Questão de Ética e Direitos Humanos

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ÉTICA E DIREITOS HUMANOS

Desidério Murcho1

Um dos papéis públicos da filosofia é esclarecer con- 1 – Professor do De-


partamento de Filo-
fusões comuns. Uma dessas confusões formula-se rapida- sofia da Universidade
mente na forma de uma contradição: ao mesmo tempo que Federal de Ouro Preto
é comum considerar-se que “os valores são relativos” (às
culturas, por exemplo, ou ao contexto histórico) é também
comum defender-se a universalidade dos direitos humanos;
mas se os direitos humanos são meramente relativos, não são
universais e, se não são universais, qualquer cultura, socieda-
de, comunidade ou pessoa nada está a fazer de errado se não
aceitar os direitos humanos. A limite, isso significaria que os
colonizadores que fundaram o Brasil com base na exploração
de índios e de negros, nada de errado moralmente teriam feito,
pois estariam apenas a obedecer aos seus valores, que contudo
não são agora os nossos. Como sair dessa contradição apa-
rente? Serão realmente os valores relativos? Serão os direitos
humanos universais? Esse é o tema destas páginas.
É preciso começar por dizer alguma coisa sobre a na-
tureza da filosofia, que muitas vezes não é entendida corre-
tamente. A filosofia dá origem a perplexidades porque nem é
literatura, nem é religião, nem é ciência. Não é ciência por-
que não é constituída por um conjunto enorme de resultados,
como acontece com a física ou a biologia ou a matemática
ou a lógica. Não é religião porque não se baseia na autori-
dade, na tradição ou em escritos considerados sagrados. E
não é literatura porque não visa efeitos a estéticos nem a
construção de ficções. Precisamente porque a filosofia não
é qualquer dessas coisas, é por vezes reduzida a qualquer
Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, v. 12, n. 19, p. 37-56, julho/dezembro 2010
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uma delas. Assim, faz-se, por vezes, da filosofia uma disci-


plina meramente técnica ou científica, com muita lógica ou
muitas questões exegéticas. Outras vezes, faz-se da filosofia
uma espécie de discurso religioso que visa dizer-nos coisas
reconfortantes e que nos dão esperança. Outras vezes ainda
se leem os filósofos como se fossem romancistas, construto-
res de ficções sem outra pretensão que não a de proporcionar
momentos agradáveis de leitura amena.
Não é assim que entendo a filosofia, e penso que ao
longo da história da filosofia não foi também assim que a
maior parte dos filósofos a entenderam. Entendo que a fi-
losofia se ocupa de problemas de real interesse cognitivo,
apesar de não serem problemas que tenham resolução cien-
tífica. Vejamos alguns desses problemas, em contraste com
problemas que não são filosóficos:
• Serão os valores relativos (à história, às sociedades,
aos indivíduos)?
• Será toda a realidade uma mera ilusão?
• Sabemos realmente o que pensamos que sabemos?
O primeiro desses problemas será abordado em se-
guida. Os outros são problemas respectivamente da meta-
física e da epistemologia. O que há de comum a todos é
que não se consegue ver que tipo de metodologia científica
se poderia usar para tentar responder-lhes. Compare-se com
três problemas sutilmente diferentes:
• Diferentes pessoas, em diferentes momentos da his-
tória e em diferentes sociedades, têm valores diferentes?
• Algum filósofo defende que toda a realidade é uma
mera ilusão?
• Como explicar os processos cognitivos que ocorrem
no cérebro de uma pessoa quando ela conhece algo?
Nenhum desses problemas é filosófico, uma vez que
só empiricamente podem ser adequadamente estudados de
maneira adequada. No primeiro caso, trata-se de um pro-

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blema sociológico e antropológico, e só pode ser adequa-


damente estudado fazendo-se investigação empírica, típica
em sociologia — inquéritos, estatísticas, etc. No segundo
caso, trata-se de algo que só se pode responder recorrendo-
se aos métodos empíricos da história da filosofia — leitura
e interpretação de textos. E o terceiro problema só pode ser
adequadamente estudado recorrendo aos métodos empíricos
da psicologia cognitiva.
Os problemas filosóficos têm assim duas caracterís-
ticas curiosas:
1) Não se consegue ver como poderão ser resolvidos
recorrendo-se às metodologias das ciências empíricas, como
a sociologia ou a física, nem formais, como a lógica ou a
matemática;
2) Apesar disso, os problemas da filosofia não pare-
cem menos reais, nem parecem meras confusões ou ilusões.
A filosofia é, assim, uma disciplina em que nos dedi-
camos ao estudo de problemas em aberto, que ninguém sabe
como se resolvem. A tentação natural e de senso comum é a
de se desistir de buscar resolvê-los, por se pensar que só vale
a pena enfrentar problemas quando já temos metodologias
para os resolver. Deve-se resistir a essa tentação, entre ou-
tras razões, porque: 1) saber enfrentar problemas em aberto
é crucial para uma democracia saudável e 2) pode-se saber
muito sobre um problema e muito ganhar em compreensão,
apesar de não sabermos resolvê-lo.
Vejamos o primeiro aspecto. Os problemas sociais,
econômicos e políticos que enfrentamos nas nossas socieda-
des são insuscetíveis de solução científica. Certamente que
as ciências — como a medicina ou a economia — muito nos
ajudam a resolver alguns dos problemas das nossas socieda-
des. Mas não nos dão respostas prontas, que possamos apli-
car cegamente. Para resolver os problemas das populações
precisamos de discernimento; precisamos tomar decisões
sem garantias científicas de que estamos a fazer o melhor.
Isso significa que precisamos saber deliberar e discernir

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quando não há soluções científicas para os nossos proble-


mas. Por exemplo, a engenharia diz-nos exatamente como
podemos fazer uma ponte, de modo a suportar o peso que
queremos que suporte; mas nenhuma ciência nos diz se é
melhor fazer uma ponte ou um hospital ou uma escola; se
é melhor tomar esta ou aquela decisão. Precisamos, pois,
saber pensar claramente e com discernimento quando as me-
ras receitas científicas e matemáticas não se aplicam. Uma
formação adequada em filosofia pode ajudar-nos a fazer
isso melhor, precisamente porque em filosofia estudamos
problemas que ninguém sabe resolver – e tentamos resolvê-
los, apesar disso. Quanto ao segundo aspecto, pode-se saber
muito sobre um dado problema, sem saber resolvê-lo, por-
que na tentativa de o resolver esclarecemos confusões, ve-
mos que vias estão fechadas e que alternativas existem real-
mente. Muitas ideias que parecem óbvias quando não temos
formação filosófica revelam-se confusões insustentáveis ou,
pior, preconceitos interesseiros disfarçados de concepções
cuidadosamente pensadas. Ao longo da história da humani-
dade, alguns dos maiores terrores basearam-se precisamen-
te em preconceitos interesseiros em que ninguém poderia
genuinamente acreditar se pensasse seriamente no assunto,
mas em que era muito vantajoso acreditar. Por exemplo, du-
vido que os escravagistas europeus do século XV pudessem
acreditar, em boa-fé, que os negros ou os índios não tinham
alma, ou que os alemães pudessem realmente acreditar que
os judeus eram sub-humanos; mas em ambos os casos essas
ideias prevaleceram porque era vantajoso acreditar nelas e
porque ninguém as analisava cuidadosamente para ver se
eram realmente sustentáveis. A filosofia, mesmo não apre-
sentando resultados aplicáveis para a melhoria da sociedade,
como acontece com a engenharia ou a medicina, pode mes-
mo assim ter um papel público fundamental: o de pôr em
causa com rigor os preconceitos do nosso tempo, ensinando-
nos a pensar cuidadosamente.
Comecei com esses esclarecimentos porque algumas
pessoas encaram a filosofia não como uma atividade prima-

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riamente cognitiva e crítica, mas como um discurso emo-


cionalmente reconfortante, que serve para dar um ar de
fundamentação acadêmica às ideias que já preferimos. O
que farei, ao invés, é: 1) mostrar que o relativismo ético,
muito comum hoje em dia, é incompatível com a aceita-
ção da universalidade dos direitos humanos, 2) argumen-
tar que a ideia de que os valores são relativos se baseia
em maus argumentos e confusões e 3) mostrar como se
pode ter uma concepção minimalista da ética, que evite
as confusões atrás detectadas.
A ética é uma disciplina filosófica que estuda três fa-
mílias de problemas, dividindo-se por isso em três áreas:
1) A metaética estuda problemas relacionados com
a natureza da própria ética, como a questão de se saber se
os valores éticos são relativos ou não – tema que aborda-
remos em seguida;
2) A ética normativa estuda o problema de se saber o
que é o bem último, isto é, o bem que não é meramente ins-
trumental para outros bens, e o problema de se saber o que
faz uma ação ser boa – o deontologismo, o consequencia-
lismo, a ética das virtudes e o contratualismo são as quatro
grandes famílias de teorias éticas normativas;
3) Finalmente, a ética aplicada ou prática estuda
problemas como a permissibilidade do aborto, a relevância
moral dos animais inumanos, a obrigatoriedade de ajudar as
populações mais pobres ou a moralidade da guerra.
Alguns autores fazem uma distinção confusa entre
ética e moral, que tem raiz em Hegel, mas que nada esclare-
ce e só confunde. Usarei os termos “ética” e “moral” como
sinônimos, até porque o segundo tem origem num termo la-
tino que é a tradução do termo grego que é a origem do pri-
meiro. A ética não é um mero conjunto mais ou menos arbi-
trário de códigos de conduta; entre outras coisas, é o estudo
cuidadoso das razões a favor ou contra a nossa conduta. Isso
significa que em ética se dá muita importância à argumenta-

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ção: queremos saber que razões há para agir ou não agir de


determinada maneira, por exemplo.
O relativismo cultural, em ética, distingue-se da mera
diversidade cultural. A diversidade cultural é apenas a exis-
tência de diversas culturas, eventualmente com diferentes
códigos de comportamento. O relativismo cultural é uma
tese ética: um tipo particular de relativismo moral. O rela-
tivismo moral é qualquer posição que defenda que as ações
são corretas ou incorretas, e que os estados de coisas são
bons ou maus, relativa e não absolutamente. Relativamen-
te a quê? Depende do tipo de relativismo moral. Quando
se defende que são relativos ao tempo histórico, trata-se de
relativismo histórico; quando se defende que são relativos
a cada pessoa em particular, trata-se de subjetivismo; quan-
do se defende que são relativos a culturas ou mentalidades,
trata-se de relativismo cultural. Esses são três tipos de relati-
vismo moral, e podem ser combinados entre si.
Do ponto de vista do relativismo cultural não há dife-
rença entre uma população considerar que um certo compor-
tamento é moral e esse comportamento ser realmente moral.
Por exemplo, se numa cultura se considerar que é moral
excluir as mulheres ou os negros da vida política, então é
realmente moral fazer tal coisa. Dado que no século XIX se
considerava isso mesmo na Europa e noutros países, então
era realmente moral fazê-lo.
O relativismo cultural opõe-se ao irrelativismo. Não
uso a palavra “absolutismo” porque ela dá origem a duas
ilusões. A primeira é dar a impressão de que quem se opõe
ao relativismo cultural está obrigado a defender que todos
os valores são absolutos, o que é falso. Compare-se com al-
guém que se opõe à ideia de que todos os homens são lou-
ros; essa pessoa não está obrigada a defender que nenhum
homem é louro, mas apenas que alguns homens não são lou-
ros. O mesmo acontece com o relativismo cultural: dado que
quem defende essa ideia aceita que todos os valores são rela-
tivos à cultura, quem se opõe a essa tese só tem de defender

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que alguns valores não são relativos à cultura. Não tem por
isso de defender que nenhum valor é relativo à cultura, como
a palavra “absolutismo” dá a entender.
A segunda ilusão é confundir o relativismo moral
com o contextualismo moral. A negação do relativismo cul-
tural é compatível com a aceitação do contextualismo moral.
Compare-se com alguém que se opõe à ideia de que as ver-
dades são relativas; essa pessoa nega que uma mesma ver-
dade, como “Hoje é terça-feira”, possa ser falsa só porque
uma dada cultura ou um conjunto de pessoas consideram que
é falsa. Mas essa rejeição é compatível com a aceitação de que
a frase “Hoje é terça-feira”, proferida amanhã, é falsa, apesar
de ser verdadeira hoje — mas isso não é relativismo, é ape-
nas atenção ao contexto. Em diferentes contextos, a mesma
frase exprime diferentes ideias, que poderão ser verdadeiras
ou falsas em função do contexto. O que opõe o relativista ao
irrelativista quanto à verdade é o primeiro considerar que a
verdade é sempre relativa ao que as pessoas consideram, ao
passo que o segundo afirma que isso nem sempre acontece.
Contudo, aceitar que as frases são relativas aos contextos em
que são proferidas não é uma forma de relativismo, mas sim
de contextualismo — e é inócuo. Afinal, é evidente que, entre
outras razões, é porque a neve é branca que a frase “A neve é
branca” é verdadeira. Contextualismo não é relativismo.
O mesmo acontece no caso da ética. Quem se opõe ao
relativismo moral opõe-se à ideia de que uma ação seja cor-
reta ou incorreta em função do que as pessoas de uma dada
cultura ou tempo histórico consideram. Quem se opõe ao re-
lativismo moral considera que as ações nem sempre são cor-
retas ou incorretas em função do que as pessoas consideram,
e portanto que a maior parte das pessoas de uma dada cultu-
ra pode considerar que, por exemplo, excluir as mulheres e
negros seja moralmente correto, apesar de na realidade isso
não ser moralmente correto. Essa ideia, contudo, é compatí-
vel com o contextualismo moral, que é a ideia banal de que
as ações de um certo tipo são corretas em certas circunstân-

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cias e incorretas noutras. Por exemplo, numa circunstância


em que uma pessoa não vê que está prestes a ser atropelada,
pode ser moralmente correto empurrá-la violentamente para
lhe salvar a vida; mas, noutra circunstância, pode ser moral-
mente incorreto empurrá-la violentamente. Outro exemplo:
em certas circunstâncias é permissível retirar a liberdade e
o direito de voto a uma pessoa, nomeadamente se cometeu
um crime de um dado tipo; mas noutras circunstâncias não é
permissível fazer isso a essa pessoa.
Assim, o relativismo cultural é a ideia de que todas
ações são corretas ou incorretas consoante são consideradas
corretas ou incorretas numa dada cultura. A negação disso é
a ideia de que nem todas as acções são correctas ou incorrec-
tas em função do que as pessoas pensam. O relativista nunca
vê diferença entre considerar-se numa dada cultura que algo
é moralmente correto e algo ser moralmente correto, ao pas-
so que o seu opositor defende que pelo menos em alguns
casos existe tal diferença.
O relativista moral tem de defender que a Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos, aprovada pelas Na-
ções Unidas no dia 10 de dezembro de 1948, não exprime
princípios éticos universais em qualquer sentido robusto do
termo. Apesar de essa declaração ter sido aprovada por una-
nimidade nas Nações Unidas (com a abstenção de alguns
países, como a União Soviética, a Polônia e a África do Sul),
o relativista cultural terá de defender que a violação de qual-
quer dos direitos nela consagrados é eticamente permissí-
vel, desde que seja permissível numa dada cultura. Assim,
se numa dada cultura se considera que é correto discriminar
as pessoas com base na origem étnica ou no sexo, violando
o art. 2º da Declaração, o relativista tem de aceitar que nessa
cultura é correto fazer tal coisa e que a Declaração se limita
a exprimir uma convicção diferente.
Muitas pessoas que aceitam o relativismo cultural
rejeitam a ideia de que é eticamente permissível violar
qualquer um dos direitos humanos consagrados na De-

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claração. Mas essas duas ideias são incompatíveis. O re-


lativismo cultural é incompatível com a ideia de direitos
humanos universais.
Que razões haverá para aceitar o relativismo cultural?
Uma primeira razão é pura confusão. Consiste em confun-
dir o relativismo cultural com o respeito pela diversidade
cultural. Muitas pessoas defendem que devemos respeitar as
culturas alheias, e consideram que no passado os europeus
e outros povos cometeram o erro moral de não respeitar as
culturas alheias, impondo à força os seus padrões e classi-
ficando as culturas alheias como selvagens ou primitivas
ou incivilizadas. E essas pessoas pensam que para defender
esse respeito pelas culturas alheias temos de defender o rela-
tivismo cultural — mas isso é uma confusão.
Em primeiro lugar, a ideia é incoerente, porque defen-
de um valor ético universal (o respeito pelas culturas alheias)
com base na premissa de que todos os valores éticos são re-
lativos à cultura. Contudo, se todos os valores éticos fossem
relativos à cultura, o valor do respeito pelas culturas alheias
só poderia ser um valor relativo a certas culturas, mas não a
outras. Nomeadamente, não era um valor na cultura europeia
do século XVI, e portanto os europeus nada fizeram de moral-
mente errado ao não respeitar as culturas alheias.
Em segundo lugar, é simplista: não distingue o que
deve ser cuidadosamente distinguido. Há uma grande di-
ferença entre respeitar costumes que não têm relevância
ética — como as cerimônias de casamento, a nudez ou os
comportamentos sexuais — e respeitar costumes que têm
relevância ética — como a escravatura, a discriminação das
mulheres ou a violação de crianças. O respeito pelas culturas
alheias tem o mesmo gênero de limite que tem o respeito
pelos comportamentos alheios: é defensável respeitar todos
os comportamentos e estilos de vida alheios desde que não
prejudiquem injustamente outras pessoas.
Em terceiro lugar, defender a tolerância de culturas
alheias com base no relativismo cultural denuncia uma enor-

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me incompreensão do conceito de tolerância. Uma pessoa


não pode exercer qualquer tolerância quanto a um estilo de
vida alheio se não puder condenar esse estilo de vida. Se
não podemos condenar um dado estilo de vida, não pode-
mos tolerá-lo — aceitamo-lo como bom ou indiferente. A
tolerância consiste em defender que um dado estilo de vida
é condenável, por ser tolo ou por outra razão qualquer, mas
que as pessoas têm o direito a viver desse modo desde que
não prejudiquem ninguém. Assim, a tolerância cultural con-
siste em considerar que o hábito europeu de só as mulheres
usarem saias é uma tolice, ao mesmo tempo que se tolera
esse hábito. Se começarmos por considerar que esse hábito
não é condenável, nada teremos para tolerar.
Assim, uma das motivações do relativismo cultural é
pura confusão. Essa motivação é a tolerância cultural. Mas
não só a tolerância cultural não resulta do relativismo cultu-
ral, como é na verdade incompatível com ele.
Vejamos agora uma segunda razão para aceitar o re-
lativismo cultural. Nesse caso, o argumento de algum modo
aludido intuitivamente é o seguinte:
O que numa comunidade se considera moralmente
correto, noutra é visto como moralmente incorreto.
Logo, não há padrões universais do correto e do in-
correto, e a ética é relativa à cultura.
Esse argumento ganhou força na Europa quando as
pessoas se viram confrontadas com códigos de comporta-
mento muito diferentes dos seus. A nudez e certos comporta-
mentos sexuais, por exemplo, eram vistos como inaceitáveis
pelos europeus, profundamente influenciados pelos códigos
de conduta do cristianismo. Eis que se descobre que partes
substanciais da população humana nunca tinham ouvido fa-
lar do deus cristão e não tinham o mesmo gênero de atitu-
de relativamente à nudez nem ao comportamento sexual. A
primeira reação dos europeus foi condenar o modo de vida
considerado imoral e selvagem; mas mesmo naquela altura
muitos críticos europeus perguntavam: “Se tais sociedades

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consideradas primitivas precisam ser civilizadas pelos eu-


ropeus, quem irá civilizar a civilização europeia, na qual há
tantas iniquidades?” Assim, a primeira reação de rejeição
dos costumes alheios foi dando lugar a uma reação diferente:
diferentes povos têm diferentes códigos de comportamento,
e só um certo tipo de ignorância ou soberba poderá fazer
alguém pensar que o código de comportamento da sua so-
ciedade ou comunidade é correto, todos os outros incorre-
tos. Essa posição é então confundida com a tese relativista,
a ponto de parecer que quem hoje rejeita o relativismo é por
ignorância ou soberba. Compare-se, contudo, as duas teses:
a) Tese da diversidade cultural: diferentes culturas
têm diferentes códigos de comportamento.
b) Tese relativista: não há padrões universais do cor-
reto e do incorreto, e a ética é relativa à cultura.
As duas ideias são muito diferentes. A primeira diz-nos
algo que podemos verificar empiricamente, algo que pode ser
estudado por disciplinas como a história, a antropologia ou a
sociologia. A tese da diversidade cultural é empírica; diz respei-
to ao que as pessoas fazem ou pensam em diferentes culturas.
A segunda ideia é muito diferente. Não nos diz apenas
que diferentes pessoas em diferentes culturas consideram
que diferentes comportamentos são corretos ou incorretos.
Diz-nos que não há padrões universais do correto e do incor-
reto. Essa afirmação pode parecer mais ou menos igual à pri-
meira porque pode ser entendida apenas empiricamente, da
seguinte maneira: se fizermos uma lista de todos os padrões
de comportamento das diferentes sociedades humanas, não
encontraremos um denominador comum, não encontrare-
mos padrões iguais em todas as sociedades humanas. Mas se
essa ideia for entendida dessa maneira, é simplesmente falsa.
Em nenhuma sociedade humana é moralmente permissível
torturar crianças por prazer. Em quase todas as sociedades
humanas já se torturaram crianças por prazer, mas não como
norma de comportamento, comumente aceita, e sim como
um desvio comportamental fortemente condenado.

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De modo que, se entendermos empiricamente a ideia


de que não há padrões universais de comportamento, essa
ideia é falsa. Alguns comportamentos são condenados numa
sociedade e não o são noutra, mas isso não acontece com to-
dos os comportamentos. Essa ideia, contudo, pode ser enten-
dida não como uma tese empírica mas antes como uma tese
filosófica sobre a impossibilidade de se justificarem padrões
universais de comportamento, ainda que vários comporta-
mentos sejam por acaso condenados em todas as sociedades.
Essa ideia é muito mais forte e é isso que constitui o relativis-
mo cultural em ética. A ideia é a seguinte: mesmo que alguns
comportamentos sejam condenados em todas as sociedades,
isso é irrelevante; o que é relevante é que muitos comporta-
mentos condenados numa sociedade não o são noutra. E isso
é relevante porque mostra que não pode haver justificação
para se condenar ou não um dado comportamento; os com-
portamentos são condenados ou não por motivos históricos,
culturais, eventualmente até práticos, mas não têm realmente
justificação, em qualquer acepção robusta do termo.
Chegamos assim ao que torna a tese do relativismo
cultural tão atraente. O que a torna atraente é a perplexida-
de perante o que poderia justificar as nossas escolhas éticas;
perante essa perplexidade, declara-se então que as escolhas
éticas resultam do contexto cultural, ou de outro, não poden-
do resultar de qualquer tipo de deliberação cuidadosa.
Se essa for a motivação fundamental do relativismo
cultural, é irrelevante demonstrar-se cabalmente a invali-
dade do argumento acima apresentado a favor dessa tese.
O argumento, recorde-se, parte da ideia de que diferentes
comunidades ou culturas consideram corretos diferentes
comportamentos, e conclui que não há padrões universais
do correto e do incorreto. Refletindo um pouco, é óbvio que
o argumento é inválido. Afinal, do fato de várias comunida-
des ou culturas ao longo da história considerarem corretas
diferentes afirmações sobre a Terra não se pode concluir que
não há afirmações universalmente verdadeiras ou falsas so-
bre a Terra. A mera discordância e diversidade de opiniões

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quanto a um assunto não permite concluir que todas as opi-


niões sobre esse assunto são “igualmente verdadeiras”. Ape-
sar de ser verdade que muitas pessoas em muitas culturas
pensaram que a Terra estava imóvel no centro do universo,
ao passo que outras pessoas noutras culturas pensam que a
Terra não está imóvel no centro do universo, dessa discor-
dância de opiniões não se segue que a posição e movimento
da Terra é relativa às culturas — ou seja, não se segue que
a Terra ora se move ora não se move consoante as pessoas
acreditam ou não nisso. Ou seja, da discordância e diversi-
dade de opiniões sobre o movimento da Terra não se segue o
relativismo sobre o seu movimento. Assim, da discordância
e diversidade de opiniões éticas entre culturas não se segue
também o relativismo cultural.
Esta refutação é sólida. O argumento original a favor
do relativismo cultural está claramente errado. Mas, se nos
limitarmos a refutar o argumento desse modo, não estare-
mos a responder à sua motivação, que é presumivelmente
o factualismo (que por sua vez é uma versão de cientismo).
Perante a refutação apresentada, a resposta previsível de
quem defende o relativismo cultural é que os valores éticos
são coisas muito diferentes dos fatos sobre o movimento e a
posição do planeta Terra; esses fatos são o que são, indepen-
dentemente do que as pessoas pensam acerca deles; mas os
valores são muito diferentes dos fatos e não podem ser es-
tabelecidos objetivamente ou cientificamente; por isso, são
meras expressões das culturas, da história, etc.
Essa é que me parece a razão central a favor do relati-
vismo cultural. As diferenças culturais não desempenham o
papel de premissa de um argumento obviamente errado, mas
apenas de confirmação do que é tomado como uma evidên-
cia. E o que parece evidente é que os valores não são fatos
e só os fatos podem ser objetivamente estabelecidos. Mas o
que quer isso dizer?
A ideia fundamental é uma certa concepção de justi-
ficação. A justificação é vista de um modo algo mecânico:

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é uma questão de se espelharem fatos. Se não há fatos que


possam ser espelhados, nenhuma justificação adequada pode
existir — e ficamos entregues à mera perspectiva, relativa
às arbitrariedades históricas, culturais e até psicológicas. O
problema é que essa concepção de justificação é incoerente,
porque se baseia numa ideia que, segundo os seus próprios
padrões, não é justificável.
A ideia é que só uma ideia empiricamente verificá-
vel – pela observação ou experimentação científica – pode
ser adequadamente justificável. Mas o que justificará essa
mesma ideia? É por isso que essa ideia é incoerente; segun-
do os seus próprios critérios, essa ideia só seria justificável
se houvesse maneira de a verificar pela observação ou pela
experimentação científica. Mas não há qualquer maneira de
verificar-la pela observação ou pela experimentação cientí-
fica – trata-se de uma ideia tipicamente filosófica; não se vê
como poderíamos verificá-la empiricamente. Logo, a ideia é
incoerente, porque, se for realmente verdadeira, não temos
qualquer justificação para pensar que é verdadeira; só pode-
ríamos ter justificação para pensar que é verdadeira se fosse
falsa, isto é, se nem toda a justificação for de caráter empíri-
co e verificacionista.
O que acontece no caso do relativismo cultural é mui-
to comum: defende-se uma ideia com base num princípio fi-
losófico que parece óbvio mas que na realidade é incoerente.
O factualismo e o verificacionismo exercem uma
forte atração; parecem critérios últimos de justificação, e
levam-nos a pensar que onde não há fatos nem verificação
possível de fatos, não pode haver justificação. Mas essa ideia
só parece plausível à primeira vista. Mal a vemos com algum
cuidado, desfaz-se em fumo. Isso não é dizer que os fatos e a
verificação deles não desempenham um papel importante na
justificação; sem dúvida que sim. Se eu disser que há cisnes
pretos na Austrália e outra pessoa insistir que não, o melhor
a fazer é mesmo ir lá ver se há ou não. Em casos como esses,
a verificação de fatos aproxima-se da justificação última. Na

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verdade, a verificação de fatos nunca é a justificação últi-


ma, pois precisamos aceitar muitas outras ideias e princípios
para que possamos interpretar as nossas observações de um
certo modo em vez de outro. Mas mesmo assim é verda-
de que a verificação de fatos, num certo contexto de justi-
ficação, é muitas vezes o tira-teimas crucial. Daí ser natural
pensar-se que a verificação de fatos é o tira-teimas crucial
em todos os contextos.
Mas pensar isso é incoerente – pelas razões que vi-
mos, e também porque em matemática ou lógica a verifi-
cação de fatos não desempenha qualquer papel justificati-
vo, ou pelo menos não desempenha um papel justificativo
primário. Os lógicos e matemáticos não andam de micros-
cópios ou telescópios em punho verificando fatos. Nem os
filósofos, a propósito.
O que torna o relativismo cultural tão atraente é pre-
cisamente a ausência de fatos éticos que possamos verificar.
Não é possível verificar empiricamente se torturar crianças
por prazer é impermissível. Portanto, se toda a justificação
for empírica e factual, não há justificação para a nossa ideia
de que torturar crianças por prazer é impermissível. Por mais
que observemos crianças a serem torturadas, nunca conse-
guiremos observar o fato de isso ser impermissível. Apenas
observamos as crianças a sofrer, nada mais.
Uma vez que é incoerente pensar que toda a justifi-
cação é empírica e factual, que outros tipos de justificação
teremos de admitir como razoáveis? A resposta é: a argu-
mentação. E na argumentação não há garantias: um argu-
mento pode parecer bom apesar de ser mau; pode parecer
válido apesar de ser inválido; pode parecer que parte de
bases sólidas apesar de partir de falsidades. O que isso
significa, na verdade, é que não há justificação última; há
apenas processos de justificação continuamente abertos
à refutação, à objeção, ao contra-argumento. Aplicando
isto à ética, o crucial não é procurar fatos éticos e, na
sua ausência, concluir que a ética é relativa à cultura. O

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Cadernos da Escola do Legislativo

crucial é procurar justificações, que nesse caso não po-


derão ser factuais – ainda que dependam crucialmente
de fatos, como veremos.
E o que são justificações? Não são meros motivos,
nem meras motivações interesseiras. Uma justificação é um
argumento ou plêiade de argumentos, e para que esses ar-
gumentos sejam bons têm de ser cuidadosamente pensados
e têm de estar continuamente abertos à discussão livre —
porque nos enganamos muitas vezes e tomamos como bom
um argumento que afinal é mau. Justificar ideias exige pro-
bidade intelectual e a aceitação de que as nossas ideias mais
queridas e confortáveis possam estar erradas. Na verdade,
a justificação livre e pública de ideias é um dos fundamen-
tos da democracia e é uma pena que o factualismo faça as
pessoas pensar que a discussão pública é apenas um jogo
de interesses e uma farsa intelectual. Claro que a discussão
pública pode ser mal conduzida e é muitas vezes mal con-
duzida. Mas dadas as nossas limitações cognitivas — dado
o fato óbvio de não sermos oniscientes – a única coisa ra-
zoável a se fazer é discutir todas as nossas ideias, aberta e
livremente, para descobrimos quais delas são mais plausí-
veis. E isso tanto se aplica à ética quanto à matemática ou à
física. Em nenhum desses casos são os fatos que dão obje-
tividade aos nossos juízos. A objetividade dos nossos juízos
resulta da discussão aberta e livre de acordo com preceitos
de probidade intelectual.
Assim, a procura de justificações em ética não é a
procura de fatos que justifiquem automaticamente os nos-
sos juízos éticos. A justificação é muito mais complexa do
que isso. No entanto, isso não significa que a justificação
em ética deva desprezar os fatos. Por exemplo, um fato cru-
cial quando se tortura crianças é que as crianças sofrem e
querem escapar desse sofrimento. Esse fato é crucial porque
exige uma justificação para não atender ao seu sofrimento
nem à sua preferência. Se alguém tortura uma criança por
prazer, deve presumir que há algo que torna as preferências
da criança menos importantes do que as suas preferências.

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ÉTICA E DIREITOS HUMANOS

Assim, é algo irônico que o factualismo moral procu-


re fatos morais, ao mesmo tempo que ignora fatos cruciais
para os nossos juízos morais. O fato de as crianças terem
preferências exige-nos uma justificação para não atender a
tais preferências, porque passamos a vida a atender às nossas
próprias preferências. A menos que haja um qualquer argu-
mento que mostre que as minhas preferências são sempre
mais importantes do que as de qualquer outra pessoa, a mi-
nha desconsideração pelas preferências dos outros não tem
qualquer justificação. E, claro, não há qualquer bom argu-
mento que mostre que as minhas preferências são sempre
mais importantes do que as das outras pessoas.
Há maneiras de se continuar a defender o egoísmo
contra esse esboço de argumento. Eu poderia dizer que as
minhas preferências só são mais importantes para mim, ao
mesmo tempo que reconheço que as preferências dos outros
são mais importantes para eles. E poderia acrescentar que
cada qual deve agir de acordo com as suas preferências e
não de acordo com as preferências dos outros. Esse tipo de
argumento parece padecer de uma confusão crucial, contu-
do. O que está em causa é saber se as únicas preferências a
que devo atender são as minhas preferências, dado eu reco-
nhecer que os outros também têm preferências. Responder
que devo atender apenas às minhas preferências porque são
as mais importantes para mim, não é ainda responder coisa
alguma, pois o que queremos saber não é se as minhas pre-
ferências são as mais importantes para mim mas se devo
atender apenas às preferências que são mais importantes
para mim. Responder que só tenho razões para agir quando
tenho motivações internas para agir é confundir o que quero
fazer com o que devo fazer. Claro que o que quero fazer é o
que tenho motivação interna para fazer. Mas perguntar o que
devo fazer é fazer outro tipo de pergunta. É perguntar o que
tenho justificação para fazer. Ora, se não tenho justificação
para agir segundo as preferências dos outros, por não serem
as minhas preferências, também não tenho justificação para
agir segundo as minhas preferências, só por serem minhas.

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Cadernos da Escola do Legislativo

Não vou continuar esse debate filosófico, que apre-


sentei aqui só a título exemplificativo: rapidamente se vê
que, devidamente compreendido, o debate ético não é fac-
tual, nem diz respeito à verificação de fatos. Diz respeito,
antes, à argumentação, à apresentação de razões, cuidadosa-
mente pensadas e pesadas. Por isso é largamente irrelevante
que existam desacordos morais entre culturas – porque as
pessoas enganam-se ao raciocinar. Pior: muitos desses en-
ganos são mal-intencionados, pois são interesseiros. Como
comecei por dizer, não acredito que algum alemão pudes-
se honestamente pensar que os judeus eram sub-humanos
– mas era proveitoso pensar tal coisa e por isso tudo o que
parecesse justificar tal ideia era aceito sem mais discussão.
Assim, perante a diversidade de comportamentos
tidos como morais em diferentes sociedades, é necessário
perguntar se razões há a favor ou contra tais comportamen-
tos. E a procura dessas razões não pode ser meramente a
reafirmação dos preconceitos culturais da nossa própria cul-
tura. É preciso procurar essas razões com probidade epis-
têmica, procurando genuinamente saber que razões há para
aceitar ou rejeitar que um dado comportamento é imoral. A
cada passo temos de ver se não estamos a fazer confusões ou
apenas a defender o que nos interessa, por qualquer motivo
injustificável abertamente. E temos de fazer distinções con-
cetuais cuidadosas, como as seguintes:
1. Os comportamentos não se dividem todos entre
moralmente obrigatórios e moralmente impermissíveis;
também há atos permissíveis mas que não são obrigatórios.
Por exemplo, é moralmente permissível comer maçãs com a
mão esquerda, mas não é obrigatório fazer tal coisa. Quando
não se tem formação filosófica há tendência para confundir
essas categorias e condenar como moralmente impermissí-
veis comportamentos diferentes dos nossos, só por serem
diferentes. Os comportamentos sexuais dos nativos brasi-
leiros, ou a sua nudez, eram muito diferentes dos compor-
tamentos europeus, e isso levou os europeus a condenar
moralmente tais comportamentos; mas seria preciso mos-

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ÉTICA E DIREITOS HUMANOS

trar primeiro que tais comportamentos têm alguma coisa a


ver com a moralidade e não apenas com costumes moral-
mente neutros. Com certeza que andar nu e andar a matar
pessoas na rua são coisas muito diferentes. A primeira pode
ser culturalmente chocante, mas daí não se segue que seja
imoral. A reflexão filosófica cuidadosa é um bom antídoto
para o preconceito provinciano.
2. Os comportamentos prescritos ou condenados por
uma dada religião não são sempre moralmente obrigatórios
ou impermissíveis. Quando se justifica um dado comporta-
mento ou proibição apelando a um dado texto sagrado, esta-
mos já a excluir todas as pessoas que não pertencem a essa
religião nem a consideram uma religião verdadeira. Se quiser-
mos viver moralmente com pessoas que não partilham a nossa
religião temos de encontrar uma base comum de entendimento
moral, e essa base comum não pode obviamente ser a religião,
porque pessoas diferentes professam religiões diferentes e al-
gumas nenhuma. Tem de ser o simples facto de sermos agentes
morais a fornecer uma base comum de entendimento moral.
3. A natureza raramente é um bom guia moral. Isso
significa que o fato de um dado comportamento ser mais ou
menos natural é geralmente irrelevante moralmente. Con-
denar moralmente comportamentos por não serem naturais
é geralmente falacioso, além de ocultar geralmente uma
mentira. Vejamos dois exemplos. A homossexualidade é um
comportamento comum entre muitos animais; quem conde-
na a homossexualidade por não ser natural ou mente ou é
ignorante. Matar os filhos dos outros é um comportamento
comum entre leões; mas dificilmente alguém quereria defen-
der a moralidade de tal prática aplicada a nós com base na
sua naturalidade. O objeto da moral não é o que é ou deixa
de ser natural, mas o que é ou não justificável – e como os
leões e outros animais inumanos são incapazes de justifica-
ção, não são os melhores guias morais.
Nesta comunicação procurei mostrar três ideias cen-
trais. Primeiro, que o relativismo cultural é incompatível

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Cadernos da Escola do Legislativo

com a universalidade dos direitos humanos. Segundo, que


os argumentos a favor do relativismo cultural não são bons.
E terceiro, que podemos ter uma concepção mais plausível
da justificação ética, concepção que não seja factualista.
Mas ao mesmo tempo usei essas ideias e argumentos como
ilustração da importância pública da filosofia. Corretamen-
te ensinada e cultivada, a filosofia torna-nos cidadãos e
políticos melhores, porque nos ensina a tomar decisões e
a discutir ideias quando as decisões não são fáceis e os
problemas não são suscetíveis de solução científica.

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