Circulo de Construcao de Paz No Brasil U
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movimento restaurativo
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CAPÍTULO 5
do norte global de raça, economia, cultura, etc., tendo como protagonistas das narrativas as
vozes historicamente silenciadas. Assim, sulear não é mera condição geográfica, mas leva
em consideração a posição dos sujeitos dentro de um sistema e contexto de marginalização
e opressão. (ADAMS, 2008; CAMPOS; 1991).
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No círculo de construção de paz em casos conflitivos, participam
os sujeitos envolvidos e seus respectivos apoiadores (se indicarem),
assistidos por facilitadores. Nesse caso, o processo circular é dividi-
do em 3 (três) etapas: pré-círculo (individual com cada participante
do círculo, podendo ser realizados quantos forem necessários), o cír-
culo (com a presença de todos os envolvidos) e o pós-círculo (com
a presença de todos, para monitorar o termo de consenso pactuado)
(PRANIS, 2010).
Conversar em formato circular é uma das formas mais antigas de
tomada de decisão e de consenso e, talvez, a primeira vez que o ser
humano tenha se juntado nesse formato foi quando “descobriu” o
fogo e se juntou com os seus semelhantes para se proteger do frio
e de predadores, bem como transformar seus alimentos (PRANIS,
2010; BALDWIN, 1998). Sentar em círculo transmite a sensação de
transparência, de liderança compartilhada, de equidade, posto que
não há lados, não há polarização. As decisões tomadas em círculo
são naturalmente intuitivas, uma vez que ancestral e emergem da
conversação de acordo com o fluir do círculo, como uma egrégora
(PRANIS, 2010; BALDWIN, 1998). O círculo é o jeito humano de
estar junto e de conhecer o outro (BALDWIN; LINNEA, 2010).
É importante lembrar dessa linhagem longa e amorosa, pois agora nos
sentamos diariamente em filas em salas de aula, auditórios, ônibus e
aviões, olhando para trás das cabeças uns dos outros. Ou enquanto nos
sentamos ao longo das bordas retas de mesas e escrivaninhas lutando
para encontrar uma maneira de se comunicar e estar uns aos outros.
Depois de tudo isso, de séculos de separação e isolamento, o círculo nos
acolhe de volta em uma forma onde podemos ouvir, ser ouvidos e ser
respeitados, onde podemos pensar e criar juntos. Círculo é o meio de nos
afastar da dramática e irritada forma de trocas públicas que agora não
são apenas comuns, mas aparentemente as únicas opções disponíveis
para o diálogo. Sentados juntos como iguais, desacelerou e manteve a
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forma, com base na familiaridade antiga - exatamente o que precisamos
neste momento! (WHEATLEY, 2010, p.9 - tradução nossa).
A responsabilidade do círculo é compartilhada, a liderança é ro-
tativa e a confiança é depositada juntamente com a construção de
valores e de propósitos para um futuro melhor (PRANIS, 2010).
Um círculo não é apenas uma reunião com as cadeiras reorganizadas.
Um círculo é uma maneira de fazer as coisas diferente do que estamos
acostumados. O círculo é um retorno a nossa original forma de
comunidade, bem como um salto em frente para criar uma nova forma
de comunidade (BALDWIN, 1994, p. 26, tradução nossa).
O facilitador de um círculo de construção de paz age com um
guardião, e é responsável pelo bem-estar das pessoas que participam,
da criação conjunta de um ambiente seguro de fala e de escuta e que
respeite o processo. Deverá, igualmente, atentar para a elaboração de
perguntas que possam despertar nos indivíduos o diálogo franco e
sincero, para o despertar do processo de responsabilização e de repa-
ração pelos danos causados - se for o caso (PRANIS, 2010; GRAF,
2019). Todavia, é importante reafirmar que por mais preparado que
o facilitador esteja, não existe um roteiro perfeito e uma segurança
plenamente garantida sobre o que pode emergir do círculo (GRAF,
2019). O facilitador não tem poder sobre o resultado do círculo. Mas
é importante que esteja bem com o não saber (PRANIS, 2016). Por
mais cauteloso que se queira ser, por mais atencioso e disponível que
se pareça estar, não se tem certeza de como será recebido. Assim,
a curiosidade e as perguntas são peças essenciais para atender as
situações quando, em algum momento, (res)surgirem polaridades e
desequilíbrios das relações de poder ou situações em que se possam
colocar algumas das pessoas em posição de vulnerabilidade. À vista
disso, questionar sobre o que está acontecendo e como as pessoas
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estão se sentindo é fundamental para o processo circular. A seguran-
ça e o bem-estar dos envolvidos deve ser prioridade (GRAF, 2019).
Percebemos que os círculos alcançam resultados mais positivos
quando realizado em ambientes onde as pessoas se sentem acolhidas
e confortáveis, para que possam expressar o seu melhor e sua ver-
dade, sem julgamentos. O círculo convida à contribuição e emerge
sentimentos e emoções que, muitas vezes, colaboram para a constru-
ção de uma solução para uma situação complexa. Nesse sentido, o
Poder Judiciário, ao adotar tal prática, oportuniza que os jurisdicio-
nados ressignifiquem a sua relação com o sistema e possam confiar
em métodos que os acolham como parte da construção da solução,
sem a imposição de uma decisão verticalizada que não considera as
circunstâncias intrínsecas de cada caso concreto, ao mesmo tempo
que se assegura a chancela do Estado.
O Poder Judiciário, apesar de não executar a justiça restaurativa
como alternativa ao sistema, abriu suas portas para esse diferente
formato de fazer justiça, no intuito de tentar cumprir com sua fun-
ção social e com a política comunitária de prestar serviços à comu-
nidade e de promover segurança social, além de gerar confiança no
sistema de decisões que se aproxime de um atendimento multiface-
tado, em parceria com a rede de proteção social e políticas públicas
de desenvolvimento e cuidado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, é evidente que a justiça restaurativa no Brasil,
sem prejuízo do reconhecimento das suas fontes e emergências plu-
rais, foi incorporada e institucionalizada pelo Poder Judiciário, com
iniciativas de projetos e de programas que incluem a comunidade e a
organização da sociedade civil9. A despeito da encampação do Poder
Judiciário, temos que a justiça restaurativa, desenvolvida na esfera
judiciária, tem dialogado com a comunidade e com a rede socioassis-
tencial, na medida em que os projetos atendem a sociedade e impac-
tam nas relações humanas, havendo diversas parcerias e pactos de
cooperação entre o judiciário e escolas, ONGS, institutos, fundações
e universidades, por exemplo.
Podemos atribuir diversos motivos para que a utilização do cír-
culo de construção de paz seja predominante como metodologia de
justiça restaurativa e tenha se solidificado no sistema judiciário: a) a
9.De acordo com o Mapeamento de Programas de Justiça Restaurativa no Brasil (CNJ)
há fortalecimento da rede de proteção e as instituições mais beneficiadas pelas práticas
restaurativas são: Escolas (61,4%), Rede Socioassistencial (47,7%), Universidades e
Faculdades (45,5%), Programas Socioeducativos (45,5%) e Coordenadorias da Mulher e
Serviços de apoio às vítimas de violência Doméstica (45,5%).
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simplicidade da técnica, b) a recorrente vinda de Kay Pranis ao Brasil
para promoção de cursos de capacitação de facilitadores e de ins-
trutores, c) a hegemonia teórica da tradução dos livros pela Editora
Palas Athena, d) a inexistência de obrigação de qualificação profis-
sional específica para se tornar facilitador, e) a participação da comu-
nidade no processo, f) a escolha dos agentes executores das práticas,
g) a identificação do círculo com a cosmovisão de mundo e de justiça
dos Tupis, etc. Todos os motivos se complementam e se atravessam
na medida em que convergem para a construção de uma nova cul-
tura jurídica, mais humanizada, mais democrática e mais acessível,
focada nas necessidades e na reparação dos danos.
Como seres humanos, o formato circular sempre esteve em nos-
sa memória e ancestralidade, pois sentar em círculo é a forma mais
extraordinária de conhecermos uns aos outros e nos expressarmos
com profundidade, sendo esse resgate uma busca para encontrar
uma forma de vivermos bem em conjunto, estando nas entranhas da
ancestralidade brasileira.
Christina Baldwin, em seu livro Calling the Circle – the first and fu-
ture culture10 (1998), conta como o fogo uniu e criou o senso de per-
tencimento, a essência da comunidade. Sentar em círculo, ao redor
daquilo que provia segurança, vida, luz, calor e alimento, era um sen-
timento instintivo e coerente àquele movimento. Colocar aquilo que
dá significado à existência do humano no centro, permitia reivindi-
car uma nova forma de se colocar no mundo. Isso fez sentido para
eles, assim como fez para nós, quando tivemos os primeiros contatos
com as práticas circulares no Brasil. Cada sujeito vive em uma trama
social, política, cultural e espiritual diferente, que forma o seu jeito
10.Chamando o círculo - a primeira e a futura cultura. (tradução nossa)
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de conviver com os demais. Cada um vive em um contexto de socie-
dade que molda seu comportamento (BALDWIN,1998), sendo isso
importante para identificar as necessidades coletivas de cada socie-
dade. A isso, Joaquín Herrera Flores (2009) denomina de impuro,
aquilo que é contaminado pelo contexto. Interpretar a realidade dos
sujeitos pela impureza, permite que possa se contaminar pela histó-
ria e pelas circunstâncias para o conhecer em sua complexidade, já
que está situado num espaço concreto, sendo possível ser descritível,
cognoscível e relatável (HERRERA FLORES, 2009), e é isso que o
círculo de construção de paz permite.
Concluímos que a escolha do círculo de construção de paz como
prática predominante dentro do Poder Judiciário, além das circuns-
tâncias elencadas acima, em verdade decorre da busca dos opera-
dores do direito em estar com os jurisdicionados, em um processo
que permita transformações sociais e estruturais, ao mesmo tempo
em que apresenta uma justiça acolhedora, inclusiva, democrática e
participativa, para que os sujeitos afetados estejam envolvidos no
processo de construção das respostas que buscam, assim como no
atendimento das suas necessidades.
Neste sentido, o círculo de construção de paz, encampado como
política judiciária nacional por meio do CNJ, tornou possível pensar
na construção de uma justiça, mas que deve tensionar com as pró-
prias estruturas fechadas e discriminatórias, ensejando uma mudança
cultural e estrutural a partir de movimentos realizados de dentro do
sistema, sendo assim, subversiva, que reverbera nas relações huma-
nas e com o meio ambiente, na busca de uma sociedade mais justa,
democrática, antirracista e atravessada pela cultura da paz.
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