Cap 10

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Mushoku Tensei: Reencarnação do

Desempregado – Vol. 20 – Cap. 08 – A Casa


Latria
A casa da família de Zenith era enorme; muito parecida com o que havia imaginado. Tinha um
enorme portão ornado por estátuas de leões em cada lado. Uma longa passarela de
paralelepípedos ia do portão até a porta da frente, com uma fonte bem no meio e sebes aparadas
em todos os tipos de formatos estranhos. Atrás de tudo isso, havia uma bela mansão branca. Se
procurasse por “mansão de nobres” na enciclopédia, esta seria a imagem.

Estávamos na seção dos nobres do Distrito Residencial, numa rua repleta de casas de pessoas
particularmente abastadas. Parecia bem semelhante ao distrito residencial mais rico de Asura.

Mas, cara, esse lugar era gigantesco. A casa de Cliff me pegou de surpresa, mas a casa da
família Zenith era perfeita, exatamente como imaginei que seria. Afinal, eu tinha uma igual a
esta no Reino Asura. Não quero me gabar, pois foi Ariel quem me deu, mas era mais ou menos
deste tamanho. Essa daqui tinha uma aparência mais limpa, mas se estivermos falando de chamar
a atenção, a minha era igualmente chamativa, digamos assim.

Portanto, não tinha nada a temer. Eu não estava com medo, ok?

— Hahhh… — suspirou Aisha ao meu lado. Ela olhou para a mansão com desdém.

Neste momento, nós dois estávamos esperando em frente ao portão. Eu estava emplumado
com roupas nobres que havia trocado na casa de Cliff, enquanto Aisha estava com sua roupa de
empregada. Zenith nos acompanhou, vestida com o mesmo tipo de roupa elegante que eu.

Pedimos a um homem na entrada que parecia estar guardando o local para nos receber. Tentei
lhe mostrar a carta, mas ele voltou correndo para dentro da mansão assim que viu o rosto de
Zenith. Ainda estávamos esperando por ele.

— Então, irmãozão, só estou lhe avisando, mas a vovó não é uma pessoa muito divertida de se
conviver.

— Sim, ouvi você na primeira vez.

Seus avisos estavam me afetando. Ainda assim, acreditava que estava vacinado contra pessoas
horríveis. Afinal, eu mesmo fui um pesadelo em minha vida passada; praticamente qualquer
pessoa seria um doce em comparação.

Então, sim. Estava pronto.


Mesmo que fosse alguém que não suportasse, ainda poderíamos conversar sobre a condição de
Zenith e lamentar o que perdemos juntos. Qualquer coisa além disso pode ser demais para se
esperar, mas seria o suficiente.

— Ah.

Saí de meus pensamentos e encontrei um grande contingente de homens e mulheres saindo da


mansão. Não era apenas o guarda de antes; havia pessoas com uniformes de mordomo e
empregada. Cerca de vinte pessoas, no total, estavam marchando em nossa direção.

As empregadas se alinharam em ambos os lados da passarela além do portão. Em frente a elas,


um mordomo nos encarava, ereto como uma vara. Era a formação exata da recepção de
convidados que se veria na casa de uma pessoa rica de algum desenho animado. Também faziam
isso o tempo todo no Reino Asura.

Quando o guarda abriu a porta, o mordomo inclinou a cabeça profundamente e as empregadas


logo fizeram o mesmo.

— Senhora Zenith, nós a recebemos humildemente em casa. Todos nós, em nossos corações,
ansiávamos por este dia.

Suas cabeças estavam todas inclinadas para Zenith. No entanto, Zenith estava tão sem emoção
como sempre; seus olhos nem sequer focalizaram os servos.

— Agora, Senhor Rudeus, a senhora está esperando. Por aqui, por favor.

— Muito bem, obrigado.

Sem se deixar abater pela falta de resposta de Zenith, o mordomo me cumprimentou antes de
se virar para me guiar para dentro da mansão. Ele não disse uma palavra a Aisha. Talvez todas as
pessoas em trajes de empregada eram empregadas domésticas aos olhos dele? Talvez eu devesse
ter pedido para a Aisha usar outra coisa; algo que a fizesse se parecer um pouco mais com uma
irmãzinha, como um vestido com babados ou algo assim.

Enquanto pensava nisso, atravessei a passarela e fui levado para o saguão da mansão. O
interior era, sem surpresa, decorado com móveis luxuosos; nada que se compare ao que vi no
castelo real de Asura ou no castelo de Perugius, é claro, mas pelo menos era tudo de classe.

— Agora, então, por favor, esperem aqui.

Por fim, fomos conduzidos à sala de recepção. Dentro havia um par de sofás de frente um para
o outro; um vaso de flores no canto; uma empregada encostada na parede…

Considerando que todos estavam “aguardando” por este dia, com certeza foi estranho notar
que não havia sinal da própria Madame, mas talvez o que ela estivesse esperando era ouvir que
chegamos bem e, agora que tínhamos chegado, queria se refrescar antes de receber seus
convidados. Descobriremos qual das opções é a correta em breve. Sentei Zenith e me dispus ao
lado dela. Olhei de relance para Aisha e vi que ela ainda estava de pé ao lado do braço do sofá.
— Aisha, sente-se você também.

— Hã? Mas, acho que devo ficar de pé…

— Você é minha irmã, portanto, deveria ser uma convidada aqui. Venha e sente-se.

— Hum… Ok.

Aisha seguiu minha sugestão e se sentou ao lado de Zenith.

—…

E por um tempo, nós três esperamos, sem trocar uma única palavra. Momentos como esse me
faziam lembrar de quando fui à entrevista na casa de Philip. Sauros entrou na sala, gritou a
plenos pulmões e saiu sem mais alarde. É um pouco estranho ver como isso é semelhante.
Esperava que hoje fosse terminar tão bom quanto aquele dia…

Agora, como lidei com Sauros mesmo? Se bem me lembro, tomei a iniciativa de me
apresentar primeiro. Achei que o fato de se apresentar primeiro era educado em qualquer mundo.
Vamos tentar isso novamente hoje.

— Por aqui, senhora.

Quando terminei de pensar nisso, a porta se abriu. Uma senhora idosa, de aparência tensa, com
os cabelos loiros e mechas brancas, entrou na sala. Seguindo-a estava um homem de meia-idade,
corpulento e de bigode, vestindo o que parecia ser um jaleco de laboratório. Tendo certeza de que
aquele cara não era a Madame; imediatamente me levantei, ergui a mão à altura do peito e fiz
uma saudação casual.

— É um prazer inigualável conhecê-la, vovó. Meu nome é Rudeus Greyrat. Eu vim hoje para
poder…

—…

A senhora idosa nem sequer olhou para mim. Ela ignorou por completo minha apresentação e
foi direto dar uma boa olhada em Zenith, dando especial atenção para o rosto dela,
inspecionando-a a um passo de distância. Eu tinha imaginado um reencontro emocionante… mas
a expressão dura como pedra de Claire destruiu minha fantasia.

Finalmente, Claire expirou, falando em um tom quase gélido em seguida: — Esta é, de fato,
minha filha. Ander, por favor.

Com isso, o homem de bigode deu um passo à frente. Ele passou por mim, pegou a mão de
Zenith e a levantou. Então, levantou sua própria mão até que estivesse diante do rosto vazio de
Zenith…

— Calma aí! Espere um pouco! Se importa em me dizer o que está acontecendo?! —


Apressei-me em interromper.
— Ah, minhas desculpas. Sou o médico pessoal da Sra. Claire, Ander Berkeley.

— É um prazer conhecê-lo. Sou Rudeus Greyrat. Você estudou medicina?

— Sim. Originalmente, estava aqui para fazer um check-up rotineiro na Madame Claire, que
me pediu para que desse uma olhada em sua filha enquanto tinha a oportunidade…

Entendo, então foi isso. A vovó Claire deve ter ficado um pouco abalada ao ver Zenith assim.
Entendia perfeitamente.

— Bem, se esse for o caso, então, por favor, cuide de…

— Quem lhe deu permissão para se sentar?!

Quando estava prestes a dizer “minha mãe”, uma voz repreensiva veio de trás de mim. Fiquei
imediatamente tenso com o choque, mas me virei para ver que Aisha havia se levantado
freneticamente do sofá.

— Uma simples criada não fica sentada enquanto seu mestre está de pé! Você não foi criada
em um celeiro!

— Minhas desculpas! — gaguejou Aisha, abaixando a cabeça apesar de estar à beira das
lágrimas.

Calma aí. Espera um pouquinho. Como é que é? Preciso recuperar o fôlego. Tudo isso estava
acontecendo muito rápido. E Claire estava me tratando como se fosse invisível? Eu também
poderia ter começado a chorar.

— Eu disse a ela para se sentar — afirmei com firmeza. Isso fez com que Claire se virasse
lentamente e fixasse seu olhar em mim. Droga. Talvez eu não quisesse a atenção dela… Bem,
agora é tarde demais. Está na hora de aproveitar.

— Ela pode estar usando um uniforme de empregada, mas, antes de tudo, é minha irmã.
Pedi-lhe que cuidasse das necessidades de nossa mãe, então ela simplesmente escolheu algo
prático para esse tipo de trabalho. Receio que seja inaceitável tratá-la como “apenas” uma
empregada.

— A pessoa se veste para a posição que merece. Nesta casa, aqueles que se vestem como
empregadas serão tratados como empregadas.

Que se danem essas regras da casa em particular.

— Bem, então, como você trataria alguém com roupas como as minhas?

— Trataria adequadamente, é claro.

— Devo presumir que sua ideia de tratamento “apropriado” é a completa desconsideração?


Enquanto falava, abri os braços e olhei para minha roupa. Eu não estava usando nada
estranho… pensei. Onde consegui isso? Provavelmente em algum lugar de Sharia… Deveria ter
usado as roupas que comprei no Reino de Asura? Não, aquelas eram para festas…

— Não, eu… adiei minha resposta… porque o senhor era um homem que eu não conhecia,
que chegou e me chamou de “vovó”. Não houve escassez de vigaristas fazendo o mesmo nos
últimos anos. Primeiro, determinaria se você valeria meu tempo verificando a verdade.

— Ah… Bem.

Ei, se era de conhecimento geral que uma grande mansão de luxo tinha uma filha fugitiva, não
era de surpreender que as pessoas tentassem se infiltrar alegando serem parentes perdidos. Eu
poderia ter me apresentado, mas não apresentei nenhuma prova de minha identidade. Essas
roupas nem sequer foram bordadas com o emblema da família Greyrat e qualquer um poderia ter
feito isso de qualquer maneira. Acho que ela tinha razão.

— Esta é a verdadeira Zenith, com certeza. E me lembro muito bem da Aisha ali, mas você
tem alguma prova de que é meu neto?

Prova, não é? Essa é uma pergunta difícil. Eu trouxe Zenith, Aisha e até mesmo a carta. O que
mais ela… Espere, por que estava tendo que provar quem eu era para começar?

— Isso é necessário?

— Perdão?

— Trouxe a mamãe… é… Zenith e Aisha, e até forneci a carta que recebi de você. O que mais
você precisa?

A sobrancelha de Claire se contraiu em resposta.

— Se isso é tudo, receio que não possa reconhecê-lo como membro da Casa Latria.

— Muito bem. Pertenço à Casa Greyrat… Sou o chefe dessa família e hoje é a primeira vez
que ponho os pés nesta propriedade. Não tenho intenção de me afirmar como membro da Casa
Latria.

E quanto à ideia de torná-la uma aliada? Para o bem do Bando Mercenário, sim, era o que
estava buscando, mas, se a outra parte já me considerava suspeito, então precisava esconder
minhas intenções ainda mais do que havia planejado. Minha primeira prioridade era levar Zenith
para a família dela.

Claire não pareceu gostar da minha resposta; seus olhos se estreitaram enquanto suas
sobrancelhas se contraíam com a tensão reprimida.

— Para o “chefe” da Casa Greyrat, o senhor se apresenta de forma grosseira. Greyrat é uma
das Quatro Grandes Casas de Asura… Por mais distinta que seja a Casa Latria, somos apenas um
condado. Ainda assim, você daria seu nome primeiro e abaixaria a cabeça não para o próprio
conde, mas para a esposa do conde?

— Tenho o sangue de uma das Quatro Grandes Casas, mas não sou do ramo principal, nem
tenho nenhum título. Embora tenha me autodenominado chefe de família, isso foi apenas para
dizer que sou o principal provedor de uma família comum que vive em Sharia. E, é claro, mesmo
que tivesse algum tipo de status elevado, acho natural demonstrar algum respeito ao encontrar
minha própria avó pela primeira vez.

— Hmm… É mesmo?

Tive a sensação de que minha explicação só fez com que Claire me desprezasse ainda mais.
Não, ela não poderia ser tão ruim assim… Mas, novamente, essa pessoa colocava a linhagem
familiar em um pedestal alto. Ia ser uma dor de cabeça, mas decidi me dar uma linha de defesa
por precaução.

— Posso não ter nenhuma posição como nobre, mas tenho um relacionamento pessoal com
Sua Majestade, a Rainha Ariel, que foi coroada governante do Reino Asura no ano passado.
Também sou um subordinado do segundo dos Sete Grandes Poderes, o Deus Dragão Orsted. É
melhor que leve essas posições em consideração.

Não que eu precisasse ser levado a sério, mas a interação dela com Aisha mudou as coisas. Ela
precisava me considerar um igual, ou pelo menos algo próximo disso, para ter algum tipo de
utilidade para mim.

Claire franziu os lábios e levantou o queixo em resposta. Examinou-me, como se estivesse


tentando me precificar.

— Esta é a minha prova de ser o subordinado do Deus Dragão.

Peguei meu bracelete com o emblema do Deus Dragão. Depois de olhar para ele por alguns
segundos, Claire se virou para um mordomo que estava ao seu lado e perguntou algo em voz
baixa. O mordomo acenou com a cabeça. Ouvi dele as palavras: “De fato, esse é o Deus
Dragão…” Não achava que o Deus Dragão fosse particularmente conhecido, mas esse mordomo
parecia reconhecer seu emblema. Por favor, não diga que isso pode ser facilmente falsificado.

— Entendo… Muito bem.

Com isso dito, Claire endireitou a mandíbula e juntou as mãos em volta do estômago. Então,
em um movimento natural, abaixou a cabeça.

— Meu nome é Claire Latria. Esposa do Comandante da Companhia de Espadas dos


Cavaleiros do Templo, Conde Carlisle Latria. Atualmente, estou encarregada da administração
desta mansão. Peço que perdoe meus maus modos.

Ou provei minha identidade com sucesso ou minha atitude superou algum tipo de obstáculo.
Fosse o que fosse, pouco importava. Consegui que Claire abaixasse a cabeça e pedisse desculpas.
Um comandante dos Cavaleiros do Templo, hein? A irmã mais nova de Zenith, Therese,
também marchou nessas fileiras. Essa família certamente tinha laços profundos com eles.

— Então, permita que me apresente novamente. Sou Rudeus Greyrat, filho de Paul Greyrat e
Zenith Greyrat. Atualmente, trabalho como subordinado do Deus Dragão Orsted. Não se
preocupe com o que aconteceu antes. Eu mesmo não realizei minha devida diligência. Acho que
sua cautela foi perfeitamente justificada.

Nós dois nos curvamos um diante do outro, de modo que a questão estava praticamente
resolvida. Talvez pudesse finalmente recuperar o fôlego. A saudação, por si só, foi como arrancar
dentes, mas eu consegui.

— Agora, então, por favor, sente-se.

— Com certeza, obrigado.

Fiz o que me foi pedido e me sentei.

— Primeiro, deixe-me cumprimentá-lo por sua longa jornada — disse Claire. — Achei que
sua viagem levaria mais alguns anos, mas estou muito grata por sua rápida chegada.

Então, com um bater de mãos, a porta se abriu. Uma criada puxando um carrinho entrou na
sala; e em cima do carrinho havia um jogo de chá. Uma festa do chá? Por mim, tudo bem. É
melhor ela se preparar para ser derrubada de seu assento pela técnica do chá explosivo que
dominei na fortaleza flutuante.

Mas antes disso, achei melhor deixar Aisha se sentar. Ela não era uma empregada, era minha
irmã. Não poderia permitir que fosse recebida como menos do que uma convidada, então tive de
ser firme quanto a isso.

— Aisha, sente-se você também.

— Hã? Mas…

— Você não é uma empregada doméstica hoje. Veio aqui como minha parente, então, por
favor, sente-se.

Aisha revezou seu olhar entre mim e Claire enquanto se acomodava lentamente em seu
assento. Claire não disse nada, apenas respondeu com um movimento de sobrancelha. Parecia
que deixaria passar, mas, é claro, Aisha pertencia à minha família, afinal; não cabia à Claire
permitir ou proibir.

Olhei de relance para Zenith. Parecia que ela ainda estava sendo inspecionada por aquele
médico, que agora estava olhando para os olhos e a língua dela. Não achei que ele encontraria o
que estava errado lá dentro, mas não custa tentar. Claire provavelmente queria que um médico de
sua confiança desse uma olhada antes de acreditar na história de algum estranho que contava
sobre como Zenith havia perdido a memória.
— Fizemos o possível para tentar curar a mamãe, mas não tivemos sorte.

— Bem… posso imaginar como uma cidade do interior tem poucas opções.

Isso é o que chamam de língua afiada. O que pensa que está chamando de cidade atrasada,
senhora?

Mas, é claro, já havia previsto que diria esse tipo de coisa. Sem surpresas aqui.

— A magia de cura de Sharia pode ser um pouco menos avançada do que a de Millis… mas
ela foi examinada por Orsted, um homem que conhece todos os ramos de magia existentes, e
Perugius, um especialista em teletransporte e invocação.

— Perugius? Um dos três heróis lendários? Não sei se acho isso plausível.

Ele era um figurão, então compreendia sua descrença. Dito isso, não poderia exatamente
levá-lo em minhas malas para uma viagem com a família. Além do mais, pretendia ficar em
Millishion apenas por alguns meses; tempo suficiente para Claire aceitar que não havia
tratamento para a doença de Zenith. Só esperava que não insistissem em tentar algo drástico
antes de chegar a essa conclusão.

— A propósito… e quanto a Norn?

Esperava que continuássemos a falar sobre a mamãe por mais tempo, mas Claire mudou de
assunto de repente. Norn, hein?

— Atualmente, está matriculada na Universidade de Magia de Ranoa. Tem estado bastante


ocupada com seus trabalhos escolares, então a deixei para continuar seus estudos.

— É mesmo? Tinha a impressão de que a garota era um fracasso nato, mas agora ela está
fazendo algo por si mesma?

— Ela está indo bem, sim. Atualmente, ela é a presidente do conselho estudantil, portanto, está
no topo da escola, para dizer o mínimo.

Talvez tenha dado uma exagerada, mas Claire pareceu surpresa. Não esperava que pensasse
tão mal de Norn. Acho que poderia entender se ela a comparasse com Aisha.

— Entendo. Quais são seus planos para depois da formatura?

— Ela ainda não decidiu.

— E quanto a casamento?

— Receio que ela seja uma estranha para o romance.

O rosto de Claire se contraiu em resposta. Eu disse algo que a ofendeu?


— Nesse caso, ela virá para cá assim que se formar — ordenou, sem deixar espaço para
discussão. Será que ela considerou a distância entre aqui e Sharia? Uma viagem de ida e volta
levaria anos para ser concluída… Bem, eu tinha o círculo de teletransporte, então poderia fazer
isso em uma semana.

— Eu não me oporia, mas…

— Não consigo imaginar ela encontrando um pretendente decente em um país de interior


como o Reino de Ranoa, então vou providenciar o par apropriado.

Hmm. O que ela quis dizer com isso? “Providenciar” o quê?

— Quer dizer que você obrigaria Norn a se casar com alguém?

— É exatamente isso que quero dizer. Se ela não tiver um futuro definido e o chefe da família
não estiver resolvendo a questão, então eu mesmo assumirei o dever.

— Calma aí, espera um pouco. Você não deveria estar pedindo a opinião de Norn primeiro…

— Do que você está falando? Não é dever do chefe de família garantir que as mulheres de sua
casa se casem?

Hum… É mesmo? Olhei para Aisha em busca de resposta. Ela simplesmente deu de ombros,
sua atitude parecendo dizer: “Sim, mais ou menos”. Talvez fosse assim que os nobres do País
Sagrado de Millis fizessem as coisas?

Ah. Certo. Mesmo em minha vida anterior, havia uma parte da sociedade em que os pais
decidiam com quem seus filhos iriam se casar. Isso nunca fez sentido para mim, mas pode ter
sido uma ideia mais comum do que imaginava.

Entretanto, eu não administrava minha casa assim. É claro que, se Norn me dissesse que
queria se casar e precisava da minha ajuda para encontrar alguém, eu a colocaria em um encontro
às cegas com prazer. Fora isso, queria que ela fosse livre para fazer o que quisesse.

— Assumirei a responsabilidade pelo futuro da Norn — respondi. Achei que seria melhor
deixar isso claro.

— Entendo, muito bem… Você é o chefe da casa, portanto, espero que faça seu trabalho.

Ah, a condescendência mordaz. Ela parecia usar muito isso, não é? Pude sentir como ela
estava me olhando de cima a baixo. Mantenha a calma, Rudeus. Tudo isso era normal. Sabia que
ela seria difícil. E, além disso, eu não iria mudá-la; se me opusesse a isso, começaria uma briga
sobre algo que nunca iríamos consentir. Essa era a primeira vez que nos encontrávamos,
portanto, tínhamos que começar a nos entender primeiro. Depois disso, poderia fazer minhas
solicitações.

— Acho que já terminei.


Enquanto estava respirando fundo, Ander voltou com Zenith. Aisha entrou em ação para
guiá-la até o sofá.

— Como foi?

— Seu corpo é a definição de saúde. Tão saudável que parece mais jovem do que sua idade.

Foi o que disse o médico. Muito bem, Zenith. Você parece mais jovem sem nem precisar de
uma rotina de cuidados com a pele! Ou, espere, isso era um mau sinal? Algo com que se
preocupar? Por exemplo, talvez tenha sido um efeito colateral de uma maldição?

— Tenho algumas perguntas para a família. Posso?

— Mas é claro, pergunte o que você quiser.

— Muito bem. Primeiro…

Suas perguntas cobriram todas as bases. Algumas perguntas diziam respeito à sua saúde física;
o que ela comia normalmente e em que proporções, quanto se exercitava, se tinha sua época do
mês, coisas desse tipo. Outras diziam respeito à sua saúde mental; quão independente era na vida
cotidiana, quais eram seus hábitos típicos, se mutilava a si própria e assim por diante. Eram todas
perguntas médicas, então não hesitei em falar tudo o que sabia, com Aisha intervindo quando
necessário para fornecer mais informações. Provavelmente poderíamos ter dado uma visão ainda
mais completa se Lilia estivesse aqui, mas não estava. Fizemos o melhor que pudemos.

— Entendo, muito bem — disse Ander, acenando com a cabeça e anotando todas as minhas
respostas. Quando terminou, foi até Claire, onde ambos murmuraram algo entre si.

— E então? — perguntou Claire.

— Hmm, sim. Acredito que não haverá problemas — respondeu Ander. — Desde que uma
empregada pessoal cuide dela, pelo menos. Não há sinais de doença ou lesão. Seu estado de
espírito também é estável.

— E quanto à fertilidade?

— Ela tem sua época do mês, então presumo que seja capaz… Isso exigiria mais alguns
cuidados, mas deve ser possível.

— Maravilhoso.

O que havia de tão “maravilhoso” nisso? Tive a sensação de que não iria gostar do que
estavam falando.

— Se não soubesse, diria que você parece estar planejando casar minha mãe novamente —
brinquei.
Minha intenção era fazer uma piada, mas a expressão nos olhos de Claire quando os virou
para mim foi gelada. Fria como gelo, mas com uma força de vontade incrível. Era um olhar que
exigia obediência e não aceitava um “não” como resposta.

— Aqui no País Sagrado de Millis, o valor de uma mulher é decidido por sua capacidade de
gerar filhos. Aquelas que não conseguem, às vezes nem são vistos como humanos.

Espera aí, vamos devagar. Ela não negou o que eu disse, mas… de jeito nenhum, certo? Não,
acalme-se. Ela não negou o fato, mas também não o confirmou. Apenas declarou as crenças
típicas de sua nação. Ninguém veria alguém como menos que humano por não poder dar à luz;
isso só soou crível porque veio de uma senhora idosa com muita autoridade.

— Ah, antes que eu me esqueça. Vocês dois, cortem relações com aquele padre papalista.

— Eu… o quê?

— Estou ciente de que vocês dois tem relações com um padre papalista.

Mais uma mudança de assunto. Estava começando a ficar desorientado. Talvez tenha sido o
tom brusco de Claire que me impediu de assumir o controle da conversa. Ou talvez
cumprimentá-la primeiro tenha me dado um pé atrás. Esse era o território dela, não o meu.

— É verdade que tenho um relacionamento amigável com Cliff… mas por que seria
necessário cortar os laços com ele?

— A Casa Latria atualmente opera ao lado dos cardinalistas. Eu o proíbo de confraternizar


com um papalista.

Então, “cardealista” significava expulsionista de demônios? Comecei a me perguntar quem era


o sumo cardeal.

— Quero dizer… não tenho intenção de me alinhar com os papalistas, então isso não seria
suficiente?

— Não, eu o proíbo. Se quiser ficar nesta casa, então você seguirá as regras desta casa.

Hmm. Hmmmm. Bem, sim, eu provavelmente acabaria me alinhando com os papalistas


quando Cliff obtivesse algum nível de status. Se ela estivesse ciente de meus planos e tentando
obter alguma vantagem sobre mim, poderia ser um pouco mais compreensivo, mas tive a
sensação de que não era esse o ponto de partida dela…

— Cliff me ajudou muito na universidade. Tenho certeza de que Norn poderia dizer o
mesmo… Certamente, uma simples amizade não faria mal algum, não?

— Inaceitável. Se insistir em confraternizar com esse padre papalista, não permitirei que fique
nesta casa.
Nada feito. Tudo bem, então. Eu entendo. Sem problemas. Por enquanto, passaria a noite em
outro lugar.

Sim, estava tudo bem. Não estou com raiva. Nem um pouco. Estou tendo um dia
completamente normal aqui. Tranquilidade era meu nome do meio. Não há motivo para alarde.
Disseram-me várias vezes que Claire era esse tipo de pessoa. Estava preparado para isso. Talvez
não estivesse nos meus cálculos que ela se intrometesse em meu ciclo de amizades pessoais…
mas, ei, éramos como cães e gatos. Nós simplesmente não conseguíamos nos dar bem. Não havia
mais o que fazer.

Agora, para dar um adeus educado e sair desta casa sem começar uma briga…

— Deixe Zenith aqui e vá embora imediatamente.

Minha mente parou.

— Para ser clara, permitirei que você entre nas dependências desta mansão no futuro, mas, em
última análise, como um estranho a esta casa…

— O que você quer dizer com “deixá-la aqui”? O que isso significa?

As palavras que saíram de minha boca foram uma resposta ao que ela havia dito uma frase
antes; demorou alguns segundos para que meu cérebro voltasse a funcionar.

Claire se interrompeu, olhou para mim e respondeu com um olhar gelado.

— Dado o que aconteceu com ela, não tenho outra escolha. Ela pode ser apenas isso, mas se
puder ter filhos, então o casamento ainda é uma opção.

Minha boca ficou seca. Minha visão periférica escureceu, como se estivesse sendo coberto por
uma névoa escura.

—…

De que porra você está falando?! alguém gritou.

Era eu. Estava gritando.

De jeito nenhum! você estava apenas dizendo as crenças da nação, certo?! Você realmente
quis dizer essa besteira?!

Ou, então, os gritos continuaram. Só que as palavras não saíram. Minha boca fez os
movimentos sem emitir um único som.

— Farei com que essa garota se case com um nobre cardealista. Talvez sejam necessários
alguns divórcios, mas devemos encontrar um par permanente para ela.
Claire forçaria uma pessoa que não consegue nem mesmo comunicar suas próprias opiniões a
se casar. Claire dizia que sua própria filha era “apenas isso“. Agia como se ela fosse apenas um
objeto.

— Sua boa saúde é o lado bom da história.

Nunca tinha ouvido o som de um vaso sanguíneo estourando. Claro, afinal, não era audível.
Era apenas um efeito sonoro de desenho animado; uma figura de linguagem. Talvez eu
imaginasse que a ouvia sempre que deixava Eris irritada, mas como normalmente eu desmaiava
logo em seguida, não conseguia me lembrar de muita coisa.

Hoje eu ouvi. Sem dúvida.

Quando dei por mim, o sol já havia se posto e eu estava puxando Zenith pela mão.

Não me lembrava muito do que havia acontecido depois desse som. Lembrava de ter gritado,
mas não sabia sobre o que havia gritado. Ainda assim, tinha certeza de que insultos muito além
do meu vocabulário diário haviam saído da minha boca. Lembro-me dos olhos de Claire se
arregalando, das empregadas que estavam espiando para ver o que estava acontecendo, de ter
declarado que iria embora, puxando Zenith pela mão e ouvindo Claire ter a coragem de dizer:
“Você não deveria. Se Zenith estivesse sã, concordaria.” Aquelas palavras jogaram óleo nas
chamas que era meu coração, queimando o que restava do meu autocontrole; cerrei os punhos e
me preparei para lançar um feitiço. Era disso que me lembrava.

Mas, naquele momento, ouvi Aisha dizer: — Pare, irmão! — Que me trouxe de volta aos
meus sentidos. A essa altura, Claire já havia chamado os guardas, então os mandei voando, gritei
que a Casa Latria estava morta para mim e para os meus, e saí correndo.

— Ufa…

Em algum momento, descobrimos que havíamos retornado à fronteira do Distrito Divino.


Minha raiva fazia parecer que minha visão estava girando. Nunca imaginei que ouviria algo tão
repugnante com meus próprios ouvidos. Filha da puta. “Lado bom” é o caralho. Eu não deveria
ter vindo. Poderia ter passado minha vida inteira sem ouvir isso.

Quem foi o tolo cuja morte coroou aquele velho morcego como rei? Por exemplo, veja só:
qualquer pessoa se sentiria um pouco enojada se um cara que nunca conheceu a chamasse de
vovó. Não está com vontade de responder à minha primeira apresentação? Ótimo. Não faça.
Conseguia até entender a parte de arranjar um marido para a Norn. Ouvi dizer que os ricos e
poderosos também organizavam seus casamentos em minha vida anterior. Estavam apenas
fazendo o que era esperado em sua classe e cultura. Muito bem.

Sim, entendi.

Mas o que ela disse sobre a Zenith foi muito além. Minha mãe tinha amnésia e não conseguia
nem mesmo cuidar de suas necessidades básicas. Quão errada seria a pessoa que pensaria em se
casar com ela? E falar sobre sua “boa saúde”? Sobre como era o “lado bom” saber que ela
continuava tendo seu período do mês? Você faria com que Zenith se casasse para que ela pudesse
ser cuidada durante o dia e bagunçada à noite? Sim, eu sabia como chamar isso. Uma boneca
sexual humana.

E se ela engravidasse, o que aconteceria? Daria à luz? Você realmente acha que ela seria capaz
disso? Mesmo que pudesse, onde estava o consentimento de Zenith em tudo isso? E quanto aos
meus sentimentos? Como acha que se sentiriam os filhos que ela deixaria para trás? Para que
você toma a mãe de um homem? O que diabos você está fazendo com sua própria filha? Ela era
só uma ferramenta para você? Apenas uma coisa para ser usada? Uma máquina de fazer bebês?
Nem brinque com isso!

Não conseguia me lembrar da última vez que algo me deixou tão irritado. “Claire” é o
caralho! Vá se empanturrar de creme, sua meretriz francesa!

— Ufa…

Havia desferido um insulto tão bizarro que me acalmei um pouco. Também ouvi meu
estômago começar a roncar. Certo, eu estava com fome; não tinha comido nada no almoço.
Poderia comer qualquer coisa além de doces.

— U-um, Irmãozão?

Depois de ouvir me chamarem, virei-me e vi que Aisha estava ali, inquieta. Ela parecia
preocupada, como se não soubesse o que dizer.

— Aisha.

Sem dizer uma palavra, estendi meus braços e a abracei. Ela não hesitou em se aproximar.

Agora sabia porquê Aisha, Norn e Lilia tinham um pé atrás. Não poderia culpá-las; é claro que
não gostariam de reviver isso. Não sabia o que Aisha e Norn tinham passado enquanto cresciam
com ela, mas agora entendo que deviam estar carregando lembranças terríveis.

— Desculpe-me por tê-la trazido.

— N-não, está tudo bem. Mas, bem, você não fez a conexão que queria, certo?

Kuh-nek-shuhn? Confecção? Convecção?

Conexão.

Ah, sim. Esperava poder contar com a ajuda da Casa Latria para crescer o Bando Mercenário.

— Bem, nós damos um jeito. Prefiro fazer isso sozinho do que ter a ajuda dela…

Eu poderia fazer conexões com outra pessoa. Talvez possa pedir a Cliff que fale bem de mim
para o avô dele… Talvez ele não se surpreenda com o fato de eu já estar pedindo favores, mas
seria uma vingança contra Claire. E se isso não levasse a lugar algum, então o faria sozinho.
De qualquer forma, estava cansado. Só queria ir para casa e dormir… Ah, pensando bem, não
tinha um lugar para ficar, tinha? Quando chegássemos ao Distrito dos Aventureiros e
conseguíssemos um quarto, já estaria no meio da noite, e não queria fazer Zenith andar tanto.

Tudo bem, tudo bem. Pediria para me hospedar com Cliff de novo.

Com isso decidido, voltamos para a casa de Cliff.

Mushoku Tensei: Reencarnação do


Desempregado – Vol. 20 – Cap. 07 – O
Retorno à Casa de Cliff
Millishion, a capital do País Sagrado de Millis. Fazia um tempo desde minha última vez nessa
cidade; estive no Continente Millis para montar o círculo de teletransporte, mas não parei na
capital daquela vez. Então, essa era apenas minha segunda visita.

Entrei na cidade pelo portão do Norte na primeira vez, e ainda conseguia me lembrar de como
ela era. A forma como o rio fluía pelas Montanhas Wyrm Azul em direção ao lago abaixo, o
imaculado Palácio Branco flutuando sobre o centro daquele lago, a catedral dourada construída
ao lado do rio, o quartel-general da Guilda dos Aventureiros logo a jusante. Por último, mas não
menos importante, aquelas sete torres cercando a cidade junto àquelas vastas planícies se
estendendo abaixo.

Ah… Como era mesmo? “Este é um lugar não apenas abundante em majestosidade, mas
também está em perfeita harmonia com a natureza. Nenhuma outra cidade no mundo chega perto
de sua beleza”, certo? Essa paisagem parecia ter sido retirada das páginas de um guia de viagem
que li há muito tempo, então fiquei com isso gravado na minha mente. Cara, isso me trouxe
lembranças. Qual era aquele livro, mesmo? Ah, sim, Peregrinando pelo Mundo, escrito pelo
aventureiro Kant Sangrento. Wow, mude algumas letras e você vai ter um nome cabuloso.

Bom, de toda forma, a vista de Millishion do Sul ainda era belíssima. As altas torres e o
imponente castelo dominavam a vista. O castelo era totalmente prateado, reluzindo sob a luz.
Seu brilho e tamanho ofuscavam tudo, menos os próprios muros. Havia uma simplicidade
estética que permeava seu design, o que tornava o já lindo castelo ainda mais marcante.

— Cara, realmente não há uma cidade no mundo mais bela que essa.

— Por baixo da superfície, não há uma cidade no mundo mais podre. Te garanto.

Esse comentário veio de Cliff. Acho que ele me ouviu falando comigo mesmo.
Os olhares de Cliff estavam voltados para o Palácio Branco. Depois de tudo pelo que passou,
aquele lugar o assombrava. É claro: estava aqui para ir à guerra.

Sinceramente, pensava que o Reino Asura ocultasse muito mais podridão por baixo de sua
fachada. Tanto o coração de Ariel quanto o daqueles nobres estavam repletos de degradação…
Pensando bem, a superfície do Reino Asura estava podre. Ele não se importava em esconder o
que realmente era. Acho que, de certa forma, a farsa podia fazer com que Millis fosse o pior
entre os dois.

— Então, Cliff… Eu sei que você é um gênio, mas…

— Pare com isso. Já passamos dessa fase, não?

— Certo… Mas se algo acontecer, sinta-se à vontade para falar comigo.

Havia muito menos pressão sobre mim naquele momento. Sendo assim, quis ajudar Cliff a
suportar seu fardo. Qualquer coisa servia, mesmo algo tão pequeno quanto comprar um café para
ele.

— Neste caso… você poderia começar levando esta carruagem até a minha casa?

— Será feito, vossa futura santidade , senhor.

Neste dia, Cliff retornou para Millishion, seu antigo lar depois de ficar fora por quase uma
década.

Millishion tinha quatro entradas. Uma no Distrito dos Aventureiros, uma no Distrito
Residencial, outra no Distrito Divino e outra no Distrito Comercial. Na última vez que vim,
entrei pelo Distrito dos Aventureiros. Se não estou enganado, foi porque os forasteiros que
quisessem entrar por qualquer outro portão deveriam esperar por uma boa dor de cabeça. Bem,
mesmo que eu esteja enganado, tenho certeza de que circulamos ao redor dos muros da cidade e
entramos pela entrada mais lotada. E hoje, estávamos tentando repetir o feito. Mas, diferente da
última vez, tínhamos Cliff conosco, então não precisávamos ser seletivos quanto ao portão.
Escolhemos a entrada do Sul no Distrito dos Aventureiros simplesmente porque era a mais
próxima.

E por “simplesmente”, eu quero dizer “somente”. Teria levado menos tempo se tivéssemos
andado sem impedimentos do lado de fora da cidade em vez de atravessar o mar de pessoas
dentro dela. Nossa pressa trazia perdas. Mas Cliff tinha suas próprias ideias:

— Faz um tempo que não venho aqui, então quero ver a cidade — disse ele.

Ei, era sua primeira vez em casa em uma década. Ele viveria aqui por muitos anos, mas só
poderia vê-la assim apenas uma vez. Caminhar pela rua em direção à sua casa, lembrar-se sobre
como tal coisa ainda continua ali ou como aquilo costumava estar lá; não era uma oportunidade
que aparecia todo dia. Se não fosse agora, nunca teria outra chance.

— Entendo.

E então, concordei com Cliff e assumi as rédeas.

— Isso me traz memórias — Cliff murmurou para si mesmo conforme passávamos por baixo
do lindo portão de Millis.

Cliff nasceu no Distrito Divino, então é natural que não tenha visitado muito o Distrito dos
Aventureiros. Ainda assim, enquanto olhava para o portão do Distrito dos Aventureiros, ele
apertava os olhos como se estivesse projetando alguma memória pessoal na cena. Minha estada
nessa cidade, entretanto, durou apenas uma semana; das coisas que me lembro, todas envolviam
Paul. Claro que podia ficar um pouco emocional se pensasse demais sobre, mas nada além disso
ressoava comigo de alguma forma particular. Quando olhei ao redor, não tive visões do passado.
Vi o futuro. Vi o Bando Mercenário que eu construiria nessa cidade.

Aventureiros estavam andando por toda a parte ao nosso redor. Havia muito mais homens-fera,
elfos e coisas do tipo do que no Reino Asura. Os ranks dos aventureiros variavam muito, mas
você conseguia ter uma certa noção de quem estava em que nível só de olhar. Garotos e garotas
de quinze ou dezesseis anos corriam por aí trajando armaduras que eram claramente de segunda
mão. Havia um iniciante com uns dezoito anos de idade vestindo uma armadura novinha em
folha. Um rank intermediário que já devia estar nos seus vinte e tantos anos tinha um
equipamento que era uma mistura de novo com usado. Um veterano tinha um equipamento que
parecia desgastado caso não soubesse o que olhar, mas que na verdade era uma mistura de itens
mágicos e outras mercadorias de alta classe. A gama de especializações é bastante ampla para
aventureiros, mas considerando que eles viviam aos pés da Igreja Millis, deveriam haver
diversos curandeiros e alguns magos.

Em contrapartida, a Cidade Mágica de Sharia tinha diversos guerreiros veteranos e ainda mais
magos novatos. Os guerreiros, no geral, buscavam por recrutas na Universidade de Mágica, onde
encontravam magos promissores que desejavam se tornar aventureiros. Se tratando de raça,
Sharia tinha muitos humanos e homens-fera. A abundância de homens-fera era provavelmente
relacionada à longa presença de Linia e Pursena lá. Enquanto isso, em Ars, a capital do Reino de
Asura, brotavam novatos de tudo que era lado. A grande variedade de escolas significava que
uma especialização não dominava as outras, mas na vasta maioria, a raça humana era prevalente.
As poucas raças não-humanas eram tipicamente de rank intermediário ou veterano, e elas iam
para a capital real rapidamente.

A variedade de raças e experiências em Millis provavelmente derivava da proximidade com a


Grande Floresta, que estimulava a circulação de homens-fera, elfos, halfling e raças de anões que
viajavam para o Sul em direção a Millis. A cidade dava aos aventureiros as oportunidades de se
provar capazes para depois viajarem rumo ao Norte para desafiar os poderosos monstros da
Grande Floresta. Entretanto, ela não tinha uma Guilda dos Aventureiros, então eles faziam suas
bases ou em Millishion ou em Zantport. Como resultado, o quartel-general da Guilda dos
Aventureiros dessa cidade hospedava aventureiros de todos os tipos.
Agora, como eu estabeleceria o Bando Mercenário em um lugar como este?

No Reino Asura, eu tinha conexões com Ariel. Só isso fazia tudo ir de forma mais suave.
Aquele país tinha três grupos específicos: espadachins, mercadores e nobres. Os primeiros:
plebeus que tiveram treinamento formal na arte da espada, mas além de não conseguirem se
tornar soldados ou aventureiros, também careciam de conexões para encontrar algum mentor. Os
segundos: pessoas criadas em uma família de mercadores com certa quantidade de estudo que
podiam utilizar, mas que perderam a sucessão do negócio familiar para o filho mais velho e
foram forçadas a tentar a sorte sozinhas. Por último: os terceiros ou quartos filhos de famílias de
baixa nobreza que foram educados em uma vasta gama de áreas do conhecimento (apesar de não
dominarem nenhuma delas) e que não tinham esperança alguma tanto em sucessão quanto em
casamentos.

Uma vez que unimos esse grupo diverso em uma equipe, adivinhe só? Conseguimos
estabelecer conexões importantes e nos tornamos a solução perfeita para trabalhos que os
soldados não conseguiam assumir.

Promovi o quinto filho de uma família de nobres de alto rank para a posição de diretor há um
tempo. Ariel foi quem nos apresentou. Cara, aquela entrevista foi uma viagem. Aisha e eu
colocamos aqueles óculos falsos triangulares e perguntamos a ele o que tinha feito durante os
dois anos de intervalo antes de começarmos a reunião.

A resposta?

— Estava formando minha identidade e ativamente me relacionando com os plebeus. Isso me


ensinou não apenas sobre as diferenças em nossas perspectivas, mas sobre a importância de se
conhecer profundamente cada parceiro de negócios com quem se trabalha.

Sua resposta foi tão perfeita que tive que tomar nota dele.

Na prática, ele era bastante habilidoso em manter um grupo unido. Sabia as diferenças entre as
culturas da nobreza e da plebe de trás pra frente, então quando brigas ocorriam dentro do bando,
ele era o cara que entendia ambos os lados e encontrava uma solução. Não tinha bem uma
personalidade que atraia a todos, mas era o tipo de cara que ninguém odiava. Ah, o cara também
conseguia lidar com o trabalho. Melhor do que eu, com certeza.

Agora que estava em mãos competentes, eu precisava construir uma filial do Bando
Mercenário aqui também. Precisava de pessoal e gerenciamento. Precisávamos de uma missão
para esse bando. Aisha estava tomando nota; ela adiou o planejamento até que tivéssemos noção
de onde queríamos construir. Bem, agora, nós estávamos aqui e procurando.

Era muito cedo para decidir algo, considerando o pouco com o que tínhamos nos deparado até
então. Naturalmente, haveria muitos aventureiros aqui no Distrito dos Aventureiros, mas
tínhamos o Distrito Divino, o Comercial e o Residencial para explorar também. Os habitantes
daqui com certeza saberiam mais do que nós. Era melhor guardar nossas conclusões para depois
da visita aos Distritos Divino e Residencial.
— Não percebi da última vez que estive aqui… mas realmente há muitas raças diferentes
circulando.

— É por conta da proximidade da Grande Floresta.

Dizer isso me fez dar uma outra olhada ao redor. Esse era um grupo variado: desde de
halflings que não pareciam ter nem dez anos de idade, até elfos cujos membros longos e magros
me faziam lembrar galhos de uma árvore sem folhas. Mencionei os homens-fera antes, mas não a
imensa variedade deles. Vi cães, gatos, coelhos, veados, ratos, tigres, lobos, ovelhas, ursos…

Um pensamento aleatório: quando, tipo, um homem-fera vê animais de fazenda de seu mesmo


tipo, como vacas e porcos, ele sente um calorzinho, ou… Não, eles provavelmente se sentem da
mesma forma que seres humanos quando veem macacos num zoológico. Apenas um animal.

— Ahh, aaahh…

— Oh, espere, não se levante tão…

Olhei para trás e vi Zenith de pé em cima do carro. Apesar do balanço da carruagem e a


tentativa apressada de Aisha para fazê-la se sentar, ela continuava a apontar para algo à frente.

Seu dedo estava apontado na direção de… um macaco. Espera, não, isso era rude. Era só um
homem com rosto de macaco. Isso me lembra, acho que nunca vi um homem-fera macaco.
Talvez esses animais fossem bastante raros neste mundo. Raros o bastante para fazer com que
Zenith apontasse na direção de um com alegria.

Hm? Eu já tinha visto aquele macaco antes? Espere um segundo, aquilo não era um
homem-fera…

— Oh.

— Yooo?! É a Zenith e o chefe! O que traz vocês até aqui?

Era um demônio. E não qualquer demônio.

Era Geese.

— Ufa, quem pensaria que a gente ia se esbarrar justo aqui?

No momento em que Geese nos viu na estrada, pulou para dentro da nossa carruagem sem
nenhum tipo de hesitação, como se fosse o dono do veículo.

— Coincidência é uma coisa maluca, mesmo! Pera aí, pra que vocês vieram pra cá?!

Geese parecia bastante feliz em nos ver. Seu sorriso se estendia de orelha a orelha. Um pouco
dessa alegria estava começando a me contagiar.
— Parte trabalho, parte família.

— Ah, sim, saquei. Mas escuta, você não vai acreditar pelo que eu passei! É nível de chorar
do começo ao fim…

Ninguém pediu por isso, mas Geese começou a contar o que aconteceu com ele depois de
sairmos de Sharia. Geese, Talhand, Vierra e Shierra tinham todos chegado ao Reino Asura, como
o planejado. Ali, venderam as pedras de absorção por uma quantia absurda de dinheiro. Vierra e
Shierra usaram o dinheiro para se aposentar da vida de aventuras. Presumidamente, voltaram
para sua terra natal; Geese perdeu o contato com ambas, mas considerando o dinheiro que
tinham, imaginou que elas começaram um negócio ou algo do tipo.

Quanto a Geese, bem… por uma ironia do destino não tão inesperada assim, ele se viciou em
jogos de azar. Eu não sabia muita coisa sobre, mas, no Reino Asura, parecia haver um distrito de
jogos do qual Geese rapidamente se tornou um visitante assíduo. Ele sempre teve um pouco de
sorte, mas a fortuna que agora possuía atiçou a cobiça dos donos dos cassinos. Em questão de
meses, Geese foi capaz de perder cada centavo que tinha ganhado.

— Vou te dizer, viu, as coisas estavam ficando bastante complicadas por aquelas bandas. Perdi
até a minha camisa! Tudo o que me restou para apostar foi a minha vida.

Se Geese tivesse sido largado à própria sorte, teria sido colocado em um par de sapatos de
cimento e mandado para dormir com os peixes. Foi Talhand quem o salvou.

Talhand decidiu que já era hora de partir em sua próxima aventura e resolveu dar uma olhada
em Geese antes de ir embora. Talhand estava um pouco atônito com a bagunça na qual Geese
tinha se metido, mas ainda assim decidiu vender suas recém-forjadas manoplas que tinha
acabado de fazer para salvar seu antigo colega de equipe. Aquelas eram manoplas feitas com
pedras de absorção também; juntamente de seus gastos com pesquisa, elas representavam as
economias de vida de Talhand. Agora ambos estavam falidos por completo. O alto custo de vida
em Asura se tornou de repente caro demais, então partiram para o sul.

Se eu estivesse nessa posição, jamais arriscaria meu pescoço por alguém tão ferrado no
quesito dinheiro, muito menos viajaria com essa pessoa em seguida. Ainda assim, Talhand e
Geese se conheciam há muito tempo, então talvez fosse assim como as coisas aconteciam entre
eles. Tipo, talvez Geese tenha sido quem salvou Talhand no passado.

Ei, isso se chama amizade.

O Reino de Shirone estava passando por um conflito interno com o qual eles não queriam se
envolver, e considerando que havia rumores de que o Reino do Rei Dragão estivesse
contribuindo com isso, eles decidiram não passar por esses destinos e ir direto a Millis; ir pela
trilha que já conheciam.

Algum tempo depois disso, Talhand partiu sozinho, deixando Geese para trás. Este
provavelmente pensou que ele voltará para sua terra natal.
— O que esse cara tá pensando? Ir para casa, com tantos lugares para conhecer? — Geese
resmungou.

Eu? Eu até que conseguia entender. Era saudade de casa. Sabe, a doença da qual Nanahoshi
sofria um caso crônico. Uma longa jornada podia fazer com que você quisesse ver sua família de
novo.

— Você não vai voltar pra casa, Geese?

— Quem? Eu? Você deve estar brincando. O que vou fazer naquela vilazinha pacata e
entediante. Assistir à tinta secar?

Bem, poder não significa sempre. Pessoalmente, sou mais do tipo caseiro. Somente em casa
consigo encontrar os peitos de Sylphie (item de restauração de saúde, ativado pelo toque), ou os
peitos de Roxy (aumento temporário de sorte, ativado pelo toque), ou os peitos de Eris (poder de
avanço no tempo, ativado pelo toque).

— Quero dizer, não estou sozinho. Aquele cara tinha algumas memórias ruins ou qualquer
coisa do tipo com a terra natal dele também.

— Então talvez ele quisesse voltar e acertar as contas.

Não importa o que pode ter acontecido no passado, o tempo muda as pessoas. Coisas que você
jamais conseguiria perdoar na sua adolescência podem ser coisas que você aprenderia a aceitar
nos seus vinte e tantos anos. Por volta dos cinquenta, pode ser que você nem se importe mais.
Talhand deve ter digerido todas essas histórias dentro do seu coração e voltou para ver seu lar
como uma pessoa diferente.

— Bom, já chega de Talhand. Estou de volta às aventuras aqui.

Aparentemente, Geese começou a se aventurar de novo depois que Talhand o deixou. Adendo
importante: ele ainda não encontrou nenhum serviço. Sabe, ele era um demônio e não tinha
nenhuma proeza a se considerar.

— Então, chefe, o que te trouxe para essas redondezas?

— Bem, você sabe o estado no qual minha mãe se encontra, então a família dela a convidou
para cá para darem uma olhada nela. Já iria vir aqui com um amigo, então resolvi visitar.

— Ah… A família de Zenith, huh…

Geese olhava para Zenith com o que parecia ser pena. A expressão dela estava tão neutra
quanto de costume, mas parecia estar mais animada do que o normal, de alguma forma.
Provavelmente porque Geese estava aqui.

— Bem, ouvi um pouco sobre o tipo de negócio em que a família de Zenith opera… e vou te
dizer uma coisa: não é o que eu chamo de divertido.
— Um… O que exatamente você ouviu?

— Não sei os detalhes, mas ouvi que eles são um bando rígido. — Geese deu de ombros.

É, meio que eu sabia disso antes de vir pra cá, obrigado. De toda forma, eu ainda tinha que
vir.

— Epa, estamos quase no limite do distrito. Desculpa, mas você pode parar por um segundo?
Demônios como eu não vão ao Distrito Divino, a não ser que queiramos nos ferrar.

Segui o desejo de Geese e parei a carruagem. Ele desceu e seguiu pela rua abaixo.

— Olha, vou continuar por essas bandas por mais um tempinho, então não esquenta; essa não
foi a última vez que vocês me viram. Força, foco e fé, chefe!

Geese se virou de costas e acenou com sua mão conforme descia pela rua… Até voltar a nos
encarar.

— Chefe! Posso te perguntar uma coisinha?!

— O que foi?

— Se lembra do que Paul disse lá na masmorra?!

A masmorra, huh? Várias coisas vieram à mente, mas apenas uma repercutiu em meu coração.
Essa deve ter sido a situação a qual ele se referia.

— Sim.

Aparentemente feliz por ouvir isso, Geese confirmou com a cabeça e se virou.

O amigo que apareceu tão repentinamente logo desapareceu tão rápido quanto surgiu. Era
inevitável me questionar se nossa reunião foi, de fato, uma coincidência. Não importava. Eu
estava feliz em encontrar um velho conhecido e desestressar um pouco.

Tendo isso em mente, continuei em direção ao Distrito Divino.

Quando finalmente chegamos à casa de Cliff, o sol já tinha se posto.

A casa de Cliff era muito mais normal do que eu esperava. A residência consistia em um único
prédio que parecia comportar com conforto uma família de três ou quatro. Não se destacava nem
um pouco dentre as casas da vizinhança… Espere, o Distrito Divino tinha fileiras consecutivas
de casas idênticas. Assumi que a casa de um papa seria um pouco mais parecida com a de Ariel,
então isso me pegou de surpresa.
— É bastante pequena.

Em vez de ficar bravo com meu comentário rude, Cliff graciosamente explicou:

— Clérigos que servem na igreja principal são todos designados a casas como essas. Meu avô
tem um quarto no quartel-general, então essa casa não é tão útil assim.

Basicamente, eram moradias cedidas pelos arcebispos aos padres.

— Agradeço por me acompanhar até em casa. Já está bastante tarde, então, por favor, durma
conosco esta noite.

Tomei um momento para pensar sobre a proposta de Cliff. A casa da família de Zenith estava
no Distrito Residencial. Levaria algum tempo até chegar lá. Se chegássemos de madrugada, era
provável que isso causasse alguns problemas, e eu não estava emocionalmente preparado para
encontrar com eles vestindo minhas roupas de viagem. Podíamos voltar ao Distrito dos
Aventureiros e retornar no dia seguinte… Mas fazer toda essa viagem parecia um exagero.

Decidi aceitar a oferta:

— Está bem. Obrigado.

Coloquei minha bagagem no chão, levei o cavalo ao estábulo e conduzi a carruagem ao galpão
enquanto todos levavam suas bagagens para dentro de casa. Ou teriam levado, mas conforme eu
guiava a carruagem, eles abriram a porta da frente e algo parecido com uma fumaça branca saiu
de dentro da casa.

— Achoo! — Aisha espirrou de forma adorável após a poeira pinicar seu nariz.

— Cough… Isso é horrível… Parece que o vovô não gostava muito de limpar a casa — Cliff
resmungou enquanto pressionava um pano contra o nariz.

A casa estava recheada de poeira.

— Não sei se seria o suficiente para agradecer a você por nos permitir passar a noite aqui, mas
nós ajudaremos você a limpar a casa… Por “nós”, me refiro a Aisha.

— Oh, muito obrig- hm?

— Eu?!

Aisha deixou escapar uma voz confusa enquanto Zenith me deu um olhar de reprovação. Bem,
Zenith não mostrava nenhuma expressão, mas pude sentir a intenção nos seus olhos. Ei, Aisha.
Não olhe pra mim assim. Eu já te mandei limpar algo sozinha alguma vez?

Ah, é mesmo. O tempo todo. Em toda chance que tinha. Mas claro, eu era grato por isso, de
verdade…

— E-ei, é claro que foi uma piada! É óbvio que eu vou ajudar também.
— Não é nada mais que sua obrigação.

E então começou nossa grande faxina da meia-noite. Após abrir as janelas e fazer ventar sobre
uma grande área com a varinha mágica, pegamos as vassouras e começamos a dar um trato no
resto. Depois disso, esfregamos o chão dos quartos que pretendíamos usar com um pano
molhado. Considerando que aquele lugar não era usado há anos, também dei às camas e lençóis
um sopro de ar quente para matar os insetos.

A cozinha estava bastante suja, mas Aisha conseguiu deixá-la apresentável sozinha. Na
verdade, enquanto Cliff e eu estávamos limpando a sala de estar, Aisha terminou a maior parte da
limpeza dos nossos quartos. Comparada a nós, ela foi três vezes mais rápida: o Cometa
Vermelho, Aishar Aznablerat. Com isso feito, usamos o restante das nossas rações de viagem
para preparar um leve jantar.

— Parabéns por chegar em casa, Cliff.

— Não celebre tão cedo. Espere até que eu encontre com meu avô.

Brindamos com nossos copos de água e celebramos com carne seca e sopa. Não tinha lá o
sabor de uma refeição feita em casa, mas era o que tínhamos. Não queríamos carregar
ingredientes em excesso, então estávamos tentando consumir tudo logo.

— Rudeus, qual o seu plano para amanhã? — Cliff perguntou.

— Primeiro, visitaremos a Casa de Latria.

— Entendo. Vocês ficarão por lá amanhã à noite?

— Provavelmente.

Podia não ter a reputação mais generosa, mas Claire ainda era família de Zenith. Não devia ter
problema algum em ficarmos por lá durante um tempinho. Eu tinha trabalho a fazer, como fundar
a filial do Bando Mercenário e ficar de olho em Cliff, então ficar no lar de Latria limitaria minha
liberdade um pouquinho… mas precisava ir até lá primeiro para ter certeza. No pior dos casos,
iria apenas dar um oi e ir encontrar algum outro lugar para ficar.

— Precisarei contratar alguém que saiba cozinhar, então… — disse Cliff.

— Bem, que tal se eu mandar Aisha umas duas vezes por semana pra cá?

— Não, está tudo bem. Vocês já tem trabalho o suficiente para se preocupar — disse Cliff,
dando de ombros. — Eu tenho outra pessoa em mente, de toda forma.

Foi-nos dado o quarto de hóspedes. Três pessoas em um espaço apertado. Éramos uma família,
então nos deitamos na mesma cama… mas Aisha e eu já éramos adultos agora. A cama era bem
pequena — nem perto do tamanho certo para três adultos dormirem lado a lado. Demos a cama a
Zenith, enquanto Aisha e eu dormimos no chão. Arrumamos um espaço para descansar com
almofadas e lençóis que pegamos emprestado de Cliff. O chão estava atapetado, então era
simplesmente suntuoso comparando com acampar ao ar livre.

Deitei minha cabeça no travesseiro e virei de lado. Quando fiz isso, percebi que meus olhos
encontraram os de Aisha, que aparentemente tinha feito sua cama bem ao lado da minha.

— He he. Você acha que a Senhorita Sylphie vai sentir ciúmes se eu disser a ela que dormi
com você, Irmãozão?

— Qual é, já fizemos isso diversas vezes na estrada.

— É. Mas, você sabe, mesmo assim. He he. — Aisha gostava de companhia enquanto dormia,
então não conseguia segurar sua risada.

Ah, que sorriso adorável. Se fosse Sylphie ali, eu já estaria todo galudo e a puxaria pra perto
de mim. Sylphie teria se contorcido para caber melhor no meu abraço. Entretanto, eu não ficaria
excitado com Aisha, e ela não tinha nenhuma vontade de se contorcer para entrar no meu abraço.
Eu amava Aisha, e Aisha me amava, mas não era um relacionamento pelo qual eu sentia
qualquer desejo sexual. Se eu tivesse que descrever a situação, era algo bastante similar com o
que sentia por Lucie. Sabe. Amor familiar.

— Eu sei que isso é meio aleatório — comecei —, mas o que você pensa agora sobre o que
Lilia sempre te diz?

— O que minha mãe sempre me diz? Como o quê?

— Você sabe, tipo me servindo — ou se servindo para mim. Coisas do tipo.

Aisha parecia surpresa pela pergunta, então levou sua mão ao queixo para considerar o assunto
com mais profundidade.

— Hmm, tipo, eu não sou contra… Mas também, é só meio que diferente do que com a
Senhorita Sylphie. Tipo… Bem, eu não tenho certeza de como é, mas…

— Não, eu entendi. Você está certa, é só meio que diferente.

Era tudo subtexto, mas nós mais ou menos entendíamos um ao outro. Tínhamos que sentir o
que o outro estava querendo dizer.

— Heh heh, fico feliz que você entenda. É por isso que eu te amo, Irmãozão! — Aisha disse
enquanto se contorcia na minha direção e pressionava seu corpo contra o meu. Ela era macia e
quente, como um travesseiro próprio para abraçar. Enquanto eu provava da sensação, Aisha
perguntou outra coisa, como se o pensamento tivesse acabado de ocorrer para ela.

— Eu me pergunto… Será que um dia vou me apaixonar por alguém e querer ter meus
próprios filhos?

Essa provavelmente era a coisa que ela quis dizer por “diferente” mais cedo.
— Boa pergunta. Bem, por que não?

— Mas com quem isso aconteceria…

Ah, quem seria o amor de Aisha? Sim, eu podia imaginar. Ele seria o tipo que é perfeito em
tudo, ou seria totalmente inútil? Era provável que Aisha se adaptasse a qualquer parceiro que ela
escolhesse, mas não conseguia imaginar ela gostando de alguém que exigisse que ela mudasse
para aceitá-la. Com quem Aisha normalmente passava seu tempo? O Bando Mercenário…
diversos homens-fera, ao que parece. Aisha, com aquele bando de animais selvagens? Não,
senhor. Não vou dar minha irmãzinha para qualquer um que aparecer no caminho dela!

Se eu perguntasse a Oersted, ele provavelmente saberia com que tipo de parceiro Aisha se
casaria… Entretanto, acho que não farei isso. Eu ficaria mal por ela se descobrisse que ela
acabaria ficando pra titia.

Oh, certo. Devo me certificar de algo antes de adormecer.

— Aisha, estamos levando minha mãe para a casa da família dela amanhã… Então, o que você
vai fazer?

—…

Aisha saiu dos meus braços e se distanciou, voltando para onde ela estava deitada, a princípio.

— Eu vou. A mamãe não pareceu deixar isso como opcional.

— Entendo…

— Sim.

Ouvir que Aisha iria me tranquilizou. Amanhã, eu visitaria a casa de Zenith. Estava prestes a
fazer a clássica bajulação, mas o pensamento de ir a uma casa de tão alta classe sozinho me
deixava nervoso.

— Bem, eu agradeço a ajuda.

— Não se preocupe, estou com você.

— Sério, você salvou minha pele. E obrigado pela faxina hoje a noite também. Bom, boa
noite.

— Mmh, de nada… Boa noit… Fwah…

Escutei o murmúrio sonolento de Aisha enquanto fechava meus olhos.


Mushoku Tensei: Reencarnação do
Desempregado – Vol. 20 – Cap. 06 –
Doravante, para Millishion...
Syiphie engravidou novamente. Este seria nosso segundo filho, e isso aconteceu logo antes de
eu partir. Isso me deixou sem saber o que fazer. E agora? Esta é a quarta vez que ouvi que um
bebê estava a caminho assim que eu estava pronto para embarcar para algum lugar. Isso era
importante, mas Sylphie e o bebê não ocuparam minha mente por inteiro.

Antes de qualquer coisa, eu estava alegre! Como deveríamos nomear nosso bebê? Seria um
menininho dessa vez, ou seria uma menininha de novo? Lucie, você está prestes a ter um novo
irmãozinho ou irmãzinha! Você está pronta para ser a irmãzona novamente?! Ou pelo menos era
isso que eu estava conversando comigo mesmo dentro de minha cabeça enquanto dava pulinhos
de felicidade no gramado, até que…

— Senhora Sylphie é… O-o que vamos fazer?!—

Lilia estava perplexa, seu rosto normalmente sem expressão agora estava confuso e incerto.

— Eu sou a única que pode cuidar da Madame Zenith… A Senhora Sylphie é a única que
pode cuidar da casa, mas agora você está grávida… Se o impensável acontecer, então…

Concordamos que Lilia viria a Millis e cuidasse de Zenith, enquanto Sylphie mantinha a casa.
Mas agora havia um imprevisto: a gravidez; mas isso não era o fim do mundo. Roxy era capaz de
fazer qualquer tarefa que precisasse ser feita, e sempre podíamos contratar alguém para resolver
as coisas. Fiquei tentado a deixar por isso mesmo, mas até eu estava preocupado em deixar uma
mulher grávida sozinha por meses,

Lilia não conseguia decidir-se. Ela deveria ir com Zenith, ou ela deveria ficar para cuidar de
Sylphie? Era difícil não ficar abalado vendo que a própria Lilia ficou abalada com isso. Talvez
fosse melhor parar com essa minha comemoração idiota.

Quando decidi servir a Orsted, estava totalmente preparado para a possibilidade de ter que
deixar uma esposa grávida para trás em nome do trabalho. Mas só agora eu percebi que havia me
comprometido a isso imaginando que Lilia e Aisha sempre estariam lá para minhas esposas
quando eu não pudesse estar.

Isso é ruim. Cara…

— Hum, eu vou ficar bem, sabe. É a minha segunda vez já, e eu tenho Roxy e Eris comigo.
Tenho até mesmo a vovó comigo —, disse Sylphie tentando confortar Lilia.
Ela não estava mentindo. Este é o segundo bebê de Sylphie. Ela agora sabe melhor do que
antes o que está por vir e tem mais pessoas em quem confiar. Roxy passa muito tempo fora de
casa, mas se Elinalise puder fazer check-ins regulares, ficaria tudo bem. Até mesmo Eris poderia
agir se houvesse uma emergência.

Sim, isso mesmo. Durante sua primeira gravidez, só tínhamos Norn e Aisha em casa. E
mesmo que Aisha seja experiente agora, ela não tinha nenhuma experiência real naquela época.
Olhando por essa perspectiva, estamos em uma situação bem melhor agora do que estávamos
naquela época. Também não era como se eu fosse ficar fora por um ano inteiro. Ficaria tudo
bem.

Eris e Roxy apoiarão Sylphie.

— Sim, nós faremos isso funcionar! Você me tem para protegê-la!

— Eu estou fora durante as tardes, então eu ainda estou um pouco preocupada, mas você
sempre tem pessoas ao seu redor, então eu acredito que você não estará sob nenhum perigo!

Mesmo assim, eu ainda estava preocupado.

Lilia olhou para a pequena Lara, que puxou a bainha do manto de Roxy.

— Mas temos crianças em casa agora, o que significa mais trabalho a fazer. E você nunca sabe
o que pode acontecer…

Bom ponto. Você nunca sabe o que as crianças podem aprontar. Lucie e Lara eram umas
pestinhas. Elas nunca atacariam Sylphie por malícia, mas digamos que Lucie, acidentalmente,
errasse um feitiço durante sua prática, e por acaso atingisse Sylphie. Ou Lara tenha montado nas
costas de Leo e tentou sair de casa, e Sylphie correu tão desesperada para pará-la que ela caiu das
escadas…

Crianças são acidentes ambulantes que só estão esperando a hora certa para acontecer. Se eu
fosse pensar em todos os acidentes que hipoteticamente poderiam acontecer, eu nunca pararia.

E ainda tem problemas que estão a caminho. O primeiro grande problema é: quando Sylphie
me disse que ela provavelmente atingiu seu limite, dada a biologia de sua raça, eu lidei com isso
como um desafio pessoal. Nem sequer pensei no planeamento familiar. Obviamente eu nunca
faria bebês por prazer! Como se atreve a pensar nisso ? Eu sempre quis ter um segundo filho,
mas Lucie ter nascido há cinco anos e não termos nem sinal de que um outro viria me fez pensar
que Sylphie realmente havia atingido seu limite,e… talvez eu tenha ficado um pouco desleixado
na proteção…

De qualquer forma, o que aconteceu, aconteceu. Isso foi, pelo menos, metade culpa minha. Eu
havia escolhido um momento agitado para engravidar minha esposa, e agora eu estava
deixando-a sozinha. A história se repete… Por que eu só pareço ter filhos antes de ir em longas
viagens? Talvez seja uma maldição do Deus Homem.
Havia a opção de adiar minha partida para o País Sagrado de Millis. Eu poderia adiar por
cerca de um ano, ver a gravidez de Sylphie a tempo, e em seguida, repensar minha estratégia
uma vez que isso terminasse. Mas então, bam, seria Roxy! Boom, Eris! Era possível que não
houvesse um fim para isso, mas, dado o tempo que uma viagem a Millis normalmente leva, os
Latrias provavelmente não reclamariam se adiássemos a viagem por um ano ou dois. Cliff estava
no mesmo barco.

Ugh, certo. Cliff! Elinalise me pediu para pelo menos vigiá-lo até que ele encontrasse seu
próprio caminho. Mesmo se não fossemos, Cliff ainda iria. Eu tinha certeza de que ele ficaria
bem, mas havia uma possibilidade de que ele perdesse sua posição dentro de um ano e ficasse
preso lá.

Seja Sylphie ou Cliff, meus pensamentos foram direto para o pior cenário. Se eu pudesse,
ajudaria os dois, mas não tenho essa sorte. Eu tenho que escolher: Cliff ou Sylphie? Trabalho ou
amor? Analisando friamente, a melhor opção para mim seria estabelecer a banda mercenária em
Millis de vez, e então fazer Cliff se tornar o Papa. Isso tornaria as coisas mais fáceis para mim.
Mas seria o certo? Qual era o sentido de tudo isso se eu deixasse Sylphie e nosso filho chorando
no frio? Eu tive que reconsiderar por que foi que eu juntei forças com Orsted para começo de
conversa. Eu não podia perder de vista o que importava.

—…

Assim que eu pensei nisso, Zenith se moveu.

— Hm? Senhora?

Com os movimentos rígidos e bruscos de um sonâmbulo, Zenith agarrou a mão de Lilia.


Zenith levantou-se, seu punho de aço puxando Lilia para de trás dela. Lilia tropeçava enquanto a
acompanhava. Zenith estava levando-a para Sylphie.

— Hum… Senhorita, er, Zenith? —, perguntou Sylphie, perplexa.

Zenith pegou a mão de Lilia e, lenta e suavemente, colocou-a no ombro de Sylphie, como se
dissesse: Lilia, cuide dela, eu ficarei bem

— M-Madame

Isto foi um vislumbre daquela vontade inigualável que Zenith escondia tão bem. Toda a
família havia notado que a mais confiável surgia quando algo acontecesse a suas crianças ou
netos. É claro que Zenith iria preferir que Lilia cuidasse da criança na barriga de Sylphie do que
de ela mesma. Todos entenderam a decisão que ela havia tomado.

— Tudo bem —, disse Lilia. Ela enxugou suas lágrimas, olhouZenith nos olhos, e assentiu
com a cabeça. Sua própria determinação havia sido fortalecida.

—Aisha!

— S-sim, senhora!— Gritou Aisha ao comando de Lilia, que a tirou de seu espanto.
— Você atenderá às necessidades da Senhora Zenith em meu lugar e acompanhará até a casa
Latria. Sem mas!

— Guh. Entendido!

Aisha havia congelado por um momento. Ela realmente não queria colocar os pés na casa
Latria, mas ela não queria acabar com essa cena comovente dizendo — não.

— Mestre Rudeus, acredito que estamos decididos. Cuide-se.

— Sim… Obrigado. Por tudo.

Se Lilia estivesse cuidando dela, então eu sabia que uma tragédia seria impossível. Não com
Lilia lá. Eu poderia fazer o meu trabalho no País Santo de Millis sem quaisquer preocupações.

—Sylphie.

—O que foi, Rudy?

Havia uma última coisa que eu precisava dizer antes de partir. Algo importante.

— Eu te amo.

— Sim. Eu também.

Sylphie levantou-se e gentilmente envolveu suas mãos ao redor do meu tronco. Enterrei meu
rosto em seus cabelos e a abracei tomando cuidado para não apertar forte demais.

— Vou pensar em um nome enquanto estiver fora.

— Certo. Diga-me quando você voltar.

Sylphie me deu um sorriso. Em qualquer outra situação, ela ainda estaria ansiosa, mas agora,
ela tinha Lilia aqui por ela. Uma segunda mãe para depender.

Me despedi de Roxy e Eris, e depois parti.

E então, começamos nossa jornada. Eu, Aisha, Zenith e Cliff. Só nós quatro.

Eu tinha feito as malas com cuidado, mas ainda era muita coisa para carregar. As tábuas de
contato de pedra e o pergaminho de invocação da Armadura Mágica se mostraram bem
volumosos. O peso em si não era um problema, já que eu estava usando a Versão Dois. Mas
mesmo que eu fosse forte o suficiente para suportar o peso sem suar, eu só tinha duas mãos e
uma única costa. Carregar algo maior do que você mesmo também abaixa seu centro de
gravidade, e essa armadura não estava me ajudando. Era tão estranho, quanto carregar uma caixa
de papelão vazia da qual seus braços não conseguiam alcançar.
Com minha enorme bagagem em mãos, nos encontramos com Cliff fora da cidade. Ele ficou
surpreso com a explicação de por que nossa parte estava com um membro a menos. Dito isso, a
notícia sobre o bebê fez Cliff sorrir. Ele ofereceu sua benção.

— Receio não poder parabenizá-lo muito, dada a minha posição… mas Santo Millis disse uma
vez: “O nascimento de uma nova vida, seja ela qual for, é uma ocasião alegre”.

— Como você é solidário.

— Não se preocupe, vou orar a Santo Millis para que seu futuro filho se dê bem com o meu.

Não importa quão terrível a fé de Millis me considerasse ser, os pecados de um pai não são os
de seus filhos. Sempre há a chance de que qualquer criança com meu sangue pudesse acabar
tendo parceiros um após o outro… mas eu tinha certeza de que Cliff consertaria essas crianças se
o fizessem.

Espere, não, esse é para ser o meu trabalho. Huh.

— A propósito, Cliff, você está familiarizado com a Casa Latria?

— Latria; a cara…

Durante o mês passado, eu perguntei às minhas irmãs e Lilia sobre que tipo de pessoa essa
Claire Latria era. A partir de suas descrições e dos olhares peculiarmente desagradáveis em seus
rostos, fui capaz de descobrir isso: ela era um pé no saco.

Norn desviou os olhos e disse que só se lembrava de ter sido repreendida e chamada de
preguiçosa Aisha suspirou e disse que Claire ficaria brava, e exigiria que ela parasse de
constranger Norn agindo assim. Lilia respondeu que ela valoriza profundamente a linhagem e a
religião.

Basicamente, parecia que as três eram incessantemente incomodadas sobre a estrutura e o


histórico de casamento de sua família enquanto estavam presos naquela casa, em Millishion. Mas
Claire não ia chegar até mim da mesma maneira. Claro, tudo o que eu tinha ouvido até agora me
deixou um pouco assustado para conhecê-la, mas eu conhecia alguém que você também poderia
chamar de teimoso e rigoroso.

Ele pode não estar mais entre nós: Sauros Boreas Greyrat, avô de Eris; as ideias que ele
valorizava podem ser diferentes das de Claire, mas ele era igualmente estrito. Nós até
encontramos alguns pontos em comum depois que eu mostrei a ele a etiqueta adequada. Além
disso, ela era humana. Se ela valorizava a linhagem, então hey, eu tecnicamente tenho o sangue
de ambas as casas Latria e Greyrat. Já que ela valoriza a religião – bem, uh, essa parte me
assustou um pouco, então talvez esconder meu casamento poligâmico seja o melhor a se fazer.

Lembrei-me de como eu tinha resistido àqueles infernos de gritos e surras que Eris chamava
de lar. Se eu imaginasse Claire como uma versão feminina de Sauros, eu poderia lidar com isso.
Também era bem possível que o tempo tivesse tornado as memórias de Claire mais duras do que
realmente tinham sido, e que Claire só fosse dura por amor à sua família —assim como Ruijerd.
De jeito nenhum eu impediria uma reunião de mãe e filha, mas imaginei que reunir um pouco de
informações de antemão não doeria.

— Eles são uma casa de destaque, particularmente como figuras de liderança dos
Expulsionistas Demoníacos que produziram muitos dos principais Cavaleiros do Templo.

—Entendo…

Pensando bem, tia Teresa era uma Cavaleira do Templo. Me pergunto como ela está.

— Eu era jovem quando estive pela última vez em Millis, então não sei os detalhes, mas ouvi
de Norn que eles são bastante rigorosos —, acrescentou Cliff.

Norn confiava muito em Cliff; já que ele a ouvia desabafar sobre seus problemas quando ainda
estava na escola. Parecia que algumas dessas conversas eram sobre como ela foi rotulada de “boa
para nada” durante seu tempo na casa Latria. Sobre como ela era constantemente comparada a
Aisha e sobre como ela era chamada de fracassada que perdeu para uma criança bastarda.

Cliff sempre respondeu a isso dizendo: — Você não deve se comparar com os outros. Em vez
disso, esforce-se para superar a pessoa que você é agora.

Norn seguiu esse conselho até se tornar a presidente do conselho estudantil. Ela nunca disse,
mas Norn obviamente tinha um profundo respeito por Cliff. Não chegava ao ponto de romance,
mas talvez, se Elinalise não estivesse aqui, Norn e Cliff poderiam ter se tornado algo mais.

Wow, se isso acontecesse, então seria um casamento entre os Expulsionistas Latrias e os


Integracionistas Grimors… Ah, espere, Norn era diferente. Ela era filha de Paul, uma Greyrat,
não uma Latria. Ela não tinha nada a ver com o conflito político da Igreja Millis.

— Pessoalmente, só posso orar para que você não se junte à Casa Latria e se torne meu
inimigo.

— Qual é, Cliff, eu nunca ficaria contra você.

— Eu confio em você, é claro. Mas há momentos em que a escolha já está feita por nós… —
Cliff se afastou, e depois riu de si mesmo.

Inegavél.

Pensar nessas dinâmicas de relacionamento já estava fazendo minha cabeça doer. Os Latrias
eram Cavaleiros do Templo e Expulsionistas, tornando-os inimigos de Cliff. Talvez eu devesse
pensar cuidadosamente antes de construir conexões com essa casa. Nós, Greyrats e Latrias,
podemos ser relacionados pelo sangue, mas antes de tudo eu sou um Greyrat da Cidade Mágica
de Sharia. Eu não precisava ser ninguém além de Rudeus Greyrat, o Braço Direito do Deus
Dragão, um subordinado de Orsted, e um amigo de Cliff.
— Olha Cliff, só porque eu não vou entrar para ajudá-lo, não significa que eu me tornaria seu
inimigo. Juro de coração. Embale uma de minhas filhas como um presente e dê a mão delas a
Clive se eu estiver mentindo.

— Ah, isso pode ser uma boa ideia. Um casamento entre sua filha e meu filho… Sim, nada
mal.

— Como é que é?! Não vamos ser precipitados, sabe, não é certo que os pais decidam com
quem seus filhos se casem.

— Sim, sim, eu entendo. Foi só uma piada, agora vamos.

Cliff riu e começou a andar.

Isso, uh, foi uma piada, certo? Então, novamente, Lucie e Lara com certeza eram fofas…
Essas duas definitivamente cresceriam como beldades, assim como suas mães. Clive cresceria
vendo aquelas lindas irmãs todos os dias. Seu primeiro amor provavelmente seria Lucie. Como
ele é filho de Elinalise, ele pode ser precoce e convidá-la para sair cedo demais.

Eu não gostava da ideia de algum garoto aleatório da rua chamando minhas filhas para sair,
mas este era o filho de Cliff. Se Clive implorasse com as mãos e os joelhos diante de mim, seu
futuro sogro, então eu talvez pudesse permitir seu relacionamento. Calma aí, garoto, você é bem
ousado me chamando de seu sogro.

— Irmãozão, vamos deixar você de lado!—, Chamou Aisha, enquanto segurava a mão de
Zenith. Isso me levou de volta à realidade.

— Ah, desculpe por isso!

Ah, bem, isso ainda estava muito longe de acontecer. Voltei minha atenção para o presente e
corri para recuperar o atraso.

Entramos no escritório e cumprimentamos Orsted. Depois disso, descemos ao subsolo para o


círculo de teletransporte. Em um piscar de olhos, estávamos no Continente Millis.

Da última vez que estive aqui, usei o círculo de teletransporte do lugar onde estávamos. Foi no
porão de uma mansão abandonada, nas profundezas de uma floresta, não muito longe da capital
Millis. Por que havia uma mansão abandonada no meio da floresta, você pergunta? Neste mundo,
as aldeias construídas perto das florestas às vezes são invadidas pela floresta – de repente
engolidas inteiras. Essa era a história por trás dessas ruínas.

O brilho fraco do círculo mágico lançou uma luz estranha sobre o musgo e a hera que
rastejavam pelas paredes do porão. Nós não cuidávamos da mansão, mas as árvores ao redor
reforçavam as paredes. Não cederia tão cedo. Alguns aventureiros de cidades vizinhas apareciam
de vez em quando pelo que ouvi falar, mas a sala com o círculo mágico só era acessível através
de um caminho escondido. Acabamos por colocar um baú do tesouro na sala conectando-se a ele.
Tudo o que continha eram alguns itens mágicos aleatórios, mas eles deveriam ter sido suficientes
para convencer qualquer bisbilhoteiro de que havia encontrado tudo.
Da mansão, viajamos a pé. Levou um tempinho, dado o estado de Zenith. Não haveria
monstros fortes em nosso caminho, já que estávamos perto de Millis, mas ainda precisávamos
nos mover com cautela.

Ah sim! Falando em monstros, isso me lembrou da época em que vim a essa floresta com
Orsted para montar aquele círculo mágico. Foi a primeira vez que finalmente encontrei uma das
variedades mais famosas de monstros que existem: o goblin. Aqueles monstrinhos de pele verde
que tinham cerca de metade da altura dos seres humanos. Eles eram agressivos, numerosos e
estavam entre a classe mais fraca de criaturas do planeta. Eles viviam em bandos e, às vezes,
capturavam mulheres de outras espécies para que pudessem acasalar e engravidá-las. Eles não
são racionais e veem as pessoas como inimigas, então atacavam à vista. Às vezes, me
questionava se goblins eram, na verdade, demônios, e não monstros. Eles viviam estilos de vida
incrivelmente primitivos dentro de cavernas dentro da floresta. Eles residiam em habitações à
beira de penhascos e ganhavam a vida agrupando-se para caçar. Suas habilidades de engenharia
não eram boas, mas eles usavam porretes e facas de pedra. Além disso, enquanto eu só havia
visto vislumbres, eu tinha visto um pai goblin mostrar o que poderia ser confundido com afeição
para com seus próprios filhos.

Para mim, não havia muita diferença entre eles e os humanos primitivos; eles foram tratados
como monstros simplesmente por causa de sua baixa inteligência. Talvez as coisas pudessem
seguir outro rumo se pudéssemos nos entender. Infelizmente, este era o Continente Millis, e o
País Santo de Millis nunca reconheceria que éramos mais parecidos do que diferentes. Talvez a
mania dos goblins de atacar as pessoas à vista não fosse algo que sempre tiveram. Os goblins e o
País Santo de Millis devem ter tido uma história de conflitos que eu não conhecia.

Quanto mais eu pensava sobre isso, mais eu via os goblins como criaturas trágicas. Se ao
menos eles tivessem residido no Continente Central, onde poderiam ter sido reconhecidos como
demônios de baixo nível em vez de monstros…

Isso é o que estava passando pela minha mente logo depois que eu matei um goblin que nos
atacou em nosso caminho.

— Irmãozão, por que você está chorando por causa de um goblin?

— Sabe, estou apenas pensando que se os goblins tivessem vivido em outro lugar, eles
poderiam ter sido chamados de demônios em vez de monstros.

— Uh… Você tem certeza de que Roxy não ficaria brava com você por isso?—

— Não, ela não ficaria.

A palavra “demônio” era, na verdade, um termo guarda-chuva que incluía muitas raças
diferentes. Eu obviamente não conhecia todas, mas eu tinha certeza de que havia algumas raças
demoníacas por aí com intelectos tão baixos quanto goblins. Caramba, havia alguém que as
pessoas chamavam de Rei Demônio que era muito burro. Não seria uma surpresa alguma espécie
ser ainda mais estúpida do que essa. De qualquer forma, o nível de estupidez daquele rei
demônio era um feito da natureza.
— Então, o que fez você pensar nisso, afinal?

— Bem, ao contrário de outros monstros, os goblins formam grupos, certo? Então eu estava
me perguntando o que aconteceria se eles fossem tratados melhor.

— Huh? Que diferença isso faz?

Aisha abertamente me olhou com nojo. Em qualquer lugar que você fosse, qualquer nação que
você visitasse, especialmente se você falasse com mulheres e crianças, ninguém era fã de
goblins. Pois bem. Eu não era exatamente um ativista dos direitos dos goblins aqui.

Falando em ONGs… — Aisha, como está indo com o Grupo dos Mercenários?

— Hmm? O que você quer dizer? Acho que estou lidando bem com isso.

— Bem, não é exatamente como sobre você está lidando com isso, é mais sobre se você está
se dando bem com todos.

Eu só queria começar uma conversa fiada. Eu sabia, no fundo, que estava indo tudo bem. Mas
eu queria ouvir sobre o dia a dia. Tipo, talvez ela tenha saído para comer com eles, mas pediram
muito picante, e todos estavam respirando fogo enquanto contavam piadas e conversa fiada.

— Hmm… Boa pergunta.

Ela não estava alegre,estava melancólica.

Ela estava sendo intimidada? Se estivéssemos em casa, eu teria ligado minhas sirenes e
corrido para a Banda de Mercenários, prendido Linia e Pursena sob custódia, jogaria elas numa
sala de interrogatório, e entraria no modo policial ruim, até que elas assumissem seus crimes;
mas eu vi a verdade no ano passado; Linia, Pursena e todo o Bando de Mercenários deram a
Aisha aquele enorme presente de aniversário. Todas as evidências diziam que Aisha era bem
quista entre a Banda Mercenário.

— Aconteceu algo?— Perguntei.

— Hmm… Eu não sei, eu simplesmente não entendo, sabe?!

— Oh?

— É algo que eu vejo Norn fazendo também. Eles começam algo e continuam nisso, mesmo
que esteja fadado ao fracasso.

— Bem, ninguém pode saber se falhá até que tente.

— Não, não nesse sentido. Quero dizer, eles falham uma vez, então eles repetem o mesmo
erro e falham novamente.

— Ah, entendo.
As pessoas repetem a história, né? Norn definitivamente era o tipo que repetia os mesmos
erros só para ter certeza. Mas isso foi porque… Espere, eu estava perdendo o ponto disso aqui.
Que tal eu educadamente deixá-la terminar?

— Então, na Banda de Mercenários, eu sou uma conselheira, a chefe de todos; então eu aviso
quando eles erram algo que já erraram antes. Às vezes eu sou severa. Tipo, ‘Eu já te disse como
fazer isso, então qual é o seu problema?’ e outras coisas.

— Uh-huh.

— Mas todos eles parecem odiar isso.

— Bem, as pessoas fiquem gritando com eles.

— Mas se eles odeiam tanto, então por que erram as mesmas coisas? Estou até mesmo
dizendo a eles como fazer. Basta fazê-lo.

— Só porque você diz a eles o que fazer, não significa que eles possam colocar em prática no
instante seguinte.

O olhar duvidoso de Aisha me disse que ela não entendia muito bem. Bem, essa era Aisha; ela
era uma “ natural “. Ela aprende rápido, e sua memória era de aço. Seus fracassos eram poucos, e
não eram frequentes, e seus sucessos beiravam a perfeição. Ela aplicava incansavelmente
qualquer experiência ou conhecimento que adquirisse para antecipar o próximo desafio. É por
isso que as coisas que ela via como — os mesmos erros — parecem erros comuns para alguém
como eu. Deve ter sido frustrante para ela ver pessoas que deveriam ter aprendido suas lições da
última vez repetirem os mesmos erros. Então, novamente, os funcionários em questão
provavelmente nem perceberam que estavam cometendo os mesmos erros. Isso poderia explicar
por que eles não gostavam de Aisha gritando com eles o tempo todo.

— Então, sim, está indo bem, mas não tenho certeza se estou fazendo amigos…

— Ah, entendo.

Ser excepcional significava que Aisha deixava as pessoas para trás. Ela pensava em si mesma
como capaz de qualquer coisa, como alguém que teria sucesso onde qualquer outra pessoa
poderia falhar. É por isso que ela era tão dura com as pessoas e era por isso que ela gritava com
eles.

— Mas isso não torna o trabalho um pouco tenso? — Perguntei.

— Hum, quando eu fico brava, Linia entra em cena e os leva para outro lugar Eu não sei o que
ela diz a eles, no entanto, essa pessoa sempre volta parecendo aliviada.

Entendo. Então Aisha repreendia os mercenários, enquanto Linia ou Pursena os animavam.


Como eu havia dito, as pessoas são diferentes uma das outras, o que as tornava adequadas para
diferentes trabalhos.
— Bem, espero que você possa fazer isso algum dia também.

—Ugh.

Aisha parecia visivelmente irritada. Como se dissesse: eu vou fazer isso se eu precisar, mas eu
não quero.

Mushoku Tensei: Reencarnação do


Desempregado – Vol. 20 – Cap. 05 –
Amadurecimento e Novos Horizontes
Um ano inteiro se passou em um piscar de olhos. Hoje é a cerimônia de graduação da
Universidade de Magia de Ranoa.

Minha cerimônia de graduação.

Hoje me vesti com o meu velho e não-muito-usado uniforme, e juntei-me no processo do qual
sempre assistia da sala do conselho estudantil. Parece até que foi ontem a cerimônia de Zanoba e
Cliff.

Escutava o discurso do diretor enquanto estava cercado por colegas dos quais sequer
reconhecia. O discurso era o mesmo de sempre. Já o ouvi algumas vezes antes. Ele
provavelmente lê o mesmo script todos os anos. Só de ter graduandos aqui, significava que ele
podia cortar as formalidades, mas não era isso que estava me incomodando.

O fato de que eu raramente vinha à escola provavelmente fez-me sentir ainda menos
conectado à cerimônia. Não peguei quase nenhuma matéria e, no fim, sequer mostrava a minha
cara na sala. Era só um nome na lista de presença. É verdade que minha pesquisa sobre feitiços
sem encantamento e o relatório que fiz sobre os métodos para treiná-los, me garantiram um
rank-C na Guilda dos Magos, mas…

Pesquisas, ranques e coisas do tipo são meio sem graça, não são? Não iria me iludir
acreditando no contrário.

Ah, bem. Esses dias são nostálgicos, querendo ou não, e tive muitos deles. Meu reencontro
com Sylphie, minha amizade com Zanoba e Cliff, o assédio sexual que Linia e Pursena
acumularam comigo, minhas conversas com Nanahoshi sobre nossos dias no Japão, o tempo que
passava bebendo e me divertindo com Badigadi…

E aqui estava eu, prestes a dizer adeus ao lugar onde tudo isso aconteceu. Foi nessa hora que
as lágrimas começaram a cair.
Oh. Então, são essas as tais “emoções” que tanto ouvi falar. É. As boas memórias são o que
contam.

Vamos recapitular o que aconteceu nesse tempo.

Durante o ano passado, consegui estabelecer raízes na região de Asura. Fiquei no Reino de
Asura por alguns meses e consegui fazer uma ramificação do Bando Mercenário, da loja do
Zanoba e consegui montar a oficina que irá fazer a manufatura dos produtos da loja.

Isso foi graças à influência de Ariel. Ela não foi difícil de convencer; quando perguntei se
cooperaria com Orsted, ela me respondeu com um “Estava planejando fazer isso desde o
começo”. Até mesmo reuniu os membros de sua facção e organizou uma festa por minha causa.
Eles tiveram uma chance para criarem conexões comigo — ou melhor dizendo, com um
integrante dos Sete Poderes, o “Deus Dragão”, o qual eu representava. Todos faziam parte da
facção de Ariel, então a ouviam. Iam tão longe por seus laços de facção, que se quiser saber o
porquê deles levantarem cedo todos os dias, era porque ao apoiar Ariel, tinham esperanças de
que ela lembraria deles quando tivesse de escolher quem ocupará as posições do governo.

Porém, havia pessoas lá que valiam a pena serem mencionadas. Uma delas era a Imperador da
Água Isolde, outra era a Rei da Espada Nina, apesar de que não faço ideia do que a levou a vir ao
baile… mesmo assim, era bom saber que as atuais representantes do Estilo Deus da Água e
Estilo Deus da Espada estavam dispostas a cooperar com Orsted.

Quando mencionei isso para Eris, ela respondeu que cuidaria pessoalmente de Nina e saiu
correndo. O que aconteceu depois permanece um mistério. Aparentemente, as três deram uma
volta pela cidade como se fossem amigas de escola, mas não perguntei a Eris sobre o resultado
da luta. Minhas esperanças não eram lá muito altas, porém se essa tal de Nina ganhou um pouco
de confiança em mim por confiar em Eris, ajudaria muito.

Consegui fazer com que muitas pessoas concordassem em me ajudar, mas não tive muito
sucesso em fazê-las entender com o que estavam concordando. A ressurreição de Laplace nos
próximos oitenta anos entrou por um ouvido e saiu pelo outro, mas Ariel era uma líder nata e
todos seguiram-na como cachorrinhos na coleira. Não tinha mais nada para me preocupar. Meu
trabalho em Asura estava feito e podia parar de pensar sobre isso.

Quando disse a Ariel que Eris deu a luz a um menino, fazendo-o meu terceiro filho, ela ficou
até que bem feliz. Então, me deu aquele olhar demoníaco e disse: “Isso me deu uma ideia. Por
que não fazer um de seus filhos casar com alguém da nobreza Asurana? Creio que isso faria com
que nossa parceria tivesse uma base muito mais sólida…”

Ela parecia estar falando sério sobre isso. “Você só pode estar brincando”, foi a minha resposta
instintiva para isso, mas talvez fazer mais alguns filhos e fazê-los se casarem com certas
autoridades não seja uma ideia tão ruim assim? Para pessoas com mais precaução que Ariel,
laços familiares talvez suavizasse a intimidação que o macabro Orsted e eu, seu pequeno e
suspeito evangelista, passam.

Se alguma de minhas crianças casasse com um parente de Ariel, poderia ficar tranquilo
sabendo que ela está sendo bem cuidada. Amo muito meus filhos, afinal de contas. Não que
estivesse seriamente considerando fazer um casamento arranjado para qualquer uma deles. Digo,
a não ser que uma de minhas filhas quisesse ser uma princesa, ou se quisesse casar com um
príncipe. Então, tudo bem, poderia considerar isso.

De qualquer forma. Deixando essas coisas sobre casamento de lado, não seria exagero dizer
que tenho toda a região de Asura na palma da minha mão. Tinha os nobres liderados por Ariel, a
escola do Estilo Deus da Água e, com sorte, os residentes do Santuário da Espada também. O
progresso na fabricação e estoque das estátuas e livros ilustrados sobre Ruijerd estavam sendo
feitos juntos.

Era perfeito. Se pudesse fazer isso acontecer, ouviríamos sobre Ruijerd assim que possível.

Nesse momento, estava me preparando para ir ao Reino do Rei Dragão e usar minhas
conexões com o Deus da Morte Randolph para criar mais conexões lá. Não terei nenhum coringa
como Ariel do meu lado, então vai ser bem difícil. Estou esperando levar de dois a três anos, no
mínimo, mas podia levar até mais tempo.

O Reino Asura era como se fosse um tutorial. Aqui era onde o real trabalho começaria.

Agora, sobre a nossa pesquisa.

Primeiro, Zanoba. Dirigir a abertura da loja e suas vendas o deixou ocupado durante o ano
passado, então ele deixou sua pesquisa de lado. Perfeitamente compreensível. O ano passado
teve aberturas simultâneas em Sharia e Asura. Alguma coisa tinha que ser sacrificada
considerando o quão ocupado estava, mas graças ao excelente suporte de Ginger, a gerente
contratada pelo Bando Mercenário, e a ajuda intelectual de Ariel, as lojas estavam funcionando
tranquilamente.

As estátuas e os livros ilustrados não estavam vendendo igual água, mas rendiam uma boa
quantia. O que estava realmente em alta nas encomendas era a planilha de leitura-e-escrita que
ficava no fim do livro. Me irritava um pouco que algo que pensei de última hora tornou-se a
estrela de nossa loja, mas devo engolir meu orgulho e aceitar a vitória. Bem, que se dane, com
Ariel como patrocinadora, a loja não corria o risco de fechar por agora. Tudo que tinham de fazer
era levar as coisas devagar e sempre.

Próximo: Cliff. Ele passou o ano passado inteiro totalmente dedicado à sua família e pesquisa,
àquela que anularia as maldições de Elinalise e Orsted. Infelizmente, não houve nenhum
acontecimento revolucionário. Havia muitos impeditivos.

Ele conseguiu fortalecer os efeitos da ferramenta mágica, mas não conseguiu achar uma
anulação completa. Ainda assim, graças a ele, Elinalise conseguiria passar um ano inteiro sem
manutenção. Se seu autocontrole poderia fazer o mesmo, era outra história.

Então, que tal nós darmos uma olhada no meu próprio progresso? Felizmente, consegui fazer o
que queria.
Durante as minhas idas e vindas entre o Reino Asura e a Cidade Mágica de Sharia, fiquei
pensando em como invocar a Armadura Mágica. Até perguntei a Perugius se conhecia algum
método para isso, cheguei até a pedir conselhos a Nanahoshi.

Durante minha busca, percebi que havia uma certa lei que operava por baixo das magias —
digo, os círculos bidirecionais de teletransporte. No momento em que ocorre um teletransporte, o
que estiver no topo do círculo é trocado. Um objeto no círculo de teletransporte A será enviado
para o círculo B, e, ao mesmo tempo, qualquer objeto que estiver em cima do círculo B será
enviado para o círculo A. O fato de que o timing da ativação ocorresse quando algo fosse
colocado em cima do círculo tornou essa lei difícil de ser notada, mas depois que pensei direito
sobre isso, era algo como a “troca equivalente”.

De qualquer forma, aquele momento foi como um “Eureka!” para mim e permitiu o
nascimento da minha mais nova e revolucionária técnica: pegaria a Armadura Mágica, colocaria
em um círculo de teletransporte bidirecional com antecedência, e então, carregaria um
pergaminho contendo um círculo de teletransporte não utilizado comigo. Quando precisasse,
poderia abrir o pergaminho e ativar o círculo de teletransporte. Bam! Aí está, senhoras e
senhores! A Armadura Mágica pularia de seu local pré-preparado e se teletransportaria para
mim.

Corri para o porão do escritório para preparar a Armadura Mágica e testar essa ideia.
Funcionou perfeitamente. Isso me possibilitou invocar a Versão Um da Armadura Mágica de
qualquer canto do mundo. Sabe, algo como “Venha, Gundam!”.

Mas ainda teria alguns problemas: Precisaria carregar um pergaminho enorme comigo e o peso
da armadura o fazia virar picadinho depois de ser invocada. Era uma invocação por pergaminho,
sem mais nem menos.

Mas, se eu tivesse dois pergaminhos que fossem ligados entre si, poderiam funcionar como
uma espécie de fuga de emergência. Essa pesquisa rendeu bons frutos.

Então, Orsted. Ele me ajudou muito com isso. Criou… Não exatamente um celular, mas uma
placa feita de pedra que funciona como um comunicador. Aparentemente, foi construído com o
exato mesmo mecanismo que o Deus da Técnica dos Sete Grandes Poderes construiu. Sua
aplicação era tal qual que qualquer coisa escrita na placa principal seria refletida nas sub placas.
Se nós dois tivéssemos uma placa principal e uma subplaca cada, poderíamos entrar em contato
via texto sempre que quiséssemos. Porém, dado seu peso, além de seu tamanho maciço, andar
com elas seria impossível. Consumiam uma grande quantia de mana para inicializarem, então
isso servia mais para algo fixo do que portátil.

Basicamente, um telefone fixo, não um celular.

Por agora, montamos os primeiros pares no escritório de Orsted e nos aposentos de Ariel.
Podia tranquilamente imaginar Ariel ajoelhada perante as tábuas à noite dizendo algo como:
“Fique tranquilo, meu Senhor, vou derrotar aqueles malditos Soldados”.

Bem, foi basicamente esse meu progresso a respeito de minha pesquisa. Agora, dando uma
atualização sobre os meus filhos.
Primeiro, Lucie. Minha filha mais velha, que fez cinco aninhos. Sua festa de aniversário foi no
mês passado, onde ganhou presentes de todos da família e ficou muito feliz. Estava crescendo
como uma jovem saudável. Eu podia jurar que foi ontem quando ela deu seus primeiros passos e
gaguejou suas primeiras palavras, mas agora, estava andando firme com seus dois pés no chão.
Mesmo que ainda gaguejasse, aprendeu a falar com clareza. Suas palavras favoritas são
“Nuh-uh!” e “Buhhht!”.

Além disso, aprendeu a lançar feitiços de nível iniciante nas aulas extracurriculares de Sylphie
e Roxy. Seus dias eram gastos praticando magia pela manhã e balançando uma vareta com Eris à
tarde. Era como assistir a minha própria infância. A rotina pode parecer natural para Lucie, mas
para alguém de fora, ela parecia estar em Esparta. Por isso, não pude deixar de mimá-la quando
pude, o que explicaria porque começou a gritar “Papai!” e pular de emoção em mim ao me ver.

Extremamente fofo.

Sua festa de cinco anos parecia ter despertado um sentimento de “irmã mais velha” nela, pois
começou a cuidar de Lara e de Arus. Aparentemente, ela também pensa que o fiel escudeiro de
Lara, Leo, também é um de seus irmãozinhos, então ela e Lara começaram a enchê-lo de carinho.
Esses dias mesmo estava escovando seu pelo branco.

Foi realmente uma cena de aquecer o coração… Até que, mais tarde, descobrimos que ela
estava usando a escova de Sylphie para fazer isso. Deixar a escova de sua mãe cheia de pelo de
cachorro deixou Sylphie furiosa.

“Buhhht, mamãe e Leo tem ambos cabelos brancos!”. Essa foi a desculpa de Lucie. Acabei
sorrindo com isso. Crianças dizem cada coisa! Mas isso deixou Sylphie tão brava comigo que
ficou um dia inteiro me ignorando. Só me perdoou porque Lucie achou um jeito de retribuir na
mesma moeda comigo.

“Vou usar a escova do papai na próxima, então não fique brava com ele, tá bom?”

Isso foi ela tentando me defender do seu próprio jeito. Custou o meu pente, mas foi um preço
justo a se pagar. A única escova que um homem precisa são seus dedos.

Sobre Lara. Nossa futura salvadora de dois anos de idade estava, como sempre, sem expressão
e inabalável. Isso certamente não significava que é preguiçosa; agora que conseguia andar com
os próprios pés, parecia ser onipresente. Nem precisava se segurar em ninguém, era guiada
apenas por sua curiosidade. Herdou isso da mãe, não tenho nada a ver com isso.

Estava preocupado em deixá-la sozinha, mas talvez estivesse me preocupando demais — seu
cão de guarda, Leo, estava sempre lá para evitar que ela se machucasse. Se fosse em alguma
aventura e precisasse dormir, Leo iria se enrolar nela para mantê-la segura.

Lara, no entanto, parecia ver Leo como um mordomo. Atualmente, seu meio de transporte
preferido para viajar era subir nas costas de Leo, agarrar-se nele e cavalgar para além do
horizonte. Teve uma vez que Eris levou Leo para passear e percebeu que havia um tipo de
“mochila” nas costas de Leo. Lara havia dado um jeito de subir. Leo deveria aliviar nossas
preocupações, mas crianças sempre dão um jeito de aumentá-las.
Não tinha certeza do porquê, mas Lara gostava muito de Zenith. Ela costumava sentar no colo
de Zenith e ficar olhando para o rosto dela. Se você ignorasse o silêncio, poderia confundir com
uma cena comovente entre neta e avó.

Por último, Arus. Meu filho mais velho, agora, com um ano de idade, herdou o meu amor por
peitos. Ele amava tanto os grandes quanto os pequenos. Amava a sua mãe, Eris, é claro, mas
também amava os pequenos peitos de Sylphie e Roxy, até as melancias de Linia e Pursena. Tinha
um sorriso de pura alegria e satisfação sempre que seu rostinho era empacotado contra um par de
seios. Um grande apreciador que seguia os mesmos ideais que eu — um amante de todos os tipos
de peitos. Dito isso, também tinha aquele mesmo sorriso sempre que fazia xixi. Então, realmente
espero que esteja apenas pensando demais. Estou meio preocupado com o seu futuro, amigão.

Por sinal, sempre que eu tentava segurá-lo, ele chorava. Mesmo quando estava dormindo, se
virava quando meus braços o envolviam e quando abria os olhos, chorava como se eu fosse o
Bicho Papão. Tinha uma forte aversão a peitos masculinos. Isso me deu vontade de chorar…
Mas bem, não podia reclamar muito, já que não estava aqui quando ele nasceu, mesmo assim, me
senti rejeitado.

Entre seu amor por peitos e sua aversão a qualquer um que não os tivesse, temia que pudesse
começar a se envolver com mulheres em breve. Simplesmente as agarrando sem permissão.
Quando fosse mais velho, eu teria que sentar com ele para ensiná-lo a não fazer isso.
Definitivamente.

De qualquer forma, esse é o relatório da criançada. Se tivesse de dar um resumo para o


relatório deste ano, diria que foi frutífero. No final, terminaria com algo como: “Continue com o
bom trabalho”.

Quando terminei de refletir sobre o que aconteceu no último ano, a cerimônia de formatura já
havia acabado. Eu não era o orador da turma — como esperado. Não iriam dar o título a alguém
que faltou às aulas e ao exame de graduação. E mesmo se oferecessem, eu recusaria.

Nós podemos cortar a parte do duelo de exibição no pós-cerimônia. Também não pense que
caí na confissão romântica de alguma interesseira. Inclusive, gostaria de omitir a parte em que o
diretor, Jenius, disse que estava feliz por ter me recomendado quando apertamos nossas mãos, já
que teríamos essa mesma conversa nos próximos anos. Norn ainda estava na escola e eu queria
que Lucie a frequentasse no futuro. Estaria em dívida com ele novamente num futuro não muito
distante.

Ouvir que Lucie iria estudar aqui em breve deixou Jenius tão emocionado que começou a
chorar.

E a noite caiu. Todos nos reunimos no bar de sempre. O motivo? A festa de despedida de Cliff.
Minha festa de formatura também era uma das razões, mas considerando que me formei sem
nem fazer o teste final, sentia que não tinha nada para comemorar. Mesmo assim, apreciava o
sentimento.
Cliff iria para o País Sagrado de Millis dentro de um mês. Ali, a batalha começaria. Seria uma
batalha pessoal, por isso, não tinha certeza contra o quê ele estava lutando. Metade era,
provavelmente, ele mesmo, mas a outra metade permanecia um mistério. Cliff passou o ano
inteiro preparando-se para assumir… Alguma coisa. Ele pode ter enfrentado algumas
dificuldades ao longo do caminho quando era pego pelas armadilhas carnudas de Elinalise, mas
com um pouco de amor e carinho essas contusões transformaram-se em experiência e amor.
Agora, ele realmente parecia estar indo à guerra.

— Juro que vou chegar ao topo da igreja de Millis. Quando o fizer, retornarei orgulhoso para
levar Lise e Clive para casa!

Elinalise ouviu essa declaração maravilhada. Ela era forte. Sabia que, se fosse comigo, e Roxy
dissesse que iria viajar o Continente Demoníaco para tornar-se a Lorde Demônio, eu ficaria
arrasado. Ficaria preocupado que minha brilhante Roxy virasse uma Lorde Demônio infame e
idiota, coisa que eles já têm.

Acreditar em alguém o bastante para esperar por ele é mais fácil de falar do que de fazer; você
poderia se despedir de alguém com toda esperança e boa intenção do mundo, mas nada disso
realmente os protegeria. E parecia que Elinalise sabia bem disso enquanto olhava para Cliff. Sua
crença nele não era cega; era forte. Se tivesse receios sobre isso, nunca deixaria transparecer o
suficiente para que Cliff notasse.

Momentos como esses me fazem lembrar de que seus longos anos a ensinaram algumas
coisas. Foi só quando a festa acabou que ela veio a corrigir algumas de minhas suposições.

— Rudeus, pode vir aqui um momentinho? — Elinalise me pediu para acompanhá-la até o
lado de fora.

Ela estava interrompendo o harém dos sonhos. Sylphie estava usando a minha coxa direita
como travesseiro, Roxy estava sentada em minha coxa esquerda enquanto bebia e Eris
descansava sua cabeça em meu ombro direito. Minhas mãos esquerda e direita tinham algo bem
macio para explorar, e, bêbado, tive uma ideia verdadeiramente demoníaca. Comecei a calcular
como poderia levar as três para a cama ao mesmo tempo.

Entretanto.

— Oh… Claro.

Ver a expressão de Elinalise me deixou um pouco sóbrio. Sua expressão era solene. Não era
uma expressão que se teria numa festa.

Já sabia o porquê. Também sabia que não seria de ajuda alguma para se estivesse bêbado.
Imediatamente me desintoxiquei do álcool.

— Quié qui ocê tá fazeno, Rudy… Tá traino? Traí é fei… Dexa que eu faço isso… Mmrgh…

Acalmei o devaneio da embriagada Roxy com meus lábios e a deitei, então…


— Mmph, Rudy, suas coxas são tãoooo macias…

Coloquei a cabeça de Sylphie no colo de Roxy e, por fim…

— Rudeus… quero que o meu segundo seja um menino…

Deitei Eris no ombro de Roxy… Aqui. Três esposas foram retiradas de cima de mim com
êxito e me levantei.

— Certo, estou indo.

Saí do bar junto com Elinalise.

O inverno tinha acabado, mas a neve em Sharia tendia a permanecer por mais tempo. O frio
fora do bar continuava o mesmo. Essa brisa continuaria por um tempo.

— Então, Rudeus, é sobre Cliff. Preciso de um favor.

Elinalise foi direto ao ponto. Já tinha um pressentimento de que seria algo a respeito de Cliff.
Elinalise passou o ano inteiro se preocupando, também; como não estaria agora?

— Odeio pedir esse tipo de coisa pelas costas de Cliff… mas devo dizer, estou preocupada.

A respiração de Elinalise não estava transpirando só por causa do frio. Da perspectiva de


Elinalise, Cliff ainda era uma criança. Ela o amava como marido, é claro, mas uma parte desse
amor era uma preocupação materna, algo que sentiria por um irmão mais novo ou um filho. Se
fosse assim que o visse, é claro que não o deixaria simplesmente ir.

— Posso te pedir para ir com ele?

— Você tem certeza? — perguntei, surpreso. Pensei que Elinalise respeitasse a decisão de
Cliff.

— Você só tem que ficar de olho nele no começo… É importante ele dar o primeiro passo,
certo? Sei que Cliff pode fazer isso, mas entrar nisso tudo do nada, quando todo mundo já tem
seus amiguinhos, não é exatamente algo que o Cliff saiba fazer…

Ela não precisava tratá-lo como uma criança tímida, mas não estava tão errada assim, Cliff era
assim às vezes. Se considerarmos que ele não fez um único amigo durante todo o seu tempo na
universidade além de nós, então sim, era justificável. Eu poderia tranquilamente ver Cliff
chegando no País Sagrado de Millis sozinho, sendo evitado por seus colegas e mesmo assim
determinado a dar o seu melhor…

Merda, já podia sentir as lágrimas escorrendo.

— Mas lembre-se de que prometi não ajudá-lo.

Queria que Cliff tivesse sucesso, que subisse na hierarquia da Igreja Millis o quanto pudesse.
Porém, isso não significava que ele precisava ficar no lugar mais alto. Só queria que chegasse tão
longe quanto quisesse. Isso não tinha nada a ver com reunir aliados para Orsted: esse era o sonho
do meu amigo e eu o compartilhava com ele.

Mas seu sonho era para ser realizado sozinho, então não podia ajudá-lo. Talvez ele não tenha
dito isso, mas esse era o significado implícito de quando concordei com ele um ano atrás.

— Não tem nada que você possa fazer?

—…

— Só o comecinho já estaria de bom tamanho, juro. Você não teria que se intrometer, só dar
alguns conselhos quando ele ficasse contra a parede seria muito…

— Hmm.

Minha resposta não seria dar a ela aquela coisa de “promessa entre homens”. Também estava
preocupado com Cliff. Ele tinha talento, mas também tinha suas fraquezas, uma delas tão ruim
que iria atrapalhá-lo logo de cara. Não queria ver Cliff falhar sem sequer conseguir mostrar seus
pontos fortes.

Nesse quesito, talvez um empurrãozinho aqui, outro ali, não fosse de todo mal. Cliff não ia
gostar, mas, você poderia dizer que os pontos fortes de seus amigos são uma extensão dos seus
próprios. Também pode-se dizer que ter um amigo para te ajudar num momento de necessidade
era só algo que Cliff conquistou em sua vida escolar; neste caso, mostraria o quão forte ele seria
se eu o ajudasse. No entanto, não faria muito para ajudá-lo, é claro. Seria só um empurrãozinho.

—…

Certo, ela me convenceu.

Beleza, mas e quanto a um recrutamento? Estava planejando trabalhar no Reino do Rei


Dragão enquanto Cliff estivesse em Millis. Até havia informado Aisha. Os preparativos já
estavam em andamento. Mudar o curso para Millis causaria algum problema…?

Seria difícil montar a Loja Zanoba e vender esculturas de uma raça demoníaca no País
Sagrado de Millis, já que estaríamos bem debaixo do nariz da Igreja de Millis, mas poderia
montar uma filial do Bando Mercenário enquanto estivesse lá. Poderíamos nos encontrar com
mercenários locais para reunir pessoal e trocar informações, então esperar pelo sucesso de Cliff e
voltar para fazer a loja bombar.

— Certo, vou para Millis também.

— Ah! Muito obrigada, Rudeus!

Elinalise certamente queria ir por conta própria. Deixar Clive sob os cuidados da minha
família e ajudar Cliff no País Sagrado de Millis, mas deve ter feito uma promessa de criar Clive
enquanto aguardava o retorno de Cliff.
— Permita-me esclarecer algo: eu que decidirei se vou ajudá-lo ou não.

— Claro, isso é tudo que peço.

Elinalise pôs uma mão em seu peito e suspirou de alívio. Ela realmente faria qualquer coisa
por seu marido, huh? Não estava insatisfeito com minhas atuais esposas… Mas cara. Cliff era um
homem de sorte.

Não muito tempo depois, a festa de despedida acabou. Era hora de carregar minhas três
esposas caídas de embriaguez para casa e colocar cada uma delas em suas camas.

As crianças já estavam dormindo; foi graças a Lilia e Aisha que pude sair e encher a cara sem
me preocupar com as crianças em casa. Sentindo que devia-lhes algumas palavras de gratidão,
voltei à sala para falar com Aisha. Enquanto estávamos ali, precisávamos conversar sobre o
pedido de Elinalise. Foi um bom momento para revisar os planos de expansão (revisados) do
Bando Mercenário com Aisha

Com isso, entrei na sala para encontrá-la envolta numa atmosfera tensa. Lá estava Norn, que
havia se despedido no meio da festa. Lilia e Aisha, que vigiavam a casa, também estavam lá.
Todas as três estavam paradas ao redor da mesa, com olhares obscuros.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntei.

— Oh, Irmãozão… — disse Aisha. — Aqui, dê uma olhada nisso.

Diante das três, havia uma única carta. Quando a peguei estava escrito no remetente: “A Casa
Latria”.

Lembrava desse nome. Era minha família por parte de mãe. Parece que minha carta finalmente
obteve uma resposta. Não pude deixar de notar que o envelope já havia sido aberto mesmo que o
destinatário fosse eu, mas tudo bem. Dentro, havia uma única carta, escrita em uma única folha.

“Em resposta à sua carta, a respeito de minha filha, Zenith, agora minimamente consciente:
Solicito que traga Zenith para casa na Residência Latria de imediato. Se Norn Greyrat e Aisha
Greyrat também estiverem presentes, deverão vir também.”

— Condessa de Latria, Claire Latria.

Foi uma mensagem bem curta. Quero dizer, claro, não ficava de rodeios… mas parecia um
pouco direto ao ponto demais para contar como uma carta.

Era um decreto.

— Depois de todo esse tempo, voc…

Eu me interrompi antes de terminar a frase. Pensando racionalmente, fazia mais ou menos


cinco anos desde que mandei a carta. O País Sagrado de Millis era muito longe daqui, com uma
jornada de ida levando até um ano a cavalo. O serviço postal daqui não era lá dos melhores.
Cartas podiam parar em qualquer canto do mundo por algum engano. Os mensageiros podiam
ser atacados por monstros a qualquer instante, então sempre tinha a possibilidade das cartas
sequer serem entregues. Com isso em mente, cinco anos era um tempo razoável para uma
resposta.

— Hm? Espera aí, isso é a carta inteira? — perguntei.

— Sim, só isso. — Lilia respondeu. Não parecia haver alguma coisa a mais que estivessem
escondendo de mim.

— Entendo.

Era uma carta bem seca para algo que levou cinco anos. Pera, por que era tão curta assim? A
Casa Latria certamente sabia da longa jornada que essa carta iria ter. É óbvio! Eles nos
escreveram múltiplas cartas para terem certeza de que alguma delas chegaria a nós. E se o
tamanho fosse para garantir que o esforço não acabaria sendo em vão por conta de alguma falha
de comunicação, então tudo faria sentido. O tom autoritário era para transmitir sua ansiedade
pela nossa ida.

Satisfeito com minhas deduções, virei para as minhas irmãs, que… Não chegaram à mesma
conclusão.

— Hahhh…

— A vovó… Continua a mesma de sempre, huh?

Norn bufou de exasperação, enquanto Aisha olhava para a carta com um olhar vazio. Pareciam
desejar nunca mais terem visto aquele nome.

Então Claire só escrevia daquele jeito mesmo.

—…

Olhei ao redor e vi que até Lilia parecia preocupada. Claire realmente era tão ruim assim?
Nunca a conheci, então não sabia.

— Mestre, o que deseja fazer? — Lilia me perguntou.

Estava determinado. Procurava uma desculpa para ir a Millis e isso se encaixou como uma
luva. Foi um golpe de sorte.

— Acho que devíamos fazer o que a carta diz e levar mamãe até Millis.

—…

—…

Minhas irmãs e minha meia-mãe se entreolharam. Acho que não devia ter dito isso. Quem era
essa Claire? Sim, a carta era um pouco rude, mas sua filha havia perdido as memórias e estava
num estado de semiconsciência. Que parente não demandaria ver sua filha sabendo de seu
estado?

Estava certo de que os Latrias estavam procurando por ela. Zenith era uma filha pródiga para
eles, mas de acordo com Paul, investiram muito dinheiro no Esquadrão de Busca e Resgate de
Fittoa, então devia isso a eles. E dado que pareciam ter algum poder dentro de Millis, valia a
pena conhecê-los.

— Bem, iríamos para Millis uma hora ou outra, então é melhor matar dois coelhos com uma
cajadada só. Parece a parada perfeita enquanto estivermos lá a trabalho.

— Hã? Mas irmãozão… — Aisha interrompeu precipitadamente. — Nós não íamos para o
Reino do Rei Dragão no próximo mês?

Claro, esse era o plano. Queria construir uma filial do Bando Mercenário no Reino do Rei
Dragão, fazer conexões com o Deus da Morte Randolph e a Rainha Benedikte, e obter conselhos
para manter a Loja Zanoba. Claro que com Aisha me ajudando.

Assim como no Reino Asura, precisava que Aisha viesse comigo para montar a filial do
Bando Mercenário. Aisha, com sua mão hábil para recrutamentos, seria a chave para deixar tudo
em ordem. O primeiro mês seria só para estabelecer as bases, o segundo seria para Aisha ir
ajudando até que funcionasse de forma independente. Ela tinha talento para isso.

— Dado o conteúdo da carta, nós iremos mais cedo ou mais tarde. Pense nisso como priorizar
Millis… E dar um oi para a vovó enquanto estivermos por lá.

— Aww…

Aisha fez um beicinho cheio de desagrado. Ela pode ter se tornado uma adulta há alguns
meses, mas ainda não havia parado de fazer isso.

Subitamente, Norn se levantou.

— Irmão… Não quero ir — disse.

Anunciou em alto e bom tom: “Não vou”, não foi um “Eu não posso ir”, mas sim um “Eu não
quero ir”. E não fez beicinho como Aisha; sua expressão era séria.

— É uma época importante para meus estudos e o conselho estudantil. Não posso ficar fora
por tanto tempo assim…

— Bem… Justo — admiti. Posso ter me graduado, mas Norn ainda estava no seu último ano.
Por mais um crucial ano, ela tinha que ir às aulas, fazer suas provas, e ter uma graduação de
verdade. Diferentemente de mim, Norn passou seus últimos seis anos na escola realmente indo à
escola. Viajar agora iria fazer tudo que construiu até agora desmoronar.

— Uhh, Irmãozão. Um… Oh, sim, o arroz. Nós temos uma grande colheita vindo desse arroz
que você tanto ama, então não posso ir!
Aisha soava como se tivesse pensado nessa desculpa enquanto falava. Era uma desculpa
realmente ruim — Aisha já havia contratado pessoas do Bando Mercenário para construir
arrozais na periferia e depois plantá-los. Também estava ciente que Aisha contratou um
supervisor e que sequer iria lá presencialmente. Sabia de tudo isso.

Eu podia falar isso e forçá-la a vir, mas Aisha era uma trabalhadora instável. Forçar ela a vir
iria azedar seu humor, então seria mais um incômodo do que uma ajuda. Contudo, eu também
não conseguiria fazer muito na filial do Bando Mercenário se ela não viesse junto. Não
conseguia fazer o que ela fazia…

Espere aí. Só porque estaria em Millis, não significava que tinha que ver Claire, huh?

— Tudo bem, Aisha. Se você se recusa tanto a vê-la, não vou forçá-la a se encontrar come ela,
mas, pelo menos, venha a Millis comigo. Só eu, Lilia e Zenith visitaremos a Casa Latria, então
você pode focar no Bando Mercenário.

— Hooray. Obrigada, irmãozão!

Aisha sorriu de orelha a orelha. Uau. Uma reação e tanto. Ela odiava Claire tanto assim?

Pensando por outro lado, até Lilia estava permitindo a Aisha agir assim. Normalmente, ela
reagiria a algo assim com uma pancada na cabeça.

— Entendido, Mestre. Eu devo ir com você.

Lilia abaixou sua cabeça tão desapaixonadamente como sempre, mas tinha a sensação de que
ela não queria ver Claire tanto quanto Aisha. Considerando sua posição, não poderia culpá-la:
Zenith era uma seguidora de Millis, o que significava que sua mãe, provavelmente, também era.
Não sabia o que Millis pensava sobre bigamia, mas, como seus ensinamentos proibiam
explicitamente a prática, não achei que seriam calorosos com qualquer esposa que não fosse a
primeira.

— Muito obrigado, Lilia.

— Oh, não há de quê, só estou fazendo meu trabalho.

Cuidar de Zenith era um trabalho de vinte e quatro horas, sete dias por semana. Lilia e Aisha
podiam ajudar; se não tivesse ao menos uma delas comigo, estaria com problemas.

— Tudo bem, Aisha. Com isso fora do caminho, você pode começar a mudar nosso destino
para o País Sagrado de Millis?

— Certinho. Quando estaremos indo?

— Hmm, deixe-me ver…


Por que não partir no mesmo dia que Cliff? Não precisávamos, mas havia uma distância a ser
percorrida entre o círculo de teletransporte de Millis e Millis propriamente dita. Não se
qualificaria como “ajudá-lo”, então é melhor irmos juntos.

— Que tal um mês, contando a partir de hoje?

— Certo.

Ainda assim, minha avó, ein? Que tipo de pessoa será que ela é? Devo admitir que as reações
de Aisha e Norn me assustaram um pouco.

Então, mudança de planos: não vamos mais ir ao Reino do Rei Dragão. Agora iremos
construir a filial do Bando Mercenário no País Sagrado de Millis.

Aisha resmungava o tempo inteiro, mas ainda fazia os preparativos. Começou redigindo e
arquivando a papelada que anteriormente era para o Reino do Rei Dragão para que agora fosse
para Millis. Pelo que percebi, a papelada detalhava que tipo de pessoal precisaria em cada país.

Não tínhamos ninguém numa posição do governo desta vez, então qualquer coisa que
quiséssemos fazer, como um recrutamento, precisaria de um longo processo. Por enquanto, tinha
uma meta de meio ano. Depois desse tempo, poderíamos avaliar se realmente valia a pena, ou se
era uma perda de tempo.

Decidi informar Cliff também. Que, por pura coincidência, eu havia sido chamado para a casa
da família de Zenith, então sugeri que devêssemos ir juntos. Cliff riu, mas não parecia
incomodado.

— Já tinha o pressentimento de que você arrumaria uma desculpa para vir junto.

E foi basicamente isso. Uma reação reconfortante, apesar de tudo. Fiquei me perguntando se
Cliff estava se sentindo excluído, já que exigi ir com Zanoba, mas não disse nada quando foi sua
vez. Como se ele temesse que eu o considerasse menos amigo.

Qual é, Cliff, meu parceiro, você sabe que eu nunca faria algo assim.

No total, éramos quatro pessoas indo com Cliff para Millis. Aisha, Zenith, Lilia e eu. A
ausência de Lilia e Aisha deixaria a casa extremamente carente de cuidadoras qualificadas, então
Sylphie ficaria em casa. Roxy disse ter algumas lembranças ruins com o País Sagrado de Millis
por ser um demônio, então ficaria para trás.

Eris queria ir também, mas Lilia se opôs categoricamente. Madame Eris ficaria melhor longe
da Casa Latria, pois certamente entraria numa briga, disse ela. Estava cético, mas pela forma que
Lilia a descreveu, podia dizer que essa senhora Claire da Casa Latria parecia ser uma pessoa bem
difícil de lidar. E definitivamente conseguia entender porque Eris ficaria melhor fora disso. Fazer
a família de Zenith ter rancor de mim não era o que queria, além disso, teríamos que levar seu
bebê numa jornada perigosa. Assim, Eris cedeu.
Essa era uma ocasião rara, onde nenhuma das minhas esposas viajaria comigo… Mas ei, a
vida é assim mesmo. E assim, nossos preparativos continuaram, até que um dia, pouco antes de
estarmos prontos para partir, um acontecimento surpreendente forçou uma mudança nos planos.

Sylphie estava grávida.

Mushoku Tensei: Reencarnação do


Desempregado – Vol. 20 – Cap. 04.3 –
Interlúdio – Cerimônia de maioridade.
Vamos falar sobre minhas irmãs mais novas.

Norn estava dando duro em seu cargo de presidente do conselho estudantil. Ultimamente, para
a maior parte dos estudantes, ela era a única pessoa que vinha à mente quando mencionavam
esse título. De novo, talvez fosse porque a maioria dos estudantes que presenciaram a era de
Ariel já haviam se graduado.

Norn era uma presidente popular. Muitos alunos até chamavam ela de “Nornie”. Ela não
parecia gostar disso, mas ei, era fofo! Ariel tinha a reputação de ser uma presidente confiável, ao
passo em que Norn tinha reputação de ser fácil de se relacionar, contudo (e isso pode ser fruto da
influência de seu fã clube), ela tinha zero perspectivas de romance. além de também ser tratada
como uma espécie de mascote da escola. Uma existência inocente, inofensiva, assexuada.

Claro, ela não deixou de dar duro nos seus estudos. Escutei que ela tinha sido reconhecida
como no nível intermediário no Estilo Deus da Espada durante suas aulas de esgrima um dia
desses. Seu progresso poderia ser um pouco lento, se comparado às pessoas que conheci, mas eu
acho que é assim que pessoas normais são. Também era bastante estudiosa sobre magia, além de
ter assistido muitas outras aulas. Eu não tinha uma ideia precisa sobre qual era seu currículo, mas
na última que vez que pus o pé na universidade, acabei escutando alguém dizer: — Cara, eu vejo
a Presidente Norn em todo lugar. — Ela nunca chegava a ser a melhor em alguma coisa, mas era
aplicada em uma ampla gama de tópicos para compensar.

Recentemente, Aisha vem se apegando muito a Ars. Embora fosse verdade que as habilidades
maternas grosseiras de Eris transpareciam no comportamento de Ars, Aisha achava garotos
bebês adoráveis e ela o adorava. Parecia que ela tinha um favorito. Ela adquiriu o hábito de
dizer: — Oh, Ars é tão fofo! — ultimamente, e eu não estava certo do que aquilo significava,
exatamente.

Lógico, não tem problema mimar um bebê. Apenas tinham algumas partes que me
preocupavam, tipo, talvez ela o paparicasse um pouco demais… nos últimos tempos, quando Ars
começava a chorar de fome, ela expôs os próprios seios e tentou amamentá-lo. Sua justificativa
era que tinha pensado que ele pararia de chorar se desse algo pra ele sugar, mas eu não sei… Ars
se animou e começou a rir enquanto era sanduichado por seus seios; então pûde entender de onde
vinha seu ponto; mas eu ainda estava bastante receoso. Quando pensei em como ela não tinha
ninguém para mostrar os peitos além de um bebê, bem, você sabe.

Eu era pequeno no grande esquema das coisas.

Ela estava lidando muito bem com o bando mercenário. Quando declarei que o bando
mercenário iria servir como a “Corporação Orsted Intel Network” e se propagar por todo mundo,
ela sequer exigiu uma explicação. Ela logo começou a trabalhar no arranjo de pessoal,
propriedade e negociações para construir filiais em outras nações. Também era muito boa em
manter Linia e Pursena na coleira, agora, Aisha não era particularmente dotada como uma
gerente. Ouvi que ela tendia a ser especialmente dura com o tipo de funcionário incompetente
que repete os mesmos erros de novo e de novo. Eram Linia e Pursena quem extraíam o melhor
desses empregados, é claro.

Ei, pontos fortes e fracos. Aisha era o cérebro da operação, e ela era muito boa nisso.

Ambas, Norn e Aisha, estavam se aproximando de seus décimos quinto aniversário. Não quero
ficar me repetindo, mas, nesse mundo, tratavam aniversários de quinze anos como marcos que
deveriam ser largamente celebrados, ainda mais os quinze anos, já que era o ponto em que
alguém era considerado um adulto. Era frequente que nobres celebrassem com uma grande festa.

Para os humanos desse mundo, a Cerimônia de Maioridade talvez fosse o dia mais importante
de suas vidas. Imagino que isso não precise de explicação, mas planejava celebrar o aniversário
das duas. A hora era boa: receberia um pagamento gordo de Orsted, gastaria tudo na maior
construção que o dinheiro poderia pagar, convidaria cada amigo e figurão que conhecia, faria-os
arrumar os presentes mais incríveis que pudessem e dar um verdadeiro tratamento de princesa
àquelas duas.

Com aquele nível de animação, contei tudo para Roxy.

— Eu não sei quanto a Aisha, mas eu acredito que Norn ficaria mais feliz com algo um pouco
mais… prático. Talvez devesse repensar isso…

E tudo foi pelos ares.

Basicamente, elas não eram da realeza, então uma festa em casa seria melhor.

No fim, Roxy acariciou minha cabeça e disse: — Você quer fazer de tudo no aniversário delas
porque nunca celebrou seu próprio aniversário de quinze anos, não é?

Negativo. Eu nunca me lixei pro meu décimo quinto aniversário…, mas ei, Roxy estava
fazendo carinho em mim, então quem eu era para poder objetar? Eu sou um bom rapazinho,
hehehe.

Moderação poderia ser boa do seu próprio jeito, afinal, Roxy me permitiu abrir os olhos à essa
possibilidade.
— Por enquanto, deveríamos conversar com o resto da família para bolar um novo jeito de
celebrar.

E assim, planejamos uma reunião de família secreta com todos exceto Norn e Aisha.

Sediamos a reunião em nosso porão sob o véu da noite. A família inteira, excluindo Aisha e
Norn, se juntaram ao redor da luz incandescente de uma vela solitária.

— Bem-vindos, meus cúmplices, a Assembleia das Trevas—

— Hm, Rudy, poderia iluminar um pouco mais? Está difícil escrever assim.

Nossa secretária, Roxy, interrompeu minha introdução dramática com reclamações. Desejei
que ela tivesse respeitado o clima.

— Digo, se passar alguma luz pela porta, Aisha pode acabar notando a gente.

— Por que precisamos nos esconder, em primeiro lugar?

— Bem… sabe, o que mais podemos fazer?

Isso não é algo que se deva esconder? Tipo, uma garota não gostaria que um garoto
descobrisse o que ela estava planejando pro Dia dos Namorados, certo?

— Vai ser muito mais difícil de preparar tudo se teremos que manter isso em segredo. A
menos que tenhamos uma boa razão, eu gostaria de informá-las de antemão — declarou Lilia.

Bem, no fim das contas, ser transparente também faria as coisas mais fáceis. Fazia sentido. Era
certo que seria menos estressante fazer isso abertamente, do que em segredo.

—Hmm…

Elas tinham um ponto. Nós não precisávamos manter isso em segredo. Agora que pensei sobre
isso, meus próprios aniversários de cinco e dez anos foram festas surpresas, então eu tinha a
noção pré moldada de que esse tipo de coisa deveria ser planejada em sigilo. Considerando o que
aconteceu da última vez, Norn e Aisha já deveriam ter percebido que iríamos celebrar seus
aniversários àquela altura. Não havia qualquer razão para não contar pra elas.

— Muito bem, vamos contar para elas apenas que estamos planejando alguma coisa.

Também iríamos com tudo. Dessa forma, haveria menos preocupações com quais presentes
comprar. Aisha era amiga de todos no distrito comercial, sendo assim, caso eles pensassem que
eu estava agindo de forma suspeita, poderiam acabar contando para ela: — Ei, Aisha, querida,
seu irmãozão veio aqui e comprou algumas calcinhas adoráveis — e acabar com nossa cobertura.
Claro, eu não iria comprar calcinhas pra elas. Foi apenas um exemplo.

Certamente não estava pensando sobre quando comprei um par de calcinhas que queria ver
Sylphie usando e acabei sendo achincalhado pela Aisha com um sorriso malicioso no rosto.

— Mas devemos manter os presentes em segredo, pelo menos — comentou Eris, seguido
pelos acenos de todos os demais.

— Concordo, mas também acredito que deveríamos decidir o que vamos dar a elas para que
não acabemos presenteando a mesma coisa — acrescentou Sylphie.

Esse era um excelente ponto. Dado o quão popular eram aquelas duas, era óbvio que
receberiam vários presentes, de várias pessoas que comparecessem a sua festa. Norn tinha o
conselho estudantil e um fã clube, enquanto Aisha tinha o bando mercenário e o povo do distrito
comercial.

— Então, vamos discutir o que todos planejaram dar enquanto estamos aqui.

Com isso, o tópico de discussão mudou para o conteúdo dos nossos presentes. A maioria já
tinha escolhido alguma coisa.

Lilia daria um lenço para Norn e um avental para Aisha. Sylphie daria um livro para Norn e
uma caneta tinteira para Aisha. Roxy optou por uma armadura feita sob medida para Norn e uma
pá de jardinagem (mágica) para Aisha. Eris presenteria Norn com um boldrié e Aisha com um
cinto.

Parecia que todos tinham pensado bastante sobre seus presentes. Eu mesmo também pensei
sobre. Meu plano era dar uma estatueta de Paul, a qual eu comecei a fazer apenas alguns dias
antes. Norn amava Paul. Se houvesse alguém que ela desejava que pudesse estar lá para vê-la
crescer, era Paul. Talvez eu receba uma bela de uma encarada desgostosa pelo presente… mas ei,
só atravessamos pontes quando chegamos ao outro lado.

Já com Aisha, estava meio perdido. Não sabia o que ela queria. Sabia que ela gostava de
coisas fofas. Seria difícil de imaginar baseado em sua personalidade competente e proativa, mas
ela era obcecada com tudo que era femino; amava roupas cheias de babados, acessórios
brilhantes e tudo que se encaixava nesse escopo. Algo assim iria funcionar como presente…, mas
ela estava recebendo renda pela consultoria que prestava ao bando mercenário, então ela
comprava o que queria e quando queria.

— Me diga, qual presente deixou vocês todas alegres quando atingiram a maioridade? —
propus as mulheres. Pesquisa era muito importante.

— Foi há um bom tempo atrás, mas eu recebi um acessório de cabelo dos meus pais. Foi a
tentativa deles de dizer para eu ao menos tentar parecer uma dama.

Essa foi Lília. Eu não sabia que tipo de pessoa ela era aos quinze, mas ouvi que ela não era
exatamente do tipo que combinava com a moda. Ela cresceu em um salão de treino.
— Esqueci em qual dia eu nasci, então eu não tenho… oh, certo! O grupo de Ariel me deu
várias coisas, como roupas, sapatos…

Então os presentes de Sylphie foram vestimentas. Tipicamente, ela se vestia de forma simples
e masculina, então eles provavelmente deram tudo isso para ela ao menos poder usar em privado.

— Não tive muitos. A Tribo Migurd nunca teve esse tipo de costume.

Muito justo, Roxy. Só pra constar, eu dei um chapéu a ela como presente de casamento, então
ela poderia usar isso como exemplo…

— Vejamos, tive Ruijerd me reconhecendo como guerreira… e Rudeus fez, um… aquilo
comigo!

Eriz e eu realmente fizemos Aquilo. Foi um pouco embaraçoso dizer isso em voz alta, mas
aquela foi a primeira vez em que nós fizemos aquilo. Você sabe, brincar de casinha.

Falando nisso, Aisha parecia ter uma quedinha por mim. Talvez ela gostaria de fazer aquilo.
Não, repensando o assunto, eu jamais poderia fazer exatamente aquela coisa com Aisha, mas
talvez este fosse um bom presente desde que não fosse longe demais, a ponto de culminar
naquilo. Poderíamos ir a um restaurante à beira mar e brindar em nome de seus belíssimos olhos,
deleitarmo-nos com qualquer peripécia que o chefe trouxesse à mesa e dar a ela uma noite de
Cinderela que acontece apenas uma vez em toda a vida…

O mero pensamento me deixou um pouco embaraçado.

— Hmm, não consigo me decidir sobre o que dar pra Aisha.

— Acho que ela ficaria feliz com qualquer coisa que viesse de você — apontou Sylphie com
uma risadinha.

Isso pode ser verdade, mas isso fazia a escolha ser ainda mais importante. Era por isso que eu
queria dar algo que faria ela super feliz. Hmm… talvez devesse apostar em um presente luxuoso?
Como um diamante de cem mil quilates. Orsted me diria onde achar um se eu perguntasse.
Poderia me dizer que eu teria de arrancá-lo da barriga de um behemoth que eu não hesitaria.

— Por que não dar a ela um presente que faria você pular de alegria?

A sugestão de Roxy fez soar um click na minha cabeça. Ela estava completamente certa.

— Entendo… é isso que eu vou fazer.

Acenei profundamente com a cabeça agora que encontrei minha resposta.

Sabia qual seria o presente.

Depois de algumas outras reuniões adicionais, as preparações estavam avançando. Dissemos a


Norn e Aisha que faríamos uma festa de aniversário para elas e que deveriam deixar suas
agendas livres para o dia.
As duas ficaram felizes por ouvir isso. Eu esperava que Norn dissesse: — Não preciso de
nada! — Ou alguma coisa parecida. Invés disso, no entanto, ela baixou a cabeça e disse com
sinceridade: — Muito obrigada. — Era raro ver Norn agindo de forma tão submissa… mas
pensando mais a fundo, ela só me esnobava quando estávamos na escola. Ela tinha uma
reputação a zelar ali, então talvez fosse natural.

Achei que Aisha seria mais direta ao ponto de começar a pular de tão animada que estava,
contudo, ela não o fez. Pelo contrário; seus olhos se arregalaram de surpresa conforme
murmurava: — Oh, verdade, sou uma adulta agora. — Processando as coisas meio devagar.

Dado o quão inteligente era, talvez algo estivesse se passando por sua mente. Talvez eu
pudesse ficar ao lado dela durante a festa e lhe dar algumas lições especiais para adultos… nah,
melhor não. Eu não era adulto o suficiente para me auto intitular como um com seriedade. Se eu
começasse a contar para ela como o mundo era, qualquer coisa que eu dissesse poderia voltar
para puxar meu pé.

De qualquer forma, nós as informamos sobre a situação, agora tudo que faltava era esperar
pelo dia especial.

O grande dia finalmente chegou. Norn foi para a escola, como de costume.

— Tentarei voltar o mais cedo que puder — ela disse. Bom, ela devia estar animada.

Aisha saiu cedo naquela manhã, rumo ao escritório do bando mercenário… mas já estava em
casa ao meio dia. Ela aparentava ter terminado seu trabalho cedo. Pensei que ela chegaria
carregando presentes dos membros do bando, mas acabou voltando de mãos vazias.

— Você não ganhou nada?

— Hmm, eu disse pra eles que era meu aniversário. Talvez seja porque eles são membros do
povo-fera e realmente não conheçam o costume.

Dito isso, ela teve muitas pessoas lhe dando parabéns, então estava bem para cima, mas as
pessoas do distrito comercial também não deram nada pra Aisha?! Bem, eu acho que ser um
cliente não faz de você um membro da família… mas ei, nem todo presente tinha que ser grande
coisa. O que importa é que você queira parabenizar alguém. É o pensamento que conta!

— Ei, Irmãozão, posso ver você trabalhar?

— Sim, é claro.

Aisha se sentou à mesa de jantar e assistiu absorta enquanto preparávamos a festa. Ela
observou Lilia e Sylphie indo e voltando da cozinha e sala de jantar. Assistiu Eris e Roxy
retornarem de sua ida ao mercado com uma montanha de compras. Me viu ajudar um pouco em
tudo que poderia para preparar a decoração. Ela contemplou tudo sem dizer qualquer coisa.
Ser observado deixou o trabalho um pouco mais difícil, mas ela era a aniversariante, e eu disse
que estava tudo bem, então era meio complicado dizer pra ela para voltar de tarde. Isso, e tudo
que ela fez, foi apenas assistir. Aisha realmente não disse nada ou interviu; apenas ficou no
mundo da lua enquanto trabalhávamos.

Mesmo quando Zenith se sentou ao seu lado e começou a fazer carinho nela, Aisha não disse
nada e continuou assistindo.

Não obstante, quando Leo repousou a cabeça no colo de Aisha, ela não prestou muita atenção
e continuou assistindo.

Em algum ponto, Ars começou a chorar. Ela se levantou por pouco tempo e logo retornou para
assistir.

Até quando Lucie veio até ali e perguntou para sua Irmãzona Aisha se poderiam brincar
juntas, ela apenas sorriu, disse que estava um pouco ocupada no momento e continuou
assistindo.

Ela assistiu, e nada além disso. Não consegui dizer o que ela estava pensando. Talvez estivesse
contemplando tudo que vem junto da idade, ou quem sabe estava se divertindo com o quão
desastrados éramos em nossas tarefas. Fosse como fosse, eu não sabia dizer.

Eventualmente, o crepúsculo chegou. Finalizamos todas as nossas preparações sob o olhar


vigilante de Aisha. A sala de jantar estava completamente enfeitada, e em um dos cantos da sala,
estava uma montanha de presentes embrulhados que planejávamos dar às garotas. Sobre a mesa,
estendia-se um lindamente organizado acervo de comida; planejamos começar a preparar o prato
principal quando Norn voltasse.

Tudo que restava era aguardar Norn. Ela estava atrasada? Se ela fosse ficar fora por mais
algum tempo, teria sido melhor ir buscá-la. Era nisso que estava pensando quando Norn chegou,
cedo, assim como havia dito que faria.

— Olá, estou em casa.

Os braços de Norn rodeavam uma gigantesca e ultrajante pilha de presentes. Ela carregava um
buquê na mão esquerda. Na direita, estava uma caixa de madeira recheada com todo tipo de
coisa; desde roupas e acessórios de cabelo a artefatos com formas misteriosas, cujas utilidades eu
não poderia começar a imaginar.

— Desculpe, estou atrasada. O pessoal começou a me dar tudo isso quando eu tentei sair…
planejei deixar tudo no meu dormitório, mas não consegui colocar tudo dentro do armário.
Pensei em trazer esses para casa, mas minha bolsa rasgou no caminho até aqui…

Parecia que uma bela multidão tinha enchido ela com uma quantia igualmente grande de
presentes; esse era o tanto de pessoas na escola que queriam desejar um feliz aniversário à Norn.
Acho que eles não diziam que ela era a presidente do conselho “fácil de se relacionar” por nada.
Apenas desejava que não houvesse nada assustador em meios àqueles presentes, como um
biscoito com um emaranhado de cabelos dentro… vamos parar de pensar nisso.
Nós recepcionamos Norn e finalmente começamos a festa.

Era o mesmo tipo de festa de aniversário que dei pra elas alguns anos atrás. Comecei com um
discurso de abertura. Ter quinze anos não faria com que as coisas mudassem da noite pro dia,
mas agora elas eram adultas aos olhos da sociedade – e assim meus conselhos iam saindo. Era o
tipo de discurso que eu me sentia desqualificado para dar, mas falaria do mesmo jeito. Não sei
como, mas eu entrei no modo sabichão, embora em uma parte do discurso minha língua tenha
escorregado.

Com essa introdução fora do caminho, todos os outros adultos entre nós falaram sobre “se
portar como adultos”. Sylphie disse que elas não precisariam mais pedir permissão para a
família, mas precisavam ser responsáveis. Roxy às advertiu a nunca deixar de aprender e Eris
explicou como sempre deveriam ter um objetivo. Lilia parecia mais emocional que o usual. Ela
falou, à beira das lágrimas, sobre os tempos em que Paul e Zenith tinham acabo de começar uma
família, e sobre o dia em que as duas garotas nasceram. Zenith acariciou sua cabeça.

Havia um sorriso estampado no rosto de Norn quando ela abriu os presentes que demos a ela.
Parecia ter gostado especialmente da armadura que Roxy encomendou de um ferreiro conhecido.
Apenas para aquele dia, Roxy pediu uma armadura sob encomenda, que se assemelhava com o
velho conjunto de Paul – que agora estava guardado no quarto de Zenith. Ela era moldada para
caber no corpo de Norn e reestilizada para ter um ar mais feminino. Quando ela embainhou a
espada de confiança de Paul no boldrié que Eris lhe deu, parecia uma espadachim completa.
Essas duas devem ter se lembrado de que Norn uma vez disse querer ser uma aventureira.

Em um primeiro momento, ela demonstrou imediata confusão ao ver o modelo de Paul que
fiz. Eu estava orgulhoso do meu trabalho, mas isso era uma estatueta de trinta centímetros de
altura feita de pedra, então compreendi sua reação. Eu não percebi enquanto a construía, mas isso
era o que a sociedade moderna iria categorizar como um presente inútil, embora esse mundo não
tenha esses paradigmas.

Depois de encará-la por algum tempo, lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Norn.
Talvez fosse pelas memórias de Paul que a fiz reviver. — Vou cuidar bem disso — disse,
finalmente aceitando.

Quando todos terminamos de dar nossos presentes, Norn falou conosco.

— Um, muito obrigada a todos. Farei o meu melhor para ser uma adulta e seguir em frente.
Espero que possam me apoiar nesse caminho como tem feito até agora. Vocês são os melhores.

Seu coração estava explodindo de emoção, mas ela conseguiu expor isso de forma magnífica.
Suas palavras fizeram Lilia cair aos prantos mais uma vez. Norn, você realmente cresceu…

Era muito bom ver Norn tão feliz, mas e enquanto a Aisha? Ela parecia feliz, mas algo parecia
errado quando olhei para ela. Claro que não tinha feito cara feia ou demonstrado claro
desconforto. A cada presente que recebia, ela agradecia dizendo: — Wow, incrível! Isso é tão
fofo! Obrigada! — ou então demonstrava seu deleite ao anunciar: — É tudo que eu sempre quis!
Superficialmente, Aisha parecia estar apreciando a festa em sua persona normal e alegre, então
o que estava errado? Suponho que a melhor forma de descrever a situação é dizer que algo
parecia estar faltando. Aos meus olhos, Aisha parecia um pouco deslocada. Estava forçando seus
sorrisos e risadas. Parecia estar atuando. Talvez fosse a forma como tinha agido àquela tarde que
me fez sentir assim.

Com minhas suspeitas ainda ecoando dentro de mim, entreguei a ela meu presente: um
pingente. O pingente dos Migurd… estava em posse de Ruijerd, então este era uma réplica.
Também era caseiro, então não era nem caro nem um artigo original.

— Aisha, isso é algo que me foi dado para comemorar minha própria passagem para a vida
adulta. Talvez não signifique nada para você, mas eu queria dar a você como um símbolo do seu
amadurecimento.

Tinha ciência de que esse presente significava mais para mim do que para qualquer um que o
recebesse, mas, por alguma razão, quis dar isso a Aisha invés de Norn. Não sabia o porquê, mas
quando elas me perguntaram qual presente me faria mais feliz, essa foi a primeira coisa que me
veio à mente.

— Oh… obrigada.

Não havia vida em seus olhos.

Sua expressão era vazia. Imersa em pensamentos, ela balançou o pingente em sua mão
repetidas vezes.

Nós aproveitamos o restante da festa servindo o prato principal e um bolo. Ainda restavam
algumas surpresas. Uma vez que o sol se pôs de vez, estudantes começaram a aparecer para dar
presentes a Norn. Ao que parecia, tinham descoberto somente hoje que era aniversário de Norn e
se apressaram para comprar alguma coisa enquanto podiam.

Houve um monte de alunos assim. Quando notaram que era eu à porta, uma boa parte deles
empalideceu, mas não tem problema! Recebi todos eles com um relance do meu bom e belo
“Sorriso Resplandecente do Rudeus”. Ah, o sorriso; a recepção mais universal, de fato.

… isso não deu certo.

A visão do meu sorriso fez com que suas feições pálidas congelassem em um terror ainda
maior, com alguns até tentando correr. Sylphie os pegou e repassou seus presentes para Norn,
enquanto contia a cena que estavámos fazendo ali… sinceramente, que rude!

Vieram tantos deles que, eventualmente, a pilha de presentes de Norn parecia mais uma
montanha. Aisha, por outro lado, não recebeu nada além do que demos pra ela. Ela estava
mantendo sua fachada, mas parecia bastante aflita agora. Aos meus olhos, estava profundamente
magoada.

Eu duvidava que alguém mais além de mim notou que o sorriso de Aisha era falso. Talvez
estivesse apenas pensando demais. Talvez Aisha não se importava com a quantidade de
presentes, ainda assim, trazer isso à tona para Sylphie soava como uma boa ideia. Enquanto eu
titubeava sobre o que deveria fazer sobre Aisha, notei que a área à nossa frente ficou lotada com
muitas pessoas reunidas. A conversa turbulenta foi interrompida pelo latido repentino de Leo.

— Temos companhia — anunciou Eris. Sua expressão endureceu e ela apanhou a espada que
pendia no canto.

Orsted estava vindo? Não, tinham pessoas demais por aqui. Orsted não era do tipo que trazia
uma multidão.

Fui à porta da frente para ter certeza. Quando pus o pé para fora, vi uma massa de arruaceiros
fechando um cerco sobre minha casa. Suas silhuetas eram intimidantes, tinham pelo grosso e
suas presas estavam à mostra. Todos eles estavam trajados com mantos totalmente pretos. Eram
um bando intimidante. Dito isso, pareciam estar bem acabados; alguns estavam machucados
enquanto outros usavam vestes quase destruídas.

Quem liderava o grupo não era ninguém mais ninguém menos que a dupla mais diabólica da
cidade. As duas sacudiam os cabelos enquanto discutiam entre si.

— A culpa foi sua, Linia. Complicar o fim daquele trabalho ontem fez a gente se atrasar.

— M-Miau?! Mas foi você que jogou aquilo pra mim, Pursena!

— Lá vai tu de novo, culpando todo mundo menos você mesma. Pode confiar, Linia, é tudo
sua culpa!

— Vindo de você, que deveria rastrear nossa presa, mas acabou nos arrastando para um
churrasco qualquer por acidente?! Tá de sacanagem com miaugo? Seu vacilo foi a razão para
termos demorado tanto tempo caçando aquele javali, miau!

— Geh! É-É culpa deles por estarem acampando ali!

Eram Linia e Pursena. Como de costume, cada uma estava se lançando na garganta da outra,
mas dessa vez, pareciam estar só curtindo. As pessoas em volta delas pareciam estar
acostumadas com isso, já que mantiveram as mãos atrás das costas, em formação.

— Ah, Chefe!

—Ugh? Todos, saúdem imiaudiatamente!

Ao comando um tanto atrasado de Linia, seus seguidores baixaram a cabeça em uníssono.


Naquele momento, eu vi o que estava atrás deles. Havia um monte em cima de uma prancha de
madeira.
— Chefe! Estamos aqui para celebrar a cerimônia de maioridade da supervisora!

— Estávamos fora caçando essa coisa na floresta desde ontem.

“Essa coisa” se referia a um monstro gigantesco. Um que lembra um javali e vivia nas
florestas ao redor dessa área. E o que elas queriam dizer com desde ontem?

— Calma… nenhum de vocês estava no escritório hoje?

— Claro que tinha, miau. Deixamos o miaunimo necessário para manter as luzes acesas.

— É. Agendamos as coisas para que a maioria de nós não tivesse que trabalhar hoje.

Isso significava que Aisha devia ter voltado cedo porque o escritório estava quase vazio. Ela
foi toda animada para aproveitar seu aniversário, mas não tinha ninguém com quem celebrar.
Nem trabalho, pelo visto. Ela pensou que as pessoas viriam se esperasse, mas mesmo ao meio
dia, ninguém apareceu. É, eu não poderia culpar Aisha por refletir sobre sua existência quando
algo assim aconteceu.

— Miau! Ei, Supervisora!

— Galera, a supervisora está aqui!

Me virei para ver Aisha em pé logo atrás de mim. Ela parecia completamente estupefata com a
visão do javali gigantesco posicionado na frente da nossa casa.

— O que… é isso?

— Supervisora! Feliz aniversário!

Com as palavras de Pursena servindo de sinal, todo o bando mercenário baixou as cabeças
uma vez mais. “Parabéns, parabéns”, eles gritavam; ecoando alto o suficiente para que toda a
vizinhança reclamasse do barulho. Era como assistir uma cerimônia da yakuza, exceto que a
pessoa a qual estavam se curvando era uma garotinha.

—Ah… ahá!

Aisha riu.

Como se aquela visão tivesse expurgado seu humor sombrio, ela riu.

— Não pensem que eu vou comer tudo isso! … Aha, ahahahahahaha!


Dizer isso em voz alta fez ela perder as estribeiras ainda mais. Aisha estava rindo da cara
deles, mas pareciam estar confortáveis já que viram o quão feliz ela estava. Todos eles, incluindo
Aisha, pareciam estar aliviados e cheios de alegria. Depois de passar o dia todo tendo a
popularidade de Norn sendo esfregada na sua cara, Aisha percebeu que ela era igualmente
popular no seu próprio pedaço do mundo.

— Ei, Irmãozão, já que eles estão aqui e tudo mais, está tudo bem se todos comermos juntos
aqui no gramado?

Vislumbrei os mercenários e vi que alguns rabos estavam abanando com a sugestão. Eu não
era um especialista na etiqueta do povo fera, mas quando qualquer caçador traz sua presa até sua
casa, eles não vão apenas deixá-la lá e seguir seu caminho. Todos deveriam se juntar à festa. Eu
tive duas vezes mais certeza ao ver os estômagos daqueles caçadores roncar e a saliva escorrer
pelos cantos de suas bocas.

— Sim, é claro.

O sorriso de Aisha se alargou de orelha a orelha.

Todos se juntaram à refeição no gramado. Mesmo os estudantes que vieram por Norn
aderiram. O javali que o povo fera trouxe estava completamente assado, e as bebidas — trazidas
por um velhinho que Aisha ajudou quando estava no distrito comercial — escorreram
livremente.

Norn suspirou; essa confraternização agitada estava longe da quieta e introspectiva cerimônia
que precedeu aquele momento. Notei que Norn, cuidadosamente, manteve seu descontento para
si mesma e evitou dizer qualquer coisa que fosse estragar o clima. Provavelmente, fez isso por
consideração a Aisha, que estava vivendo o momento de sua vida.

A celebração continuou por um tempo, mas uma vez que o bando mercenário encheu a pança,
as pessoas decidiram encerrar a noite. Conforme o amontoado de gente se esvaia, ouvi Aisha
murmurar para si mesma:

— O que é um adulto, afinal?

Em contraste com Norn; que alegremente aceitou o peso se sua própria responsabilidade como
adulta, a pequena pergunta de Aisha soou um pouco infantil, mas ei, assim é a vida. Adultos
possuem diferentes variantes; Norn possuía a dela, e Aisha possuía a sua. Existiam muitas
formas de ser um adulto ou uma criança, assim como havia muitos tipos de pessoas. Se você é
quem deveria ser, e conseguiu se manter honesto consigo mesmo, então está fazendo tudo
certinho.

— O que é um adulto, afinal, huh? — respondi. Não senti que precisava dizer algo animador
para ela.

Foi dessa forma que Aisha e Norn completaram quinze anos de idade.
Mushoku Tensei: Reencarnação do
Desempregado – Vol. 20 – Cap. 04.2 –
Interlúdio – Uma Caipira Visita a Cidade
— Nina, uma carta.

Era verão quando uma carta chegou à porta da Rei da Espada Nina Falion. O Santuário da
Espada estava sempre frio graças às constantes nevascas que caíam durante todo o ano, mas este
dia era tão quente quanto o início da primavera. O mestre do salão de treinamento, o Deus da
Espada Gal Falion, parou antes do meio-dia; dizendo:

— Você tem que ser um idiota para treinar em um dia tão bom, então vocês podem fazer o que
quiserem por hoje. — E então marchou galantemente para um local de cochilo.

Nina era o animal de estimação do professor, então sua ideia de “o que você quiser” era
continuar praticando, mas fez uma pausa quando ouviu falar dessa carta.

— Uma carta? Eu…Sol… Ah!”

Nina, encharcada de suor enquanto recebia a carta, abriu um sorriso. No outro lado do
envelope, estava o emblema do Estilo Deus da Água com um nome familiar escrito abaixo:
Isolde Cluel

A principal espadachim do Estilo Deus da Água, com quem Nina havia treinado apenas alguns
anos antes. Nina lembrou que ela estava trabalhando no Reino de Asura como instrutora de luta
de espadas, enquanto também gerenciava um campo de treinamento do Estilo Deus da Água. O
relacionamento delas era amigável, mas se distanciaram desde que Isolde deixou o Santuário da
Espada. A carta dela tornara-se uma agradável surpresa.

— Humm…

Mais do que apenas agradável! Nina rasgou o envelope com vigor antes de retirar a folha de
papel de dentro do envelope, no entanto, o brilho em seu olhar se esvaneceu no momento em que
colocou os olhos sobre as linhas bem embaladas de palavras que o papel continha.

— O que diz?

Nina, bem, não sabia ler.


Ela poderia reconhecer o nome de um conhecido, mas não tinha alcançado o nível de
compreender passagens inteiras. Isso nunca importou muito aqui no Santuário da Espada.

Posso pedir pra alguma outra pessoa ler, ela pensou. Havia pelo menos algumas pessoas
vivendo naquele salão de treinamento que cresceram com uma escolaridade adequada. Alguém
poderia lê-la. Provavelmente.

Nina foi para o quintal. Lá, alguns dos aprendizes estavam tomando sol enquanto se divertiam
jogando conversa fora. Normalmente, seria trabalho dela repreendê-los quando relaxavam; os
aprendizes se levantariam apressados e se desculpariam logo depois, no entanto, hoje foi um raro
dia em que o mestre lhes disse com todas as letras para tirar o dia de folga, então Nina não disse
nada sobre seu comportamento e, em vez disso, perguntou se alguém poderia ler sua carta. Os
aprendizes trocaram olhares antes que um levantasse a mão. Nina entregou a carta para aquele
que alegou que “poderia ler a linguagem humana” e pediu-lhe para fazê-lo.

O conteúdo da carta era bastante simples. Ele resumia o que ocorreu nos últimos anos, bem
como o que vinha acontecendo ultimamente, com a morte de Reida, as dificuldades de
administrar o campo de treinamento, e as intensas brigas de Isolde com Ghislaine como
instrutora de espada. Nina sorriu com esse último detalhe; ela podia imaginar a autoritária e
certinha Isolde furiosa com um dos comentários selvagens de Ghislaine, mas aquele sorriso ficou
sério quando chegaram à última parte.

— A coroação de Sua Majestade Ariel será realizada em breve. O mês inteiro será um grande
festival nacional. Eu adoraria que você viesse visitar para a ocasião.

No momento em que Nina ouviu essas palavras, resolveu viajar para o Reino de Asura. Não
houve debate. O estilo do Deus da Espada pregava que o primeiro a fazer um movimento seria o
vencedor por uma razão. O momento em que ela quis ir foi aquele no qual partiu.

A rua principal de Arus, capital do Reino de Asura, estava completamente inundada de


pessoas. Eram tantas que a menor oscilação para algum lado forçaria você a bater os ombros, ou
que você não poderia ver mais do que alguns metros à frente. Mais denso do que uma família de
lobos da neve crescidos — uma matilha cheia.

A capital do Reino de Asura atraiu pessoas de todo o mundo conforme se preparava para a
próxima coroação. Gente do campo que veio na esperança de ter um vislumbre do governante da
nação mais forte do mundo, nobres enviados de terras estrangeiras que vieram dar suas bênçãos
em nome da diplomacia, espadachins errantes que achavam que este seria o momento perfeito
para encontrar algum trabalho no palácio, aventureiros que previram que a guilda estaria de mãos
atadas e vieram para conseguir alguns trabalhos simples e bem remunerados, foras-da-lei que
estavam fugindo e apostaram que o melhor lugar para esconder uma árvore era na floresta,
comerciantes que vieram vender mercadorias obscuras — para encher os bolsos em cima de uma
multidão enorme e festiva; todas as raças que viviam no Continente Central, e algumas que
viviam além dele entraram nesta nação. E a cereja no bolo, os Cavaleiros Brancos do Reino de
Asura sediariam um desfile, então mesmo os moradores da cidade recheavam a rua principal
para ver seus amados cavaleiros em toda sua glória.

Whuuuhh…

No meio de tudo isso, Nina estava sendo jogada de um lado para o outro enquanto tentava
caminhar em direção ao centro da cidade. Foi a primeira vez em sua vida em que viu tantas
pessoas. Já tinha estado em cidades que achava serem bem grandes, mas a visão massiva da
multidão fez esse pensamento murchar.

— Tch, olhe para onde você está indo, sua porquinha!

— Oqu… Ah, você é… Huh?

No momento em que percebeu que alguém estava a insultando, eles foram engolidos pelo mar
de pessoas.

Isso era novidade para Nina. Ela era, para constar, uma Rei da Espada; com seus sentidos
afiados, poderia identificar o sujeito e segui-lo, se quisesse, entretanto, ele simplesmente a
xingou e continuou andando. Ele provavelmente sequer se dignou a olhá-la nos olhos. “Talvez
esse tipo de coisa seja um tipo de cumprimento na cidade”, pensou. Se este fosse o Santuário da
Espada, ela teria enviado qualquer um que falasse com ela dessa maneira direito para um
curandeiro, mas talvez, na capital, ser achincalhado não significasse necessariamente que
estavam procurando briga.

— Ei, linda dama, gostaria de dar uma olhada?

— L-linda? Quem… Eu?

Depois de mais alguns passos tímidos, Nina descobriu que a pessoa que a estava chamando era
um comerciante. Ele estava vendendo algo em uma pequena loja nas proximidades.

— Oh, mas é claro! Nunca vi alguém tão bonita como você, a propósito, madame, você parece
nova na capital, não?!

— Sim! Como você sabia?

— Huh? Oh, você não é daqui. Se perder em uma multidão como essa é o sinal mais
verdadeiro de um forasteiro.

Ouvir que ela estava agindo como um caipira fez o rosto de Nina ficar vermelho-beterraba. Ela
acreditava que poderia se portar bem na capital, mas para os reais moradores do lugar, sua ideia
de cidade grande não era mais que o rancho.

— Com certeza é uma multidão enorme. Acha que todos estão aqui para a coroação?

— Isso faz parte, é claro, mas hoje também é o desfile dos cavaleiros, então todos estão se
reunindo na rua principal.
— Entendo…

— Você viu todas as placas, certo? Eles disseram que quem quiser ver o desfile deve ir para a
rua principal, enquanto aqueles que não quiserem devem pegar a estrada secundária, a “Saalten
Street”…

— Desculpe, mas eu não posso…

— Ah, entendi, entendi. De fato! Se você não tem necessidade de ver o desfile, então talvez
você poderia vir à nossa loja? É muito fácil entrar na Saalten Street pela porta dos fundos.

— Tem certeza? Mas eu não posso pagar a…

— Oh, eu jamais sonharia em cobrar… Ah, é verdade, se você diz que não sabe ler, então eu
sugiro que você compre um dos nossos produtos. É um livro ilustrado empacotado com uma
estatueta, mas o final do livro ensina como lê-lo. Tem comentários e revisões.

— Eu realmente não posso pagar um li—

— Oh, não se preocupe, absolutamente não se preocupe. Nossos livros são muito, muito mais
baratos que aqueles que você acharia em qualquer outro lugar. Apenas duas moedas grandes de
cobres Asuranos…. Não, eu sinto que isso deve ser algum tipo de destino, então eu vou reduzi-lo
a um único grande cobre Asurano e oito pequenas moedas de cobre! O que acha?

Antes que Nina percebesse, estava parada em uma estrada consideravelmente mais vazia,
enquanto segurava um livro ilustrado e uma estatueta. Sua carteira agora era mais leve pelo peso
exato de uma única moeda de cobre grande Asurano e oito pequenas moedas de cobre.

Ela ficou impressionada com a conversa rápida do vendedor. Nina ficou com a sensação de
que havia sido pressionada a fazer algo quando percebeu o que havia acontecido, mas não era
inteiramente um sentimento negativo. A velocidade dos ataques do comerciante a lembrou de seu
treinamento com o Deus da Espada Gal Falion.

Ainda assim, uma grande moeda de cobre e oito moedas de cobre. Pode ter sido barato para os
padrões do mercado de livros, mas era bastante caro para os padrões da carteira de Nina, no
entanto, aquele comerciante havia mostrado a ela o caminho, então não pagar sua dívida com ele
teria manchado seu nome como Rei da Espada.

Isso foi o melhor, ponderou Nina, e assim ela começou a andar.

Saalten Street era dois metros mais baixa do que a rua principal. Era um pouco úmido e se
ramificava em muitos túneis — parecia um atalho para os moradores da cidade em vez de
turistas. A estrada em si era larga e assim como o comerciante disse, era mais vazia do que a rua
principal; contudo, isso era relativo, já que a rua ainda estava cheia de pessoas… Mas aqui, o
fluxo de pessoas estava bem dividido entre aqueles que se dirigiam para o centro da cidade e
aqueles que se dirigiam para os limites da cidade, então Nina pode seguir seu caminho sem ser
empurrada demais.
— Aposto que agora posso chegar ao salão de treinamento de Isolde ao anoitecer.

O dinheiro que ela pagou antes estava começando a valer a pena. Com isso em mente, ela deu
outra olhada no boneco e no livro ilustrado em suas mãos.

A estatueta era um demônio que segurava uma lança, enquanto a capa do livro ilustrado tinha
o mesmo personagem desenhado nela. Nosso herói, provavelmente, e extraordinariamente, ele
era da raça Superd. Nina não sabia que tipo de história o livro contava, mas como guerreira, ela
sempre quis lutar com um Superd. De acordo com sua amiga Eris, os Superd eram incrivelmente
fortes. Se Eris, o Cão Louco que irradiava uma ameaça que poderia assustar um diabo, falava dos
Superd com respeito, então Nina estava intrigada.

“Além do que, isso vai me ensinar a ler, de acordo com o vendedor. Não vai machucar estudar
um pouco entre as sessões de treinamento” – Concluiu enquanto continuava caminhando.

Seu foco mudou quando ouviu aplausos da rua principal. Parecia que o desfile estava
começando. Ver tanta comoção a fez se perguntar sobre esse desfile; ela pretendia visitar Isolde
primeiro, mas não faria mal passar pela rua principal agora para assistir, não é?!

— Huh?

Mas então ela vislumbrou uma mulher ruiva pelo canto do olho que parecia um pouco
familiar.

— Eris?!

O que ela estaria fazendo aqui? pensou enquanto seguia aquela mulher com os olhos. Com
certeza era ela! Na rua principal, dois metros acima dela, viu o topo de uma cabeça ruiva. Nina
só podia ver por trás, mas aquela postura a fez ter certeza. Sem dúvida, era Eris. Nina não sabia o
que estava fazendo aqui, mas não conseguiu resistir à nostalgia que brotava em seu coração.

—Eri — Nina tentou gritar, até que algo a fez engolir suas palavras.

— Suba, Lucie. Consegue ver?

— Aham! Está tudo brilhando.

Aquele algo era a garotinha que Eris erguia em seus ombros.

— Vamos lá, Eris, eu queria dar a ela um passeio no ombro.

— De jeito nenhum. Eu sei que você só quer babar nas coxas de Lucie, assim como você fez
comigo ontem à noite!

— Que rude. Eu não sonharia em fazer algo assim com minha própria filha de carne e osso!

— Oh, claro que você não iria!

— Quero dizer, é verdade que eu a amo o bastante para querer ficar babando nela…
Essa conversa era com o homem parado ao lado de Eris. Ela também já tinha visto o homem
antes. Foi durante aquele terrível encontro com o Rei Demônio Badigadi.

Ele era o mago que o derrotou em um único golpe.

Este era o homem que vinha sendo chamado ultimamente de “Mão Direita do Deus Dragão”,
com avistamentos dele sendo relatados em locais ao redor do mundo:

Rudeus Greyrat.

—…

Nina percebeu que estava tendo um grande choque.

Ela sabia que Eris havia voltado para Rudeus, para ajudá-lo a lutar contra o Deus Dragão
Orsted, e como as cartas pararam de chegar depois disso, ela tinha certeza de que os dois haviam
morrido, mas também ouviu rumores espalhados de que eles haviam aparecido juntos no Reino
de Asura. Rudeus ficou conhecido como a Mão Direita do Deus Dragão depois disso, então Nina
assumiu que Eris havia se rendido ao Deus Dragão também.

Tinha certeza de que Eris havia ficado forte, muito mais forte do que antes, mas a Eris que
Nina estava olhando agora, estava longe da que ela imaginava. Essa Eris estava brincando e
rindo com um homem, e a garota que ela agora tinha em seus ombros era provavelmente sua
filha. Nunca ocorreu a Nina que Eris poderia ter se casado, muito menos ser mãe de uma criança.
A Eris que ela conhecia — aquela fera indomável, o Cão Louco — agora estava fazendo isso…
Vindo para assistir a um desfile e flertando com um marido bem-amado…

— Eu vou… apenas ir ver Isolde.

Com esse pensamento, Nina desviou o olhar.

Nina pensou que se tornar Rei da Espada significava que estava finalmente em pé de
igualdade com Eris, mas agora tinha que suportar esse enorme sentimento de derrota.

Nina não viu, mas isso é importante: fora da vista de Nina, obscurecida pela multidão, Roxy e
Sylphie estavam ao lado de Rudeus, com Zanoba e Julie por perto.

Depois, Nina foi para a sala de treinamento de Isolde. A atmosfera solene e o fedor do suor
acalmaram seus nervos. Depois de cumprimentar Isolde, Nina foi apresentada aos alunos. Cada
um deles, meninos e meninas, carregavam o ar honesto e humilde que só virgens exalam.

Sim, é assim que um verdadeiro praticante de esgrima deveria ser – pensou consigo mesma.

Depois de receber um tour pela sala de treinamento, Nina foi levada para a casa de Isolde.
Foram feitos arranjos para que ela passasse a noite lá, durante sua estadia em Arus, já que a casa
de Isolde tinha um quarto de hóspedes. O quarto já havia sido ocupado pelo Deus da Água
Reida, mas já estava totalmente limpo.
Nina não estava preocupada com Reida e, em vez disso, encontrou alívio no fato de Isolde não
mostrar sinais de ter um homem. Ela era o Imperador da Água, uma instrutora de espadas e uma
cavaleira; teria sido um verdadeiro partido. Se até mesmo Eris conseguiu se casar e ter filhos, a
radiante Isolde também poderia ter arranjado um parceiro. Não seria surpresa para Nina entrar na
casa de Isolde e ser apresentada ao seu marido e filho. Ela se preparou para o pior, mas agora
sentia uma sensação proporcional de alívio.

— Nina, na verdade, haverá uma pequena reunião assim que o desfile terminar. Tenho certeza
de que você deve estar cansada de sua longa viagem, mas você se importaria de se juntar a nós
lá? Há muitas pessoas que adorariam conhecer um Rei da Espada.

Isolde propôs essa ideia enquanto Nina estava descarregando sua bagagem e recuperando o
fôlego.

— Claro, tudo bem por mim. — Nina concordou de imediato. Ela não sabia o que essa
“pequena reunião” deveria ser, mas não era como se ela tivesse planos para a noite, de qualquer
maneira. Ela poderia adiar seu passeio até amanhã, ou assim pensou.

Nina começou a se arrepender de sua decisão em menos de uma hora.

Claro, sua linha de raciocínio fez diversas paradas antes de, finalmente, chegar ao
arrependimento. Começou com: algo está errado. Foi quando ela viu que Isolde a havia levado
para uma mansão gigante perto do castelo real. Hein?! Isso parece um exagero para uma
“pequena reunião”, ponderou.

Fui tapeada, pensou logo em seguida. Aconteceu quando ela foi levada para um quarto de
aparência extravagante, para escolher um vestido de aparência extravagante, e foi meio que
empurrada para dentro por várias empregadas domésticas. Isso definitivamente é algum tipo de
festa para a nobreza”, concluiu.

Não deveria ter vindo, era o pensamento que ela tinha em mente. Por que ela concordou tão
instantaneamente? Por que ela se juntou tão ingenuamente? Por que ela permitiu que eles a
vestissem sem brigar? Nina normalmente teria lutado para se libertar, então, por que não tinha?
Deve ter sido porque ela não era normal. Ela estava envolta em um vestido estranho, feito para
usar saltos altos precários que a desequilibravam, e foi até mesmo despojada da espada que tinha
sido uma companheira tão confiável para seu cinto. Este era o estado em que Nina estava quando
Isolde a arrastou para o salão de festas e a apresentou pessoa após pessoa, mas ela logo percebeu
algo que lhe deu um pouco de alívio: nem todos aqui eram nobres. Enquanto muitos deles eram,
alguns vieram de mundos que Nina entendia, como o cavaleiro humilde ou o jovem mago
habilidoso retirado de outro país; e entre aquela multidão haviam pessoas que, assim como ela,
tinham sido enganadas para vir, e agora eram peixes fora d’água.

As pessoas se sentem à vontade quando percebem que não estão sozinhas. Enquanto relaxava,
Nina se lembrou de que era uma Rei da Espada. Não era nada para ela analisar seu oponente e
medir suas chances de vitória. Uma vez que ela confirmou que todos ao seu redor eram fracos,
até começou a se sentir um pouco ousada.
Estou faminta, ela pensou com sua recém adquirida coragem. Ela tinha apetite. Ocorreu-lhe
que não tinha comido nada desde o meio-dia. Todos os praticantes do Estilo Deus da Espada
eram grandes glutões. Fora das vezes em que seu treinamento exigia que ela se escondesse na
floresta ou algo assim, nunca pulava refeições, e assim, é claro, seus olhos foram atraídos para o
suculento bufê colocado no salão de baile.

Naturalmente, depois de atacar cada pedaço de comida à vista enquanto seus colegas festeiros
olhavam, ela se viu precisando recuar para o banheiro mais próximo. Uma criada muito
gentilmente a guiou para o banheiro. Nina lutava para colocar seu vestido de volta depois de
terminar seus negócios, e a empregada já estava longe quando finalmente conseguiu. Ela se
encontrava perdida nesta mansão labiríntica, sem ideia de como chegar ao salão de baile — tudo
isso era, é claro, inevitável.

Isso está realmente mexendo comigo, ela pensou, enquanto suspirava para si mesma e
caminhava pelo corredor mal iluminado. Nina estava continuamente sobrecarregada pela
atmosfera de todos os lugares em que esteve, desde que chegou ao Reino de Asura, e isso a
manteve desequilibrada e um pouco desassociada. Sua crença de que poderia enfrentar o mundo,
agora que era o Rei da Espada, estava em frangalhos.

— Eu costumava fazer as coisas sem precisar pensar tanto…

Talvez fosse porque ela agora era um Rei da Espada com discípulos, ou talvez fosse porque
encontrou Eris e sua personalidade passou para ela. Ao contrário dos velhos tempos, não
conseguia mais agir sem pensar nas consequências. Ela acreditava que essa mudança a tornara
uma guerreira melhor, mas…

— Ah, certo, esqueci de contar a Isolde sobre Eris.

Eris estava na cidade, então Nina queria sugerir outra sessão de treinamento com as três, mas
no momento em que considerou, a imagem do que viu naquela tarde passou por sua mente. Ela
balançou a cabeça para tirar isso da mente.

Essa não era mais a Eris que eu conhecia – pensou.

Ela queria esquecer isso e voltar para o salão de baile o mais rápido possível. Daria uma
desculpa qualquer para poder ir para casa. Pode ter sido desconfortável na mansão, mas havia
muitos outros pontos turísticos famosos para ver em Asura. Isolde poderia lhe mostrar os
arredores… Não, sua amiga com certeza estaria ocupada, então teria que explorar por conta
própria. Tinha algum tipo de festival acontecendo na cidade, então certamente poderia encontrar
uma maneira de se divertir. Talvez pudesse visitar o salão de treinamento do Estilo Deus da
Espada na cidade.

Certo, tudo bem… Hm?

Logo depois de firmar sua determinação, Nina viu uma sala com luz vazando dela. A porta era
pequena; certamente não uma que levasse ao salão de baile, ainda assim, provavelmente havia
alguém lá que sabia o caminho para isso, então Nina imaginou que poderia pedir instruções.
Sentindo-se meio aliviada, se aproximou da porta e…
— …Vossa Majestade Ariel, certamente você não quer que isso seja tornado público, não é?

Essa era uma ameaça clara. Ela parou no lugar.

Vossa majestade… Ariel?

Ela percebeu. Mesmo uma caipira, Nina sabia que havia apenas uma pessoa neste país que
seria abordada dessa maneira.

Ariel Anemoi Asura.

A rainha que teve um retorno meteórico à realeza depois de passar quase uma década no
distante Reino de Ranoa, e cativou os corações de seu povo. Seria fácil sugerir que as
festividades e a fanfarra em toda a capital de Arus eram todas dedicadas a essa mulher solteira.

— Hã? O que você poderia querer dizer?

— Você está dizendo que não se lembra?

Nina caminhou levemente, enquanto se aproximava da porta. Uma vez lá, espiou para dentro
da sala através da rachadura aberta.

Oh!

Dentro havia um homem e uma mulher; uma mulher loira sentada em uma cadeira e um
homem de cabelos castanhos claros de pé ao seu lado. O homem tinha um rosto que parecia
familiar para Nina.

— Ah, por favor. Isso pode ser qualquer coisa…

— Ah, não, na verdade-

Rudeus Greyrat.

O homem que riu com Eris naquela tarde. Ele aproximou seu sorriso diabólico da bochecha de
Ariel.

Ele está pressionando-a para ter relações carnais! Pensou Nina.

Rudeus Greyrat era um homem conhecido por ter duas outras esposas, além de Eris. Nina se
lembrou dos rumores sobre ele ser bastante… amoroso também. Alguns sussurravam que ele
também havia feito muito trabalho nos bastidores para ajudar Ariel a se tornar governante. Se ele
realmente estava sob o comando de Orsted, então provavelmente ajudou Ariel como peão de
Orsted, e agora, estava chantageando-a para dormir com ele.
Eu vou matá-lo! – Nina decidiu no mesmo instante.

Não preciso pensar. Ela não sabia com que segredo Ariel estava sendo chantageada. Ela não
sabia o quão forte Rudeus era. Isolde estava sob o comando de Ariel. Se o chefe de uma amiga
estava sendo chantageado, então não havia razão para manter a lâmina guardada. Ela nem sequer
tinha sua espada, mas nada disso importava; Nina encontraria uma maneira de cortá-lo.

Este seria o ponto em que Nina, se estivesse com a cabeça no lugar, diria a si mesma para
esperar um momento… mas as últimas horas haviam sobrecarregado sua capacidade de
autocontrole, mas antes que ela pudesse agir, os sentidos de Nina a alteraram para uma aura de
animosidade logo atrás dela.

— Gah!

Ela cambaleou. Lá, um monstro em um vestido vermelho-sangue estava diante dela.

— Eris?

Nina não tinha pensado que estaria aqui, mas Eris estava sempre ao lado de Rudeus. Como ele
estava bem aqui, é claro que ela também viria.

— Nina?

A expressão de Eris se reduziu à uma de suspeita, mas sua fúria logo retornou.

— Quer me dizer para quem você está apontando toda essa sede de sangue?

Merda, pensou Nina. Não havia como parar Eris quando ela ficava assim. Se elas entrassem
em conflito, então Rudeus viria correndo daquela sala. Ela estava arriscando uma briga de dois
contra um. Eris pode não ter tido uma espada, mas ser flanqueada por um mago seria…

— Huh? Já voltou, Eris?

No momento em que Nina pensou no pior cenário, isso já havia acontecido. A porta atrás dela
se abriu e rosto de Rudeus se revelou. Nina entendeu instantaneamente que a vitória estava fora
de questão, mas enfrentar o impossível com a tenacidade de uma besta selvagem era o núcleo do
Estilo Deus da Espada. Nina começou a concentrar sua força em seu núcleo.

— Agora, então, Sir Rudeus, acredito que está na hora de nos juntarmos à festa. Estamos
deixando nossos convidados esperando.

Quando Ariel apareceu ao lado de Rudeus tão indiferente quanto poderia ser, toda a força de
Nina se desfez. A expressão de Ariel não desmentia uma pitada de desespero ou intimidação.
Alguma coisa estava muito errada aqui. Outra vez. Esse era um sentimento com o qual ela se
familiarizou bastante nas últimas horas.

— Você… você não está sendo chantageada? — Ela perguntou enquanto se dobrava sobre si
mesma.
— Hm? — Ariel olhou para a posição de Nina e simplesmente inclinou a cabeça.

Nina e Ariel nunca se conheceram de verdade, mas após comparar a postura e a expressão de
Nina com a de Eris e ao refletir um pouco sobre a conversa que acabara de ter, Ariel deduziu o
que estava acontecendo.

— Oh não, fui eu quem fez um pedido a Rudeus e ele recusou. Eu, contudo, queria sua ajuda,
então apresentei o que eu pensei que seria uma fraqueza dele, mas fui superada… Será que você
só ouviu a segunda metade dessa troca, presumiu que eu estava sendo ameaçada e estava vindo
em meu socorro?

Nina assentiu fracamente com os olhos ainda arregalados. Ariel segurou levemente o braço de
Nina e a ajudou a se levantar com cuidado.

— Muito obrigada. Acredito que ainda não nos encontramos. Meu nome é Ariel Anemoi
Asura, a nova governante do Reino de Asura.

— Uh, ah, hein?!

Ali estava a futura líder de um reino em toda a sua glória, e ela ainda sentia a necessidade de
trocar apresentações. Incapaz de processar essa série de eventos, Nina entrou em pânico e se
virou para Eris. Ela olhou para Nina com suspeita, mas suspirou e deu corda pra ela.

— Essa aqui é Nina.

— Uma conhecida sua, Lady Eris?

— Sim, ela é a Santa da Espada Nina Falion. Nós treinamos juntas no Santuário da Espada.

Nina percebeu que precisava evitar a próxima parte da conversa, onde Eris inevitavelmente
diria que não tinha ideia do que sua ex-parceira de treinamento estava fazendo aqui.

— E-eu sou um Rei da Espada agora! O mesmo que você!

— Oh… você é? Parabéns.

Nina ficou em silêncio depois daquele leve elogio. Parecia que tinha acabado de se gabar de
seu título sem motivo. Tudo o que ela queria era dar um pouco de contexto…

— Entendo, Lady Nina. A festa de hoje foi planejada por Rudeus e eu. Acredito que teremos a
chance de conversar mais tarde, mas por enquanto, por favor, relaxe e aproveite a noite.

— Ah, c-claro.

Ariel sorriu calorosamente e caminhou pelo corredor com Rudeus. Depois de vê-los partir,
Nina soltou um suspiro enorme. Este dia continuou botando-a para baixo.

— Então, o que você está fazendo aqui, afinal? — Eris exigiu saber, ao ficar para trás com ela.
Nina se virou para encarar sua velha amiga. Seu vestido carmesim e seu penteado
combinavam com ela; sua escolha de colar, brincos e outras peças de joalheria eram modestos e
de bom gosto. As características sutis de uma verdadeira dama.

— Hm… Eris Seu vestido, er, ficou bom.

— Heh heh, claro que sim! Rudeus escolheu ele mesmo!

Havia aquela faísca. “Eris não mudou tanto assim, no fim das contas” – pensou Nina. Era
difícil imaginar que essa mulher orgulhosa que agora estufava o peito, fosse aquele animal
selvagem de antes, mas, mesmo assim…

Nina suspirou e começou a descarregar em Eris.

— Você tem que ouvir isso. Então, Isolde…

No final, Nina nunca descobriu para que era a festa. Quando ela e Eris voltaram para o salão
de baile, encontraram Rudeus dirigindo-se à multidão:

— O Deus Dragão Orsted é seu aliado! Aja agora e incluiremos isso como nosso presente
extra totalmente grátis! Não se preocupe, não há taxa para se inscrever. Tudo o que pedimos é
que você simplesmente reúna sua força em preparação para alguma guerra daqui a oitenta anos e,
quando chegar a hora, empreste essa força ao Deus Dragão Orsted. Se você fizer esse pequeno
compromisso, a Corporação Orsted garantirá seu apoio pelos próximos cem anos! O Deus
Dragão Orsted irá salvá-lo em sua hora mais escura, de perigos que vão desde as profecias de
figuras divinas escusas, até os terrores das invasões domiciliares. Por favor, um voto para o
Dragão Orsted é um voto para um futuro brilhante!

Nina não conseguia entender o que ele estava dizendo, então ela simplesmente assentiu.

Rudeus parecia estar reunindo aliados. Assumindo que seu último encontro realmente foi um
mal-entendido, então ela não se oporia a ajudar o marido de Eris, ainda assim, não entendeu
muito bem o que ele queria. Uma guerra irromperia em oitenta anos, então ele queria que eles
ajudassem Orsted quando chegasse a hora… o que significava que queria que eles reunissem
forças até então. Isso foi um pouco elaborado.

Nina não estava sozinha; muitos outros convidados pareciam estar igualmente confusos. Mas
no final, todos assentiram. Provavelmente ajudou que nem uma única pessoa naquela sala
recusasse um pedido de Ariel.

Depois da festa, Nina ficou na mansão por sugestão de Eris. Isolde se juntou a eles.
Descobriu-se que todo o lugar era um presente que Ariel havia fornecido a Rudeus, então eles
estavam livres para usá-lo como quisessem, ou assim Eris ostentou.

Naquela noite, as três se reuniram para sua primeira conversa juntas em anos. Eris continuou a
falar sobre absolutamente nada além de Rudeus, e até Isolde estava resmungando sobre como ela
estava começando a querer um parceiro próprio. Ver aquelas duas ricochetearem uma na outra de
alguma forma lembrou Nina dos velhos tempos; o conteúdo do que elas falavam poderia ter
mudado um pouco, mas a diversão que ela tinha na presença delas não havia mudado nem um
pouco. Só isso fez a viagem à capital de Arus valer a pena. No momento em que o dia seguinte
chegou, seus sentimentos tolos de ciúme e derrota haviam diminuído. Se sentia como ela mesma.

Nina provou tudo o que Arus tinha a oferecer até a conclusão das festividades da coroação. Os
pontos turísticos, as multidões e as salas de treinamento. Quando ela queria ir a algum lugar, ela
ia, e não foi sozinha; houve muitos dias em que Isolde não pôde se juntar a ela devido a
obrigações de trabalho, mas por algum motivo, Eris ficou com Nina o tempo todo.

Eris tagarelava sobre Rudeus toda vez que abria a boca, então Nina tinha que se perguntar por
que ela não ficava com o marido, mas depois de passar tanto tempo com Eris, começou a
entender o seu processo de pensamento: ela queria que Nina aceitasse seriamente a proposta de
Rudeus. Eris não era boa com palavras, o que tornava difícil entender qual era seu ponto de vista,
mas seu espírito sincero e direto comoveu o coração de Nina. O pedido de Rudeus passou de um
jargão incompreensível para algo que ela agora considerava seriamente.

Nina voltou ao Santuário da Espada depois que a coroação terminou. Ela pensou um pouco ao
longo do caminho sobre como concordara em se juntar às forças de Orsted daqui a oitenta anos,
sobre o quão feliz, brilhante e alegre Eris parecia, e como Rudeus estava ao lado dela.

Pensava neles enquanto esporava seu cavalo. Ela não se comprometeu totalmente com isso,
mas quando viu a pessoa que veio lhe dar as boas-vindas quando chegou no Santuário da Espada,
algo se encaixou.

Era o primo da Nina. Um jovem que seguiu seus passos para se tornar Santo da Espada, e
agora estava à beira de alcançar o Rei da Espada: Gino Britz. Nina olhou para ele e disse a
primeira coisa que lheveio à mente. Não hesitou. O estilo do Deus da Espada pregava que o
primeiro a fazer um movimento seria o vencedor por uma razão.

“Ei, Gino. Quer se casar?”

Pouco depois, o Santuário da Espada foi o lar de um novo casal, mas isso é uma história para
outra época.
Mushoku Tensei: Reencarnação do
Desempregado – Vol. 20 – Cap. 04 – A
Cerimônia de Graduação de Cliff e Zanoba
A vida passou rápido, e antes que eu pudesse perceber, já era a hora da cerimônia de
graduação da Universidade da Magia de Ranoa. A cerimônia ocorreu em um grande auditório.
Cliff se sentou nas fileiras dos alunos recém-formados. Zanoba estava lá também, em uma das
fileiras dos fundos. Perguntei se ele poderia participar, mesmo tendo abandonado os estudos,
então decidiram abrir uma exceção. Ele era um estudante excepcional, afinal, e quase nunca
frequentava as aulas, para começo de conversa. Olhando por outra perspectiva, pode-se dizer que
essa era a misericórdia de Jenius em atividade.

Não que Zanoba parecesse se importar com o evento, mas ei, significava algo participar desse
tipo de situação. Os rituais da vida importam!

Os outros participantes eram as mesmas pessoas velhas. Sentados ao lado dos quinhentos
graduados estavam os duzentos ou trezentos membros do corpo docente. Roxy parecia um pouco
distante de seus colegas na última vez que esteve nesta posição, mas dessa vez, ela se encaixou
perfeitamente. Talvez tenha se acostumado. Sua estatura baixa não a separava dos seus colegas.
Na verdade, sua unicidade deixava claro como ela pertencia lá.

Os únicos não-graduados presentes eram os membros do conselho estudantil. Norn liderava o


grupo com uma carranca que parecia congelada de nervoso. Alinhados junto dela estavam
demônios, homens-fera e outros. O conselho presidido por Ariel era organizado na maioria por
humanos, mas acho que quando seu líder muda, as pessoas trabalhando para ele também mudam.
Pensei da mesma forma durante a cerimônia de entrada do ano passado, mas Norn parecia ser
particularmente querida pelos alunos demônios e homens-fera. Nunca ouvi uma reclamação
vinda dos demais. Ela não inspirava o mesmo nível de fanatismo que Ariel, mas ser vista como
uma presidente de conselho estudantil confiável, era bom o suficiente. Como seu irmão, ela me
deixava orgulhoso.

Tive a permissão de Jenius para me sentar junto do conselho em um dos assentos vagos. Ah,
como eu adoro cerimônias de graduação!

— Representando a sala graduanda, Brooklyn Von Elsass. Entrego a você seu diploma e seu
certificado de Rank D da Guilda de Magos!

O orador da turma deste ano não foi Cliff. Não tinha ouvido falar sobre o cara que escolheram
em vez dele, mas seu sobrenome me soava familiar. Lembrei que pertencia a uma família real no
Ducado de Neris, uma das Nações Mágicas.

A Universidade de Magia de Ranoa pode até carregar “Ranoa” em seu nome, mas sua
fundação partiu das três Nações Mágicas. Colocar seus nobres e a realeza em primeiro lugar
provavelmente era uma regra subliminar.
— Eu, Brooklyn Von Elsass, humildemente aceito!

— Que você possa encontrar seu caminho pelo rumo da magia!

Cliff observou com melancolia em seus olhos. Se fosse o antigo Cliff, era provável que ele
estivesse tendo um chilique por não ser o orador. Sendo sincero, se analisar apenas as notas,
nenhum dos outros graduados chegava perto dele. Suas notas finais eram de nível Avançado nos
quatro braços de magia de ataque, cura de nível Avançado, desintoxicação de nível Avançado,
barreiras de nível Intermediário, divino de nível Avançado. Além disso, ele tinha feito aquele
relatório de pesquisa sobre supressão de maldição. Ele não conseguiu alcançar nível Santo, mas
ainda assim, ninguém chegou nem próximo disso. Provavelmente nem se olhassem o histórico da
escola. A única pessoa que podia competir era Roxy. Talvez.

Eu? Tudo que aprendi no colégio foi cura e desintoxicação, então não estava na disputa.

Além de suas excelentes notas, Cliff também tinha se tornado um padre Millis certificado.
Você pensaria que passar dia e noite trabalhando para Elinalise teriam-no deixado ocupado
demais para que ele conseguisse manter suas notas, mas elas não caíram nada. Ele aprendeu tudo
que esta escola tinha a oferecer e agora era um adulto, de corpo e alma. Além disso, arranjou
uma esposa gostosa e tiveram um filho, tudo bem familiar.

Algo verdadeiramente perfeito para um cara tão “médio” assim.

Então, e quanto àquela expressão tristonha? Provavelmente não se tratava de raiva por não ser
o orador. Era melancolia enraizada em um pensamento profundo. Talvez ele ainda estivesse
considerando minha proposta de alguns meses atrás, mas se fosse mesmo isso, estaria tudo bem
por mim. Não haviam muitas decisões que valiam a pena serem tomadas que pudessem ser
consideradas em apenas dois meses.

Com o término da cerimônia de graduação, fui me encontrar com Zanoba. Ele estava
acompanhado de Ginger, que estava vestida em trajes formais; e Julia, que vinha logo atrás
correndo, com um buquê em mãos. Ninguém mais parecia estar seguindo essa moda de roupa,
então talvez fosse algo próprio do Reino de Shirone.

— Parabéns pela graduação, Zanoba — disse.

— Oh! Mestre, muito obrigado mesmo! — exclamou Zanoba. Ele vestia seu uniforme da
Universidade de Magia de Ranoa. Seu design era um pouco voltado aos jovens, mas ficava muito
melhor nele do que os trajes formais do Reino de Shirone.

— Vejo que você falou uma palavrinha ou duas me elogiando por conta da minha graduação…
Devo dizer, fiquei chocado quando recebi aquela carta da Universidade.

— Ei, não foi nada demais, ok? Comparecer a coisas assim ajuda a esquecer.

É, sempre é uma aposta segura participar de cerimônias. Sylphie sempre parecia ter um pouco
de arrependimento por não ter ido à sua própria cerimônia de graduação. Por outro lado, Zanoba
podia ter visto este evento como nada além de um incômodo, já que ele era parte da realeza.
— Ou foi muito ruim?

— De forma alguma. Pensei que seria um tédio a princípio, mas para minha surpresa, não foi
tão mal quando chegou minha vez…

A voz de Zanoba foi se diminuindo enquanto ele olhava ao seu redor. Os graduados estavam
sendo cercados por seus calouros, cumprimentados pelos professores, todas essas coisas boas. O
tipo de visão que te deixa com os olhos marejados após algum tempo.

Veja, aquele grupo ali estava reunido ao redor de Norn? Um menino, que parecia um demônio,
estava segurando sua mão com um rosto vermelho como uma beterraba. Ao perceber que Norn
parecia um pouco desconfortável enquanto seus colegas membros do conselho de estudantes
estavam sorrindo de orelha a orelha, tive o pressentimento de que se tratava da clássica confissão
de amor. Ou talvez fosse mais bonito, como um admirador do presidente do conselho só queria
apertar sua mão.

Um encontro de fãs de Norn. Se eu vendesse os apertos de mão dela junto das figuras de
Ruijerd, o fã clube dela provavelmente compraria várias. Espere, não queria fazer com que isso
me gerasse lucro, então talvez eu não devesse…

Em outra direção estava Roxy, cercada por garotas. Cerca de cinco meninas estavam curvando
suas cabeças para Roxy com lágrimas brotando de seus olhos. Roxy gentilmente sorriu e disse
algo a elas. De repente, a emoção foi tanta que uma delas caiu no choro, e se agarrou a ela
enquanto soluçava . O resto das meninas, comovidas pelas lágrimas, também começaram a
chorar.

Haviam diversos outros clichês de formatura acontecendo pelo campus, todos com aquela
atmosfera sentimental e suave que você só podia encontrar em uma graduação.

Não é que ninguém estivesse vindo na minha direção ou de Zanoba… Eu sabia que não era
exatamente o “Senhor Popular” aqui, mas mesmo assim, era um pouco solitário.

Bem, a vida é assim.

Eu tinha uma reserva num pub depois disso. Eu, minha família, Linia e Pursena. Talvez eu
chamasse Nanahoshi também, assim podíamos todos ter uma festinha. Orsted não conseguiria se
juntar a nós, mas já tinha recebido suas parabenizações. Posso ter me sentido sozinho neste tipo
de local, mas não era como se não tivesse meus amigos. Era hora de tentar esquecer sobre isso e
ir para casa, ou pelo menos foi o que pensei.

— Sr. Rudeus.

Um homem solitário me abordou. Ele tinha cabelo loiro e macio, e parecia ter cerca de vinte
anos de idade. Parecia vagamente familiar… Quem era esse cara, mesmo?

— É um prazer conhecê-lo. Meu nome é Brooklyn Von Elsass.

Ah, o orador da turma. Eu o vi hoje mais cedo, não?!


— Parabéns por se graduar como o melhor da turma. — Eu disse, curvando minha cabeça.

— Muito obrigado. — Ele respondeu, retornando o favor graciosamente. — Mas foi apenas
pela influência da minha família que pude tomar este posto. Minhas notas sempre ficaram em
segundo lugar em relação às de Cliff.

— Ah, pare com isso. Você é humilde demais…

Senti que estava prestes a começar a suar frio. Não queria dizer isso, mas estava pensando.

— De toda forma, independente das circunstâncias da minha família, me provei vitorioso


quanto a Cliff no final. Bastante anticlimático…

Realmente, ele era o orador da turma. Não podia discutir com resultados. Entretanto,
provavelmente não era o tipo de “vitória” da qual você podia se gabar.

— O que… me traz a você, Sr. Rudeus… — disse Brooklyn enquanto olhava diretamente para
mim com um olhar resoluto. Credo, por quê? Talvez fosse algum tipo de confissão romântica?
Ele tinha que derrotar Cliff antes de me convidar para sair? É isso que está acontecendo? Mas oh,
céus, eu pertenço a outro alguém! Tenho minha esposa, minha outra esposa, minha outra outra
esposa e meus filhos para cuidar…

— Quero te desafiar em um duelo.

Bem,. eu estava um pouco equivocado.

Um duelo… Desde que fiquei famoso por ser o “Segundo de Orsted”, fui abordado por alguns
otários me pedindo um, mas… Qual a relação entre vencer Cliff e duelar comigo?

— Por quê?

— Certo. Por um tempo, fiquei interessado em verificar o quão forte me tornei. Nos últimos
anos, tive a percepção de que minha força era excepcional, seguindo os padrões da pessoa
média..

Excepcional? Bom, ele era o orador de turma. Tecnicamente. Fazia sentido que ele fosse um
nível ou dois acima do mago médio.

— Mas você, Sr. Rudeus, alcançou alturas muito maiores.

— Acho que sim…

— Há muito tempo tenho o desejo de te desafiar. Desde o momento que te vi derrotar o Lorde
Demônio Badigadi.

Brooklyn fechou seus punhos com força quando mencionou este momento.
— Venho de uma família de guerreiros. Quando voltar ao meu país de origem, serei o sucessor
da família, contratarei subordinados e estarei em uma posição de comandar os outros. Uma vez
lá, certamente perderei todas minhas chances restantes de testar minha força.

— Sim, não se pode agir de forma impulsiva quando se tem uma posição a manter.

— Exatamente. E é por isso que gostaria de usar esta última chance para te desafiar!

Brooklyn curvou sua cabeça com força.

Eu entendia perfeitamente. Todo homem fica curioso sobre quão forte realmente se é. Ele
sabia que era acima da média. Sabia que havia pessoas acima dele. Também sabia que tinha uma
pequena chance de vitória, mas queria me desafiar mesmo assim. Eu entendia sua vontade.
Exceto por uma parte…

— De onde vem a parte de “derrotar Cliff”?

— Huh? — Brook parecia estar surpreso por essa pergunta. — Ouvi que ninguém podia te
desafiar sem antes derrotar o Círculo Demoníaco dos Seis. Senhorita Linia, Senhorita Pursena e
Senhorita Fitz já graduaram, Senhor Badi foi embora… e já derrotei Senhor Zanoba…

—…

O… Círculo Demoníaco de Seis?! Isso existia?! Só não sei quem começou isso. Derrotar
todos eles para me desafiar? Imagine alguém ser tão rigoroso assim…

— Então, você venceu Zanoba? — perguntei.

— Sim. Ganhei dele numerosas vezes durante lutas de mentira como parte de nossas aulas.

— Uh, não me diga.

Quando olhei na direção de Zanoba, ele olhou para o outro lado.

… Bem, em uma batalha usando apenas magia, Zanoba provavelmente perderia, mas esse cara
não conseguiria ganhar de Cliff todo esse tempo. Isso é o que é o que estava estendendo todo
esse assunto até agora. Ele sabia que não tinha realmente vencido Cliff, mas graduar sem me
desafiar significaria deixar sua última chance escapar, então ele veio pedir mesmo assim.

Entendi. Uma memória de graduação, huh?

— Suponho que devo derrotar aqueles que se graduaram também? — Ele perguntou.

Provavelmente estava querendo ter uma lembrança disso, mais do que queria ganhar, para tirar
isso da frente. Como convidar uma garota para sair, mesmo sabendo que ela é muita areia pro seu
caminhãozinho.

— Nah, tudo bem. Vamos fazer isso.


Não importava qual o mundo, as pessoas querem que sua graduação seja especial.

— Eu… Muito obrigado!

Brooklyn respondeu com mais uma curvatura agressiva.

— Hey, Zanoba, posso te pedir para julgar?

— Entendido, Mestre.

Entreguei meu casaco a Zanoba. O pensamento de usar a Armadura Mágica passou por um
momento pela minha cabeça… Mas achei melhor deixá-la fora disso.

Tudo durou cerca de quatro horas.

Não há por que te deixar no suspense: eu venci. Não passei todas aquelas sessões de
treinamentos diários com a Rei da Espada Eris e o Deus Dragão Orsted brincando com meus
polegares. Nosso duelo não era nem remotamente próximo; eu o nocauteei. Imaginei que
Brooklyn não quereria que eu pegasse leve. Por conta do sorriso de alívio com o qual me
agradeceu depois, parecia que ele também sabia como isso ia terminar.

Essa parte estava ok.

Depois disso, alguns outros graduados que estavam assistindo a batalha começaram a vir um
após o outro, cada um me desafiando para testar sua própria força. Eles diziam que tinham
ganhado de Zanoba em um concurso de comer, ou vencido Cliff em uma corrida, ou qualquer
outra desculpa que eu não conseguiria verificar. Os espectadores chegaram aos montes, e, de
repente, eu era o centro de uma multidão.

Estava começando a gostar disso. Podem vir. Ei, era uma graduação, e não era eu quem tinha
criado aquela história de Círculo dos Seis, de qualquer forma. Até mesmo Norn deixou de lado
seu incômodo usual, e gastou sua energia utilizada para dirigir os membros do conselho de
estudantes para organizar a fila. Ela renunciou à tarefa de prevenir o caos sem diminuir a
brutalidade natural das crianças na graduação. Desculpe, Presidente.

— Phew…

E então, meus duelos com cerca de vinte outras pessoas acabaram. Todo o meu treinamento
tinha me fortalecido, mas até mesmo eu estava um pouco destruído. Todos pareciam satisfeitos;
todos os rostos tinham essa leve feição de contentamento. Eu esperava que ajudasse a criar
memórias para as crianças que estariam de volta a suas terras natais.

Por fim, a multidão foi embora. Norn tinha que limpar o salão de assembleia; então ela me
disse para ir para casa sem ela, antes de desaparecer. Os únicos restantes eram Zanoba e seus
assistentes.
— Você certamente é popular, Mestre.

Zanoba parecia exausto depois de todo aquele julgamento. Ele era alguém que era bastante
forte ofensivamente, mas sem resistência alguma.

— Devo dizer, estou muito debilitado… E você, Mestre? Você não está um pouco cansado?

— Nah, estou bem. Acho que nos sujamos um pouco, só. Temos que nos trocar antes da festa
de hoje mais tarde.

— Hmm… Bom ponto. — Zanoba disse, conforme olhava para sua roupa. Elas estavam
cobertas de terra e areia que as ondas de choque daqueles feitiços mágicos tinham jogado em
cima dele. Claro, isso era dobrado para mim, aquele no qual os feitiços foram mirados.

— Então voltemos às nossas casas por ora. E quanto a sua irmã?

— Norn disse que não se juntaria a nós, e ela já disse isso às pessoas no salão, então ela deve
chegar sozinha.

— Entendo. Bem, então…

Por um momento, o olhar de Zanoba voou para algo atrás de mim, só um pouco acima da
minha orelha. Virei para procurar o que ele estava olhando.

Encontrei.

Uma cabeça de cabelo curto e castanho escuro estava nos olhando do telhado. Ao lado dela,
havia uma cabeça de cachos louros agitados pelo vento.

— Julie, Ginger — disse Zanoba.

— Sim?

— Me desculpem, mas posso pedir a vocês para retornar à nossa casa na minha frente e
preparar uma muda de roupas para quando chegar?

— Entendido.

As duas acenaram com a cabeça e foram embora. Pensei que eles tinham decidido que Ginger
não era mais uma serva, mas ela parecia bastante subserviente para mim. Acho que hábitos
antigos demoram a desaparecer.

— Agora, Mestre, voltemos.

— Claro. — Fiz que sim com a cabeça para Zanoba e entramos na escola.

— Eu vi tudo, Rudeus. Você arrasou.


Cliff me saudou com uma expressão cansada quando chegamos no telhado. Elinalise estava ao
seu lado, mas longe. Eu sabia que ela tinha vindo à cerimônia; pois havia deixado Clive na nossa
casa mais cedo, afinal. Não sabia que ela tinha vindo em seu uniforme escolar, até por conta de
ter saído da escola e tudo o mais, entretanto eu me contive em perguntar o motivo pelo qual ela
usava aquele uniforme.

Ei, hoje era uma cerimônia de graduação. Faça o que te faz feliz.

— Você se refere a como eu mostrei a eles por que me chamam de “Mão Direita do Deus
Dragão”?

— Não seja ridículo. Você podia ter feito isso facilmente mesmo antes de lutar contra Orsted.

— Justo.

Cliff descansou contra o gradil do telhado.

— Então, Cliff, o que está fazendo aqui em cima?

— Não tem motivo. — disse Cliff enquanto olhava para o céu. — Só fiquei com vontade de ir
para algum lugar alto.

Só ficou com vontade, huh? Ei, todos temos momentos assim. Como eu não me sentia bem
com alturas, minha melancolia geralmente me levava ao túmulo de Paul.

— Bem, parabéns na graduação, Cliff.

— Obrigado.

Andei até ficar ao seu lado e descansei meu próprio corpo contra o gradio. Zanoba se juntou a
Cliff do outro lado. Elinalise ficou um pouco mais longe de nós, nos observando.

Cara… nós estávamos acertando em cheio a estética de “protagonista de história adolescente


olhando em direção ao seu futuro”. Parando para pensar, Cliff tinha todo o futuro pela frente.
Vinte e dois anos, casado, com um filho e acabado de se formar na universidade. Com esse novo
capítulo na vida, novos desafios de certo surgiriam… Espera, não, eu estava sendo bobo. Hora de
ficar sério. Foco no que realmente importava num momento como este.

Precisamos falar do pós-festa.

Ele disse antes que viria, e seria um saco se uma das estrelas do show não aparecesse.

— Cliff… O que você vai fazer depois disso?

Você sabe que horas ele chegaria aqui? Ele viria direto conosco para a festa ou ele teria que ir,
uh, fazer um “pré-jogo” com Elinalise antes? Isso era o que queria dizer com essa pergunta.

—…
Cliff respondeu com silêncio. Ele estava ficando tímido? Ele e Elinalise ainda tinham algum
tipo de brincadeira sexual de uniforme escolar para realizar?

— Eu… Pensei um pouco. Conversei com Elinalise também.

Cliff pausou por alguns segundos antes de suas próximas palavras.

— Mais um ano. Você pode me esperar?

Por um instante, não sabia como processar o que tinha acabado de ouvir. Nossa reserva no
pub era hoje. Eles nos fariam reservar de novo, com certeza.

— Até que seu filho cresça um pouco mais, você quer dizer? — Zanoba perguntou.

Oh, certo. Claro! Cliff disse há dois meses que daria uma resposta na cerimônia de graduação.
Ei, eu não tinha esquecido ou coisa do tipo. É só que tínhamos a graduação e a festa hoje, então
não queria pressioná-lo até depois dos eventos.

— Sim. Clive ainda é muito pequeno. Gostaria de cuidar dele até pelo menos o desmame.

Cliff parecia severo enquanto olhava para baixo, na direção da Cidade Mágica de Sharia. A
cidade se estendia sobre nós. Não sabia dizer se era por causa do telhado azul, mas, cara, minha
casa realmente se destacava como um dedão inchado…

Parando para pensar, esse telhado não estava aqui quando chegamos. Três anos atrás, antes da
última renovação, foi enviada uma pesquisa perguntando o que a construção precisava. Pedi um
telhado, mas essa foi a primeira vez que percebi que ele tinha sido construído de fato.

— Vai levar cerca de dois anos para viajar até o País Sagrado de Millis saindo daqui,
entretanto, Rudeus, se eu utilizar o círculo de teletransporte na sua casa, posso encurtar esse
tempo. Não sei por quanto, mas devo ter pelo menos um ano de diferença.

Cliff parecia pensar que era seu dever retornar para casa após dois anos de graduado. Sempre
mantém sua palavra, huh?

— Você vai me deixar usar o círculo mágico, não vai?

— Claro.

— Agradeço.

O círculo de teletransporte era um tabu. Usá-lo não para uma emergência, mas por
conveniência pessoal, era algo que pesava bastante para o calado Cliff.

— Além disso, Rudeus, quanto a me juntar a você…

— Sim?
Cliff hesitou em dizer isso. Parecia que eu estava prestes a ser rejeitado. Pelo menos queria
ouvir seus motivos, para que pudesse persuadi-lo uma última vez…

— Eu queria que você esperasse por isso também.

— Oh, esperar?

— Sim. É fato que ter o apoio do Deus Dragão Orsted me permitiria chegar a uma posição alta
dentro da Igreja Millis.

Isso era certeza. Orsted sabia muito sobre o funcionamento interno da Igreja Millis. Pelo
menos ele tinha provavelmente aprendido quais fraquezas de quais oficiais importavam quando
estava em seus muitos longos loops.

— Mas eu sinto que isso não seria correto.

—…

— Uma parte de mim quer saber quão participativo dentro da Igreja Millis os esforços que fiz
podem me levar… Mas eu também não quero me sentar em um assento que outra pessoa me
entregou.

Cliff cerrou seus punhos enquanto falava. Acho que entendi. Ele era igual aos caras que me
desafiaram naqueles duelos. Ele queria testar sua força. Era a parte de Cliff que o fazia um
homem.

— Se esses esforços me levarem ao topo da Igreja Millis, então me tornarei seu aliado.

Hmm… Eu certamente gostaria se Cliff conseguisse fazer isso sozinho, mas sempre havia a
chance que ele não conseguisse. Se ele acabasse por perder sua posição, eu poderia viver com
isso. Encontraria outro caminho para chegar à Igreja Millis e contrataria Cliff para ser o designer
pessoal de capacetes de Orsted, ou algo do tipo. Mas essa não era a única forma que as coisas
poderiam acontecer. O pensamento de sua vida terminar em um assassinato me fazia mal. Ele
poderia morrer, mas se fosse o caminho que Cliff escolheu, eu não tentaria convencê-lo a sair
dele.

— A propósito, Senhor Cliff — Zanoba disse no meu lugar. —, você planeja viajar sozinho
daqui a um ano? E quanto à sua família?

Isso era verdade. O que ele planejava fazer quanto à Elinalise e Clive? Cliff parecia aflito, uma
mistura de angústia e vergonha inundou seu rosto. Ao mesmo tempo, ele estava decidido.

— Vou deixá-los.

— Por… quanto tempo?

— Até que eu seja um homem de verdade, pelo menos.


Um homem de verdade, huh? O que significava que ele não sabia por quanto tempo. Olhei
para Elinalise; seus olhos estavam fechados e seus braços dobrados em frente à sua barriga. Ela
não tinha nenhuma ilusão.

Mas isso era ok? Elinalise certamente queria estar ao lado de Cliff, se pudesse, para cuidar
dele e dar a ele o apoio que ele precisasse. A maldição importava, também. O implemento
mágico de Cliff podia diminuir os sintomas da maldição, mas ainda não faria efeito por muitos
anos. Eu não estava na posição de me intrometer aqui. Cliff tomou essa decisão com sua esposa.

Cliff estava em uma encruzilhada e ele decidiu.

— Entendo. — Eu disse.

Respeitar os desejos de Cliff vinha junto de seus riscos. Se Cliff morresse em algum lugar fora
do meu controle, então eu perderia minha única conexão com o País Sagrado de Millis. Também
perderia alguém que podia fazer pesquisas sobre maldições. Como um risco, entretanto, pode ser
que houvessem dividendos. Cliff teria mais chances de crescer se ele começasse a se virar
sozinho, e esse crescimento faria dele um aliado formidável quando chegasse a hora. Eu não
sabia dizer se isso compensava os riscos, mas era certamente possível que sim. Como uma
atitude lógica, não era má.

Cliff tomou sua decisão e Elinalise concordou. Eu tinha que respeitar isso.

— Bem, então vejo você de novo daqui a um ano.

— Sim. Assim como eu.

Cliff estendeu sua mão. Eu a segurei e o cumprimentei com força.

Isso posto, se eu tivesse que esperar até que Cliff se tornasse um homem de verdade, isso seria
três anos sem saber se ele se juntaria a nós ou não. Isso significava que eu precisava colocar Cliff
de lado e focar em outra coisa.

Como por exemplo… Bem, dizer olá para Ariel seria um bom começo. Zanoba tinha acabado
de começar com a venda de estatuetas, e eu tinha que me certificar de que o Bando Mercenário
continuava com o recrutamento. Para conseguir esses dois objetivos, queria expandir em direção
ao Reino de Asura. Talvez usasse esse ano para planejar como conquistar Asura. Isso me deixaria
bastante ocupado, mas primeiro… Hora de festejar!.

— Tá bom, Cliff. Chega de conversas pesadas, vamos passar o resto da noite nos divertindo
como nunca antes!

— Sim… Vamos lá!

E essa foi a graduação de Cliff e Zanoba.


Mushoku Tensei: Reencarnação do
Desempregado – Vol. 20 – Cap. 03 – Cliff e o
Conselho Estudantil do Instituto de Magia
Naquele dia, Cliff visitou a sala dos professores. A graduação já estava batendo na porta, o que
significava que era o momento de apresentar os resultados de suas pesquisas. O tema que
escolheu foi “Supressão de maldições via implementos mágicos”. Os professores rapidamente
analisaram e distribuíram cópias do documento, tudo enquanto teciam louvores a Cliff. Não
demorou para que seu trabalho culminasse em debates e sessões de perguntas e respostas. A sala
da coordenação estava fervendo. Cliff ouviu até mesmo um dos professores dizendo que sua
pesquisa faria história, mas Jenius, o líder dos professores, tinha algo mais a dizer:

— Lamento por não dar mais holofotes a essa pesquisa revolucionária… mas o porta-voz da
classe já foi selecionado.

O porta-voz daquele ano seria alguém chamado Brooklyn Von Elzas, do Ducado de Neris.
Cliff conhecia aquele nome; era alguém com quem ele passara alguns anos competindo pelas
melhores notas, entretanto ele nunca perdeu para Brooklyn uma vez sequer.

— Sinto muito. Talvez não seja o lugar para falar sobre isso, mas você manteve as melhores
notas de toda a classe de graduandos. Deve se orgulhar.

Cliff apenas respondeu à notícia dizendo “Tudo bem, eu entendo” antes de deixar a sala da
coordenação. O antigo Cliff poderia ter tido um ataque de fúria, contudo, os últimos sete anos o
mudaram. Aprofundar-se em seus estudos, fazer novos amigos e o trabalho como sacerdote
renderam-lhe muitas experiências novas e com elas, vieram a maturidade. Escolas tinham que
considerar suas posições. Administrar uma academia não era barato. Países eram poderosos. As
pessoas não eram iguais. Você tinha que fazer a sua parte e seguir adiante.

Além disso, Cliff não via muito valor no título de “Porta-voz da Universidade da Magia”. Ele
tinha amigos que não tinham títulos e isso não os tornava menos incríveis. Um deles em
particular foi nomeado como “Mão Direita do Deus Dragão”, embora ele não tenha entregue
nenhum currículo para esse cargo. A conquista se deu simplesmente devido ao resultado de seus
feitos.

Fruto da experiência, certamente. Cliff não conseguia deixar de rir do quão tolo era perseguir
títulos depois de refletir sobre o assunto.

Ele deu um forte suspiro.


Se tivesse que se preocupar com algo, seria com sua pesquisa incompleta. Sua tese ainda era
“Supressão de maldições via implementos mágicos”. Caso tivesse sido só um pouco mais
bem-sucedido, poderia substituir “supressão” por “remoção”, e aí não teria mais nenhum
arrependimento. Infelizmente, por não ter terminado, não podia falar de soluções permanentes.
Ele conquistou algo, pelo menos. Tanto Elinalise quanto Orsted o agradeceram por enfraquecer
suas maldições; ainda assim, o objetivo principal escorregou entre seus dedos.

—…

Cliff se aproximou do parapeito da janela e olhou para o exterior. O campus da Universidade


da Magia mudou drasticamente durante esses sete anos que se passaram.

Sabe, pensou ele, eu era bem irritante quando cheguei aqui.

No passado, Cliff tinha completa certeza de que era um gênio, os anos, contudo, provaram o
contrário, tornando-o dolorosamente consciente de que não era nada em especial; embora se
comparado aos outros estudantes, suas notas eram excepcionais. O velho Cliff teria ostentado
isso todo sorridente, mas o atual não sentia que havia algo de que pudesse se vangloriar. Aqueles
últimos sete anos foram movimentados com várias experiências únicas em sua vida. Seu
casamento com Elinalise, sua pesquisa sobre maldições, a boneca bizarra na mansão do Rudeus,
a batalha no Continente Demônio, o Olho Demoníaco que lhe foi concedido, o nascimento de
Clive… muitas coisas haviam acontecido, e foi preciso que muitas delas fossem encaradas com
todo o coração para que pudessem ser superadas. Foram esses desafios que fizeram dele o
homem que era hoje, e não um dom que recebeu ao nascer. Lembrar disso o mantinha humilde.

Suas vivências podem ter sido a razão pela qual Cliff era tido em tão alta conta por sua
congregação quando trabalhava como aspirante a sacerdote de Millis. Eles diziam que, apesar de
sua idade, ele tinha uma empatia extraordinária. Certas vezes, diziam até mesmo que ele se
tornaria um grande sacerdote. Quando o encarregado pelo templo de Sharia deu a Cliff seu
certificado de sacerdote, também lhe deu sua benção ao dizer “Você se sairá bem aonde quer que
vá”. Ele nunca teria dito isso se Cliff ainda fosse o mesmo garoto de sete anos atrás.

— Phew…

Cliff deu um sorriso de satisfação. Não havia se tornado o homem que sonhava ser, mas em
alguém melhor; preferia essa versão dele mesmo.

— Agora, o que fazer a partir daqui…

Ele apresentou sua pesquisa e faltava pouquíssimo tempo até a cerimônia de formatura. Cliff
disse a Rudeus que lhe daria uma resposta quando se formasse, e teria de apresentá-la agora. Ele
queria retornar à Millishion, mas também tinha sua esposa e seu filho. Os pais de Cliff morreram
durante disputas de poder com a Igreja Millis. Seu avô, em especial, lutou pelo posto de papa.
Caso voltasse, colocaria sua família em perigo sem sombra de dúvidas. Foi então que Rudeus
ofereceu a solução numa bandeja de prata. Ele queria que Cliff ajudasse Orsted como um
membro da Igreja Millis. Iam formar uma aliança. Caso conseguissem, Rudeus forneceria toda a
ajuda que Cliff precisava para se alçar na hierarquia, e asseguraria a segurança de Clive e
Elinalise.
Era tudo que poderia pedir e mais um pouco, mas sendo sincero, não sentia que valia todo esse
esforço; não de alguém tão incrível quanto Rudeus. Cliff teve suas dúvidas sobre quando se
encontraram pela primeira vez, mas ele se mostrou honesto e trabalhador. Não era exagero dizer
que boa parte das suas “experiências únicas” só foram possíveis por causa de Rudeus. Alguém
espetacular como ele pedir a ajuda de Cliff soava mais como uma demonstração de
camaradagem do que qualquer outra coisa.

Ainda assim, era tudo que poderia querer. Sua família estaria a salvo, teria o formidável apoio
de Orsted e um caminho até o topo de Millis.

A situação era perfeita, no entanto, parecia muito súbita e ainda não entendia o porquê.

O que deveria fazer? O que queria? Ele agonizou com esses pensamentos até que chegou a
hora de voltar para casa – quando deixaria isso de lado.

— Acho que eu posso passear um pouco mais.

Cliff planejava ir direto para casa depois de apresentar sua pesquisa, mas mudou de ideia e deu
meia-volta. Caso partisse agora, o dia terminaria da mesma forma que todos os outros, e isso não
seria bom.

Santo Millis disse uma vez que “Se o nascimento é o dever das pessoas, não devemos evitá-lo,
mas apreciá-lo”. Em outro momento, disse “Deixe-se sentir suas angústias e não fujas delas”.
Isso significava que não seria certo correr dos problemas e desfrutar junto de sua mulher. A frase
“Sempre acalme vosso coração” também fazia parte dos ensinamentos de Millis, então se
desgastar com aquilo não lhe faria nenhum bem.

De qualquer forma, logo precisaria fazer uma escolha. A escolha sobre como responder o
pedido de Rudeus.

— O que eu faço…

Tinha dito que decidiria depois de discutir com Elinalise, mas ela não tinha nada para
comentar a respeito. Tudo que disse foi que ele deveria pensar por si mesmo. Ela não falou isso
porque o estava abandonando, mas para dar um gentil empurrãozinho; então Cliff se sentiu
obrigado a encontrar uma solução. Elinalise teria uma vida longa – muitas vezes mais longa que
a dele. Ainda assim, nunca o tratou como uma criança. Ela o via como seu amado marido e o
respeitava, então ele retribuía fazendo o mesmo.

— Eu posso fazer isso. Eu sou um gênio!

Aquela frase saiu por hábito. Era algo no qual já tinha acreditado cegamente. Agora, no
entanto, era um mantra que o motivava a agir. Ele sabia muito bem que não era um gênio, mas
sempre se animava quando repetia essas palavras e se lembrava dos tempos em que acreditava
que eram verdadeiras.

— Eu… nós… devíamos…


— Hm?

Cliff mal ouviu o ecoar das vozes que discutiam abaixo do corredor. Brigas não eram
exatamente raras na Universidade da Magia, então, em qualquer outro momento teria ignorado;
ali e agora, contudo, ele se via compelido, então desceu as escadas. Dentre aquelas vozes, havia
uma que era familiar.

— Foi isso que eu disse! Nós somos aqueles que deveriam estar fazendo isso.

— Exatamente! Não podemos esperar que os outros limpem nossa sujeira. Temos que proteger
a escola nós mesmos!!

Um grupo de estudantes gritava enquanto se amontoavam ao redor de uma garotinha. Não


pareciam que a estavam ameaçando, e sim que ela era algum tipo de líder. Os outros estavam
implorando para que ela fizesse algo. Aquela jovem era alguém que Cliff conhecia muito bem.

— Por favor, Presidente!

— Você tem que nos deixar fazer isso, Presidente Norn!

Era Norn Greyrat. Ela estava rodeada pelos outros estudantes e parecia bem irritada.

— Norn, qual o problema? — gritou Cliff. — Aconteceu alguma coisa?

Todos os presentes, incluindo Norn, se voltaram ao recém-chegado. Sua expressão suavizou


um pouco, mas os outros deram um passo à frente antes que ela pudesse responder.

— Quem tu acha que é?!

— Isso são assuntos do conselho!

Logo diante de Cliff, havia uma garota que era quase do mesmo tamanho que ele e um
homem-fera que devia ter o dobro do seu peso. Também reconhecia os dois; eram os atuais
membros do conselho estudantil.

— Pessoal, poderiam dar licença por favor?!

Norn se meteu entre aqueles dois e os afastou para que pudesse passar. Era o tipo de situação
na qual Rudeus teria feito alguma piada idiota para si mesmo caso estivesse aqui. Talvez algo
como “Wow! Norn realmente não queria se juntar à brincadeira de vocês”.

— Me desculpe, Cliff — comentou. — Todo mundo aqui só está assim por se sentirem um
pouco cansados.

— Cliff Grimor… esse garoto? Um dos seis membros do Círculo Demoníaco?

— Ele não é só um “garoto”. Eu devo muito a ele.

— Oh… sinto muito.


O homem-fera murmurou o pedido de desculpas e ainda manteve o olhar ameaçador. O antigo
Cliff teria ficado com medo ou agido com agressividade, entretanto, seu eu atual já tinha visto
coisas piores – coisas que apavorariam qualquer pessoa razoável simplesmente por existirem.
Comparado a Orsted ou Atofe, aquele sujeito era apenas um filhote.

— Então, o que aconteceu? — perguntou Cliff. — Poderia me contar, se não for um


problema?

— Bem… — começou Norn. — A verdade é que há rumores de um fantasma assombrando a


escola.

— Hmm.

Cliff já tinha ouvido sobre isso. Todas as noites, as pessoas ouviam gemidos e estalos, ou
então viam uma figura translúcida vagando pelos corredores… Pelo menos era o que diziam as
histórias. Na verdade, houveram até mesmo estudantes que colapsaram; deixados sem sequer um
pingo de mana, entretanto, alunos desmaiando devido ao excesso de exercícios estava longe de
ser estranho na Universidade da Magia; e rumores sobre fantasmas eram comuns. Pelo menos era
isso que Cliff pensava.

— Então… Quando fomos investigar, encontramos uma passagem nos fundos que dava para
um armazém subterrâneo com um forte selo na porta. Parecia intocado. Quando abrimos,
surgiram esqueletos.

Norn escorregava na própria língua conforme explicava as coisas para Cliff. Parecia que
estava escondendo alguma coisa. Ele sabia disso, mas deixou passar.

— Parece que você tem uma bagunça nas mãos. Se algo está selado, as pessoas que o fizeram
provavelmente tinham um bom motivo.

Um “Guh!” ecoou alto dentre membros do conselho. Veio da garota de semblante rabugento
que usava trancinhas nos cabelos; provavelmente a responsável pela ruptura do selo.

— Por enquanto, recebemos ajuda de um professor para reparar o selo — continuou Norn,
usando um tom que sugeria que fora naquele ponto que tudo deu errado.

— A porta foi selada com uma barreira de Nível Santo. Um Espectro passou por ela e
apareceu do lado de fora. Isso significa que esse espectro que espreitava o armazém deve ser
poderoso.

A universidade contatou a Guilda dos Magos e requisitou profissionais capazes de


exterminá-lo. Pelo menos, esse era o plano, mas infelizmente houve uma complicação. Magia
divina de nível iniciante costuma ser mais que o bastante para um Espectro comum, mas os de
alto nível eram monstros diferentes. Caso houvesse um Espectro Mortívago dentro daquele
armazém, iriam precisar de pelo menos um usuário Avançado de magia divina. Para o azar geral,
não havia nenhum na Guilda.
Então a universidade desistiu deles e contatou a Guilda de Aventureiros na esperança de obter
um usuário de magia sagrada de nível Avançado, mas contrariando as expectativas, eles também
não tinham nenhum. Não estávamos em Millis. Não é como se usuários de magia sagrada de
nível Avançado estivessem desfilando por cada rua dos Territórios Nortenhos. Teriam que
chamar alguém de outra cidade. Pedir um mago emprestado da Guilda de Aventureiros
mancharia sua reputação, eles disseram. Mesmo que chamássemos alguém de outro lugar, não
era como se fossem aparecer no mesmo instante.

E assim, os dias se passaram… até que a primeira vítima surgiu.

A causa era incerta. Talvez o selo não tenha sido reaplicado corretamente, ou quem sabe tenha
falhado desde a primeira selagem. A vítima era uma garota não-nomeada que entrou em coma
depois de ser atacada pelo Espectro e ter sua mana drenada. Ela retornou à aula no dia seguinte.

Desde então, o número de casos aumentou gradualmente.

No momento, parece que o Espectro ainda estava contido pelo selo e só poderia escapar e
atacar os estudantes em momentos específicos do dia. Espectros, contudo, cresciam mais fortes a
cada banquete de mana que consumiam. Se estudantes continuassem sendo atacados, ele logo se
tornaria forte o bastante para se libertar e trazer um exército de esqueletos consigo. Os resultados
poderiam ser catastróficos.

— É por isso que alguns membros do conselho sugeriram que fossemos lá embaixo e
derrotássemos aquele Espectro antes que algo aconteça… — concluiu Norn.

— Eu pelo menos posso usar magia sagrada de nível iniciante! — clamou um estudante.

— Eu trouxe algumas armas do distrito de oficinas que são bem fortes contra Espectros! —
proclamou outro.

— É por isso que estivemos estudando magia! — acrescentou mais um.

— Presidente, por favor, nos dê a ordem!

Não era como se Espectros fossem imunes a outros métodos que não magia divina. Ataques
normais tinham algum efeito, assim como itens mágicos e implementos. Nesse sentido, um mago
divino não era estritamente necessário para exterminar um espectro.

— Hmm, eu entendo — disse Cliff. — Bem, o que você acha?

— Eu sou contra — respondeu Norn. — Se esse monstro fosse algo com que nós mesmos
pudéssemos lidar, então os professores e a Guilda dos Magos certamente não estariam esperando
o mago divino.

— Você tem toda a razão — concordou Cliff. Magia divina talvez não fosse o único método
disponível, mas sem dúvidas era o mais efetivo. Um aventureiro experiente não ousaria enfrentar
um Espectro sem um mago divino ou com muita preparação. Eles estariam em apuros. Além
disso, estávamos lidando com um Espectro de alto nível. Subestimá-lo poderia facilmente ser
nossa ruína.

Foi então que Norn vacilou.

— Mas eu não posso apenas ficar parada enquanto assisto os estudantes se machucarem…

Norn não podia se opor com afinco à tomada de contramedidas enquanto os estudantes
estivessem se ferindo. Precauções à parte, a quantidade de estudantes prestando queixas com o
conselho estudantil era a cereja no bolo. Eles eram tão insistentes que fizeram até mesmo ela
considerar que talvez tivessem um ponto. Ao mesmo tempo, ela não podia negar que havia um
longo caminho a percorrer comparada a pessoas como seu irmão, fazendo com que titubeasse em
sua decisão.

— O que deveríamos fazer? — ponderou Norn, franzindo sua testa.

— Qual é, você poderia apenas… não, espere, você tem um ponto.

Cliff quase perguntou o porquê de ela não ter apenas consultado Rudeus, mas conseguiu parar
a tempo. Ele começou a entender o que Norn estava sentindo.

Com certeza, seu irmão poderia resolver esse problema num piscar de olhos, se Norn lhe
contasse. Ele não era um mestre em magia divina, entretanto, suas habilidades em magia
ofensiva eram de nível Imperial. Cliff especulava que Rudeus estava no pico do nível Divino.
Eliminar um Espectro não seria nada para ele, mas isso não seria o certo. Para Norn, isso estava
fora de cogitação. Não poderia explicar em palavras a razão por trás daquilo, mas dado o dilema
do próprio Cliff – o de que precisava resolver as coisas por si só – ele entendia.

— Certo, vamos tentar isso — declarou Cliff. — Isso é, se todos concordarem…

—…?

— Eu vou ajudá-los.

— Huh? — exclamou Norn, surpresa. A proposta de Cliff fez com que ela acordasse de seu
transe. — Verdade! Você pode usar magia divina de nível Avançado…

Cliff tinha atingido o nível Avançado de magia divina. Magia divina de nível Intermediário ou
Superior não poderia ser ensinada sem a autorização da Igreja Millis, então ela não era ensinada
na Universidade da Magia. Não havia nem mesmo uma pessoa que pudesse ensiná-los, mas Cliff
era o neto do papa. Millis fez uma exceção e permitiu que ele aprendesse. A Universidade
convidou um tutor especial para lhe dar aulas de nível avançado.

— Presidente, esse é um assunto do conselho estudantil! Sir Cliff pode ser membro do Círculo
dos Seis, mas ele ainda não deveria se envolver com estudantes regulares!
— Isso mesmo! Somos nós quem deveríamos fazer isso! Caso contrário, as pessoas vão dizer
que o conselho estudantil é muito incompetente para fazer qualquer coisa sozinho! Eles vão dizer
que nossa presidente é incapaz!

Os dois estudantes que bloquearam o caminho de Norn mais cedo se opuseram à ideia aos
berros, contudo, Norn se endireitou e os calou.

— Parar os ataques é mais importante que nosso orgulho! — exprimiu Norn em tom
repreensivo. Os dois estudantes recuaram. — Além do mais, e se algo acontecesse com vocês?
Poderiam ser os próximos.

— Presidente…

— Presidente Norn…

Norn voltou-se a Cliff e o encarou nos olhos. Seu olhar era duro; nada parecido com aquele
que tinha quando visitou Cliff pela primeira vez ou quando Rudeus partiu para o Continente
Begaritt. Ela não era mais uma ovelha perdida que tremia de medo e incerteza. Quem olhava
para Cliff agora era alguém que se tornara cada vez mais determinada a cada ano que se passava.

Ela visitava o templo em que Cliff trabalhava sempre que precisava conversar. Todas aquelas
confissões e reclamações devem ter feito alguma diferença.

— Cliff, está pronto para isso?

— Pode apostar.

Cliff já ouviu Rudeus dizer vez ou outra, todo sorridente, que “Norn realmente tinha crescido”,
no entanto, ele nunca tinha notado; dado que somente a tinha ouvido se queixar ao confessar.
Agora, sentia que estava vendo um pouco daquilo que Rudeus tanto falava. Cliff também ficou
lisonjeado por Norn ter pedido sua ajuda ao invés da de seu irmão.

— Certo, conselho. — Ela disse. — Iremos nos infiltrar no armazém subterrâneo! Caso
descubramos que isso é mais do que podemos lidar, recuaremos imediatamente! Fui clara?

— S-Sim!

E assim, Cliff e o conselho estudantil se dirigiram até o armazém subterrâneo.

O armazém subterrâneo estava logo à frente.

A Universidade da Magia era uma instituição distinta, com mais de dois séculos de história
desde sua criação. Eu não poderia dar uma idade precisa, mas estava certo de que Cliff ou
qualquer membro do conselho estudantil saberia se você perguntasse a eles. Seja como for, as
estruturas da Universidade da Magia passaram por várias expansões e reformas desde sua
fundação; transformando-a nessa escola para mamutes que hoje conhecemos. A elegância do
layout do prédio se dá graças aos habilidosos administradores e arquitetos que primeiro aqui
assentaram as fundações da construção, mas não importava a quantidade de esforço que tivesse
sido aplicada a princípio nas bem-arrumadas fachadas, ondas de repetidas reformas, combinadas
com a ação do tempo, fizeram com que algumas construções fossem ignoradas pelos mais gentis
observadores, enquanto admiravam a beleza do campus. Uma delas era esse armazém.

Havia outros armazéns similares espalhados pelo perímetro, e todos continham muito da
história da Universidade da Magia. Varinhas mágicas de dois séculos atrás, pergaminhos de cento
e cinquenta anos de idade, a peruca de família de um diretor do século passado – tudo que
poderia vir a ter uma função era jogado aqui dentro sempre que não tinha uso imediato.

Resumindo, era um lixão.

Uma vez que Norn assumiu o cargo de presidente do conselho, decidiu que já era hora de se
livrar daquele lixo. Se removessem a tralha daqueles armazéns, a escola teria mais espaço. Então
ela sugeriu renová-los com armários para os estudantes. A limpeza do lixo em salas abandonadas
era o tipo de projeto pequeno e prático, embora não essencial que costumava caber à Norn;
Entretanto, recentemente, o número de alunos cresceu muito. A falta de armários pessoais se
tornou um sério problema.

Alguns professores não compartilhavam dessa opinião. Eles disseram que tudo naqueles
armazéns era um artefato histórico, e alguns itens até mesmo valiosos. Você não podia jogar tudo
fora sem discernimento prévio. Norn calou essas reclamações dizendo:

— Se forem realmente valiosas, é mais uma razão para não as deixar largadas pelos cantos de
um armazém.

No fim, o conselho estudantil reuniu os fundos necessários, mobilizou assistentes dentro da


escola e começou o trabalho de limpeza. Esse projeto foi recebido relativamente bem; com
vários estudantes se juntando a fim de ganhar um dinheirinho; no entanto, conforme o trabalho
prosseguia, alguns alunos se depararam com o Espectro.

— Foi assim que tudo começou. Nos sentimos responsáveis por sermos do conselho
estudantil. — Norn explicou para Cliff, enquanto segurava uma lanterna em sua mão.

— Bem, pelo que ouvi, o conselho estudantil não tem razões para se sentir culpado.

Em retrospecto, aparecia uma vítima vez ou outra antes de sequer terem começado a limpeza.
Mesmo após reaplicar a barreira, a frequência dos ataques continuou aumentando. Essa era a
prova de que o Espectro do armazém estava ficando mais poderoso. Mesmo que o conselho
estudantil não tivesse começado com o projeto, o Espectro teria escapado, mais cedo ou mais
tarde. Na verdade, o conselho ajudou a revelar o Espectro mais cedo, então esse era o lado
positivo da situação.

— Ooooh…
Uma garota resmungava com as palavras de Cliff, a mesma que usava maria-chiquinhas e que
se agarrou à Norn mais cedo. Ambos seus punhos seguravam sua varinha de cinquenta
centímetros conforme ela fitava a escadaria negra como carvão que levava ao armazém
subterrâneo. Seus dentes estavam cerrados e seu corpo em choque. Foi ela quem descobriu a
porta trancada na escuridão. A pessoa que retirou o selo também foi ela.

A primeira vez que ela abriu aquela porta, um esqueleto tinha saído pra fora. Seu ataque
surpresa pegou em um dos estudantes que a havia seguido até lá embaixo e o feriu. O trabalho de
faxina se tornou um confronto. Mal conseguiram destruir o primeiro esqueleto, e ele
imediatamente ressuscitou. O resto do conselho estudantil correu para de onde vinha o barulho.
Eles conseguiram segurar a porta com magia de barreira de nível Iniciante por tempo o suficiente
até chegar um professor com habilidades de magia de barreira de nível Santo, mas o amigo da
garota que havia quebrado o selo ainda estava gravemente machucado. Se ele tivesse sido um
pouco menos sortudo, o dano colateral poderia ser muito pior.

Pode ser que ela não soubesse que havia um espectro atrás daquele selo, mas ela não podia
negar que o removeu, em parte, sem pensar. Isso normalmente seria motivo para expulsão, mas
Norn encobriu o caso. Ela relacionou o incidente às recentes histórias de fantasmas e mentiu ao
dizer que eles esbarraram na porta do armazém; e por acidente romperam o selo enquanto
estavam fazendo o reconhecimento do lugar.

O fato de que o esqueleto continuou ressurgindo e atacando, até que a mágica divina o
reduzisse à poeira, provou que havia um espectro controlando-o. De fato, havia um espectro lá e
ele realmente estava atacando os alunos, então Norn não criou toda essa mentira do zero. De toda
forma, a garota que abriu a porta deve estar doente de culpa.

— Certamente é assustador — disse Cliff enquanto seguia seu gesto e olhava para a escuridão.
A porta trancada estava em algum lugar ali. O medo do esqueleto fez com que o projeto de
faxina do armazém fosse interrompido e a área foi declarada interditada pela autoridade do
conselho estudantil.

Cliff se lembrou da última vez que ele esteve nessa posição. Foi quando ele se juntou a
Rudeus para procurar pela construção que por fim se tornaria sua mansão. Naquela época, Cliff
estava se tremendo assim como a garota que estava ao lado dele agora.

— Ei, qual o seu nome, mesmo? — Perguntou Cliff.

— Huh?! E-eu?!

— Sim.

— É Sheila.

Sheila olhou para Cliff como dizendo, Então? O que você quer? Isso lembrou tanto Cliff de
seu eu do passado, que ele não conseguiu segurar a risada.

— Sheila, você já fez coisas como… Quero dizer, você já se aventurou em uma floresta ou
uma masmorra?
— Uh, não. Nunca! Mas tenho certeza de que um membro do Círculo Demoníaco dos Seis
como você tem muuuuita experiência! Então? Quem se importa?!

— Oh, não. Não tenho quase nenhuma experiência — disse Cliff. Sheila o encarou com
desconfiança. Ele continuou:

— É só que há algo que ouvi de uma pessoa uma vez que teve essa experiência. Ele disse que
quando principiantes tentam fazer mais do que são capazes, eles acabam não conseguindo lidar
com nada do que tinham se proposto a fazer. Foque em fazer uma única coisa, e em fazê-la
direito.

Isso veio da vez que ele foi junto com Líder escalonado em uma aventura? Não, devia ser de
quando ele vasculhou aquela mansão com Rudeus alguns dias depois. Cliff se lembrou que
Rudeus deu a ele uma única ordem: “Se nos depararmos com um inimigo, use magia divina de
nível Básico para atacá-lo.” Cliff se comprometeu com aquela ordem, e, quando a boneca o
atacou, ele foi capaz de se defender usando magia divina. Certo. Principiantes não conseguem
lidar com muita coisa.

— Alguém aqui está acostumado a lutar contra monstros ou já trabalhou como um


aventureiro? — Cliff perguntou ao grupo.

Dos sete membros do conselho estudantil, duas mãos se levantaram em resposta. Uma
pertencia a um homem-fera e a outra a um humano. Muitos homens-fera cresciam em florestas,
nas quais eles lutam contra diversos monstros. O humano provavelmente tinha uma história
como um aventureiro.

— Certo, vocês dois vão dar as ordens. Para o resto, vamos decidir seus papéis antes de irmos.

— Ei, Cliff — disse uma voz áspera.

— O que foi?

— Eu não ia falar nada, já que a Presidente disse que te deve bastante, mas você não é nosso
chefe — disse o homem-fera.

Cliff parou por alguns segundos, mas logo percebeu que qualquer coisa que ele dissesse não
seria ouvida por esse cara.

— Certo. Então Norn, por favor tome as rédeas.

— Huhhh? Não importa quem está no comando, importa? Não é como se eu soubesse muita
coisa sobre lutar contra monstros, de toda forma…

— Mas você é a presidente!

— Bem, isso é verdade. Ok, vou falar com Neadle para designar os papéis.
Seguindo a sugestão de Cliff, Norn foi em direção ao estudante com a mão levantada e
discutiu tudo nos mínimos detalhes.

— Neadle, você costumava ser um aventureiro, certo? Vou te dizer os pontos fortes de todos,
então espero que você possa me dar algum conselho sobre quem seria mais apropriado para cada
trabalho.

Cliff olhou de volta ao homem-fera que havia levantado sua voz. É claro. Esse era o motivo
pelo qual ele seguiria Norn e não Cliff. Norn estava em casa, determinando os papéis do time.
Ela se lembrava de cada detalhe sobre quem era bom em qual tipo de magia e quem tinha úteis
habilidades que não envolvessem magia conforme atribuía as funções. Se a antiga Norn
recebesse uma requisição para liderar algo, ela provavelmente entraria em pânico e se
preocuparia quanto ao que devia fazer, para logo após abaixar sua cabeça e pedir dispensa do
cargo. Mas dessa vez era diferente. Ela não era exatamente perfeita, e ainda parecia bastante
nervosa, mas ela foi capaz de trabalhar junto daqueles ao redor dela para arcar com uma
responsabilidade, mesmo sendo um golpe tão súbito como esse. Ela não nasceu sabendo fazer
isso, mas estava aprendendo.

— Certo, isso deve resolver — disse Norn. — Todos prontos, pessoal?

— Sim!

Com as funções decididas, Cliff e os membros do conselho estudantil entraram mais ainda na
escuridão do armazém subterrâneo.

A porta era feita de rocha. O círculo magico que cobria sua superfície emanava um brilho azul
pálido – uma barreira mágica de nível Santo. A universidade da magia tinha apenas um professor
capaz de usar magia de barreira nível Santo. Sempre que um dos conjuntos de barreiras que se
espalhavam pela academia precisava de ajustes ou manutenção, era ele quem o fazia.

— O círculo mágico não parece ter se dissipado — anunciou Cliff enquanto o investigava. Seu
conhecimento sobre barreiras mágicas cobria somente o nível Intermediário, mas o estudo de
maldições, o desenvolvimento das Próteses Zaliff e a manufatura da Armadura Mágica o
tornaram um bom conhecedor de círculos mágicos. Além do mais, ele sabia dizer só de olhar se
o círculo mágico estava funcionando bem, e não demorou muito até que ele aprendesse a
desativá-lo temporariamente. Se ele passasse só um pouquinho mais de tempo decodificando-o,
provavelmente aprenderia a usar esse feitiço de barreira de nível Santo.

Mas claro, Cliff era um legalista. Ele sempre seguia as regras, mesmo que fosse capaz de
quebrá-las. Caso ele aprendesse a usar essa barreira mágica de nível Santo, poderia deixar o
professor que mantinha o selo em maus lençóis. Ele não tinha intenção alguma em fazê-lo.

No fim, ele percebeu que poderia estudar o que quisesse uma vez que retornasse ao seu lar no
País Sagrado de Millis.

— Consigo desativá-lo. Podemos entrar.


— Entendido — respondeu Norn. — Todo mundo pronto?

Os membros do conselho estudantil sacaram as armas em resposta. Alguns respiraram fundo,


outros tinham um brilho no olhar. Havia humanos, homens-fera, halflings e demônios. O
conselho estudantil de Norn certamente tinha mais personalidade que toda a equipe de Ariel –
composta somente por humanos – durante todo o seu mandato. Deveria ser a primeira vez na
história da escola que tantos não-humanos formavam um único conselho estudantil.

— Beleza. Abra, por favor.

Com o pedido de Norn, Cliff fez apenas uma pequena incisão no círculo mágico. De forma
súbita, o brilho do círculo se esvaiu completamente. As lanternas nas mãos dos membros do
conselho eram tudo que restava para iluminar a entrada bloqueada.

O homem-fera rumou até a porta e agarrou a maçaneta.

— Ngh… Graaaaaaaagh!

Rugindo, o homem-fera empurrou a porta. Ela se abria devagar e rangia copiosamente.

A entrada se abriu o bastante para que apenas duas pessoas conseguissem passar por vez.
Neadle, o ex-aventureiro, seria o primeiro a entrar. Ele ergueu a lanterna antes de dar um passo
adentro. Os demais estudantes o seguiram. Uma vez que estavam todos lá, o homem-fera agarrou
a porta mais uma vez e, com o mesmo grunhido terrível, a empurrou até que ficasse
semi-fechada. Não fecharam por completo, já que correriam o risco da passagem ser selada por
um professor que viesse checar. Por precaução, deixaram espaço suficiente para que uma pessoa
conseguisse se esgueirar por ela. Fora do armazém, havia um sinal de área restrita, e eles também
colaram uma nota na porta que dizia “sob investigação do conselho estudantil! Por favor, evite
aplicar selos até segunda ordem”.

Se Rudeus estivesse nessa situação, ele iria apenas improvisar e dar um jeito de ser selado de
propósito. Mas muitos dos membros do conselho eram o tipo de nerds que eram trancados em
lugares por valentões, então aprenderam a ser precavidos.

—…

O armazém subterrâneo ficou silencioso. Eles se concentraram em ouvir, e no escuro, sons


fracos soavam mais próximos do que gostariam.

Havia esqueletos aqui com eles.

— Muito bem, vamos seguir o plano — sussurrou Norn. Ao seu comando, o homem-fera
pegou sua maça de ferro. esqueletos eram apenas ossos, então armas contundentes eram mais
efetivas do que lâminas. Todo o conselho estudantil estava equipado com varinhas, porretes e
maças. Seu plano era avançar contra os esqueletos com suas armas e magia enquanto a
retaguarda lançaria ataques a longa distância contra o Espectro que controlava os esqueletos.

— Grr! Presidente, para trás! — O homem-fera gritou de supetão.


Os ruídos ficaram mais altos conforme a lanterna lançava seu brilho sobre aquelas figuras
brancas. Eram feitas de ossos e nada mais; sem sequer resquícios dos músculos que costumavam
mantê-los juntos. E ainda assim, se ergueram.

Esqueletos.

A criatura cambaleou em sua direção. Aquela figura vazia avistou o conselho estudantil, e
então ergueu a bengala que segurava acima de seu crânio. Os ruídos se transforaram em um
estardalhaço conforme tantos outros esqueletos se revelaram.

— Não recuem! — declarou Norn. — Se preparem para contra-atacar!

Seguindo o comando de Norn, o homem-fera e o halfling balançaram suas maças com força. O
esqueleto tentou atacar com sua bengala, mas foi lento demais. As habilidades de esqueletos
eram proporcionais às que possuíam em vida; e este não pertencia a um guerreiro.

— Hmph!

O homem-fera estilhaçou o esqueleto com um único movimento de sua maça. Contudo, os


ossos começaram a se aglomerar e a tentar se remontar. Até que derrotassem o Espectro que os
controlava, os esqueletos continuariam voltando.

— Avançar! — comandou Norn. Os membros do conselho fizeram valer sua ordem e abriram
caminho por entre as monstruosidades. Por sorte, nenhum dos esqueletos era particularmente
hábil, então não foram capazes de deter o avanço do conselho.

Eles avançaram até a sala mais ao fundo. Lá, encontraram apenas um altar. De todas as coisas
que poderiam encontrar acima dele, não havia nada.

Nada, exceto uma figura translúcida pairando sobre ele.

Uma figura incompleta; sem as pernas.

— Por quê… por quê… por quê… — A coisa sussurrou.

Era o Espectro.

— Por quê… por quê… por quê…

O robe esfarrapado do Espectro tremulava conforme a criatura lentamente voltava seu olhar
para os estudantes. O que restava de seu rosto tinha um aspecto magricelo e meio apodrecido; e
ainda assim, havia alguns poucos sinais de juventude. Uma expressão de surpresa cruzou sua
face por um momento, mas assim que reconheceu Norn e os outros estudantes, deu um grito de
arrepiar os cabelos.

— Kyyyiiaaaaaaaaaaargh!

— Wh-whoaaaa!
— É-É o Espectro!

O berro do Espectro foi o bastante para fazer com que alguns dos estudantes se encolhessem, e
assim que o fizeram, os vários ossos espalhados em torno do altar flutuaram e formaram mais
esqueletos. Pior ainda: aqueles que tinham destruído mais cedo se reergueram para atacar
novamente, e pela retaguarda dessa vez. Os membros do conselho estudantil estavam sendo
atacados em dois frontes por um exército de esqueletos.

Tudo conforme com o plano.

Mas.

— Ai!

Uma das estudantes sentiu uma dor súbita no tornozelo. Quando ela olhou para baixo, viu um
pequeno osso; talvez medisse uns vinte centímetros.

Era um rato.

Eram os ossos de um rato.

Era o esqueleto perolado de um rato, e ele estava circundando os estudantes e mordendo seus
tornozelos.

— Whuh, rah, a, aaaaaghh!

Em seu desespero para se livrar do rato-esqueleto, a garota gritou e balançou sua perna junto
com o braço da varinha. E não era apenas um único rato-esqueleto – dúzias mais avançaram
contra os pés dos membros do conselho e se contorceram em torno de seus tornozelos.

— Huh?! Whoa

— Eeek!

A formação do grupo se desfez.

— A-Acalmem-se, por favor! — vociferou Norn. — Primeiro, vamos nos focar nos…
Esqueletos humanos? Não, er, talvez devêssemos recuar?

Norn tentou conter o pânico, mas sem uma ideia clara do que priorizar, ela se viu
sobrecarregada. Tudo que pôde fazer foi balançar sua maça contra os monstros que rastejavam
abaixo. Os esqueletos humanos fecharam o cerco contra os estudantes.

—…

O resto do grupo podia estar em pânico, mas Cliff estava tranquilo

Os ratos eram o problema, pensou Cliff. Os esqueletos são lentos. Além do mais, o Espectro
não parece ser grande coisa…
Se esse fosse um Espectro Mortívago de rank A, já teria bombardeado o grupo com um
turbilhão de magias logo depois de ter terminado de conjurar os esqueletos dos ratos ou talvez
avançado sobre eles para sugar sua mana. Ele não fez nenhum dos dois. Em vez disso, ficou
apenas pairando sobre o altar enquanto gritava. Sua voz nem era tão assustadora. Comparado a
aquele rei demônio cabeça-de-osso que tinha encontrado no Continente Demônio, o Espectro
soava como uma colegial.

Calma. E se esse Espectro na verdade for fraco?

Essa ideia o atingiu como um raio. Se ainda fosse o antigo Cliff, ele teria desobedecido,
quebrado a formação e posto todo mundo em perigo. Mas o atual jamais faria isso baseando-se
num palpite. Bem, isso somente se aplicava quando era apenas um palpite. Cliff percebeu que
tinha um jeito de testar sua teoria.

— Olho do reconhecimento! — gritou Cliff enquanto removia o tapa-olho. Em um instante,


seu campo de visão foi preenchido com palavras, palavras e mais palavras. Ele suportou a dor de
cabeça, ignorando inúmeras informações até que encontrasse a que precisava.

Ele viu a linha de texto pairando sobre o Espectro.

— Hm… ah!

Esse era o poder do Olho do Demônio. Ele o recebeu de presente da Grande Imperatriz do
Mundo Demoníaco, Kishirika Kishirisu. Cliff não relaxou em seus treinos, mas ainda estava
longe de ser tão proficiente quanto Rudeus era em seu uso. Precisaria de muitos anos de prática
até que chegasse naquele nível, mas ele praticou o bastante para usá-lo durante crises.

— Eu vou avançar! Alguém me dá cobertura! — anunciou Cliff antes de deixar a formação.


Seu alvo era o Espectro. Bloqueando seu caminho, estavam os esqueletos.

Cliff deu um largo golpe com sua maça contra o esqueleto à sua direita, acertando seus
quadris. A pélvis do monstro se estilhaçou antes que chegasse ao chão.

— Exorcizar!

Mais atrás, alguém terminou de conjurar e uma luz esbranquiçada passou voando por Cliff e
atingiu o esqueleto do seu lado esquerdo, e este único feitiço divino foi o bastante para
transformá-lo em poeira. Não precisou se virar para saber. Norn foi quem o havia ajudado.

Cliff avançou um pouco mais, firmou os pés e começou seu próprio encantamento.

— Invoco-lhe, Deus que abençoa a terra que nos nutre! Distribua punição divina para aqueles
tolos o suficiente-

De repente, um esqueleto apareceu; vindo do ponto cego de Cliff. O monstro projetou a ponta
de sua bengala em sua direção. Ele tentou se jogar para o lado numa tentativa de se esquivar.
Infelizmente, tudo tinha acontecido muito rápido e ele acabou sendo acertado nas costelas. Uma
dor ardente subiu por sua espinha. Cliff cerrou os dentes, se recompôs e se focou no inimigo.
O Espectro estava logo ali.

— Para desafiar os caminhos naturais! Exorcizar!

Uma massa de luz branca voou da varinha de Cliff; indo na direção do Espectro com
velocidade mais que o suficiente.

Acertou em cheio.

— Gyeeaaagggh!

O último suspiro do Espectro ecoou conforme ele se desintegrava. Seu corpo translúcido
partido em pedaços; cada um queimando como cinzas antes de se extinguirem. Em um instante,
os esqueletos colapsaram e foram ao chão, como marionetes cujas cordas tinham sido cortadas.

— Huh?

— Nós… conseguimos?

Incertos sobre o que havia acontecido, os membros do conselho estudantil observaram seus
arredores cobertos de ossos. Cliff buscou por mais espíritos vingativos antes de colocar a mão
em seu flanco e cair de joelhos.

— Guh…

— Cliff! Você está bem?!

Norn disparou em sua direção e começou a performar uma magia curativa. Uma luz fraca
banhou as feridas de Cliff antes que elas se fechassem rapidamente.

— Phew. — Cliff limpou o suor que manchava sua testa enquanto suspirava aliviado.

— Muito obrigado — continuou Norn. — Sendo sincera, eu não tenho ideia do que…

— Não, a culpa não é sua. Ninguém poderia esperar aqueles ratos-esqueletos. Só estamos
salvos porque aquele Espectro era de nível baixo.

— Como você sabia disso?

— É porque eu tenho isso — respondeu Cliff, cutucando seu tapa-olho. A linha de texto que
achou naquele mar de informações quando ativou o Olho do Reconhecimento era simples e
direta: Belê, isso é um Espectro. É bem meia boca, inclusive.

Ainda assim, havia sido uma decisão arriscada. O olho podia ter dito que era um Espectro
fraco, mas a magia divina de nível Iniciante poderia não ter sido o suficiente. Caso não fosse
forte o bastante, ou se seu olho tivesse dito que era “meia boca” segundo os parâmetros da
Grande Imperatriz do Mundo Demônio, Cliff poderia morrer quando a criatura contra-atacasse.
As pistas apontavam que a criatura era fraca, mas não havia qualquer garantia. Era uma aposta.
— Bem, funcionou. Nós exterminamos aquela coisa — completou Cliff.

— Sim. Muito obrigada por isso. Ainda assim, é estranho. Pelo que sabíamos, devia ser um
Espectro de alto nível, poderoso o bastante para passar da barreira de nível Santo.

— Ainda bem que ele não era. Se isso é o que um normal é capaz de fazer, não teríamos
chance contra um de nível alto.

Os membros do conselho estudantil, que antes estavam congelados processando o encontro


com a criatura, despertaram com essas dolorosas palavras. Mesmo assim, uma verdade é uma
verdade, e eles não podiam negar. Uma horda de esqueletos de ratos foi o suficiente para destruir
sua formação. Caso os esqueletos fossem controlados por um Espectro de alto nível, então seus
movimentos seriam mais perigosos, além dos ataques do próprio Espectro. Se a situação fosse
diferente, o conselho estudantil poderia ter terminado se juntando aos esqueletos lá embaixo.

— Mas é realmente estranho. Talvez devêssemos investigar um pouco? — sugeriu Cliff.

— Boa ideia… muito bem, pessoal. Vamos averiguar o local. Fiquem de olho pro caso de
aparecerem outros esqueletos ou Espectros.

Com os monstros exterminados, era hora de começar a investigar.

No fim, descobriram que o Espectro havia conseguido escapar com a ajuda de um roedor. Os
estudantes acharam túneis de ratos no cômodo e, depois de uma sondagem, averiguaram que ele
dava diretamente na superfície. O Espectro deve ter se esgueirado por ali para atacar os
estudantes.

Também desvendaram a razão de o Espectro estar ali. Um diário velho foi encontrado jogado
em um dos cantos da sala, e ele iluminou um pouco o caso. Não era uma história bonita.
Aparentemente, aquele lugar era usado como armazém para alguns dos itens mágicos mais
estimados da Universidade da Magia, mas, em algum momento, foram movidos para algum
outro lugar. Depois de esvaziado o local, um professor acabou ordenando que alguns estudantes
limpassem a área. Pouco depois de começarem, descobriram que estavam presos lá dentro.

Do ponto de vista dos estudantes, parecia um plano maldoso do professor para prendê-los. Ou
talvez ele tivesse esquecido sobre a limpeza, trancado a porta e apenas… saído. A verdade sobre
o que aconteceu se perdera há muito tempo.

Os alunos tentaram escapar, mas eles eram apenas calouros que mal haviam se habituado.
Também tinha a chance desse trabalho desagradável ter sido dado aos repetentes. Fosse como
fosse, nenhuma de suas tentativas deu resultado. E assim, o tempo e suas esperanças morreram…
assim como eles.

Todas as armas que os esqueletos usavam pareciam ser o que sobrou dos utensílios de limpeza,
e o número de crânios que eles encontraram batia com o número de estudantes presos. Isso
concluía a investigação – estavam tão perto de saber o que aconteceu quanto poderiam. Ainda
assim, o conselho estudantil estava apenas especulando, e estabeleceram a seguinte teoria: talvez
o professor tenha retornado alguns dias depois dos estudantes morrerem. Foi então que encontrou
os corpos. Temendo as responsabilidades que tamanha tragédia traria, deu alguma desculpa sobre
o motivo de ter selado a porta (ou então ele chamou outro alguém para selá-la).

O incidente foi acobertado, e a essa altura, os estudantes se transformaram em mortos vivos.


Séculos depois, roedores cavaram fundo o bastante para chegar no armazém subterrâneo, o que
culminou no início dos ataques…

Ao menos, era isso que o conselho estudantil deduziu.

Se passou tanto tempo desde a última vez que aquele armazém foi usado que era provável que
o professor responsável e os parentes dos estudantes já estivessem mortos há muito tempo. Cliff
enterrou os ossos dos estudantes em um enterro digno. Era isso que ele poderia fazer como um
clérigo de Millis. Todos os membros do conselho compareceram para oferecer suas orações.
Cavaram uma cova para cada um e recitaram as escrituras para eles. Fizeram tudo em pesaroso
silêncio.

— Como a escola lidará com esse incidente? — ponderou Norn.

— Parece que vão levar tudo a público — respondeu Cliff. — Faz séculos desde que isso
aconteceu, e eles também não conseguiram encontrar nenhum parente. Não acham que vai
manchar a reputação da academia tanto assim.

— Entendo… achei que eles iriam esconder o ocorrido.

— O Professor líder Jenius realmente quis expor o caso.

— Ah, sim. O senhor Jenius é um sujeito honesto.

Cliff conhecia Jenius. O considerava um homem decente e compreensivo. Na verdade, desde


que ele assumiu o cargo de líder dos professores, houve uma grande redução na discriminação
racial contra o corpo docente. O fato dele ter um forte senso de justiça e tratar os outros
igualmente contribuiu para esse fim.

— Ah, sim. Aliás, Norn, posso fazer uma pergunta?

— O que foi?

— Caso ache minha pergunta um pouco desconfortável…

— Wow, se você está dizendo isso, então deve ser bem sério… Pode me dar alguns segundos?
Preciso me preparar mentalmente.

Norn respirou fundo, tapeou levemente suas bochechas e disse “tudo bem” para se recompor.
Depois, se virou para Cliff.

— Manda bala.

— Por que você não consultou Rudeus sobre isso?


— Huh? — Ela pareceu perplexa por um momento.

— Bem, eu acho que se você pedisse a ajuda do seu irmão em vez da minha, ele teria
resolvido todo esse problema sem correr esse tipo de risco.

— Oh… ah, certo, sobre isso.

— Imagino que você tinha suas razões, certo?

— Digo, sim, eu estou tentando não depender do meu irmão para qualquer coisinha. Quando
surgem problemas, se eu encontro algo que eu possa resolver sozinha, então eu faço. — Norn riu
de si mesmo com essa última frase. — Mas você está certo. Eu devia ter pedido a ajuda do meu
irmão dessa vez. Tomei uma decisão ruim.

Ela disse que tomou uma decisão ruim, mas Cliff se lembrava disso de uma forma diferente;
Norn estava se opondo a tudo aquilo. Ela sabia que eles não conseguiriam cuidar disso sozinhos,
então tentou impedir que os outros estudantes corressem perigo. No fim, foi a intromissão de
Cliff que fez com que ela fizesse essa escolha.

Se eu não tivesse aparecido, pensou Cliff, então tinha uma boa chance que ela acabasse
pedindo que Rudeus a ajudasse…

— Sinto muito pela pergunta estranha.

— Oh, não se preocupe…

Antes que os dois percebessem, o resto dos membros do conselho estudantil se juntou ao redor
deles.

— Cliff! — Uma voz profunda chamou. Pertencia ao homem-fera que não foi com sua cara
mais cedo. A garota com maria-chiquinhas estava ao lado dele. O homem-fera, com seu rosto
intimidador coberto de emoção, se curvou de repente.

— Estaríamos em sérios apuros se não fosse por sua ajuda! Peço que me perdoe por ter sido
rude com você mais cedo!

— Também peço desculpas! — anunciou a outra antes de se curvar.

— Oh, não se preocupem. Vocês nem foram assim tão rudes.

— Não, eu fui! Eu o julguei por você ser parte do Círculo Demoníaco dos Seis! Não consigo
pedir desculpas o bastante!

— Eu também, eu pensei que você seria como Linia ou Pursena…

— Isso… é bem injusto, sim — concordou Cliff. Ele massageou suas têmporas ao pensar
naquelas gata e cachorra mal-educadas. Se era aquilo que estava sendo comparado, então a
precaução daqueles dois era justificada.
— Ainda assim, estou feliz por termos resolvido o problema — disse Norn com um leve aceno
de cabeça. — De verdade, obrigada.

— Ninguém vai poder chamar a presidente de incompetente agora! — disse a garota com
maria-chiquinhas em tom brincalhão.

— Sério, você sempre traz esse assunto!

— Eu trago? Mas é verdade que as notas dela não são lá grande coisa, não é?

— Notas não têm nada a ver com a performance de alguém. E a nossa presidente é excelente
no que faz.

— Ugh, é claro, vocês do povo-fera são sempre assim! Sempre balançando o rabo para sua
queridinha miausidente como se fosse um mascote.

— Mascote?! De que inferno você tirou-

Conforme os dois começaram a discutir, os outros membros do conselho se reuniram para


apreciar o show. Cada um deles participou na briga de seu próprio jeito. Alguns colocaram mais
lenha na fogueira, outros se fingiram de diplomatas.

Norn assistiu com um sorriso nos lábios. Eles estavam apenas brincando uns com os outros;
todos eram amigos ali. Não tinha razão para os interromper. De repente, Cliff se viu pensando
onde a vida os levaria. O que aquele homem-fera e a garota humana fariam depois que
terminassem a escola?

— Desculpas de lado, tem algo que eu queria perguntar para você. Posso?

— Huh?

— Quais seus planos depois de se graduar? — indagou Cliff.

Em resposta…

— Eu quero voltar para casa e ajudar minha vila. Estão com falta de magos por lá! —
respondeu o ex-carrancudo homem-fera. Nem todos do povo fera cresceram na Grande Floresta;
esse tinha sido criado em uma pequena vila agrícola nos Territórios Nortenhos. Ele e sua família
eram os únicos do povo fera do lugar, e isso… sendo franco, significa que sofreram com bastante
preconceito. Um de seus objetivos era provar que estavam errados, então ele decidiu que o
melhor jeito de fazer isso era trabalhando duro.

— Na verdade, minha família é nobre, mas eu considerei virar uma cavaleira — disse a garota
humana que estava discutindo com o homem-fera momentos atrás. Para ela, ainda demoraria
muito para que se formasse, então não tinha pensado muito sobre o que fazer depois. Mas mesmo
que seus objetivos não estivessem bem definidos, ela estava procurando por uma profissão em
que sua educação na Universidade da Magia seria usada. Não queria viver uma vida pacata como
uma dama e se casar com algum outro nobre, mas sim como cavaleira. Assim, teria muitas
chances de usar sua magia.

— Eu acho que vou focar em negócios. Um colega de classe que se graduou ano passado
pediu que me juntasse a ele — falou um garoto demônio. Ele se formaria no próximo ano, então
já tinha começado a trabalhar em uma companhia mercante no tempo livre a fim de aprender
como as coisas funcionavam. Conhecimento mágico se provou muito útil nessa linha de trabalho,
então até que bastantes formandos visavam se tornar mercadores.

— Eu não tenho a mínima ideia. Acho que só vou sair em aventuras.

Claro, alguns dos estudantes que estavam longe de se graduar pensavam dessa forma. Muitos
dos veteranos não tinham uma direção a seguir na vida – mas estavam procurando. No entanto, a
maioria costumava ter planos mais concretos e se focar em seus objetivos de vida conforme a
formatura se aproximava.

Ouvir todos os diferentes planos fez Cliff pensar.

Todos são diferentes, huh?

— Mas vocês todos têm muito respeito por Norn, não é? Já consideraram trabalhar pra ela
depois de se graduar?

— Bem… se a Presidente Norn me pedisse, então eu pensaria sobre, claro, mas ela não nos
disse nada sobre o que queria…

Todos os olhos se voltaram à Norn.

— Huh? Eu?

— Verdade. Eu também queria ouvir seus planos para o futuro.

Norn apoiou o queixo em sua mão e tomou algum tempo para pensar.

— Ainda está muito longe, então não é como se eu tivesse planejado muito…

— Diga qualquer coisa que vier na mente.

— Certo. Bem, eu queria um trabalho que eu fosse capaz de fazer por volta da formatura. Um
que se encaixa comigo.

— Oh, então você já tem tudo decidido, na verdade — O plano dela era prático, honesto e,
acima de tudo, um tanto… singelo. Assim como ela. — Não tem algo que você realmente queira
fazer?

— Realmente queira?

— Bom, no seu caso, você poderia pedir para o Rudeus te arranjar qualquer trabalho que
quisesse.
Norn fez beicinho por um momento. Ela sentia que estava sob a sombra do irmão e não
gostava disso. Cliff percebeu seu erro, mas antes que pudesse se desculpar, Norn o retrucou.

— Eu aprendi muito nessa escola. Eu quero descobrir o que eu posso fazer depois de passar
por essa experiência. É por isso que independente da minha decisão, provavelmente vou tomá-la
nas vésperas da formatura; por mim e para mim.

Aquelas palavras acertaram diretamente o âmago de Cliff. Tudo veio à mente. Com o que ele
realmente se preocupava e as coisas que realmente queria fazer.

Ela estava certa. Se ele deixasse que Rudeus fizesse o que prometeu, Cliff iria subir nos ranks
da Igreja de Millis. E como ele também era neto do papa, certamente conseguiria uma posição
bem alta sem seu próprio esforço efetivamente – sem mesmo levantar um dedo. Quando esse
momento chegasse, Cliff pensaria consigo mesmo:

Qual foi o ponto daqueles sete anos?

Pelo que estudei naqueles sete anos? Pelo que tanto trabalhei? De que serviram aquelas
experiências únicas na vida?

Essas experiências únicas que vivi naqueles sete anos tiveram algum significado?

Sim, eu ganhei um amigo inestimável que é o Rudeus. Isso não significa que, na verdade, eu
não mudei em nada durante esse tempo?

Era isso.

Ele queria saber.

Ele queria ter certeza.

Ele precisava saber que o que ele aprendeu e conquistou valeram aqueles sete anos.

— Norn.

— Huh? Oh, o que foi?

— Obrigado. Você acabou de me ensinar uma lição valiosa.


Norn parecia um pouco confusa com a risada súbita e gentil de Cliff, mas logo respondeu
rindo também. Ela cruzou as mãos em frente ao corpo, ajeitou sua postura, ergueu o queixo e
disse:

— Não, sou eu quem devo agradecê-lo por me ensinar tanto durante esses anos.

E com isso, se curvou levemente.

Ela se apoiou muito na ajuda de Cliff quando Rudeus não estava por perto. Poderia parecer
que não escutava o que Cliff dizia, mas Norn era muito grata por suas palavras.

Como seu sênior e seguidor de Millis, Cliff ouviu seus problemas, ensinou-a a ser forte e a
guiou em seus estudos… Ele não foi o único a apoiá-la naqueles tempos, mas ela ainda o
considerava uma grande influência.

— É um pouco cedo, mas parabéns por se formar. Obrigada por tudo.

Aproveitando a deixa, os outros membros do conselho estudantil abaixaram suas cabeças e


disseram “Parabéns” juntos. Eles podiam estar pensando em apenas seguir o exemplo de Norn,
mas havia um claro respeito em suas vozes.

— Bem, hm…

Cliff estava um pouco envergonhado, mas não iria se encolher. Em vez disso, ele forçou um
sorriso.

— Obrigado.

À noite, Cliff pensava nos eventos daquela tarde deitado na cama. Ao lado dele, deitava-se
Elinalise, com Clive dormindo apoiado nela. Os olhos dela estavam fechados, mas estava
acordada. Cliff podia dizer já que ela continuou o acariciando amorosamente.

— Lise. — Cliff sussurrou para não acordar seu filho. Elinalise não respondeu, mas parou de
mover sua mão e encostou a testa em seu ombro. Ele entendeu sem que ela precisasse dizer uma
palavra sequer.

Cliff virou a cabeça para que pudesse ver seu lindo rosto logo adiante. Ele acreditava que
escolher uma parceira baseando-se em aparências não funcionava. Ainda assim, achou ela linda
assim que pôs os olhos nela. Independente de suas ideias sobre o que fazia de alguém um bom
cônjuge, ainda a desejava. Ela não era a mulher que imaginou para si. Não – era muito mais
bonita; fossem em corpo, alma ou atitude.

— Decidi que resposta darei a Rudeus — disse ele. Elinalise enrolou os dedos em volta da
mão de Cliff gentilmente em resposta. — Você sabe o quanto sou grato a Rudeus. Graças a ele,
eu acho que realmente cresci. Bem, não o bastante para que possa dizer que sou um homem.

Elinalise não disse nada. Quando Cliff falava, especialmente se fosse sobre assuntos sérios, ela
não falaria e escutaria o que tinha a dizer, como agora.
— Acho que ele teve um papel importante para que tivéssemos um filho e fôssemos capazes
de viver essa vida abençoada juntos. Tenho certeza de que ele negaria, claro. Por alguma razão,
ele me dá muito crédito; ele diria que é resultado do meu trabalho duro.

“E esse é o ponto, Lise. Se Rudeus estiver com problemas, eu quero ajudá-lo tanto e quanto
puder. Minha força não se equipara àquela que ele tem no dedo mindinho, mas eu acredito que
há algo que eu possa fazer. Deve haver algo que Rudeus não consiga fazer e que eu consigo.

“Se eu apenas fizer as mesmas coisas que ele e me colocar sob sua proteção, então eu não
acho que vá desenvolver qualquer habilidade que ele já não tenha. Se eu quero estar lá por ele
como um amigo, então devo caminhar com minhas próprias pernas e alcançar meus objetivos
com minhas próprias mãos; proteger o que é meu com minhas próprias armas e força.”

As palavras que escorreram da boca de Cliff não eram uma grandiosa e bem elaborada
filosofia – eram simplesmente o que sentia de verdade.

— Eu quero sentir algo real.

Algo real. Sim, Cliff queria sentir algo por si mesmo.

Sentir que podia fazer isso. Sentir que ele era um homem de verdade. Sentir o quanto ele
cresceu naqueles sete anos. Sentir que poderia proteger Elinalise e Clive por conta própria. Ele
queria se testar na árdua hierarquia da Igreja de Millis.

Claro, isso era pura vaidade. Caso ele colocasse a segurança de sua família em primeiro lugar,
aceitaria a ajuda de Rudeus desde o começo e ganhar o apoio de Orsted garantiria isso. Contudo,
esse não seria o fim da história. Caso Cliff tomasse aquela escolha, perderia a confiança em si
mesmo em algum momento. Quando chegasse a hora de enfrentar uma verdadeira crise, ele
paralisaria se Rudeus não pudesse socorrê-lo. Esperaria os comandos de uma autoridade que
deveria ser seu amigo, e acabaria perdendo chances cruciais.

Cliff não poderia dar claras razões do porquê acreditava que isso aconteceria. Tudo que tinha
era a vaga impressão que acabaria assim, e ele odiava a ideia de esse ser seu destino.

— Então é isso que você pensa, Cliff? — disse Elinalise. Ela entendeu.

— Estou errado?

— Não. Mas tem uma coisa: você tem a mim ao seu lado. Eu posso ser a espada que golpeará
seus inimigos ou o escudo que o impedirá de se ferir. Não há razão para usar as armas que tem.

— Ah, você está certa.

Eles dizem que armas e armaduras são extensões do corpo. Elinalise levava isso no coração;
queria que Cliff a tratasse como se ela fosse uma parte de seu corpo e alma – não no sentido de
usá-la como ferramenta, e sim contar com ela como se fosse tão natural quanto usar os braços ou
as pernas. Era esse o modo de Elinalise mostrar que estava lá por seu marido.
— Mas ei, você passou muito tempo pensando nisso. O que te fez decidir assim de repente?

— Oh, bem, teve uma coisa que aconteceu com os membros do conselho estudantil hoje…

Ele falou sobre os eventos do dia. Explicou sobre a preocupação de Norn, como eles
exterminaram o Espectro debaixo da escola, como ele indagou os membros do conselho sobre
seus futuros… e por último, sobre como Norn agradeceu e fez uma reverência sorrindo.

— Ei, parece que seu dia foi bom.

— Sim… mas tem uma pulga atrás da minha orelha.

— Oh?

— Sim. É só um pensamento que tive hoje…

— Posso pedir que o compartilhe comigo?

— Digo… tudo bem.

— Não se preocupe. Não vou rir.

A voz de Elinalise era gentil enquanto Cliff tropeçava nas próprias palavras. Contudo, os
cantos da boca dela se curvaram em um leve sorriso. Quando Cliff começava a ter dificuldades
para falar como agora, geralmente era porque queria dizer alguma coisa legal sobre uma mulher.
Ele não queria soar como se estivesse a traindo. Ele hesitava porque não suportava a ideia dela o
odiar.

— Bem, uh, eu não tenho certeza se isso é algo que eu deveria dizer pra você, mas… eu acho
que, quem sabe, talvez a Norn possa gostar de mim.

— Oh, céus! Cliff, você não está me traindo, está? Seu cachorro! Canalha!

— N-Não, eu não-

— Shh. Cliff.

Agora, era assim que geralmente acontecia. Cliff iria entrar em pânico e negar, e depois
Elinalise iria provocá-lo um pouco mais e, no fim, ela diria que estava apenas brincando, depois
se abraçariam e pronto. Mas, naquela noite, ela decidiu que seria um pouco mais séria.

— Tem um monte de homens que iriam dar em cima de mim, mas não há muitos que iriam
sequer pensar em ter uma família comigo depois de conhecer que tipo de mulher eu sou.
Francamente, nem eu iria.

“Mas você foi além disso. Você viu essa mulher que não sabia nada sobre e acreditou nela.
Você aceitou o desafio de curar minha maldição logo de cara. Essas não são coisas que qualquer
um faria. É por isso que me apaixonei por você. Meu coração é seu, Cliff. Se eu tivesse que pular
a cerca e dormir com alguém para continuar viva, então eu morreria de boa vontade – esse é o
tanto que me apeguei a você. Não há mais ninguém com quem eu ficaria.”

— Oh, er… quero dizer, eu não acho que sou isso tudo…

Incerto sobre como responder a tamanho elogio, Cliff ficou vermelho como um pimentão
enquanto seus olhos giravam nas órbitas.

— Agora que eu fui clara, você é livre para acreditar ou não nas palavras que vou te dizer
agora.

— C-Claro.

Cliff engoliu em seco a um volume audível, mas Elinalise não deu pausa.

— Ela não está afim de você.

—…

— Minha maldição me tornou bem perceptível sobre cada sutil batida no coração de uma
mulher, então eu tenho certeza.

Essas duras afirmações deixaram Cliff sem palavras. Elinalise, contudo, logo riu de seu
marido e continuou em tom zombeteiro.

— Mas talvez, e só talvez, eu esteja falando isso por inveja… Talvez esteja mentindo para
separá-los porque eu não quero que Norn roube você…

— Não… eu sei que é verdade. E-é. Eu sabia. É por isso que disse que era somente um talvez.
Apenas isso. Se ela realmente nutre algum sentimento por mim, então isso seria, você sabe, um
problema…

— Claro, querido.

Cliff bolava desculpas apesar de estar todo corado. O olhar de Elinalise era cheio de afeição.
Ela não pretendia realmente testar sua lealdade, mas o fato de Cliff ficar tão envergonhado
provava que era fiel. Era muito fofo.

— Wuh… Waaaaagh… Aaaaaaawgh…

E assim, Clive começou a chorar. Talvez tivessem falado alto demais, ou talvez ele tenha
enjoado do flerte dos pais, mas fato era que estava rabugento.

— Oh querido, parece que estávamos conversando alto demais.

— Guh, desculpe…
Elinalise se levantou, foi até o berço e se encarregou de acalmar Clive. Cliff levantou-se
também, com as mãos tateando o ar na esperança de poder fazer algo para ajudar. Elinalise,
contudo, já tinha aquietado o filho antes que Cliff encontrasse uma forma de ser útil.

— Calminho, calminho — disse Elinalise; balançando a criança. Cliff contemplou enquanto


uma alegria incrível o dominava… e um senso ainda maior de satisfação pelo caminho que
escolheu.

Mushoku Tensei: Reencarnação do


Desempregado – Vol. 20 – Cap. 02 – A Loja
Zaboba
Zanoba não era mais um príncipe. Nesses últimos dias, ele esteve penhorando suas relíquias
reais para que possa construir uma casa próxima da minha – uma robusta construção de dois
andares. Ele elaborou seu design tendo em vista a produção de figures, então o primeiro andar
era como uma ampla e espaçosa garagem. Primariamente, o espaço habitacional era no segundo
andar, que acomodaria Ginger, Julie e a si próprio. Parecia espaçoso o suficiente para os três. Eu
não tinha ideia de como suas relações mudariam com o passar do tempo; poderia ficar um pouco
inquietante caso um deles se casasse.

De qualquer modo, mesmo que ele tivesse dinheiro o bastante por enquanto (fosse de suas
economias ou mesada real) ele começaria a se esvair rápido a partir daqui. Decidi que o pagaria
pela produção da Armadura Mágica, o que eu também categorizei como custos de pesquisa.
Zanoba aceitou o dinheiro, mesmo que sob alguns protestos.

— Não sou apenas eu quem está trabalhando nisso, então não posso evitar de sentir que estou
errado por ser o único a aceitar dinheiro por isso — disse com uma expressão severa.

Eu entendia seus sentimentos. A Armadura Mágica era um esforço coletivo entre mim,
Zanoba e Cliff, mas apenas ele estava sendo pago. Não parecia razoável.

Mas, seguindo essa lógica, era eu que não estava sendo razoável. Eu saí e trabalhei na
Armadura Mágica, e fui o único a estar sendo compensado por sua criação. Em outras palavras,
fui o único a lucrar pela criação da Armadura Mágica até agora, a invenção pela qual nós
trabalhamos juntos para construir. Não a fizemos pelos ganhos, mas, sendo humanos, é natural
nos atirarmos às gargantas uns dos outros por um mero trocado a mais. Se eu quisesse ser justo,
teria de pagar o Cliff também. Claro, Cliff se sentia bastante pressionado quando se tratava de
dinheiro, então eu não tinha certeza se ele aceitaria.

Deixando isso de lado.


Há momentos na vida onde você apenas entrega o que lhe pedem. E olha, ninguém que eu
conheci foi mesquinho a ponto de tirar vantagem de mim. Tenho recursos o bastante para me dar
ao luxo de ser caridoso. Todos nós temos o dever de retribuir quando conquistamos alguma
liberdade financeira.

Seja como for, eu precisei da Armadura Mágica e precisei das habilidades do Zanoba de
esculpir figures. É natural pagar pelo que você precisa, e com isso, eu consideraria que seu estilo
de vida se validou.

Agora, eu estava de pé em frente à porta da casa daquele escultor de figures. Respirei


profundamente. Me disseram que eu era livre para entrar sempre que quisesse, mesmo que o
cabeça da casa estivesse fora. Havia apenas uma regra: bata antes. Era a etiqueta apropriada para
dois amigáveis compatriotas.

— Zanobaaa, yoohoo! Abre aí! — gritei, chamando-o enquanto tocava a campainha.

— Oh, Mestre. Entre, por favor. A porta já está aberta.

Sua resposta foi incrivelmente rápida. Contudo, eu precisava de mais do que isso.

— Tem certeza? Realmente posso? Cuidado, tô entraandoo! Me impeça enquanto poodee! Se


eu começar, não vou me seguraaar!

Da última vez, a falta de um consenso provocou um acidente e quase me botaram para fora.

— Não faço ideia do que você possa estar insinuando, mas não vou pará-lo. Vamos, entre.

— Certeza? Não tem nenhuma mulher se vestindo perto de você, né?

— Não há nada com o que se preocupar.

Eu senti que podia acreditar nele. Sim, depositei minha confiança mais uma vez no homem
que nunca deixou de acreditar nem quando pus as mãos naquele diário do futuro. Mesmo se o
preto se transformasse em branco e o mundo fosse invertido, eu sabia que ainda haveria um
homem digno de confiança: Zanoba.

— Beleza, aqui vou eu.

Abri a porta. Um passo e eu estaria dentro da oficina de Zanoba. Era um espaço amplo com
duas mesas de trabalho no centro de um mar de caixas de madeira e figures espalhadas pelo
lugar. Zanoba estava sentado diante de uma das mesas e Julie estava com ele.

Só isso não seria diferente do usual, mas a atmosfera da oficina estava um pouco estranha
hoje. Se tivesse que chutar, eu diria que o problema era onde Julie estava sentada. Normalmente,
ela estaria fazendo figures em sua mesa, que ficava perto da de Zanoba.

Hoje, contudo, ela não estava em sua mesa.

—…
Julie estava sentada no colo de Zanoba, encarando intensamente a escultura que ela estava
pintando.

Enquanto isso, Zanoba cuidadosamente esculpia uma parte da Armadura Mágica. Os retalhos
caiam no topo de sua cabeça, mas Julie não parecia notar.

— Zanoba… Você ficou bem próximo da Julie enquanto eu não olhava, huh?

— Hm? Isso seria um problema?

O pequeno corpo de Julie realçava a alta estatura de Zanoba. Eles pareciam irmãos. Adorável!
Sabe, desde que as únicas coisas que eles fizessem naquela posição fossem figures… Bom, era
seguro afirmar que não havia um pingo de perversão ali. Digo, não que houvesse algum
problema se tivesse. Nesse mundo, não há lei que determine uma idade de consenso, então
ninguém poderia usar algo do tipo contra ele.

Mas, você sabe… Eu bati, então queria que eles tivessem se afastado um pouco.

— Nah, ver vocês aquece meu coração. — Eu disse, conforme apanhava uma cadeira no canto
da oficina.

— Mestre, o que traz o senhor aqui hoje?

— Sobre isso…

Verdade. Eu não vim até aqui para falar sobre o clima. Eu já o encarreguei do projeto de
manufatura da Armadura Mágica, mas queria lhe dar outra tarefa na qual trabalharia
paralelamente.

— A verdade, Zanoba, é que eu vim informá-lo de sua nova posição.

— Huh… Posição, você diz?

— Sim, posição — confirmei. Puxei um pedaço de papel do bolso no meio peito. Eu o


entreguei a Zanoba como se fosse uma oferenda.

— Ah, perdoe meus modos — falou Zanoba. Com pressa, ele abaixou Julie, bofeteou suas
roupas para se livrar da sujeira e graciosamente recolheu o papel. O sujeito era bem refinado.

— Hmm… — murmurou Zanoba. — Aqui diz que Zanoba Shirone será designado para o
Departamento de Vendas de Figures.

— Sim. Eu imploro que aceite.

— Eu não hesitaria em aceitar…, mas nós não íamos adiar esse projeto?

Esse documento nos permite prosseguir com nossos planos de vender aquelas estatuetas do
Ruijerd que fizemos tempos atrás. Ele devia estar pensando no porquê de estarmos fazendo isso
logo naquele momento, mas, na verdade, vender aquelas estátuas naquele período em específico
era crucial. Estaríamos convocando líderes ao redor do mundo e, ao mesmo tempo, reuniríamos
cada um dos nossos aliados para a batalha contra Laplace. Contudo, havia algumas pessoas cujo
paradeiro era desconhecido, incluindo o Ruijerd.

Na linha do tempo original, ele estava no Continente Demoníaco, mas nessa ele foi enviado
comigo para o Central. Não tive notícias dele ultimamente, nem descobri onde ele está. Nem me
passou pela cabeça que o pior tenha acontecido com ele, mas era fato que, agora, não poderia
encontrá-lo ou pedir sua ajuda.

Bom, não era como se ele estivesse se escondendo. Poderíamos encontrá-lo facilmente se
procurássemos um pouco mais. Mas havia algo que não podia negar: ele era a primeira pessoa
cuja ajuda eu pediria para derrotar Laplace, afinal, esses dois tinham uma história juntos. Eu faria
de tudo para achá-lo e perguntar pessoalmente. Eu queria dar a ele a chance de se vingar…

Mas no fim, metade disso era só uma desculpa. No fundo, eu só queria vê-lo novamente
depois de todos esses anos. Talvez nosso objetivo em comum nos permitisse trilhar o mesmo
caminho mais uma vez, mesmo que por pouco tempo. Eram motivos egoístas, mas foi assim que
começamos as vendas das figures de Ruijerd. E ei, isso certamente seria mais rápido que
organizar um grupo de busca. Sem mencionar que reparar a reputação dos Superd era algo que eu
estava planejando há algum tempo…

Eu também tinha outras justificativas prontas, caso ele precisasse de mais para se convencer.
Por exemplo, a Armadura Mágica. Eu, Zanoba e Cliff já tínhamos atingido um gargalo no
desenvolvimento dessa arma. As chances de a Terceira Versão não ser finalizada eram muito
reais. Que sorte! Se implementarmos esse projeto de vendas de figures e alcançássemos a escala
de distribuição e venda necessárias, estaríamos treinando engenheiros para contratarmos depois.
Lembre-se, as técnicas de engenharia usadas nas bonecas e figures também poderiam ser usadas
no desenvolvimento da Armadura Mágica. Ao elevarmos a quantidade de pessoas especializadas
em nosso meio, teríamos mais experimentos e, por consequência, maiores chances de chegar a
uma descoberta revolucionária. Desenvolver talentos era a chave.

— E esse é o plano — concluí. Expliquei tudo até os mínimos detalhes. — Mesmo que eu
tenha motivos pessoais por trás, quero aumentar nossas chances com a Armadura Mágica. Estou
lhe pedindo isso porque você entende isso melhor do que ninguém .

— Hmm…

— Vou contatar os Mercenários Ruato. Eles devem ter pessoas experientes em negócios que
possam te dar suporte. E claro, Aisha e eu iremos ajudá-lo a colocar a primeira loja para
funcionar. Então… você vai fazer isso?

— Sim. Claro.

Zanoba consentiu sem hesitar e se ajoelhou diante de mim. Julie, que estava assistindo de
relance, abruptamente se ajoelhou também.

— Grande Mestre! O que eu devo fazer? — exclamou.


— Julie, você ficará ao lado de Zanoba e seguir seus comandos!

— Okay!

Parecia que Julie estava indo com tudo também. Logo, estaríamos indo de cabeça na
confecção massiva de figures do Ruijerd, e isso significaria que ela estaria trabalhando para
ganhar dinheiro para o Zanoba. Com certeza ela se animaria ao ouvir isso.

— Pois bem, cuidaremos dos pormenores amanhã. Isso é o bastante por hoje.

— Entendido.

Depois, eu decidi que chamaria aquele mercenário que chamou minha atenção…

Vários dias depois, retornei à casa de Zanoba junto de duas pessoas. De um lado, havia um
homem intimidador com óculos redondos. Seu cabelo tinha uma proporção de 7-3 invés de um
corte de tigela. Ele vestia um casaco preto com bordados amarelos. Era claramente humano.

— É aqui onde você vai trabalhar daqui em diante.

— E-Entendido…

— Ouça bem, Joseph. Não seria exagero dizer que esse projeto gigantesco depende de você.

Joseph engoliu em seco.

— Mas não precisa se preocupar demais. — Eu prossegui. — Afinal, sendo nosso grande
benfeitor, este será apenas o primeiro de muitos.

Joseph era assim; seu gênio ansioso e seus problemas com excesso de álcool combinados
tornavam sua pele pálida com frequência, e isso fez com os outros mercenários lhe dessem o
infantil apelido de “Pálido”. Antes de entrar para o Bando, ele era um mercador. Nesse mundo,
pessoas que optavam por essa profissão geralmente começavam suas carreiras com vendas
itinerantes. Caso acumulassem riquezas o bastante e elevassem seus status em suas guildas e em
trocas, eles poderiam se tornar empregados ou aprendizes de algum dos figurões do comércio. Se
juntassem ainda mais recursos e experiência, finalmente poderiam abrir suas próprias lojas.
Desde que conseguissem manter o movimento, talvez conseguissem expandir seu negócio e se
tornar uma companhia executiva, ou mesmo se tornar os fornecedores pessoais da família real.

Joseph parecia ter chegado ao ponto de possuir uma loja, mas cometeu um gravíssimo erro que
lhe custou tudo. Sempre que perguntavam o que deu errado, ele não daria um piu. Entretanto,
rumores diziam que foi por causa de uma mulher; pelo menos foi isso que Linia me contou.
Claro, conhecendo a reputação dela, suas teorias eram tão sólidas quanto papel molhado. Meu
palpite é que o problema envolvia bebida. Ele deve ter enchido a cara até perder o bom-senso e
pôs as mãos em uma de suas empregadas, tudo para descobrir como isso acabaria com ele
depois.
Calma, isso é parecido com o que Linia disse.

Ah, esquece.

Seja como for, depois de perder tudo, Joseph começou a perambular pelo mundo até que
encontrou o Bando Mercenário. Segundo Aisha, ele era incrivelmente habilidoso lidando com
finanças, então acreditaram na sua história de ter tido uma loja. E tendo em vista o quão altos
eram os parâmetros dela, isso era um baita elogio. Mas… pensando melhor, Aisha disse que eu
era habilidoso, então esse era o valor de suas palavras. No fim, tudo isso levou a escolhermos ele
como conselheiro para a grande abertura da primeira loja do Zanoba.

— V-Você tem certeza? — perguntou Joseph, cujo rosto já estava fazendo jus ao apelido. —
Ouvi dizer que o Senhor Zanoba pode ser bem intimidador… E que quando ele se irrita, joga as
pessoas contra o teto.

— Joseph, meu garoto, são apenas rumores. — Eu disse para confortá-lo. — Em que mundo
alguém manda os outros pelos ares quando está com raiva? Se alguém estivesse realmente
zangado, não acha que jogariam no chão ao invés disso? Sem dúvida, o chão é bem mais duro.

— S-sim, você está certo, sim…

Claro que eu tinha razão. Zanoba só jogava pessoas pra cima quando estava pulando de
alegria. Quando estava com raiva, seu movimento favorito era usar uma garra de ferro na cara.

— Dito isso, é melhor não o incomodar em primeiro lugar, mas isso vale para qualquer um,
não? Você já foi um comerciante, então tenho certeza que você concorda que é melhor deixar
seus clientes de bom humor, né?

— Não… não. Certas vezes, é melhor aborrecê-los.

— Sério?

— A-As pessoas podem tomar decisões erradas quando estão com raiva. Especialmente os
inimigos. Irritá-los pode atrapalhar seu julgamento e dar-lhe vantagem nas negociações.

Interessante. Pode se aplicar aos inimigos, mas não estamos falando de inimigos agora,
estamos?

— Zanoba é um inimigo?

— N-Não! Desculpe. Não queria ser desagradável…

— Oh, não há com o que se preocupar. Eu que estava errado no fim. Sim, alguns inimigos são
mais fáceis de se lidar quando estão zangados, é verdade.

— C-Certo…, mas claro, o Senhor Zanoba não é um inimigo… então eu não pretendo
perturbá-lo… é só que, quando eu estava com os mercenários, tudo que eu fazia fez com que
alguém ficasse com raiva de mim…
O fato era que ele não parecia se encaixar com os ousados heróis que formavam o Bando
Mercenário. Devia ser por ele ser tão tímido e reservado. Eu me lembro do quão desconfortável
ele estava durante nossa primeira entrevista, depois de Aisha tê-lo sugerido para mim: a cor em
seu rosto quando entrou na tenda do capitão já tinha abandonado o tom pálido e ido direto para o
branco, como se fosse um cadáver ambulante. Ele começou a conversa já assumindo que estava
prestes a ser castigado por algum erro que cometeu, então ele manteve um ridículo sorriso de
merda durante toda a conversa. Tive minhas dúvidas sobre o sujeito, para dizer o mínimo.
Mesmo Aisha tentou dar para trás em sua recomendação.

Ele era um comerciante falido. Geralmente, conselhos de pessoas falidas não são confiáveis.
Caso alguém não compreendesse exatamente a razão por trás de seus erros, eles poderiam
cometê-los novamente. Estava falando por experiência própria. As falhas são certas na vida. A
maturidade de alguém que possui muitos fracassos como referência vale seu peso em ouro.
Nunca iríamos crescer se deixássemos nos pararem. Não precisávamos de uma taxa de 100% de
sucesso; 60% já passava da meta, mesmo quando o “teste” era mudar o mundo.

O gosto do sucesso muda as pessoas, e eu senti que, se pudesse dar um pouco desse gosto a
esse homem, ele se tornaria uma ferramenta/ajuda excepcional. O escolhi para esse projeto não
para cutucar seu passado, mas por causa dele.

— Nosso benfeitor é clemente e faz questão que o sucesso não passe despercebido. Caso
consiga fazer desse projeto um sucesso, você poderia se tornar o gerente da divisão comercial do
Bando Mercenário.

— C-Como? eu não acho que seria qualificado para essa posição.

— Talvez. E ainda assim, você não recusou a oferta. Você está aqui. Isso fala por si.

Modéstia à parte, finalizei com uma frase bem profunda.

Bem, era profunda até que um certo “alguém” a arruinasse. Esse “alguém” era Linia.

— Não se preocupe, miau! Zanoba é como um irmãozinho para miau. Levanta a cabeça e
deixa que eu cuido do resto. Vou encher ele de sopapo se precisar.

Por algum motivo, quando eu apresentei o projeto, ela se juntou logo de cara e passou a agir
como guru o tempo todo. Considerando que sua primeira experiência em um trabalho honesto
acabou antes de sequer começar, seu discurso soava apenas como um novato sabichão.

— Chefe… Muito obrigado. Me sinto aliviado.

Joseph realmente se reconfortava com o fato dela estar ali, e Linia tinha uma certa autoridade,
então, por enquanto, decidi não me meter enquanto ela falava besteira. E também pagaria o pato
se algo desse errado.

— O que acham de entrar? — sugeri. Eu queria evitar mais enrolações, então abri a porta.

— Oi, Zanoba, se lembra do que conversa—


E foi ali que eu percebi que havia cometido um erro. Mais uma vez, entrei sem bater primeiro.
A porta se abriu com um estalo, e diante dos nossos olhos, acontecia algo inacreditável.

No primeiro andar da casa, Zanoba e Julie trabalhavam em suas figures, exceto que Julie não
estava sentada no colo dele dessa vez. Essa era a parte normal.

Mas havia outro alguém que roubou toda a minha atenção assim que entrei: Ginger, que estava
gentilmente segurando um adorável cão de pelúcia.

— O-Oque é isso? — Ela perguntou, cautelosa.


Ginger. Com um bichinho de pelúcia. Nossa. Não que eles não combinassem, mas nunca
esperei ver isso. Senti que eu estava interrompendo. Podia jurar que Ginger não se interessava
por esse tipo de coisa. Talvez ela tenha mudado agora que Zanoba já não era mais um príncipe.

Depois de me acalmar e pensar um pouco, parecia natural. E mais, eu não tinha o direito de
julgar alguém pelos seus gostos.

— Gah ha ha ha! O que uma cavaleira tá fazendo com um bicho de pelúcia?! Ela é um
filhotinho, miau?! Chefe, qual o plano, miau? Espera só um s—

Eu chutei Linia para fora.

Por coincidência, os homem fera tinham um jogo onde aperfeiçoavam suas habilidades de
caça com bonecas de demônios e animais. Era uma brincadeira para crianças muito novas. Ela
não estava realmente julgando o gosto dos outros, então não podia reclamar disso. Tudo que
disse veio de suas experiências como mulher fera, mas suas palavras também não eram
inofensivas. Ginger corou devido a essa humilhação. Eu tinha que animá-la de algum jeito.

— Ahem, você tem uma pelúcia muito fofa com você. De onde ela saiu?

Ooh, acho que eu soei como um Zanoba agora.

— Isso… foi importado do Reino de Asura. O criador era alguém chamado Venger. Ao que
parece, suas criações eram feitas a partir de mantos e trapos, como essa…

— Venger, é? É um nome bem parecido com “Ginger”, não acha?

— Sim. Deve ser por isso que eu me apeguei um pouco por ela… isso é tão infantil assim?

— De forma alguma. Não ligue para o que algumas gatas insensíveis dizem. Ela não tem bom
gosto. Eu acredito que você deve amar o que você ama.

— Oh… é. Muito obrigada.

Pude dizer que Zanoba estava sorrindo enquanto nos ouvia. Era a feição de uma pessoa que
ama seu passatempo vendo um amigo se apaixonar por seu próprio hobbie; ele deve estar feliz
que Ginger mostrou interesse em bonecos. Bom, era uma pelúcia. Não chegava a ser um boneco.

— Rudeus, quem seria esse? — Joseph perguntou com nervosismo.

— Ah, deixe-me apresentá-lo. Zanoba!

— Certo! — respondeu Zanoba. Ele se levantou no mesmo instante em que o chamei. Tirou a
sujeira de sua roupa e veio até nós, com Julie vindo logo atrás dele.

— Este é Joseph. Ele é um dos mercenários mais versados do Bando quando se trata de
comércio. Eu o contratei como seu conselheiro no projeto de venda de figures.
— Hmm… — Um feixe de luz refletiu nos óculos de Zanoba. Ele avaliava Joseph enquanto o
encarava. Julie o imitou, parecendo mais uma versão em miniatura. Fofo.

— Mestre, perdoe meus modos, mas posso saber o quanto ele sabe sobre figures?

— É um completo novato.

— Entendo. — Zanoba ergueu as sobrancelhas. — Confio no seu julgamento, Mestre. Mas


posso saber o que o levou a escolher um novato?

Isso era novo. Conhecendo Zanoba, achei que já teria aceitado Joseph àquela altura. Havia
algo nas entrelinhas; dizendo que confiava no meu julgamento, mas não perguntando quais as
minhas razões.

— Perdoe-me — continuou Zanoba. — Mas não posso deixar de perguntar. Esta tarefa não é
uma mera brincadeira de criança, entende?

— Claro, vou explicar.

Zanoba estava levando esse trabalho muito a sério. Juntar-se ao exército de Orsted era um
passo para vingar a morte de Pax, e essa decisão não foi leviana. Zanoba estava sendo exigente,
mas não apenas porque não queria ter um ignorante que não compreendia a verdadeira arte
criticando seus esforços.

Certo?

— Primeiramente, sendo um mercador experiente, ele é bem versado em negócios.


Segundamente, ele já falhou uma vez, então será cuidadoso. Por último, como ele é um completo
novato no mundo de figures, ele será capaz de dar novas perspectivas.

— Novas perspectivas, você diz?

— Exatamente. Nem todas as pessoas para quem planejamos vender serão entusiastas como
você. A maioria será apenas casual. Algumas delas podem até mesmo não ter nem um pingo de
interesse por figures. A questão é, como fazê-las comprar? Se usássemos um método que não
faria o Joseph querer comprar, então também não venderíamos para outros casuais.

— Entendi! Outra ideia brilhante, Mestre. De fato, mesmo uma perspectiva quase infantil é
necessária para espalhar a arte de vez em quando.

Julie seguiu o exemplo de Zanoba e deu um profundo aceno de cabeça. Esse era o jeito de
Zanoba de dizer que havia aceitado. Mas de novo, nós ainda não tínhamos feito nada, então
ainda não era como se estivéssemos bem.

— Joseph, este é Zanoba. Ele será seu chefe daqui em diante.

— C-certo. Será um prazer trabalhar com você! Prometo depositar coração e alma nessa
tarefa.
Joseph curvou-se para Zanoba da forma única do Bando Mercenário. Foi executado de forma
linda; era um sinal de que Linia estava o ensinando bem.

— Concordo. Eu sou Zanoba. Vamos nos unir e cobrir o mundo inteiro com figures.

E com isso, os dois apertaram as mãos.

Eu tinha esperanças de que Zanoba não estava confundindo o objetivo desse projeto. Espalhar
figures era importante, mas também deveria ser uma fonte de renda além do Bando Mercenário,
uma forma de aliar as organizações comerciais junto de um método para treinar novos
engenheiros, lembra? De novo, eu tinha minhas razões pessoais – queria ver o Ruijerd
novamente. Calma, se as vendas eram o ponto aqui, então não tinha razão para ter escolhido as
figures como produto…

— Agora, vamos conversar sobre nossos planos para a abertura da primeira loja.

Tendo feito as apresentações, chegou a hora de pôr a mão na massa.

— Primeiro, esses serão os nossos principais produtos. Nós queremos vender primariamente
para o povo comum.

Nós três estávamos reunidos em volta de uma grande mesa no estúdio que ficava no primeiro
andar da casa de Zanoba. Eu coloquei uma figure do Ruijerd e um livro ilustrado sobre ela. O
livro continha os contos heroicos de Ruijerd, que Norn escreveu.

— Planejamos vender o livro e a figure juntos.

Era uma ideia que eu mantive em mente por um tempo. Norn também tinha nos dado
permissão para vender o livro. Esse mundo pode não ter direitos autorais, mas tínhamos que
estabelecer alguns princípios.

— Entendo…

Joseph pegou o livro e começou a folhear suas páginas.

— Então… essa é uma história sobre como os Superd não eram demônios assustadores, mas
heróis que lideraram o mundo durante a batalha final? Tem certeza de que é uma boa ideia
vender isso?

— Nós temos permissão.

— Hm… de quem?

— De Lorde Perugius, é óbvio.

Joseph ficou carrancudo, mas o que eu poderia fazer? Lorde Perugius era o único que estava
no livro e continuava vivo. Era o único que poderia nos ceder os direitos de imagem.

Não que isso existisse neste mundo, mas ainda assim.


— Bem… isso não vai gerar atritos com a Igreja Millis?

— É verdade. Há pessoas que não vão gostar de estarmos vendendo homenagens a demônios,
mas não é como se a Igreja Millis fosse a única que trata os Superds dessa forma. Sem falar que
a própria história usa passagens da bíblia deles para mostrar como as ações do herói estão
corretas e de acordo com seus dogmas.

Norn era uma seguidora de Millis, então ela pincelou algumas frases de sua ideologia através
do seu trabalho. A história respeitou a Fé, e qualquer um que lesse pensaria que Millis era uma
religião maravilhosa.

— Se é assim… Não sou um seguidor de Millis, então não posso dizer o contrário. Devemos
estar bem.

Sendo sincero, eu esperava que os Guerreiros da Justiça de Millis fossem bater em nossa porta
a qualquer momento para discutir os detalhes “problemáticos” do livro, tendo eles lido ou não.
No fim, se preocupar com isso era perda de tempo. Eu queria vender. Também queria restaurar a
boa reputação da Tribo Superd. Se não conseguíssemos conciliar ambos, era inevitável que
entrassem em conflito.

— Dito isso, estamos considerando como e onde poderemos vendê-los da maneira mais
efetiva… Joseph, eu gostaria de ouvir sua opinião sincera.

Joseph começou a revezar seu olhar entre o livro e a figure enquanto pensava. Eventualmente,
ele levantou a cabeça e falou sem rodeios.

— Eles não vão vender. Não desse jeito.

Isso sim era uma surpresa.

— Escute aqui. — Zanoba interveio, e deu um passo à frente de forma ameaçadora.

— Calma, calma. Dê um momento a ele. — Eu disse enquanto segurava Zanoba. Eu queria


ouvir o que ele tinha a dizer.

— Em primeiro lugar, os livros não vão sequer sair das prateleiras. Nem ao menos há tantas
pessoas alfabetizadas. Você planeja vender para o povo comum ao invés de entusiastas, não é?
Podemos alcançar algumas vendas com a nobreza, mas se você visa os cidadãos, isso vai ser bem
difícil…

Então isso apenas atrairia nobres e entusiastas, huh? Estaria tudo bem se tudo que
desejássemos fosse dinheiro, mas havia mais que isso. Perderia o propósito se o livro alcançasse
apenas uma audiência limitada. Hm…

— Mestre, talvez o senhor esteja esquecendo algo?

— Hm?
Um feixe de luz brilhou através dos óculos de Zanoba. Não foi de propósito. Eles apenas
refletiram mais, quando ele deu um passo à frente.

— Eu acredito que você sugeriu que poderíamos adicionar algo como isso junto do livro…

Zanoba pegou o livro que Joseph segurava e começou a passar as páginas, parando logo na
última. Joseph ficou estupefato quando Zanoba mostrou seu conteúdo para o resto de nós.

— Isso é… um livro didático?

Ah, é. Isso era um livro didático concebido para aprender a ler. Continha pronúncias, regras
gramaticais, escrita e até mesmo exercícios práticos. Não faria com que alguém fosse capaz de
dissecar livros acadêmicos, mas ensinaria a ler algo simples desde que estudasse junto.

Honestamente, me sentia muito orgulhoso por isso. Parecia uma pequena conquista. Foi a
comunhão de vários métodos que ensinaram Ghislaine Dedoldia, de todas as pessoas, a ler. Não
havia mais nada para dizer.

— Livros didáticos variam de país para país, mas isso é muito fácil de entender. Se viesse
junto do livro, então poderíamos considerar que as barreiras literárias ruíram.

Joseph acenou em respeito. Aww, vai me fazer corar.

Entretanto, ele voltou a ficar pensativo quando considerou a figure.

— Mas para ser totalmente honesto, eu não acho que vender os dois juntos vá funcionar. As
pessoas que irão atrás do livro serão diferentes das pessoas que querem a figure…

— É claro — ressaltei. Isso devia ser óbvio. Poderia até incomodar as pessoas se elas tivessem
que ficar com uma estatueta quando tudo que desejavam era o livro.

— Mas espere — objetou Zanoba. — Não saberemos até tentarmos, saberemos? Considerando
que ensina pessoas a ler, então muitas pessoas iriam comprá-lo para seus filhos. Incluir uma
figure para atrair a atenção das crianças não é de todo mal.

— Entendo. Crianças… sim, essa é uma opção. — Joseph assentiu à sugestão de Zanoba. —
Nesse caso, não deveríamos fazê-las ser um pouco mais amigáveis? Essa é um pouco
assustadora.

Joseph alisava a figure conforme falava, mas ele tremeu quando o cabelo cuidadosamente
esculpido da escultura saiu do lugar.

— Não acha que isso seria perfeito para um jovem garoto que deseja se tornar um herói? —
indagou Zanoba.

— Garotos não são as únicas crianças no mundo. Acho que seria melhor desenvolver uma
figure que as garotas irão querer.
Uma que as garotas vão querer, huh? Eu acho que algo mais fashion como uma boneca Barbie
ou algo pequeno e fofo como um personagem mascote. Não tinha muita noção do que meninas
jovens gostavam. Fiz uma nota para me lembrar depois de perguntar a Lucie sobre o que ela iria
querer.

Conforme trabalhávamos, percebi que o caráter medroso que Joseph mostrou antes tinha se
esvaído. Ele e Zanoba pareciam formar uma dupla melhor do que eu poderia esperar. Apenas
para ter certeza, me mantive quieto e deixei que eles discutissem.

— Então, qual o método que vão usar para vender esses? — questionou Joseph.

— Por enquanto, serão vendidos normalmente em uma loja. Vamos preparar um estoque extra.
Também podemos abrir um estande ao ar livre.

— Um estande, é? Não sei se… bem, há muitos aventureiros que não conseguem ler, então
isso pode funcionar. Muitos não tiveram a oportunidade de ir à escola.

— Já tem um bom lugar pra abrir a loja em mente?

— Um lugar bastante movimentado seria um ótimo começo, mas foi dito que conseguir mais
engenheiros era uma das metas desse projeto. Nesse caso, um bom lugar para nossa primeira loja
aqui em Sharia seria o distrito de oficinas.

— Desejamos expandir nossas capacidades. Estamos preparados para iniciar a produção em


massa, e se tivermos recursos o bastante, podemos até mesmo abrir na rua principal — falou
Zanoba.

— Sim, eu consigo imaginar. O problema seria em que ponto exato da rua principal iriamos
abrir… Não seremos amigos da Guilda do Comércio se sairmos do nada e ostentarmos a ponto
de ocupar um bom lugar, mas o ponto é importante.

— Hmm, sendo assim, o que você acha de considerar o Reino de Asura?

— B-bem, sim, manter uma loja em Asura atrairia mais clientes do que Sharia jamais poderia,
só que se considerarmos as taxas aduaneiras, é impraticável. Levaria meses para viajar ao Reino
de Asura a partir daqui.

— Se esse é o problema, podemos simplesmente implementar uma manufatura no próprio


Reino de Asura. Por sorte, eu e o Mestre somos colegas do próximo senhor daquelas terras. Seria
mais fácil trabalhar lá do que em Sharia — concluiu Zanoba.

Joseph me dispensou um rápido olhar.

— Eu sabia que vocês eram um grupo estranho, mas isso… quer saber, deixa pra lá. Não o
chamam de “Mão Direita do Deus Dragão” por nada. Mas sim, estabelecer algumas relações com
o Reino de Asura tornaria as operações em Sharia mais fáceis, então…
Os dois estavam trabalhando nos detalhes sem sequer notar que eu não estava participando.
Zanoba ouviria as ideias de Joseph, as elogiaria e depois acrescentaria as suas próprias. Joseph
parecia bem mais vivo do que quando estava no Bando Mercenário.

Parecia que tinha tomado a decisão certa. Vendo o quão nervoso ele estava durante a entrevista
me deixou um pouco receoso, mas ele realmente amava seu trabalho. Amar uma tarefa é a
primeira etapa para se aprimorar nela. Talvez ele falhe mais uma vez… mas isso seria bom, de
certo modo.

— Beleza, eu acredito que isso conclui nossos planos por enquanto. O que acha, chefe?

Whoops, eu estava viajando. Olhei de relance para Ginger e Julie em busca do que responder.
Julie estava claramente preocupada, apesar de que ela não tem uma real ideia do que estava
acontecendo. Ginger, por outro lado, estava bem relaxada.

— Ginger, qual sua opinião? — perguntei.

— Não sei dizer, já que ainda não progredi nos meus estudos… mas, pelo que ouvi, acho que
deve dar certo.

Oh, ela disse que estava estudando. Vai fundo, Ginger. Eu preciso encontrar uma chance de
estudar também. Acho que vou usar o tempo livre.

— Bom ponto. — Eu disse. — Faltei as últimas aulas de comércio, então não posso opinar. No
momento, devíamos contar nossos planos para Aisha. Se ela nos der carta branca, continuamos.

Eu iria usar as ideias de Aisha como referência. Até lá, eu tinha que estudar um pouco sobre as
negociações desse mundo. No fim, eu não seria mais que um novato. E é melhor que os novatos
se baseiem em livros do que em seu próprio julgamento.

O importante era que eu podia me contentar ouvindo os conselhos de Joseph, e ele veio com o
selo de aprovação da Aisha. Zanoba, como gerente do projeto, concordou com essa decisão.
Tudo que me restava como líder era aprovar suas decisões e esperar pelos resultados.

— Zanoba, Joseph, odeio deixar todo esse trabalho por sua conta, mas vou deixá-los
responsáveis pelo setor comercial. Espero que possam guiar esse projeto pelo caminho certo.

— Como desejar!

— E-eu tentarei.

— Caso precisem de recursos, pessoal ou conexões, não hesitem em pedir. Farei o possível por
vocês.

Não planejava largar tudo nas mãos deles. Antes de qualquer coisa, queria coordenar o projeto
eu mesmo, mas havia muitas outras coisas para fazer. Cuidar de todas sozinho não era uma
opção. Certamente havia outros negócios que eu teria de confiar aos meus outros subordinados,
então este era um primeiro passo importante para mim.
— Chefe, quando chegar a hora de abrir as portas, creio que precisaremos de um nome. Você
teria alguma sugestão?

Eu viajei.

— Uh… A Loja Zanoba?

— Oh.

Direto da cachola. De todos os nomes que podia dar, esse certamente era um deles.

Com a discussão encerrada, me virei para sair e meus olhos se encontraram com um outro par
que estava espiando por trás de uma rachadura na porta. Oops.

— Foi mal, eu esqueci. — Me desculpei conforme abria a porta.

— Olha só, parece que Joseph recebeu boas-vindas calorosas, então não vou miauclamar.

— Nossa, quase parece que você amadureceu.

— É claro que sim! Sou a chefe do Bando Mercenário. É parte do miau trabalho garantir que
miaus homens não sejam assediados nos novos postos, miau.

Oh, então foi por isso que ela veio conosco. Se essa foi sua motivação, me senti um pouco
arrependido por tê-la chutado para fora. Ainda assim, fiquei impressionado que Linia tivesse
começado a levar sua posição como líder da organização a sério. Minha alegria com esse
progresso me acompanhou por todo caminho até em casa.

A primeira Loja Zanoba foi aberta no Distrito de Oficinas. A construção foi feita com base em
uma casa abandonada nas periferias do distrito. Nossos focos na Cidade Mágica de Sharia seriam
a sede e as funções da oficina, com planos de expandir ainda mais para o Reino de Asura mais
tarde. Provavelmente deveríamos pedir a ajuda de Ariel.

O projeto de figures do Ruijerd não estava mais em minhas mãos. Eu estava nervoso já que
ainda estava apenas engatinhando, mas eu o deixei ir e orei para que não terminasse em um
desastre.
Mushoku Tensei: Reencarnação do
Desempregado – Vol. 20 – Cap. 01 – Planos
para o Futuro e as Preocupações de Cliff
Um mês havia se passado desde os eventos no Reino de Shirone. O inverno estava quase no
fim e a primavera chegando. No último mês, eu tinha me dedicado a elaborar um plano detalhado
com Orsted. Nossa primeira ordem: reunir aliados. Para isso, estabelecemos uma abordagem em
três frentes.

O primeiro grande objetivo era montar uma agência de inteligência para coletar informações.
O Bando Mercenário Ruato, grupo que Aisha e Linia haviam formado, seria de grande ajuda
nisso. Seu alto escalão era todo formado pelo meu pessoal, então eu poderia tranquilamente
usá-los. Teria sua total cooperação nos bastidores. Eu estruturaria a hierarquia global do grupo de
forma que a sede mantivesse contato com cada filial para assim obter informações de países ao
redor do mundo. Além disso, também as projetaria para que, se não conseguisse chegar à sede,
ainda pudesse visitar uma filial para saber todos os detalhes das últimas notícias.

Isso seria mais para o meu uso do que para o de Orsted. Eu estava colocando minhas peças no
tabuleiro e elas estavam prontas para serem movimentadas.

O segundo objetivo era atrair autoridades e futuros líderes. A ressurreição de Laplace iria
desencadear uma guerra – com toda a humanidade, imagino. Se cada nação estivesse preparada,
isso melhoraria o tempo de reação delas quando a invasão por fim começasse. Assim,
informaríamos os que estavam no poder sobre a guerra que se aproximava e sobre o que estava
em jogo. Ofereceríamos qualquer ajuda que pudéssemos, por menor que fosse, e os
prepararíamos para o que estava por vir em oitenta anos no ritmo que eles conseguissem
acompanhar. Ter a cooperação dessas nações na guerra de Laplace poderia tornar nossas vidas
como Bando Mercenário mais fáceis – ou muito, muito mais difíceis se não a tivéssemos.

A terceira parte do plano era recrutar guerreiros para o combate. Esse era o objetivo principal
no que dizia respeito a Orsted. Ele preferia que outros enfrentassem Laplace no lugar dele. Se
conseguíssemos acabar com sua maldição para que ele não tivesse mais que lutar sozinho,
poderíamos até contar com a ajuda dos nossos novos recrutas na batalha final contra o
Deus-Homem. Orsted e eu conversamos sobre quem se encaixaria bem e, por fim, estabelecemos
este perfil: os guerreiros já destinados a lutar contra Laplace, mas que não se tornariam
facilmente discípulos do Deus-Homem.

Por exemplo, os títulos de Deus Ogro e Deus dos Minérios – seus detentores atuais não
nutriam nem ódio nem amor por Laplace, mas as gerações futuras se oporiam a ele. O mesmo
valia para escolas como a do Estilo Deus da Água e Estilo Deus da Espada: os praticantes atuais
estavam bem longe de Laplace, mas seus aprendizes também o enfrentariam. Também
planejamos recrutar guerreiros de vida longa, como o Deus do Norte Kalman III, ou o Deus da
Morte Randolph. Alguns guardavam rancor pessoal contra Laplace, especialmente Ruijerd. O
Bando poderia localizar aqueles cujo paradeiro era desconhecido para que eu os encontrasse
pessoalmente e implorasse de joelhos para que se juntassem a nós. Imaginava que alguns deles
não participariam de graça. Porém, por enquanto, o plano meio que se resumia a recrutar todas as
pessoas poderosas e competentes que conseguíssemos pensar.

Muito bem.

Assim que tivéssemos tudo isso resolvido, nos depararíamos com o obstáculo final: o
Deus-Homem. Conhecendo ele, com certeza enviaria seus discípulos para nos atrapalhar. Na
maioria das vezes, não sabíamos quem poderia acabar servindo como um de seus discípulos.
Orsted disse que poderia estimar as chances em qualquer loop normal, mas como os discípulos
nesse loop já incluíam pessoas que nunca haviam se unido ao Deus-Homem antes, seria difícil
dizer com exatidão. Sendo assim, se eu quisesse cumprir minhas missões, teria que me preparar
para os discípulos que Orsted não conseguiria prever.

Em relação a como eu faria isso… Para ser sincero, não consegui pensar em nada. Por isso,
decidi não pensar. Eu não sabia quais eram os padrões que o Deus-Homem seguia para escolher
seus discípulos. Orsted disse que ele “costumava escolher aqueles com um forte destino”, mas já
houve casos de pessoas com destino fraco que se tornaram seus discípulos. Eu não fazia ideia de
como se poderia medir a “força” do destino de alguém. Parecia o tipo de coisa que apenas Orsted
e o Deus-Homem entendiam. Mesmo que eu tentasse seguir tudo nos mínimos detalhes,
perguntar a Orsted sobre cada coisinha só lhe daria mais dor de cabeça. Pensar nisso não me
levaria muito longe.

Eu era uma peça pequena naquele jogo, mas os peões ainda podem fazer jogadas importantes.
Poderia espalhar uma mensagem entre os nossos aliados, algo como “não acredite no que vem a
você em sonho”. Mesmo assim, discípulos provavelmente ainda apareceriam. Só teríamos que
ficar de olho em qualquer pessoa que achássemos suspeita e matá-la se necessário. Era um
trabalho difícil, mas eu o faria.

Além desse trabalho perigoso e desagradável, não tinha nenhuma desvantagem em conseguir
tantos aliados quanto fosse possível. Afinal, o Deus-Homem só podia ter três discípulos por vez,
o que significava que cada um que integrasse nossas forças nos daria uma vantagem. Se
houvesse apenas cinco pessoas do nosso lado, nossa força cairia em vinte por cento caso alguém
nos traísse e se tornasse um discípulo. Caso o dito discípulo se juntasse às forças inimigas, as
probabilidades ficariam ainda piores para nós. Porém, se fôssemos dez, ou talvez vinte de nós, ou
cem, ou mil… Basicamente, quanto maior nosso número, menos impacto uma traição ou duas
teriam em nosso plano. É verdade que estaríamos ferrados se um líder do nosso lado ficasse sob
o controle do Deus-Homem e transformasse mil aliados em inimigos, então tive que minimizar
esse risco não dando muito poder a nenhum líder. Sendo assim, mais uma vez, eu seria esse líder
por um tempo, então não precisaria me preocupar agora. Isso se tornaria um problema após
minha morte, mas já havia diversos líderes muito mais adequados para o trabalho do que eu e
mais alguns na fila para esse trabalho. Eu já tinha a Roxy, afinal.

O recrutamento era apenas uma das nossas muitas necessidades logísticas. Eu precisava de
uma maneira de entrar em contato com Orsted, por exemplo. Nosso fracasso em evitar a morte
de Pax durante nossa última batalha aconteceu por falta de comunicação. Claro, estava longe de
ser a única causa… porém, se tivéssemos uma maneira direta de chegar a Orsted, poderíamos ter
impedido isso. Eu não podia contar com ele para tudo, mas nossos planos nos fariam trabalhar
cada vez mais separadamente, então a comunicação seria crucial. Era melhor lidar com uma
situação delicada depois de consultar sua equipe do que confiar apenas na própria intuição. Além
disso, se você soubesse que seu aliado estava em perigo, poderia correr para ajudar. Não que eu
pudesse imaginar Orsted precisando ser salvo por mim, mas já seria de grande ajuda se fôssemos
capazes de enviar a ele algumas informações caso estivesse numa situação difícil.

Sendo assim, levei tudo isso para Orsted. Tentei explicar o conceito do telefone e perguntei se
algo assim já existia e se poderíamos criar um, caso não existisse.

— Um dispositivo mágico que pode enviar texto ou voz? — perguntou Orsted.

— Só o texto já seria bom, mas acho que ajudaria se tivéssemos alguma maneira de
compartilhar informações a longas distâncias. Tipo, se eu tiver que tomar uma decisão difícil,
prefiro conversar com alguém primeiro. Você acha que isso seria possível?

Eu não estava otimista. Isso seria conveniente demais, né?

— O povo dragão tem um implemento mágico assim — disse Orsted. — Se o recriarmos,


deve ser possível fazer o que você está pedindo.

Eu estava surpreso.

— Huh, então coisas assim realmente existem?

— Sim. Você já viu um antes também.

Sério? Quando diabos isso tinha acontecido? Algo assim seria útil demais para eu ter
esquecido.

— Os monumentos aos Sete Grandes Poderes e os cartões da Guilda dos Aventureiros.

— Ah, era isso!

Agora que ele tinha mencionado, eu os tinha visto. Os cartões da Guilda dos Aventureiros
aceitavam entrada de voz e os monumentos aos Sete Grandes Poderes exibiam o mesmo texto
em todo o mundo. Interessante; eu não sabia que os cartões eram feitos pelo povo dragão. Eles
pareciam ficção científica demais para um mundo como este…

— Vão precisar de algumas modificações — continuou Orsted —, mas vou tentar fazê-los.

— Huh? Quer dizer que você mesmo vai fazer?

— Sua chegada já prejudicou todas as minhas previsões. Não vejo problema em fazer coisas
assim se vamos precisar delas. Além disso, também serão úteis da próxima vez.

Com isso, Orsted se ofereceu para cuidar da confecção. Um erro de cálculo que
definitivamente fiquei feliz por ter cometido. Saber que Orsted ainda iria me querer como aliado
da próxima vez me deixou ainda mais feliz.
— É possível que não dê certo, não se esqueça disso — alertou Orsted.

— Positivo, chefe!

Assim, eu não precisava mais me preocupar com o comunicador.

Tinha mais uma coisa, entretanto. Dado o nosso último fracasso, tinha ficado claro que havia
algo mais que eu precisava fazer: uma maneira de transportar a Armadura Mágica. Mesmo que
eu tenha conseguido trazer a Versão Um comigo da última vez, ela só foi útil quando viajei nela.
Levar da cidade para o forte já era bem chato, mas não conseguir vesti-la no castelo significava
que tinha sido inútil durante minha luta com o Deus da Morte Randolph. Eu não achava que
lutaria com alguém daquele nível tão cedo, mas não podia descartar a possibilidade.
Considerando o quão terrível tinha sido a situação, eu queria ser proativo desta vez.

O desenvolvimento da Versão Três ainda estava em curso, é claro, e seu objetivo era resolver
esses problemas sendo forte e leve. No entanto, ainda havia um longo caminho a percorrer antes
dela ser concluída. Mesmo com a total cooperação de Zanoba, ainda levaria um ano ou dois para
terminar aquele projeto.

Para isso, algo me veio à mente. Por que não invocar a Versão Um como estava? De acordo
com o que Sylvaril me ensinou uma vez, objetos físicos não poderiam ser invocados… mas eu
senti que, sabe, talvez com uma pequena mudança de perspectiva aquilo seria possível. Planejei
testar sozinho para ter certeza. Se não funcionasse, paciência.

Com isso, os planos para reunir aliados foram finalizados. Por enquanto, eu iria expandir o
Bando Mercenário Ruato e fazer contatos com figuras poderosas em nações ao redor do mundo.
Começaríamos com Cliff e Ariel – um parente do papa da Igreja de Millis e o próximo
governante do Reino de Asura. Eu já estava a meio caminho de me tornar aliado deles, e agora
era hora de adicioná-los oficialmente ao exército de Orsted.

Quem seria o primeiro? Cliff, é claro – ele estava estabelecido nas proximidades. Tornar Cliff
um aliado nos traria laços com a Igreja de Millis – O País Sagrado de Millis era poderoso, o que
também o tornaria uma força poderosa na guerra contra Laplace. Afinal, as batalhas se resumiam
a dinheiro e números. Ter algumas conexões que poderiam fornecer ambos não seria nada mau.

Cliff poderia dizer o contrário, mas eu o considerava um amigo próximo. Ele já estava
ajudando com a maldição de Orsted, então um acordo verbal provavelmente era tudo que eu
precisava para trazê-lo para nosso time de maneira definitiva. Eu já o ouvia dizendo “Claro” sem
hesitação na minha cabeça. Com meu plano traçado, me dirigi ao apartamento onde Cliff
morava.

Cheguei ao ninho de amor de Cliff. Foi um raro momento em que não os peguei no flagra; à
tarde, o apartamento estava tão silencioso que era possível ouvir o cair de um alfinete. Bom, se
eles fizessem aquilo todos os dias, seus vizinhos provavelmente não descansariam muito…
Espera! Eu tinha esquecido. Eles normalmente faziam aquilo na sala de pesquisa da escola
àquela hora do dia. Talvez só estivessem por aqui à noite?

Quando entrei no quarto, fui recebido por um Cliff magro e exausto.


— Ah, oi, Rudeus…

Ele parecia estar bem durante toda a gravidez da Elinalise até o nascimento de seu filho, mas
ultimamente, toda vez que o via, estava branco como uma folha. Eu estava começando a me
preocupar com o vigor dele fora do quarto também.

— Ah, Rudeus. O que o traz aqui? — perguntou Elinalise.

Elinalise, por outro lado, tinha um brilho saudável. Ela exibia uma expressão satisfeita no
rosto enquanto segurava o bebê contra o peito. Estava nua da cintura pra cima e usava apenas
uma calcinha na parte de baixo. Parecia que eu os havia pego em uma pequena pausa; eles
provavelmente continuariam de onde pararam assim que o almoço terminasse.

— Bom, tem algo que quero discutir — expliquei. Dito isso, eu estava distraído; a visão
daquela beldade loira e delicada dando de mamar a seu bebê era como uma obra de arte.
Pertencia a um museu. Seu esguio corpo élfico certamente não ajudava. A tensão entre sua
safadeza habitual e a cena quase santa diante de mim era cativante.

Ver Sylphie e Roxy amamentando tinha me dado a mesma sensação. Até Eris vinha me
causando isso ultimamente; ela carregava aquele bebê e o deixava mamar em seus peitos sem
gritar ou bater nele. Sim, a visão de uma mulher se tornando mãe e oferecendo o seio ao filho é
encantadora.

— Ei, Rudeus, você poderia olhar com menos intensidade? — indagou Cliff.

— Huh? Ah, desculpe.

Fiquei muito perdido nos meus pensamentos e Cliff me trouxe de volta à realidade. Erro meu.
Eu não estava olhando por tesão. De verdade.

— Lise, temos um convidado, então você poderia vestir alguma roupa?

— Nossa, Cliff… Você está ficando com ciúmes?

— Sim, estou, mas talvez você veja Rudeus apenas como família…

Os ombros de Elinalise caíram.

— Tudo bem, se você insiste.

Ela se retirou com o bebê para um quarto interno.

— Rudeus, você poderia, por favor, deixar de olhar para minha esposa como um pedaço de
carne, visto que você já tem três esposas?

— Pedaço de carne? Ei, escuta aqui—

Tentei explicar que não tinha feito aquilo, mas o fato é que tinha olhado. Eu também não
gostaria que as pessoas olhassem para minhas esposas nuas, então era melhor me desculpar.
— Não importa, me desculpa. Vou lembrar disso na próxima vez.

— Certo…

Cliff soltou um suspiro enquanto afundava em seu sofá. Ele certamente estava cansado, mas
também parecia estar de mau humor. Talvez ele estivesse tendo algumas dificuldades técnicas em
sua vida noturna.

— Então, o que você veio fazer hoje? — Ele questionou.

— Ah, bom, eu só tenho um pequeno pedido. Um convite, se você quiser…

Cliff me olhou com olhos vagos. Parecia meio difícil abordar o assunto. Pensei em voltar mais
tarde, mas achei que deveria primeiro perguntar por que ele parecia tão incomodado.

— Aconteceu alguma coisa?

— Nah, nada… — Cliff começou a falar, mas balançou a cabeça e recomeçou. — Pensando
bem, seu timing é perfeito. Preciso te contar uma coisa.

Parecia que era algo sério, como foi com Zanoba, que recentemente tinha sido convocado por
sua família.

— A verdade é que… chegou uma carta do meu avô do País Sagrado de Millis.

Também estava seguindo o mesmo padrão. Só poderia significar uma coisa: aquilo tinha sido
projetado para atrair Cliff para longe. Era outra guerra? Uma armadilha feita pelo Deus-Homem?
Não importava. De qualquer maneira, eu estava planejando pedir a Cliff para estreitar a relação
entre mim e o País de Millis. Ele aparentemente teve a mesma ideia, então eu não perderia tempo
pedindo para acompanhá-lo. Gostaria que ele permanecesse em Sharia, é claro, mas eu tinha uma
missão a cumprir.

Cliff se levantou e puxou uma carta de sua prateleira. Aquilo me causou outro déjà vu. Eu
conseguia adivinhar o conteúdo da carta sem ler uma única palavra. Sabe quanto dinheiro custou
para seu avô criar você? Sabe por que custou tanto dinheiro? Para que você se tornasse um
trunfo para nossa facção. Quando precisamos desse ativo? Agora mesmo!

Eu tive que me preparar para o pior antes de olhar.

— Ah, não é um problema tão sério ou algo assim — disse Cliff enquanto coçava
nervosamente sua bochecha. Ele parecia se sentir um pouco culpado. — É que combinamos há
muito tempo que eu voltaria assim que me formasse. Só estou preocupado com meu orçamento
de viagem e perigos que possam surgir no caminho.

Dei uma olhada na carta.

Ela começava perguntando sobre a saúde de Cliff. Depois disso, o instruía a mostrar a insígnia
da Corte Papal da Fé de Millis que acompanhava a carta em uma igreja de Millis caso ele ficasse
sem fundos para viagens. Dizia que Millishion estava atualmente envolvida em uma luta pelo
poder e que eles estavam perdendo. Em seguida, um aviso severo: Cliff tinha que se preparar
para o pior se pretendia voltar para casa e, se não pudesse, não deveria se incomodar. O avô de
Cliff concluiu a carta dizendo que, apesar das palavras duras, ele desejava ver Cliff novamente e
que esperava seu retorno do fundo do coração.

Cada palavra ali transbordava preocupação por Cliff. Eu nunca havia conhecido seu avô, mas
se ele podia escrever uma carta tão sincera, então tinha certeza de que era uma boa pessoa. Qual
poderia ser o problema naquilo?

— Sinceramente, tenho estado em dúvida — disse Cliff, aparentemente referindo-se à parte


sobre se preparar para o pior. — Eu estava planejando voltar para casa no momento em que me
formasse. É para isso que treinei tanto. É o que eu queria esse tempo todo. Eu estava confiante de
que conseguiria sobreviver no mundo impiedoso da Igreja de Millis.

— Suponho que sim. — Eu disse. Cliff estava falando sobre isso desde o início; assim que se
formasse na academia, ele retornaria ao País Sagrado de Millis e seguiria os passos de seu avô…
Embora, é claro, ele entendesse o quão difícil a sucessão papal havia se tornado nos últimos
tempos, então ele treinou de forma diligente para uma humilde carreira no sacerdócio também.

— Entretanto — continuou Cliff enquanto se sentava no sofá e apoiava a cabeça nos braços
—, eu me casei. Até filho já tenho.

Eu imediatamente entendi o que o estava preocupando. Era o mesmo tipo de coisa que sempre
me atormentava.

— A Igreja de Millis não tem medo de atacar as famílias dos fracos… de seus inimigos.

—…

— Lise ficaria bem, ela sabe como se proteger. Clive, porém, não tem idade suficiente nem
para andar com os próprios pés. Eu não estou confiante de que posso protegê-lo.

Eu entendia sua preocupação. Você sempre quer manter seus entes queridos seguros.

— Nem contei ao meu avô que sou casado. Se a notícia de que o neto do papa de Millis se
casou com uma elfa se espalhasse, poderia causar um escândalo. Um tão grande que poderia
forçá-lo a fugir do país.

A fé de Millis era bastante severa com outras raças. Os elfos normalmente enfrentavam menos
discriminação por serem uma raça que vive na floresta, mas ouvi dizer que havia extremistas que
os perseguiam apenas porque não eram humanos. Dado que Elinalise não estava exatamente
numa posição favorável entre os elfos, a realidade que aguardava Cliff e sua família era dura.

— Pensei nisso várias vezes. Devo voltar, não devo voltar. Aí Lise me conforta quando eu
simplesmente não sei o que fazer… É só o que tenho pensado ultimamente. Talvez seja um
pouco tarde para perceber isso, mas acho que entendi o que deixou Zanoba tão relutante em
voltar para Shirone…
Eu tinha certeza de que Cliff queria voltar, mesmo que não estivesse decidido. Porém, fazer
isso colocaria sua esposa e filho em perigo; pior ainda, sua escolha de esposa poderia colocar até
seu avô em risco. Seria certo continuar fiel aos seus antigos sonhos? Impossível dizer. Nem eu
sabia a resposta. Contudo, o que eu tinha ido discutir com ele também tocava nessa mesma
questão. Eu estava finalmente em posição de oferecer-lhe um bote salva vidas.

— Cliff?

— …O quê?

— Gostaria que você se juntasse oficialmente ao exército de Orsted.

Cliff me olhou fixamente ao ouvir aquilo. Pode ter sido uma má escolha de palavras da minha
parte, mas não queria confundi-lo pedindo que “se juntasse à minha causa” ou algo assim. Eu
tinha que ser claro.

— Como assim?

— Se você se tornar subordinado de Orsted, então ele e eu podemos lhe oferecer todo o nosso
apoio. Você será capaz de proteger Elinalise e Clive enquanto leva o exército do seu avô à
vitória.

Cliff franziu a testa.

— Depois de assumir o poder, você terá que se preparar para a eventual ressurreição de
Laplace.

A partir daí, expliquei meu plano – o qual seria centrado em Orsted dentro de oitenta anos. Eu
já havia falado do Deus-Homem para Cliff antes, mas desta vez expliquei todos os detalhes
desde o início.

— … — Assim que terminei de contar tudo a ele, Cliff parecia imerso em pensamentos.

— Então, o que você acha? — Perguntei.

Cliff não respondeu imediatamente; ele cruzou os braços, fechou os olhos e murmurou
consternado:

— Hum…

Eu acreditava que fosse um bom negócio. Cliff sabia que seu vago desdém por Orsted se devia
à maldição. Ele não sabia como Orsted realmente era sem ela… entretanto, mesmo se Orsted não
fizesse parte daquilo, eu não trairia Cliff. Ficaria triste se ele tivesse dúvidas quanto a isso.

— Você pode… você pode me dar mais algum tempo? — Cliff perguntou, como se sua
resposta tivesse sido arrancada dele depois de todo aquele pensamento profundo. — A cerimônia
de formatura acontecerá em breve. Eu tomarei uma decisão até lá.
Ele me deu um prazo claro, então não tive escolha a não ser aceitar. Fiquei me perguntando
por que não podia simplesmente acenar com a cabeça e concordar, mas talvez o próprio Cliff não
entendesse sua hesitação.

— Nesse caso, você deveria conversar sobre isso com Elinalise também. — Eu comentei. —
Não há razão para carregar todo o fardo sozinho.

— Huh? Ah, sim, tem razão. Obrigado.

Desta vez, Cliff simplesmente acenou com a cabeça enquanto um leve sorriso se formava em
seu rosto.

Elinalise provavelmente ouviu nossa discussão. Notei flashes de cabelo loiro espiando por trás
de uma porta entreaberta no corredor. Eu tinha certeza de que alguém como ela poderia fazer
Cliff enxergar as coisas com racionalidade. Pode ser que eles não chegassem à conclusão que eu
gostaria… mas ei, tudo bem também.

— Tudo bem, eu volto depois.

— Claro. Desculpe por tudo isso — disse Cliff.

— Não se preocupe. Eu sei que é difícil, mas estamos todos juntos nessa.

Com isso, saí do quarto de Cliff — embora não antes de avisar Elinalise.

Eu esperaria até a cerimônia de formatura pela resposta de Cliff. Isso tudo aconteceu cerca de
dois meses antes do evento, então imaginei que faria as coisas caminharem em outro projeto.
Para isso, precisaria da ajuda de Zanoba.
Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 20 –
Cap. 09 – A Matriz da Igreja Milis
Agora que meu encontro desperdiçado com Claire havia terminado, voltei para a residência de Cliff desanimado. O que vi quando
cheguei lá me tirou o fôlego. Dentro daquela casa, vi Cliff e uma mulher que nunca tinha visto antes, abraçados.

A mulher tinha um ar humilde. Ela era pequena, sardenta e tinha cabelo castanho curto e brilhante. Ela era esguia no geral, mas nela
havia uma suavidade, como se nunca tivesse se preocupado em sua vida e isso a tornava doce.

Ela parecia semelhante à Elinalise, mas diferente. Se Elinalise era uma gata no cio, essa menina era uma cadela esterilizada; mas
aqui está o que realmente me pegou: eu não conhecia essa garota.

Não você, Cliff. Não! Depois de todas aquelas palestras que você me deu sobre a mesma coisa… Você realmente deixou Elinalise
para trás por causa disso?! E o coração de Elinalise? Ela pode ter te traído , mas ela é a mãe do seu filho… Você pagou na mesma
moeda?!

Cliff, por favor, me diga que não é verdade. A Casa Latria simplesmente me decepcionou, então se você não é quem eu pensei que
fosse, eu não saberia no que acreditar. Ah, dane-se tudo, o que aconteceu com o amor verdadeiro? Oh Sylphie, Roxy, Eris, qualquer
uma, eu imploro, me puxe para perto e sussurre palavras doces em meu ouvido para que eu possa continuar…

— Oh, Rudeus, boa hora. Você poderia pegar a caixa em cima daquela prateleira? Não somos altos o suficiente para alcançá-lo,
mesmo com um banquinho.

— Claro.

Cliff se desvencilhou da garota em algum momento enquanto eu narrava a prévia do próximo episódio. Ele nem estava corando nem
nada. Aparentemente, ele a pegou quando ela quase caiu do banquinho.

— Wendy, seus tornozelos estão bem?


— Sim, eu estou bem. Obrigada.

Eles tiveram uma conversa normal e chata enquanto eu baixava a caixa. Soprei o resto da poeira de ontem e entreguei a Cliff.

— Desculpe por isso. Acho que é isso… Sim, é. Graças a Deus, agora estarei bem amanhã.

Cliff tirou o que parecia ser um remendo de ferro da caixa. Era o emblema da Igreja de Millis. Eu acho que… ele precisava disso
para o trabalho?

— Enfim, Rudeus, o que te traz aqui? Você não ia passar a noite na casa dos Latria?

Essa pergunta me fez inclinar; eu queria contar a Cliff tudo sobre aquela palhaçada .

— Sim, sobre isso. Escute isso…

Deixei minha fúria assumir o controle enquanto dei a Cliff um relato completo dos acontecimentos do dia. Sobre como fui para a
Casa Latria, sobre o que Claire disse e como ela agiu. Sobre como eu não aguentei a indignidade e enlouqueci, deixando a mansão
imediatamente depois. Eu estava um pouco mais calmo, mas ainda mal conseguia conter minha raiva. Apenas o pensamento disso me
irritou novamente.

— Hmm…

O rosto de Cliff endureceu enquanto ele me ouvia. Ele era um santo entre os santos, então eu tinha certeza de que ele me apoiaria
nisso.

“É verdade, os nobres de Millis têm uma tradição em que os pais decidem os cônjuges de seus filhos, e há até algumas pessoas que
dizem que ter filhos é o que torna uma mulher uma mulher… mas até eu acho questionável casar alguém que não pode falar por si
mesma.”

— Eu sei, certo?

Era desumano. Era absolutamente monstruoso. Eu me considero difícil de chocar, mas nem eu poderia ignorar isso. Eu não
conseguia acreditar que aquela pessoa era a mãe de Zenith. Onde está Deus em tudo isso? Espere, certo, ela estava na Cidade Mágica
da Sharia.
— Talvez devêssemos considerar que Madame Claire pode estar em estado de choque, dado o que aconteceu com sua filha tão de
repente. Imagine se isso acontecesse com seu próprio filho… Você deve entender o lado dela, certo?

Cliff parecia estar tentando argumentar comigo. Parte de mim esperava que ele compartilhasse minha raiva, mas, do ponto de vista
de Cliff, havia outro lado da história. Ele deve ter querido ficar calmo e pensar sobre isso do outro ponto de vista.

Então, pensei um pouco. Meus próprios filhos, hein? Talvez Lucie… Não, ainda era um pouco difícil de imaginar isso para ela. Em
vez disso, tentei com Norn. Digamos que Norn partiu em uma jornada assim que sua comemoração de maioridade terminou; apenas
quando penso que ela voltou, sua personalidade está morta. E pior, ela veio com o filho de um homem que eu não conhecia e o filho
de uma amante com quem ela não tinha laços de sangue. Eu certamente ficaria em choque. Eu gostaria de fazer algo por ela…

Mas

— Não importa o quão chocado alguém fique, não consigo ver como alguém pensaria em fazer mamãe se casar novamente.

— Isso pode não ser tão insensível quanto você pensa. Deixando de lado a conversa sobre filhos, casar-se com um nobre garantiria
que ela fosse cuidada. Mesmo após a morte dos pais.

Não foi essa a conversa que tivemos. Era mais como se ela quisesse reciclar uma ferramenta porque ainda tinha alguma utilidade.
Era da minha mãe que estávamos falando. Sua própria filha, que eu trouxe até aqui. Sério, qual era o problema dela?!

Eu conseguia me lembrar do rosto de Claire quando enlouqueci em sua mansão. Mesmo quando as ondas de choque do meu canhão
de pedra enviaram seus guardas voando pelos corredores, ela estava fria. Como se ela não pudesse entender por que aquele grosseirão
estava destruindo o lugar por nada.

Para ser justo, vi minhas memórias através do meu próprio filtro. Claire poderia ter ficado surpresa e seu rosto simplesmente
estivesse congelado de medo, mas isso não muda as palavras que saíram de sua boca.

— Ainda assim, entendo a situação em que você está. Você é livre para usar minha casa como quiser.

— Muito obrigado, Cliff.

— Este é território papal. Mesmo que a Casa Latria deseje fazer um movimento, eles não poderão tocá-lo aqui.
A garantia de Cliff me fez perceber que na verdade não havia considerado a possibilidade de retaliação dos Latrias. No que me dizia
respeito, Claire e eu estávamos acabados. Nunca veríamos um ao outro novamente, embora a Casa de Latria pudesse ter suas próprias
ideias. Eles podem tentar trazer Zenith de volta. Se fosse essa a situação, precisávamos levar Zenith para Sharia.

— Seria uma pena se sua mãe tivesse que voltar logo após chegar em sua cidade natal — disse Cliff.

— Hmm…

Millis era a cidade natal de Zenith. Agora que Cliff mencionou isso, eu tinha certeza que ela preferia ficar um pouco mais. Se eu
pudesse arranjar tempo para isso, adoraria levá-la a todos os pontos turísticos.

— Mas ainda assim…

— As necessidades de Zenith serão atendidas enquanto você estiver fora — disse Cliff virando-se para a nova garota. — Ela pode
ser um pouco desastrada, mas você pode confiar nela.

— …Cliff, sobre isso… quem é ela?

— Ah, minhas desculpas. Esqueci de te apresentar. O nome dela é Wendy. Se eu tivesse que descrever… Sim, eu diria que nosso
relacionamento é semelhante ao que você e Sylphie têm.

— Entendo. Entendo completamente.

Um relacionamento como o meu e o de Sylphie… Entendo, então foi assim. Todos os mistérios foram resolvidos. A abertura da
caixa do gato revelou que, de fato, apenas uma verdade prevalecia.

— Não se preocupe, não vou denunciá-lo para Elinalise.

— Não, espere. Pare esses pensamentos! Não tire conclusões precipitadas, não é assim.

Cliff explicou apressadamente o que ele quis dizer. Enquanto Cliff cuidava da papelada na sede da igreja, ele também organizava
sua casa. Uma das coisas que ele aparentemente precisava era de um ajudante, o que trouxe Cliff para o orfanato onde ele morava.
Como parte do programa de treinamento profissional do orfanato, ele ensinava suas crianças a cozinhar e fazer tarefas domésticas,
então Cliff recrutou uma das crianças de lá.
— Wendy era a criança mais velha de lá. Na verdade, ela está quase na idade de ter que deixar o orfanato, embora não tenha sido
por isso que a escolhi; mas por enquanto, ela virá do orfanato até aqui para ajudar na casa todo dia . Fazer tarefas domésticas aqui
também dará à ela experiência de trabalho.

Então ela foi mais ou menos contratada como estagiária. Trabalhar na casa de Cliff, neto do papa, certamente impressionaria os
futuros empregadores. Ela teria uma vantagem na procura de emprego.

— Sou Wendy. Eu posso lidar com todos os tipos de tarefas domésticas. É um prazer conhecer você.

— Assim como Sylphie, — disse ele. Essa frase me fez pensar que algo escandaloso estava acontecendo, mas basicamente, eles
eram velhos amigos que costumavam brincar juntos quando crianças. Embora eu não soubesse a idade exata de Wendy, fiquei
imaginando se Cliff não teria um momento de fraqueza com essa jovem…

Não, Cliff ficaria bem. Não era como se ele fosse eu ou algo assim.

—…

De qualquer forma, sair da casa Latria foi uma grande reviravolta. Neste ponto, pode ser melhor parar e levar Zenith para casa antes
de continuar, mas depois que a objetificação de Zenith por Claire me fez perder tanto a cabeça, que eu pelo menos queria dar a ela um
bom passeio comigo pela cidade… Ugh, eu estava sendo descuidado? Talvez eu deva esperar que Cliff se estabeleça primeiro. Então
poderíamos nos unir e derrubar a Casa Latria de forma rápida, aí então poderíamos correr riscos assim; embora seja verdade que não
havia garantia de que as coisas correriam tão bem…

— Aisha, que você acha? — perguntei.

— Ué… Hm?

Na dúvida, converse. Eu queria ouvir a opinião de Aisha.

— Você acha que devemos levar a mamãe de volta para casa e voltar? Ou você acha que devemos ficar nesta casa por um tempo e
deixá-la passear pela cidade quando tivermos tempo?

Depois que perguntei, Aisha cruzou os braços para pensar, mas não por muito tempo; ela logo levantou a cabeça e olhou para Cliff.

— Esta casa é realmente um lugar seguro?


— Sim. Pode ser pequena, mas os Latrias não conseguirão nos tocar aqui. Não sem causar um grande rebuliço.

— Quais são as chances de que os Latrias fizessem um movimento sabendo muito bem quais eram as consequências?

— Quase que nenhuma, eu diria. Aquela casa poria sua própria reputação em jogo.

Reputação, hein.. Dado o quanto a linhagem importava para aquela velha, ela definitivamente levaria isso em consideração. Ela
pode ser teimosa e podre até o âmago, mas não era uma idiota.

— Acho que vamos ficar bem — concluiu Aisha enquanto descruzava os braços. — É só um palpite, mas não acho que aquela
casa… aquela pessoa vê muito valor na Mãe Zenith depois do que aconteceu com ela.Ela tinha razão. Os Latrias certamente não
usariam Zenith como uma parte fundamental de qualquer plano. Cliff disse isso antes; casar com alguém que não sabia nem falar
poderia se encaixar nos valores da nação, mas levantaria questionamentos. Considerando que os parceiros seriam forçados um ao
outro, era difícil imaginar que os laços de seu matrimônio seriam terrivelmente fortes.

Talvez ela quisesse compensar seu investimento no Esquadrão de Busca e Resgate de Fittoa, mas se quisesse, poderia me cobrar.
Dê-me um número e eu pagaria para ela ir embora. Era seguro dizer que elas não tinham absolutamente nenhum vínculo emocional.
Se tivesse, então não tinha como ela tratar Zenith como uma coisa.

— Acho que hoje os ensinou que deveriam ter medo de você, Grande Irmão. Eles também não enviaram ninguém para nos
perseguir. Não acho que sejam muito apegados à Mãe Zenith.

Demoramos para voltar da casa Latria e, mesmo assim, ninguém veio atrás de nós. Claire poderia facilmente ter me denunciado e
mandado soldados atrás de mim. Eu não sabia se ela tinha medo de mim ou simplesmente parou de se importar, mas ela conhecia o
relacionamento que eu tinha com Cliff; embora eu não tenha ideia de onde ela conseguiu essa informação… o fato é que, dado o que
aconteceu, teria sido fácil adivinhar que esta casa seria meu esconderijo, no entanto, ela nos deixou ir embora.

— Seria uma coisa, se fosse um lugar sobre o qual eles pudessem fazer algo, mas estamos sob proteção em território inimigo. Acho
que vamos ficar bem.

— Verdade, penso o mesmo.

Alto risco, baixa recompensa. Com apostas como essa, era difícil imaginar que eles tentariam retomar Zenith à força. Que orgulho
de você, Aisha. Você realmente pensou nisso!
— Nesse caso, Rudeus, — interrompeu Cliff — vou encontrar meu avô amanhã. Você gostaria de vir junto? Causando problemas
com a Casa Latria, certamente tornará seus empreendimentos futuros neste país mais difíceis… Tenho certeza que você quer
conexões, não?!

— Tem certeza?

— Claro, contudo, depende de você ganhar o apoio de meu avô. Vou apresentá-lo, mas não vou fazer mais nada.

— Tudo bem.

Cliff recusou minha ajuda e eu não tinha intenção de fornecê-la diretamente. Eu não tinha certeza exatamente o quanto ele estaria
disposto a me reconhecer profissionalmente. Presumi que apresentar pessoas para alistá-las como aliadas era uma intervenção que
Cliff não queria que eu fizesse, mas parecia que Cliff estava disposto a engolir seu orgulho e me apresentar de qualquer maneira.

Ajudar Zenith era importante, mas também tinha que progredir na construção do Bando Mercenário. Ter o apoio do papa
funcionaria para ambos os objetivos. Eu não precisava exatamente que o papa fornecesse proteção pessoalmente à Zenith; apenas ter
uma conexão com ele tornaria difícil para eles interferirem.

— Seria uma honra, — respondi depois de terminar meus cálculos e inclinei minha cabeça para Cliff.

Eu tinha outras coisas para fazer em Millis, então me animei e voltei meus pensamentos para isso.

No dia seguinte, após o café da manhã, fui para a sede da igreja e deixei Aisha e Zenith em casa.

A sede da igreja, sendo um edifício dourado com uma cebola gigante no topo, era um pouco difícil de não perceber. A tranquilidade
tão valorizada no País Sagrado de Millis se refletia nos muitos tons de branco e prata que a envolvia; e então havia este edifício único
e brilhante com sua ostentação francamente espalhafatosa, e com aquela cebola dourada por cima, tudo se destacava. Brega.

De longe, não era tão ruim. Parecia um acentuado dourado empoleirado no topo de seus arredores brancos e prateados, mas uma vez
que você chega perto, o efeito se desfaz. Veio de um planeta diferente.

Mas uma casa ridícula não refletia necessariamente em seu morador, afinal, esta era a sede da Igreja Millis.

Ela estava basicamente cheia de Cliffs atualizados, recém-saídos da linha de produção. Pode ter parecido de mau gosto, mas o fato
de que certamente apenas os santos mais puros viviam lá dentro… estava longe de ser garantido. Eu sabia disso.
Na minha vida passada, todos sabiam que os políticos e líderes religiosos eram os mais corrompidos pelo dinheiro. Pelo menos, foi
assim que eu vi. Parecia válido para este mundo também. E as pessoas que detinham tanto poder que nem tentavam fingir sempre
acabavam desmascaradas, então, novamente, manter essa multidão à distância não deve representar nenhum problema.

Respirei fundo e me preparei para me “vender”. Eu mostraria meus laços profundos com Orsted e Ariel para parecer importante.
Acho que esse foi um dos meus fracassos na casa Latria; pode ter sido por isso que Claire me menosprezou até que tudo acabou
daquele jeito.

De qualquer forma, hoje eu seria o homem mais interessante do mundo para ele. Foi por isso fui com minhas vestes formais; elas
são o que eu uso quando estou falando sério. Eu era a Mão Direita do Deus Dragão, Rudeus Greyrat! Eu me convenci um pouco na
minha cabeça.

— Minhas desculpas, mas não posso permitir que ninguém que não tenha permissão entre.

Fui parado na entrada de um dos prédios. Emoji triste.

— Huh? Minha permissão de entrada não é suficiente? Eu poderia jurar que os companheiros costumavam entrar com um…

— A regra sempre foi uma pessoa por permissão.

— Entendo. Hum… Acho que as pessoas olhavam para o outro lado desde que eu era criança naquela época…

Cliff olhou para o símbolo que encontrou na noite passada com uma expressão preocupada. Aparentemente, essa era a permissão.
Ele estava vestindo sua vestimenta oficial da Igreja Millis. O símbolo foi costurado no peito da vestimenta ontem à noite.

— Você já tem uma permissão, reverendo Cliff, então acredito que você pode pedir para eles emitirem uma permissão temporária
para entrar.

— Ah… Sim, isso mesmo. Desculpa, Rudeus. Vou conseguir uma licença para você, então espere por mim aqui — disse Cliff.

— Entendo. Não estou com pressa, então sinta-se à vontade para tomar seu tempo.

Fiz o que me foi dito e observei Cliff desaparecer lá dentro. Tropecei no primeiro obstáculo, mas ei, pelo menos não fui expulso
antes do tiro de partida! Resolvi passear um pouco pelo complexo.
O complexo era amplo e o prédio era enorme. Era facilmente quatro vezes o tamanho da casa Latria. O prédio tinha quatro andares
e, do ponto de vista de um pássaro, todo o lugar era estruturado como um losango no topo de um quadrado; ou seja, em vez de se
sobrepor para formar um octógono, um quadrado foi inserido dentro do outro. O diamante estava dentro do quadrado.

A praça do lado de fora consistia no prédio de escritórios da sede da igreja. Provavelmente era lá que todos os funcionários de
escritório relacionados à igreja e padres regulares organizavam seus papéis. Eles pareciam lidar com licenças de conversão religiosa,
pedidos de arranjos funerários e até vendas de amuletos simbólicos. Aquele era o quartel-general perfeito para você, se você tinha
algum negócio com a Igreja Millis.

O diamante interno abrigava o espaço residencial e de escritórios da corte papal da Igreja Millis. Tinha até estátuas sagradas e
templos. Como regra, apenas o mais alto escalão tinha permissão para entrar; nem mesmo os funcionários de escritório aqui eram
informados do que acontecia lá dentro. Era o núcleo da Igreja Millis. Não admira que você precisasse de uma licença.

Era compreensível, mas enquanto eu continuava olhando ao redor do complexo, o sol subia alto. Eu estava ficando com fome.

Talvez Cliff tivesse calculado mal ao me conseguir uma licença. Certamente dar ao papa todas as informações pertinentes apenas
sobre a viagem de volta levaria horas. Ele deve ter marcado um encontro com o papa apenas ontem, uma exceção que abriram para ele
porque era da família, mas eu?! Eu era um estranho. Isso colocaria o papa em guarda se seu neto recém-retornado dissesse que queria
apresentá-lo a algum esquisito?

Tive uma noite difícil tentando ajudar Zenith, mas não havia me esquecido do pedido de Elinalise. Eu queria absolutamente evitar
atrasar Cliff.

— Talvez eu devesse ter esperado alguns dias primeiro e depois marcado uma hora eu mesmo…

Ao reconsiderar meu plano, descobri que havia chegado ao jardim.

A sede da Igreja Millis tinha quatro jardins. Eles formavam os quatro cantos triangulares entre o diamante interno e o quadrado
externo. Cada um foi plantado com vegetação representando uma das quatro estações. Atualmente era primavera e, coincidentemente,
o jardim da primavera foi aquele em que entrei. Este jardim primaveril estava transbordando com um arco-íris de flores
desabrochando – mas os tons brilhantes e claros de amarelo, branco e rosa dominavam.

Absorvi tudo enquanto caminhava. Eu costumava andar com uma enciclopédia de plantas em uma mão enquanto procurava os
nomes e tudo de todas as flores, mas não sabia nada sobre as plantas em Millishion. Na verdade, espere, eu já tinha visto aquela árvore
com as flores rosa antes. Seu nome era semelhante a “sakura”, como as flores de cerejeira, então me chamou a atenção. Eu senti como
se tivesse ouvido alguém dizer o nome recentemente, mas o que era?

— Olha, as Árvores Sarakh estão florescendo! — alguém disse.

Sim, Sarakh, era isso! Eram árvores que cresciam nas montanhas das terras do norte do Reino de Asura. Elas tinham flores
cor-de-rosa nas pontas de seus galhos que desabrocham quando a primavera chega, por isso eram conhecidas por lá como “As árvores
que chamam a primavera”. Sua madeira tinha uma fragrância particular que também as tornava populares entre os nobres. Elas
cresciam apenas nas montanhas, então eram caras. Atualmente, a família real Asurana supervisionava todo o cultivo das árvores
Sarakh, às vezes até exportando-as para outras nações, ou foi o que Ariel me disse da última vez que fui ao Reino Asura.

— Sim, elas são realmente muito bonitas!

— As Flores de Sarakh combinam muito bem com você, Abençoado!

— Você sabia que essas Árvores Sarakh foram um presente do Reino Asura quando o atual papa ascendeu ao trono?

— Ohoh, Abençoado, como você é puro…

Eu ouvi algumas vozes que fizeram minha pele arrepiar. Por curiosidade, virei-me para olhar para a fonte das vozes assustadoras.

— Venha, olhe, olhe! É como se estivéssemos sob uma chuva de pétalas de Sarakh!”

— Ah, a visão do Abençoado de pé entre as pétalas descendentes… é quase etéreo.

— Que bonito!

Lá, eu vi uma e-girl* e seus simps**. A mulher usava um vestido quase de princesa com babados enquanto mantinha as palmas das
mãos para cima e girava sob as pétalas de flores que esvoaçavam suavemente. Eu quase poderia chamá-la de jovem… exceto que ela
provavelmente tinha cerca de vinte anos.

* garota com visual inspirado e/ou parecido no emo.

** pessoas que mostram atenção, simpatia, adoração etc por alguém, em busca de afeição ou um relacionamento mais profundo;
normalmente sem ser recíproco.
Seu rosto era a cara da beleza refinada, mas também um pouco rechonchudo. Wendy parecia suave, apesar de ter braços e pernas
delicados, mas os braços e as coxas dessa garota eram um pouco grossos. Ambos não eram saudáveis, mas enquanto Wendy parecia
carecer de calorias, esta mulher parecia carecer de exercícios.

Ao redor dessa mulher havia uma multidão de homens. Havia sete deles – um número de sorte. Toda vez que a mulher dizia alguma
coisa, eles concordavam e a elogiavam sem fôlego; dessa maneira “bajular por atenção”. Sim, simps e sua e-girl … caramba, você
provavelmente poderia chamá-la de e-princesa! Acho que a razão pela qual eles me pareceram simps foi porque nenhum deles era
bonito. Aqueles rostos infelizes me lembraram de um que eu costumava ver no meu espelho. Suponho que as couraças azuis que todos
equiparam estavam um pouco fora do escopo dos típicos cavaleiros brancos.

— Hum?

Observe que, embora eles parecessem almas gêmeas, não havia nem um pingo de conforto entre eles. Eu podia sentir a tensão
formigando no meu pescoço.

Isso era hostilidade? Bem, isso não deveria ter sido uma surpresa. As chances eram de que aqueles caras a estavam tratando como
realeza porque ela era realeza, ou pelo menos tinha algum status semelhante, e esses guardas provavelmente não eram apenas simps
comuns. Uma olhada em seu comportamento e músculos disse que todos eram guerreiros endurecidos. Eles poderiam ser espadachins
de nível avançado, se não de nível santo.

Isso significava que eles devem ter me notado. Eu vim preparado para o pior e usei minha Armadura Mágica Versão Dois por baixo
das minhas vestes. Embora eu devesse parecer desarmado devido à falta de um cajado, claramente não estava vestido para um
piquenique. Eles estavam, compreensivelmente, em guarda.

Aainda assim, algo estava errado. Essa sensação tinha uma dimensão de algo, não sei, desconcertante, como um estrondo sob a
superfície. Era uma inquietação difícil de descrever…

Era possível que um daqueles homens fosse discípulo do Deus-Homem. Deveria testar? Não, espere, eu tinha que parar e pensar.
Especificamente, eu tinha que calcular as chances de que dizer a palavra “Deus-Homem” em voz alta daria terrivelmente,
terrivelmente errado. Substancialmente. Não, eu não deveria dizer “Deus-Homem” em voz alta, mas de que outra forma eu poderia
pegá-los…?

— Hum? Não acredito que já tenha visto você por aí antes. Você está aqui para se converter?”

Enquanto eu contemplava minha estratégia, eles deram o primeiro passo.


— Oh…

A garota olhou para mim com um sorriso inocente. Ela cruzou os braços atrás dos quadris e se inclinou para mim. Era o tipo de
pose que me faria perder todo o controle se Sylphie a usasse comigo. Roxy nunca posaria assim. Se Eris tentasse, ela pareceria uma
cobra avaliando sua presa; Eu estaria congelado, preparado para encontrar meu criador.

— Qual o problema?

Ah, certo, boa pergunta. Eu tinha coisas mais importantes em que pensar. Hum, uh… Bem, eu não estava aqui para me converter…
Eu precisava averiguar se eles eram discípulos do Deus-Homem, então, um…

— E-então vocês são todos, uh, deus… pessoal?

Aconteceu em um instante. Três dos simps sacaram suas espadas e as apontaram para minha garganta. Os quatro restantes
agarraram a e-girl e a puxaram para trás, escondendo-a atrás deles.

Não havia vestígios daquela merda simp neles. Os homens agora diante de mim tinham a ferocidade de soldados em um campo de
batalha. Suas pupilas afundadas perfuravam o branco brilhante de seus olhos.

Merda, esses caras estavam sérios. Eu estava suando. Eu não deveria ter começado esta conversa. Oh espere. eu não tinha.

“Há um Deus.”

— Saint Millis é o único Deus verdadeiro?

— Com que propósito você perguntaria algo tão óbvio?

— Será que você não acredita em Saint Millis?

— Você não acredita em Deus?

— Um traidor?

— Um pagão!
Os simps me interrogaram sem minha contribuição enquanto seus olhos escureciam. Oh não, isso estava se transformando em um
julgamento de bruxa!

— D-desculpem-me… eu estava, uh, pensando em algo e saiu errado. Por favor, me perdoem.

Esta situação exigia um pedido de desculpas honesto. Eles estavam certos; esta era a sede da Igreja Millis. Todos aqui certamente
acreditavam em apenas um deus, Saint Millis. Não havia lugar pior para perguntar algo assim. Eu entendo, pareci cínico; duvidoso e,
portanto, suspeito. Por favor, encontrem em seus corações para me perdoar.

— Grave, o que fazemos?

— Dust, você decide.

— Tudo bem, vamos matá-lo. Ele provavelmente é um pagão. Ele também parece extraordinariamente calmo… E mesmo que ele
seja um crente, colocar tais pensamentos bizarros na cabeça de nossa Abençoada é um crime em si.

— Entendi, vamos matá-lo. Boa ideia.

Nossa, já decidiu, hein?! Eles trabalharam juntos como uma máquina lubrificada. Eu provavelmente hesitaria se estivesse no lugar
deles.

— Ei, ei, espere um segundo! Vamos todos nos acalmar, deixe-me explicar-

Isso faria Cliff parecer mal se uma briga começasse aqui, e eu certamente não queria arruinar um jardim tão bonito. Quem gostaria
de ver aquelas adoráveis ​árvores Sarakh arrancadas pela raiz?! Não havia ganho nisso para nenhum de nós, então vamos falar sobre
isso, certo?

Meus pensamentos estavam voltados para a paz, mas minha atitude já havia mudado. Eu estava com meu Olho Demoníaco da
Previsão aberto desde o momento em que apontaram suas lâminas para mim e estava despejando mana em minha Armadura Mágica.
Eu queria evitar a violência, mas se um pedido de desculpas não resolvesse, então eu não iria me segurar.

Depois de ontem, eles me pegaram de mau humor.

— Então… vocês realmente pretendem agir contra mim? — Perguntei.


Algo na minha pergunta os fez estremecer e arregalar os olhos. Meu Olho Demoníaco da Previsão mostrou-os tensos, distribuindo
sua força em seus braços e pernas.

Aqui vem eles.

— Pare!

Uma voz de comando cortou o ar. Uma que soou um pouco familiar. Sua autoridade cortou a tensão instantaneamente, e essa tensão
desapareceu dos corpos dos outros caras.

— O que você está fazendo?!

Aproximando-se de nós estava uma cavaleira solitária. Ela parecia ter trinta e poucos anos e usava a mesma couraça azul dos simps.
Seu rosto calmo e refinado era severo. Eu conhecia muito bem aquele rosto.

— Capitão. Este pagão estava tentando ferir a Abençoado — um dos simps relatou prontamente. Qual é, cara, não minta!

— Estou sendo falsamente acusado. Eu estava simplesmente olhando para a Sarakh…

— Silêncio — um dos homens disse em voz baixa, sua espada ainda apontada para mim. Caramba, não, eu não ficaria em silêncio.
Minha vida estava em perigo aqui.

— Um pagão? — a cavaleira disse quando ela finalmente olhou para o meu rosto. — Ah!

E então, ela percebeu quem eu era. Seu rosto se aqueceu em um sorriso.

— Rudeus! Meu pequeno Rudeus, é você? Nossa, faz tanto tempo!

Então, ela lançou um olhar para os homens que tinham suas espadas desembainhadas e levantou a voz.

— Afastem suas lâminas! Este homem é meu sobrinho!

Depois de observar os simps se assustarem com a surpresa e embainharem suas espadas, fechei meu Olho Demoníaco da Previsão.
Teresa Latria. A irmã mais nova de Zenith e, portanto, minha tia. Ela me ajudou muito quando eu estava levando aquele navio do
Continente Millis para o Continente Central.

Therese parecia ser a líder desses espadachins; por ordem dela, os simps guardaram suas lâminas em um piscar de olhos e até
ofereceram um pedido de desculpas por precaução; com relutância, claro. Pedi desculpas por meu próprio lapso de linguagem, mas a
hostilidade aberta deles em relação a mim não mudou; isso não era suficiente para eles. Eles continuaram mantendo sua e-girl a uma
distância segura de mim e permaneceram ferozmente vigilantes.

— Você se lembra de mim? Ou você esqueceu, já que só nos vimos uma vez?

— É claro que me lembro. Você foi um salva-vidas ao conseguir aquele navio para nós.

Bem, eu poderia ignorar esses caras por enquanto. Em vez disso, conversei com Teresa. Ah, vê-la realmente me trouxe lembranças.

— Ouvi dizer que você apareceu na casa da família, mas não pensei que você viria à sede da igreja também. Ah, você veio até aqui
para me ver?

— Não, um conhecido ia me apresentar a um chefe da Igreja… Vejo que você conseguiu voltar para cá, Teresa.

Se bem me lembro, da última vez que a vi, ouvi dizer que ela havia sido rebaixada para a cidade portuária do oeste. Dez anos se
passaram desde então; não era surpresa nenhuma que ela tivesse feito seu caminho de volta.

— Ah, bem, algumas coisas aconteceram — Therese riu com um encolher de ombros. Acho que ela teve algumas circunstâncias
que foram um pouco difíceis de falar. Eu não iria me intrometer, no entanto, havia outra coisa que eu queria saber.

— Então, suponho que você foi informada sobre minha visita à casa da família?

— Sim, parece que você teve um pequeno desentendimento com mamãe.

— Pequeno desentendimento… É assim que você chamaria? Um pequeno desentendimento?

— Ouvi dizer que mamãe deixou você chateado. Eu sei como ela é. Ela provavelmente disse para você fazer isso e aquilo, certo?

— Isso mesmo! Escute isso!


Foi a primeira vez que encontrei minha tia em muito tempo. Passou pela minha cabeça o pensamento de que eu não sabia se ela
estava do meu lado, mas não consegui parar de falar. Antes que eu percebesse, contei a ela todos os detalhes possíveis sobre o que
aconteceu ontem. Parece que eu ainda tinha muita raiva reprimida, ou talvez apenas me deixasse à vontade ver um sorriso real e
presente em um rosto tão parecido com o de Zenith.

— Esse tipo de coisa é comum neste país?

— Não, até este país tem seus limites… Até para mamãe, isso é… acho que deve ter havido algum mal-entendido? Ainda assim,
hmm… Rudeus, você tem certeza de que não disse nada que pudesse deixar a mamãe com raiva? Se alguém começa uma briga, ela
pode argumentar até vencê-lo pelo cansaço…

— Eu me pergunto isso. Eu estava tentando evitar dizer qualquer coisa perturbadora, então aguentei muito do que ela disse.

— Hmm… — Teresa cruzou os braços severamente e resmungou baixinho enquanto pensava.

Não parecia que ela havia escolhido brigar ontem. Para mim, parecia que esse era o plano dela desde o início.

— Bem, vou perguntar sobre os detalhes da próxima vez que estiver na casa da família. Mamãe pode ser teimosa, autoritária e
mandona, mas no fundo ela não é uma pessoa má. Aposto que houve algum mal-entendido.

—…

Teresa chegou a sua conclusão em segundos. Mesmo que houvesse algum mal-entendido, eu estava com muita raiva. Eu não queria
pedir a ela para ajudar a consertar as coisas. Fazia muito tempo desde que alguém me fez cortá-los completamente. Mas, se… se…
realmente houve um mal-entendido, e se ela se desculpasse de boa fé, eu pediria desculpas por destruir a casa.

— Deixando isso de lado, você ficou tão grande Rudeus! Ah, espere, não se deve dizer a um homem que ele está ficando grande…
Você tem cerca de vinte anos agora, certo?

Therese foi atenciosa o suficiente para mudar de assunto. Eu também não queria falar sobre Claire o dia todo.

— Sim, tenho cerca de vinte e dois anos.

— Não acredito! Acho que isso foi há dez anos, hein… Ah, isso me lembra, e a Srta. Eris? Ela está bem? Lembro-me dela ser
cabeça quente!
Therese ficou excitada como uma criança. Para onde foi aquele visual refinado? A expressão dela quando ela ficou séria quase me
lembrou da vovó Claire… Ugh, oh não, eu não quero pensar nisso.

— Eris está indo bem. Ela deu à luz seu primeiro filho no ano passado.

— Criança… Ah, entendo, vocês dois se casaram! Parabéns!

— Muito obrigado.

— Ela está aqui também?

— Não, ela está em casa, na cidade de Sharia, afinal, alguém tem que cuidar do bebê.

— Entendo, entendo. Bem, pode haver alguns percalços na estrada da vida, mas tenho certeza que vocês dois podem trabalhar
juntos para superá-los!

Só dois?! Oh… certo. Ela era uma seguidora de Millis, não era?! Eu preciso esclarecer que era casado com três mulheres. Bem, eu
decidi ficar em silêncio por enquanto. Não queria aborrecê-la agora que finalmente tivemos um momento feliz entre nós.

— Sim, então, casamento, hein… E pensar que meu pequeno Rudeus e a senhorita Eris cresceram e se casaram…

Suspiro…

Ou, assim pensei, mas parecia que a alma de Therese estava deixando seu corpo. Acho que casamento era um assunto delicado para
ela. Dada a reação dela, presumi que ela ainda era solteira. Isso, ou divorciada. Uhh, quantos anos ela tinha mesmo? Zenith tinha cerca
de trinta e oito anos e Therese era mais jovem, então… sim, trinta e cinco anos. Quando você considera que a idade adulta neste
mundo começa aos quinze anos, e que a maioria das pessoas se casam entre essa idade e os vinte anos… Uhhhh…

— Então, como vai o trabalho?

Vamos mudar de assunto.

— Hum? Oh! Bem, algumas coisas aconteceram desde a última vez que nos vimos, mas voltei a proteger a Criança Abençoada.
Estou até liderando esses caras!
Com a menção de Therese, olhei para o grupo dela. Dos sete cavaleiros, apenas dois ainda eram cautelosos comigo, enquanto o
resto voltou para a comitiva da e-girl. Parecia que os problemas do mundo flutuavam para longe facilmente para eles.

— Um bando bem intimidador.

— Sim… Desde aquela tentativa de assassinato, apenas os guerreiros mais fortes dos Cavaleiros do Templo foram designados para
protegê-la, o que significa que você conheceu os caras que são um pouco… cautelosos demais.

Therese já havia descrito os Cavaleiros do Templo como “um bando de fanáticos”. Talvez fosse a isso que seu uso de “cautelosos
demais” se referia. afinal, eles pularam direto para a força letal depois do meu lapso de língua. Eles eram tão rápidos quanto Orsted
quando o conheci.

— Bem, eles podem ser um pouco apegados às escrituras, mas não são um bando ruim.

Nossa, assustador. Eu poderia entender acreditar em Deus, mas você não poderia acreditar a ponto de ter visão tão fechada. Seu
Deus não deveria perdoar?!

Só então, uma voz de repente veio de trás. — Perdão, Therese? Posso participar da sua conversa?

A e-girl estava olhando para nós. Sua comitiva estava logo atrás dela, pronta para sacar suas lâminas a qualquer momento.

— Acho que ouvi você dizer o nome ‘Eris’. Você pode ser um conhecido de uma certa senhorita Eris de cabelo ruivo? A
espadachim?

Então essa era a Criança Abençoada, hein? As pessoas a chamavam de “Abençoada” isso, “Abençoada” aquilo, cantando sem parar
como bichinhos adestrados, mas eu não sabia o nome verdadeiro dela. Ela parecia muito alegre, então talvez “Enfermeira”? Eu
poderia perguntar… Não, devo me apresentar primeiro. Claire me disse que isso é “de mau gosto”, depois que me apresentei primeiro,
mas fazer isso era simplesmente a etiqueta de um guerreiro.

— Minhas desculpas. Eu sou Rudeus Greyrat, um servo do Deus Dragão Orsted. O Rei da Espada Eris Greyrat é minha esposa.

Deus Dragão e Rei da Espada. Esses dois termos instantaneamente colocaram sua comitiva em alerta ainda maior. O fato de que
eles reagiram ao “Deus Dragão” me fez pensar que deveria haver um discípulo aqui… Mas, novamente, foram todos os sete que
reagiram, então quem poderia dizer?!
— Oh meu Deus! Então é você! Devo muito à senhorita Eris, pois ela salvou minha vida há dez anos!

Dez anos atrás, ou seja, quando vim para o Millishion. Acho que me lembrei dela me contando sobre isso. Ela disse que saiu para
caçar goblins, mas voltou depois de se livrar de alguns assassinos.

— A senhorita Eris está visitando aqui também?

— Não, ela teve que ficar em casa para cuidar do nosso filho.

— Que pena.

Quando a e-girl pareceu triste, todos os seus simps baixaram as sobrancelhas com simpatia. Foi meio adorável. Esses caras
realmente amavam sua e-girl.

Espere, eu me apresentei, mas não recebi um nome em resposta. Eu deveria dizer “Abençoada” também?

— Mas se for assim, isso significaria que, por extensão… foi o Deus Dragão Orsted quem me salvou, não?

— Huh?

Ele não teve nada a ver com isso. Eris e eu nem sabíamos o nome de Orsted na época. Então, novamente, eu era subordinado de
Orsted agora, e Eris aceitou isso e até ofereceu ajuda. Você poderia argumentar que Eris era, portanto, subordinada de Orsted… o que
significaria que Orsted a salvou, suponho?

Não, eu não queria me incomodar com uma mentira que seria descoberta tão rapidamente.

— Não, nem eu nem Eris tínhamos qualquer conexão com Orsted na época, mas se você sentir qualquer desejo de pagar uma
dívida, Abençoada, então eu ficaria muito grato se você se abstivesse de manter qualquer hostilidade contra Orsted no futuro.

— Hum? Devo ter hostilidade em relação a alguém que nunca conheci?

— Orsted possui uma maldição com esse efeito.

Quando eu disse isso, a e-girl olhou profundamente nos meus olhos. Sentado dentro de seu rosto rotundo estava um par de pupilas
profundas e arredondadas. As cores de seus olhos não pareciam diferentes; não parecia que ela tinha um Olho Demoníaco, mas eu
senti isso, algo estava sendo feito para mim. O que era esse algo, eu não tinha certeza. Não havia nada prendendo meu corpo e nada
roubando minha respiração. Tudo o que eu podia dizer era que algo estava sendo feito para mim, nada mais.

— Hm… parece que você foi sincero.

Depois de um momento, a e-girl assentiu.

— Você pode dizer?

— Posso, sim.

Olhei para Therese e a comitiva, mas nenhum deles pareceu estranhar. Significando… este era o seu poder como uma Criança
Abençoada. O poder que se compara à força e resistência monstruosas de Zanoba. O poder de simplesmente olhar nos olhos das
pessoas e saber se eles estão mentindo; ou é para ler a mente de outra pessoa? Talvez fosse algo completamente diferente.

— É… esse é o seu poder?

— Sim, esta correto.

Eu adoraria perguntar os detalhes, mas sua comitiva ainda estava de olho em mim. Provavelmente era mais seguro não perguntar.
Mas eu deveria? Orsted nunca disse nada sobre esta Criança Abençoada.

— Uau, isso é… algo…

Merda. Acho que posso ter sido muito óbvio sobre minha ambivalência no momento em que percebi que algo estava sendo feito
para mim. Não havia nada que eu pudesse pedir que não levasse a comitiva ao ataque, mas parecia que eu estava perdendo alguma
coisa se não aprendesse algo aqui. Não havia garantia de que nos encontraríamos novamente. Perguntar ou não perguntar?

— Hngh… Ufa…

Primeiro, uma respiração profunda.

— Criança Abençoada. Posso fazer uma pergunta que sei que parecerá bastante rude?
Em seguida, obtenha permissão antes de perguntar. Era importante dar um passo de cada vez. Uma vez que tivesse isso, faria uma
pergunta simples que não revelaria o que eu estava procurando.

— Sim, fique à vontade.

— Você teve algum sonho ultimamente em que alguém que afirma ser um deus lhe oferece uma profecia?

— Não. Não ultimamente e, de fato, nem uma vez. E tenho certeza de que nunca terei.

A e-girl falou em termos inequívocos. Ela me olhou nos olhos, ouviu e disse que nem seu passado nem seu futuro continham tal
sonho. Ela parecia saber. Isso era outro efeito de seu poder? Talvez fosse um poder que poderia se recusar a se encontrar com o
Deus-Homem. Talvez ela realmente pudesse ler mentes? O Deus-Homem certamente tinha muito mais segredos duvidosos do que eu.

— Muito obrigado.

A tensão saiu dos meus ombros. Por enquanto, eu sabia que ela não era uma inimiga e isso bastava. A Criança Abençoada pode ter
mentido para mim agora, mas eu escolhi acreditar nela.

— Agora, então, é minha vez de perguntar a você! — a Criança Abençoada disse vertiginosamente.

— Gah! Sim, pergunte.

O que mais ela poderia perguntar? Se ela pudesse ler minha mente, haveria necessidade de perguntar? Parecia que seu poder não
estava ativo o tempo todo. Ela tinha que olhar alguém nos olhos e fazer algo para ativá-lo. Se ela não olhasse nos meus olhos… então
talvez eu estaria seguro?

— Por favor, conte-me sobre a senhorita Eris!

— Claro!

Isso era tudo? Bem, ei, se ela não fosse uma inimiga, e se ela não tivesse nenhuma relação com o Deus-Homem, então suponho que
eu poderia confiar nela.

Talvez eu faça propaganda para nosso maravilhoso CEO, Orsted. Não se preocupe, o seguro da nossa empresa cobria bênçãos
preexistentes. Com uma história de oitenta anos de serviço confiável, você pode ficar tranquilo, pois nossa equipe de primeira linha
fornecerá toda a ajuda que você precisar! E a nossa empresa está sempre recrutando associados com uma atitude positiva para se
juntar à nossa equipe.

Hmm, era exagerado eu dar uma de olheiro para cima da Criança Abençoada enquanto eu planejava persuadir o papa a nos apoiar?
Acho que a Criança Abençoada e o Papa pertenciam a facções diferentes…

— Rudeus! Rudeus, você está aqui?

Enquanto eu estava pensando em minha futura postagem no quadro de empregos, ouvi uma voz me chamando de longe. Era de
Cliff; parecia que ele finalmente conseguiu a licença.

— Minhas desculpas, Criança Abençoada, mas parece que chegou a minha hora.

— O quê?! Oh, que pena…

A e-girl franziu a testa. Sua comitiva franziu as sobrancelhas em uníssono quando senti sua energia agressiva aumentar em direção a
mim.

Que interessante. Fascinante, mesmo. Eu definitivamente queria continuar essa conversa, mas primeiro, a pessoa que eu esperava
tinha prioridade.

— Tenho certeza que estarei na cidade por algum tempo, então podemos falar sobre Eris uma outra hora.

— É uma promessa!

Me despedi da e-girl e faz um último pedido a Therese.

— Aliás, Teresa. Se você for à casa da família, gostaria que dissesse a Claire que ficarei responsável por cuidar de minha mãe; ela é
livre para cuidar de seus próprios negócios… Além disso, se ela quiser um retorno sobre suas contribuições para o Esquadrão de
Busca e Resgate de Fittoa, diga a ela que terei prazer em pagar o dinheiro. Qualquer preço que ela reividicar.

— Entendi. Eu direi a ela.

— Obrigado.
Depois de me despedir de Therese, acenei com a cabeça para a comitiva e os deixei para trás.

A Criança Abençoada, hein? À primeira vista, ela me pareceu uma mesquinha protegida, ou uma princesa superficial com um
séquito de cavaleiros brancos, mas senti uma profundidade insondável nela. Ela me disse, claramente, que não era minha inimiga,
mas tive a impressão de que ela sabia quem era o Deus-Homem. Eu deveria estar em guarda. Espera, esqueci de perguntar o nome
dela…

Esses eram os pensamentos que passavam pela minha cabeça enquanto me dirigia a Cliff para obter minha licença.
Mushoku Tensei: Reencarnação do Desempregado – Vol. 20 –
Cap. 10 – O Papa e…
Antes de entrar na parte interna do santuário, tive de passar por uma revista corporal para confiscar qualquer coisa que pudesse
servir como arma. Precisei me despojar de tudo; desde minha fiel faca até meus pergaminhos.

— Vamos ficar com seus pertences.

Eles não pareciam ver minha armadura como uma arma, pois não me pediram para tirá-la. Cliff certamente sabia, mas o fato dele
não ter dito nada provavelmente era um sinal de sua confiança em mim; então, como demonstração de igual boa fé, também desisti de
minhas duas manoplas: a esquerda, que carregava uma pedra de absorção, e a direita que poderia disparar um tiro de espingarda.

A área central era um labirinto de corredores sem retas à vista, apenas voltas e reviravoltas labirínticas. As paredes brancas e planas
não permitiam saber para onde as curvas poderiam levá-lo. Ah, mas afinal, este era o coração da Igreja Millis. Certamente foi
construído contra a possibilidade de invasão inimiga, assim como um castelo seria.

Cliff deslizava suavemente por tudo isso, finalmente me levando ao escritório do Papa, guardado por dois cavaleiros e uma barreira.

— Só para esclarecer, você não poderá usar magia aqui.

— Entendido.

A força da barreira provavelmente era de nível Santo ou Rei. Esses cavaleiros também pareciam ter esse nível. Se de alguma forma
uma luta começasse, seria tudo isso contra apenas eu e meus punhos.

— Vossa Santidade, trouxe seu visitante.


Além da barreira transparente estava o avô de Cliff, Harry Grimor. Ele parecia exatamente o velho gentil que imaginei que seria por
sua carta. Tinha uma longa barba branca e usava paramentos bordados em ouro.

— Sim, eu agradeço.

Não havia a sensação de força de Sauros, ou da incisividade de Reida. Não conseguia sentir um ar de força; em vez disso, senti a
grande presença de um coração magnânimo. Era como um reconhecimento instantâneo: “ah. O Papa. Claro.” Não senti nenhuma aura,
apenas um aconchego.

Era difícil de explicar.

— Permita-me apresentá-lo. Este é Rudeus Greyrat, meu calouro na Universidade de Magia de Ranoa. Ele é um homem
incrivelmente brilhante, e sua aptidão para magia supera até mesmo a minha; e como pretendo manter nossa amizade, pareceu-me
prudente apresentá-lo a você.

O Papa acenou com a cabeça para a introdução de Cliff com um olhar plácido no rosto. Parecia que qualquer outra explicação teria
que vir da minha própria boca. Como Cliff e eu discutimos ontem à noite, tudo o que ele estava fazendo era apresentar um amigo a um
membro da família; além disso, qualquer agenda que eu tivesse com o Papa exigiria que eu mesmo desse o primeiro passo.

— Entendo. Agora, então… Presumo que o Sr. Rudeus veio para me pedir algo? Talvez permissão para montar seu bando de
mercenários? Talvez permissão para vender as estatuetas Superd? Ou poderia ser um convite para que eu me junte às forças do Deus
Dragão Orsted?

Ah, não! Parece que o bom e velho Cliff me antecipou um pouco, tendo em vista que o informei sobre meus objetivos, cargos e
motivos para vir para este país. Bem, eu chegaria a tudo isso eventualmente… Na verdade, não precisar começar do zero economizava
muito tempo…

Hã? Cliff estava olhando para mim e para o Papa com os olhos arregalados de surpresa.

— Vejo que o braço direito do Deus Dragão não é facilmente abalado. Nem mesmo um movimento de sobrancelha… Você deveria
aprender, Cliff.

A primeira impressão que o Papa teve de mim endureceu irrevogavelmente antes mesmo de meu pequeno cérebro macio entender o
que estava acontecendo. Era tarde demais. O Papa me confundiu com um fodão.
— Minhas desculpas; apenas fiz algumas pesquisas com antecedência.

O Papa começou a ler um documento próximo com um leve sorriso.

— Rudeus Greyrat. Pertencente à distinta linhagem da casa Notos Greyrat. Filho de Paul Greyrat e pupilo da Rei da Espada
Ghislaine Dedoldia. Foi pego no Incidente de Deslocamento, mas em apenas três anos conseguiu retornar à sua terra natal com suas
próprias forças. Pouco depois, se matriculou na Universidade de Magia de Ranoa e fez amizade com a princesa Ariel. Anos depois,
lutou contra o Deus Dragão Orsted e se rendeu a ele. Trabalhou nos bastidores durante a turbulência no Reino Asura para derrotar a
Deus da Água Reida e o Imperador do Norte Auber e pressionou para que Ariel Anemoi Asura assumisse sua posição atual como
governante. Depois disso, trabalhou para expandir seu exército particular em terras ao redor do mundo, enquanto persuadia aqueles no
poder a cooperar com o Deus Dragão Orsted… Esqueci alguma coisa?

Nada mal. Porém, não é como se eu tivesse feito essas coisas em segredo. Estava tudo lá para ser descoberto se alguém quisesse;
além disso, o próprio Papa não pode ter segredos. Sua biografia é estudada por milhares de pessoas. Pesquisas como essa apenas
nivelaram o campo de jogo.

Dito isto, não estava tudo correto.

— Há três erros. De maneira alguma voltei do Continente Demônio apenas com minhas forças. Tive a ajuda de um guerreiro Superd
chamado Ruijerd. Não fui eu quem derrotou o Deus da Água Reida; foi o Deus Dragão Orsted. Da mesma forma, Auber foi derrotado
pelos esforços combinados da Rei da Espada Ghislaine, e da Rei da Espada Eris. Por fim, e de longe o mais importante, gostaria de
acrescentar que na verdade sou pupilo da Maga da Água de nível Rei, Roxy Migurdia.

— Ora, ora, um cara honesto.

O Papa acenou com a cabeça para si mesmo e escreveu algo em uma folha de papel próxima. Não sabia o que tinha escrito, mas
realmente esperava que acrescentasse a parte sobre eu ser pupilo de Roxy.

— Então, isso significa que sua razão para vender essas estatuetas Superd é para pagar sua dívida com a raça deles, e que não está
planejando derrubar o governo aumentando as taxas de alfabetização?!

— Isso mesmo.

— Bem, agora…
O que aumentar os índices de alfabetização tem a ver com derrubar um governo…? Acho que foi a mesma lógica de uma borboleta
causar um tornado com o bater das asas.

— Nesse caso, posso perguntar por que solicita que as pessoas cooperem com Orsted?

— Para que o mundo possa estar preparado para lutar contra o Rei Demônio Laplace quando ele ressuscitar em cerca de oitenta
anos.

O Papa nem piscou com a resposta, apenas assentiu compreensivamente.

— Entendo. Então você aproveitou Cliff para chegar até aqui e pedir minha cooperação, não?! “Se deseja que o Deus Dragão salve
suas forças, faça o que eu digo.” É isso?

— Não, isso não está correto.

Tive a sensação de que esse velho já havia entrado no modo de negociação. Bem, por mim tudo bem. Iríamos negociar
eventualmente, mas eu precisava deixar claro onde estava.

— O aliado que eu realmente quero é Cliff.

— Bem, então devo esperar que você esteja apoiando Cliff das sombras?

— Não… É verdade que essa era minha intenção a princípio, mas Cliff me disse que queria testar até onde sua própria força poderia
levá-lo; então decidi não fazê-lo. No mínimo, ficarei totalmente de fora até que ele estabeleça seu próprio poder dentro da igreja.

O Papa abriu um sorriso ao ouvir isso. Era a cara de um velho que acabara de saber que o neto tirou cem pontos em uma prova.

— Entendo, então Cliff realmente te disse isso…

— Sim. Então por favor, trate-me apenas como um humilde servo do Deus Dragão por hoje.

Disse a verdade a ele. Ele já havia me investigado e embora houvesse algumas lacunas em suas informações, conseguiu a essência.
Quem sabe o que mais ele desenterrou?! Então é melhor não mentir e ser pego. Talvez só os tolos prefiram a honestidade, mas é um
tipo agradável de tolo.
— Só tenho dois pedidos. Gostaria de ajuda com a criação de um bando de mercenários e permissão para vender as estatuetas
Superd.

O assunto com a Casa de Latria poderia esperar por enquanto. Isso era um assunto pessoal. De qualquer forma, ter algumas
conexões fortaleceria incidentalmente minha posição lá.

— Hmm…

O Papa olhou para mim com um sorriso sutilmente espalhado em seu rosto. Era como a face de um jogador de pôquer; podia ter um
sorriso, mas sua expressão não revelava nada.

— Você sabe que, uma vez estabelecidas as conexões humanas, elas nunca podem ser verdadeiramente cortadas; não importa o
quanto alguns tentem — afirmou o Papa com o seu sorriso constante.

Perguntei-me se isso era uma palavra de advertência. Talvez para mim, por fazer meu pedido como alguém não relacionado a Cliff;
ou talvez para Cliff, que não queria estar relacionado comigo para testar sua própria força.

— Então, tendo em vista sua conexão com Cliff… vou ajudá-lo com seu bando mercenário.

E assim, meu pedido foi atendido. Tinha minhas dúvidas sobre porquê ele parecia não pedir nada em troca, mas levei apenas um
momento para entender. A parte “tendo em vista sua conexão com Cliff” era o seu retorno. Eventualmente, uma vez que Cliff
crescesse o suficiente, eu seria um trunfo para ele e para os Papalistas. Para o Papa, esse era um investimento anjo

Investimento anjo: é um investimento pequeno que tem potencial de se tornar algo grande no longo prazo.

— No entanto, a permissão para as estatuetas Superd será difícil.

— Por quê?

— Tenho uma posição tanto como Papa, quanto como figura principal dos Integracionistas de Demônios, no entanto, os
cardenalistas, que defendem a expulsão de demônios, expandiram sua influência ultimamente. Atualmente, não tenho poder suficiente
para conceder permissão para vender essas estatuetas Superd por conta própria e como o próximo Papa certamente será escolhido
dentre os cardenalistas… Você entende, não?
O Papa então me deu uma olhada. Como se estivesse me dizendo implicitamente que eu precisava esmagar os Expulsionistas de
Demônios para conseguir o que queria.

Mas o que eu faria, agora? Não me opunha a ser um agente do Papa. Rejeitei a Casa Latria depois de uma briga, então já estava no
caminho certo para ser seu inimigo. Sinto muito, Therese, mas eu esmagaria os expulsionistas ou qualquer outra pessoa que cruzasse
meu caminho.

Espera aí. Isso não contaria como ajudar Cliff? Era uma área cinzenta. Cliff precisava de inimigos para forçá-lo a se superar, mas e
se aqueles também fossem meus inimigos? Devo me conter? Se eu me tornasse um trunfo para a Igreja Millis, isso não contaria como
uma conquista para Cliff? Isso seria certo? Hmm…

— Para ser claro… eu tenho seu apoio com o bando mercenário, correto?

— Sim.

— Então por hoje, ficarei feliz em aceitar seu acordo sobre o bando mercenário.

Todo o resto poderia esperar; não precisava ser resolvido em um dia. Além disso, vender as estatuetas Superd não fazia parte do
meu escopo nesta reunião para começar. Se tivesse o apoio do Papa para formar o bando mercenário, então era melhor sair enquanto
estava por cima.

— Entendo, embora seja uma pena.

O sorriso do Papa permaneceu firme ao concluir a reunião.

Cliff tinha outros negócios para resolver, então deixei a sede sozinho.

— Ufa…

Deixei escapar um grande suspiro no momento em que saí. Estava exausto… Primeiro a criança abençoada, depois o Papa. Uma
disputa contra duas pessoas excepcionais em um só dia. Ambos tinham algumas excentricidades selvagens e cada um pertencia a
facções opostas.
O Papa, um Integracionista de demônios, já a criança abençoada era protegida pelos cardenalistas, que pressionavam pela expulsão
dos demônios. Se me pedissem para escolher um lado, não havia dúvida de que me juntaria aos integracionistas; ao lado do Papa e
isso me colocaria contra os Cavaleiros do Templo, que estavam alinhados com os expulsionistas. Também nessas fileiras: a Casa
Latria e, por extensão, Therese.

Therese já havia salvado minha pele duas vezes. Tinha total desprezo pelo resto dos Latrias, mas não podia desconsiderar minha
dívida com ela. Além disso, a criança abençoada não parecia uma pessoa má. Acho que poderia contar aquela comitiva contra ela, mas
não irei. Seria sensato adiar a tomada de partido o máximo possível… E gostaria de ser o perfeito sábio que poderia fazer isso. Tanto
quanto para os meus planos e ideais.

De qualquer forma, combinar de me encontrar com a criança abençoada mais algumas vezes parecia uma boa ideia. Queria ter uma
ideia melhor de qual era a habilidade dela. Talvez ver se ela era uma apóstola do Deus-Homem… o que, para ser sincero, seria
impossível descobrir.

Hipoteticamente, se ela fosse, isso complicaria minha missão aqui de maneiras que não poderia me preparar ou prever. No Reino
Asura, o Deus-Homem não interferiu no meu trabalho montando o bando mercenário. Nesse caso, meu trabalho representava ou não
uma ameaça ao Deus-Homem? Se ele interviesse, pelo menos seria uma pista, mas eu não tinha como saber, e pensar demais só me
faria andar em círculos. Tinha de pensar que o que estava fazendo importava. Ele não havia interferido em meu trabalho anterior
contra ele, então agiria supondo que ele não iria interferir aqui. Reservaria minha busca por apóstolos para quando enfrentasse
interferências ou quando sentisse que realmente havia algo errado.

No momento, não faltavam jogadores suspeitos neste jogo. A Criança Abençoada, Claire, o Papa… mas me enrolar em nós
paranoicos já foi minha ruína no passado. Poderia evitar isso construindo rapidamente a filial do Bando Mercenário e estabelecendo o
contato com Orsted de uma vez.

Sim. Por ora, a reunião de hoje havia me conseguido o apoio do Papa. Esse foi meu ponto de partida. Buscaria por edifícios em
potencial para o Bando Mercenário e compraria um. Lá, eu montaria a placa de comunicação para contato e o círculo de teletransporte
de emergência. Depois de tudo isso, finalmente teria minha ligação de negócios com Orsted.

— Tudo bem. Primeira tarefa do dia: escolher um lugar.

Próximo passo definido! Eu poderia deixar Aisha lidar com os detalhes. Havia muitas questões a serem respondidas, como: em qual
distrito deveria ser nossa localização e com qual comerciante deveríamos fazer negócios. Conhecendo Aisha, sua mente já estava
trabalhando no problema. Foi um alívio ter uma parceira confiável.
O problema era Zenith. Se Aisha a deixasse para passear pela cidade, não teria ninguém cuidando dela. Pedir a Wendy para fazer
isso era uma opção… mas ei, isso realmente precisava ser uma decisão em grupo. Eu deveria ir para casa e discutir isso com os outros.

Peguei uma carruagem pela cidade e voltei para a residência de Cliff no Distrito Divino.

O sol estava se pondo. Estava ficando com fome e ansioso para jantar. A comida… Era tão bom ter ovos frescos aqui. Ovos
cozidos, fritos, omeletes… Também tínhamos pão, então provavelmente também poderia fazer costeletas de porco. Ah, a presença de
um único ovo abre as portas para novos mundos de delícias culinárias. Novos horizontes de alegria a explorar em cada refeição, a cada
ovo!

Graças a Deus eu trouxe Aisha para que alguém soubesse cozinhar um.

— Estou em caaaasaasa! E cara, estou com fome!

— O que quer dizer com ela ainda não voltou?!

No momento em que cheguei, ouvi Aisha gritando com fúria. Corri para dentro de casa para encontrar minha irmãzinha
encurralando Wendy.

— Por que a deixou sair de casa?

— M-mas, ele disse que estava tudo bem…

— Por que você acreditaria em algo que um estranho lhe disse?! Ouviu o que estávamos falando ontem à noite, não é?! Por que não
contaria a alguém sobre o que estava acontecendo?! O que te fez pensar que ela não poderia esperar até amanhã?! Se pudesse esperar
alguns minutos, eu teria voltado a tempo! Você também poderia ter perguntado ao meu irmão!

— Quero dizer, ouvi o que você falou, mas, bem, eu realmente não entendi e aquela pessoa disse que estava tudo bem…

— Isso é tudo que tem a dizer em sua defesa?! Estou te dizendo que não, não está tudo bem! Espere aí, não me diga, você veio para
nos sabotar?!
Aisha levantou o ombro e ergueu o punho, então Wendy se encolheu com medo.

Era raro ver Aisha ficar com raiva o suficiente para gritar. Isso foi o máximo que consegui pensar sobre a situação, antes de andar
atrás de minha irmã e segurar seu punho.

— Aisha, acalme-se um pouco.

— Cale a boca!

Ela me afastou com um tapa, mas pelo menos agora Aisha percebeu que eu estava lá.

— Ah, Irmão… me desculpe…

Aisha agarrou o braço com o qual me golpeou e baixou a cabeça.

— O que aconteceu?

Eu deveria começar pedindo os detalhes. Se houve uma briga, presumi que ambas estavam um pouco erradas, contudo, Aisha
manteve o rosto pálido abaixado. Ela não estava respondendo. Isso não era típico dela. Ela não tinha vergonha de compartilhar suas
opiniões.

— Hmm…

Aparentemente incapaz de suportar o silêncio, Wendy tentou preenchê-lo:

— Bem, esta tarde, uma pessoa chamada Geese veio… — Ela disse.

— Geese veio aqui?

— Ele disse que se sentia mal por Zenith, por ela estar presa dentro de casa depois de finalmente voltar para sua cidade natal, então
a levou para fora…

Então aqui está ao que Aisha estava reagindo.

— E eles não voltaram…


Todo o sangue foi drenado da minha cabeça num instante. Respirei fundo.

— Aisha, preciso que você explique tudo, devagar, desde o começo. Pode fazer isso por mim?

— Sim…

Aisha começou a falar.

Naquela tarde, Geese foi à casa de Cliff e se apresentou como amigo de Zenith vindo para dar uma olhada nela. Aisha não o viu
pessoalmente, mas depois de ouvir Wendy descrever sua aparência, maneirismos de fala, estatura, equipamento e o que dizia, parecia
bastante certa de que era Geese.

Aisha teve que perguntar o que havia acontecido e porquê ela não estava lá.

— Onde você estava, Aisha?

— Achei que precisaríamos de um monte de coisas para morar aqui, então fui fazer compras… Wendy não sabe ler, e
provavelmente não saberia do que precisávamos, então eu fui… me desculpe.

— Ah, não, tudo bem.

Aisha teve um lapso de julgamento e, durante esse lapso, algo que nunca poderíamos prever aconteceu. Essas coisas acontecem. As
pessoas se atrapalham. Está tudo bem. Geese conversou um pouco com Wendy e Zenith.

Então ele disse: “Eu me sinto mal por Zenith enfiada dentro de casa depois de finalmente voltar para sua cidade natal. Vou levá-la
para ver os pontos turísticos.”

E Wendy permitiu. Parte de mim estava tão estupefato com isso que queria agarrar minha cabeça e gritar. Ela estava lá quando
conversamos ontem à noite. Não tinha ouvido?!

Porém, não poderia colocar toda a culpa em Wendy. Ela não viu como os Latrias eram horríveis; só tinha conhecimento de segunda
mão. Fazia sentido que não entendesse que eles eram perigosos. Além disso, Geese tinha jeito com as palavras; se não tivesse nada
contra ele, poderia convencer qualquer um a fazer qualquer coisa. Eu também planejava mostrar a cidade a Zenith, então dificilmente
poderia culpar Wendy por baixar a guarda e pensar que talvez uma hora de passeio com um amigo fosse bom.
— Corri imediatamente para procurá-los, mas não consegui encontrar nada…

No momento em que Aisha voltou das compras, e ouviu sobre o que aconteceu, ela saiu pela porta e procurou em todos os lugares;
sem sucesso. Mesmo quando a tarde se transformou em crepúsculo, nem uma pista. Mesmo quando voltou para casa na vã esperança
de que tivessem voltado enquanto estava fora, não os encontrou lá. Sem nenhuma ideia do que fazer, Aisha descontou sua frustração
em Wendy… que foi o ponto em que cheguei.

— O que faremos, Irmão? Fui eu quem disse que estaríamos seguros aqui… A culpa é toda minha, não é?! O que faremos… O que
faremos?

Aisha estava perdendo o controle de uma forma que raramente via nela; estava quase em prantos. A primeira coisa a se fazer era
acalmá-la.

— Calma. É de Geese que estamos falando. Ele provavelmente apenas esqueceu o que prometeu e a levou por toda a cidade.

— Mas agora não temos nenhuma pista de onde está a Mãe Zenith!

— Olha, apenas se acalme.

Parte de mim também estava ficando ansioso, mas ela estava com Geese, ele podia ter as proezas de combate de um cachorrinho
molhado, mas era um cara perspicaz e confiável. De todas as pessoas que poderiam ter levado Zenith embora, me senti um pouco mais
à vontade tendo sido ele. Da mesma forma, era Geese. Ele provavelmente se distraiu, saiu atrás de algo bobo e depois perdeu a noção
do tempo. A qualquer momento, poderia entrar por aquela porta e dizer com uma risada: “Ah, desculpe, chefe, encontrei um velho
amigo e precisava falar com ele.”

— Por enquanto, vamos esperar um pouco mais para que voltem.

Essa foi minha decisão.

O tempo passou. O sol se pôs. Por fim, Cliff voltou do trabalho, exausto.

No entanto, sem sinais de Zenith e Geese.


Eu… não diria que esse tempo foi perdido. Nessas horas, Aisha e eu conseguimos nos acalmar. Eu acho.

— Sinto muito… Mas, por favor, não desconte na Wendy. Ela não queria fazer nada de mal, não acho…

Cliff deu uma bronca em Wendy, firme, mas justa, e garantiu que ela soubesse que ele ainda estava do lado dela. Ele provavelmente
também não previu que algo assim poderia acontecer. Originalmente a contratou para trabalhos domésticos leves. Tendo em vista que
ela atingiu sua idade sem conseguir um emprego ou uma família adotiva, Cliff devia saber que ela não seria a faca mais afiada na
gaveta; contudo, não era certo repreender alguém por suas deficiências. Não chore pelo leite derramado; em vez disso, limpe-o.

— Vou sair para procurar. Cliff, fique alerta para o caso de nos desencontrarmos.

— C-claro…

Já era hora do jantar quando resolvi sair em busca dela.

Talvez eu tenha demorado muito para decidir, mas se me permite dar uma desculpa, juro que teria me jogado porta afora num
instante se soubesse que Zenith estava sozinha, no entanto, ela foi com Geese.

Se a história de Wendy fosse verdadeira, Zenith ainda deveria estar com ele. O chimpanzé pode ser covarde demais para lidar com
uma luta, mas qualquer outro desafio que enfrentasse não seria problema para ele. Seja coletando informações, mapeando, fazendo
compras, cozinhando, fazendo manutenção ou até mesmo exames de saúde para os membros de seu grupo, ele era uma estrela em
geral; então, por alguma razão, tive a ideia de que Zenith ficaria bem.

Entretanto, quando pensei sobre isso, percebi que sua inutilidade na batalha era de fato uma falha fatal. Se tivesse que lutar, não
seria capaz de proteger Zenith. Geese desenvolveu um talento especial para evitar o perigo para compensar, mas algo ainda pode dar
muito errado. Zenith poderia se distanciar e pisar no pé de um velho mal encarado. Havia até mulheres que não hesitavam em dar um
soco só por olharem torto para elas.
E Geese era um demônio. O que a Casa Latria pensaria se encontrassem Geese e Zenith sozinhos? Diriam que eu não a deixei ficar
em sua própria casa, mas aqui estava ela, sozinha com um demônio. Eles podem decidir atacar e tomar Zenith de volta à força.

Espera! Talvez os Latrias estivessem por trás disso. Conhecendo seus recursos, o Geese que veio antes poderia ser um impostor!
Poderiam ter pego alguém com aparência, construção e maneirismos de fala semelhantes para então fazê-lo se passar por Geese para
convencer Wendy a deixar Zenith ir… Talvez, não que ele fosse fácil de imitar…

Por fim, talvez eu estivesse paranóico só por considerar isso. Também havia a possibilidade de Geese ser o discípulo do
Deus-Homem. Por que ele estava aqui quando odiava tanto o País Sagrado?

—…

Ajeitei meu manto, minha armadura mágica e saí de casa.

Aisha me seguiu como se fosse a coisa mais natural do mundo.

— Para onde vamos primeiro? Nos separamos?

Ela deve ter ficado ansiosa com o desaparecimento de Zenith. Se estivesse, era ainda mais vital que eu a mantivesse calma.

— Não, não posso arriscar que você seja sequestrada. Iremos juntos.

— O-ok. Entendi…

A respiração de Aisha falhou com a palavra “sequestrada”. Ela devia ter considerado a possibilidade, afinal, havia muitos
sequestradores neste mundo…

No entanto, não era tão provável. Talvez se estivesse cambaleando sozinha, mas ela estava com Geese. Dar uma surra em Geese
para fazer de Zenith uma escrava dava muito trabalho. Se estivesse no lugar deles, encontraria um alvo diferente e mais indefeso.

—…

Depois de alguns passos, parei de repente. Onde eu deveria olhar primeiro mesmo? Merda, estava andando em círculos! Acho que
não tinha me acalmado totalmente… As pessoas não se acalmavam apenas dizendo a si mesmas para se acalmarem. É preciso respirar
fundo.
— Huff… Ufa…

Havia alguém mais esperto do que eu ao meu lado. Eu tinha que falar com ela.

— Aisha… Onde você acha que Geese está?

— Hum… Talvez no Distrito dos Aventureiros?

— Por quê?

— Geese disse antes que não podia entrar no Distrito Divino e não acho que ele iria para o Distrito Residencial quando tantos
seguidores de Millis moram lá. Se for entre o Distrito dos Aventureiros e o Distrito do Comércio… Bem, Geese é um aventureiro,
então acho que há uma chance maior dele estar no Distrito dos Aventureiros.

— Tudo bem. Vamos apostar nisso.

Sabia que podia contar com Aisha, ela pensava rápido. Não tínhamos tempo a perder.

— Vamos nos apressar — disse.

— Ok… Ah, certo. Devemos usar um cavalo? Ainda temos um da carruagem, certo?

— Hmm?

Um cavalo… Eu ainda não conseguia montá-los. Quero dizer, eu sabia o básico. Tinha alguma prática e sabia como conduzir uma
carruagem, mas estava longe de ser habilidoso o suficiente para cavalgar onde quisesse em uma situação de emergência. Aisha, no
entanto, não tinha com o que se preocupar. Quando eu realmente precisava, podia me mover tão rápido quanto qualquer cavalo.

— Não precisamos de um.

— Hã?

Peguei Aisha como uma princesa em meus braços e reuni mana em minha armadura mágica. Pernas, luz verde. Todos os sistemas
funcionam. Pratiquei várias vezes a neutralização do impacto da aterrissagem.
— Aisha, segure-se firme.

— Hã…? Ah!

O corpo de Aisha ficou tenso enquanto ela se agarrava com força ao meu robe. Fiz questão de segurá-la para que ficasse fixa no
lugar.

— N-não! Não! Pareeeeee…!

Tenho certeza que ela disse algumas outras coisas, mas as ignorei. Zenith estava desaparecida. Isso, de todas as coisas, não era
coincidência. Talvez Geese tenha feito isso, ou talvez tenha sido obra dos Latrias. Talvez os Papalistas tivessem uma agenda obscura e
oculta, talvez tivéssemos nos envolvido nos desígnios da criança abençoada… Ou talvez isso fosse obra do Deus-Homem.

Encontrar a resposta não resolveria nada. A hesitação e o arrependimento também não.

Já havíamos deixado passar muito tempo, e entre o longo dia e meu estado mental, eu estava mal. Não tinha ideia de quem em
Millishion era aliado ou inimigo. Em uma luta contra o Deus-Homem, você nunca poderia saber de verdade.

Não estávamos repetindo o Reino de Shirone. Aprendi com meus erros.

Já me preparei para o que estava por vir e saltei para o céu noturno.

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