RF v18 n21 00003 Artigo
RF v18 n21 00003 Artigo
RF v18 n21 00003 Artigo
Resumo
Nossa tentativa ser a de reconstruir, brevemente, aspectos da moral kantiana para identificar a crtica que Schopenhauer realiza dela. Esta crtica estar restringida ao que Schopenhauer chama de livre-arbtrio da moral kantiana. O fato da lei moral estar constituda pelo dever era o que mais escandalizava ao filsofo da vontade. Enquanto a vontade era um querer cego, Schopenhauer no aceitava a idia de submeter esse querer e esse poder representao da lei moral. Nesse sentido, Schopenhauer achava que Kant estava subsumindo a vontade razo, o que operaria, na sua viso, uma regresso na histria da filosofia. Palavras-chave: Schopenhauer, Livre arbtrio, Moral, Imanuel Kant.
Resumen
Nuestra tentativa ser de reconstruir, brevemente, aspectos de la moral Kantiana para identificar la critica que Scnopenhauer realiza de la misma. Esta critica estar restringida que Schopenhauer llama de libre albedro de la moral kantiana. El hecho de la ley moral estar constituida por lo deber era lo que ms escandalizaba el filosofo de la voluntad. Mientras la voluntad era un querer ciego, Schopenhauer no captaba la idea de someter ese querer y ese poder a la representacin de la ley moral. Palabras-clave: Shopenhauer; Libre albedro; Moral; Imanoel Kant.
Horacio L. Martinez
Kant
Por que a palavra dever provoca tanta rejeio? Talvez porque no podemos distanci-la de ticas de cunho cristo, dependentes da Revelao. O dever era o sentido ou vetor de qualquer ao humana, uma vez que o homem era definido como um ser cado em pecado. Mas, se no aceitarmos tal condio como caracterstica do homem, parece difcil entender qualquer noo de dever moral. Por ter sido o pensamento moral de Kant colocado sob a sombra da religiosidade, apresent-lo se mostra uma tarefa difcil. Trataremos aqui de enfoc-lo com outra viso: a da Ilustrao. O que isto significa? Pensar o homem como ente autnomo na esfera moral e colocar o centro nesta autonomia, apesar de estar ele obrigado a obedecer lei moral. Essa autonomia no , seno, a coragem de se servir da prpria razo e, esta era, para Kant, a marca distintiva do movimento de idias em que consistiu a Ilustrao. No ensaio O que o Iluminismo?, Kant afirma viver em uma poca de ilustrao embora no em uma poca ilustrada. A poca de ilustrao qual ele se refere a da Alemanha do prncipe Frederico, em quem ele reconhece a virtude de no prescrever nada em matria de religio, deixando cada um em liberdade no que concerne prpria conscincia. Emancipar os homens em relao tutela religiosa o mrito principal da Ilustrao. Kant distingue entre um uso pblico da razo, que o meio pelo qual o sbio pode dar a conhecer livremente o seu saber (sendo esta a nica coisa que pode trazer ilustrao aos homens comuns); e um uso privado dela, reservado aos funcionrios que ocupam algum cargo pblico importante. Neste segundo caso no preciso raciocinar, mas sim obedecer. O filsofo alemo reserva para si o lugar do uso pblico, a partir de onde pode atacar pela base a metafsica dogmtica e entender a filosofia como cincia dos limites da razo. A filosofia crtica atua contra a pretenso teolgico-dogmtica de querer fundar o agir na esperana de um outro mundo, e no na norma que a prpria razo pode se dar. A preocupao ao redor da qual gira a Crtica da Razo Pura a de saber como possvel a metafsica como cincia. Isto significa perguntarse como que ela pode trabalhar com conceitos sem cair no dogmatismo no qual havia vivido. Por isso imprescindvel, para os interessados no estudo da metafsica, (...) que considerem como no ocorrido tudo quanto se passou at aqui (...)(KANT, 1995).2
2
Prefcio aos Prolegomenos Toda Metafsica Futura que possa se apresentar como Cincia.
46
Apesar de seus fracassos ao longo da Histria - e por fracasso Kant entendia o no poder exibir uma obra fundamental sobre a qual fosse possvel construir uma base slida, como acontecia, por exemplo, com a obra de Euclides em relao geometria - a metafsica no devia ser deixada de lado, no podia ser excluda das preocupaes do homem. A prpria natureza da razo humana conduz aos problemas metafsicos, a metafsica um problema intrnseco razo. Se o entendimento organiza a experincia por meio de seus conceitos puros ou categorias, a razo aspira transcender seu domnio e abarcar o todo absoluto de toda experincia possvel. Enquanto o uso dos conceitos do entendimento imanente experincia, os conceitos da razo se referem unidade coletiva de toda experincia possvel; elevam-se, portanto, por sobre toda experincia, tornando-se transcendentes. O conhecimento comea pelos sentidos, passa ao entendimento pelas categorias e termina na razo, a qual elabora a matria da intuio e a converte na mais alta unidade do pensamento. Esta unidade buscada pela razo, a sistematicidade um requisito seu. A razo encontra-se dividida em duas capacidades, uma lgica (a de fazer abstrao de todo o contedo do conhecimento) e outra transcendental (a de originar conceitos e princpios exteriores aos sentidos e ao entendimento). Enquanto o entendimento a faculdade de unificar os fenmenos mediante regras, a razo a faculdade de unificar essas regras do entendimento mediante princpios. por conceitos que a razo vai unificar os conhecimentos do entendimento em uma unidade a priori, chamada, precisamente, de unidade da razo.3 De fato, a diversidade das regras e, a unidade dos princpios uma exigncia da razo para levar o entendimento ao completo acordo com si prprio, tal como o entendimento submete a conceitos o diverso da intuio, ligando-o desse modo (KANT, 1994, p.362). Mas, o fato que como a razo procura a condio geral de seu juzo e o raciocnio tambm um juzo, que, portanto, estar submetido
3
Em toda a inferncia de razo concebo primeiro uma regra (maior) pelo entendimento. Em segundo lugar, subsumo um conhecimento na condio dessa regra (minor) mediante a faculdade de julgar. Por fim, determino o meu conhecimento pelo predicado da regra (conclusio), por conseguinte a priori, pela razo. A relao, pois, que a premissa maior representa, como regra, entre um conhecimento e a sua condio, constitui as diversas espcies de inferncias da razo. (....) Por aqui se v que a razo, no raciocnio, procura reduzir a grande diversidade dos conhecimentos do entendimento ao nmero mnimo de princpios (de condies gerais) e assim alcanar a unidade suprema dos mesmos. (KANT, 1995). 47
Horacio L. Martinez
a essa mesma busca da razo, acaba-se procurando a condio da condio. Isto denominado princpio prprio da razo em geral, o qual consiste em encontrar para o conhecimento condicionado do entendimento o incondicionado pelo qual se completa a unidade. So os conceitos puros da razo, ou idias - entendendo por tais algo no qual toda a experincia se integra, e no as idias no sentido platnico -, os que contm o incondicionado (KANT, 1994, 379).4 O termo idia significa a representao necessria de um problema do conhecimento humano. E, quando dizemos: necessria, queremos dizer que as idias no surgem de modo fictcio, mas se originam na prpria natureza da razo. So elas trs: alma, mundo e Deus. A primeira a representao de um substrato incondicionado de todos os fenmenos internos; a idia de mundo a representao de um nexo incondicionado de todos os fenmenos exteriores. Por fim, a idia da divindade a representao do ser incondicionado que o fundamento de todos os fenmenos em geral. A idia de mundo a que oferece um interesse especial para a nossa anlise: ela possui quatro tipos de afirmaes dialticas - chamadas de antinomias - formadas por uma tese e uma anttese. Da terceira antinomia - que analisaremos mais adiante - surge idia de liberdade, fundamento da vida prtica. Kant pressupe o conhecimento da Crtica da Razo Pura ao escrever suas obras sobre moralidade. Com a Fundamentao da Metafsica dos Costumes tem continuidade a via analtica: a obra parte do fato da conscincia moral popular para elevar-se a princpios de validade universal. Na Crtica da Razo Prtica, o procedimento sinttico: parte-se dos princpios morais puros a fim de se ver como eles operam efetivamente na experincia. na Fundamentao... que descrito a passagem do conhecimento moral popular em direo filosofia. Nesse texto, assinala-se que no h necessidade de uma penetrao de longo alcance (weit ausholende Scharfsinnigkeit) para saber se o meu querer moralmente bom;
4 Assim, o conceito transcendental da razo apenas o conceito da totalidade das condies relativamente a um condicionado dado. Como, porm, s o incondicionado possibilita a totalidade das condies e, reciprocamente, a totalidade das condies sempre em si mesma incondicionada, um conceito puro da razo pode ser definido, em geral, como o conceito do incondicionado, na medida em que contm um fundamento da sntese do condicionado. CRP (KANT, 1995). 48
o bem e o mal atingem todo homem em sua atuao cotidiana, e, portanto, a natureza dotou todos por igual para tal discernimento. Em qualquer caso, o critrio de moralidade de uma ao o querer que a mxima dela se converta em lei universal. A mxima definida na Fundamentao... como o princpio subjetivo do querer e do agir, e somente pode tornar-se princpio objetivo a partir de sua universalizao.5 O homem vulgar chegaria at a levar vantagem, neste ponto, em relao ao filsofo, o qual no pode dispor de outro princpio alm daquele de que o homem comum dispe, mas que poderia se confundir com consideraes alheias ao assunto. Porm, embora tenha conscincia desta lei moral que me obriga a universalizar a mxima de minha ao, tambm existem inclinaes que se opem veementemente ao seu cumprimento. Essas inclinaes correspondem, de modo geral, busca da felicidade prpria. Kant se encarrega claramente - como veremos mais adiante - de excluir a felicidade como fim e objeto da filosofia prtica. Na medida em que essa luta contra as inclinaes acontece, a razo humana vulgar vse obrigada a procurar clareza para sair do estupor no qual as pretenses de ambas as partes (moral e felicidade) a colocam.
Vai sendo tecida, pois, na razo prtica vulgar, quando cultivada, uma dialtica inadvertida, que a obriga a pedir ajuda filosofia, do mesmo modo que acontece no uso terico, e nem a prtica nem a terica encontraro paz e sossego a no ser em uma crtica completa de nossa razo (KANT, 1995).6
Como a razo - tanto em seu uso especulativo como no prtico - exige sempre a totalidade das condies para um condicionado dado, e esta somente pode ser encontrada em coisas em si, ela precisa, ento,
5
Existem duas definies complementares do conceito de mxima na Fundamentao... . No primeiro captulo: Mxima o princpio subjetivo do querer; o princpio objetivo - isto , aquele que serviria de princpio prtico, ainda que subjetivamente, para todos os seres racionais, se a razo tivesse pleno domnio sobre a faculdade de desejar - a lei prtica. E no segundo captulo: A mxima o princpio subjetivo da ao, e deve ser distinguida do princpio objetivo, isto , da lei prtica. Aquele contm a regra prtica que determina a razo, de conformidade com as condies do sujeito (muitas vezes a ignorncia ou ento as inclinaes do mesmo); , pois, o princpio segundo o qual o sujeito age. A lei, por sua vez, o princpio objetivo, vlido para todo ser racional; o princpio segundo o qual ele deve agir, isto , um imperativo. Final do Captulo primeiro. 49
Horacio L. Martinez
de sua dialtica. Esta ser amplamente desenvolvida no livro segundo da Crtica da Razo Prtica. Antes de exp-la, queremos nos estender sobre o - conforme dissemos no incio - controverso conceito de dever. O exerccio filosfico por excelncia o de se perguntar pela origem e alcance de um conceito, e isso o que Kant faz no que diz respeito ao conceito de dever. Embora este conceito seja extrado do uso vulgar da razo prtica, ele ressalta que no por isso devemos inferir que ele seja um conceito da experincia: O pior servio que se pode fazer moralidade pretender deduzi-la de certos exemplos (KANT, 1995, Cap. 2). O dever anterior a toda experincia, e por ele a razo determina a vontade a priori. Se eu quero deduzir da experincia um princpio moral, deparo-me com o paradoxo de que qualquer exemplo que queira utilizar como modelo tem que ser previamente julgado como moralmente correto. Todo juzo deve se realizar a partir de nosso ideal de perfeio moral e isto o que determina o carter priori de nosso conceito de dever. Todo conceito moral deve ser completamente a priori e nunca ser abstrado de nenhum conhecimento emprico, j que isto o tornaria contingente. Temos ento, at aqui, a idia de uma mxima que erigida, no por gosto do homem, mas sim por dever, em uma fora determinante da vontade. O que Kant entende por vontade? Se cada coisa na natureza atua de acordo com leis, somente um ser racional pode agir de acordo com a representao das leis, de acordo com princpios. A razo necessria para derivar destas leis aes. Portanto, a vontade no seno razo prtica: () a vontade uma faculdade de no escolher nada a no ser o que a razo, independentemente da inclinao, conhece como praticamente necessrio, isto , bom (KANT, 1995, Cap.2). Acontece que a vontade tambm submetida a condies subjetivas, denominadas pelo filsofo molas propulsoras (Triebfeder), e, por esse motivo, ela nem sempre atua conforme a razo. Faz-se ento necessria representao de um princpio que seja objetivo e coercivo para a vontade; esse princpio chama-se mandato da razo, e a sua frmula um imperativo. Existem dois tipos de imperativo: o hipottico e o categrico. O primeiro refere uma ao que seja boa enquanto meio para alcanar alguma outra coisa; o imperativo categrico no caso de que a ao seja representada como boa em si, ou seja, como objetivamente necessria. Sabemos que o imperativo categrico um s: age somente de acordo com uma mxima de tal natureza que se possa querer, ao mesmo tempo,
50
que ela se torne lei universal. Ora, a vontade no poderia querer uma mxima que a contradissesse, ela precisa poder querer que uma mxima de nossa ao seja lei universal. Algumas aes so de tal modo constitudas, que sua mxima no pode, sem contradio, sequer ser pensada como lei natural universal, e muito menos se pode querer que deva s-lo. (KANT, 1995, Cap.2). A vontade de todo ser racional universalmente legisladora: determina a si mesma para agir de acordo com a representao de certas leis e, portanto, recusa toda mxima que no seja compatvel com a prpria legislao. A vontade se submete, ento, a uma legislao da qual ela prpria artfice. Isto chamado por Kant de princpio de autonomia da vontade, e est relacionado com a idia da dignidade de todo ser racional, que no se submete a leis que no sejam as que ele prprio se d. Chegamos assim definio kantiana de moralidade:
A moralidade , pois, a relao das aes com a autonomia da vontade, isto , com a possvel legislao universal por meio das mximas da mesma. A ao que possa estar de acordo com a autonomia da vontade permitida; a que no concorde com ela proibida. (KANT, 1995, Cap. 2).
Ora, se a vontade pode legislar porque livre, o que significa que ela causalmente independente de causas estranhas (heternomas) que a determinem. A liberdade uma idia da razo, o que faz com que explic-la seja impossvel, j que somente podemos explicar aquilo que podemos reduzir a leis da experincia. Para Kant, a impossibilidade de explicar a liberdade da vontade idntica impossibilidade de encontrar no homem um interesse pelas leis morais; esse interesse, no entanto, existe, e denominado sentimento moral. A Fundamentao.. finaliza determinando que toda investigao moral atinge o seu limite na pergunta sobre como a razo, por si mesma, pode ser prtica, isto , sobre como ela produziria, por si mesma, uma mola propulsora que gerasse o interesse moral. por isso que na concluso da Crtica da Razo Prtica o seu autor confessa que havia duas coisas que lhe despertavam grande admirao: o cu estrelado sobre mim e a lei moral em mim. O primeiro caso o da natureza e responde ordem do ser, ao princpio da causalidade. Na ordem do dever ser, no campo moral, o que reina a liberdade. A liberdade a pedra angular ou condio da moral, a opo de poder fazer o que mau ou o que bom. O conceito de
Revista de Filosofia, Curitiba, v. 18 n. 21, p. 45-68, jul./dez. 2005.
51
Horacio L. Martinez
liberdade ingressa na razo quando se quer pensar o incondicionado. Na terceira antinomia da Crtica da Razo Pura, Kant se pergunta se tudo est determinado conforme a cadeia de causas e efeitos ou se h lugar para a liberdade. Conclui ele que, embora na natureza tudo obedea necessidade das leis naturais, no que diz respeito coisa em si o que reina a liberdade, sendo esta causa da causalidade, isto , o motor primeiro da cadeia causal. Admitir uma causa livre nos d uma causa primeira, nica forma de dar explicaes causais completas para qualquer acontecimento. Embora, como dissemos, liberdade no corresponda nenhum fenmeno, ela possui realidade, uma vez que se manifesta pela lei moral. H uma interao entre liberdade e lei moral, j que a liberdade ratio essendi da lei moral, o seu fundamento; mas esta ratio cognoscendi da liberdade, a condio nica sob a qual podemos tomar conscincia dela. A unio de liberdade e causalidade em um mesmo sujeito possvel na medida em que o homem se representa como ser em si mesmo, no que diz respeito liberdade, e como fenmeno, em relao causalidade. Precisamente por isto, pelo fato de que o homem a um s tempo fenmeno e coisa em si, ele se encontra dividido entre o mundo sensvel e o mundo inteligvel, e, portanto, a liberdade acompanhada pelo dever em relao lei moral. o dever que obriga a respeitar esta lei. Kant concede especial nfase ao verbo obriga, no intuito de se opor queles que querem colocar a felicidade como princpio fundamental da moral. A felicidade no um ideal da razo, mas sim da imaginao, o qual se funda em meros princpios empricos que no podem jamais servir como fundamento de leis morais. Estes princpios derivam da peculiar constituio humana ou de circunstncias contingentes, e nada disto serve, j que para Kant h uma grande diferena entre tornar um homem feliz e torn-lo bom. Nesta recusa de qualquer tica eudemonista encontra-se a to controversa formalidade da moral kantiana.7 Mas esta recusa dirige-se antes concepo utilitarista da tica, que fazia derivar a legitimidade dos conceitos morais da sensao de prazer que eles poderiam possibilitar.8
7 8
Ao dizermos controversa, referimo-nos s crticas de Hegel e Schopenhauer. Mais tarde, no desenvolvimento da dialtica da razo prtica, a felicidade ingressar na tica kantiana atravs do conceito de bem supremo (summun bonum).
52
A vontade no pode ser determinada materialmente por um objeto que afete a nossa faculdade de desejar, j que - como o dissemos - os princpios empricos, que se fundam na condio subjetiva de prazer ou dor, no podem proporcionar lei prtica alguma, por no serem igualmente vlidos para todos os seres racionais. Kant, neste ponto, identifica felicidade com amor a si mesmo, amor prprio ou egosmo, entendido este como busca da absoluta satisfao das prprias inclinaes e interesses. A felicidade e/ou o amor prprio podem dar mximas, mas no fazem mais que aconselhar; somente a lei moral manda: Os limites da moralidade e do amor prprio esto traados de forma to pronunciada e visvel, que at a viso mais vulgar no pode deixar de distinguir se uma coisa pertence a um ou a outro (KANT, 1959, Cap.1). A acentuada clareza destes limites deve-se a uma circunstncia absolutamente extraordinria, a de que a lei moral no provm de experincia alguma ou de qualquer forma de vontade exterior. Na segunda crtica, Kant responde ao enigma apresentado na Fundamentao... sobre a origem do interesse moral. A conscincia da lei moral um fato (Faktum) da razo, e isto significa que ela no pode ser inferida a partir de dados anteriores razo, mas antes gerada por ela mesma. Assimilar a lei moral obrigao ou ao dever implica admitir que ningum obedece, de boa vontade, ao seu preceito, por ser este radicalmente contrrio s inclinaes naturais do homem. Tal oposio s inclinaes provoca dor (Schmerz), o que seria um aspecto negativo da lei moral; mas, porque tambm debilita e derrota o amor prprio ou presuno, objeto de respeito (Achtung) e fundamento de um sentimento positivo, cuja origem no emprica, e que conhecido a priori. Esse sentimento gerado pela razo, a qual serve de motor para fazer da lei uma mxima:
E assim o respeito lei no o motor para a moralidade, mas a prpria moralidade considerada subjetivamente como motor, pois a razo pura prtica, ao deitar por terra todas as pretenses do amor a si mesmo a ela opostas, proporciona autoridade (Ansehen) lei, que, agora, a nica a ter influxo (KANT, 1959, Cap. 3).
A nossa relao com o incondicionado, embora marcada pela liberdade, encontra-se sujeita ao reino do dever: Ns somos, na verdade, membros legisladores de um reino da moralidade, tornado possvel pela
Revista de Filosofia, Curitiba, v. 18 n. 21, p. 45-68, jul./dez. 2005.
53
Horacio L. Martinez
liberdade e proposto pela razo prtica nossa observncia, mas, no obstante, somos ao mesmo tempo sditos, e no chefes do mesmo (KANT, 1959, Cap. 3). Mas a interpretao que estamos oferecendo aqui sobre o fato da razo kantiano um tanto tradicional. Existe um debate que queremos reproduzir resumidamente aqui para, talvez, ampliar a viso sobre a questo e, na medida do possvel, ser um pouco menos injustos com Kant. O debate referido o dos professores Zeljko Loparic e Guido de Almeida.9 O primeiro faz a leitura do fato da razo dentro de seu projeto global de interpretao semntica da obra kantiana. As diferentes crticas kantianas sero diferentes modos de resoluo de problemas que se oferecem razo. Distinguindo diferentes campos de sentido (terico, prtico e esttico), Kant evitaria o dogmatismo metafsico que criticara. Para Loparic (1999), uma vez que se formula a lei moral como um juzo sinttico prtico-terico a priori, o que resta comprovar se este juzo possvel e objetivamente vlido. Resolver isto seria encontrar a conexo entre a lei moral e a sensibilidade. Pelos resultados da terceira antinomia, Kant no podia exibir essa conexo no domnio da experincia cognitiva. Essa dificuldade o teria levado afirmao do fato da razo. E essa dificuldade a de exibir um domnio das representaes da razo pura prtica diferente da sensibilidade cognitiva, com a finalidade de que a lei moral tivesse realidade e objetividade. O que Kant faz na Segunda crtica , precisamente, delimitar um domnio de experincia, diferente da experincia cognitiva, na qual todas as idias da razo pura prtica tivessem sentido. Segundo Loparic (1999), a Crtica da Razo Pura uma introduo insuficiente e enganosa at problemtica da crtica da razo prtica. Isto se deveria a uma definio ainda muito estreita do conceito de filosofia transcendental:
O conhecimento transcendental, diz Kant, aquele conhecimento a priori que examina que e como certas representaes (intuies ou conceitos) so aplicadas a priori aos dados acessveis na sensibilidade
9
Aqui nos restringiremos ao debate tal como reproduzido na revista Analytica Volume 4, Nmero 1 (1999). Os artigos so: O fato da razo. Uma interpretao semntica de Zeljko Loparic e, Crtica, deduo e facto da razo do professor Guido de Almeida.
54
cognitiva (KrV, B 80). Nessa verso, ainda restrita ao problema da verdade e a demonstrabilidade dos juzos sintticos a priori da razo terica, a semntica transcendental no estuda nem pode estudar a aplicao de representaes da razo a dados que no so objeto da experincia cognitiva possvel. Por esse motivo, Kant dir que no so transcendentais e sim morais, todas as questes que decorrem do interesse prtico da razo e que empregam conceitos tais como prazer, desprazer e dever, ou seja, conceitos que se referem aos sentimentos e aos motivos, e no aos dados da intuio sensvel (LOPARIC, 1999, p. 26-27).
Na primeira Crtica, a filosofia transcendental trabalha apenas no domnio do que pode ser interpretado a partir dos dados da intuio sensvel. Isto o impossibilitava responder pela aplicao das representaes prticas. O sentimento moral ou fato da razo criaria esse domnio sensvel em que os problemas semnticos da razo prtica pudessem ser resolvidos. Guido de Almeida no concorda com a posio de Loparic por dois motivos claros. O primeiro que a idia de que os conceitos da razo prtica sejam exibidos no domnio dos sentimentos e no da intuio sensvel no escapa (...) impossibilidade de exibir as representaes da razo por meio de contedos sensveis e a necessidade de pressupor o conhecimento da lei moral para especificar os sentimentos morais (DE ALMEIDA, 1999, p.78). A segunda objeo de Guido de Almeida que a interpretao semntica de Loparic acabaria envolvendo o que Kant exclua: a deduo. Isto , para que os sentimentos morais constituam um novo domnio de objetos que confiram significados s representaes da razo prtica, condio necessria que esses sentimentos fossem dados independentemente desses conceitos. esse o problema, postular a existncia de um elemento dado fora da razo que torne possvel a deduo do princpio moral. Para evitar a deduo, os juzos morais devem ter um princpio imediatamente certo, certo em si mesmo. Mas, segue Almeida, como poderamos atribuir ao fato da razo uma certeza imediata se ele no pode ter a certeza imediata possvel para os juzos analticos (clareza conceptual), nem aquela possvel para os juzos sintticos (evidncia intuitiva)?
55
Horacio L. Martinez
De Almeida (1999) chama a ateno para a distino kantiana entre uma vontade perfeita e uma vontade imperfeita. O princpio moral considerado como lei vlida para uma vontade perfeita, e como um imperativo para uma vontade imperfeita. O imperativo moral se caracteriza como uma proposio sinttica porque liga o conceito de uma vontade imperfeita ao princpio moral de agir segundo mximas universalizveis. Esta distino entre lei e imperativo permite pensar o imperativo como conseqncia do conhecimento da lei. O que seria, ento, o fato da razo no mais nem menos que a conscincia da lei moral por parte de uma vontade imperfeita. Essa conscincia de uma lei conscincia da verdade de uma proposio analtica. Mas para uma vontade imperfeita a relao com a lei se exprime sempre numa proposio sinttica. Guido de Almeida faz questo de esclarecer que est tentando interpretar o fato da razo kantiano dentro do marco do pensamento kantiano, isto , trabalhando o problema a partir das colocaes do prprio Kant. Seu trabalho pretende ser mais exegtico que o do professor Loparic, embora a caracterizao de tal exegese merea um espao maior que o que podemos nos permitir. De Almeida denomina sua interpretao como uma interpretao internalista da motivao moral: a compreenso de uma razo para agir me levaria a agir. No entendemos isto se no for afirmado somente para o caso de uma vontade perfeita (santa). Como essa vontade no existe, voltamos idia de que a lei moral imperativa e deve sempre coagir uma vontade um tanto relaxada. Permitimos-nos reproduzir este debate tanto pela sua qualidade quanto pelo intento de fazer justia ao esforo arquitetnico kantiano. Com isso, queremos afirmar que o fato da razo pode fazer muito sentido na exegese da obra kantiana, isto , no produzir nenhuma grande ruptura com o resto do corpus da sua obra. Mas exige muita colaborao do leitor que no simpatiza com a assimilao entre objetividade e universalidade, e muito menos fundada num a priori da razo. Kant tambm tentou diminuir a pesada carga que a vida moral parece trazer em si, reabilitando uma noo que havia sido rejeitada: a da felicidade na virtude. Assim como na razo terica fez-se necessria uma dialtica para evitar o erro de se tentar estender seu domnio em direo ao que
56
ela no pode conhecer, o uso prtico da razo busca o incondicionado como seu objeto prprio sob o nome de bem supremo. Na Crtica da Razo Pura, Kant faz trs perguntas nas quais se concentra todo o interesse da razo (tanto especulativa como prtica): 1. O que posso saber? 2. O que devo fazer? 3. O que me permitido esperar? A primeira interrogao meramente especulativa, e pode se dar por respondida ao longo da Crtica da Razo Pura. A segunda prtica, e , portanto, tratada em sua segunda crtica. A terceira pergunta, sobre o que me permitido esperar se fao o que devo fazer, ao mesmo tempo terica e prtica, j que a dimenso prtica serve de fio condutor para responder questo terica e para a questo especulativa. A esperana tende felicidade; ela supe no que o homem seja feliz imediatamente - em decorrncia, por exemplo, da mera prudncia de seus atos -, mas que ele, obedecendo lei moral, torne-se digno da felicidade. A nossa vontade livre tem de tornar real o conceito de bem supremo por meio da unio entre nossa esperana de ser felizes e o esforo incessante por sermos dignos da felicidade, unindo, assim, a felicidade virtude:
Designo por ideal do sumo bem a idia de semelhante inteligncia, na qual a vontade moralmente mais perfeita, ligada suprema beatitude, a causa de toda a felicidade no mundo, na medida em que esta felicidade est em exata relao com a moralidade (com o mrito de ser feliz). Assim, a razo pura s pode encontrar no ideal do sumo bem originrio o princpio da ligao praticamente necessria dos dois elementos do sumo bem derivado, ou seja, de um mundo inteligvel, isto , moral (KANT, 1995).
Neste conceito de bem supremo que virtude e felicidade podem se unir, unio que, conforme vimos, Kant havia desprezado porque traria elementos empricos e, portanto, contingentes fundamentao da vida prtica. Se absolutamente falso que a tendncia felicidade produza um nimo virtuoso, no o - falso de um modo condicionado que a disposio virtuosa gere a felicidade. Embora seja verdade que no mundo sensvel o homem no chegue por sua conduta virtuosa felicidade, em um mundo inteligvel - nico mundo no qual o bem supremo possui realidade - a felicidade pode ser alcanada de forma mediata. Para isso, a razo prtica precisa de trs postulados: liberdade, imortalidade da alma e Deus.
Revista de Filosofia, Curitiba, v. 18 n. 21, p. 45-68, jul./dez. 2005.
57
Horacio L. Martinez
O homem moralmente livre, mas, como no santo, nada garante que ele alcance nesta vida o bem supremo. A imortalidade da alma, enquanto postulado, possibilita a idia de um progresso ao infinito nessa busca, mas a possibilidade e a realidade do bem supremo no mundo dependem de que se admita uma causa superior da natureza da qual o bem supremo derive. neste ponto que chegamos existncia de Deus como terceiro postulado da razo prtica.
Por conseguinte, o equipamento da razo, no trabalho que se pode chamar filosofia pura, est de fato orientado apenas para os trs problemas enunciados, mas estes mesmos tm, por sua vez, um fim mais remoto, a saber, o que se deve fazer se a vontade livre, se h um Deus e uma vida futura. Ora, como isto diz respeito nossa conduta relativamente ao bem supremo, o fim ltimo da natureza sbia e providente na constituio da nossa razo consiste somente no que moral (KANT, 1995).
Se a toda faculdade do esprito pode ser atribudo um interesse, entendido este como um princpio que encerra a condio que torna possvel tal faculdade, a razo, como faculdade dos princpios, determina o interesse de todos os poderes do esprito e o seu prprio: O interesse de seu uso especulativo consiste no conhecimento do objeto at os princpios a priori mais elevados; o do uso prtico, na determinao da vontade com respeito ao ltimo e mais completo fim (KANT, 1959, Cap. 2). Todo interesse implica um fim. Os homens, como coisas em si, so fins em si mesmos e, ao mesmo tempo, do natureza sensvel um fim ltimo: aquilo a que o interesse prtico almeja algo a realizar - o supremo bem - que, como fim ltimo, somente pode ser alcanado pela vontade de um ser que se sabe livre a partir da lei moral. No incio deste breve percurso por meio da tica kantiana falamos da rejeio que a palavra dever, como fundamento de qualquer posio ou doutrina tica, provoca. Alasdair McIntyre afirma, em sua Historia de la tica, que a doutrina kantiana, na medida em que apregoa o dever sem justificativa, parasitria de uma moralidade preexistente. () Quem quer que tenha sido educado segundo a noo kantiana do dever ter sido educado em um fcil conformismo em relao autoridade (McINTYRE, 1994, p.192). Podemos responder que toda tica tributria de uma moralidade preexistente, visto que nos difcil pensar
58
em um ponto zero da vida prtica, e que a existncia de uma autoridade, na medida em que exigncia da universalizao das mximas, no poderia contradizer a dignidade do homem enquanto ser racional. Mas no nosso objetivo polemizar aqui sobre o verdadeiro alcance da filosofia prtica kantiana; nossa meta, mais humilde, a de traar um mapa conceptual que nos permita chegar ao difcil terreno da recusa schopenhauereana do que poderamos chamar, com muito cuidado, livrearbtrio na moral kantiana.
Schopenhauer
Schopenhauer gostava de falar de si mesmo como o continuador natural da filosofia crtica, como aquele que havia chegado ao objetivo que Kant havia apenas entrevisto: determinar a vontade como coisaem-si. No sabemos se Kant foi uma arma poltica para Schopenhauer tal como Julio Cabrera o afirma10 ; talvez ele tenha lido Kant com a urgncia do pensador. Fazer de uma obra filosfica uma abertura para outros pensamentos um gesto filosfico tpico e, cremos ns, saudvel. Conforme adverte Maria Lcia Cacciola em sua tese Schopenhauer e a questo do dogmatismo11 , a vontade como coisa-em-si no se apresenta com um significado unvoco, ou seja, ela se mostra tanto como o reverso do mundo da representao quanto como a essncia desse mundo. Estes dois significados supem a vontade como situada fora do
10
11
O artigo intitula-se A leitura schopenhaueriana da Segunda Crtica. (A contribuio de Schopenhauer para uma moralidade dentro dos limites da simples pulso), e consta na Revista de Filosofia Poltica 4 (1987,p. 103-113). A idia que se d com a expresso arma poltica - e, na medida em que Julio Cabrera nada esclarece a esse respeito, no cabe supor o contrrio - a de uma instrumentalizao da filosofia kantiana, ou seja, a de que esta servisse como um elemento til em funo de uma estratgia. As referncias a Kant na obra de Schopenhauer so numerosas e importantes; de fato, Kant, Plato e o bramanismo so considerados, pelo prprio Schopenhauer, como os elementos que constituem a base de sua filosofia. Portanto, no cremos que a expresso arma poltica seja pertinente se entendemos que ela implica - ao modo de Maquiavel - um duplo discurso. No prlogo primeira edio de O Mundo como Vontade e Representao, Schopenhauer fala do filsofo como de um leitor hostil, o que talvez traga algum esclarecimento no que diz respeito ao modo schopenhaueriano de ler a tradio. Tese de doutorado em Filosofia (USP, 1990, p. 6-8). 59
Horacio L. Martinez
domnio da razo e, por esse motivo, tornam impossvel que aquela seja afetada por esta. O nico modo de conhecer a vontade como coisa-emsi pelo prprio corpo. Todo ato verdadeiro da vontade do sujeito ao mesmo tempo, e necessariamente, um movimento de seu corpo, () no pode realmente querer o ato sem perceb-lo ao mesmo tempo como movimento de seu corpo (SCHOPENHAUER, 1992, Cap. 2). A ao do corpo no seno o ato da vontade objetivado, dado na intuio. Na realidade, o corpo inteiro no mais que vontade objetivada, isto , convertida em representao. O corpo passa assim a ser o conhecimento a posteriori da vontade. Apenas na reflexo querer e fazer so coisas diferentes; na verdade, so a mesma coisa. Todo ato imediato da vontade ao mesmo tempo ato fenomenal do corpo, e, reciprocamente, toda influncia exercida sobre o corpo influncia imediata sobre a vontade. Kant d um grande passo ao afirmar a vontade como ncleo da vida tica, mas este passo se desencaminha quando ele sujeita a vontade lei moral. Schopenhauer considera este gesto um retorno dualidade alma (ou mente) e corpo - na qual a razo governa o querer - j afirmada por filsofos como Descartes e Plato, e, portanto, um retrocesso. Se para Schopenhauer o homem a manifestao mais perfeita da essncia do mundo ou vontade, o que se chama de metafsica dos costumes, ou tica, ser a verdadeira autocompreenso da essncia do mundo na natureza interna. Sua metafsica possui um matiz predominantemente tico na medida em que o mundo percebido como dor e que essa conscincia nos conduz ao ascetismo da renncia vontade, entendida esta como vontade de viver12 . por isso que a preocupao tica tem um papel importante em sua obra. A resposta mais sistemtica moral kantiana Schopenhauer a apresenta tanto na Crtica Filosofia Kantiana como em O Fundamento da Moral, segunda parte de seu livro Os Dois Problemas Fundamentais
12
No livro IV, pargrafo 54: A vontade, que considerada puramente em si um impulso inconsciente, cego e irresistvel, como ainda a vemos na natureza inorgnica e vegetal e em suas leis, assim como na parte vegetativa de nossa prpria natureza, adquire, com o acrscimo do mundo representativo, o qual se desenvolveu para o seu uso, conscincia de seu querer e daquilo que quer, que no outra coisa seno este mundo, a vida tal como se nos apresenta. Por isso chamamos ao mundo visvel sua imagem, sua objetividade, e, como o que a vontade quer sempre a vida, precisamente porque a vida no seno a manifestao daquela vontade na forma de representao, dizer vontade de viver o mesmo que dizer, pura e simplesmente, vontade, e s por pleonasmo empregamos aquela expresso.
60
da tica. Nesta obra, ele expressa admirao por Kant, agradecendolhe por haver libertado a moral de toda preocupao com a felicidade, por t-la libertado de todo eudemonismo; isto se deve a que Schopenhauer considera que a moral kantiana est apenas na Fundamentao... Ele desconsidera abertamente a Crtica da Razo Prtica justamente porque a obra introduz essa felicidade que ele havia rejeitado pelo conceito de bem supremo. Por esse motivo, ele qualifica a segunda crtica como um fruto da senilidade kantiana, afirmao que infelizmente foi reiterada por outros autores ao longo da histria da filosofia. Ao criticar a moral kantiana, Schopenhauer afirma que ela comete o mais grave erro quando postula que a filosofia prtica no tem de apresentar as razes daquilo que acontece, mas sim as leis do que deveria acontecer.
() no existe nenhuma razo para introduzir na moral as noes de lei, de preceito e de dever: este modo de proceder no tem seno uma origem alheia filosofia, estando inspirado no declogo de Moiss. Em geral, depois do cristianismo, a moral filosfica tomou, sem que disso se desse conta, a sua forma de moral dos telogos: isto tem como carter essencial o mandato; a moral dos filsofos tambm tomou a forma preceptiva, de uma teoria dos deveres, inocentemente e sem imaginar que a sua verdadeira obra fosse bem diferente, estando, antes, convencidos de essa era a forma verdadeira e natural. (SCHOPENHAUER, 1948, Cap.2).
13
Schopenhauer, em O mundo como Vontade e Representao, sustentava que toda filosofia devia ser terica: () da sua essncia () manter-se na pura observao e o investigar, mas no o dar regras (1992, Cap. 4). Um livro de tica no fomenta a virtude assim como um livro de esttica no gera melhores msicos ou pintores. Esta afirmao entendida a partir do determinismo com o qual o filsofo pensava sobre a origem do atuar humano.
13
A primeira parte Sobre o Livre Arbtrio, qual em breve nos referiremos. Na realidade, as duas partes de Os Dois problemas Fundamentais da tica correspondem a dois trabalhos, os quais foram apresentados em ocasies diferentes: o primeiro deles um ensaio premiado pela Real Academia Norueguesa das cincias em 1839. O Fundamento da Moral, por sua vez, data de 1840, e no foi premiado pela Real Academia Dinamarquesa das cincias - apesar de ter sido o nico apresentado - em decorrncia da atitude pouco respeitosa para com os filsofos consagrados, entre eles Hegel, nele manifestada. 61
Horacio L. Martinez
Cada ao humana gerada pelo cruzamento entre o carter particular de cada homem e a motivao que entra em jogo. O livre arbtrio entende toda ao humana como um milagre inexplicvel, como um efeito sem causa, o que incompatvel com as formas do entendimento. O que - para Schopenhauer - uma causa em geral? A modificao anterior que torna necessria uma modificao posterior ou conseqente. Nenhuma causa gera absolutamente o seu efeito nem o cria a partir do nada. H sempre uma matria sobre a qual se exerce e ocasiona, em um momento, em um lugar e sobre um ser dados, uma modificao que sempre adequada natureza do ser e para a qual a fora j deveria jazer neste ser. Portanto, cada efeito a resultante de dois fatores, um interior e outro exterior: a energia natural e original da matria, e a causa determinante, que obriga esta energia a se realizar ao passar da potncia ao ato. Aquilo que rege as causas rege tambm os motivos, j que, de fato, a motivao no seno a causa que opera por mediao do entendimento. A vontade - que conhecida imediata e interiormente - o que constitui cada homem em particular. O que determina que dois homens no tenham as mesmas reaes diante dos mesmos motivos essa constituio individual chamada de carter emprico, uma vez que no conhecida a priori, mas sim pela experincia. O carter do homem : 1) Individual, diferente em cada indivduo. Embora existam traos comuns, e haja por isso caractersticas que so compartilhadas pelos homens, a diferena de combinao de qualidades e sua mtua modificao tornam suas caractersticas impossveis de repetio. 2) O carter do homem emprico. Somente pela experincia podemos conhec-lo, no unicamente nos outros, mas tambm em ns mesmos. 3) O carter do homem constante: permanece igual durante toda a sua vida. O homem no muda jamais: da mesma forma como houver atuado em um caso, tornar a atuar sempre, nas mesmas circunstncias. 4) O carter individual inato: no obra de circunstncias fortuitas, mas da prpria natureza. Portanto, as virtudes e os vcios so inatos. Chegamos, neste ponto, a tocar uma das contribuies fundamentais da filosofia schopenhaueriana: a da no-liberdade do querer. A
62
idia kantiana de dever sustenta-se na liberdade moral, no poder de realizar uma ao em vez de outra. O realizar uma ao ainda que contrariando a inclinao natural o que d o seu carter moral. Ora, para o autor de O Mundo como Vontade e Representao no existe essa liberdade. claro que podemos realizar uma ao se o quisermos, mas a pergunta : posso querer tambm o que quero?
Com efeito: seus atos dependem unicamente da sua vontade; mas o que queremos saber agora do que depende a sua prpria volio, se de nada ou de algo. verdade que pode fazer uma coisa, se quiser, ou tambm outra, se tambm o quiser: mas que reflita se realmente capaz de querer tanto uma como a outra (SCHOPENHAUER, 1982, Cap. 2).
O ataque do filsofo doutrina do livre arbtrio parece manter-se em duas frentes: uma que poderamos denominar frente lgica, que a da regresso indefinida - impensvel, ela se choca com as formas do entendimento - qual a liberdade do querer conduz: posso querer o que quis? Posso querer o querer? A outra frente seria a frente metafsica, que marcada tanto pelas caractersticas do carter humano - que acabamos de ver - como pela sustentao da clssica distino entre essncia e existncia.
() esperar que um homem, sob influncias idnticas, atue j de uma maneira e j de outra absolutamente oposta, como se, se quisesse esperar que uma rvore que no vero passado produziu cerejas produzisse pras no prximo vero. Considerai exatamente: o livre arbtrio implica uma existncia sem essncia, isto , algo que e ao mesmo tempo no nada, por conseguinte, que no : ou seja, uma contradio manifesta (SCHOPENHAUER, 1982, Cap. 3).
A impossibilidade de que um carter possa mudar, de que possa escolher o curso de uma ao, o que funda a impossibilidade de uma tica prescritiva. Conforme j o dissemos, essa impossibilidade decorrncia da no-liberdade do querer. A liberdade da vontade, como coisa-em-si, no transmitida diretamente ao seu fenmeno, nem sequer pessoa enquanto fenmeno no qual a vontade obtm seu mais alto grau de objetivao. A pessoa nunca livre, mesmo sendo fenmeno de uma vontade livre, j que, submetendo-se ao princpio de razo, a unidade da vontade se desdobra em uma pluralidade de atos. Se a vontade coisa-em-si, estando fora do tempo e do domnio do princpio de
Revista de Filosofia, Curitiba, v. 18 n. 21, p. 45-68, jul./dez. 2005.
63
Horacio L. Martinez
razo, o homem, a cada vez que se encontre nas mesmas condies, agir da mesma maneira, e uma m ao garantia segura de muitas outras que o indivduo cometer e das quais ele no pode se abster. A vontade no pode ser negada em um caso isolado - na medida em que constitui a essncia do homem -, e o que o homem quer no total ele deve quer-lo tambm a cada instante. O motivo central da recusa schopenhaueriana teoria do livre arbtrio resume-se ao fato de que esta teoria afirma uma liberdade emprica da vontade, o que resulta de se tomar por essncia do homem uma alma, como um ser que conhece, um ser abstrato que pensa, considerando-se o homem apenas em segunda instncia como um ser que quer. O que secundrio o conhecimento, e no a vontade; o querer anterior ao conhecer: A vontade o primeiro, o originrio; o conhecimento algo que acrescenta, sendo um novo instrumento a servio da manifestao da vontade (SCHOPENHAUER, 1992, Cap. 4I). Schopenhauer situa Kant dentro daquele grupo de pensadores seduzidos pela teoria do livre arbtrio, j que o dever se funda necessariamente em um poder; dever alguma coisa em detrimento de outra, ou, ainda, em oposio a outra, significa liberdade de opo.14 Ento, em resumo, o primeiro defeito que ele destaca na filosofia prtica kantiana a idia de dever, a idia de submeter as aes a uma legalidade que torne necessria a existncia de um legitimador que recompensasse essas aes, leia-se Deus. O segundo defeito, derivado do primeiro, o da falta de substncia de uma tica assim construda. Para Schopenhauer, Kant quis - como na filosofia terica - encontrar um conhecimento puro a priori separado do conhecimento emprico a posteriori tambm na filosofia prtica.
() admitiu, pois, que semelhana das leis de espao, do tempo e da causalidade, que so conhecidas a priori, a regra moral de nossas aes nos deve ser dada paralelamente, ou pelo menos de forma anloga, antes de toda experincia, e que se expresse sob a forma do imperativo categrico, de um preciso absoluto (SCHOPENHAUER, 1948, Cap. 2).
14
Referindo-se a prioridade da lei moral, Schopenhauer diz: (...) sem apoiar-se em nada a no ser nesse fundamento da lei moral que flutua no ar, admite a liberdade, em um sentido, certo, ideal, e como postulao do famoso raciocnio: tu podes, porque deves. El Fundamento de la Moral Schopenhauer (1948, p. 6).
64
Porm, se o carter a priori das noes de tempo, espao e causalidade limitava o seu alcance apenas ao fenmeno, representao, e nunca s coisas-em-si; com o ato moral, Kant pretendia agir sobre a coisa-em-si de um modo direto. Mas o que Schopenhauer entendia por tica? Desde que a vontade est inteira e indivisa, em cada ser, o egosmo essencial a todos os seres da natureza. Cada ser quer tudo para si, especialmente o indivduo que, como sujeito de conhecimento, portador do mundo: o mundo exterior e os outros seres no so seno representaes suas, e se a sua conscincia desaparecesse, tambm o mundo desapareceria. Por isso, o indivduo, apesar de ser um ponto mnimo no mundo, considera-se o centro do universo, e preocupa-se apenas com a sua conservao e com seu bem-estar. O indivduo sente-se totalidade da vontade viver e, ao mesmo tempo, a condio complementar do mundo enquanto representao. Ele um microcosmo que tem o mesmo valor do macrocosmo. Assim, revela-se no indivduo o conflito interior da vontade consigo mesma: se a vontade aparece da mesma maneira em incontveis indivduos, cada indivduo v em si toda a vontade e toda a representao e, portanto, no se interessa pelos outros seres. Ento, cada indivduo v a sua prpria morte como o fim do mundo. Esse conflito uma das principais fontes da dor que acompanha a vida, sendo a outra a vontade como fonte inesgotvel do querer. A virtude, segundo a viso schopenhaueriana, seria uma aquietao das paixes muito similar ao estoicismo. J que - como o vimos - a afirmao do prprio corpo a primeira afirmao da vontade de viver, esta afirmao se d como satisfao do instinto sexual. A renncia a uma tal satisfao j a negao da vontade de viver, e constitui uma vitria sobre si mesmo. A injustia ocorre quando - em funo do egosmo - no nego minha prpria vontade de viver, mas sim a vontade manifestada em outro corpo. A vontade do injusto ultrapassa os limites da vontade de sua vtima, seja lesando o seu corpo, seja exercendo coero para tirar proveito de suas foras. Aquele que comete a injustia conhece que ele a mesma vontade que aparece no outro e, portanto - como vontade em si -, experimenta essa dilacerao em seu prprio interior:
65
Horacio L. Martinez
() o ato injusto acompanhado de uma dor interior, que no seno a dor que sente a conscincia pela fora excessiva de sua afirmao da vontade, levada at a negao da vontade alheia, e pelo sentimento que lhe adverte de que, mesmo sendo diferente, o ser ofendido idntico a ele (SCHOPENHAUER,1992, Cap. 4).
Na medida em que para a vontade no existe uma satisfao definitiva de suas aspiraes, ela no pode deixar de querer. Da que, para Schopenhauer, seja uma contradio pensar em um bem supremo. Na sua opinio, todo bem absolutamente relativo a uma vontade particular. Por isto, uma doutrina moral impossvel: se atuasse sem fundamentao, ela no teria eficcia alguma. Mas a motivao o motor e fundamento da atuao humana; e uma tica fundada em motivos careceria de valor moral, uma vez que eles procedem do amor prprio ou egosmo. A virtude no procede de um conhecimento abstrato que possa ser ensinado, mas sim do conhecimento intuitivo de que os outros possuem a mesma essncia que ns. A partir de tal conhecimento, possvel superar o principium individuationis e sermos justos em nossos atos, entendida a justia como o no ultrapassar os limites do outro enquanto vontade. Essa necessidade de uma intuio na base da moral schopenhaueriana se mostra um tanto quanto paradoxal. Com efeito, quando o filsofo recusa firmemente a idia de Faktum da razo, que aparece na Crtica da Razo Prtica, ele o faz porque esta idia possibilita uma leitura intuicionista da razo prtica. Ela lhe parece muito similar ao instinto moral que o pensador ingls Hutcheson denomina moral sense. Se esta leitura fosse possvel, para Schopenhauer abrir-se-ia ento a possibilidade de uma interpretao antropolgica do imperativo categrico. O que acontece , que entanto o sujeito schopenhauereano est antropologicamente constitudo pelo querer, e este querer absolutamente egosta, ele no poderia aspirar a universalizao nenhuma de seu agir. A maldade consistiria em um querer inesgotvel, em uma afirmao veemente do indivduo em seu corpo, mas, como o querer nasce da carncia, o malvado pode somente sofrer. O homem de boa conscincia, em contrapartida, sente-se satisfeito ao perceber que o seu verdadeiro eu no existe apenas nele - ou seja, como fenmeno isolado -, mas sim em tudo o que o cerca. Da que Scho66
penhauer fale de dois mundos diferentes, o do malvado ou egosta e o do justo: O egosta se sente rodeado de fenmenos estranhos e inimigos, e todas as suas esperanas esto fundadas em seu prprio bem-estar. O bom vive em um mundo povoado de amigos e o bem dos demais o seu (1992, Cap. 4). O homem justo aquele que chegou negao da vontade de viver e que, desse modo, encontra-se em uma invejvel paz interior. Mas esta paz tem que ser reconquistada a cada instante, j que enquanto o corpo perdurar a vontade de viver tambm existir e aspirar a incendiar-se a todo momento. No devemos confundir esta aniquilao da vontade de viver com o suicdio, o qual apenas aniquilamento do fenmeno. O suicdio no apenas no nega a vontade como a afirma energicamente. O suicida ama tanto a vida e os seus prazeres que no aceita as condies nas quais ela se lhe oferece. A negao da vontade renncia a esses prazeres, mas no dor. Mas, a vontade de viver no pode ser destruda seno pelo conhecimento, o que significa que ela deve manifestar-se livremente para que a partir de tal manifestao possa conhecer a sua prpria essncia, mas esse conhecimento no um bem definitivo, e tem que ser constantemente reconquistado: () a quietude e a felicidade so o ltimo resultado, trofu de uma vitria de todos os instantes sobre a vontade () (SCHOPENHAUER, 1992, Cap. 4). O nirvana, a total apatia final o fruto amargo desse esforo. A Histria da Filosofia se tece tambm com alguns lugares comuns. Ser outra questo, a ser dirimida em outro momento, o controvertido pessimismo da filosofia de Schopenhauer.
Lista de abreviaesI
CRPra = Crtica da Razo Prtica. CRPu = Crtica da Razo Pura. FMC = Fundamentao da Metafsica dos Costumes. MVR = O Mundo como Vontade e Representao.
67
Horacio L. Martinez
Referncias
CACCIOLA, Maria Lucia. Schopenhauer e a questo do dogmatismo. 1990. Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de So Paulo, 1990. DE ALMEIDA, Guido Antnio. Crtica, Deduo e Facto da Razo. Revista Analytica, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 57-84, 1999. ____. Kant e o facto da razo: cognitivismo ou decisionismo moral. Revista Studia Kantiana, Rio de Janeiro, RJ: v. 1, n. 1, p.53-81, set. 1998. KANT, Imanuel. Fundamentacin de la metafsica de las costumbres. In: Crtica de la Razn Prctica. La Paz Perpetua. Traduo de Manuel Garca Morente. Mxico: Porra, 1995. ______ Crtica da razo prtica. Traduo e prefcio de Afonso Bertagnoli. So Paulo, SP: Edies e Publicaes Brasil, 1959. ______ Crtica da razo pura. Traduo de Manuela Pinto Dos Santos e Alexandre Fradique Morujo. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1994. LOPARIC, Zeljko. O fato da razo: uma interpretao semntica. Revista Analytica, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 13-55, 1999. McINTYRE, Alasdair. Historia de la tica. Traduo de Roberto Juan Walton. Barcelona: Paids, 1994. SCHOPENHAUER, Arthur. El Fundamento de la moral. Traduo de F. Daz Crespo. Buenos Aires: El libro, 1948. ______. El mundo como voluntad y representacin. Traduo de Eduardo Ovejero y Mauri. Mxico: Porra, 1992. ______ .Los dos problemas fundamentales de la tica: sobre el libre albedro. Traduo e prefcio de Vicente Romano Garca. Buenos Aires: Aguilar, 1982. ______ .O livre arbtrio. Traduo de Lohengrin de Oliveira. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1994.
Recebido em/ Received in: 06/06/2005 Aprovado em/ Approved in: 05/08/2005
68