu quarto...
- Não vos preocupeis com isso! Ninguém virá durante muito tempo.
Aqui, estais em vossa casa...
Sem dizer nada para esconder, talvez, alguma emoção, Montou
pousou uma mão no ombro do gordo, mão que este apertou. Um minuto
mais tarde, ele e o companheiro deslizavam por uma ruela obscura em
direcção ao Porto de Saint-Landry. Tinham decidido que seria mais
prudente apanhar ali uma barca para chegar à Torre de Nesle pelo Sena.
Na condição, bem entendido, de encontrar uma, porque, se as barcaças
que transportavam as belas pedras brancas que eram arrancadas para a
catedral das pedreiras de la Bièvre, perto de Saint-Victor - inúteis visto
que já ninguém trabalhava - ainda lá estivessem, eram demasiado
pesadas para serem manobradas apenas por dois homens. Pelo
contrário, as pequenas barcas não deviam lá estar por ordem do
preboste desde a tentativa de rapto do Grão-Mestre e do seu
companheiro. Montou sabia-o, mas esperava que, perto do priorado de
Saint-Denis-de-la-Châtre, estivesse, pelo menos, a dos monges.
E estava. Sem fazerem o menor ruído - um, Olivier, aos remos e o
segundo, Montou, encarregando-se de afastar a embarcação da margem
e evitando ao mesmo tempo fazer tilintar a corrente de amarração - os
dois homens conseguiram lançar-se na corrente, felizmente mais
tranquila do que na noite trágica.
O rio estava sombrio naquela noite. Com o cair da noite, grossas
nuvens, vindas do mar, tinham coberto a cidade, ameaçando despejar
uma chuva que, entretanto, se recusava a cair. Como o vento,
subitamente, deixara de soprar, tinham ficado ali sobre Paris como um
pesado cobertor, mas, pelo menos, a noite estaria mais escura, mais
propícia a fugas.
O barco deslizou sem dificuldade ao abrigo das margens da Cite,
ladeou o priorado e o Palácio, depois de ter transposto a passagem
entre os moinhos da Grand-Pont, o Jardim do Rei e depois a ilha dos
Judeus, plana e nua, um terreno onde já nem as ovelhas iam pastar,
vazia de qualquer sinal de vida devido ao medo e à superstição...
Quando ultrapassaram a ponta, a alta silhueta da Torre com a sua
coroa de ameias e a sua roldana para fazer subir os materiais estava na
sua frente. Para a atingirem, obliquaram até a ultrapassar, tal como o
braço morto que se lhe juntava no ângulo direito, acostando no que era
então o pequeno Pré-aux-Clercs, onde os estudantes dos colégios e os
homens do rio regulavam os seus diferendos e se divertiam longe das
vistas da patrulha, em duas ou três tabernas e outros estabelecimentos
mais ou menos sórdidos que enxameavam ao longo daquele campo
separado da abadia de Saint-Germain-des-Prés por um carreiro.
A espelunca de Garin, o Normando, era uma dos mais bem
fornecidas, mas também a mais próxima da residência de Nesle. Bebia-
se ali vinho de Suresnes de tal modo verde que provocava pele-de-
galinha - o taberneiro fazia infusões de ervas com ele, capazes de
ressuscitar um eunuco - e também uma cerveja tão boa como noutro
sítio qualquer.
Uma meia dúzia de prostitutas anafadas concorriam para a fama da
casa e até alguns senhores iam ali acanalhar-se, fiando-se na reputação
de discrição de Garin, a quem também se podia chamar Mudo, se
tivesse nascido em Honfleur. O homem via tudo, mas nunca dizia nada.
A sua taberna fazia, quase ao nível da água, uma espécie de inchaço
que, à noite, se parecia com um grande gato deitado por causa dos dois
clarões projectados na sombra pelas suas janelas.
Seguido de Courtenay, Montou entrou nela como um cliente habitual
e viu que os seus homens já lá estavam, misturados com um punhado
de estudantes que se mantinham estranhamente calmos. Nenhuma
rapariga entre eles, o que também era surpreendente. Com o olhar,
Montou interrogou Garin. Este respondeu-lhe com um gesto de cabeça
na direcção do exterior. Naquele instante preciso ouviu-se um grito que
traduzia um sofrimento insuportável. Como uma mola, um dos
estudantes pôs-se de pé, cerrando os punhos que tinha apoiados na
mesa. Tornara-se tão pálido que a diferença, entre a sua pele e as
madeixas louras que lhe saíam do gorro, era mínima.
- Aquele filho da puta nem sequer tem a decência de fazer aquilo no
fundo de uma cave! Todo o mundo tem de saber que está a massacrar a
sua gente!
- Deve pensar - disse Montou - que, inspirando o medo, conseguirá
que esqueçam que é corno.
- Ninguém o esquecerá e lembrar-lho-ão sempre! Entretanto, temos
de ouvir isto! Até as raparigas se foram embora porque, mais uma vez, é
uma mulher que grita...
A dúvida não era possível. Um segundo grito ultrapassou os muros
da residência.
- Quem vos obriga a ficar? Ide-vos embora! - disse Montou com
desdém...
- Eu - exclamou Olivier, levando a mão à sua espada - não escutarei
durante muito mais tempo...
O cavaleiro já ia a sair, mas Montou deteve-o com uma mão de
ferro.
- Ainda não chegou a hora - disse ele com o olhar fixo na vela
marcada com traços regulares que ardia sobre o pano da chaminé {46}.
Os despejos só vão ser feitos dentro...
- ... de um quarto de hora - terminou Garin. - Lá em cima, a festa
ainda agora começou. Ontem, durou a noite toda...
Aparentemente insensível, o taberneiro pusera-se a atiçar o fogo,
mas Olivier sentia-se incapaz de estar quieto sem tentar nada para
salvar a infeliz que o Cabeçudo supliciava. Sentia-se enlouquecer só de
pensar que podia tratar-se de Aude, a pequena loura de grandes olhos
límpidos...
- Eu vou lá e não tenteis impedir-me. Sou muito capaz de abater os
dois guardas na margem...
- Depois de ter passado o fosso a nado? E como ides abrir a porta?
- grunhiu Montou. Ela é sólida, podeis acreditar... Além disso, deve haver
soldados nas seteiras.
Eles são capazes de atirar.
- Está escuro como bucho - troçou Olivier. - Não verão nada. E eu
recuso-me a continuar a ouvir este horror porque a que sofre pode muito
bem ser a filha de Machieu e se não faço tudo para a salvar, não
conseguirei olhá-lo de frente.
- Vou convosco! - exclamou o estudante. - Só tenho uma faca, mas
sei servir-me dela... O meu nome é Gildas d'Ouilly!
Os seus camaradas levantaram-se também, todos ao mesmo
tempo:
- Nós também vamos! Fora com o Cabeçudo!
- Chega! - berrou Montou. - Começai por vos calar e, por que não,
ide buscar uma trompa para avisar os soldados de Luís de que estais a
chegar!
A saída para o exterior efectuou-se no maior silêncio, mas parou
imediatamente. De facto, a noite estava muito escura. Depois da zona
pouco iluminada pelas luzes da taberna, os olhos ficaram cegos por uns
momentos. De pé sobre a ponta de terra em frente da Torre, o cavaleiro
e o estudante olharam para a estreita janela iluminada. Era dali que
vinham os gritos...
- Aquele malvado deve estar a ajustar contas no próprio quarto onde
Margarida e a prima recebiam os amantes - escarrou Gildas com nojo.
Olivier não respondeu e depois de ter embainhado a espada e tirado
a faca que colocou entre os dentes, deslizou para a água negra sem o
menor ruído. Gildas já ia imitá-lo, mas imobilizaram-se os dois: a porta
da Torre acabava de abrir-se, dando passagem a um clarão que revelou
dois homens carregados com um corpo metido num saco. Estes
aproximaram-se da margem e, sem se darem ao trabalho de fazer
balanço, deixaram cair o seu fardo no rio sob o olhar interessado dos
soldados com quem trocaram algumas palavras em voz baixa. Enquanto
isso, Olivier tinha nadado até ao ângulo formado pela Torre e a muralha
de Paris, e içara-se para a margem à força de punhos, logo imitado por
Gildas.
Um sopro breve cobriu o ruído, aliás ligeiro, da sua saída da água,
seguido imediatamente por outro. Uma dupla de flechas de uma precisão
e rapidez incríveis, acabava de mergulhar na garganta dos homens de
armas, que caíram aos pés dos servidores estupefactos.. Uma terceira
flecha atingiu um deles, ao mesmo tempo que Olivier caía sobre o dorso
do sobrevivente e lhe apertava o pescoço com o antebraço:
- Um só grito e morres! - sussurrou ele ao ouvido do homem
aterrorizado, que se esforçava por recobrar o fôlego e que conseguiu
acenar com a cabeça para mostrar que tinha compreendido.
Sem abrandar o aperto, Olivier perguntou:
- O Cabeçudo? Ele está lá em cima? Novo aceno afirmativo.
- Quantos estão com ele?
Sentindo um ligeiro abrandamento, o homem conseguiu murmurar:
- Quatro...
- No alto da torre há guardas?
- Não... Madame Margarida não queria... e ele também não!
Foi Gildas que fez a pergunta seguinte:
- O que é que estava dentro do saco? Um homem? Uma mulher?
- Uma mulher... que pertencia ao serviço de Madame...
- Repescaram-na - disse, sempre com voz contida, Montou, que
chegava com o arco a tiracolo e uma espada na mão. Não é uma
rapariga, é uma mulher de idade madura...
Olivier sentiu um alívio no coração. Graças a Deus, não era Aude!
No entanto, o seu prisioneiro, dando provas de boa vontade e
constatando que não o iam matar, acrescentou:
- Mas... lá em cima há uma rapariga. Chegou a vez dela e... é tão
bela!
Incrivelmente, o homem começou a chorar. Olivier largou-o por
completo, mas agarrou-lhe de imediato por um braço.
- Leva-nos lá e, se queres ser poupado, não faças asneiras! Com
uma olhadela, o servo avaliou o grupo de assaltantes, do qual alguns
atiravam à água os corpos das vítimas de Montou. Curiosamente, o seu
rosto iluminou-se:
- Vinde! - sussurrou ele. - Depressa! Não está ninguém na
escadaria, só no patamar.
De facto, a longa e estreita escada de caracol estava vazia. O
grupo, ensopado, lançou-se por ela acima sem fazer ruído. No entanto,
foram forçados a subir mais depressa quando, mais ou menos a meio,
ouviram uma voz soluçante que dizia:
- Não! Por piedade, isso não!... Não quero! Oh, meu Deus! Um
sopro de cólera inflamou Olivier que, empurrando o seu prisioneiro, subiu
quatro a quatro os últimos degraus, viu diante de si dois guardas
absorvidos pelo espectáculo que observavam através de uma porta
entreaberta. Não só não tinham ouvido nada, como tinham encostado as
alabardas à parede para poder ver melhor. Até se empurravam um ao
outro, tal era o interesse. Olivier e Gildas caíram-lhes em cima com a
rapidez de um raio. No segundo seguinte os dois homens jaziam por
terra com uma faca enfiada entre as espáduas e de imediato retirada. Os
dois homens irromperam na grande câmara que fora a dos amores
trágicos das princesas. Esta mantinha, em parte, a mesma deco- ração
quente tão querida de Margarida: tapetes, divãs à maneira do Oriente
cobertos de peles e almofadas escarlates tecidas a ouro, uma credencia
com jarros e vasos, um grande pote de bronze dourado para queimar
perfume, uma chaminé cónica cuja ponta chegava ao cruzamento das
ogivas da abóbada, mas naquela abóbada estava presa uma roldana
com uma longa corda que não fazia, certamente, parte do mobiliário
original - assim como o arsenal de tenazes, fustes e ganchos que, na
chaminé, esperavam que fizessem uso deles.
Estavam presentes cinco homens: o Cabeçudo, de calças e camisa
aberta no peito magro, estendido languidamente no meio dos tecidos
sedosos de um leito baixo com uma taça na mão e, a seu lado, uma
caixa cheia de guloseimas, enquanto os quatro restantes não eram outra
coisa senão carrascos. Também estava presente uma mulher e era ela a
supliciada. Olivier, tomado por uma espécie de deslumbramento, só a viu
a ela.
Acabavam de lhe arrancar as roupas e a jovem estava de pé, nua
como Eva antes do pecado, por baixo da roldana com cuja corda dois
dos homens lhe estavam a ligar os pulsos atrás das costas cobertas
pelos longos cabelos claros e sedosos. Tetanizada pelo medo, Aude
mantinha-se muito direita sem poder esconder o corpo encantador de
cor rosada do qual, no entanto, emanava uma graça incrível. Formas
perfeitas, a juventude suave da curvatura dos seios e das ancas, as
pernas longas e flexíveis, nada faltava àquela beleza assim relevada que
o templário, no espaço de um relâmpago, compreendeu nunca mais
poder esquecer-No momento da sua entrada, o Cabeçudo estava a
dizer: - Despacha-te, rapariga! Ou vens a mim de bom grado ou vais
ficar a saber o que é sofrer...
A ameaça era de uma simplicidade diabólica: bastava puxar a corda
para fazer subir primeiro os braços e depois o corpo, deslocando os
ombros cujos músculos, tendões e nervos se rasgariam...
A entrada brutal de Olivier, de espada na mão, fez virar a cabeça de
Aude e os olhos vermelhos e cheios de lágrimas da jovem encheram-se
de uma alegria dolorosa porque incrédula, como se o arcanjo Miguel em
pessoa acabasse de lhe aparecer, mas um arcanjo prisioneiro de um
sortilégio que o petrificava. Ele que, desde sempre, fugira da mulher cuja
força desdenhava, cuja beleza nunca quisera contemplar, que só via
nela uma armadilha contra a pureza da sua entrega voluntária ao
Senhor... e que, apesar de tudo, soubera controlar os desejos normais
do seu corpo através da ascese e da oração, via-se confrontado com a
divina revelação de um corpo de rapariga e de um rosto adorável em
pranto.
Demorou apenas um instante muito breve, mas que teria sido, sem
dúvida, a perdição de ambos se Olivier tivesse aparecido sozinho. Mas
Gildas, Pedro de Montou e uma meia dúzia dos seus companheiros
tinham entrado logo a seguir e as últimas palavras do Cabeçudo tinham-
se-lhe estrangulado na garganta, sobre a qual Gildas se lançou.
O jovem preparava-se para lha cortar quando um grito de Montou o
deteve:
- Não! Não o mates!
O grito acordou Olivier do seu transe. A sua espada caiu uma
primeira vez e depois uma segunda. Os carrascos caíram... e logo a
seguir Aude, desmaiada... arrastando consigo a corda que lhe atava os
pulsos. Olivier deixou-se cair de joelhos junto dela sem ousar tocar-lhe.
Montou apercebeu-se. Irritado, disse-lhe:
- Por que esperas, com os demónios? Liberta-a! Leva-a para o outro
leito e cobre-a com o que encontrares...
Como um autómato, Olivier obedeceu, desatou a corda e ergueu o
corpo inerte. Quando as suas mãos tocaram na pele suave da jovem,
sentiu um arrepio ao longo da espinha, delicioso, mas tão violento que,
por um instante, pensou que morreria. O cavaleiro apertou-a contra o
peito, invadido por uma vontade louca de fugir com ela para longe
daquela gente que a tinha contemplado em toda a sua beleza, daquele
quarto criado para o amor e transformado num local de sofrimento e,
finalmente, daquele príncipe que, só porque ela não queria ser sua
escrava submissa, se preparava para a massacrar, gozando com o seu
sofrimento... A esse, matá-lo-ia.
Pousando Aude no meio das almofadas, cobriu-a com um tecido
sedoso, interditando as suas mãos de se demorarem nela mais do que o
necessário. No entanto, não resistiu à necessidade de lhe acariciar os
cabelos claros e suaves como o linho, esquecendo por completo onde
estava e o que se passava à sua volta... Finalmente, foi a voz azeda e
trémula de ira do Cabeçudo que o tirou do seu transe:
- Dei... deixai-me! - gaguejou ele. - Não me... toqueis! Isto é... é...
lesa-majestade... Sereis todos puxados por quatro cavalos!
- Tu é que mereces ser puxado por quatro cavalos, príncipe mau! -
grunhiu Montou - mas fica descansado, vais viver! Matar-te seria
demasiado fácil. É melhor que vivas para servires de troça ao povo, mais
coberto de ridículo do que já estás! Vamos fazer de maneira a que... ele
se divirta mais um pouco à tua custa. Vamos!
Pegai nele e atai-o como uma galinha! Mas, primeiro, metei-lhe uma
mordaça na boca para não o ouvirmos!
- Por que deixá-lo vivo? - grunhiu Olivier. - Este homem é um
monstro que só sabe fazer mal! E, um dia, vai herdar o reino.
- Justamente! Trata-se de evitar que os nossos camaradas e nós
mesmos sejamos esquartejados. Quando ele for rei, se isso vier a
acontecer, trataremos dele!
- É melhor despacharmo-nos - disse Gildas, que se aproximara de
Aude e esforçava por fazê-la beber um pouco de vinho para a reanimar. -
E é preciso levá-la daqui...
Meu Deus, como é bela!
- Eu sei onde está a família dela e vou levá-la para lá - disse
secamente Olivier, sentindo um aperto estranho no coração ao ver o
jovem a tratar de Aude - coisa que, paralisado pelo seu sonho acordado,
não pensara em fazer. - Vamos para a barca.
- Encarrega-te disso! - ordenou Montou, que acabava de atar o
Cabeçudo e o colocava, com os braços e as pernas atados atrás, numa
posição tão desconfortável quanto grotesca, ainda por cima com um
espeto entre os membros, como se estivesse pronto para ser assado. -
Eu e os meus companheiros vamos à procura de Caille e dos outros
infelizes que este demónio queria matar...
- Não tendes de ir muito longe - disse o servidor que os tinha guiado
e que estava a gostar do espectáculo. - Eu levo-vos lá e depois fujo. O
pessoal da residência tem ordem para não se aproximar da Torre, por
mais sons que ouçam, mas as sentinelas do Louvre, do outro lado,
podem muito bem perceber que se passam aqui coisas pouco naturais...
Antes de abandonarmos o local, os vagabundos de Montou
roubaram tudo o que encontraram que não fosse demasiado grande ou
pesado. Os estudantes, esses, ajudaram Gildas a envolver Aude no
cobertor e a levá-la até à margem. Olivier, de olhar sombrio, não
interveio, contentando-se em pegar na roupa da jovem antes de meter
pela escada abaixo... O cavaleiro sentia-se gelado e não era por causa
da roupa molhada. No peito, o coração doía-lhe...
A margem estava deserta, com excepção da barca de Montou e do
que ela continha: um dos estudantes estava debruçado sobre o saco
retirado do rio e que alguém tinha rasgado de uma ponta à outra com a
ajuda de uma faca. Ao ver chegar Olivier, o jovem aproximou-se dele:
- É mesmo uma mulher - disse ele - mas já não é nova e deve ter
sofrido muito. Ainda respira e vomitou muita água. Mas não tenho nada
para a reanimar...
Olivier atirou a sua carga para dentro da embarcação e regressou à
Torre a toda a velocidade, empurrando Gildas, que carregava Aude com
o ar de um bem-aventurado transportando o Santíssimo Sacramento e
nem sequer olhar para ele. O cavaleiro apoderou-se do frasco que o
estudante utilizara anteriormente e regressou com a mesma velocidade,
tendo o cuidado, dessa vez, de não o empurrar.
- Tomai! - disse àquele que estava a tomar conta da mulher. - Tentai
obrigá-la a beber isto. Eu ajudo-vos.
Ajoelhando-se junto dela, o templário soergueu suavemente os
ombros nus da vítima. Nem se tinham dado ao cuidado de lhe vestir,
pelo menos, uma camisa, antes de a fecharem no saco e quando a luz
débil vinda da porta a iluminou, Olivier pôde ver as queimaduras que lhe
enchiam o corpo já marcado pela idade. O cavaleiro viu também um
rosto lívido ainda crispado pela dor, de narinas apertadas, de pálpebras
azuladas fechadas sobre os olhos, e sentiu-se extremamente
emocionado porque aquela infeliz era Bertrade...
Olivier conseguiu forçar os dentes apertados para lhe meter na boca
algumas gotas de malvasia e que, a princípio, lhe escorriam pelo canto
dos lábios; à terceira tentativa, a dama engoliu-as. Um momento depois,
Bertrade abriu os olhos, que se fixaram no rosto debruçado sobre o seu:
- Sois... vós?
- Sou. Como vos sentis?
- Mal...
A dama começou subitamente a arquejar e o seu corpo arqueou-se
sob o efeito de uma violenta dor.
- Oh... o meu coração!... Aude! É preciso acudir-lhe... Deixai-me...
Ide! Ide depressa! Ela ama-vos!
Foram as suas últimas palavras. No preciso instante em que Gildas
chegava com a jovem semi-inconsciente, Bertrade entregava a alma ao
Criador nos braços de Olivier.
O cavaleiro não teve tempo de perceber o que acabava de ouvir.
Após uma curta hesitação, Gildas depositou Aude no outro extremo da
barca após ter constatado que havia mais alguém à proa. Por prudência,
tinham apagado o archote da escadaria e não se via grande coisa. O
que era preferível porque os assaltantes saíam uns atrás dos outros e
deslizavam ao longo da base da Torre em direcção à Petit-Pont.
Sombras silenciosas mais ou menos disformes pelo que transportavam
consigo: os estudantes regressavam ao colégio, os vagabundos às suas
tocas e os que Montou acabava de libertar partiam para onde achavam
melhor. O falso mendigo foi o último a sair, fechando cuidadosamente a
porta atrás de si. Tinha o arco na mão e aproximou-se da barca onde
Gildas estava a perguntar por que diabo tinham achado bem repescar
um cadáver.
- Fui eu que assim quis - respondeu ele. - Queria saber quem era a
vítima e fiz bem, porque ela ainda estava viva.
- Mas já não está - disse o rapaz que tinha tratado de Bertrade.
Acaba de morrer. Talvez fosse melhor atirá-la de novo ao rio?
- Certamente que não! - grunhiu Olivier. - Essa mulher é a cunhada
de mestre Machieu, a tia de...
O seu olhar virou-se para a jovem encostada à amurada. Esta já
devia ter recuperado a consciência: a sua cabeça estava a endi- reitar-se
e olhava em volta de olhos muito abertos mas sem parecer
compreender.
- Vou levá-las às duas para junto da família! - disse ele num tom que
não admitia réplica.
Gildas propôs:
- Deixai-me ir convosco! Esta barca é demasiado pesada para um
homem só.
- Obrigado, mas não. Machieu é procurado...
- E temeis que eu o denuncie? Ofendeis-me, messire! Eu estou a
estudar para ser médico e clérigo... mas sou fidalgo. Permiti que vos
ajude!
Enquanto falava, o seu olhar não cessava de se virar para Aude. Os
olhos da jovem estavam fixos, as lágrimas corriam-lhe pelas faces e ela
continuava a não dizer nada. Nenhuma palavra saía dos seus lábios
trémulos, senão um pequeno queixume bizarro e suave. Olivier
compreendeu então que podia confiar naquele rapaz, porque o
estudante tinha ficado simplesmente apaixonado pela bela rapariga. Mas
o que ele não compreendeu foi por que razão a ideia lhe desagradava e
não pôde deixar de troçar:
- Tendes a certeza de que quereis ser clérigo?
- Sou o mais novo e ainda não tenho a certeza... Simplesmente,
tomei gosto pelos estudos e desejo saber tratar dos outros.
Vendo, sem dúvida, que se estava a perder tempo demasiado,
Montou intrometeu-se:
- Aceitai! - aconselhou ele Olivier. - Eu conheço suficientemente os
homens para responder por esse - acrescentou ele com um sorriso que
a obscuridade não dissimulou.
- Até estou persuadido de que Machieu acaba de ganhar um
companheiro fiel...
- Por que não vindes vós também?
- Para mim, a noite ainda não acabou. Ainda tenho que fazer -
continuou ele acariciando a longa curva de freixo polido do seu arco.
- Outra mensagem?
- Ainda não acabei com o Cabeçudo! É preciso que o povo de Paris
saiba o que lhe aconteceu! Amanhã vai haver muito risota nos bairros
todos! Foi com esse objectivo que o poupei. Até à vista, companheiro!
Se precisardes de mim, sabeis onde encontrar-me...
O ex-templário pôs o arco a tiracolo e o manto por cima, segurou no
braço do rapaz que socorrera a pobre Bertrade e afastou-se, como os
outros, ao longo da margem.
- Bem! - suspirou Olivier. - Se queremos chegar antes do nascer do
dia, é melhor pormo-nos a caminho!
Gildas instalou Aude o melhor possível, cobrindo-a com o próprio
vestido para que ficasse o mais quente possível. A noite estava fresca e
parecia que ia ficar ainda mais. Olivier fechou os cantos do saco em que
estava metido o cadáver e depois instalou-se aos remos sem esperar
que Gildas fizesse o mesmo. Sem esforço aparente, o cavaleiro lançou o
esquife pelo rio abaixo em busca da corrente. A embarcação era pesada,
mas o filho de Sancie, ainda inconsciente da estranha mudança que se
operava no seu espírito, tinha necessidade de fazer esforço físico, de
fazer trabalhar os músculos do corpo poderoso que a natureza lhe dera
para provar que continuava a ser o mesmo homem, que nada mudara.
Remando como um condenado, procurava as palavras das suas orações
familiares. Mas estas escapavam-lhe. Entretanto, não conseguia desviar
o olhar da forma imóvel cujas formas se adivinhavam sob o tecido. O
ritmo que o cavaleiro impunha a si próprio era infernal. Olivier não quis
que Gildas o ajudasse. Queria ser o único a levar Aude ao seu pai e o
outro não insistiu.
Aquele ritmo de condenado às galeras fez-lhe bem. Assim como as
lágrimas que lhe corriam pela face sem que disso se desse conta...
X – OS ÓRFÃOS

Acocorado na pedra da lareira, com os cotovelos nos joelhos e a


cabeça nas mãos, Hervé chorava. A sua volta era o silêncio, nenhum
dos três homens que o observavam ousavam intervir, mesmo Olivier,
perturbado com a dor daquele amigo que nunca, até então, vira chorar. E
como seria possível qualquer consolação para um homem que, já pisado
e proscrito, despojado de tudo salvo da sua honra, acabava de saber
que, por causa da loucura dos seus sobrinhos, até essa honra lhe era
negada? Porque a lei feudal era impiedosa: quem atentasse contra a
majestade real devia ser punido com a morte ignominiosa, ter os seus
bens confiscados, os seus castelos destruídos, assim como os da sua
família, as suas armas quebradas pela mão do carrasco, o seu nome
desonrado e para sempre riscado das listas da cavalaria, assim como
dos registos da nobreza.
Incapaz de assistir por mais tempo ao desgosto e à humilhação de
um homem cuja rectidão, coragem e generosidade conhecia melhor do
que ninguém, Olivier sentou-se junto dele, ombro contra ombro, mas
sem tentar tocá-lo mais de perto:
- Há anos - disse ele - que o Rei Filipe, ao esmagar o Templo, nos
obriga a viver escondidos e com nomes fictícios. Fez de ti um lenhador e
de mim um pedreiro que já estaria morto não fora a caridade de mestre
Machieu... a notícia terrível que tive a infelicidade de te trazer não muda
grande coisa...
Hervé deixou cair as mãos, virando para o seu amigo uma máscara
de aflição:
- Pensas que estou a chorar por mim? Como acabas de dizer, já não
somos nada, nem um nem outro! É por eles que choro, por aqueles
pobres rapazes a quem infligiram uma eternidade de tormentos! Não que
os esteja a desculpar: eles deviam saber o risco que corriam por amar
tão alto, por ousarem àquele ponto. Mas Gautier era meu afilhado e se
dou graças a Deus pela morte do meu pai, que não viu assim o
desmoronamento da sua casa, ainda falta o meu irmão...
- Que te recusou asilo quando tu precisavas...
- Isso tem pouca importância e não é ele que me atormenta, mas
sim Inês, a mulher de Gautier e, sobretudo... sobretudo os filhos! Que vai
ser deles? Só têm três e quatro anos e o mais miserável dos homens
pode desprezá-los, caçá-los, como se fossem dois animais selvagens...
É essa a ideia que não suporto!
- A tua sobrinha não é uma Montmorency? São os primeiros barões
do reino. A espada de condestável passa quase de pai para filho...
- Serão os primeiros a tentar apagar os vestígios do escândalo. Na
melhor das hipóteses, Inês será encerrada num convento e os filhos
noutro, senão pior. Naquela nobre casa não se cultiva a ternura. Apenas
contam a grandeza do nome e o brilho das alianças, e apressar-se-ão a
esquecer aquela que concluímos com nós próprios, sepultados sob o
sangue de Filipe e Gautier. As tenazes do carrasco arrancaram-nos até o
direito de existir...
- É abominável, eu sei... Mas, que podes fazer? Que podemos
fazer? - rectificou Olivier. - As minhas causas sempre foram as tuas e as
tuas serão sempre as minhas!
Naquele instante, a voz de Machieu, que se mantinha sentado num
banco ao fundo da sala, afastado dos dois amigos e com o filho junto de
si, fez-se ouvir:
- Eu digo-vos o que podemos fazer: vingá-los!
- Sem dúvida - disse Olivier levantando-se - mas é assunto nosso,
não vosso! Vós e a vossa família já sofrestes o suficiente para agora
agravardes ainda mais o vosso fardo!
- O vosso assunto, dizeis? Quando acabais de trazer a nossa filha
meio louca e o cadáver torturado da nossa querida Bertrade?
Eram as primeiras palavras relativamente calmas que ele articulava
desde que, ao cantar do galo e incapaz de conciliar o sono por causa da
ausência de Olivier, velava ao canto da lareira com Remi e Hervé e ao
vê-lo surgir na noite com a sua filha desfigurada pelas lágrimas nos
braços, inconsciente e envolta num cobertor de veludo púrpura. Depois
de lha ter entregado com uma breve explicação, o cavaleiro anunciara-
lhe que o corpo sem vida da sua cunhada jazia na barca, vigiado por um
estudante.
A princípio sufocado, Machieu explodira de cólera, tão violentamente
que, por um instante, temeram pela sua razão e foram necessários
Olivier e Remi para o fazer calar, visto que os seus rugidos podiam
alertar o lugarejo e até os guardas lá no alto, no pequeno castelo do
Rei...
Depois, as lágrimas sucederam-se à dor. Não que sentisse pela
irmã da sua mulher um sentimento mais quente do que uma simples
estima, mas ver o que os carrascos do Cabeçudo tinham feito
repugnava-o e enquanto transportavam o corpo envolto num lençol, ele
espumava, rangia os dentes e proferia injúrias, ao ponto de Juliana,
esquecendo a sua própria dor, ter ido à cozinha buscar uma malga de
água, a qual lhe atirou ao rosto, dizendo secamente:
- Não chega a infelicidade que nos caiu em cima? Tendes também
de acordar a vizinhança, meu marido? Bertrade era minha irmã e sois
vós que uivais como um lobo doente?
Agradecei antes a Deus... e a messire Olivier por nos terem trazido
a nossa filha viva...
Espantado com um gesto de que nunca julgaria capaz a sensata e
tranquila Juliana, Mathieu calou-se, enxugou-se resmungando e depois
de as mulheres terem depositado Bertrade em cima da mesa da cozinha
para lhe fazerem a toilette fúnebre e de Aude ter sido metida na cama
com uma malga de leite quente sob a vigilância da sua avó, reuniu-se
aos homens na sala para ouvir de Olivier o relato completo do que se
passara.
Antes, cumpriu com Gildas d'Ouilly os deveres de reconhecimento e
hospitalidade. A chegada imprevista daquele estranho não lhe agradava
porque sempre tinha considerado os "estudantes" em geral um bando de
agitadores sem cabeça, mais interessados no deboche do que nas obras
piedosas.
A participação espontânea daquele no que respeitava a Aude
merecia, no entanto, um agradecimento. Mas não mais, já que o humor
de Machieu ainda não encontrara a sua serenidade habitual. Assim,
serviu-lhe, tal como a Olivier, com que restaurar as forças e depois
propôs-lhe descansar um pouco na arrecadação onde estavam alojados
os dois templários e Remi. Gildas recusou, sentindo que o mestre-de-
obras desejava conversar com os seus longe dos ouvidos de um rapaz
que ele não conhecia. Já bastava que este ficasse a saber onde ele se
escondia...
- O dia está a nascer - disse Gildas - e não estou assim tão longe.
Vou regressar ao colégio, mas... posso regressar um destes dias para
saber notícias?
- Achais que estamos em condições de receber visitas? - grunhiu
Machieu, exasperado. - Estamos-vos reconhecido, mas é melhor para
toda a gente que esqueçais a existência desta casa e os que nela estão
refugiados.
- Tendes medo que vos denuncie? - exclamou o jovem, indignado. -
Não me coloquei fora da lei ao arrastar os meus camaradas para o
assalto à Torre?
- Já vos agradeci, parece-me! Tendes direito à minha gratidão! E
rezarei por vós, mas não podeis pedir-me mais. Abandonai-nos à nossa
sorte! Aliás, provavelmente, amanhã já não estaremos aqui!
O tom era ríspido, quase ofensivo e ao ver o jovem começar a corar
de cólera, Olivier assumiu a sua defesa. O cavaleiro não gostara da
maneira como o jovem insistira em segui-lo - ou em seguir Aude! - mas o
que ele fizera merecia, pelo menos, um tratamento mais suave. Em má
hora. Machieu estava de tal modo furioso que se virou contra ele.
- Eu sei o que estou a dizer! Para que trouxestes este rapaz
convosco?
- Por que não me censurais, também, por ter aceitado a sua ajuda?
- ripostou ele. - Na verdade, mestre Machieu, não vos reconheço...
- Meu pai, pensai no que dizeis e a quem o dizeis. Perdoai-lhe,
Olivier! O que aconteceu à minha querida tia e à minha irmã perturbou-o
e...
- Eu tenho idade suficiente para me desculpar e Olivier sabe que
gosto quase tanto dele como de ti...
Dito aquilo, Machieu saiu batendo com a porta, deixando a Remi,
com o orgulho ferido, a tarefa de conduzir Gildas à saída. Quando o
jovem regressou, encontrou o pai na sala, sentado ao fundo e
escutando, mudo e cada vez mais sombrio, Olivier a recitar, quase
textualmente, a proclamação real respeitante ao destino das princesas
culpadas e dos seus amantes. Após o que os nervos de Hervé d'Aulnay
tinham cedido...
- Vingá-los? - continuou ele. - Não me parece o mais importante
neste momento. Para além de a lei do Templo interditar a vingança
privada, preferia ir em socorro dos pobres filhos do infeliz Gautier.
- Acreditas mesmo que podes fazer alguma coisa? - perguntou
Olivier com uma compaixão infinita.
- Na verdade não sei, mas o que sei é que não descansarei
enquanto não souber. E, para isso, tenho de ir a Moussy. Talvez ainda
não tenham tido tempo de destruir o castelo. Mesmo que isso tenha
acontecido, há-de lá ter ficado alguém que me possa informar...
- Por que não, no fim de contas? Logo se vê...
- Queres ir comigo?
- Estás espantado?
Mas Machieu ainda não tinha acabado. O construtor abandonou o
seu banco e juntou-se aos dois homens na pedra da lareira:
- Já vos passou pela cabeça - disse ele com uma doçura estranha,
que contrastava com a violência do seu pensamento - que o socorro
poderia ser mais eficaz se o Rei Filipe já não fosse deste mundo?
Primeiro, é preciso abatê-lo, para realizar a profecia de mestre Jacques.
O Papa está morto e não sei o que aconteceu a Nogaret, mas se estiver
vivo, havemos de encontrar alguém que o faça ir desta para melhor.
Basta que o Rei morra e o povo, em pânico, apressar-se-á a libertar as
suas vítimas e a lamber os ferimentos...
- Morto o Rei, será o Cabeçudo a reinar e vós vistes do que ele é
capaz! - ripostou Olivier. - Achais que ganhamos com a troca?
- Faríeis melhor se estivésseis calado - grunhiu Machieu
entredentes. - Por que o deixastes vivo quando o tínheis à mercê?
- Porque não somos assassinos e isso também é válido para a
pessoa do Rei, que foi ungido por Deus. Além disso, Pedro de Montou,
que foi a alma da expedição, pensa que, humilhando o Cabeçudo como
humilhou, entregando-o à hilaridade pública, fará sofrer mais o Rei do
que trucidando-lhe o primogénito. Por outro lado, não sei se, abatendo o
Cabeçudo, não teríamos feito um favor ao pai, porque Filipe de Poitiers
tem tudo para ser um bom rei. Pelo menos um bom regente, durante a
menoridade da pequena Joana... que, pelo caminho que as coisas
tomam, pode muito bem ser declarada bastarda pelo Cabeçudo!
- Talvez! O que não quer dizer que uma mudança de reinado não
me conviesse e que é preciso fazer de maneira a que isso aconteça o
mais cedo possível...
- E é a essa bela tarefa que tencionais consagrar-vos, suponho? -
exclamou Juliana, que estava na soleira da cozinha há uns instantes. -
Perdestes a razão, Machieu de Montreuil, ou achais que ainda não
sofremos o suficiente?
- Paz, mulher! É preciso que a maldição de mestre Jacques se
cumpra e o preço nunca é demasiado alto quando a causa é tão nobre!
- Não é demasiado alto? Sois procurado, assim como o nosso filho;
já não temos casa e se a minha pobre irmã não nos tivesse emprestado
a sua casa estaríamos na rua, escondidos no fundo de um buraco
qualquer, a menos que já tivésseis sido apanhado e estivésseis
pendurado numa das correntes de Montfaucon. Pelo menos, a nossa
família não foi toda dizimada e apesar de dentro de pouco tempo não
termos com que viver, estamos juntos. Devemos agradecer a Deus por
isso, em vez de excitar a Sua cólera sobrecarregando a vossa alma com
um pecado mortal. A vingança só a Ele pertence e Ele saberá exercê-la
quando achar melhor! Tal como acabais de dizer, o Papa morreu!
Um pouco de paciência. Não vos tomeis por um enviado do Céu
quando acabais de conservar à justa a vossa saúde!
- Mulher, nunca ousastes falar-me nesse tom!
- Talvez porque, até agora, nunca me tenhais dado ocasião para
isso? Éreis um homem sensato e grande à vossa maneira, com o
espírito cheio de grandes obras, que concebíeis para maior glória de
Deus e eu admirava-vos! Quanto a esses - acrescentou ela apontando
para os dois cavaleiros, têm o direito de pensar em ajudar o que resta
das suas famílias! Deixai-os ir!
Machieu não respondeu, mas, pelo olhar inquieto que pousou neles,
Olivier adivinhou que aquela inquietação lhe vinha de se imaginar só
com Remi para proteger as mulheres em caso de infelicidade, sabendo
que não poderia utilizar senão o seu braço direito. Os seus gritos pela
morte de Filipe, o Belo não eram senão um meio de tentar recuperar a
força física anterior... O pobre homem sofria, sem dúvida, mais do que
parecia. Então, Olivier sorriu-lhe:
- A dama Juliana tem razão, mestre Machieu. Não devemos
precipitar as coisas. O Grão-Mestre fixou a chegada do Rei ao tribunal
divino no espaço de um ano: dai-lhe tempo para agir... e continuai a
recuperar as forças de que teremos todos necessidade. Pelo nosso lado,
com a vossa permissão, partiremos para Moussy depois do funeral da
dama Bertrade, mas regressaremos assim que soubermos da sorte de
Inês d'Aulnay e dos seus filhos...
A nuvem desapareceu do olhar fatigado e um canto da boca esticou-
se numa careta trocista:
- Pergunto a mim próprio, meu amigo, se não me conheceis
demasiado! Fazei como é vosso desejo! As crianças pagam demasiadas
vezes pelos erros dos pais...
Lavado, vestido e cuidadosamente penteado, o corpo de Bertrade
foi piedosamente colocado em cima da mesa da sala que tinha sido
coberta com um lençol branco. Foi-lhe colocada uma almofada sob a
cabeça e acenderam-se umas velas nos quatro cantos daquele catafalco
improvisado. As mãos da defunta foram unidas em cima do peito com
um rosário de buxo entre os dedos. A arte devota das mulheres fizera
maravilhas, porque o rosto de olhos fechados, encerrado numa coifa de
tela fina, não deixava ver grande coisa dos ferimentos sofridos.
Antes de se retirar para repousar um pouco, Olivier contemplou
longamente aquele rosto imóvel para sempre, um rosto que gostaria de
ter podido interrogar a propósito da frase espantosa, a última, que não
lhe saía do espírito, como um esquilo engaio-lado: "Ela ama-vos..."
Nenhuma dúvida era possível: era Aude, mas o que ele não conseguia
compreender era como era possível tal coisa. Não via há anos aquela
jovem, que ficara no seu espírito como uma rapariguita. E seria possível
ela amá-lo, a ele, um homem às portas da idade madura, despojado há
sete anos do seu prestígio de cavaleiro do Templo? Quando evocava a
imagem perturbadora da sua beleza inteiramente revelada - imagem
inesquecível e quão torturante! - era inacreditável. Era, até, de
enlouquecer! Doravante, os sonhos ardentes que faziam muitas vezes
das suas noites um inferno teriam um rosto, se bem que, de momento, a
bela criança repousasse num quarto por cima da sua cabeça, presa dos
demónios da Torre de Nesle e talvez às portas da loucura... Mais uma
razão para se afastar. A ajuda de que Aulnay necessitava seria para si
próprio, provavelmente, uma boa escapatória...
O funeral de Bertrade apresentava um problema: o lugarejo de
Passiacum dependia da igreja de Auteuil, bastante afastada. Além disso,
trazer um padre desconhecido a uma casa isolada para prestar os
últimos sacramentos à proprietária que quase nunca ninguém via, podia
ser perigoso. No campo, os dias são longos e as distracções raras e, por
isso mesmo, as línguas trabalham tão depressa como na cidade. Sem
contar com a presença, sempre preocupante, do pequeno castelo real,
apesar de Filipe, o Belo não se ter mostrado uma única vez. Por isso, os
refugiados foram forçados a renunciar a ouvir missa nos dias santos e a
receber os sacramentos, limitando-se a reunirem-se à hora indicada para
rezarem juntos esperando por dias melhores, mas Juliana recusava-se a
sepultar a sua irmã numa terra não consagrada, como a do pomar.
Machieu bem tentou convencê-la de que, se os homens de Montou não
tivessem repescado o saco onde ela estava metida, o seu corpo estaria
a caminho do estuário do Sena, mas ela manteve-se obstinada, numa
atitude que nem parecia dela:
- A minha pobre irmã morreu sem confissão, sem os santos óleos,
sem a mínima bênção e vós quereis que eu permita que a atirem para
um buraco no fundo do seu jardim?
Que cristão sois vós, meu marido?
- Dos que acreditam que o Senhor Deus é incapaz de recusar a Sua
misericórdia à alma de uma mulher corajosa que nunca fez mal a
ninguém e que teve, além disso, a infelicidade de ser massacrada sem
razão.
- Isso é verdade, mas eu tenho medo de que lhe sigais o caminho,
mestre Machieu, vós, que só sonhais com a vingança, ao ponto de não
quererdes recuar perante um regicídio. Seríeis capaz de confessar agora
mesmo a um padre o que vos vai na alma? Vós nem sequer temeis o
fogo do inferno!
- Não, porque acredito na justiça divina, que é mais certa e mais
generosa do que a dos homens! Por que não ides ao castelo pedir ao
capelão que arranje um espaço na capela? Depois, ele terá, certamente,
a bondade de dizer uma missa pelo vosso marido e pelo vosso filho, que
terão, por essa altura, sido pendurados das muralhas, antes de atirarem
para o fosso o que os corvos terão deixado dos seus cadáveres...
Aquela imagem terrível foi mais forte do que Juliana, que se deixou
cair num tamborete sacudida por soluços e sem que a sua dor abrisse
uma falha na cólera do marido.
Ao ver aquilo, Matilde, que descera para descontrair um pouco
enquanto a sua neta dormia, achou útil entrar na liça:
- Discutir não serve de nada - declarou ela. - Por que não pedis a
Blandine e a Audin que vos conduzam aonde eles vão uma vez por
semana, um de cada vez e com algumas provisões?
Juliana fungou, assou-se e enxugou as lágrimas:
- Não tinha reparado... Como é que vós sabeis?
- Simplesmente porque não tenho mais nada que fazer senão abrir
os olhos e observar. Aquele velho casal, que não faz mais barulho do
que um par de ratitos e que nos ajuda tanto, mostrando-se o menos
possível, possui uma vida própria... e também possui amigos. Um, pelo
menos!
- Ah sim? - exclamou Machieu. - E quem é?
- Um eremita que se retirou para uma gruta na floresta vi- nha.
Aubin descobriu-o um dia em que corria atrás do porco, que tinha rugido.
Não sabe o nome dele nem de onde vem, mas é um padre, que pode
dizer a missa todos os dias graças ao pão e ao vinho que um ou outro
lhe leva...
- No entanto, vão todos os domingos a Auteuil, como sempre! Como
os invejo! - suspirou Juliana.
- Claro, senão haveria uma multidão na floresta. O eremita gosta
muito da sua solidão... E, se calhar, do seu segredo, mas é provável que
aceite a companhia de uma pobre mulher vítima da crueldade de um
príncipe! - acrescentou docemente Matilde.
Era uma solução, de facto. Aubin aceitou ir pedir ao eremita que
lhes valesse, tanto mais que estava tão desejoso como os outros de
enterrar decentemente a sua benfeitora.
Foi ter imediatamente com o eremita e, chegada a noite, tomou o
comando do pequeno cortejo que levava Bertrade para a sua última
morada. Olivier e Hervé transportavam a padiola; os restantes seguiam-
nos. Na casa ficaram apenas Matilde, sempre à cabeceira de uma Aude
inconsciente, se bem que a febre tivesse baixado um pouco, e Margot,
pronta para prestar assistência à velha dama, se fosse necessário.
A distância não era grande. Um pouco difícil de encontrar, o local,
mas Aubin e a mulher tinham ido lá tantas vezes que tê-lo-iam
encontrado de olhos fechados. O eremita esperava-os junto da fossa
que escavara com Aubin durante o dia, a dois passos da gruta. Este era
um homem magro, seco como uma cepa e cujos cabelos grisalhos
emaranhados e barba abundante caíam por cima de uma espécie de
saco de burel sem cor, desfiado, múltiplas vezes remendado por
Blandine e que devia ter sido, em tempos, um hábito monástico. O
eremita estava sujo de meter medo e parecia-se com um espantalho,
mas resplandecia devido a uma fé ardente e nunca, provavelmente, o
ofício dos mortos terá sido dito com mais calor e compaixão. Como
aquele canto da floresta fora benzido por ele, Bertrade repousaria num
torrão tão cristão como o de um cemitério.
Quando a enterraram, todos choraram, até Olivier e Hervé, que não
conheciam a defunta, de tal modo o estranho solitário da gruta soubera
encontrar as palavras comoventes para receber o despojo mortal
daquela burguesa abastada cuja vida decorrera entre casas confortáveis
e uma corte quase real e que deveria repousar junto do seu marido no
cemitério da igreja de Saint-Laurent, da qual dependia a rica corporação
dos retroseiros, mas que o rancor cego de um príncipe infame
amaldiçoado pela sua mulher condenara a dissolver-se nas águas de um
rio e que, finalmente, só encontrara um buraco lamacento no fundo
perdido de um bosque...
Olivier tinha, durante o dia, talhado uma cruz em madeira de faia,
que cravou sobre a tumba para deixar um sinal e para que se soubesse,
no futuro, que estava ali alguém, mas sem gravar qualquer nome e viria
o dia, sem dúvida, quando o eremita, por sua vez, desaparecesse, em
que não restaria mais nada...
No dia seguinte, de madrugada, os dois antigos templários partiram
pelo caminho ao longo do Sena. Através de Paris, o que lhes permitiria
atingir a antiga estrada romana que ia dar a Sois-sons.
Os dois homens chegaram no dia seguinte ao cair da noite...
O castelo ainda ardia...
Fora uma daquelas fortalezas de planície com os fossos
alimentados pela água límpida de uma ribeira, próxima de uma aldeia,
mas ardia tão bem como se fosse de madeira como uma choupana
qualquer e não de grandes blocos de pedra arrancados às pedreiras há
mais de um século e se as muralhas exteriores continuavam de pé se
bem que quase a desmoronarem-se, do interior não devia restar grande
coisa. Os homens de Nogaret não tinham, certamente, poupado na
pólvora, porque sob as nuvens de fumo negro vomitadas por aquele
inferno, viam-se chamas a sair pelo telhado do torreão. O rugir do fogo
devia ouvir-se de longe. Talvez, até, nos confins da floresta, cuja verdura
espessa cercava as terras cultivadas do domínio. Do outro lado da
ribeira, os aldeões pareciam estátuas de pedra cinzenta, observando...
Deviam ter fugido para os bosques quando os soldados tinham
entrado no castelo, mas, naquele momento, terminada a obra de morte,
estes tinham-se ido embora e as gentes da aldeia, operando um
movimento contrário, tinham regressado, felizes, sem dúvida, por
encontrarem intactas as suas choupanas. Agora, estavam ali, fascinados
por aquele apocalipse onde desabava a raça dos seus senhores...
Incapazes de medir a amplitude do desastre. Sabiam apenas que nada
devia restar de um castelo onde tinham nascido uns criminosos
suficientemente audaciosos para ter atentado contra a honra do Rei e
isso porque, à chegada, o chefe dos incendiários o tinha gritado antes de
eles fugirem, e ao verem consumar-se o castelo principal dos Aulnay,
provavelmente condenados às penas do inferno, deviam perguntar a si
próprios se não seriam também eles, seus camponeses, malditos.
Apesar de, ao longo do caminho, se ter preparado para uma
situação dramática anunciadora da ruína da sua casa, Hervé não
esperava que agissem tão rapidamente. O terrível espectáculo atingiu-o
como um raio. Com as pernas ceifadas pelo horror, ao qual se somava a
fadiga da longa marcha, o cavaleiro deixou-se cair sobre o pedestal de
uma velha cruz de caminho, sem sequer pensar em murmurar a menor
oração. O que via era pior do que imaginara: para além do grupo
aterrorizado de camponeses, ninguém estava à vista para lhe dizer se
aquele braseiro era também o túmulo de seres vivos.
De pé a seu lado e de braços cruzados, Olivier, sombrio e mudo,
contemplava também ele o desastre, incapaz de encontrar uma palavra
que não fosse inútil para apaziguar uma dor que quase sentia na própria
carne, de tal modo eram estreitos os laços entre ele e aquele irmão que
o Templo lhe dera. Por isso, não ficou surpreendido ao ouvir Hervé fazer
a pergunta que fizera a si próprio:
- Mas, enfim, onde estão eles? Onde estão o meu irmão, a minha
cunhada e a sua gente? Onde estão Inês e os pequenos? Não os
fecharam lá dentro, certamente, antes de atear o incêndio... Seria
monstruoso!
- Estes tempos são monstruosos... No entanto, devem ter sido
detidos e levados para uma prisão qualquer...
- Não seria melhor, mas não acho que seja o caso porque conheço
o meu irmão, o seu coração duro, a sua arrogância, o seu carácter
violento e a sua coragem! Tem mais dez anos do que eu, mas no
combate com a lança ou com a espada, venceu-me sempre! Não se
deve ter rendido sem combater...
- Contra o Rei? Porque, enfim, é o caso!
- Sem hesitar! Tal como eu fiz e voltarei a fazer. Imagina que não
tinha nada a perder, visto que já não tem nome nem honra...
- Temos de saber! Fica aqui, que eu vou perguntar àquela gente
além...
- Não, eu vou - disse Aulnay, levantando-se.
- Mas, Hervé, meu irmão, eles, a ti, conhecem-te desde a infância. A
mim, nunca me viram. Não passo de um passante, de um escultor que
anda à procura de trabalho...
A mim, dizem-me...
- Não me convences... Eles estão aterrorizados demais e a
aproximação de um estranho, nem que seja um monge, fá-los-á fugir...
Nenhum deles se tinha apercebido da aproximação da mulher que
se colocou diante deles. "Jovem dama" ou "donzela" seria mais
apropriado. Não parecia nada uma camponesa.
Bastante grande, envolta num grande manto negro cujo capuz
atirado para trás revelava um rosto que reflectia tanto a feminilidade
como a inteligência e a força de carácter, tinha uma tez cor de marfim
quente, cabelos castanhos, traços móveis e uns grandes olhos escuros
cuja cor exacta era impossível de distinguir à luz do crepúsculo. A dama
mantinha-se muito direita mas sem rigidez, numa pose ao mesmo tempo
orgulhosa e graciosa. As suas mãos enluvadas seguravam uma chibata
{47}
. Ao vê-la, os dois homens inclinaram-se.
- Nobre dama - começou Olivier, mas ela interrompeu-o com um
gesto e dirigiu a palavra ao seu companheiro.
- Vós sois Hervé d'Aulnay, não é verdade?
- Achais que sim?
- Oh, não há dúvida possível. Vós, os Aulnay, sois todos parecidos.
No entanto, soi-lo menos do vosso infeliz irmão do que daquele pobre
louco do Gautier, mas se sois o único homem da família ainda vivo, só
podeis ser Hervé.
- O único ainda vivo? Quereis dizer que o meu irmão está morto?
Com um movimento de cabeça, a desconhecida apontou para o
incêndio, ao mesmo tempo que a sua voz se enchia de cólera:
- Além e a esta hora não deve restar nada dele... Nem da sua fiel
mulher, que não o quis abandonar.
- Mataram-nos?
- Messire d'Aulnay recusou o édito que o condenava a ser um
mendigo sem eira nem beira. Defendeu-se com coragem, com orgulho.
Foi abatido e abatida foi também a dama Isaura, que se atirou para cima
do seu corpo com um grito de dor, ao mesmo tempo que as donzelas e
as servas fugiam. Ela nem sequer teve tempo de o abraçar.
O ferro de uma partazana pregou-a ao cadáver do seu
companheiro...
- Meu Deus! Mas, como é que sabeis isso? Éreis uma das damas da
minha cunhada?
Uma prega de desdém arqueou-lhe os lábios finos:
- Eu sou a dama de Villeneuve e chamo-me Mariana. O meu defunto
marido foi morto o ano passado no torneio de Pentecostes em
Dammartin; sabei ainda que, desde a nossa infância, Inês de
Montmorency e eu éramos muito amigas. Uma amizade que ficou ainda
mais forte quando ela se casou com o vosso sobrinho Gautier. Deveis
lembrar-vos que Villeneuve não fica longe...
Hervé inclinou-se:
- De facto... Guardo uma recordação de messire Damien, que era
amigo do meu irmão... e seu contemporâneo... Mas talvez o vosso sire
fosse filho dele...
- Não. Ele tinha cinquenta anos quando nos casaram... Quanto a
saber o que se passou aqui, acontece que estava presente, mas não no
castelo. Estava tão bonito que estávamos no pomar, Inês, os pequenos e
eu.
- Foi por causa deles que vim. Eles não estão...
- Não vos inquieteis, estão vivos... Quando vimos chegar a tropa de
messire de Nogaret, Inês pediu-me que ficasse com os pequenos e
regressou ao castelo para saber o que se passava. Nunca mais
regressou. Confesso-vos que, durante um momento, não soube o que
fazer: o tumulto começara no interior quando vi aproximar-se a ama de
Filipe e de Aline, lavada em lágrimas e aterrorizada. Inês tinha-a enviado
para que eu os escondesse. A pobre mulher estava assustada, o que a
fazia gaguejar, mas acabei por compreender que, juntamente com a
tropa do Rei vinha um irmão de Inês para a levar... mas sem os filhos!
Aquelas últimas palavras venceram o silêncio de Olivier, que se
afastara por discrição.
- Por que razão sem os filhos?
O olhar que ela lhe lançou não tinha qualquer doçura. Segundo ela,
ele não tinha nada que se meter na conversa. Mas condescendeu em
responder-lhe:
- São Aulnay... e, por isso mesmo, não são ninguém. Os filhos de
um condenado não têm lugar na casa dos Montmo-rency. Acrescento
que Inês foi levada à força. No entanto, conseguiu mandar-me Maria,
para que eu levasse as crianças antes que fosse demasiado tarde. O
que eu fiz... Messire, podeis dizer-me quem sois?
- Olivier de Courtenay...
- Courtenay? Grande nome!
- Mas pequena pessoa! Eu também era templário.
- Aceitai as minhas desculpas - disse ela num tom menos azedo. -
Os acontecimentos de ontem tornaram-me desconfiada... e algo
agressiva.
- Quem não o ficaria em tais circunstâncias? Assim, os sobrinhos de
Hervé estão em vossa casa? Encontrastes um meio de os levar para lá?
- Com a ama e não sem grande dificuldade. Foi-me impossível ir
buscar a minha hacaneia, que estava na cavalariça e fomos a pé, Marie
com Filipe ao colo e eu com Aline. Felizmente, conseguimos chegar
rapidamente ao bosque... e a Tour-Gaucher não fica longe.
- Gostaria de os ver - disse Hervé. - Será muita ousadia da minha
parte pedir-vos que...
- Vos convide a ir a minha casa? Parece-me natural. Não tendes
outro sítio onde passar a noite. Vinde! Suponho que já caminhastes
muito para chegar aqui.
- É uma questão de hábito - disse Olivier com a sombra de um
sorriso.
Os delgados ombros da dama de Villeneuve soergueram-se por
baixo do seu amplo manto negro e ela brandiu o pingalim por baixo dos
narizes dos dois homens:
- Bem, vai ser preciso habituar-me! A excepção de uma mula, nada
mais resta da minha cavalariça e se vim aqui esta noite foi na
esperança... vaga, é certo, de encontrar a minha montada. Os homens
de Nogaret devem tê-la levado juntamente com o saque antes de
incendiarem Moussy. Segui-me meus senhores!
A dama guiou-os pelo caminho que a tinha trazido e meteu por entre
as árvores da espessa floresta. Marcharam assim durante mais ou
menos uma légua. Mariana à frente, com a cabeça bem direita e passo
firme, batendo de vez em quando num ramo ou numa erva com o seu
pingalim inútil. Não ousando caminhar a seu lado - o que aparentemente
ela não desejava - os dois homens avançavam em silêncio, mas tanto
um como outro pensavam mais ou menos na mesma coisa: aquela
jovem dama devia ser mais rica de nobreza do que de escudos, visto
que a perda de uma jumenta era suficiente para a perturbar. Hervé,
sobretudo, estava surpreendido, porque se lembrava de que, no tempo
da sua infância, o barão de Villeneuve não era um sire menor e o seu
castelo, se não era tão importante como o de Moussy, não deixava de ter
o seu lugar digno entre as casas nobres da região, possuindo, aliás, um
património de terras cultiváveis e de bosques que não era de
negligenciar. Além disso, via mal uma parente dos Montmorency casada
com um fidalgote mais ou menos campónio...
Ao aproximarem-se, o cavaleiro constatou que as coisas tinham
mudado muito... A Tour-Gaucher - o castelo - nunca fora imponente.
Uma residência robusta, mais do que um castelo, mas que, em tempos,
tinha um ar de boa saúde e de prosperidade, que lhe faltava agora
lastimavelmente. Tal como em Moussy, a ribeira alimentava-lhe os
fossos, mas como estes não eram cuidados, estavam verdes. As
muralhas também, onde o musgo não chegava a cobrir as fendas. As
seteiras esboroavam-se e os telhados tinham abatido parcialmente, sem
esquecer que as correntes da ponte levadiça, que não deviam erguer
muitas vezes, estavam enferrujadas. Só havia dois guardas na antiga
casa-da-guarda, enquanto noutros tempos tinha dez. Além disso,
aqueles já não estavam na primeira juventude.
Chegada ao pátio onde a erva crescia à-vontade, Mariana virou-se
para fazer face aos seus companheiros:
- Eis o meu palácio! - disse ela com uma ironia que escondia mal a
sua amargura. - Sinto-me feliz por vos dar as boas-vindas!
- É incrível! - exclamou Hervé. - Isto é o fantasma da Tour-Gaucher!
Como foi possível chegardes a este ponto?
- Os torneios, cavaleiro, as liças e outras festas a que era preciso ir
a qualquer preço com uma bela equipagem e onde só se ganhava
raramente! O último foi fatal, mas confesso - acrescentou ela com súbita
violência - que respirei de alívio. As terras e outros bens foram-se. O
recontro seguinte ter-nos-ia, sem dúvida, expulso daqui. Vinde! Apesar
disso, continua a haver na cozinha com que restabelecerdes as forças...
Com a sua vasta chaminé, suficientemente grande para assar um
boi e somente ocupada com um grande pote cujo conteúdo fervente
levantava por vezes a tampa, a sua longa mesa, os seus bancos e os
seus utensílios muito bem limpos, a cozinha parecia o único local vivo e
acolhedor daquela casa cujas salas, na sua maior parte sem qualquer
mobília, já não mostravam quaisquer vestígios da riqueza de outros
tempos. Porém, fez recordar a Olivier a de Valcroze, justamente por
causa do calor que dela exalava e da mulher que era o seu centro. Mais
idosa do que Barbette, tinha as mesmas formas arredondadas, os
cabelos grisalhos e o olhar perspicaz. Chamava-se Jacotte e com um
garoto de quinze anos, que era seu filho e respondia pelo nome de
Tiennot, compunha todo o pessoal doméstico do solar. Em tempos
normais, pelo menos, porque na hora presente uma jovem camponesa,
de belas rosetas vermelhas, estava de pé junto da mesa, dava de comer
a dois pequenitos louros, um dos quais, a rapariga, estava nos seus
joelhos. Era, certamente, Maria, a sua ama.
Ao penetrar naquele universo íntimo, Hervé, esse, só viu os
pequenos. Não os conhecia, já que no momento do seu nascimento se
tinha juntado à comunidade de lenhadores do cavaleiro d'Aumont e
completamente afastado da família, mas bastou-lhe um simples olhar
para os reconhecer como seus, porque não era possível haver crianças
mais encantadoras. Louros e com os mesmos olhos azuis, tinham
carinhas redondas com covinhas e pareciam-se de modo gritante, como
se fossem gémeos, se bem que Filipe tivesse mais um ano do que a
irmã. Aliás, o pequeno afirmava a sua superioridade batendo na mesa
com a colher para reclamar um suplemento, enquanto Maria parecia ter
mais dificuldade com a encantadora criança aninhada no colo. Esta
parecia mais frágil do que o irmão, que brilhava visivelmente de saúde.
Parando por um instante com o barulho que fazia com a colher, o
jovem Filipe olhou severamente para aquele desconhecido
abundantemente cabeludo e barbudo que se instalara na sua frente, do
outro lado da mesa, para o ver mais de perto com um ar maravilhado
que teve o dom de desagradar ao petiz. Este estendeu para o monstro
uma colher ameaçadora:
- Não! - declarou ele com firmeza. - Vilão! Esquecendo os outros,
Hervé plantou os cotovelos na mesa com um grande sorriso:
- Vilão? Não, eu não sou um vilão, sou o vosso tio, messire Filipe.
Não vos agrado?
- Tio? - perguntou o petiz franzindo as sobrancelhas. - Não! Vilão, já
disse!
Olivier e Mariana contemplavam o quadro com um sorriso, mas o de
Olivier apagou-se rapidamente. Aquela mulher jovem estava, senão na
miséria, pelo menos em grande dificuldade, apesar de isso não parecer
enfraquecer o seu carácter. Duas crianças representavam um encargo
que ela ia ter, sem dúvida, dificuldade em assumir:
- Que ides fazer? - perguntou ele com os olhos no dueto cómico que
prosseguia entre Hervé e o sobrinho relutante em reconhecer os seus
direitos familiares.
Mariana pegou em Aline ao colo, já que Maria renunciara a
continuar a tentar alimentá-la. A pequena cabeça, coroada de caracóis
louros aninhou-se no seu pescoço com um suspiro de felicidade. A
jovem ergueu para ele um olhar surpreendido:
- Que pergunta! Ficar com eles, evidentemente! Não posso
abandoná-los num caminho qualquer ou deixá-los à porta de um
convento onde, despojados de quaisquer bens, do próprio nome e
marcados com o selo da infâmia, ficariam destinados a uma vida de
humilhação, miserável e sem dúvida breve... Nunca! Amo-os, vede lá
vós!
- Perdoai a minha brutalidade, mas achais que conseguis...
- Tomar conta deles? Há aqui o suficiente para os alimentar com os
produtos da capoeira e da horta. Também tenho um pomar e até
algumas ovelhas cuja lã os vestirá.
Quanto ao resto, que seja a vontade de Deus, mas se a mãe deles
não pode vir buscá-los, ficarão comigo... E agora, quereis lavar as
mãos? O jantar vai ser servido.
- Só as mãos? Com a vossa permissão, gostaríamos de nos lavar
no poço do pátio. Devemos meter medo com tanta sujidade, a julgar pelo
acolhimento do jovem Filipe!
- À-vontade! Vou mandar preparar-vos um quarto...
- Não, obrigado, Madame. Quarto, não! Dormiremos no palheiro.
Continuamos a ser templários, sabeis?
- E não podeis dormir sob o mesmo tecto que as mulheres, é
verdade... Que seja como desejais.
Talvez para mostrar a Courtenay que não estava tão desprovida
como ele pensava, Mariana mandou servir o jantar no salão de honra de
onde os tapetes e as tapeçarias tinham desaparecido, mas onde ainda
havia uma colecção de escudos testemunhando a nobreza da família e,
sobre o pano da chaminé, uma grande espada a duas mãos. Não havia
qualquer conforto, mas talvez mais grandeza. Uma toalha branca cobria
a mesa sobre a qual estava um ramo de flores campestres. A jovem
acrescentara à sua toilette negra uma pequena coifa de veludo bordada
a prata onde se destacava a brancura de uma écharpe de musselina.
Mariana fez as honras da mesa com tanta graça e dignidade como
se estivesse em Montmorency, ou noutra casa nobre qualquer. Foi-lhes
servido um guisado de coelho com ervas, uma terrina de javali - era a
própria Mariana que caçava! - e cerejas do pomar. O vinho provinha de
um casco de Borgonha que fizera parte dos seus presentes de
casamento e que ela guardava preciosamente desde então.
Coisa estranha, foi sobretudo com Olivier que ela conversou. Hervé,
pensativo, comia e bebia em silêncio, mas os seus olhos iam muitas
vezes para a sua anfitriã com uma expressão que Olivier não conseguia
decifrar. Como Courtenay não era falador por natureza, foi Mariana que
falou, interrogando-o acerca da família e em particular sobre o que
poderia ser a sua vida, assim como a de Hervé depois do
desmoronamento do Templo... Por seu lado, ela falou sobre si mas sem
grandes alardes, para que os seus convidados soubessem quem era.
Filha da nobre casa de Dougny, vira-se órfã após a morte sucessiva
dos seus pais, o pai na Flandres e a mãe, de dor ao dá-la à luz. Como
era parente dos Montmorency, fora criada com eles juntamente com
Inês, que era para ela como uma irmã. Quando casou com Gautier
d'Aulnay, esta não descansou enquanto Mariana não casasse perto dela.
E foi mais por ternura pela prima do que por inclinação que esta aceitou
casar com o barão de Villeneuve que tinha algum encanto, mas a quem
interessava mais o dote da jovem do que a sua pessoa... Infelizmente,
não foi preciso muito tempo para que o dote desaparecesse, juntamente
com o belo património que Damien conservava.
Mariana não falou muito sobre o fim daquela união sem glória que
não desejara. Até evocou alguns episódios da sua curta existência com
uma espécie de humor que os dois homens apreciaram, não gostando,
nem um nem outro, de mulheres choronas. Quando, tendo terminado,
levou a taça aos lábios, Hervé saiu do seu silêncio e observou:
- Vós sois jovem, dama Mariana, e... bela, se me permitis. Devíeis
casar de novo...
Ela desatou a rir e o seu riso era uma cascata de notas frescas:
- Casar de novo, eu? Nunca! Já não tenho fortuna, mas sou livre.
Um bem raro para uma mulher e que eu aprendi a apreciar. Além disso,
se Deus quer que eu, doravante, me responsabilize por duas crianças,
tenho de fazer tudo para que não sofram com o drama que os atingiu.
Enfim... admitindo que haja um cavaleiro suficientemente louco para
pretender a mão de uma viúva falida e que me possa agradar, teria de
pensar muito, porque não quereria que os pequenos sofressem o seu
desdém ou, até, os seus maus tratos. Se os Montmorency os rejeitam
definitivamente, como tudo leva a crer, adoptá-los-ei e eles herdarão,
pelo menos, esta casa velha...
- ... que me parece mal defendida - continuou Hervé. - Se fordes
atacada, como vos defendereis?
- Por que me atacariam? Não há aqui que possa tentar os
salteadores de estrada e contra eles sou capaz de me defender...
- Com dois guardas cheios de reumatismo, um rapaz e duas
mulheres...
- ... e comigo. Sei disparar um arco e manejar uma espada.
- E se não forem salteadores? E se quiserem tirar-vos Filipe e Aline?
- Montmorency rejeitou-os e os avós deles morreram. Quem os
poderia querer?
- Justamente aqueles que querem extirpar até à raiz tudo o que
tenha o nome d'Aulnay. O Rei, acredito sinceramente, nunca chegaria a
esse extremo: é demasiado grande para declarar guerra aos pequenos,
mas Nogaret, esse, é capaz de tudo para se tornar indispensável.
A dama ergueu para ele um olhar subitamente angustiado. Era
evidente que a sua alma não conseguia imaginar um tal horror.
- Nesse caso, teria de me entregar nas mãos de Deus - murmurou
ela.
- Pode ser que Deus vos tenha atendido antes mesmo de Lhe
pedirdes - disse docemente Olivier. - Na fogueira, o nosso Grão-Mestre
intimou o Rei, o Papa e Nogaret a comparecerem no tribunal divino no
espaço de um ano... e o Papa já se apresentou...
- Pode ser que se trate de uma coincidência - continuou Hervé. -
Mas acreditarei quando Nogaret se juntar a ele.
- Para ti o Rei é menos importante?
- É, porque o guarda dos Selos é o mais perigoso. Filipe reina. Sem
piedade e sem fraquezas, mas, acredito, no interesse do Estado. O outro
é demasiado solícito, ajusta contas pessoais e, sobretudo, abusa dos
poderes que detém. E recordo-te que, morto o Rei, teremos o Cabeçudo!
Entretanto...
Sem terminar a frase, Hervé levantou-se da mesa, saudou a sua
anfitriã e pediu-lhe permissão para ir dar uma volta:
- Gostava de ver - acrescentou ele - as vossas defesas.- É noite -
lembrou Olivier.
- Mas suficientemente clara. Fica descansado, levo um archote.
- Acompanho-te.
- Não, por favor! Não é preciso! Perdoa-me, mas esta noite desejo
ficar só durante algum tempo.
- Não tenho que te perdoar nada...
Olivier trocou ainda algumas palavras com Mariana, mais por
cortesia do que por interesse, despediu-se e dirigiu-se para o grande
palheiro posto à sua disposição.
Também ele precisava de reflectir.
Ao atravessar o pátio, avistou a silhueta do amigo junto da portaria,
conversando com um dos velhos soldados. O céu, de facto, estava
límpido, cheio de estrelas e já com o azul tão doce característico do
Verão. O ar estava tépido e em vez de se enfiar na palha, Olivier subiu
uma das pequenas escadas que iam dar ao caminho de ronda, onde se
sentou numa das muitas seteiras esboroadas.
O cavaleiro ficou ali muito tempo, encostado à pedra musgosa,
olhando para a vasta e plana paisagem onde se via a massa negra da
floresta cercando aqui e ali campos e charcos. A norte, o clarão
avermelhado e sinistro do castelo incendiado esbatia-se pouco a pouco.
Na manhã seguinte só restariam ruínas fume-gantes, muralhas
enegrecidas, uma carcaça vazia atestando ao mundo que se fizera ali a
justiça do Rei, tal como aconteceria nos outros domínios dos Aulnay. Em
seguida viria a hera e as ervas daninhas, escondendo os vestígios de
fogo e os escombros de que ninguém ousaria aproximar-se, com
excepção dos feiticeiros e dos fugitivos, temendo uma lenda maléfica
que aumentaria com o tempo.
Olivier compreendeu sem dificuldade o que se passava na cabeça
de Hervé. Bastava imaginar-se a si próprio a aproximar-se de Valcroze
devastado pelo fogo e pelo ódio dos homens. Hervé amara aquela casa
nobre que o vira nascer, apesar de a má vontade do irmão o ter obrigado
a preferir o abrigo precário dos bosques e a sua vida selvagem. As
chamas tinham passado sobre aquela amargura. Só restava a dor... e a
necessidade visceral de proteger o pouco, tão frágil e cativante, que
restava de uma longa linhagem de valentes cavaleiros e nobres damas.
Algo acabava de mudar e o cavaleiro sentia-o profundamente.
Assim, Courtenay não ficou surpreendido quando, despertado pelo
grito rouco de um galo, desceu e encontrou Hervé sentado no primeiro
degrau.
- Onde estavas? - perguntou este.
- Lá em cima. A noite estava muito bonita e não me apetecia dormir.
E tu?
- Eu também não... Creio que temos de conversar. Desde ontem...
que algo se passa comigo...
- Pára, meu irmão! Eu sei o que me vais dizer: queres ficar aqui para
velar pelos filhos do infeliz Gautier...
- Como é que sabes? Olivier encolheu os ombros:
- Nós sempre fomos muito amigos! Ao longo dos anos, aprendemos
a reagir da mesma maneira! Era nisso que eu pensava enquanto estava
a olhar para Moussy a arder do outro lado da floresta e pareceu-me
sentir a tua dor... o teu desgosto. Imaginava como seria o meu se
Valcroze tivesse o mesmo destino. Com a diferença de que eu não teria
nenhuma criança para cuidar. Já falaste com a dama Mariana?
- Ainda não, mas vou falar daqui a pouco, quando ela descer, e
espero que ela me deixe ficar aqui. Há tanto que fazer, tanto nos campos
como nas casas. Aquele barão Damien devia ser louco para reduzir
assim a mulher quase à miséria por causa de uma glória vã. Que nunca
lhe sorriu, aliás. Mau grado a sua coragem, Mariana não pode enfrentar
um possível perigo com os meios que tem, um rapaz e dois veteranos
que não têm para onde ir se ela os mandar embora. Eu consigo suportar
cargas grandes, sou capaz de construir, de trabalhar e, sobretudo, de
lutar em caso de necessidade. Compreendes... não consigo virar as
costas e ir-me embora... não sei para onde, visto que o Templo morreu e
eu, agora, não sou nada! Aqui, na terra da minha família, transformar-
me-ei num camponês... e terei paz.
- Que belo sermão! - sorriu Olivier. - Mas supérfluo. Eu já tinha
percebido. Mas... que farás se ela não aceitar?
- Ficarei! Na floresta, onde vivi sete anos, sinto-me em casa e, pelo
menos, estarei perto deles... destes dois pequenitos que me encheram o
coração de ternura, pronto a acorrer ao menor alerta.
- Só eles... ou ela também? Caso não tenhas reparado, ela é jovem,
bela e orgulhosa. Uma mulher sedutora...
- Cala-te! Recuso-me a pensar nisso e que sejas tu, normalmente o
mais duro, o mais austero dos dois...
- limito-me a ver a vida como ela é. Ela proporciona-te uma razão
para existires e tu deves agarrá-la. Como dizias há pouco, o Templo
morreu. Os teus votos também, a menos que prefiras renová-los num
convento qualquer onde não saberão o que fazer de ti. Mas perdoa-me
por ter falado no assunto! Eu acho-te capaz de resistir a todas as
tentações. Digamos que... quis pôr-te à prova, colocando-te perante uma
realidade bem viva.
- Ficas comigo se ela aceitar?
- Não. Prometi regressar a Passiacum, onde precisam de mim, tal
como precisam de ti aqui. Devo muito a Machieu para o abandonar...
- Sem dúvida, mas vais passar o resto da vida na Quinta das
Abelhas?
- Não mais do que Mathieu, sabes bem. O que me preocupa é o
ódio que ele tem ao Rei e que o cega. Receio que ele queira fazer
cumprir a profecia do Grão-Mestre, fazendo justiça com as suas próprias
mãos. Tentarei impedi-lo com todas as minhas forças.
- E se a profecia se realizar sem ele?
- Penso que prosseguirá o combate para ter a certeza de que
ninguém trabalhará em nenhuma catedral de França...
- Isso também é perigoso! Que vai acontecer à família dele?
- Ou a leva com ele ou, o que seria mais sensato, deixá-la-á em
Passiacum. Seja como for, não o seguirei porque o combate dele não é o
meu. Deus e Nossa Senhora devem ser servidos e adorados. É um
pecado tomar como reféns os seus santuários. Pertencem a todos os
Cristãos...
- E então? Para onde vais? Para o que resta de uma comendadoria
estrangeira, em Espanha ou em Portugal?
O olhar de Olivier contemplou o céu cada vez mais claro,
anunciando a aurora. O cavaleiro encolheu de novo os ombros:
- Na verdade, não sei, mas antes de meter por um caminho, seja ele
qual for, gostaria de regressar às margens do Verdon, ver outra vez,
senão o meu pai, do qual não sei nada há muito tempo e que, se calhar,
já se juntou à minha mãe, pelo menos a minha terra natal e a minha
casa! Se ainda resta alguma coisa...
- Se o barão Renaud sobreviveu ao Templo, terá escapado aos
homens do Rei. Caso contrário... por que não voltas para aqui? Pelo
menos, acabaremos juntos...
Olivier pousou no ombro do amigo uma mão calorosa, apesar de o
movimento significar uma recusa. Estavam ambos conscientes de que
as suas vidas, durante muito tempo paralelas, iam separar-se sem
grande esperança num reencontro, a não ser no outro mundo. Para
Olivier era uma dor mais cruel do que gostaria de confessar, mas contra
a qual não podia fazer nada. Entre eles estavam agora as duas cabeças
louras dos dois pequenitos e as suas pequenas mãos fechadas em redor
do pescoço de Hervé...
Por causa deles, o seu amigo choraria menos a separação.
Subitamente, Olivier sentiu-se muito só, mas tinha uma alma demasiado
grande para sentir amargura. Era bom Hervé encontrar, por fim, um
sentido para a sua vida...
Como que para selar aquela certeza, naquele preciso instante, o
primeiro raio de sol atingiu a soleira do solar onde estava a silhueta
esbelta e negra de Mariana.
Com a mão por cima dos olhos, a dama inspeccionou o perímetro
do pátio, procurando qualquer coisa... ou alguém. Então, Olivier pegou
no amigo pelo braço:
- Vai! Chegou o momento. Vai falar com ela!...
Não precisou de insistir. Com um pouco de melancolia, Olivier viu
Mariana ir ao encontro de Hervé e depois o encontro de ambos no meio
das galinhas chocas que o jovem criado acabava de largar. O diálogo foi
breve e o resultado o que Olivier esperava: o rosto de Mariana iluminou-
se subitamente com um belo sorriso onde havia mais do que a simples
satisfação de adquirir um par de braços vigorosos, um defensor digno
desse nome. O cavaleiro sentiu - mas já o sentia desde a véspera sem
disso estar verdadeiramente consciente - que entre aqueles dois
qualquer coisa de firme iria começar. Sem o saberem, a princípio: Hervé
continuaria a dormir no palheiro até ao dia, ou tarde, ou noite, em que
Mariana e ele se apercebessem do que os unia. Hervé já não tinha
nome? Ela dar-lhe-ia um, que as crianças poderiam usar sem vergonha.
Uma hora mais tarde, Olivier partia para Paris, só. No instante da
separação, ao abraçar o amigo, murmurou-lhe: - Não esqueças! O
Templo era um sonho, mas o sonho desapareceu. Doravante és um
homem como os outros. Vive como um homem livre... e que Deus vos
proteja!
PARTE 3 – OS GUARDIÃES
XI – O ABUTRE
Ajoelhada em frente do pequeno montículo ainda arredondado onde
acabava de depositar um ramo de rosas silvestres, Aude rezava com os
olhos rasos de água e as lágrimas caíam uma após outra sobre a terra
coberta de erva.
Desde que reencontrara a lucidez e lhe tinham contado o fim da
história, não cessara de pedir que a levassem à campa de Bertrade. A
visita daquela manhã não passava de uma magra vitória: até ali, a sua
família tinha-se unido contra ela com receio de uma recaída, da qual eles
temiam que ela não regressasse.
Durante dias, a jovem não vira aurora, crepúsculo ou obscuridade
sucedendo-se à luz, oscilando entre a vida e a morte, à arder com uma
febre cerebral que ninguém sabia como acabaria. Aude não sofria de
nada senão de pesadelos terríveis, contra os quais o seu espírito lutava
momentaneamente ausente do seu corpo. Do fundo do abismo onde se
debatia, a jovem não cessava de rever o martírio da sua tia, ouvia os
seus gritos sob a mordedura do ferro em brasa, das garras que a
rasgavam, dos borzeguins que lhe quebravam os ossos para a obrigar a
confessar... o quê ao certo? Que tinha aberto algumas portas, guiado
alguns passos prudentes, assistido a alguns folguedos quando nunca
tinha feito nada de semelhante e que o meirinho de Margarida e de
Marta, a sua camareira, já tinham confessado e pago o devido preço?
Mas o príncipe de olhos de fogo e boca espumante não se dava por
satisfeito, não sabia ainda o suficiente, persuadido de que toda a sua
casa era cúmplice do adultério, vira tudo, contara os beijos, os êxtases,
ouvira as palavras de amor...
Bertrade sabia que seria inútil e perigoso negar - os irmãos d'Aulnay
não tinham dito tudo aos carrascos de Nogaret? Assim, confessara as
suas suspeitas e até que uma noite fora através dos corredores até à
Torre de Nesle. Que outra coisa podia dizer, senão o que vira? Mas o
Cabeçudo não se dera por satisfeito. A fiel dama-de-companhia que tão
bem sabia ornamentar o corpo maldito da sua mulher só podia ser a
confidente íntima dos seus amores. E o suplício continuara sob o olhar
aterrorizado de Aude, até que a vítima perdera a consciência e a tinham
metido num saco para terminar a sua agonia no Sena. O Cabeçudo,
subitamente, apressara-se a passar para outra, a qual prometia ser um
regalo: a pequena Aude, tão encantadora que, não fora o receio de
Margarida ir fazer queixa ao Rei, para quem a violação era um crime
sem perdão, teria há muito arrastado para o seu leito. Mas Margarida já
não estava ali com a sua arrogância e a certeza de ser ouvida por um
sogro orgulhoso da sua beleza e do seu carácter, no qual via o delinear
de uma verdadeira Rainha. A jovem estava na sua frente, desarmada,
despojada de tudo...
Podia ter atirado com ela para o divã em que estava estendido e
saciar o seu desejo, mas a grande sombra do pai continuava a esmagá-
lo e o seu espírito confuso ainda tinha medo que Filipe descobrisse.
Então, dera a escolher a Aude: sofrer o destino de Bertrade ou ir ter com
ele de livre vontade. Apesar do medo e do desgosto, ela repelira-o com
horror. Então, ele mandara-a atar à roldana, pensando que um ou dois
puxões a tornariam mais compreensiva sem estragar demasiado aquele
corpo de sonho. Mas a pequena, apesar do terror, encontrara forças
para dizer outra vez não, mesmo quando a corda lhe mordia os punhos
brutalmente puxados para trás. No fundo do inferno onde se sentia
mergulhar, evocara o rosto daquele que amava há tanto tempo e pelo
qual sempre recusara entregar-se, sempre e sempre.
E, subitamente, o inacreditável acontecera: alguns homens armados
e de rostos negros tinham irrompido na sala e à cabeça um de rosto
limpo que o seu coração reconhecera antes dos olhos desvairados. Em
seguida, caíra e, na sequência dos aconteci- mentos, não vira nada, não
soubera nada, não retivera nada, arrastando-se interminavelmente ao
longo de um túnel ardente povoado por figuras horríveis e que não
parecia querer jamais terminar...
Até ao dia em que o túnel explodira, em que as brumas se
rasgaram, em que os objectos e as formas recuperaram contornos
nítidos, em que, finalmente, abriu os olhos.
Estava deitada numa cama branca, dentro de umas cortinas verdes
de que não se recordava. Tentou levantar-se e não conseguiu devido à
fraqueza, mas ao deixar-se cair de novo na almofada emitiu um suspiro,
que atraiu de imediato o rosto da sua avó. Um rosto mudado, de rugas
mais profundas, de olhos avermelhados por causa das lágrimas, mas
que sorriu:
- Minha pequenina! Dir-se-ia que me estás a ver?
- É evidente que vos vejo, avozinha... Onde estamos?
- Em Passiacum, em casa da pobre Bertrade! Oh, meu Deus, vou
prevenir os teus pais!
A anciã afastou-se do leito, dirigiu-se para a escada e chamou.
Alguns segundos mais tarde estavam todos em redor dela: a mãe, o pai,
o irmão e também Margot, a criada, chorando todos de alegria e
agradecendo ao Senhor e a Nossa Senhora...
Foi um momento de grande intensidade, verem-se todos sob o
mesmo tecto, apesar de não ser o de Montreuil, que foi preciso dizer-lhe
que já não existia, e de pertencer a Bertrade. Aude sabia do seu destino
trágico. Temendo que a sua simples evocação provocasse uma recaída,
abstiveram-se de lhe falar dela, mas a jovem foi a primeira a fazê-lo
porque sentia a necessidade, pelo contrário, de extirpar, através das
palavras, as imagens terríveis que a família escutou aterrada até ao fim,
quando a jovem disse que a tinham atirado ao rio como um pedaço de
carne podre.
- ... ela, que devia repousar a esta hora junto do marido em terra
cristã!
- Ela está em terra cristã - tranquilizou-a Machieu. - Os que te
salvaram repescaram o saco e trouxeram Bertrade para aqui, onde a
sepultamos como deve ser.
- Oh! Bendito seja Deus pela sua compaixão! Mas... aqueles que me
acudiram, quem são?
- Um bando de estudantes e mendigos comandados por um tal
Pedro de Mantou e, sobretudo, pelo nosso amigo Olivier - respondeu
Remi. Foi ele que te trouxe, juntamente com o corpo da tua querida tia.
Apesar de pálida, Aude corou. Numa alegria misturada com alguma
vergonha por pensar que ele a vira nua, exposta aos olhares daqueles
homens maus como uma rapariga pública. Mas, agora, não lhe inspiraria
outra coisa senão uma piedade misturada com um certo desdém pelo
seu aviltamento. Era verdade que se sentia feliz por ter sido ele a
arrancá-la às garras do Cabeçudo e às dos seus carrascos, mas talvez
ele tivesse feito o mesmo por outra mulher qualquer, como o exigiam as
leis da cavalaria e, na melhor das hipóteses, salvara a filha de Machieu,
uma rapariga chamada Aude, a quem nunca ligara importância. No
entanto, a jovem perguntou onde ele estava e se seria possível
agradecer-lhe...
- Estamos à espera do seu regresso, tal como ele prometeu - disse
a velha Matilde. - Ele quis, o que é natural, acompanhar messire
d'Aulnay, que foi saber dos sobrinhos e da mulher do infeliz Gautier, que
Madame Margarida ousou amar...
Margarida! O seu nome atingiu Aude como uma flecha porque, no
momento em que o ouviu, a jovem apercebeu-se de que, concentrada no
seu próprio drama, a tinha esquecido por completo. Era incrível! Como
era possível, já que a sua última imagem era ao mesmo tempo tão
terrível e tão orgulhosa? O momento em que a carroça negra a levava
para longe da imunda carnificina de Pontoise. As duas outras princesas
tinham ficado fulminadas pelo espectáculo, mas ela não baixara por um
único instante a bela cabeça rapada e o rosto lívido onde não se via uma
única lágrima. O seu olhar autoritário impusera um silêncio aterrorizado a
uma multidão sempre pronta a odiar quem invejava...
- Ela deu-me o seu belo manto branco com a fivela de rubis! -
pensou Aude em voz alta - e disse-me que o guardasse para lho
devolver quando regressasse, mas já não o tenho. Ficou no solar de
Nesle... e nunca mais lho poderei devolver... - Acreditas que ela poderá
regressar um dia? - murmurou a sua avó, pegando-lhe na mão. - O Rei
nunca lhe perdoará e o marido odeia-a...
- E a prisão de Château-Gaillard é bem má - grunhiu Machieu, de
olhar sombrio: uma fortaleza construída por Ricardo de Inglaterra para
proteger a sua Normandia!
Fortaleza essa que ele não conservou por muito tempo, porque o
nosso grande Rei Filipe, o Augusto, lha tirou, mas que nunca melhorou.
É um montão de pedras enormes, de vigas pesadas e correntes de ferro.
Os quartos do torreão não passam de masmorras húmidas, talvez
suportáveis no Verão, mas mortais no Inverno. Sobretudo os do alto,
onde os ventos gelados entram como em casa deles... Umas mulheres
jovens e delicadas, habituadas à doçura de casas aquecidas e providas
de leitos de penas, com cobertores quentes e almofadas, não resistirão
durante muito tempo! Sobretudo sem uma lareira!
- Conhecei-lo, meu pai?
- Estive em Petit-Andely, há três anos, para examinar o campanário
da igreja. No albergue apareceram alguns arqueiros do castelo e foram
eles que o descreveram...
- Meu Deus! - gemeu Aude, juntando as mãos. - Isso quer dizer que
Madame Margarida e Madame Branca vão morrer de miséria e de frio?
- Mais ou menos! Elas cometeram um grande pecado, é preciso
dizê-lo, mas uma espada bem afiada, num cadafalso, teria sido menos
cruel do que aquela morte lenta.
- E ninguém lhes pode valer, evidentemente?
- Só Deus! Ele terá de atender, antes do Inverno, à maldição de
mestre Jacques, e que o Rei morra.
- Sim, mas suceder-lhe-á o malvado do filho.
- Sem dúvida. Mas Madame Margarida, quer ele queira, quer não,
será Rainha de França. A Igreja não aceita a anulação do casamento por
adultério, nem sequer o de um rei. Ele terá, forçosamente, de contar com
ela.
- No sítio onde ela está? Oh, meu pai, como podeis acreditar nisso?
Ele mandá-la-á matar discretamente. E eu, que queria tanto que ela
vivesse!
- Parece gostares muito dela?
- É verdade. Foi uma verdadeira felicidade servi-la, tratar-lhe dos
vestidos. Ela agradecia com tanta gentileza. Sim, gosto muito dela e
lamento muito o que lhe aconteceu...
Machieu levantara-se para lhe beijar na fronte:
- Vamos, não desesperes! É dever dos homens de bem seguir os
desígnios do Senhor...
- Que quereis dizer?
- Nada que possas compreender. Pensa em pôr-te boa! Aude
seguira o seu conselho e, já em pé, fizera questão de que a sua primeira
saída a levasse ao túmulo de Bertrade.
A mãe quisera acompanhá-la e Blandine conduzira-as lá.
Na véspera, Machieu e o filho tinham partido para Gentilly. O
mestre-de-obras levava na ideia que era tempo de chamar os seus
homens a si.
Terminadas as orações, as três mulheres dobraram o joelho em
frente do eremita, que as abençoou da soleira da sua gruta e
regressaram à quinta. Seguiam em silêncio saboreando o prazer simples
de caminhar através dos bosques cheios dos cantos das aves devido a
um belo dia de sol. Aude sentia-se apaziguada por ter podido tocar na
terra onde repousava a sua tia e por sabê-la sob a protecção daquele
ancião hisurto e malcheiroso, mas cujo olhar irradiava tanta luz e
compaixão... Um bálsamo para as feridas da alma!
Quando chegou à quinta, no entanto, a sua serenidade nova sofreu
uma fissura. A sua avó, que tinham deixado no pomar à sombra de uma
macieira, olhava friamente para um homem gordo de capuz de veludo
castanho, ricamente vestido com uma pequena túnica da mesma cor
bordada a seda mais escura e que ia e vinha de um lado para o outro na
sua frente com as mãos atrás das costas, proferindo palavras que as
recém-chegadas não perceberam com clareza. Enquanto caminhava,
dobrava de vez em quando os joelhos, talvez para os desentorpecer, o
que lhe dava um ar ridículo, e a jovem desatou a rir. De imediato, ele
cessou a sua ginástica para olhar para as três recém-chegadas.
- Bem! Aí está o resto da família! Devia calcular que esta velha não
podia viver aqui sozinha!
- Eu nunca disse tal coisa - ripostou Matilde. E gostaria de saber
para onde foram as vossas boas maneiras! Velha! Isso é maneira de
falar a uma dama?
-Dama? Érei-lo, sem dúvida, em casa do vosso filho, em Montreuil,
mas agora já não sois grande coisa, já que ele é um fugitivo e vós
ousastes refugiar-vos nesta casa que me pertence, visto que a minha
querida tia já não é deste mundo. E tendes a audácia de me perguntar o
que venho fazer aqui? Tomar posse, muito simplesmente - ladrou ele.
- Como a perspectiva de uma herança muda um homem! Conheci-
vos mais polido e mais amável, mestre Imbert!
A personagem era, de facto, Gontram Imbert, o retroseiro, sobrinho
por afinidade de Bertrade. E a observação acerba de Matilde era
plenamente justificada: até ao presente, a família de Machieu conhecera
- pouco, aliás! - o gordo retroseiro da rue Quiquenpoist como um homem
afável e sorridente. Bertrade mostrara-se satisfeita depois da morte do
marido, quando os bens tinham sido partilhados entre ambos: ele
recebera o frutuoso comércio da praça, na Galerie Mercière do Palácio,
que fazia dele um dos comerciantes mais ricos de Paris e ela os
restantes bens, entre os quais um anexo - que ela lhe cedera dois anos
antes para que ele pudesse aumentar a sua casa! - e a Quinta das
Abelhas. E eis que naquele dia ele lhes caía em cima deitando fogo pela
boca! Talvez devido à surpresa, já que não esperava, certamente,
encontrar a casa ocupada...
- Eu sou como sou! E isso só a mim diz respeito!
- A nós também, penso eu! - disse secamente Juliana, aproximando-
se e olhando-o de frente. - E, antes de mais, quem vos disse que a
minha irmã tinha morrido?
- O pessoal do solar de Nesle, de onde venho! Fui lá, preocupado
com os rumores sobre o que lá se passava depois do assunto das
princesas e queria falar com ela, saber qual era a posição dela. Aliás,
não era a primeira vez que a ia ver e pensava já ser conhecido, mas o
intendente - um homem que nunca tinha visto! - quase me pôs fora
dizendo que Bertrade tinha ofendido gravemente monsenhor Luís de
Navarra e que este, num movimento de cólera, lhe tinha batido... com
um pouco de força de mais, talvez, e que ela tinha morrido. Quando lhe
reclamei o corpo, ele troçou, dizendo que o pessoal do príncipe se tinha
encarregado do funeral. Mandou buscar ao andar de cima um pacote de
roupas velhas que lhe pertenciam - as novas devem tê-las dividido entre
si! - e meteu-mo nos braços dizendo que me contentasse, que ficasse
caladinho se não queria ter problemas e que fosse à minha vida! A mim,
Gontran Imbert, mestre retroseiro, com loja conhecida e homem com
grande reputação e grande experiência!
- Não é segredo para ninguém! Por que não fostes queixar-vos ao
Rei? Sois um grande burguês e ele gosta das pessoas como vós.
- Eu? Ir... nos tempos que correm, tão incertos? Era preciso que
fosse doido. Eu... eu já mal consigo aguentar o olhar do Rei quando ele
passa na Galerie Mercière e assim...
- Preferistes vir aqui! Pergunto a mim própria porquê!
-Já vo-lo disse: entrar na posse daquilo que me pertence... e
enterrar o pacote de farrapos que vedes em cima da minha mula. Podia
tê-lo deixado num sítio qualquer, mas perguntei a mim próprio se não
seria...
- Achais melhor pôr a mão naquilo que nunca vos foi destinado? Os
bens da minha irmã vão para a minha filha que aqui vedes. Esta casa,
pelo menos, que ela sempre disse pertencer-lhe...
- É preciso que esteja registada no notário! Ora, eu não acredito. É
lamentável, mas como esta quinta era do meu tio, é normal que fique
para mim!
-Já consultastes o notário?
Pela pequena veia que lhe pulsava na testa, via-se que Juliana
lutava contra uma cólera cada vez maior e que lhe custava manter a
calma perante aquela figura balofa e hipócrita, aquele estafermo muito
senhor de si. A dama sentiu vontade de o esbofetear quando ele disse
com um sorriso finório:
- Achais que é necessário? O vosso marido e o vosso filho
colocaram-se fora da lei, dama Juliana e, como tal, o mesmo acontece
convosco e os vossos bens. Já não tendes nada, portanto, e peço-vos
que vos lembreis que me basta subir lá acima, ao castelo, para que
venham desalojar-vos.
Matilde lançou um grito de indignação e Juliana, com a garganta
seca, não encontrou que dizer. Então, foi Aude, que se intrometeu: a
jovem colocou-se entre a sua mãe e o retroseiro, qual Nemésis loura,
com os olhos chamejando de cólera:
- É preciso serdes um miserável para ousar ameaçar umas
mulheres que pertencem à vossa família e sobre quem se abateu a
infelicidade e para vos aproveitardes da sua triste situação!
- À minha família? Só porque a vossa tia se casou com o meu tio?
Não me parece que seja assim! Em todo o caso, como parece que
aquela pobre Bertrade... assim como vós mesma, estavam ao serviço de
uma puta, que está agora a apodrecer numa masmorra, felizmente...
A bofetada, desferida pela jovem com um vigor inesperado, atirou-
lhe a cabeça para trás e deixou-lhe no rosto a marca dos dedos. O
homem quase caiu, mas conseguiu equilibrar-se e disse, furioso:
- Vais pagar-mas, minha querida... E vou dizer-te como! Eu quero
que fiqueis aqui, tu e as tuas velhas, mas para serdes minhas criadas...
e a ti, vou meter-te na minha cama! - guinchou ele, de olhos esgazeados
e dentes cerrados, antes de correr o mais rapidamente que lhe
permitiam a massa e as pernas curtas na direcção da sua mula, da qual
tirou o pacote que atirou por terra.
Em seguida, içando-se para o animal, berrou:
- Vais arrepender-te, putéfia! Eu volto amanhã... e acompanhado!
Vou deixar aqui alguns homens para vos mostrar quem é o senhor!
Senão...
O som de uma trompa interrrompeu-o e em vez de esporear a mula,
reteve-a, estendendo o ouvido enquanto um grande sorriso se lhe
espelhava no rosto:
- Dir-se-ia que não é preciso! Este som quer dizer que monsenhor
Filipe vem repousar um pouco no seu solar de Passiacum...
- Pensava que tínheis medo" dele? - lançou Matilde, desdenhosa.
Ele desatou a rir, ao mesmo tempo que punha a montada em
marcha.
- Isso era dantes! Se recusardes as minhas condições, não terei
pejo em vos denunciar. Tanto mais que terei o cuidado de não ir só! Até
amanhã...
Com um gesto de despedida,, Imbert avançou para a entrada da
quinta que, de regresso do bosque, as três mulheres não tinham tido a
preocupação de fechar, mas não a transpôs: estava lá um homem, sujo
e cheio de poeira, mas cuja estatura lhe arrancou um soluço. De pernas
afastadas e braços cruzados, o desconhecido esperava-o e este nem
teve tempo de lhe gritar para se afastar: em três passadas, Olivier estava
em cima dele. Arrancou-o da sela e atirou-o por terra, onde o homem
perdeu o barrete.
- Por que esperar? - grunhiu ele. - Vamos lá imediatamente!
Debruçando-se, o cavaleiro agarrou na gola da bela túnica bordada
do retroseiro para o pôr de novo na vertical e obrigá-lo a caminhar na
sua frente. Com a outra mão, desembainhou a faca, cuja ponta ficou
encostada aos rins de Gontram.
- Messire! - gritou Juliana, assustada. - Que ides fazer? Será a
nossa perdição!
- Não creio! Chegou a hora de saber o que vale a justiça de Filipe.
Juro-vos que, se alguém perder, será este porco gordo! E eu também,
talvez, mas vós não podeis continuar a viver, como mulheres sós -
acrescentou ele, sublinhando o "sós" - com esta ameaça sobre as
vossas cabeças. Se eu não regressar, tomai algumas precauções...
- É boa ideia! - arrotou Imbert. - Porque eu também vou falar e o Rei
ouvir-me-á melhor do que a um pé descalço. Eu sou um burguês de
Paris...
- E eu sou cavaleiro! O meu nome é Olivier de Courtenay! E o Rei
também é cavaleiro! E agora, toca a andar!
- Esperai, Messire - disse Margot, a criada, que nunca ninguém
ouvia porque, aparentemente, nunca tinha nada para dizer. - Como
precaução, levai isto! Eu ajudo-vos.
A serva tinha uma corda nas mãos e com ela atou fortemente os
punhos do retroseiro e como este gritasse injúrias, ela enfiou-lhe na boca
o esfregão que tinha à cintura do seu avental. Em seguida, Margot
ofereceu a ponta da corda a Olivier com uma pequena reverência:
- Assim ides mais comodamente!
- Obrigado, Margot! - sorriu Olivier. - Velai pelas nossas damas... e
dizei adeus a... todos os que me são queridos!
- Não! Adeus não! Ou, então, permiti-me ir convosco, porque era a
mim que esse vilão queria sujar! Eu saberei falar ao Rei, espero -
exclamou Aude, que seguira Margot.
- Não sei. O Rei, agora, desconfia das mulheres, sobretudo se são
muito belas... como vós! Não, eu vou lá sozinho. Só quero que possais
morar aqui em paz com a vossa mãe, a vossa avó e com a boa Margot,
guardadas pelo bravo Aubin e por Blandine... como tendes feito desde a
vossa infelicidade. Que, pelo menos, tenhais o direito de viver
tranquilamente!
O cavaleiro falava sublinhando ligeiramente as palavras e fixando os
olhos desvairados da jovem, para que ela compreendesse bem a sua
intenção: ninguém da aldeia, até ao presente, se apercebera da
presença de homens e era uma sorte Machieu e o filho não estarem ali
naquele dia. Era preciso aproveitar.
- Viver tranquilamente? Quando vós ides a caminho da vossa
perda? Oh, sire Olivier, só vos vejo quando vos ides afastar de mim?
O cavaleiro teve um sobressalto, como se tivesse sido ferido:
- Isso é assim tão importante para vós? - murmurou ele com voz
rouca.
- Mais do consigo explicar.
Compreendendo que estava quase a confessar tudo, a jovem corou,
subitamente envergonhada de um comportamento tão contrário à
modéstia e até ao pudor que podia ser motivo de desprezo, ela, uma
filha do povo que ousava levantar os olhos para ele, um cavaleiro... um
templário! Então, fugiu na direcção da casa a correr, com os ombros
sacudidos por soluços. Se ela se tivesse virado, talvez o olhar com que
Olivier a acompanhava lhe tivesse adoçado a dor. Este estava cheio de
mágoa, mas também tinha uma luz de que o cavaleiro não tinha
consciência e que ela de felicidade.
- Ela ama-vos... - dissera Bertrade às portas da morte e Olivier,
perturbado, começava a pensar que a dama não delirava, que podia ser
verdade... Mas, de momento, tinha mais que fazer do que sonhar com o
impossível: por exemplo, fazer com Gontram Imbert pagasse a sua
vilania. O seu sangue entrou de novo em ebulição ao pensar no que
aquele suíno lúbrico poderia fazer àquela criatura tão delicada e teve
vontade imediata de o matar! Seria tão simples!... Simplesmente,
executar um homem reduzido à impotência, por mais odioso que fosse,
estava fora do espírito de Olivier. O templário enrolou a ponta da corda
em redor do punho, passou esta sobre o ombro e puxou:
- Toca a andar! Chegou a hora de pôr em ordem a tua vida, assim
como a minha...
A bandeira das flores-de-lis mal mexia no topo da única torre sem
fosso. Com dois muros ameados encostados a si, que encerravam a
capela e se juntavam numa pequena barbacã, tal era o castelo de
Passiacum. Habitualmente, era um local extremamente tranquilo. O
castelão, o velho cavaleiro de Fourqueux, fazia ali reinar uma certa
disciplina entre os seis ou sete arqueiros que compunham a guarnição
na expectativa das - raras - visitas reais e já teria morrido certamente de
tédio sem as partidas de xadrez com o capelão, as copiosas refeições
que ambos partilhavam e as incessantes recordações dos seus feitos
guerreiros. O cavaleiro temperava bem as ditas refeições, mas isto
compensava aquilo e o capelão era comilão. Vivia-se ali uma vida
isolada, sem outra manifestação exterior que não a do sino da capela
marcando as horas canónicas.
Naquele dia, o solar estava bem acordado. Ao aproximarem-se da
entrada, Olivier e o seu prisioneiro viram dois arqueiros perto da grade
levantada e aperceberam no pátio alguns sargentos reais que, armados
de paus com a flor-de-lis vigiavam a descarga das bagagens.
Naturalmente, cruzaram-se duas bisarmas à sua aproximação, ao
mesmo tempo que um dos guardas dizia, rindo:
- Onde é que pensas que vais, homenzinho? Se é um ladrão de
galinhas que trazes a messire de Fourqueux, ficas a saber que ele não
tem tempo para ti. Como podes ver - acrescentou ele, designando o
rebuliço no interior - o nosso sire chegou.
- É justamente o Rei que eu quero ver!
- Deves ser maluco! Quando ele vem para aqui, vem habitualmente
com uma escolta reduzida e é proibido incomodá-lo. E esse que trazes
aí preso a uma corda, quem é?
- É meu prisioneiro, como vedes e é precisamente ele que eu quero
apresentar ao Rei. O nosso sire vai achá-lo interessante. E não tenciono
discutir convosco...
- Nesse caso, segue o teu caminho!
- Não. Continua a ser messire Alain de Pareilles o comandante da
guarda?
- Sim. Mas...
- Ide pedir-lhe o favor de vir aqui!
O homem hesitou. No entanto, emanava uma força daquele
desconhecido modestamente vestido e que parecia vir de longe. Uma
força que tinha a ver com a maneira como ele mantinha a cabeça direita,
uma bela cabeça asceta e orgulhosa, com a sua voz grave com inflexões
que diziam que não se tratava de um camponês nem de um homem do
povo.
- Quem sois?-perguntou o guarda, suficientemente impressionado
para abandonar o tratamento por tu.
- Di-lo-ei a messire de Pareilles!
Dessa vez, o soldado, arrastando consigo a sua arma, dirigiu-se ao
pátio de onde regressou pouco depois escoltando um oficial de grande
estatura cujo rosto severo nunca devia reflectir a menor emoção. Por
baixo do chapéu de ferro, as sobrancelhas espessas e grisalhas
abrigavam um olhar quase tão imóvel como o do seu senhor.
- Que quereis? - perguntou ele sumariamente.
- Obter justiça para inocentes maltratadas. Justiça verdadeira! A do
Rei, que prestou juramento de cavalaria! Não a do sire de Nogaret! O
homem que trago comigo é um criminoso...
- A sério? Como vos chamais?
- Olivier de Courtenay. E este é Gontran Imbert, retroseiro em Paris.
- Curioso acompanhamento para um retroseiro! É verdade que a
túnica dele é bonita...
- ... e eu estou mal vestido. Mas não deixo de ser quem afirmo... e o
Imperador Balduíno de Constantinopla foi meu padrinho.
O tom era calmo, mas com orgulho de raça. E Alain de Pareilles
conhecia os homens. Aquele trazia propósitos demasiado grandes, mas
também trazia um porte demasiado grande para não ser verdadeiro.
- Segui-me! Vou ver o que posso fazer... mas, por que amordaçastes
esse...?
- Para que ele não me dê cabo dos ouvidos! Nem vos passa pela
cabeça o repertório que esta mordaça evita que saia da boca dele...
Os lábios delgados do capitão esboçaram um vago sorriso, mas não
fez qualquer comentário. Seguindo-o, Olivier e Imbert atravessaram o
pátio e chegaram aos degraus que davam acesso à torre. Antes de
entrar nela, no entanto, Pareilles deteve-se.
- Não tenhais muita esperança! O nosso sire Filipe está hoje de
muito mau humor. Arriscais-vos a pagar caro a audácia.
- Só tenho a vida para perder. Tem pouca importância, na condição
de este indivíduo também deixar aqui a dele!
Enquanto esperavam junto da porta, alguns servidores subiam com
arcas ou desciam de mãos vazias. Enquanto esperava, Olivier rezou. O
cavaleiro sabia que o golpe era ousado e do qual tinha poucas hipóteses
de sair vivo, mas não era por si mesmo que ia defrontar o temível Filipe,
era para que pudessem viver tranquilamente, numa casa a que tinham
pleno direito, umas mulheres corajosas que ele respeitava e, sobretudo,
aquela jovem tão bela, a quem Imbert fazia correr um perigo de morte.
Ao pensar naquele corpo encantador entregue a... O templário teve
um sobressalto, esforçou-se por continuar a oração que se interrompera
de uma maneira tão singular, sentiu-se invadido pela vergonha e
apressou-se, com a ajuda de uma Avé-Maria, a chamar em seu socorro
a Mãe de todas as virgens.
O remédio não teve tempo de agir. Pareilles estava de regresso:
- Vinde! - disse ele. - Mas, primeiro, dai-me a vossa faca... e o vosso
prisioneiro. Eu encarrego-me dele! Quanto a ti - acrescentou ele virado
para o retroseiro - vou-te tirar a mordaça, mas aconselho-te a ficares
calado. Senão, dou-te um murro! Compreendido?
Rolando uns olhos esgazeados, Imbert abanou penosamente a
cabeça e não disse uma palavra, quase estrangulado pelo medo e
amaldiçoando a triste ideia que tivera em precipitar-se para Pas- siacum
para se apoderar da propriedade da defunta Bertrade! Podia ter
esperado e fazer valer os seus direitos, como era de lei, pelo notário;
mas aquela rapariga excitava-o e, agora, tinha de se explicar perante um
soberano que possuía o dom de pôr toda a gente pouco à-vontade, A
excepção, se calhar, dos irmãos.
Por seu lado e apesar da sua determinação, Olivier também sentia
uma certa angústia quando entrou na sala onde o Rei se mantinha de pé
no profundo vão de uma janela, olhando para o exterior com ar ausente.
Não era a primeira vez que o cavaleiro o via, mas nunca sentira aquela
estranha impressão de encontrar face-a-face com um ser de excepção, a
própria encarnação do poder real. As estátuas nas portas das catedrais
que ele sabia agora modelar - se bem que não igualasse a arte de Remi!
- pareciam-lhe mais vivas do que aquela figura alta e cinzenta no
extremo do que lhe pareceu um interminável caminho, ao longo do qual
foi conduzido pelo capitão da guarda. E nunca, de facto, lhe vira aquele
rosto sem cor, aquela expressão sinistra.
Chegado sem saber muito bem como ao fim daquele deserto mal
aquecido pelo calor de uma tapeçaria, o templário dobrou o joelho
enquanto Pareilles os anunciava, a ele e ao seu vil companheiro. Filipe,
o Belo, sem sequer virar a cabaça, deixou cair:
- Courtenay? De que ramo?
- Da Terra Santa, sire! O ramo que, no tempo dos primeiros Reis
francos de Jerusalém, reinava em Edessa e em Turbes sei!...
O vento dos mares azulados e dos desertos ardentes entrou, talvez,
na abóbada de pedra perante o enunciado daqueles nomes de prestígio.
A imagem imóvel da majestade real animou-se e os olhos azuis gelados
pousaram-se em Olivier:
- Ignorava que ainda existissem. Explicai-vos!
- O meu avô, Thibaut, criado com o Rei Balduíno IV...
- O Leproso?
- Sim, sire. O meu avô, como disse, além de viver com ele no
palácio da Torre de David até à morte sublime do Rei, foi seu escudeiro e
amigo fiel. O meu pai, Renaud, serviu o Rei São Luís como escudeiro de
monsenhor d'Artois durante a sua primeira cruzada. A minha mãe
chamava-se Sancie de Signes. Foi ter com Deus há sete anos e, quanto
ao meu pai, não sei se ainda está vivo nas suas terras da Provença.
- Tendes irmãos?
As palavras caíam da boca altaneira, tão frias como num tribunal;
mas Olivier, ao falar dos que amava, sentia dissipar-se o mal-estar:
- Eu nasci tarde. Depois do meu nascimento, a minha mãe nunca
mais pôde ter filhos.
- Sois casado, suponho, porque já não sois jovem, e se sois o último
de uma linhagem tão nobre...
A ponta de ironia, mesclada de desdém, não escapou a Olivier. O
cavaleiro sentiu que, à vista da sua farpela, que não evocava nada da
sua nobreza, o Rei não acreditava nele.
- Não, sire, e foi esse o grande desgosto da minha mãe.
- Porquê?
Chegara o momento crítico. Olivier não recuou. Preparara-se para
mentir a fim de preservar a família de Machieu, mas não a sua própria
vida. A sua franqueza permitir-lhe-ia, talvez, antes de morrer, arrancar a
salvaguarda de Juliana, de Aude, de Matilde e de Margot. Com a
espinha mais rígida do que nunca, manteve os olhos abertos, não
pestanejou ao responder:
- Escolhi o Templo, sire, para glória das armas do serviço de Deus
Todo-Poderoso...
- O T..J E ousais dizer-mo na cara?
No seu canto, Gontran Imbert emitiu um pequeno soluço. O que
acabava de ouvir significava o fim de todas as esperanças, mas Olivier
continuou:
- Por que não, se é a verdade? A honra exige que se diga a verdade
ao Rei e eu não temo as consequências!
- A sério?
- A sério. A minha vida não tem qualquer importância.
- Vamos ver. Messire Alain... ponde este homem a ferros... enquanto
espera por dias melhores!
Pareilles não se mexeu. Preparava-se, talvez, para dizer qualquer
coisa quando Olivier se lhe antecipou. O cavaleiro dobrou de novo o
joelho.
- Que, por favor, o Rei me conceda ainda um minuto e queira
lembrar-se que vim aqui pedir-lhe justiça! Depois, poderá fazer de mim o
que quiser.
- Não vos falta audácia!
- Eu sou cavaleiro, sire... e é ao mais iminente de nós todos que o
peço, em nome da Regra inflexível que jurámos no dia em que somos
armados: proteger os fracos...
- Seja! Falai... mas despachai-vos!
- Numa quinta aqui próxima vivem quatro mulheres que perderam
tudo. Encontraram refúgio em casa da dama Bertrade Imbert, irmã de
uma delas, que estava ao serviço da Rainha de Navarra...
- Há certos nomes que não gostamos de ouvir pronunciar!
- Que o Rei me perdoe, mas não posso evitar esse. Como as outras
damas-de-companhia dessa princesa, a dama Bertrade, depois de ter
sido torturada pelo príncipe Luís no seu solar de Nesle, foi metida num
saco e atirada ao rio. A sua sobrinha, uma jovem pura e demasiado bela
para sua infelicidade, quase teve o mesmo destino. No seu caso, porque
se recusava a ir para a cama do príncipe...
- Como é que sabeis isso?
- Eu estava lá, sire. Com alguns companheiros, libertamos os
prisioneiros de monsenhor Luís.
- Ah, éreis vós? Decididamente, a vossa audácia não conhece
limites, mas prossegui! O vosso caso agrava-se a cada instante que
passa!
Para o que ia dizer a seguir, Olivier preferiu levantar-se.
- Mais uma vez, não tem importância. O Rei fará de mim o que
quiser, mas que queira aceitar estender a sua mão soberana sobre
aquelas infelizes que, no seu asilo, foram, esta manhã, ameaçadas do
pior por este homem - continuou ele, apontando para Imbert. - O
sobrinho do defunto retroseiro teve conhecimento da morte da dama
Bertrade e veio tomar posse de um bem que ela destinava à sua
sobrinha e afilhada. Perante a sua recusa, ele prometeu regressar em
força para as submeter, fazer delas suas criadas e saciar os seus
instintos na jovem! É por isso que reclamo justiça! O Rei, na sua
sabedoria, aboliu a servidão e como não estamos em Roma, nenhum
burguês tem o direito de reduzir os seus semelhantes a uma escravidão
vergonhosa!
O olhar curiosamente cintilante de Filipe virou-se para o retroseiro,
ao mesmo tempo que, com um gesto, ordenava que o levassem até
junto de si. Por um instante, Olivier pensou que tinha ganho a partida, de
tal modo Imbert parecia aterrorizado; mas o retroseiro, apesar do terror,
encontrou a energia necessária para reagir e a sua voz agreste fez-se
ouvir:
- Perguntai-lhe, sire, quem são as tais mulheres? Nem mais nem
menos do que a mãe, a mulher, a filha e a criada de Machieu de
Montreuil, o mestre-de-obras de Notre-Dame, procurado pela vossa
justiça...
- É verdade?
- É, sire, e eu queria trazer-vo-las para que as torturásseis e
confessassem, assim, onde está escondido aquele miserável e...
O soco que Alain de Pareilles lhe assentou cortou-lhe a palavra e
atirou-o por terra:
- Nunca vi ninguém tão vil, sire!- desculpou-se o capitão. - Foi mais
forte do que eu!
Durante um segundo, Olivier teve a impressão de que a sombra de
um sorriso tinha passado pelo rosto de mármore:
- Porque sois um homem honesto, messire Alain! Ide pôr esse
homem a ferros! E regressai!
Erguido rudemente do chão, o retroseiro foi arrastado, mais do que
conduzido, bufando como um gato furioso. Após a sua partida, o Rei
pareceu esquecer Olivier. Filipe pôs-se a olhar de novo para o exterior,
onde um sino tocava às Avé-Marias. O monarca benzeu-se, rezando,
sem dúvida, num silêncio que se eternizou. Olivier ajoelhou de novo para
o acompanhar, mas levantou-se quando Filipe se aproximou dele:
- O que disse aquele miserável é verdade?
- É, sire. Machieu de Montreuil morreu, assim como o filho. É por
isso que quero proteger a sua família: mulheres boas, que nunca fizeram
mal a ninguém.
- Como é que o conhecestes?
- No tempo de São Luís, o meu pai conheceu Pedro de Montreuil
quando ele estava a construir a Sainte-Chapelle e os laços de amizade
nunca foram rompidos. Além disso, sobrevivi às grandes detenções
graças a mestre Machieu...
- Às quais pareceis ter escapado. Como foi isso possível?
- Eu tinha como missão deslocar-me ao Templo de Londres com o
meu habitual companheiro e estávamos em plena viagem quando tudo
aconteceu. De regresso a Paris, encontrei Machieu e ele escondeu-me.
- Foi assim que conhecestes essas mulheres?
- Mal as conhecia. Vivia afastado delas: a regra da Ordem proíbe-
nos que durmamos sob o mesmo tecto que uma mulher. Mas vivi em
casa de Machieu durante sete anos...
e Machieu fez de mim um escultor.
- Um escultor? Vós, um cavaleiro?
- Oh, sem grande talento, mas é bonito transformar a pedra no rosto
de um santo... Também é servir a Deus. De outra maneira!
- Por que razão não regressastes à Provença?
- Eu pertencia ao Templo de Paris. Além disso, o meu pai, já idoso,
já não deve estar vivo. E se morreu antes das detenções, os seus bens
reverteram para o Templo e agora...
Ao evocar Renaud, Olivier esqueceu por instantes a sua situação
crítica. A pergunta seguinte, tão gelada e seca como as anteriores,
acordou-o.
- Portanto, estais em casa de Machieu! Tomastes parte na rebelião
dele?
Chegara o momento tão temido. Olivier preparara-se para ele, mas,
no entanto, demorou algum tempo a responder, sabendo que o que
dissesse seria tão pesado como a espada do carrasco, mas jurara dizer
a verdade, da qual só se afastara ao afirmar que Machieu e Remi tinham
desaparecido para sempre.
- Então? - impacientou-se Filipe. - Tendes medo de responder, ou
procurais uma verdade diferente?
Aquelas palavras atingiram Olivier como um chicote. O cavaleiro
empertigou-se:
- Eu fui um dos que tentou libertar o Grão-Mestre e o Preceptor da
Normandia. Mas eles recusaram, preferindo uma morte abominável...
- Tal como vós acabais de escolher a vossa!
Olivier sentiu um nó na garganta e, por um instante, o cavaleiro
fechou os olhos, mas reabrindo-os quase de imediato ao sentir a mão do
capitão no ombro. O templário já se virava para o seguir depois de se ter
inclinado perante aquele que o condenava, quando ouviu:
- Ides comparecer perante os juizes... mas as mulheres que
defendestes não serão incomodadas e ficarão com a casa que ocupam!
Então, mais uma vez, Olivier dobrou o joelho:
- Que a bênção de Deus esteja com o Rei! Já posso, agora,
defrontar-me com messire de Nogaret e morrer feliz!
- Messire de Nogaret morreu a noite passada!
A notícia atordoou Olivier, mais do que a sentença. A disposição
sombria do Rei, a necessidade que tivera de se retirar naquele pequeno
castelo de aldeia, menos afastado de Paris do que Mau-buisson,
explicavam-se. Depois do Papa, o guardião dos Selos! O ano ainda
estava longe do fim e já dois dos que o Grão-Mestre intimara a
comparecer no tribunal de Deus tinham morrido! Só faltava um, o maior,
mas talvez o mais vulnerável no isolamento arrogante que escolhera
depois da morte da mulher.
Sem dúvida, o Rei pensava que não lhe restava muito mais tempo
antes de responder pelo seu reinado...
Enquanto o conduzia à sua cela, Alain de Pareilles observou:
- Nogaret não foi grande perda para o reino. A sua crueldade fez
muito mal! Se a profecia se cumprir na totalidade, o nosso sire vai
morrer... e o dano será imenso!
Vós éreis templário, não podeis compreender.
- O que os meus irmãos sofrem há sete anos é difícil de admitir, de
facto, e se Nogaret era cruel, o Rei não o é menos.
- Os seus métodos são rudes, mas raciocina como um rei e,
sobretudo, desde a morte da Rainha, proíbe a si próprio tudo o que
possa amenizar a vida de um homem porque assume, sozinho, o peso
do reinado. Ele é a França, vede lá, e decidiu impedir que o Templo,
demasiado poderoso, pudesse ditar a sua lei... Se morrer antes do fim
do ano, terá tido, mesmo assim, razão! Nas mãos do Templo, o
Cabeçudo seria um brinquedo...
- Ainda restaria messire de Marigny, que é coadjutor e dirigente do
reino. Ele não foi maldito, que eu saiba?
- Não, mas à excepção de monsenhor de Poitiers e de monsenhor
d'Evreux, todos os grandes o detestam porque é de baixa condição
social e o nosso sire tornou-o poderoso.
Não quero ser um mau profeta, mas se o Cabeçudo vier a ser Rei,
será a sua perda... Chegamos à vossa nova casa - acrescentou ele,
mandando um soldado abrir a pequena porta de um espaço reduzido e
mal iluminado por uma seteira onde havia um banco de pedra e um
buraco ao nível do solo para os despejos, mas onde não havia qualquer
corrente. O conjunto estava bastante poeirento, mas estava seco e sem
o menor vestígio de imundícies ou quaisquer detritos, como acontece
habitualmente nas prisões.
Estava ao nível da barbacã, no mesmo andar.
Perante a expressão espantada de Courtenay, o capitão encolheu
os ombros com um ligeiro sorriso:
- É assim! É o que temos! Os prisioneiros são raros neste castelo e
nada está previsto para eles...
- Mas... e o retroseiro?
- Esse? Meti-o numa antiga pocilga: ficará mais fresco! Vou mandar
trazer-vos pão, água e um cobertor...
- Agradeço-vos. Quando serei julgado?
- Ignoro. Dentro de pouco tempo, certamente. O nosso sire não
previu uma estadia prolongada... Coragem!
- Com a ajuda de Deus, espero comportar-me com dignidade
quando for torturado. Suponho que messire de Nogaret deixou alunos
brilhantes?...
Mais uma vez, Pareilles encolheu os ombros com uma careta que
Olivier não conseguiu compreender e sem acrescentar mais nada
abandonou o local.
Só, Olivier estendeu-se no banco de pedra. A fadiga de um dia de
marcha, a que se seguiram os últimos acontecimentos, faziam-se sentir
e como, fiando-se na palavra real, não precisava de se preocupar mais
com as damas da Quinta das Abelhas, fechou os olhos e adormeceu,
acordando apenas quando Alain de Pareilles em pessoa lhe trouxe o que
lhe tinha anunciado, acrescido de uma vela, à luz da qual ele examinou
por instantes o homem adormecido antes de ir dar contas ao Rei.
- Que diz ele? Que faz? - perguntou-lhe este.
- Nada, sire. Dorme.
- Isso é próprio de um homem sábio... ou de uma alma pura. E o
outro?
- O outro geme, chora, protesta a sua inocência e as suas boas
intenções. Creio que tem, sobretudo, medo!
- Talvez tenha razão para isso. Amanhã mandá-lo-eis conduzir ao
Châtelet, onde esperará uma decisão minha.
- E... o...?
O olhar que se fixou nele encheu-o de confusão: ousara fazer uma
pergunta ao Rei, mas estava feita e não se ia pôr a gaguejar desculpas
que só lhe agravariam o caso.
Após um breve silêncio, que suportou de olhos no chão, ouviu:
- Dir-se-ia que gostais dele?
Então, o capitão ergueu os olhos para olhar para o seu senhor.
- Sim, sire. Ele podia continuar a viver escondido e entregou-se para
proteger um grupo de mulheres de uma besta.
- Que ficam agora sem defesa?
- Sim, ele podia ter matado o retroseiro e atirar o corpo dele ao
Sena... Mas preferiu entregar-se à justiça do Rei!
- Mas não deixa, por isso, de ser um rebelde. E, além disso, de uma
rara audácia.
Ao ver fechar-se o rosto de Filipe, Pareilles emitiu um suspiro triste,
mas não acrescentou mais nada, temendo, com um arrazoado inábil e
pouco inspirado, agravar ainda mais a situação do seu protegido.
Pensando que a entrevista estava terminada, saudou para se retirar,
mas o Rei reteve-o com um gesto:
- Mandai-me messire de Fourqueux e o capelão! Que tragam com
que escrever! Em seguida, ficais livre. Não vou precisar de vós esta
noite...
O capitão partiu em busca daqueles que o Rei desejava, efectuou
depois uma ronda meticulosa pelo castelo e, finalmente, pediu o seu
jantar e foi-se deitar.
No dia seguinte, recebeu ordem de levar às habitantes da Quinta
das Abelhas um pergaminho assinado pelo Rei e com o seu selo de cera
verde. O castelão e o capelão de Passiacum também o tinham assinado
como testemunhas. Era a confirmação do direito de herança de Aude
sobre a propriedade da sua defunta tia, proibindo, fosse quem fosse, de
se meter de permeio e de intentar qualquer demanda.
Naquela noite, ninguém tinha dormido na casa no meio do pomar.
Mateus e o filho ainda não tinham regressado. Não houve necessidade,
portanto, de os esconder. As três mulheres, a princípio aterrorizadas com
a chegada do oficial, tranquilizaram-se pouco a pouco ao constatarem
que ele não lhes ia fazer mal, bem pelo contrário, já que lhes levava a
certeza de que ninguém ousaria tentar expulsá-las ou reduzi-las a uma
escravidão degradante. Mas tinham uma outra preocupação, a que a
velha Matilde deu voz:
- Podeis, sire capitão, dizer-nos o que se passou ontem no castelo?
Que aconteceu a...
- O cavaleiro de Courtenay foi preso imediatamente. Não me
pergunteis as circunstâncias da sua detenção, não tenho o direito de as
revelar.
Aude juntou as mãos em frente do rosto e os seus olhos ficaram
rasos de água:
- Na prisão? Que fez ele, para além de nos defender?
- Este pergaminho prova que conseguiu. Mas não deixa de ser um
rebelde e deveis agradecer a Deus por tudo ter terminado em bem para
vós... Se o vosso pai e o vosso irmão ainda estivessem vivos, teria sido
mais difícil... Rezai por ele, é o único conselho que vos posso dar!
- E o outro? - perguntou a velha dama.
- Esse também está detido. Será conduzido amanhã ao Châtelet,
onde esperará o seu julgamento.
- Messire Olivier também vai para lá? - perguntou Juliana.
- Não sei... e aconselho-vos a não sairdes daqui. Não prestaríeis
nenhum serviço a messire de Courtenay se fôsseis ao castelo implorar a
clemência do Rei - continuou ele ao ver acender-se nos olhos da jovem
uma pequena chama que compreendeu imediatamente. - Vós também
estáveis ao serviço de Madame Margarida e, por isso mesmo, sois uma
má recordação.
- Mas eu não estava - interveio Juliana.
- Achais que a mulher de Machieu de Montreuil teria melhor
acolhimento? Acreditai no que vos digo, minhas senhoras! E, deixai-vos
estar quietas! Aliás, pode ser que o Rei parta esta noite...
XII – CONSEQUÊNCIAS DE UM GOLPE AUDAZ

Se um carcereiro improvisado não lhe fosse levar pontualmente


água e alguma comida - mais ou menos boa visto que era a da
minúscula guarnição - Olivier acreditaria que se tinham esquecido dele.
Como a sua prisão se encontrava na barbacã, não perdia nada das idas
e vindas no castelo. Tanto mais que Legris, o seu carcereiro, não via
qualquer inconveniente em conversar um pouco com ele sempre que lá
ia. Assim, o cavaleiro soube que Imbert fora levado para o Châtelet e
que, naquela mesma noite, Filipe, o Belo regressara a Paris.
O cavaleiro bem tentou saber um pouco mais sobre o destino que
lhe reservavam, mas Alain de Pareilles acompanhava sempre o Rei e
não foi vê-lo de novo. Talvez, até, também não soubesse, já que os
desígnios do seu senhor eram, para ele, muitas vezes insondáveis. Com
maior razão ainda para o honesto Legris. Quanto ao cavaleiro de
Fourqueux, não se dava ao trabalho de o ir ver e quando Olivier pediu a
presença do capelão, responderam-lhe que não fora dada qualquer
ordem nesse sentido e que, por isso, não havia razão para o incomodar.
Tanto mais que:
- Vê-lo-eis dentro de pouco tempo, quando fordes executado - disse-
lhe Legris, como que consolando-o. - Ficai descansado, não vos
deixarão morrer sem confissão.
O cavaleiro teve de se contentar e instalar-se numa espera que, em
breve, lhe parecia insuportável porque interminável. Olivier preparara-se
para o pior, uma morte sem dúvida cruel mas rápida, rezando e
esforçando-se não só por renunciar serenamente ao pouco que deixava
atrás de si, mas consolado com a esperança de se juntar, no outro
mundo, aos seus pais e ao seu mestre, Clement de Salernes; e eis que o
deixavam ali, abandonado numa cela, quando teria sido tão fácil acabar
com ele!
Então, veio-lhe à ideia de que talvez aquela espera fosse destinada
a desgastar-lhe lentamente a coragem, já que nada era pior do que a
incerteza para um homem da sua têmpera; mas, nesse caso, deviam tê-
lo atirado para uma masmorra qualquer, obscura e malcheirosa, capaz
de roer os caracteres mais vigorosos, em vez daquela pequena cela bem
seca, limpa e até provida de uma pequena abertura através da qual,
pondo-se em bicos dos pés, podia ver o céu e, ao longe, o
encrespamento dos telhados da capital, tanto em dias de sol como de
chuva. Seria para, mostrando-lhe a beleza da terra, a luz do Verão e
depois a do Outono, se sentisse mais arrependido chegada a hora?
Porque não tinha ilusões quanto ao futuro: com uma sorte incrível,
escapara aos carrascos de Nogaret e, em vez de fugir, entrara em
rebelião aberta contra o poder real. Filipe, o Belo, não era homem para o
absolver. A sua única consolação era saber que, à distância de uma
pedrada da sua prisão, Aude, a mãe, a avó e a boa Margot viviam,
doravante, ao abrigo das perseguições oficiais e das sonsas, bem mais
mortíferas do sobrinho de Bertrade. Tinha esperança de que o tivesse
enforcado bem alto por ter ousado cobiçar a encantadora criança cuja
imagem tinha cada vez mais dificuldade em esquecer, mas já sem sentir
medo. No sítio para onde o enviariam dentro de pouco tempo, a sua
alma, livre da matéria purulenta do corpo, poderia contemplá-la à-
vontade, talvez, até, velar por ela e, chegada a sua hora, por sua vez,
conduzi-la pela mão até ao trono de Deus como sua mulher para a
eternidade...
Mas continuava com uma preocupação: que faziam, que pensavam
àquela hora Mathieu e Remi, que ele sabia terem desaparecido? De
facto, era impensável imaginá-los a assistir hipocritamente do seu
esconderijo ao ataque vicioso do gordo retroseiro. Se bem conhecia o
arquitecto construtor e as suas cóleras fogosas, ter-se-lhe-ia atirado à
garganta e tê-lo-ia deixado morto no chão. Por isso, onde estariam
aqueles dois?
De facto, não estavam longe, visto que estavam de volta no dia
seguinte à visita de Pareilles. Machieu vinha ainda mais sombrio do que
aquando da partida. Não que tivesse tido grandes dificuldades durante
aquela pequena expedição - o ombro mal soldado fazia-o sofrer, mas
permitia-lhe a utilização moderada do braço esquerdo e as pernas,
depois daquele longo repouso, pareciam-lhe mais fortes do que nunca.
No entanto, ao chegar às pedreiras de Gentilly, só encontrara, entre os
frades Cartuxos onde estavam escondidos, Cauvin e outro dos seus
antigos companheiros, Donatien. Os outros, estrangeiros ou não, tinham
preferido o exílio e tinham partido para o império alemão. Cauvin, a
quem ralhou por tê-lo deixado sem notícias, confessou que teria seguido
o mesmo caminho com Donatien se os cónegos da igreja colegial de
Notre-Dame-de-Corbeil não tivessem aparecido nos Cartuxos para lhe
pedir que os ajudasse no campanário do seu santuário, que estava a
cair. Pagavam bem e os dois homens, falidos, tinham aceitado, pelo
menos, dar uma vista de olhos.
- Donatien e eu podemos consolidar aquilo, mas para devolver ao
campanário a antiga beleza é preciso um mestre. Contava ir a
Passiacum para vos propor a obra. Os monges garantem-vos asilo no
interior do mosteiro, onde tereis uma casa...
Machieu começou por recusar com indignação: Cauvin devia estar
louco para lhe propor pegar de novo na régua e no compasso em terras
de França, quando jurara não mais trabalhar numa catedral. Ao que o
contramestre ripostara, dizendo que, justamente, não se tratava de uma
catedral e que, no fim de contas, devia olhar para o fundo da sua bolsa e
pensar que continuava a ter uma família para alimentar.
- Alimentá-la-ei nas margens do Reno, para onde ela me seguirá.
- Mas é preciso chegar lá, primeiro. A vossa mãe não poderá fazer a
viagem. Além disso, os monges veneram as Relíquias de Santo Yon,
que é um dos santos coroados!
Eu vou trabalhar para ele e os monges prometeram-me ajuda...
Reflecti, mestre Machieu! As catedrais ficam inacabadas, mas não
podeis condenar todos os filhos da pedra a nunca mais trabalhar!
Assim, Machieu regressara a Passiacum ainda furioso. E, quando
soube o que se tinha passado na sua ausência, a sua disposição não
melhorou. Para grande indignação das suas mulheres e, sobretudo, de
Aude, foi para Olivier que ele dirigiu a sua cólera:
- Como ousou ele arrastar aquele miserável até àquele Rei traidor,
em risco de vos prenderem a todas? Não podia tê-lo morto ali mesmo e
lançar a carcaça ao rio?
- Para que a mulher com quem ele vive e a quem chama governanta
mandasse aqui os homens do preboste para saber notícias? Iríamos
todos parar à prisão. Tentai reflectir um pouco, meu filho, e ponde o ódio
de lado! Messire Olivier fez a única coisa inteligente, dadas as
circunstâncias: entregou-se para nos salvar e conseguiu...
- Vede, meu pai! - prosseguiu Aude. - Vede o édito real trazido por
messire de Pareilles, que me dá a casa onde podemos, doravante, viver
às claras...
- Vós, talvez, mas eu, não! Não vou ficar aqui!
- Não quereis viver sob o tecto da vossa filha? Oh, meu pai, como
podeis ser tão duro? Como se não soubésseis que antes de ser minha, a
casa é vossa visto que foi a minha querida tia Bertrade que ma deu...
- Isso não é verdade e tu sabe-lo porque ela nunca tinha tempo para
pôr os seus assuntos em ordem. Por consequência, foi Filipe que ta deu
e eu não quero ter nada a ver com ele!
- Ele não teria feito nada se ninguém lho tivesse pedido...
entregando-se! Alguém que ele mandou para a prisão e que o vai obrigar
a pagar com a vida! - exclamou a jovem fora de si.
- Que vá para o diabo! Não tinha o direito de agir como agiu!
- E vós? Tínheis o direito de abandonar os nossos bens, a nossa
bela casa de Montreuil e tudo o que tínhamos, salvo as nossas vidas,
por esse Templo que não vos pedia tanto? - ripostou ela, ao mesmo
tempo que as lágrimas lhe corriam pelas faces. - Messire Olivier...
gostava muito de nós visto que se sacrificou... E eu que pensava que
éreis um homem justo!
Sacudida por soluços, Aude fugiu na direcção do jardim. Petrificado
pelo que acabava de ouvir, Machieu não reagiu de imediato. No entanto,
a saída da filha, na verdadeira acepção da palavra, não o apaziguou,
antes pelo contrário. Uma saraivada de imprecações saiu-lhe da boca
torcida de cólera e em seguida exclamou:
- Palavra de honra, a rapariga enlouqueceu, continua loucamente
apaixonada por aquele templário mais velho vinte anos do que ela!
Mas, dessa vez, foi a mulher que ele encontrou na sua frente:
- Já vos esquecestes de que se ele não conseguiu arrancar a minha
pobre Bertrade aos carrascos, salvou-a, a ela, à vossa filha, de um
destino pior do que a morte?
E atreveis-vos a dizer que ela enlouqueceu? Em que homem vos
tornastes, Mathieu de Montreuil, para deixardes envenenar assim a
alma?
- Chega, mulher!...
- Não, não chega. Aude tem razão quando afirma que vós nos
sacrificastes a todos à mística do vosso Templo que, se não era tão
negro como os seus juizes queriam demonstrar, talvez não fosse
inteiramente branco! Sem falar dos infelizes que arrastastes convosco
nessa cruzada impossível! Os que morreram deixaram as famílias na
miséria, os que morreram torturados, os que abandonaram o trabalho
que lhes dava o pão de cada dia! Desconto os "estrangeiros", que nunca
se fixavam e podiam trabalhar fora das nossas fronteiras, mas os outros
condenados ao exílio, vivem com as mulheres e os filhos atrás,
desenraizados...
- Paz! - berrou Machieu. - Vós não entendeis nada dos grandes
negócios dos homens...
- Não é o que pensava o santo Rei Luís da sua mãe - disse Matilde -
visto que lhe confiava o reino enquanto ele ia combater o Infiel, certo de
que a França ficaria em boas mãos visto que já o tinha feito quando ele
ainda era menor!
- Era uma excepção e não nego que pode haver outras. Quanto a
mim, repito, recuso os presentes daquele Rei que gostaria de ver morto!
- E onde quereis vós que nós vivamos? Nos adros das igrejas,
mendigando o nosso pão? Nos bosques com os animais? Olhai para a
vossa mãe, que mal pode andar! Ides tirar-lhe o direito de acabar os
seus dias junto de uma boa lareira e numa boa cama de penas? Mais
uma vez, estamos em casa da minha irmã e o édito do Rei limitou-se a
dar a Aude o que sempre lhe foi destinado!
- Seja como quereis! Isso faz com que eu decida aceitar a proposta
dos cónegos de Corbeil para reconstruir o campanário da igreja deles.
- Quereis trabalhar? Vós? Neste país, quando estais fora da lei?
- Os cónegos proteger-nos-ão. Assim, tereis tempo de reflectir... e a
mim dá-me tempo para agir para o bem de todos!
- Que ides inventar ainda, meu filho? - perguntou Matilde.
- Não tendes nada com isso! Dai-me esse pergaminho!
- Para quê?
- Para o devolver a quem de direito e, se possível, meter-lho pela
boca abaixo! Corbeil fica a meio caminho de Paris e de Fontainebleau...
onde todos os Outonos Filipe vai caçar. Foi lá que ele nasceu e gosta de
lá ir. Dizem que se afasta muitas vezes sozinho com os cães... e eu
estarei lá para ter a certeza de que a profecia de mestre Jacques se
cumpre!
Com um grito, Juliana precipitou-se para o marido: - Machieu, por
piedade! Pensai bem! Estais a perder a razão...
Ela agarrava-se a ele, mas Mathieu, com os olhos esgazeados, não
a sentia e nem sequer a via:
- É preciso que alguém o faça! É a vontade de Deus!
- Duvidais assim tanto da Sua força? Para cumprir a Sua vontade,
Ele não precisa de vós! Nós é que precisamos... Já não nos amais?
Pelo olhar que ele lhe devolveu, ela compreendeu que aquele
homem estava fechado a qualquer argumentação e que, cheio de um
ódio cego, surdo e quase maníaco, já não era o mesmo homem. Algo se
quebrara, talvez durante os longos dias de inacção, de que ela não tivera
consciência, algo que a assinatura e o selo de cera verde acabava de
acordar. No entanto, ele disse:
- Vós sois a minha família e eu continuo a amar-vos, mas jurei servir
mestre Jacques até para lá da morte. Dai-me esse pergaminho!
Há já algum tempo que Matilde, com um gesto rápido, se apoderara
do documento e agarrava nele com ambas as mãos. Foi ela, portanto,
que respondeu!
- Não, meu filho. Eu é que fico com ele porque é tudo o que nos
resta a partir do momento em que decidistes esquecer-nos. Ousareis
empregar a força contra a vossa mãe?
Ele virou-se e deu um passo na direcção dela, mas Remi, que se
mantivera silencioso durante o doloroso confronto, interpôs-se:
- Não, meu pai! Tendes o direito de fazer o que quiserdes da vossa
vida, se bem que Deus tenha um papel a desempenhar e vos impõe os
limites da Sua Lei, mas Ele nega-vos o direito de dispor da dos outros!
As nossas damas merecem ficar com este asilo, que lhes vem da nossa
querida tia...
Machieu fez um gesto para afastar o filho, mas a sua mão voltou
atrás.
- No fim de contas... que fiquem com a casa! Quando eu acabar
com tudo, poderão juntar-se a nós. Vem, vamo-nos embora!
- Eu não vou convosco, meu pai! Quem as vai proteger se eu vos
seguir? Aubin está velho...
- Têm Filipe! Que têm elas a temer com um protector como ele? Os
cónegos de Corbeil estão à espera de um mestre-de-obras e de um
escultor.
Remi apontou para as traves do tecto:
- Lá em cima está um bem bom, que está, talvez, próximo da morte.
Se, por infelicidade, isso acontecer...
- Repito: foi ele que escolheu o seu destino!
- Mas Aude sofreria muito: não posso ir.
- A tua mãe saberá, melhor do que ninguém, tratar de um coração
ferido.
Juliana interveio mais uma vez:
- Desta vez o teu pai tem razão. E eu prefiro saber-te com ele. Nós
não temos nada a temer aqui, ao passo que ele vai arriscar a vida...
A dama puxou o jovem para ela, passando-lhe os braços pelo
pescoço para melhor se poder aproximar do seu ouvido:
- Podias meter-te de permeio, entre ele e o seu projecto insensato...
Vou rezar para que consigas - sussurrou-lhe ela.
- Farei os possíveis - respondeu ele, devolvendo-lhe o beijo. Em
seguida, em voz alta, acrescentou: - Que seja como desejais, meu pai,
mas, por favor, concedei a vós próprio, e a mim também, uns momentos
de repouso. Podemos partir de madrugada. Peço-vos... Eu... eu estou
cansado e vós também deveis estar, pelo menos tanto como eu!
O olhar sombrio de Machieu não se iluminou:
- Talvez - admitiu ele. - Mas que não nos incomodem! E foi sentar-se
junto da janela sobre a qual florescia um vaso de goivos sem dirigir a
palavra a mais ninguém.
Com um gesto de impotência para as duas mulheres, Remi viu-o
instalar-se e depois saiu para o jardim em busca da irmã. Encontrou-a
sentada perto do poço com os cotovelos nos joelhos e o queixo apoiado
nas mãos cruzadas, olhando para o que ele pensou ser o céu.
Aproximando-se, o jovem - coisa de que não se apercebera - que
naquele local um espaço entre as árvores permitia entrever o alto da
torre do castelo. Remi sentou-se ao lado de Aude e, ouvindo-a fungar,
percebeu que estava a chorar.
O jovem passou um braço em redor dos ombros da jovem:
- Não queiras mal ao nosso pai - murmurou ele. - Desde a morte do
Grão-Mestre, o ferimento que recebeu e o fim trágico da nossa tia que
ele não é o mesmo. Dei-me conta disso enquanto estivemos em Gentilly,
estes últimos dias...
- Não é por causa dele que estou a chorar, é por aquele que está
preso. O que ele conseguiu do Rei foi um milagre e eu tenho tanto medo
por ele! Achas que é possível tirá-lo de lá?
Remi sobressaltou-se:
- Uma evasão? É nisso que estás a pensar? Agora percebo por que
estás a chorar! É absolutamente impossível!
- Por que não? O Rei foi-se embora: só ali ficaram o velho castelão
e alguns homens...
- ... e as muralhas bem grossas, as portas sólidas, sem contar que
não sabemos onde fica a prisão. Não sonhes, minha irmã e, já agora,
podes ficar a saber que tenho tanta pena como vós! Gosto muito dele...
- Eu amo-o! A diferença é essa. Ele é uma parte de mim e, se
morre... ficarei sem coração. Por isso, ajuda-me!
Ele olhou para ela com uma mistura de espanto e tristeza. As
lágrimas não corriam. A voz tornara-se subitamente firme e Aude parecia
transformada: já não era uma rapariga a sonhar com um amor
impossível, era uma mulher tão determinada como a sua mãe e a sua
avó, e pronta a arriscar tudo pelo homem que amava.
- Eu gostaria muito, mas não vejo como.
- Um carcereiro compra-se!
- Estás a delirar? Em breve não teremos um tostão. Como havemos
de lhe pagar?
- Com isto!
Aude vasculhou na pequena bolsa pendurada na sua cintura e tirou
dela um objecto redondo e duro que lhe meteu na mão. A luz da Lua,
Remi viu que era uma fivela preciosa, ornamentada com pedras
preciosas cuja cor não se via. Sem lhe dar tempo a fazer a pergunta que
adivinhava, Aude respondeu:
- Esta jóia ornamentava o mais belo manto de Madame Margarida.
Ela deu-mo no momento da sua partida, dizendo-me que seria o meu
dote se lhe fosse impossível reclamá-lo...
- O que me surpreenderia muito: se a tirarem do Château-Gaillard,
será para a meterem num severo convento qualquer... mas, como é que
conseguiste conservar essa jóia?
Para não acordar uma recordação abominável, o jovem não
acrescentou que ela estava nua como Eva no primeiro dia ao abandonar
a Torre de Nesle, mas já Aude explicava:
- Foi Gontran Imbert que a trouxe sem saber no pacote de roupa
velha que lhe entregaram e do qual ele não ousou desfazer-se antes de
chegar aqui. Quando o desfiz, a fivela caiu-me na mão: estava no fundo
de um sapato velho. Esta jóia vale muito dinheiro, sabes? Madame
Margarida comprou-a a mestre Pedro de Mantes, pouco tempo antes de
partir para Maubuisson e...
Em vez de pegar na jóia que ela lhe estendia, Remi fechou nas suas
as mãos da irmã.
- Por mais bela que Seja, por mais dinheiro que valha, nenhum
carcereiro a aceitará, sabendo que pode perder a cabeça... e vós com
ele: seria demasiado fácil acusar-vos de a terdes roubado!
- Mas podemos trocá-la por moedas de ouro. Mestre Pedro de
Mantes é capaz de querer ficar com ela...
- Para a vender a quem? Já não há princesas no palácio da Cite e o
joalheiro não quererá despertar a cólera do Rei... ou mesmo a do
Cabeçudo. Estou consciente da tua dor, minha irmã, mas tudo o que
podes fazer é escondê-la cuidadosamente... e rezar, rezar, rezar ainda
para que Deus e Nossa Senhora tenham piedade de messire Olivier.
- Tem de haver uma solução! Quereis abandoná-lo... e eu com ele?
Se ele morre...
- Por que havia ele de morrer? Limitaram-se a fechá-lo e deixá-lo ali,
quando teria sido tão fácil executá-lo na hora ou levá-lo para o Châtelet,
tal como Imbert, para o entregar aos juizes. Talvez até se esqueçam dele
ali! Mas o que interessa é que não tenho tempo: parto de madrugada
com o nosso pai.
- Por que não o deixas ir sozinho? É uma loucura! - exclamou ela
com uma irritação que ele nunca lhe vira e que o entristeceu.
- A nossa mãe quer que vá com ele para tentar, justamente, protegê-
lo dele mesmo. É meu pai, Aude e gosto muito dele, apesar de já não
conseguir compreendê-lo. Já não gostas dele, ou esse amor que trazes
no peito faz-te esquecer os teus pais?
- Sabes muito bem que não.
E Aude atirou-se ao pescoço do irmão, chorando copiosamente e
não sabendo muito bem se as lágrimas eram por causa da angústia pela
sorte de Olivier ou pelo sofrimento de ver a sua família separada pela
intransigente fidelidade do seu pai a uma coisa que já não existia...
A meio do mês de Outubro, Olivier soube que ia morrer.
Foi o capelão que lho anunciou mais uma hora depois de a chegada
súbita do Rei ao castelo ter desencadeado uma espécie de preparativos
para o combate. Era evidente que a incumbência não lhe agradava.
Tanto mais que lhe inspirava remorsos por nunca ter ido ver o
prisioneiro. Não por escolha deliberada ou porque pensava que ficaria ali
muito tempo e não via bem a urgência de uma visita, mas porque sofria
de reumatismo, o que lhe dificultava a subida dos degraus íngremes do
castelo. Já bastava subir duas vezes por dia ao primeiro andar do
torreão para as refeições e as partidas de xadrez com o castelão!
Durante o resto do tempo, raramente abandonava a casota colada à
capela. Assim, o padre Sidoine - era o seu nome - sentia-se muito infeliz
por fazer coincidir a sua primeira visita com uma tal notícia. O capelão
tentou consolar um pouco o prisioneiro, acrescentando que ficaria junto
dele até ao momento fatal, mas não se sentiu à-vontade ao pé daquele
prisioneiro tão frio e silencioso como o Rei Filipe. O cavaleiro escutara-o
sem se mexer e agora via-o transpirar e procurar algumas palavras para
acrescentar, até que, por fim, disse com a voz ao mesmo tempo grave e
doce:
- Não é costume ser-se julgado antes de se ser condenado? Eu não
compareci perante qualquer tribunal, que eu saiba?
- De... de facto, mas o nosso sire ouviu-vos. Ele não é o juiz
supremo?
- O juiz supremo? Eu pensava que, para um padre, nenhum
soberano terrestre tinha esse direito - disse Olivier com desdém.
- Sim, sim! Eu queria dizer que neste mundo um Rei possui sempre,
sobre os seus súbditos, direito de vida e de morte. Na ocorrência, o
nosso sire aconselhou-se com ele mesmo e decidiu em consciência. É
por isso que ides ser executado amanhã no pátio do castelo... pelo fogo!
Aquela palavra conseguiu enfraquecer a couraça que Olivier forjara
durante a sua solidão. A sua garganta secou:
- Pelo fogo? Como um feiticeiro, quando sou um cavaleiro?
- Vós éreis templário, messire, e muitos morreram na fogueira por se
terem revoltado contra a autoridade real. O próprio Grão-Mestre...
- Não tenteis explicar mais nada, padre! Quando me vim aqui
entregar, já vinha preparado para morrer! E certo que não é este o rosto
da morte que prefiro... sobretudo se tiver de sofrer a tortura preliminar.
- O Grão-Mestre e o preceptor da Normandia nunca a sofreram -
apressou-se a dizer o religioso, que recuperara a coragem. - Devo dizer-
vos também que é possível transformar a sentença e morrer pela espada
do carrasco.
- Em troca de quê? Essa cláusula de indulgência não é, certamente,
gratuita!
- Bem entendido. Sereis poupado à fogueira se derdes os nomes
daqueles que participaram na tentativa de arrancar o Grão-Mestre ao
seu destino.
- Era o que eu pensava...
O desprezo arqueou os lábios de Courtenay. Aparentemente, o
desaparecimento do Papa e de Nogaret não tinham ensinado nada a
Filipe, o Belo. Até ao fim, sem dúvida, mesmo que a pensasse próxima,
continuaria a perseguir os pobres vestígios do Templo até ao fim do
mundo, arranco-lhe assim as mais ínfimas raízes.
- Não tenho nenhum nome para dar - disse ele, por fim. - Não sei
quem são os meus companheiros daquela noite terrível...
- É mentira, meu filho, e sabei-lo muito bem. Já vos esquecestes de
Machieu de Montreuil e do seu filho?
- É evidente que não, mas são os únicos - Deus tenha as suas
almas! - Os outros eram-me estranhos.
- A quem pensais enganar? Muitos deles trabalhavam com Machieu
no estaleiro dos contrafortes de Notre-Dame e vós também lá
trabalhastes. Não podeis desconhecê-los...
E lembrai-vos, meu filho, que a mentira destrói o homem!
- Menos do que a desonra... e menos ainda, sobretudo, do que as
chamas que amanhã me vão reduzir a cinzas. Preferia a espada... Mas
não tenho nada a dizer para a conseguir.
:- Reflecti, meu filho! Ser-vos-á possível até ao último instante...
- Por favor, padre, acabemos por aqui!
- Como queirais. Vamos, então, começar as orações, com as quais
prosseguiremos ao longo da noite.
- Não. Perdoai-me, mas o que espero de vós é que me ouçais em
confissão e que amanhã me deis a extrema-unção para a penosa
viagem que me libertará a alma. Rezarei sozinho, esta noite... e depois
vou dormir!
- Dormir? - exclamou Sidoine, quase indignado. - Achais que ides
conseguir?
- Será o que Deus quiser. Prefiro estar só com Ele...
Com um suspiro resignado, o capelão sentou-se na cama de pedra,
indicando com um gesto a Olivier para se ajoelhar na sua frente e,
durante alguns minutos, a voz sufocada do penitente fez-se ouvir. O
cavaleiro confessou ter mentido, evidentemente, e o confessor
interrompeu-o:
- Dentro de momentos sereis absolvido, mas como será amanhã,
quando vos fizerem de novo a pergunta?
- O silêncio não confessa nem mente.
Terminada a confissão, Olivier recebeu a absolvição, que Sidoine
lhe deu a chorar. Era a primeira vez que o capelão assistia um
condenado à morte e o seu destino perturbava-o. Era um homem
honesto, simples como uma cabra e agradecia aos Céus por o seu ofício
naquele pequeno castelo real, que de real pouco tinha, o ter mantido
afastado durante os anos do grande drama em que o Templo
desaparecera. E eis que iam queimar mais um, o último, talvez, e tinha
de cair em cima dele! Só o pensamento de ter, no dia seguinte, de o
escoltar até ao suplício e apoiá-lo até ao fim, quase o fazia vomitar as
tripas.
Após uma última e trémula bênção, preparava-se para sair quando o
prisioneiro pediu:
- Só mais uma coisa, padre! A minha execução será pública?
- Não. Já vo-lo disse, será no pátio e as portas ficarão fechadas até
ao momento em que as vossas cinzas serão atiradas ao Sena... O Rei
quer que tudo se passe secretamente.
- Obrigado!
Olivier sentiu-se um pouco aliviado. O pensamento de que
acorressem com a população do lugarejo - e os de mais longe, talvez! -
àquele espectáculo imprevisto as damas da Quinta das Abelhas, e que
elas pudessem assistir à sua terrível agonia, transtornava-o. Desfazer-se
lentamente sem conseguir, talvez, reter os gritos de sofrimento sob o
olhar incrédulo de Aude era-lhe insuportável, porque seria a última
imagem que ela guardaria da sua pessoa. Sem contar com o que
poderia tentar para o salvar. Não dissera Bertrade que ela o amava? O
cavaleiro imaginava-a a lançar-se aos pés do Rei, implorar a sua graça e
só o conseguindo colocando-se ela própria em perigo. Ora, naquele
instante em que sabia nada mais ter a esperar dos homens, concedia a
si próprio o direito de confessar uma verdade: amava a jovem com uma
paixão que não cessava de aumentar, ao ponto de o assustar. A bela
imagem das almas de ambos voando juntas na direcção da eternidade
aparecia-lhe agora como um chamariz. Desejava aquele corpo
maravilhoso, cuja recordação não lhe saía da cabeça, com uma violência
que, por vezes, o aterrorizava. Confessara-se ao padre e fora absolvido,
mas a confissão, o simples facto de pronunciar as palavras, só
aumentara a dor.
Apesar da coragem, dormiu pouco naquela noite. Nenhum homem,
por mais valente que seja, não consegue visionar sem tremer a morte
pelo fogo. O cavaleiro rezou intensamente.
Sobretudo para que lhe fosse concedido decalcar a sua atitude pela
do Grão-Mestre. Não amaldiçoaria ninguém. Seria a única diferença.
Nem sequer aquele Rei que o proibia de morrer pelo fio da espada, a
menos que entregasse os seus companheiros ainda vivos e sobretudo
Hervé, o seu irmão. Esperava apenas que as recordações de outros
tempos, a orgulhosa camaradagem do Templo, o Sol do Oriente e
sobretudo a sua juventude em Valcroze entre aqueles que tanto amara
lhe servissem de apoio até ao fim. As chamas, ao fazerem dele um
mártir, abrir-lhe-iam as portas da luz e ali reencontraria a sua mãe, o
irmão Clement e, sem dúvida, também o pai, do qual não sabia nada há
muito tempo...
O dia nasceu cinzento e brumoso. O Outono chegara e o tempo, na
verdade, passara depressa. De qualquer maneira, não lhe restava muito
tempo. Quando o padre Sidoine apareceu, transportando a hóstia e
precedido de um jovem acólito cuja sineta fazia ajoelhar toda a gente à
sua passagem, Olivier recebeu-o de joelhos também ele e comungou
com grande fervor. Há muitos meses que não se aproximava do Corpo
de Cristo! No Templo, só O recebiam três vezes por ano, mas o seu
último encontro datava de há mais tempo ainda e o condenado sentiu
um belo conforto. Em seguida, chegaram os soldados que iam escoltá-
lo. Então, o cavaleiro despiu-se, ficando apenas com a camisa e as
bregas. Depois, descalço e com as mãos atadas, seguiu-os pela estreita
escadaria abaixo.
Apesar de se ter preparado, o que viu no pátio provocou-lhe um nó
na garganta: à esquerda estava um cepo com uma pesada espada em
cima e à direita a fogueira. Mas esta não era o amontoado de palha e
madeira da ilhota dos Judeus, não passava de um pequeno monte de
cavacos e palha em redor de um poste munido de uma pequena prancha
para os pés. Aquilo queria dizer que iam queimá-lo aos poucos e que o
suplício duraria uma eternidade.
Na sua frente, Olivier, branco como a cal, viu o Rei, sentado em
frente da escadaria da torre, com Alain de Pareilles e o velho Fourqueux
a seu lado. Foi a eles, a princípio, que o conduziram. O cavaleiro dobrou
o joelho e levantou-se de imediato, fixando, com audácia o olhar do de
Filipe, imóvel. Como era possível ter esperado que a morte do Papa e de
Nogaret levassem aquela estátua do poder à indulgência? Naquele
momento, Olivier descobria que a sua crueldade mantinha-se intacta e
sentiu, por isso, um vago nojo.
- Não tendes nada a dizer? - perguntou o Rei.
- Não, a não ser pedir a Deus que me receba na Sua Santa Graça e
que faça o mesmo com o Rei de França, se bem que me pareça mais
difícil!
O belo rosto nem sequer fremiu. Pelo contrário, a sombra de um
sorriso flutuou por um instante nos lábios delgados:
- Vedes lá em baixo a espada do carrasco. Um nome apenas e ela
libertar-vos-á!
- E a minha alma, cheia de vergonha, não poderá abrir as asas para
subir ao Céu! Não, sire! - Então, que se cumpra a vossa vontade.
Messire Alain, acompanhai-o!
O capitão teve um movimento de recuo. Olivier pensou que ele ia
recusar, o que o meteria em maus lençóis. Decididamente, aquela
execução não se parecia com nenhuma outra. O cavaleiro disse:
- A presença de um cavaleiro será de grande ajuda.
Os olhares de ambos encontraram-se e o condenado viu uma
lágrima nos olhos de Pareilles. O padre Sidoine, esse, chorava
copiosamente enquanto gaguejava a oração dos agonizantes, ao mesmo
tempo que o castelão mordia ferozmente os bigodes.
Na fogueira, o executor ajudou Olivier a subir para a pequena
prancheta e atou-o ao poste. Começou naquele momento a cair uma
chuva fina e o condenado pensou com desespero que a madeira arderia
ainda pior. O cavaleiro ergueu a cabeça para o céu para sentir a sua
frescura no rosto tetanizado pelo esforço que impunha a si próprio para
dominar a dor. Dentro de si próprio, pedia perdidamente ao Senhor e a
Nossa Senhora que o ajudassem a morrer bem. Quando viu o carrasco
aproximar-se com o archote, fechou os olhos... e abriu-os de novo quase
instantaneamente ao ouvir a voz cortante do Rei:
- Espera, carrasco!
Surpreendido, o homem virou-se, mas a palha já estava a arder.
Então, Pareilles lançou-se sobre ele, afastou-o e desatou a pisar
furiosamente as chamas. Em seguida, virou-se para o seu senhor:
- - Que deseja o Rei?
- Desatai esse homem, messire Alain, e trazei-mo aqui!
O capitão fez o que lhe ordenavam com uma diligência e um
entusiasmo que diziam bem dos seus sentimentos íntimos, mas teve de
segurar Olivier que, com as pernas sem força, quase caiu e se reanimou
ao sentir com alegria o chão frio por baixo dos pés nus. No entanto,
quando Pareilles o largou diante do Rei, o cavaleiro caiu de joelhos sem
o desejar, mas a sua cabeça não se curvou.
- Continuais a não ter nada para dizer? - perguntou Filipe.
A garganta de Olivier secou, ao mesmo tempo que o cavaleiro
sentia de novo um medo terrível: não seria aquilo senão uma nova forma
de tortura e não iriam de novo atá-lo ao poste da fogueira?
- Que posso eu dizer? - disse ele com uma voz quase inaudível.
- Pelo menos, obrigado! Fostes poupado ao fogo.
- Oh!. Muito obrigado, sire, por me fazerdes o favor de me deixar
morrer pela espada...
- Também fostes poupado à espada, o que não seria o caso se
tivésseis entregado os vossos companheiros... por isso, não tenho mais
nada a dizer. Em breve sereis livre...
- Livre? - repetiu Olivier, incapaz de acreditar no que estava a ouvir.
- Suportastes com grande valentia uma grande provação sem trair a
amizade ou a palavra dada. Gente como vós é rara. Conservar um
homem assim é um prazer para mim!
E agora ide!
- Sire... - começou a dizer Olivier.
Mas o Rei já se estava a levantar para regressar ao torreão, dizendo
ao mesmo tempo:
- Chega! Segui o vosso caminho de acordo com o que vos dirá
messire de Pareilles.
E o monarca desapareceu seguido do capitão, ao mesmo tempo
que Fourqueux se precipitava para ajudar a levantar-se um Cour-tenay
de tal modo aturdido pelo que lhe acabava de acontecer que parecia
fulminado.
- Vamos, meu rapaz, vinde! Não podeis ficar aqui!
- Ficará o tempo de uma acção de graças! - protestou o padre
Sidoine, precipitando-se para abraçar Olivier, de tal modo se sentia
contente. - Deus acaba de operar um verdadeiro milagre! Talvez pela
primeira vez na sua vida, o nosso sire mostrou-se clemente! Louvemos o
Senhor!
O padre obrigou o velho cavaleiro a pôr um joelho em terra e
entoou, com voz de falsete, um vigoroso Te Deum, ao qual se juntaram
todos os presentes conforme o grau de conhecimento que tinham
daquela longa oração de agradecimento. Olivier foi o único a segui-lo até
ao fim, antes de ser levado de novo para a sua cela para ali esperar o
seguimento dos acontecimentos.
O cavaleiro encontrou ali as suas roupas, que se apressou a vestir,
por mais sujas e esfarrapadas que estivessem, com a quente impressão
de reintegrar a pele depois de lhe ter sido extraída um momento antes.
Teria gostado de se lavar, mas não era esse, aparentemente, o
programa imediato. Pelo contrário, devorou o pão e o prato de carneiro
com ervas que Legris lhe levou, acompanhado por um pichei de vinho de
Suresnes que o cavaleiro esvaziou quase sem respirar, ele, sempre tão
sóbrio. Mas aquilo também era vida e Olivier sentiu que nunca tinha
bebido nada tão bom!
Quando Alain de Pareilles se lhe juntou, mais ou menos uma hora
mais tarde, encontrou-o a dormir. O capitão contemplou-o, depois
encolheu os ombros e sacudiu-o:
- De pé, messire! Chegou a hora de partir!
O dorminhoco pôs-se de pé num instante, activado pela espécie de
mecanismo adquirido ao longo dos anos passados à sombra da regra do
Templo, que atirava com um homem da cama abaixo à menor ordem.
- Para onde me levais? - perguntou ele.
- Eu? Para lado nenhum senão até à porta do castelo. O Rei disse-
o: estais livre.
- Pensei compreender que sob determinadas condições?
- Foi o que acabei de saber. Primeiro, tendes de dar a vossa palavra
de honra de que nunca mais pegareis em armas contra o soberano nem
contra o seu reino...
- Nem nunca essa ideia me passou pela cabeça! Parece-me de
pouca importância. Mas jurá-lo-ei com as minhas mãos nas vossas,
capitão - acrescentou ele num tom mais solene.
- Além disso, é-vos recomendado que abandoneis a França, mas
não para Inglaterra, para a Flandres, para a Alemanha ou para outro
país qualquer. É para a Provença que deveis ir: para vossa casa.
- Ainda tenho casa?
- Isso não sabemos. Ser-vos-á permitido entrar para o serviço do
conde, que é igualmente o Rei de Nápoles... tendo em mente que, em
caso de litígio entre ele e o Rei de França, apesar de eles serem
parentes próximos, ficareis obrigado a nunca aceitar combater este
último. Enfim, se sobrevier que encontreis qualquer subsistência do
Templo...
- Não fomos todos presos na Provença, tal como em França? -
perguntou Olivier com amargura.
- Sim, mas nunca se sabe. Seja como for, também isso vos é
proibido, porque equivaleria a pegar em armas contra o Rei. Dito isto -
prosseguiu Pareilles, tirando do cinto um rolo de pergaminho selado a
verde e uma pequena bolsa - tendes aqui um salvo-conduto que usareis
durante a viagem... e um pouco de dinheiro para viver, visto que não
tendes nenhum.
- Não quero dinheiro! É uma coisa vil, uma das causas da perda dos
meus irmãos e do qual não preciso para ganhar o pão de cada dia.
- Não se recusa aquilo que o Rei dá. Tomai! Dai-o a alguém mais
pobre do que vós. E agora chegou a hora de partir. Ah, já me esquecia!
É-vos interdito passar por Paris! Podeis perder-vos por lá facilmente!
- Ao passo que através das densas florestas não há nada de
semelhante a temer? - ironizou Olivier. - Ficai descansado, obedeço.
Mais nada?
- Meu Deus, não, e se estais pronto...
Juntos, desceram da barbacã. No pátio, do sinistro aparelho de
morte nada restava. Olivier abraçou o padre Sidoine, ainda emocionado,
agradeceu a Legris, que se mostrara um carcereiro mais do que humano
e depois saiu para a ponte levadiça, respirando com alegria o ar fresco.
Um golpe de vento, vindo do mar, limpara o céu das nuvens húmidas e
um sol tímido fazia brilhar a água do rio em baixo. O capitão estendeu a
mão ao seu antigo prisioneiro:
- Desejo-vos um bom regresso a casa! - disse ele. - Pedirei a Deus
que vos tenha na Sua Santa Guarda!
- Obrigado... Mas porque o haveis de fazer? Eu continuo a ser um
rebelde, a quem tiveram a bondade de conceder o perdão.
-Justamente por essa razão, por causa deste gesto de indulgência
de que fostes objecto. Não imaginais a que ponto me sinto feliz!
- Pensais que, por minha causa, o Rei deixou de odiar o Templo?
- Ele nunca sentiu tal coisa. O Rei não tem sentimentos pessoais:
apenas ressentimentos de Estado!
- Mesmo no caso das princesas...
- Sobretudo nesse! Creio que gostava muito delas...
Com um último gesto de adeus, Alain de Pareilles regressou ao
castelo, deixando o cavaleiro são e salvo a descer a encosta que ia dar
ao caminho ao longo do rio.
Olivier ia percorrê-lo até encontrar uma barca ou um passador para
o atravessar visto que não tinha direito às pontes de Paris. Mas, antes,
decidiu ir dizer adeus às damas da Quinta das Abelhas e tranquilizá-las
quanto à sua sorte. A uma em particular! Era cruel dizer a si próprio que
nunca mais a veria, mas, pelo menos, poderia guardar uma última
imagem dela no coração...
Foi quem viu primeiro. A jovem estava sentada perto da casa, no
banco de pedra onde a velha Matilde gostava de se aquecer ao Sol, mas
não estava só: um homem estava junto dela e ambos falavam
animadamente. Ora, não se tratava de Remi e ainda menos de Machieu
ou de Aubin e Olivier não se lembrava de ter visto aquelas costas
magras e direitas e por cima uns cabelos cor de palha por baixo de um
barrete negro. Chegou-lhe à boca um sabor amargo, porque lhe pareceu
que o rosto de Aude se enchia de doçura ao olhar para ele. Assim,
quando a acreditava devastada pela angústia por sua causa e no
momento em que as suas cinzas já deviam ter sido atiradas ao Sena,
aquela que amava - já não tinha ilusões quanto aos seus sentimentos! -
conversava afavelmente com aquele desconhecido! E dava-lhe tanta
atenção que nem o via, a ele, apesar de estar virada na sua direcção!
Oh Senhor!... Seria possível sofrer tanto, de repente?
O cavaleiro preparava-se para desaparecer quando um grito o
pregou ao chão:
- Sire Olivier? Enfim, eis-vos chegado!
Era Margot que regressava do pomar com um cesto de pêras e que,
largando-o, entrou pela casa dentro chamando por Juliana.
Aude levantou-se. O homem virou-se e o recém-chegado não viu a
alegria iluminar o rosto delicado. Acabava de reconhecer o importuno:
era Gildas d'Oully, o estudante da Torre de Nesle, e o cavaleiro sentiu
uma súbita cólera invadi-lo, ao mesmo tempo que se encaminhava para
o jovem.
- Que fazeis aqui? Mestre Mathieu não vos deu a entender
claramente que não desejava voltar a ver-vos?
Apostrofado daquela maneira, o rapaz corou violentamente e
ripostou:
- Vós não sois mestre Mathieu, parece-me! Só ele pode censurar a
minha presença aqui e, se quereis saber, era com ele que queria falar ao
vir aqui... há uma semana...
- Portanto, não é a primeira vez! E que lhe queríeis?
- Se bem que não vos diga respeito, posso dizer-vos que tinha
acabado de assistir ao castigo de um certo Gontran Imbert, retroseiro de
profissão, condenado a ser chicoteado e a ficar exposto no pelourinho
por ter querido apoderar-se de um bem situado em Passiacum
pertencente à defunta Bertrade Imbert, cuja herança não lhe pertencia e,
além disso, por ter tentado forçar vilmente a jovem herdeira desse bem.
Receava que algo de mal tivesse acontecido a mestre Machieu porque
não se opusera àquele miserável e...
-... e veio ver se nos podia ajudar - interpôs-se Aude, desejosa de
acabar rapidamente com um confronto que lhe estragava a felicidade por
ver Olivier de regresso.
- A sua intenção era boa e não é preciso repreendê-lo!
- Repreender, eu? - disse Courtenay com desdém. - Na ocasião,
deveis ter-lhe dito tudo sobre o que vos aconteceu! Por que regressou,
então?
- A meu pedido! Estávamos tão preocupadas convosco que a minha
avó caiu doente... e mestre Gildas está a estudar medicina.
A jovem não teve tempo de dizer mais nada. Juliana apareceu a
correr com a alegria no rosto que o recém-chegado tanto esperava ver
nos olhos de Aude. Sem uma palavra, a dama atirou-se-lhe ao pescoço
e deu-lhe vários beijos bem sonoros:
-: Até que enfim! Meu Deus! Tivemos tanto medo e era impossível
saber fosse o que fosse!... Ah, bendito seja o Senhor! Estais vivo! Mas
vinde, a nossa boa mãe reclama-vos com impaciência!... Ela está a
declinar, evidentemente...
Sem se preocupar com os outros, Juliana agarrou Olivier pela mão e
arrastou-o atrás de si. Ele deixou-se levar, aliviado por interromper uma
conversa agitada que começava a censurar a si próprio porque se sentia
ridículo por tê-la começado. Tão pouco tempo depois de ter escapado a
uma morte abominável e feito tantos esforços para se virar para o
esplendor da eternidade, regressava à terra a um nível indigno de si. Era
evidente que não tinha o direito de amar aquela rapariga e menos ainda
imiscuir-se na vida que ela quisesse escolher. Era preciso esquecer, de
uma vez por todas, as palavras de Bertrade. Aliás, a dama podia ter-se
enganado...
Matilde repousava num dos dois quartos do andar de cima e bastou
a Olivier um olhar para compreender que o fim estava próximo. A
respiração era difícil, estertorosa e no rosto descorado de olhos
encovados, as asas do nariz já se estreitavam, mas a velha dama
conseguiu esboçar um sorriso para o visitante. Matilde soergueu até
para ele uma mão, que ele meteu nas suas.
- Estais aqui - murmurou ela. - Deus... seja louvado!
- Não faleis! Ficais cansada.
- Tenho... de falar. A sós... convosco!
A anciã não precisou de repetir. Dóceis, as três mulheres passaram
à divisão seguinte, ao mesmo tempo que Olivier se ajoelhava junto do
leito para estar mais próximo da doente:
- Tendes alguma coisa para me dizer?
- O meu filho! Enlouqueceu... Pensa que é... o instrumento do Grão-
Mestre... e quer matar o Rei. É preciso... impedi-lo!
- Como? Eu nem sequer sei onde ele está!
- Em Corbeil... com os cónegos de Notre-Dame...
- Ele está a trabalhar depois de ter jurado...
- Não é... uma catedral... e, além disso... está à espera que... o
Rei... como todos os Outonos... vá caçar... a Fontainebleau. Ele pensa...
Uma crise de tosse cortou-lhe a palavra e forçou-a a virar-se de
lado. Olivier tomou-a nos braços para a soerguer e ajudá-la a respirar.
Ao fazer aquilo, viu que a dama tinha sofrido várias sangrias e que não
havia, sem dúvida, muito mais a fazer. Docemente, depô-la nas
almofadas, pegou numa pequena escudela que estava em cima da
mesinha-de-cabeceira meio cheia de um líquido escuro, o qual cheirou e
do qual bebeu algumas gotas. Era uma tisana onde havia, certamente,
hera e énula-campana - prova de que o jovem Gildas sabia qualquer
coisa! O cavaleiro soergueu de novo Matilde para a obrigar a beber, mas
ela engoliu apenas um gole e desviou a cabeça, escarrando o resto.
- Não, inútil! - murmurou ela. - Eu estou a morrer e ainda bem. Vós...
por piedade, ide ter com... o meu filho! É preciso... salvá-lo... dele
próprio.
A anciã fechou os olhos com um gemido que fez acorrer Juliana.
Com a ajuda de um pano, esta enxugou o líquido que lhe correra para o
queixo e para o pescoço e depois aconchegou-lhe o lençol e as
almofadas.
- Eu fico com ela, agora, mas vós, messire, tendes de vos esconder.
Aubin foi buscar o cura de Argenteuil: deve estar a chegar.
- Esconder-me? Não. Vou-me embora. Eu vim apenas dizer-vos
adeus.
- Adeus? Porquê?
- Fui banido do reino. O Rei tem a minha palavra...
- Oh meu Deus! E para onde ides?
- Para a Provença. Para casa, para Valcroze... se ainda existir!
- E se já não existir?
- Tenho a região... as minhas belas gargantas do Verdon e a gente
honesta que me conhece... Saberei viver lá: basta uma cabana de
pastor...
Ao evocar as terras da sua infância, o duro rosto encheu-se de
ternura, mas a agonizante ouvira-o:
- Então... não podeis ajudar Mathieu?
A anciã desatou a chorar e, evidentemente, a tossir, e o som da sua
respiração era assustador. Juliana apressou-se a ajudá-la murmurando:
- Ela não parava de dizer que só vós conseguiríeis afastar Mathieu
do seu projecto. Eu bem lhe repetia que vós estáveis preso... que talvez
não vos voltássemos a ver, mas ela teimava que havíeis de regressar. E
estais aqui.
Havia uma censura na sua voz e uma súplica nos seus olhos.
Subitamente, o cavaleiro sentiu-se cansado. Ao ir ali, antes da
separação definitiva, esperava um momento de serenidade e de afecto
nascido da inquietação sentida por ele, algo que levaria com ele como
uma espécie de extrema-unção e que lhe aqueceria o coração para o
resto da vida. Mas encontrara Aude a conversar com Gildas, doravante
bem-vindo àquela casa. Se Juliana se lhe atirara ao pescoço fora porque
a profecia de Matilde se realizara e porque contavam com ele para
chamar Mathieu à razão. Era triste, mas era preciso aceitar os factos
como eles eram: naquela casa, não passara de um passante socorrido,
que continuava a ter uma dívida para pagar.
- Onde é Corbeil? - perguntou ele.
- A sete ou oito léguas para norte de Fontainebleau e Fontainebleau
fica...
- Eu sei onde é. Noutros tempos... estive na grande comendadoria
de Dormelles e até dormi lá. Não é muito longe e sei onde é o solar real.
- Ides lá?
- Por que não? Fica-me em caminho e não me deram prazo para o
percorrer. Com vossa permissão, vou ao pomar buscar umas roupas que
lá deixei e depois...
- O quê? Já? O dia já vai longo. Ficai, pelo menos, esta noite.
- Não. Não gosto das despedidas que se eternizam. Além disso...
O som de uma campainha acabava de se ouvir no exterior: o cura
de Argenteuil estava a chegar com os Santos Óleos, certamente com um
menino de coro a seu lado. Olivier desceu a tempo de ver o padre entrar,
segurando na mão o cibório protegido por baixo do respectivo tecido
violeta. Olivier pôs um joelho em terra à sua passagem e levantou-se
quando a escada gemeu sob o seu passo. Aude estava na sua frente,
mas Gildas estava por trás dela. O cavaleiro inclinou-se numa saudação
fria:
- Adeus, donzela! Farei os possíveis para chamar o vosso pai à
razão e enviar-vo-lo.
- Ele não regressará porque não quer morar na casa que me
pertence.
- Veremos! Terminada a minha tarefa, prosseguirei o meu caminho...
- Ele não vos dará ouvidos! O meu pai está furioso por causa do que
fizestes por nós.
- Podeis ter a certeza de que farei de maneira a que me escute.
Remi está com ele, suponho?
- Está, mas...
-Juntos, conseguiremos! Adeus, donzela! A vossa mãe está à vossa
espera para a cerimónia.
E o cavaleiro saiu. Aude quis segui-lo, mas Gildas reteve-a.
- Subi! Eu falo com ele.
O jovem chegou ao jardim no momento em que Olivier entrava no
seu antigo alojamento e, não ousando segui-lo, esperou por ele. Pouco
tempo, aliás: ao cabo de quatro ou cinco minutos, Olivier saiu com um
saco ao ombro onde metera as roupas que encontrara lavadas e
passadas. O cavaleiro franziu o sobrolho ao ver-se frente a frente com
Gildas:
- Que quereis?
- Saber por que me detestais. Porque detestais-me, não é verdade?
- Não tenho razões para gostar de vós. Tinham-vos proibido de vir
aqui e vós aproveitastes o primeiro pretexto para apa- recer tornardes-
vos útil. Fizestes um bom trabalho, reconheço, mas, para um futuro
padre, as vossas razões profundas parecem-me um pouco turvas...
- Eu vou ser médico... e não clérigo, já que não tenho a vocação
necessária, como pensava.
- Foi a filha da casa que vos converteu?
- Devíeis compreender-me. Não éreis templário?
- Continuo a ser. Os meus votos e a minha consciência continuam
os mesmos.
- Um homem de leis diria que caducaram visto que o Templo já não
existe. Mas isso não vos impede de estardes apaixonado por ela, tal
como eu. Temos de ser, por isso, inimigos, quando já combatemos
juntos?
- Eu não sou vosso inimigo. Só quero que me deixeis em paz. Tenho
um longo caminho pela frente.
- Comecemo-lo em conjunto! Assim que o padre terminar, despeço-
me e regressaremos a Paris.
- Estou proibido de entrar em Paris.
- Nesse caso, tendes de atravessar o Sena. Mais uma razão para
que eu vá convosco. Havemos de encontrar uma barca e eu ajudar-vos-
ei a atravessar.
- E eu tenciono passar sem a vossa companhia... Afastando o
jovem, Olivier dirigiu-se rapidamente para a saída, mas Gildas não
queria ficar por ali. O jovem seguiu-lhe os passos e saiu com ele para o
caminho que ia dar ao Sena.
- Em nome de Deus, não sejais teimoso. Deixai-me ajudar-vos na
medida das minhas possibilidades.
- Para quê? Para poderdes gabar-vos junto da vossa apaixonada?
- Oh! Sois injusto e cruel. As minhas intenções são boas, asseguro-
vos.
- O inferno está cheio de boas intenções, dizem! Poupai-me às
vossas e voltai para trás!
- Não. Não enquanto não tiver a certeza de que atravessastes o rio
sem dificuldade. Para mim é... uma espécie de dever.
- Pergunto a mim próprio porquê?
- Talvez porque vós sois daqueles homens que não podemos deixar
de admirar...
O jovem corria ao lado de Olivier, que devorava a encosta a grande
velocidade. Mas, bruscamente, o cavaleiro parou e fez frente ao
obstinado.
- Bem, admirai-me de longe. Ides, ou não, deixar-me em paz?
- Não! Perdoai-me!
Olivier deixou sair um suspiro, pousou o saco... e o seu punho partiu
como uma catapulta na direcção do queixo de Gildas, que caiu sem
sequer dizer "ai" na erva seca. Em seguida, o filho de Sancie pegou de
novo no saco e foi-se embora sem voltar a olhar para trás. Sentia-se
bastante melhor...
XIII – MATHIEU DE MONTREUIL

Assim que chegou à vista de Corbeil, dois dias depois, Olivier parou
por um momento para respirar fundo e tentar localizar-se no topo da
pequena crista que separava o vale do Sena do vale do Essone. Do local
em que se encontrava, compreendeu por que razão os cónegos podiam
assumir a restauração da sua igreja e pagar os serviços de um
construtor de catedrais, mesmo procurado pela justiça do reino.
Instalada entre o ribeiro e o rio que ela ultrapassava por intermédio de
uma bela ponte, aquela pequena cidade fervilhava de actividade com os
seus moinhos e azenhas cujas velas ou rodas batiam o ar ou faziam
espuma na água, as barcaças transportando para Paris a farinha e
outros produtos da região {48} e também os campanários, de onde
voavam para o céu as notas doces das Avé-Marias da tarde. O nevoeiro
que subia do rio - os dias de Outono estavam cada vez mais curtos -
impedia que fosse possível contá-los e também distinguir os
pormenores. Aquele onde trabalhava Mathieu e Remi devia ter sido o
mais alto, mas se sofrera grandes danos, podia ser o mais baixo. Em
volta e até ao infinito era tudo pradaria, sulcos de caminhos, terras
lavradas e, para terminar, o negro manto da floresta sempre repetida.
Depois de repousar um pouco, o viajante recomeçou a jornada,
ávido de uma lareira, de uma sopa quente e também de uma cama: tudo
o que encontraria no interior das muralhas mergulhadas nos fossos
alimentados pelo Essonne.
O cavaleiro desceu na direcção da grande ogiva de pedra
flanqueada de guaritas que abria para um bairro da cidade. Mais acima,
recortavam-se as torres de um castelo que já não pertencia aos condes
desde que Luís VI unira Corbeil à Coroa, imputando-a no dote das
Rainhas e como tal, sendo uma cidade real, estava muito bem guardada.
Não era, juntamente com Saint-Denis e a feira de Lendit, um dos
principais centros de abastecimento da capital?
Assim, ao chegar à grande ponte levadiça, Olivier encontrou
atravessada no seu caminho a bisarma de uma sentinela que lhe
perguntou onde ia assim vestido:
- Trabalhar para os cónegos da Colegial.
- Qual? Há duas.
- Ah! Não sabia. A que está dedicada a Nossa Senhora - disse o
viajante fazendo o sinal da cruz.
- E vens de onde?
- De Paris. Sou escultor, mas por que tanta pergunta?
- Gostamos de saber quem chega. Sobretudo ao cair da noite.
O homem não parecia disposto a dar-lhe passagem. Talvez
estivesse aborrecido? Quase tão grande como Olivier e bem constituído,
procurava, talvez, uma querela para passar o tempo. No entanto,
polidamente, o recém-chegado pediu:
- Tende a amabilidade de me dizer onde é Notre-Dame.
- Um momento! Estás com pressa!
- De facto, porque estou cansado. Por isso, dizei-me o que eu quero
saber e deixai-me passar!
Ao mesmo tempo, o cavaleiro desenrolava sob o nariz do outro o
salvo-conduto que lhe fora entregue por Alain de Pareil-les. O soldado,
certamente, não sabia ler, mas o selo real pareceu impressioná-lo e
recuou colocando a sua arma na vertical:
- - Ah! Desculpai! Este é o bairro de São Leonardo. Continuai a
direito pela rua na vossa frente até ao fim. No outro lado vereis a torre e
abside da colegial, que chega quase à margem do rio.
- Obrigado.
E sem mais demoras, Olivier meteu sob a abóbada onde se viam as
pontas da grade que ele ouviu, aliás, descer logo após a sua passagem.
A medida que avançava, a actividade da rua ia enfraquecendo para
aumentar no interior das casas onde se estava a preparar a refeição da
noite. As portadas de madeira iam-se fechando com ruído e,
exceptuando três homens que discutiam em frente de uma taberna e de
um petiz com um boião na mão que ia, talvez, à mostarda, não
encontrou quase ninguém. Uma vez na ponte, viu imediatamente a igreja
que procurava e supôs que as casas cujos telhados se eriçavam em seu
redor eram as dos religiosos. Também viu que um andaime, vazio de
quaisquer trabalhadores, escalava o campanário quadrado construído
por cima do transepto da nave. Com algumas passadas largas, o
cavaleiro atingiu a pequena praceta - um pouco mesquinha para um
santuário tão belo! - formada pelo círculo das casas canonicais. A luz
das velas via-se através dos vitrais e ouviam-se as vozes do ofício da
noite.
Pensando que conseguiria a informação desejada no fim da
cerimónia, Olivier tirou o barrete, benzeu-se com água benta e dobrou o
joelho.
Para além dos cónegos sentados nas suas estalas, a assistência
era reduzida: algumas anciãs e um pequeno punhado de homens. Olivier
avançou lentamente pela curta nave de dois vãos duplos cujas arcadas
em intersecção repousavam sobre colunas geminadas, admirando, como
conhecedor, a beleza daquele conjunto arquitectural e também o dos
capitéis onde desabrochavam uma flora e uma fauna estranhas. Já tinha
chegado quase ao círculo de luz que delimitava o coro quando avistou
Remi. De joelhos nas lajes e com o rosto entre as mãos, o jovem rezava
com um fervor que o recém-chegado não ousou perturbar. O cavaleiro
esperou que a sua cabeça se erguesse para se colocar a seu lado.
Naturalmente, Remi olhou para ele e a sua figura desolada encheu-se de
uma verdadeira alegria:
- Olivier? Oh, graças a Deus, que quis escutar a minha prece
enviando-me socorro!
- Precisais assim tanto?
- Oh sim! Mas saiamos! Falaremos mais à-vontade.
Os dois homens contornaram a igreja até à abside, perto do espaço
onde se encontravam as cabanas e o estaleiro. Remi entrou numa delas.
No seu interior havia um cavalete sobre o qual estavam uns projectos
enrolados, dois tamboretes e uma candeia, que Remi acendeu. A luz
iluminou melhor o seu rosto de traços tensos. A expressão era tão
sombria que Olivier esqueceu a fome e o cansaço, mas, para lhe dar
tempo a que assimilasse a sua chegada, começou por uma pergunta
anódina:
- Por que é que há apenas duas cabanas? Onde estão os
trabalhadores?
- A abadia de São Leonardo envia-nos três todos os dias e há dois
na cidade. Mas sentai-vos e dizei-me por que milagre estais aqui.
- Uma espécie de milagre, de facto. Depois de ter ameaçado matar-
me pelo fogo, o Rei contentou-se em banir-me do reino. Exigiu que eu
fosse para a Provença.
- Só estais de passagem, portanto? - perguntou Remi visivelmente
decepcionado. - Senti-me tão aliviado, há momentos...
- Deixai-me acabar! Não me deram prazo para sair do reino e
prometi à vossa mãe e à vossa avó vir aqui visitar-vos. No fim de contas,
fica-me em caminho.
- Obrigado! Elas estão bem?
- A vossa mãe e a vossa irmã estão, sim, mas...
- A avó Matilde?
- Penso que não voltareis a vê-la: estava a receber a extrema-unção
quando eu parti. Mas estava lúcida. E mestre Mathieu e vós ocupáveis-
lhe o espírito por inteiro.
Remi benzeu-se e ajoelhou-se para uma curta prece a que Olivier
se juntou. Levantando-se, o jovem rectificou:
- Aqui, ele é conhecido sob o nome de mestre Bernardo d'Autun. Os
cónegos assim decidiram para que pudesse trabalhar sem despertar a
curiosidade, ou arriscar-se a uma denúncia.
- Foi boa ideia. Mas onde está ele a esta hora?
Remi abriu a porta de madeira e apontou para a pequena casa
sobre o Sena:
- Ali. Moramos lá os dois e ele só sai de lá para trabalhar. O resto do
tempo, fica à janela que não se vê daqui e de onde se vê o rio e a outra
margem. Espreita a chegada do Rei. É verdade que há outra estrada
que passa por Essonnes, mas o nosso sire gosta de vir por aqui.
- Nesse caso, para quê estar à espreita de noite?
- Por que não? Já aconteceu Filipe chegar a Fontainebleau pelo rio
quando não tem pressa e quer repousar um pouco. E se vier a cavalo,
como a maior parte das vezes, as portas da cidade dão-lhe passagem a
qualquer hora. É por isso que o meu pai está sempre à janela!
- Nunca dorme?
- Dorme, mas muito pouco. Uma hora ou duas e então diz-me para
o revezar. Está cada vez mais mudado...
- Posso ir vê-lo? Disseram-me em vossa casa que ele me detestava
e que não queria viver na Quinta das Abelhas!
- Ele nunca fala de vós e, por consequência, ignoro o que pensa a
vosso respeito neste momento.
- É o que vou tentar saber. Com a vossa permissão, Remi, vou ter
com ele amanhã com o pretexto de lhe anunciar a morte da dama
Matilde. Então, veremos. Por agora - perdoai-me, meu amigo - gostaria
que me indicásseis um albergue modesto para eu poder comer qualquer
coisa e dormir um pouco...
- Oh, desculpai-me! Farto-me de falar de mim, como se não
tivésseis acabado de fazer uma viagem estafante! Vou levar-vos a casa
de um dos nossos pedreiros, Paulin.
Jacqueline, a mulher dele, tem um albergue perto da ponte, O
Grande Santo Yon, que é minúsculo mas muito limpo. Ela obriga os
clientes a portarem-se bem. Vou levar-vos lá.
Pouco depois, a mulher do pedreiro, uma sólida comadre, alerta e
rezingona, provida de braços vigorosos e até a sombra de um bigode,
instalava o viajante em frente de um guisado de carne de vaca
generosamente perfumado com alho e alho-francês, acompanhado de
um pichei de cidra caseira. Remi apresentara o seu amigo como um
escultor da Provença que trabalhara durante algum tempo com mestre
Bernardo e que, tendo completado um giro pelo Norte, acabava de se
lhe juntar, o que valeu a Olivier a companhia de Paulin. Este instalou-se
na sua frente com um frasco de aguardente e desatou a contar-lhe a sua
vida, ao mesmo tempo que emborcava grandes copázios. Olivier só
aceitou beber um para lhe ser agradável. O cavaleiro sentia-se a cair de
sono e acabaram os dois por adormecer, um porque já não podia mais, o
outro porque tinha bebido de mais... Aquilo não pareceu ser um grande
problema para a hospedeira. A dama levantou a mesa à sua maneira,
arrastando o marido até à sala dos fundos e instalando Olivier no recanto
da lareira: o cavaleiro era demasiado grande e demasiado pesado para
ser transportado para o andar superior.
Foi ali que Remi o encontrou quando, ao nascer do dia, foi buscá-lo:
- Falei com o meu pai a noite passada. Ele aceita ver-vos, o que é
mais do que eu esperava.
- É só o tempo de me lavar e sigo-vos.
A manhã estava bastante fresca. No entanto, Olivier foi ao pátio tirar
um balde de água do poço, com a ajuda da qual conseguiu fazer a
toilette suficiente, renunciando apenas a barbear-se: a frialdade da água
teria tornado a tarefa penosa. Feito aquilo, pediu uma escova a
Jacqueline, que olhava para ele com admiração - o marido não era
homem para aquelas delicadezas e já era uma sorte conseguir arrastá-
lo, uma vez em cada dois meses, até aos banhos públicos! - vendo-o pôr
em ordem as suas roupas, comer a malga de sopa que ela lhe oferecera
com uma grande fatia de pão e guardando este para o comer em
caminho, evitando assim pôr à prova a paciência de "mestre Bernardo".
Encontraram-no no estaleiro, de projecto e esquadro na mão, a dar
instruções a Cauvin, que saudou Olivier alegremente:
- Dá prazer ver de novo a velha equipa! Há aqui muito que fazer!
O acolhimento de Mathieu foi menos entusiasta. Depois de ter
respondido com um movimento de cabeça à saudação do seu antigo
escultor, fez-lhe sinal para que o seguisse e conduziu-o à cabana da
véspera, mas não o convidou a sentar-se. Ele também ficou de pé,
encostado à mesa, de braços mais ou menos cruzados, a mão direita
apoiada no ombro ferido que ainda o fazia sofrer. Seria assim,
provavelmente, até ao fim dos seus dias, sobretudo com tempo húmido e
frio, pensou Olivier, desagradavelmente surpreendido com a má cara do
mestre-de-obras. O seu rosto, antigamente tão cheio, tão majestoso,
enchera-se de uma infinidade de rugas, parecidas com as que as águas
dos ribeiros deixam nas montanhas. A curva determinada da boca era
amarga e os olhos, por baixo das sobrancelhas quase brancas, tinham
uma luz bizarra, ao mesmo tempo turva e alucinada, que nunca lhe tinha
visto antes. O construtor atacou sem quaisquer preâmbulos:
- Remi disse-me que a minha mãe morreu?
- É verdade. Santamente, esquecendo os próprios sofrimentos para
só pensar em vós, mestre. Se estou aqui é porque ela e a dama Juliana
me pediram. Ambas vos imploram - e foi esse o último pensamento da
dama Matilde! - que renuncieis ao vosso projecto insensato, que só lhes
provoca um aumento de dor e lágrimas...
- Por que não me falais da minha filha? Ela não tem os mesmos
sentimentos?
- Quase não lhe falei, mas sei que vos ama.
- Menos do que a vós, acho, mas a questão não é essa. Elas
querem que eu regresse, não é verdade?
Olivier limitou-se a suspirar e a encolher os ombros. Então, Mathieu
continuou, sempre no mesmo tom cortante:
- Eu nunca me arrependo do que decido. Elas sabem-no muito bem!
- E decidistes abater Filipe sem pensardes nas consequências
trágicas de um tal gesto para vós, sem dúvida - suponho que não
quereis saber! - mas também para aquelas pobres mulheres que não
querem o sacrifício de um morto, querem apenas viver, e em paz, se
possível!
- Mas, justamente, isso não é possível! Filipe tem de morrer porque
assim o exige mestre Jacques.
- A vossa fé em Deus é assim tão fraca e o vosso orgulho tão
grande para pensardes que podeis substituí-lo? O Papa está morto e
Nogaret também... e sem a vossa ajuda, que eu saiba!
- Sim, sim! Mas o Papa Clemente estava rodeado de cardeais que
eram outros tantos inimigos potenciais e Nogaret era universalmente
odiado e vivia como um burguês.
O Rei, coroado em Reims, ungido pelo Senhor, é outra coisa.
Necessita de um homem que se dedique de corpo e alma à sua perda. E
esse homem sou eu!
- Bela certeza! E onde a arranjastes?
- Nos mandamentos de mestre Jacques. Ele apareceu-me várias
vezes durante o sono e as suas palavras estão gravadas no meu
espírito: "Fere corajosamente! - diz ele.
- Fere sem hesitar e sem fraquejar! Libertarás todos aqueles que
gemem sob o jugo de Filipe e a tua recompensa será grande quando te
juntares a mim!" Enquanto falava, Mathieu exaltava-se, ao mesmo tempo
que a sua figura se virava para o tecto da cabana à falta de céu. Olivier,
esse, olhava para Remi. Este abanou a cabeça com um movimento de
ombros que traduzia a sua desilusão. Era difícil, de facto, discutir com
um homem presa de tais visões! Praticamente sem argumentos, Olivier,
no entanto, continuou:
- E se ele não vier a Fontainebleau este ano?
- Por que haveria ele de desistir de um hábito que lhe é querido?
Há-de vir. Mestre Jacques prometeu - respondeu Machieu com a
obstinação do iluminado de tal modo seguro de si que afasta
sistematicamente tudo aquilo que se atravessa diante da sua ideia fixa.
Desde que o conhecia que Olivier estimava indefinidamente a
inteligência, a clareza de ideias e o talento daquele mestre-de-obras de
grande coração e sentia uma pena enorme por ver tão belas qualidades
- à excepção da arte de construir! - dissolverem-se numa obstinação tão
perniciosa, mas como não gostava de se dar por vencido, tentou ainda
outra coisa:
-Já pensastes que, morto o Rei, Gontran Imbert pode acreditar que
está autorizado a vingar-se do que aconteceu em Pas-siacum?
- Ele não foi enforcado?
- Para minha grande pena, foi apenas condenado a ser chicoteado
em frente do povo, exposto no pelourinho e proibido de se aproximar da
Quinta das Abelhas mais de um quarto de légua... mas quando o punho
de ferro de Filipe desaparecer, o Cabeçudo não será tão difícil de
manobrar.
Machieu lançou-lhe um olhar furioso:
- Trataremos dele em devido tempo! Não importa, sabeis o que eu
penso daquela casa! Quanto mais cedo a minha mulher e a minha filha
saírem dela, melhor. E como a quase-impotência da minha querida mãe
já não as pode reter lá, vou mandar Remi buscá-las. Há bastante espaço
para elas nesta cabana que os cónegos me deram. Pelo menos,
estaremos juntos e prontos a passar a fronteira do império uma vez a
tarefa cumprida!
- Porque pensais que ides sair dela vivo? Mesmo que o vosso alvo
venha até aqui com uma pequena escolta, trará sempre alguns guardas,
além de messire de Pareilles, que dorme em pé e que não vos dará
tréguas. Que lhes acontecerá, nesse caso? Não sois suficientemente
louco para pensar que os cónegos lhes darão hipocritamente asilo
depois de vós terdes traído o compromisso que tendes com eles,
transformando-vos num regicida?
- Deus providenciará! Deus... e mestre Jacques! Decididamente,
não havia esperança. Olivier baixou as armas:
- Tendes resposta para tudo! Escutai... deixai-as em repouso por um
momento! A estação vai avançada. Os caminhos vão tornar-se difíceis,
sobretudo se a neve e o gelo forem precoces. Uma dura provação para
umas mulheres cujo luto acaba de se iniciar. Concedei-lhes algum tempo
para chorar a dama Matilde, a vossa nobre mãe, tão pouco tempo depois
do fim cruel da dama Bertrade!
Persuadido de ter vencido, Mathieu permitiu que o seu rosto e peito
se distendessem lançando um profundo suspiro...
- Talvez, talvez! Tenhamos ainda mais um pouco de paciência!
Basta mandar buscá-las quando... o meu alvo - a palavra agradara-lhe! -
aparecer. Por agora, concentremo-nos no trabalho! Podíeis participar,
Olivier se, como pretende o meu filho, for vosso desejo...
- É meu desejo, mas não hoje. Remi deve ter-vos dito que eu só
estou de passagem a caminho da Provença, a minha terra natal e que,
se parei aqui, foi apenas a pedido da vossa mãe e também pela alegria
de trabalhar durante alguns dias sob as vossas ordens, como
antigamente, já que não posso ir a Paris.
- Regressareis quando quiserdes uma vez tuclo consumado...
- Não, porque dei a minha palavra. E antes de passar alguns dias
convosco, gostaria de ir rezar aos vestígios de uma das nossas antigas
comendadorias, nos arredores da cidade...
O que o cavaleiro estava a magicar era, de facto, uma enorme
mentira ao serviço de uma falta ainda mais grave para a sua
intransigente ética pessoal, mas talvez conseguisse salvar Machieu e a
sua família da loucura daquele. Sim, ia mentir, mas, pior ainda, ia trair-se
a si próprio ao violar a palavra dada ao Rei. Não só voltaria para trás,
como entraria em Paris, esperando que Deus tivesse piedade do
pecador voluntário, consciente de faltar à honra por amizade... e por
amor. Que, ao menos, antes de se afastar para sempre, tentasse
preservar o futuro e a vida daquela que amava! Depois, teria todo o
tempo que lhe restasse de vida para fazer penitência...
A Remi, que conseguira esconder o espanto com dificuldade,
limitou-se a dizer que precisava de ver alguém do qual esperava um
conselho e talvez também alguma assistência.
- Vou tentar obedecer à última prece da vossa avó. Enquanto
esperais pelo meu regresso, vigiai-o bem, caso...
- Compreendo! Estareis ausente muito tempo?
- Dois dias. Talvez três. Que Deus vos guarde, Remi!
- A vós também, Olivier!
Uma hora mais tarde, Courtenay partia de novo para Paris.
O cavaleiro atingiu a cidade naquela mesma noite, mesmo antes do
fecho das portas, tendo caminhado mais depressa do que nunca, de tal
modo tinha pressa de levar a bom porto a sua missão e de regressas ao
caminho da legalidade. Em vez de lhe pesar mais, dir-se-ia que a sua
consciência lhe dava asas.
Como o tempo consentira em manter-se seco, não estava mais
enlameado do que à chegada a Corbeil quando chegou à taberna de
Grande-Estafado e se deixou cair num banco, pedindo uma malga de
hipocras... O cavaleiro foi recebido com uma cortesia lison-jeadora. Por
outras palavras: não lhe fizeram perguntas indiscretas. O taberneiro
limitou-se, enquanto lhe servia o que Olivier lhe tinha pedido, a fazer
uma careta que, com muito boa vontade, lembrava o que podia ser um
sorriso e observou:
- Não te víamos há uns tempos!
- É verdade! Não fazemos sempre o que queremos na vida.
Ele está lá em cima? - acrescentou Olivier, erguendo o queixo na
direcção do tecto.
-Não saiu lá todo o dia. Basta dizer que os sacristães de Notre-
Dame estavam a preparar-se para a primeira missa quando ele
regressou.
- Não te sabia tão a par dos usos e costumes da catedral - disse
Olivier, rindo e pousando em cima da mesa algumas moedas. - Prepara-
me qualquer coisa mais reconfortante para lhe levar.
Provido do que tinha pedido - queijo, pão e vinho - Olivier subiu à
mansarda, encontrou a porta fechada e bateu várias vezes, até que, por
fim, uma cabeça mais emaranhada do que nunca se mostrou pela greta
entreaberta. Os olhos estavam sonolentos, mas foi reconhecido de
imediato:
- Olha! Sois vós? Que bom vento vos traz? - disse Montou, olhando
para a refeição com satisfação.
- Um vento em forma de ponto de interrogação. Preciso da vossa
ajuda.
Estava frio na mansarda, já que o medo de um incêndio bania
qualquer fogo o ar estava viciado. No entanto, Montou abriu uma janela,
indicando com um gesto ao seu hóspede que fizesse o mesmo. Em
seguida, bebeu de um trago a malga de vinho, cortou um pedaço de
queijo e uma espessa fatia de pão antes de iniciar o diálogo:
- Que posso fazer por vós? Há mais alguma donzela para salvar?
- Não. Graças a Deus e a vós, ela está bem. O pai dela é que corre
grave perigo.
- Mathieu de Montreuil? Foi preso?
- Ainda não, mas não deve tardar. Mestre Mathieu chamou a si o
vosso velho projecto de mandar Filipe para o outro mundo! Afirma ver
em sonhos o Grão-Mestre, que o encarregou da vingança!
- Acreditais nele?
- Não. Sobretudo, ele está obcecado com a ideia e não vê a
diferença, penso eu, entre o sonho, a realidade e o ódio.
- Se calhar, tem razão. Achais que o Papa e Nogaret morreram
realmente de morte natural? Aposto a minha camisa - e só tenho uma! -
em como foram umas mãos discretas que se encarregaram deles... O
nosso bom sire só tem... quarenta e seis anos, parece-me, e é um atleta.
Mais saúde não pode ter.
- Sem dúvida, mas Mathieu, naquela famosa noite, recebeu um
ferimento que lhe torna difícil o uso do braço esquerdo. Vai agir com
pouca perícia e será apanhado...
- E quereis que eu o ajude?
- De maneira nenhuma!
- Que faça o trabalho por ele?
- Ainda menos! A catedral de Notre-Dame continua a ser o vosso
porta-voz?
- Não depois da morte de Nogaret, que não resisti a publicar... mas
torna-se cada vez mais difícil. O bispo anda desconfiado e a vigilância é
maior...
- O guarda dos Selos morreu há mais de quatro meses e, em
princípio, não tendes doravante nada para anunciar... senão o fim do Rei
e disso encarregar-se-á o "sino grande" quando tocar a finados.
Pedro de Montou terminou o pichei de vinho, limpou a boca à
manga da camisa, fundou e depois:
- Se me dissésseis ao certo o que tendes na cabeça ganharíamos
tempo.
- Gostaria que a catedral suplicasse a Filipe que não fosse a
Fontainebleau este Outono para caçar, como é seu hábito.
- É lá que Machieu está à espera dele?
- Por agora, Machieu está em Corbeil, onde está sempre à espreita
da passagem da escolta real.
- Mas, enfim, vós e o filho dele não são suficientemente grandes
para o impedir de se lançar nessa aventura insensata?
- Ainda bem que também pensais assim! Talvez seja melhor contar-
vos o que se passou depois de nos termos separado na Torre de Nesle.
Se tiverdes tempo?
Montou estendeu-se ao comprido na sua cama com os braços na
nuca:
- Tenho sim! Sabeis muito bem que sou uma ave nocturna! Olivier
não era homem para grandes desenvolvimentos e, assim, foi breve e
preciso. Montou ouviu-o com os olhos meio fechados, como uma criança
embalada por uma bela história, mas o litígio com o Rei fê-lo levantar-se
e ficar singularmente atento:
- Ele devolveu-vos a liberdade? - perguntou ele com estupor.
- Na condição de eu evitar Paris e de nunca mais pôr os pés em
França. Mas violei a minha palavra pela primeira vez na minha vida para
vos vir ver - acrescentou Olivier com tristeza. - Tenho vergonha, mas a
salvação de Mathieu é-me muito cara! Sois capaz de me compreender?
- Resta-me o suficiente de cavaleiro para saber o que vos custa,
mas fizestes bem em vir: creio que estou em condições de vos
tranquilizar sem que precise de flechas ou de outra coisa qualquer: o Rei
não vai a Fontainebleau este Outono.
- Como é que sabeis?
- Tenho uma ou duas fontes em bons locais, mas desta vez nem
precisei delas porque o que vos vou dizer toda a gente sabe: Filipe
deixou todos os assuntos nas mãos de Enguerrand de Marigny e foi
repousar e caçar para as margens do Oise...
- Foi outra vez para Maubuisson?
- Não. Para Pont-Sainte-Maxence. Perto do burgo que ele fundou,
há alguns anos e a pedido da mulher, a abadia de Monteei, confiada às
Claristas e, bem entendido, mandou construir ao lado um pequeno
castelo, próximo, aliás, de La Cour-Basse, o de Filipe de Beaumanoir,
um dos seus principais conselheiros. Talvez até um amigo...
- Isso não quer dizer que não vá para Fontainebleau!
- É impossível. Não vai fazer mais nenhuma estadia fora de Paris,
agora que o Inverno se aproxima. Assim, meu amigo, podeis ir
tranquilamente ter com aquele pobre Mathieu. Ele vai esperar em vão e
se alguém se encarregar de executar as vontades do Grão-Mestre, esse
alguém não será ele!
O suspiro que saiu do peito de Courtenay era de fazer levantar o
telhado. Aquele homem fora do comum tinha o dom de lhe inspirar uma
confiança absoluta. No entanto, o cavaleiro decidiu fazer por mais algum
tempo de advogado do diabo:
- Ele pode ser forçado a interromper a estadia. O reino... -... está em
paz... por mais duro que seja de admitir. As ligas formadas depois da
morte do Grão-Mestre mantêm-se calmas e o crédito que Marigny
obteve dos Lombardos desencalhou as finanças. Enfim, lembrai-vos que
no Inverno não se combate. O repouso que pensa ter bem merecido
passa-o o Rei em Pont-Sainte-Maxence. Mais nada.
Não havia nada a acrescentar. Olivier entregou as armas com
prazer. Estava morto por ir ter com Remi para lhe dar a boa notícia. Ele e
o pai poderiam trabalhar em paz para os cónegos de Corbeil e ele
próprio poderia retomar o seu caminho na direcção do céu azul da sua
terra natal. O cavaleiro levantou-se, mas Montou reteve-o:
- Onde pensais que ides? É noite e as portas de Paris estão
fechadas...
- É verdade! Já me esquecia! E também já me esquecia que estou
cansado.
- Então, ficai e repousai! - disse Montou, levantando-se. - Dormi até
vos fartardes, o sítio é vosso!
- Ides sair? - Tenho umas contas a ajustar. Estarei de volta de
madrugada para vos dizer adeus!
Tendo dito aquilo, Montou envolveu-se no sem grande manto negro,
meteu na cabeça um chapéu todo deformado e saiu. Sem levar o arco
que disparava tão bem e que Olivier foi ver, antes de se deitar, se
continuava no seu lugar. Feito aquilo, estendeu-se na enxerga e
adormeceu instantaneamente.
Foi o galo asmático do priorado de Saint-Denis-de-la-Châtre, logo
seguido pelo sino das Primas, que o acordou, e também o frio
penetrante da madrugada. Montou ainda não regressara. Olivier olhou
pela janela para o céu que lhe pareceu relativamente claro e depois
hesitou sobre o que fazer. Sentindo-se em forma, tinha pressa de partir e
queria transpor as portas logo à abertura, mas, por outro lado, o seu
anfitrião especificara que estaria de regresso de madrugada para lhe
dizer adeus...
Depois de reflectir e como a melhor maneira de se aquecer era
comer qualquer coisa, decidiu descer à sala e tomar o pequeno-almoço
enquanto esperava pela ave nocturna.
Grande-Estafado já lá estava, varrendo negligentemente os detritos
deixados pelos clientes da véspera, mas na lareira o fogo chamejava e
Olivier aproximou-se dele com satisfação.
- Posso comer qualquer coisa? - perguntou ele ao taberneiro, que
não parecia ter-se apercebido da sua presença.
Sem uma palavra, Grande-Estafado foi cortar um naco de pão, tirou
uma caneca de cerveja e regressou ao que estava a fazer antes:
- É pouca coisa! - queixou-se Olivier.
Grande-Estafado, decididamente pouco inclinado para a conversa,
fez sinal de que tinha compreendido, voltou a cortar outro naco,
acrescentou-lhe uma grande cebola, um pedaço de queijo, uma nova
caneca de cerveja e serviu tudo ao seu cliente, estendendo uma palma
da mão significativa. Olivier compreendeu, pagou e depois de uma curta
oração concentrou-se na refeição, o que lhe levou algum tempo. Como o
Templo tinha ensinado ao regressar do Oriente, e tal como ele aprendera
no Templo, comia lentamente por respeito pela alimentação de Deus e
em silêncio. Naquele ponto não havia nada a temer por parte do
taberneiro, que continuava a sua lida da casa sem se preocupar com ele.
Mas quando chegou às últimas migalhas, Olivier foi obrigado a constatar
que Montou continuava ausente e que o dia já tinha nascido. E levantou-
se:
- Não posso esperar mais tempo - disse ele a Grande-Estafado. -
Tenho de partir e tu dir-lhe-ás adeus por mim. Diz-lhe também que, se
precisar de mim, sabe onde me encontrar. Estarei lá até ao fim do ano -
precisou ele, acrescentando uma pequena moeda a título de
encorajamento.
O gordo fez sinal de que tinha entendido, levou a mão ao barrete e,
apesar de tudo, disse:
- Podes vir aqui sempre que quiseres! Mesmo sem ele.
- Obrigado!
Dirigindo-se para a Petit-Pont para atingir a margem esquerda,
Olivier tentou analisar o que poderia tê-lo levado, momentos antes, a
dizer que ficaria em Corbeil até ao fim do ano, quando no dia anterior, à
noite, depois de ter obtido a certeza de que o Rei não iria a
Fontainebleau, tinha decidido retomar o seu caminho com destino a
Valcroze. Dissera aquilo espontaneamente e, reflectindo, acabou por
concluir que era seu desejo profundo não abandonar Mathieu e Remi
senão uma vez certo de que, com profecia cumprida ou não - e no fundo
de si mesmo estava persuadido de que se cumpriria! - o ano fatídico
chegaria ao seu fim. A família dos seus amigos poderia, então,
consolidar-se e ir trabalhar em paz para outras catedrais sob outros
céus. Naquele ponto das suas cogitações, o pensamento de que os céus
em questão podiam ser mediterrânicos atravessou-lhe o espírito, mas
afastou-o com cólera. Não tinha de expiar a grave falta à sua honra que
acabava de cometer? Ora, se ainda não sabia qual a penitência que lhe
imporia o confessor que o ouviria, esta não podia, em nenhum caso,
incluir a presença de uma jovem encantadora.
Ao entrar em Corbeil no dia seguinte - sabendo que ao cair da noite
as portas se fechariam - pedira a hospitalidade de um mosteiro a uma
légua de distância da cidade - ainda se sentia feliz com a boa notícia que
ia dar a Remi, mas aquele estado de graça não resistiu muito mais
tempo quando chegou à vizinhança do estaleiro. Em vez de estarem nos
andaimes, os operários conversavam agrupados em redor de Cauvin e
de Remi. Este destacou-se do grupo ao ver chegar Olivier. O jovem
estava pálido, visivelmente inquieto e pela melhor das razões: Mathieu
tinha desaparecido.
- Como assim, desapareceu? - perguntou o cavaleiro.
- Deixou o estaleiro ontem de tarde e foi para casa. Quando lá fui,
não estava lá, mas ninguém o viu sair. Como não sabia onde tinha ido,
esperei por ele. Toda a noite, sem que aparecesse.
- - Revistastes bem a casa? Talvez tenha deixado um bilhete.
- Não encontrei nada, mas talvez, de facto tenha procurado mal.
Estava tão preocupado!
- Vamos ver!
Não havia nada para ver. A pequena casa na margem do rio estava
perfeitamente em ordem. Nada que indicasse uma partida precipitada ou
um ataque qualquer. Aliás, Remi ter-se-ia apercebido ao primeiro olhar.
De tanto procurar, entretanto, o jovem acabou por reparar que, na arca
do seu pai faltavam várias roupas, para além das que ele tinha vestidas.
Além disso, a pequena reserva de dinheiro que ali guardava estava
reduzida a metade.
- Terá partido em viagem? - concluiu Remi sem conseguir acreditar
por completo. - E para fazer o quê, sobretudo sem me ter dito nada?
- Para que não vos opusésseis! Pergunto a mim próprio... oh, não é
possível! Como poderia ele saber...
- O quê?
- Que o Rei não vem a Fontainebleau este Outono, pela excelente
razão de que está em Pont-Sainte-Maxence, no Oise. Soube-o em Paris
e apressei-me a vir para vo-lo dizer... mas não a ele. Era a certeza, para
nós, de que ele não cometeria a loucura em que estava a pensar.
Bastava deixar passar o tempo...
- Tendes a certeza?
-Tenho! Em Paris, toda a gente sabe, parece. Mestre Mathieu deve
ter-se encontrado com alguém de lá que o pôs ao corrente! Não estamos
assim tão longe e os barcos que abastecem a cidade...
Olivier interrompeu o seu discurso. Era evidente que só podia ser
aquilo! As barcaças que desciam quase todos os dias o Sena também o
subiam, arrastadas pelos vigorosos cavalos ao longo dos caminhos de
sirgagem. Como pudera pensar que trazia consigo um segredo? Bastava
que o mestre construtor tivesse falado com um dos barqueiros para ficar
a saber o que lhe queriam esconder...
- Que imbecil que fui! - disse ele, furioso e virando-se depois para o
amigo. -Sabeis se, ontem de manhã, ele foi ao porto e se falou com
alguém?
- Não, mas podemos saber...
Os dois homens foram ao cais e, a meias, interrogaram vários
homens. Mathieu, com a sua estatura, o braço quase imóvel e a cabeça
de velho leão, era ali muito conhecido.
Ora, nenhum dos que questionaram lhes pôde dizer se o tinha visto
e nenhum barco descera o rio na véspera, ou naquela manhã.
Era de dar com a cabeça nas paredes!
Chegada a noite, fechados na casa, falaram com Cauvin. O
contramestre não ignorava nada dos projectos regicidas do seu patrão e
não os aprovava, mas estava pronto a correr todos os riscos para lhe
acudir.
- Se Olivier tiver razão - disse ele - um de nós devia ir ver o que lhe
aconteceu. Mesmo que ninguém se tenha apercebido, mestre Machieu
deve ter falado com alguém.
Ao mesmo tempo, o seu olhar fixava Courtenay, dizendo claramente
que aquela tarefa lhe competia por direito. Pessoalmente não se podia
afastar do estaleiro cujos trabalhos, na ausência do patrão, ela ele que
assegurava. Coisa importante perante os cónegos, que se tinham
arriscado a esconder um homem procurado pelo poder. Não podiam
agradecer-lhes daquela maneira, abandonando a obra, ainda por cima
paga generosamente. Remi compreendeu o olhar do contramestre e
disse:
- Eu vou! Olivier não pode, mais uma vez, voltar para trás! Não vos
posso explicar porquê, Cauvin: é assim!
Mas Olivier não era da mesma opinião. Algo o atormentava e o
cavaleiro pensou em voz alta:
- Isto nem parece coisa de mestre Mathieu! Se quisesse ir para
longe, alterando os seus planos, não teria ido sem dizer nada, às
escondidas, deixando toda a gente embaraçada. Sem contar com a
angústia de Remi. Além disso, apesar de já não ser o mesmo homem
desde que está agarrado ao que chama a sua missão, não pode ter
renunciado ao sentido do dever e da honestidade, arriscando-se a
passar por ladrão aos olhos do capítulo da colegial...
- Que propondes, nesse caso? - grunhiu Cauvin.
- Esperar mais um pouco. Pelo menos mais esta noite e amanhã
tentar saber um pouco mais. Passamos hoje o porto a pente fino e sem
resultados. Tentemos amanhã o resto da cidade para saber se alguém o
viu, mesmo que não lhe tenham falado!
- Parece-me sensato - aprovou Remi. - Talvez nos tenhamos afligido
em vão e ele não tarde a regressar?
- Por que não, afinal de contas? - disse Cauvin, sufocando um
bocejo. - As portas estão fechadas, é melhor tratarmos de dormir.
Amanhã, logo se verá... pelo menos, assim espero.
Separaram-se. Cauvin, que estava alojado em casa de um dos
pedreiros, regressou e Remi deu alojamento a Olivier em vez de o deixar
regressar ao albergue.
De manhã, Mathieu ainda não tinha regressado. Mas, mal o sino
tocou para as Primas, chegou ao estaleiro um seminarista da igreja de
Saint-Etienne-D'Essonnes, chamando por "mestre Bernardo". Indicaram-
lhe a cabana dos projectos, onde se encontravam Remi e Olivier. O
homem vinha dizer-lhe que o seu cura e o bailio estavam de acordo para
que o mestre-de-obras recuperasse as poucas pedras da antiga
comendadoria templária de Saint-Jean-enrisle, quase totalmente
destruída.
- Havia lá uma comendadoria? - não pôde deixar de perguntar
Olivier.
- Oh, não era muito grande, mas tinha alguns edifícios bem bonitos.
Depois de a ter vasculhado de ponta a ponta, os homens do Rei tinham-
lhe pegado o fogo... e as gentes da aldea tinham-se servido das suas
pedras antes que o bailio os proibisse.. E quando mestre Bernardo lá
foi...
- Quando foi isso? - perguntou Remi.
- Há dois ou três dias, creio... Esperai, para que me lembre
exactamente! Sim, foi há dois dias de manhã. Ele estava a falar com o
nosso cura na igreja quando eu entrei, ainda espantado por ter visto na
estrada o cortejo do nosso sire, o rei...
- O quê?
Olivier e Remi tinham feito a pergunta simultaneamente. Aquilo
sobressaltou o clérigo, que olhou para eles com uma vaga inquietação:
- Bem, sim... o cortejo do Rei! Não era muito grande mas mesmo
assim! Um grupo de cavaleiro ricamente vestidos com a bandeira das
flores-de-lis e com o nosso sire no meio! Tão nobre tão grande! É fácil de
reconhecer.
-Já o tínheis visto antes? - perguntou Olivier.
- Não, mas... um aparato daqueles! E as pessoas, que que ainda
gritavam "Natal" quando ele já tinha passado. E então, as pedras?
- Vamos mandar lá alguém! Obrigado por terdes trazido a
mensagem - disse Remi.
- Oh, de nada! - respondeu o seminarista com um suspiro radioso.
Posso ver os homens a trabalhar por uns momentos? Eles parecem
estar a fazer um belo trabalho!
- Ficai o tempo que quiserdes!
Assim que ele desapareceu no ângulo da colegial, Olivier e Remi
permaneceram um instante em silêncio, mas só um instante antes de
Remi dizer, suspirando:
- É inútil continuar a procurar, o meu pai está em Fontaine-bleau!
- É incrível! - disse Olivier. - Como é que Filipe aparece aqui quando
se sabia que estava na região do Oise?
- Ele é o Rei - disse Olivier encolhendo os ombros - por que não há-
de mudar de opinião e decidir ir para o seu querido castelo sem avisar
ninguém? Para as pernas sólidas dos seus cavalos, as distâncias não
são longas. Talvez lhe tenha desagrado qualquer coisa? Vá-se lá saber!
- Seja como for, é uma verdadeira catástrofe. Só nos resta uma
coisa, ir a Fontainebleau a toda a pressa, esperando não chegar
demasiado tarde!
- Demasiado tarde, não! Se ele já tivesse atacado já se saberia: este
género de notícias corre nas asas do vento e já se teria ouvido o toque a
finados.
- Pode tocar a qualquer minuto! Vou já para lá!
- Dai-me tempo para avisar Cauvin e vou convosco! Não seremos
demais para o encontrar!
Enquanto Remi se dirigia aos andaimes, Olivier regressou à casa.
Foi então que o mistério, por momentos esclarecido, se obscureceu de
novo quando ele deu de caras com Pedro de Montou, mais poeirento do
que nunca:
- Até que enfim vos encontro! - grunhiu este. - Podeis gabar-vos de
me terdes obrigado a correr! Por que não esperastes por mim em minha
casa?
- Não sabia se os vossos assuntos vos reteriam mais do que o
previsto e tinha de regressar aqui para tranquilizar Remi e os que se
impacientam com os desenhos de Mathieu... Infelizmente, enganastes-
vos...
- Em quê?
- O Rei foi para Fontainebleau.
- É impossível! O Rei está no palácio da Cite. Foi de Pont-Sainte-
Maxence para lá de barco. Assisti ao seu transporte numa maca!
- Enganastes-vos! O jovem seminarista que vedes além a ver os
pedreiros a trabalhar, viu-o há dois dias a atravessar Essonnes a cavalo
com o pessoal da casa dele.
- Como é que ele o reconheceu? Já o tinha visto?
- Não sei, mas estava tudo lá: a expressão, o cortejo, as bandeiras
com a flor-de-lis...
- Não é só Filipe que tem direito à flor-de-lis e o vosso futuro cura
parece-me um belo palerma! Já vos disse, se levaram o Rei para Paris
por via fluvial é porque ele está doente.
- Doente, ele? Ora vamos! Ele é de ferro!
- Mas o ferro pode esconder uma palha. Eu tentei descobrir mais
qualquer coisa e soube o seguinte: quando andava à caça na floresta,
ele afastou-se com os cães, como gosta e, de repente, os monteiros
ouviram uns gritos e acorreram. Encontraram o Rei por terra junto do seu
cavalo. Estava frio, naquela manhã, a geada cobria o solo e as árvores
despojadas de folhas. Ora, quando descobriram Filipe, os caçadores
viram afastar-se um grande veado por entre as árvores, o qual deixara
para trás um pedaço das hastes em forma de cruz e um fraco raio de sol
fazia brilhar essa cruz. Os homens ficaram de tal modo assustados que
nenhum deles pensou em perseguir o animal. Além disso, tinham mais
que fazer. Levaram o doente para o castelo onde, durante a noite, ele
recuperou a consciência, mas estava tão fraco que o meteram num
barco que desceu o Oise e que depois subiu o Sena até à Cite... Que
achais da minha história, messire de Courtenay? Estranha, não é
verdade?
Olivier, que empalidecera, não respondeu de imediato. Parecia ter
dificuldade em recuperar o fôlego. Por fim, o cavaleiro benzeu-se com
uma espécie de terror: - Acho que a profecia do Grão-Mestre acaba de
se cumprir, que o Rei vai morrer... e que Deus não precisava do mestre
Mathieu para fazer cumprir a Sua vontade. Simplesmente, aquele louco
foi para Fontainebleau para ir ao encontro... não sei de quê!
- Penso que devia ser monsenhor d'Evreux. Eu sei que ele possui
um domínio perto do castelo. Se Mathieu de Montreuil se lançou em sua
perseguição, imaginando perseguir o Rei, aperceber-se-á do erro e
voltará para trás.
- Achais que sim?
- Ele conhece muito bem o seu alvo, assim como Luís d'E-vreux e
Carlos de Valois, para se enganar.
- Ele já não é a mesma pessoa por causa daquela mania do
assassínio, que o devora. Pode cometer um erro, confundir a pessoa,
nada é impossível!
- Talvez, mas, se eu tenho razão, ele foi para os arredores do
castelo de Fontainebleau. Ora, como não está lá mais ninguém senão a
guarnição, ele compreenderá rapidamente que se enganou.
Montou tinha, certamente, razão. No entanto, Olivier não ficou
descansado. Mathieu tornara-se demasiado imprevisível para a sua paz
interior. No mesmo instante, Remi foi ter com ele. O cavaleiro deu-lhe
parte do que acabava de saber, pelo que o jovem ficou perturbado, mas
foi da mesma opinião de Olivier:
- Se o espírito do meu pai continua admirável quando se trata de
exercer o seu ofício, perde toda a capacidade de julgamento quando se
trata do Rei. É preciso procurá-lo!
Só Deus sabe o que ele é capaz de fazer se o deixarmos sozinho!
- Estou de acordo. Vamos!
- Se me quiserdes oferecer com que restaurar as minhas forças,
será para mim um prazer acompanhar-vos - disse Montou com uma
careta. - De facto... deixei Paris sem intenção de regressar.
Então, Olivier apercebeu-se de que, sob o manto, o antigo templário
levava a tiracolo o arco de que se servia com tanta habilidade.
- Que é que vos deu?
- A vontade de ver a região. Nunca é bom um homem embrutecer.
Pelo sorriso trocista com que ele temperou o seu propósito,
Courtenay compreendeu que Montou não diria mais nada e que devia ter
uma boa razão para aquela súbita vontade de ver o campo. E como
Remi olhasse para o recém-chegado com um ar de dúvida, apressou-se
a dizer:
- Desde a Torre de Nesle que sei como sois um bom companheiro
de armas! Recruto-vos... com alegria!
Enquanto levava Montou ao albergue, Remi foi ter com os cónegos
para que lhes emprestassem uns cavalos, podendo assim atingir o seu
objectivo, distante umas oito léguas, mais rapidamente. Para isso, não
recuou perante uma enorme mentira: o seu pai, disse-lhes, sofria há
semanas de terríveis dores de cabeça. Para poder curar-se, partira para
Melun para rezar a Santo Aspais, especialista na matéria. Ora, Mathieu
tardava e Remi, preocupado, desejava ir ao seu encontro com dois
companheiros, o que, a pé, podia levar muito tempo. Justamente
preocupado com um homem cujo talento lhe era tão precioso, o capítulo
cedeu três mulas sólidas que tiveram o dom de desencadear a hilaridade
de Montou:
- Vão pensar que somos bispos, montados nestas coisas! -
exclamou ele, subindo para uma delas.
A operação não foi sem algumas dificuldades, já que o animal era,
sem dúvida, impermeável a quaisquer brincadeiras.
Ao ver os exercícios equestres a que ele se entregava, Olivier teve a
ideia de que talvez fosse melhor pedir cavalos emprestados à sirga das
barcaças, mas Remi respondeu-lhe que aqueles animais, muito
pesados, estavam habituados a andar a passo e que devia ser quase
impossível obrigá-los a galopar. Montou resignou-se com um suspiro de
meter dó: teria dado o pouco que lhe restava para sentir de novo entre
as pernas o corpo poderoso e nervoso de um garanhão.
O galope também não era o passo favorito das mulas, mas
conseguiram um trote alegre que levou os três homens ao seu destino
em pouco mais de duas horas.
Aninhado numa clareira da grande floresta de Bière, Fontai-nebleau
era um lugarejo agrupado em redor da sua capela de São Saturnino,
dependendo do que era, há menos de um século, um simples ponto de
encontro de caça e que São Luís transformara num castelo de média
importância.
Próxima da aldeia de Avon e da igreja de São Pedro, transformada
em paróquia, a casa natal de Filipe, o Belo oferecia, do alto das suas
torres, uma vista magnífica das curvas do Sena, cercadas nos dias
bonitos por uma verdura densa animada pelo canto das aves e dos
ruídos fugitivos de uma fauna numerosa. Naquele momento, as folhas
estavam por terra e as árvores desnudadas, mas o local exalava uma
serenidade profunda, à qual os três viajantes foram sensíveis.
Os três homens encontraram alojamento num albergue próximo do
Sena. O hospedeiro era uma mulher: uma comadre forte de cabelos
desgrenhados e cuja grande estatura e braços musculosos impunham
respeito, tanto quanto o olhar de granito e o queixo quadrado de sólidos
dentes brancos.
Muito limpa - a sua casa era modesta mas tão bem arranjada
quanto o permitiam os meios limitados - e conversadora, sabia julgar as
pessoas e raramente se enganava.
Os três companheiros não tiveram qualquer dificuldade de saber por
ela - chamava-se Nicole! - que Mathieu estava lá hospedado que estava
fora a maior parte do tempo:
- É um ancião muito educado e muito correcto - disse-lhes ela - mas
penso que não regula bem. Chegou aqui persuadido de que o nosso
sire, o Rei, estava no castelo.
Bem lhe disseram que não estava e que nem sequer sabiam se
vinha como habitualmente visto que a estação já vai avançada, mas ele
não quis acreditar. Até afirma que não deve tardar e anda à roda do
castelo como um lobo doente e os guardas já começam a olhar para ele
de lado...
- Porquê? - perguntou Olivier. - Ele não fez mal nenhum, que eu
saiba.
- Não, mas está sempre a fazer a mesma pergunta e lá em cima já
estão fartos dele. Se sois da família dele, faríeis bem em levá-lo daqui!
Não vai sair boa coisa dali!
- Viemos, justamente, buscá-lo - disse Remi. - Onde é que ele está?
Nicole fez, com a cabeça, um gesto na direcção do exterior:
- Onde quereis que esteja?
De facto, não tiveram de ir longe e encontraram Mathieu sentado
num pequeno monte à vista da ponte levadiça. O construtor tinha entre
as pernas um pesado bastão que devia ter talhado para caminhar mais
comodamente. Mathieu não ouviu chegar os três homens e só Remi se
aproximou dele:
- Meu pai - disse ele - não deveis ficar aqui!
Mathieu virou a cabeça e o jovem sentiu um aperto no coração
perante aquele rosto mudado em tão pouco tempo! A máscara, já
leonina tornara-se feroz, perdendo em majestade e ganhando em
inquietação. E Remi também não gostou do brilho estranho que viu nos
seus olhos. No entanto, Mathieu reconheceu-o:
- Mas fico! Estou à espera do demónio a quem chamam Filipe!
- Ele não vem, meu pai. Está no palácio da Cite.
- Quem te disse?
- Alguém que o viu.
- Esse alguém está enganado. Um padre reconheceu-o perto
daqui... mas não sei por que tarda tanto!
- O padre é que se enganou. Não era ele, era o irmão, monsenhor
d'Evreux, que é parecido com ele. Asseguro-vos, meu pai, o Rei está em
Paris e não vem caçar a estes bosques este Outono! Ele está... doente!
Intencionalmente, Remi destacara a palavra para que ela
penetrasse num espírito que ele sentia fugir-lhe. E conseguiu.
- Doente? De quê?
Não sei, mas o que é certo é que estava a caçar em Pont-Sainte-
Maxence, no Oise, que caiu e que o meteram numa barca para o
levarem para o palácio. Como vedes, meu pai, Deus encarregou-se dele,
tal como se encarregou do Papa e de Nogaret!
- Ah! Achas que sim?
- Acho, com toda a minha alma. O Rei vai morrer e o pesadelo
acaba. Ides poder recomeçar as grandes obras, que serão maiores
orações a Deus do que um assassínio!
Vinde, a noite está a cair! Está frio e tendes de vos aquecer.
Amanhã, regressamos.
As palavras de Remi eram tão persuasivas que Mathieu levantou-
se, segurou no braço do filho e, apoiando-se no outro lado ao bastão,
seguiu-o pelo caminho que ia dar ao albergue, na direcção do qual,
vendo que as coisas estavam a correr bem, Olivier e Montou já tinham
começado a andar.
Ao vê-los, Mathieu teve um movimento de recuo:
- Por que não vieste só?
- Porque não sabia onde estáveis exactamente e, a três, podíamos
procurar melhor. Além disso, os bons dos cónegos, que estão em
cuidado convosco, emprestaram-nos umas mulas para vos levar de volta
rapidamente.
- É muita gentileza da parte deles...
- Não. É natural: eles gostam de vós... tal como nós!
Mathieu parecia apaziguado. Mostrou-se razoavelmente educado
com os companheiros do seu filho, não falou muito durante o jantar e,
mal terminou a refeição, deixou-se levar para a cama sem protestar: o
construtor parecia muito cansado, de repente, e adormeceu mal se
deitou. Remi informou os outros, que tinham decidido ficar em frente da
lareira com uma malga de vinho com ervas nas mãos. O jovem parecia
subitamente muito feliz e desejou as boas-noites aos seus amigos,
acrescentando que preferia ficar junto do pai até ao momento da partida.
Sós, os dois homens permaneceram por alguns momentos em
silêncio, saboreando aquele instante de paz. Só se ouvia a voz
rabugenta de Nicole a dar banho ao filho na arrecadação, mas até esse
som participava na serenidade ambiente: não passava do reflexo de uma
vida quotidiana normal. Coisa que aqueles antigos templários não
conheciam há muito tempo.
Por fim, Montou perguntou:
- Depois de os levarmos, retomais o vosso caminho?
- Sem mais demoras. Eles não precisam de mim e eu tenho pressa
de chegar a Valcroze! O seu céu puro e as suas charnecas ao sol.
- Posso acompanhar-vos? Se regressar a Paris, espera-me a forca.
Ou pior... e não tenho eira nem beira.
- Que andastes a fazer?
- Com alguns camaradas, fomos visitar o bispo Jean de Marigny
para o aliviar, pelo menos, de uma parte do que ele roubou ao Templo...
e noutros sítios. Mas eu queria mais: queria matá-lo para o obrigar a
expiar os interrogatórios, as torturas... infelizmente, fizemos mal as
contas e só tivemos tempo de fugir! O texugo está bem guardado e o
palácio cheio de armadilhas... Um dos nossos foi apanhado. Há-de falar
e então...
- ... então Notre-Dame acaba, de perder a sua voz para sempre?
- De qualquer maneira, tê-la-ia perdido na mesma. Começo a sentir
a fadiga dos anos e arrasto comigo uma grande dor. Dir-me-eis que um
bom convento é o indicado, mas a vida de monge, de verdadeiro monge,
nunca me agradou! Demasiados Padre-Nossos e pouca acção! Creio
que prefiro morrer de fome e de miséria sozinho, ao pé de uma árvore.
- Também há árvores na Provença - murmurou Olivier ao cabo de
um momento. - E o clima é quente... Pode ser que só tenha uma cabana
de pastor para vos oferecer, ou uma gruta na montanha, mas estaremos
mais perto de Deus e não vejo razão para vos recusar um pedaço
daquilo que Ele criou com tanto amor...
Nos olhos castanhos de Montou brilhou algo. Era, talvez, uma
lágrima, mas o antigo templário limitou-se a dizer:
- Obrigado!
A primeira neve caíra durante a noite, demasiado leve para penetrar
no espesso emaranhado da floresta, quando, ao nascer do dia, tomaram
o caminho de regresso a Corbeil. Os prados e os campos estavam
cobertos por um manto branco. Remi cedeu a sua mula ao pai e, sendo
com ele o menos pesado, Montou cedeu-lhe a sua garupa, o que
contribuiu para retardar o andamento, mas a pressa já não existia, agora
que tudo entrara na ordem.
Estavam a chegar aos arredores de Essonnes quando o drama
estalou...
A estreita estrada surgiu subitamente obstruída, ao ponto de ser
impossível passar, nem sequer pelos declives onde se amontoavam os
camponeses, mas os quatro viajantes não pensaram nisso, petrificados
como ficaram perante tantos cavalos parados, aliás, obstruindo a
passagem e por cima dos quais flutuavam pendões e estandartes com
as armas de França: cavalos, servos, arqueiros, grandes senhores
rodeando um homem que Olivier e Montou reconheceram com espanto,
antes mesmo de ouvirem o seu nome proclamado por centenas de
bocas:
- O Rei... O Rei!
Era e ele e, no entanto, já não era. Por baixo do capuz de veludo
azulado, a pele pálida colava-se aos ossos da face sob as órbitas
encovadas, violáceas em redor dos olhos de um azul-deslavado. Estes
estavam fixos e Filipe não parecia ver. Mantinha-se na sela, rígido como
uma estátua, mas uma estátua que vacilava e que Hugo de Bouville e
Alain de Pareilles se esforçavam por manter direita. Porém, Olivier não
teve tempo de dizer a si próprio que estava a sonhar, que era impossível.
Já Mathieu, que ia à frente, se virava para os seus companheiros,
espumando pela boca e com a loucura no olhar:
- Mentistes-me! Ele está vivo... Ele está vivo! Chicoteando o seu
animal com uma mão e desembainhando a longa faca que levava à
cintura, o mestre-de-obras carregou na direcção do seu alvo gritando:
- Por mestre Jacques!
O ataque foi tão rápido que os cavaleiros afastaram-se na sua frente
e, por um instante, dir-se-ia que ele ia poder desferir o seu golpe, mas
uma acha-de-armas, manejada por um fidalgo da escolta, abateu-se
sobre a sua cabeça e Mathieu caiu, com o rosto cheio de sangue, entre
os cascos do corcel real e os da sua montada. O construtor estava inerte
e os que seguravam em Filipe fizeram deslizar suavemente da sela para
o levarem para uma liteira que se estava a aproximar... A sua volta, o
círculo alargou-se. Olhavam todos para aquele corpo sangrento, inerte e
miserável, sobre o qual o capitão da guarda se inclinou depois de o Rei
ter ficado escondido pelas cortinas.
Por seu lado, os companheiros de Mathieu tinham posto pé em
terra. Remi, evidentemente, quis precipitar-se na direcção do seu pai,
mas Olivier reteve-o com um punho de ferro:
- Que vais fazer? Entregar-te? Não podemos fazer nada por ele...
- Ele precisa de ajuda...
- Está morto! Nenhum crânio resistiria a um golpe daqueles!
- Mas é o meu pai!
- Sim, mas tens de pensar na tua mãe e na tua irmã. Tens de viver
para elas...
Os três homens ouviram Alain de Pareilles dar uma ordem depois
de ter virado o corpo de Mathieu com a ponta da bota:
- Enforquem-no! Como exemplo!
Então, Olivier não conseguiu suportar o soluço que rasgou a
garganta de Remi. Abrindo caminho por entre a multidão, aproximou-se
de Pareilles:
- Por favor, sire capitão, poupai essa vergonha à família desse louco
infeliz!
- Vós? Que fazeis aqui? Não tínheis jurado...
- Sim, e estou a caminho, mas antes quis tentar opor-me a um
gesto... como este e quase consegui.
- Quase porquê?
- Porque pensávamos que o Rei estava a morrer em Paris... E
depois ele viu-o... e ainda por cima a cavalo!
- Um momento!
O cortejo pôs-se em marcha em redor da liteira e do belo corcel sem
cavaleiro, levado pela brida por um escudeiro. Alain de Pareilles disse
algumas palavras ao ouvido de um oficial e ficou para trás com dois
guardas, um dos quais já tinha uma corda na mão.
- Ele? - perguntou o capitão da guarda sem atenuar a rudeza da
voz. - E quem é ele?
- Creio que sabeis!
- Como sois vós que estais a pedir por ele, sei. Mathieu de
Montreuil! E quereis que o respeitemos quando queria matar o Rei?
-Já vos disse que ele tinha renunciado porque pensava que Filipe
estava a morrer...
- Ainda não, mas não deve tardar. Desde que o fomos buscar que
não pára de regressar ao castelo natal para entregar a alma a Deus no
sítio onde a recebeu. Por meio de um daqueles esforços da vontade que
só ele tem, ordenou que o pusessem na sela, mas as forças, como
vistes, acabam de o abandonar... Mete dó!
Sem grande surpresa, Olivier viu, nas feições crestadas do fidalgo
uma lágrima, rapidamente enxugada pelo punho enluvado. Um dos seus
soldados aproximou-se:
- Sire capitão, quais são as vossas ordens? - perguntou ele
apontando para a corda.
- Não. No estado em que está, o nosso sire Filipe concederia o
perdão, creio, a esse demente, que foi um grande homem! Vamos-nos
embora! Pela última vez, espero, adeus, cavaleiro!
O capitão subiu para a sua montada que o esperava calmamente e
deu ordem para que aqueles que ainda se encontravam por ali,
esperando o fim do espectáculo, dispersassem; seguido pela sua gente,
afastou-se a trote para se juntar à coluna já fúnebre que levava o Rei.
Os três homens ficaram sós no caminho com o cadáver que Remi
abraçava. Pedro de Montou aproximou a mula que transportara Mathieu.
O filho deste e Olivier envolveram-no no próprio manto sem se
preocuparem com o sangue que continuava a escorrer e colocaram-no
no dorso do animal, ao lado do qual caminharam para o impedir de cair...
O céu, de uma cor feia, cinzento-amarelada, prometia uma nova
queda de neve que acabou por desabar, silenciosa, enquanto
regressavam ao estaleiro. Quando lá chegaram, o corpo parecia que ia
coberto por um lençol de linho puro...
Na mesma noite, Mathieu de Montreuil foi enterrado no pequeno
cemitério da colegial de Notre-Dame na presença do capítulo, ao qual
Remi não escondeu nada sobre as circunstâncias da sua morte, mas o
deão decidiu que a causa real permanecesse secreta. Mais valia, para
os aldeões de Corbeil, que o construtor tivesse sido vítima de um
acidente. Se bem que simples, a cerimónia não deixou, por isso, de ser
bela.
Terminados os planos do campanário, os cónegos resolveram
confiar em Cauvin, continuando Remi a sua tarefa de escultor. Quanto a
Olivier e Montou, podiam partir quando quisessem, o que fizeram no dia
seguinte quando os sinos do reino, tocando a finados e substituindo-se
os campanários uns aos outros, disseram ao povo de França que Filipe,
o Belo entrara na eternidade e que o Rei era agora o imprevisível Luís X.
Quando se despediram de Remi, Olivier e Pedro de Montou
aconselharam-no a ir buscar a mãe e a irmã para junto de si.
- Nenhum dos antigos servidores do Rei estará em segurança -
disse o último. - Marigny será o primeiro a ficar em perigo. O Cabeçudo
odeia-o e mais ainda Carlos de Valois, que vai ser todo-poderoso...
- É possível, mas por que razão umas mulheres sem importância
hão-de sofrer?
- Não vos esqueçais de Gontram Imbert! Se as leis e decretos do
reinado precedente forem abolidas, ele apressar-se-á a lembrar-se da
sua condenação e irá ajoelhar-se aos pés de Luís para lhe pedir que lhe
ponha fim.
- Então, as damas de Passiacum ficarão à sua mercê - prosseguiu
Olivier. - Não podeis deixá-las lá sozinhas...
- Vamos lá buscá-las amanhã - afirmou Cauvin com uma autoridade
inesperada. Como sou eu que substituo mestre Mathieu, parece-me
normal preocupar-me com a sua família - continuou ele, virando para
Courtenay um olhar onde havia um certo desafio.
A resposta veio por si própria:
- Elas têm Remi. Doravante é ele o chefe da família!
- Não vejo por que há-de recusar a minha ajuda. Não tenho
partilhado as más horas, assim como as boas? E como estais proi- bido
de ficar... Messire - disse ele com um respeito ligeiramente trocista que
restabelecia uma certa distância e também alguma exclusão - não
precisais de vos preocupar mais connosco!
Olivier virou-lhe as costas e segurou nos ombros de Remi para o
abraçar:
- Nunca deixarei de me preocupar convosco e com a vossa família -
disse ele com uma emoção profunda - esteja eu onde estiver. Não te
esqueças, se, por acaso, precisares, a distância a que se encontra a
minha região não é assim tão grande...
XIV – A TORRE FULMINADA

Os dois companheiros levaram mais de quatro meses a atingir os


Estados do Papa. O Inverno, precoce naquele ano, caiu sobre eles
quase logo a seguir à partida com os seus ventos mordazes e os nevões
que faziam desaparecer os caminhos, as florestas obscuras onde as
noites eram intermináveis, as alcateias de lobos, contra as quais tiveram
de lutar várias vezes e as quadrilhas de salteadores, se bem que estes,
sendo raros os viajantes naquela estação, passassem mais tempo no
calor dos seus covis.
Como já não era só ele, Olivier resolveu abrir os cordões à bolsa
que Alain de Pareilles lhe dera para comprar para ambos, em Corbeil,
amplos e espessos mantos com capuz e sólidos sapatos capazes de os
levar até ao fim da viagem. De facto, estava fora de questão arranjarem
cavalos que seria preciso manter e talvez abandonar, à mercê dos
animais selvagens. Iriam a pé, como peregrinos que não eram, mas nos
quais se foram tornando naturalmente à medida que prosseguiam. O
velho fundo templário, escondido no interior de ambos há tanto tempo,
acordava e subia à superfície. Essencialmente, a devoção a Nossa
Senhora, para cujo culto universal tanto tinham contribuído os cavaleiros
da cruz vermelha. Para Olivier, aquele regresso ao fervor antigo era
simples porque nunca o abandonara por completo, mas para Pedro, cujo
percurso se alimentara de violência e de ideias de assassínios, parecia
menos fácil. No entanto, foi o que aconteceu e de maneira muito
simples, sem a menor ostentação e sem apagar as asperezas do seu
carácter. Era um pouco como se Montou tivesse acordado de um sonho
profundo. Olivier compreendeu-o quando, chegados a Sens, cujo
arcebispo era o mesmo Jean de Marigny tão desprezível, perguntou
quando, em frente da catedral de Saint-Etienne, escutavam os
batimentos graves do sino chamado Maria na Torre de Chumbo: -
Existem locais de peregrinação à Mãe de Deus na vossa Provença?
- Muitos! Só em Marselha há três: Notre-Dame-de-Confession,
Notre-Dame-De-L'Huveaune e Notre-Dame-la-Brune. Mas há mais, mas
um deles toca-me de perto porque a minha mãe gostava muito de lá ir:
Notre-Dame-de-PEtoile, em Mous-tiers. O meu pai disse-me -
acrescentou ele com um sorriso - que ela ia lá rezar para que a Virgem
Maria me impedisse de entrar para o Templo.
- Não foi atendida.
- Não. Porém, até à última hora, teve sempre por ela uma profunda
e terna devoção... É um local magnífico e quase selvagem: uma capela
encostada à montanha por cima de uma aldeia escondida no fundo de
uma ravina e com um pequeno e severo mosteiro.
- Nesse caso, por favor, façamos o voto, se a Virgem Maria permitir
que cheguemos inteiros às terras da Provença, de rezar ao longo do
caminho em todos os santuários onde ela é venerada e terminar a nossa
peregrinação nesse altar depois de chegarmos a Valcroze...
- Se Valcroze ainda existir...
Assim fizeram, sem deixarem de entoar cânticos e rezar ao longo do
dia. Tiveram emboscadas, perigos e mau tempo contra os quais tiveram
de lutar, mas irem de igreja em mosteiro valia-lhes, muitas vezes, asilo
por uma noite ou por alguns dias quando as tempestades se
desencadeavam. Olivier, lembrando-se que era escultor, encontrava
sempre uma estátua para reparar ou um motivo de pedra para recriar e
Montou participava nos rudes trabalhos da comunidade. Em Fontenay,
onde passaram o Natal, ficaram quinze dias, assim como em Citeaux.
No imenso e esplêndido Cluny, onde Montou esteve engripado durante
quase um mês e assim por diante. Os dois companheiros evitavam as
antigas comendadorias templárias, sobretudo as que tinham passado
para os Hospitalários. Talvez porque, não esquecendo o que tinham
sido, recusavam a piedade condescendente dos seus antigos rivais.
Quanto ao salvo-conduto de Filipe, não precisaram dele, guardando-o
apenas como recordação. Mas rezaram por aquela alma estranha,
complexa, indecifrável, salvo aos olhos de Deus, no seu amor pela
França e no seu desprezo pelos homens.
Quando, depois de Lyon, iniciaram a descida do vale do Ródano, o
tempo, tão rude até então, tornou-se mais clemente. Um sol novo brilhou
num céu sem nuvens. As águas do rio corriam, tumultuosas, mas as
suas margens ofereciam, por vezes, uma enseada onde elas se
acalmavam. Perante aquilo, Olivier abandonou a velha estrada romana.
Então, sem quaisquer explicações, começou a despir-se.
- Que fazeis? - perguntou Montou.
- Vou lavar-me! E aconselho-vos a fazer o mesmo!
- Eu? Ainda está muito frio e não me apetece nada ficar outra vez
doente.
De facto, a limpeza corporal não era o seu pecado menor. Em Paris,
se lhe acontecia aventurar-se num banho público qualquer, era mais
para se encontrar com uma sedutora libertina qualquer do que para
tratar da sua higiene. No Templo, aliás, o banho não era um costume
habitual e desde que fora forçado a abandoná-lo Montou continuara a
partir do princípio de que a sujidade ajudava a manter o corpo quente,
sobretudo no Inverno. Durante a doença, em Cluny, o irmão enfermeiro
lavara-lhe o rosto e as mãos, mas sem se aventurar a ir mais longe.
Olivier, esse, apesar de estar habituado aos odores fortes emitidos pelo
seu companheiro, sabendo que os seus não eram melhores, sofria
realmente com aquela falta de limpeza que se lhe colava à pele há
semanas. A tentação da água foi, então, mais forte: o cavaleiro não
resistiu e mergulhou depois de ter arrancado um punhado de erva com o
qual se esfregou o melhor possível, mas sem ilusões: à falta de sabão,
não chegava para se lavar como devia ser. A água estava fria mas
revigorante e apesar de não se demorar muito tempo no rio, apesar de
ter sido necessário vestir de novo umas roupas que precisavam de ser
lavadas, sentiu-se muito melhor quando retomaram a jornada. Sobretudo
moralmente. O seu desejo fora abandonar nas águas do rio a pestilência
do espírito, tanto quanto a do corpo, para se sentir um homem novo no
momento de se reencontrar com a sua terra natal. E teve a sensação de
ter conseguido. Restava o espinho cravado no coração e que o seu
último encontro com Aude tinha envenenado. Saber-se amado por ela
tinha-o ajudado a sobreviver durante o seu cativeiro em Passiacum. A
desilusão fora mais do que amarga. Sobretudo considerando que tinha
mais vinte anos do que ela e que era natural que ela se virasse para um
rapaz da mesma idade, bem-feito, agradável, que a levara para longe da
Torre de Nesle no decurso daquela noite maldita. Aquela hora já devia
estar com Remi, juntamente com a mãe... e Gildas também, sem dúvida,
decidido a mudar o seu futuro por amor a ela. Olivier bem dizia a si
próprio que era melhor assim, mas não conseguia deixar de sofrer.
A medida que as léguas se sucediam umas às outras, Aude ia
ficando cada vez mais longe e, talvez por isso mesmo, a sua pressa era
cada vez maior. Acontecia-lhe ter vontade de regressar, violando assim a
palavra dada. Mas o facto de ela ter sido dada a um morto ainda a
tornava mais sagrada.
Quando chegaram à vista de Richerenques, o cavaleiro viu o
estandarte do hospital de São João de Jerusalém na torre de menagem
e guardou para si a recordação da sua anterior passagem por aquela
fortaleza. Roncelin de Fos já devia estar bem morto. Era melhor e mais
sensato - e até mais agradável aos olhos de Deus, sem dúvida - enterrar
o ódio, ao mesmo tempo que o amor.
Em Carpentras, onde, segundo a vontade do último Papa Clemente
V, O Concílio se devia ter reunido há muito tempo e onde residia apenas
um punhado de cardeais {49}, encontraram a cidade em plena agitação
por causa da notícia que acabava de chegar: Enguerrand de Marigny,
ainda no dia anterior todo-poderoso "coadjutor" do reino, acabava de ser
enforcado no seu querido Montfaucon... Como ele não queria de modo
nenhum um Papa que pudesse descasar o Cabeçudo e como a sua
vontade foi a causa da não efectivação da assembleia eleitoral, as más-
línguas desataram-se, assim como as trocas de insultos entre os pró e
os anti-Marigny, aqueles manifestando-se naturalmente mais
violentamente do que estes.
De facto, ajustavam-se contas e o azar quis que os nossos viajantes
se encontrassem no meio de uma rixa. Como acontecia muitas vezes,
quando não se pertencia a nenhum dos partidos, apanhava-se das duas
facções. Como puderam, defenderam-se com o vigor habitual, mas
como a escaramuça se desenrolava no mercado, Olivier escorregou nos
detritos, caiu pesadamente contra a banca de um talhante... e partiu uma
perna.
A situação valeu-lhe a compaixão de Orange, persuadido, sabia
Deus porquê, de que o ferido estava do mesmo lado que ele e,
reconhecido, levou-o para sua casa e mandou chamar um médico judeu
do bairro vizinho. Este era um profissional hábil. Imobilizou-lhe o membro
quebrado por meio de talas e faixas embebidas numa mistura de água e
farinha que, ao secar, endureceu, compondo assim uma imobilização
perfeita.
Candelle, viúvo há longos anos e sem filhos, vivia sozinho com uma
velha criada que lhe mantinha a casa. O médico gostou da companhia
daquele "escultor" de compleição tão grande que se dizia nativo de
Castellane e que para lá contava regressar; e se adivinhou nele uma
outra personalidade, não tentou saber mais. Olivier pagou-lhe a
generosidade esculpindo-lhe uma estatueta de Santa Madalena,
padroeira da sua defunta mulher. Quanto a Montou, a quem Candelle
também deu asilo, naturalmente - depois de uma lavagem séria nas
águas do Auzon! - entregou-se à marcenaria como se não tivesse outra
coisa toda a vida, permitindo-lhe a força e a habilidade natas dedicar-se
a várias disciplinas.
Os dois homens ficaram dois meses em casa do médico. O São
João estava próximo quando se puseram de novo a caminho. Não sem
pena por parte de Candelle, um pouco consolado, apesar de tudo, pela
promessa que Olivier lhe fez de regressar no ano seguinte.
Os dois homens partiram como tinham chegado, numa manhã em
que o Sol, que eles perseguiam, brilhava generosamente. As
amendoeiras já tinham perdido a flor, mas a alfazema já enchia as
vertentes, ao mesmo tempo que as estevas e os medronheiros forravam
os pequenos vales entre as suaves colinas. Olivier reencontrava sem
dificuldade o caminho seguido com Hervé d'Aulnay quando levavam a
Arca para o seu retiro, no coração profundo da terra. Por Apt, onde
rezaram no sarcófago de Santa Ana, mãe de Maria, e Manosque, onde a
negra Notre-Dame-du-Romigier {50} os viu ajoelharem-se na sua frente,
atingiram o Durance, que atravessaram no mesmo local. Mais longe, foi
Gréoux, cujas muralhas louras e poderosas pareciam intactas, o que não
tinha nada de espantoso: tal como em Richerenques, o estandarte dos
Hospitalários surgia no céu, no topo do que fora o berak dos templários.
Era melhor, evidentemente, do que ver aquela magnífica fortaleza
desmantelada ou queimada, mas para quem tinha amado o Templo,
vivido o próprio Templo, o desgosto era o mesmo.
O começo daquele Verão era soberbo. Um céu mais azul do que
aquele que se estendia pelas terras altas da Provença não podia haver!
E como cheiravam bem os bosques de pinheiros, de zimbros e de faias,
ao assalto das charnecas com as suas ervas odoríferas e, mais acima,
dos planaltos de vegetação curta onde os ventos sopravam em turbilhão.
Sob o efeito da magia do solo natal, Olivier respirava o ar a plenos
pulmões, caminhando a maior parte do tempo em tronco nu e com a
roupa sobre o ombro, para que a pele reencontrasse o gosto pelo sol até
se queimar. A princípio, Montou refilou, mas, pouco a pouco, a vontade
de fazer o mesmo foi superior e a sua pele, de pilosidade abundante - já
não resmungava tanto, aliás, quando se tratava de mergulhar nas águas
dos ribeiros! - foi ficando com uma cor avermelhada, mais própria do que
a branca-acinzentada original.
Passado o Verdon por cima de uma velha ponte romana que as
águas verdes e tumultuosas - um pouco mais calmas do que nas
gargantas! - não tinham conseguido destruir, o coração de Olivier mudou
de ritmo porque acabavam de entrar na sua terra.
Tinha-a percorrido tanto, com o pai ou com o irmão Clement, que
lhe conhecia todas as veredas, que atravessavam os pequenos vales
atapetados de giestas douradas e os cabeços arborizados e depois nus,
cada vez mais altos até atingirem os picos nevados dos Alpes que se
entreviam, por vezes, quando o tempo o permitia.
Por fim, depois de uma curva do caminho, reencontraram o rio cor
de esmeralda. Seguiu-se uma outra ponte, uma outra vereda e o castelo
de Valcroze surgiu aos olhos daquele que tanto esperava vê-lo. Valcroze
onde, à entrada da torre, os besantes dos Courtenay, com a barra na
diagonal esquerda, se juntavam às aves de Signes e à cruz dos
senhores locais. Um vento ligeiro animava a espessa tela de cores vivas,
à vista das quais Olivier, esmagado pela emoção, se deixou cair de
joelhos. Aquilo queria dizer que o castelo continuava a pertencer à
família e que Renaud, certamente, continuava vivo.
- Oh Deus Todo-Poderoso, que me dais esta alegria tão grande,
bendito sejais - exclamou ele.
Montou ajoelhou-se ao lado dele para partilhar a sua acção de
graças, mas, ao levantar-se, estendeu o braço na direcção de um local
que Olivier, com os olhos rasos de água, não tinha notado:
- Dir-se-ia que se passa qualquer coisa ali - disse ele apenas. De
facto, uma das torres, a da Livraria, desmoronara-se como que por força
de um punho gigante e as pedras enegrecidas ainda guardavam os
vestígios de um incêndio.
- Por todos os santos!
Sem pensar na subida escarpada, Olivier desatou a correr na
direcção da entrada, distanciando-se do seu amigo, mais ofegante do
que ele. Entretanto, surgiu uma cabeça numa das seteiras. Alguém
gritou:
- Quem vem lá? Passa ao largo, amigo!
- Eu sou Olivier de Courtenay e quero entrar! - clamou ele com voz
forte.
Respondeu-lhe uma espécie de estertor e o homem levou de
seguida uma trompa aos lábios, tirando dela os dois sons que
mandavam abrir a porta e desapareceu lançando gritos de alegria. No
instante seguinte, o pesado batente sobre os seus gonzos para dar
saída a um punhado de guardas e servos que se atiraram sobre Olivier
rindo e chorando ao mesmo tempo sem sequer se darem ao cuidado de
o saudarem e quase o sufocando.
Com eles vinha Maximin, o intendente. O homem atravessou o
grupo como se fosse um aríete, agarrou em Olivier, apertou-o, afastou-o
para ter a certeza de que era ele, recomeçou e, finalmente, encostou a
cabeça ao seu ombro, chorando. O que ele balbuciou espantou o recém-
chegado:
- Ah, sire Olivier, por que demorastes tanto tempo a chegar lá de
cima?
- Lá de cima? Eu não venho do céu - exclamou Olivier, afastando-
se.
Maximin fungou, secou o nariz e a face à manga e olhou para o
recém-chegado com uns olhos cintilantes de malícia:
- Pensávamos que estáveis lá. Seis grandes meses para virdes de
Paris aqui! Mesmo a pé foi muito!
- Mas... como é que sabes?
- O nosso barão dir-vo-lo-á. Não ides querer que lhe tire o prazer...
Montou, entretanto, chegara. Olivier segurou-o por um braço para
lhe apresentar os que estavam ali e entrar com ele no pátio, mas, mal
entrou nele, surgiu Barbette, rindo, chorando e cobrindo-o, também ela,
de imprecações por os "ter preocupado tanto, demorando-se na viagem".
A mulher beijou-o, voltou a beijá-lo e depois, subitamente, afastou-se,
corada até à coifa de tela branca:
- Oh... perdão! Esqueci-me que um templário não pode beijar uma
mulher...
- O Templo já não existe, Barbette e eu já não sou templário! E para
lhe provar que não lhe queria mal, atraiu-a a si para a encher de beijos.
Beijos grandes, sonoros, que o fizeram regressar à infância e lhe
pareceram deliciosos:
- Vai ser preciso explicarem-me por que razão todos sabiam do meu
regresso. Mas, primeiro, o meu pai...
- O vosso pai está bem! Reparai!
Renaud, de facto, vinha ao encontro do filho, apoiado a uma
bengala e ao braço de uma jovem toda de negro como ele, uma jovem
tão loura que o coração de Olivier parou, acreditando o cavaleiro ser
objecto de uma miragem. Não era... não podia ser... No entanto, sim, era
mesmo ela, era Aude que, afastando-se do ancião, ficou na retaguarda
para não ser importuna no momento em que aquele pai e aquele filho se
encontravam após tantos anos. Renaud deu alguns passos algo
titubeantes antes de se deixar cair contra o peito do seu filho. Ficaram
assim durante alguns momentos, apertados um contra o outro, sem
conseguirem articular uma única palavra, de tal modo era grande a
emoção. Por fim, Renaud murmurou:
- O Senhor seja bendito por me dar a alegria de te ver quando já
não o esperava! No Céu, a tua mãe deve partilhar a minha alegria...
- Vou já visitá-la... depois de saudar esta jovem dama, que não sei
se é uma aparição!
O seu olhar procurou o de Aude e mergulhou nas suas águas tão
límpidas como as nascentes da montanha, ao mesmo tempo que se
aproximava dela. A vontade de a tomar nos braços era quase irresistível.
No entanto, conseguiu dominar-se, limitando-se a inclinar-se
profundamente.
- Ver-vos aqui é um milagre, donzela Aude! A que devo a honra?
- Este castelo tem destas maravilhas, sire Olivier... e eu não cesso
de me maravilhar. Foi Remi, o meu irmão, que me trouxe depois da
nossa última provação.
- Provação? O vosso luto teve outro sentido que não o do vosso
pai?
- Teve. O da minha mãe, desaparecida em circunstâncias sombrias.
Estamos sós no mundo, Remi e eu. Então, ele lembrou-se das vossas
palavras sobre a vossa Provença e da vossa oferta para vir para aqui
trabalhar.
- Como ele teve razão! E como eu lhe quero agradecer! Onde é que
ele está?
- Na capela!
Remi acabava, justamente, de sair do pequeno santuário na
companhia do padre Anselmo e corria na sua direcção o mais depressa
que podia sustentando a marcha - e a pessoa! - sin- gularmente pesada
do honesto capelão. Ambos radiantes, se bem que Remi arvorasse uma
ligeira inquietação:
- Deveis achar-nos insolentes por termos vindo a vossa casa e aqui
ficado enquanto vós não estáveis, mas o vosso pai...
- Obrigou-vos a ficar e eu agradeço-lhe! Fez bem em não esperar
por mim! Para onde havíeis de ir?
- Oh, vi tantas cidades bonitas e tantas igrejas onde poderia ter
arranjado facilmente trabalho...
- Nem mais uma palavra sobre isso! Vamos entregar-nos
unicamente à alegria de estarmos todos juntos! A noite está a cair e eu
tenho pressa de entrar, finalmente, em casa.
Tal como anunciara, Olivier entrou no santuário onde repousava a
mãe em honra da qual, a pedido de Renaud, Remi esboçava uma bela
efígie jacente, mas não se demorou.
Teria muito tempo, no futuro, de conversar com ela.
Uma boa hora mais tarde estavam todos reunidos na sala de honra
em volta de uma mesa que Barbette enchera de boa comida porque a
noite era de festa, comemorando-se o regresso definitivo daquele que,
para além de ser o herdeiro, era agora um homem como os outros.
Estava fora de questão ir dormir para o palheiro: Olivier reencontrou o
alojamento dos homens, que era a seguir ao do seu pai e Montou
instalou-se com ele... depois de uma passagem rápida mas eficaz pelos
banhos da casa. O cavaleiro reencontrou, também, a sua roupa de
rapaz, mas como as abandonara aos dezoito anos, as suas dimensões
tinham mudado, e foi com umas túnicas pertencentes a Renaud que
Montou e ele compareceram ao jantar.
Apesar do recente e duplo luto dos filhos de Machieu, aquele jantar
foi o que devia ser uma refeição comemorativa de um acontecimento
feliz em terras provençais:
caloroso e amigável, perfumado com todas as ervas da montanha,
com os aromas dos assados e dos bolos de Barbette e com os eflúvios
dos vinhos ensolarados que dormiam na cave, pela qual velava Maximin
com amor. E prolongou-se por muito tempo: havia tanto para dizer!
O que Olivier quis saber, primeiro, foi o que levara Remi a levar a
irmã para tão longe. Apesar de sentir uma alegria secreta e profunda,
aquilo parecia mais uma fuga. E de facto, fora mesmo uma fuga.
Pouco tempo depois da morte de Mathieu e da partida de Olivier,
Remi e Cauvin tinham ido a Passiacum buscar Juliana e Aude. Tudo
com o acordo dos cónegos, dispostos a acolher a família do jovem.
Estes tinham levado a boa vontade ao ponto de emprestarem de novo as
mulas para transportar as duas mulheres e os seus bens. Infelizmente,
ao chegarem ao destino, os dois homens caíram no meio de uma
situação das mais dramáticas: Gontram Imbert, aproveitando-se da
morte do Rei, apoderara-se da casa naquela mesma manhã com dois
dos seus empregados e não só proibiu a entrada aos dois recém-
chegados, como, tendo eles forçado a entrada da quinta, se barricou,
ameaçando matar as duas mulheres se eles entrassem.
- Mas ele esqueceu-se de uma coisa - disse Remi. - Acontece que
eu conheço a Quinta das Abelhas melhor do que ele. Aquele era o dia
em que Aubin ia ao bosque levar vinho e pão ao eremita. Quanto ele
regressou, encontrou-nos e, naturalmente, colocou-se ao nosso lado. O
ancião lembrou-me que a adega, apesar de possuir uma entrada
exterior, tinha outra que comunicava com o seu alojamento. Foi por lá
que entramos para apanhar os ocupantes desprevenidos. E lutamos. O
gordo não era um combatente temível, mas era maldoso. Enquanto
lutávamos uns com os outros, ele quis fugir com a minha irmã. Ao ver
aquilo, a minha mãe atirou-se a ele para o impedir. Foi nesse momento
que ele a matou...
Ao ver os olhos de Aude encherem-se de lágrimas, o barão, à direita
de quem ela estava sentada, pousou uma mão na sua e disse:
- Aquele miserável não teve tempo para se alegrar. Remi, que
acabava de se desembaraçar de um adversário, apunhalou-o e ele caiu
em cima da sua vítima...
Ao mesmo tempo, Renaud sorria para o jovem e Olivier concluiu
que o pai ganhara amizade, talvez até afecto, àqueles dois jovens tão
cruelmente sofridos e, longe de sentir qualquer amargura, sentiu-se feliz.
Entretanto, Remi prosseguia o seu relato:
- Estávamos senhores da situação, mas no chão jaziam quatro
corpos cujo sangue sujava as lajes e Aude estava desesperada. Com
Cauvin e Aubin, atiramos Gontran Imbert e os seus cúmplices ao Sena,
mas a minha irmã não se queria separar da nossa mãe. Blandine e
Margot conseguiram acalmá-la e depois de a termos velado uma noite e
um dia, procedemos ao seu funeral. Repousa agora ao lado de Bertrade
sob a guarda piedosa do nosso eremita...
- E partistes de novo para Corbeil?
- Era impossível Aude continuar longe de mim. Além disso... a casa
estava cheia de más recordações! Deixou-a aos dois velhos guardiães e
cedeu-lhes o título de propriedade outorgado pelo Rei Filipe,
acrescentando uma doação escrita pela sua mão que nós
testemunhamos, Cauvin e eu. Depois, regressamos a Corbeil.
- Que fizestes de Margot? - perguntou Olivier. - Se ela está aqui,
ainda não a vi!
- Não. Ficou em Passiacum. Aubin e Blandine, ao longo dos anos,
foram ganhando por ela uma grande amizade, assim como ela por eles.
Doravante, é filha deles. Evidentemente, tivemos pena por nos
separarmos dela, sempre tão fiel, mas sentimo-nos felizes por ela ter
deixado de ser nossa criada. Agora, tem um futuro pela frente... Resta-
me construir um igual para a minha irmã e para mim.
- O facto de o terdes vindo procurar à minha terra enche-me de
alegria, meu amigo. Mas, já agora, acabastes a vossa obra para os
cónegos?
O rosto de Remi ficou sombrio e antes de responder o jovem pegou
na sua taça de vinho e esvaziou-a. Então, Aude levantou-se e pediu que
a deixassem retirar-se. Aliás, a refeição tinha acabado e todos se
levantaram quando ela abandonou a sala para subir para o seu quarto.
Assim que ela partiu, sentaram-se todos de novo e Renaud fez circular
uma infusa de barro com um licor de uma bela cor verde. Só então Remi
respondeu à pergunta de Olivier:
- Não, não terminei. Para um trabalho daquela importância, o que
conta não é o escultor e Cauvin deve ter-me substituído sem qualquer
dificuldade.
- Não sejais tão modesto! - protestou Olivier. - Eu sei, por
experiência própria, que um artista como vós não se arranja com
facilidade...
- Seja como for, tivemos de ir. Cauvin - recordais-vos, sem dúvida! -
pretendia assumir o papel do meu pai, tanto no traba- lho como em
relação à nossa família. Para tal, tencionava casar com Aude, da qual
gostava há muito tempo. Pelo menos, foi o que ele disse.
- Não vou discutir as suas qualidades como construtor - cortou
Olivier secamente. - Nem a sua coragem, ou a fidelidade a mestre
Mathieu... Mas não deixa de ser um rústico, indigno de receber uma mão
tão...
O cavaleiro não acabou e até corou, subitamente consciente da
sombra de um sorriso que passou fugitivamente pelos lábios do pai e
pelos de Montou. Remi, esse, não percebera e continuava:
- O que importa é que ele me pediu a mão dela. Respondi que não
me pertencia dispor da minha irmã sem o seu consentimento. E Aude,
evidentemente, recusou. Mas Cauvin não aceitou a recusa. Nos dias que
se seguiram, ele não deixou de a pressionar, ao ponto de Aude me ter
dito que iria para um convento se eu não conseguisse que ela a
deixasse em paz... Então, Cauvin riu-se na minha cara, dizendo que eu
era o chefe da família, que ela me devia obediência e que a sua longa
dedicação merecia aquela recompensa. Bem tentei chamá-lo à razão e,
sobretudo, disse-lhe para ter paciência. Esperava... sabe Deus o quê!...
que ele se cansasse!...
- Se cansasse? - grunhiu Olivier. - De quê? De esperar?
- Isso era o que ele não queria! O facto de ver Aude todos os dias
estava a enlouquecê-lo. Queria-a a qualquer preço.
- E então? - perguntou Montou, que falava pouco e se limitava a
beber.
- Então, uma noite, fugimos. Eu tinha falado com o deão do capítulo
e aquele homem de bem ajudou-me uma vez mais. Arranjou-me um
pescador com uma barca, com a qual subimos o Sena até Melun, onde
ele nos deixou para regressar a casa. Foi a seguir ao Natal e o tempo
esteve relativamente bom durante alguns dias. Arranjei uma mula sólida
para a minha irmã e para as nossas roupas e, por pequenas etapas,
viajando sempre entre a madrugada e o crepúsculo, por vezes com
grupos de mercadores, chegámos a uma cidade, situada nas margens
do Saône, chamada Calon, onde conseguimos embarcar numa barcaça
que ia para Lyon. De lá apanhamos o Ródano, que abandonamos em
Orange. Ali, arran- jamos outra mula - em Chalon tínhamos vendido sem
dificuldade a primeira! - e partimos em busca do vosso domínio.
- E conseguistes encontrá-lo? Não vos perdestes nunca?
- Oh, aconteceu-nos enganar-nos, mas como vós nos tínheis falado
muitas vezes desta região, descrevestes a estrada, as cidades... as
comendadorias templárias, não foi difícil chegar aqui.
- Eu creio que Deus vos protegeu - disse o barão Renaud. - Uma
viagem tão grande sem acidentes, sem encontrardes malfeitores quando
nem sequer vínheis armado...
e com uma irmã tão bela, foi quase um prodígio.
- E nós agradecemos a Deus como pudemos. Quanto a Aude,
nunca - e vós sabei-lo, sire barão - ela nunca tirou o véu...
- Portanto, tudo acabou em bem - concluiu Olivier. - Nós também
temos de agradecer, Montou e eu! Fizemos voto de ir a Notre-Dame-de-
Moustiers, se ela nos permitisse chegar até aqui... Mas, pai, que
aconteceu à torre da Livraria?
O cavaleiro tinha-a esquecido um pouco devido à alegria do
reencontro. Naquele instante, no entanto, a imagem regressou ao seu
espírito. Olivier esperava uma resposta simples e teve-a. Por isso, não
compreendeu por que razão, ao ouvir a sua pergunta, o rosto de Renaud
ficou sombrio:
- Foi atingida por um raio! - disse ele.
- Por um raio? E o resto do castelo ficou intacto? Parece incrível!
- Falaremos disso mais tarde... e com mais tempo! Deves estar
cansado! E messire Pedro também...
Este desatou a rir:
- Há muito tempo que não me chamavam assim! Esse título traz-me
recordações...
Enquanto ajudava o seu pai a subir os degraus que iam dar ao
andar superior, Olivier pensou que, pela primeira vez depois de muito
tempo, ia dormir sob o mesmo tecto das mulheres, mas não se sentiu
perturbado. O Templo, os seus rituais severos e as suas exigências
alegremente suportadas quando a vida das armas equilibrava a balança,
afastava-se pouco a pouco nas brumas do tempo. Ora, não só já não
sofria, como tinha uma estranha sensação de liberdade, juntamente com
qualquer coisa parecida com a esperança. Devia ver na presença dos
filhos de Mathieu um sinal de Deus... ou uma nova forma de tentação
mais cruel do que as outras? Naquela noite, antes de adormecer, rezou
durante muito tempo para tentar obter luz. Por isso, dormiu mal e,
chegada a manhã, dirigiu-se à capela para a primeira missa que o padre
Anselm celebrava sempre para si próprio e para os do castelo, senhores
e servos, que dela tivessem necessidade. Antes de professar, Olivier ia
lá muitas vezes e também via lá muitas vezes a sua mãe. Daquela vez,
ao entrar no santuário iluminado por duas grossas velas de cera
amarela, o seu reflexo, pousado numa cabeça loura meio escondida por
baixo de um véu branco, atraiu o seu olhar... e o cavaleiro retirou-se.
Ajoelhar-se junto dela na intimidade da estreita nave seria um instante
de pura felicidade, à qual não se reconhecia com direito.
Olivier atravessou o pátio, onde já se afadigavam os palafreneiros e
as lavadeiras, prontas a descerem ao rio. Todos o saudaram com uma
alegria que lhe encheu o coração de calor. O cavaleiro respondeu-lhes
com uma cortesia simples, feliz por se sentir de novo integrado naquele
universo. Tonin, o velho mestre da estrebaria, deteve-o à passagem.
- É bom, sire Olivier, ver-vos aqui, e sentimo-nos todos muito felizes
por isso. A menos que... que queirais partir de novo? - acrescentou ele
com uma vaga inquietação.
- Não, Tonin! Vim para ficar, ajudar o meu pai e velar por todos vós!
De tão contente, o homem atirou o barrete ao ar, apanhou-o e,
cobrindo de novo a cabeça, exclamou:
- Com vossa permissão, vou dizê-lo a todos! Vão ficar muito
contentes!
E entrou na estrebaria antes de ir espalhar a notícia.
Entretanto, Olivier aproximava-se da torre fulminada cujas pedras se
amontoavam, sinistras, descobrindo em parte a parede de rocha que em
tempos a escorava. O drama, de facto, não devia ter acontecido há
muito tempo. Uma parte da parede ainda estava de pé e, mais estranho
ainda, a chaminé de onde partia a passagem secreta ainda lá estava,
privada da lareira mas não da pedra com as armas cujo topo e lambrim
davam para o vazio.
Olivier virou-se, procurando alguém a quem perguntar desde
quando a torre estava naquele estado, e viu o pai. Apoiado a uma grossa
bengala, Renaud juntou-se ao filho.
Não caminhava pior do que aquando do seu último encontro e
Olivier, ao vê-lo aproximar-se, não pôde deixar de o admirar. Que idade
tinha ele!... Oitenta e oito?
Um pouco mais, talvez. Com as costas quase direitas e a cabeça
bem aprumada, Renaud carregava consigo os vestígios do tempo
passado e no rosto as rugas, provocadas pelos desgostos, eram
profundas, assim como nos cabelos brancos, cada vez mais ralos. Mas
não as pupilas negras, vivas...
- Tinha a certeza que te encontraria aqui! Conseguiste dormir, ao
menos?
- Mal, mas não foi por causa disto. Quanto é que isto aconteceu?
- Mais ou menos há um ano.
- E não desobstruístes isto para a reconstruir? Nem parece vosso!
- Achas?
- Ou, então, já não vos conheço. Valcroze ficou diminuído com este
ferimento. Parece um guerreiro que perdeu um braço.
- Que ele nunca ergueu contra ninguém! Mas - acrescentou Renaud
ao ver franzirem-se as sobrancelhas do filho - tu mesmo podes operar
esse milagre, se o achares necessário...
A sua voz tornou-se surda, um pouco estranha, plena de incerteza e
Olivier, analisando-a mal, tomou-a por um sinal de desinteresse:
- Pai - disse ele em voz baixa - não é perigoso deixar sem qualquer
protecção, exposta à vista de todos, a porta que vai dar ao grande
segredo?
- Quem seria capaz de a abrir, no sítio onde está, tão alto?
- Outra tempestade, um tremor de terra, talvez? O que resta
desabaria e a passagem ficaria visível. Pai, é preciso reconstruir a torre!
O velho barão, cujo olhar se agarrava aos vestígios da velha lareira,
virou-se subitamente para Olivier e disse:
- Mesmo que seja preciso, primeiro, abrir um túmulo?
- Um túmulo? Estava alguém no interior da torre quando o raio caiu?
- Roncelin de Fos!
Sob o impacto do nome que julgava nunca mais ouvir, Olivier recuou
como se tivesse levado um murro e a sua garganta, seca, não emitiu
qualquer som. Ao ver aquilo, Renaud tomou-o nos braços:
- Vem! - disse ele. - Subamos à muralha para estarmos mais
tranquilos. Quando lá chegarmos, conto-te tudo...
Lentamente, pai e filho subiram os grandes degraus, deram alguns
passos no caminho de ronda e pararam numa ameia de onde a vista se
estendia, sublime com os seus cumes, os seus campos ondulados
verdes escuros, os seus lugarejos empoleirados, as suas torres
parecidas com ninhos de águia, os seus cabeços dourados, a vertiginosa
falha onde mergulhava o Verdon e ao longe, no horizonte a linha azulada
do Mediterrâneo à luz do Sol nascente.
- Uma noite, há um ano - começou Renaud - um punhado de frades
pregadores, a caminho de Roma e que se tinham perdido na montanha,
pediu-me hospitalidade. Traziam com eles o prior, um velho alquebrado
pela idade e pela doença que viajava numa mula, ao passo que os
outros seguiam a pé. Naturalmente, acolhi-os e até fui ter com o doente
para o saudar. Imagina o que senti quando vi diante de mim a
carantonha de Roncelin!
- É um prodígio esse homem ainda estar vivo. Que idade terá?
- Não sei. Noventa e cinco, talvez! Um corpo descarnado e um rosto
devastado, mas tudo animado pelas forças do mal. Os companheiros
eram tanto monges como ele. Vinham armados por baixo dos hábitos.
Apoderaram-se de Maximin, de Barbette e de mim para nos reduzirem à
impotência e eu pensei que o pesadelo de há oito anos atrás iria
recomeçar. Mas limitaram-se a atar-nos a uns bancos e a colocarem-nos
no pátio para não perdermos nada do que se ia seguir: a partida da
Santa Arca, porque Roncelin sabia onde a tínhamos escondido.
- Como é possível? Só quatro homens sabiam o segredo: vós,
Maximin, Hervé d'Aulnay e eu...
- Estás-te a esquecer do irmão Clement que, sem estar presente,
sabia de tudo.
- O irmão Clement? - exclamou Olivier, indignado. - Em vez de
seguir o Grão-Mestre na fogueira, morreu torturado pela Inquisição, tão
cruel que expirou...
- Não te zangues! Roncelin foi um dos que o torturou. Foi no fim, no
momento de entregar a alma, quando o sofrimento já o tinha aniquilado,
que, inconsciente, ele deixou sair algumas palavras indicando a torre e a
chaminé. Não era muito, mas foi o suficiente para o homem que tinha a
possibilidade de vasculhar Valcroze. O irmão Clement não desmereceu,
fica descansado! Até aquele monstro lhe rendeu homenagem ao dizer
que ele tinha perdido a razão e que delirava...
- A Inquisição! - escarrou Olivier, com nojo. - Aquele miserável
ousou esconder-se por baixo do hábito negro daqueles monges, ou seja,
aqueles pretendentes a Deus, que rivalizaram em crueldade com
Nogaret e os seus carrascos! Roncelin de Fos foi o Diabo em pessoa!
- - Se não o próprio Diabo, pelo menos uma boa cópia. Mas Satanás
há-de perder sempre no confronto com Deus.
- Que aconteceu?
- Uma coisa espantosa, inaudita. Nós estávamos lá em baixo, em
frente da casa, atados como galinhas sob a guarda de dois pretensos
Irmãos, impotentes e desesperados e implorando a ajuda do Céu! Oh, o
céu estava tão puro, tão azul, tão estrelado! O mais maravilhoso manto
celeste ia encobrir o abominável sacrilégio! Subitamente, o prodígio
aconteceu: vimos a flecha deslumbrante do raio sair daquele esplendor e
atingir a torre, que se fendeu como uma casca de ovo e se incendiou...
- E o trovão?
- Não, não ouvimos qualquer trovão, mas ouvimos os uivos
suscitados por uma dor sobre-humana... Gritos que duraram, duraram,
proferidos por uma única voz. Os outros extinguiram-se. Apenas
continuou aquele grito desumano cortado por imprecações, que se
transformou num gemido antes de se extinguir ao cabo do que me
pareceu uma eternidade... e que era a eternidade para aquele que os
emitia: passou-se uma hora antes que o silêncio voltasse e que as
paredes acabassem de desmoronar-se. Há já uns momentos que os
nossos guardas, aterrorizados, tinham fugido, deixando o castelo aberto
e já era dia quando os aldeões, aterrorizados pelo que tinham ouvido,
ousaram ir ter connosco para nos desatar e libertar o nosso pessoal
fechado na adega e no corpo da guarda. Mas foi necessário o padre
Anselmo desdobrar vagas de eloquência inspirada para tranquilizar
aquelas almas simples, que não estavam longe de imaginar que o
castelo estava maldito. O cura explicou-lhes pacientemente que, longe
de ser obra da cólera de Deus, Valcroze recebera uma verdadeira
bênção, já que o Senhor se dera ao cuidado de aniquilar o Seu maior
inimigo...
- Mais uma razão para desobstruir isto tudo, pai! É preciso encontrar
os restos daquele demónio...
- Não deve restar grande coisa...
- Mostrar-lhes-emos o que encontrarmos antes de o atirar ao rio. Em
seguida, reconstruiremos a torre. Temos de esconder a chaminé, cujo
mecanismo não sabemos se ainda funciona. Se for o caso, será preciso
destruí-lo para fechar para sempre o caminho que vai dar à Arca, que
poderá ficar exposta por um acaso fortuito. E quanto todo o mal for
extirpado, O padre Anselmo abençoará solenemente a nossa obra...
- Talvez tenhas razão. Vamos pensar nisso. Queres começar
imediatamente?
- O mais depressa possível. Depois de Montou e eu termos
cumprido a nossa peregrinação a Notre-Dame-de-Moustiers!
- Queres partir já?
- É uma coisa para três dias - sorriu Olivier. - Depois, nunca mais
vos deixo...
Os dois homens regressaram ao solar, na soleira do qual
encontraram Montou:
- Podemos partir para Moustiers quando desejardes - disse-lhe
Olivier. - Temos mais uma razão para dar graças.
Em poucas frases, Olivier contou-lhe a morte de Roncelin. O rosto
de Montou permaneceu impassível enquanto ouvia e quando o relato
terminou não fez qualquer comentário.
O antigo templário dirigiu-se simplesmente para as ruínas e ficou a
contemplá-las. Olivier respeitou a sua meditação durante alguns
instantes e depois aproximou-se dele. Pedro virou-se e Courtenay viu
lágrimas nos seus olhos.
- Estais a chorar? - espantou-se o cavaleiro.
- Não por ele, antes por um irmão mais novo que eu tinha... e que
ele perverteu, aviltou, desviando-o do bom caminho juntamente com
uma parte do Templo. Antoine matou-se e foi por isso que eu me fiz
templário, para procurar e punir o autor do desastre.
- Não foi ele o único a desviar alguns dos nossos - observou Olivier
com doçura. - Muito antes dele já o Oriente e as suas doutrinas
estranhas nos tinham começado a corroer.
- Sem dúvida, mas a mim só me interessava António e o meu
coração não estava puro quando recebi o manto branco. Também por
isso tenho que prestar contas a Deus, que se encarregou da minha
vingança... Vamos a Moustiers, por favor! Tenho pressa de lá chegar...
Os dois homens partiram passada uma hora a pé, tal como tinham
chegado e como era hábito dos errantes de Deus que calcorreavam a
Europa a caminho dos locais de fé.
Mas, cinto dias mais tarde, Olivier regressou sozinho...
À sua chegada a Moustiers, o Sol arrancava cintilações à grande
estrela de bronze pendura por cima da vertiginosa fenda entre os dois
picos gémeos. Aquela vista foi o princípio, para Montou, de uma espécie
de caminho de Damasco: o cavaleiro caiu de joelhos e prostrou-se
durante um longo momento sem dizer uma palavra, antes de subir à
capela onde Sancie ia rezar a Nossa Senhora para que Ela não
permitisse que o seu filho se tornasse templário.
Era na sua mãe que Olivier pensava sem cessar enquanto se
desenrolavam os rituais da peregrinação. Sancie estava morta, mas à
custa de tantos dramas, tanto sofrimento e tantas provações que o
cavaleiro perguntou a si próprio como teria ela vivido aquela estranha
conclusão. Então, Olivier rezou por ela e pelos seus com o mesmo fervor
de outros tempos sem se preocupar com Montou, tal como este não se
preocupava com ele. Courte-nay não soube nada do fabuloso arqueiro
que ousara fazer falar uma catedral e foi só quando chegou o momento
de se porem a caminho que a fractura se manifestou: Pedro de Montou
queria entrar para o mosteiro por cima do qual brilhava uma estrela que
falava do Oriente.
Olivier não mostrou qualquer surpresa nem tentou discutir - com que
direito? - uma decisão de cuja firmeza não tinha qualquer dúvida. E
separou-se do amigo como se separara de Hervé: com um caloroso
abraço, mas prometendo-lhe, também, ir visitá-lo de vez em quando. No
último instante, porém, o antigo Montou disse:
- Gostaria de ter o privilégio de abençoar os vossos filhos... quando
os tiverdes! - disse ele muito sério.
- Os meus filhos? Eu vou ter filhos?
- É o objectivo de qualquer casamento cristão, não? Lavastes a
vossa alma e ides casar-vos! Aquela bela jovem ama-vos. E vós também
a amais: bastou-me ver-vos juntos para ter a certeza.
- Eu tomei os votos! Como posso renegá-los? - murmurou ele com
uma voz subitamente muito cansada. - Na verdade, devia seguir o vosso
exemplo.
- Seria uma estupidez. Primeiro porque nunca fui um exemplo para
ninguém... e depois porque a Igreja apagou o Templo. E se o Templo já
não existe, o mesmo acontece com os vossos votos...
Olivier tentava persuadir-se daquilo desde que chegara a Valcroze.
Não dissera precisamente o mesmo a Hervé no momento de se
separarem? Mas a atmosfera daquele convento mergulhara-o de novo
na dúvida e nos seus escrúpulos. Adivinhando o seu pensamento,
Montou acrescentou:
- Ide falar com o padre Anselm! Ele é um padre como deve ser
porque sabe escutar as vozes da natureza... e a do seu Criador!
Valcroze precisa de vós para continuar...
- Se Aude me quiser - decidiu Olivier - continuá-lo-emos juntos...
De regresso ao castelo, o cavaleiro quase corria, de tal modo sentia
asas nos pés, tal era a pressa de "a" rever, de "lhe" falar, de "a"
conquistar, enfim! Olivier entrou em Valcroze como no Paraíso e foi de
imediato procurar o pai. Encontrou-o sentado na sala de armas e tão
preocupado que se inquietou, mas Renaud não lhe deu tempo de lhe
fazer qualquer pergunta.
- Levaste tempo! - exclamou o barão. - Tinhas de te demorar tanto?
Disseste três dias!
O ancião parecia fora de si e Olivier, subitamente, não soube que
responder, senão:
- Precisava de rezar muito... É assim tão importante?
- Mais do que pensas! Eles foram-se embora!
- Quem?
- Quem querias que fosse? Remi e aquela rapariga encantadora!...
Foi ela que quis! Antes de ontem, como muitas vezes, foi passear até à
capela que eu mandei construir no local onde a tua mãe...
Como habitualmente, Renaud tropeçou na palavra porque
continuava a recusar associar o nome da sua mulher à morte, mas
continuou:
Quando entrou, ia perturbada e sem querer dar quaisquer
explicações, suplicou ao irmão que a levasse para longe daqui.
- Mas, enfim, isso não faz sentido. Porquê?
- Mais uma vez, não sei. Ela teimou, limitando-se a dizer que, se ele
não a levasse, partiria sozinha! Remi teve de obedecer com a morte na
alma, já que penso que gosta muito de nós.
- E ela não, é o que pensais?
- Teria jurado que sim - disse Renaud com melancolia. - De ti,
certamente e, quanto a mim, creio que ganhei o seu afecto.
- Mas, enfim, pai, que se passou durante esse... passeio?
- Como queres que saiba? Eles partiram esta manhã.
- Sabeis, ao menos, em que direcção?
- Quando Remi me veio dizer que se sentia desolado, falei-lhe em
Aix, onde está a ser erigida a catedral de Saint-Sauveur que promete vir
a ser magnífica. Toda a região fala dela...
- Eles levaram a mula?
- Até lhes dei outra. Remi prometeu regressar para acabar a efígie
da tua mãe...
- Há-de acabá-la antes de começar qualquer outra obra onde quer
que seja! - grunhiu Olivier. - Eu encontro-os... e ela que me diga que não
me ama!
Um momento mais tarde, Courtenay estava na estrebaria e selava
ele próprio um cavalo, de tal modo tinha pressa de partir, quando
Barbette apareceu à porta e se apoiou na ombreira:
- Em breve será noite - observou ela tranquilamente. - Eles hão-de
parar em qualquer sítio e, não só não os apanhareis, como vos arriscais
a ultrapassá-los.
- Eu sei a que velocidade viajam as mulas... e também sei quais as
paragens prováveis no caminho, que são raras. Se Remi for esperto,
dormirão em Combs para atacarem pela manhã o alto do planalto e...
- Talvez sim e talvez não! Em todo o caso, levai este saco!
Pensastes no vosso cavalo, mas não pensastes em vós - acrescentou
ela com uma olhadela para o equipamento pendurado no arção da sela.
Tendes aí pão, queijo, azeitonas...
- Obrigado! E agora deixa-me passar!
Barbette não se mexeu um milímetro e cruzou os braços no peito. A
sua expressão era de censura.
- Fui à capela, esta manhã. Estava lá um pastor com algumas
ovelhas.
- Contas-me isso mais tarde! - disse Olivier irritado. - Deixa-me
passar, já te disse!
- É só um minuto! Antes de ontem, ele viu a donzela Aude e
constatou que não estava sozinha. Estava uma dama com ela...
- Uma dama? Lá em cima? Que dama?
- Ele não sabe, mas elas falaram durante uns momentos e a
donzela Aude foi-se embora a chorar.
- Se ele não sabe o nome dessa mulher, pode, pelo menos,
descrevê-la? Normalmente, os pastores têm bons olhos!
- Ele fez o que pôde e veio-me à ideia...
- Qual? Fala, por Deus! Chega de evasivas!
- ... que ouvi uns boatos há duas semanas no mercado de
Castellane. A dama d'Esparron, que está viúva há dois anos, estaria em
Chasteuil, em casa de uma prima.
- Inês de Barjols? Aude ter-se-ia encontrado com ela?
- Tenho a impressão de que, se não era ela, parecia-se muito... Eh
lá!
A mulher teve apenas tempo para se afastar: puxando o cavalo,
Olivier carregou sobre ela, saltou para a sela assim que chegou ao pátio
e partiu a galope com um extraordinário sentimento de liberdade porque,
enfim, montava um verdadeiro corcel e não uma mula de padre! Enfim!
Depois de tantos anos, voltava a ser ele mesmo! E de imediato, entre ele
e aquele animal que não conhecia, o entendimento foi total, absoluto.
Tinha de ser assim - e também porque Olivier conhecia cada pedra,
cada ravina, cada tufo de erva, para não partirem, ele o pescoço e o
cavalo as pernas naqueles caminhos difíceis.
- Chama-se Lancelote! - gritara-lhe Tonin quando ele partira à
desfilada, e o nome agradara-lhe.
O Sol punha-se numa orgia dourada e púrpura quando ele deixou
Valcroze e a noite já era total quando passou por Trigance, tão querida
noutros tempos, mas para a qual nem sequer olhou. Apesar da pressa,
porém, teve de se resignar a retardar o andamento para evitar as
armadilhas da obscuridade, mas continuou o seu caminho e chegou a
Combs, onde parou nas margens do Artuby. O burgo erguia-se abrigado
na encosta de um rochedo onde se encontrava a igreja. Era demasiado
tarde para bater a uma porta para tentar saber se aqueles que procurava
estavam ali e o cavaleiro resignou-se a esperar pela luz do dia. Mas
quando a aurora regressou, Olivier soube que tinham visto os dois
viajantes na véspera, mas que eles só tinham parado durante pouco
tempo e a inquietação regressou-lhe ao espírito: era uma loucura ter
subido ao fim do dia ao alto planalto desértico, onde não encontrariam
nada para se abrigar senão antigas casas de pedra...
Prudentemente, e até em alguns lugares levando luincekte pela
brida, Olivier escalou a rude subida, deixando sair um suspiro de alívio
quando, por fim, desembocou na imensidade vazia onde se pôde lançar
a galope sem receio de se desviar porque o caminho estava bem
marcado. O seu olhar vasculhava o horizonte com uma vaga angústia no
coração, perguntando a si próprio onde estariam Remi e Aude.
Subitamente, avistou-os depois de ter contornado o cotovelo
formado por um grande rochedo. Os dois jovens caminhavam lado-a-
lado, como quaisquer pessoas sem pressa, mas emanava daquelas
duas silhuetas perdidas na gigantesca paisagem uma profunda
impressão de tristeza. Com um grito de triunfo, Olivier lançou o seu
corcel num galope louco, apanhou-os, ultrapassou- -os e, travando a
fundo, deu meia volta e regressou para junto deles, atingido pela
diversidade das expressões de ambos: alegria na de Remi e uma
espécie de temor no de Aude, como se a jovem estivesse perante um
objecto susceptível de a ferir. Foi a ela que ele se dirigiu depois de ter
enviado um sorriso ao amigo e de se ter apoderado da correia da mula
da jovem:
- Seja o que for que a dama d'Esparron vos disse, mentiu! Nunca a
amei - lançou ele com uma força que fez estremecer Aude, pouco
preparada para um ataque tão brutal.
Mas já Olivier continuava:
- É a vós que eu amo e há muito tempo, creio, e é a vós que eu
quero para minha mulher... se vós me quiserdes!
Oh! A bela luz que irradiou do rosto de Aude, onde ainda tardavam
algumas lágrimas antigas! No entanto, permanecia uma inquietação na
água límpida dos seus olhos e Olivier adivinhou no que ela estava a
pensar:
- Como o Templo deixou de existir, os meus votos foram quebrados.
Recebi a certeza da parte do padre Anselm. Ele casar-nos-á se me
aceitardes e se Remi der o seu consentimento - acrescentou ele virando-
se para o amigo que, demasiado emocionado para falar, aceitou com um
sinal de cabeça.
Olivier virou-se para Aude e, sem ousar ainda tocar-lhe, pôs um
joelho em terra:
- Eu já não sou um jovem. Tenho mais vinte anos do que vós, mas
tenho tanto amor para vos dar! Aude, Aude, suplico-vos, respondei-me!
Quereis ser minha, assim como eu serei vosso?
Então, ela estendeu-lhe as duas mãos. Ele segurou nelas
levantando-se e, no mesmo movimento, a jovem viu-se nos braços dele.
- Com toda a minha alma e todo o meu corpo, quero ser vossa, meu
senhor, porque não me lembro de ter vivido um único momento sem vos
ter amado...
Aude levantou para ele o rosto claro e Olivier só teve que se inclinar
para lhe encontrar os lábios...
Uma toutinegra, perturbada, voou por cima das suas cabeças na
direcção do Sol...
Um momento mais tarde, Aude regressava a Valcroze na garupa de
Lancelote e com os braços em redor da cintura de Olivier.
Quando, uma semana mais tarde, se ajoelhou junto de Olivier na
capela do castelo, Aude levava o belo vestido escarlate bordado a ouro
oferecido pela Rainha Margarida de Provença a Sancie de Signes por
ocasião do seu casamento em São João de Acra. Na véspera, a jovem
depositara no altar a fivela de rubis oferecida pela outra Margarida que
encontraram morta dois meses antes na sua prisão de Château-Gaillard.
Aude recusou-se a usá-la, preferindo oferecê-la a Nossa Senhora...
Dadas as circunstâncias, os noivos tinham pensado casar-se com
discrição, mas, na Provença, era impossível conceber-se uma festa
secreta. Barbette teve de fazer face, desde a véspera, a algumas
cavalgadas alegres por parte da nobreza das redondezas com os seus
estandartes e transportando presentes, como os Reis Magos, para tomar
parte no casamento. Chegada a noite, um cintilante grupo de damas
conduziu ao leito nupcial a filha de Mathieu de Montreuil... mas a
d'Esparron não estava presente...
Um ano depois, a torre fulminada estava reconstruída. Nos
escombros, encontraram, com os restos de mais três homens, um corpo
carbonizado mas inteiro e ainda reconhecível.
Meteram-nos num saco com umas pedras antes de os atirarem de
uma falésia para as águas turbulentas do Verdon.
No dia em que o ramo de flores foi colocado no alto da torre, Aude
deu à luz um pequeno Thibaut moreno como uma castanha que Renaud,
logo que Olivier lho apresentou, recebeu com emoção. Erguendo-o nos
braços, o ancião foi até uma janela de onde se podia ver a torre nova.
- A continuidade está assegurada! - exclamou ele, ao mesmo tempo
que, descontente com o tratamento, o bebé protestava com vigor. - Não
é estranho que Deus nos tenha escolhido para guardar um dos maiores
tesouros da humanidade e o maior, certamente do povo judeu, a nós, em
cujas veias corre o sangue dos Reis de Jerusalém, dos imperadores de
Bizâncio e do grande Saladino?
- Nós somos os Guardiães, pai, e eu tenho consciência disso. E
tenho muito orgulho, mas... não duraremos até ao fim dos tempos. Quem
assegurará a continuação?
- O Senhor providenciará, meu filho! Os últimos Zeladores serão a
montanha... e o esquecimento.
Como o mecanismo do segredo resistira de facto, ao fogo do céu,
Renaud e Olivier tinham-no destruído de comum acordo...
Saint-Mandé3 de Julho de 2003.
VOLUMES JÁ PUBLICADOS DA MESMA AUTORA:

Série Segredo de Estado


- O Quarto da Rainha
- O Rei do Mercado
- O Prisioneiro da Máscara de Veludo
Série O Judeu de Varsóvia
- A Estrela Azul
- A Rosa de Iorque
- A Opala da Imperatriz Sissi
- O Rubi de Joana, a Louca
- As Esmeraldas do Profeta
Série O Jogo do Amor e da Morte
- O Homem do Rei
- A Missa Vermelha
- A Condessa das Trevas
Série A Florentina
- Fiora e Lourenço, o Magnífico
- Fiora e Carlos, o Temerário
- Fiora e o Papa Sisto IV
- Fiora e Euís XI, Rei de França
Série Os Cavaleiros
- Thibaut ou a Cruz Perdida
- Renaud ou a Maldição
- Olivier ou os Tesouros Templários
{1}
A Canonização só terá lugar em 1297.

{2}
Cidade antiga da ilha de Chipre, célebre pelo seu templo de Vénus. A autora, em vez
desta cidade, fala em Cítera, mas Cítera é uma ilha, não uma cidade de Chipre.
Suponho que deve ter havido um erro.

{3}
Ver volume II, Renaud ou a Maldição.

{4}
A célebre faiança só surgiu no século XVII.

{5}
A ilha de Eubeia.

{6}
Grande vasilha para beber, em uso na Idade Média.

{7}
Livro eclesiástico que contém antífonas, versículos que se entoam antes de um salmo,
com as notas do respectivo cantochão e outros cantos religiosos.

{8}
Fortaleza construída pelos cruzados no Médio Oriente.

{9}
Antepassada da alabarda, terminada por um ferro assimétrico e um ou dois ganchos na
parte posterior.

{10}
Ver volume II: Renaud ou a Maldição.

{11}
Uma toesa equivalia a seis pés, ou seja, mais ou menos dois metros.

{12}
Monte de pedras servindo de monumento comemorativo, de ponto de referência, etc.

{13}
Epíteto dos imperadores bizantinos nascidos de um pai que reinava no momento do
seu nascimento.

{14}
Ver volume II, Renaud ou a Maldição.

{15}
Foi nesta capela que foram inumados os príncipes fundadores das duas dinastias que
se sucederam aos Capetos: os Valois e os Bourbon. Roberto de Clermont foi o antepassado
directo de Henrique IV.

{16}
Trata-se, desta vez, do "condado" de Borgonha, a que chamamos hoje Franco-
Condado.

{17}
Futuro Eduardo II, foi o primeiro príncipe inglês a usar o título de príncipe de Gales.

{18}
ervilhas e os feijões tinham o mesmo nome.

{19}
Actual rue Quincampoix.
{20}
Os retroseiros da época vendiam tantas coisas que eram o equivalente reduzido das
grandes superfícies dos nossos dias.

{21}
Era o nome usado pelos mestres carpinteiros.

{22}
Hoje em dia Passy.

{23}
Originário do Franco-Condado.

{24}
O recinto fortificado fora edificado a pouca distância de Paris, mas encontrava-se a ela
ligado por algumas ruas, constituindo a Cidade Nova do Templo.

{25}
Aconselhava-se ali, dizia ele, com o seu Silêncio.

{26}
No tempo da menoridade de São Luís, Branca de Castela utilizou essa saída para
escapar a um assalto.

{27}
Filha de São Luís, era viúva do duque Eudócio de Borgonha.

{28}
Ver o volume II, Renaud ou a Maldição.

{29}
Transformada, ao longo dos séculos, no verdadeiro símbolo do Templo, acolheu,
durante a Revolução, Luís XVI, Maria Antonieta e os seus filhos, que ali viveram o drama que
todos conhecemos.

{30}
Uma especialidade dos marceneiros parisienses.

{31}
Mulher do herdeiro e já Rainha de Navarra, Margarida de Borgonha tinha, mais ou
menos, vinte e cinco pessoas ao seu serviço; duas damas, duas donzelas, um capelão e o seu
ajudante, assim como outros subalternos.

{32}
A residência de Nesle, oferecida por Filipe, o Belo ao seu filho mais velho, compunha-
se de duas partes bem distintas: a residência construída há pouco tempo e a Torre, nitidamente
mais antiga já que era a conclusão, junto ao Sena, da muralha de Filipe Augusto. Estava
simplesmente encostada e para além de um acesso interior, possuía uma entrada logo acima da
margem que ficava, por vezes inundada.

{33}
Construções terminadas em arco que amparam uma parede, ou uma abóbada.

{34}
A tradição dos construtores faz recuar a sua lenda até à construção do Templo de
Salomão, em Jerusalém, onde o Rei se teria associado à obra do arquitecto Hirão de Tiro e a
uma misteriosa personagem, mestre Jacques, talhador de pedra vindo da Gália. Os três estão na
origem da corporação e dos segredos de construção das catedrais que, contidos na Arca da
Aliança, teriam sido trazidos para o Ocidente pelos primeiros cavaleiros do Templo por ordem de
São Bernardo. Como o último Grão-Mestre se chamava Jacques de Molay, era natural que os
construtores vissem nele a reencarnação do mestre Jacques da lenda. Tanto mais que era
perseguido.

{35}
O adro de Notre-Dame era seis vezes mais pequeno do que é hoje. Além disso, a
catedral aparecia no alto de onze degraus que as transformações sucessivas da praça fizeram
desaparecer pouco a pouco com o nivelamento do solo.

{36}
Não os tendo encontrado em parte nenhuma, socorri-me do Rei de Ferro, de Maurice
Druon, para os termos da condenação.

{37}
No local da entrada actual do palácio da justiça, remodelado e aumentado por Filipe, o
Belo.

{38}
Passy.

{39}
Ambas formam actualmente a praça do Vert-Galant cuja estátua de Henrique IV domina
a Pont-Neuf.

{40}
Plantado no Sena por altura da extrema do Jardim do Rei.

{41}
Pequeno mercado ao ar livre à entrada da rue Saint-Denis numa praceta.

{42}
Maurice Druon, O Rei de Ferro.

{43}
Ibid.

{44}
Em 1301 e a pedido do Papa Bonifácio VIII, desejando acabar com a eterna querela,
entre Guelfos e Gibelinos, o irmão de Filipe, o Belo conquistara Florença e condenara ao exílio
Dante, que era um dos magistrados da cidade.

{45}
Vinho açucarado, no qual se faz uma infusão de canela ou de cravo-da-índia.

{46}
Aquela maneira de contar as horas fora utilizada por São Luís para dividir o tempo
durante a noite, espaço de tempo em que rezava muito, em parcelas mais ou menos iguais.

{47}
Um pingalim: originalmente, eram feitos de azevinho.

{48}
Mais tarde serão chamadas de "corbeillards" (carros fúnebres), tendo dado o nome ao
nosso último meio de transporte.

{49}
Franceses ou Italianos, estavam todos dispersos pelas cidades papais: Carpentras,
Orange, Avinhão, etc.

{50}
Du-Roncier.

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