Os Cavaleiros 3 Olivier Ou Os Tesouros
Os Cavaleiros 3 Olivier Ou Os Tesouros
Os Cavaleiros 3 Olivier Ou Os Tesouros
Assim que chegou à vista de Corbeil, dois dias depois, Olivier parou
por um momento para respirar fundo e tentar localizar-se no topo da
pequena crista que separava o vale do Sena do vale do Essone. Do local
em que se encontrava, compreendeu por que razão os cónegos podiam
assumir a restauração da sua igreja e pagar os serviços de um
construtor de catedrais, mesmo procurado pela justiça do reino.
Instalada entre o ribeiro e o rio que ela ultrapassava por intermédio de
uma bela ponte, aquela pequena cidade fervilhava de actividade com os
seus moinhos e azenhas cujas velas ou rodas batiam o ar ou faziam
espuma na água, as barcaças transportando para Paris a farinha e
outros produtos da região {48} e também os campanários, de onde
voavam para o céu as notas doces das Avé-Marias da tarde. O nevoeiro
que subia do rio - os dias de Outono estavam cada vez mais curtos -
impedia que fosse possível contá-los e também distinguir os
pormenores. Aquele onde trabalhava Mathieu e Remi devia ter sido o
mais alto, mas se sofrera grandes danos, podia ser o mais baixo. Em
volta e até ao infinito era tudo pradaria, sulcos de caminhos, terras
lavradas e, para terminar, o negro manto da floresta sempre repetida.
Depois de repousar um pouco, o viajante recomeçou a jornada,
ávido de uma lareira, de uma sopa quente e também de uma cama: tudo
o que encontraria no interior das muralhas mergulhadas nos fossos
alimentados pelo Essonne.
O cavaleiro desceu na direcção da grande ogiva de pedra
flanqueada de guaritas que abria para um bairro da cidade. Mais acima,
recortavam-se as torres de um castelo que já não pertencia aos condes
desde que Luís VI unira Corbeil à Coroa, imputando-a no dote das
Rainhas e como tal, sendo uma cidade real, estava muito bem guardada.
Não era, juntamente com Saint-Denis e a feira de Lendit, um dos
principais centros de abastecimento da capital?
Assim, ao chegar à grande ponte levadiça, Olivier encontrou
atravessada no seu caminho a bisarma de uma sentinela que lhe
perguntou onde ia assim vestido:
- Trabalhar para os cónegos da Colegial.
- Qual? Há duas.
- Ah! Não sabia. A que está dedicada a Nossa Senhora - disse o
viajante fazendo o sinal da cruz.
- E vens de onde?
- De Paris. Sou escultor, mas por que tanta pergunta?
- Gostamos de saber quem chega. Sobretudo ao cair da noite.
O homem não parecia disposto a dar-lhe passagem. Talvez
estivesse aborrecido? Quase tão grande como Olivier e bem constituído,
procurava, talvez, uma querela para passar o tempo. No entanto,
polidamente, o recém-chegado pediu:
- Tende a amabilidade de me dizer onde é Notre-Dame.
- Um momento! Estás com pressa!
- De facto, porque estou cansado. Por isso, dizei-me o que eu quero
saber e deixai-me passar!
Ao mesmo tempo, o cavaleiro desenrolava sob o nariz do outro o
salvo-conduto que lhe fora entregue por Alain de Pareil-les. O soldado,
certamente, não sabia ler, mas o selo real pareceu impressioná-lo e
recuou colocando a sua arma na vertical:
- - Ah! Desculpai! Este é o bairro de São Leonardo. Continuai a
direito pela rua na vossa frente até ao fim. No outro lado vereis a torre e
abside da colegial, que chega quase à margem do rio.
- Obrigado.
E sem mais demoras, Olivier meteu sob a abóbada onde se viam as
pontas da grade que ele ouviu, aliás, descer logo após a sua passagem.
A medida que avançava, a actividade da rua ia enfraquecendo para
aumentar no interior das casas onde se estava a preparar a refeição da
noite. As portadas de madeira iam-se fechando com ruído e,
exceptuando três homens que discutiam em frente de uma taberna e de
um petiz com um boião na mão que ia, talvez, à mostarda, não
encontrou quase ninguém. Uma vez na ponte, viu imediatamente a igreja
que procurava e supôs que as casas cujos telhados se eriçavam em seu
redor eram as dos religiosos. Também viu que um andaime, vazio de
quaisquer trabalhadores, escalava o campanário quadrado construído
por cima do transepto da nave. Com algumas passadas largas, o
cavaleiro atingiu a pequena praceta - um pouco mesquinha para um
santuário tão belo! - formada pelo círculo das casas canonicais. A luz
das velas via-se através dos vitrais e ouviam-se as vozes do ofício da
noite.
Pensando que conseguiria a informação desejada no fim da
cerimónia, Olivier tirou o barrete, benzeu-se com água benta e dobrou o
joelho.
Para além dos cónegos sentados nas suas estalas, a assistência
era reduzida: algumas anciãs e um pequeno punhado de homens. Olivier
avançou lentamente pela curta nave de dois vãos duplos cujas arcadas
em intersecção repousavam sobre colunas geminadas, admirando, como
conhecedor, a beleza daquele conjunto arquitectural e também o dos
capitéis onde desabrochavam uma flora e uma fauna estranhas. Já tinha
chegado quase ao círculo de luz que delimitava o coro quando avistou
Remi. De joelhos nas lajes e com o rosto entre as mãos, o jovem rezava
com um fervor que o recém-chegado não ousou perturbar. O cavaleiro
esperou que a sua cabeça se erguesse para se colocar a seu lado.
Naturalmente, Remi olhou para ele e a sua figura desolada encheu-se de
uma verdadeira alegria:
- Olivier? Oh, graças a Deus, que quis escutar a minha prece
enviando-me socorro!
- Precisais assim tanto?
- Oh sim! Mas saiamos! Falaremos mais à-vontade.
Os dois homens contornaram a igreja até à abside, perto do espaço
onde se encontravam as cabanas e o estaleiro. Remi entrou numa delas.
No seu interior havia um cavalete sobre o qual estavam uns projectos
enrolados, dois tamboretes e uma candeia, que Remi acendeu. A luz
iluminou melhor o seu rosto de traços tensos. A expressão era tão
sombria que Olivier esqueceu a fome e o cansaço, mas, para lhe dar
tempo a que assimilasse a sua chegada, começou por uma pergunta
anódina:
- Por que é que há apenas duas cabanas? Onde estão os
trabalhadores?
- A abadia de São Leonardo envia-nos três todos os dias e há dois
na cidade. Mas sentai-vos e dizei-me por que milagre estais aqui.
- Uma espécie de milagre, de facto. Depois de ter ameaçado matar-
me pelo fogo, o Rei contentou-se em banir-me do reino. Exigiu que eu
fosse para a Provença.
- Só estais de passagem, portanto? - perguntou Remi visivelmente
decepcionado. - Senti-me tão aliviado, há momentos...
- Deixai-me acabar! Não me deram prazo para sair do reino e
prometi à vossa mãe e à vossa avó vir aqui visitar-vos. No fim de contas,
fica-me em caminho.
- Obrigado! Elas estão bem?
- A vossa mãe e a vossa irmã estão, sim, mas...
- A avó Matilde?
- Penso que não voltareis a vê-la: estava a receber a extrema-unção
quando eu parti. Mas estava lúcida. E mestre Mathieu e vós ocupáveis-
lhe o espírito por inteiro.
Remi benzeu-se e ajoelhou-se para uma curta prece a que Olivier
se juntou. Levantando-se, o jovem rectificou:
- Aqui, ele é conhecido sob o nome de mestre Bernardo d'Autun. Os
cónegos assim decidiram para que pudesse trabalhar sem despertar a
curiosidade, ou arriscar-se a uma denúncia.
- Foi boa ideia. Mas onde está ele a esta hora?
Remi abriu a porta de madeira e apontou para a pequena casa
sobre o Sena:
- Ali. Moramos lá os dois e ele só sai de lá para trabalhar. O resto do
tempo, fica à janela que não se vê daqui e de onde se vê o rio e a outra
margem. Espreita a chegada do Rei. É verdade que há outra estrada
que passa por Essonnes, mas o nosso sire gosta de vir por aqui.
- Nesse caso, para quê estar à espreita de noite?
- Por que não? Já aconteceu Filipe chegar a Fontainebleau pelo rio
quando não tem pressa e quer repousar um pouco. E se vier a cavalo,
como a maior parte das vezes, as portas da cidade dão-lhe passagem a
qualquer hora. É por isso que o meu pai está sempre à janela!
- Nunca dorme?
- Dorme, mas muito pouco. Uma hora ou duas e então diz-me para
o revezar. Está cada vez mais mudado...
- Posso ir vê-lo? Disseram-me em vossa casa que ele me detestava
e que não queria viver na Quinta das Abelhas!
- Ele nunca fala de vós e, por consequência, ignoro o que pensa a
vosso respeito neste momento.
- É o que vou tentar saber. Com a vossa permissão, Remi, vou ter
com ele amanhã com o pretexto de lhe anunciar a morte da dama
Matilde. Então, veremos. Por agora - perdoai-me, meu amigo - gostaria
que me indicásseis um albergue modesto para eu poder comer qualquer
coisa e dormir um pouco...
- Oh, desculpai-me! Farto-me de falar de mim, como se não
tivésseis acabado de fazer uma viagem estafante! Vou levar-vos a casa
de um dos nossos pedreiros, Paulin.
Jacqueline, a mulher dele, tem um albergue perto da ponte, O
Grande Santo Yon, que é minúsculo mas muito limpo. Ela obriga os
clientes a portarem-se bem. Vou levar-vos lá.
Pouco depois, a mulher do pedreiro, uma sólida comadre, alerta e
rezingona, provida de braços vigorosos e até a sombra de um bigode,
instalava o viajante em frente de um guisado de carne de vaca
generosamente perfumado com alho e alho-francês, acompanhado de
um pichei de cidra caseira. Remi apresentara o seu amigo como um
escultor da Provença que trabalhara durante algum tempo com mestre
Bernardo e que, tendo completado um giro pelo Norte, acabava de se
lhe juntar, o que valeu a Olivier a companhia de Paulin. Este instalou-se
na sua frente com um frasco de aguardente e desatou a contar-lhe a sua
vida, ao mesmo tempo que emborcava grandes copázios. Olivier só
aceitou beber um para lhe ser agradável. O cavaleiro sentia-se a cair de
sono e acabaram os dois por adormecer, um porque já não podia mais, o
outro porque tinha bebido de mais... Aquilo não pareceu ser um grande
problema para a hospedeira. A dama levantou a mesa à sua maneira,
arrastando o marido até à sala dos fundos e instalando Olivier no recanto
da lareira: o cavaleiro era demasiado grande e demasiado pesado para
ser transportado para o andar superior.
Foi ali que Remi o encontrou quando, ao nascer do dia, foi buscá-lo:
- Falei com o meu pai a noite passada. Ele aceita ver-vos, o que é
mais do que eu esperava.
- É só o tempo de me lavar e sigo-vos.
A manhã estava bastante fresca. No entanto, Olivier foi ao pátio tirar
um balde de água do poço, com a ajuda da qual conseguiu fazer a
toilette suficiente, renunciando apenas a barbear-se: a frialdade da água
teria tornado a tarefa penosa. Feito aquilo, pediu uma escova a
Jacqueline, que olhava para ele com admiração - o marido não era
homem para aquelas delicadezas e já era uma sorte conseguir arrastá-
lo, uma vez em cada dois meses, até aos banhos públicos! - vendo-o pôr
em ordem as suas roupas, comer a malga de sopa que ela lhe oferecera
com uma grande fatia de pão e guardando este para o comer em
caminho, evitando assim pôr à prova a paciência de "mestre Bernardo".
Encontraram-no no estaleiro, de projecto e esquadro na mão, a dar
instruções a Cauvin, que saudou Olivier alegremente:
- Dá prazer ver de novo a velha equipa! Há aqui muito que fazer!
O acolhimento de Mathieu foi menos entusiasta. Depois de ter
respondido com um movimento de cabeça à saudação do seu antigo
escultor, fez-lhe sinal para que o seguisse e conduziu-o à cabana da
véspera, mas não o convidou a sentar-se. Ele também ficou de pé,
encostado à mesa, de braços mais ou menos cruzados, a mão direita
apoiada no ombro ferido que ainda o fazia sofrer. Seria assim,
provavelmente, até ao fim dos seus dias, sobretudo com tempo húmido e
frio, pensou Olivier, desagradavelmente surpreendido com a má cara do
mestre-de-obras. O seu rosto, antigamente tão cheio, tão majestoso,
enchera-se de uma infinidade de rugas, parecidas com as que as águas
dos ribeiros deixam nas montanhas. A curva determinada da boca era
amarga e os olhos, por baixo das sobrancelhas quase brancas, tinham
uma luz bizarra, ao mesmo tempo turva e alucinada, que nunca lhe tinha
visto antes. O construtor atacou sem quaisquer preâmbulos:
- Remi disse-me que a minha mãe morreu?
- É verdade. Santamente, esquecendo os próprios sofrimentos para
só pensar em vós, mestre. Se estou aqui é porque ela e a dama Juliana
me pediram. Ambas vos imploram - e foi esse o último pensamento da
dama Matilde! - que renuncieis ao vosso projecto insensato, que só lhes
provoca um aumento de dor e lágrimas...
- Por que não me falais da minha filha? Ela não tem os mesmos
sentimentos?
- Quase não lhe falei, mas sei que vos ama.
- Menos do que a vós, acho, mas a questão não é essa. Elas
querem que eu regresse, não é verdade?
Olivier limitou-se a suspirar e a encolher os ombros. Então, Mathieu
continuou, sempre no mesmo tom cortante:
- Eu nunca me arrependo do que decido. Elas sabem-no muito bem!
- E decidistes abater Filipe sem pensardes nas consequências
trágicas de um tal gesto para vós, sem dúvida - suponho que não
quereis saber! - mas também para aquelas pobres mulheres que não
querem o sacrifício de um morto, querem apenas viver, e em paz, se
possível!
- Mas, justamente, isso não é possível! Filipe tem de morrer porque
assim o exige mestre Jacques.
- A vossa fé em Deus é assim tão fraca e o vosso orgulho tão
grande para pensardes que podeis substituí-lo? O Papa está morto e
Nogaret também... e sem a vossa ajuda, que eu saiba!
- Sim, sim! Mas o Papa Clemente estava rodeado de cardeais que
eram outros tantos inimigos potenciais e Nogaret era universalmente
odiado e vivia como um burguês.
O Rei, coroado em Reims, ungido pelo Senhor, é outra coisa.
Necessita de um homem que se dedique de corpo e alma à sua perda. E
esse homem sou eu!
- Bela certeza! E onde a arranjastes?
- Nos mandamentos de mestre Jacques. Ele apareceu-me várias
vezes durante o sono e as suas palavras estão gravadas no meu
espírito: "Fere corajosamente! - diz ele.
- Fere sem hesitar e sem fraquejar! Libertarás todos aqueles que
gemem sob o jugo de Filipe e a tua recompensa será grande quando te
juntares a mim!" Enquanto falava, Mathieu exaltava-se, ao mesmo tempo
que a sua figura se virava para o tecto da cabana à falta de céu. Olivier,
esse, olhava para Remi. Este abanou a cabeça com um movimento de
ombros que traduzia a sua desilusão. Era difícil, de facto, discutir com
um homem presa de tais visões! Praticamente sem argumentos, Olivier,
no entanto, continuou:
- E se ele não vier a Fontainebleau este ano?
- Por que haveria ele de desistir de um hábito que lhe é querido?
Há-de vir. Mestre Jacques prometeu - respondeu Machieu com a
obstinação do iluminado de tal modo seguro de si que afasta
sistematicamente tudo aquilo que se atravessa diante da sua ideia fixa.
Desde que o conhecia que Olivier estimava indefinidamente a
inteligência, a clareza de ideias e o talento daquele mestre-de-obras de
grande coração e sentia uma pena enorme por ver tão belas qualidades
- à excepção da arte de construir! - dissolverem-se numa obstinação tão
perniciosa, mas como não gostava de se dar por vencido, tentou ainda
outra coisa:
-Já pensastes que, morto o Rei, Gontran Imbert pode acreditar que
está autorizado a vingar-se do que aconteceu em Pas-siacum?
- Ele não foi enforcado?
- Para minha grande pena, foi apenas condenado a ser chicoteado
em frente do povo, exposto no pelourinho e proibido de se aproximar da
Quinta das Abelhas mais de um quarto de légua... mas quando o punho
de ferro de Filipe desaparecer, o Cabeçudo não será tão difícil de
manobrar.
Machieu lançou-lhe um olhar furioso:
- Trataremos dele em devido tempo! Não importa, sabeis o que eu
penso daquela casa! Quanto mais cedo a minha mulher e a minha filha
saírem dela, melhor. E como a quase-impotência da minha querida mãe
já não as pode reter lá, vou mandar Remi buscá-las. Há bastante espaço
para elas nesta cabana que os cónegos me deram. Pelo menos,
estaremos juntos e prontos a passar a fronteira do império uma vez a
tarefa cumprida!
- Porque pensais que ides sair dela vivo? Mesmo que o vosso alvo
venha até aqui com uma pequena escolta, trará sempre alguns guardas,
além de messire de Pareilles, que dorme em pé e que não vos dará
tréguas. Que lhes acontecerá, nesse caso? Não sois suficientemente
louco para pensar que os cónegos lhes darão hipocritamente asilo
depois de vós terdes traído o compromisso que tendes com eles,
transformando-vos num regicida?
- Deus providenciará! Deus... e mestre Jacques! Decididamente,
não havia esperança. Olivier baixou as armas:
- Tendes resposta para tudo! Escutai... deixai-as em repouso por um
momento! A estação vai avançada. Os caminhos vão tornar-se difíceis,
sobretudo se a neve e o gelo forem precoces. Uma dura provação para
umas mulheres cujo luto acaba de se iniciar. Concedei-lhes algum tempo
para chorar a dama Matilde, a vossa nobre mãe, tão pouco tempo depois
do fim cruel da dama Bertrade!
Persuadido de ter vencido, Mathieu permitiu que o seu rosto e peito
se distendessem lançando um profundo suspiro...
- Talvez, talvez! Tenhamos ainda mais um pouco de paciência!
Basta mandar buscá-las quando... o meu alvo - a palavra agradara-lhe! -
aparecer. Por agora, concentremo-nos no trabalho! Podíeis participar,
Olivier se, como pretende o meu filho, for vosso desejo...
- É meu desejo, mas não hoje. Remi deve ter-vos dito que eu só
estou de passagem a caminho da Provença, a minha terra natal e que,
se parei aqui, foi apenas a pedido da vossa mãe e também pela alegria
de trabalhar durante alguns dias sob as vossas ordens, como
antigamente, já que não posso ir a Paris.
- Regressareis quando quiserdes uma vez tuclo consumado...
- Não, porque dei a minha palavra. E antes de passar alguns dias
convosco, gostaria de ir rezar aos vestígios de uma das nossas antigas
comendadorias, nos arredores da cidade...
O que o cavaleiro estava a magicar era, de facto, uma enorme
mentira ao serviço de uma falta ainda mais grave para a sua
intransigente ética pessoal, mas talvez conseguisse salvar Machieu e a
sua família da loucura daquele. Sim, ia mentir, mas, pior ainda, ia trair-se
a si próprio ao violar a palavra dada ao Rei. Não só voltaria para trás,
como entraria em Paris, esperando que Deus tivesse piedade do
pecador voluntário, consciente de faltar à honra por amizade... e por
amor. Que, ao menos, antes de se afastar para sempre, tentasse
preservar o futuro e a vida daquela que amava! Depois, teria todo o
tempo que lhe restasse de vida para fazer penitência...
A Remi, que conseguira esconder o espanto com dificuldade,
limitou-se a dizer que precisava de ver alguém do qual esperava um
conselho e talvez também alguma assistência.
- Vou tentar obedecer à última prece da vossa avó. Enquanto
esperais pelo meu regresso, vigiai-o bem, caso...
- Compreendo! Estareis ausente muito tempo?
- Dois dias. Talvez três. Que Deus vos guarde, Remi!
- A vós também, Olivier!
Uma hora mais tarde, Courtenay partia de novo para Paris.
O cavaleiro atingiu a cidade naquela mesma noite, mesmo antes do
fecho das portas, tendo caminhado mais depressa do que nunca, de tal
modo tinha pressa de levar a bom porto a sua missão e de regressas ao
caminho da legalidade. Em vez de lhe pesar mais, dir-se-ia que a sua
consciência lhe dava asas.
Como o tempo consentira em manter-se seco, não estava mais
enlameado do que à chegada a Corbeil quando chegou à taberna de
Grande-Estafado e se deixou cair num banco, pedindo uma malga de
hipocras... O cavaleiro foi recebido com uma cortesia lison-jeadora. Por
outras palavras: não lhe fizeram perguntas indiscretas. O taberneiro
limitou-se, enquanto lhe servia o que Olivier lhe tinha pedido, a fazer
uma careta que, com muito boa vontade, lembrava o que podia ser um
sorriso e observou:
- Não te víamos há uns tempos!
- É verdade! Não fazemos sempre o que queremos na vida.
Ele está lá em cima? - acrescentou Olivier, erguendo o queixo na
direcção do tecto.
-Não saiu lá todo o dia. Basta dizer que os sacristães de Notre-
Dame estavam a preparar-se para a primeira missa quando ele
regressou.
- Não te sabia tão a par dos usos e costumes da catedral - disse
Olivier, rindo e pousando em cima da mesa algumas moedas. - Prepara-
me qualquer coisa mais reconfortante para lhe levar.
Provido do que tinha pedido - queijo, pão e vinho - Olivier subiu à
mansarda, encontrou a porta fechada e bateu várias vezes, até que, por
fim, uma cabeça mais emaranhada do que nunca se mostrou pela greta
entreaberta. Os olhos estavam sonolentos, mas foi reconhecido de
imediato:
- Olha! Sois vós? Que bom vento vos traz? - disse Montou, olhando
para a refeição com satisfação.
- Um vento em forma de ponto de interrogação. Preciso da vossa
ajuda.
Estava frio na mansarda, já que o medo de um incêndio bania
qualquer fogo o ar estava viciado. No entanto, Montou abriu uma janela,
indicando com um gesto ao seu hóspede que fizesse o mesmo. Em
seguida, bebeu de um trago a malga de vinho, cortou um pedaço de
queijo e uma espessa fatia de pão antes de iniciar o diálogo:
- Que posso fazer por vós? Há mais alguma donzela para salvar?
- Não. Graças a Deus e a vós, ela está bem. O pai dela é que corre
grave perigo.
- Mathieu de Montreuil? Foi preso?
- Ainda não, mas não deve tardar. Mestre Mathieu chamou a si o
vosso velho projecto de mandar Filipe para o outro mundo! Afirma ver
em sonhos o Grão-Mestre, que o encarregou da vingança!
- Acreditais nele?
- Não. Sobretudo, ele está obcecado com a ideia e não vê a
diferença, penso eu, entre o sonho, a realidade e o ódio.
- Se calhar, tem razão. Achais que o Papa e Nogaret morreram
realmente de morte natural? Aposto a minha camisa - e só tenho uma! -
em como foram umas mãos discretas que se encarregaram deles... O
nosso bom sire só tem... quarenta e seis anos, parece-me, e é um atleta.
Mais saúde não pode ter.
- Sem dúvida, mas Mathieu, naquela famosa noite, recebeu um
ferimento que lhe torna difícil o uso do braço esquerdo. Vai agir com
pouca perícia e será apanhado...
- E quereis que eu o ajude?
- De maneira nenhuma!
- Que faça o trabalho por ele?
- Ainda menos! A catedral de Notre-Dame continua a ser o vosso
porta-voz?
- Não depois da morte de Nogaret, que não resisti a publicar... mas
torna-se cada vez mais difícil. O bispo anda desconfiado e a vigilância é
maior...
- O guarda dos Selos morreu há mais de quatro meses e, em
princípio, não tendes doravante nada para anunciar... senão o fim do Rei
e disso encarregar-se-á o "sino grande" quando tocar a finados.
Pedro de Montou terminou o pichei de vinho, limpou a boca à
manga da camisa, fundou e depois:
- Se me dissésseis ao certo o que tendes na cabeça ganharíamos
tempo.
- Gostaria que a catedral suplicasse a Filipe que não fosse a
Fontainebleau este Outono para caçar, como é seu hábito.
- É lá que Machieu está à espera dele?
- Por agora, Machieu está em Corbeil, onde está sempre à espreita
da passagem da escolta real.
- Mas, enfim, vós e o filho dele não são suficientemente grandes
para o impedir de se lançar nessa aventura insensata?
- Ainda bem que também pensais assim! Talvez seja melhor contar-
vos o que se passou depois de nos termos separado na Torre de Nesle.
Se tiverdes tempo?
Montou estendeu-se ao comprido na sua cama com os braços na
nuca:
- Tenho sim! Sabeis muito bem que sou uma ave nocturna! Olivier
não era homem para grandes desenvolvimentos e, assim, foi breve e
preciso. Montou ouviu-o com os olhos meio fechados, como uma criança
embalada por uma bela história, mas o litígio com o Rei fê-lo levantar-se
e ficar singularmente atento:
- Ele devolveu-vos a liberdade? - perguntou ele com estupor.
- Na condição de eu evitar Paris e de nunca mais pôr os pés em
França. Mas violei a minha palavra pela primeira vez na minha vida para
vos vir ver - acrescentou Olivier com tristeza. - Tenho vergonha, mas a
salvação de Mathieu é-me muito cara! Sois capaz de me compreender?
- Resta-me o suficiente de cavaleiro para saber o que vos custa,
mas fizestes bem em vir: creio que estou em condições de vos
tranquilizar sem que precise de flechas ou de outra coisa qualquer: o Rei
não vai a Fontainebleau este Outono.
- Como é que sabeis?
- Tenho uma ou duas fontes em bons locais, mas desta vez nem
precisei delas porque o que vos vou dizer toda a gente sabe: Filipe
deixou todos os assuntos nas mãos de Enguerrand de Marigny e foi
repousar e caçar para as margens do Oise...
- Foi outra vez para Maubuisson?
- Não. Para Pont-Sainte-Maxence. Perto do burgo que ele fundou,
há alguns anos e a pedido da mulher, a abadia de Monteei, confiada às
Claristas e, bem entendido, mandou construir ao lado um pequeno
castelo, próximo, aliás, de La Cour-Basse, o de Filipe de Beaumanoir,
um dos seus principais conselheiros. Talvez até um amigo...
- Isso não quer dizer que não vá para Fontainebleau!
- É impossível. Não vai fazer mais nenhuma estadia fora de Paris,
agora que o Inverno se aproxima. Assim, meu amigo, podeis ir
tranquilamente ter com aquele pobre Mathieu. Ele vai esperar em vão e
se alguém se encarregar de executar as vontades do Grão-Mestre, esse
alguém não será ele!
O suspiro que saiu do peito de Courtenay era de fazer levantar o
telhado. Aquele homem fora do comum tinha o dom de lhe inspirar uma
confiança absoluta. No entanto, o cavaleiro decidiu fazer por mais algum
tempo de advogado do diabo:
- Ele pode ser forçado a interromper a estadia. O reino... -... está em
paz... por mais duro que seja de admitir. As ligas formadas depois da
morte do Grão-Mestre mantêm-se calmas e o crédito que Marigny
obteve dos Lombardos desencalhou as finanças. Enfim, lembrai-vos que
no Inverno não se combate. O repouso que pensa ter bem merecido
passa-o o Rei em Pont-Sainte-Maxence. Mais nada.
Não havia nada a acrescentar. Olivier entregou as armas com
prazer. Estava morto por ir ter com Remi para lhe dar a boa notícia. Ele e
o pai poderiam trabalhar em paz para os cónegos de Corbeil e ele
próprio poderia retomar o seu caminho na direcção do céu azul da sua
terra natal. O cavaleiro levantou-se, mas Montou reteve-o:
- Onde pensais que ides? É noite e as portas de Paris estão
fechadas...
- É verdade! Já me esquecia! E também já me esquecia que estou
cansado.
- Então, ficai e repousai! - disse Montou, levantando-se. - Dormi até
vos fartardes, o sítio é vosso!
- Ides sair? - Tenho umas contas a ajustar. Estarei de volta de
madrugada para vos dizer adeus!
Tendo dito aquilo, Montou envolveu-se no sem grande manto negro,
meteu na cabeça um chapéu todo deformado e saiu. Sem levar o arco
que disparava tão bem e que Olivier foi ver, antes de se deitar, se
continuava no seu lugar. Feito aquilo, estendeu-se na enxerga e
adormeceu instantaneamente.
Foi o galo asmático do priorado de Saint-Denis-de-la-Châtre, logo
seguido pelo sino das Primas, que o acordou, e também o frio
penetrante da madrugada. Montou ainda não regressara. Olivier olhou
pela janela para o céu que lhe pareceu relativamente claro e depois
hesitou sobre o que fazer. Sentindo-se em forma, tinha pressa de partir e
queria transpor as portas logo à abertura, mas, por outro lado, o seu
anfitrião especificara que estaria de regresso de madrugada para lhe
dizer adeus...
Depois de reflectir e como a melhor maneira de se aquecer era
comer qualquer coisa, decidiu descer à sala e tomar o pequeno-almoço
enquanto esperava pela ave nocturna.
Grande-Estafado já lá estava, varrendo negligentemente os detritos
deixados pelos clientes da véspera, mas na lareira o fogo chamejava e
Olivier aproximou-se dele com satisfação.
- Posso comer qualquer coisa? - perguntou ele ao taberneiro, que
não parecia ter-se apercebido da sua presença.
Sem uma palavra, Grande-Estafado foi cortar um naco de pão, tirou
uma caneca de cerveja e regressou ao que estava a fazer antes:
- É pouca coisa! - queixou-se Olivier.
Grande-Estafado, decididamente pouco inclinado para a conversa,
fez sinal de que tinha compreendido, voltou a cortar outro naco,
acrescentou-lhe uma grande cebola, um pedaço de queijo, uma nova
caneca de cerveja e serviu tudo ao seu cliente, estendendo uma palma
da mão significativa. Olivier compreendeu, pagou e depois de uma curta
oração concentrou-se na refeição, o que lhe levou algum tempo. Como o
Templo tinha ensinado ao regressar do Oriente, e tal como ele aprendera
no Templo, comia lentamente por respeito pela alimentação de Deus e
em silêncio. Naquele ponto não havia nada a temer por parte do
taberneiro, que continuava a sua lida da casa sem se preocupar com ele.
Mas quando chegou às últimas migalhas, Olivier foi obrigado a constatar
que Montou continuava ausente e que o dia já tinha nascido. E levantou-
se:
- Não posso esperar mais tempo - disse ele a Grande-Estafado. -
Tenho de partir e tu dir-lhe-ás adeus por mim. Diz-lhe também que, se
precisar de mim, sabe onde me encontrar. Estarei lá até ao fim do ano -
precisou ele, acrescentando uma pequena moeda a título de
encorajamento.
O gordo fez sinal de que tinha entendido, levou a mão ao barrete e,
apesar de tudo, disse:
- Podes vir aqui sempre que quiseres! Mesmo sem ele.
- Obrigado!
Dirigindo-se para a Petit-Pont para atingir a margem esquerda,
Olivier tentou analisar o que poderia tê-lo levado, momentos antes, a
dizer que ficaria em Corbeil até ao fim do ano, quando no dia anterior, à
noite, depois de ter obtido a certeza de que o Rei não iria a
Fontainebleau, tinha decidido retomar o seu caminho com destino a
Valcroze. Dissera aquilo espontaneamente e, reflectindo, acabou por
concluir que era seu desejo profundo não abandonar Mathieu e Remi
senão uma vez certo de que, com profecia cumprida ou não - e no fundo
de si mesmo estava persuadido de que se cumpriria! - o ano fatídico
chegaria ao seu fim. A família dos seus amigos poderia, então,
consolidar-se e ir trabalhar em paz para outras catedrais sob outros
céus. Naquele ponto das suas cogitações, o pensamento de que os céus
em questão podiam ser mediterrânicos atravessou-lhe o espírito, mas
afastou-o com cólera. Não tinha de expiar a grave falta à sua honra que
acabava de cometer? Ora, se ainda não sabia qual a penitência que lhe
imporia o confessor que o ouviria, esta não podia, em nenhum caso,
incluir a presença de uma jovem encantadora.
Ao entrar em Corbeil no dia seguinte - sabendo que ao cair da noite
as portas se fechariam - pedira a hospitalidade de um mosteiro a uma
légua de distância da cidade - ainda se sentia feliz com a boa notícia que
ia dar a Remi, mas aquele estado de graça não resistiu muito mais
tempo quando chegou à vizinhança do estaleiro. Em vez de estarem nos
andaimes, os operários conversavam agrupados em redor de Cauvin e
de Remi. Este destacou-se do grupo ao ver chegar Olivier. O jovem
estava pálido, visivelmente inquieto e pela melhor das razões: Mathieu
tinha desaparecido.
- Como assim, desapareceu? - perguntou o cavaleiro.
- Deixou o estaleiro ontem de tarde e foi para casa. Quando lá fui,
não estava lá, mas ninguém o viu sair. Como não sabia onde tinha ido,
esperei por ele. Toda a noite, sem que aparecesse.
- - Revistastes bem a casa? Talvez tenha deixado um bilhete.
- Não encontrei nada, mas talvez, de facto tenha procurado mal.
Estava tão preocupado!
- Vamos ver!
Não havia nada para ver. A pequena casa na margem do rio estava
perfeitamente em ordem. Nada que indicasse uma partida precipitada ou
um ataque qualquer. Aliás, Remi ter-se-ia apercebido ao primeiro olhar.
De tanto procurar, entretanto, o jovem acabou por reparar que, na arca
do seu pai faltavam várias roupas, para além das que ele tinha vestidas.
Além disso, a pequena reserva de dinheiro que ali guardava estava
reduzida a metade.
- Terá partido em viagem? - concluiu Remi sem conseguir acreditar
por completo. - E para fazer o quê, sobretudo sem me ter dito nada?
- Para que não vos opusésseis! Pergunto a mim próprio... oh, não é
possível! Como poderia ele saber...
- O quê?
- Que o Rei não vem a Fontainebleau este Outono, pela excelente
razão de que está em Pont-Sainte-Maxence, no Oise. Soube-o em Paris
e apressei-me a vir para vo-lo dizer... mas não a ele. Era a certeza, para
nós, de que ele não cometeria a loucura em que estava a pensar.
Bastava deixar passar o tempo...
- Tendes a certeza?
-Tenho! Em Paris, toda a gente sabe, parece. Mestre Mathieu deve
ter-se encontrado com alguém de lá que o pôs ao corrente! Não estamos
assim tão longe e os barcos que abastecem a cidade...
Olivier interrompeu o seu discurso. Era evidente que só podia ser
aquilo! As barcaças que desciam quase todos os dias o Sena também o
subiam, arrastadas pelos vigorosos cavalos ao longo dos caminhos de
sirgagem. Como pudera pensar que trazia consigo um segredo? Bastava
que o mestre construtor tivesse falado com um dos barqueiros para ficar
a saber o que lhe queriam esconder...
- Que imbecil que fui! - disse ele, furioso e virando-se depois para o
amigo. -Sabeis se, ontem de manhã, ele foi ao porto e se falou com
alguém?
- Não, mas podemos saber...
Os dois homens foram ao cais e, a meias, interrogaram vários
homens. Mathieu, com a sua estatura, o braço quase imóvel e a cabeça
de velho leão, era ali muito conhecido.
Ora, nenhum dos que questionaram lhes pôde dizer se o tinha visto
e nenhum barco descera o rio na véspera, ou naquela manhã.
Era de dar com a cabeça nas paredes!
Chegada a noite, fechados na casa, falaram com Cauvin. O
contramestre não ignorava nada dos projectos regicidas do seu patrão e
não os aprovava, mas estava pronto a correr todos os riscos para lhe
acudir.
- Se Olivier tiver razão - disse ele - um de nós devia ir ver o que lhe
aconteceu. Mesmo que ninguém se tenha apercebido, mestre Machieu
deve ter falado com alguém.
Ao mesmo tempo, o seu olhar fixava Courtenay, dizendo claramente
que aquela tarefa lhe competia por direito. Pessoalmente não se podia
afastar do estaleiro cujos trabalhos, na ausência do patrão, ela ele que
assegurava. Coisa importante perante os cónegos, que se tinham
arriscado a esconder um homem procurado pelo poder. Não podiam
agradecer-lhes daquela maneira, abandonando a obra, ainda por cima
paga generosamente. Remi compreendeu o olhar do contramestre e
disse:
- Eu vou! Olivier não pode, mais uma vez, voltar para trás! Não vos
posso explicar porquê, Cauvin: é assim!
Mas Olivier não era da mesma opinião. Algo o atormentava e o
cavaleiro pensou em voz alta:
- Isto nem parece coisa de mestre Mathieu! Se quisesse ir para
longe, alterando os seus planos, não teria ido sem dizer nada, às
escondidas, deixando toda a gente embaraçada. Sem contar com a
angústia de Remi. Além disso, apesar de já não ser o mesmo homem
desde que está agarrado ao que chama a sua missão, não pode ter
renunciado ao sentido do dever e da honestidade, arriscando-se a
passar por ladrão aos olhos do capítulo da colegial...
- Que propondes, nesse caso? - grunhiu Cauvin.
- Esperar mais um pouco. Pelo menos mais esta noite e amanhã
tentar saber um pouco mais. Passamos hoje o porto a pente fino e sem
resultados. Tentemos amanhã o resto da cidade para saber se alguém o
viu, mesmo que não lhe tenham falado!
- Parece-me sensato - aprovou Remi. - Talvez nos tenhamos afligido
em vão e ele não tarde a regressar?
- Por que não, afinal de contas? - disse Cauvin, sufocando um
bocejo. - As portas estão fechadas, é melhor tratarmos de dormir.
Amanhã, logo se verá... pelo menos, assim espero.
Separaram-se. Cauvin, que estava alojado em casa de um dos
pedreiros, regressou e Remi deu alojamento a Olivier em vez de o deixar
regressar ao albergue.
De manhã, Mathieu ainda não tinha regressado. Mas, mal o sino
tocou para as Primas, chegou ao estaleiro um seminarista da igreja de
Saint-Etienne-D'Essonnes, chamando por "mestre Bernardo". Indicaram-
lhe a cabana dos projectos, onde se encontravam Remi e Olivier. O
homem vinha dizer-lhe que o seu cura e o bailio estavam de acordo para
que o mestre-de-obras recuperasse as poucas pedras da antiga
comendadoria templária de Saint-Jean-enrisle, quase totalmente
destruída.
- Havia lá uma comendadoria? - não pôde deixar de perguntar
Olivier.
- Oh, não era muito grande, mas tinha alguns edifícios bem bonitos.
Depois de a ter vasculhado de ponta a ponta, os homens do Rei tinham-
lhe pegado o fogo... e as gentes da aldea tinham-se servido das suas
pedras antes que o bailio os proibisse.. E quando mestre Bernardo lá
foi...
- Quando foi isso? - perguntou Remi.
- Há dois ou três dias, creio... Esperai, para que me lembre
exactamente! Sim, foi há dois dias de manhã. Ele estava a falar com o
nosso cura na igreja quando eu entrei, ainda espantado por ter visto na
estrada o cortejo do nosso sire, o rei...
- O quê?
Olivier e Remi tinham feito a pergunta simultaneamente. Aquilo
sobressaltou o clérigo, que olhou para eles com uma vaga inquietação:
- Bem, sim... o cortejo do Rei! Não era muito grande mas mesmo
assim! Um grupo de cavaleiro ricamente vestidos com a bandeira das
flores-de-lis e com o nosso sire no meio! Tão nobre tão grande! É fácil de
reconhecer.
-Já o tínheis visto antes? - perguntou Olivier.
- Não, mas... um aparato daqueles! E as pessoas, que que ainda
gritavam "Natal" quando ele já tinha passado. E então, as pedras?
- Vamos mandar lá alguém! Obrigado por terdes trazido a
mensagem - disse Remi.
- Oh, de nada! - respondeu o seminarista com um suspiro radioso.
Posso ver os homens a trabalhar por uns momentos? Eles parecem
estar a fazer um belo trabalho!
- Ficai o tempo que quiserdes!
Assim que ele desapareceu no ângulo da colegial, Olivier e Remi
permaneceram um instante em silêncio, mas só um instante antes de
Remi dizer, suspirando:
- É inútil continuar a procurar, o meu pai está em Fontaine-bleau!
- É incrível! - disse Olivier. - Como é que Filipe aparece aqui quando
se sabia que estava na região do Oise?
- Ele é o Rei - disse Olivier encolhendo os ombros - por que não há-
de mudar de opinião e decidir ir para o seu querido castelo sem avisar
ninguém? Para as pernas sólidas dos seus cavalos, as distâncias não
são longas. Talvez lhe tenha desagrado qualquer coisa? Vá-se lá saber!
- Seja como for, é uma verdadeira catástrofe. Só nos resta uma
coisa, ir a Fontainebleau a toda a pressa, esperando não chegar
demasiado tarde!
- Demasiado tarde, não! Se ele já tivesse atacado já se saberia: este
género de notícias corre nas asas do vento e já se teria ouvido o toque a
finados.
- Pode tocar a qualquer minuto! Vou já para lá!
- Dai-me tempo para avisar Cauvin e vou convosco! Não seremos
demais para o encontrar!
Enquanto Remi se dirigia aos andaimes, Olivier regressou à casa.
Foi então que o mistério, por momentos esclarecido, se obscureceu de
novo quando ele deu de caras com Pedro de Montou, mais poeirento do
que nunca:
- Até que enfim vos encontro! - grunhiu este. - Podeis gabar-vos de
me terdes obrigado a correr! Por que não esperastes por mim em minha
casa?
- Não sabia se os vossos assuntos vos reteriam mais do que o
previsto e tinha de regressar aqui para tranquilizar Remi e os que se
impacientam com os desenhos de Mathieu... Infelizmente, enganastes-
vos...
- Em quê?
- O Rei foi para Fontainebleau.
- É impossível! O Rei está no palácio da Cite. Foi de Pont-Sainte-
Maxence para lá de barco. Assisti ao seu transporte numa maca!
- Enganastes-vos! O jovem seminarista que vedes além a ver os
pedreiros a trabalhar, viu-o há dois dias a atravessar Essonnes a cavalo
com o pessoal da casa dele.
- Como é que ele o reconheceu? Já o tinha visto?
- Não sei, mas estava tudo lá: a expressão, o cortejo, as bandeiras
com a flor-de-lis...
- Não é só Filipe que tem direito à flor-de-lis e o vosso futuro cura
parece-me um belo palerma! Já vos disse, se levaram o Rei para Paris
por via fluvial é porque ele está doente.
- Doente, ele? Ora vamos! Ele é de ferro!
- Mas o ferro pode esconder uma palha. Eu tentei descobrir mais
qualquer coisa e soube o seguinte: quando andava à caça na floresta,
ele afastou-se com os cães, como gosta e, de repente, os monteiros
ouviram uns gritos e acorreram. Encontraram o Rei por terra junto do seu
cavalo. Estava frio, naquela manhã, a geada cobria o solo e as árvores
despojadas de folhas. Ora, quando descobriram Filipe, os caçadores
viram afastar-se um grande veado por entre as árvores, o qual deixara
para trás um pedaço das hastes em forma de cruz e um fraco raio de sol
fazia brilhar essa cruz. Os homens ficaram de tal modo assustados que
nenhum deles pensou em perseguir o animal. Além disso, tinham mais
que fazer. Levaram o doente para o castelo onde, durante a noite, ele
recuperou a consciência, mas estava tão fraco que o meteram num
barco que desceu o Oise e que depois subiu o Sena até à Cite... Que
achais da minha história, messire de Courtenay? Estranha, não é
verdade?
Olivier, que empalidecera, não respondeu de imediato. Parecia ter
dificuldade em recuperar o fôlego. Por fim, o cavaleiro benzeu-se com
uma espécie de terror: - Acho que a profecia do Grão-Mestre acaba de
se cumprir, que o Rei vai morrer... e que Deus não precisava do mestre
Mathieu para fazer cumprir a Sua vontade. Simplesmente, aquele louco
foi para Fontainebleau para ir ao encontro... não sei de quê!
- Penso que devia ser monsenhor d'Evreux. Eu sei que ele possui
um domínio perto do castelo. Se Mathieu de Montreuil se lançou em sua
perseguição, imaginando perseguir o Rei, aperceber-se-á do erro e
voltará para trás.
- Achais que sim?
- Ele conhece muito bem o seu alvo, assim como Luís d'E-vreux e
Carlos de Valois, para se enganar.
- Ele já não é a mesma pessoa por causa daquela mania do
assassínio, que o devora. Pode cometer um erro, confundir a pessoa,
nada é impossível!
- Talvez, mas, se eu tenho razão, ele foi para os arredores do
castelo de Fontainebleau. Ora, como não está lá mais ninguém senão a
guarnição, ele compreenderá rapidamente que se enganou.
Montou tinha, certamente, razão. No entanto, Olivier não ficou
descansado. Mathieu tornara-se demasiado imprevisível para a sua paz
interior. No mesmo instante, Remi foi ter com ele. O cavaleiro deu-lhe
parte do que acabava de saber, pelo que o jovem ficou perturbado, mas
foi da mesma opinião de Olivier:
- Se o espírito do meu pai continua admirável quando se trata de
exercer o seu ofício, perde toda a capacidade de julgamento quando se
trata do Rei. É preciso procurá-lo!
Só Deus sabe o que ele é capaz de fazer se o deixarmos sozinho!
- Estou de acordo. Vamos!
- Se me quiserdes oferecer com que restaurar as minhas forças,
será para mim um prazer acompanhar-vos - disse Montou com uma
careta. - De facto... deixei Paris sem intenção de regressar.
Então, Olivier apercebeu-se de que, sob o manto, o antigo templário
levava a tiracolo o arco de que se servia com tanta habilidade.
- Que é que vos deu?
- A vontade de ver a região. Nunca é bom um homem embrutecer.
Pelo sorriso trocista com que ele temperou o seu propósito,
Courtenay compreendeu que Montou não diria mais nada e que devia ter
uma boa razão para aquela súbita vontade de ver o campo. E como
Remi olhasse para o recém-chegado com um ar de dúvida, apressou-se
a dizer:
- Desde a Torre de Nesle que sei como sois um bom companheiro
de armas! Recruto-vos... com alegria!
Enquanto levava Montou ao albergue, Remi foi ter com os cónegos
para que lhes emprestassem uns cavalos, podendo assim atingir o seu
objectivo, distante umas oito léguas, mais rapidamente. Para isso, não
recuou perante uma enorme mentira: o seu pai, disse-lhes, sofria há
semanas de terríveis dores de cabeça. Para poder curar-se, partira para
Melun para rezar a Santo Aspais, especialista na matéria. Ora, Mathieu
tardava e Remi, preocupado, desejava ir ao seu encontro com dois
companheiros, o que, a pé, podia levar muito tempo. Justamente
preocupado com um homem cujo talento lhe era tão precioso, o capítulo
cedeu três mulas sólidas que tiveram o dom de desencadear a hilaridade
de Montou:
- Vão pensar que somos bispos, montados nestas coisas! -
exclamou ele, subindo para uma delas.
A operação não foi sem algumas dificuldades, já que o animal era,
sem dúvida, impermeável a quaisquer brincadeiras.
Ao ver os exercícios equestres a que ele se entregava, Olivier teve a
ideia de que talvez fosse melhor pedir cavalos emprestados à sirga das
barcaças, mas Remi respondeu-lhe que aqueles animais, muito
pesados, estavam habituados a andar a passo e que devia ser quase
impossível obrigá-los a galopar. Montou resignou-se com um suspiro de
meter dó: teria dado o pouco que lhe restava para sentir de novo entre
as pernas o corpo poderoso e nervoso de um garanhão.
O galope também não era o passo favorito das mulas, mas
conseguiram um trote alegre que levou os três homens ao seu destino
em pouco mais de duas horas.
Aninhado numa clareira da grande floresta de Bière, Fontai-nebleau
era um lugarejo agrupado em redor da sua capela de São Saturnino,
dependendo do que era, há menos de um século, um simples ponto de
encontro de caça e que São Luís transformara num castelo de média
importância.
Próxima da aldeia de Avon e da igreja de São Pedro, transformada
em paróquia, a casa natal de Filipe, o Belo oferecia, do alto das suas
torres, uma vista magnífica das curvas do Sena, cercadas nos dias
bonitos por uma verdura densa animada pelo canto das aves e dos
ruídos fugitivos de uma fauna numerosa. Naquele momento, as folhas
estavam por terra e as árvores desnudadas, mas o local exalava uma
serenidade profunda, à qual os três viajantes foram sensíveis.
Os três homens encontraram alojamento num albergue próximo do
Sena. O hospedeiro era uma mulher: uma comadre forte de cabelos
desgrenhados e cuja grande estatura e braços musculosos impunham
respeito, tanto quanto o olhar de granito e o queixo quadrado de sólidos
dentes brancos.
Muito limpa - a sua casa era modesta mas tão bem arranjada
quanto o permitiam os meios limitados - e conversadora, sabia julgar as
pessoas e raramente se enganava.
Os três companheiros não tiveram qualquer dificuldade de saber por
ela - chamava-se Nicole! - que Mathieu estava lá hospedado que estava
fora a maior parte do tempo:
- É um ancião muito educado e muito correcto - disse-lhes ela - mas
penso que não regula bem. Chegou aqui persuadido de que o nosso
sire, o Rei, estava no castelo.
Bem lhe disseram que não estava e que nem sequer sabiam se
vinha como habitualmente visto que a estação já vai avançada, mas ele
não quis acreditar. Até afirma que não deve tardar e anda à roda do
castelo como um lobo doente e os guardas já começam a olhar para ele
de lado...
- Porquê? - perguntou Olivier. - Ele não fez mal nenhum, que eu
saiba.
- Não, mas está sempre a fazer a mesma pergunta e lá em cima já
estão fartos dele. Se sois da família dele, faríeis bem em levá-lo daqui!
Não vai sair boa coisa dali!
- Viemos, justamente, buscá-lo - disse Remi. - Onde é que ele está?
Nicole fez, com a cabeça, um gesto na direcção do exterior:
- Onde quereis que esteja?
De facto, não tiveram de ir longe e encontraram Mathieu sentado
num pequeno monte à vista da ponte levadiça. O construtor tinha entre
as pernas um pesado bastão que devia ter talhado para caminhar mais
comodamente. Mathieu não ouviu chegar os três homens e só Remi se
aproximou dele:
- Meu pai - disse ele - não deveis ficar aqui!
Mathieu virou a cabeça e o jovem sentiu um aperto no coração
perante aquele rosto mudado em tão pouco tempo! A máscara, já
leonina tornara-se feroz, perdendo em majestade e ganhando em
inquietação. E Remi também não gostou do brilho estranho que viu nos
seus olhos. No entanto, Mathieu reconheceu-o:
- Mas fico! Estou à espera do demónio a quem chamam Filipe!
- Ele não vem, meu pai. Está no palácio da Cite.
- Quem te disse?
- Alguém que o viu.
- Esse alguém está enganado. Um padre reconheceu-o perto
daqui... mas não sei por que tarda tanto!
- O padre é que se enganou. Não era ele, era o irmão, monsenhor
d'Evreux, que é parecido com ele. Asseguro-vos, meu pai, o Rei está em
Paris e não vem caçar a estes bosques este Outono! Ele está... doente!
Intencionalmente, Remi destacara a palavra para que ela
penetrasse num espírito que ele sentia fugir-lhe. E conseguiu.
- Doente? De quê?
Não sei, mas o que é certo é que estava a caçar em Pont-Sainte-
Maxence, no Oise, que caiu e que o meteram numa barca para o
levarem para o palácio. Como vedes, meu pai, Deus encarregou-se dele,
tal como se encarregou do Papa e de Nogaret!
- Ah! Achas que sim?
- Acho, com toda a minha alma. O Rei vai morrer e o pesadelo
acaba. Ides poder recomeçar as grandes obras, que serão maiores
orações a Deus do que um assassínio!
Vinde, a noite está a cair! Está frio e tendes de vos aquecer.
Amanhã, regressamos.
As palavras de Remi eram tão persuasivas que Mathieu levantou-
se, segurou no braço do filho e, apoiando-se no outro lado ao bastão,
seguiu-o pelo caminho que ia dar ao albergue, na direcção do qual,
vendo que as coisas estavam a correr bem, Olivier e Montou já tinham
começado a andar.
Ao vê-los, Mathieu teve um movimento de recuo:
- Por que não vieste só?
- Porque não sabia onde estáveis exactamente e, a três, podíamos
procurar melhor. Além disso, os bons dos cónegos, que estão em
cuidado convosco, emprestaram-nos umas mulas para vos levar de volta
rapidamente.
- É muita gentileza da parte deles...
- Não. É natural: eles gostam de vós... tal como nós!
Mathieu parecia apaziguado. Mostrou-se razoavelmente educado
com os companheiros do seu filho, não falou muito durante o jantar e,
mal terminou a refeição, deixou-se levar para a cama sem protestar: o
construtor parecia muito cansado, de repente, e adormeceu mal se
deitou. Remi informou os outros, que tinham decidido ficar em frente da
lareira com uma malga de vinho com ervas nas mãos. O jovem parecia
subitamente muito feliz e desejou as boas-noites aos seus amigos,
acrescentando que preferia ficar junto do pai até ao momento da partida.
Sós, os dois homens permaneceram por alguns momentos em
silêncio, saboreando aquele instante de paz. Só se ouvia a voz
rabugenta de Nicole a dar banho ao filho na arrecadação, mas até esse
som participava na serenidade ambiente: não passava do reflexo de uma
vida quotidiana normal. Coisa que aqueles antigos templários não
conheciam há muito tempo.
Por fim, Montou perguntou:
- Depois de os levarmos, retomais o vosso caminho?
- Sem mais demoras. Eles não precisam de mim e eu tenho pressa
de chegar a Valcroze! O seu céu puro e as suas charnecas ao sol.
- Posso acompanhar-vos? Se regressar a Paris, espera-me a forca.
Ou pior... e não tenho eira nem beira.
- Que andastes a fazer?
- Com alguns camaradas, fomos visitar o bispo Jean de Marigny
para o aliviar, pelo menos, de uma parte do que ele roubou ao Templo...
e noutros sítios. Mas eu queria mais: queria matá-lo para o obrigar a
expiar os interrogatórios, as torturas... infelizmente, fizemos mal as
contas e só tivemos tempo de fugir! O texugo está bem guardado e o
palácio cheio de armadilhas... Um dos nossos foi apanhado. Há-de falar
e então...
- ... então Notre-Dame acaba, de perder a sua voz para sempre?
- De qualquer maneira, tê-la-ia perdido na mesma. Começo a sentir
a fadiga dos anos e arrasto comigo uma grande dor. Dir-me-eis que um
bom convento é o indicado, mas a vida de monge, de verdadeiro monge,
nunca me agradou! Demasiados Padre-Nossos e pouca acção! Creio
que prefiro morrer de fome e de miséria sozinho, ao pé de uma árvore.
- Também há árvores na Provença - murmurou Olivier ao cabo de
um momento. - E o clima é quente... Pode ser que só tenha uma cabana
de pastor para vos oferecer, ou uma gruta na montanha, mas estaremos
mais perto de Deus e não vejo razão para vos recusar um pedaço
daquilo que Ele criou com tanto amor...
Nos olhos castanhos de Montou brilhou algo. Era, talvez, uma
lágrima, mas o antigo templário limitou-se a dizer:
- Obrigado!
A primeira neve caíra durante a noite, demasiado leve para penetrar
no espesso emaranhado da floresta, quando, ao nascer do dia, tomaram
o caminho de regresso a Corbeil. Os prados e os campos estavam
cobertos por um manto branco. Remi cedeu a sua mula ao pai e, sendo
com ele o menos pesado, Montou cedeu-lhe a sua garupa, o que
contribuiu para retardar o andamento, mas a pressa já não existia, agora
que tudo entrara na ordem.
Estavam a chegar aos arredores de Essonnes quando o drama
estalou...
A estreita estrada surgiu subitamente obstruída, ao ponto de ser
impossível passar, nem sequer pelos declives onde se amontoavam os
camponeses, mas os quatro viajantes não pensaram nisso, petrificados
como ficaram perante tantos cavalos parados, aliás, obstruindo a
passagem e por cima dos quais flutuavam pendões e estandartes com
as armas de França: cavalos, servos, arqueiros, grandes senhores
rodeando um homem que Olivier e Montou reconheceram com espanto,
antes mesmo de ouvirem o seu nome proclamado por centenas de
bocas:
- O Rei... O Rei!
Era e ele e, no entanto, já não era. Por baixo do capuz de veludo
azulado, a pele pálida colava-se aos ossos da face sob as órbitas
encovadas, violáceas em redor dos olhos de um azul-deslavado. Estes
estavam fixos e Filipe não parecia ver. Mantinha-se na sela, rígido como
uma estátua, mas uma estátua que vacilava e que Hugo de Bouville e
Alain de Pareilles se esforçavam por manter direita. Porém, Olivier não
teve tempo de dizer a si próprio que estava a sonhar, que era impossível.
Já Mathieu, que ia à frente, se virava para os seus companheiros,
espumando pela boca e com a loucura no olhar:
- Mentistes-me! Ele está vivo... Ele está vivo! Chicoteando o seu
animal com uma mão e desembainhando a longa faca que levava à
cintura, o mestre-de-obras carregou na direcção do seu alvo gritando:
- Por mestre Jacques!
O ataque foi tão rápido que os cavaleiros afastaram-se na sua frente
e, por um instante, dir-se-ia que ele ia poder desferir o seu golpe, mas
uma acha-de-armas, manejada por um fidalgo da escolta, abateu-se
sobre a sua cabeça e Mathieu caiu, com o rosto cheio de sangue, entre
os cascos do corcel real e os da sua montada. O construtor estava inerte
e os que seguravam em Filipe fizeram deslizar suavemente da sela para
o levarem para uma liteira que se estava a aproximar... A sua volta, o
círculo alargou-se. Olhavam todos para aquele corpo sangrento, inerte e
miserável, sobre o qual o capitão da guarda se inclinou depois de o Rei
ter ficado escondido pelas cortinas.
Por seu lado, os companheiros de Mathieu tinham posto pé em
terra. Remi, evidentemente, quis precipitar-se na direcção do seu pai,
mas Olivier reteve-o com um punho de ferro:
- Que vais fazer? Entregar-te? Não podemos fazer nada por ele...
- Ele precisa de ajuda...
- Está morto! Nenhum crânio resistiria a um golpe daqueles!
- Mas é o meu pai!
- Sim, mas tens de pensar na tua mãe e na tua irmã. Tens de viver
para elas...
Os três homens ouviram Alain de Pareilles dar uma ordem depois
de ter virado o corpo de Mathieu com a ponta da bota:
- Enforquem-no! Como exemplo!
Então, Olivier não conseguiu suportar o soluço que rasgou a
garganta de Remi. Abrindo caminho por entre a multidão, aproximou-se
de Pareilles:
- Por favor, sire capitão, poupai essa vergonha à família desse louco
infeliz!
- Vós? Que fazeis aqui? Não tínheis jurado...
- Sim, e estou a caminho, mas antes quis tentar opor-me a um
gesto... como este e quase consegui.
- Quase porquê?
- Porque pensávamos que o Rei estava a morrer em Paris... E
depois ele viu-o... e ainda por cima a cavalo!
- Um momento!
O cortejo pôs-se em marcha em redor da liteira e do belo corcel sem
cavaleiro, levado pela brida por um escudeiro. Alain de Pareilles disse
algumas palavras ao ouvido de um oficial e ficou para trás com dois
guardas, um dos quais já tinha uma corda na mão.
- Ele? - perguntou o capitão da guarda sem atenuar a rudeza da
voz. - E quem é ele?
- Creio que sabeis!
- Como sois vós que estais a pedir por ele, sei. Mathieu de
Montreuil! E quereis que o respeitemos quando queria matar o Rei?
-Já vos disse que ele tinha renunciado porque pensava que Filipe
estava a morrer...
- Ainda não, mas não deve tardar. Desde que o fomos buscar que
não pára de regressar ao castelo natal para entregar a alma a Deus no
sítio onde a recebeu. Por meio de um daqueles esforços da vontade que
só ele tem, ordenou que o pusessem na sela, mas as forças, como
vistes, acabam de o abandonar... Mete dó!
Sem grande surpresa, Olivier viu, nas feições crestadas do fidalgo
uma lágrima, rapidamente enxugada pelo punho enluvado. Um dos seus
soldados aproximou-se:
- Sire capitão, quais são as vossas ordens? - perguntou ele
apontando para a corda.
- Não. No estado em que está, o nosso sire Filipe concederia o
perdão, creio, a esse demente, que foi um grande homem! Vamos-nos
embora! Pela última vez, espero, adeus, cavaleiro!
O capitão subiu para a sua montada que o esperava calmamente e
deu ordem para que aqueles que ainda se encontravam por ali,
esperando o fim do espectáculo, dispersassem; seguido pela sua gente,
afastou-se a trote para se juntar à coluna já fúnebre que levava o Rei.
Os três homens ficaram sós no caminho com o cadáver que Remi
abraçava. Pedro de Montou aproximou a mula que transportara Mathieu.
O filho deste e Olivier envolveram-no no próprio manto sem se
preocuparem com o sangue que continuava a escorrer e colocaram-no
no dorso do animal, ao lado do qual caminharam para o impedir de cair...
O céu, de uma cor feia, cinzento-amarelada, prometia uma nova
queda de neve que acabou por desabar, silenciosa, enquanto
regressavam ao estaleiro. Quando lá chegaram, o corpo parecia que ia
coberto por um lençol de linho puro...
Na mesma noite, Mathieu de Montreuil foi enterrado no pequeno
cemitério da colegial de Notre-Dame na presença do capítulo, ao qual
Remi não escondeu nada sobre as circunstâncias da sua morte, mas o
deão decidiu que a causa real permanecesse secreta. Mais valia, para
os aldeões de Corbeil, que o construtor tivesse sido vítima de um
acidente. Se bem que simples, a cerimónia não deixou, por isso, de ser
bela.
Terminados os planos do campanário, os cónegos resolveram
confiar em Cauvin, continuando Remi a sua tarefa de escultor. Quanto a
Olivier e Montou, podiam partir quando quisessem, o que fizeram no dia
seguinte quando os sinos do reino, tocando a finados e substituindo-se
os campanários uns aos outros, disseram ao povo de França que Filipe,
o Belo entrara na eternidade e que o Rei era agora o imprevisível Luís X.
Quando se despediram de Remi, Olivier e Pedro de Montou
aconselharam-no a ir buscar a mãe e a irmã para junto de si.
- Nenhum dos antigos servidores do Rei estará em segurança -
disse o último. - Marigny será o primeiro a ficar em perigo. O Cabeçudo
odeia-o e mais ainda Carlos de Valois, que vai ser todo-poderoso...
- É possível, mas por que razão umas mulheres sem importância
hão-de sofrer?
- Não vos esqueçais de Gontram Imbert! Se as leis e decretos do
reinado precedente forem abolidas, ele apressar-se-á a lembrar-se da
sua condenação e irá ajoelhar-se aos pés de Luís para lhe pedir que lhe
ponha fim.
- Então, as damas de Passiacum ficarão à sua mercê - prosseguiu
Olivier. - Não podeis deixá-las lá sozinhas...
- Vamos lá buscá-las amanhã - afirmou Cauvin com uma autoridade
inesperada. Como sou eu que substituo mestre Mathieu, parece-me
normal preocupar-me com a sua família - continuou ele, virando para
Courtenay um olhar onde havia um certo desafio.
A resposta veio por si própria:
- Elas têm Remi. Doravante é ele o chefe da família!
- Não vejo por que há-de recusar a minha ajuda. Não tenho
partilhado as más horas, assim como as boas? E como estais proi- bido
de ficar... Messire - disse ele com um respeito ligeiramente trocista que
restabelecia uma certa distância e também alguma exclusão - não
precisais de vos preocupar mais connosco!
Olivier virou-lhe as costas e segurou nos ombros de Remi para o
abraçar:
- Nunca deixarei de me preocupar convosco e com a vossa família -
disse ele com uma emoção profunda - esteja eu onde estiver. Não te
esqueças, se, por acaso, precisares, a distância a que se encontra a
minha região não é assim tão grande...
XIV – A TORRE FULMINADA
{2}
Cidade antiga da ilha de Chipre, célebre pelo seu templo de Vénus. A autora, em vez
desta cidade, fala em Cítera, mas Cítera é uma ilha, não uma cidade de Chipre.
Suponho que deve ter havido um erro.
{3}
Ver volume II, Renaud ou a Maldição.
{4}
A célebre faiança só surgiu no século XVII.
{5}
A ilha de Eubeia.
{6}
Grande vasilha para beber, em uso na Idade Média.
{7}
Livro eclesiástico que contém antífonas, versículos que se entoam antes de um salmo,
com as notas do respectivo cantochão e outros cantos religiosos.
{8}
Fortaleza construída pelos cruzados no Médio Oriente.
{9}
Antepassada da alabarda, terminada por um ferro assimétrico e um ou dois ganchos na
parte posterior.
{10}
Ver volume II: Renaud ou a Maldição.
{11}
Uma toesa equivalia a seis pés, ou seja, mais ou menos dois metros.
{12}
Monte de pedras servindo de monumento comemorativo, de ponto de referência, etc.
{13}
Epíteto dos imperadores bizantinos nascidos de um pai que reinava no momento do
seu nascimento.
{14}
Ver volume II, Renaud ou a Maldição.
{15}
Foi nesta capela que foram inumados os príncipes fundadores das duas dinastias que
se sucederam aos Capetos: os Valois e os Bourbon. Roberto de Clermont foi o antepassado
directo de Henrique IV.
{16}
Trata-se, desta vez, do "condado" de Borgonha, a que chamamos hoje Franco-
Condado.
{17}
Futuro Eduardo II, foi o primeiro príncipe inglês a usar o título de príncipe de Gales.
{18}
ervilhas e os feijões tinham o mesmo nome.
{19}
Actual rue Quincampoix.
{20}
Os retroseiros da época vendiam tantas coisas que eram o equivalente reduzido das
grandes superfícies dos nossos dias.
{21}
Era o nome usado pelos mestres carpinteiros.
{22}
Hoje em dia Passy.
{23}
Originário do Franco-Condado.
{24}
O recinto fortificado fora edificado a pouca distância de Paris, mas encontrava-se a ela
ligado por algumas ruas, constituindo a Cidade Nova do Templo.
{25}
Aconselhava-se ali, dizia ele, com o seu Silêncio.
{26}
No tempo da menoridade de São Luís, Branca de Castela utilizou essa saída para
escapar a um assalto.
{27}
Filha de São Luís, era viúva do duque Eudócio de Borgonha.
{28}
Ver o volume II, Renaud ou a Maldição.
{29}
Transformada, ao longo dos séculos, no verdadeiro símbolo do Templo, acolheu,
durante a Revolução, Luís XVI, Maria Antonieta e os seus filhos, que ali viveram o drama que
todos conhecemos.
{30}
Uma especialidade dos marceneiros parisienses.
{31}
Mulher do herdeiro e já Rainha de Navarra, Margarida de Borgonha tinha, mais ou
menos, vinte e cinco pessoas ao seu serviço; duas damas, duas donzelas, um capelão e o seu
ajudante, assim como outros subalternos.
{32}
A residência de Nesle, oferecida por Filipe, o Belo ao seu filho mais velho, compunha-
se de duas partes bem distintas: a residência construída há pouco tempo e a Torre, nitidamente
mais antiga já que era a conclusão, junto ao Sena, da muralha de Filipe Augusto. Estava
simplesmente encostada e para além de um acesso interior, possuía uma entrada logo acima da
margem que ficava, por vezes inundada.
{33}
Construções terminadas em arco que amparam uma parede, ou uma abóbada.
{34}
A tradição dos construtores faz recuar a sua lenda até à construção do Templo de
Salomão, em Jerusalém, onde o Rei se teria associado à obra do arquitecto Hirão de Tiro e a
uma misteriosa personagem, mestre Jacques, talhador de pedra vindo da Gália. Os três estão na
origem da corporação e dos segredos de construção das catedrais que, contidos na Arca da
Aliança, teriam sido trazidos para o Ocidente pelos primeiros cavaleiros do Templo por ordem de
São Bernardo. Como o último Grão-Mestre se chamava Jacques de Molay, era natural que os
construtores vissem nele a reencarnação do mestre Jacques da lenda. Tanto mais que era
perseguido.
{35}
O adro de Notre-Dame era seis vezes mais pequeno do que é hoje. Além disso, a
catedral aparecia no alto de onze degraus que as transformações sucessivas da praça fizeram
desaparecer pouco a pouco com o nivelamento do solo.
{36}
Não os tendo encontrado em parte nenhuma, socorri-me do Rei de Ferro, de Maurice
Druon, para os termos da condenação.
{37}
No local da entrada actual do palácio da justiça, remodelado e aumentado por Filipe, o
Belo.
{38}
Passy.
{39}
Ambas formam actualmente a praça do Vert-Galant cuja estátua de Henrique IV domina
a Pont-Neuf.
{40}
Plantado no Sena por altura da extrema do Jardim do Rei.
{41}
Pequeno mercado ao ar livre à entrada da rue Saint-Denis numa praceta.
{42}
Maurice Druon, O Rei de Ferro.
{43}
Ibid.
{44}
Em 1301 e a pedido do Papa Bonifácio VIII, desejando acabar com a eterna querela,
entre Guelfos e Gibelinos, o irmão de Filipe, o Belo conquistara Florença e condenara ao exílio
Dante, que era um dos magistrados da cidade.
{45}
Vinho açucarado, no qual se faz uma infusão de canela ou de cravo-da-índia.
{46}
Aquela maneira de contar as horas fora utilizada por São Luís para dividir o tempo
durante a noite, espaço de tempo em que rezava muito, em parcelas mais ou menos iguais.
{47}
Um pingalim: originalmente, eram feitos de azevinho.
{48}
Mais tarde serão chamadas de "corbeillards" (carros fúnebres), tendo dado o nome ao
nosso último meio de transporte.
{49}
Franceses ou Italianos, estavam todos dispersos pelas cidades papais: Carpentras,
Orange, Avinhão, etc.
{50}
Du-Roncier.