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O PRAGMATISMO DE PEIRCE COMO

TEORIA DO CONHECIMENTO E
DA APRENDIZAGEM
Maria Virgínia Machado Dazzani
- (UFBA)

RESUMO:
Este ensaio procura abordar o conceito de aprendizagem na
perspectiva de problemas epistemológicos e lógicos na obra de Char-
les Sanders Peirce, principalmente em algumas passagens onde ele
investiga a estrutura dos atos cognitivos e das inferências, a lógica do
inquérito e tenta elucidar o seu pragmatismo. Para tanto, será funda-
mental situar a aprendizagem no campo dos problemas associados ao
conceito de “raciocínio”, “pensamento” e “inquérito”.

PALAVRAS-CHAVE:
Aprendizagem, Conhecimento, Peirce, Pragmatismo, Semiótica.

1. Semiótica e aprendizagem
A idéia central deste ensaio pode ser resumida numa afirma-
ção de John Shook (2000: 1), “... o pragmatismo é fundamentalmente
uma teoria empirista da aprendizagem [grifos meus]. Segundo o
raciocínio de Shook, toda investigação sobre a estrutura e as funções
da mente e suas relações com a possibilidade de conhecimento, as-
sim como encontramos no pragmatismo, deve compreender uma
teoria da aprendizagem. Mesmo que muitos filósofos tenham separa-
do, de um lado, os métodos e procedimentos de obtenção de novos
conhecimentos (como, por exemplo, na ciência) e, do outro, os mé-
todos e procedimentos de absorção de conceitos, noções e crenças já

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estabelecidos, Peirce postularia que existe uma única metodologia da
aprendizagem e do conhecimento humanos.
Peirce, J. Dewey e W. James concordam com um princípio bá-
sico do empirismo segundo o qual a inteligência e as faculdades hu-
manas são essencialmente dadas a partir da aprendizagem na experi-
ência: em primeiro lugar, a experiência possibilita a base para o
conhecimento, e a atividade mental é o trabalho de transformação da
experiência em objetos de conhecimento; o confronto e a transfor-
mação desta experiência tem como principal objetivo sanar as dúvi-
das e inquietações na mente (cuja característica é ser inquiridora),
estabelecendo a crença; por fim, o conhecimento visa o estabeleci-
mento da “crença prática”, isto é, a formação de hábitos de conduta
cognitiva e moral futura.
Para realizar isso, porém, o pragmatismo necessitou “naturalizar
a mente humana” (compreendendo-a no interior dos processos da
natureza) e repudiar todas as formas de transcendentalismos, dualis-
mos, inatismos e idealismos, como estão em Platão e Descartes.
Neste ensaio estarei ocupada em descrever como o pragma-
tismo e a doutrina dos signos de Peirce devem e podem ser entendi-
dos como uma teoria do conhecimento e como, nesta teoria, por sua
vez, o conceito de “aprendizagem” tem um lugar central: de um lado,
não há conhecimento a partir de um “ponto zero”, absolutamente
inicial; do outro lado, todo conhecimento é construído no sentido de
instituir a ação prática (baseada na crença); por essa razão, a “apren-
dizagem” está relacionada com a formação de esquemas interpretati-
vos e crenças. Além disso, esse é um processo e, como tal, continu-
amente aberto e revisável. Para usar uma imagem rortyana, o
conhecimento não é um espelho da natureza ou das coisas, mas uma
construção sempre aberta (como em Dewey) que interpreta o mundo
(Cf. DAZZANI, 2000). O que é estabelecido pelo aprendizado não é

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da ordem de algum conteúdo definido ostensivamente como uma
conduta “correta”; o conhecimento é o modo como passamos a en-
tender e interagir no mundo, não recorrendo a uma pura ostensão
como critério de revisão e correção. O aprendizado diz respeito ao
modo como firmam um hábito de conduta, uma regra para ação.
Em Peirce, aprender significa não mais que estar no fluxo contí-
nuo e falível de nossas concepções possíveis da realidade: só sabe-
mos que há objetos, pessoas e um mundo real porque estamos na
posse de “uma consciência de aprendizagem” que faz com que orde-
nemos o experienciado com um conceito geral (cf. IBRI, 1992: 64).
A única regra da razão, para ele, é investigar e aprender (“Não blo-
queie o caminho da investigação”, dizia Peirce), formando novos
esquemas de interpretação e de ação. Aprender é adquirir um hábito
e os homens aprendem investigando o real.
A aprendizagem é a capacidade de síntese, de ampliação e aper-
feiçoamento dos conceitos que usamos para indicar o real e o signifi-
cado próprio do fazer humano. Tais capacidades são concebíveis
apenas se o caráter mental da consciência tiver a plasticidade neces-
sária para crescer, rompendo com velhos hábitos que se consumam
como inadequados à vivacidade e dinâmica de nosso próprio existir
(Cf. MERRELL, 2002: 61-80).

2. Peirce e a Teoria do Conhecimento


Peirce julgava-se não um filósofo no sentido clássico, mas um
“cientista experimental” (PEIRCE, 1998a: 332) e imaginava poder
pensar os assuntos filosóficos do mesmo modo que o cientista traba-
lha no seu laboratório, qual seja, como questões de experimentação.
Sua principal inspiração era Immanuel Kant, principalmente a idéia
de que a experiência (sensória) é constitutivamente permeada por
uma ordem que não pode ser compreendida independentemente da

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própria experimentação: nossa idéia de “existência”, por exemplo,
envolve os conceitos de espaço e tempo, pois cada objeto existe em
alguma relação espacial e temporal com algum outro, mas os concei-
tos de espaço e tempo são vazios se não estão relacionados com obje-
tos presentes na experiência sensível. A máxima kantiana era: “con-
ceitos sem intuições são vazios”, mas “intuições sensórias sem
conceitos são cegas” (cf. KANT, 1997).
No início da “Analítica dos Conceitos” Kant escreve o seguinte:
“O entendimento não é, pois, uma
faculdade de intuição. Fora da intuição não
há outro modo de conhecer senão por
conceitos. Assim, o conhecimento de todo
o entendimento, pelo menos do
entendimento humano, é um conhecimento
por conceitos, que não é intuitivo, mas
discursivo.” (Ibid.: 102)
A concepção kantiana do conhecimento certamente distinguiu-
se dos pensadores mais próximos de sua época, tanto racionalistas
quanto empiristas. A corrente empirista pensava no conhecimento
como algo derivado diretamente da experiência e a dos racionalistas,
pelo contrário, afirmava que o conhecimento é baseado exclusiva-
mente na razão inata: ambos tomavam como garantidos que o conhe-
cimento deve ser absoluto no sentido de ser independente da pressu-
posição e da perspectiva (Cf. FAERNA, 1996: 63-95). O mundo real,
para Kant, surge como algo necessariamente já interpretado e per-
meado por conceitos. Isto não quer dizer que exista, de um lado, um
mundo real e, do outro, signos e símbolos que interpretam a experi-
ência sensível. A experiência, ela mesma, não pode existir sem se
acomodar a uma ordem simbólica (tocamos em algo e temos, imedia-
tamente, a consciência de algo pesado ou frio ou áspero; a qualidade
ou sensação do objeto vem acompanhada da consciência desse objeto

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e vice-versa). Peirce, ao modo kantiano, esteve desde o início con-
vencido que o conhecimento não é intuitivo e imediato e que é ape-
nas através de signos ou símbolos ou esquemas de pensamento
(crenças e hábitos) que todo o conhecimento do mundo se dá (Cf.
PEIRCE, 1986b).
Como têm destacado vários comentadores (Cf. GALLIE,
1975; ALMEDER 1980; CHENU 1985, FISCH 1986;
HAUSMAN, 1993 e MURPHEY, 1993), esta reflexão sobre o
conhecimento – a crítica à epistemologia intuicionista e subje-
tivista e a busca de uma perspectiva construcionista que incor-
pore e supere Kant – foi o celeiro do pragmatismo de Peirce na
sua obra de juventude. Em 1877, quando cunhou a chamada
“máxima do pragmatismo” (PEIRCE, CP 5.402), Peirce estava
ocupado com o tema metafilosófico de um método que permi-
tisse avaliar nossas construções teóricas – a saber, crenças so-
bre a realidade e hábitos de lidar com conceitos sobre esta rea-
lidade –, principalmente no âmbito das práticas científicas. Sua
pergunta, grosso modo, era: como podemos distinguir crenças
verdadeiras de crenças falsas e concepções claras e distintas de
concepções obscuras e confusas?
Tradicionalmente, desde Descartes, uma parcela importante do
trabalho filosófico, a Teoria do Conhecimento, vem identificada ao
esforço de estabelecer um método que permita indicar com seguran-
ça aquelas idéias e crenças que, pela sua clareza e razoabilidade po-
dem servir de base e fundamento para as teorias sobre o mundo, a
realidade, a ciência e a moral. Foi a partir de Descartes que a locali-
zação do problema da verdade como uma realização subjetiva se
tornou um marco fundamental na história da filosofia. E Peirce, re-
conhecendo a origem do problema da verdade no âmbito da filosofia
tomou emprestado os termos clareza e distinção das idéias para re-

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tomar tal discussão. Segundo Peirce (1986: 259), quando Descartes
idealizou “reconstruir a filosofia” em oposição ao pensamento con-
fessional baseado na autoridade divina, seu esforço foi o de buscar
uma fonte mais natural de princípios verdadeiros no próprio espírito
humano. Descartes tinha como objetivo firmar uma ciência verdadei-
ramente segura (sobre as coisas como objetos externos existentes),
mas estava convencido que comumente temos nos enganado a pro-
pósito de como as coisas realmente são:
“Notei, há muitos anos já, que tenho
recebido desde a mais tenra idade tantas
coisas falsas por verdadeiras, e sendo tão
duvidoso tudo o que depois sobre elas
fundei, tinha de deixar abaixo tudo,
inteiramente, por uma vez na minha vida, e
começar, de novo, desde os primeiros
fundamentos, se quisesse estabelecer algo
seguro e duradouro nas ciências.”
(DESCARTES, 1988: 106)
Seu problema epistemológico principal era saber se as idéias
que o eu (o sujeito do conhecimento) acredita claras e distintas po-
dem ser garantidas como verdadeiramente essências e se isto que o
sujeito afirma poderia expressar uma razão universal objetiva e não
apenas uma ilusão ou sonho. Por isso, a questão da apreensão imedi-
ata e certa do objeto para o qual o espírito se dirige tem um papel
primeiro: a intuição seria esta relação direta e integral entre o sujeito
cognoscente e seu objeto sem qualquer mediação. Descartes se refe-
ria principalmente à intuição evidente do próprio eu que leva ao co-
nhecimento certo. A fonte da certeza, da razão humana e das verda-
des fundamentais, seria propiciada pelo auto-exame e na auto-
consciência do sujeito que constata que sabe inequivocamente que
pensa e existe:

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“Não sou eu, então, pelo menos, alguma
coisa? Mas já neguei que tivesse quaisquer
sentidos e qualquer corpo. Todavia, hesito:
porque, o que se conclui daí? Estou ligado
ao corpo e aos sentidos de modo que não
possa existir sem eles? Mas persuadi-me
que não havia absolutamente nada no
mundo, nenhum céu, nenhuma terra,
nenhum espírito, nenhum corpo. Não me
persuadi também de que eu próprio não
existia? Pelo contrário, eu existia com
certeza se me persuadi de alguma coisa.
Mas há um enganador, não sei qual,
sumamente poderoso, sumamente astuto,
que me engana sempre com a sua indústria.
No entanto, não há dúvida de que também
existo, se me engana; que me engane
quanto possa, não conseguirá nunca que eu
seja nada enquanto eu pensar que sou
alguma coisa. De maneira que, depois de
ter pesado e repesado muito bem tudo isto,
deve por último concluir-se que esta
proposição ‘Eu sou, eu existo’, sempre
proferida por mim ou concebida pelo
espírito, é necessariamente verdadeira.”
(DESCARTES, 1988: 119)
Peirce sempre se posicionou contra o idealismo subjetivista e
solipsista implicado nesta perspectiva cartesiana que sustenta que o
objeto do conhecimento e da certeza epistemológica (do qual posso
estar imediatamente certo) é somente minha própria mente (Cf.
PEIRCE, 1992a, pp. 28-55). Se seguirmos Descartes não poderemos
estar certos de que há qualquer coisa existente fora da minha mente,
pois para este idealismo não existe conceito objetivo de mundo para
além do “eu” plenamente autoconsciente e solitário (Cf. MOUNCE,
1997: 9; MERRELL, 1997: 297 e seg.).

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3. Conhecimento e Crença
O anticartesianismo de Peirce sugere que quando falamos de
mundo e de conhecimento, estamos tratando, na verdade, de interpre-
tação, de significação e crença. Mesmo a percepção imediata ou
consciência imediata é ela mesma uma inferência ou hipótese (Cf.
PEIRCE, 1992b; cf. tb. SANTAELLA, 1993); tais inferências ou
hipóteses só podem ser checadas por outras inferências ou hipóteses
ad infinitum e nada existe independentemente de ser interpretado por
uma mente humana. Com isso, Peirce também estaria perdendo
qualquer contato com o mundo (como encontramos em Descartes)?
Como postular algum sentido de realidade nesta perspectiva? O desa-
fio aqui é estabelecer de que maneira, intersubjetivamente (como no
laboratório), podemos estar certos que uma interpretação ou crença é
correta e não apenas uma ilusão. O que podemos tomar como refe-
rência para estabelecermos as garantias da correção? Ou seja, como
dizer que o modo como firmamos nossas interpretações e crenças e
nossos hábitos determina nossa compreensão da realidade (de nós
mesmos, dos outros e das coisas e acontecimentos) e pode ser justifi-
cado sem cairmos no humanismo perspectivista e relativista cuja
máxima é “de todas as coisas a medida é o homem” (como em Pro-
tágoras e James)?
Estes são alguns desafios que o jovem Peirce tentou resolver e
vêm explicitados na sua compreensão do método do pensamento e do
inquérito (para o qual o modelo é o inquérito científico) e o processo
de fixação das crenças sobre o mundo. Peirce definira já no seu “The
Fixation of Belief” de 1877 (Cf. PEIRCE, 1986a: 242-257; CP
5.358-387) que o inquérito (ou a investigação sobre o real e a cons-
trução do nosso conhecimento sobre o mundo) é o processo através
do qual nós passamos da dúvida genuína para a crença estável. E,

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como é evidente, os termos principais aqui são os “predicados psico-
lógicos” crença e dúvida (Cf. ALMEDER, 1980: 1).
Peirce compreendia o termo “crença” como um certo estado
mental ou sentimento resultado de conexões habituais entre nossas
idéias e conceitos e que implica em expectativas concernentes ao
modo como o mundo é e virá a ser. Grosso modo, se uma pessoa
acredita que p, onde p é uma proposição qualquer, isto quer dizer
que ela está em um estado psicológico caracterizado por certas ex-
pectativas causadas por conexões habituais entre suas idéias (Cf.
PEIRCE, 1986a: 247). Isto, porém não esclarece se a crença em
questão é verdadeira e racional ou não é. Todas as vezes em que está
em questão nossa relação com o mundo e com outros sujeitos huma-
nos e nosso agir há necessariamente a presença de uma crença (ou
estados mentais que causam nosso agir de modos particulares), inde-
pendente da crença ser verdadeira ou falsa. Além disso, o único mo-
do de conhecermos o que o homem acredita é observarmos como ele
age; o interesse de Peirce era o de propiciar uma análise do conceito
de crença que possibilitasse uma verificação das sentenças que ex-
pressam crenças.
Eis o problema do esclarecimento filosófico das crenças: “So-
mos, sem dúvida, dominantemente lógicos, mas não o somos de ma-
neira perfeita. A maioria de nós, por exemplo, é mais confiante e
esperançosa do que a lógica justificaria.” (PEIRCE, 1986a: 244-5).
Um método – isto é, um procedimento deliberado e racional – se
impõe àquele que deseja uma certeza que vá além do “para mim, e
somente para mim, é certo que...”. Isto é o que podemos chamar de
“positividade da crença”: nossas teorias, concepções e crenças orien-
tam e formatam nossos interesses e impregnam de ordem o nosso
agir. A crença se caracteriza: a) como “algo de que estamos cientes”,
b) “aplaca a irritação da dúvida” e c) “envolve o surgimento, em

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nossa natureza, de uma regra de ação, ou, digamos com brevidade, o
surgimento de um hábito” (PEIRCE, 1986b: 263). Em contrapartida,
segundo Peirce, “a dúvida nunca se acompanha de tal efeito” (Idem,
1986a: 247).
A rigor, o inquérito começa com a dúvida genuína e seu objeti-
vo é vencer esta dúvida através do estabelecimento (na verdade, o
reestabelecimento) de crenças estáveis: a irritação da dúvida causa
uma luta para alcançar a crença e a luta ela mesma é inquérito (cf.
ALMEDER, 1980: 7). A dúvida causa um estado mental profunda-
mente desagradável contra o qual lutamos para nos libertarmos e,
conseqüentemente, retornar ao estado de crença, caracterizado por
uma tranqüilidade e satisfação que desejamos preservar e tornar du-
radouro. A este estado apegamo-nos com veemência não apenas para
crer, mas “to believe just we do believe” (PEIRCE, 1986a: 247).
Como um estado mental, a dúvida (e não a descrença) geram e-
feitos diversos aos da crença: ela representa uma falta de associação
de idéias, privando-nos de expectativas já que não dispomos de crité-
rios para agir de qualquer modo particular. Como tal, é um estado
irritante e frustrante do qual devemos escapar. Uma dúvida não é
simplesmente uma descrença, pois a descrença numa proposição
implica que a pessoa não está privada da disposição para agir de
qualquer modo particular mas, ao contrário, ela age – ou está dispos-
ta a agir – como se a proposição em questão fosse falsa. A descrença
é um estado mental semelhante ao da crença. De algum modo, a des-
crença não implica na angústia da dúvida, nem no movimento de
procura por certezas (como no caso da dúvida).
Mas a “duvida real” em oposição à “dúvida artificial” de
Descartes só aparece quando, de fato, alguma coisa confiadamente
esperada falha ou quando alguma coisa não esperada ocorre. Ou seja,
alguém não pode estar num estado genuíno de dúvidas ao menos que

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tenha sido surpreendido tanto pelo que ele não esperou quanto pela
ausência daquilo que estava no horizonte das suas expectativas. Isto
implica que não pode haver dúvida genuína sem uma crença antece-
dente. Crença e expectativa vêem primeiro e o poder para duvidar
muito depois (Cf. PEIRCE, CP 5.512). A dúvida é sempre uma dúvi-
da específica que pressupõe e nega uma crença específica; não há
lugar para a dúvida geral assim como não há lugar para a crença ge-
ral. A dúvida só surge quando alguma crença, ou um conjunto de
crenças é rompida, ou seja, quando alguém não sabe como agir por-
que alguma crença que havia endossado anteriormente repentina-
mente e surpreendentemente não mais permite facilitar seu trato com
a experiência. Neste ponto, quando Peirce insiste na origem externa
da dúvida genuína, faz com que o seu argumento epistemológico se
dirija contra a concepção de inquérito e dúvida em Descartes.
Para Peirce todo o raciocínio está permeado da possibilidade ló-
gica do erro e o cogito é tanto o produto das inferências como é
qualquer outra proposição. Em resumo, a defesa que Peirce faz da
falibilidade de todo conhecimento e raciocínio refuta a dúvida carte-
siana, que seria, por sua vez, apenas uma dúvida artificial. Um inqué-
rito legítimo, com isso, não pode começar com a dúvida cartesiana.
Por isso, ao contrário, o inquérito deve originar-se com uma dúvida
real e dirigir-se para a formulação de proposições que nós genuina-
mente não duvidamos.
A dialética entre crença e dúvida instauram uma idéia de que
nosso pensamento opera na construção de teorias (no sentido amplo
do termo teoria) sobre o estado efetivo do mundo no esforço de im-
por uma ordem razoável e lógica para a realidade. Isto permite, entre
outras coisas, a generalização, a utilização de instrumentos normati-
vos, o uso intersubjetivo de conceitos, a previsão de ocorrência de
fatos cotidianos, etc. Elas estão enraizadas no modo como aprende-

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mos qualquer coisa no mundo e sobre o mundo: desde a idéia espa-
ço-temporal até a significação das palavras, frases e argumentos, o
sentido do que é ilusório distintamente do que é real, a memória e a
possibilidade da previsão de acontecimentos que se darão no futuro.
Pensando assim, este jogo dialético crença-dúvida é constitu-
tivo da forma do nosso conhecimento. Mesmo que a crença não te-
nha uma relação direta e imediata com o agir, ela nos coloca numa
situação mental que nos permite um agir de um determinado modo
(imaginando estarmos certos e de acordo com a razão). Ela nos im-
pulsiona em direção ao agir, nos oferece supostas garantias (mesmo
que provisórias) para seguir crendo (Cf. PEIRCE, 1986a: 246). A
crença tende à certeza e a auto-preservação, enquanto a dúvida é um
estímulo que leva o esforço de superação (sair da dúvida para o seu
oposto, a crença). É muito importante para o fluxo da vida humana
que nossas crenças sejam de tal modo que nos sirvam para orientar
devidamente as ações, para que satisfaçamos nossos desejos. Ora,
toda crença que não pareça estar estruturada de forma a assegurar
esse resultado será rejeitada como uma falsa crença ou simplesmente
como uma não-crença: “a esse esforço denominamos investigação,
embora eu deva admitir que, por vezes, tal designação não se mostra
muito adequada” (Ibid., p. 247). A investigação humana tem por
objetivo o acordo de opiniões e crenças, pois “buscamos não apenas
uma opinião, mas uma opinião verdadeira” (Ibid.). No entanto, tão
logo alcançamos uma crença firme e já nos sentimos completamente
satisfeitos e aplacados. Mas como saber se nossa crença é verdadeira
ou falsa posto que toda vez que alcançamos uma crença (aplacando a
dúvida), sentimo-nos satisfeitos com a suposta verdade desta crença?
Qual seria a medida para avaliarmos se uma crença é verdadeira?
Seria possível nos debruçarmos sobre nossas próprias crenças e jul-
gá-las verdadeiras ou falsas? E onde estaria a disposição para colocar

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em dúvida uma crença, já que ela oferece uma satisfação e aplaca-
mento? Quais seriam os critérios de razoabilidade para avaliarmos as
crenças? “Podemos, no máximo, sustentar que buscamos uma crença
que julguemos verdadeira. Julgamos, contudo, que é verdadeira cada
uma de nossas crenças e, assim, a afirmação é mera tautologia”
(PEIRCE, 1986a: 248).
Como vemos, esse jogo dialético de crença e dúvida não é
tão simples quanto parece. Estão aí imbricados os conceitos de ver-
dade e certeza epistemológica e, portanto, as garantias do conheci-
mento e o processo da aprendizagem.
Em Peirce, deve-se tomar como verdade a opinião sobre a
qual investigações independentes convergem e todos, intersubjeti-
vamente possam concordar (Cf. MISAK, 1991: 125 seg.): é a inde-
pendência do real (ou seja, o real como independente da nossa pers-
pectiva, do nosso ponto de vista) e o inquérito que explicam porque a
convergência é a marca da verdade. Entretanto, devemos lembrar
que, para ele, a convergência de investigações não explica o real,
somente testemunha a verdade (Cf. MOUNCE, 1997: 12). Mas, co-
mo sabemos, Peirce suspeita que o espírito humano nem sempre está
investido da curiosidade inquiritiva e científica e comumente adere
sem titubeio a sua crença (“Não se pode negar que a fé sólida e imu-
tável proporciona grande paz de espírito” (PEIRCE, 1986a: 249)).
Este é o sentido de uma reflexão filosófica sobre “método de
fixação de crenças”. Ele diz que podemos firmar uma crença de di-
versos modos e seria uma impertinência egoísta objetar que é irra-
cional não aceitar que alguém tenha fé cega, sem reflexão crítica; no
máximo podemos dizer que aquele método de firmar uma crença é
diferente do nosso.
Quatro seriam, esquematicamente, os métodos de “fixação
das crenças”: o método da tenacidade (alguém abraça uma crença e,

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independente dos fatos, acontecimentos e raciocínios, a toma como
inabalavelmente verdadeira) (Ibid.: 250); o método da autoridade
(“... Onde quer que haja uma aristocracia, grêmio profissional ou
associação de classe, cujos interesses dependem ou suponha-se que
dependam de certas proposições, encontram-se, inevitavelmente,
traços desse produto natural do sentimento coletivo” (Ibid.: 251)); o
método a priori (como em Descartes) (Ibid.: 252) e o método cientí-
fico (Ibid.: 253-5). E é este último que interessa a Peirce:
“... Devemos dispor de algo que afete ou
possa afetar todas as pessoas. E embora as
maneiras de afetar sejam necessariamente
tão diversas quanto às condições
individuais, o método deve ser tal que as
conclusões últimas de todas as pessoas
sejam as mesmas.” (Ibid.: 254)
O resultado do inquérito não é simplesmente um estado mental
caracterizado por sentimento seguro. Embora uma crença estável
acarrete em “sentimento seguro”, uma crença não será dita estável ou
firme se não for estabelecida como verdadeira através do método da
ciência. Tal método sugere, em primeiro lugar, a possibilidade dos
homens e das diversas subjetividades individuais compartilharem de
uma linguagem comum e uma realidade comum (o que não é possí-
vel nos outros métodos que são etnocêntricos e subjetivistas: a ver-
dade é a verdade para aquele que crê e somente para ele). O método
da ciência supõe que “há coisas reais”, cujas características indepen-
dem por completo de nossas opiniões a respeito delas. As coisas reais
afetam nossos sentidos e participam da nossa experiência suposta-
mente de acordo com “leis regulares”. Por isso, podemos nos valer
dos órgãos da percepção para, através do uso do raciocínio lógico,
averiguar como efetiva e verdadeiramente as coisas são. Qualquer

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homem, desde que tenha experiência bastante e raciocine suficiente-
mente acerca do assunto, saberá o que é realidade (Cf. PEIRCE,
1986a: p. 253-3). Isto não impede, entretanto, que a investigação
continue e produza nossas idéias sobre a realidade.

4. A máxima do pragmatismo
Qualquer raciocínio expressa, necessariamente, um ponto de
vista ou perspectiva. Como observamos, o inquérito nasce apenas
quando o espírito humano é alimentado por uma dúvida (que impõe
certa irritação e frustração em relação a crenças e esperanças anterio-
res); o inquérito buscará remover a fonte da frustração e re-
estabelecer o estado de crença. O inquérito genuíno nasce quando
alguém sente uma real dificuldade em suas crenças (Cf. MOUNCE,
1997: 16). De qualquer modo, todo inquérito pressupõe que já tenha
ou se parta de alguma crença ou expectativa. Não se pode pairar so-
bre o vazio e iniciar um inquérito sem pressupostos, idéias e raciocí-
nios (mesmo que, como comumente acontece, sejamos obrigados a
revisar nossas crenças de partida – senão não haveria qualquer senti-
do em distinguir crenças verdadeiras de crenças falsas) (Ibid.: 15).
“Crença não é um modo momentâneo da
consciência, é um hábito mental que
permanece algum tempo e que é, pelo
menos em grande parte, inconsciente; tal
como outros hábitos, ela encontra-se (até
surgir alguma surpresa que inicia a sua
dissolução) perfeitamente auto-satisfeita. A
dúvida é de um gênero completamente
contrário. Não é um hábito, mas sim a
privação de um hábito. Ora, a privação de
um hábito, a fim de ser alguma coisa, tem
de ser uma condição de atividade errática
que, por alguma via, necessita ser

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eliminada através do hábito.” (PEIRCE,
1998a: 336-7)
A decisão sobre a forma de agir em situações dadas não tem re-
lação com qualquer informação clara sobre o que quer que seja, mas
com o hábito através do qual fomos levados a incorporar como uma
norma de conduta. A clareza de que uma norma de conduta implica
num certo estado de sedimentação dos costumes é fundamental para
Peirce.
Para termos (teoricamente ou filosoficamente) uma idéia do que
é o real devemos imaginar que nossas experiências (por exemplo, as
sensações) têm um significado e não são o contínuo amorfo e não-
nomeado do puro sentir; mas para adquirirmos e distinguirmos o
significado do experimentado é importante compreendermos em que
rede de significados isto foi apreendido, ou melhor, devemos saber
determinar o hábito no qual nossa sensibilidade está inscrita: o que
constitui um hábito depende de como nos instiga a agir, não somente
em circunstâncias suscetíveis de serem antecipadas, mas em situa-
ções quaisquer por improváveis que possamos considerá-las; depen-
de de quando e como ele nos leva a agir. Encontramos na letra peir-
ceana:
“No que diz respeito ao quando, todo o
estímulo para o agir deriva da percepção;
no que concerne ao como, todo objetivo de
uma ação é produzir um resultado sensível.
Voltamos assim a dar ao que é tangível e
admissivelmente prático o papel de raiz de
qualquer efetiva distinção  por mais sutil
que seja- possível de traçar com respeito ao
pensamento; e inexiste distinção de
significado tão refinada que possa consistir
em algo que não uma possível diferença
prática.” (PEIRCE, 1986b: 265)

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O efeito que as coisas reais produzem em nós é favorecer o nas-
cimento da crença que pode ser averiguada e compartilhada por di-
versos homens. Peirce afirmou que antes de nós empregarmos o mé-
todo da ciência para determinar a verdade de qualquer proposição
dada, nós devemos primeiro conhecer o que a proposição significa e
para aquele fim ele ofereceu um critério de significado, a máxima
pragmática, em 1878 (Cf. ALMEDER: 13):
“Consider what effects, which might con-
ceivably have practical bearings, we con-
ceive the object of our conception to have.
Then, our conception of these effects is the
whole of our conception of the object.”
(PEIRCE, 1986b: 266)
Peirce entendia que essa máxima implicava que o significado de
qualquer proposição é dada, em primeiro lugar, numa outra proposi-
ção que é, por sua vez, uma descrição geral de todos os fenômenos
experimentais concebíveis; o significado do que ele chama um “con-
ceito intelectual” ou proposição é igual às condições de sua verifica-
ção; mais precisamente, o significado de qualquer “conceito intelec-
tual” ou proposição que menciona as propriedades observáveis e os
efeitos que alguém esperara se dá sob certas circunstâncias na qual a
proposição é verdadeira. Como salienta Almeder (Cf. 1980: 14), falar
sobre o significado de um conceito é de fato falar sobre o significado
de uma sentença ou proposição, pois somente estas últimas podem
ser verificadas.
A máxima, ademais, estabelece uma ligação inseparável entre a
cognição racional e a finalidade racional. Aqui Peirce está fazendo
uma sutil distinção entre certeza prática e inquérito teorético para,
no final, postular que a certeza prática é mais fundamental que o
inquérito teorético. Pois, se partimos do inquérito teorético, somos

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“carregados com uma imensa massa de cognição já formada” (como
no método a priori ). Sem a certeza do conhecimento prático e sem a
influência sobre nossa conduta e sobre o estado do mundo real, nun-
ca poderemos saber o que está em questão nas nossas construções
intelectuais. O significado é essencialmente prático: só compreende-
mos o significado de um conceito porque adquirimos uma capacida-
de ou hábito para nos relacionarmos com o mundo real – e não ape-
nas porque contemplamos uma entidade intelectual. Estas
capacidades ou hábitos são gerais e se aplicam ao largo da nossa
experiência (Cf. MOUNCE, 1997: 13).
De acordo com a máxima de Peirce, uma afirmação é reformu-
lada como uma condicional (seria), ou seja, como o produto de al-
guma concepção que, quando aplicado àquela afirmação, nos termos
das conseqüências práticas implicadas, sustentará essa afirmação ou,
finalmente, a negará. Podemos observar que o termo “prático” goza
de igual status ao termo “concepção”. O pragmatismo peircenano é
tão sensacional (da Primeiridade-sense até a Segundidade-atual),
como intelectual (Terceiridade -inferencial).
Uma vez mais, o empirismo redescrito de
Peirce implica que o significado de
qualquer sentença tem implicações
sensórias, mas tais implicações são
ilimitadas, pois somente pode ser
parcialmente especificada em termos de um
vocabulário empírico previamente
compreendido (Cf. ALMEDER, 1980: 16).
Mas este aspecto não se confunde com o
empirismo estrito nem, muito menos com o
neopositivismo, posto que Peirce tem uma
postura declaradamente falibilista: todas as
proposições e declarações (aquelas que têm
implicações sensórias) são, em algum

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aspecto, significantes, indeterminadas no
significado e carregam um certo grau de
vaguidade e imprecisão.

5. Crença e signidade
O enunciado “Este diamante é duro” significa nada menos que
existem alguns conceitos anteriores à “dureza”; por exemplo, da
relação de coisas “duras” para coisas “moles” e do resultado espera-
do quando trazemos os dois tipos de coisas (“duras” e “moles”) para
o contato. Para conseguirmos o resultado que comprove a sua auten-
ticidade, o diamante deve ser riscado após ser friccionado vigorosa-
mente contra algum outro material como o vidro, por exemplo. En-
quanto o teste se realiza, “não existe absolutamente diferença entre
coisas ‘duras’ e coisas ‘moles’”, diz Peirce (CP: 5.403). As coisas
não têm “dureza” ou “moleza”, a não ser que sejam colocadas à pro-
va. Os olhos não enxergam como as coisas são, diria, elas enxergam
aquilo que procuram enxergar ou que inferem a partir do que obser-
vam. Para Peirce, nesta altura do seu trabalho intelectual, ele imagi-
nava que não haveria questões de fato enquanto a testagem não ocor-
resse dentro de circunstâncias atuais e individuais. Como aponta
Merrell (1997), havia em Peirce, em 1878, um pendor nominalista,
mas que se transformou profundamente em 1905, quando ele acres-
centou um corolário realista à sua máxima: o enunciado “Este dia-
mante é duro” tornou-se “Diamantes são duros” e as conseqüências
práticas tomaram um caráter mais geral.
Uma proposição hipotética contendo um antecedente condicio-
nal e um conseqüente resultado prático relaciona-se com o que ocor-
reria numa série potencial de estados de coisas não coincidentes com
o presente (atual) estado de coisas. Se, no curso inteiro de eventos
(ou testes), o que deve ocorrer fosse no futuro atualmente ocorrer,

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então poderia ser concluído que a disposição do objeto daquela pro-
posição sendo o que é, tenderia a manifestar o mesmo comportamen-
to. Contudo, desde que toda a coleção de eventos futuros permaneça
sem chances de ocorrer num mundo finito, uma absoluta verificação
da proposição não pode (para propósitos práticos) estar próxima.
Na arquitetura da teoria peirceana uma concepção ou significa-
do racional de uma palavra ou expressão se encontra não na análise
hermenêutico-etimológica, mas na influência que podemos conceber-
imaginar-projetar que essa concepção terá na conduta da vida. Temos
uma definição completa do conceito se pudermos descrever os fenô-
menos experimentais concebíveis que a afirmação ou negação de um
conceito possa implicar:
“Basta dizer que, em si mesmo, o
pragmatismo não é uma doutrina de
metafísica, nem tampouco uma qualquer
tentativa para determinar a verdade das
coisas. É apenas um método para averiguar
o significado das palavras difíceis e dos
conceitos abstratos.” (PEIRCE, 1998b:
400)
A lei ou hábito que é tacitamente expresso no significado de um
conceito ou proposição e que configura o significado de nossas pro-
posições é o que Peirce chamou de Terceiridade, ou elemento de
generalidade, continuidade ou mediação em nossa experiência. A
Terceiridade compõe o significado de todas nossas proposições pos-
to que todas as proposições expressam alguma lei em virtude do qual
o significado das afirmações (declarações) sobre aqueles objetos é
expresso (Cf. ALMEDER, 1980: 15)
Peirce havia afirmado que, no fim, é a lei mesma que é expressa
em condicionais que constituem o significado último de uma propo-
sição: o “interpretante lógico” de um signo, ou seja, o signo que é

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usado para interpretar outro signo na cadeia semiósica, é ele mesmo
significável em virtude de um outro interpretante lógico. E se nós
queremos evitar um infinito regresso dos interpretantes lógicos, nós
devemos manter a análise que o significado último é (ultimate logi-
cal interpretant) a lei mesma que os interpretantes lógicos (condicio-
nais) expressam (Cf. GOUDGE, 1969).
A máxima aparentemente oferece lugar exclusivo à Terceiri-
dade e uma direção à racionalidade controlada e desenvolvimento do
pensamento e conhecimento consciente (que é o interpretante lógico
ou final) dos quais os signos símbolos centrais e os outros signos
(ícones e índices) seriam apenas suporte (signos incompletos e primi-
tivos) e meros precursores de signos legítimos. Entretanto, as coisas
não são bem assim. De um modo ou de outro, a Terceiridade deve
ser priorizada, mas o produto da Terceiridade, contudo, deve ser
experimentalmente válido. Em outras palavras, o pensamento não
pode se divorciar da experiência atual e da interação com o “semioti-
camente real”. O que isso quer dizer? Quer dizer que a clareza do
pensamento depende dos sentimentos e sensações, do que é percebi-
do e experimentado, do mundo semiótico concreto. Portanto, a Ter-
ceiridade não esgota o entendimento. A Primeiridade e Segundidade
têm um papel também relevante nesse processo (Cf. PEIRCE, 1997).
Mas a máxima parece conter uma contradição: de um lado, ela
magnifica o crescimento de signos intelectuais (Terceiridade); de
outro lado, frases como “efeitos práticos”, “conseqüências práticas” e
“conseqüências perceptíveis e sensíveis” que aparecem em muitas
variações nos escritos de Peirce sobre pragmatismo e máxima prag-
mática envolve Segundidade (atualmente, práxis concreta) e Primei-
ridade (qualidade, possibilidade). Portanto, ele coloca a máxima
entre o contexto da prática atual no mundo concreto de sentimentos,
sensações e experiência (Cf. MERRELL, 2003: 135-148). Malgrada

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a contradição, a experiência, do ponto de vista peirceano, implica em
Primeiridade, Segundidade e Terceiridade, sem hierarquias nem pri-
vilégios.
Não há qualquer impertinência dizer que a máxima envolve
Primeiridade, Segundidade e Terceiridade. O problema começa a
surgir a partir de enunciados do tipo: “A força gravitacional dentro
de um buraco negro é infinito”. Pois bem, que conseqüências práticas
esse enunciado pode ter e como pode ser colocado à prova? Outro
exemplo é a noção corrente de textualidade nas humanidades extra-
polando a máxima pragmatista para a forma mais extrema da sua
aplicação imaginável, de acordo com o novo historicismo e etnogra-
fia, o estado corrente da teoria e crítica literária, noções pós-
estruturalistas de psicanálise e filosofia pós-analítica. É problemático
dizer, por exemplo, que os textos terão uma propensão de produzir
“alguns resultados sensíveis especificados quando atualizados” desde
que eles possam ser atualizados, interpretados numa infinita varieda-
de de caminhos. Esses e outros exemplos parecem produzir uma
falsa idéia do significado, interpretação e entendimento, tradicional-
mente concebida.
Resumindo, a indeterminação do significado em Peirce origina-
se a partir da negação da existência de individuais absolutos e da
especificidade do dado individual, da negação da referência infalível
e da tradutibilidade precisa de experiência para signo. Desde que
nenhum signo possa vir a gozar de uma conexão determinada com o
seu ‘objeto semiótico’, como um geral, está destinado a permanecer
incompleto nos termos do seu significado para uma comunidade
finita. E desde que isso não possa nunca ser completamente determi-
nado com respeito a possuir ou não cada propriedade conhecida,
qualquer predicação sobre o signo ou seu objeto permanecerá vago
no sentido que isso permanece sem possibilidade de especificar

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completamente uma determinada série de propriedades. Esse é o
ponto que desenha tanto o limite quanto a possibilidade da investiga-
ção científica, da aprendizagem e, portanto, da educação. Desse mo-
do, corre o risco de mostrar-se inconsistente, pois em algum tempo
futuro deve ter alguma propriedade que agora não tem.
O pragmatismo, como Peirce o concebe, é, ao mesmo tempo,
uma elucidação e uma descrição do processo deste inquérito vago e
ilimitado. O pragmatismo entende o inquérito como o trabalho de um
agente que perscruta o mundo, observando não “todo o mundo”, mas
um aspecto relevante do mundo à luz de algum corpo de crença, a
partir de algum ponto de vista ou perspectiva; essa mediação é o
modo como este mundo (seus aspectos e qualidades) aparece no inte-
rior de uma crença e da posição a partir da qual alguém o observa
(Cf. MOUNCE, 1997: 16).
O observador, obviamente, está no mundo e seu conhecimento é
adquirido sempre a partir desta sua inserção. O caso específico da
percepção, por exemplo, requer uma mente que não seja passiva,
mas ativa, operativa, que esteja se relacionando com o real. Posto
que nunca pensamos sem o apoio de uma crença (mesmo que possa-
mos revisá-la), nunca vemos apenas o que está lá, mas o que procu-
ramos (o que inquerimos). O que nós procuramos é determinado por
nossos interesses prioritários, necessidades e desejos.

6. O homem-signo e a aprendizagem
Como afirmamos acima, para Peirce é inconcebível um “grau
zero” do conhecimento. Não há um conhecimento independentemen-
te de qualquer conhecimento anterior e sem um raciocínio baseado
em signos. Descartes estava errado porque não temos como firmar
uma consciência de si intuitiva e não temos nenhum poder de intros-
pecção sem que recorramos à observação de fatos externos e ao pen-

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samento sígnico (Cf. PEIRCE, 1992a: 11-27). Num texto intitulado
“Some consequences of four incapacities” de 1868 (Idem, 1992b: 28-
55), Peirce procura deixar claro que:
“Não tempos qualquer poder de
introspeção, mas todo nosso conhecimento
do mundo interior é derivado, por um
raciocínio hipotético, do nosso
conhecimento de fatos externos.
“Não temos poder algum de Intuição mas,
sim, toda cognição é determinada logica-
mente por cognições anteriores.
“Não temos poder algum de pensar sem
signos.
“Não temos concepção alguma do absolu-
tamente incognoscível.” (Ibid., p. 30)
O pensamento é um tecido de estados lógico-psicológicos. Este
tecido é formado por signos ou que têm a função de signo: Peirce o
chamava de “thought-sign”. Os signos são manifestações fenomêni-
cas do que pensamos e do que concebemos. Como tal, o signo é um
elemento do processo de semiose por meio do qual o sujeito constrói
sua imagem do mundo (não no sentido de uma construção solitária e
interior; o sujeito aqui é o sujeito do processo semiósico e vem iden-
tificado com uma comunidade de inquérito ou uma comunidade cul-
tural):
“O homem cria a palavra para que
signifique expressamente o que ele deseja,
e apenas para esse indivíduo particular.
Mas, uma vez que o homem só pensa por
signos e outros símbolos exteriores, estes
poderiam retorquir: ‘tudo o que você diz o
aprendeu conosco, e sempre precisará de
uma palavra como interpretante do seu

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pensamento’. De fato, homens e palavras
educam-se mutuamente; cada aumento de
informação humana envolve e é envolvido
por um aumento de informação das
palavras.
... a palavra ou signo usada pelo homem é o
próprio homem. Se cada pensamento é um
signo e a vida é uma corrente de
pensamento, o homem é um signo; o fato
de cada pensamento ser um signo exterior
prova que o homem é um signo exterior.
Quer dizer, o homem e o signo exterior são
idênticos [...]. A minha linguagem [...] é a
soma de mim; porque o homem é o
pensamento [grifo do autor].” (PEIRCE,
CP 5.313-4)
Na idéia de homem-signo está embutida a crença de que tudo
que compõe a subjetividade humana, inclusive a emoção, a sensação,
o desejo, o juízo, a ação, deve compreendido como um fenômeno
discursivo. As dimensões do signo (primeiridade, segundidade e
terceiridade) não são estágios cronológicos nem correspondem a
fatos ontológicos; na verdade, dizem respeito ao movimento perpé-
tuo – significação e re-significação – do contínuo do mundo (mundo
que inclui o corpo do homem-signo).
A mente que engendra os pensamentos é ela mesma um signo.
Homens e signos se educam reciprocamente por que o acréscimo de
informação e conhecimento de um homem implica na expansão da
signidade. Como afirma Merrell (2002: 5 e seg.), parece “que nós
estamos condenados a usar signos”. Nossa humanidade está vincula-
da ao processo de apreensão de regras e leis que organizam o mundo
(a fixação das crenças), a interpretação contínua do real posto que ele
não é fruto de um espelhamento direto da crença e das coisas (o cará-

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ter falibilista e vago da semiose) e a ampliação do tecido simbólico
(o inquérito infinito).
Finalmente, contra a crença cartesiana de que o conhecimento se
baseia nas intuições e na auto-evidência do eu, Peirce sugere que o
conhecimento é mediado, dependente do aprendido no tecido simbó-
lico e nas crenças firmadas. O movimento do conhecimento é uma
cadeia de pensamentos, um processo de inferências flutuantes, que
fluem como um rio (Cf. MERRELL, 2003: 62-80; 2007: 55-81). Po-
rém, o começo e o final dessa cadeia não é algo que se pode perceber
com clareza (Cf. PEIRCE, CP: 7. 337).
Assim, uma perspectiva pragmatista sobre o conhecimento e a
aprendizagem nos remete a um processo criativo, falível, sem fim,
mas, sobretudo, baseado no modo como nossa mente interage com
um mundo que, de partida, não conhecemos.

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