A Psicologia em Instituições de Saúde - Aula 3

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Noções de psicossociologia e sua proposta de intervenção

A grave crise que o setor saúde no Brasil vem enfrentando nos últimos anos se expressa como
uma crise de governabilidade do sistema e das organizações de saúde, de resolutividade e eficiên-
cia. Esta crise tem impulsionado experiências inovadoras no que se refere tanto ao desenho de
novos sistemas de gestão, como ao desenvolvimento de ferramentas gerenciais. Apesar de todas as
dificuldades para desenvolver processos de mudança nas organizações, tais experiências têm possi-
bilitado a democratização dos processos decisórios, o acúmulo de conhecimentos sobre a proble-
mática específica da gestão em saúde e uma maior visibilidade dos projetos institucionais.

A abordagem da psicossociologia

A psicossociologia é uma vertente da Psicologia Social, que enfoca os grupos, organizações e


comunidades em situações cotidianas, utilizando para tal a metodologia da pesquisa-ação. Com
base em seus estudos, são produzidas explicações sobre a criação e evolução do vínculo entre os
indivíduos, e também sobre a dinâmica social e seus processos de mudança.

Enriquez (1997) compreende o fenômeno organizacional a partir de suas dimensões cultural,


simbólica e imaginária, sendo central a teoria psicanalítica de Freud, incorporando também
elementos da filosofia e sociologia contemporâneas, com destaque para o pensamento de Corne-
lius Castoriadis.

Castoriadis centra sua discussão na possibilidade de autonomia/criatividade dos sujeitos. Ressal-


tando a anterioridade dos processos sociais com relação ao indivíduo, o qual só existe no interior
de uma sociedade e de uma cultura dadas, que lhe são prévias e determinam sua conduta. Assim,
toda sociedade tende a produzir indivíduos massificados, conformados a seus valores e ideais, ou
seja, heterônomos (Enriquez, 1994a).

No entanto, também com base em Castoriadis, Enriquez sublinha que os processos sociais são
marcados por ambivalências e contradições e que nunca determinam totalmente o comportamento
do indivíduo. Enfim, as sociedades e os indivíduos não são totalmente heterônomos. Todo indivíduo
pode demonstrar uma parcela de originalidade e autonomia.

Do referencial psicanalítico, a psicossociologia destaca os elementos imaginários presentes e


determinantes nos processos sociais e organizacionais. Trata dos processos de identificação, de
projeção, de culpabilização, de formação de fantasmas que atravessam a vida dos grupos (Enri-
quez, 1997).

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O que é inovador, na perspectiva psicanalítica, e que vem representar uma ruptura com o pensa-
mento psicológico e mesmo filosófico precedente, é o deslocamento do lugar da verdade do sujei-
to, apontando como ilusória a ideia de identidade pessoal ou unidade do sujeito e afirmando que
os indivíduos são compostos de uma pluralidade de pessoas psíquicas, introduzindo a ideia de um
sistema Inconsciente (Enriquez, 1994b). A psicanálise aponta, assim, o descentramento do sujeito,
determinado pela sua cisão psíquica, pela convivência de dois registros simultâneos: o da consciên-
cia e o do inconsciente, regidos por processos e lógicas distintas, pela pressão de pulsões antagôni-
cas, sobredeterminando seu comportamento.

Dessa forma, o homem passa a ser visto como sujeito clivado, não integrado, atravessado por
falhas, desejos, acompanhado por uma inquietante estranheza. Nessa perspectiva, ele estabelece
vínculos de identificação com numerosos sujeitos e grupos em um processo que perpassa toda a
sua vida.

A incorporação do referencial psicanalítico vai permitir reconhecer e lidar com os fatores incons-
cientes na vida social e também organizacional, compreendendo-os como fenômenos não simples-
mente desconhecidos, mas que atuam de forma indomável, obedecendo a outros processos e prin-
cípios (Enriquez, 1997).

A psicanálise vai afirmar, portanto, que existe uma outra cena (a do imaginário, a do inconscien-
te) que é operante, que afeta a vida psíquica dos indivíduos e grupos. A psicossociologia teria por
objetivo, nas palavras do próprio Enriquez, "...elucidar a (ou as) significação(ões), talvez mesmo os
sentidos divergentes (ou não-sentidos) que organizam o funcionamento da outra cena" (Enriquez,
1997:29).

Essa abordagem nos obriga a considerar outros elementos, distintos daqueles tradicionalmente
tratados pelas teorias organizacionais, para se compreender a possibilidade de ação cooperativa e
de desencadeamento de processos de mudança nas organizações. Os processos grupais, a constru-
ção de seu imaginário social, de seu sistema de valores comum (representações) e seus respectivos
mecanismos de identificação e idealização são elementos centrais.

A identificação é um processo psíquico através do qual um sujeito assimila características do


outro, adotando-o como modelo e transformando-se. A personalidade se constitui por sucessivas
identificações (Laplanche & Pontalis, 1986). Esse processo representa um estabelecimento de um
laço (investimento) afetivo do indivíduo com o outro. Nesse processo, como observa Freud (1976),
há uma espécie de "enriquecimento" do ego com as propriedades do objeto de investimento amoro-
so. Uma forma importante de identificação reconhecida por Freud (1976), e que constitui a base
dos laços que unem os membros de um grupo, é a que se dá por meio da percepção de uma quali-
dade comum partilhada com outras pessoas e é comandada pelo vínculo que liga cada indivíduo
ao líder do grupo.

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A idealização é um processo de identificação, no qual as qualidades e o valor do objeto são
elevados à categoria de perfeitos (Laplanche & Pontalis, 1986). É um processo em que ocorre uma
tendência de falsificação do julgamento sobre a realidade. Pode ser descrita como uma "fascinação"
ou "servidão" pelo objeto (Freud, 1976). Ao contrário da identificação, na idealização ocorreria,
segundo Freud (1976), um empobrecimento do ego, que entregou-se ao objeto. Para Enriquez
(1994c), a idealização é o mecanismo que permite a toda a sociedade instaurar-se e manter-se, e a
todos os indivíduos viverem como seus membros, pois a possibilidade de constituição de qualquer
pacto social pressupõe algum nível de idealização sobre o coletivo. Esses processos de idealização
implicam, por um lado, uma agressão à singularidade dos indivíduos, que se submetem ao objeto
idealizado sem interrogações, mas não deixam de representar também um papel defensivo (Laplan-
che & Pontalis, 1986), produzindo certa tranquilidade e estabilidade psíquica, protegendo os indiví-
duos contra suas pulsões destrutivas e os seus fantasmas de desintegração.

Esses processos também se verificam no âmbito específico das organizações. Para construção de
um projeto comum, é necessário que as representações sobre a organização sejam não apenas inte-
lectualmente pensadas, mas afetivamente sentidas. "Não se trata unicamente de querer coletiva-
mente; trata-se de sentir coletivamente..." (Enriquez, 1994c:57). Esse sentimento, fonte do compor-
tamento grupal, só pode emergir se ligado a um sistema de idealização, fruto de processos cons-
cientes e inconscientes. O processo de idealização é o que dá "consistência, vigor e aura excepcio-
nal" tanto ao projeto quanto aos indivíduos, possibilitando sair de sua cotidianidade e partilhar da
mesma ilusão (Enriquez, 1994c:57). Todavia, uma idealização maciça da organização pelo indiví-
duo tem como resultado a perda de autonomia e criatividade dos indivíduos e da própria capacida-
de de resposta das organizações.

Assim, os grupos e as organizações enfrentam um problema básico, que é o conflito entre o


desejo de cada um dos indivíduos de ser reconhecido em sua originalidade e especificidade, de
fazer-se aceito em sua diferença e, por outro lado, de ser igualmente reconhecido como um dos
membros do grupo e da organização, portanto semelhante aos seus pares, formando um corpo
social e não um aglomerado de indivíduos. A forma como uma organização tratará esse conflito
imanente pode levar, em seus extremos, a duas alternativas: à massificação, na qual a falta de inova-
ção e inventividade predominam, conformando um projeto comum de caráter monolítico; e à dife-
renciação, em que o projeto comum admite a expressão de desejos variados e é fruto de argumenta-
ções e negociações, sendo a cooperação originada da aceitação e do tratamento dos conflitos. Con-
tudo, essa segunda alternativa, difícil de ser constituída pelo nível de maturidade que exige, pode
levar à maximização das contradições e à própria dissolução do grupo ou à constituição de subgru-
pos, consumindo suas energias na tentativa de elaboração de seus conflitos. Esse quadro aproxima-
-se da chamada "organização política", no dizer de Mintzberg (1989), configuração em que a cons-
trução de um projeto comum se torna praticamente impossível.

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A essa problemática, podem-se acrescentar, considerando-se especificamente a atual conjuntura
de desvalorização do setor público e de enfraquecimento do projeto de Reforma Sanitária no Brasil,
importantes limitações ao desenvolvimento de processos de idealização envolvendo as organiza-
ções públicas de saúde.

À luz dessas questões e focalizando mais especificamente a problemática organizacional, desta-


cam-se, na visão da psicossociologia, elementos que articulam a instância política/social às rela-
ções cotidianas, lutas e estratégias dos sujeitos.

Para a psicossociologia, "... a organização aparece assim como uma modalidade específica e tran-
sitória de estruturação e encarnação da instituição" (Enriquez, 1997:81). Na verdade, uma institui-
ção não existe fora das organizações concretas que ela produz e dá sentido. Assim, se a instituição
é o lugar do poder, a organização será o lugar dos sistemas de autoridade (da repartição de compe-
tências, de responsabilidades). Dito de outro modo, a organização "... é a transmutação em tecnolo-
gia, em 'quinquilharia', da Instituição" (Enriquez, 1997: 81). O termo tecnologia se refere aqui tanto
às máquinas, quanto às metodologias e aos procedimentos de trabalho, que têm por objetivo estabi-
lizar e canalizar os desejos e os projetos dos diversos grupos e sujeitos na organização.

Nessa perspectiva, Enriquez (1997) recupera a discussão de Alain Touraine sobre a "racionalidade
da organização" e privilegia em sua análise a tensão entre o imperativo de rendimento ótimo da
máquina e a resistência à reificação dos seres humanos e grupos sociais. Essa compreensão adquire
particular importância no momento atual, pois observa-se a utilização abundante de métodos
modernos e instrumentos de gestão que tendem a reforçar o aspecto maquinista das organizações
e a moldar uma concepção limitada e igualmente simplista dos processos de mudança.

Ao considerar as organizações como estruturações que visam colocar a ordem em toda parte,
Enriquez (1997) nos ajuda a melhor compreender a complexidade dos processos de mudança nas
organizações. A partir de uma visão psicanalítica, as organizações são o lugar da compulsão à repe-
tição, característica que expressa uma forma de proteção contra algumas angústias fundamentais
que atravessam os grupos e as relações intersubjetivas nas organizações.

Enriquez (1997) apresenta uma concepção geral da organização caracterizando-a como um


sistema cultural, simbólico e imaginário. Toda organização dispõe de uma estrutura de valores e de
normas que condicionam seus membros a uma certa forma de apreensão do mundo e de orienta-
ção de suas condutas. Trata-se de representações sociais historicamente constituídas, resultando na
conformação de determinada cultura, que se traduz, por exemplo, "(...) em atribuições de postos,
em expectativas de papéis a cumprir, em condutas mais ou menos estabilizadas, em hábitos de pen-
samento e ação (...)" (Enriquez, 1997:33). Tais representações encontram uma correspondência, do
ponto de vista psíquico, sobre os sujeitos que compartilham determinadas imagens sobre as organi-
zações das quais fazem parte - um imaginário social, que deve ser mais ou menos interiorizado por
seus membros (Enriquez, 2000).

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A organização, nessa perspectiva, é compreendida como uma microssociedade por excelência,
e por isso atravessada pelos mesmos problemas que caracterizam o vínculo social (Enriquez, 2000).
Toda vida em sociedade é geradora de angústias. Do mesmo modo, a organização luta - a rigor, os
indivíduos e grupos em uma organização lutam - contra várias angústias. O medo do "informe", do
caos, é uma delas. Toda a organização se apresenta como "formação" e luta contra a ameaça de um
caos desorganizador. Assim, o espontâneo, o imprevisto, os movimentos criadores são vividos, em
sua maioria, como "desordens". Do mesmo modo, a novidade, o desconhecido, podem ser vividos
como "fissura".

Outra fonte de angústia, contra a qual as organizações procuram se defender, são as pulsões que
atravessam a vida psíquica dos indivíduos e têm seus efeitos na vida social e organizacional. Pulsão
é um dos conceitos mais difíceis da Teoria Psicanalítica, tendo sido revisto em vários momentos da
obra freudiana. Freud reconheceu a teoria das pulsões como um campo impreciso, representando
a mitologia da própria psicanálise. Nos limites permitidos por este trabalho, é possível apenas
observar que se trata de um processo dinâmico, que pode se caracterizar como um impulso, carre-
gado de energia e voltado para um objetivo, que em última instância é suprimir um estado de
tensão. As pulsões apresentam um caráter limítrofe entre o somático e o psíquico. A pulsão é um
representante psíquico de excitações provenientes do corpo e encontra-se na origem do funciona-
mento psíquico inconsciente do homem (Laplanche & Pontalis, 1986; Roudinesco & Plon, 1998).
A teoria freudiana sempre apresentou as pulsões de forma dualista e a distinção mais importante é
entre pulsão de vida e a pulsão de morte, fundamentais na dinâmica psíquica e na organização da
vida social.

As organizações buscam canalizar a pulsão de vida (ou todos os impulsos criativos dos indivídu-
os) no sentido do trabalho produtivo e dos objetivos organizacionais. Assim, "... adotam como valo-
res sempre a eficiência, e às vezes o dinamismo e a mudança. Tentam então pôr em funcionamento
o processo de ligação favorecendo a coesão e a harmonia ..." (Enriquez, 1997:126).

No entanto, a pulsão de vida só tende a ser aceitável quando se dirige para a coesão da organiza-
ção. Ameaçada pelo fantasma de uma invasão da afetividade e de condutas irracionais, a organiza-
ção, de certo modo, impede a pulsão de vida de poder se desenvolver. Assim, paradoxalmente, a
criatividade tão reclamada e especialmente valorizada pela novas abordagens gerenciais acaba,
muitas vezes, refreada.

Além disso, as organizações, enquanto lugar da ordem, da reprodução, também favorecem a


expressão da pulsão de morte (enquanto compulsão à repetição), desenvolvendo tendências à
homogeneização, à massificação dos indivíduos, à inércia, enfim, à resistência à mudança.

Por outro lado, as organizações tentam se defender contra os impulsos de destruição (outra
expressão da pulsão de morte) que poderiam atacar seu funcionamento interno (assim, por exem-
plo, tentam limitar a competição interna, limitando poderes, definindo funções e regras de funcio-
namento).

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Retomando a perspectiva trabalhada por Enriquez, a "organização se instaura, funciona e se esta-
biliza no interior de um campo pulsional e passional" (Enriquez, 2000:19).

O exposto até aqui permite destacar que uma das principais contribuições da psicossociologia à
compreensão dos processos de mudança organizacional é o seu entendimento como um aconteci-
mento que, antes de ser material, objetivo, é psíquico e, portanto, subjetivo.

"O psiquismo (o mental) e sua dinâmica são, então, por excelência, o lugar da mudança, da pos-
sibilidade de desligamentos e de novas combinações. As condições materiais, objetivas, só têm valor
de mudança quando elas são apropriadas mentalmente ao nível de suas significações" (Levy,
1994a:116).

Na perspectiva da psicossociologia, a mudança se diferencia de um processo evolutivo, de cres-


cimento ou reprodução. Ela se apresenta de modo descontínuo, pressupondo rupturas, reorienta-
ções bruscas, redirecionamentos. Mudar é escapar à lei da repetição, é introduzir o inédito, é se
abrir a uma história, à aventura (Lévy, 1994a).

A mudança exige então indivíduos criativos, sujeitos autônomos, para resgatar a perspectiva de
Castoriadis. As questões abordadas neste texto indicam o equacionamento entre reprodução e cria-
tividade como principal desafio a ser enfrentado nos processos de gestão. Os processos de mudan-
ça devem poder promover a inserção de indivíduos criativos em um projeto organizacional (para o
qual algum nível de idealização é necessário), sem, contudo, cair na armadilha do controle sutil de
seus pensamentos e comportamentos através de uma idealização maciça da organização.

É preciso reconhecer, portanto, que o dilema principal ao qual as organizações estão irremedia-
velmente imersas é o de, simultaneamente, favorecer a construção de uma identidade coletiva e o
exercício da singularidade e da autonomia dos sujeitos.

Fica evidente, pela análise da problemática organizacional aqui realizada, que o indivíduo se
liga à organização por vínculos não apenas materiais, mas sobretudo afetivos e imaginários, e que
as organizações, embora não criem uma estrutura psíquica, utilizam-se dela. Assim, toda organiza-
ção é objeto de transferência, não só espontânea, mas também induzida, de afetos, emoções, quali-
dades e atitudes, podendo propiciar a satisfação de necessidades narcísicas dos indivíduos. (Freitas,
1999).

Neste sentido, a tão esperada adesão dos indivíduos ao projeto organizacional pode ser o resulta-
do de dois tipos de processos que, na realidade, se apresentam combinados e que são decorrência
da produção de um sistema imaginário pela organização. No primeiro caso, a organização se apre-
senta como a instância central capaz de responder aos desejos narcísicos de reconhecimento e
potência dos indivíduos, assegurando proteção contra quebra de suas identidades. Desse modo,
tende a substituir o imaginário do indivíduo pelo seu próprio, apresentando-se como superpodero-
sa e nutriz, aprisionando-o em um "imaginário enganoso" (Enriquez, 1997), que o impossibilita de
produção autônoma e criatividade.

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Outra possibilidade é a organização engendrar o que Enriquez (1994a) denomina de imaginário
motor, favorecendo a criatividade e sendo capaz de conviver com mudanças e rupturas. Um imagi-
nário que comporta a espontaneidade, a experimentação e o pensamento questionador.

Por ser este um imaginário que abre espaço para o questionamento da própria organização e de
suas regras, ele é muito menos desenvolvido que o primeiro (Freitas, 1999). Considerado ainda o
contexto de constantes pressões em que as organizações operam, é necessário desde já reconhecer
as dificuldades enfrentadas para a instauração de tal processo em seu âmbito. De outra parte, cabe
perguntar se a criatividade, o processo de aprendizagem permanente, o aprimoramento contínuo,
enfim, o conjunto de inovações e mudanças de que as organizações atualmente necessitam pode
efetivamente ser alcançado senão através de tal sorte de arranjo social e humano.

A intervenção psicossociológica

A organização, como apontamos anteriormente, é o lugar da resistência à mudança, sustentando


o pensamento racional e consciente, podendo tornar-se uma estrutura de "solidificação dos seres e
das coisas", facilitando, assim, mais a expressão da pulsão de morte que de vida. Entretanto, ao
mesmo tempo a mudança lhe é indispensável. A organização apresenta, na verdade, desejos con-
trastantes, apontando dessa forma que "... zonas de instabilidade podem descerrar-se" (Enriquez,
1997:290). É exatamente sobre estas zonas que a intervenção vai se concentrar, situando-se na
tensão entre resistência e mudança.

O trabalho da psicossociologia será justamente sobre as resistências, que também podem ser o
lugar da mudança. É um trabalho de análise nos níveis organizacional e grupal que busca mudan-
ças não apenas nas estruturas, mas igualmente nos hábitos, atitudes, mentalidades e nos processos
psíquicos. O material privilegiado sobre o qual se fará o trabalho de intervenção psicossociológica
são as palavras, as representações, as condutas, enquanto efeito de processos inconscientes e inter-
subjetivos que revelam a organização como espaço de confronto entre sentimentos e fantasias pola-
res, como a angústia e a alegria, os temores de desmembramento e os desejos de onipotência, a
identidade individual e coletiva (Enriquez, 1997).

Enriquez (1997) define esse trabalho como um encaminhamento progressivo de sentido, sentido
a ser descoberto e construído, com a emergência de novas falas. Tal trabalho se apoia em indaga-
ções e, por isso, ele deve permitir a emergência de novos conflitos, provocar uma certa "fratura" no
modo de funcionamento da organização.

Essa perspectiva busca questionar, na vida organizacional, o desejo de constituição de um


mundo sem conflitos, de uma imagem monolítica da organização, que responde aos anseios de
segurança dos sujeitos.

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O trabalho de intervenção psicossociológica se inicia a partir da própria análise da demanda,
procurando reconstituí-la baseando-se em seus sentidos manifestos e latentes, e se centra na discus-
são de problemas concretos da organização, em grupos de trabalho que visam à livre expressão das
pessoas, ao favorecimento de um processo de auto-organização dos vários grupos e sua influência
sobre os rumos da organização.

Essa proposta, embora esteja centrada na abordagem psicanalítica, não deixa de valorizar a
expressão consciente dos desejos e vontades dos indivíduos e grupos na organização, não preten-
dendo substituir de imediato sua lógica pela busca de um sentido inconsciente que desvelaria a
"verdade" de suas falas e ações, mas ir permitindo a emergência de novas significações que resul-
tam da análise desse material (Enriquez, 1997).

A intervenção psicossociológica pressupõe, simultaneamente a consideração das estruturas


psíquicas, e, portanto de suas exigências pulsionais, e das estruturas sociais, com suas dimensões
tanto simbólica, quanto política (Nasciutti, 1992). Nessa perspectiva, Enriquez (1997) propõe a
articulação de diferentes instâncias de análise das organizações, envolvendo suas dimensões
social/histórica, institucional, organizacional, grupal, individual e pulsional. Assim, consideram-se,
nas intervenções, tanto as experiências vividas pelos indivíduos e grupos, seus sentimentos e repre-
sentações que fazem de si mesmo e da organização, como suas estratégias enquanto atores sociais.

Dessa forma, por exemplo, a interrogação sobre a estrutura e a repartição de poder não se esgota
numa perspectiva funcional e política, mas avança para uma análise das representações e fantasias,
por vezes contraditórias, que "... cada indivíduo, cada grupo tenha da organização, de seus modos
de identificação com aquela (e as razões das identificações massivas como das identificações
distanciadas), projeções que ele pode ser levado a produzir (projeções que instauram a organiza-
ção como perseguidora ou, ao contrário, como o lugar de realização de si mesmo, como um
elemento de desenvolvimento)" (Enriquez, 1997:248).

Nesse sentido, a intervenção psicossociológica deve contribuir para que cada um reflita sobre o
seu lugar (real e imaginário) na organização e encontre um novo lugar, mas, ao mesmo tempo, deve
permitir a interrogação sobre os vínculos que cada um estabelece com ela. Por que a organização
nos prende? Por que nos apegamos (ou não) a ela? (Enriquez, 1997).

Essa perspectiva de análise das organizações não deve ser confundida com um processo de
psicanálise de grupo nem tampouco com análises individuais no espaço organizacional. Os aportes
da psicanálise só são pertinentes para a elaboração das relações que os indivíduos e os grupos esta-
belecem com a organização e com o poder e para o enfrentamento dos problemas operacionais da
organização.

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No que diz respeito mais particularmente ao papel do consultor que intervém em uma organiza-
ção valendo-se da perspectiva psicossociológica, cabe chamar a atenção para a necessidade de um
investimento afetivo. Esta perspectiva fica muito bem ilustrada na visão de André Lévy: "... penso
que só é possível realizar um trabalho que valha a pena com grupos e organizações quando se tem
um interesse afetivo verdadeiro pelas pessoas que fazem parte deles; penso que uma atitude volun-
tária e falsamente objetiva, desapaixonada, científica, pode ser apenas uma máscara para o despre-
zo profundo com relação ao outro e representar apenas ações tecnocráticas a serviço de um desejo
de poder mais ou menos oculto" (Lévy, 1994b:175).

Outra característica do consultor, na visão de Enriquez (1997), é não se situar em um único lugar.
O consultor intervém tanto como analista, quanto como expert, perito no campo organizacional.
Não há um setting permanente. O autor também assinala a necessidade de o consultor "... trabalhar
com o conjunto do sistema cliente e não com alguns de seus representantes" (Enriquez, 1997:263).

Nessa mesma perspectiva, Lévy (1994a) observa que o consultor não deve estar ligado a nenhum
grupo em particular na organização, a não ser transitoriamente. Seu trabalho pode evoluir entre
pessoas e grupos e não se restringir à análise de reuniões, mas incluir entrevistas, observações,
pesquisa-ação etc. Essa condição é necessária, pois a organização, em seus mecanismos de defesa
e resistência à mudança, tende a enquadrar e restringir o trabalho de análise em um lugar determi-
nado, buscando mantê-lo sob controle e, com isso, esvaziando-o de seu significado.

Acima de tudo, o trabalho do consultor deve permitir à organização se perceber como plural e
não como um todo homogêneo, compacto, sendo atravessada por conflitos, divisões e alianças.
Essa visão se contrapõe ao "fantasma do Uno" que atravessa toda a organização, constituindo um
imaginário da organização sem fissuras.

Do exposto até aqui é possível concluir que a intervenção psicossociológica nem sempre irá
corresponder às expectativas iniciais daqueles que esperam das intervenções resultados de curto
prazo, que estão muito mais ávidos por respostas do que por perguntas e que têm muito pouca tole-
rância para com a incerteza.

A avaliação dos resultados da intervenção psicossociológica implica considerar o alto grau de


incerteza e ambiguidade dos processos sociais, bem como a impossibilidade de se garantir controle
sobre os processos de intervenção. Nesse sentido, "... é inevitável que as intervenções tenham resul-
tados ambíguos que podem ser interpretados de maneira muito diferentes, segundo o molde de
análise utilizado. Nós queremos determinadas coisas e damos origem a outras. O social é feito
assim" (Enriquez, 1997:288).

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Sublinhando que as mudanças sociais levam tempo para serem amadurecidas e para se apresen-
tarem como necessárias, traduzindo-se em condutas concretas, Lévy (1994a) observa que é exata-
mente o trabalho sobre as resistências e a pulsão de morte que abrirá uma porta essencial para a
mudança. São esses aspectos da prática de análise psicossociológica que lhe conferem identidade
e a diferenciam das abordagens tecnológicas ou manipuladoras da mudança social.

Em síntese, o objetivo da intervenção psicossociológica pode ser considerado como o de "...


ajudar uma instituição que se percebe em estado de crise a se transformar progressivamente numa
instituição na qual as capacidades criativas possam superar os conflitos" (Enriquez, 1997:263).

Concluindo, trata-se de um processo vivo, que deve possibilitar o surgimento de novas significa-
ções, evitando a cilada do "pensamento herdado", das ilusões sobre a organização.

Referências do texto:

ENRIQUEZ, E., 1994a. O papel do sujeito humano na dinâmica social. In: Psicossociologia: Análise
Social e Intervenção (A. Lévy, A. Nicolaď, E. Enriquez & J. Dubost, org.), pp. 24-40, Petrópolis:
Editora Vozes.
ENRIQUEZ, E., 1994b. A interioridade está acabando? In: Psicossociologia: Análise Social e Inter-
venção (A. Lévy, A. Nicolaď, E. Enriquez & J. Dubost, org.), pp. 41-55, Petrópolis: Editora Vozes.
ENRIQUEZ, E., 1994c. O vínculo grupal. In: Psicossociologia: Análise Social e Intervenção (A. Lévy,
A. Nicolaď, E. Enriquez & J. Dubost, org.), pp. 56-69, Petrópolis: Editora Vozes.
ENRIQUEZ, E., 1997. A Organização em Análise. Petrópolis: Editora Vozes.
ENRIQUEZ, E., 2000. Vida psíquica e organização. In: Vida Psíquica e Organização (P. Motta & M.
E. Freitas, org.), pp. 11-22, São Paulo: Editora Fundação Getúlio Vargas.
FREITAS, M. E., 1999. Cultura Organizacional: Identidade, Sedução ou Carisma? São Paulo: Editora
Fundação Getúlio Vargas.
FREUD, S., 1976. Psicologia de Grupo e Análise do Ego. Rio de Janeiro: Editora Imago.

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