Bem-Aventuranças Felicidade Verdadeira - Heber Campos JR
Bem-Aventuranças Felicidade Verdadeira - Heber Campos JR
Bem-Aventuranças Felicidade Verdadeira - Heber Campos JR
GodBooks
Copyright © 2021 GodBooks Editora
J95
ISBN 978-65-89198-06-2
CDD: 241
CDU: 242
MATEUS 5.1-12
Contents
Title Page
Copyright
Dedication
Epigraph
Agradecimentos
Apresentação
Prefácio
Introdução
1. O sucesso da bancarrota
2. A felicidade do choro
3. O manso herdeiro
4. O faminto saciado
5. O pobre misericordioso
6. O pecador impoluto
7. O manso pacificador
8. O justo injustiçado
Conclusão
Sobre o autor
Agradecimentos
Minha gratidão é dirigida primeiramente às igrejas onde servi, quer como seminarista quer
como pastor, onde preguei a série de sermões das bem-aventuranças que deu origem a esta obra.
Desde a primeira igreja onde fui seminarista, a Igreja Presbiteriana de Taubaté, passando pela
Igreja Presbiteriana Unida de Suzano, onde fui seminarista e depois pastor, até a Igreja
Presbiteriana Aliança em Limeira, todas elas foram benção em minha vida. Comecei a expor as
bem-aventuranças pela primeira vez em Taubaté e as terminei em Suzano. Quando preguei uma
segunda vez a série sobre elas em Limeira, pude estudar o texto novamente e amadurecer em
minhas percepções. Que alegria ter recebido o privilégio de pregar no púlpito dessas igrejas e,
assim, aprender mais sobre a felicidade verdadeira!
Agradeço, também, à minha família, tanto a família de onde vim quanto a que Deus
permitiu que eu formasse. Meus pais ensinaram o caminho da felicidade para o aprendizado dos
filhos e, por bondade divina, todos os irmãos, cunhados e respectivos filhos permanecem nesse
caminho. A família que formei com minha esposa, Nátalie, e nossos filhos — Bianca, Samuel e
Nicole — tem sido palco de grande deleite e alegria no Senhor. Meu coração é de vocês, família!
Um obrigado muito especial ao meu editor, Maurício Zágari, por me ter feito o convite
para este projeto. Além de ser um grande encorajador, foi o Maurício que fez com que o meu
discurso todo informal e desengonçado se tornasse um texto agradável de se ler. Obrigado pela
oportunidade, Maurício, e pela amizade que se iniciou. Que Deus o preserve bem-aventurado!
Por último e mais importante de tudo, minha grata adoração ao Deus bendito que se
regozija com o seu povo (Sf 3.17). O Senhor tem me ajudado a entender mais, a cada dia, como a
alegria cristã é contracultural. Eu o louvo e exalto por aguçar minha percepção das Escrituras,
por produzir em mim o desejo de trocar alegrias transitórias por alegrias duradouras e por me
proporcionar o privilégio de ensinar tais realidades.
Apresentação
As bem-aventuranças compõem uma das passagens mais profundas e belas das Escrituras.
Impressiona como Jesus conseguiu sintetizar em apenas oito tópicos realidades tão verdadeiras e
transformadoras no que se refere ao real contentamento do cristão. Em poucos versículos, o
Mestre aponta o caminho da alegria daqueles que foram regenerados pela cruz, um estado de
espírito que desafia o entendimento comum da sociedade não cristã.
Esse trecho da Palavra de Deus apresenta, por isso, um espírito profundamente
contracultural. A felicidade que Jesus nos indica contraria o hedonismo e o triunfalismo vigentes
em nossos dias, por propor absurdos ao pensamento deste século: ser feliz em meio à
perseguição? Encontrar alegria em meio à pobreza em espírito? Olhares rasos ou guiados pelo
pensamento pós-existencialista de nossa época atribuiriam ares de loucura a essa ideia — e o
fazem. Porém, para quem é renascido em Cristo, o sentido e a beleza dessa proposta se
escancaram de forma inequívoca e pujante.
E é isso que Heber Campos Jr. expõe, com correção e brilhantismo, nas páginas a seguir.
Em Felicidade verdadeira, o autor mostra verdades espirituais transformadoras, a partir
da exposição das bem-aventuranças, esse belíssimo tratado sobre a alegria que está à disposição
de todo filho e filha de Deus. Quem busca o contentamento inerente ao Reino de Deus
certamente encontrará o seu dna na passagem de Mateus 5.1-12. E bem-aventurados os que
escutarem a voz de Cristo, compreenderem o seu sentido e seguirem a sua voz, pois encontrarão
a felicidade verdadeira.
A GodBooks tem a alegria e o privilégio de publicar esta obra, a primeira de uma série de
quatro livros sobre o Sermão do Monte produzidas pela excelência do conhecimento bíblico e
teológico de Heber Campos Jr., a quem recebemos na família de autores da GodBooks com
muita alegria.
Boa leitura!
Maurício Zágari
Editor
Prefácio
Conheci pessoalmente o pastor Heber Campos Jr. em 15 de julho de 2011. Lembro bem a data
porque a Igreja Presbiteriana Aliança em Limeira já nasceu hi-tech: temos todas as mensagens
gravadas em áudio ou vídeo. Na época, éramos um ponto de pregação da Igreja Presbiteriana
Central de Limeira e fizemos um convite ao pastor Heber para que visse nosso trabalho e para
conhecermos o ministério dele.
Apesar de sermos hi-tech, nossa aspiração era plantar uma igreja que resgatasse valores
de nossa tradição reformada, a saber: pregação expositiva e cristocêntrica, disciplina eclesial,
sacerdócio universal dos crentes e os princípios reguladores do culto. Todos, valores
fundamentais do cristianismo que, muitas vezes, são desprezados até mesmo em igrejas de
herança histórica reformada.
Naqueles fins de semanas seguidos, ficamos empolgados ao ouvir suas exposições e ver a
habilidade de ensinar que Deus lhe deu. Poucos meses depois, nos tornamos uma congregação,
tendo o reverendo Heber como pastor designado para o campo.
Os cultos eram matutinos e começaram em 15 de janeiro de 2012. Alugamos uma
chácara e passamos a adorar a Deus naquele galpão coberto e com as laterais abertas. Havia boa
iluminação, muito verde, pássaros cantando e, às vezes, muito vento e chuva.
Nosso pequeno grupo saboreava as pregações expositivas, cheio de curiosidade de
entender melhor os textos da Palavra de Deus e desejoso de ser profundamente alimentado pelo
Senhor, o que de fato aconteceu! Pastor Heber começou com a exposição do livro de Ageu
(assunto propício para uma igreja que começava). Depois, Gálatas, para tratar de lei e graça, algo
muito pertinente para o momento, pois era importante preparar a igreja para respeitar a lei de
Deus, sem tornar-se legalista, e descansar na graça do Senhor, sem ser condescendente com o
pecado. Ainda como congregação, estudamos o problema do mal a partir da exposição de
Habacuque.
Em junho de 2012, começaram os sermões expositivos sobre as bem-aventuranças, em
uma série de mensagens intitulada “Qual é a cara da sua alegria?”. Essa série foi surpreendente,
porque, como boa parte dos cristãos, eu não entendia bem o que significavam as bem-
aventuranças e verificava comigo mesmo se já carregava algumas delas em mim. Isso porque eu
supunha que se tratavam de características pessoais ou algo como talentos ou virtudes que já
estivessem presentes em minha essência antes mesmo de me tornar cristão. Na verdade, naquela
época, eu ainda não havia entendido corretamente as bem-aventuranças e foi muito impactante
ouvir aqueles sermões.
Ter contato com os ensinos de Jesus sobre felicidade, assim como qualquer outro
ensinamento dele, tem o poder de transformar, levando-nos a uma nova forma de enfrentar
dilemas, dores, tentações e desafios do cotidiano.
Além de presbítero, sou médico de família e atendo muitos cristãos e não cristãos que
enfrentam lutas pessoais. Não poucas vezes, elas os levam à ansiedade e à depressão. Já faz
muitos anos que, em meu consultório, faço referência ao conteúdo daquelas mensagens para
meus pacientes, a fim de que tenham contato com o conceito de felicidade de Cristo e, assim, o
compreendam mais profunda e verdadeiramente.
Jesus tem o poder de nos libertar de pesos e pecados que tenazmente nos assediam (Hb
12.1), libertando-nos, pelo Espírito, para correr com perseverança e com alegria a carreira que
nos está proposta. E, isso, vivendo como bem-aventurados, ou seja, felizes e contentes em toda e
qualquer situação (Fp 4.11).
Tenho o prazer e a honra de lhes apresentar esta excelente obra, que traz para os nossos
dias o conteúdo compartilhado muitos anos atrás pelo pastor Heber: uma abordagem
extraordinária desse tema tão desejado pela humanidade: a felicidade. Ninguém melhor do que
Jesus para nos conduzir no caminho do contentamento e este livro é um excelente ponto de
partida para essa jornada. Boa leitura!
Fábio Cortez Rodrigues
Presbítero da Igreja Presbiteriana Aliança em Limeira
Introdução
Ao ver as multidões, Jesus subiu ao monte. Ele se assentou e os seus discípulos se aproximaram dele. Então ele
passou a ensiná-los. Jesus disse: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus”.
Mateus 5.1-3
Proteja-se da vaidade
A segunda atitude necessária é se proteger dos louvores e agradecimentos que alimentam a
carne. Em alguma medida, todos somos alimentados no ego quando alguém nos elogia e destaca
nossas ações e virtudes. É importante ressaltar que receber palavras positivas, de encorajamento
ou elogiosas não é errado, em si. Nesse sentido, o problema não é o que vem de fora, mas o que
pode brotar dentro, dependendo da maneira como trabalhamos tais loas.
Logo, é essencial guardar o coração para que os reconhecimentos humanos não
alimentem o ego e nos façam desenvolver uma vaidade tóxica que nos afastará da real percepção
de quem verdadeiramente somos. A maneira como elaboramos tais louvores e agradecimentos
pode tornar-se tóxica ao nosso espírito.
Rico em Jesus
A boa notícia é que existe uma promessa para os que decidem trilhar o caminho rumo a essa
pobreza em espírito bendita e desejável. Jesus disse: “Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o Reino dos Céus”. Sim, há uma bênção para os que se enxergam em sua
pequenez à luz da grandiosidade do Senhor: um reino.
Para dimensionarmos adequadamente o que isso significa, devemos entender que esse
Reino dos Céus é o reino celestial que provém do Senhor, que terá efeitos terrenos, mas não
agora. Essa realidade frustra muitos que são mais imediatistas.
Falar sobre um reino é aludir a aspectos como riqueza, honradez e domínio. Nós seremos
herdeiros de todos os três: teremos riquezas, honra (que não é nossa, mas obtida por Cristo e que
nos fará ser tratados como se fôssemos pessoas dignas) e domínio sobre tudo. Apocalipse 5
mostra que o Senhor salva pessoas para serem sacerdotes que “reinarão sobre a terra” (v. 10).
Essa é uma promessa para todo filho e filha de Deus.
Essas bênçãos prometidas são experimentadas agora (“deles é o Reino dos Céus”), mas
serão consumadas depois. O texto não diz “deles será o Reino dos Céus”, o tempo verbal é o
presente. Portanto, há nessas palavras de Cristo o sentido de que o salvo já é, e ainda será. É
como saborear o antepasto em um excelente restaurante, o que nos leva a pensar: “Se isto aqui já
é bom, quero ver o prato principal!”. Assim, experimentamos o sabor das realidades do porvir,
mas não ainda de forma plena.
Quando abrimos mão do “nosso reino”, Deus nos faz herdeiros do reino dele. Investimos
muito tempo da vida construindo nosso reino pessoal e familiar, gastamos dinheiro, trabalhamos
e nos esforçamos, quando Jesus está preocupado não com nosso reino terreno e passageiro, mas
com o reino eterno.
Devemos nos lembrar, sempre, das palavras do apóstolo Paulo: “Pois vocês conhecem a
graça do nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vocês, para que,
por meio da pobreza dele, vocês se tornassem ricos” (2Co 8.9). Reconheça sua pobreza em
espírito, para que você se torne rico em Cristo Jesus e se aproprie de todas as riquezas e bênçãos
que ele tem a lhe dar.
Afinal, a primeira bem-aventurança deixa claro que felizes são os que reconhecem sua
bancarrota espiritual.
2. A felicidade do choro
Mateus 5.4
Ao propor o caminho da felicidade à luz do evangelho, Jesus fala sobre o caráter do salvo e
sobre o estilo de vida contracultural do Reino dos Céus. Na primeira bem-aventurança, vimos
que feliz é aquele que reconhece a sua bancarrota espiritual, isto é, que está espiritualmente
quebrado, falido. Como é possível alguém nessa circunstância ser feliz? Isso ocorre porque esse
indivíduo carece de Deus, que, por sua vez, deseja exatamente isto: pessoas que reconheçam sua
dependência dele. Mas a felicidade não está na falência e, sim, na recompensa recebida. Quem se
reconhece falido é riquíssimo, porque recebe o reino.
A segunda bem-aventurança continua na mesma linha contracultural da primeira. Ela
revela que feliz é quem chora — e essa não é uma referência a um choro de felicidade, caso
contrário, não haveria necessidade de consolo. Portanto, trata-se de um choro de tristeza. Aqui,
surge uma tensão, uma vez que pensar que feliz é quem chora de tristeza é muito paradoxal para
quem tem a mente da cultura da sociedade ocidental de nossos dias.
Nossa geração é extremamente hedonista, isto é, tem uma autêntica obsessão por diversão
e prazer. Basta observar crianças e adolescentes que argumentam com os pais que não desejam ir
à igreja ou à casa de parentes “porque é chato”: isso ocorre porque eles são ensinados que tudo
deve ser baseado em diversão. A geração do videogame vive para o consumo de entretenimento e
não tolera o tédio ou o envolvimento em atividades necessárias.
A preocupação hodierna com o divertimento é tão grande que a escola precisa promover
aulas divertidas; afinal, se não divertir, não prende. Muitas igrejas têm seguido por esse caminho.
Tal problema é característico dos nossos tempos e também afeta os adultos. É perceptível como
muitos trabalham cinco dias por semana com o objetivo de viver o sábado e o domingo. Muitas
pessoas, inclusive cristãs, entendem que a sexta-feira é o dia de respirar fundo e se preparar para
os dias “que importam”.
Essa mentalidade existe porque nos tornamos tão focados no descanso, no entretenimento
e no lazer que o descanso deixa de ser o preparo para o trabalho e se torna a meta. O trabalho
tornou-se um fardo de que queremos nos livrar para chegar ao tão idolatrado descanso.
Não estou dizendo que o trabalho não é pesado e exaustivo, nem que o descanso não é
para ser aproveitado. Mas, se somos cristãos, devemos ser marcados pela ideia de que o fim de
semana — especialmente o domingo — é momento de recarregar as energias para o campo
missionário. Afinal, a partir de segunda-feira, estamos no campo, compartilhando o que significa
ser cristão no ambiente em que nos encontramos. Logo, deveria haver certo prazer em dizer:
“Estou voltando para o campo, que bom que é segunda-feira.” No entanto, temos perdido esse
espírito.
Essa necessidade de entretenimento, lazer e diversão nos leva, ainda, ao desejo exagerado
de ter coisas. O jogador de basquete Oscar Schmidt disse, certa vez, que adultos são iguais a
crianças, o que muda é só o valor do brinquedo. Essa é uma realidade. Parece que muitos
trabalham em prol dos “brinquedos” que podem adquirir com o valor do salário.
Esse hedonismo leva o pensamento de nosso tempo à máxima: “O importante é ser feliz”.
Segundo essa filosofia, se você está feliz, então está tudo ótimo, não importa se faz o certo ou o
errado, o sensato ou o insensato. Desde que o indivíduo esteja feliz, os fins justificam os meios.
A felicidade torna-se o alvo. Uma mentalidade como essa não compreende o fato de que há
espaço na vida para o lamento — o choro.
Jesus afirma que o importante, primeiro, é chorar. Isso é extraordinariamente diferente do
que advoga a cultura da sociedade atual. E, quando Cristo advoga que feliz é aquele que começa
chorando, precisamos compreender o tipo de choro sobre o qual ele está falando. Não é uma
referência à consequência da perda de um ente querido, de circunstâncias negativas, do
desemprego ou da falta de saúde, pois todas as pessoas choram por tais coisas — logo, essa
postura não é uma marca do cristão.
Evidentemente, não estou dizendo que chorar por tais coisas não seja lícito. Sem dúvida,
é. É justo chorarmos quando perdemos um ente querido, somos derrotados pela vida ou não
conseguimos um emprego. Porém, esse é um choro que não nos distingue dos outros. Toda a
humanidade se lamenta por esse tipo de problema; logo, não é isso que faz de alguém bem-
aventurado.
Surge, então, a pergunta natural: qual é, portanto, o choro que faz de alguém bem-
aventurado? O choro cristão é, de acordo com 2Coríntios 7.10, uma “tristeza segundo Deus”, que
produz arrependimento:
Mas agora me alegro, não porque vocês ficaram tristes, mas porque essa tristeza os
levou ao arrependimento. Pois vocês foram entristecidos segundo Deus, para que, de nossa
parte, não sofressem nenhum dano. Porque a tristeza segundo Deus produz arrependimento
para a salvação, que a ninguém traz pesar; mas a tristeza do mundo produz morte.
2Coríntios 7.9-10
Se o texto faz referência a uma tristeza “segundo Deus”, isso evidencia que existe outro
tipo de tristeza, que não é de Deus. Essa não produz vida nem é motivo de alegria. A tristeza
segundo o mundo produz morte, mas a tristeza segundo Deus produz vida. A tristeza que produz
vida está ligada à percepção do pecado, ao abatimento provocado pelo fato de que quebramos a
lei de Deus. Esse é o choro citado no Sermão do Monte, o choro de um bem-aventurado.
Essa bem-aventurança é continuação da primeira, a qual revela que feliz é aquele que
reconhece estar espiritualmente falido. Se você reconhece isso, sua reação natural tem de ser de
choro, de tristeza. Você não pode reconhecer sua falência espiritual e ficar indiferente — é
impossível. Assim, a primeira bem-aventurança conduz à segunda, uma vez que o cristão é feliz
por reconhecer sua condição de bancarrota espiritual, que o leva ao lamento e ao choro
decorrentes dessa condição.
Exemplos bíblicos
O choro sobre o qual Jesus fala no Sermão do Monte não é único, pontual, fruto de um
evento isolado. Trata-se de um choro como estilo de vida, de alguém que recorrentemente
lamenta o fato de desagradar ao seu Senhor. Portanto, é mais que um evento; é uma marca.
Um exemplo é o de Davi, que, no salmo 51, confessa amargamente o pecado de adultério
e assassinato. Quando o profeta Natã confronta seu pecado, seu esquema de acobertamento é
desbaratado e o rei chora profundamente, movido por uma tristeza de arrependimento atroz. É
quando ele diz: “Pequei contra ti, contra ti somente, e fiz o que é mau aos teus olhos.” (Sl 51.4).
Davi é exemplo de um servo de Deus quebrantado, pois ele conhece os caminhos do
Senhor: “Pois não te agradas de sacrifícios; do contrário, eu os ofereceria; e não tens prazer em
holocaustos. Sacrifício agradável a Deus é o espírito quebrantado; coração quebrantado e
contrito, não o desprezarás, ó Deus.” (Sl 51.16-17).
Outro exemplo é o de Esdras, líder que participou do retorno do povo de Judá da
Babilônia. Os israelitas haviam sido levados ao exílio por causa de seus muitos pecados, entre
eles a idolatria, e, no retorno, vemos uma passagem significativa da vida daquele homem:
“Esdras se retirou de onde estava, diante da Casa de Deus, e foi para a câmara de Joanã, filho de
Eliasibe. Ao entrar ali, não comeu pão nem bebeu água, porque pranteava por causa da
infidelidade dos que tinham voltado do exílio.” (Ed 10.6). Esdras chorou pelo povo marcado por
pecados.
Um exemplo do Novo Testamento é o de Pedro, que chora amargamente após se dar
conta de que traiu três vezes o seu amigo e Mestre. O amargor de seu pranto se deve ao
reconhecimento de sua fraqueza e do pecado cometido contra o Senhor. Arrependido, Pedro
expressa profunda tristeza por sua terrível falha.
O choro dos bem-aventurados muitas vezes não vem como consequência de um pecado
pessoal, mas alheio. O texto de Salmos diz: “Meus olhos vertem rios de lágrimas, porque os
outros não guardam a tua lei.” (Sl 119.136). O salmista está dizendo que pranteia pelo pecado
cometido por terceiros. Encontramos o mesmo nos escritos de Paulo, quando ele diz: “Pois
muitos andam entre nós, dos quais repetidas vezes eu lhes dizia e agora digo, até chorando, que
são inimigos da cruz de Cristo.” (Fp 3.18).
O consolo
É importante ressaltar que o foco, aqui, não é a tristeza, mas a felicidade. Esse aparente
paradoxo ocorre porque há um aspecto necessário de tristeza, que é prévio à bem-aventurança, à
alegria. Mas nunca podemos nos esquecer de que existe um Salvador que enxuga lágrimas e
consola os que choram.
Temos um Deus consolador (Is 40.1; 2Co 1.3-4); essa é uma característica preciosa do
Senhor. E ele não só nos consola, mas nos habilita a consolar outros, o que é muito precioso. O
Deus de toda consolação tem prazer em enxugar as lágrimas dos que choram por questões
genuínas.
O que chora é feliz porque se arrepende e confessa — e, com isso, obtém perdão. João foi
claro: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos
purificar de toda injustiça.” (1Jo 1.9). O choro motivado pelo pecado leva à felicidade porque
não para nas lágrimas. Quem chora arrependido confessa e, então, é perdoado. É uma certeza.
Não há pecado tão grande que Deus não possa perdoar. Precisamos ter a clareza do fato
de que nenhuma pessoa arrependida deixa de ser perdoada. Ninguém que chore pelo seu pecado
deixa de ser perdoado. O perdão é uma certeza.
Esse consolo foi anunciado profeticamente, quando Isaías se referiu ao Messias que viria:
O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-
novas aos pobres, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos
cativos e a pôr em liberdade os algemados, a apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da
vingança do nosso Deus, a consolar todos os que choram e a pôr sobre os que choram em
Sião uma coroa em vez de cinzas, óleo de alegria em vez de pranto, manto de louvor em vez
de espírito angustiado. Eles serão chamados carvalhos de justiça, plantados pelo Senhor
para a sua glória.
Isaías 61.1-3
Mateus 5.5
Está muito em voga em nossos dias a ideia de que devemos buscar forças dentro de nós para
superar os obstáculos da vida. Essa linha de pensamento está muito presente em músicas e
filmes, por exemplo. A ideia de superação das dificuldades a partir de um mergulho nas
profundezas do nosso ser tem motivado e emocionado as pessoas. Surge daí o interesse tão
grande por filosofias e expressões da espiritualidade que olham para dentro, como a meditação.
Ou, então, por terapias, pautadas pelo ideal de olhar para o interior não só para identificar os
problemas da vida, mas para buscar os recursos necessários para resolvê-los.
Com tudo isso, nosso interior tornou-se tanto o ambiente onde surgem as dificuldades
quanto a chave para a saúde mental e comportamental. Nas áreas da filosofia, por exemplo,
vemos muito a tendência de apresentar a moralidade como subjetiva, estabelecendo a ética
individual como o critério a ser seguido. Já na área das religiões, muitas têm atraído legiões de
adeptos porque alegam que dentro de cada um de nós há uma centelha divina, um “pedacinho da
divindade”.
Em contraste com esse tipo de pensamento, Jesus nos apresenta na primeira e na segunda
bem-aventuranças o indivíduo que já fez a viagem ao próprio interior e ficou horrorizado, uma
vez que reconheceu sua bancarrota espiritual e chorou de tristeza pelo pecado. Diante disso, o
que Cristo tem a dizer é muito distinto do pensamento cultural que tem dominado as áreas de
entretenimento, filosofia e outras manifestações religiosas. Jesus deixa claro que a viagem ao
fundo do ser é triste, pois nosso ego não é nem um pouco bonito.
Algumas versões da Bíblia traduzem a terceira bem-aventurança de forma ligeiramente
diferente e, em vez de “mansos”, optam por “humildes”, outro possível entendimento do
vocábulo original grego praus. No contexto, ser manso ou humilde trata da mesma realidade,
pois nem mansidão nem humildade são qualidades inerentes ao ser humano; antes, são
produzidas pelo Espírito Santo. Humildade e mansidão só cabem na vida de quem é
transformado por Deus e torna-se habitação do Espírito.
Um aspecto importante é que nem humildade nem mansidão denotam fraqueza, ao
contrário do que muitos pensam. Líderes, por exemplo, devem ser humildes e mansos e não
arrogantes e estourados. Portanto, pensar em mansidão e humildade não remete a pessoas tímidas
ou recatadas. Não é disso que Jesus está falando.
Na realidade, Cristo usa nessa bem-aventurança uma ideia muito interessante. Na
literatura extrabíblica, o termo praus é usado para se referir ao controle do animal selvagem.
Quando dizemos que um cavalo foi amansado, a ideia é controlar o que há de selvagem nele.
Assim, mansidão não é ser quietinho, é ter poder de controle sobre o próprio temperamento. É ter
domínio sobre o cavalo selvagem que há dentro de cada um de nós. Podemos ser enérgicos e
mansos, pois não são aspectos contraditórios. Quando nosso ego deseja que tudo seja do nosso
jeito, temos a tendência de seguir o pecado. Porém, com o ego controlado, podemos conviver
melhor com o próximo.
Essa bem-aventurança nos remete ao salmo 37, que diz:
Não se irrite por causa dos malfeitores, nem tenha inveja dos que praticam a iniquidade.
Pois em breve eles secarão como a relva e murcharão como a erva verde. [...] Deixe a ira,
abandone o furor; não se irrite; certamente isso acabará mal. Porque os malfeitores serão
exterminados, mas os que esperam no Senhor possuirão a terra. Mais um pouco de tempo, e
já não existirão os ímpios; você procurará no lugar onde eles estavam e não os encontrará.
Mas os mansos herdarão a terra e terão alegria na abundância de paz.
Salmos 37.1-2,8-11
Esse salmo nos fala da pessoa que se ira ao constatar que indivíduos de má índole
frequentemente saem vitoriosos de situações diversas. Mas Deus a orienta a ter calma, mansidão
e paciência, confiando na providência do Senhor. Assim, a mansidão é uma virtude que se
relaciona ao convívio com o próximo.
O manso tem como característica optar por não se defender. Ele não adota essa postura
porque se conhece e sabe que não merece defesa, mas, ao mesmo tempo, ele conhece o Senhor, a
quem pertence a vingança. Com isso, o manso não fica lutando pelo que é seu o tempo todo, pois
sabe que não tem méritos. Ele se enxerga. Logo, reconhece sua bancarrota espiritual e chora por
sua pecaminosidade, o que o leva a ser manso e humilde em relação aos outros, entregando todo
senso de justiça a Deus.
Exemplos bíblicos
Abraão é um exemplo do tipo de postura do manso bem-aventurado. Em nenhuma passagem
do relato bíblico ouvimos que ele era uma pessoa pouco ativa ou quietinha. Pelo contrário,
Abraão era o tipo de pessoa que ia para a guerra, se isso fosse necessário para libertar o sobrinho
Ló. Ele tinha a coragem de oferecer o filho em sacrifício e era respeitado entre o povo, mas, em
dado momento, quando está escolhendo a terra em que morar, deixa o sobrinho ter primazia da
escolha.
Outro exemplo é José. Ninguém passa a ocupar a segunda posição no governo do Egito
se não for uma pessoa de iniciativa, capaz de administrar, que saiba coordenar equipes. E José
não teria sido guindado à posição que veio a ocupar se fosse uma pessoa contida. Então, ele não
se encaixa naquela clássica figura do indivíduo manso que por vezes imaginamos: alguém pacato
e de fala baixa. José demonstra mansidão ao perdoar os seus irmãos sem exigir retribuição. Ele
não retribui o mal com mal, mas, sim, com o bem.
Acredito que o melhor exemplo do Antigo Testamento seja o de Moisés. “Moisés era um
homem muito manso, mais do que qualquer outro sobre a terra” (Nm 12.3). É interessante
perceber que Moisés ficava irado e era ousado. Então, o manso não é, necessariamente, aquele
que não se ira, mas o que sabe se irar por questões justas e não por um senso de justiça própria.
Números 12 relata uma história muito interessante. Arão e Miriã, os irmãos de sangue de
Moisés, vão a Deus e reclamam do fato de que o irmão desfruta de privilégios de que eles não
desfrutam. É quando ocorre o seguinte:
Em seguida, Deus lançou lepra sobre Miriã. Foi quando veio a demonstração de
mansidão. Miriã demonstrou invejar Moisés e esse, em vez de pedir o castigo divino, intercede
por ela: “Ó Deus, peço-te que a cures” (Nm 12.13). Isso deixa claro que, quando Moisés era
ferido, ele não revidava ou se defendia — mansidão.
O exemplo de Cristo
O melhor de todos os exemplos bíblicos é, sem dúvida, o daquele que se dizia manso e
humilde de coração. “Venham a mim todos vocês que estão cansados e sobrecarregados, e eu os
aliviarei. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de
coração; e vocês acharão descanso para a sua alma. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é
leve.” (Mt 11.28-30).
Sim, Jesus é um exemplo mais excelente que qualquer outro, porque ele se irou sem
pecar. Ele defendeu a glória do Pai no templo derrubando as mesas dos cambistas, mas, quando
foi atacado, não se defendeu. Pedro escreveu sobre isso:
Pois que glória há, se, pecando e sendo castigados por isso, vocês o suportam com
paciência? Se, entretanto, quando praticam o bem, vocês são igualmente afligidos e o
suportam com paciência, isto é agradável a Deus. Porque para isto mesmo vocês foram
chamados, pois também Cristo sofreu no lugar de vocês, deixando exemplo para que vocês
sigam os seus passos. Ele não cometeu pecado, nem foi encontrado engano em sua boca.
Pois ele, quando insultado, não revidava com insultos; quando maltratado, não fazia
ameaças, mas se entregava àquele que julga retamente [...].
1Pedro 2.20-23
Lembre-se de que Jesus Cristo é Deus. Ele poderia ter retribuído injustiça com ameaça ou
fúria, com saraivadas de fogo e exércitos de anjos — mas não fez isso. Ele nos deu o exemplo de
como se portar diante de injustiças, o que é reforçado em passagens como Efésios 4.1-2,
Colossenses 3.12 e Tiago 1.19-21. A mansidão é uma demanda constante no Novo Testamento.
Essa postura do Senhor frustrou profundamente os judeus que o ouviram. Eles estavam
cansados de ser submetidos ao domínio de diferentes impérios. Os fariseus, que estudavam muito
a lei mosaica, tinham a expectativa de que Deus os libertaria com poder sobrenatural,
restaurando o domínio teocrático de Israel. Já os saduceus, odiados pelos compatriotas por fazer
alianças políticas, acreditavam que esse era o caminho para as mudanças. Os essênios, por sua
vez, negavam a realidade do mundo, se isolavam e viviam em comunidades afastadas, negando o
poderio romano. E o grupo dos zelotes queria partir para a briga e libertar Israel do jugo romano
pelo derramamento de sangue. Todos tinham uma expectativa diferente da que Jesus lhes
apresentou, pois ele trouxe um reino de mansidão, muito diferente do que eles estavam
acostumados e desejavam.
O que Jesus propôs não foi frustrante somente para os judeus. Também nos frustra, hoje,
principalmente se temos ensinamentos diferentes arraigados em nosso coração e mente. Cito
alguns exemplos.
Primeiro, somos constantemente estimulados a buscar os nossos direitos e não deixar que
as pessoas pisem em nós, sem levar desaforo para casa. É comum desejarmos lutar pelo nosso
direito, mas o exemplo de mansidão de Cristo nos leva a lutar, primeiro, pelo direito dos outros.
Segundo, estamos habituados a lutar por nossos ideais e sonhos, e fazemos o possível
para justificar que não estamos sendo egoístas. Investimos muito tempo planejando e
conversando sobre o que gostaríamos que acontecesse em nossa vida. Porém, poucas vezes
planejamos fazer o que é importante para os outros. Sempre somos direcionados ao nosso ego.
O manso considera o outro superior a si mesmo e não tem em vista o que é propriamente
seu. Paulo escreveu: “Não façam nada por interesse pessoal ou vaidade, mas por humildade, cada
um considerando os outros superiores a si mesmo, não tendo em vista somente os seus próprios
interesses, mas também os dos outros.” (Fp 2.3-4).
Mateus 5.6
Assim como as três bem-aventuranças que analisamos até o momento, a quarta também
apresenta um paradoxo. Cristo fala sobre a satisfação dos que continuam famintos e sedentos,
aqueles que têm fome e sede, mas estão satisfeitos e continuarão sendo satisfeitos. Não é normal
dizermos algo como: “Estou satisfeito, mas estou com fome!”, porém, o raciocínio de Jesus
segue por essa linha.
As bem-aventuranças não são uma exposição de ideias desconexas, mas uma sequência
progressiva: o servo de Deus reconhece sua bancarrota espiritual, chora pelos pecados e passa a
tratar os outros com amor e altruísmo e sem egocentrismo. A etapa seguinte é buscar justiça na
sua vida e na dos outros.
Essa bem-aventurança tem um caráter mais positivo que as demais. Antes, parece que,
para alcançar a felicidade proposta, é preciso deixar de fazer algo. Agora, Jesus propõe que
sejamos mais intensos na busca por algo. Ao falar sobre a fome e a sede, Cristo remete à
proatividade.
Há muitos anos, ouvi um pastor pregar que “Deus não quer perfeição, mas coerência”.
Discordei na hora. Até porque a Bíblia diz que, sem santidade, ninguém verá o Senhor — e
santidade significa perfeição de conduta. As Escrituras também nos instam a ser santos, como
nosso Pai celeste é santo. O padrão da Bíblia é muito mais alto do que as pessoas estão
acostumadas a buscar, e me parece haver certa satisfação por menos. Ficamos confortáveis com
pouco.
Costumamos crer que a perfeição é impossível, afinal, como diz o adágio, “ninguém é
perfeito”. Parece-me que, em razão da nossa imperfeição, nos satisfazemos com algo abaixo do
padrão que Deus estabelece. Isso ocorre com relação a tudo na vida: trabalho, família, vida
pessoal e tudo mais. É muito comum admitirmos que só Jesus é perfeito e nenhum de nós
chegará lá. Com isso, nos satisfazemos com padrões baixos, fugindo daquilo que a Bíblia nos
convoca a fazer.
Lembre-se de que perfeição é, sim, o alvo de todos nós. Paulo escreveu:
Não que eu já tenha recebido isso ou já tenha obtido a perfeição, mas prossigo para
conquistar aquilo para o que também fui conquistado por Cristo Jesus. Irmãos, quanto a
mim, não julgo havê-lo alcançado, mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que
ficam para trás e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, para o
prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus.
Filipenses 3.12-14
Esse texto é lindo. Diante da sociedade, Paulo era um homem muito respeitado, mas
abandonou todo status por amor a Cristo. Nossa reação imediata a essa realidade é pensar que
Paulo é demais, uma pessoa fora da curva. Porém, é como se ele nos dissesse: “Não! Você não
entendeu! Eu ainda não cheguei lá, mas prossigo tentando. Estou buscando! Tenho fome e sede
disso! Anseio chegar ao destino para o qual Cristo Jesus me conquistou!”.
Portanto, a ideia de buscar constantemente e jamais se satisfazer com o patamar atingido
é própria de quem entendeu essa bem-aventurança.
Urgência extrema
Além do foco triplo do anseio por justiça, precisamos atentar para sua intensidade. Dentre
todas as expressões e metáforas que Jesus poderia ter usado para se referir a esse conceito, por
que ele escolheu, precisamente, fome e sede? Ele assim o fez para destacar quanto você deve
desejar o cumprimento da justiça.
Nós lemos em Salmos: “Assim como a corça suspira pelas correntes das águas, assim,
por ti, ó Deus, suspira a minha alma. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando irei
e me apresentarei diante da face de Deus?” (Sl 42.1-2). Os escritores dos salmos muitas vezes
traduziam o anseio por Deus como fome e sede — que não são expressões de quem não tem
comida ou bebida há algumas horas, mas que remetem a uma privação que já ocorre há um bom
tempo.
A maioria das pessoas tem dificuldade de entender a força dessa bem-aventurança.
Afinal, para nós, sentir fome é passar uma hora do almoço ou, no máximo, pular uma ou duas
refeições. É ficar algumas horas sem beber quando o dia está muito quente. Muitos jamais
experimentamos o que é ficar desnutrido, completamente carente de comida e de bebida. Jesus
estava falando do anseio de quem sente profundamente essa necessidade, a ponto de exigir
prioridade.
Qualquer pessoa que esteja desesperadamente faminta e sedenta não conseguirá fazer
outra coisa que não seja buscar comer e beber. Prioridade máxima! Não é algo que se deixe de
lado para resolver outras questões, mas é uma urgência absoluta e imediata.
Quando falamos para pessoas que encontramos pela vida sobre pecado, é comum
ouvirmos algo como: “É verdade, eu preciso consertar minha vida. Ainda tem muita coisa para
arrumar.” Porém, fica tudo por isso mesmo, porque essas pessoas não têm o peso do pecado no
coração e não veem como prioridade livrar-se dele a todo custo. Portanto, quando falamos de
fome e sede de justiça, não estamos nos posicionando como quem quer saborear uma sobremesa,
mas como um subnutrido e desidratado em desespero por saciar as suas necessidades extremas
de ingestão de líquidos e nutrientes.
Neste ponto, devemos nos perguntar: onde temos falhado? Primeiro, como já vimos,
temos um padrão baixo de justiça, mas também temos pouca vontade de buscá-la. Queremos ser
santos, mas não estamos dispostos a abrir mão de certos entraves. Nossa intensidade nessa busca
é a mesma de alguém que está saciado, mas quer saborear uma sobremesa, e não como a de uma
pessoa que está há quarenta dias sem comer nem beber. Nosso anseio é muito fraco.
Segundo, buscamos o que não satisfaz. Isaías 55.2 diz: “Por que vocês gastam o dinheiro
naquilo que não é pão, e o seu suor, naquilo que não satisfaz? Ouçam com atenção o que eu digo,
comam o que é bom e vocês irão saborear comidas deliciosas.” Esse belíssimo questionamento
nos confronta: por que gastamos nosso dinheiro com coisas supérfluas ou naquilo que
supostamente vai trazer alegria e satisfação, mas que não satisfaz? Por que não focamos nas
coisas que são indispensáveis? Jeremias escreveu: “o meu povo cometeu dois males:
abandonaram a mim, a fonte de água viva, e cavaram cisternas, cisternas rachadas, que não retêm
as águas.” (Jr 2.13). A exortação é clara: devemos buscar aquilo que verdadeiramente satisfaz.
Terceiro, pomos o coração no que é fugaz. Investimos tudo para alcançar riquezas,
sucesso profissional e coisas assim. Devemos olhar para tais coisas, mas com moderação e não
com extremismo. Temos o hábito de ficar nos justificando, dizendo que acumular riquezas só os
outros querem, enquanto o que nós queremos “é só estabilidade” ou “não é ganância, é ambição
saudável”. Porém, se o nosso coração está voltado para as coisas fugazes e não para a justiça de
Deus, elas se tornaram ídolos para nós.
Em primeiro lugar
À luz da quarta bem-aventurança, há caminhos bem definidos para satisfazer o faminto e
sedento de justiça. Quem tem fome e sede da justiça no sentido legal pode ter em Cristo a
imputação do seu mérito. É extremamente gratificante apresentar-nos a Deus livres de qualquer
peso, por saber que fomos perdoados. É libertador. Assim, a imputação dos méritos de Cristo nos
satisfaz.
Ou, ainda, quem tem fome e sede de justiça no sentido moral encontra saciedade na obra
santificadora do Espírito. Como é gratificante ver o Espírito Santo, que habita dentro do coração
dos cristãos, transformando-os e limpando-os. O cristianismo não prega transformação de fora
para dentro, mas de dentro para fora. Sem métodos, simplesmente a partir do relacionamento
com o Espírito de Deus, que muda nossa identidade e, consequentemente, nossas práticas.
E, quando temos fome e sede de justiça social, somos parcialmente satisfeitos quando
atuamos abençoando pessoas injustiçadas. Precisamos saber que a satisfação plena de nossa
fome e sede de justiça não se dará nesta vida. Afinal, quanto mais nos satisfazemos com justiça
— pessoal ou social —, mais temos fome e sede dela.
Para finalizar este capítulo, gostaria de apontar para um texto bíblico que abarca tudo o
que estamos tratando. Quando Jesus falou sobre o anseio das pessoas nesta vida, ele mexeu com
muitos que buscavam aquilo que o mundo sem Cristo valoriza, de acúmulo de bens materiais a
segurança e satisfação. Jesus disse:
Devemos buscar, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça. Com fome e sede.
Sabendo que as demais coisas nos serão acrescentadas. Busquemos a justiça que é própria do
Reino de Deus e dele próprio. Busquemos manifestar essa justiça em nossos atos, na sociedade,
em nossa vida. Busquemos isso ansiosamente, como famintos e sedentos, e confiemos no amor e
na provisão do Senhor.
5. O pobre misericordioso
Mateus 5.7
As primeiras quatro bem-aventuranças têm como foco o relacionamento entre nós e Deus. Já as
quatro seguintes são mais direcionadas ao relacionamento entre nós e o próximo, a como nós os
vemos e eles nos veem. Isso torna possível estabelecer um paralelo entre as quatro primeiras e as
quatro últimas.
Se a primeira bem-aventurança fala sobre reconhecer a própria miséria, a quinta trata de
alcançar quem está na miséria. Veremos os demais paralelos ao longo dos próximos capítulos,
mas, neste momento, vamos focar no que Jesus põe sob os holofotes em Mateus 5.7:
misericórdia.
Assim como nas demais bem-aventuranças, Jesus propõe, aqui, algo muito estranho.
Afinal, o senso comum estabelece que a pessoa que possui uma situação mais privilegiada é a
que deve mostrar algum tipo de compaixão e misericórdia para os outros, não o pobre ou o sem
recursos. Em nossa cultura, não se exige de alguém que vive em situação de miséria ou pobreza
que tenha misericórdia de outro; em geral, isso se demanda de quem tem mais estabilidade, mais
recursos. Porém, Jesus exige a prática da misericórdia de quem é pobre.
Se somos pobres de espírito, precisamos aprender a socorrer os outros na sua pobreza —
é disso que trata a quinta bem-aventurança. Esse aparente paradoxo deixa claro, mais uma vez,
que a proposta de Cristo não é para o senso comum, mas para o cristão, que deve viver
contraculturalmente.
Nos dias de Jesus, os romanos não viam a misericórdia com bons olhos. Eles
enxergavam, isto sim, a sabedoria, a justiça, a paciência e a coragem como virtudes cardeais, mas
não a misericórdia. Na realidade, eles associavam misericórdia a fraqueza. Assim, ser
misericordioso na hora de matar um inimigo era tido como um defeito, uma falha de caráter. Ser
misericordioso era algo muito estranho para os romanos e, também, para os religiosos judeus —
em especial, com relação aos desconhecidos.
Quando Jesus contou a parábola do bom samaritano, ele confrontou o senso de
superioridade moral e espiritual daqueles que se consideravam os verdadeiros praticantes da lei
de Deus. Diante do homem surrado à beira da estrada, o sacerdote e o levita passam ao largo,
enquanto o samaritano se mostra pronto a socorrer. Esse contraste não serve para mostrar que os
samaritanos eram melhores que os judeus, mas para revelar que até os representantes oficiais da
religião judaica não refletiam Deus como supunham. Jesus mostrou que eles não eram
misericordiosos como Deus é misericordioso. O mesmo sentimento está presente em outras
palavras de Jesus no Sermão do Monte:
Vocês ouviram o que foi dito: “Ame o seu próximo e odeie o seu inimigo.” Eu, porém,
lhes digo: amem os seus inimigos e orem pelos que perseguem vocês, para demonstrarem
que são filhos do Pai de vocês, que está nos céus. Porque ele faz o seu sol nascer sobre
maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se vocês amam aqueles que os
amam, que recompensa terão? Os publicanos também não fazem o mesmo? E, se saudarem
somente os seus irmãos, o que é que estão fazendo de mais? Os gentios também não fazem
o mesmo?
Mateus 5.43-47
O que o Senhor quer deixar claro é que seu padrão é muito diferente do que prevalece em
nossa sociedade. Será que o Brasil de hoje é muito diferente? Acredito que, em nossa realidade,
cometemos erros semelhantes aos dos romanos e judeus dos dias de Jesus. Afinal, nós também
temos a impressão de que mostrar misericórdia com o inimigo é fraqueza e não virtude.
Achamos até bonito fazer caridade, mas uma que parta da abastança e não da pobreza.
O argumento que as pessoas utilizam quando desejam nos incentivar a ajudar o próximo
segue esta linha: “Você tem tanto, dê um pouquinho para ajudar.” Porém, a abordagem de Jesus
para a misericórdia não nos insta a dar uma pequena parcela daquilo que para nós não faz falta.
Esse tipo de atitude qualquer pessoa tem. Jesus se refere a reconhecer a sua pobreza e ser
misericordioso em meio a ela.
E aqui chegamos ao cerne da questão: por que entendemos, como cristãos, que a
misericórdia a que o Senhor se refere não era como a dos romanos, a dos judeus do primeiro
século e a do Brasil de nossos dias? Porque só é misericordioso quem foi alcançado pela
misericórdia.
Como já vimos, as bem-aventuranças não se referem a qualidades naturais que qualquer
pessoa demonstra, elas são características exclusivas dos filhos e filhas de Deus, pois são
produzidas pelo Espírito de Deus naqueles em quem habita. E só quem conhece Deus conhece a
sua misericórdia (Lc 6.36). Quem é alvo da misericórdia divina precisa demonstrá-la no trato
com o próximo.
É importante frisar que não somos misericordiosos porque agimos misericordiosamente,
mas porque temos essa qualidade em nossa essência. Misericórdia não é algo que se faz de vez
em quando; ela precisa ser parte da nossa natureza. Essa é uma diferença essencial entre o
ensinamento de Cristo e o dos homens.
Fomos inundados pela misericórdia de Deus e isso deve tornar natural que a misericórdia
flua do nosso interior. Nossa dívida era impagável e, ainda assim, o Eterno usou de misericórdia
e enviou o Filho à cruz, para que fôssemos absolvidos da condenação. Consequentemente, não
temos como não exercer a misericórdia por conta de dívidas tão comparativamente pequenas que
outros contraem conosco.
Então o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: “Afastem-se de mim,
malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque tive fome, e vocês
não me deram de comer; tive sede, e vocês não me deram de beber; sendo forasteiro, vocês
não me hospedaram; estando nu, vocês não me vestiram; achando-me enfermo e preso,
vocês não foram me ver.”
E eles lhe perguntarão: “Quando foi que vimos o senhor com fome, com sede,
forasteiro, nu, enfermo ou preso e não o socorremos?”
Então o Rei responderá: “Em verdade lhes digo que, sempre que o deixaram de
fazer a um destes mais pequeninos, foi a mim que o deixaram de fazer.”
Mateus 25.41-45
Fica clara essa identificação compassiva entre Cristo e o seu povo na prática da
misericórdia. Deixar de socorrer um cristão é como deixar de socorrer a Jesus. Outro exemplo
dessa realidade são as palavras dele no encontro com Paulo na estrada de Damasco, quando ele
diz: “Saulo, Saulo. Por que me persegues?”. Perceba que ele não diz: “Saulo, Saulo! Por que
você persegue a igreja?” Ele considera que a perseguição aos seus era perseguição a si.
De igual modo, sempre que acudimos à necessidade dos desassistidos, é como se
estivéssemos acudindo a Jesus Cristo. Mais ainda: deixar de fazê-lo é deixar de fazer ao próprio
Senhor. Fica claro que a prática da misericórdia tem de ser ativa.
Segundo, há um tipo de misericórdia que é passiva, isto é, que se manifesta quando você
deixa de fazer algo. Se na ativa você socorre as necessidades, na passiva você deixa, por
exemplo, de reagir com vingança ou de exercer a justiça quando poderia fazê-lo. Portanto,
misericórdia também pode ser demonstrada deixando de agir com severidade diante de uma
situação em que seria aceitável agir.
É importante enfatizar que ser misericordioso não é ser complacente, não é deixar erros e
ofensas sem correção. O manso bem-aventurado não luta pelos próprios interesses e, por isso,
quando alguém o ofende, ele é misericordioso. Isso não significa que ele deixa de buscar a
justiça, mas o manso reconhece a própria miséria, que o faz ser constantemente carente de
misericórdia. Se você conheceu a misericórdia de Deus, reconhece a própria miséria e, portanto,
trata outros miseráveis com misericórdia. Tudo está interligado.
O próprio Jesus deu o exemplo. Na cruz, diante de seus ofensores, ele pediu ao Pai que os
perdoasse. Estêvão, um pecador como qualquer um de nós, teve a mesma atitude, pois
reconheceu a necessidade de ser coerente e, uma vez que fora perdoado de tantas coisas,
precisava exercer o perdão.
Misericórdia divina
A segunda parte dessa bem-aventurança diz que os misericordiosos “alcançarão
misericórdia”. Essa não é uma promessa de que receberemos misericórdia dos homens. Portanto,
não quer dizer que, se você for uma pessoa misericordiosa com alguém, no futuro esse alguém
será misericordioso com você. Não é assim que funciona, até porque existe muita ingratidão
entre as pessoas e você agir com misericórdia com alguém não garante que ele agirá do mesmo
modo com você.
Há vários exemplos bíblicos da ingratidão humana. Um deles é o do copeiro que José
ajudou na prisão egípcia. Outro é o dos dez leprosos que Jesus curou, dos quais apenas um
voltou para agradecer. Ou, ainda, o famoso credor incompassivo da parábola de Cristo.
Ingratidão. Logo, não devemos alimentar a ilusão de que pessoas boazinhas receberão bondade
mais à frente, pois não é assim que funciona, na prática, neste mundo.
A conclusão é que, quando a bem-aventurança alude a “alcançar misericórdia”, está
claramente falando da misericórdia exercida por Deus. Ele é misericordioso com quem é
misericordioso.
Neste ponto, você poderia indagar: “Então a misericórdia é merecida?” Não, não é isso.
“Misericórdia” que depende de mérito não é misericórdia. Atos de misericórdia só podem ser
chamados assim se são realizados sem esperar nada em troca. O foco aqui está no entendimento
de que agimos de certo modo porque recebemos as demonstrações do amor de Deus e estamos
tão cheios desse amor que não conseguimos não agir do mesmo modo.
Lembre-se da oração do Pai-nosso: “e perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós
também perdoamos aos nossos devedores.” (Mt 6.12). Em seguida, Jesus complementa: “Porque,
se perdoarem aos outros as ofensas deles, também o Pai de vocês, que está no céu, perdoará
vocês; se, porém, não perdoarem aos outros as ofensas deles, também o Pai de vocês não
perdoará as ofensas de vocês.” (Mt 6.14-15). Esse texto não fala que Deus dá o que merecemos,
como uma barganha em que perdoamos para merecer o perdão de Deus. Nada disso. A ideia é
que o perdão genuíno só é praticado quando você já experimentou o perdão de Deus.
Quando alguém que não conhece Jesus é alcançado por ele, começa a entender as
verdades divinas e a se ver perdoado de seus pecados — com isso, essa pessoa começa a ser
misericordiosa. Por quê? Porque ela recebeu da fonte. E só podemos dar o que temos. Daí em
diante, Deus continuará exercendo misericórdia com ela, sabendo que carecemos constantemente
dela.
Não paramos de pecar porque Deus nos regenerou. Nós continuamos lutando com as
nossas falhas e inclinações pecaminosas, o que nos faz desesperadamente necessitados da
misericórdia de Deus. Com quem o Senhor demonstra misericórdia? Com aquele que já apontou
para o fato de que foi alcançado pela misericórdia divina.
Precisamos conhecer mais da misericórdia de Deus e ser diariamente alimentados por ela.
Caso contrário, não conseguiremos ser misericordioso como o Senhor deseja. Beba da fonte, para
poder repartir com os outros.
6. O pecador impoluto
Mateus 5.8
A sexta das bem-aventuranças mantém o paralelo que explicamos no capítulo anterior com
relação às primeiras quatro. Se a segunda deixa claro que felizes são aqueles que lamentam a
própria falta de retidão, nesta sexta bem-aventurança, o filho e a filha de Deus expressam a
retidão em seu íntimo. Se é feliz o que chora pelo pecado cometido, isso ocorre porque ele é
levado a confessar sua transgressão e, com isso, tem o coração limpo pelo Espírito Santo. Como
escreveu o apóstolo João, “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar
e nos purificar de toda injustiça.” (1Jo 1.9).
Fica claro que o cristão que chora pelo seu pecado tem facilidade de ter o coração limpo,
purificado pela ação de Deus. Assim, se a segunda bem-aventurança fala de como lamentamos
nossa falta de retidão, a sexta se refere a como demonstramos pureza em relação aos outros como
consequência de ter o coração limpo mediante o arrependimento, a confissão e o abandono do
pecado — seguidos do perdão divino.
O paradoxo que é marca das bem-aventuranças também se apresenta aqui. Afinal, Jesus
parece estar propondo um caminho de felicidade totalmente diferente daquele que o mundo
deseja seguir. Aqui, paradoxalmente, somos confrontados com o fato de que somos, ao mesmo
tempo, pecadores e puros. Transgressores e santos.
A Bíblia apresenta maneiras diferentes de entendermos a pureza de vida, a santidade. A
mensagem de que felizes são os limpos de coração, porque verão a Deus, é essencial porque
somos viciados em aparências: no que aparentamos para os outros e no que os outros aparentam
para nós. Devotamos extrema preocupação a isso. Somos muito preocupados com beleza,
aparência, moda, status social e outros aspectos da vida que têm a ver com o modo como os
outros nos enxergam e como os enxergamos.
Mais que isso, na vida cotidiana constantemente julgamos com base em aparências.
Julgamos o livro pela capa, o presente pelo embrulho, a casa pela fachada. Fazemos cara de
quem gostou muito porque a aparência nos agrada, porque o garoto propaganda é famoso ou a
marca é recomendada por influenciadores de renome. Aparências.
O mesmo se aplica ao contexto da religiosidade. Preocupamo-nos demais com o que o
outro vai pensar de nós na igreja. É comum categorizarmos uns aos outros pelo que fazemos e
não pelo que somos: “Fulano é médico”, dizemos, quando, na realidade, isso é sua atividade
profissional e não quem ele é. Do mesmo modo, na esfera religiosa as pessoas se julgam pelo
que elas fazem: “Você é uma pessoa boa?” “Analisando o que faço, sou, sim!”.
Nós julgamos a nós mesmos não pela fonte, mas pelo que aparentamos ser. Dizemos
coisas como: “Acho que eu sou um marido razoável. Afinal, tento tratar com carinho a minha
amada.”; ou “Creio que sou um filho obediente, porque faço de tudo para honrar meus pais.”
Assim, estabelecemos nossos parâmetros a partir do que fazemos, muito mais do que por quem
somos.
E, nesta bem-aventurança, Jesus trata muito mais de quem somos, como fruto da
transformação interior. O exterior é consequência da transformação interior. Por essa
perspectiva, não devemos nos apresentar como médicos ou advogados, como filhos que agem
bem ou maridos que cuidam da esposa, mas diríamos, antes de tudo: “Eu sou um pecador feito à
imagem e à semelhança de Deus.”, afinal, isso revela quem somos no interior.
Temos o hábito a mascarar as aparências, construindo a imagem de pessoas honradas,
quando, frequentemente, podemos ser no íntimo, por exemplo, egoístas e hipócritas. Pior é que
avaliamos nosso desempenho moral tendo como referência os piores exemplos. Por mais que
saibamos que isso é errado, temos muita dificuldade de fugir desse tipo de comportamento. Um
exemplo é a parábola que Jesus relata em Lucas 18, do fariseu e do publicano, em que o religioso
dá graças a Deus por “não ser como os pecadores”.
O fato de que somos viciados em aparências é interessante porque esse não é um
problema moderno. Jesus confrontou em seu ministério terreno problemas típicos do ser humano,
a despeito da época. Nos dias de Cristo, a religiosidade dos fariseus era extremamente
preocupada com aparências exteriores, o que se refletia em sua obsessão pela pureza cerimonial.
Eles eram fanáticos por se mostrar aos outros como exemplo de integridade moral e conduta,
algo que tinha no cerimonialismo sua expressão mais visível. Jesus critica essa postura ao dizer-
lhes que lhes era necessário limpar o interior antes do exterior.
Tanto é assim que as bem-aventuranças fazem parte de um texto maior, o Sermão do
Monte. Em outros segmentos dessa explanação do Senhor, há posicionamentos firmes contra a
religiosidade externa, como quando Jesus fala de obediência aos mandamentos:
Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: “Não mate.” E ainda: “Quem matar estará
sujeito a julgamento.” Eu, porém, lhes digo que todo aquele que se irar contra o seu irmão
estará sujeito a julgamento; e quem insultar o seu irmão estará sujeito a julgamento do
tribunal; e quem o chamar de tolo estará sujeito ao inferno de fogo.
Mateus 5.21-22
O que Jesus está dizendo é que até traficantes, assassinos e mafioso cuidam da família;
porém, o cristão deve ser diferente, amando o inimigo e orando por quem o persegue. Fica claro
que o padrão do Reino dos Céus não é voltado à religiosidade exterior e aparente. Isso fica claro
ao longo de todo o Sermão do Monte. Orar e jejuar para aparecer, fazer boas obras para ser
exaltado pelos homens e atitudes como essas são posturas de pessoas ímpias e pagãs, enquanto
os cidadãos da pátria celestial devem zelar pelo interior.
A condição do coração
É importante deixar claro que a fé cristã não é, primordialmente, sobre doutrinas ou
condutas, mas é, essencialmente, sobre a condição do coração. A maioria dos cristãos está
acostumada a enxergar a vida cristã como um código de conduta, porém, isso é um erro, visto
que o foco do evangelho de Cristo é, primordialmente, sobre o coração, aquele lugar do ser que
está longe dos olhos das pessoas, mas escancarado aos olhos de Deus. O que fazemos deve ser
resultado do estado do coração.
Infelizmente, estamos acostumados a avaliar nosso desempenho e o dos outros pelo que é
feito e esquecemos de que é a condição interior que de fato dita se o que provém de cada um é
sadio ou não. Em outras palavras, de nada valem boas obras se elas não procedem de um coração
com intenção boa e pura, focado na pureza que honra a Deus.
Na época de Cristo, o coração era visto de modo diferente de como o vemos, hoje: se, em
nossos dias, o temos como o centro das emoções e do sentimento, para os judeus de então era o
centro da personalidade. Assim, se, hoje, dizemos que alguém tem um bom coração, estamos
fazendo referência à sua bondade, às emoções que ditam sua conduta, às suas intenções.
Biblicamente, porém, o coração é muito mais que isso; é a sede de toda a nossa personalidade:
“Como a água reflete o rosto, assim o coração reflete o que a pessoa é.” (Pv 27.19).
Portanto, no entendimento do povo judeu, o coração era a sede da personalidade e a fonte
dos pensamentos, além do local de origem das emoções e dos desejos. Eis por que Salomão diz:
“De tudo o que se deve guardar, guarde bem o seu coração, porque dele procedem as fontes da
vida.” (Pv 4.23).
Assim, Jesus propõe na sexta bem-aventurança uma pureza no âmago do ser, porque ele
sabe que nosso problema não é relacionado exclusivamente à conduta, mas à limpeza interior
como um todo. Muitos acham que o problema nas igrejas é que os cristãos “não vivem a Palavra
de Deus”, enfatizando, assim, a conduta. Na verdade, o problema está no coração (Jr 17.9). Se a
vida deles não evidencia uma ética exemplar, o problema é a condição do coração.
Jesus foi incisivo: “Porque do coração procedem maus pensamentos, homicídios,
adultérios, imoralidade sexual, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias.” (Mt 15.19). É
inquestionável: devemos nos preocupar primordialmente com a pureza do coração.
Muitos cristãos vivem de forma irrepreensível em sua conduta, porém têm um coração
fora de Deus e dissociado do amor. São legalistas, assim como os fariseus da época de Cristo.
Religiosos na aparência, mas sujos e impuros interiormente.
Quem subirá ao monte do Senhor? Quem há de permanecer no seu santo lugar? O que é
limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à falsidade, nem faz
juramentos com a intenção de enganar. Este receberá do Senhor a bênção e a justiça do
Deus da sua salvação. Esta é a geração dos que o buscam, dos que buscam a face do Deus
de Jacó.
Salmos 24.3-6
Perceba que o salmista define a pessoa que tem coração puro como o que não é falso, mas
é íntegro e sincero. Jesus criticou com firmeza a hipocrisia dos fariseus, pois pareciam ser
pessoas do bem, mas não viviam com sinceridade. O problema deles era um coração falso,
dividido.
O salmo 86 fala profundamente sobre o desejo de um verdadeiro filho de Deus: “Ensina-
me, Senhor, o teu caminho, e andarei na tua verdade; põe em meu coração o desejo de temer o
teu nome.” (Sl 86.11). Essa é uma oração preciosa, que precisamos fazer vez após vez. O nosso
problema não é não temer ao Senhor, é não temer somente ao Senhor. Carregamos diversos
temores no coração, que, assim, torna-se divido.
Tiago escreveu: “Vocês não sabem que a amizade do mundo é inimizade contra Deus?
Aquele, pois, que quiser ser amigo do mundo se torna inimigo de Deus.” (Tg 4.4). Em seguida,
completa: “Cheguem perto de Deus, e ele se chegará a vocês. Limpem as mãos, pecadores! E
vocês que são indecisos, purifiquem o coração.” (v. 8). Purificar o coração significa tirar as
impurezas, como se faz com o metal. Em grego, a palavra traduzida por “puro” é a mesma
utilizada para a purificação de metais. O ouro se torna puro quando é separado de outros metais
menos nobres. E é assim que Deus quer o nosso coração: limpo, totalmente purificado, separado
das impurezas e contaminações.
Se Jesus está se referindo à pureza que vem da sinceridade, precisamos enfatizar que
sinceridade, em si mesma, não basta. É possível ser sincero no erro. Muita gente é religiosa e
sincera; é devota, mas está errada, completamente desvirtuada da verdade. Muitos hereges são
sinceros em sua devoção religiosa, mas estão cegos para a verdade. Muitos adoram deuses falsos
com todo o coração, mas estão cegos. Portanto, sinceridade não é critério exclusivo para a
aprovação de Deus: é preciso ser sincero nas coisas do Senhor junto com pureza moral interior
— um coração lavado, de onde procedem pensamentos, emoções e desejos voltados para o
Senhor.
A purificação do coração não depende de esforço humano: “Quem pode dizer: ‘Purifiquei
o meu coração; estou limpo do meu pecado’?” (Pv 20.9). A resposta a essa pergunta retórica é
óbvia: ninguém pode purificá-lo. Jeremias ecoa essa realidade, quando diz: “Será que o etíope
pode mudar a sua pele ou o leopardo, as suas manchas? Se fosse possível, também vocês
poderiam fazer o bem, estando acostumados a fazer o mal.” (Jr 13.23).
A limpeza do nosso coração é, portanto, algo que depende de Deus, porque só ele
consegue alcançar o mais profundo de nosso ser. Davi sabia dessa realidade, a ponto de orar:
“Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável.” (Sl
51.10).
Santificação
Diante de tudo o que foi exposto até aqui, devemos nos perguntar: como, então, podemos ser
limpos de coração? A Bíblia refere-se muito à santificação e é importante termos consciência de
que esse conceito carrega dois sentidos distintos: uma posição e uma progressão.
O primeiro sentido de santificação é o que ocorre quando cremos em Cristo e nos
tornamos santos, isto é, separados, por Deus, como integrantes de sua família, seu povo. Paulo
escreveu “Aos santos em Corinto” (1Co 1.2), isto é, aos cristãos da cidade de Corinto. A leitura
das duas cartas que o apóstolo destinou àquelas pessoas deixa claro que aqueles irmãos e irmãs
eram gente complicadíssima e não tinham nada de “santos” no sentido mais popular. Que
paradoxo. Seria uma contradição?
Claro que não. A designação de Paulo faz referência à posição de santos que tais
indivíduos ocupavam porque creram em Jesus. Uma vez que a pessoa está em Cristo, ela é vista
como alguém que foi separado, purificado e retirado do meio da impureza. Por isso, em termos
de posição, ela já é considerada santa. Quando somos salvos, é como se o Senhor nos retirasse do
atoleiro de lama: somos automaticamente feitos santos. E, em seguida, ele começa a tirar o
lamaçal de dentro de nós, que é quando encontramos o segundo sentido de santificação. Assim,
Jesus nos arranca da posição em que estávamos e nos põe em uma situação em que ele pode nos
purificar, limpando gradativamente nosso interior. É por isso que somos puros e, ao mesmo
tempo, estamos sendo purificados.
Resgatados do atoleiro, começa o processo de santificação, quando Deus dá início a uma
limpeza constante, diária e gradativa de nosso interior. É por isso que somos puros e, ao mesmo
tempo, estamos sendo purificados.
O Evangelho de João apresenta uma ótima ilustração dessa realidade, quando Jesus lava
os pés dos discípulos na última ceia. Aqueles homens ficam espantados, porque quem lavava os
pés era o servo mais baixo da casa. Sendo Jesus o mestre deles, como ele poderia se humilhar a
ponto de lavar os pés dos discípulos? É quando se dá o seguinte diálogo:
Quando se aproximou de Simão Pedro, este lhe perguntou: “Vai lavar os meus pés,
Senhor?” Jesus respondeu: “O que eu faço você não compreende agora, mas vai entender
depois.” Então Pedro disse: “O senhor nunca lavará os meus pés!” Ao que Jesus respondeu:
“Se eu não lavar, você não terá parte comigo.” Então Pedro lhe pediu: “Senhor, não
somente os pés, mas também as mãos e a cabeça.” Jesus respondeu: “Quem já se banhou
não precisa lavar nada, a não ser os pés, pois, quanto ao mais, está todo limpo. E vocês
estão limpos, mas não todos.” Pois ele sabia quem era o traidor. Foi por isso que disse:
“Nem todos estão limpos”.
João 13.6-11
A recompensa
Jesus termina a sexta bem-aventurança dizendo que os limpos de coração são felizes “porque
verão a Deus”. Essa é a maior recompensa que um puro de coração pode ter. Quanto mais se
purifica, mais desejo tem de ver a Deus, porque ele é o essencialmente puro. Portanto, a
recompensa da sexta bem-aventurança é dar ao puro de coração o que ele mais anseia. Afinal,
quanto mais ele é purificado, mais se entristece com a impureza ao redor e mais deseja estar em
contato com o Deus puríssimo.
É importante ressaltarmos que a pureza de coração não só é desejada, mas trata-se de um
pré-requisito para obter a recompensa. Não podemos ver a Deus do jeito que estamos, pois a
Bíblia deixa claro que sem santidade ninguém verá o Senhor. É fato que Deus permite que nos
acheguemos a ele por meio de Cristo; porém, não conseguimos estar na presença do Senhor do
jeito que somos, porque ele não tolera gente impura.
Esse desejo de ver a Deus é presente ao longo da história bíblica. Moisés, por exemplo,
almejava ver a face do Senhor, mas recebeu como resposta que ninguém seria capaz de vê-la e
viver, pois ele é puro e santo em uma dimensão que ninguém consegue conceber. O que Deus
fez, então, por sua misericórdia? Deixou Moisés vê-lo de forma enviesada, pelas costas, por
assim dizer, apenas para dar ao seu servo amado um gostinho da sua glória.
Hoje, nossa visão de Deus não se dá em sua plenitude. Nós o vemos pela fé, como quem
vê o invisível (Hb 11.27). Somente no porvir teremos a chamada visão beatífica, que é a mais
bem-aventurada: “Amados, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que
haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque
haveremos de vê-lo como ele é.” (1Jo 3.2).
Essa é a meta. Esse é o desejo. E essa é a recompensa. À medida que buscamos a pureza
de coração e não só a pureza nos hábitos, Deus aumenta em nós o desejo de estar perto dele.
Portanto, quando nosso amado satisfaz nosso anseio por pureza de coração, tornamo-nos de fato
bem-aventurados.
7. O manso pacificador
Mateus 5.9
A sétima bem-aventurança encontra paralelo na terceira, segundo a qual felizes são os mansos.
Vimos que pessoas mansas e humildes não priorizam a si mesmas; antes, são capazes até mesmo
de sofrer injustiças. Como o manso age dessa maneira quanto a si próprio, é mais fácil para ele
ser um pacificador, o que nos remete à sétima bem-aventurança.
É importante definirmos o que, do ponto de vista bíblico, é alguém que promove a paz.
Sabemos que Cristo promete uma paz diferente daquela que encontramos no mundo. Nossa
sociedade possui instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU), que tem por meta
promover a paz mundial; porém, esse não é um objetivo que possa ser alcançado por políticos ou
figuras públicas. Essa é uma expectativa muito humana, centrada naquilo que o homem pode
fazer.
Fui capelão em uma universidade de São Paulo. É muito interessante perceber nas
cerimônias de formatura dos universitários quantas vezes ouvimos discursos com palavras de
esperança na humanidade. Os professores discursam e, frequentemente, dirigem-se aos alunos
recém-formados e dizem que confiam muito neles e na possibilidade de que usarão o que
aprenderam no curso para promover a paz do mundo. Nessas ocasiões, fico pensando: será que
os professores dos que atualmente são professores confiaram neles quando se graduaram para
que fizessem tal coisa? Porque a geração deles não foi muito bem-sucedida nesse intento.
Se temos muitos problemas no mundo de hoje é porque a expectativa humanista não é o
que Jesus promete. Geração após geração passou e ninguém conseguiu promover a paz mundial.
Jesus fala de uma paz que vem exclusivamente de Deus. A única fonte de paz entre os homens é
o “Deus da paz” (Rm 15.33; Fp 4.9; Hb 13.20).
Nossa sociedade preza muito o indivíduo que é pacífico, tranquilo, para quem parece que
nada está mal. Porém, não é disso que Jesus está falando. Ele não diz que são “bem-aventurados
os pacíficos”, mas, sim, que são “bem-aventurados os pacificadores”. Uma pessoa pacífica é
muito passiva, do tipo que não quer briga com ninguém. Ela pode, no entanto, ser pacífica e não
ser uma promotora da paz. Nosso Salvador fala sobre gente que promove a paz, o que é muito
diferente.
Na sociedade, fala-se muito sobre tolerância como um meio de não haver conflitos.
Porém, a tolerância da nossa cultura é despreocupada com a verdade. É mais importante para o
mundo em que vivemos a paz que tolera a mentira do que a que busca a verdade. Dizem e
defendem que devemos ter “cada um a sua verdade”, contanto que haja tolerância. Jesus, por
outro lado, nos ensina uma tolerância baseada na fé: é porque cremos do jeito que cremos que
aprendemos a tolerar uns aos outros. É porque cremos que o ser humano é feito à imagem e
semelhança de Deus que tratamos uns aos outros com dignidade e honradez. Logo, o evangelho
não apresenta um modelo de tolerância que independe da fé, mas que é consequência da fé.
A sociedade propõe anistia de erros. É uma paz que está acima da justiça. Mas Jesus
propõe uma paz diferente: “Porque Deus achou por bem que, nele, residisse toda a plenitude e
que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo
todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus.” (Cl 1.19-20). Deus promoveu a paz pelo
sangue de Cristo. Ele efetuou a paz mediante o cumprimento da justiça. A paz que Jesus oferece
não sacrifica a justiça.
Paz e justiça
O salmista escreveu: “Próxima está a salvação dos que o temem, para que a glória habite em
nossa terra. A graça e a verdade se encontraram, a justiça e a paz se beijaram.” (Sl 85.9-10).
Além de ser algo lindo de se ler, fica claro que, à luz da salvação dos homens e da glória de
Deus, paz é algo intrinsecamente relacionado a justiça.
O pacífico, no sentido pejorativo do termo, é alguém que, por fazer qualquer coisa para
evitar conflitos, torna-se complacente. O problema é que o pacífico corre o risco de deixar de
agir para que a justiça seja feita em prol da preservação da paz. Ele acaba relevando as injustiças
e isso não é bíblico.
Por sua vez, o pacificador promove a reconciliação sem fazer vista grossa. Ele confronta
o erro e, se necessário, se intromete em conflitos. Costumamos usar adágios como: “Em briga de
marido e mulher ninguém põe a colher”, o que é uma defesa da passividade e da falta de
intervenção. Mas Jesus não propõe esse tipo de paz. O pacificador bem-aventurado interfere nos
conflitos e tem a coragem de dizer: “Não pode continuar assim! Isso não é santo!”. É preciso
promover a paz e não fingir que ela acontece espontaneamente.
Jesus era frequentemente mal visto por ser um pacificador. Aliás, as Escrituras mostram
diversas ocasiões em que os que buscaram pacificar desagradaram as pessoas. Quando Moisés
interferiu na luta dos dois hebreus que estavam brigando, a fim de promover a paz, a resposta de
um deles foi: “Quem colocou você como chefe e juiz sobre nós?” (At 7.27).
O próprio Cristo fez uma afirmação capaz de dar nó na mente de muitos: “Não pensem
que eu vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o
homem e o seu pai; entre a filha e a sua mãe e entre a nora e a sua sogra.” (Mt 10.34-35). Muitos
leem isso e não conseguem conciliar com sua proposta de que bem-aventurados são os
pacificadores. O que ocorre é que Jesus propõe uma paz que contrasta com a da sociedade e
muitos não apreciam isso. Embora Cristo venha trazer a paz, sua mensagem gera divisão, porque
sua paz é distinta da defendida pelo mundo.
Essa realidade não significa que devemos ser divisionistas. Paulo nos orientou: “Se
possível, no que depender de vocês, vivam em paz com todas as pessoas.” (Rm 12.18). Não
estou propondo sermos facciosos, mas preciso explicar que a proposta de pacificação de Cristo
não é muito popular, pois não é agradável a muitas pessoas. O evangelho não nos chama a ser
pacificadores só no sentido de apaziguar brigas; é mais profundo que isso: pacificar é transmitir a
paz que recebemos em Jesus.
Nós somos chamados para ser embaixadores do reino de paz de Cristo. Tendo recebido a
reconciliação com Deus, anunciamos a mensagem que é instrumento para que outros recebam o
mesmo dom. Paulo chama essa mensagem de “evangelho de paz” (Ef 6.15). Ele usa a metáfora
das “sandálias do evangelho da paz”, pois a boa-nova de Jesus é o que anunciamos à medida que
caminhamos.
Deus nos deu o ministério da reconciliação (2Co 5.17-18). Nós éramos inimigos de Deus,
quando ele nos chamou e enviou para promover a paz. É como se ele dissesse: “Você era
briguento por natureza, um de meus inimigos, que me fazia oposição ativa. Agora, eu trago você
para fazer parte do meu reino de paz e desejo que se torne um embaixador dessa mesma paz.
Portanto, traga outras pessoas! Fale para elas dessa paz que é feita em Cristo!”. Deus é o único
governante que é capaz de transformar inimigos de estado em embaixadores.
Nossa mensagem é a promoção do “Príncipe da paz” (Is 9.6). Nós pregamos e
anunciamos que o início da paz mundial, que tantas pessoas almejam, é ter paz com Deus:
“Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio do nosso Senhor Jesus Cristo.”
(Rm 5.1).
As pessoas gostam de paz, mas focam na paz de maneira errada. Frequentemente,
ouvimos afirmações como: “Estou tentando ficar em paz comigo mesmo.” Porém, o que o
evangelho mostra é que o mundo não precisa ficar em paz consigo, mas com aquele de quem é
inimigo: Deus! O que importa é estar em paz com Deus, sem barreiras. E só existe uma maneira
de estar em paz com Deus: por meio da justiça de Jesus Cristo.
Ele mesmo deixou isso claro, quando disse: “Deixo com vocês a paz, a minha paz lhes
dou; não lhes dou a paz como o mundo a dá. Que o coração de vocês não fique angustiado nem
com medo.” (Jo 14.27).
Os passos do conflito
A humanidade vive em conflitos. Porém, podemos ser instrumentos de Deus para acabar com
esses conflitos e promover a paz. Conflitos nascem de desejos não satisfeitos. Nós brigamos e
nos iramos com outras pessoas porque desejamos muito algo e, por não termos, tal coisa passa a
nos controlar. O desejo cria ídolos em nossa vida.
O conflito acontece quando os desejos se tornam exigências e nós julgamos e punimos os
que se põem no caminho. Os passos para o conflito ocorrem nesta ordem: primeiro, desejamos.
Depois, exigimos. Em seguida, julgamos. Por fim, castigamos. Saber disso nos ajuda a entender
nosso coração pecaminoso.
Desejamos coisas. Muitas vezes, coisas corretas. Por vezes, queremos apenas um pouco
de paz ao fim de um dia difícil, um pouco de atenção do cônjuge ou um tratamento justo nos
ambientes que frequentamos, o que são desejos lícitos. Não queremos nada de mais. Porém, é a
intensidade dos nossos desejos que podem levá-los a se tornar ídolos.
Se eu desejo tais coisas, passo a exigi-las. Essa exigência não é necessariamente má,
estou me referindo a desejos lícitos, corretos, mas que podem vir misturados com motivações
impuras, pecaminosas. Um exemplo: quando damos bronca em nossos filhos é porque eles
desonraram a Deus ou porque perturbaram nossa paz?
Tão logo exijo, eu julgo. Esperamos que as pessoas sejam leais aos nossos ídolos e, por
isso, criticamos com ar de superioridade: “Eu não acredito que um pai deixa a criança fazer
isso!” Falamos como santarrões inerrantes, como defensores dos padrões de santidade. E
criticamos justamente porque nos pomos na postura do Deus santíssimo. Logo, quando as
pessoas não são leais aos nossos ídolos, o que fazemos? Como um ídolo exige sacrifícios, nós
castigamos e maldizemos. Nossos comentários indesejáveis têm origem no fato de que as
pessoas não andam conforme nossas expectativas, conforme nossos ídolos.
Essencialmente, essa é a razão de os cristãos não poderem relevar a raiz do conflito. É
por isso que Jesus não diz que “bem-aventurados são os pacíficos”: ele não quer gente
acomodada ao que está em choque com o evangelho. Deus busca pacificadores, pessoas que
confrontam o erro, que dizem: “Você não pode permanecer assim, pois tem um ídolo no coração
e essa é a razão de ser tão maledicente”.
A prática do pacificador
O pacificador é aquele que evita reações evasivas, isto é, que negam ou fogem do conflito.
Algumas pessoas preferem fechar os olhos aos problemas no ambiente doméstico, por exemplo,
como se essa omissão fosse a solução. Por outro lado, é importante explicar que o oposto da
passividade não é a agressão. Se alguém acha que é justificável ser deselegante, arrogante,
agressivo ou bruto no trato com a injustiça, está errando completamente.
Se existem os pacíficos, que são passivos, há os que cometem o erro oposto: tornam-se
combativos, agressivos, sempre culpando o outro pelo conflito. Nós erramos de duas maneiras
diferentes, alguns de forma mais evasiva; outros, de modo mais combativo, agressivo.
O pacificador bem-aventurado confronta com mansidão, autocontrole e instrução, tendo
por objetivo a confissão do erro e o perdão. Isso é muito importante! Pacificar é chegar à raiz do
conflito: o pecado. Com que finalidade? Ganhar uma discussão, mostrar superioridade, destruir
os pecadores? Nada disso. O objetivo do pacificador é conduzir ao arrependimento, ao perdão e à
restauração. Paz sem arrependimento de pecado é uma paz maquiada. Em Jeremias, Deus fala a
esse respeito:
“[...] Portanto, darei as mulheres deles a outros homens, e os seus campos, a novos
possuidores. Porque, desde o menor deles até o maior, cada um está entregue à ganância, e
tanto o profeta como o sacerdote usam de falsidade. Curam superficialmente a ferida do
meu povo, dizendo: ‘Paz, paz’; quando não há paz. Será que eles ficaram envergonhados
por cometerem abominação? Não, eles não ficaram com vergonha. Eles nem sabem o que é
envergonhar-se. Portanto, cairão com os que caem; quando eu os castigar, tropeçarão”, diz o
Senhor.
Jeremias 8.10-12
Esse texto deixa claro que a paz precisa de arrependimento dos pecados cometidos. E
dessa confissão deve vir o perdão e, por fim, a reconciliação.
O pacificador é prudente ao pensar, agir e falar. Ele é prudente ao agir quando não revida
a ofensa sofrida. É prudente ao pensar pois considera o outro superior a si mesmo. E é prudente
ao falar porque não semeia contendas entre irmãos, algo que Deus abomina (Pv 6.19). No
hebraico em que esse texto foi escrito, o termo traduzido por “abomina” significa que Deus odeia
duplamente. Quando participamos de intrigas entre pessoas, contribuindo para que um pense mal
de outro, estamos fazendo algo abominável aos olhos do Senhor.
Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. Bem-aventurados são vocês
quando, por minha causa, os insultarem e os perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vocês. Alegrem-se e
exultem, porque é grande a sua recompensa nos céus; pois assim perseguiram os profetas que viveram antes de vocês.
Mateus 5.10-12
Acima de tudo, vivam de modo digno do evangelho de Cristo, para que, ou indo até aí
para vê-los ou estando ausente, eu ouça a respeito de vocês que estão firmes em um só
espírito, como uma só alma, lutando juntos pela fé do evangelho; e que em nada se sentem
intimidados pelos adversários. Pois o que para eles é prova evidente de perdição para vocês
é sinal de salvação, e isto da parte de Deus.
Filipenses 1.27-28
Em outras palavras, o apóstolo está dizendo que aquilo que é prova de perdição para os
que nos perseguem é prova incontestável da nossa salvação, porque aquele que se mantém firme
com Cristo quando tudo indica que não vale mais a pena permanecer fiel a ele demonstrou uma
lealdade acima do normal. Essa realidade se confirma em outras passagens bíblicas: “Na
verdade, todos os que querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos.” (2Tm
3.12). Paulo está dizendo que a vida piedosa incomoda e gera animosidade. João também toca no
assunto: “Irmãos, não se admirem se o mundo odeia vocês.” (1Jo 3.13). Em outras palavras, não
devemos ficar surpresos com o ódio do mundo — era previsto.
Por outro lado, o contrário também é perigoso, isto é, o louvor da sociedade é sinal de
que estamos longe de uma vida que confronta o pecado. Às vezes, somos muito admirados pelas
pessoas e confesso que me incomodo quando sou admirado por quem não ama a Cristo. Não que
isso não possa acontecer nunca, mas Cristo, em sua plenitude, recebia mais críticas que louvores.
Jesus nos deixou o alerta: “Ai de vocês, quando todos os elogiarem, porque os pais dessas
pessoas fizeram o mesmo com os falsos profetas!” (Lc 6.26). O que os falsos profetas faziam,
segundo o relato da Bíblia? Eles eram aqueles que diziam o que os outros queriam ouvir.
Portanto, quando dizemos o que os outros querem ouvir, é óbvio que eles sempre nos elogiarão.
Dirão que somos pessoas legais, respeitosas, que trazem as palavras certas nas horas certas.
Porém, a palavra certa, para muitos, é aquilo que eles gostariam de ouvir, não aquilo que eles
precisam ouvir.
Portanto, a primeira realidade que desejo mostrar é que as bem-aventuranças tratam de
qualidades internas, mas, em algum momento, evidenciarão algo externamente. Ser perseguido
não é uma qualidade interna, não é igual a ser limpo de coração, misericordioso nem pacificador,
mas é resultado de todas essas posturas praticadas em conjunto. É uma evidência de quem você
é, um termômetro de como está a sua vida ao redor de quem não tem interesse nenhum pelas
coisas de Deus e como os outros reagem a você.
Bendita perseguição! Se não fosse, como compreender Jesus dizer que somos felizes por
ser perseguidos? Neste momento, devemos atentar para uma realidade: só existe um tipo de
perseguição relacionada à oitava bem-aventurança: aquela que provém da justiça de Cristo em
nós. Alguns cristãos são perseguidos por outras razões e acreditam estar sendo perseguidos por
causa da justiça. Nesse caso, não se trata de “perseguição”, mas de reações a erros, antipatias
pessoais ou coisas similares.
Nem sempre um cristão é perseguido por causa da sua fé. Muitas vezes, é porque ele se
posiciona publicamente com arrogância, falando tolices ou usando de atitudes nada cristãs.
Nesses casos, a reação a esse posicionamento se dá pelo modo equivocado de proceder e não tem
nenhuma relação com a fé.
Quem é perseguido por causa da justiça manifesta características que não são próprias de
um legalista, um fanático ou um alienado. Um exemplo: quando foi estabelecida a chamada “lei
do silêncio”, que proíbe barulhos acima de determinados limites de decibéis após dez horas da
noite, muitos irmãos e irmãs em Cristo disseram que se tratava de perseguição religiosa, para
proibir cultos barulhentos e outras atividades. Porém, não tem nada a ver. Essa lei é sensata e
justa, e visa a dar conforto às pessoas em geral. Mas muitos confundem as coisas por causa de
fanatismo e alienação.
Amados, não estranhem o fogo que surge no meio de vocês, destinado a pô-los à prova,
como se alguma coisa extraordinária estivesse acontecendo. Pelo contrário, alegrem-se na
medida em que são coparticipantes dos sofrimentos de Cristo, para que também, na
revelação de sua glória, vocês se alegrem, exultando. Se são insultados por causa do nome
de Cristo, vocês são bem-aventurados, porque o Espírito da glória, que é o Espírito de Deus,
repousa sobre vocês. Que nenhum de vocês sofra como assassino, ou ladrão, ou malfeitor,
ou como quem se mete na vida dos outros. Mas, se sofrer como cristão, não se envergonhe;
pelo contrário, glorifique a Deus por causa disso.
1Pedro 4.12-16
O texto é claro: bem-aventurados são aqueles que são perseguidos unicamente pelas
razões certas. Essa é a bendita perseguição. Sendo assim, somos levados a um desdobramento
desse fato: por que somos perseguidos? Atentemos a um trecho específico da bem-aventurança:
“Bem-aventurados são vocês quando, por minha causa, os insultarem e os perseguirem [...]”.
O que significa esse “por minha causa”? Jesus antecipa que, se ele foi perseguido, seus
discípulos também seriam. O Evangelho de João relata sua profecia a esse respeito, quando o
Senhor disse que seus seguidores provariam do mesmo fel que ele:
Se o mundo odeia vocês, saibam que, antes de odiar vocês, odiou a mim. Se vocês
fossem do mundo, o mundo amaria o que era seu; mas vocês não são do mundo — pelo
contrário, eu dele os escolhi — e, por isso, o mundo odeia vocês. Lembrem-se da palavra
que eu disse a vocês: “O servo não é maior do que seu senhor.” Se perseguiram a mim,
também perseguirão vocês; se guardaram a minha palavra, também guardarão a de vocês.
Tudo isso, porém, farão com vocês por causa do meu nome, porque não conhecem aquele
que me enviou.
João 15.18-21
Jesus está dizendo que as pessoas não perseguem aqueles que fazem parte de seu grupo e
compartilha seus princípios, gostos e valores, mas quem é diferente. Quando o incômodo é
pequeno, em geral não se promove tanta discórdia, mas, quando é grande, é certo que haverá
retaliações. E Cristo deixa claro que o incômodo que ele causa é enorme — consequentemente,
quem se alia a ele também será perseguido.
É importante atentar para o que Jesus provoca nas pessoas. Ele não despertou o carinho e
o interesse dos religiosos, que viram nele alguém iluminado e especial. Pelo contrário, Cristo
expôs os religiosos em sua hipocrisia, privando-os do louvor dos homens. Isso incomodou, e
muito. Os mestres da lei e os fariseus eram desacreditados pelo que Jesus dizia e que revelava o
seu pecado. O evangelho de Cristo expõe a miséria e a sujeira das pessoas e elas não gostam
disso. Logo, revidam.
Se em nosso país não existe o tipo de perseguição que leva à morte, como em muitos
outros lugares do mundo, Jesus também se refere a um tipo de perseguição que não tira a vida,
mas machuca muito, que é a feita de forma verbal. Perceba que ele diz: “[...] quando, por minha
causa, os insultarem e os perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vocês.” Isso se
refere, sim, a perseguição religiosa. Muitos cristãos sofreram esse tipo de perseguição ao longo
da história, sofreram esse tipo de calúnia.
A perseguição não depende do que fazemos ou falamos, porque, se o mundo desejar
exercer sua inimizade, o fará de qualquer modo. Se havia alguém sensato na hora de comer e
beber era Jesus. Como ele nunca pecou, posso afirmar que ele nunca exagerou em suas refeições
ou foi imprudente no beber. Ainda assim, o acusaram de ser glutão e bebedor de vinho (Lc 7.34)
— o tipo de maledicência infundada que nasce do coração ferino de quem se sente incomodado.
O desagrado com quem é luz nas trevas não começou com Cristo, é importante frisar,
mas é um comportamento visível no ser humano desde seus primórdios. Lembremos do
homicídio de Abel pelas mãos de seu irmão Caim. O que o texto diz é que “O Senhor se agradou
de Abel e de sua oferta” (Gn 4.4). Sim, aqueles que agradam o coração de Deus serão
perseguidos por quem não agrada. Podemos ver a história se repetir em Hebreus:
Pela fé, Moisés, sendo homem feito, recusou ser chamado filho da filha de Faraó,
preferindo ser maltratado junto com o povo de Deus a usufruir prazeres transitórios do
pecado. Ele entendeu que ser desprezado por causa de Cristo era uma riqueza maior do que
os tesouros do Egito, porque contemplava a recompensa.
Hebreus 11.24-26
Moisés sofreu as consequências por ter recusado o pecado e, sabiamente, fixou os olhos
no galardão. A ideia na história de Moisés é que ele optou por sofrer insultos porque trocou de
identidade.
Outro exemplo é Daniel, líder respeitado na Babilônia até o dia em que sua postura
inegociável de obediência a Deus e suas orações começaram a incomodar demais. Quando isso
ocorreu, os que amavam as trevas articularam um modo de fazer com que ele fosse jogado na
cova dos leões, mediante um decreto governamental que feria a liberdade religiosa. Resultado:
Daniel foi lançado à cova, como consequência da impiedade daqueles homens.
Pois vim causar divisão entre o homem e o seu pai; entre a filha e a sua mãe e entre a
nora e a sua sogra. Assim, os inimigos de uma pessoa serão os da sua própria casa. Quem
ama o seu pai ou a sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama o seu filho
ou a sua filha mais do que a mim não é digno de mim; e quem não toma a sua cruz e vem
após mim não é digno de mim.
Mateus 10.35-38
Somos tão amigáveis e pacíficos que priorizamos aquilo que não é bíblico. A fidelidade a
Cristo e seus princípios sempre deve vir antes de amigos e família. Não que eles não sejam
importantes, isso é óbvio, mas não são o mais importante. É muito difícil confrontar a melhor
amiga ou o primo em razão do pecado deles, pois tememos perdê-los. Tememos tanto que até
preferimos frustrar o nosso Senhor do que os amigos e parentes. A consequência disso é que
abaixamos o padrão de piedade diante dos descrentes.
Parece que muitos cristãos vivem certa duplicidade em seu procedimento. Na igreja,
ouvem uma pregação sobre esse tipo de assunto e acham lindo. Todavia, quando estão na
presença de não cristãos, automaticamente mudam o modo de funcionamento. Afinal, em grupos
que não compartilham a mesma fé, as pessoas têm outro jeito de falar e se portar, além de valores
diferenciados dos nossos. O que acontece, então, é que nosso padrão diante delas muda — para o
delas.
O problema é que, ao fazer isso, você deixou de ser sal, porque o sal arde na ferida.
Também não está agindo como luz, daquele tipo que incomoda quem está acostumado com
trevas. O cristão que iguala seus padrões aos das pessoas do mundo que ele ama não funciona
como sal e luz na vida delas.
Infelizmente, a realidade na vida de muitos cristãos é que gostamos muito de Jesus, o
consideramos especial e simpatizamos demais com ele, mas não vivemos esse relacionamento às
últimas consequências. Chegamos a dizer chavões como: “Cristo é tudo para mim!”, cantamos
canções em que dizemos que abrimos mão de nossos sonhos e tudo mais por ele. Porém, na
prática cotidiana, não vivemos isso a ponto de que Jesus se torne tudo em tudo o que fazemos,
vivemos e falamos. E adotamos essa postura para não perder amizades e não nos distanciarmos
de parentes.
Se nossa vida não tem despertado a inimizade do mundo, talvez Jesus seja somente um
ótimo adendo, um adereço lindo que gostamos de pôr na roupa, mas, tão logo cheguemos em
casa, tiramos e guardamos no armário. Isso tem gerado uma forma de cristianismo muito
sociável, amigável e “gente boa”, mas que, na prática, não põe Cristo em seu devido lugar em
nossa vida.
As razões da felicidade
O consolo do cristão que deseja ser fiel a Cristo até as últimas consequências é que existe
alegria na perseguição. É garantido: seremos felizes se formos perseguidos por causa dele. Mas,
o que faz pessoas felizes por sofrerem? Lucas relata algo interessante a esse respeito:
Que coisa! Os discípulos saíram do Sinédrio pulando de alegria por serem considerados
dignos de sofrer pelo nome de Cristo! O que faz pessoas felizes na perseguição?
Primeiro, esse sofrimento é sinal de que eles espelham a justiça de Cristo. Se essa
perseguição acontece, é porque Deus está lhe confirmando que você está mais parecido com o
Salvador — e quem ama Cristo quer ser parecido com ele e toma isso como o objetivo de sua
vida.
Segundo, somos felizes no sofrimento por Jesus porque estamos em boa companhia. O
Senhor fechou a bem-aventurança dizendo: “Alegrem-se e exultem, porque é grande a sua
recompensa nos céus; pois assim perseguiram os profetas que viveram antes de vocês”. Isso
significa que os verdadeiros profetas de Deus também foram perseguidos e, se o mesmo lhe
acontecer, é sinal de que você está seguindo os passos de homens e mulheres que agradaram ao
coração de Deus. Significa que você está no mesmo barco que Isaías, Jeremias e João Batista,
homens como aqueles de Hebreus 11, dos quais o mundo não era digno. A sociedade tem uma
visão completamente diferente da de Jesus, pois, para ela, a pessoa boa é a que foi louvada pela
sociedade; já para Cristo, o indivíduo que o agrada é aquele que a sociedade desprezou por causa
dele.
Terceiro, a perseguição faz de nós felizes porque Deus é galardoador e promete grande
recompensa aos perseguidos. O Senhor deseja que tenhamos em mente que há uma recompensa
aos fiéis. Ele não pede para sofrermos e gostarmos da dor, pois o evangelho não estimula o
masoquismo. O que Deus nos pede é que suportemos o sofrimento da perseguição, por saber o
que vem pela frente. Quem passa por um tratamento de saúde dolorido não o faz porque gosta da
dor da terapia, mas porque espera a cura — que é a recompensa do enfermo. Quem passa por
uma dificuldade financeira corta gastos não porque valoriza a escassez, mas porque almeja algo
mais à frente.
Jesus não nos diz para nos alegrarmos porque gostamos de sofrer, mas em razão do que
nos espera adiante. Nosso papel é exercitar essa confiança inabalável. Cristo deu o exemplo:
Portanto, também nós, visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas,
livremo-nos de todo peso e do pecado que tão firmemente se apega a nós e corramos com
perseverança a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e
Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a
cruz, sem se importar com a vergonha, e agora está sentado à direita do trono de Deus.
Hebreus 12.1-2, grifos meus
Que texto lindo! E nele fica claro que Jesus suportou a cruz “em troca da alegria que lhe
estava proposta”. Se Jesus fez isso, creio que nós também podemos. A fé que agrada a Deus é
aquela que crê que ele existe e é galardoador daqueles que o buscam (Hb 11.6). Nós devemos
seguir a Cristo pensando naquilo que ganharemos adiante e não no que ele pode nos dar aqui e
agora.
Conclusão
Chegamos ao fim das reflexões acerca das oito aulas que Jesus nos deu sobre a felicidade
verdadeira. Ainda que este livro seja conciso e objetivo, espero que você tenha percebido quantas
verdades preciosas se encontram nesses doze versículos de Mateus 5. Nosso Salvador é um
grande mestre, como o final do Sermão do Monte testifica (Mt 7.28-29).
Jesus também é exemplo das qualidades retratadas pelas bem-aventuranças. Ainda que sem
pecado, ele se humilhou e ficou dependente do Pai, chorou pelos pecados em redor, afirmou ser
manso de coração, revelou constante anseio por ver retidão manifesta, foi misericordioso com os
desprezados, mostrou-se puro diante dos seus acusadores, confirmou a razão de ter sido chamado
de Príncipe da Paz e, por tudo isso, foi perseguido. Jesus é o bendito por excelência!
A boa notícia é que, além de mestre e exemplo, Jesus transforma a vida daqueles que o
seguem. Se as exposições anteriores humilharam você, revelando áreas em que você ainda não
evidencia a felicidade cristã, louve ao Senhor! Essa humilhação é o começo da transformação do
evangelho! E creio que ele vai completar a obra que começou em você (Fp 1.6). Se o alvo da
redenção é fazer-nos parecidos com Cristo, então as bem-aventuranças são uma boa regra para se
medir essa transformação.
Diante dessas aulas transformadoras do nosso Salvador, vamos recordar quatro verdades que
interligam todas as oito bem-aventuranças. São quatro características que distinguem a felicidade
mundana de uma felicidade que provém de pertencermos a Cristo e dão uma cara bem diferente à
felicidade cristã. Porém, ao recordar pontos já trabalhados em capítulos anteriores, quero propor
novas aplicações para a vida da igreja, que giram em torno de um melhor entendimento da
mensagem cristã.
Em primeiro lugar, as bem-aventuranças apresentam uma felicidade contracultural,
ilustrada mediante características paradoxais. Por que o paupérrimo é chamado de bem-
sucedido, o que chora de tristeza é considerado feliz e o faminto é apresentado como quem já
está saciado? Por que o pobre é quem deve exercer misericórdia, o pecador é considerado
impoluto e o justo é tratado injustamente? Esses paradoxos servem para nos alertar quanto ao
ensino contracultural de Jesus, que confronta não só a cultura judaica de seus dias, mas toda
cultura humana encharcada de buscas idólatras por felicidade.
A aplicação que tiro dessa primeira verdade é que a mensagem cristã não é coceira para os
ouvidos. Igrejas fiéis ao evangelho não serão admiradas pela sociedade brasileira avessa ao
cristianismo. Sua missão não arranca aplausos de um mundo rebelde, porque ela clama por
submissão ao senhorio de Jesus. Eis a razão de sua mensagem suscitar perseguição. Portanto,
seja membro de uma igreja contracultural e procure amigos e literatura que promovam essa
mensagem confrontadora da alegria mundana.
Em segundo lugar, as bem-aventuranças apresentam uma felicidade que é espiritual antes
que natural. As palavras de Jesus revelam características que são produzidas pelo Espírito Santo
e não são elementos naturais da personalidade humana. Na segunda bem-aventurança, o Senhor
não está falando da mulher sensível que se emociona com qualquer coisa. Tampouco está se
referindo, na terceira bem-aventurança, àquele que é quietinho. A alusão de Cristo, na sexta bem-
aventurança, não é à criança ingênua. Nem é, na sétima bem-aventurança, ao pai que evita
conflitos com os filhos. Afinal, nada disso é resultado da obra transformadora de Deus. Em
contrapartida, precisamos do Espírito Santo para reconhecer nossa bancarrota espiritual, nutrir
fome por uma vida reta, tratar os miseráveis com compaixão e aguentar a perseguição pelo nome
de Cristo.
A aplicação dessa segunda verdade, relacionada à primeira aplicação, é que a mensagem
cristã não deve ser equiparada às melhores buscas de homens sem Deus. Afinal, o que faz uma
igreja ser relevante não é promover a caridade e medidas de transformação social nem ser
guardiã de valores éticos. Outras instituições podem fazer isso sem compreender o evangelho de
Jesus. A igreja, em contrapartida, é o lugar em que, constantemente, clamamos pelo auxílio
divino para nos tornar aquilo que não conseguimos ser por nós mesmos.
Em terceiro lugar, as bem-aventuranças apresentam um caminho progressivo rumo à
felicidade. Isto é, elas estão numa ordem que ilustra o começo da vida cristã, assim como a
caminhada daquele que já é cristão. A conversão de alguém se dá quando, primeiro, ele
reconhece a sua falência espiritual, o que o leva a lágrimas. Em seguida, ele almeja
características cristãs, como mansidão, misericórdia e pureza. Não é possível termos fome de
justiça antes de enxergar nossa injustiça, e não é possível sermos perseguidos por causa da
justiça antes de a termos buscado. Essa ordem revela o progresso da vida cristã.
A aplicação para essa terceira verdade, trabalhada por grandes teólogos do passado, como
Agostinho, Lutero e Calvino, é que a mensagem cristã é composta de lei e evangelho. Lei revela
o caráter de Deus e evangelho revela o seu poder para nos transformar rumo ao seu caráter.
Ambos devem ser ensinados de forma interligada. A lei divina é o instrumento que revela nossa
bancarrota espiritual e a feiura de nossa iniquidade e nos faz ver como somos carentes de justiça
e pequenos diante de Deus. Porém, é o evangelho que nos habilita a nos vermos dessa forma e,
por termos a Cristo, não nos desesperarmos. A lei exige que sejamos misericordiosos, puros e
pacificadores, mas é o evangelho que nos dá forças para crescermos nessas virtudes a ponto de
sermos odiados por cumprirmos a lei de Deus. Uma igreja saudável deve ensinar tanto lei como
evangelho.
Por último, as bem-aventuranças apresentam uma felicidade que é composta de amor a Deus
e ao próximo. Os dois grandes mandamentos, como Jesus mesmo os chama (Mt 22.36-40), são
trabalhados pelas bem-aventuranças. As primeiras quatro revelam nossa condição perante Deus,
enquanto as últimas quatro tratam de nosso relacionamento com o próximo. Mais impressionante
é que as primeiras fazem paralelo com as últimas (primeira e quinta, segunda e sexta, terceira e
sétima, quarta e oitava). Isso significa que felicidade verdadeira necessariamente envolve uma
sintonia de nossa relação com Deus e nossas relações com pessoas.
A aplicação final é que a mensagem cristã corrige nossas dicotomias e nos desafia a
conjugar os dois principais relacionamentos. Não é possível estar bem com Deus e não amar o
próximo, assim como não é possível cumprir plenamente o segundo mandamento sem cumprir o
primeiro. Nossos amores estão interligados, como o próprio Jesus revelará na sequência do
Sermão do Monte (Mt 6.19-24). A igreja não pode ficar calada diante do cristão que diz não
conseguir perdoar ou do descrente que não quer conhecer o amor de Deus para melhor amar a
sua esposa. Felicidade verdadeira só se obtém quando rendemos a Cristo todos os nossos
relacionamentos.
Minha oração é que você conheça e cresça no entendimento dessa felicidade exposta por
Jesus. E lembre-se: “Bem-aventurado o homem que teme ao Senhor e se compraz nos seus
mandamentos.” (Sl 112.1); e “Bem-aventurado aquele que teme ao Senhor e anda nos seus
caminhos!” (Sl 128.1).
Sobre o autor
Heber Campos Jr. é pastor presbiteriano desde 1999 e pastoreia a Igreja Presbiteriana do Parque
das Nações, em Santo André (SP). É bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico
Presbiteriano Reverendo José Manoel da Conceição (JMC), mestre em Teologia Histórica pelo
Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (CPAJ) e doutor em Teologia Histórica
pelo Calvin Theological Seminary (Grand Rapids, EUA). É professor do CPAJ e do Seminário
JMC, nas áreas de Teologia Histórica e Teologia Sistemática.
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