Nicolau Coelho Seabra Família
Nicolau Coelho Seabra Família
Nicolau Coelho Seabra Família
BELO HORIZONTE
2017
KELLY LISLIE JULIO
Introdução 17
Capítulo 1 – Educação para a conformação de uma “sociedade ordeira” 39
1.1 – As definições e (im)precisões em torno dos termos educação,
instrução e criação – concepções e posicionamentos de um tempo 40
1. 2 – A história da família e sua função educativa – algumas
considerações 49
1.3 – "Ser mulher" — a conformação de um ideal e a educação
feminina 61
Capítulo 2 – “Por sua capacidade e agilidade” – as estratégias para a
sobrevivência da família e educação dos órfãos desenvolvidas
pelas tutoras 89
2.1 – A produção do inventário 90
2.2 – A escolha do tutor 94
2.3 – As tutoras do Termo de Vila Rica: definindo um perfil 113
2.4 – A administração das famílias segundo os grupos socioeconômicos
– estratégias para o provimento e manutenção econômica da família 121
2.5 – Os problemas com a administração 136
2.6 – As mulheres e suas ações para a educação dos órfãos. 141
Capítulo 3 – Parcerias que deram certo? – Ajustes entre homens e mulheres
para a educação e conservação dos órfãos 167
3.1 – Estabelecendo um perfil – os homes e mulheres envolvidos
nessas parcerias 170
3.2 – A conformação das parcerias – ações femininas para a
manutenção da posse dos menores 179
3.3 – As diferentes formas de educar – práticas educativas direcionadas
aos órfãos 195
3.4 – Dona Josefa de Ávila e Silva - uma viúva e suas ações para
educar seus filhos e administrar a família 219
Capítulo 4 – Entre o desejo e a prática - as formas de atuação feminina na
educação de menores e na manutenção da família 231
4.1 – Lares marcados pela cor – as ex-escravas e descendentes 234
4.2 – Os legados testamentais das mulheres com ascendência escrava
– indícios de intenções educativas e de sobrevivência familiar 247
4.3 – As práticas educativas envolvendo ex-escravas e descendentes
presentes nos inventários 262
4.4 – “Exposto na casa de” – a prática do abandono e acolhimento de
menores 269
4.5 – “Que sempre o criei e vive em minha companhia” - o perfil das
mulheres acolhedoras no Termo de Vila Rica 275
4.6 – “É bem tratada e educada com a criação necessária” – práticas
para a sobrevivência e educação dos acolhidos 285
Considerações Finais 296
Fontes 301
Referências 311
Anexos 324
LISTA DOS GRÁFICOS
This research aimed to investigate the participation of women in the education of children
and young people in the Vila Rica County - Minas Gerais, between the years 1770 and
1822. The sources used were notarial documents, including: inventories, wills,
guardianship titles, chamber documents, petitions and justifications for guardianship.
These documents especially belong to the Historical Archives collection of the Museum
of the Inconfidência - Brazilian Institute of Museums (AHMINC / IBRAM) - located in Ouro
Preto. We have also dealt with documents which are under the custody of the Minas
Gerais Public Archive (APM), located in Belo Horizonte, and the Overseas History
Archive (AHU), in Lisbon, Portugal, all of which available on the internet. We have also
used the book Ordenações Filipinas and some works by Illuminist authors from the
eighteenth century. During the period this research encompasses, education was seen
as a more dynamic process and especially focused on preparing the individual for social
life. Under this light, family was perceived as an educational institution, able to propagate
and assist in building a more orderly society. Our analysis starts with women inserted in
the family, in the role of first educator and head of the home management. Our goal was
to rebuild the actions developed by them or for them in order to participate in the
educational process of children and young people and also to ensure the survival of their
family group. At the same time, we sought to understand women's strategies to educate
minors. We believe that women recognized and valued the roles that were delegated to
them - as educators and housewives. Thus, they developed ways to drive children and
young people towards some kind of education; they sought to teach certain values and
conceptions circulating at the time and, because they were concerned with their families,
they tried to take action to improve their condition, insert themselves socially and ensure
their survival. As we tried to prove throughout this thesis, the existing legislation in the
period determined types of specific education for people according to their social origin.
So our effort was also trying to understand to what extent educational orientation would
trespass what was required by law. To guide our analysis of the sources, in addition to
discussions on the history of families and women, we have chosen Social History
methodological theoretical apparatus and prospects for analysis. In their turn, the
concepts that anchored this thesis were chosen among those produced by Pierre
Bourdieu (1930-2002). From the perspectives and reflections arising from social history
and the production of this intellectual, it became possible to understand the behaviors of
women who belonged to different social groups, given the constraints imposed by law,
by custom and by the conceptions in force at the time.
1
Del Priore (2013), utilizando-se das explicações presentes em manuais de Medicina dos séculos XVI e
XVIII, explicou que o termo infância, que de acordo com Bluteau (1712) seria o mesmo que “menino”,
“criança”, se referia ao período que correspondia o nascimento até a idade de 14 anos. A infância, por sua
vez, seria dividida em três etapas distintas: a primeira, do nascimento até os 3 ou 4 anos de idade; a segunda,
até os 7 anos de idade; e a terceira, a partir dessa fase até os 14 anos. Depois dessa idade haveria a segunda
infância, chamada de adolescência, que perdurava dos 14 anos até os 25 anos. O termo adolescência,
conforme o mesmo dicionarista, referia-se à “primeira idade depois da puerícia”, “mancebo”, “moço”,
“juvenil”. Maria Beatriz Nizza da Silva (1984) destacou que as delimitações etárias no Brasil estavam mais
relacionadas com aspectos sociais. Mas a autora estabeleceu duas etapas distintas: a primeira, do
aleitamento até os 3 anos, que ela chamou de fase da criação; a segunda seria a “da educação”, que se
estenderia até os 7 anos de idade. De qualquer modo, podemos dizer que, para as Ordenações Filipinas,
qualquer indivíduo era considerado menor até a idade de 25 anos. Conforme Livro 4, título 102, p. 994,
presente em [Ordenações Filipinas] Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal:
recompiladas por mandato d’el-Rey D. Philipe I. Edição fac-similar da 14ª ed., segundo a primeira, de 1603,
e a nona, de Coimbra, de 1821 / por Cândido Mendes de Almeida. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2012, quatro tomos.
17
compreensão, buscamos perceber as confluências ou dissonâncias das ações
femininas conforme a sua origem social2 nas duas frentes: na educação dos menores e
na conservação da família.
Como brevemente apontado, elegemos para o presente estudo os últimos anos
de século XVIII e primeiras décadas do século XIX, mais precisamente, entre 1770 e
1822. Esses marcos cronológicos foram definidos a partir de dois pontos específicos. O
primeiro deles foi o nosso interesse em investigar o período colonial, pois, como alguns
estudiosos já apontaram, as pesquisas em história da educação de um modo geral têm
negligenciado essa fase da história do Brasil3. Ainda sobre esse aspecto, quando os
estudos são referentes ao mencionado período, a produção tem se concentrado, como
bem destacou Thais Fonseca (2009a, p. 07), “na análise sobre a atuação educacional
da Companhia de Jesus no Brasil e nas reformas promovidas pela administração do
Marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII”. Assim, conforme a mesma
autora, os estudos têm deixado “de lado ou em segundo plano outras dimensões dos
processos educativos possíveis na América portuguesa”.
Além disso, fizemos um levantamento das fontes utilizadas referentes ao Termo
de Vila Rica4. Uma fonte privilegiada para o nosso estudo foram os inventários que estão
sob a guarda do Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência/Instituto Brasileiro de
Museus —AHMINC/IBRAM—, localizado em Ouro Preto, Minas Gerais. Nele,
identificamos um total de 2.647 inventários que abarcaram os períodos de 1714 a 1889.
Entretanto, para o período colonial, essa pesquisa é mais rica e equilibrada no período
eleito. Outra fonte necessária na presente pesquisa foi a documentação camarária
referente às crianças expostas. E, como foi possível observar e corroborado por alguns
pesquisadores, o aumento no número de auxílios aos expostos ocorreu especialmente
a partir de 1770, contribuindo assim para uma ampliação das fontes ligadas ao tema5.
2
Falaremos adiante sobre esse aspecto.
3
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Configuração da historiografia educacional brasileira, In:
FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2003.
LOPES, Eliane Marta Teixeira & GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação. 1ª ed. RJ:
DP&A, 2001; MORAIS, Christianni Cardoso de. Posses e usos da cultura escrita e difusão da escola: de
Portugal ao Ultramar, Vila e Termo de São João del Rei, Minas Gerais (1750-1850). Tese (Doutorado em
História) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte: 2009; FONSECA, Thaís Nivia de Lima e. Letras, ofícios e bons costumes. Civilidade e
sociabilidade na América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica, 2009a. FONSECA, Thaís Nivia de Lima
e. História da educação no Brasil: abordagens e tendências de pesquisa. In: Revista LPH. Ouro Preto, n. 19,
v. 2, p. 4-27, 2009b. Disponível em: http://www.ichs.ufop.br/lph/imagens/stories/REVISTA-LPHn19-
2.pdf. Acesso em: 21 de outubro de 2015; dentre outros.
4
As fontes que foram utilizadas no presente estudo serão apresentadas a seguir.
5
Dentre os estudos sobre Vila Rica relacionado aos expostos, citemos: FRANCO, Renato. A piedade dos
outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII. Belo Horizonte: FGV, 2014;
FRANCO, Renato. Assistência e abandono de recém-nascidos em Vila Rica colonial. In: VENÂNCIO,
Renato Pinto (Org.). Uma história social do abandono de crianças: de Portugal ao Brasil: séculos XVIII –
XIX. São Paulo: Alameda. Belo Horizonte: PUC Minas, 2010, p. 147 – 176; FERREIRA, Luciana Viana.
18
Já a eleição do nosso local de pesquisa seguiu a mesma orientação em relação
ao período. O Termo de Vila Rica tem sido objeto de estudo da historiografia de um
modo geral6, mas muito pouco se tem dedicado a aprofundar as discussões sobre a
educação dessa região. Ao mesmo tempo, essa mesma historiografia tem apontado
para Minas Gerais a forte atuação feminina, seja no comércio, no cuidado com a família
ou no processo de mestiçagem. Essa atuação, em nosso entendimento, teve como um
de seus locais privilegiados o Termo de Vila Rica, onde se encontrava a capital da
Capitania, espaço de grande circulação de pessoas, saberes e mercadorias. Assim
sendo, a eleição do referido espaço atenderia a dois pontos: uma contribuição para as
discussões ligadas à educação daquela região e, ao mesmo tempo, entendemos que
seria um local privilegiado para percebermos a atuação feminina junto à sua família e o
processo educativo de crianças e jovens.
Sendo assim, consideramos importante trazer algumas considerações sobre
esse espaço.
A criação dos enjeitados em Vila Rica: a permanência da caridade (1775 – 1850). Dissertação (Mestrado
em História). Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2011.
6
ANTUNES, Álvaro Araújo. Fiat Justitia: os advogados e prática da justiça em Minas Gerais (1750 –
1808). Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2005; FERREIRA, Luciana Viana. A criação dos enjeitados em Vila Rica: a
permanência da caridade (1775 – 1850). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências
Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2011; FRANCO, Renato. A piedade dos
outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII. Belo Horizonte: FGV, 2014;
ALFAGALI, Crislayne Gloss Marão. Em casa de ferreiro pior apeiro: os artesãos do ferro em Vila Rica e
Mariana no século XVIII. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2012; LIBBY, Douglas Cole & BOTELHO, Tarcísio.
Filhos de Deus: Batismos de crianças legítimas e naturais na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro
Preto, 1712-1810. In: Revista Varia História. Belo Horizonte, n. 31, jan. 2004, p. 69-96. Disponível em
http://www.variahistoria.org/issues Acessado em 02-10-2015; PRECIOSO, Daniel. Legítimos vassalos:
pardos livres e forros na Vila Rica colonial (1750- 1803). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011, dentre
outros.
19
uma iniciativa de particulares, ainda que em alguns casos apoiadas pelo rei, do que por
uma política de colonização conduzida por Portugal. Entretanto, importante
mencionarmos, apesar desse início "espontâneo", o "Estado não tardou a se impor na
região", segundo a autora.
Uma das primeiras formas de “imposição”, de acordo com Borrego (2004, p.43),
dar-se-ia com “a ereção de vilas nos locais mais densamente povoados nas Minas, onde
anteriormente tinham surgido arraiais”. Segundo a autora, na primeira década do século
XVIII, o Governador da Capitania do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas do Ouro –
Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho – teria viajado até a região das minas a fim
de acabar com disputas existentes entre seus habitantes, culminando assim na
fundação das primeiras vilas7. Na segunda década do setecentos, teria ocorrido a
criação de Vila Rica, Vila do Ribeirão do Carmo e Sabará (1711). A Vila de São João
del-Rei seria fundada em 1713; Caeté e Vila do Príncipe, em 1714; e Pitangui, em 1715.
Ainda nesse mesmo período foram criadas também as três primeiras comarcas:
Vila Rica (Vila Rica), Rio das Mortes (São João del-Rei) e Rio das Velhas (Vila Real do
Sabará). Segundo Graça Filho (2002), essa criação ocorreu a partir de um Alvará Régio
de 06 de abril de 1714. Logo depois, no ano de 1720 foi criada a Comarca de Serro Frio
(Vila do Príncipe), quando houve também a separação de Minas Gerais e São Paulo,
que até então se configuravam como uma única capitania. Já em 1815 houve o
estabelecimento da Comarca de Paracatu (Vila do Paracatu).
Para Borrego (2004), a intervenção do Estado estava ligada ao estabelecimento
de determinada ordem. Tanto foi assim que, de acordo com Thais Fonseca (2009a), as
autoridades produziram farta documentação destacando a preocupação com o
ordenamento e o comportamento cotidiano da população. Nesses documentos, um dos
grandes interesses era a expansão de famílias legítimas e a promoção de alguma forma
de educação. Mas, conforme Borrego (2004), a intervenção também tinha interesses
tributários. E, assim sendo, as autoridades buscaram analisar a situação administrativa
e o estado das atividades econômicas.
Independentemente das intenções que pudessem explicar as interferências, o
certo é que, por volta de 1808, de acordo com Cláudia Fonseca (2011), as povoações
7
As disputas, conforme a autora, eram entre os paulistas e forasteiros pela posse de datas e também pelo
controle do abastecimento que teriam resultado na Guerra dos Emboabas. Esse conflito, de acordo com
Cláudia Fonseca (2011), iniciou-se quando os paulistas, os pioneiros na região, perderam a supremacia na
zona mineradora, tornando-se um grupo minoritário em relação aos “emboabas” recém-chegados, que eram
constituídos pelos “reinóis” e “baianos” (vindos da Bahia e de outras regiões do Nordeste). Conforme
destacou a autora, além da hegemonia na mineração, os paulistas também haviam perdido para os
“forasteiros” o domínio no comércio de alguns produtos, por exemplo carne bovina. Isso teria tornado os
“emboabas” mais fortes do ponto de vista econômico. Sobre a palavra “emboabas”, a mesma autora
explicou que se trata de uma palavra indígena (tupi) que os paulistas usavam de modo pejorativo para
designar aqueles que consideravam “intrusos” ou forasteiros.
20
das comarcas mineiras dividiam-se em centenas de arraiais, 15 vilas e uma só cidade:
Mariana, que recebeu esse título em 1745 quando se tornou a sede episcopal.
Essas povoações, de acordo com Cláudia Fonseca (2011, p. 32), "contrastando
com os vastos sertões que as envolviam", eram percebidas como "lócus de vida social
e religiosa". Ao mesmo tempo, eram vistas como importantes "instrumentos para
controlar e submeter a população bastante heterogênea que ali se instalou, servindo
também de postos avançados para novos desbravamentos e conquistas". Como
destacou Laura de Mello e Souza na apresentação do livro de Borrego (2004), a
multiplicação de núcleos urbanos em Minas deu-se numa progressão nunca vista na
América portuguesa, e "nesses lugares desenvolveram-se formas de sociabilidade
tipicamente urbanas e uma cultura artística e literária sem equivalente na colônia"
(FONSECA, 2011, p.26).
Minas, em virtude da descoberta do ouro no início do século XVIII e das
atividades agropastoris voltadas para o mercado interno, primeiramente, e depois para
o abastecimento do Rio de Janeiro, foi uma região marcada por grande diversidade
produtiva, além de um dinamismo interno (ALMEIDA, 2010). Tal fato, segundo Maxwell
(2010, p. 151), acabou favorecendo o seu povoamento no período de exploração
aurífera e, depois, com o esgotamento da extração do ouro, a absorção da população
em outras atividades econômicas.
Configurando-se como um dos principais espaços de exploração na América
portuguesa, a Capitania de Minas Gerais esteve fortemente ligada ao Rio de Janeiro.
Sua população extremante diversificada seria marcada pela grande presença do
mestiço, de negros e do branco. Em outros termos, o contexto mineiro marcado ora de
modo especial pela mineração, ora pela agricultura, mas que foi essencialmente
diversificado em termos econômicos, abarcou um mosaico de grupos étnicos e sociais.
Consequentemente Minas Gerais acabou se constituindo a partir de um emaranhado de
saberes, valores e concepções.
No que se refere às questões educativas, já nos primórdios de criação da
capitania, houve alguns indícios de preocupação a respeito desse tema. De acordo com
Thais Fonseca (2009a, p. 32), já no ano de 1721, o rei ordenava ao governador Dom
Lourenço de Almeida que conversasse com os oficiais das câmaras para que em cada
vila houvesse ao menos um mestre para ensinar a ler e escrever; outro para o ensino
do Latim, cabendo aos pais o envio dos filhos e o pagamento do salário desses
professores. Todavia, a preocupação com a educação institucionalizada acabou
perdendo espaço para as atenções voltadas para a instalação e consolidação da
estrutura administrativa e a produção aurífera. No dizer de Fonseca (2009a, p. 33), a
21
coroa "não empreendeu, naquele primeiro momento, muitos esforços efetivos para a
criação de qualquer que fosse a modalidade de educação institucionalizada".
Diante dessa situação, as iniciativas voltadas para a instrução e educação
acabaram ficando quase sempre nas mãos de pais que contratavam professores
particulares. Na capitania tal situação foi agravada pela ausência de escolas jesuítas ou
de outras ordens religiosas que haviam sido proibidas de ali se fixarem. Conforme Thais
Fonseca (2009a), o estabelecimento de escolas tornou-se mais visível apenas na
segunda metade do século XVIII quando ocorreram as reformas educacionais propostas
por Pombal, iniciadas em 1759.
A partir de 1772, com a segunda fase das reformas educacionais, oito cadeiras
de professores régios foram criadas para Minas Gerais, das quais duas —uma de
primeiras letras e outra de gramática latina— haviam sido instituídas na capital Vila Rica
(MORAIS, 2009, p. 85). Para a Comarca de Vila Rica, em um levantamento do número
de cadeiras realizado por Fonseca (2009a, p. 74) no período entre 1800 e 1814, foi
possível identificar "19 professores régios trabalhando", incluindo os professores
substitutos. Esse número elevado, o maior para a capitania, pode ser explicado,
conforme a autora, pela presença do Seminário de Mariana na região.
Atendo-nos à Comarca de Vila Rica, sabemos que ela abarcava dois importantes
centros da Capitania de Minas Gerais: a capital homônima e a cidade de Mariana. Como
destacou Almeida (2010, p. 23), a referida comarca configurava-se como um importante
espaço, já que se caracterizava como um centro comercial, religioso e administrativo,
além de educacional, em decorrência do Seminário na cidade de Mariana.
Sua principal atividade econômica era a mineração, mas ela tinha também outras
formas produtivas como a agricultura, a pecuária, o comércio e as atividades artesanais
ligadas aos mais diferentes ofícios: alfaiates, sapateiros, latoeiros, costureiras, fiadeiras,
etc. (CUNHA E GODOY, 2003). Não podemos nos esquecer de setores
majoritariamente femininos, como a venda de quitandas e as funções de lavadeiras,
parteiras, etc. (COSTA, 1981).
No que se refere à sua população, é possível dizermos que o número absoluto
de habitantes na comarca teve um relativo crescimento entre 1767, quando o total girava
em torno de 60.249 habitantes, até o ano de 1821, quando o Barão de Eschwege
declarou que perfazia um número de 75.5738. Assim, em cinquenta e quatro anos, houve
um crescimento de 20,28%.
8
Os dados apresentados estão em: "Mapa Geral de fogos, filhos, filhas, escravos escravas, pardos forros e
pretos forros, agregados, clérigos, almas, freguesias, vigários, com declaração do que pertence a cada termo
e total, e geral de toda a Capitania de Minas Gerais, tirado no ano de 1767" - AHU/MG - cx. 93, doc. 58;
ESCHWEGW, Wilhem L. von. Notícias e reflexões estatísticas sobre a Província de Minas Gerais. RAPM,
v. 4, n. 4, p. 732-62, 1899. Apud ALMEIDA (2010). Vários historiadores (BRÜGGER, 2007; ALMEIDA,
22
No recenseamento feito no ano de 1776 é possível conhecermos a distribuição
da população conforme a cor e o sexo (quadro 1). Nesse ano, conforme o
recenseamento, a Comarca de Vila Rica possuía 78.618 habitantes. Desse total, 49.789
eram homens e 28.829 eram mulheres, o que, distribuído conforme a cor, assim se
caracteriza:
A Comarca de Vila Rica era constituída apenas por dois termos: o de Vila Rica,
que passou a se chamar "Termo da Imperial Cidade de Ouro Preto" em 1823, quando
a sede se tornou cidade; e o "Termo da Cidade de Mariana". Foi somente em 1833 que
houve uma alteração nessa configuração, quando foi incluído também o "Termo da Vila
de Queluz" (CARVALHO, 1922), que anteriormente pertencia à Comarca do Rio das
Mortes.
No que se refere ao Termo de Vila Rica, Claudia Fonseca (2011, p. 384),
analisando os dados apresentados por Begard em relação aos habitantes de Minas
Gerais, destacou que o referido Termo tinha, no ano de 1808, 22.222 habitantes9. Essa
população estaria distribuída em 15 arraiais, além da sede — composta pelas matrizes
de Nossa Senhora do Pilar e Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias — e mais
cinco capelas que ficavam próximas de Vila Rica10.
2010; MAXWELL, 2010; FONSECA, 2011) já analisaram esses e outros dados presentes em diversas
fontes, tais como os mapas de população e relatos de viajantes, que trazem informações referentes à
população da Capitania de Minas Gerais. Conforme tais autores, ao trabalhar com esse tipo de fonte é
importante ter em mente alguns pontos. O primeiro é que não é possível identificar uma uniformidade dos
dados. Além disso, ressaltaram problemas ligados à confiabilidade da informação. Brügger (2007, p. 37)
lembrou ainda que não podemos nos esquecer das frequentes alterações que houve nas composições dos
Termos e Comarcas, o que, por si só, dificulta o entendimento de uma localidade específica. De qualquer
modo, os dados apresentados ajudam-nos a pensar na população da Comarca de Vila Rica.
9
Conforme destacou Cláudia Fonseca (2011, p. 375), no que se refere ao século XVIII, os dados
demográficos para Minas Gerais são muito lacunares. Por isso, os dados apresentados para esse termo
disponíveis em mapas e relatórios são aqueles identificados apenas a partir da primeira década do século
XIX.
10
Os arraiais eram: São Bartholomeu, Capanema, Casa Branca, Cachoeira do Campo, São Gonçalo do
Tijuco, Itabira do Campo, São Jose do Paraopeba, Congonhas do Campo, Boa Morte, Soledade, Ouro
Branco, Passagem de Ouro Branco, Itatiaia, Santa Rita e Lavras Novas. As capelas que ficavam próximas
à sede eram: Morro de São Sebastião e São João, Morro do Taquaral, Morro de Santana e Piedade. Fonte:
"Relação das cidades, Villas e Povoações da Província de Minas Geraes com declaração do número de
fogos de cada uma (1830)". RAPM, II, 1897, p. 18-28.
23
Quando nos atemos ao número de famílias11 (quadro 2), é possível dizermos que
o Termo de Vila Rica tinha em torno de 3.333 lares, por volta de 1815, tendo a sede
1.801 fogos ou 54,03% desse conjunto12. O número de famílias sofreria uma pequena
elevação em 1830, quando chegaria a 3.575 fogos. Entretanto, o número de famílias na
sede sofreria uma diminuição — 1.206 fogos (33,73%) desse total.
11
A título de explicação, na documentação disponível, o termo "família" é substituído por "fogo". Conforme
Iraci Del Nero Costa (1981), o número de fogos ou família corresponderia ao quantitativo de casas. Ainda
conforme a definição presente no dicionário Bluteau, a palavra fogo seria utilizada para se referir à família,
como ideia de lar. No presente estudo, seguindo as discussões já desenvolvidas pela historiografia,
utilizamos o termo “domicílio” para se referir à moradia dos sujeitos.
12
Mappa da população do Termo de Villa Rica do anno de 1815 (APM, fundo Casa dos Contos,
microfilmado - rolo 540, 21114-21115).
24
demonstrar ao longo dos capítulos. Entretanto, para conhecermos essas mulheres e
suas ações, é necessário primeiramente apresentarmos as fontes eleitas para o
presente estudo.
13
De acordo com Silva (1994, p. 595), o “livro I contém os Regimentos dos magistrados e oficiais de
Justiça, à exceção do Desembargo do Paço, cujo Regimento (...) não foi incorporado nas Ordenações. No
livro II acham-se definidas as relações entre a Igreja e o Estado, assim como os privilégios da nobreza e os
direitos do Fisco. No livro III trata-se do processo civil. O livro IV (...) trata dos contratos, testamentos,
tutelas. E o livro V versa sobre matéria penal”
25
Todavia, para que fosse possível abordarmos as ações femininas voltadas para
a educação dos menores e o sustento da família, foi necessário partirmos ainda para a
documentação manuscrita ligada ao cotidiano da população. Sendo assim, buscamos
os documentos de natureza notarial e camarária. Tais documentos são bastante
familiares para a historiografia em geral, mas ainda são pouco aproveitados pelos
historiadores da educação. Mas, para pensarmos a educação no período colonial,
entendemos que seja necessário seguirmos esse caminho aberto pela historiografia,
mesmo que ainda pouco percorrido por aqueles que estudam o processo educativo.
Ao mesmo tempo, como nosso objeto de estudo são as mulheres e suas ações
voltadas para o ato de educar as crianças e os jovens do seu grupo familiar, acreditamos
que seria necessário dispensar atenção às práticas culturais e sociais presentes na
documentação relacionada à vida privada dos indivíduos14. Isso porque entendemos
que são essas práticas — culturais e sociais — percebidas como “maneiras de fazer'
cotidianas dos sujeitos históricos, relacionadas social e culturalmente” (FONSECA,
2009a, p 10), que permitem vislumbrar as diferentes ações dos sujeitos e, ao mesmo
tempo, conjecturarmos as possibilidades para a aprendizagem de um saber, seja ele
religioso, mecânico, moral e, também, de caráter letrado.
Assim, os principais documentos para essa investigação foram: os de natureza
notarial ou cartorária — inventários15, testamentos16, os Autos de Justificativa para a
14
Importante ressaltarmos que o termo “ privada” não é uma alusão à discussão historiográfica sobre
“público” e “privado”. Sobre esse assunto ver Castan (1991). Nossa intenção ao nos referirmos dessa
maneira à documentação manuscrita é simplesmente destacarmos que os documentos estão relacionados
com as questões pessoais e familiares e, por isso, podem trazer elementos importantes da vida íntima da
população, que nos ajudam a pensar nas ações das mulheres.
15
Os inventários serão explicados especialmente no capítulo 2. Em linhas gerais, o inventário é um
documento que traz a descrição dos bens, dívidas e créditos pertencentes à pessoa falecida ou ao casal,
quando o morto era casado. É no inventário também que encontramos os herdeiros, local de moradia e as
partilhas dos bens. Respeitando a legislação, ele era uma obrigação a ser cumprida quando existiam
herdeiros menores de 25 anos de idade. Conforme Villalta (2007), a partir de 1809 foi instituído o imposto
do selo do papel e a décima das heranças. Somente depois do pagamento dessa taxa é que o herdeiro ou
legatário poderia receber o que lhe cabia. Nesses termos, o inventário passou a ser uma obrigação para
todas as pessoas que tinham bens para legar. Os inventários são particularmente profícuos porque é possível
encontrarmos também alguns documentos anexados ao processo, como: solicitações diversas ligadas à
herança e partilha, cópias de testamentos, termos e contas de tutela, dentre outros.
16
Os testamentos são conhecidos como relatos individuais, nos quais é possível identificar as representações
construídas pelo testador sobre os mais diferentes aspectos vivenciados ou imaginados. Segundo Fonseca
(2013), os testamentos podem revelar a visão de mundo do testador e, consequentemente, possibilitar a
identificação de aspectos para o entendimento sobre o modo como nomeava a sociedade em que vivia, além
de suas experiências individuais e sociais. Nos testamentos encontramos as últimas vontades do sujeito, as
definições relacionadas ao sepultamento, os pedidos de missas e os legados. Mas é também nesse
documento que encontramos o local de moradia do testador, naturalidade, estado civil, filiação, nome do
cônjuge e dos filhos, quando os havia, dentre outros.
26
tutela17; e os Autos de Contas de Tutela18. Já a documentação camarária foram: os livros
de matrículas de expostos19 e as receitas e despesas da Câmara de Vila Rica ligadas
aos enjeitados20.
Os inventários, os testamentos e alguns Autos de Justificativas utilizados estão
sob a guarda do Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência de Ouro Preto – Instituto
Brasileiro de Museus – AHMINC/IBRAM. Já os Autos de Contas de Tutela foram
identificados dentro dos processos de inventários. Além desse arquivo, utilizamos
também alguns Autos de Justificativas existentes no Arquivo Histórico Ultramarino –
AHU –, catalogados e disponibilizados pelo Projeto Resgate21. A documentação da
Câmara de Vila Rica está no Arquivo Público Mineiro – APM –, que também pode ser
acessado pela internet22.
A documentação camarária foi analisada qualitativa e quantitativamente no
capítulo 4. A partir dessas fontes tentamos evidenciar as ações femininas para a
educação e o cuidado de crianças expostas. Já os demais documentos, de um modo
geral, foram trabalhados em todos os capítulos, diferindo-se a abordagem, como
apresentaremos a seguir.
No que se refere aos testamentos, consideramos importante mencionar dois
aspectos. Primeiramente, que fizemos o levantamento dos testamentos avulsos apenas
daqueles pertencentes às mulheres. Entendidos como relatos individuais, eles trazem
as últimas vontades do testador, inclusive legados a serem cumpridos depois de seu
falecimento. Acreditamos que alguns desses legados poderiam estar revestidos de
intenções educativas e, por isso, consideramos que tais documentos seriam uma fonte
importante para identificarmos algumas disposições feitas pelas mulheres voltadas para
a educação e mesmo sobrevivência de um menor.
Quanto aos testamentos em que o testador era um homem, utilizamos apenas
aqueles anexados aos inventários. Tais documentos foram importantes, pois nos
17
Esse documento será explicado no capítulo 2. Resumidamente, ele era um documento produzido na
tentativa de justificar para o rei que a mãe ou a avó do órfão tinha condições de ser tutora.
18
Os autos de contas de tutela trazem as informações referentes à administração "das pessoas e bens" do
menor tutelado. É nesse tipo de documento que se torna possível identificar os mais diferentes gastos
ligados à alimentação, vestuário e também relacionados à educação do menor. Além disso, é comum
encontrarmos também os tipos de ensinamentos dispensados aos menores e as redes de sociabilidades
tecidas para a concretização de algum processo educativo. No presente estudo trabalhamos com as contas
existentes nos inventários.
19
Os livros de matrículas de expostos, como o próprio nome diz, eram aqueles em que eram registrados os
nomes dos menores abandonados. Esses menores, conhecidos também como enjeitados, eram dados a
alguma família ou pessoa interessada em criá-los que, em troca, recebia determinado pecúlio da Câmara
por esse serviço prestado.
20
Os documentos manuscritos foram computados e organizados em bancos de dados. Para isso utilizamos
os programas de computador Access e Excel do Office.
21
Essa documentação está disponível em https://bdlb.bn.gov.br/?page_id=10.
22
Disponível em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/
27
ajudaram a identificar a nomeação de tutores, quando era o caso, e, em conjunto com
as informações presentes nos inventários, possibilitaram ainda o estabelecimento do
perfil das famílias.
Em relação aos inventários, o trabalho seguiu algumas particularidades. Como
nós estávamos interessados nas práticas, recorremos a essa documentação, pois são
eles e seus anexos como, por exemplo, as contas de tutorias, que trazem informações
sobre os direcionamentos efetivamente ocorridos para o aprendizado de alguma forma
de educação pelas crianças e jovens. É também nesses documentos que encontramos
dados ligados à conservação dos bens e patrimônios depois do falecimento de um
membro da família. Sendo assim, trabalhamos com todos os inventários existentes no
arquivo para o período pesquisado, o que correspondeu a 1.049 documentos23.
O primeiro exercício foi a separação desses documentos conforme o sexo da
pessoa falecida. Do total de 1.049 inventários, em 687 a pessoa que havia falecido era
um homem. O restante – 326 — pertencia às mulheres. Essa separação fez-se
necessária, pois estávamos interessados na atuação feminina para a educação e
sobrevivência dos órfãos24, mas também para outros menores, tais como: expostos,
netos, sobrinhos, afilhados, etc. E, a respeito destes últimos casos, a documentação
revelou-nos que os inventários das mulheres eram mais profícuos. Trabalhamos com
os inventários pertencentes às mulheres particularmente no capítulo 4.
Já em relação aos inventários feitos por falecimento de um homem, adotamos o
seguinte procedimento: primeiramente era imprescindível identificarmos aqueles
documentos em que havia herdeiros menores de 25 anos, quando se fazia necessário
23
O AHMINC/IBRAM possui dois fundos diferentes em que é possível identificarmos, dentre outros
documentos, os inventários e testamentos. No citado arquivo encontram-se documentos que abarcam o
período de 1714 até 1889. Consideramos importante destacar um aspecto importante. No início da pesquisa
acreditávamos que haveria um número maior de documentos, dado o fato de que Ouro Preto foi a segunda
capital de Minas Gerais – a primeira foi Mariana que também pertencia à Comarca de Vila Rica no período
estudado. Entretanto, ao tomarmos conhecimento das condições de criação do arquivo, entendemos os
motivos de sua amplitude. O arquivo teve seus passos iniciais em 1950 quando houve um incêndio que
acabou com o Fórum de Ouro Preto, na Praça Tiradentes. Não se sabe exatamente o que e a quantidade de
documentos que foram queimados; sabe-se apenas que depois foram depositados no sótão da Casa da
Baronesa, onde funcionava o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e, finalmente,
no Anexo III do Museu da Inconfidência, conhecido como Casa do Pilar. Diante dessas condições,
acreditamos que o arquivo era bem maior. Todavia, os documentos recuperados ainda são de uma natureza
bastante rica e diversificada, que podem ajudar a entender vários questionamentos ligados à história e, mais
especificamente, à história da educação. Atualmente, o arquivo abarca, além da documentação recuperada
do fórum, parte da documentação da Casa dos Contos, um acervo ligado à música, inclusive do período
colonial, o arquivo do Barão de Camargos, processos de devassa da Inconfidência Mineira, dentre outros.
Agradeço a historiadora Suely Maria Perucci Esteves, funcionária do Museu da Inconfidência, que me
ajudou a entender a conformação do arquivo. Informações também retiradas de: MOURÃO, Rui. O início
de tudo, um incêndio. In: Isto é Inconfidência: Boletim Informativo do Museu da Inconfidência, ano V, nº
11, Ouro Preto, 2003, 5p.
24
Como explicaremos no capítulo 2, eram considerados órfãos apenas os menores de 25 anos cujos pais
eram falecidos.
28
a nomeação de um tutor. Além disso, era importante traçarmos um perfil
socioeconômico das famílias que moravam no Termo de Vila Rica25. Isso porque,
segundo o estabelecido na legislação da época, a educação direcionada aos órfãos
deveria respeitar o pertencimento a determinados grupos socioeconômicos. Nesses
termos, para investigar as ações femininas ligadas à educação dos órfãos,
dependíamos dessa classificação.
Assim, cada documento foi aberto na tentativa de identificarmos o estado civil, a
existência ou não de filhos e, em caso negativo, quem eram os herdeiros. Além disso,
se havia testamento, o local de moradia, a composição dos bens, especialmente o
número de escravos e o valor do monte-mor. Quando os herdeiros eram menores de 25
anos, buscamos também informações mais específicas, ligadas à educação e
administração das legítimas das crianças e jovens, tais como: quem era o tutor e como
havia ocorrido essa nomeação, quem estava com os menores, que tipo de educação
eles recebiam e se havia contas de tutela.
Para estabelecermos esse perfil socioeconômico, recorremos à metodologia
utilizada por Gorgulho (2011), inclusive os mesmos critérios de classificação, quais
sejam: os valores referentes aos patrimônios acumulados e o número de escravos. Além
disso, seguimos a mesma porcentagem estabelecida pela citada autora e dividimos os
inventários pertencentes aos homens em três grupos distintos: 20% mais abastados,
isto é, aquele grupo com maiores patrimônios; 20% daqueles sujeitos detentores das
menores riquezas, que nomeamos como menores patrimônios. Já o restante da
documentação – 60% – classificamos como pertencentes ao grupo de patrimônios
intermediários.
No universo de 687 inventários feitos por morte de um homem que conseguimos
identificar, trabalhamos apenas com aqueles em que constava o valor do monte-mor,
ou seja, a soma de todos os bens do falecido26. Sendo assim, para esta pesquisa foram
considerados 505 documentos, conforme o gráfico 1.
25
Importante reforçarmos que as pessoas que faziam inventários eram, como já mencionado, aquelas que
possuíam bens para serem inventariados. Sendo assim, muitos moradores no Termo de Vila Rica estavam
previamente excluídos do ato de inventariar e, por consequência, do nosso estudo. Somamos a isso as
questões ligadas às dificuldades de conservação dos documentos, que no caso do AHMINC/IBRAM foram
agravadas pela ocorrência do incêndio já citado. Apenas para pensarmos a respeito, como já destacamos, o
Termo de Vila Rica possuía, por volta de 1808, 22.222 habitantes, distribuídos em 15 arraiais. Para todo o
período da nossa pesquisa, conseguimos identificar 1.049 documentos, somados os inventários de homens
e mulheres. Isso quer dizer que o grupo de inventariados por si só já representa uma amostra da população
do Termo. Por isso, ao tentarmos estabelecer um perfil a partir dessa documentação, estamos cientes de que
muitos dos sujeitos que ali viveram não foram contemplados.
26
A partir da análise da documentação, detectamos alguns inventários em que o monte-mor não havia sido
calculado. Não conseguimos identificar os motivos que provocavam tal situação. Entretanto, percebemos
que em alguns casos isso ocorria porque algum bem ainda precisava ser avaliado. Importante mencionarmos
ainda que foram excluídos os documentos que estavam em péssimo estado, impossibilitando o manuseio
— um total de 23 documentos. Outro ponto importante a ser mencionado é que consideramos o valor total
29
No primeiro grupo, constituído pelos proprietários de maiores patrimônios,
separamos 101 (20%) inventários em que o valor total de seus bens era superior a
3:427$859. Já no terceiro grupo – menores patrimônios – incluímos os 101 (20%)
inventários cujo monte-mor era inferior a 353$119. No segundo grupo – patrimônios
intermediários –, foram classificados os 303 (60%) inventários que estavam entre essas
faixas de riquezas acima mencionadas.
Gráfico 1:
303
300
200
101 101
100
0
Grupo 1 - 3:427$859 a Grupo 2 - 353:675 a Grupo 3 - 11:150 a
58:112$140 3:384$760 353:119
Valor do Monte-Mor
do monte-mor, sem o abatimento das dívidas. Conforme a legislação e como iremos ressaltar no capítulo
2, quando era feito o inventário, todos os débitos do falecido deveriam ser pagos antes de ocorrer a partilha,
o que poderia equivaler ao empobrecimento de algumas famílias. Nossa intenção ao levar em conta a soma
de todo o patrimônio antes de qualquer pagamento foi traçar o perfil socioeconômico das famílias no
momento de falecimento do inventariado.
30
Gráfico 2:
12 12,9
Número de Escravos
10
8 grupo 1
6 grupo 2
grupo 3
4
4,26
2
0,72
0
grupo 1 grupo 2 grupo 3
27
Importante mencionarmos que, além do número de escravos e o valor do monte-mor, foram analisados
também outros dados presentes nos inventários, como: a ocupação dos inventariados e as redes de
sociabilidades descritas nos documentos. Em consequência, alguns documentos tiveram alteradas a
classificação. Isso ocorreu com 4 documentos eleitos: 3 que transferimos para o grupo 1 – maiores
patrimônios e 1 que movemos para o grupo 3 – menores patrimônios. Citemos aqui, por exemplo o caso
do inventário de Francisco Coelho Brandão. Ele era capitão, proprietário de terras agrícolas e minerais,
além de 24 escravos. Todos os bens foram avaliados em 2:575$150. Por causa da sua ocupação e o grande
número de escravos – que lhe conferia certo status – optamos por analisá-lo no grupo 1 – maiores
patrimônios. Inventário de Francisco Coelho da Silva Brandão. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 51,
Auto 624, 1806.
31
das tutorias exercidas por homens e aquelas desempenhadas pelas mulheres, e
identificamos que 234 eram tutores e 124 eram tutoras, que foram classificados
conforme o gráfico 3.
Gráfico 3:
150
153
100
50 77
16
31 43 38
0
grupo 1 grupo 2 grupo 3
28
Em 27 documentos, apesar de existirem herdeiros menores, não foi possível identificar quem assumiu a
tutoria. Isso ocorreu porque alguns documentos acabaram sem ocorrer a nomeação de um tutor ou estavam
em péssimas condições, impossibilitando o manuseio. Sabemos que, conforme indicou Oliveira (2008), em
muitos casos, o juiz de órfãos tinha dificuldades para nomear um tutor, pois as pessoas indicadas alegavam
certos impedimentos, como: doenças, compromissos militares, viagens, etc.
32
analisados especialmente no capítulo 2. Nele buscamos evidenciar as ações das
mulheres enquanto tutoras para educar os órfãos e garantir a sobrevivência da família,
conforme o seu grupo socioeconômico. Ao mesmo tempo, tentamos demonstrar como
a tutoria possibilitava maior autonomia para as mulheres.
Já os 54 inventários em que a tutoria era desempenhada por um homem foram
analisados no capítulo 3. A partir desses documentos procuramos trazer à luz as
parcerias estabelecidas entre as mulheres e os tutores. Esses documentos ajudaram-
nos a compreender que as ações femininas ligadas aos direcionamentos educativos dos
órfãos e à sobrevivência da família poderiam ocorrer mesmo que elas não fossem as
responsáveis legais. E, além disso, que as mulheres realmente tomaram para si, em
alguma medida, os papéis de educadoras e responsáveis pelas famílias.
Uma vez apresentadas as nossas fontes, consideramos importante
evidenciarmos os conceitos eleitos para nos ajudar a inquiri-las.
29
Entende-se que o referido pensador produziu sua teoria e posicionamentos analisando contextos
específicos e muito diferentes daquele que a presente pesquisa busca analisar. Entretanto, ainda assim
acreditamos que os conceitos cunhados pelo teórico podem ajudar a alcançar um pouco da realidade eleita.
Para isto, os conceitos e posicionamentos foram adaptados, aproveitando-se a plasticidade que eles
possuem, a fim de melhor atender a realidade estudada.
33
Nesse sentido, tentamos utilizar a noção de capital social para analisar as redes
de sociabilidade que as mulheres construíam. E, além disso, os benefícios que poderiam
ser adquiridos a partir do uso dessas redes.
Destacamos ainda o conceito de estratégia. Conforme Nogueira, citada por
Fonseca (2009a, p. 11), o conceito de estratégia refere-se “ao fazer” e pode ser “fruto
de decisões explícitas e racionais, [mas, ao mesmo tempo] do processo de
interiorização das regras do jogo social [que] revelam a intuição prática que marca o
bom jogador, o estrategista”. É ainda, conforme Bourdieu (2004, p.81), um “produto do
senso prático (...) historicamente definido, que se adquire desde a infância, participando
das atividades sociais”.
As estratégias seriam ações ordenadas pelo habitus30 e poderiam ser frutos da
“arte de jogar”, mas, também, de escolhas e de oportunidades. Assim, poderiam ser
produtos da vivência, das expectativas marcadas pelo costume e, finalmente, da
participação ativa no processo social.
Tomando como base essa definição de estratégia por Bourdieu, utilizamos o
conceito para pensarmos as ações desenvolvidas pelas mulheres na tentativa de
possibilitar às crianças e jovens a apropriação de conhecimentos específicos ou, por
outro lado, buscando produzir determinados valores. Assim, o conceito foi utilizado para
pensarmos nas ações calculadas, como: lançar mão de auxílios monetários para enviar
os filhos para a escola, ou escolher dar acesso aos conhecimentos de leitura, escrita ou
algum ofício. Ao mesmo tempo, ele nos ajudou a pensar em determinadas práticas
desenvolvidas sem um planejamento, ajustadas às “regras do jogo”, como uma espécie
de aproveitamento das oportunidades existentes. Citemos aqui ações como: no
momento de sua morte, legar determinados bens nos testamentos — oratórios, imagens
de santos e crucifixos —, podendo estes estar revestidos de intenções educativas
religiosas.
O conceito de estratégia permitiu ainda analisar as situações em que, sendo a
tutela dos menores conferida a outra pessoa, as mulheres acabaram criando ou
concordando com determinadas situações a fim de participar do processo educativo de
entes — filhos, netos, sobrinhos. Dessa forma, aqui o conceito foi utilizado para
analisarmos as ações femininas reinventadas a fim de se adaptarem às situações
surgidas ou, como mencionou Bourdieu, conforme a "demanda do jogo". Nesse caso,
30
Conforme Bourdieu (2009, p. 87), o habitus é um "sistema de disposições duráveis e transponíveis",
entendidos como “princípios geradores e organizadores de práticas e de representações que podem ser
objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a intenção consciente de fins e o domínio expresso das
operações necessárias para alcançá-los, objetivamente 'reguladas' e 'regulares' sem em nada ser o produto
da obediência a algumas regras e, sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação
organizadora de um maestro”.
34
as mulheres não deixavam de respeitar os limites, “as regras” previamente
estabelecidas, mas, ao mesmo tempo, criavam outras possibilidades a partir de suas
ações que davam oportunidades para participar do processo educativo dos menores.
Nesse mesmo sentido, isto é, de ações ordenadas tanto pelo "sentido do jogo"
(habitus) como também pelas situações apresentadas pelo contexto, o conceito de
estratégia ajudou-nos ainda a pensar nas ações das mulheres para solicitar a tutela dos
menores. Entendemos, por exemplo, que quando uma mulher solicitava a mercê régia
para tutelar seus filhos, ainda que respeitando as regras presentes nas Ordenações
Filipinas, elas acabavam produzindo algumas práticas que estavam inscritas em
conhecimentos ou "sentidos do jogo", internalizados pela experiência que não estavam
expressos na legislação ou noutros tipos de normas. Assim é o caso, por exemplo,
quando acionava as suas redes de sociabilidades para atestar a sua condição de ser
tutora31.
Mas, além dos conceitos de Bourdieu, percebemos que a categoria “gênero” era
extremamente válida para o presente estudo. Como tentamos demonstrar ao longo
desta tese, os papéis estabelecidos para os homens e para as mulheres acabavam,
muitas vezes, se imbricando em decorrência das necessidades que eram impostas pelo
cotidiano. Diante disso, para pensarmos na atuação das mulheres acabamos
percebendo que necessariamente teríamos que considerar um aspecto ressaltado por
Gonçalves (2006, p. 74) de que toda a ação da ou para a mulher deve ser analisada na
perspectiva relacional, como resultado da "interação social construída e remodelada
incessantemente" em virtude do contexto.
Sendo assim, entendemos que a categoria “gênero” seria válida, pois a partir
dela podemos refletir a respeito das diferentes relações sociais identificadas e que foram
estabelecidas entre as mulheres e os homens do seu convívio. Assim, inspirando-nos
nas definições de Scott (1990, p.14), tal categoria nos ajudou a pensar essas relações
que foram “fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos”.
A partir do aporte teórico-metodológico apresentado, podemos dizer que a
presente tese foi uma tentativa de aprofundar a noção de educação existente no período
e, de modo especial, evidenciar o papel exercido pela mulher dentro do projeto
educativo de crianças e jovens, conforme o seu pertencimento social. As fontes,
“iluminadas” por esse referencial teórico apresentado, ajudaram-nos a perceber que as
mulheres acabaram realizando um "jogo" marcado, de um lado, pelas prescrições
31
Conforme o estabelecido pela legislação, quando uma mulher solicitava a tutoria, necessariamente
deveriam ser ouvidas testemunhas, fornecidas pela requerente, que atestariam ou não a condição para tal.
Acreditamos que, muitas vezes, as mulheres, na tentativa de possibilitar declarações positivas sobre suas
vidas, acionavam a sua rede de sociabilidades. Esse assunto será melhor discutido no capítulo 2.
35
difundidas pelas autoridades civis e religiosas e, de outro, pelas tensões e necessidades
presentes no seu cotidiano.
Ao realizarem esse “jogo”, as mulheres aproximaram-se de dois objetivos
pensados para elas pelas autoridades civis e religiosas: o grupo feminino estava de
modo progressivo assumindo a sua função como educadora; e, ligado a isso, suas
ações, quando produziam determinados conhecimentos e posturas nos menores,
atendiam de certa maneira aos "anseios e desejos" imaginados de educar os sujeitos.
36
elaborados para esta tese. Nesse capítulo buscamos ainda evidenciar alguns casos em
que as mulheres tiveram problemas com a administração dos bens, inclusive tendo suas
capacidades questionadas. E, finalmente, apresentamos as ações femininas para a
educação dos órfãos segundo o sexo e o seu pertencimento nos grupos
socioeconômicos.
O terceiro capítulo – “Parcerias que deram certo? – Ajustes entre homens e
mulheres para a educação e conservação dos órfãos” – reservamos para apresentar as
parcerias constituídas entre as mulheres e os tutores. Buscamos evidenciar que,
segundo o nosso entendimento, uma vez estabelecidos esses “acordos”, as mulheres
mantinham a oportunidade de participar das decisões e ações ligadas ao patrimônio e
sobrevivência familiar, além de contribuir para a definição dos direcionamentos
educativos dos órfãos. Primeiramente, estabelecemos um perfil dos homens e mulheres
que formaram essas parcerias. Depois, procuramos refletir sobre os motivos e de que
maneira esses “acordos” eram constituídos. Em seguida, apresentamos algumas
parcerias que não deram certo. Procuramos ainda evidenciar alguns direcionamentos
educativos surgidos dessa parceria. Assim como no capítulo anterior, os investimentos
na educação dos órfãos foram analisados tentando estabelecer uma relação entre a
educação ofertada e o sexo e o pertencimento ao grupo socioeconômico organizado
para esse estudo. Finalizamos esse capítulo apresentando um estudo de caso na
tentativa de evidenciar de modo mais detalhado que as parcerias não impossibilitavam
a ação feminina na educação dos órfãos e manutenção da família.
Para fecharmos a presente tese, dissertamos no último capítulo – “Entre o desejo
e a prática – as formas de atuação feminina na educação de menores e na manutenção
da família” – sobre as outras formas de atuação feminina. Para isso, deixamos de lado
os órfãos e investimos nossos esforços para investigar as ações das mulheres na
educação de seus filhos, sobrinhos, afilhados, netos e enjeitados. Ao mesmo tempo,
buscamos analisar o empenho feminino para a sobrevivência de suas famílias.
Dividimos esse capítulo em duas partes. Num primeiro momento trabalhamos com as
ex-escravas e descendentes. A partir da documentação eleita e das discussões já
desenvolvidas pela historiografia, tentamos desenhar o perfil desse grupo. Ainda
referente às mulheres forras e sua descendência, partimos das disposições presentes
em seus testamentos e procuramos analisar alguns legados como intenções educativas
para as crianças e jovens. Baseando-nos nesses mesmos legados, tentamos evidenciar
determinadas disposições voltadas para a garantia do sustento e sobrevivência do
menor, especialmente depois do falecimento da testadora. Depois, utilizamos os
indícios existentes nos inventários dessas mulheres e trouxemos as práticas educativas
ali presentes que eram frutos das intenções testamentárias ou de ações desenvolvidas
37
antes do falecimento da inventariada. Na segunda parte do capítulo, ativemo-nos às
mulheres que acolheram os menores, sem necessariamente ter alguma relação de
parentesco. Buscamos primeiramente demonstrar a dinâmica do abandono e o
acolhimento. Depois, baseando-nos na documentação camarária, procuramos
estabelecer o perfil das acolhedoras. Finalizamos o presente capítulo destacando as
práticas para a sobrevivência e a educação dos acolhidos.
38
CAPÍTULO 1
EDUCAÇÃO PARA A CONFORMAÇÃO DE UMA “SOCIEDADE ORDEIRA”
Nos idos de 1788, o capitão e músico José Félix de Magalhães e Faria deixava
suas últimas vontades registradas em testamento. Ele encontrava-se doente, mas fez
questão de declarar que estava em perfeito juízo. Após encomendar sua alma à
Santíssima Trindade e pedir a intercessão de todos os santos de sua devoção, deixou
informações sobre sua pessoa. Filho natural do Tenente Bernardo de Magalhães e Faria
e Maria das Neves, ambos falecidos, declarou que era casado na “forma do Sagrado
Concílio Tridentino” com Leonor Maria e Martins, com quem havia tido três filhos.
O cotidiano de José Félix parecia ser marcado pela presença feminina pois, de
todas as pessoas de sua convivência, escolheu sua esposa e mais duas irmãs para
serem suas testamenteiras, além de administradoras de seus bens. A confiança em sua
esposa também se fez presente quando estabeleceu as condições de seu
sepultamento, pois determinou que tanto o funeral, o enterro, quanto a sepultura seriam
feitos à eleição de sua mulher. Finalmente, preocupado em, de alguma maneira,
participar do futuro de seus filhos, indicou quem deveria cuidar da criação e educação
deles.
O capitão José Félix nomeou sua esposa e, na falta dela, qualquer uma de suas
irmãs para tutora de seus filhos33. De acordo com o entendimento dele, não havia
“ninguém melhor do que elas” para “cuidar na boa educação e criação deles”. Mas o
que poderiam significar essas palavras do testador? Em que estava baseado esse
entendimento sobre essa “grande capacidade” dessas mulheres? E qual era a
compreensão a respeito dessa “boa educação e criação” de seus filhos?
No Termo de Vila Rica, assim como em outros domínios de Portugal, a
população tomou para si algumas proposições acerca da importância da formação dos
indivíduos, influenciada por algumas concepções então circulantes. Era necessário
“ordenar” a população e cuidar da difusão dos bons costumes e da construção de bons
súditos. Nossa intenção neste capítulo é discutir esses aspectos.
Para isso, destacaremos brevemente algumas concepções a respeito dos
termos educação, criação e instrução que circulavam no período. Nosso objetivo é
32
Inventário de José Félix de Magalhães e Faria. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 24, Auto 255, Ano
1788. (Grifo nosso).
33
A função do tutor será discutida no capítulo 2.
39
demonstrar o entendimento sobre cada um deles e a importância que assumiram para
aquela sociedade e na sua conformação. Depois, apresentaremos a família como
instituição educativa. A proposta é, primeiramente, trazermos os estudos em torno
dessa temática. Depois, considerando suas diferentes conformações, iremos analisá-la
como um espaço para a formação dos indivíduos e que tinha o papel de participar do
processo de difusão de boas maneiras, bons exemplos, saberes e cuidar do sustento e
sobrevivência das pessoas. Finalmente, traremos a mulher como educadora e “capaz”
e, para isso, apresentaremos algumas ideias a respeito delas e de seus papéis,
presentes nas obras e discursos das autoridades civis e religiosas que se manifestavam
no período e também na documentação estudada.
Entendemos que a concepção existente no período, que buscava ordenar a
população e torná-la mais civilizada, nos moldes Europeus, elegeu a família e seus
sujeitos para a tarefa de educar. Nossa hipótese é que esse discurso acabou por ser
internalizado progressivamente pelas mulheres e que elas assumiram essa função,
direcionando as crianças e jovens para algum tipo de aprendizado e levando-os a
valorizar os preceitos civis, religiosos e os “bons costumes”.
Nesse sentido, acreditamos que discutir a respeito das concepções educativas
e seu valor para aquela sociedade, além da importância da participação da família nesse
processo e, de modo especial, da mulher, pode nos ajudar a entender as ações
femininas para a sobrevivência do seu grupo familiar e para a educação das crianças e
jovens, conforme será apresentado nos demais capítulos. Além disso, entendemos que,
especialmente a partir dos indícios presentes nos inventários e testamentos, será
possível apresentar o nosso entendimento sobre a “capacidade” feminina, a mulher no
papel de educadora e também preocupada com o futuro e com a manutenção ou
promoção dos capitais – econômico, social e cultural – de sua família.
Conforme destacou Fonseca (2009a), entre os séculos XVII e XVIII, ocorreu uma
expansão da produção intelectual na Europa, influenciada pelo pensamento moderno.
Nessas obras, de acordo com a autora, uma das principais questões eram as
discussões a respeito da difusão do saber científico. Os debates quase sempre
perpassavam pela preocupação que ia desde os diferentes modelos de anunciação, a
liberdade de expressão até os métodos de socialização desse saber.
Em meio a essas questões, as reflexões a respeito dos métodos de estudo
assumiram papel de destaque, pois a partir delas foram desenvolvidas "ideias acerca
40
das condutas sociais e da educação desejáveis para os diversos grupos da sociedade"
(FONSECA, 2009a, p. 15). Isso evidenciou, na verdade, a importância dada à educação,
pois a partir dela, de acordo com as concepções do período, uma nova humanidade
seria modelada34. Nas palavras de Fonseca (2009a, p. 15), "a educação seria um
instrumento para a organização harmoniosa da sociedade, tendo como objetivo a
promoção do bem comum". Dito de outro modo, ela era vista no período como um
mecanismo de difusão da moral e “bons costumes”, além de ordenamento. Além disso,
segundo a autora, ela estaria relacionada com a ação civilizadora europeia existente no
período.
A palavra educação, de acordo com Martins (2005, p.33), "é a forma
nominalizada do verbo educar que, por sua vez, vem do latim educare". Derivada de
educere, ela possui o sentido de "levar, conduzir, guiar". Em termos etimológicos, seu
sentido era "trazer à luz a ideia", possibilitar que a criança passasse da "potência ao
ato", como tentativa de prepará-la para o mundo.
De acordo com Romanelli (1978, p.23), o processo educativo é composto de dois
aspectos interdependentes. O primeiro deles seria o "gesto criador" que, conforme a
autora, resultaria "do fato do homem 'estar-no-mundo' e com ele relacionar-se,
transformando-o e transformando-se". Já o segundo, compreendido por Romanelli como
"gesto comunicador", compreende a "execução" — quando são transmitidos os
resultados da experiência humana a outrem.
A palavra educação remete-nos para uma construção histórico-social. Isso
porque, ao se pensar no processo educativo, necessariamente devemos levar em conta
os diálogos e as relações que o ato de educar estabelece com uma sociedade em um
determinado tempo e lugar. Isso significa pensar as finalidades que a sociedade espera
da educação e as representações que o ato educativo ajuda a criar sobre aquele
contexto específico e nele inserido.
A educação deve, conforme o ideal esperado, propagar os imaginários
idealmente concebidos na tentativa de preparar o indivíduo para viver em comunidade;
mas, ao mesmo tempo, ela deve também ajudar a pensar nos modelos e papéis. Em
outras palavras, ela é um dos mecanismos criados para difundir saberes, crenças,
valores e habilidades circulantes na vida social, mas deve também participar do
processo de construção de modelos de homens e mulheres que idealmente cada
sociedade procura realizar. Nas palavras de Brandão (2004, p.73-4),
34
Conforme destacou Martine Sonnet (1991, p. 149), 212 obras aproximadamente foram publicadas na
Europa entre 1715 e 1790 tendo como tema principal a educação. Dessas, mais de 70% se concentram no
período de 1760 e 1790.
41
A educação é uma prática social (como a saúde pública, a
comunicação social, o serviço militar) cujo fim é o desenvolvimento do
que na pessoa humana pode ser aprendido entre os tipos existentes
de saber em uma cultura, para a formação de tipos de sujeitos, de
acordo com as necessidades e exigências de sua sociedade, em um
momento da história de seu próprio desenvolvimento.
35
Sobre o termo modernidade e as discussões sobre as alterações no modo de perceber os indivíduos,
relacionadas a um processo de aprendizagem, ver VEIGA (2004).
42
sociedade moderna e detentor de novos conhecimentos práticos então eleitos como
modelos36.
Esse entendimento a respeito da educação representou uma transformação na
concepção social, na qual a possibilidade de construção de uma sociedade não teria
como base, pelo menos em tese, o controle teológico, e, sim, forças individuais e sociais
postas em prática que permitiriam a “geração do homem por parte do homem” (CAMBI,
1999, p. 327). Baseando-se em Foucault, Cambi (p. 201) destacou ainda que a obra da
educação estava relacionada à noção de controle e, nesse sentido, o projeto educativo
de interiorização do domínio social deveria ocorrer através de ações difusas e capilares,
sendo eleitos, para isso, não apenas aspectos relativos ao corpo, tais como o controle
minucioso dos gestos e atitudes físicas, mas também, e sobretudo, a consciência.
Na mesma linha de raciocínio, Fonseca (2014b, p. 02), atendo-se ao mundo luso-
brasileiro, destacou que, durante o século XVIII e primeiras décadas do século XIX, as
concepções sobre educação então em voga "vinham de uma tradição intelectual e
político-administrativa que a entendia como um conjunto de ações voltadas para a
formação do súdito cristão", sendo ainda percebida como parte fundamental para a
construção de uma civilidade, devendo, por isso, ser difundida nas mais diferentes
"dimensões da vida social".
Conforme a autora (2009a, p. 31), para as autoridades civis e religiosas, a
educação "fosse qual fosse a sua natureza, surgia como solução possível para o
propalado estado de desordem e de falta de civilidade" que então era percebido durante
a ocupação/colonização do território no continente americano. Em outras palavras, a
educação — nas suas diferentes formas e possibilidades — seria a alternativa para se
alcançar o controle da população, como oportunidade para organizar a sociedade.
Assim sendo, defendia-se que diferentes ações, empreendidas pelas mais diversas
instituições e em distintos espaços, ensejariam a oportunidade de difundir valores,
comportamentos e normas. A intenção era que, no intuito de produzir uma civilidade no
território americano conquistado, a educação deveria envolver "diferentes aspectos e
[poderia] manifestar-se no comportamento e nos costumes na sua dimensão moral, nas
práticas do trabalho e da produção, nas relações entre a população e as instituições
dominantes". (FONSECA, 2009a, p. 34).
Atendo-nos às apropriações e usos dos termos educação, instrução e criação
existentes nas obras e dicionários que circulavam no período estudado, percebemos
36
Esses conhecimentos práticos foram chamados por Ariès de civilidade. Conforme Norbert Elias (2011)
a civilidade estaria relacionada com a preocupação por parte das pessoas com o controle de suas emoções,
a regulação dos seus impulsos, buscando modificar suas posturas, costumes e atitudes e, ao mesmo tempo,
passando a observar também as outras pessoas à sua volta.
43
que, muitas vezes, os entendimentos a respeito das três palavras estavam
estreitamente interligados. E, quando nos restringimos aos documentos manuscritos
investigados, a mesma percepção quanto à dificuldade de distinção entre eles aparece,
especialmente quando analisamos a conjunção educação e criação e educação e
instrução.
Alguns estudos (FONSECA, 2016; 2009a; PAULA 2016) já apresentaram as
concepções educativas e o entendimento sobre os termos educação e instrução
presentes em obras e manuais pedagógicos produzidos entre os séculos XVII e XVIII37.
Conforme esses autores, eram as ideias existentes nessa produção intelectual que
circulavam no período abarcado pela presente pesquisa – últimas décadas do século
XVIII e primeiras do século XIX. Segundo esses estudos, nas obras e manuais
analisados, os termos educação e instrução indicavam, geralmente, o processo de
formação dos indivíduos para que pudessem viver de maneira adequada em sociedade,
de acordo com os referenciais e os valores aceitos e legitimados.
Após buscarem as aproximações e diferenças de cada pensador a respeito do
entendimento sobre os termos educação e instrução, eles perceberam que os sentidos
atribuídos nessas obras e manuais convergiam para uma mesma compreensão.
Segundo os autores, resguardadas as distinções de cada pensador e contexto
específico de produção, em todas as obras o termo educação estava sempre
relacionado à ideia de formação geral dos indivíduos, ou seja, a educação estava
sempre ligada à preparação moral para o convívio social nos quadros cristãos. Já o
termo instrução era entendido como um conceito que se relacionava à ideia de aquisição
de conhecimentos mais práticos, úteis para a sociedade, por exemplo: ler, escrever e
contar e a aprendizagem de ofícios mecânicos. Para alguns pensadores, dentre eles
John Locke (1632-1704) e Jean-Jaques Rousseau (1772-1778), a instrução daria,
inclusive, a base para a educação.
Nos dicionários que circulavam no nosso período estudado, é possível também
identificarmos as conceituações da época. Conforme Rafael Bluteau, autor do primeiro
dicionário da Língua Portuguesa, chamado Vocabulário Portuguez e Latino (1712), a
palavra educação seria definida como “criação, ensino para a direção dos costumes”.
37
As obras analisadas pelos autores foram especialmente: Didática Magna (1657) de Jan Amos Comenius
(1592-1670); Somes Thoughts Concerning Educations (1692), de John Locke (1632-1704); Emílio ou Da
Educação (1762) e Considerações sobre o governo da Polônia (1782), de Jean-Jaques Rousseau (1772-
1778); Verdadeiro Método de estudar (1746), de Luis Antonio Verney (1718-1792); e Cartas para a
educação da mocidade (1760), de Antonio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783); Apontamentos para a
educação de um menino nobre (1734), de Martinho de Mendonça de Pina e Proença, e Encyclopédie ou
Dictionnaire Raisonné das Sciences, das Arts et des Métiers, organizada por Diderot e D’Alembert e
editada entre 1751 e 1772.
44
Educar, por sua vez, seria “criar”; e educado, o mesmo que “criado, ensinado”. Já no
dicionário de Antonio de Moraes e Silva, Diccionario da Língua Portugueza (1789),
educação seria a "criação que se faz em ou se lhe dá ensino de coisas, que aperfeiçoam
o entendimento ou servem de dirigir a vontade, e também do que respeita ao decoro".
Educar, por sua vez, seria "criar, dar ensino e educação, doutrinar a mocidade". A partir
dessas definições, buscamos o sentido para a palavra ensino e ensinar. Para Bluteau,
ensino seria “o que o mestre ensina ao discípulo”, mas também “criação”. E ensinar
seria ”comunicar e dar lição do que se sabe”, “ensinar uma arte ou ciência”, inclusive as
letras, mas também “ensinar a alguém o caminho”. Moraes e Silva, por sua vez, entendia
que ensinar seria o mesmo que “instruir alguém em arte, ciência ou qualquer coisa que
ele ignora”; mas também “mostrar (...) o caminho (...) e as direções por que alguém se
guie”. O ensino consistiria em “instrução, educação” e, no plural, seria o mesmo que
“conselhos, direções, preceitos”.
O termo instrução, para Bluteau, equivaleria à “ação de instruir”, mas poderia ser
também “documento (...) para conhecimento das ciências”. E instruir seria o mesmo que
“ensinar”, “instruir alguém na língua grega” ou ainda “instruir alguém do modo com que
há de governar”, cabendo ainda o sentido de “advertência”. O termo instrução para
Moraes e Silva significaria “ensino, educação”, mas também poderia ser um “documento
(...) para se reger por ele”. Instruir equivaleria a “ensinar, dar ensino (...) instruir alguém
nos preceitos da retórica, da filosofia”, todavia poderia também assumir o sentido de
“fazer-lhe advertência”.
Finalmente, buscamos o sentido do termo criação. Para Bluteau, criação seria
“educação”, “a ação com que se constitui alguém em dignidade”; mas também se diz da
“eleição e constituição dos sujeitos em algum ofício ou dignidade para o serviço do
príncipe ou da república”. O autor estabeleceu que poderia significar ainda a referência
à saúde de um indivíduo “bem-criado”. Já o termo criar seria “dar a ser”, “ensinar,
instruir”. Moraes e Silva, por sua vez, entendia que criação seria “a educação que se
dá, e sustento”. E criar, o mesmo que “tirar do nada”, “alimentar aos peitos ou dar de
comer (...) dar educação e alimentos (...) concorrer para existir”.
Pelo que podemos perceber, de um modo geral, não havia uma distinção clara
entre os termos nos dois dicionários do período. Apenas nos verbetes criação e criar é
que conseguimos perceber uma maior distinção para os dois autores, já que, para
Bluteau, esses dois verbetes incluíam a ação de instruir, e para Moraes e Silva pareciam
45
estar restritos ao cuidado diário e ao sustento. Nas demais palavras, o que identificamos
foi uma aproximação dos significados para os dois autores38.
Além disso, percebemos que existia uma sobreposição de sentidos para os
termos, fazendo com que as concepções se encontrassem tão imbricadas que se tornou
difícil separá-las quando tentamos analisar o significado de cada uma dessas palavras
isoladas. Para nós, essa convergência das definições presentes nos dicionários era uma
expressão dos valores da época daquela sociedade que ainda caminhava para o
estabelecimento das distinções entre esses vocábulos.
Por fim, a partir das definições presentes nos dois dicionários, percebemos que
o termo educação servia como uma espécie de “guarda-chuva” que abarcava todos os
demais conceitos. Em outras palavras, educar, para o entendimento da época,
representava desde o ensino de saberes e lições produzidas pela e a serviço da
sociedade, tais como: as letras, ofícios, etc.; até conhecimentos mais gerais, para o
“bom convívio”: a preparação moral, os “bons costumes”, formação religiosa e civil, etc.
António Gomes Ferreira, em seu livro Gerar, criar e educar (2000), analisou “a
criança no Portugal do Antigo Regime” e, de modo especial, os saberes médicos
dedicados à infância. Ao destacar as funções da família, instituição educativa que
iremos analisar a seguir, ele nos ajudou a entender os sentidos dados especialmente
para os termos criar e educar naquele contexto. Conforme o autor (2000, p. 424), alguns
pensadores entendiam que cabia ao grupo familiar, “além de gerar”, o papel de “criar,
no sentido de conservar e educar, dentro dos limites que a religião impunha”. Isso
permite dizer que havia, do mesmo modo como percebemos a partir dos dicionários,
uma aproximação entre os dois termos, sendo as duas ações parte de um mesmo
processo.
Ao tratar dos afetos existentes dentro do ambiente familiar para com as crianças,
Ferreira nos trouxe mais detalhadamente essas tarefas. De acordo com o autor (2000,
p. 286), para muitos pensadores era necessário iniciar o quanto antes uma cuidadosa
educação dos menores, de modo a assegurar os “bons costumes”, que, depois, seriam
difíceis de serem introduzidos. Na verdade, conforme Ferreira, para alguns estudiosos
era necessário demonstrar aos pais a importância do cuidado com a preservação física
38
É necessário mencionar que, até determinado período, o dicionário de Moraes e Silva era considerado
uma espécie de reformulação do dicionário de Rafael Bluteau. Inclusive, a capa da obra de Moraes e Silva
traz essa informação. Entretanto, conforme destacou o autor Telmo Verdelho (2003, p. 477), apesar do
dicionarista Moraes e Silva ter aproveitado “de maneira sistemática grande parte da nomenclatura e muitas
definições da obra” de Bluteau, é importante considerar seu dicionário uma obra nova e própria. Ainda
conforme Verdelho, somente cerca de 30% do dicionário de Moraes e Silva contêm informação aproveitada
da obra de Bluteau. De qualquer modo, entendemos que, ao tomar como base o dicionário de Bluteau,
Moraes e Silva acabou se aproximando das definições dos significados de muitos verbetes por ele
trabalhados.
46
de sua prole, bem como a importância de direcioná-los para os “bons costumes”. Assim,
reforçavam a importância da chamada "boa criação", sendo esta entendida como a fonte
de todos os hábitos —os bons e os maus.
Citando Duarte Ribeiro de Macedo (1743), Ferreira explicou que essa "boa
criação" "não era outra coisa mais 'que huma diligente cultura do ânimo', com a qual se
dava 'lume ao entendimento, imperio à razão, limites à vontade, freyos aos affectos,
regras às acçoes, galhardia ao corpo". Já a educação, de acordo com Gomes Ferreira
(2000, p. 287), deveria contemplar não apenas os "vários aspectos do desenvolvimento
físico", mas, sobretudo, "atuar sobre o controle das paixões e a formação do caráter".
Na documentação manuscrita analisada no presente estudo, não identificamos
uma distinção clara, especialmente para os binômios instrução e educação e criação e
educação. De um modo geral, o termo instrução estava relacionado à ideia de ensinar
determinado conhecimento que poderia englobar a leitura, a escrita e algum ofício, mas
também os preceitos religiosos, ou seja, recaímos mais uma vez na ideia de
conhecimentos mais amplos para “bem viver” em sociedade. Já o termo criação estava
quase sempre ligado à noção de sustento e manutenção, mas também era utilizado
para destacar a educação “nos costumes”.
Estácio Ferraz de Sampaio era tutor, nomeado em testamento, dos três filhos
órfãos do falecido Doutor Casemiro Teixeira Machado e Cipriana Barbosa de Siqueira39.
Logo depois de assumir a tutoria, Estácio declarou que era seu interesse mandar os
órfãos para a casa do mestre André de Souza Benavides, o que foi concedido pelo juiz.
Segundo o tutor, André Benavides era “mestre de meninos e meninas nesta dita Vila
onde publicamente ensina”. Além disso, tinha “notícia da boa educação e doutrina com
que costuma ensinar aos meninos que a seu cargo tem tido (...) ensinando-os a ler,
contar, e tudo mais que conduz para a boa criação dos mesmos"40.
Já o Alferes Antonio Pereira de Carvalho era genro do falecido Nicolau Alves da
Costa e de sua esposa Ângela da Conceição, moradores de Vila Rica. Esse casal havia
tido cinco filhos, dos quais dois ainda não eram emancipados no momento do
falecimento do pai, e por isso foi necessária a nomeação do tutor. Para assumir tal
encargo, o juiz elegeu o citado genro. Apesar dessa eleição, a análise da documentação
demonstrou que os menores ficaram sob os cuidados da mãe. Nas contas de tutoria
apresentadas por seu procurador em 1782, o tutor declarou, dentre outros aspectos,
39
As circunstâncias para a nomeação de um tutor e os diferentes encargos desta função serão analisados no
capítulo 2, especialmente.
40
Inventário de Casemiro Teixeira Machado. AHMINC/IBRAM.2º Ofício, Códice 7, Auto 73, Ano 1767.
(Grifo nosso). Apesar de este documento ser de uma data anterior ao período eleito para o presente estudo,
julgamos interessante trazer alguns de seus fragmentos, pois encontramos nele alguns indícios sobre a
noção de educação. Agradecemos a Álvaro de Araújo Antunes a indicação deste inventário.
47
que os dois órfãos "se achavam em companhia de sua mãe”. O menor Joaquim “se
achava ocupado na extração mineral”. Já a órfã Ana estava “no exercício de suas
costuras”. Além disso, fez questão de mencionar que todos se encontravam “com boa
educação tanto civil como espiritual por saber a doutrina e o macho saber ler e
escrever”41.
Maria Rosa dos Anjos, por sua vez, estava criando o inocente Manoel, que havia
sido dado a Antonio José dos Santos para que este cuidasse do menor, mediando
pagamento fornecido pela Câmara42. Entretanto, conforme Maria Rosa, era ela quem
estava criando e alimentando o menor. Ainda segundo a citada mulher, ela estava
devendo de jornais para a ama do leite com que o criaram43.
Como podemos perceber, assim como as definições presentes nos dicionários
do período, há uma certa sobreposição dos sentidos presentes na documentação
estudada. De um modo geral, os termos instrução e criação tinham funções diferentes
nos manuscritos. Todavia, eles também poderiam ser utilizados quando havia uma
referência com o cuidado para a “boa educação”, entendido como a aquisição de “bons
costumes” e como preparação moral – na dimensão civil e religiosa.
Já a palavra educação, como conseguimos identificar, envolvia os diferentes
processos da formação dos sujeitos, incluindo desde os primeiros cuidados com
sustento, saúde e advertências para com os menores até o aprendizado de
conhecimentos mais específicos, ligados a alguma atividade ou assunto. Nesses
termos, para o entendimento daquelas pessoas, a ação de educar poderia ser percebida
com um meio de ordenar as pessoas, mas também garantir a sobrevivência e o sustento
futuro.
Christianni Cardoso Morais (2009, p. 189), estudando a posse e os usos da
cultura escrita e a difusão da escola, declarou que na documentação de São João del-
Rei ela teve a mesma dificuldade para distinguir os termos criar e educar44. Segundo a
autora, as duas palavras eram utilizadas como referência aos cuidados em favor das
crianças. Entretanto, no dia a dia não existia uma rígida diferenciação entre os termos,
sendo muitas vezes utilizados para significar “o ensino para a direção dos costumes”.
Parece que era esse pelo menos o entendimento do curador responsável pelo
cuidado e administração dos bens do inventário de Joaquim José Madeira. Quando
faleceu, Joaquim deixou cinco filhos, sendo quatro ainda menores. Conforme o curador,
41
Inventário de Nicolau Alves da Rocha. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 112, Auto 1424, Ano 1779.
(Grifo nosso).
42
Trataremos desse assunto no capítulo 4.
43
Documento de Maria Rosa dos Anjos informando da impossibilidade de ir até a Câmara. APM, CMOP,
cx. 67, doc. 86, 28/12/1795. (Grifo nosso)
44
Esse fato também foi destacado por Silvia Brügger (2007, p. 153).
48
as três órfãs "fêmeas" viviam em estado de devassidão, sem controle e expostas a todos
os vícios. O menino, por sua vez, graças ao poder da aprendizagem de um ofício, estava
sendo "corrigido" e vivia longe da libertinagem45.
Maria de Castro Lima era tutora de seu filho e, por sua vez, declarou em uma
das contas de sua tutoria, apresentada ao juiz de órfãos, que havia mandado seu único
filho e tutelado, chamado Ventura, para a escola para que pudesse aprender a ler e
escrever “para em todo o tempo poder ter saída e tratar da sua vida e ofício que haja de
aprender”46.
Assim, uma vez apresentadas algumas concepções a respeito de alguns termos
abrangidos pela ação de educar, cabe então pensarmos no processo em si. Para isso,
dentre as diferentes instituições que assumiram essa função, enfocaremos a família.
45
Inventário de Joaquim José Madeira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 21, Auto 231, Ano 1810. A
função de curador será explicada no capítulo 2.
46
Inventário de João Gonçalves Dias. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 66, Auto 801, Ano 1772. (Grifo
nosso)
49
se encontravam sujeitos aos poderes de um mesmo “paterfamilias”. Em sentido lato,
abarcava todas as pessoas ligadas pela geração e também por afinidade, quer fosse
por laços morais, jurídicos ou espirituais, no caso dos padrinhos, por exemplo. Ao buscar
classificar a família portuguesa do chamado Antigo Regime, o autor, ressaltando que
não era uma tarefa fácil, definiu-a como “uma comunhão alargada de pessoas e bens”,
na qual existiam “deveres de cooperação de todos na valorização do patrimônio familiar”
(HESPANHA, 2010, p. 130).
Temos um número significativo de pesquisas que foram desenvolvidas em torno
da temática “família” no continente europeu47. Resguardas as interpretações e
abordagens de cada uma dessas investigações, esses pesquisadores demonstraram
uma multiplicidade de arranjos familiares. Podemos dividir esses estudos em pelo
menos dois grupos: Le Play, Louis Henry e Peter Laslett preocuparam-se em apresentar
os aspectos estruturais dos arranjos familiares europeus, sendo que os dois últimos se
basearam em dados quantitativos e recursos da demografia; já autores como Philippe
Ariès, Stone, Shorter e Flandrin se dedicaram a destacar as mudanças ocorridas e o
surgimento da chamada “família moderna”, o que foi impulsionado pelos princípios
religiosos, filosóficos e econômicos.
No Brasil também foram muitos os estudiosos que se dedicaram às famílias e,
de um modo geral, eles destacaram a importância dos grupos familiares na formação
da sociedade48. Sheila Faria (2011), em um artigo no qual se propôs a fazer uma breve
apresentação de como se constituiu o ramo de pesquisa sobre a história da família,
destacou alguns momentos fundantes desse domínio, não apenas na Europa, mas
também no Brasil. Em proposta semelhante, Samara (1997) trouxe um balanço da
47
Dentre os pesquisadores, optamos por destacar aqueles que se tornaram referência: Frédéric Le Play
(1806 – 1882) – sobre esse autor, ver: BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. A família na obra de Frédéric Le
Play. In: Dados [online]. 2002, vol.45, n.3, pp.513-544. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0011-
52582002000300007. Acessado em 31-08-2015; ANDERSON, Michael. Elementos para a história da
família ocidental, 1500-1914, (1980), trad. Ana F. Bastos. Lisboa: Editora Querco, 1984. Temos ainda entre
os pesquisadores: FLANDRIN, Jean L. Famílias – parentesco, casa e sexualidade na sociedade antiga
(1979). 2ª ed. Trad. M. F. Gonçalves de Azevedo. Lisboa: Editorial Estampa, 1995; HENRY, Louis. O
levantamento dos Registros Paroquiais e a Técnica de Reconstituição de Famílias. In: Maria L. Marcílio
(Org.). Demografia Histórica. São Paulo: Pioneira, 1977, p. 29-32; HENRY, Louis. Técnicas de Análise
em Demografia Histórica. Lisboa: Gradiva, 1988; LASLETT, Peter. Família e domicílio como grupo de
trabalho e grupo de parentesco: comparações entre as áreas da Europa Ocidental. In: Maria L. Marcílio
(Org.). População e Sociedade. Evolução das sociedades pré-industriais. Petrópolis: Vozes, 1984, pp. 137-
170; STONE, Lawrence, Família, Sexo y Matrimonio en Inglaterra, 1500-1800. Trad. Maria G. Ramirez.
México: Fundo de Cultura Econômica, 1977; ARIÈS, Philippe. História Social da criança e da Família
(1973). Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2012; POLLOCK, Linda A. Los niños olvidados.
Relaciones entre padres e hijos de 1500 a 1900 (1993). Trad. de Agustín Bárcena. México: Fondo de Cultura
Económica, 1993; SCOTT, Anna S.Volpi. As diferentes formas de organização familiar em Portugal
(séculos XVIII e XIX). In: Eni M. Samara (org.), Historiografia Brasileira em Debate - olhares, recortes e
tendências. São Paulo: Humanistas/ FFLCH, USP, 2002, pp. 199-234
48
Optamos por citar os estudos ligados à história da família conforme apresentarmos as diferentes etapas
percorridas a respeito dessa temática.
50
produção historiográfica no que concerne à família no Brasil e, do mesmo modo que a
primeira, estabeleceu íntima relação entre essa vertente de pesquisa e a demografia
histórica. As duas autoras, atendo-se à historiografia brasileira, demarcaram, de modo
análogo, momentos distintos nesse campo de investigação.
Denominados de "pioneiros" por Samara (1997) e de "mais tradicional" por Faria
(2011), há uma primeira vertente que, para as duas autoras, serviu de base para muitos
questionamentos posteriores. Segundo Alessandra Moreno (2007), as interpretações
desenvolvidas sobre a família nesse primeiro momento tinham em comum o
entendimento de que teria sido no período colonial que alguns princípios básicos da
“organização sócio-familiar” teriam se constituído; e, além disso, de que esses princípios
ainda estariam vigentes em períodos posteriores.
Dos precursores, é consenso de que um de seus principais expoentes teria sido
Gilberto Freyre49. A partir de seu conceito de "família patriarcal", tal autor predominou
durante décadas na historiografia brasileira. Nas palavras de Samara (1997, p.07), o
conjunto da produção sobre a família no Brasil voltou-se, do seu início até hoje, para a
tentativa de buscar "entender basicamente o tratamento dispensado ao patriarcalismo".
O sociólogo Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, publicado em 193350,
definia a família brasileira como "patriarcal", ou seja, centralizados na figura do "chefe
de família", tínhamos os filhos, a esposa, outros parentes, inclusive filhos ilegítimos,
escravos, afilhados e amigos. Segundo o sociólogo, esse núcleo era obrigado a
respeitar, dedicar-se e ser fiel ao patriarca. Modelo explicativo da família brasileira, essa
unidade fechada em si mesma — "a família patriarcal" — seria então a base da
organização da sociedade.
Nessa organização familiar, Gilberto Freyre teria apresentado uma mulher
branca, vítima do homem e que vivia ora sob a sombra de seu pai, ora de seu marido.
As demais mulheres, mulatas e negras, seriam responsáveis pelos afazeres domésticos
e, também vítimas, teriam sido exploradas inclusive sexualmente. Mas, por outro lado,
foi também nessa organização que Freyre (2006b, p. 82) mostrou uma mulher branca
assumindo as vezes de “homens da casa” quando o marido estava ausente ou doente,
nas palavras do autor, e as mães-sinhás, que ensinavam suas meninas a costurar, fazer
a renda, doces, chapéus e outros objetos. Foi ainda nessa mesma organização que o
sociólogo apresentou as negras e mulatas assumindo a criação dos filhos de seus
49
Conforme Faria (2011) e Samara (1997), os outros autores teriam sido: Oliveira Vianna, com Populações
Meridionais do Brasil, publicada em 1920. Costa Pinto, que publicou ainda na década de 1940 a primeira
edição de Lutas de Família no Brasil: era colonial; Cândido Souza, o artigo The Brazilian Family (1951).
Incluímos ainda: Sergio B. Holanda, Raízes do Brasil, (1936) e Caio Prado Jr., Formação do Brasil
Contemporâneo: Colônia, (1942), dentre outros.
50
A edição aqui analisada é a de 2006a.
51
senhores, ora alimentando-os, cuidando de seus primeiros passos, gestos e falas, ora
lhes contando histórias quando suas mães haviam falecido ou mesmo quando vivas. De
certo modo, ao evidenciar estas mulheres, Freyre nos deu mostras de que o grupo
feminino assumiu a função de educar, sendo certamente o pioneiro nessa questão.
Já a partir dos anos de 1970, seguindo um processo de revisão da História do
Brasil de um modo geral, as pesquisas sobre a história da família começaram a receber
outros contornos. Tanto Samara (1997) quanto Faria (2011) apontaram, para o período,
uma íntima ligação dos estudos sobre a família com a demografia histórica. Ao mesmo
tempo, de acordo com as duas autoras, houve um aumento e diversificação das fontes.
Conforme as duas pesquisadoras, os estudos, mais circunscritos às regiões sul
e sudeste do Brasil, buscaram apresentar nesse período a dinâmica das unidades
familiares numa perspectiva relacional com os aspectos econômicos e políticos. Assim,
perceberam que, ao contrário do que a historiografia defendia até então, um único
modelo de família era impossível diante da diversidade econômica, étnica e social dos
segmentos que compunham a realidade brasileira. Na verdade, existiam arranjos
familiares diversos; concubinatos; mulheres como chefes de famílias e mais
participativas nos processos sociais e econômicos; uma distância entre a norma e a
prática, o que, nas palavras de Samara (1997), possibilitou um início de revisão de
grandes mitos e arquétipos sobre a sociedade brasileira51.
Tais discussões foram a base para os estudos dos anos 1980 que se
apresentaram mais plurais. Conforme Samara (1997), foi apenas a partir dessa data
que os estudos referentes à família no Brasil foram incorporados efetivamente à
historiografia, já que, até então, os estudiosos interessados pelo tema eram, em
especial, antropólogos e sociólogos. Esse terceiro momento foi, segundo Scott (2014,
p. 19), o período também em que os estudos sobre a família negra surgiram com mais
força. Além disso, foi nesse momento que ocorreu um retorno às exposições de Gilberto
Freyre e suas noções sobre família patriarcal de modo mais efetivo. A intenção era
"repensar a família brasileira"52.
51
Dentre os estudos desse período, destacamos: MARCILIO, Maria L. A Cidade de São Paulo: povoamento
e população, 1750-1850. São Paulo: Pioneira, 1973; SAMARA, Eni de M. A Família Brasileira. São Paulo:
Brasiliense, 1983. COSTA, Iraci N. Vila Rica: população (1719-1826). São Paulo: IPE-USP, 1979 (Ensaios
Econômicos); SILVA, Maria Beatriz Nizza, Sistema de casamento no Brasil colonial, São Paulo, T. A.
Queiroz, 1984.
52
Esse foi inclusive o título da obra de Mariza Corrêa, publicado em 1982. Nele, a antropóloga alertava que
a multiplicidade de formas desenvolvidas no processo de ocupação social e econômica do território
brasileiro impedia que se pensasse a família brasileira apenas naquela configuração estabelecida por
Gilberto Freyre. Na opinião de Corrêa, conforme interpretou Faria, "se a família patriarcal dominava, em
termos ideais, outras formas de organização familiar estavam presentes e não poderiam ser
desconsideradas" (FARIA, 2011, p. 242). CORRÊA, Mariza. Repensando a família patriarcal brasileira. In:
ARANTES, Antonio A. (et al.), Colcha de retalhos: estudos sobre a família no Brasil, (1982), 2ª ed.
Campinas, Ed. da Unicamp, 1993. Além da autora podemos citar os seguintes pesquisadores: VAINFAS,
52
Foi na esteira dessas discussões e na evidência de outras formas de
organização familiar que alguns autores propuseram uma revisão do conceito
“patriarcal”. Ronaldo Vainfas, em estudo intitulado Trópico dos Pecados, publicado em
198953, relembrou o aspecto político do termo que deveria ser percebido, segundo o
autor, como um sistema de poder.
Esse mesmo entendimento foi apresentado por Sheila de Castro Faria em seu
livro intitulado Colônia em Movimento (1998), no qual ela discutiu, dentre outros
aspectos, o cotidiano da família no período colonial. Segundo a autora, os trabalhos de
caráter “revisionista” deixaram vir à tona as zonas mais urbanizadas de algumas regiões
que tinham características diversas daquela analisada por Gilberto Freyre, por exemplo.
Para a autora, o importante era entender que família extensa e patriarcalismo não eram
sinônimos e que, na verdade, este último se referia a um conjunto de valores e a uma
estrutura de poder, noção defendida também por Barickman (2003).
O entendimento de Vainfas (1997, p. 118) a respeito do patriarcalismo é bem
elucidativo. Segundo o autor:
Ronaldo. Trópicos dos Pecados - Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1997;
FARIA, Sheila C. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998; BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Família, herança e poder em São Paulo: 1765-
1855. Estudos Cedhal 7, SP, 1991; SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família. São
Paulo, século XIX. São Paulo: Marco Zero & Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989;
NAZZARI, Muriel, O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil,
1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001; RAMOS, Donald. A mulher e a família em Vila Rica
do Ouro Preto: 1754-1838. In: Congresso sobre a história da população na América Latina, 1989, Ouro
Preto. Anais... São Paulo: Fundação SEADE, 1990, p.154-163; FIGUEIREDO, Luciano R. A. Barrocas
Famílias – vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, Hucitec, São Paulo, 1997; DEL PRIORE, Mary.
Ao sul do Corpo: condição feminina, maternidade mentalidades no Brasil Colônia. 2. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2009. DEL PRIORE, Mary & BESSANEZI, Carla (Orgs.) História das mulheres no brasil.
9. ed., 1 reimpressão, São Paulo: Contexto, 2008, dentre outros.
53
A nossa edição é a de 1997.
54
BRUGGER, Silvia Maria Jardim. Família e Patriarcalismo em Minas Gerais. In: Paiva Eduardo França
(Org.) Brasil-Portugal: sociedades, cultural e forma de governar o mundo português (século XVI-XVIII).
São Paulo: Annablume, 2006; RODARTE, Mario M. S. O trabalho do fogo: Perfis de domicílios enquanto
unidades de produção e reprodução na Minas Gerais Oitocentista. Tese (doutorado de Demografia) –
53
Em decorrência da revisão e também das contribuições advindas da demografia,
sociologia e dos recursos teórico-metodológicos da micro-história (SCOTT, 2014),
temas variados foram abordados: "papel dos sexos, do casamento, concubinato,
sexualidade, das famílias, dos segmentos expropriados, do processo de transmissão de
fortunas" (SAMARA, 1997, p.10). Scott (2014, p. 14), por sua vez, ressaltou que mais
recentemente tem ocorrido um avanço trazido especialmente nas discussões referentes
às estratégias familiares e às redes sociais. Dito de outro modo, outros aspectos da vida
cotidiana, atitudes dos diferentes grupos e sujeitos e a tipologia das relações tornaram-
se foco das pesquisas ligadas às famílias55. Isto representou um redimensionamento na
história das famílias, seja em relação ao próprio conceito de família, seja quanto à
participação da mesma nos processos políticos, culturais, econômicos ou sociais.
No que se refere a Minas Gerais, podemos dizer que diferentes contornos
familiares também ali se estabeleceram. Os estudos sobre a história da família para a
região ressaltaram que a diversificação de arranjos familiares em solo mineiro era uma
constante. Conforme apontou Luciano Figueiredo (1997), em virtude de seu caráter
urbano, com uma população bastante expressiva, além de uma variedade de atividades
que eram desenvolvidas naquele espaço, dificilmente se poderia dizer que existia ali
uma única forma de agrupamento familiar. Samara (1999) reforçou tais considerações,
lembrando que juntamente com a chamada "família patriarcal" outras formas de
organização familiar se desenvolveram paralelamente.
Nesses termos, a mencionada autora destacou que, em terras mineiras, além
das famílias legitimamente constituídas pelo casamento cristão, havia ainda relações
baseadas no concubinato; lares com a presença de filhos ilegítimos, sobrinhos,
afilhados, netos, etc. e os domicílios chefiados por mulheres – solteiras, viúvas e com
54
maridos ausentes. Essas diferentes formas de organização também foram apontadas
por Brügger (2007).
Quanto aos lares chefiados por mulheres, além das duas autoras apontadas
acima, temos o trabalho desenvolvido por Lewkowicz e Gutiérrez (1997) para Minas
Gerais, no qual os autores apontam o grande número de mulheres dirigindo seus
próprios domicílios. Lewkowicz (1998) atendo-se à Mariana ressaltou ainda os lares com
a presença de agregados. Estas pessoas, conforme a autora, pareciam assumir a
característica de mão de obra “adicional”.
Mas além dessas organizações familiares, não podemos deixar de mencionar o
estudo realizado por Figueiredo (1997), no qual o autor deu destaque para a chamada
“família fracionada”, quando o casal vivia separado. A respeito desse tipo de
organização familiar, o autor destacou que ela foi a forma encontrada pela população
que vivia em concubinato para escapar de punições por parte da Igreja.
Diante disso, assim como em outras regiões do Brasil, cabe então reforçarmos
que havia diferentes formas de composições familiares em Minas Gerais. E, certamente
foram essas famílias que ajudaram no processo de formação e consolidação da
sociedade. Mas quais famílias em solo mineiro o presente estudo busca trazer à luz?
Conforme destacou Kalina Silva e Maciel Silva (2010, p. 136), ao se pensar em
família, necessariamente há que se levar em conta o seu caráter dinâmico e histórico.
Isso porque, de acordo com esses autores, a noção de família pode assumir para si
diferentes padrões, segundo a sociedade e as concepções existentes. Assim, quando
pensamos a família no Termo de Vila Rica, devemos levar em conta as condições
políticas, econômicas e geográficas, além das características étnico-culturais e sociais
ali existentes e os ideais de organizações familiares difundidos pelas autoridades civis
e religiosas para a conformação daquela sociedade.
Cientes dessa consideração, para o presente estudo, a noção de família que
utilizaremos é aquela apresentada por Faria (1998, p. 43). Segundo a autora, podemos
entender como família não apenas os pais e filhos, mas um agrupamento que
"extrapolava os limites consanguíneos, a coabitação e as relações rituais, podendo ser
tudo ao mesmo tempo".
Nesses termos, abordaremos: a família nuclear — formada por pai, mãe e filhos
— vivendo sob o mesmo teto; aquela constituída pelos pais, filhos, parentes, agregados
e escravos; famílias concubinas e famílias fracionadas. Entretanto, em decorrência do
nosso interesse de pesquisa, trabalharemos especialmente com as famílias chefiadas
por mulheres: quando os maridos estavam ausentes ou eram falecidos e também
55
quando eram solteiras; e aquelas que acolhiam filhos alheios, inclusive mediante
pagamento por parte do Estado, chamadas de “criadoras” 56.
Todavia, mesmo nesse universo, nossa referência serão aquelas famílias que
deixaram indícios de alguma preocupação com a formação de sua descendência. Dito
de outro modo, as famílias eleitas foram aquelas que autorizaram, a partir das fontes,
um “reconhecimento” da sua tarefa no processo educativo, deixando vestígios de ações
voltadas para a ordenação, promoção da civilidade e formação do “súdito cristão”, além
da manutenção e sobrevivência do próprio grupo familiar, ou seja, estabeleceram
práticas direcionadas para o ensino-aprendizagem de determinados saberes, tais como:
o encaminhamento para algum ofício, o aprendizado da leitura e a escrita e os valores
civis e cristãos.
As diferentes formas de organização familiar tiveram, como já apontado por
alguns pesquisadores, importância fundamental para o desenvolvimento da sociedade.
Conforme destacou Nolasco (2014, p.26), a família brasileira participava da
transformação da realidade. Nas palavras da autora, "a família era considerada uma
unidade integradora de poder [e] através dela as transformações políticas, econômicas
e sociais se davam".
O mesmo entendimento é partilhado por Sheila de Castro Faria (2011).
Conforme a autora:
A família era percebida, no dizer das duas autoras, como espaço de estruturação
econômica, social e política. Cabe reforçar de modo mais circunscrito o dever a ela
atribuído pelos ideais iluministas então circulantes no que se refere ao processo
educativo dos filhos. A família era o ambiente de ordenamento e de ação civilizadora.
Assim, diante de todas essas prerrogativas, tem-se um melhor entendimento do peso e
valor conferido às famílias.
No que se refere ao processo de formação dos sujeitos, percebemos que,
independente da multiplicidade de contornos familiares, determinados valores, visões
56
Importante destacar que os grupos familiares eleitos acabaram por não contemplar muitos outros arranjos
existentes na realidade brasileira. Tal situação de modo algum é uma afirmação da inexistência de práticas
educativas nas famílias aqui ausentes, como, por exemplo, as famílias escravas e as indígenas. Na verdade,
essa ausência se explica pela natureza das fontes eleitas, que não permitiu pensar nas práticas educativas
vivenciadas por esses grupos. Sobre as “criadoras”, explicaremos mais detalhadamente no quarto capítulo.
56
de mundo e práticas educativas se faziam presentes e davam a tônica ao contexto
vivido. Muitos estudos têm demonstrado, por exemplo, que determinadas práticas e
posições consideradas características das chamadas “famílias legítimas” puderam ser
observadas em outros tipos de organização familiar, ainda que relidos.
Figueiredo (2008), em estudo sobre as "Mulheres nas Minas Gerais", dentre
outros aspectos, ressaltou a preocupação por parte de famílias ilegítimas de fazer com
que seus filhos recebessem o sacramento do batismo. Em outros casos, preocupados
com a ocasião de eventos como a Páscoa, criaram estratégias de modo a não correr o
risco de ficarem sem a confissão e a comunhão. No dizer de Figueiredo (2008, p. 182),
"os desviantes estabeleceram com a justiça eclesiástica um jogo de confrontação e
resistência". Del Priore (2009, p. 46) também destacou essa mesma situação em sua
análise a respeito dos casais que vivam sob o estigma do concubinato. Conforme a
autora, "o concubinato, embora avesso do matrimônio sacramentado, era uma espécie
de rascunho deste. O padrão estrutural de ambos era muito semelhante".
Tendo por base, como já dito, que, ao menos no que se refere ao aspecto
educativo, a maioria dos valores e ideais era partilhada pelos diferentes grupos, cabe
então pensarmos nessa tarefa de educar. Conforme as instruções existentes nos
manuais de confessores analisados por António Ferreira (2000, p.39), cabia aos pais a
obrigação de criar e sustentar os filhos. Além disso, era da competência dos genitores
educar sua prole “na doutrina cristã e dar-lhes estudos, de acordo com as suas posses"
ou colocá-los "a aprender um ofício com que pudessem vir a ganhar a vida".
Mais detalhadamente, António Manuel Hespanha (2010, p. 127), analisando os
deveres dos pais para com os filhos presentes nas Ordenações Filipinas e em obras
dos séculos XVII e XIX, declarou que cabia aos genitores:
57
obrigação, deixava entrever outros tipos de educação que deveriam ser dados, como a
leitura e a escrita57.
Na documentação analisada no presente estudo, temos inúmeros indícios que
evidenciam a perspectiva educativa nas diferentes famílias. Acreditamos que tais
indícios podem revelar que houve uma progressiva apropriação por parte das famílias
da tarefa de educar atribuída pelas autoridades civis e religiosas e também pelos ideais
iluministas que então circulavam. Apesar de mais adiante ser nosso interesse analisar
algumas dessas ações familiares, especialmente daquelas protagonizadas por
mulheres, cabe ressaltarmos aqui alguns casos.
O português e capitão Manuel Fernandes Pinto era morador de Vila Rica.
Solteiro, instituiu “por caridade” quatro pardos forros, filhos de Ana Crioula, como seus
herdeiros em seu testamento produzido no ano de 1811. Já nos idos de 1822, ano de
seu falecimento, um processo de perfilhação provou que os quatro pardos eram, na
verdade, seus filhos. Apesar de não mencionar tal aspecto no testamento, o capitão
Manuel e a crioula Ana assumiram a função de educar seus filhos. Segundo as falas
das testemunhas arroladas para o processo de perfilhação, os pais moravam na mesma
casa em companhia dos filhos e sempre os tratou com todo o preciso “tanto de sustento
como de vestuário”. Além disso, conforme os quatro filhos, corroborados pelas
testemunhas, “na idade competente o inventariado os mandou ensinar a ler, escrever e
coser e a tudo o mais com que se costumam criar e educar em tais idades, tratando-os
de todo o preciso como seus filhos, que por tais sempre os reconheceu..."58.
O português e negociante Félix Dias Monteiro, por sua vez, era casado com
Maria Josefa da Conceição. Moradores do Morro da Piedade em Vila Rica, eles tiveram
oito filhos. Em seu testamento feito no ano de 1800, Félix declarou que era devedor do
Padre Mestre Joaquim da Cunha Osório de restos de ensino de gramática a seu filho
Antonio. Além disso, deixou vestígios da ação de sua esposa na educação dada
cotidianamente a seus filhos. Segundo ele, Maria Josefa estava tendo bom desempenho
na tarefa de educar “temporal e espiritualmente” seus filhos, possuindo condições
inclusive de continuar “este mistério” depois de seu falecimento59.
Outros pais, em contrapartida, pareciam preocupados com a educação e criação
dos filhos depois de sua morte, demonstrando certo reconhecimento de uma obrigação
que ficaria por ser completada. A parda Teodora Joaquina Rosa era viúva de Felisberto
Jorge Pereira e mãe de uma menina chamada Maria, de 6 anos de idade, quando
decidiu mandar redigir suas últimas vontades em testamento. Na tentativa de garantir o
57
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Livro 1, título II, p. 02.
58
Inventário de Manuel Fernandes Pinto. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 122, Auto 1538, Ano 1822.
59
Inventário de Félix Dias Monteiro. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 57, Auto 682, Ano 1802.
58
cuidado com a educação e com futuro de sua filha, pediu que o seu testamenteiro
Antonio Alves Teixeira fosse também o tutor. Além disso, fez questão de reforçar que
esperava que esse tutor a tratasse e corrigisse “como que se eu estivesse viva, o que
espero assim ele cumpra pelo amor de Deus..."60.
A preocupação com a educação não estava restrita aos pais biológicos. Teresa
Gomes de Jesus Oliveira declarou em testamento que sempre tinha tido sua neta Maria
Gomes Barreto em sua companhia. Em seu testamento, pediu que Dona Mariana da
Glória, mãe do padre Antonio Ferreira, aceitasse em sua casa a neta Maria, para que
pudesse “acabar de criar e guiá-la até ela se casar...". Não há nenhuma referência à
relação de Teresa com Dona Mariana. Entretanto, acreditamos que, ao fazer esse
pedido, a avó Teresa estava confiando na piedade da mãe de um padre61.
Alguns estudos já salientaram em alguma medida essa função de educar por
parte das famílias. Cláudia Oliveira (2008, p. 113), analisando as práticas educativas
destinadas às mulheres na Comarca do Rio das Velhas na segunda metade do século
XVIII, observou que, independentemente dos contornos assumidos pelos grupos
familiares, a maioria dessas práticas tinha um ponto em comum: “o cuidado com a
criação e educação moral dos órfãos e órfãs”. Leandro Paula (2016), por sua vez,
interessado em investigar o papel e a importância que os tutores exerciam na educação
e inserção social de seus tutelados no Termo de Mariana entre 1790 e 1822, ressaltou
as determinações presentes nas Ordenações Filipinas. Conforme o autor, tal legislação
estabelecia que era primeiramente dever dos pais a criação e educação dos filhos,
legítimos ou não. Já Luciana Ferreira (2011, p. 107), interessada na criação de crianças
enjeitadas em Vila Rica entre 1775 e 1850, ateve-se especialmente às “famílias
criadeiras”. Conforme a autora, essas famílias, quando aceitavam a função de ficar com
a criança, comprometiam-se a criar e educar aquele menor. E em alguns casos ocorriam
pagamentos por parte da Câmara pelo exercício dessas funções.
Um estudo importante e que nos ajudou a pensar nos diferentes aspectos ligados
à tarefa de criar e educar os menores foi o realizado por Silvia Brügger (2007). A autora,
dentre outros aspectos, não deixou de demonstrar como, muitas vezes, a educação era
uma tarefa assumida por toda a família. Segundo a autora, “a preocupação com a
educação dos filhos não [parecia] estar ligada apenas a uma questão de sucesso ou
crescimento pessoal, mas a um projeto que deveria atender aos interesses familiares”
(BRÜGGER, 2007, p. 157).
60
Inventário de Teodora Joaquina Rosa da Neiva. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 65, Auto 723, Ano
1818.
61
Inventário de Teresa Gomes de Jesus Oliveira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 66, Auto 729, Ano
1797.
59
Concordando com a autora, foi possível identificar na documentação alguns
casos que demonstraram verdadeiros investimentos por parte de outros membros das
famílias, além dos pais, para promover a educação das crianças e jovens. O padre
mestre Joaquim José Pereira, por exemplo, utilizando-se de suas redes de sociabilidade
e provavelmente de seu capital social, pediu ao senhor João Coelho da Mata que
emprestasse certa quantia para sua mãe. Segundo o filho padre, ele partilhava da
“aflição e necessidade” de sua mãe para “aprontar” seu irmão, e não havia nenhuma
outra pessoa que pudesse socorrer a ele e sua mãe naquele momento, senão aquele
senhor. Ao que tudo indica, o envolvimento do padre naquela transação surtiu efeito,
pois consta um recibo referente ao empréstimo assinado pela mãe62.
A tarefa de educar da família também se estendia aos padrinhos, entendendo-
os como membros do grupo familiar em virtude dos laços espirituais. Conforme destacou
Ferreira (2000, p. 266), uma vez padrinho, a pessoa escolhida pelos pais se tornava “pai
espiritual do afilhado”. Nessas circunstâncias, ele assumia a responsabilidade pela
preparação religiosa do batizando, em parceria com os pais. Entretanto, conforme o
mesmo autor, a tradição ainda delegava aos padrinhos o compromisso de “olhar pela
vida dos afilhados”, o que segundo as circunstâncias e posses dos padrinhos, poderia
significar a melhoria da “sorte” do afilhado.
Rita Barreto de Gusmão era madrinha da menor Maria, que havia sido exposta
na casa de Hilária Dias. Em requerimento à Câmara municipal, a madrinha declarou que
Hilária havia falecido, e desde então a exposta se encontrava em “total desamparo”,
pois não havia ninguém que pudesse recebê-la “para acabar de criar”, sem contar o fato
de que ainda se encontrava “nua, sem vestimenta alguma”. Além disso, declarou que
ela, apesar de madrinha, também era pobre. Entretanto, como se compadecia da
menina, pedia que lhe fosse entregue a roupa ou o dinheiro necessário para a compra
de vestuário para a mencionada exposta. Segundo os seus argumentos, a quantia
deveria ser retirada dos valores que a Câmara ainda devia à falecida, cabendo apenas
o restante aos herdeiros. Em resposta, ficou estabelecido que seria adjudicada
determinada quantia para a suplicante e, que, ao mesmo tempo, a menina deveria ficar
sob o seu poder. Como podemos perceber, Rita acabou assumindo a função esperada
pela sociedade como madrinha, pois “olhou para sua afilhada”, que se encontrava,
segundo suas próprias palavras, em “total desamparo”63.
62
Notificação de dívida na herança de João Coelho da Mata. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 425,
Auto 8600, Ano 1816
63
Solicitação dos pagamentos atrasados e de algumas roupas, para que possa criar a enjeitada Maria... APM,
CMOP, cx. 58, doc. 26, 03/09/1783.
60
A partir de alguns casos e estudos apresentados, percebemos que a família
assumiu a sua função educativa. Em termos ideais, quando o pai era vivo, esperava-se
que ele assumisse a função de administrar o patrimônio familiar, além de deliberar a
respeito dos destinos dos filhos e zelar pela honra daqueles que estivessem sob sua
responsabilidade (CHEQUER, 2002). Para a mulher, as concepções circulantes
presumiam o exercício dos “mais importantes papéis que uma mulher poderia desejar”:
ser boa esposa e mãe, responsável assim pelo governo do lar e o "nascimento,
sobrevivência, saúde e educação dos filhos" (DEL PRIORE, 2009, p. 17).
Entretanto, como estamos no presente estudo diante de diferentes arranjos
familiares, inclusive sem a presença de uma figura feminina ou masculina, não podemos
nos esquecer que ocorria também uma sobreposição ou apropriação de determinados
papéis por apenas um dos sujeitos, e até mesmo por outras pessoas, tais como: os
avós, tios, irmãos, padrinhos e criadores. Em outros termos, as circunstâncias
promovidas pelas necessidades acabavam por “sujeitar” os planos ideais, o que
demonstrava, como destacou Gonçalves (2006, p. 74) a respeito da categoria “gênero”,
que as diferenças entre os sexos estariam mais no plano de uma construção cultural.
No caso específico das mulheres solteiras, viúvas ou com maridos ausentes,
torna-se importante ressaltarmos que o cuidado com a família – incluindo o sustento, a
educação e a criação dos próprios filhos ou algum menor exposto – acontecia sob a
supervisão de alguns homens, como, por exemplo, o juiz de órfãos e os próprios
vizinhos. Como iremos demonstrar posteriormente, era a avaliação desses homens,
pelo “ver” ou “ouvir dizer”, que julgava adequadas ou não as atitudes das mulheres a
respeito dos mais diferentes aspectos: administração dos bens; capacidade para cuidar
e educar os menores, etc. Nas palavras de Rousseau (1999, Livro V, p. 511), “as
mulheres nunca [deixavam] de estar sujeitas quer a um homem quer aos juízos dos
homens...”
Nesses termos, cabe então nos atermos às mulheres. Primeiramente, nossa
intenção é conhecer o ideal de mulher que estava sendo construído. Depois, focaremos
essa mulher enquanto membro da instituição educativa chamada “família”, as
discussões a respeito de sua “capacidade e condição” para assumir o seu papel na
tarefa de educar, presentes especialmente na documentação.
61
dela confio toda diligência, amor para com eles de os criar e educar
como boa mãe e mulher fiel que sempre foi...64
64
Inventário de Francisco Dias do Nascimento. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 54, Auto 649, Ano
1819 (Grifo nosso).
65
Conforme Daniel Precioso (2013), a Ordem Terceira de São Francisco de Paula de Vila Rica foi fundada
em 1782. De acordo com este autor, os terceiros desta ordem eram conhecidos como "homens pardos
nobres", conforme declaração do provincial do convento de São Francisco de Paula da cidade de Lisboa,
do qual a ordem terceira de Vila Rica era parte. É possível que Francisco fosse pardo, em decorrência desta
declaração. Todavia, não se pode afirmar com certeza, já que o seu testamento não traz a informação sobre
a sua "qualidade", quer dizer, se pardo, branco, etc. e, por outro lado, a referida ordem admitia pessoas das
"ordens terceiras brancas", como destacou Precioso (2013, p. 05). De qualquer modo, o simples
pertencimento a uma ordem terceira já garantia um status diferenciado para Francisco, pois esta filiação
lhe permitia, além dos ritos fúnebres praticados pelas "simples irmandades" (encomendação,
acompanhamento, enterro e missas), a promessa de alguns ofícios e ritos adicionais (encomendação do
comissário; absolvição na hora da morte; indulgências e entrada e profissão em artigo de morte)
(PRECIOSO, 2013, p. 03).
62
foi". Como parte dessa “confiança”, Francisco entendia ainda que a esposa tinha
condições de cuidar da administração dos bens, inclusive das determinações presentes
numa carta fechada e particular que deixou "para se guiar" e da qual não precisaria
prestar contas à justiça. Francisco estava certo de que Apolinária agiria como escrito na
carta e como sempre tinha feito. Essa opinião a respeito de sua esposa está de acordo
com o entendimento de sua época.
Conforme destacou Algranti (1993, p. 109), havia um processo de longa duração
do qual faziam parte autoridades civis e religiosas, além de intelectuais e moralistas que
buscavam demarcar um lugar específico para o público feminino: ser boa mãe, esposa
e dona de casa. Esse processo dava-se especialmente a partir de "conselhos e
advertências sobre a conduta ideal para as mulheres" (ALGRANTI, 1993, p. 109) e
também defendendo a ideia de que tais atributos seriam capazes de dar status ao grupo
feminino.
A partir dessas considerações apresentadas por Algranti e também da análise
do testamento acima, entendemos que estava ocorrendo um processo de apropriação
das concepções propagadas. Isso implica dizer que, por parte de Apolinária,
diferentemente de uma transferência ou “cópia”, os ideais de esposa, “boa mãe” e dona
de casa estavam sendo “usados” e “interpretados” conforme o seu cotidiano. Em outros
termos, eles receberam contornos específicos e adaptados à realidade em que ela vivia
e que influenciava suas ações. Da parte de Francisco, um “tipo específico de mulher”
era valorizado, situação partilhada por outros homens e também pelas mulheres do seu
tempo. E esse ideal “afetava” a visão a respeito do grupo feminino que era
compreendido e interpretado a partir dele (conf. CHARTIER, 1991, p. 180).
Assim, do mesmo modo, acreditamos que determinadas expressões presentes
na documentação, tais como: “ela é muito capaz”; “tem educado os filhos como uma
boa mãe de família”; ou tem tido “o bom governo do lar” poderiam representar certa
identificação com aquele ideal por parte da mulher e dos homens à sua volta, naquele
contexto. Consequentemente, era dever do grupo feminino cuidar da educação dos
menores, por exemplo, e, quando necessário, do sustento e sobrevivência da família.
Apolinária não era uma reprodução de um modelo em conformidade com
imagens ideais que moralistas, sacerdotes, filósofos e outros homens fizeram a respeito
das mulheres. Ela era, assim como as outras mulheres, alvo de uma representação que
ecoou deste lado do Atlântico, a partir dos sermões proferidos nas missas, dos
conselhos e punições dados durante as confissões, dos provérbios populares, da
legislação e também dos mais diferentes escritos que foram relidos, adaptados e
conformaram um entendimento do que poderia ser uma mulher casadoira, honrada e
digna de assumir os importantes predicados: ser boa esposa e mãe. Nesses termos,
63
como ressaltou Chartier (2002), temos representações construídas sobre as mulheres
que buscavam legitimar e justificar determinados interesses. No contexto analisado,
esses interesses estavam relacionados à ideia de produzir determinada civilidade,
cabendo à mulher participar do processo de ordenamento, assumindo, dentre outros
aspectos, seu papel de educar.
A partir desse entendimento, acreditamos ser importante trazer as concepções
defendidas por alguns pensadores. Nossa intenção é demonstrar como
progressivamente as representações a respeito das mulheres e os seus papéis estavam
sendo construídos e transformados. Importante destacar que na documentação
manuscrita analisada não identificamos nenhum indício de leitura de algum pensador
por parte das mulheres. Entretanto, na nossa opinião, os escritos, apesar de estarem
relacionados a outros contextos, refletiam um processo que estava posto. E em virtude
dos “ecos”, o Termo de Vila Rica também fez parte desse processo. Dessa forma,
defendemos a ideia de que, mesmo que determinados aspectos não fizessem parte da
realidade do Termo de Vila Rica, para as autoridades era um “valor” que deveria ser
almejado. Nesse sentido, entendemos que as concepções sobre as mulheres estavam
circulando, as mulheres e os homens tinham “certa consciência” a respeito delas e
progressivamente acabavam incluindo-as em suas práticas de maneira relida. Em
outras palavras, acreditamos que havia um processo de apropriação, conforme Chartier
(1991).
Partimos de Jean-Jaques Rousseau (1712-1778). Ele é considerado o “pai da
pedagogia contemporânea” e foi, de acordo com Cambi (1999, p. 338), “a voz mais alta”
do século XVIII quando nos atemos à questão das concepções pedagógicas. Em 1762
ele publicou pela primeira vez Emílio ou Da Educação, que se tornou sua obra clássica.
Baseando-nos na introdução de Michel Launay constante na edição brasileira
(ROUSSEAU, 1999), é possível dizermos que tal obra foi um projeto longo e sofreu
influências das ocupações de Rousseau como preceptor.
Nesse livro, entendido como um tratado de educação, temos um romance
pedagógico no qual Rousseau discorreu sobre a educação ideal reservada a um
homem, corporificado na figura de Emílio, um órfão rico e nobre. De acordo com
Fonseca (2009a, p. 23), em Emílio Rousseau “desenvolveu o modelo de educação
natural, privilegiando a formação do homem na preservação de sua liberdade”. Além
disso, segundo a autora, no tratado Rousseau contribuiu para as alterações nas
concepções sobre a infância e na proposição de posturas pedagógicas.
Apesar do interesse do autor pela educação masculina, no Livro V do tratado
podemos identificar algumas características a serem cultivadas por uma mulher,
segundo Rousseau. Para apresentar tais características, ele imaginou um personagem
64
feminino, chamado Sofia, que reunia os atributos da mulher ideal e que havia sido criada
pelos pais.
Na esteira do entendimento do período, a mulher ideal, segundo Rousseau, seria
aquela capaz de ser companheira de Emílio, cuidar da educação dos filhos e do governo
da família. Para isso, conforme o pensador (1999, p. 491), cabia à Sofia “ser mulher,
como Emílio [era] homem”. De acordo com esse entendimento, no aspecto biológico,
homens e mulheres seriam iguais, pois tinham os mesmos órgãos, necessidades e
faculdades. Entretanto, havia uma coisa que os diferia – o sexo.
A partir dessa diferença, segundo o entendimento de Rousseau, homens e
mulheres ocupariam lugares distintos nas relações morais e físicas. Nas palavras do
pensador, “na união dos sexos cada um concorre igualmente para o objetivo comum,
mas não da mesma maneira (...) um deve ser ativo e forte [o homem], o outro passivo e
fraco [a mulher]” (ROUSSEAU, 1999, p. 492).
Esse entendimento de Rousseau foi definido por Badinter (1986, p. 299) como
uma “noção de complementaridade” na qual, segundo a autora, o pensador teria
retomado uma concepção baseada na ideia de que existiria uma hierarquia natural dos
sexos, ou seja, as diferenças entre os homens e as mulheres estavam relacionadas à
“lógica da natureza”. Nessa ideia, qualquer recusa a essa “natureza” significaria a ruína
das virtudes e a desarmonia social, pois a condição de subordinação da mulher seria
uma “verdade” autorizada pela natureza.
No projeto de educação de Rousseau para Sofia existiam quatro grandes áreas
a serem trabalhadas: a educação corporal e estética; a educação manual; a leitura e o
cálculo e a educação religiosa. A educação corporal e estética deveria ser diferente para
as meninas e teria dois objetivos. O primeiro deles seria o “desenvolvimento dos
atrativos” e deveria, através de exercícios “moderados e salutares”, “aguçar e formar o
seu gosto” e o “contínuo desejo de agradar, sem fazer com que seus bons costumes
corressem perigos” (ROUSSEAU, 1999, p. 505). Além disso, através dos exercícios, as
mulheres se tornariam mais robustas, não como os homens, mas para os homens, quer
dizer, “para que os homens que nascessem delas também o sejam” (ROUSSEAU, 1999,
p. 504). A educação manual seria especialmente “a arte da agulha”, compreendendo a
costura, o bordado e a renda e depois o desenho e a tapeçaria. Entretanto, Rousseau
ressaltava a importância da vigilância por parte das mães para que as meninas que
estavam sendo educadas nesses conhecimentos não deixassem de lado seus deveres.
A leitura e o cálculo, segundo o pensador, deveriam ser ensinados para as
meninas assim que houvesse oportunidade, pois elas teriam mais facilidade em
aprender precocemente se comparadas aos meninos. Entretanto, era necessário
mostrar-lhes as utilidades dessa aprendizagem, que, para uma menina, estariam
65
relacionadas ao “bom governo do lar” (ROUSSEAU, 1999, p. 508). Finalmente, a
educação religiosa para as mulheres, segundo o pensador, não deveria “explicar as
razões que temos para crer”, mas expor “claramente o que cremos”. Além disso, para
Rousseau, a aprendizagem deveria ocorrer a partir do exemplo e da imitação, sem o
uso do catecismo, isto é, seriam as práticas dos pais que deveriam demonstrar um amor
a um Deus bondoso (ROUSSEAU, 1999, p. 522). No dizer de Rousseau (1999, p.530),
na educação religiosa alguns princípios deveriam ser ensinados: justiça; amor ao
semelhante; bondade e misericórdia; a honra com os compromissos; a vida após a
morte e que Deus seria o juiz de todos. Para Rousseau seriam esses dogmas que
garantiriam a ordem da sociedade, e caberia às mães, particularmente, essa função.
Rousseau estava certo de que, a partir desses ensinamentos, as mulheres
teriam condições de assumir a função de esposa, mãe e dona de casa. Esta era a razão
de tudo a ser ensinado, e, conforme Rousseau (1999, p. 502), de nada adiantariam os
preceitos dados às mulheres se não se tivesse isso em mente. Afinal, segundo
Rousseau
66
trabalho preferido é a renda, porque não há outro que proporcione uma
postura mais agradável e em que os dedos se exercitem com maior
graça e ligeireza. Também se aplicou a todos os detalhes do lar.
Entende de copa e cozinha, sabe os preços dos produtos, conhece
suas qualidades, sabe fazer as contas e serve de dispenseira para sua
mãe. Criada para um dia ser ela própria mãe de família, governando a
casa paterna ela aprende a governar a sua; pode preencher as funções
dos empregados e sempre o faz de bom grado (ROUSSEAU, 1999,
p.551).
67
educação66. Ela é composta por 16 cartas ligadas a diferentes áreas do ensino que, no
entendimento do pensador, precisariam ser reformadas.
Em Verdadeiro Método de Estudar, Verney “defendia a modernização cultural
por meio da modernização do ensino” (FONSECA, 2009a, p. 26). Segundo o pensador,
havia em Portugal um obstáculo que impedia que o país se transformasse, chamado
Companhia de Jesus. Em seu entendimento, os métodos de ensino utilizados pelos
jesuítas eram ultrapassados e impediam que Portugal alcançasse o nível do restante da
Europa (OLIVEIRA, 2008, p. 36). Isso porque, para Verney, “o método dos jesuítas
levava a um saber contemplativo, sem uma aplicação naquela sociedade do século
XVIII”. Nesses termos, defendia um método “verdadeiro segundo os parâmetros da
ciência moderna, ou seja, guiado pela razão e pela experiência” (RUCKSTADTER e
ARNAUT DE TOLEDO, 2013, p. 10).
A educação em Portugal, para Verney, deveria ser útil, “para o bem do Estado e
da sociedade” (FONSECA, 2016, p.07). Assim, de acordo com a mesma autora (2009a,
p. 27), as ideias de Verney reforçavam uma tendência de iluministas portugueses que
concentravam suas reflexões na proposição de encaminhamentos que tivessem
aplicação prática. Além disso, segundo Fonseca (2009a, p. 28), Verney defendia uma
ideia de educação que fosse resultante do exemplo e de práticas coerentes com os
conceitos que, por ventura, fossem ensinados. Em decorrência disso, defendia, por
exemplo, que os mestres fossem “homens feitos”, com experiência para ensinar os
moços, além de prudentes e destituídos de cólera, já que condenava o castigo.
Das proposições acerca da educação, interessam-nos especialmente aquelas
feitas sobre a educação feminina. Verney, da mesma forma que outros autores
europeus, como o francês Fénelon (1651 - 1715) e o suíço Rousseau (1712 - 1778),
entendia ser importante cuidar da educação das mulheres.
Na última parte do livro Verdadeiro Método de Estudar, Verney dedicou-se às
mulheres. Conforme Arilda Ribeiro (2002, p. 41), Verney não inovou a respeito desse
assunto, pois suas recomendações eram as mesmas de autores anteriores. Entretanto,
o mérito do pensador, segundo a autora, teria sido a coragem de reservar algumas
páginas de seu livro para falar da ausência de educação feminina.
66
Não é possível dizer o impacto dessa obra em Portugal e seus domínios. Entretanto, conforme destacaram
Fonseca (2009a) e Boto (2010), essa obra fez parte de um conjunto de publicações de autores portugueses
que guardam íntima ligação com os ideais de um dos processos históricos mais importantes de Portugal e
seus domínios - a reforma empreendida por Marquês de Pombal. As reformas pombalinas têm esse nome
pois foram empreendidas pelo ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal,
durante o reinado de Dom José I (1750-1777). Elas foram iniciadas em 1759 com a expulsão dos Jesuítas
e com a introdução do processo de escolarização a cargo do Estado, em Portugal e seus domínios.
Continuaram ainda durante os reinados de D. Maria I (1777 – 1816) e de D. João VI (1816-1826). É nesse
período que foram instituídas as aulas régias, a carreira de magistério régio, dentre outras inovações.
68
Segundo o pensador, a mulher tinha tanta capacidade quanto os homens para
aprender e se aplicar aos estudos, sendo que a diferença estava no destino dessa
educação. No caso das mulheres, elas deveriam ser educadas para assumir funções
importantes: mães e donas de casa. Enquanto mães, por exemplo, as mulheres seriam
as primeiras mestras de seus filhos. Nas palavras de Verney,
Elas nos ensinam a língua; elas nos dão as primeiras ideias das coisas.
E que coisa boa nos hão de ensinar, se elas não sabem o que dizem?
Certamente que os prejuízos que metem na cabeça na nossa primeira
meninice são sumamente prejudiciais em todos os estados da vida, e
quer-se um grande estudo e reflexão para despir-se deles. (VERNEY,
1746, p. 291)
69
Como vemos, Verney entendia que a educação feminina deveria atingir a todas
as camadas, exceto ensinamentos como o canto, a música e a dança. Essas lições,
para este pensador, só deveriam ser direcionadas para aquelas mulheres que utilizavam
esses conhecimentos em seu trabalho, como as freiras, ou às "Senhoras Grandes"
como possibilidade de entretenimento. Para as freiras defendia ainda o estudo do Latim,
mas no intuito de entenderem a língua, sem necessidade de aprender a falá-la.
Percebemos que Verney se aproximava de outros pensadores, como o já citado
Rousseau. Assim, do mesmo modo que as ideias deste último, defendia uma educação
feminina para o bem da família e do lar e, consequentemente, para a sociedade. Além
disso, como destacou Arilda Ribeiro (2002, p.44), Verney entendia que a mulher deveria
ser educada porque ela atenderia melhor aos interesses masculinos.
Outra figura importante que marcou o iluminismo em Portugal foi o médico
Antonio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783). Ele era descendente de uma família de
cristãos-novos e tinha nascido na cidade de Penamacor. É considerado, assim como
Verney, um “estrangeirado”, por ter vivido boa parte de sua vida fora de Portugal.
Conforme Carlota Boto (1998, p. 109), seus biógrafos acreditam que o motivo de seu
afastamento do país natal se deu em decorrência do receio de perseguições, pelo fato
de ser um cristão-novo, o que o impedia de pleitear um cargo público; mas há, segundo
a autora, um entendimento também de que foi a curiosidade que o levou a optar pelo
estrangeiro.
Ribeiro Sanches foi um dos 250 colaboradores da Encyclopédie ou Dictionnaire
Raisonné das Sciences, das Arts et des Métiers organizada por Diderot e D’Alembert67.
Conforme Carlota Boto (1998, p. 108), Ribeiro Sanches é considerado o suporte teórico
das reformas pombalinas e, em seus escritos, ele aparece como um estrategista político.
Em 1760 ele publicou Cartas para a educação da mocidade, que, segundo José
Eduardo Franco e seu estudo sobre “As ideias de Europa nas Reformas Pombalinas da
Educação” (2006), teriam sido redigidas a pedido do embaixador de Portugal na França,
Pedro da Costa e Almeida Salema, e divulgadas apenas depois de terem sido
submetidas à apreciação do Marquês de Pombal.
Nessa obra é possível perceber a preocupação do pensador em definir subsídios
para a educação da mocidade nobre de Portugal. Para ele, na verdade, a educação
deveria ser distinta conforme os grupos sociais. Assim, entendia que apenas os súditos
pertencentes aos grupos de posições sociais mais elevadas é que deveriam aprender a
67
Conforme Carlota Boto (1998, p. 109), a Encyclopédie... é tida como um dos principais projetos editoriais
já implantados. Ela foi publicada em 1751, estendendo-se por 21 anos, perfazendo um total de 28 volumes.
Sanches foi responsável pelo verbete “Maladie vénérienne chronique” (doenças venéreas crônicas), mas,
de acordo com Boto, pode ser considerado também um “fiel tributário das acepções pedagógicas expressas
pelo verbete ‘college’ de D’Alembert”.
70
leitura e a escrita, pois temia-se que, expandindo para os demais esse tipo de ensino,
corria-se o risco de que alguns abandonassem seus afazeres mecânicos.
De acordo com Fonseca (2009a, p. 29), Ribeiro Sanches era contrário ao
monopólio eclesiástico sobre a educação e, no seu lugar, defendia a secularização –
seja em relação aos métodos, aos conteúdos e aos professores. Na verdade, conforme
Gouveia (1998, p. 379), Sanches acreditava que a educação das crianças e jovens
competia exclusivamente ao poder público, cabendo aos escolásticos apenas o ensino
na doutrina cristã. Além disso, defendia uma universidade em que os ensinos laicos
fossem separados do ensino eclesiástico. Nesses termos, acreditava que uma reforma
em todos os níveis de ensino em Portugal era necessária68.
Segundo Fonseca (2009a, p.28), para Ribeiro Sanches, a educação,
especialmente a escolar, teria um poder normatizador. Em sua proposta de ensino ele
procurava, conforme a autora, conciliar a educação civil à formação cristã e, assim como
outros iluministas portugueses, defendia que a educação moral deveria ser elemento de
base na reforma da sociedade.
Aproximando-se de Verney, propagava uma educação mais pragmática,
“destinada a formar o súdito exemplar e o cidadão útil ao progresso do Estado”
(FONSECA, 2009a, p. 29). E, do mesmo modo, acreditava que era o bom exemplo
vindo, de um lado, da família e dos mestres, que poderia ajudar na “educação da
mocidade” e, de outro, das elites, para educar as classes subalternas. Conforme suas
próprias palavras, “o povo imita as ações de seus maiores (...) a mocidade plebeia tenha
ou não tenha mestre, os costumes que tiver serão sempre a imitação dos que vivem nos
seus maiores” (SANCHES, 1922, p. 115).
Preocupado com a educação do menino nobre português, Sanches também
discorreu em algumas páginas de seu livro Cartas sobre a educação da mocidade
(1760) a respeito da educação das mulheres. Entretanto, ao contrário de Verney,
entendia que a preocupação com a educação feminina deveria se restringir àquelas que
pertenciam à nobreza.
Baseando-se nas suas observações das experiências vivenciadas em seu
período e nos seus conhecimentos médicos, Sanches acreditava que era importante
despertar na mulher nobre o desejo de criar os próprios filhos e, consequentemente,
tirar essa atribuição dos cuidados de mulheres de classes mais baixas. Para ele, as
amas eram ignorantes e supersticiosas e ensinavam às crianças ideias "destrutivas de
tudo que devemos crer e obrar" (SANCHES, 1922, p. 192).
68
De certo modo, essas ideias de Sanches foram atendidas, pois no ano de 1761 o Marquês de Pombal
fundou o Colégio dos Nobres em Portugal, o que nos revela alguns indícios da circulação de suas ideias e
obra.
71
Por outro lado, Sanches entendia que seria impossível introduzir a "boa
educação na fidalguia portuguesa" sem que houvesse um colégio ou recolhimento, quer
dizer, "uma escola com clausura para se educarem ali as meninas fidalgas desde a mais
tenra idade" (SANCHES, 1922, p. 192). De acordo com Arilda Ribeiro (2002, p.47),
Sanches condenava o ensino dado pelas preceptoras. Para Sanches, as preceptoras
eram, com frequência, inferiores em condições e mal preparadas para assumir a função.
Também, conforme a mesma autora, o médico desaprovava um costume português de
enviar as meninas para o convento, pois isso acabava induzindo-as a se tornarem freiras
e, consequentemente, impedidas de serem mães.
Para Ribeiro Sanches, a preocupação de ofertar às mulheres nobres uma "boa
educação" estava atrelada àquela ligada à primeira criação das crianças que, quase
exclusivamente, era exercida pela mulher. Afinal, como destacou António Ferreira
(2000, p. 279), "a primeira infância tendia a desenvolver-se em ambiente feminino e a
ter como principal referência as atitudes das mulheres". Assim, aproximando-se de
Verney, Sanches também entendia que a educação feminina se configurava como um
assunto de extrema importância, ainda que devesse ser ofertada, na opinião do
segundo, apenas à nobreza, como já apontado.
Para Sanches, como podemos perceber, do mesmo modo que para os outros
dois pensadores indicados anteriormente, resguardadas as distinções de público, a
educação possibilitaria a preparação da mulher para a administração da casa e família
e, especialmente aqui, para criar com propriedade e de modo acertado os seus filhos.
Nas palavras de Sanches (1922, p. 192), "... as mães, e o sexo feminino são os primeiros
mestres do nosso; todas as primeiras ideias que temos, provêm da criação que temos
das mães, amas e aias...".
Na tentativa de preparar essa "primeira mestra" e esposa, Sanches definiu um
ensino que abarcasse a Geografia, a História Sagrada e profana e o “trabalho de mãos
senhoril, que se empregue no risco, bordar, pintar e estofar". Conforme seu
entendimento, uma vez instruídas nesses conhecimentos, as "fidalgas portuguesas"
"não perderiam tanto tempo em ler novelas amorosas, versos, que nem todos são
sagrados: e em outros passatempos, onde o ânimo não só se dissipa, mas às vezes se
corrompe, [e] pior, comunica aos filhos, aos irmãos, e aos maridos". (SANCHES, 1922,
p. 192).
Já em terras brasileiras, temos Feliciano Joaquim de Souza Nunes. Nascido no
Rio de Janeiro em 1730 e falecido em 1808, foi ali também que serviu no cargo de
almoxarife dos armazéns da cidade. O seu livro Discursos político-morais foi publicado
em Portugal em 1758 e dedicado a Sebastião José de Carvalho e Mello — o futuro
Marquês de Pombal. Entretanto, conforme destacou Oliveira (1931), responsável pelo
72
prefácio da obra reimpressa de Feliciano Nunes, o primeiro livro teria sido queimado por
ordem do Marquês, que entendeu que ele continha "doutrinas anárquicas" e tinha sido
dedicado a ele sem prévia licença.
Segundo António Braz Teixeira em seu estudo sobre “A proposta moral de
Feliciano de Souza Nunes na Política Brazílica” (2011), a obra Discursos Políticos seria
composta de 8 tomos e 57 discursos, dos quais temos conhecimento apenas do primeiro
volume. Esse primeiro volume está dividido em sete discursos, nos quais, dentre outros
assuntos, o autor discorreu especialmente sobre a família e seus sujeitos. Para o
presente estudo julgamos importante nos atermos às considerações feitas sobretudo no
Discurso V, em que o autor defendeu a igualdade de educação para homens e mulheres
e ainda exaltou e valorizou a capacidade feminina para aprender.
Neste Discurso V, a fim de argumentar o seu entendimento quanto à capacidade
feminina e refutar a opinião existente de que era "mais proveitosa a ignorância, do que
o entendimento" nas mulheres, Feliciano Nunes utilizou-se de diferentes experiências
vivenciadas por "grandes mulheres" e propagadas pela história. Ao mesmo tempo, na
tentativa de convencer a respeito da igualdade de educação entre os sexos, argumentou
que a negativa quanto à equidade intelectual de ambos não estava na desigualdade ou
imperfeição do cérebro, mas "na falta de aplicação e uso do entendimento" (NUNES,
1931, p.173).
Para Nunes havia muitas vantagens caso se aplicasse às mulheres a educação.
E, apesar de não indicar a maneira ou o local69 onde poderia ocorrer a educação
feminina, não deixou de demarcar a utilidade que os ensinamentos poderiam trazer não
apenas para as próprias mulheres, mas para seus pais, maridos ou superiores. Assim
defendeu Nunes:
...ainda quando lhes não fora permitido mais que o governo econômico
de suas casas, e somente lhes quiseram dar uma tão limitada e restrita
capacidade, que apenas pudessem por em execução o que lhes fosse
ordenado por seus pais, maridos, ou superiores, contudo ainda assim
devem ser discretas e entendidas, para que não só possam conhecer
a sujeição que lhes devem, senão também saibam executar o que lhes
mandarem: porque se até as mãos devem ter entendimento (...) mal
poderá executar bem o que ordena quem não tiver um bem ordenado
discurso; e por isso em os provérbios se nos adverte que a mulher
sábia edifica a sua casa e a imprudente, ou ignorante, destrói a
edificada. (NUNES, 1931, p. 172).
69
No Discurso IV o autor chega a mencionar que a educação dos filhos pode acontecer em casa ou outro
espaço.
73
relação existente entre homens e mulheres. Na verdade, a educação feminina era
importante, na visão do autor, porque dava mais condições para exercer suas funções
enquanto mulher obediente.
Assim, defendeu o exercício do entendimento feminino para a conservação dos
bens da família (NUNES, 1931, p.173). Do mesmo modo, no Discurso IV em que o autor
se voltou para o cuidado com o futuro profissional e material dos filhos, não deixou de
defender a necessária presença de uma mulher capacitada. Para o autor, a atenção em
relação ao futuro dos filhos, seja promovendo a aprendizagem de algum
conhecimento/ofício, seja na construção do patrimônio, era função dos pais. Assim
sendo, cabia aos dois dotar primeiramente os filhos com a virtude e a honra, depois com
os conhecimentos ligados às artes "liberais" e/ou algum ofício e, depois, com bens. Ora,
como esperar isso de uma mulher que não tivesse determinadas habilidades para
assumir estes encargos? Finalmente, coroando o seu posicionamento sobre o sexo
feminino, o autor ressaltava que em uma mulher se deveria estimar a "joia do
entendimento" apenas "depois das inestimáveis prendas da honra e da virtude" (p. 171).
De acordo com Algranti (1993, p. 259), Souza Nunes e suas ideias foram
dissonantes do discurso propagado por outros homens das letras no Brasil e em
Portugal quando se atêm à educação feminina. Comparando com Verney e Sanches
mencionados anteriormente, Algranti ressaltou a diferença do brasileiro, pois, ao
contrário dos dois portugueses, ele defendia a igualdade de educação para ambos os
sexos, enquanto os dois portugueses sugeriam “instrução mínima” para as mulheres. A
autora acredita que teriam sido ideias como essas que foram consideradas subversivas
por Pombal. Nas palavras da autora (p. 259), “Souza Nunes não é apenas um homem
deslocado do ambiente cultural da colônia, mas distante também temporalmente das
mentes mais progressistas de seu século no que concerne à educação feminina e à
igualdade de direitos entre os sexos”.
Entretanto, é importante reforçarmos que, apesar das propostas mais “ousadas”
de Souza Nunes, os papéis propostos a serem assumidos pelas mulheres não foram
alterados. Na verdade, assim como os demais autores, sua defesa à educação feminina
não rejeitava os papéis concebidos para as mulheres, ao contrário. Resguardadas as
devidas distinções entre eles, todos concordavam, assim como outros homens do
período, que a mulher deveria ser boa esposa, dona de casa e mãe educadora.
Assim, a partir das obras analisadas, três pontos devem ser reforçados.
Primeiramente, precisamos reconhecer que o processo em curso existente naquele
período buscava construir o lugar da mulher, conforme o pensamento ilustrado, dando
a ela funções importantes na conformação da sociedade. Isso, naquele contexto,
representava uma valorização do grupo feminino.
74
Em segundo lugar, que, para as concepções que circulavam no período
estudado, as mulheres deveriam ser “qualificadas”, quer dizer, “instrumentalizadas” para
assumir suas funções de esposa, mãe educadora e dona de casa, daí a necessidade
de educação. A análise da documentação, por sua vez, revelou que realmente havia um
esforço por parte das famílias de “preparar” suas meninas para os “ofícios próprios de
seu sexo”, como tentaremos demonstrar nos próximos capítulos.
Finalmente, que existia uma concepção de que três pilares que constituíam a
mulher ideal eram intimamente relacionados. Toda mulher deveria ser mãe e esposa e
dona de casa. Assim sendo, nas mais diferentes prescrições e apontamentos, essa
tríade aparece como parte de um mesmo processo de formação a ser almejado por toda
mulher, como se cada pilar completasse o outro e, ainda, que um fosse imprescindível
para a efetivação do outro. Entretanto, apesar dessa percepção, quando direcionamos
a reflexão para as relações cotidianas, é possível afirmarmos que, em muitos casos, tais
pilares poderiam não caminhar tão juntos assim.
Uma mesma mulher poderia ser dona de casa e mãe, sem que forçosamente
fosse esposa. Do mesmo modo, temos casais que viviam juntos "como casados", mas
sem o serem legitimamente e, portanto, faltava a virtude do sagrado matrimônio para
coroar a esposa ideal; mulheres que, além de serem donas de casa, tiveram suas vidas
marcadas pelas atividades lucrativas como forma de sustentar a si e a seus filhos, como
por exemplo, as quitandeiras, lavadeiras, roceiras e vendeiras apresentadas por
Luciano Figueiredo em seu trabalho sobre as Mulheres nas Minas Gerais (2008); e
ainda, aquelas mulheres que, sem serem as mães biológicas, assumiram a criação e
educação das crianças e jovens que, de alguma forma, eram ou se tornaram membros
de seu grupo familiar.
Assim, no presente estudo partimos de dois pontos. O primeiro é o modelo de
mulher que englobava as diferentes funções e que foi defendido por moralistas e demais
pensadores. O segundo, a compreensão de que o exercício dos papéis poderia ocorrer
em separado. Tendo por base esse entendimento, interessam para o presente estudo
as ações ligadas à criação e educação das jovens gerações. Diante disso, sem a
intenção de diminuir os outros papéis que supostamente deveriam ser exercidos pelas
mulheres, entendemos ser importante nos atermos às “características” e opiniões sobre
as mulheres presentes nos manuscritos que demarcavam uma mulher como educadora
e responsável pela criação das crianças e jovens.
75
1.3.1 – A honra e a capacidade — “qualidades” esperadas de uma mulher
preocupada com a manutenção e educação de sua família
76
fidelidade ao marido, no caso das casadas, a mulher seria considerada honrada e
virtuosa70.
De acordo com Algranti (1993, p. 112), a noção de honra estava longe de ser
considerada um privilégio de um grupo específico. Na verdade, ela era definida como
“um bem” que todas as mulheres possuíam, bastando que se mantivessem virtuosas
através da castidade ou da fidelidade. A desonra, por sua vez, estava vinculada à falta
de pudor, de moral e fazia com que as mulheres fossem excluídas de “uma comunidade
de iguais”, tornando-se um estigma, até que houvesse alguma forma de reparação.
Atendo-se ao Brasil, Algranti demonstrou também que havia uma distinção entre
as mulheres brancas e negras, livres e escravas. Segundo a autora, em terras
brasileiras, em virtude da escravidão, “direitos, privilégios e status, se definiam
fundamentalmente em função da condição legal dos indivíduos” (ALGRANTI, 1993, p.
121). Assim, como a honra era um bem atribuído pelo código de valores de homens e
mulheres livres, logo as escravas eram consideradas sem honra. Entretanto, como
apenas as mulheres que traziam o estigma da cor eram escravas, muitas vezes os
aspectos raciais se sobrepunham à condição legal. Nesses termos, uma mulher negra
ou descendente – livre ou escrava – poderia ser considerada desqualificada, sem honra.
Mas se tal aspecto se fazia presente, era também verdade, por outro lado, como
bem destacou a autora (1993, p. 125), que a classificação de uma mulher dependia do
“olhar onipresente do outro”. Sendo assim, “nada impedia que no interior de suas
comunidades essas mulheres guiassem seus passos e fossem julgadas por outros
códigos de comportamento”.
Concordando com Algranti, percebemos que, na documentação investigada, os
“julgamentos” a respeito da honra da mulher assumiam contornos particulares. Assim,
uma mulher branca, parda ou negra, nascida livre ou alforriada71, poderia ser
considerada honrada desde que tivesse uma conduta considerada “honesta” para o seu
grupo de convivência72. Esse era o caso, por exemplo, das mulheres que tinham uma
relação estável, ainda que não legitimada pelo sagrado matrimônio; e das viúvas que
70
De acordo com Leila Algranti (1993, p. 111), a honra e a virtude eram consideradas termos equivalentes
tanto nos documentos produzidos no Brasil colonial como também nos compêndios morais do século XVI
ao XVIII. Concordando com a autora, também nos documentos eleitos para a presente pesquisa, é possível
entrever o mesmo entendimento.
71
Na presente pesquisa, como já mencionado, não estamos trabalhando com as escravas.
72
É importante reforçarmos que essa “conduta honesta” era definida a partir de um padrão: o europeu.
Mesmo que existisse um “julgamento adaptado” à realidade do Termo de Vila Rica, aquele modelo europeu
não foi abandonado. A tolerância (se é que podemos dizer isso) às variações dessa honra estava associada
ao lugar social dos indivíduos, mas também ao envolvimento direto e pessoal de alguns homens com
mulheres que, em princípio, não seriam consideradas honradas. Diante disso, podemos pensar também que
muitos homens acabavam “honrando” essas mulheres como uma maneira de também de se manterem
honrados.
77
se mantinham nesse estado e dedicavam toda sua vida para o cuidado e sustento dos
filhos, netos ou outro menor do seu grupo familiar.
Custódio José de Araújo era um português que morava em Vila Rica e sempre
se mantivera no estado de solteiro. Em 1780 ele resolveu mandar escrever suas últimas
determinações em testamento. Ao mencionar a respeito de sua vida, declarou que uma
mulher “branca e solteira”, chamada Maria Francisca de Cruz estava grávida dele.
Segundo a sua própria opinião, ele realmente julgava que a criança era sua filha “por
não me constar que outro homem a tenha comunicado e menos haver outra alguma
circunstância que possa desvanecer-me deste conceito”. Assim, se aquele filho
nascesse vivo, ele seria seu herdeiro. Como vemos, para Custódio, Maria Francisca
parecia ser uma mulher digna de confiança, pois não tinha se “comunicado” com mais
ninguém. Além disso, ao determinar que aquela criança seria seu herdeiro, Custódio
acabava em alguma medida reparando a desonra cometida à Maria Francisca e
acertando as contas com o pai dela, que se tornou inventariante do falecido e tutor do
neto73.
A honra ou a falta de uma para uma mulher poderia ser motivo também para
retirá-la de uma herança. Teresa Gomes de Jesus Oliveira era viúva e moradora de Vila
Rica. Ela era mãe de Mariana, filha natural tida depois que seu marido havia se
ausentado para o Rio de Janeiro. Em seu testamento, declarou que sempre sustentara
essa filha, mesmo depois que Mariana havia se casado e se tornado viúva. Entretanto,
quando essa filha se tornou viúva, a desobedeceu, “deixando-se aliciar por Jerônimo
Felício da Rocha fugindo da minha casa com ele (...) a fim de casar”. O detalhe era que,
na opinião de Teresa, Jerônimo era pessoa de última plebe e não tinha sangue limpo.
Assim, em decorrência de todos esses desgostos, deserdara sua filha, deixando sua
herança para a neta. Segundo o julgamento de Teresa, Mariana tinha desonrado a si e
à própria família ao fugir e, além disso, desrespeitado sua mãe e, por isso, não merecia
ser herdeira74.
Ainda sobre a honra de uma mulher, um detalhe importante a ser reforçado era
que a avaliação a respeito dela era sempre feita pelas pessoas de seu convívio. Como
destacaram Algranti (1993) e Nizza da Silva (1984), a opinião pública funcionava como
um juiz da honra, uma espécie de árbitro. Assim, para manter a honra era preciso manter
a boa reputação, quer dizer, não ser alvo de comentários de terceiros. Nas palavras de
73
Inventário de Custódio José de Araújo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 29, Auto 315, Ano 1780.
A respeito da reparação da honra veja Nizza da Silva (1984)
74
Inventário de Teresa Gomes de Jesus Oliveira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 66, Auto 729, Ano
1797.
78
Algranti (1993, p. 112), “manter a honra significava, antes de mais nada, manter as
aparências”.
Foi preocupada em “não corromper e perigar a boa reputação que então tinha
nos olhos sisudos desta Vila” que Dona Francisca Maria de Jesus expôs sua filha Dona
Ana Marcelina de Queirós em casa de Ana Maria de Queirós75. Segundo relato da
própria exposta, ela vivera sempre em companhia de Ana Maria até se casar. Ainda de
acordo com Joel Manoel de Siqueira, testemunha e cunhado da falecida, Dona Ana
Marcelina havia nascido na sua casa, pois foi dele
Como podemos perceber, Dona Francisca usou de todos os artifícios para “não
perigar o seu crédito e boa reputação”. Sem deixar de se fazer presente, inclusive
assistindo com “bons agasalhos” feitos por ela própria, como bem destacou a cuidadora
Ana Maria, Dona Francisca conseguiu manter as aparências, encobrindo assim “o
segredo de sua alma”.
Retomando os interesses dessa pesquisa, percebemos que, no caso da
nomeação de uma tutora, por exemplo, “viver honestamente” era inclusive um dos
requisitos previstos nas Ordenações Filipinas, conforme apresentaremos no capítulo 2.
Em termos educativos, a honra de uma mulher era considerada fundamental, pois, como
destacamos no item anterior, era entendimento do período que a educação também se
dava a partir de “bons exemplos”.
Nesses termos, era bastante válida quando o marido deixava em testamento a
avaliação positiva a respeito de sua mulher: dona de uma conduta “proba”, “virtuosa” e
“fiel”. José Antonio de Assunção, por exemplo, era casado com Felícia Alves de Macedo
e moravam em Vila Rica. No testamento, redigido em 1805, José fez questão de nomear
75
Justificação para habilitar na herança de sua mãe Dona Francisca Maria de Jesus. AHMINC/IBRAM. 1º
Ofício, Códice 441, Auto 9205, Ano 1813.
76
Justificação para habilitar na herança de sua mãe Dona Francisca Maria de Jesus. AHMINC/IBRAM. 1º
Ofício, Códice 441, Auto 9205, Ano 1813.
79
sua esposa como tutora da filha. Conforme declarou, assim o fazia, pois tinha “todas as
provas da fidelidade, zelo e boa conduta da dita minha mulher”77.
Importante era também a avaliação feita por outros homens, o que reforça a
questão da publicidade do “bom comportamento”. Em processos de solicitação de
tutoria, que analisaremos no capítulo 2, mas também em requerimentos diversos feitos
à justiça, a prática era a nomeação de testemunhas – geralmente homens – para
atestar, dentre outros aspectos, a honra de uma mulher.
Em processo de justificação78 no qual Dona Teresa de Jesus requereu a tutoria
dos seus cinco filhos, ela declarou que tinha sido casada “a face da Igreja” com o
Tenente José Francisco de Sá Mourão. Além disso, fez questão de mencionar que como
“marido e mulher viveram sempre de portas a dentro e unidos em boa sociedade”. Eles
eram moradores de Vila Rica, e seus bens constituídos de terras minerais, joias, casas,
14 escravos e outras posses menores – perfizeram a soma de 9:130$62279.
Segundo a viúva,
não só no consórcio com o dito seu falecido marido, mas ainda depois
do falecimento (...) sempre viveu com honestidade, exemplar
recolhimento, e governo econômico de sua casa e família como o
fazem as viúvas e boas mães de famílias no estado de casadas e no
da sua viuvez80.
77
Inventário de José Antonio de Assunção. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 53, Auto 600, Ano 1805.
78
O processo de justificação conhecido como “Auto de Justificativa” será explicado no capítulo 2.
79
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 34, Auto 381, Ano
1783.
80
Requerimento de Teresa de Jesus. AHU, Cx122, doc. 33, Ano 1784 (Grifo nosso).
80
contrário”. A confirmação das testemunhas trouxe resultado positivo, pois cerca de oito
meses depois ela alcançou a provisão real e assinou o termo de tutoria81.
Foi a falta de “recato e honestidade” que deixou em perigo a tutoria alcançada
por Dona Joana Gertrudes de Campos. Em 1795, em Vila Rica, o Bacharel Antônio da
Costa, curador nomeado para os órfãos desse inventário, solicitou à justiça que
removesse a viúva da administração de todos os bens e da tutoria de seus filhos, para
os quais havia sido nomeada em 1784. Segundo o curador, a viúva havia partido para
a vizinha Comarca do Rio das Mortes, deixando seus filhos desamparados em Vila Rica
e, além disso, não tinha se preocupado em preservar o patrimônio deixado por seu
marido. Para completar, conforme as palavras do próprio Bacharel Antônio, ela havia
permitido "(...) se aliciar e vencer do seu pouco entender e fragilidade de mulher,
admitindo conversações perigosas, faltando ao seu recato e honestidade com que
deveria viver (...)”82. Conforme o curador, D. Joana Gertrudes não cultivava algumas
“virtudes” e “qualidades” importantes que lhe valessem a sua permanência no referido
cargo.
A partir dos casos analisados, percebemos que as mulheres de diferentes grupos
eram avaliadas pelas pessoas, especialmente homens de seu convívio social, no que
se refere à honra. Tal constatação vai ao encontro das considerações apresentadas por
Algranti (1993) quando a autora destaca que a honra era “um bem” da mulher,
independente do grupo social a que pertencesse.
A partir da documentação analisada, podemos dizer que o padrão ideal
concebido por moralistas, pensadores e autoridades civis e religiosas serviu de base
para os diferentes grupos compararem e qualificarem “suas” mulheres como “honradas”
ou “desonradas”. Defendemos esse entendimento porque os “julgamentos”
perpassavam pela noção de “fidelidade”, “castidade”, “respeito” e “pudicícia”. Entretanto,
não podemos descartar que essas avaliações se davam também comparando-se com
as atitudes de outras mulheres daquele contexto.
81
Inventário de Silvério Anacleto Vilar e Souza. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 50, Auto 553, Ano
1776.
82
Apesar de esse documento pertencer ao Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência em Ouro Preto e
se referir ao período estudado na presente pesquisa, não conseguimos ter acesso ao processo, pois o mesmo
estava interditado. Em decorrência disto, todas as informações aqui constantes sobre ele foram retiradas de
Chequer (2002). Apenas para conhecimento do final do processo, em decorrência do pedido do curador e
da não-manifestação de defesa da viúva, os bens foram retirados de sua administração, retornando apenas
quatro anos depois. Para isso, ela conseguiu provar que, na verdade, o Bacharel Antônio a caluniara e que
"era pessoa mal afeita à suplicante". Na sentença, foi justificado que Dona Joana Gertrudes havia se
ausentado para permanecer próxima aos parentes. Em relação aos filhos e suas legítimas, foi mencionado
que os primeiros estavam sendo educados em seus ofícios; já sobre os bens, provou-se que, na verdade,
tinham aumentado.
81
Esse parece ser o caso quando analisamos o testemunho do pardo Joaquim
Gonçalves Chaves no processo de emancipação de Ana e Maria, filhas legítimas do
português Antonio da Costa Lopes e da parda forra Romana Maria da Conceição.
Chamado para expressar sua opinião a respeito delas, ele declarou que sabia “pelo ver
e presenciar” que as duas viviam em companhia da mãe “com aquela decência e honra
possível”, ou seja, bem diferente da ideia de que a “decência e a honra” deveriam ser
atitudes esperadas83.
Será que essa avaliação estaria baseada no fato de que as meninas carregavam
o estigma da cor, já que sua mãe era preta forra? Em outras palavras, será que, ao
comparar as meninas às outras mulheres do seu contexto e também a um ideal,
Joaquim entendeu que Ana e Maria agiam conforme o que era aceitável diante das
circunstâncias e sua posição social? Essas são questões que não conseguimos
responder. Mas podemos destacar, pelas informações presentes no inventário feito por
morte do pai, que a família tinha uma rede de sociabilidades, pois identificamos um
número considerável de dívidas e créditos estabelecidos com diferentes pessoas e
instituições. Dentre eles, destacamos a prestação de serviços para a Câmara de Vila
Rica, que ainda devia a esta família a quantia de 94$650 pelo transporte de 50 carros
de pedras para a confecção de uma calçada. A família era ainda proprietária de
considerável patrimônio formado por 13 escravos, muitas ferramentas, gado, entre
outros bens84. Em virtude da natureza dos bens, podemos dizer que os integrantes
desse grupo familiar possuíam determinado status. Sendo assim, não podemos
descartar a hipótese de que a avaliação a respeito da honra das meninas se deu em
função da qualidade delas, quer dizer, por serem pardas, e também em decorrência da
comparação com outras mulheres daquela ambiência.
Entretanto, para além da honra, podemos dizer que era a “capacidade” o
elemento essencial que definia se uma mulher tinha condições ou não de cuidar da
família e da educação de crianças e jovens85. Mas qual era o entendimento sobre essa
“capacidade” feminina?
António Manuel Hespanha, estudando os “Imbecilitas” (2010) do Antigo Regime,
trouxe algumas considerações a respeito do lugar da mulher no saber jurídico,
destacando, entre outros aspectos, a questão da capacidade/incapacidade feminina.
83
Processo de emancipação de Ana e Maria. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 441, Auto 9207, Ano
1804. (Grifo nosso)
84
Inventário de Antonio da Costa Lopes. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 59, Auto 669, Ano 1781.
85
Não podemos deixar de mencionar que, em alguma medida, julgamos que tal aspecto pode estar
relacionado com a natureza das fontes analisadas. Trabalhamos no presente estudo com processos que
traziam informações sobre o destino de bens e o cuidado com a administração da herança. Assim, era de se
esperar que a principal preocupação era com a habilidade e a destreza para gerenciar a família e os bens.
82
Conforme o autor, tradicionalmente a mulher era vista como um ser fraco e frágil e, por
causa disso, considerada incapaz. Dessa forma, para os juristas, as mulheres seriam
“naturalmente ignorantes” e, por isso, careceriam de capacidade. Sendo assim, elas não
teriam condições inclusive de reger a si próprias, equiparando-se às crianças e aos
rústicos e necessitando sempre da tutela de alguém.
Mas, se era esse o entendimento a respeito da mulher, como explicarmos as
avaliações da capacidade feminina presentes nos testamentos e inventários, sendo
esta, inclusive, uma condição para bem reger sua família? Ou ainda, retomando a
questão acima, como era entendida a capacidade feminina?
Primeiramente, devemos partir do princípio de que havia uma diferença a
respeito do tema, ou melhor, dos espaços em que a mulher seria considerada capaz ou
não. O próprio Hespanha (2010) demonstrou que, para o campo jurídico, a mulher seria
considerada incapaz para o exercício de atividades de mando, tais como: julgamento,
política, sacerdócio, dentre outros, ou seja, atividades ligadas ao público86. Mas, quanto
aos aspectos ligados à família, isto é, ao privado, podemos dizer que havia um
entendimento de que as mulheres exerciam certa autoridade, sendo consideradas
capazes para tal exercício87. No caso de Minas Gerais, podemos dizer ainda que, muitas
vezes, essa capacidade feminina dava mostras, inclusive, nos negócios, como bem
destacou Figueiredo (2008) e como tentaremos demonstrar.
Capacidade, segundo o dicionarista Bluteau (1712), seria “doutrina, ciência,
saber”. Capacitar, por sua vez, seria o mesmo que “ser capaz de entender”. Para Morais
e Silva (1789), o termo capacidade estaria relacionado à “habilidade para adquirir dores
do entendimento, e da vontade”, “poder físico ou moral”. Já Capacitar seria “fazer crer,
persuadir, compreender, alcançar com entendimento”.
Nas fontes estudadas, a noção de capacidade perpassava pela ideia de
destreza, habilidade e conhecimento. Isso implica dizer que, se uma mulher
demonstrasse que tinha certa experiência para manter sua família, inclusive em
condições de gerenciar os negócios, ela era considerada capaz.
Antônia Varela, por exemplo, era viúva do crioulo forro Manoel Ferreira dos
Santos. Ela foi nomeada tutora dos dois filhos pelo próprio juiz de órfãos, pois, segundo
o escrivão, no lugar onde ela morava – no Padre Faria em Vila Rica – não existia “pessoa
mais eficiente para a tutoria” 88. Assim, para as pessoas de seu convívio, Antônia reunia
86
Por outro lado, o autor destacou que havia algumas leis e costumes que admitiam mulheres nas funções
de mando. Entretanto, a tradição via a mulher como fraca e frágil e, portando, incapaz.
87
Sobre público e privado, ver Castan (1991).
88
Inventário de Manoel Ferreira dos Santos. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 47, Auto 526, Ano 1805.
83
os principais requisitos para a função, sendo escolhida em detrimento de todos os
outros.
Mas, se por um lado havia na documentação um entendimento de que a mulher
tinha certa capacidade, por outro existia uma aproximação daquela ideia de tutela
masculina. As mulheres eram aceitas no governo de determinadas atividades, mas
sempre obedientes a um homem. Assim, mesmo quando seus maridos faleciam ou se
ausentavam, por exemplo, e elas conduziam com maior autonomia a família e as
atividades de negócio, isso se dava sob a supervisão de um homem. Elas eram
obrigadas, por exemplo, a apresentar a prestação de contas da tutoria e administração
de bens para os juízes de órfãos; careciam das parcerias com seus irmãos, tios, pais e
compadres para manter ou realizar negócios; dependiam da abonação de vizinhos e
credores para gerenciar as atividades financeiras da família; precisavam responder
pelos cuidados dispensados aos expostos deixados sob sua responsabilidade para os
homens da Câmara. Em outros termos, seu cotidiano dava-se na relação e sob a
supervisão dos homens, quando elas tinham condições de demonstrar e,
especialmente, exercitar sua capacidade.
Sendo assim, podemos dizer que a noção de capacidade feminina presente na
documentação se revelou “condicionada”. As autoridades que conviviam com as
mulheres aqui analisadas entendiam que elas tinham habilidade e condições para
administrarem suas famílias e cuidar da educação dos menores, mas sempre
obedientes a algum homem, o que se aproxima daquele entendimento apresentado por
Hespanha (2010).
A partir da análise da documentação, percebemos que as mulheres tinham
condições de demonstrar sua capacidade especialmente em determinadas
circunstâncias: quando solteiras, regendo seus próprios negócios e família; na ausência
ou morte dos cônjuges e, em alguma medida, na presença de seus parceiros.
Cipriana Maria Monteiro de Souza era solteira. Ela era mãe de quatro filhos,
dentre eles, o padre Antonio Gomes de Carvalho, seu inventariante. No momento da
feitura de seu testamento, ela se encontrava morando em Piranga, Termo da cidade de
Mariana, mas tinha vivido boa parte de sua vida em Vila Rica, onde gostaria de ser
sepultada, mesmo que fosse necessária a condução de seu corpo para essa localidade.
Proprietária de 16 escravos, terras minerais, muitas joias, seus bens foram avaliados
em 3:259$90089.
89
Inventário de Cipriana Maria Monteiro de Souza. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 29, Auto 321,
Ano 1788.
84
Apesar de não termos informações sobre os homens que fizeram parte da sua
vida e que certamente participaram de suas conquistas para si e para seu grupo familiar,
temos, a partir das declarações presentes em seu testamento, alguns indícios que
revelaram seus esforços para garantir a educação e inserção social de seus filhos.
Segundo suas próprias palavras, era ela quem havia dotado sua filha Maria Francisca
Mendes quando esta se casou com Manoel Moreira Alfena. Além disso, era ela também
que havia concedido o dote ao filho padre. Soma-se a isso o fato de que Cipriana era
filha de uma preta forra, o que, ao menos em tese, impediria que seu filho se tornasse
um padre90. Entretanto, como a realidade se mostrou contrária, não podemos descartar
as redes de sociabilidade construídas ou partilhadas por Cipriana.
Já Dona Teresa de Jesus, viúva do Tenente José Francisco de Sá Mourão,
mencionada anteriormente, era, conforme os depoimentos das testemunhas, além de
uma mulher “honesta” e “recolhida”, dona de “toda capacidade precisa para reger os
bens e pessoas de seus filhos”. De acordo com as testemunhas, eles tinham esse
entendimento pois, dentre outros aspectos, sabiam pelo “ouvir dizer” e também por ser
“público e notório” que ainda em vida do falecido era ela quem escrevia “vários
particulares tendentes aos negócios de seu casal em presença e ausência de seu
marido”. Dessa forma, ela ajudava o marido nos negócios, revelando assim um espaço
de ação e manobra mesmo quando ele ainda estava vivo91.
Depois do falecimento do Tenente José, Dona Teresa buscou todos os meios
para manter e mesmo aumentar esse espaço. No processo de inventário, quando foi
chamada para se proceder à partilha dos bens, ela declarou que não conhecia o tutor
nomeado. E, além disso, mencionou que tinha parentes com capacidade para tal
encargo, cabendo a nomeação de um estranho apenas se os primeiros recusassem.
Assim, fez questão de declarar que não “consentia” com tal nomeação, pois, além de
ele ser estranho e solteiro, era "sem abonação alguma (...) sem terras, nem escravos e
de conduta”, duvidosa, como as testemunhas declarariam. Para a função de tutor ela
indicava e “tinha grande felicidade” que fosse seu “compadre o Reverendo Antonio
Ribeiro de Azevedo, sujeito de toda abonação” e “parente espiritual”. Caso não fosse
aceito o referido compadre, ela recomendava seu irmão, o também padre José de
Freitas Leitão. Como parte do embargo, ela apresentou uma sentença contra o tutor
nomeado, ligada a uma dívida, o que, somada a todas as alegações, acabou
90
Como destacou Nolasco (2014), nos processos de ordenação de um padre, um dos requisitos necessários
era que o candidato provasse sua pureza de sangue.
91
Requerimento de Teresa de Jesus. AHU, Cx122, doc. 33, Ano 1784. (Grifo nosso)
85
provocando a aprovação do pedido de Dona Teresa e a consequente remoção do
tutor92.
Em que pesem as circunstâncias contra o tutor inicialmente nomeado, o fato é
que Dona Teresa se utilizou de todas as estratégias disponíveis para que fosse
nomeada uma pessoa de sua confiança. Provavelmente, a pessoa por ela indicada
conservaria ou mesmo aumentaria seu espaço nas decisões quanto à manutenção e
futuro, inclusive educativo, de seus filhos pois, como vimos, Dona Teresa já era bastante
ativa quando o marido era vivo. E certamente esse espaço foi aumentado quando ela
mesma assumiu a tutoria, graças à mercê régia. De acordo com a própria viúva, todo o
seu empenho era na tentativa de “aproveitar tudo quando se possa em utilidade e
benefício de seus filhos” 93.
Já as testemunhas presentes na solicitação de tutoria de Dona Ana Maria de
Toledo entendiam que a mesma deveria ser aceita para tal encargo em decorrência das
mostras de sua competência depois de viúva. Segundo as declarações das
testemunhas, ela deveria ser tutora da neta Dona Maria Inácia de Lourença Silveira,
filha do Conde de Lacerdas, que, por sua vez, se encontrava nas Índias, porque, além
de ser pessoa de nobreza, era uma viúva honesta e “com família grande que sabe
governar e bem reger”: Dona Ana Maria teria “toda a capacidade idônea para ter sob
sua tutela, criação, administração e zelo” a menor sua neta94.
Entretanto, para alguns, as mulheres não tinham condições de responder, ao
menos legalmente, por sua família. O Alferes e advogado José Feliciano Pereira da
Silva, curador dos órfãos do Guarda-mor Antônio Manoel de Moura, nomeado pelo juiz
de órfãos para promover judicialmente tudo quanto fosse de interesse dos menores,
declarou em requerimento que a viúva não tinha “dado um só passo para as devidas
cautelas, menos para sua meação, provando assim a inabilidade de poder gozar do
benefício da lei, quanto a tutoria de seus filhos que a mesma lhe concede”95.
Segundo o curador, Dona Teresa Rosa de Jesus, estando ciente de que seu
marido havia falecido durante uma viagem, não buscou fazer o inventário dos bens
existentes no Arraial de Itabira, onde moravam, e também daqueles que se encontravam
na Comarca do Sabará. Para o curador, a viúva não buscou nem defender a parte da
herança que lhe cabia, quanto menos a que pertencia aos menores. Isso já
92
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM.2º Ofício, Códice 34, Auto 381, Ano
1783.
93
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM.2º Ofício, Códice 34, Auto 381, Ano
1783.
94
Justificação para tutela – Dona Ana Maria de Toledo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 442, doc.
9230, Ano 1803. (Grifo nosso)
95
Inventário de Antonio Manuel de Moura. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 14, Auto 122, Ano 1812.
86
demonstrava, em seu entendimento, a falta de capacidade de Dona Teresa. Tanto foi
assim que o juiz optou por nomear outra pessoa para a função de tutor.
A falta de capacidade também serviu de base para o curador Dr. Manoel de
Souza Oliveira questionar uma venda feita pelo Capitão Antônio João Belas à sua
esposa Antônia Marcelina do Espírito Santo. Entretanto, estamos diante de outro tipo
de capacidade, ligada à leitura e escrita. Segundo o curador, a escritura de compra e
venda havia sido assinada apenas “com uma cruz” pela viúva, o que lhe parecia
incoerente e contra os preceitos das Ordenações Filipinas96. Para completar, ele
entendia que tão grande cabedal – os bens foram avaliados em 24:432$300 – não cabia
“nas possibilidades de uma mulher que nem ler e escrever sabe para os bem administrar
e reger". Como podemos perceber, para alguns, a incapacidade incluía diferentes
aspectos, inclusive o domínio da leitura e escrita97.
Assim, percebemos que, no período abarcado pela presente pesquisa, as
avaliações a respeito da mulher buscavam projetar na realidade aquele ideal feminino,
ou seja, a mulher preocupada com a família, os filhos e o governo da casa. Entretanto,
em decorrência do cotidiano, a mulher almejada era aquela que fosse especialmente
preocupada com a sobrevivência da família, em melhorar a condição de sua prole,
mesmo que para isso fosse necessário participar dos negócios e, em alguns casos,
trabalhar para o sustento do grupo familiar.
A partir desse entendimento e das considerações apresentadas até aqui,
percebemos que eram a honra e a capacidade que conformavam de modo especial a
mulher que chamamos no presente estudo como “educadora”. No que se refere à honra,
como destacamos anteriormente, a concepção corrente no período defendia uma
educação baseada sobretudo no exemplo. E que exemplo ela poderia dar se não
valorizasse os “bons costumes”? De modo concomitante, acreditava-se que era dever
da mulher também tomar para si, não necessariamente de maneira consciente, a função
de transmitir valores – civis e religiosos, concepções de mundo, hábitos e modos de
agir.
Uma mulher educadora era ainda aquela que deveria cuidar da criação que,
como vimos, abrangia desde os ensinamentos mais básicos, a “educação nos
costumes”, até a garantia da alimentação. Ainda nos casos analisados, enquanto
96
O curador estava se referindo ao título 59 “Das provas, que se devem fazer por escrituras públicas” In:
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 3, p.
651. Ali consta que todas as vendas acima de 4$000 para os bens de raiz e 60$000 para os bens móveis só
teriam validade se fossem feitas por escritura redigida por um tabelião público ou escrivão. No caso
existente no inventário, a venda havia sido feita por escritura particular.
97
Inventário de Antônio João Belas. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 21, Auto 218, Ano 1783. (Grifo
nosso)
87
educadora, cabia à mulher direcionar as crianças e jovens para algum tipo de instrução
que, de um modo geral, podia ser o aprendizado da leitura e escrita até algum tipo de
educação mais específica, como o aprendizado de um ofício. No caso das meninas,
orientar sua formação para os “misteres próprios do seu sexo”. Daí a importância de se
buscar uma mulher capaz e em condições para essas tarefas.
Sendo assim, à mulher, para além da questão da sobrevivência, cabia também
participar do processo de ordenamento e propagar os interesses e aspirações
circulantes no período. Nesses termos, entendemos que as mulheres eram "jogadoras"
do "jogo social", pois ao mesmo tempo em que eram alvos das concepções e valores
de seu tempo, participavam do processo de construção dessas concepções e valores e
das visões de mundo referentes aos outros aspectos do viver em sociedade98. Nesse
sentido, elas não se escusavam da sua parcela de obrigação no complexo processo de
conformação, propagação e mudança dos costumes, valores e das diferentes
estratégias da vida cotidiana, ao contrário. Na verdade, assumindo a função de educar,
elas acabavam, em certa medida, criando uma espécie de equilíbrio entre, de um lado,
os valores e ideais em circulação no período e, de outro, as condições práticas
subsistentes e os próprios interesses particulares que eram engendrados dentro do seu
grupo familiar.
Ciente desses aspectos, buscamos, nos próximos capítulos, identificar uma
mulher dedicada ao seu papel de educadora e preocupada com a sobrevivência de sua
família. Á luz dessa mulher representada pelas concepções existentes e apresentada
acima, procuramos reconstruir as ações desenvolvidas por ela ou a favor dela para
participar do processo educativo dos menores e da administração de suas famílias. Ao
mesmo tempo, tentamos identificar as práticas femininas propriamente educativas. Daí
o nosso interesse pelas estratégias para educar as crianças e jovens sob sua
responsabilidade e pelos tipos de educação ofertados.
98
A noção de "jogadora" apresentada aqui se baseia nas considerações de Bourdieu (2004), já apresentadas.
88
Capítulo 2
“Por sua capacidade e agilidade” – as estratégias para a sobrevivência da
família e educação dos órfãos desenvolvidas pelas tutoras
99
Todos os indivíduos com até 25 anos de idade eram considerados menores, independente do sexo. Desses,
eram excluídos aqueles que: já fossem casados; tivessem obtido suplemento de idade ou fossem
emancipados pelo pai. Já os considerados incapazes eram aquelas pessoas que não tinham condições de
administrar a si e seus bens, tais como: "furiosos, mentecaptos, pródigos, desassisados, ausentes e surdos..."
(CARVALHO, 1840, p. 09).
100
No caso de pessoa incapaz era nomeado um curador. A distinção entre as duas funções será explicada
mais à frente.
101
O juiz de órfãos era, conforme Carvalho (1840, p.14), uma pessoa constituída por Autoridade Régia e
tinha como obrigação: mandar descrever, avaliar e repartir o patrimônio do falecido quando havia herdeiros
menores de 25 anos ou pessoas que fossem incapazes de gerir os próprios bens; cuidar da educação e destino
dos herdeiros e fiscalizar a administração e arrecadação de todas as legítimas. Já o escrivão era o oficial
legitimamente constituído e cabia à sua função: processar o inventário e demais autos em que figuravam
menores ou incapazes; fiscalizar a conduta dos tutores e curadores (CARVALHO, 1840, p. 19); "por em
boa arrecadação os bens e rendas dos órfãos e olhar por suas pessoas". [Ordenações Filipinas] Código
Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1, título 89, p. 221.
102
A documentação tem possibilitado identificar alguns casos em que mesmo o pai era chamado de tutor
depois da morte da mãe. Em muitos dos processos de inventários, logo depois da partilha, os juízes
chamaram o pai à sua presença e fizeram com que ele assinasse o termo de tutoria. Somente depois disso é
que se concretizava o processo de entrega legal dos bens dos filhos para a sua administração. João Barbosa
de Souza, por exemplo, era casado com Ana Joaquina e teve seus bens inventariados em 1791. O casal tinha
uma filha, e nesse processo consta um termo de tutoria assinado pelo pai. Inventário de Ana Joaquina.
AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 01, Auto 07, Ano 1791.
89
de Vila Rica no que se refere tanto à administração dos bens quanto ao direcionamento
educativo dado aos órfãos.
A tutoria dava diferentes oportunidades para a mulher participar e definir
elementos ligados à sobrevivência e à situação econômica e social de sua família e
também sobre a educação dos herdeiros. Tais oportunidades poderiam se mostrar de
modo semelhante nos diferentes grupos sociais. Mas também, exatamente por causa
da condição socioeconômica e daquilo que as famílias entendiam como melhor para
seus herdeiros, haveria a possibilidade de surgirem circunstâncias distintas, marcadas,
como veremos, pela legislação.
103
A respeito desta obra — "Primeiras Linhas sobre o Processo Orphanológico", de José Pereira de
Carvalho — é importante mencionar que a edição utilizada aqui é a quarta publicada em 1840. De acordo
com Camargo & Moraes (1993, p. 156), era "uma obra clássica que foi reeditada com revisão e acréscimo
de diversos jurisconsultos, em Portugal e no Brasil, até fins do século XIX. Esta edição [1815] é considerada
a primeira (Innocencio, 13, 164), muito embora a Gazeta do Rio de Janeiro de 9 de set. 1815 a anuncie
como 'huma nova edição'. T. de Alencar Araripe, na advertência à edição da Livraria Popular de A.A. da
Cruz Coutinho, Rio de Janeiro, 1879, informa que a obra "teve sua primeira edição em Portugal em 1815".
104
O "cabeça do casal" era aquela pessoa que ficava na posse dos bens até a partilha, também chamado de
inventariante. Quando casado, aquele cônjuge que sobrevivesse era assim nomeado. Se viúvo ou solteiro,
era nomeado como "cabeça do casal" o herdeiro que vivia com o falecido. Caso nenhum dos herdeiros
morasse com o inventariado, o juiz de órfãos deveria nomear aquele que mais conhecia os bens.
90
além da privação da herança, perderiam o direito de serem tutoras ou de ter os filhos e
netos sob sua governança105.
Percebemos na documentação as duas situações: o inventário feito a mando do
juiz e também em decorrência do pedido feito pelo "cabeça do casal". No que se referia
aos prazos, nem sempre os mesmos eram respeitados. Inicialmente, consideramos que
o não cumprimento do tempo determinado pela legislação estava relacionado com o
local de moradia, tendo em vista que o Termo de Vila Rica era bastante extenso, e o
juiz de órfãos atendia não apenas à sede, mas a todos os arraiais. Por isso, acreditamos
que aquelas pessoas que não eram citadas pelo juiz ou que não requeriam o inventário
no prazo estabelecido não o faziam porque moravam mais distante.
No entanto, percebemos que essa questão não necessariamente influenciava o
processo. Domingos José Ferreira, por exemplo, morava em Vila Rica. De acordo com
a inventariante e esposa Maria Teodora da Silva, ele havia falecido em 02 de fevereiro
de 1802. Entretanto, o inventário teve início apenas em 07 de setembro do mesmo ano,
não havendo nenhuma justificativa para o referido atraso106. Já José Antônio da Silva,
morador no Arraial de Itabira do Campo, morreu em 17 de agosto de 1795, e sua esposa
e inventariante Luzia da Silva Moreira apresentou os bens para inventário pouco depois,
em 18 de setembro107.
Todos os bens ficavam na posse do "cabeça do casal" até a partilha, quando
primeiramente eram feitos os pagamentos das dívidas e o funeral. O restante era
dividido em duas partes, cabendo uma delas ao viúvo, caso houvesse; a outra metade
era separada em três partes iguais, sendo uma delas para pagamento dos legados
testamentais, conhecida como "terça", e as outras duas, repartidas entre os herdeiros.
A entrega dos bens para inventário era feita sob juramento dos Santos
Evangelhos. Sendo a mãe a falecida, o processo tinha a seguinte ordem: descrição,
avaliação e partilha. Nesse caso, os bens partilhados ao menor ficavam sob a
responsabilidade paterna, já que o pai era o legítimo administrador. O pai deveria
conservar tais bens, mas tinha o direito de gastar "as rendas e novidades" enquanto o
filho estivesse sob o seu poder. Ele deveria entregar toda a herança do herdeiro quando
o mesmo deixasse de ser menor, com exceção dos bens móveis108.
105
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
título 88, p. 209-10.
106
Inventário de Domingos José Ferreira. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 35, Auto 422, Ano 1802.
107
Inventário de José Antônio da Silva. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 73, Auto 877, Ano 1795.
108
Entende-se por bens móveis: trastes de casa, roupas, ferramentas, dentre outros. Esses bens poderiam ou
não ser entregues caso ainda existissem. Isso porque havia o entendimento de que os bens móveis poderiam
acabar antes de o menor alcançar a maioridade ou se ele se emancipasse. Essa determinação está nas
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
título 88, p. 208-9.
91
No caso de morte do pai, o processo era um pouco diferente depois de feitas as
partilhas. Como já mencionado, o menor era considerado órfão, e, por isso, era
necessária a nomeação de um tutor109. Uma vez instituída essa pessoa, todos os bens
do órfão passavam para sua responsabilidade.
Entendia-se que, na divisão do patrimônio, todos os herdeiros deveriam receber
bens de todas as naturezas: móveis, semoventes e de raiz110. Uma vez feita essa
divisão, a legislação estabelecia que o tutor deveria arrendar os bens de raiz do órfão
para que pudessem dar algum lucro, quando não fossem usados para sustento e
sobrevivência do menor. Os bens de raiz não poderiam ser vendidos, salvo por extrema
necessidade. Já para as demais propriedades cabia julgamento por parte do juiz. Se ele
considerava que elas teriam mais proveito para o menor se fossem vendidas, assim se
deveria proceder, colocando todos os bens em pregão. Os rendimentos dessa venda
seriam entregues ao tutor que, com autoridade do juiz, deveria comprar mais bens de
raiz para os menores111.
Todos os lucros das vendas e arrendamentos, quando não utilizados para a
compra de outros bens de raiz, além de dinheiro, joias, ouro e prata partilhados aos
órfãos deveriam ser colocados no cofre do Juízo dos Órfãos112. Dois livros deveriam
ficar na arca, sendo um para as receitas e outro para as despesas registradas pelo
escrivão. Cabia ao juiz juntamente com o escrivão requererem ao tutor que colocasse
tudo no cofre quando houvesse algum rendimento113.
No primeiro ano da partilha, antes de os valores herdados serem colocados no
cofre, competia aos partidores taxar uma determinada quantia para as despesas,
segundo a qualidade do órfão, quando o mesmo não poderia ser dado por soldada e
não tivesse bens para se alimentar114. Depois disso era função do juiz de órfãos
109
Falaremos sobre o tutor mais à frente.
110
Os bens móveis já foram explicados na nota anterior; bens semoventes seriam os escravos e animais;
bens de raiz eram as moradas de casas, sítios, fazendas, terrenos etc.
111
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
título 88, p. 213-15.
112
Esse cofre era uma arca com três chaves feita à custa do dinheiro do órfão. Uma chave ficava com o
juiz, outra com o escrivão e outra com o depositário. Este, por sua vez, era uma pessoa abonada que era
julgada apta para ficar com o depósito. [Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2012. Livro 1, título 88, p.215.
113
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
título 88, p.215-6. Pela documentação foi possível perceber que os tutores eram convocados para colocar
os rendimentos dos bens em duas situações: quando havia a arrematação dos bens dos órfãos e depois de
prestadas as contas de tutoria e identificado algum rendimento.
114
A qualidade do órfão era definida pelo grupo social a que pertencia, que, por sua vez, correspondia
àquela de seus ascendentes. Quando não havia rendimento algum ou o menor não era de “qualidade”, ficava
estabelecido pelas Ordenações que o órfão deveria ser dado por soldada. Isso acontecia a partir de um
pregão feito pelo juiz que escolhia entre os interessados aquele que tivesse o trabalho mais próximo do
falecido pai. As mães e avós eram as preferidas. A intenção da soldada era criar meios para o menor se
sustentar e aprender algum ofício. [Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2012. Livro 1, título 88, p.212. Falaremos mais sobre o assunto ainda nesse capítulo
92
determinar a quantia que deveria ser gasta com o menor anualmente. Nos dois casos,
cabia ao tutor a obrigação de administrar os valores.
Não foi possível identificar entre os inventários pesquisados um valor fixado
pelos partidores, conforme determinado nas Ordenações. Entretanto, a documentação
revelou inúmeros casos de solicitação de valores por parte dos tutores para o sustento,
educação e vestuário dos órfãos, muitos anos depois de assumirem a tutoria. Esses
pedidos eram feitos ao juiz de órfãos, o que nos leva a deduzir que nem sempre essa
determinação legal era cumprida.
João da Silva Barbosa nomeou sua filha Ana Maria da Silva como tutora dos seis
irmãos ainda menores no seu testamento. Ela assinou o termo em fevereiro de 1788.
Em maio de 1794, prestou contas de sua tutela. Nessas contas, além de apresentar os
rendimentos, despesas e educação efetuados com cada um dos menores, solicitou ao
juiz que arbitrasse determinada quantia para compensação dos alimentos e o mais com
que supriu os órfãos. Como já haviam se passado mais de seis anos, imaginamos que
até aquela data era ela quem arcava com as despesas e que o juiz não tinha arbitrado
nenhuma quantia para os custos com os menores115.
Mas havia casos nos quais sequer deveria ocorrer o inventário, como destacou
Carvalho (1840, p. 12). Segundo o jurista, quando os herdeiros menores alcançavam
suplemento de idade ou fossem casados e emancipados ou ainda "a herança de pouca
ponderação", não era necessária a feitura do inventário. Para o jurista, no caso da
herança insignificante, os custos do inventário absorveriam todas as legítimas.
Entretanto, defendia que, por menor que fosse a herança, necessariamente o juiz
deveria descrever os bens como forma de se conhecer a natureza do patrimônio e,
também, caso surgisse algum crédito, ter ciência de mais essa posse.
A documentação revelou alguns casos apoiados nesse entendimento defendido
pelo jurista, especialmente no que se refere ao montante dos bens. Percebemos que
houve situações em que o juiz optou por não realizar a partilha e, em consequência, os
bens dos menores não foram colocados à venda ou no cofre. Dentre as situações que
impediram a partilha, podemos citar: uma avaliação muito baixa do patrimônio;
qualidade dos bens, que não podiam dar rendimentos; e poucos pertences, que eram
utilizados para a subsistência e sobrevivência da família — no caso de escravos de
ganho ou para o serviço doméstico e ferramentas de trabalho.
quando discutirmos as ações femininas voltadas para o provimento e manutenção da família e as estratégias
para educar. Sobre o valor estabelecido pelos partidores, ver [Ordenações Filipinas] Código Filipino...
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1, título 88, p.216.
115
Inventário de João da Silva Barbosa. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 67, Auto 804, Ano 1788.
93
Esse parece ser o caso presente no inventário de José Antônio de Meira,
morador de Vila Rica. Seus bens, constituídos de algumas ferramentas, roupas,
algumas cabeças de gado, joias e quatro escravos, receberam a avaliação total de
488$206. Depois do pagamento das despesas com o enterro e dívidas, cada herdeiro
recebeu a quantia de 32$546 4/5. Diante desse valor e do fato de que os bens eram
utilizados para o provimento e manutenção da família, o juiz determinou que a viúva,
nomeada tutora em testamento, deveria ficar com todos os bens partilhados para o
sustento dos órfãos. Ele estabeleceu ainda que ela e os órfãos teriam direito ao conjunto
dos rendimentos e que todos se serviriam deles conforme a necessidade, "correndo-
lhes todos os riscos em partes iguais atendida a infância dos mesmos órfãos e
probidade da viúva sua mãe, abonada pelo falecido (...) quando eu também faço dela
bom conceito..."116.
A não ocorrência das partilhas não isentava a nomeação de um tutor, ao
contrário. Percebemos na documentação que, mesmo nesses casos, um tutor era
nomeado, assim como defendia Carvalho (1840). Para ele, nessas situações, o tutor
tinha uma função muito importante: cuidar da educação dos órfãos. Nas palavras do
jurista (1840, 2 parte, p. 07), em não se nomeando um tutor, havia o risco de que à
pobreza fossem somadas a falta de educação e o desamparo. "E o que pode esperar a
sociedade de milhares de indivíduos, que, perdendo os autores de sua existência nos
mais tenros anos de sua infância, não acham um braço benfazejo, que os desviasse da
estrada do crime, ensinando-lhes a da virtude?"
Nesses termos, a função do tutor revelava-se de extrema importância para o
futuro do órfão. Diante disso, torna-se fundamental fazermos uma abordagem a respeito
desse personagem, o seu processo de escolha e as obrigações exercidas por ele.
116
Inventário de Jose Antônio de Meira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 23, Auto 242, Ano 1808, fl.
09.
94
falta de consenso a respeito do assunto, deixando entrever que, para alguns, as duas
palavras eram vistas como sinônimas e, para outros, havia distinções nas duas funções.
Diante disso, para falarmos sobre o tutor, consideramos importante fazer
algumas observações. Acreditamos que essa junção das funções na mesma ordenação
se devia ao fato de que tanto uma quanto a outra estavam ligadas às atividades
relacionadas ao órfão.
Há várias considerações sobre os dois encargos, sendo o entendimento a
respeito de cada uma dessas funções um misto entre a interpretação dos diferentes
juristas e a definição que já existia no Direito Romano117. Baseando-se inicialmente
neste último, o termo "tutor" era utilizado nas Ordenações para nomear aquele indivíduo
que deveria cuidar da pessoa e educação do órfão. Já o "curador" era encarregado de
zelar pelos bens.
Entretanto, conforme Cândido Mendes da Silva, responsável pelos comentários
existentes nas mesmas Ordenações, progressivamente houve uma perda dessa
distinção, e as palavras "tutor" e "curador" passaram a ser usadas na legislação de
forma indistinta para nomear a pessoa encarregada de cuidar do órfão, de sua educação
e de seus bens118. A diferença era que, conforme o mesmo jurista, nas Ordenações
foram mantidas as orientações de chamar de "tutor" àquele responsável pelos bens e
os cuidados com as meninas menores de 12 anos e os meninos com idade inferior a 14
anos, sendo esses menores nomeados de "impúberes". Já o termo "curador" era a
denominação daquele responsável pelos bens e menores que passavam dessas idades
até os 25 anos, então conhecidos como "púberes". No que se referia às regras ligadas
ao exercício das funções, ficou estabelecido que seriam as mesmas119. Todavia,
conforme Cândido Mendes da Silva, na prática era inútil essa distinção, sendo usados
os dois termos para se referir às duas funções120.
A análise da documentação, por sua vez, revelou que eram chamados de
"tutores" todos aqueles responsáveis pelos menores e seus bens, independentemente
da idade do órfão. O termo "curador", por sua vez, era utilizado em duas situações:
quando era nomeada uma pessoa para ficar com algum incapaz, geralmente alguém
117
Como já mencionado na introdução, as Ordenações Filipinas eram uma compilação de leis que passou
a vigorar a partir de 1603, quando então sucedeu às Ordenações Afonsinas e Manuelinas. Elas tinham como
base o Direito Romano, o Direito Canônico, acordos celebrados entre a Igreja Católica e reis de Portugal e,
também, alguns costumes praticados na Península Ibérica e foros locais. [Ordenações Filipinas] Código
Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012, Notas do editor.
118
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
título 102, p.994.
119
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
título 104, p.1011.
120
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
título 102, p.994.
95
que já morava com o indivíduo ou algum parente próximo; ou ainda para situações
ligadas às demandas do juízo.
As duas situações referentes aos curadores estavam previstas nas
Ordenações121 e também foram reforçadas pelo jurista José Pereira de Carvalho (1840,
2 parte, p. 33). No que se refere às situações em que os menores demandavam ou eram
demandados em juízo, era necessário, conforme destacou o jurista, além do tutor já
existente, um curador chamado ad litem, que deveria "patrocinar e defender" o órfão.
Nesses casos, como percebemos na documentação, a pessoa eleita era um advogado,
e, se houvesse qualquer processo sem essa nomeação, tudo era considerado nulo.
Outros estudos já demonstraram essa "mistura" entre os dois termos. Paula
(2016, p. 67), estudando o papel dos tutores na educação e inserção social dos órfãos
no Termo de Mariana, declarou que na documentação investigada o termo "tutor" foi
observado "em várias situações e em sentido muito mais amplo" do que aquela
diferença estabelecida pelas Ordenações de dar tutor para os impúberes e curador para
os púberes. Já Gorgulho (2011, p.81), em seu estudo sobre as estratégias e práticas
educativas destinadas aos órfãos abastados da Comarca do Rio das Velhas, declarou
que o termo "curador" aparecia algumas vezes no lugar de "tutor", o que para ela parecia
ser "apenas outro termo para designar a mesma função". Essa parece ser também a
conclusão de Praxedes (2008) em seu estudo sobre as mulheres como chefes de
domicílio em Minas Gerais entre 1770 e 1880 que, apesar de não discutir sobre os dois
termos, utiliza-os como sinônimos.
Diante disso, optamos por manter conforme o praticado na documentação
utilizada para o nosso estudo, isto é, chamaremos de "tutores" aquelas pessoas que
ficaram responsáveis pelas crianças e jovens até a idade de 25 anos e seus respectivos
bens. Já os "curadores" foram aqueles que exerceram a curatela de um incapaz ou em
virtude de alguma questão judicial.
Nem todas as pessoas poderiam ser escolhidas para desempenhar a função de
tutor. Carvalho (1840, 2 parte, p.18) dividiu os excluídos em três grupos distintos: por
incapacidade física; moral; ou do "justo receio". No primeiro grupo estavam os surdos e
mudos, os totalmente cegos, os portadores de doenças graves e incuráveis e os maiores
de 70 anos de idade. A incapacidade moral compreendia os menores; as mulheres (com
121
Os casos de nomeação de curadores para incapazes estavam previstos nas [Ordenações Filipinas]
Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4, título 103, p. 1004. Já os
casos de curadores para questões ligadas ao juízo eram determinados nas [Ordenações Filipinas] Código
Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 3, título 41, p.623.
96
exceção das mães e as avós122); os religiosos professos, os infames, os escravos, os
sandeus e desassisados, os que seguiam outra religião que não fosse a Católica
Romana e os condenados à morte, incluindo-se aqui os degredados. Já os do "justo
receio" seriam os poderosos123, os inimigos do pupilo, os que tinham bens em comum
ou fronteiriço, os que o pai excluiu declaradamente, os que voluntariamente se
ofereceram ("principalmente dos órfãos ricos"), os padrastos124 e os pobres125.
Por outro lado, havia casos em que a pessoa poderia não assumir a função de
tutoria se assim o desejasse. Nas Ordenações, os homens liberados da tutoria eram os
pais de cinco filhos legítimos, independente do sexo, e também aqueles que tivessem a
guarda de cinco netos126. Eram autorizados ainda a desistirem da tutela aqueles que
exerciam determinados cargos públicos, tais como: desembargadores, corregedores,
ouvidores, juízes, vereadores, procuradores, escrivães, inquiridores e contadores,
carcereiros, porteiros e caminheiros, dentre outros127.
122
Não se aplicam aqui os casos de nomeação em testamento, pelo que observamos na documentação. Foi
possível identificar casos em que o pai preferiu eleger para tutoras de seus filhos as comadres e filhas, como
apresentaremos mais à frente.
123
Os poderosos seriam: fidalgos; cavaleiros, incluindo aqui os das ordens militares; doutores em leis,
cânones ou medicina.
124
Na documentação, entretanto, foi possível identificar casos de padrastos assumindo a tutoria ou muitos
esforços para constrangê-los a assumir. Dentre eles podemos citar Joaquim Moreira da Cruz. Ele era casado
com Josefa Gonçalves Saragagoça que, por sua vez, era viúva de Manuel da Rocha Monteiro. Quando
faleceu, Manuel deixou cinco filhos, dos quais três ainda não eram emancipados. Foi nomeado inicialmente
para tutor o vizinho e Alferes Domenciano Ferreira de Carvalho, que, depois de ter entregue as contas de
sua tutoria, pediu desoneração da função. Diante disso, o escrivão indicou o padrasto para assumir a tutoria.
Joaquim, por sua vez, tentando se esquivar de tal encargo, declarou que não poderia assumi-lo "em razão
de legítimo impedimento sem saber ler, nem escrever e tem a seu cargo oito filhos, sete da primeira mulher,
com quem casou e todos vivos bastando-lhe cinco para não ser tutor conforme a Ord. Lº 4 ttº 104...". Apesar
dessa declaração, o escrivão reforçou que ele era o único em condições para assumir essa função, e, por
isso, o curador nomeado para responder a essa questão judicial assim o confirmou. Segundo o curador, a
citada Ordenação excluía os parentes, e como o padrasto não era assim considerado, deveria exercer tal
encargo. Além disso, declarou que eram as órfãs que, "em obediência à sua mãe", cuidavam do tratamento
dos filhos do padrasto, já que moravam na mesma casa; e, só por isso, ele deveria ser prestativo. O processo
segue com vários embargos, seja por parte do curador, seja por parte do padrasto, cada um alegando motivos
variados a respeito do exercício ou não da tutela. Inventário de Manuel da Rocha Monteiro.
AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 121, Auto 1523, Ano 1815. Não sabemos o final da questão, já que
o processo encerrou sem uma resolução. De qualquer modo, o caso apresentado ajuda-nos a refletir sobre
alguns aspectos. Primeiramente que a nomeação ou não do padrasto não era um consenso entre os juristas,
conforme os comentários presentes nas Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 102, p.996 e nas discussões
presentes no citado inventários. Em segundo lugar e relacionado a isso, que a lei era aplicada, muitas vezes,
de acordo com a necessidade da situação vivenciada, o que não significava uma transgressão, e sim uma
interpretação diferenciada.
125
Nos casos em que eram parentes próximos do órfão e eram pessoas "honestas, dignas de fé e bons
administradores de sua pessoa e fazenda", elas poderiam ser aceitas como tutores. (CARVALHO, 1840, 2
parte, p. 21).
126
Entravam para esse número, caso necessário: os filhos ou netos que tinham morrido na guerra ou ido
para ela; os que ainda estavam na barriga da mãe e também os filhos legitimados pelo casamento.
Entretanto, importante mencionar, tanto os filhos quanto os netos deveriam estar sob a administração
daquele sujeito, isto é, morando com ele.
127
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
título 104, p.1009-10.
97
Carvalho (1840, 2 parte, p. 22) mencionou ainda algumas causas que poderiam
ser utilizadas para recusarem ou desistirem da tutela. Entretanto, isso só poderia ocorrer
para as chamadas "tutorias dativas", ou seja, responsáveis pela tutela de um órfão
estranho128. Dentre os motivos, citemos: o privilégio129; a imperícia130 e muitas tutelas
sob a administração da pessoa.
Na documentação foi possível identificar vários casos de pessoas que utilizaram
ou, ao menos, tentaram utilizar alguns desses motivos ou impedimentos para não
assumir a tutoria. Dentre eles, podemos citar alguns muito frequentes, como: a patente
militar, uma família numerosa ou alguma doença; mas também houve casos em que
alegavam não saber ler nem escrever e o fato de já estarem exercendo outra tutela. O
próprio padrasto Joaquim Moreira da Cruz, mencionado em nota anteriormente, foi um
dos que tentaram usar alguns desses motivos como justificativa para não assumir a
tutela de suas enteadas. Além de alegar ser pai de uma família numerosa, declarou que
não sabia ler nem escrever; que sofria de enfermidades que quase o tinham levado à
morte por duas vezes; que se achava com quase 70 anos de idade e, finalmente, que
era muito pobre e por isso não tinha nem feito o inventário de sua esposa131.
Oliveira (2008, p. 116), estudando a respeito das práticas educativas destinadas
às mulheres na Comarca do Rio das Velhas na segunda metade do século XVIII,
também identificou inúmeros casos de pessoas que utilizaram vários argumentos para
serem "aliviadas" do exercício da tutoria. Segundo a autora, ela conseguiu identificar
entre as justificativas: as doenças, a pobreza, o grande número de filhos e o fato de não
saber ler e nem escrever.
Fosse por qualquer dos motivos apresentados anteriormente, o certo é que,
muitas vezes, o juiz tinha muita dificuldade para nomear um tutor. Consequentemente,
temos vários processos de inventários que não contêm nenhuma informação sobre o
destino do órfão e seus bens, pois neles o juiz não encontrou ninguém para assumir a
tutoria. Oliveira (2008) mencionou o mesmo problema na documentação investigada
para a Comarca do Rio das Velhas.
128
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
título 104, p.1009. Explicaremos mais adiante a diferença entre tutoria "dativa", testamentária e legítima.
129
Pelo que percebemos nesse caso, o privilégio era uma concessão real dada para algumas profissões e
cargos. Dentre essas ocupações, julgamos importante mencionar: os professores régios, aposentados ou
substitutos, e os maridos e filhos de amas dos enjeitados. Para uma lista das demais profissões, ver
CARVALHO, 1840, 2 parte, p. 23, nota 259).
130
Não estavam incluídas aqui as pessoas que não sabiam ler nem escrever. Para Carvalho (1840, 2 parte,
p. 23, nota 260), se o sujeito tivesse uma experiência em administrar e tivesse "uma prudência ordinária",
ele deveria ser aceito.
131
Inventário de Manuel da Rocha Monteiro. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 121, Auto 1523, Ano
1815.
98
A função de tutor requeria muitas obrigações pelo que podemos perceber nas
Ordenações, sendo todas elas relacionadas à administração dos bens e aos cuidados
com a alimentação, saúde, vestuário e educação dos órfãos132. Para o tutor ter
conhecimento dessas responsabilidades, era feito um "termo de juramento de tutela",
que ficava anexado ao inventário e que o tutor ou seu procurador era obrigado a
assinar133.
No livro "Primeiras Linhas sobre o Processo Orphanologico", escrito por
Carvalho (1840, 3 parte, p.33), há um modelo de como deveria ser esse termo. E, assim
como nesse exemplo fornecido pelo jurista, os juramentos presentes na documentação
contêm as principais responsabilidades de um tutor que, mesmo não sabendo ler nem
escrever, acabava tendo conhecimento dessas obrigações ao assinar o termo, já que o
mesmo era lido e jurado "nos santos evangelhos".
Esse parece ser o caso de Maximiana Gonçalves Torres, casada com o músico
Francisco Leite Esquerdo. Ao fazer o seu testamento, Francisco nomeou a esposa como
tutora dos filhos, que ainda eram menores. Para confirmar essa nomeação, ela foi
chamada para assinar o seguinte termo:
Aos trinta dias do mês de junho do ano de mil oitocentos e nove nesta
Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto em casas de
morada do Sargento Mor Antônio Vieira da Cruz, atual Juiz dos Órfãos
desta Vila, onde eu escrivão adiante nomeado fui vindo e sendo ali
presente Maximiana Gonçalves Torres, viúva de Francisco Leite
Esquerdo, a esta deferiu o dito Ministro o juramento dos Santos
Evangelhos em um livro deles em que pôs sua mão direita sob o cargo
do qual lhe encarregou que bem e verdadeiramente jurasse em sua
alma de cumprir como deve e é obrigada, o emprego de tutora de seus
filhos, zelando-os, educando-os, beneficiando-os e acautelando-os
quanto lhes pertencer e requerendo tudo quanto for a bem de suas
justiças, na forma que determina a lei. E recebido por ela o dito
juramento assim o prometeu cumprir. E para assim constar fiz este
termo de juramento em que assina com o dito Ministro... 134
132
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
título 88.
133
Falaremos mais adiante sobre os procuradores.
134
Termo de tutora presente no Inventário de Francisco Leite Esquerdo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício,
Códice 51, Auto 623, Ano 1809, fl. 11
99
Mas, afinal, como acontecia a instituição de um tutor? Ela poderia ocorrer a partir
de três formas: testamentária, legítima e dativa. Seguindo essa ordem, apresentaremos
a seguir cada uma dessas formas.
100
minha mulher (...) a precisa capacidade e juízo para administrar os meus bens e dar boa
educação a meus filhos..."135
Foi bastante comum identificarmos nos testamentos expressões como: "bom
conceito que faço dela"; "tem todos os requisitos necessários para o dito emprego"; "tem
toda capacidade e agilidade". Tais expressões revelavam, acreditamos, uma abonação
da mulher por parte do pai do órfão, mas sobretudo uma cumplicidade estabelecida
ainda em vida entre eles, que dava elementos importantes para elegê-la como tutora
das pessoas e bens dos órfãos depois que ele falecesse.
A parda Dona Rita Vaz de Carvalho era esposa do português João Francisco dos
Santos 136
. Residindo na Freguesia de Nossa Senhora de Antônio Dias, pertencente ao
Termo de Vila Rica, eles tiveram cinco filhos, sendo que um deles – Feliciano – ainda
tinha 20 anos quando os bens do casal foram inventariados. A grande admiração de
João Francisco por Dona Rita foi expressa várias vezes em seu testamento. Na
disposição da terça parte de seus bens, como era de direito, definiu que, após a
realização de suas últimas vontades, sua esposa seria a herdeira, por ser "a pessoa
mais grata com merecimento na dita herança". Nomeou-a ainda por sua primeira
testamenteira e declarou que "... pelo grande conhecimento que de mais de trinta e cinco
anos tenho de minha mulher e do seu bom e louvável governo, paridade em gastos e
em tudo o mais respectivo a despesas (...), por isso a nomeio por tutora do meu filho
Feliciano de menor idade e por administradora de sua legítima...”
Essas declarações de João Francisco dão-nos indícios para inferirmos uma vida
de cumplicidade entre os dois. A relação duradoura que tiveram possibilitou que
dividissem as tarefas, os gastos e o governo da família, dando oportunidades para que
Dona Rita pudesse dar mostras de sua capacidade para tutelar e administrar seu filho
e as legítimas que o mesmo recebeu na partilha137.
Outros trabalhos já salientaram essa preferência em nomear as mulheres em
135
Inventário de Manoel Teixeira Campos. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 118, Auto 1499, Ano
1780.
136
Inventário de João Francisco dos Santos. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 70, Auto 831, Ano 1788.
Alfagali (2012) traz algumas informações interessantes sobre João Francisco. Conforme a autora, após um
cruzamento de fontes variadas, foi possível identificar que o mesmo era um ferreiro que solicitara em 1750
à Câmara de Vila Rica sua carta de exame de ferreiro, sendo aprovado pelo mestre e juiz de ofício Baltazar
Gomes de Azevedo. A partir daí, passou a ser um dos representantes dos oficiais do ferro. Fora ainda juiz
de ofício em 1752 e, em 1753, examinador de Domingos Antônio, ferrador, processo em que assumiu a
função de escrivão de ofício. João Francisco, conforme informação presente em seu inventário, foi também
sócio do Padre Domingos Vaz de Carvalho, com quem estabelecera uma loja de negócio de caldeiro e um
serviço de mina. Dos oito escravos que possuía, seis exerciam as mesmas atividades que seu dono – quatro
eram mineiros, e dois, oficiais de ferreiro –, o que possibilita inferir um contínuo processo de ensino-
aprendizagem ali existente entre o senhor e os escravos. Agradeço a Crislayne Alfagali por me enviar parte
do inventário de João Francisco. Importante mencionar que o padre Domingos Vaz de Carvalho era sogro
de João Francisco dos Santos.
137
Discutiremos mais à frente a distinção entre tutora e administradora.
101
testamento para assumir a tutoria. Morais (2009, p.179) destacou que, no universo de
sua pesquisa relativa a São João Del Rei, dos 49 processos de nomeação de tutor, 25
eram parentes e, destes, 17 eram as esposas do falecido. Gorgulho (2011, p. 87),
analisando a questão relativamente à Comarca do Rio das Velhas, mencionou que, dos
32 inventários analisados com referência à tutoria, em 17 (53%) deles foram as
mulheres que exerceram a função.
A nomeação em testamento dependia, conforme as Ordenações, da
confirmação por parte do juiz. Nos casos de filhos legítimos, bastava verificar se aquele
tutor dado em testamento não tinha nenhum impedimento, como já mencionado.
Entretanto, quando o filho era natural, o juiz precisava aprovar aquela nomeação138.
Identificamos na documentação alguns casos de mulheres que foram impedidas de
exercer a tutela, apesar de nomeadas em testamento. Acreditamos que elas não foram
aprovadas pelo juiz para desempenhar tal função, ainda que os pais dos órfãos as
considerassem aptas.
O negociante Jerônimo Ferreira de Souza, por exemplo, morador de Vila Rica,
tinha dois filhos "brancos" com Dona Francisca de Almeida Pinta. Ao que tudo indica,
os dois mantinham uma relação afetiva, mas moravam em casas distintas, situação
bastante comum em Minas Gerais, como destacou Figueiredo (1997). Ao fazer o seu
testamento, Jerônimo escolheu Dona Francisca como tutora de seus filhos, por entender
que tinha "capacidade para administrar e reger". Entretanto, o juiz de órfãos optou por
nomear o Alferes e Solicitador Manoel Pinto Cardoso, sem apresentar nenhuma
justificativa para essa alteração139.
Manoel não era parente dos órfãos, pois, de acordo com o escrivão, não havia
nenhum parente para ocupar o cargo de tutor. Apesar dessa nomeação de Manoel,
conseguimos identificar que os filhos ficaram com a mãe Dona Francisca, que declarou
várias vezes as dificuldades financeiras vivenciadas por ela e os filhos, inclusive no que
se referia ao envio dos menores para a escola. Diante disso, julgamos que, para o juiz
de órfãos, ela não tinha a habilidade para o exercício legal da função, isto é, para
responder pela administração dos filhos e bens e cobrar as dívidas pertencentes a eles.
Entretanto, a manutenção dos filhos em seu poder era tolerada e de conhecimento do
magistrado. Isso nos levou a imaginar que existia uma concordância por parte do juiz
da existência de parcerias entre os tutores e as mulheres, sendo essa parceria uma das
formas possíveis de sanar as dificuldades para instituir um tutor "capaz"140. E, também,
138
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
título 102, § 2, p.998.
139
Inventário de Jerônimo Ferreira de Souza. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 72, Auto 858, Ano
1793.
140
Essa parceria entre os tutores e as mulheres será discutida no capítulo 3.
102
que a "incapacidade" de Dona Francisca não estava relacionada com a habilidade de
cuidar dos filhos e da sua educação.
Por outro lado, havia casos em que, mesmo nomeada e considerada "capaz" por
parte do pai dos órfãos, as mulheres não se julgavam em condições de assumir a tutoria.
Antônia da Rocha de Jesus era casada com Francisco de Almeida Pinto, com quem
tivera seis filhos, dos quais quatro ainda eram menores quando foi feito o testamento.
Classificamos essa família para esta tese como pertencente ao grupo de maiores
patrimônios, já que o total dos bens foi avaliado em 6:979$149, e possuíam 14 escravos.
Mesmo diante desse significativo plantel de escravos e um expressivo monte-mor,
Francisco, certo de que sua esposa tinha "inteira capacidade" para reger e governar os
filhos, determinou que ela fosse a tutora deles e sua testamenteira. Ela aceitou a
testamentaria, mas pediu ao juiz que nomeasse outra pessoa "que fosse capaz" para
exercer a tutela141.
O detalhe importante foi que um dos irmãos da viúva, ao ser convocado para
assumir a função de tutor, declarou que Antônia estava administrando os bens do casal
e os filhos menores "com louvável zelo", lembrando que a mesma havia sido eleita pelo
falecido entre todos os parentes. Assim como ele, vários outros homens se esquivaram
da função, sendo eleito ao final o genro João Gonçalves Vieira. Ao que tudo indica, os
menores permaneceram sob os cuidados da mãe.
Assim, reforçando as discussões que desenvolvemos no primeiro capítulo, a
noção de capacidade possuía duas vertentes distintas. Uma delas estava relacionada à
ideia de habilidade para exercer legalmente a função da tutoria e ter que responder por
ela junto ao juiz de órfãos. Outra, bem diferente, referia-se à destreza para os assuntos
ligados à sobrevivência e provimento da família no cotidiano e para cuidar da saúde,
alimentação e educação dos órfãos.
Seja como for, a nomeação para a tutoria em testamento representava uma das
oportunidades para estar à frente na administração dos bens e das crianças e jovens
depois do falecimento de seus pais. Uma oportunidade que, acreditamos, já tinha sido
construída pelas mulheres na parceria estabelecida com alguns homens enquanto estes
estavam vivos. Assim, apesar de elas serem preferencialmente eleitas nos testamentos
paternos, como a documentação demonstrou, essa nomeação testamentária não era
algo dado e automático, mas fruto de uma cumplicidade que fornecia elementos para
serem julgadas capazes de assumir a função.
141
Inventário de Francisco de Almeida Pinto. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 58, Auto 696, Ano
1774.
103
2.2.2 A nomeação legítima
142
Conforme os comentários do jurista Borges Carneiro citado em nota nas Ordenações, a preferência pelas
mães e avós estaria ligada primeiramente à contemplação do amor maternal. [Ordenações Filipinas]
Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4, Título 102 § 3, p. 998. De
qualquer modo, para além desse "amor maternal", para serem aceitas como tutoras, elas deveriam
demonstrar habilidade para a função.
143
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 102 § 6, p. 1002.
144
Não identificamos na documentação nenhum caso que contradissesse esse entendimento a respeito das
mães. Entretanto, no que diz respeito às avós, percebemos que tal determinação era cumprida de modo mais
flexível. Apesar de estar além do período abarcado pela presente pesquisa, identificamos Dona Tereza
Maria de Jesus, que nos deu indícios sobre esse assunto. Ela era avó natural de Bernarda. Esta era filha
natural de Júlio Pires, filho de Dona Tereza e de Genoveva Francisca, que, por sua vez, era filha do
inventariado Francisco Soares. A mãe da menina faleceu durante o parto, e, por isso, a menina Bernarda
inicialmente ficara aos cuidados de uma cuidadora. Entretanto, depois da quitação desse encargo, a
cuidadora deixou-a sob a responsabilidade da avó Dona Tereza. Em um requerimento em que solicitava a
tutoria da neta, a avó mencionou que já estava com a menor "criando, educando e sustentando a dita órfã
(...) a quem adquiriu amor e a deseja amparar". Diante dessa solicitação, a avó assinou a tutoria da órfã e a
administração dos bens. O detalhe importante era que o pai da menor ainda era vivo, mas não quis assumir
a tutoria, e a avó, mesmo não estabelecendo nenhum laço "legítimo", foi aprovada pelo juiz. Inventário de
Francisco Soares. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 52, Auto 628, Ano 1829.
104
deles era a instituição por parte do juiz de órfãos. Já o segundo caminho era a partir de
uma solicitação diretamente ao rei, via Desembargo do Paço145.
No primeiro caminho, as Ordenações Filipinas determinavam que a nomeação
só poderia ocorrer se as legítimas de cada herdeiro não ultrapassem os 60$000146.
Nesses casos, a mãe ou a avó fazia a solicitação ao juiz, que a fazia assinar o termo de
tutoria. Depois disso, ele deveria fazer a entrega dos menores e suas legítimas para a
solicitante.
Entretanto, conseguimos identificar na documentação alguns casos em que o
juiz nomeou a mãe para tutora mesmo quando as legítimas excediam aquele valor, sem
que houvesse alguma confirmação por parte do Desembargo do Paço. Ana Francisca
Gomes, por exemplo, era mãe de oito filhos de seu legítimo matrimônio com João
Antunes Guimarães. As legítimas de cada menor foram de 282$423. Apesar disso, o
juiz determinou em despacho que a viúva deveria ser inquirida se desejava ou não
assumir a tutoria e, em caso positivo, seria obrigada a assinar o termo diante ele. Pouco
tempo depois, ela assinou o termo de tutoria, documento que comprovava a aceitação
de tal encargo147.
Mas, afinal, se existiam casos de nomeações de tutoras para os menores que
possuíam legítimas acima dos 60$000, como ficava o estabelecido nas Ordenações?
Percebemos que a legislação abria brechas para a interpretação, pois havia duas
ordenações a respeito desse assunto com alguns detalhes distintos148. Carvalho (1840,
2 parte, p.05), ao discorrer sobre a preferência na tutela legítima pelas mães e avós,
apresentou diferentes posicionamentos sobre isso. Dentre eles, destacou o jurista
Mello149, que, sobre o assunto, declarou que as mesmas não eram obrigadas a solicitar
ao Desembargo do Paço quando os órfãos eram púberes.
Esse foi exatamente o caso na nomeação de Ana Francisca Gomes. Todos os
oito filhos eram maiores de 17 anos. Não podemos afirmar que o juiz teve acesso ao
livro do jurista Mello, mas acreditamos que ele se baseou nessa forma de pensamento
e entendeu que não havia a necessidade de solicitação ao Desembargo do Paço.
Conseguimos identificar oito mulheres que foram nomeadas pelo juiz, como
apresentaremos mais à frente (gráfico 6). Dentre essas oito mulheres, uma delas
145
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
Título 62 § 37, p. 124.
146
Conforme os comentários de Cândido Mendes de Almeida nas Ordenações, o Alvará de 16 de setembro
de 1814 passou esse valor para 180$000. [Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado
Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4, Título 102 § 04, p. 1000.
147
Inventário de João Antunes Guimarães. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 84, Auto 1028, Ano 1811.
148
Uma estava nas [Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2012. Livro 1, Título 62 § 37, p. 124; a segunda estava nas [Ordenações Filipinas] Código Filipino...
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4, Título 102 § 03, p. 998.
149
Acreditamos se tratar de Pascoal José de Mello Freire.
105
classificamos para o interesse dessa tese como pertencente ao grupo de maiores
patrimônios, e quatro no grupo de patrimônios intermediários, sendo as legítimas dos
menores maior do que o estabelecido na legislação. Essas nomeações foram feitas em
tempos distintos, por juízes variados, o que nos leva a acreditar que realmente não havia
um consenso por parte das autoridades a respeito das ordenações no que se referia a
esse assunto.
Independente das interpretações, temos o segundo caminho para a nomeação
da tutoria legítima — a solicitação de mercê real via Desembargo do Paço. Como já dito,
ela deveria acontecer quando as legítimas ultrapassavam o valor de 60$000. A partir do
cruzamento de fontes variadas, selecionamos 20 solicitações de mulheres que foram
enviadas ao Desembargo do Paço e que receberam a provisão real para serem tutoras.
Não identificamos na documentação nenhum caso em que, sendo pedida a tutela, a
mãe ou avó não tivessem alcançado a provisão.
O valor de 60$000 era bastante frequente nos inventários, como destacou
Chequer (2002, p. 63). Por isso, a autora defendeu a ideia inicial de que haveria muitos
pedidos da mercê real. Entretanto, para a segunda metade do século XVIII, ela
conseguiu identificar apenas 113 pedidos para a Capitania de Minas Gerais. Conforme
a autora, o número reduzido poderia ser explicado pela perda desses documentos ao
longo dos séculos. Estamos propensos a concordar com a autora nesse aspecto,
especialmente porque, ao confrontar a documentação disponível do Arquivo Histórico
Ultramarino e as cópias das provisões presentes nos inventários, percebemos que
algumas não se repetiam.
No entanto, a autora percebeu que houve um aumento das solicitações nas duas
últimas décadas do século XVIII. Tal aumento, de acordo com Chequer, estaria ligado
à mudança do "carro-chefe" das atividades econômicas, que passaria da mineração
para a agricultura na capitania. Para a autora, a crise da mineração poderia ter deixado
muitas pessoas endividadas, o que significaria perda do patrimônio quando ocorria um
falecimento, fazendo-se necessário o pagamento das dívidas e, consequentemente,
auferindo-se valores muito pequenos para os herdeiros no momento da partilha. Com o
fortalecimento da agricultura e de outras atividades ligadas ao abastecimento do
mercado interno, essa situação seria alterada, e mais mulheres recorreram à provisão
real. Em outros termos, para a autora o patrimônio mais significativo teria aumentado o
interesse da mulher para se tornar tutora.
Apesar de não termos os números para o período anterior a 1770, estamos
nesse ponto mais inclinados a defender que a solicitação ou não da mercê real dependia
de cada caso, não necessariamente ligado ao valor significativo das heranças. Temos
situações de mulheres que classificamos como pertencentes ao grupo de maiores
106
patrimônios e que foram extremamente ativas quando o assunto era a administração
dos bens e das crianças e jovens, mesmo não assumindo a tutoria, conforme
apresentaremos no terceiro capítulo. Nesses casos, geralmente a tutoria estava sob o
encargo de algum parente, o que sugere que elas tinham confiança nessa parceria e
puderam gerir e direcionar a família e todo o patrimônio de maneira compartilhada. Além
disso, não viam como um perigo ou um problema o fato de que as heranças da família
legalmente estavam nas mãos de outra pessoa. Além disso, como mostraremos (gráfico
7), houve uma ligeira queda das tutorias assumidas por mulheres pertencentes ao grupo
de maiores patrimônios no Termo de Vila Rica no início do século XIX, o que vai na
“contramão” desse interesse mencionado por Chequer supostamente em decorrência
de um patrimônio mais significativo.
Por outro lado, tendemos a concordar com Maria Beatriz Nizza da Silva (1993,
p. 33) quando a autora chegou à conclusão de que no final do período colonial
progressivamente houve "um maior desejo de autonomia por parte das mães tutoras",
elevando o número de solicitações. Isso porque, das 20 solicitações identificadas dentro
dos processos de inventário para o Termo de Vila Rica, 14 (70%) eram do século XIX.
Ao mesmo tempo, das 81 parcerias encontradas e que serão analisadas no capítulo 3,
apenas 30 (37,03%) foram estabelecidas no mesmo período. Sendo assim, acreditamos
que, de modo gradual, um maior número de mulheres estava mesmo buscando a tutoria.
Quer fosse a partir da solicitação ao juiz de órfãos ou por meio de um
requerimento ao Desembargo do Paço, a mãe ou a avó deveria atender a alguns
requisitos: viver "honestamente"150, não ter contraído novas núpcias151 e renunciar ao
150
A ideia de "viver honestamente" estava ligada à noção de viver de maneira casta, quer dizer, sem se
relacionar com algum homem depois do falecimento do marido.
151
Se durante o exercício da tutoria elas se casassem novamente, perderiam tal encargo. Todavia,
identificamos na documentação um caso em que a viúva não perdeu a tutoria mesmo depois de casada mais
uma vez. Trata-se de Ana Ribeira que, conforme a declaração de seu segundo marido, já era tutora dos dois
filhos do primeiro matrimônio quando se casaram, e tanto os filhos como suas legítimas ainda estavam em
poder do casal. Entretanto, antes do casamento, fizeram um contrato particular de palavras, no qual ficou
estabelecido que ele "não teria nada no casal senão nos adquiridos na constância do matrimônio...". O certo
foi que, ciente da capacidade da mulher para assumir a segunda tutoria, nomeou-a em testamento também
para tutora dos filhos do segundo matrimônio. Inventário de Estevão Veloso de Amorim.
AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 34, Auto 409, Ano 1789. Não sabemos como Ana Ribeira foi eleita
tutora na primeira vez, isto é, se por testamento ou nomeação legítima. De qualquer modo, esse caso
levantou um questionamento que não conseguimos responder: se fosse uma nomeação em testamento, a
mulher poderia se casar novamente? E, do contrário, sendo uma nomeação legítima, o fato de terem
estabelecido um contrato de acordo com o qual o segundo marido não teria direito nos bens provenientes
do primeiro matrimônio possibilitava a manutenção da tutoria? Nos comentários das Ordenações, Cândido
Mendes apresentou um posicionamento defendido por Manoel Borges Carneiro por volta de 1828, que
entendia que a mulher não precisava entregar a tutoria caso se casasse novamente, mas ser responsável
pelos prejuízos caso houvesse. Seria o caso no citado inventário em uma data tão distante? [Ordenações
Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4, Título 102 § 3,
p.999.
107
benefício da Lei do Velleano152 e a "outros direitos e privilégios introduzidos em favor
das mulheres"153.
No pedido de tutoria, cabia à mulher, conforme as Ordenações, declarar o
número de filhos que desejava ter sob sua tutela, as idades dos mesmos e o nome e a
qualidade do pai. A legislação determinava ainda que a mulher deveria manifestar que
desejava dar fiança às legítimas dos menores e que
152
Este benefício estava presente nas Ordenações e foi introduzido em favor das mulheres, determinando
que elas não poderiam responder por elas mesmas nem por outros financeiramente. Em outras palavras,
elas eram proibidas de se responsabilizar pelas finanças domésticas e serem fiadoras em negócios. Por isso,
para serem administradoras das legítimas dos filhos, elas deveriam renunciar a esse privilégio. [Ordenações
Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4, Título 61. Na
documentação identificamos vários casos fazendo referência a essa questão. Percebemos que, para a mulher
ter ciência daquilo a que ela estava abdicando, era prática fazer a leitura da lei no momento da assinatura
do termo de tutoria. Esse foi o caso quando Laureana Rosa Pereira solicitou a tutoria dos filhos. Em resposta
favorável, o juiz declarou que ela exerceria a função enquanto se mantivesse viúva e que deveria renunciar
"o privilégio do Velleano e todos os mais, "cuja lei lhe será lida para que venha no conhecimento dos
benefícios que renuncia em presença de testemunhas que com ela também se assinarão no termo que se
fizer no respectivo inventário de bem e fielmente administrar os bens dos órfãos seus filhos ficando
responsável a dar contas das mesmas sem diminuição alguma..." Inventário de Antônio Alves Pereira
Carneiro. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 01, Auto 09, Ano 1801.
153
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 102 § 03, p. 999.
154
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
Título 62 § 37, p. 124.
155
Como já apontamos brevemente, a soldada era um recurso previsto nas Ordenações que buscava garantir
ao órfão maior de sete anos de idade um lar e, ao mesmo tempo, a aprendizagem de um ofício. Segundo
Bluteau (1712) o termo “soldada” estava relacionado com a ideia de salário a qualquer pessoa que prestava
algum tipo de serviço. No caso do menor, os cuidados dispensados pela pessoa que o acolhia poderiam ficar
como forma de pagamento, lembrando que estavam incluídos: o sustento, o lar, a atenção com a saúde e a
aprendizagem de um ofício. A soldada para os órfãos acontecia da seguinte maneira: primeiramente, o juiz
de órfãos, no final de suas audiências, deveria lançar pregão declarando que havia órfãos para serem dados
em soldada, mas sem fazer maiores referências a respeito do menor no que dizia respeito ao sexo, cor,
filiação, etc. Existindo alguém interessado, esta pessoa comparecia à casa do juiz que entregava o órfão
para aquele que maior soldada desse. Essa entrega era acompanhada de uma escritura pública abonada por
um fiador, na qual a pessoa assumia a responsabilidade de pagar pelo serviço do menor ou se comprometia
a casá-lo. Nessa escritura eram definidos ainda: o tempo que a pessoa ficaria com o órfão e o valor da
soldada. Tais aspectos eram definidos pelo juiz de órfãos, já que não estavam previstos nas Ordenações,
conforme destacou Carvalho (1840). Entretanto, segundo Carvalho, esse tempo não deveria ser maior que
três anos, pois, do contrário, seria uma forma de escravidão e poderia impedir o órfão de buscar outras
oportunidades. Além disso, conforme o mesmo jurista, todos os ajustes ficavam sem efeito quando o menor
108
hipotecavam os próprios bens no lugar da fiança ou juntamente com ela156. E,
finalmente, na maioria deles, as mulheres fizeram questão de declarar que tinham
condições e capacidade para assumir a tutoria dos filhos e a administração de suas
legítimas.
Ademais, a documentação revelou que, na prática, quando o pedido era feito ao
juiz, bastava um requerimento simples. Nele a mulher precisava declarar que estava
com o órfão e que tinha capacidade e interesse para assumir a tutoria. Essa informação
era ou não confirmada pelo escrivão e, em caso positivo, o juiz lavrava o termo.
Por outro lado, quando o pedido de tutoria era feito ao Desembargo do Paço,
identificamos dois requerimentos distintos. O primeiro deles compunha o documento
chamado Auto de Justificativa157. Já o segundo era uma espécie de "carta de
apresentação" desse auto. Isso valia também para os casos em que as mulheres
pediam a confirmação da tutoria dada em testamento158.
Esse é o caso de Brígida Maria do Rosário, que era casada com Pedro Pereira
Lima, e, para os interesses dessa pesquisa, classificamo-la como pertencente ao grupo
de maiores patrimônios. Os dois tiveram quatro filhos legítimos e uma filha antes do
casamento; mas, além desses filhos, Pedro ainda era pai natural de mais cinco filhos.
Nos idos de 1779, em sua fazenda na Freguesia de Cachoeira do Campo, Pedro decidiu
se emancipasse. As mães eram as preferidas para ficar com os órfãos, desde que permanecessem viúvas;
depois as avós; os irmãos e outros consanguíneos. Não existindo essa prioridade, os lavradores teriam essa
predileção. Essas informações foram retiradas de Carvalho (1840, 2ª parte, p. 10, nota 222) e [Ordenações
Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1, título 88, p.212.
156
Tal ação não era uma especificidade das mulheres do Termo de Vila Rica. Consta dos comentários das
Ordenações que a ação de hipotecar os bens era usual, bastando, para isso, lavrar uma escritura.
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 102 § 03, p. 1000.
157
O Auto de Justificativa era um documento em que a mulher justificava que possuía os requisitos para
assumir a tutoria dos órfãos e a administração dos bens. Era constituído de certidões e testemunhos que
informavam as "qualidades" da viúva ou avó. Ele servia como instrumento que fundamentava o pedido da
tutoria e dava base para a concessão ou não da tutoria por parte do rei/rainha. Conseguimos identificar casos
na documentação em que foram feitos dois Autos de Justificativa diferentes. O primeiro foi produzido para
ser enviado ao Desembargo do Paço. Já o segundo, para a aprovação do juiz de órfãos, depois de alcançada
a provisão. Nesses casos, a provisão régia era dada, mas condicionada à aprovação da justificativa que ainda
seria apresentada ao juiz e ao curador dos órfãos. Esse é o caso de Maria Rosa do Espírito Santo. No Auto
de Justificativa aberto de 23-09-1779 e presente no inventário de seu marido, ela declarou que já tinha
alcançado a provisão régia para ser tutora de seus filhos. Realmente a citada provisão foi anexada no
processo com data de 02-06-1779. Tanto o curador quanto o juiz de órfãos aceitaram as justificativas da
viúva. Mais no final do processo há uma cópia da provisão, que foi enviada ao Desembargo do Paço por
volta de 1778. Inventário de Francisco Soares. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 40, Auto 450, Ano
1778.
158
Identificamos entre os inventários quatro casos de mulheres que solicitaram a confirmação das
nomeações feitas em testamento. Entretanto, não encontramos nenhuma menção a essa necessidade de
confirmação nas Ordenações. Na análise dos documentos, porém, percebemos que havia uma diferença em
relação à posse dos bens. Em alguns casos, especificamente quando a mulher havia sido nomeada em
testamento ou pelo juiz, elas eram obrigadas a colocar todo o dinheiro e rendimento dos filhos ou netos no
cofre. Entretanto, quando a nomeação era feita a partir da provisão alcançada no Desembargo do Paço, elas
não precisavam fazer isso. Imaginamos que era essa a situação nos casos de confirmação de tutoria.
109
fazer o seu testamento. Além de nomear a sua esposa por sua testamenteira, declarou
que deixava as determinações de seu sepultamento à eleição dela, "por esperar dela e
do grande amor com que sempre me tratou fará por minha alma o que eu faria pela
sua...". Ainda no testamento, manifestou que era sua vontade que Brígida fosse também
a tutora de seus filhos tanto os legítimos quanto os naturais159.
A viúva solicitou a confirmação dessa nomeação para tutora no Desembargo do
Paço. E, para isso, no Auto de Justificativa, ela mandou fazer um requerimento que
trazia algumas informações sobre sua pessoa:
Diz Brígida Maria do Rosário, viúva que ficou por falecimento de seu
marido Pedro Pereira Lima (...) que pela justificação que se junta por
instrumento, consta a boa capacidade da suplicante para reger e
administrar a fazenda de seus filhos menores que ficaram por
falecimento do mesmo seu marido e a boa educação que aos mesmos
dá. Em tais termos pede a graça de Vossa Majestade para que mande
ao Doutor Juiz dos Órfãos (...) lhe faça entrega de todas as legítimas
que nas partilhas tocaram aos ditos órfãos seus filhos, para eles as
receberem da mão da suplicante quando tiverem idade (...) e não
duvida a suplicante a sua custa gratuitamente sustentar, vestir e educar
aos mesmos seus filhos até eles receberem as suas legítimas sem lhes
pedir em tempo algum nada do gasto que com eles fizer. E não duvida
dar a fiança necessária a compor a todo o tempo aos ditos seus filhos,
as suas legítimas sem diminuição alguma, além de hipotecar ao
mesmo fim todos os seus bens que de presente possui e de futuro
possuir161.
O pedido foi aceito, pois consta no inventário a provisão real dada pela rainha
Dona Maria. Mas essa provisão era apenas para os seus filhos. Para os filhos naturais
o juiz nomeou outro tutor — o Ajudante José Antônio Muniz.
159
Inventário de Pedro Pereira Lima. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 127, Auto 1582, Ano 1789.
160
Requerimento de Brígida Maria do Rosário... AHU, Cx. 134, doc. 27, 1790.
161
Requerimento de Brígida Maria do Rosário... AHU, Cx. 134, doc. 27, 1790.
110
Como podemos perceber, eram dois requerimentos distintos, mas que,
analisados conjuntamente com a confirmação de testemunhas, acabaram por nos dar
alguns elementos importantes para pensarmos nos pedidos de tutorias. O primeiro que,
nesses documentos, era bastante comum existir uma preocupação por parte da viúva
em declarar todos os aspectos que pudessem confirmá-la como merecedora da função.
Além disso, elas se empenhavam em demonstrar uma certeza particular de suas
capacidades e habilidades, deixando claro que tinham condições de assumir a tutela
dos filhos e de suas legítimas, pois já tinham uma boa experiência. Não obstante, como
as testemunhas eram apresentadas por elas, não podemos deixar de pensar que, em
alguns casos, as declarações pudessem ser "construídas" conforme interesses
particulares. E, finalmente, é importante mencionar ainda que esses requerimentos e
mesmo a provisão tinham modelos, o que poderia significar, em alguma medida, "um
jogo de palavras" 162.
De qualquer forma, todo o processo de instituição da mulher como tutora, que ia
desde a manifestação do seu interesse até a assinatura dos termos — de tutela, fiança
e hipoteca — era seguido com precisão nos inventários, ou seja, percebemos que essas
mulheres e os homens que participavam dessas nomeações buscavam seguir o que
estava determinado na legislação. Isso significa pensarmos que não havia uma
transgressão da lei. O que na verdade acontecia era um emprego de elementos que
poderiam se configurar como estratégias para alcançar a tutoria. Esse era o caso das
mulheres que declaravam que já estavam regendo e bem suas famílias, como o fez a já
citada Brígida Maria do Rosário. Era também a situação daquelas que mencionavam
que, enquanto seus maridos eram vivos, elas já os ajudavam na administração dos
negócios, inclusive sendo responsáveis pelos registros escritos das transações
econômicas163. Entendemos ser esse o fato ainda quando escolhiam as testemunhas
próximas do convívio que declaravam ter pleno conhecimento delas e de suas ações,
atestando por isso a capacidade para serem eleitas tutoras, como foi possível identificar
nos inúmeros Autos de Justificativa.
Conseguimos perceber que a instituição das mulheres como tutoras nas
nomeações legítimas não era algo mecânico, apesar de elas terem a preferência,
conforme as Ordenações. Tanto para as mulheres quanto para os juízes de órfãos,
escrivães e curadores, parecia haver um entendimento de que elas realmente tinham
capacidade para o exercício da função. E essa capacidade estava inevitavelmente
162
Sobre esse último aspecto é importante mencionar que encontramos vários requerimentos que tinham
exatamente as mesmas palavras.
163
Requerimento de Dona Tereza de Jesus... AHU, Cx. 122, doc. 33, 1784.
111
ligada à ideia de sobrevivência da família, cuidado com os bens e preocupação com o
futuro do órfão, transitando pela necessidade de educá-lo.
164
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 102 § 06, p. 1002.
165
Importante mencionar que Oliveira não restringe os casos de má administração às tutorias dativas.
Entretanto, acreditamos que nessa forma de nomeação isso era mais comum, dado o fato de que havia o
agravante de que esses homens eram constrangidos a assumir a tutoria.
112
Assim, como essa forma de nomeação poderia trazer muitos problemas, ela era
o último recurso a ser empregado pelo juiz de órfãos.
166
Há no arquivo um fundo genericamente identificado como "ações cíveis". Nele é possível identificar
vários tipos de documentos, como: processos de reconhecimento de filhos, justificativas e notificações de
dívidas e Autos de justificativa, etc.
167
Os documentos existentes no AHU foram catalogados e digitalizados graças ao "Projeto Resgate". Há
documentos catalogados para as diferentes regiões do Brasil, separados conforme a capitania. Esse projeto
e os documentos digitalizados podem ser acessados no site da Biblioteca Digital Luso-brasileira:
https://bdlb.bn.gov.br/?page_id=10
168
Trata-se da solicitação de Ana Maria de Jesus para não apresentar as contas de sua tutoria. Apesar de
não encontrarmos o inventário de seu marido — Jacinto Pereira Ribeiro — julgamos interessante incluir o
requerimento de Ana Maria de Jesus devido à grande participação que a mesma teve na vida de sua família,
inclusive quando seu marido ainda estava vivo. Como veremos, nós a classificamos como pertencente ao
grupo 1 — maiores patrimônios. Essa classificação baseou-se no trabalho feito por Antunes (2005, p. 36)
quando destacou que o filho de Ana Maria de Jesus era um importante advogado e também que a família
dela era uma das principais do Arraial de Ouro Branco. Para compor a análise dessa família, utilizamos,
além do trabalho de Antunes, o Inventário de Ana Maria de Jesus. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice
56, Auto 626, Ano 1807. Os outros quatro Autos de Justificativas foram excluídos da análise, pois não
encontramos mais nenhuma informação sobre as mulheres requerentes da tutoria. Isso se fez necessário,
pois não teríamos como classificá-las nos grupos sociais, conforme explicado na introdução e retomado a
seguir.
113
Quantas prestaram contas do exercício de sua tutoria? Quantas declararam alguma
forma de educação dispensada aos menores? Qual o tipo de educação que foi dada
aos órfãos?
Como já indicado na introdução, classificamos as famílias estudadas nesta tese
como pertencentes a três grupos distintos: maiores patrimônios; patrimônios
intermediários e menores patrimônios. Nossa intenção era analisar vertical e
horizontalmente esses grupos na tentativa de identificar o que era semelhante e o que
se diferenciava. Para o grupo de maiores patrimônios, identificamos 33 mulheres que
exerceram a tutoria. No grupo de patrimônios intermediários encontramos 59 tutoras, e
no grupo 3 — menores patrimônios — foram localizadas 17 tutoras. Somando-se os três
grupos, identificamos 109 tutoras.
Nosso primeiro esforço foi buscar a relação delas com os pais dos órfãos.
Percebemos que majoritariamente as tutorias femininas foram assumidas pelas
esposas dos pais falecidos. No grupo 1 — maiores patrimônios — apenas uma mulher
não era casada com o inventariado169. Já no grupo 2 — patrimônios intermediários —,
das 59 tutoras, 5 (8,47%) mulheres estabeleceram outros laços com o falecido: 2 eram
filhas; e 3 eram mulheres com quem os inventariados mantiveram relações "ilegítimas".
No grupo 3 — menores patrimônios —, todas as mulheres que assumiram a tutoria eram
as esposas.
Quando analisamos a relação de parentesco estabelecida entre as tutoras e os
órfãos (gráfico 4), percebemos que, no grupo 1, além da já mencionada Maria Pereira
Vila Nova, que era madrinha da menor, uma não teve filhos do marido, mas foi eleita
para tutora dos enteados, e outras três, além da tutoria dos filhos, foram também eleitas
pelos maridos para o mesmo encargo dos filhos naturais. No grupo 2, duas eram
também mães e madrastas, duas eram madrastas, e duas eram irmãs. Já no grupo 3,
todas as mulheres nomeadas como tutoras eram mães dos menores.
169
Trata-se de uma comadre — Maria Pereira Vila Nova. No testamento feito pelo inventariado Manoel
Marques Ferreira, ele declarou que sua filha estava em poder de sua comadre Maria Pereira Vila Nova.
Assim, por entender que a dita sua comadre tinha "toda a probidade, capacidade e inteireza para educar a
dita minha filha", era sua vontade que a mesma fosse a sua tutora. Manoel era solteiro, Sargento Mor e
português. Inventário de Manoel Marques Ferreira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 31, Auto 349,
1817.
114
Gráfico 4:
20 17
10
2 2 3 2
1 1
0
mãe madrasta irmã madrasta + mãe madrinha
170
Quando falamos em qualidade e condição dos indivíduos, estamos nos referindo à cor (qualidade) e se
eram livres ou forros (condição). Importante ressaltar que os escravos não poderiam assumir tutoria.
171
Inventário de Antônio Rodrigues Fontes. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 18, Auto 169, 1817.
Inventário de Antônio da Costa Lopes. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 59, Auto 669, 1781. Inventário
de João Teixeira Mendes Ribeiro. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 23, Auto 243, 1787. Inventário de
Francisco Rodrigues Graça. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 48, Auto 590, 1783. Inventário de João
Francisco dos Santos. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 70, Auto 831, Ano 1788. Inventário de
Francisco João Tavares. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 54, Auto 653, Ano 1793.
115
no processo de inventário, seja nos Termos de Tutoria172, seja em outros requerimentos
quando as mesmas eram as inventariantes, ou seja, responsáveis pela descrição e
administração do inventário. No grupo 1 — maiores patrimônios — 21 (63,63%)
mulheres assinavam, 10 (30,30%) declararam não saber escrever e uma (3,03%) usou
o sinal da cruz no lugar do seu nome173. Já no grupo 2 — patrimônios intermediários —
, 38 (64,41%) tutoras assinaram seus nomes; 16 (27,12%) disseram que não sabiam
escrever; uma (1,69%) usou sinal; duas (3,39%) desistiram da tutoria e em dois (3,39%)
inventários não consta o termo. Finalmente no grupo 3 — menores patrimônios —, em
seis (35,29%) inventários consta a assinatura das tutoras; dez (58,82%) mencionaram
que não sabiam escrever e uma (5,88%) faleceu antes de assinar o termo.
Gráfico 5:
35 grupo 1
30 grupo 2
25 grupo 3
21
20
16
15
10 10
10
6
5
2 2
1 1 1 1
0
Assinaram Não sabiam Sinal Desistiram Não consta o
termo
172
O Termo de Tutoria era um documento assinado pelo tutor em que constavam as principais obrigações
de que o mesmo ficava encarregado durante o exercício de sua tutela. Esse documento era assinado pelo
juiz de órfãos, o escrivão e pelo tutor ou seu procurador.
173
Não foi possível identificar uma das mulheres nomeadas como tutora, porque ela estava morando em
Portugal. Trata-se de Custodia Maria Coelho Carneiro. Inventário de Bernardo Ferreira Trigais.
AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 24, Auto 261, 1777.
116
constatamos que houve um certo equilíbrio no que se refere à capacidade de assinar o
próprio nome entre as mulheres do grupo 1 — maiores patrimônios — e grupo 2 —
patrimônios intermediários —, pois encontramos 21 (63,63%) e 38 (64,41%)
assinaturas, respectivamente.
Além disso, tínhamos interesse em quantificar como essas mulheres foram
eleitas tutoras (gráfico 6): nomeadas em testamento, pelo juiz de órfãos ou a partir de
uma mercê real via Desembargo do Paço? Percebemos que a maioria delas foi
escolhida pelos pais dos órfãos em testamento. No grupo 1 — maiores patrimônios —
26 (78,12%) das 33 mulheres que assumiram a tutoria foram nomeadas em testamento;
seis (18,18%) solicitaram mercê real e apenas uma (3,03%) foi nomeada pelo juiz de
órfãos174. No grupo 2 — patrimônios intermediários —, 42 (71,19%) foram indicadas em
testamento; 14 (23,72%) requereram mercê régia e três (5,08%) assinaram o Termo de
Tutoria por nomeação do juiz de órfãos. No grupo 3 — menores patrimônios — 13
(76,47%) foram eleitas como tutoras em testamento, e quatro (23,53%) foram nomeadas
pelo juiz de órfãos.
Gráfico 6:
174
Três tutoras que haviam sido nomeadas em testamento pertencentes ao grupo 1 pediram a confirmação
de tal encargo ao Desembargo do Paço. Acreditamos que essa solicitação estava relacionada com as
questões de administração dos bens, como discutiremos mais à frente. Por questões estatísticas,
computamos essas mulheres apenas entre aquelas que haviam sido nomeadas em testamento, pois foi a
primeira forma de escolha.
117
partir dos dados presentes nos inventários, conseguimos identificar que um número
significativo das pessoas investigadas morava na sede do Termo de Vila Rica,
constituído pelos Arraiais de Nossa Senhora do Pilar e Nossa Senhora da Conceição
de Antônio Dias, num total de 61 (55,97%). Desse número, 16 pertenciam ao grupo 1
— maiores patrimônios; 35 ao grupo 2 — patrimônios intermediários; e dez ao grupo 3
—menores patrimônios.
Os demais 48 inventários investigados com tutorias femininas estavam assim
distribuídos no Termo de Vila Rica, conforme quadro 3:
Quadro 3:
LOCAIS DE MORADIA IDENTIFICADOS NOS INVENTÁRIOS – SEPARADOS
CONFORME OS GRUPOS:
Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3
Sede do Termo: Nossa Senhora do Pilar +
Nossa Senhora da Conceição de Antônio
Dias 16 35 10
Capelas (próximas à sede):
Capela do Morro de Santana e Piedade 1 2
Morro de São João 1 1
Morro do Taquaral 2 1
Arraiais:
Cachoeira do Campo 2 2 1
Itabira do Campo 5 3
Lavras Novas 1
Ouro Branco 1 2
Passagem de Ouro Branco 1 1
São Bartolomeu 2 3 1
São Gonçalo 1 1
São José do Paraopeba 2 1
Casa Branca 2
Congonhas do Campo 1 5
Itaverava 1
Não identificado 1
TOTAL 33 59 17
Fonte: Banco de Dados da Pesquisa
118
de tutorias foi maior no século XIX. Entre as tutorias de patrimônios intermediários, 33
(55,93%) se concentraram no século XIX, enquanto 26 (44,04%) foram assumidas no
século XVIII. No grupo 3, identificamos oito (47,06%) no século XVIII e nove (52,94%)
no século XIX.
Gráfico 7:
119
Diante dessas informações, direcionamos nossos esforços de maneira que
pudéssemos identificar vestígios do trabalho desenvolvido pelas tutoras. A nossa
intenção era encontrar ações femininas voltadas para a sobrevivência da família e as
estratégias para educar as crianças e jovens.
Nesses termos, partimos da documentação pertencente às 109 tutoras
identificadas. Buscamos inicialmente as Contas de Tutela175; entretanto, constatamos
que nem todos os inventários apresentavam essas contas. Isso acontecia por vários
motivos, tais como: elas pediam por várias vezes a prorrogação do prazo de prestação
de contas de sua tutela e acabavam por não as apresentar; algumas acabavam
falecendo; outras conseguiam a isenção das contas, etc.
Não obstante, havia alguns casos em que, mesmo não apresentando contas da
tutoria, as mulheres acabavam deixando alguns indícios de como cumpriram essa
função em outros anexos do inventário, especialmente nos requerimentos e petições176.
Assim, foi possível criar um quadro com informações relacionadas ao nosso interesse
de pesquisa para algumas tutoras, ainda que sem as contas.
Das 109 tutoras, selecionamos 52 (47,70%): 18 pertencentes ao grupo 1 —
maiores patrimônios —, o que equivaleu a 54,54% das tutorias desse grupo; 27 do grupo
2 — patrimônios intermediários —, correspondentes a 45,76%; e sete do grupo 3 —
menores patrimônios —, respondendo por 41,18% do total do grupo. O nome dessas
mulheres eleitas, a forma de nomeação, a relação com os órfãos, o local de moradia,
dentre outros aspectos, podem ser encontrados no Anexo 1 – Quadro 9 – “Tutoras que
deixaram indícios sobre a administração dos bens dos órfãos e estratégias para
sobrevivência e sustento das famílias”.
Uma vez identificadas essas mulheres, separamos o trabalho em duas etapas.
Na primeira analisamos as ações femininas voltadas para a sobrevivência da família, ou
seja, para o aspecto econômico. Já na segunda etapa, verticalizamos nossos estudos
para as estratégias ligadas à educação das crianças e jovens. Nossa intenção foi
175
As Contas de Tutela eram, como o próprio nome já diz, uma apresentação dos gastos que o tutor
despendeu com os órfãos. É possível identificar variadas despesas, tais como: com a alimentação, saúde,
vestuário e educação, inclusive gastos com pagamento de mestres e material escolar. Nessas contas,
podemos encontrar ainda algumas informações importantes: idade, com quem estavam vivendo, ocupação
e os rendimentos das legítimas recebidas. Conforme as Ordenações, o juiz de órfãos deveria tomar as contas
do tutor dativo a cada dois anos e dos legítimos e testamentários a cada quatro anos. [Ordenações Filipinas]
Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1, Título 88 § 49, p.218.
Todavia, como veremos, isso nem sempre acontecia. As Contas de Tutela com que trabalhamos nesta tese
foram identificadas nos inventários.
176
A petição era, de acordo com Heloísa Liberalli Bellotto (2007, 113), um documento informativo. Um
instrumento de solicitação à autoridade pública sem que houvesse uma certeza legal ou sem segurança
quanto ao despacho favorável. Já o requerimento era amparado, conforme a mesma autora (2007, p. 116),
por atos legais ou em jurisprudência. "Muitas vezes, o requerimento faz menção a estes atos que toma por
base jurídica um texto legal."
120
analisar a atuação das mulheres conforme os grupos sociais pertencentes e, ao mesmo
tempo, compararmos com as práticas daquelas que faziam parte dos outros grupos177.
Nos idos de 1777, Alexandre Teixeira de Carvalho, o único filho homem de Rosa
Maria dos Anjos, escreveu a ela essa carta. Alexandre estava na Freguesia de São
Pedro de Teixeira, em Portugal, juntamente com sua tia Ana Jacinta de Carvalho. Ele
seria o sucessor da herança pertencente a essa tia e ao marido, o Capitão Manoel
Guedes Monteiro.
Mas, apesar de a carta ter sido escrita do outro lado do Atlântico, ela nos ajuda
a pensar nos infortúnios por que passavam as mulheres depois do falecimento de seus
maridos. Pelas palavras de Alexandre, Rosa Maria dos Anjos lhe havia dado a notícia
do falecimento do pai, o advogado Manuel Teixeira Campos. A morte do Dr. Manuel
tinha sido no ano de 1774, quando deixou três filhos não emancipados. Em seu
testamento, o Dr. Manuel elegeu sua esposa como tutora e determinou que a mesma,
juntamente com as filhas, deveriam se transportar para Portugal depois de seu
falecimento. Entretanto, passados três anos, Rosa Maria ainda estava em Vila Rica e,
177
Não necessariamente os documentos mencionados nas tabelas acima continham informações sobre a
ação feminina ligada à economia da família e sobre a educação. Há casos em que os vestígios eram
referentes apenas à questão econômica, como detalharemos.
178
Inventário de Manuel Teixeira de Carvalho. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 104, Auto 1312, 1774.
121
pelas palavras de seu filho Alexandre, passava por dificuldades e estava "perseguida
em dívidas", sem ter alguém que pudesse socorrê-la naquele período.
A situação de Rosa Maria dos Anjos é um exemplo dentre tantas outras mulheres
que viviam no Termo de Vila Rica. Viúva, responsável por sua prole, com dívidas a
serem pagas, ela deveria criar ou utilizar algumas ações e parcerias para a
sobrevivência dela e de sua família e assim honrar os compromissos com os credores.
Ao estudarmos a documentação, identificamos um conjunto variado de ações
femininas ligadas aos interesses de provimento e manutenção econômica da família.
Algumas eram bastante comuns, e outras, mais particulares, conforme o grupo
socioeconômico pertencente e os compromissos assumidos com o juiz de órfãos.
Podemos organizar em quatro estratégias diferentes as "maneiras de agir"
femininas encontradas na documentação que, para nós, davam às tutoras certa
autonomia na administração dos bens dos menores ou as ajudava a criar meios de
subsistência para suas famílias: arrematar os bens dos menores; solicitar a tutoria a
partir de mercê régia e assim ter a posse de todos os bens e possibilidade da isenção
da prestação das contas de tutela; estabelecer parceria com os pais dos órfãos e
requerer que os bens não fossem partilhados.
122
ninguém tinha se interessado pela arrematação. Assim, ela queria fazê-la, mas "fiados
por tempo de 10 anos" e que, para isso, dava 20$000 sobre a avaliação inicial179.
Em outras situações, o processo de negociação de compra era uma
oportunidade de fortalecer as redes de sociabilidade. Esse fortalecimento poderia
ocorrer no levantamento do dinheiro para a compra dos bens ou no momento da
apresentação de um fiador. Dona Maria Rosa do Espírito Santo estava interessada em
arrematar os bens dos órfãos. Entretanto, como ainda estava "na diligência de procurar
dinheiro", pediu que o processo de arrematação fosse suspenso por três meses180.
Ressaltamos que Dona Maria Rosa pertencia ao grupo de maiores patrimônios e que,
depois da morte do marido, era proprietária de metade dos bens, o que correspondia a
2:038$033. Entretanto, suas posses eram especialmente bens de raiz, dando-nos
indícios de que ela provavelmente não tinha valores em espécie, apesar da meação
significativa. Assim sendo, dependia de empréstimos e negociações para realizar a
compra dos bens dos órfãos que estavam na praça.
A figura do fiador, por sua vez, era uma exigência prevista na legislação. Ela era
uma forma de garantir maior segurança ao processo de compra e venda dos bens. O
fiador era sempre um homem, já que a mulher não poderia assumir nenhum
compromisso financeiro, como mencionamos, em decorrência da Lei do Velleano.
A aceitação da função de fiador representava grande responsabilidade para a
pessoa, já que ela deveria responder pelos pagamentos caso a mulher não cumprisse
com o combinado. Nesses termos, a escolha de um fiador recaía em dois aspectos. Em
primeiro lugar, ele precisava ser uma pessoa abonada e com credibilidade no lugar, de
moradia. Em segundo lugar, deveria ser uma pessoa do convívio da mulher e que tinha
conhecimento a respeito dela. Afinal, todo o acordo era pautado na confiança de ambas
as partes, mas especialmente do fiador a respeito da mulher, dado o risco que o negócio
implicava.
Sendo assim, acreditamos que a mulher lançava mão de todo o capital social181
e familiar disponível. Quase sempre ela buscava um fiador entre os irmãos, genros, pai,
compadres e demais amigos da família; mas não descartamos a possibilidade de que,
em alguns casos, ela acabasse recorrendo a contratos e negociações financeiras com
outros homens, já que nem sempre o fiador era um parente.
179
Inventário de José Martins dos Santos. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 31, Auto 346, 1786.
180
Inventário de Miguel Alves da Costa. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 40, Auto 450, 1778.
181
Apenas retomando a explicação apresentada na introdução, o capital social “se refere ao conjunto das
relações sociais (amizades, parentescos, contatos profissionais, etc.) mantidas pelos indivíduos”
pertencentes ao mesmo grupo social, utilizando a conceituação de Maria Alice Nogueira e Cláudio M.
Martins Nogueira (2014, p. 43). Conforme os autores, Bourdieu entendia que os indivíduos poderiam se
favorecer dessas relações sociais para adquirir determinado benefício. Acreditamos que tenha sido esse o
caso quando as mulheres buscavam um fiador.
123
Conseguimos perceber que o ato de trazer um fiador era geralmente
acompanhado pela hipoteca dos bens da mulher, como forma de dar mais crédito para
o processo de arrematação. A hipoteca era uma garantia não apenas para a compra em
si, mas também para o próprio fiador. Isso porque o não pagamento das parcelas por
parte da mulher resultava primeiro na execução de suas posses e depois na das
propriedades daquele que a afiançara.
A apresentação do fiador e a hipoteca dos bens eram acompanhadas, no caso
da arrematação feminina, de um terceiro elemento: o compromisso com o sustento dos
órfãos. Isso implica dizer que quando os bens eram arrematados por um estranho este
se obrigava apenas a cumprir os pagamentos. Já as tutoras, para conseguir que fossem
aprovadas, acabavam se comprometendo também a cuidar de todos os gastos
referentes à criação e educação das crianças e jovens. Esse é o caso de Quitéria
Gonçalves Fontes, por exemplo, que, ao pretender arrematar os bens de seu filho,
declarou que assumia a condição de "o alimentar, sustentar e vestir (...) sem que tudo
isto lhe leve em conta no produto da dita arrematação". Além disso, comprometeu-se a
entregar todos os bens ou o produto deles logo que o filho se emancipasse182. Essas
condições apresentadas pela tutora eram bastante atraentes, tanto foi assim que o juiz
autorizou a arrematação de Quitéria.
Analisando os documentos, temos indícios de que a arrematação por parte das
tutoras era uma boa oportunidade para beneficiar os órfãos. Isso não quer dizer que as
tutoras eram as preferidas na arrematação dos bens, mas apenas que havia vantagens
na negociação para o órfão, que era a figura principal do processo de tutoria. As
mulheres, por seu turno, também enxergavam benefícios nessas formas de transação.
Mesmo tendo que arcar com as despesas, ao arrematar os bens, elas garantiam que
todas as posses fossem mantidas no seio familiar. Isto dava condições para a
continuidade das atividades desenvolvidas na família e consequentemente para a
sobrevivência de todos.
Na documentação estudada percebemos que todas as mulheres que buscaram
arrematar os bens dos menores eram suas mães. Tal constatação pode revelar uma
maior preocupação por parte dessas mulheres com o futuro de seus filhos, mas
especialmente o cuidado em não permitir que as posses da família fossem dissipadas.
Além disso, percebemos que essa estratégia de arrematar os bens era utilizada
principalmente pelas mulheres pertencentes ao grupo de maiores patrimônios e em
alguma medida pelas mulheres do grupo de patrimônios intermediários. Entre aquelas
classificadas como possuidoras de maiores patrimônios, cinco (27,77%) das 18
182
Inventário de Antônio Rodrigues Fontes. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 18, Auto 169, 1817.
124
mulheres arremataram os bens de seus filhos. Já entre aquelas pertencentes ao grupo
de patrimônios intermediários, o número foi muito menor, pois apenas duas (7,41%) das
27 mulheres utilizaram-se dessa estratégia para manter os bens na família. Não
identificamos nenhum caso no terceiro grupo — menores patrimônios.
A partir dessa constatação, acreditamos que a explicação para a não
arrematação dos bens pelas mulheres pertencentes ao grupo de menores patrimônios
esteja no fato de que os bens adjudicados a elas não eram suficientes para serem
usados como garantia, daí não ser possível hipotecá-los. Além disso, inferimos que elas
lançavam mão de outras estratégias diante das suas condições, como veremos abaixo.
183
Inventário de Pedro Pereira Lima. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 127, Auto 1582, 1789.
125
e eram obrigadas a colocar todos os rendimentos que surgissem, pertencentes ao
menor, no cofre do juízo. Além disso, elas eram obrigadas a prestar contas. Já enquanto
administradoras, elas eram responsáveis e tinham o governo de toda a legítima do órfão
— bens móveis, semoventes e de raiz —, não precisando apresentar nenhum bem para
arrematação. Elas também não precisavam recolher os rendimentos das posses no
cofre do juízo, sendo que algumas mulheres conseguiam a isenção da prestação das
contas da tutoria.
Diante disso, percebemos que, uma vez alcançada a provisão real, a autonomia
das mulheres em certa medida poderia ser aumentada. Primeiro porque elas poderiam
administrar os órfãos e seus bens sem precisar justificar o emprego de determinado
valor no sustento da família e na educação e criação dos menores. Além disso, elas
tinham disponível todo o lucro proveniente dos bens dos órfãos, já que estavam
desobrigadas de colocar qualquer valor no cofre do juízo. Isso certamente diminuía a
relação de dependência que elas tinham para com o juiz de órfãos e aumentava a
possibilidade de criar ou manter os meios de sobrevivência da família e até mesmo de
buscar melhores espaços para o grupo familiar. As únicas condições a que a mulher
ficava obrigada eram: entregar todos os bens dos órfãos sem diminuição quando eles
se emancipavam ou casavam; e sustentar, vestir e educar utilizando seus próprios bens,
quando os rendimentos dos menores não eram suficientes.
Apesar dessa constatação a partir dos documentos, não podemos dizer que a
prática de se isentarem as contas e de não se colocarem os rendimentos no cofre era
um consenso entre os juízes. Na verdade, havia muitas discussões sobre isso. Alguns
magistrados defendiam a opinião de que, uma vez administradoras de todos os bens,
as mulheres ainda assim deveriam prestar contas da tutela. Além disso, o juiz
responsável precisava determinar certa quantia que seria utilizada com os gastos dos
órfãos. E, finalmente, a tutora deveria colocar no cofre todo o restante proveniente dos
rendimentos. Dessa forma, para alguns juízes, a única diferença entre as duas formas
de tutoria estava na posse dos bens, já que, no caso das tutoras instituídas por mercê
régia, as mulheres ficavam no governo de toda a legítima, sem necessidade de
arrematação.
Teresa de Jesus assumiu a tutoria de seus cinco filhos em dezembro de 1785
graças à provisão régia. Quando ocorreu a morte do marido e todos os bens foram
inventariados, a família residia na sede do Termo de Vila Rica e tinha um monte-mor no
valor de 9:130$622, distribuídos em terras minerais, muitos créditos e um plantel de 14
escravos. Assim sendo, classificamos essa família como pertencente ao grupo de
maiores patrimônios.
126
Depois da partilha, o juiz determinou que toda a herança dos órfãos ficaria com
a viúva. Mas, além disso, arbitrou para o sustento dos menores 20 oitavas anualmente,
que deveriam sair dos rendimentos dos bens herdados, e que a viúva deveria prestar
contas da tutela quando fosse chamada. Não concordando com a determinação, a
viúva, por seu procurador, lembrou ao juiz que a provisão havia determinado que ela
seria a administradora de todos os bens. E, além disso, como ela deveria sustentar os
menores "à sua custa", caso os rendimentos não fossem suficientes, ela pedia, em
atenção à provisão régia, para ficar sem efeito o arbitramento e para ficar desonerada
de apresentar contas.
Para o juiz, no entanto, esse pedido da viúva indicava o
184
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM.2º Ofício, códice 34, Auto 381, 1783.
185
As ordenações citadas pelo procurador estão em [Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1, Título 62 § 37, p. 124.
127
numa "vila opulenta", e o valor de 20 oitavas não daria para pagar os numerosos
gastos186.
O ouvidor da Comarca, Dr. Tomás Antônio Gonzaga, rebateu todos os
argumentos do procurador, declarando que, se nas Ordenações eram estabelecidas as
contas daquelas tutoras de heranças tão "insignificantes", porque a mesma prática não
seria dada nas tutorias "de uma grossa herança"? Além disso, que o estabelecimento
de um valor pelo juiz era uma forma de facilitar a prestação das contas futuras.
Nesse ponto, o ouvidor estabeleceu uma diferença entras as tutoras e as
administradoras. Citando o jurista Paiva e Pona, Gonzaga declarou que a provisão só
estabelecia que a tutora não era obrigada a colocar no cofre os rendimentos dos órfãos,
mas não definia que os juízes não estabelecessem certa quantia.
Depois de todas as discussões sobre o assunto, ao que tudo indica, foi a decisão
inicial do juiz que foi seguida, pelo menos no que se refere à prestação das contas, já
que temos as contas dadas pela tutora. Entretanto, não foi possível saber se o valor
arbitrado foi mantido. O certo é que esse documento nos deu claras mostras da falta de
concordância quanto ao assunto. E, também, que realmente havia distinção entre as
tutoras nomeadas em testamento ou pelo juiz e aquelas instituídas por causa da
provisão real.
Para além dessa discussão, o fato é que a conservação dos bens — esse ponto
aceito por todos os magistrados — permitia às famílias a manutenção das formas de
subsistência e a possibilidade de galgarem melhor condições, sob a administração das
mulheres. E, quando conseguiam a aprovação da isenção das contas de tutela, isto
poderia significar maior autonomia, já que não precisavam justificar nenhum gasto ou
186
No momento da abertura do inventário, os órfãos tinham as seguintes idades: Maria Teresa de Jesus, 12
anos; José de Sá Freitas Mourão, 9 anos; Antônio de Sá Mourão, 5 anos; Francisco de Sá Freitas, 2 anos; e
João, 6 meses.
187
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM.2º Ofício, códice 34, Auto 381, 1783.
128
investimento. Por todos esses motivos apresentados, acreditamos que a própria ação
de solicitar a mercê régia poderia se configurar como uma estratégia feminina. E, dessa
estratégia inicial, as outras ações também poderiam vir a ser, já que eram práticas
ligadas à sobrevivência da família interiorizadas a partir do convívio no jogo social.
Assim, do vislumbre da possibilidade de garantir meios para o sustento da família, mas
também instruídas por homens de seu convívio e por procuradores, quase sempre
advogados, as mulheres pediam esse encargo188.
Conseguimos identificar na documentação 17 inventários que fazem referência
à isenção da prestação de contas em decorrência da provisão régia: nove (50%)
pertencentes ao grupo 1 — maiores patrimônios — e oito (29,63%) do grupo 2 —
patrimônios intermediários. Desses 17 documentos, duas tutoras do grupo 2 e três do
grupo 1 não conseguiram a isenção. Os juízes, do mesmo modo como argumentado
pelo ouvidor mencionado anteriormente, entendiam que a provisão não desobrigava a
prestação de contas da tutela. No grupo 3 — menores patrimônios —, nenhuma tutora
foi nomeada em virtude da mercê régia, por isso não identificamos debates sobre o
assunto no citado grupo.
188
Ao analisarmos os documentos conseguimos identificar que quase todas as mulheres tinham
procuradores que por elas respondiam e as representavam nas mais diferentes questões de justiça.
Geralmente esses procuradores eram advogados que tinham conhecimentos sobre a legislação e os trâmites
ligados ao processo de inventário e tutoria. A partir dessa constatação, reforçamos nosso entendimento de
que a capacidade esperada da mulher para o exercício da tutoria não perpassa nem mesmo pela habilidade
ligada à leitura e escrita. As mulheres não precisavam redigir seus requerimentos. E as questões legais
poderiam ser resolvidas por procuradores contratados por elas. A capacidade era uma referência à agilidade
e destreza para tutelar os bens e os órfãos.
129
evidenciava a condição da mulher para assumir a administração de todos os bens da
família e a tutela dos órfãos depois do falecimento do parceiro.
Conforme Manoel Hespanha (2010, p. 129), as relações entre marido e mulher
eram fortemente hierarquizadas, pois, dentre outros aspectos, eram marcadas pelas
"desigualdades naturais do sexo". Entretanto, conforme o mesmo autor, essas relações
eram também baseadas "numa promessa comum e recíproca de ajuda, de fidelidade e
de vida em comum".
Identificamos na documentação alguns indícios que nos ajudaram a reconstruir
determinadas parcerias: o trabalho conjunto e o gerenciamento dos negócios e da
família mencionados tanto pelas mulheres quanto por testemunhas; as declarações
presentes no testamento do inventariado de que a mulher teria conhecimento de todas
as dívidas e posses; e, finalmente, a compra e venda dos bens do cônjuge. Tais indícios
revelaram que, muitas vezes, mesmo não deixando de lado a hierarquia esperada na
relação entre os cônjuges, havia ocasiões em que a questão da sobrevivência e o
gerenciamento do negócio falavam mais alto, chegando algumas vezes a se
sobreporem à divisão das tarefas.
Esse parece ter sido o caso vivenciado por Dona Maria Rosa do Espírito Santo
e seu marido, o Capitão Miguel Alves da Costa189. Por volta de 1778, o Capitão Miguel
declarava suas últimas vontades em testamento e elegia sua esposa como tutora e
administradora de seus bens. Apesar de não manifestar que desejava que Dona Maria
Rosa fosse também tutora dos filhos, ela assinou o termo no mesmo ano. Certamente,
receosa dessa falta de clareza presente no testamento e interessada em se tornar
também administradora de todos os bens de sua prole, a viúva pediu a confirmação de
tal encargo para o Desembargo do Paço.
No Auto de Justificativa produzido ainda no ano de 1778, Dona Maria Rosa
declarou que, apesar de o testamento do seu falecido marido não conter a sua última
vontade — de que a mesma deveria ser tutora dos filhos —, o certo era que ela tinha
"bom procedimento, capacidade e [era] inteligente para poder substituir e dar satisfação
da tutoria de seus filhos e a administração de seus bens segundo a vontade do dito
testador...". Para a viúva, a falta dessa declaração tinha sido um erro na escrita do
testamento, e, por isso, nomeou testemunhas que pudessem confirmar o fato.
As testemunhas eleitas eram muito próximas da família da suplicante. Dentre
elas, havia o padre José Valente de Vasconcelos, que tinha acompanhado a escrita do
testamento. Ele declarou que o falecido tinha eleito Dona Maria Rosa como tutora e
189
Inventário de Miguel Alves da Costa. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 40, Auto 450, 1778.
130
administradora dos filhos e "no caso de assim se não achar declarado no mesmo
testamento é sem dúvida omissão do amanuense (...) e não por malícia...".
Para a nossa análise, o que mais nos chamou a atenção foram as declarações
desse padre e das demais testemunhas. Segundo essas testemunhas, quando o
testador era vivo e precisava se ausentar, era Dona Maria Rosa quem administrava
todos os bens "com muito zelo e capacidade", inclusive a "fábrica" que chegava a 21
escravos, dando "boa conta". O capitão Miguel era sapateiro, e seus bens foram
avaliados em 4:914$586; por isso, classificamos essa família como pertencente ao
grupo de maiores patrimônios.
Além das falas das testemunhas que ajudaram Dona Maria Rosa a alcançar a
provisão real já no ano seguinte, temos mostras dessa parceria ao longo do inventário.
Capitão Miguel confiava tanto na esposa que não determinou nenhum aspecto ligado
ao seu sepultamento, apenas que tudo deveria ser feito conforme "a eleição" da viúva.
Além disso, nomeou-a por sua testamenteira. Para nós, esses aspectos mencionados
revelavam a parceria do casal, sendo uma forma de manifestação da boa união e
convivência. E, além disso, indicava uma confiança por parte do Capitão Miguel na
capacidade de Dona Maria Rosa para gerenciar os negócios da família.
Outros autores já dedicaram parte de suas considerações para evidenciar
relações familiares que, para além das prescrições previamente estabelecidas, refletiam
uma realidade mais de acordo com as necessidades existentes. Morais (2009),
preocupada em analisar especialmente a posse, os usos e a disseminação da escrita,
além da difusão da escola em Portugal e no Brasil, percebeu que em São João del-Rei,
Capitania de Minas Gerais, as esposas dos militares e dos grupos mais abastados
acabavam tendo um espaço de manobra que era respeitado pelos maridos. Conforme
a autora, esse espaço permitia às mulheres a participação na educação dos filhos para
além dos cuidados iniciais, por exemplo. Morais ressaltou ainda que os pais dos órfãos
em seus testamentos faziam questão de "abonar" as mulheres para serem tutoras,
destacando a "capacidade" que as mesmas possuíam.
Sheila de Castro Faria (1998) também nos ajudou a pensar as relações
vivenciadas entre os cônjuges e as parcerias que pudessem estabelecer. Ao investigar
a família no período colonial brasileiro, a autora não deixou de mencionar que a grande
maioria dos testadores optou por nomear seus cônjuges como testamenteiros, e, em
geral, o sobrevivente ficava incumbido não apenas desse encargo, mas também da
administração do inventário. Para Faria (1998, p. 275), a indicação do consorte para
executar as últimas vontades testamentárias poderia sugerir “uma vida comum sem
grandes conflitos”. O testador acreditava que o cônjuge iria cumprir as disposições
testamentárias, o que poderia ser um indício da cumplicidade estabelecida em vida.
131
Mas, ainda que a documentação tenha nos revelado um número maior de
parceria entre cônjuges legítimos, conseguimos identificar alguns casos de
cumplicidades entre casais ilegítimos e também entre homens e mulheres que estavam
ligados por outros laços. Catarina Dias Ramos era madrinha da menor Maria do Carmo
Ferreira, filha natural do Sargento-mor Manoel Marques Ferreira, morador de Vila Rica.
Ao falecer, Manoel era proprietário de um considerável monte-mor, distribuído em 36
escravos; plantações de milho, mandioca e feijão; gado — vacum e cavalar —, inclusive
alguns ligados à tropa, e bens de raiz que, somados, atingiram a cifra de 28:011$558,
sendo, por isso, classificado no grupo de maiores patrimônios. No seu testamento,
Manoel revelou que sua filha já era exposta na casa de sua comadre Catarina, a qual
era também administradora da sua casa de molhados. E, entendendo que a sua
comadre tinha "toda a propriedade, capacidade e inteireza para educar" a filha, declarou
que era sua vontade que ela fosse sua tutora. O testador determinou ainda que Catarina
deveria continuar na administração do seu negócio, pois, segundo ele, essa seria uma
forma de manter a sua filha e herdeira190.
Já o Tenente Vicente Teixeira de Morais era morador de Congonhas do Campo.
Para o interesse dessa pesquisa, classificamos esse documento como pertencente ao
grupo de patrimônios intermediários. Em seu testamento, o Tenente Vicente declarou
que era solteiro, mas que tinha três filhos com Ana Maria de Jesus. Além de nomeá-la
como tutora por entender que tinha "boa capacidade e agilidade", declarou que havia
feito à mesma uma escrita de "trato e convenção" de todo o seu patrimônio. Sua
intenção era que ela pudesse "reger e governar [os bens] e com eles se sustentar e os
ditos meus filhos". Detalhe importante era que Vicente tinha outros parentes onde
morava, pois o inventariante foi o seu irmão Francisco Teixeira de Mourão. Entretanto,
ele optou por Ana Maria tanto para a tutoria dos filhos quanto para governar os bens, o
que nos leva a acreditar numa reciprocidade e confiança já existentes191.
O ato de determinar o destino do patrimônio antes do falecimento foi bastante
comum na documentação estudada. Temos diferentes casos de compra e venda dos
bens, especialmente por um dos consortes, sendo uma prática prevista na legislação.
Para nós, ela revelava uma preocupação em manter todas as posses na família e assim
garantir o sustento e a sobrevivência de todos. Além disso, no caso de falecimento do
homem, poderia ser uma espécie de "certificação" de que a mulher teria condições de
exercer e viver o papel de administradora e "chefe do domicílio", evitando o “desarranjo”
do lar. Essa é a mesma opinião defendida por Chequer (2002). Conforme a autora, a
190
Inventário de Manoel Marques Ferreira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 31, Auto 349, Ano 1817.
191
Inventário de Vicente Teixeira de Morais. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 138, Auto 1725, Ano
1786
132
venda de todo o patrimônio para um dos cônjuges era uma forma de evitar a partilha
entre os herdeiros e a diminuição do espólio. Mas isso poderia significar também o
reconhecimento, por parte dos maridos, da “inteireza e capacidade” das esposas para
continuar a administrar os bens da família.
Na documentação estudada conseguimos identificar ao menos três (16,66%)
mulheres pertencentes ao grupo 1 — maiores patrimônios — que compraram a meação
do marido. No grupo 2 — patrimônios intermediários— foram quatro (14,82%) das 27
mulheres, incluindo a citada Ana Maria de Jesus, que lançaram mão da mesma prática.
Já no grupo 3 —menores patrimônios —, uma (14,28%) mulher utilizou-se da mesma
estratégia para manter a totalidade dos bens.
Quando nos atemos às demais parcerias —menção de que tinham
conhecimento das posses e dívidas ou partilhavam das obrigações ligadas ao negócio
— conseguimos identificar seis (33,33%) mulheres no grupo 1 —maiores patrimônios;
três (11,11%) mulheres no grupo 2 — patrimônios intermediários — e duas (28,57%) no
grupo 3 —menores patrimônios.
Pelo que conseguimos perceber, ao menos no que se referia à parceria com os
pais dos órfãos, temos, em alguma medida, indícios em todos os grupos sociais. Isso
nos revelou que as relações no cotidiano das diferentes famílias do Termo de Vila Rica
poderiam ter contornos mais complexos do que aqueles pensados pelas autoridades
civis e religiosas mesmo quando os pais dos órfãos eram vivos. As mulheres
apropriavam-se de seus papéis: esposa, mãe e dona de casa; no entanto, em
decorrência das necessidades, inclusive econômicas, fizeram-se presentes em outras
instâncias, como o mundo do trabalho, seja dentro de casa ou fora do ambiente
doméstico.
Maria Beatriz Nizza da Silva (2002) já havia ressaltado tal aspecto. Em seu
trabalho sobre as mulheres na Capitania de São Paulo e nas cidades de Salvador e Rio
de Janeiro durante o século XVIII e primeiras décadas dos oitocentos, a autora lembrou-
nos as diferentes atividades que poderiam ser exercidas pelas mulheres. Segundo Silva,
enquanto "donas" elas poderiam auxiliar na gestão do patrimônio. Quando "sem
posses", elas circulavam em outros ambientes, além do espaço doméstico, exercendo
ocupações variadas, fossem mulheres brancas ou "de cor". Figueiredo (1993), por sua
vez, atendo-se ao cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII,
também nos lembrou que a mulher participava da economia e das práticas sociais. Era
essa participação que se sobrepunha, muitas vezes, à divisão dos papéis sociais,
garantindo o sustento e a sobrevivência das famílias.
Nesses termos, entendemos que a parceria estabelecida com os pais dos órfãos,
ainda vivos, representava uma "solidariedade" que dava a base para a continuidade do
133
trabalho feminino depois da morte do parceiro. E, mais importante, possibilitava às
mulheres criar condições para o provimento de sua prole.
134
das dificuldades financeiras vivenciadas na capitania192. Mas percebemos que as
solicitações se deram em datas muito próximas e por mulheres que viviam na mesma
localidade: todas na sede do Termo de Vila Rica.
Maria do Espírito Santo era viúva de Inácio Ferreira Xavier, de quem teve dois
filhos. Ao serem inventariados os bens, todo o monte-mor recebeu o valor de 130$000.
Esse pequeno patrimônio era constituído de um escravo e uma pequena morada de
casas e, por isso, classificamo-la para o interesse desta pesquisa como pertencente ao
grupo 3 —menores patrimônios. Como a herança era muito pequena, a viúva solicitou
que não ocorresse a partilha "para o bem dos filhos", ficando apenas com o usufruto. O
juiz declarou que, como a viúva estava sustentando os filhos "com amor e zelo louvável",
deveria assinar o termo, ficando em "silêncio este inventário visto a sua mesquinhez".
Além disso, nomeou-a como tutora dos filhos193.
Já Teodora Francisca do Nascimento era viúva de José Antônio de Meira e mãe
de cinco filhos, todos menores na época do falecimento do marido. Quando fez o seu
testamento, José Antônio de Meira nomeou sua esposa como tutora de seus filhos por
entender que ela tinha "toda capacidade e probidade". Os bens inventariados desse
casal foram avaliados em 488$206, divididos em quatro escravos, algum gado, joias,
ferramentas, roupas e uma morada de casas, sendo pertencente ao grupo 2 —
patrimônios intermediários194. Apesar do valor do patrimônio da família de Teodora
Francisca ser quase quatro vezes maior que aquele pertencente à família de Maria do
Espírito Santo, Teodora também conseguiu que os bens não fossem partilhados.
Segundo o juiz, eles deveriam ser utilizados para a sustentação dos órfãos e "arrimo
vista a qualidade dos bens", de modo que o conjunto fosse tanto da viúva como dos
menores. Além disso, diante da nomeação do falecido, ele a abonava para tutora.
Na documentação estudada identificamos cinco (18,52%) mulheres
pertencentes ao grupo 2 — patrimônios intermediários — e apenas duas (28,57%) do
grupo 3 —menores patrimônios — que fizeram esse tipo de solicitação. Os números,
apesar de pequenos, ajudam-nos a acreditar que algumas mulheres, especialmente
aquelas pertencentes ao grupo 2, souberam aproveitar-se desse entendimento dos
juízes dos órfãos e, assim, garantir que o monte-mor não fosse diminuído em
decorrência das custas, ameaçando as possibilidades de sobrevivência e sustento de
suas famílias.
192
Como já previamente destacado na introdução, estamos nos referindo aqui às alterações econômicas
enfrentadas pela Capitania de Minas Gerais. Conforme Almeida (2010), a Capitania de Minas Gerais sofreu
uma mudança de eixo em decorrência da crise aurífera, deixando de ter como seu principal produto o ouro
e pedras preciosas para se dedicar ao comércio e à produção agrícola.
193
Inventário de Inácio Francisco Xavier. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 17, Auto 180, Ano 1808.
194
Inventário de Jose Antônio de Meira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 23, Auto 242, Ano 1808.
135
2.5 - Os problemas com a administração
195
Inventário de Francisco Leite Esquerdo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 51, Auto 623, Ano 1809.
196
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 99, § 4, p. 989.
136
O curador, por sua vez, chamado pelo juiz para se pronunciar a respeito dos
gastos apresentados, além de questionar as avultadas despesas com a alimentação,
mencionou que os órfãos não eram de "qualidade" e, por isso, "deveriam ser postos a
ganhar o [próprio] sustento". Em outros termos, para o curador, se a viúva tivesse
colocado seus filhos para trabalhar, a dívida seria menor, pois todos poderiam ter
ajudado no sustento diário. Diante dessa fala do curador, o juiz não aprovou o pedido
da viúva e reforçou que os órfãos deveriam compensar o sustento com serviços, pois já
tinham idade suficiente para isso.
A partir da decisão do juiz e do pronunciamento do curador, percebemos que
eles não concordaram com a postura da viúva de não colocar seus filhos para trabalhar
e ajudar nas despesas. Sendo assim, não era justificável o pedido da tutora de ser
ressarcida pelo patrimônio dos menores, como ela o desejava.
No entanto, a viúva recorreu da decisão judicial. Segundo ela, o seu pedido era
para beneficiar os próprios órfãos, pois sua intenção era prevenir contestações futuras
de todos os seus filhos, já que havia despendido muito mais com os menores do que
com os demais. Além disso, no que se referia à necessidade de mandar seus filhos
trabalharem para compensar as despesas, ela declarou que era do seu interesse
sustentá-los ao mesmo tempo que pudessem aprender "algum oficio para se manterem
a diante e não serem pesados à sociedade". E, completando sua argumentação,
mencionou que ela não tinha o que "dar a fazer" aos seus filhos, “nem o país em que
somos oferece meios de os pôr a ganhar, sendo por isso talvez que, entre nós, não é
praticada a Ordenação do Livro 1 Titulo 88 §13 que manda apregoar em audiência os
órfãos para se darem a soldada".
O juiz inicialmente manteve a sua decisão. Todavia, os órfãos foram chamados
para se pronunciarem. Eles concordavam com o pedido da viúva e, por isso, assinaram
um termo de convenção. A determinação final foi que as despesas feitas por Maximiana
seriam pagas não apenas por ela, mas também pelas legítimas dos órfãos.
A partir das informações constantes nesse inventário, percebemos que a relação
entre a tutora e as autoridades responsáveis pela fiscalização dos bens e pessoa dos
órfãos poderia ser bastante conflituosa. Na visão do juiz e do curador, as despesas que
a viúva havia feito com seus filhos eram muito grandes. Entretanto, como inicialmente o
juiz havia autorizado tais gastos, não foi possível nem mesmo sugerir a remoção da
tutoria. Além disso, como os filhos concordavam com o pedido da viúva da divisão das
despesas, não houve porque não ser atendido. No que se referia à decisão da tutora de
não cobrar de seus filhos a ajuda no sustento, só conseguimos identificar certa
repreensão a respeito. É provável que as alegações da viúva de que não havia trabalho
disponível para empregar seus filhos fossem em certa medida verdadeiras.
137
Havia casos, entretanto, em que era mais difícil para as autoridades judiciais e
as tutoras chegarem a um determinado consenso. Geralmente, quando isso acontecia
era porque as tutoras agiam sem autoridade e conhecimento do juízo. Nessas situações,
a primeira sugestão apresentada era o sequestro dos bens das mãos da tutora e, em
alguns casos, a remoção da função.
Em 1801 eram inventariados os bens do boticário Antônio Alves Pereira
Carneiro197. Seu patrimônio resumia-se a: dois escravos; a casa onde moravam na Rua
das Cabeças em Vila Rica; uma botica e alguns poucos trastes de casa. Todo o monte
foi avaliado em 950$350, sendo para o interesse desta pesquisa classificado como
pertencente ao grupo 2 — patrimônios intermediários.
Antônio Alves era casado com Laureana Rosa Pereira com quem teve seis filhos,
todos menores no momento de seu falecimento. Ele morreu sem o testamento, deixando
algumas obrigações por terminar, inclusive a grande reforma da casa onde morava. A
viúva, por sua vez, certa de que tinha condições de ser tutora, solicitou tal encargo ao
juiz, o que foi aceito, pois no mesmo ano de 1801 ela assinou o termo.
Dois anos depois ela foi citada para apresentar as contas de sua tutoria, o que
deu início a uma longa discussão a respeito da ocupação do cargo de tutora e a forma
como havia administrado os bens. Segundo o curador, além de Laureana não estar
competentemente habilitada para a função, já que não tinha solicitado a tutoria ao
Desembargo do Paço, a mesma havia feito várias despesas sem autorização judicial.
Por isso, pedia que a mesma fosse removida da função e que um novo tutor devesse
ser nomeado.
Apesar desse pedido por parte do curador, onze anos depois a viúva ainda
estava na posse dos bens e se mantinha tutora dos filhos. Como já haviam se passado
muitos anos, o juiz nomeou um novo curador para se pronunciar a respeito do inventário.
Esse curador reiterou o pedido do colega anterior e mencionou ainda que a viúva tinha
sonegado determinados bens, causando prejuízos "escandalosos" aos órfãos. Além
disso, conforme suas palavras, a viúva havia vendido a botica, e as dívidas que
declarava ter feito com a reforma da casa e com os herdeiros eram uma prova de que
Laureana deveria ser removida da tutela, "visto o prejuízo que se pretendeu e se
pretende causar a estes órfãos". O curador declarou ainda que a viúva não havia
buscado satisfazer as dívidas ou se esforçado para obter "outro patrimônio que não
fosse o do casal". Sendo assim, como a viúva havia cometido alguns erros ligados à
197
Inventário de Antônio Alves Pereira Carneiro. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 01, Auto 09, Ano
1801.
138
administração dos bens que demonstravam a falta de capacidade para tal encargo,
pedia que ela fosse removida da tutela.
A viúva, por sua vez, declarou que era ela quem sustentava, vestia, calçava e
curava os filhos em decorrência do estado atual da família, que estava onerada em
dívidas e os bens sem nenhum rendimento; que estava pagando as dívidas do casal,
inclusive aquelas contraídas pelo finado marido; e, finalmente, que oferecia sua meação
da casa para sanar as questões ligadas à venda da botica.
Diante dessas alegações, o juiz suspendeu a remoção da tutoria, mas
determinou que Laureana deveria declarar o estado dos bens e seus rendimentos, o
que foi feito pela viúva. O curador aceitou as declarações da viúva e determinou que a
mesma deveria recolher no cofre todo dinheiro que havia sobrado da venda da botica
ou que declarasse o valor existente mantendo sob sua administração para que pudesse
continuar a fazer os pagamentos das dívidas do casal, que eram avultadas.
A partir das informações presentes neste caso, podemos dizer que Laureana
realmente se precipitou em vender a botica sem autorização judicial. Entretanto, as
alegações dos dois curadores, para além desse erro da viúva, não levaram em
consideração, no primeiro momento, a necessidade de terminar a obra começada pelo
falecido Antônio, nem mesmo que as dívidas do casal excediam o valor da herança.
Essas duas questões, somadas às despesas diárias da família, demandaram muitas
negociações com os credores e podem ter dificultado a continuidade da botica que
exigia investimentos e a contratação de uma pessoa para realizar o trabalho. É certo,
como alegou o segundo curador, que o filho mais velho se habilitou na arte de farmácia
e poderia ter administrado a botica. Entretanto, pelas alegações da viúva, a urgência se
fez presente quando o filho ainda não tinha condições para tal, e por isso a forçosa
venda.
Somente depois de alegar que tanto ela quanto seus filhos estavam vivendo
"sem ter, muitas vezes, o mínimo real com que comer", subsistindo "pela Divina
Providência", e reforçar a dificuldade que tinha para pagar as inúmeras dívidas deixadas
pelo marido, foi que Laureana conseguiu convencer as autoridades da situação de sua
família e os esforços que estava fazendo para sustentar seus filhos. Em outros termos,
apenas depois de persuadir os homens da justiça de que suas ações foram feitas em
proveito dos órfãos e que, mesmo cometendo o erro da venda, sua intenção não era
prejudicar os filhos, foi que ela conseguiu se manter na tutoria.
Conseguimos identificar na documentação três (16,66%) mulheres pertencentes
ao grupo 1 —maiores patrimônios — e quatro (14,81%) no grupo 2 — patrimônios
intermediários— que foram ao menos uma vez questionadas sobre o modo como
139
estavam administrando os bens. Entretanto, apenas uma delas foi removida da função
de tutora.
Trata-se de Genoveva Sutéria de Jesus, viúva do Cirurgião-mor Geraldo
Fernandes Santiago, pertencente ao grupo 2 — patrimônios intermediários. Genoveva
era moradora da Rua do Ouvidor de Vila Rica e havia sido nomeada como tutora de
seus sete filhos pelo marido em testamento, o que se concretizou, pois assinou o termo
em 1822. Apesar de não apresentar as contas de sua tutoria, Genoveva deixou alguns
indícios dos seus esforços para proporcionar aos filhos alguma educação. Tanto que
conseguimos identificar que um dos seus filhos havia se tornado padre, e outros dois
eram médicos no regimento militar.
Entretanto, dez anos depois de assinar o termo de tutoria, Manoel de Assunção
Cruz, provavelmente o mesmo homem que havia escrito o testamento de seu marido,
fez a seguinte representação ao juiz dos órfãos198:
198
De acordo com Carvalho (1840, 2 parte, p. 27), qualquer pessoa, inclusive mulheres, poderia requerer a
remoção de um tutor suspeito de má administração ou de má conduta. Isso porque, segundo o magistrado,
a tutoria era de interesse não apenas dos órfãos, mas de toda sociedade.
199
Inventário de Geraldo Fernandes Santiago. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 21, Auto 220, Ano
1822.
140
por provisão real, algum indício de tentativa de apropriação indevida dos bens dos
menores. Talvez tal constatação esteja relacionada ao fato de que eram os bens dos
órfãos somados às posses dos demais que garantiam o sustento da família, inclusive
da própria viúva. Além disso, era a soma do patrimônio que poderia ajudar a construir
melhores condições para todos.
No que se refere aos grupos sociais, percebemos que as mulheres pertencentes
ao grupo 3 — menores patrimônios — foram as que menos deixaram indícios de suas
ações voltadas para a administração dos bens de seus filhos. Acreditamos que tal
situação se deva ao fato de que o patrimônio era tão pequeno que, por parte da viúva,
quase não havia o que requerer à justiça; e, por parte do juiz, o valor dos bens não tinha
como arcar com as despesas do processo, sendo mais proveitoso deixar em silêncio a
administração.
De qualquer modo, a partir das informações deixadas por essas mulheres e
também por aquelas pertencentes aos demais grupos, foi possível percebermos que,
por mais que as ações estivessem ligadas às questões particulares das famílias, as
justificativas se repetiam. Independente do grupo social, todas as mulheres deixaram
entrever que suas práticas eram em proveito das crianças e jovens sob sua tutela, de
maneira particular, e para o provimento da família, como um todo; ou, ainda, para evitar
a diminuição do patrimônio pertencente ao seu grupo familiar.
Resta então sabermos quais eram as práticas femininas voltadas para educar
os órfãos. Seriam as mesmas práticas, independentemente do grupo socioeconômico?
Ou estariam ligadas ao tipo de educação oferecida ao menor? Qual foi a educação
direcionada aos órfãos? Ela estaria determinada pela "qualidade de suas pessoas e
fazendas"? Quando eram as mães e avós dos órfãos, foi possível perceber se eram
mais intensas? Essas são algumas das questões que pretendemos responder abaixo.
141
sobrevivência e sustento das famílias” —, separamos 33 (63,46%) que possuíam
alguma indicação de investimentos por parte da mulher na educação, conforme o Anexo
2 — Quadro 10 – “Tutoras que deixaram indícios dos investimentos na educação dos
órfãos”.
De acordo com Fonseca (2014, p. 34), era função do tutor cuidar da
“alimentação, do vestuário, da saúde e da educação dos órfãos”. Entretanto, esses
cuidados deveriam respeitar a ‘qualidade e condição’” desse menor, ou seja, as
condições de nascimento, o gênero e a idade eram elementos importantes a serem
considerados.
Nos termos da legislação, cabia ao tutor quando os órfãos eram filhos de
pessoas de “qualidade”: mandar “ensinar a ler e escrever aqueles, que forem para isso,
até a idade de doze anos”. Depois dessa fase, o tutor deveria ordenar a vida e ensino
desse menor, “segundo a qualidade de suas pessoas e fazendas” 200. Quando o órfão
era filho de um oficial mecânico, ele deveria “...aprender os ofícios de seus pais, ou
outros, para que mais pertencentes sejam, ou mais proveitosos, segundo sua disposição
e inclinação...”201.
Para o magistrado José Pereira de Carvalho (1840, 2 parte, p. 10), a obrigação
de educar os órfãos era o principal dever do tutor, pois dela dependia em grande parte
"a felicidade ou desgraça dos homens". Segundo o entendimento do magistrado, essa
educação deveria abranger todos os aspectos. A educação religiosa deveria se dar
segundo os preceitos da Religião Católica Apostólica Romana, por ser a religião oficial
professada. Já a educação científica deveria regular-se pela qualidade dos órfãos, do
mesmo modo como mencionou Fonseca (2014).
Ainda conforme Carvalho (1840, 2 parte, p. 10), a educação não dependia da
vontade do órfão, mas da determinação do tutor, que deveria constranger o menor a
aprender um ofício ou uma arte a que se destinasse. O órfão só deveria ser consultado
a respeito da habilidade para determinada arte ou ofício. Além disso, no que se referia
ao pertencimento a um grupo social, esta deveria ser respeitada no momento das
escolhas feitas pelo tutor. Nas palavras de Villalta (2007, p. 256), “origens sociais
diferentes, educações diferentes – essa era a regra”.
A partir da análise da legislação, podemos observar que, no que se referia ao
ensino de determinado ofício, havia uma certa flexibilidade permitida pela legislação
para a escolha do tutor. Como vimos acima, apesar de as Ordenações indicarem que
200
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
Título 88, § 15, p. 212
201
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
Título 88, § 16, p. 212.
142
os filhos deveriam aprender o mesmo ofício dos pais, era também sugerido que o menor
poderia ser direcionado para outro ofício, “desde que fosse mais ‘proveitoso’ ou mais
adequado à ‘disposição ou inclinação’ do órfão”. Nesses termos, cabia ao tutor
“interpretar, obedecer e prestar contas do que era exigido pela lei” (PAULA, 2016, p.
71).
Já em relação ao aprendizado das primeiras letras, a legislação estabelecia uma
maior restrição. De acordo com as Ordenações e também pelos comentários nelas
existentes feitos por Cândido Mendes de Almeida, apenas os órfãos das “classes mais
abastadas” poderiam receber esse tipo de educação202.
Todavia, como destacou Fonseca (2014, p. 34), na
Diante disso podemos dizer que, no que se referia ao aprendizado das letras, é
possível que, dependendo da “qualidade e condição do órfão e de suas fazendas”, a
tutora pudesse criar estratégias para dar esse tipo de educação para o menor, ainda
que eles “não fossem para isso”.
A partir dessa perspectiva, nosso interesse neste tópico foi compreender as
ações das mulheres para a educação dos órfãos segundo o seu pertencimento social.
Nossa proposta foi verificar: que tipos de ensinamentos eram dados; se a “qualidade e
202
Parece que esse entendimento sobre as primeiras letras foi progressivamente sendo alterado. Conforme
o próprio Cândido Mendes, com o Alvará de 26 de outubro de 1814 § 6, aqueles que mandavam ensinar
indistintamente os órfãos passaram a receber um prêmio. Imaginamos que, na verdade, tratava-se do Alvará
de 24 de outubro de 1814 § 7 que traz algumas determinações referentes aos órfãos. O prêmio seria a
conservação do menor até a idade de 16 anos, sem lhe pagar soldada, e também a possibilidade de oferecer
esse menor “no alistamento e sorteamento em logar de algum seu filho sorteado, observando os Capitães-
Móres este privilegio religiosamente”. Este alvará está em: SILVA, Antônio Delgado. Collecção da
Legislação Portuguesa desde a última compilação das Ordenações oferecida a El Rei Nosso Senhor –
Legislação de 1811 a 1820. Lisboa: Typografia Maigrense, v. 06, 1825, p. 325. Carvalho (1840, 2 parte,
p. 11) também ressaltou este aspecto quando destacou que por mais pobre que fosse o menor sempre deveria
ser ensinado a ler e escrever “porque, além da utilidade, que disto lhes resulta à eles, e à sociedade, são
cousas, que se aprendem em uma idade, em que nenhuma outra cousa útil se pode fazer; acrescendo que
por esta aplicação se distraem os mesmos órfãos de alguns vícios, que a ociosidade traz consigo”.
143
condição” era respeitada; e se havia tutoras que promoviam a educação de seus
tutelados, independente dessa “qualidade e condição”, incluindo as primeiras letras.
Para isto, decidimos desenvolver a análise de acordo com os grupos sociais.
203
Requerimento de Ana Maria de Jesus... AHU, Cx121, doc. 02, 1784.
144
aumentado (...) de forma que por seu falecimento receberão os menores seus filhos,
maior utilidade do que a receberam por falecimento de seu pai...”
Não sabemos se Dona Ana Maria de Jesus conseguiu cumprir essa promessa
quando os filhos atingiram a maioridade. O certo é que quando foi feito o inventário por
sua morte em 1807, as dívidas somavam quase 2:500$000, e seus filhos já eram
maiores e emancipados204. De qualquer modo, foram as ações partilhadas com seu
marido e depois como tutora que fizeram a diferença e possibilitaram a seus filhos
receberem um tipo de educação e garantir um futuro.
Consta na solicitação que o major Jacinto havia deixado três filhos por nomes
José, Antônio e Ana Jacinta, todos menores no momento de seu falecimento. Segundo
Dona Ana Maria, ela estava dando “toda a educação necessária” a seus filhos. José
tinha em torno de 20 anos de idade quando Dona Ana Maria pediu a mercê régia via
Desembargo do Paço. Ana Jacinta, por sua vez, era a filha do meio, com 16 anos de
idade. Antônio, o caçula, estava com 9 anos de idade.
Acreditamos que realmente Dona Ana Maria estava tendo toda diligência para
educar seus filhos, pois ainda no Auto de Justificativa que compunha sua solicitação
mencionou que tinha mandado seu filho mais velho estudar na Universidade de Coimbra
onde o estava “assistindo com as despesas necessárias a fim de o adiantar nos
estudos”205. Essa informação, assim como as demais, foi confirmada pelas
testemunhas, tanto que o pedido de isenção das contas foi atendido. Além disso,
cruzando as informações presentes no inventário de Dona Ana Maria de Jesus,
percebemos que a educação do caçula Antônio também havia merecido atenção da
tutora, pois ele havia se tornado padre, uma profissão de status que poderia auxiliar na
manutenção ou ascensão social do grupo familiar.
Conforme destacou Brügger (2007, p. 157), “a preocupação com a educação dos
filhos não parece estar ligada apenas a uma questão de sucesso ou crescimento
pessoal, mas a um projeto que deveria atender aos interesses familiares”. Nesse caso,
ao decidir enviar seu filho José para Coimbra ou dar condições para que Antônio se
tornasse padre, Dona Ana Maria poderia ter delineado não apenas o futuro desses
filhos, mas de toda a família, contribuindo para o aumento do capital cultural e social do
grupo como um todo, conforme Bourdieu (1996).
Dos esforços de Dona Ana Maria de Jesus temos alguns frutos. Como destacou
Antunes (2004, p. 27), José Pereira Ribeiro havia se tornado advogado e, de volta às
204
Inventário de Ana Maria de Jesus. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 56, Auto 626, Ano 1807.
205
Virgínia Trindade Valadares (2004), estudando as elites mineiras setecentistas, fez um levantamento dos
estudantes mineiros na Universidade de Coimbra entre 1700 e 1800. Dentre esses estudantes consta o nome
de José Pereira Ribeiro, que, segundo a autora, teria iniciado o curso em 01 de outubro de 1781.
145
Minas Gerais, exerceu a advocacia entre os anos de 1788 a 1798. Além disso, foi uma
pessoa que conseguiu estabelecer um “universo relacional” imbricado, marcado por
autoridades importantes nas Minas setecentistas, inclusive com alguns que
posteriormente seriam acusados de fazerem parte da Inconfidência Mineira 206. O
advogado conseguiu ainda ter uma significativa livraria computada por 469 volumes
distribuídos em livros sacros e profanos. No que se refere ao aspecto familiar, casou-se
em 1790 com Dona Rita Caetana Maria de São José, com quem teve cinco filhos, e
faleceu oito anos depois.
Dona Ana Maria de Jesus teve presença significativa na vida de José em vários
momentos, inclusive depois de casado. De acordo com Antunes (2004), a mãe Ana
Maria teria apoiado o filho na vida de casado em várias ocasiões e mesmo depois do
falecimento precoce do advogado, então com 34 anos de idade. Segundo o autor (2005,
p. 58), a viúva Dona Rita passou por dificuldades financeiras, e foi a sogra Dona Ana
Maria quem a auxiliou, tornando-se inclusive a tutora dos netos207.
Dos demais filhos não temos muitas informações. Sabemos que o padre Antônio
ainda estava vivo no momento em que os bens de sua mãe foram inventariados, mas é
provável que morasse em outra localidade, pois não foi cotado para ocupar a função de
tutor dos sobrinhos, mesmo com todas as dificuldades que se sucederam para tal
nomeação. Já a filha Dona Ana Jacinta, ao que parece, manteve-se solteira, pois no
inventário de sua mãe ela estava com 38 anos de idade sem nenhuma informação
contrária.
A partir dessas informações, podemos dizer que Dona Ana Maria buscou ofertar
um tipo de educação respeitando a “qualidade das pessoas” de seus filhos. Para isso,
mandou o filho mais velho para Coimbra, e o caçula tornou-se padre. Dona Ana Jacinta
ficou com a obrigação de amparar sua mãe, sendo este também um dever dos filhos,
como bem ressaltou Brügger (2007, p. 157). Obediente, ficou responsável inclusive pelo
inventário dos bens de sua mãe e ao menos tinha a capacidade de assinar o próprio
nome, como conseguimos identificar:
206
Sobre a Inconfidência Mineira, ver, dentre outros: Villalta (1999); MAXWELL (2010); FURTADO
(2000); FONSECA (2001); LEMOS (2003) e RODRIGUES (2008)
207
Essa informação pode ser confirmada pela análise do inventário de Dona Ana Maria. Inventário de Ana
Maria de Jesus. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 56, Auto 626, Ano 1807.
146
Figura 1: Assinatura da órfã Ana Jacinta no inventário de sua mãe
Fonte: AHMINC/IBRAM (2º Ofício, códice 56, Auto 626, fl. 01v).
Como destacou Vartuli (2014, p. 39), a assinatura pode ser percebida como “um
sinal de distinção/afirmação social ou como informação esclarecedora da oposição entre
os que possuíam a habilidade, pelo menos rudimentar, de grafar o nome e aquele
designados como completamente analfabetos”. Nesses termos, Ana Jacinta se
“projetou no cenário social”, legitimando o inventário de sua mãe ao deixar a sua marca.
Assim como Ana Jacinta, outros órfãos também fizeram questão de deixar sua
assinatura. Dos 12 casos analisados no grupo de maiores patrimônios, em seis (50%)
temos órfãos que grafaram o próprio nome em alguma parte dos inventários estudados.
A partir desses dados, percebemos que as mulheres desse grupo criaram meios
de educar seus tutelados. No que se refere ao acesso ao mundo letrado, percebemos
que das 12 tutorias aqui analisadas, sete (58,33%) direcionaram as crianças e jovens
para alguma forma de aprendizado das letras. Quando somamos essas sete tutorias
àqueles processos que não traziam referências ao ensino, mas que constava ao menos
a assinatura de um dos órfãos – no caso três – temos dez (83,33%) inventários em que
as crianças e jovens tiveram em algum momento o contato com o mundo da escrita208.
Entretanto, se o fato de terem um patrimônio significativo deu condições para se
encaminharem para o ensino das letras, isso não impediu que o aprendizado de ofícios
também se fizesse presente. Das 12 tutorias analisadas aqui, identificamos três (25%)
tutoras que optaram por mandar ensinar aos seus tutelados também um ofício. Dentre
elas temos Ana Maria do Sacramento, viúva do Alferes Antônio Pereira Malta. A família
era proprietária de dez escravos, além de fazendas de cultura e algumas cabeças de
gado, que, somados, alcançaram a cifra de 4:609$320. Ana Maria havia sido nomeada
tutora de seus cinco filhos ainda menores no testamento do marido. Em 1816 ela
apresentou as contas de sua tutoria e juntamente uma declaração. Além de mencionar
que as duas filhas “fêmeas” estavam sendo criadas “com toda honestidade e asseio que
208
Quando o processo continha eventos de direcionamento para o ensino das letras e também a assinatura
de algum órfão, computamos apenas uma vez para evitar informações erradas. Esse é o caso, por exemplo,
do processo analisado acima – de Dona Ana Maria de Jesus. Como vimos, consta que a órfã Ana Jacinta
sabia ao menos grafar o próprio nome e que os seus dois irmãos foram inseridos no mundo da leitura e
escrita. Para a análise quantitativa, contamos apenas uma vez esse processo.
147
é devido a seu sexo”, declarou que os órfãos “varões” tinham sido mandados a aprender
a ler e escrever e que agora os trazia “em ofícios”209.
Paula (2016, p. 105), em seu estudo sobre o papel dos tutores no Termo de
Mariana no final do período colonial, percebeu a mesma situação. Conforme seus
estudos, 29% dos casos analisados tiveram órfãos que receberam o ensino de primeiras
letras e também algum ofício mecânico.
Fonseca (2014, p. 35), dissertando sobre as tendências assumidas pelos grupos
sociais na definição das estratégias educativas para seus filhos, declarou que um
expressivo número de famílias abastadas e preocupadas com seus negócios valeu-se
mais do conhecimento da leitura, da escrita e da aritmética e também dos assuntos
relacionados com suas atividades. Podemos inferir a partir das palavras da autora que,
para essas famílias, ater-se aos conhecimentos de seus negócios talvez fosse mais
importante que a projeção nos estudos mais avançados das letras. Esse provavelmente
seria o caso da família de Ana Maria do Sacramento, que, mesmo figurando entre os de
maiores patrimônios, preferiu assegurar o aprendizado de “ofícios” como forma de
garantir a subsistência e a manutenção das condições socioeconômicas.
Outro ponto importante que conseguimos observar nesse grupo de maiores
patrimônios diz respeito à patente militar dos pais. Como vimos, alguns filhos, assim
como seus pais, eram portadores de alguma patente militar. Dos 12 casos aqui
analisados, em sete (58,38%) os pais eram militares210. Deste total, identificamos quatro
(33,33%) famílias nas quais ao menos um filho também alcançou alguma patente.
Francisco Dias Novais, por exemplo, era capitão. Ao falecer deixou cinco filhos
menores de 25 anos, sendo dois meninos. Quando em 1805 a tutora Josefa Maria de
Almeida apresentou as contas de sua tutoria, declarou que os dois haviam se tornado
soldados pagos da 1ª Companhia da Praça211. Francisco Coelho da Silva Brandão
também era capitão. Quando faleceu deixou oito filhos, dos quais sete ainda eram
menores. Ao analisarmos o inventário do referido capitão e as declarações feitas pela
esposa e tutora Dona Bárbara de Vasconcelos Parada e Souza, identificamos que, dos
quatro filhos “machos”, dois tinham uma patente militar. O detalhe importante é que ao
menos duas filhas – incluindo a maior Dona Arcângela – também se casaram com
209
Inventário de Antônio Pereira Malta. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 22, Auto 236, Ano 1811. A
tutora não mencionou quais eram os ofícios que seus filhos “varões” estavam aprendendo.
210
Para um melhor entendimento a respeito da organização militar e sua história, veja: COTTA, Francis
Albert. Breve História da Polícia Militar de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.
211
Inventário de Francisco Dias Novais. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 52, Auto 627, Ano 1803.
148
militares212. Tais dados nos levam a conjecturar uma preocupação em manter nas
famílias um capital diferenciado, marcado pelo status da ocupação militar.
No que se refere à educação feminina não conseguimos identificar muitas
informações, o que não significa que essa educação não existisse. Na verdade, como
destacou Fonseca (2014, p. 35), a documentação até o início do século XIX nos deixou
poucos indícios sobre a educação das mulheres.
A pequena quantidade de dados talvez esteja relacionada à questão levantada
por Oliveira (2008, p. 97). Segundo a autora, o grupo feminino era comumente educado
pelas mulheres da família, tais como: mães, tias, irmãs e avós. Assim, era no trabalho
cotidiano que elas eram educadas, e, por isso, na prestação de contas, as práticas
educativas para as órfãs quase nunca eram mencionadas.
Ainda conforme Oliveira (2008, p. 48), todo conhecimento direcionado às
mulheres deveria ser relacionado às tarefas do lar: fiar, coser e cozinhar. Mesmo o
ensino elementar das letras, quando acontecia, era para prepará-las para assumir a
função de primeira educadora dos filhos e administradora do lar. No caso das jovens
das famílias mais abastadas, ter o conhecimento a respeito dessas tarefas era
fundamental, pois elas deveriam saber ordenar os serviços e gerenciar o trabalho dos
criados, além de administrar a economia doméstica.
Geralmente, nas prestações de contas de tutela, encontramos declarações mais
gerais que, em alguma medida, nos ajudaram a vislumbrar que as órfãs estavam
recebendo algum tipo de educação. Assim é o caso da tutoria de Teresa de Jesus. Viúva
do Tenente José Francisco de Sá Mourão, nas contas apresentadas no ano de 1792, a
tutora declarou que todos os filhos se achavam debaixo da sua inspeção e que “os
educava, regia e doutrinava com aquele amor zelo e cuidado que lhe era permitido aos
seus estados e sexos"213. Ou ainda como o fez a já citada Dona Bárbara de Vasconcelos
Parada e Souza, que, por volta de 1820, declarou que a sua filha Maria ainda estava
em sua companhia e que se achava instruída “nos misteres da sua condição e sexo”214.
O único caso em que houve uma menção ao ensino das letras para uma órfã foi
nas prestações de contas da tutora Maria Joaquina de Almeida. Viúva de Estevão
Antônio Ferreira, Maria Joaquina foi nomeada por tutora em testamento dos quatro filhos
legítimos e também de um filho natural de seu marido, chamado Vitoriano. Por volta de
1823, quando apresentou a prestação de contas de tutela, a viúva declarou que “os
212
Inventário de Francisco Coelho da Silva Brandão. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 51, Auto 624,
Ano 1806.
213
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM.2º Ofício, Códice 34, Auto 381, Ano
1783
214
Inventário de Francisco Coelho da Silva Brandão. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 51, Auto 624,
Ano 1806.
149
filhos estavam em sua companhia e todos estavam aprendendo a ler e escrever”.
Acreditamos que realmente se tratava de “todos” os seus filhos, pois Vitoriano já estava
com 21 anos de idade quando o inventário foi aberto e provavelmente já tinha recebido
algum tipo de educação. Além disso, dos quatro filhos legítimos, apenas um deles era
homem, e consta uma referência a pagamentos para “aprenderem a ler e escrever” a
dois órfãos. Essa despesa foi no valor de 18$000 para cada menor, somando-se 36$000
durante seis anos, o que equivaleu a 14, 94% das despesas215.
Sobre “as prendas de seu sexo”, também identificamos apenas uma tutora que
fez questão de mencionar qual o tipo de educação foi dado às órfãs. Trata-se da parda
forra Romana Maria da Conceição. Ela era viúva de Antônio da Costa Lopes, com quem
tivera quatro filhos. No testamento feito antes de falecer, Antônio optou por nomear sua
esposa como tutora dos filhos legítimos e também de mais um filho natural concebido
antes do seu casamento. No decorrer da sua tutoria, Romana apresentou cinco contas
de tutela. Em todas fez questão de mencionar que os órfãos estavam em sua companhia
e que os educava com todo “zelo e cuidado”.
Das cinco contas prestadas, na terceira Romana deu mais detalhes da educação
que recebiam. Além de mencionar que os meninos estavam se instruindo em “seus
ofícios”, declarou que as duas filhas estavam aprendendo a costurar216. Imaginamos
que a aprendizagem da costura era somada a outras formas de educação, como forma
de prepará-las para assumirem no futuro a função de boas donas de casa, mães e
esposas. Pelo menos essa é a inferência que podemos fazer quando analisamos alguns
requerimentos presentes no mesmo inventário, em que foram mencionadas as
preocupações em garantir que os menores não deixassem de fazer a “desobriga da
quaresma” e ainda de frequentarem a missa.
E, ao que tudo indica, parece que a tutora conseguiu alcançar seu objetivo de
“bem educar” suas filhas. Em um Auto de Justificativa em que procuraram provar que
tinham condições de assumir suas legítimas e se emanciparem, as duas filhas
declararam e tiveram a confirmação das testemunhas de que tinham “juízo e capacidade
(...) para regerem suas pessoas e bens”. Além disso, conforme os depoimentos, sabiam
“pelo ver e presenciar” que as duas órfãs viviam “em companhia da dita sua mãe com
aquela decência e honra possível” e “sem escândalo algum”. Diante dessas
declarações, o juiz concedeu o pedido e optou por emancipá-las217.
215
Inventário de Estevão Antônio Ferreira. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 40, Auto 475, Ano 1816.
216
Inventário de Antônio da Costa Lopes. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 59, Auto 669, Ano 1781.
217
Processo de emancipação de Ana e Maria, filhas de Antônio da Costa Lopes. AHMINC/IBRAM. 1º
Ofício, Códice 441, Auto 9207, Ano 1804.
150
Mas, além da preparação “mais prática” para seus papéis através da costura e
outros “misteres de sua condição e sexo”, percebemos que as órfãs do grupo de maiores
patrimônios também foram, em alguma medida, “educadas” e direcionadas para
desejarem e buscarem suas funções, como se tornarem esposas, por exemplo.
Segundo o nosso entendimento, o apresso pelo casamento poderia ser visto como uma
forma de educar, dado o fato de que ele seria uma das possibilidades de se garantirem
o respeito e a obediência às leis reais e da religião. Era através do legítimo casamento
“entre iguais”, conforme estabelecido na legislação, que marido e mulher teriam
condições de ajudar na tarefa de povoar as Minas com “homens bons” e, para as
autoridades, uma solução possível para diminuir a desordem e a falta de civilidade.
Conforme Algranti (1997, p. 87), o casamento sacramentado “dignificava as
pessoas”. Ele “conferia status e segurança aos colonos, tornando-o desejável tanto
pelos homens como pelas mulheres”. De acordo com Antunes (2005, p. 48), o valor do
casamento foi difundido e internalizado pela sociedade mineira, que, “de um modo geral,
reconhecia nos casados pessoas de respeito, ciosas de ordem, da moral e dos bons
costumes”.
Nesses termos, para as órfãs das famílias mais abastadas do Termo de Vila
Rica, o casamento era uma possibilidade de serem percebidas como mulheres dignas
de “respeito” e guardiãs dos “bons costumes”. Para as famílias, era uma possibilidade
de garantir a “boa reputação” das filhas e, consequentemente, de todo o grupo familiar,
além de também estabelecer laços sociais, políticos e econômicos. Assim, alimentar a
busca pelo matrimônio legítimo, inclusive estabelecendo contratos com os futuros
noivos, era fundamental.
Ana Rodrigues era irmã de outros oito filhos menores do português José
Marinho de Azevedo. Quando faleceu, José deixou um patrimônio considerável,
constituído especialmente de terras agrícolas, 33 escravos e muito gado, que somados
aos demais bens alcançou a cifra de 13:369$013.
A viúva, Dona Ana Rosa da Cunha, foi nomeada tutora em testamento e,
interessada em não prestar as contas de sua tutoria, comprometeu-se a sustentar, vestir
e educar os filhos à sua custa com a obrigação de entregar as legítimas de todos os
órfãos sem diminuição quando se emancipassem ou se casassem. Por causa disso,
não conseguimos identificar os direcionamentos educativos dados aos filhos.
Entretanto, um requerimento da filha Ana Rodrigues deu-nos indícios da preocupação
em “tomar estado de casada”. Segundo suas palavras, ela se achava “contratada a
receber-se em matrimônio com o Ajudante Francisco Rodrigues de Carvalho sujeito
igual a sua pessoa tanto nas teres como em qualidade” e, como era menor, precisava
da licença do juiz e também de sua tutora. A mãe, por sua vez, certamente ciente desse
151
contrato, fez questão de conceder essa licença, além de reforçar que era muito de seu
“agrado”218. Acreditamos que, ao dar a licença de casamento, ela estava materializando
uma educação dada à filha – de que ela deveria ser esposa.
Nas Minas Gerais, o acúmulo de riqueza possibilitava ainda que mesmo aqueles
sujeitos marcados em sua ascendência pela escravidão galgassem espaços melhores
para os filhos. Antônio Rodrigues Fontes era casado com Quitéria Gonçalves Fontes, e
o seu casal era proprietário de três sítios, uma morada de casas de sobrado no Arraial
de São Bartolomeu, 16 escravos e outros bens que, somados, chegaram a
3:733$780219. Antônio faleceu sem testamento, deixando três filhos, entre os quais um
ainda era menor. Desejosa de assumir a tutela desse filho, Quitéria fez a solicitação da
mercê régia, o que foi aceito, pois, um ano depois do falecimento de seu marido, ela
assinou o termo.
Ao buscarmos informações dos moradores do Arraial de São Bartolomeu nas
listas nominativas de 1831, conseguimos identificar que Quitéria era parda220. Talvez,
na tentativa de escamotear essa informação, não haja nenhuma menção à sua cor no
inventário do marido e no pedido de mercê régia. Tentando, quem sabe, criar melhores
posições para seu filho, que, do mesmo modo que ela, carregava o estigma da cor,
identificamos os esforços de Quitéria para educá-lo. Nas contas apresentadas no ano
de 1827, vimos que Quitéria despendeu com o filho uma quantia de 86$373. Esse valor
era maior que os rendimentos dos bens, que tinham alcançado apenas 79$345; mas o
que mais nos chamou atenção foi que, daquele valor de 86$373, 30$000 tinham sido
gastos com um mestre de ensinar a ler e escrever, o que correspondia a 34,73% do
total.
As contas do ano de 1827 foram as únicas apresentas pela tutora. Assim, não
foi possível identificarmos se o órfão Antônio continuou os estudos e/ou aprendeu algum
ofício mecânico. Entretanto, o fato de a tutora ter direcionado o filho para as letras nos
ajuda a pensar nas possibilidades de trabalho letrado no futuro para o órfão ou mesmo
uma maior habilidade dele para as tarefas ligadas aos negócios da família.
A partir dos casos analisados nesse grupo de maiores patrimônios, percebemos
que houve uma preocupação por parte das tutoras em educar as crianças e jovens sob
sua responsabilidade. Em todos os casos investigados que declararam o tipo de
218
Inventário de José Marinho de Azevedo. AHMINC/IBRAM.2º Ofício, Códice 34, Auto 379, Ano 1815.
219
Inventário de Antônio Rodrigues Fontes. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 18, Auto 169, Ano 1817.
220
Arquivo Público Mineiro (APM). Listas Nominativas, Ouro Preto – 1831. Disponível em
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/ . Acessado em 14-09-2016. As Lista Nominativas eram um relatório
censitário produzido a pedido do presidente da província. Nelas, além da relação nominal dos habitantes,
temos: o número de fogos (casas) de cada localidade, a qualidade da pessoa (cor), a condição (livre, cativa,
exposto, liberto), a idade, estado civil e ocupação.
152
educação dada, as tutoras eram as mães dos órfãos, o que talvez indicasse uma maior
preocupação com o futuro do filho e com a manutenção da posição, ao menos
econômica, da família.
Como acreditávamos, o ensino das letras foi o tipo de educação que esteve mais
presente nesse grupo. Entretanto, como apenas uma tutora direcionou o filho para os
estudos avançados na Universidade de Coimbra, tendemos a pensar que, para a
maioria dos grupos familiares, eram os conhecimentos das primeiras letras somados
aos assuntos ligados aos negócios da família que tinham maior importância.
A fim de melhor evidenciar os tipos de educação que os órfãos receberam
enquanto estiveram sob a tutela das mulheres, segue o gráfico 8 com os dados
quantitativos.
Gráfico 8:
Número de famílias
153
2.6.2 A educação dos órfãos do grupo de patrimônios intermediários
Gráfico 9:
Primeiras Letras 4
"Prendas femininas" 1
0 1 2 3 4 5
Número de famílias
154
A fim de analisarmos essas práticas educativas direcionadas aos órfãos
pertencentes ao grupo de patrimônios intermediários, apresentamos algumas famílias a
seguir.
Como já mencionamos, identificamos apenas uma tutora que deixou indícios do
direcionamento exclusivo dos órfãos para o aprendizado de ofícios mecânicos. Trata-se
de Ana Maria da Silva, filha de João da Silva Barbosa e que foi nomeada tutora de seus
irmãos em testamento, por seu pai acreditar que ela tinha “boa capacidade”. Quando
João faleceu ele já era viúvo, e seis dos oito filhos ainda eram menores. Eles eram
moradores de Vila Rica, e o inventário constituído por seis escravos, muitas joias, louças
da índia e demais bens foi avaliado em 3:091$994 e ½. Ana Maria assinou o termo em
1788 e, seis anos depois, em 1794, apresentou as contas de sua tutela. Nessas contas,
Ana Maria declarou que o órfão mais velho havia se emancipado, e quatro deles
“aplicara a aprender os ofícios de alfaiate e torneiro” nos quais se achavam “exercitados
por serem bem instruídos por seus mestres”221.
A partir das informações dadas por Ana Maria, acreditamos que ela, preocupada
em dar possibilidades de sustento e sobrevivência para seus irmãos, investiu no ensino
de ofícios. Afinal, sendo pai e mãe falecidos, era importante garantir que pudessem “se
arranjar”. Ao mesmo tempo, analisando a idade dos órfãos quando foi aberto o
inventário, todos maiores de nove anos, com exceção de Manoel, a respeito do qual não
consta mais nenhuma informação, é possível que eles já tivessem aprendido as
primeiras letras antes do falecimento do pai, especialmente quando consideramos as
assinaturas e os recibos passados pelos cinco órfãos para a irmã, conforme imagens
abaixo. Em outros termos, acreditamos que eles aprenderam as primeiras letras, mas,
diante das circunstâncias ligadas às necessidades de sobrevivência, a tutora optou por
investir também na educação de ofícios mecânicos.
Fonte: AHMINC/IBRAM (1º Ofício, códice 67, Auto 804, fl. n.c.).
221
Inventário de João da Silva Barbosa. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 67, Auto 804, Ano 1788.
155
Figura 3: Recibos de Antônio, Anacleto e Teodoro
Fonte: AHMINC/IBRAM (1º Ofício, códice 67, Auto 804, fl. n.c.).
Fonte: AHMINC/IBRAM (1º Ofício, códice 67, Auto 804, fl. 108).
Genoveva Sutéria de Jesus, por sua vez, desejosa de ter entre seus filhos um
que se tornasse padre, foi uma que não mediu esforços para alcançar tal objetivo. Ela
tinha sido casada com o Cirurgião-Mor Geraldo Fernandes Santiago, de quem teve sete
filhos, todos menores no momento do falecimento de seu marido. Nomeada em
156
testamento por Geraldo, por considerá-la com “toda suficiência, probidade e
capacidade”, Genoveva assinou o termo de tutoria em 1822. Nesse mesmo ano ela
havia se tornado o “cabeça do casal” e responsável por cuidar de uma herança
composta por dois escravos, casas de morada na Rua do Ouvidor em Vila Rica, uma
livraria e outros bens que, somados, perfizeram um total de 2:007$550. Quatro anos
depois de assinar o referido termo, Genoveva fez o seguinte requerimento ao juiz de
órfãos:
222
Inventário de Geraldo Fernandes Santiago. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 21, Auto 220, Ano
1822
157
— Felício e Francisco — que participaram da “montagem do patrimônio” para Pedro se
ordenar também receberam uma educação voltada para as letras. Os dois, assim como
o pai Geraldo, tornaram-se cirurgiões-mores do Batalhão que estava destacado no Rio
de Janeiro. Felício, que era o segundo filho mais velho, ficou ainda com a livraria do pai,
o que possivelmente o ajudou nos trabalhos desenvolvidos dentro do batalhão.
Outra tutora que também deixou mostras de suas estratégias para educar seu
tutelado foi Francisca Maria da Conceição. Nomeada em testamento por seu marido
Manoel Carreiras da Cruz, ela assinou o termo de tutora de seu único filho em 1772.
Como ela comprou todo o patrimônio do casal quando o marido ainda era vivo, não
temos a descrição dos bens, mas sabemos que atingiu a cifra de 1:172$542 ½. Três
anos depois —1775—, ela foi convocada para apresentar as contas de sua tutela. Além
de apresentar os gastos e rendimentos da herança do órfão, Francisca fez questão de
dar detalhes da educação do filho, declarando que o mesmo estava “em sua companhia
e o trazia na escola e era ainda de pouca idade". Conforme a viúva, o professor de seu
filho era João Lopes da Fonseca, o qual lhe passara um recibo referente ao período que
ensinou a “ler e escrever” ao menor223.
Já no ano de 1779, a viúva, interessada em dar continuidade ao ensino das letras
ao seu filho Manoel, pediu ao juiz que lhe concedesse licença para fazer as despesas
“precisas” com paga de mestre e sustento do filho, que, segundo suas palavras,
inclinava-se “a estudar gramática”. Conforme a tutora, já algum princípio queria “para o
seu adiantamento [do filho] mandá-lo para o estudo do Piranga cujo mestre além da boa
educação que dá aos seus discípulos os instrui bem na língua latina” 224. Parece que o
juiz tinha a mesma opinião da viúva e concordava com o esforço em manter o órfão nos
estudos, pois além de autorizar as “despesas precisas” lhe adjudicou todo o rendimento
das legítimas.
Entretanto, ao que parece, o filho Manoel foi para o Colégio dos Padres do
Sumidouro, também no Termo de Mariana, pois consta uma menção ao pagamento feito
ao “mestre que dá estudo no Sumidouro Joaquim da Cunha Osório para onde mandei
223
Inventário de Manoel Carreiras da Cruz. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 50, Auto 557, Ano 1772.
224
Conforme Fonseca (2009a, p. 154), a Freguesia do Piranga correspondia à Guarapiranga. Não
conseguimos identificar nenhum estudo sobre escolas ou professores de gramática para essa localidade na
data mencionada no requerimento de Francisca Maria da Conceição. Diana Silva (2004, p. 55), ao estudar
sobre O processo de Escolarização no Termo de Mariana (1772 – 1835), destaca que a localidade de
Piranga foi a segunda do Termo de Mariana que contou com uma cadeira de gramática latina, por volta de
1786, paga com a arrecadação do Subsídio Literário. Entretanto, acreditamos que certamente já existiam
professores particulares de gramática latina em Piranga, especialmente em virtude do tamanho populacional
da localidade e sua importância no Termo de Mariana. Conforme Diana Silva (2004, p. 53), Piranga foi
uma localidade de alta contribuição do Subsídio Literário em virtude de sua produção de água ardente.
Além disso era a maior freguesia do Termo de Mariana em 1814. O Subsídio Literário foi um imposto
instituído em 10 de novembro de 1772 que visava financiar a estrutura de ensino concebida por Pombal.
Sua cobrança estendeu-se ao século XIX e incidia sobre a produção de carne, vinho e água ardente.
158
o dito meu filho”225. O envio do filho para o Sumidouro deu-nos mostras dos esforços de
Francisca. Além desse recibo referente aos gastos com ensino e sustento da casa,
identificamos também uma carta do mesmo professor para uma tal Antônia da Rocha
de Jesus. Nela o professor faz menção ao filho de Dona Francisca Maria da Conceição.
Ao que tudo indica, a tutora utilizou-se de suas redes de sociabilidade e todo o capital
social disponível para conseguir uma vaga no colégio do Sumidouro para seu filho. Dizia
a carta:
A viúva sem demora enviou o seu filho para o colégio no Sumidouro, pois o recibo
mencionado acima era referente aos gastos feitos desde junho de 1780. Anexos ao
recibo constam detalhes das despesas feitas durante a estada do filho. Além de roupas
e sapatos necessários, há menção à compra de penas, papéis e os seguintes livros: um
breviário; Virgílio; Horácio; Concílio e Ovídio. Sabemos que ao menos até setembro de
1781 Manoel ainda estava em companhia dos padres Osórios no Sumidouro, pois o
mesmo mestre Joaquim, que havia aceitado a ida do órfão para o colégio enviou uma
carta para a viúva dando notícias e cobrando os valores referentes aos gastos do menor.
Segundo o professor, o estudante vivia “bem-disposto” e cuidava “no seu dever”.
Pelo que podemos perceber, Francisca teve toda diligência para educar seu filho.
Provavelmente, como destacou Fonseca (2014, p. 35), ela vislumbrou que o
investimento na educação de seu filho daria condições para procurar melhores
posições. Não sabemos exatamente qual foi a ocupação do órfão Manoel, mas, com
certeza, todo o investimento nos estudos mais avançados deu a ele algum prestígio.
Afinal, Manoel era detentor de um saber que conferia distinção numa sociedade em que
os sujeitos, quando muito, tinham acesso quase sempre somente ao ensino das
primeiras letras.
Além dos esforços para educar os meninos, identificamos, do mesmo modo que
no grupo 1 —maiores patrimônios —, uma tutora que nos deu indícios das “prendas
225
O Colégio dos Padres Osórios do Sumidouro foi fundado na segunda metade do século XVIII. Ele
funcionava em regime de internato, e seu ensino era limitado às latinidades. Para maiores informações, ver
Villalta (2007, p. 267) e Carrato (1968).
159
femininas” dadas às órfãs sob sua tutela. Maximiana Gonçalves Torres, como já
mencionamos anteriormente, era casada com o músico Francisco Leite Esquerdo. Dos
oito filhos do casal, sete ainda eram menores quando Francisco faleceu. Maximiana foi
nomeada tutora em testamento e assinou o termo de sua tutela em 1809. Cinco anos
depois – 1814 –, ela apresentou as contas de sua tutoria referentes a quatro órfãos, pois
os demais já haviam se emancipado226.
Além de declarar os gastos e rendimentos das legítimas de cada órfão,
apresentou informações sobre a educação deles. Conforme a tutora, todos os menores
estavam em sua companhia, e dois filhos estavam aprendendo a ler e escrever. Já as
duas filhas viviam “com bom comportamento” e as havia empregado a “aprender a coser
e o mais que é próprio e decente a sua pessoa”.
Não conseguimos identificar nenhum caso de meninas no grupo de patrimônios
intermediários que recebeu o ensino de primeiras letras. Acreditamos que, do mesmo
modo como aconteceu no grupo 1 —maiores patrimônios —, a pequena quantidade de
informações sobre esse direcionamento, assim como os demais investimentos na
educação feminina devem-se ao fato de que era mais comum educá-las em casa em
companhia de suas mães, tias, etc.
A partir dos dados a respeito da educação dada aos órfãos pertencentes a esse
grupo — patrimônios intermediários—, percebemos que houve muitos esforços por
parte das tutoras para possibilitarem que seus tutelados e, consequentemente suas
famílias, pudessem almejar melhores condições e, assim, determinada ascensão social.
Entretanto, para algumas tutoras, esse esforço veio acompanhado do empenho em
garantir também meios de sobrevivência, o que representa uma preocupação em
atender às necessidades impostas pelo cotidiano daquela sociedade.
Das 17 tutoras analisadas nesse grupo, sete (41,7%) direcionaram os órfãos em
algum momento de sua tutela para o ensino das letras. E apenas três (17,64%) deram
uma educação voltada para o aprendizado de ofícios mecânicos. Se compararmos com
as tutoras do grupo 1 – maiores patrimônios –, em que sete (58,33%) e três (25%)
mulheres (gráfico 8) orientaram seus esforços para que os órfãos aprendessem as letras
e os ofícios mecânicos, respectivamente, percebemos que no grupo 2 – patrimônios
intermediários – os direcionamentos foram menores.
Entretanto, ao analisarmos os dados separadamente, percebemos que foram as
tutoras do grupo 2 as que mais se preocuparam em enviar seus órfãos para o ensino
das letras mais avançados. Identificamos quatro (23,52%) tutoras nesse grupo que
declararam esse tipo de ensino em suas contas de tutela ou requerimentos presentes
226
Inventário de Francisco Leite Esquerdo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 51, Auto 623, Ano 1809.
160
nos inventários, enquanto no grupo 1 encontramos apenas uma (8,33%). Tais aspectos
revelam-nos a complexidade vivenciada no Termo de Vila Rica, pois eles dão mostras
de um processo educativo que buscava atender a legislação, mas, ao mesmo tempo,
em decorrência das necessidades e da diversidade de pessoas ali existentes,
produziam práticas variadas.
Do mesmo modo como fizemos no grupo 1, criamos um quadro demonstrativo,
que se encontra no Anexo 4 – “Educação Direcionada aos órfãos de patrimônios
intermediários”. Nossa intenção, igualmente, foi apresentarmos os direcionamentos
educativos dados aos órfãos de maneira individual. Acreditamos que o citado quadro
pode ajudar a vislumbrar mais claramente as ações femininas.
Consideramos importante, antes de fecharmos a análise dos sujeitos
pertencentes ao grupo 2 — patrimônios intermediários—, trazermos algumas
considerações sobre o investimento no casamento, como fizemos anteriormente com o
grupo 1 – maiores patrimônios. A finalidade aqui é demonstrar, do mesmo modo, o
casamento como uma possibilidade de ordenar a população, sendo assim uma das
vertentes para a educação. E, ao mesmo tempo, como uma oportunidade de inserção
na sociedade, respeitando o padrão ideal. No grupo 2 identificamos 11 (64,70%) famílias
que promoveram o casamento “à face da Igreja” para seus órfãos.
Dentre as tutoras que se preocuparam em investir suas forças para casar os
órfãos, temos Dona Ponciana Constantina da Silva. Viúva do Capitão Luís Gomes da
Fonseca, ela foi nomeada tutora em testamento dos dois filhos ainda menores.
Moradores de Vila Rica, eram proprietários de nove escravos, algumas cabeças de gado
e mais alguns bens que, somados, alcançaram a cifra de 2:303$008227.
Conforme o título dos herdeiros, a filha Dona Ana Claudina tinha 12 anos de
idade quando foi aberto o inventário. Um ano depois, em 1807, a viúva entrou com um
pedido ao juiz dos órfãos solicitando autorização para casar a filha. Conforme Dona
Ponciana, sua filha já estava com idade suficiente
227
Inventário de Luís Gomes da Fonseca. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 33, Auto 376, Ano 1806.
228
Justificação de Ponciana Constantina Silva para casar sua filha Dona Ana Claudina do Nascimento.
AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 129, Auto 1813, Ano 1807.
161
Pelo que podemos perceber, na visão de Dona Ponciana, o casamento realizado
com uma pessoa de “boa sanguinidade” – conforme as testemunhas ele era filho de
“homem branco” – era uma forma de assegurar à obediência por parte da filha “donzela”
dos preceitos da fé e da lei. Além disso, era uma forma de garantir que alguém pudesse
amparar e manter a sua filha diante das dificuldades financeiras por que estava
passando sua família. O casamento, nesses termos, atendia duas funções importantes
para o futuro da filha229.
Do mesmo modo que as tutoras do grupo 1 —maiores patrimônios —, as
mulheres pertencentes ao grupo 2 — patrimônios intermediários— preocuparam-se em
dar “estado de casado” para os órfãos. Em nosso entendimento, essas mulheres viam
o casamento como possibilidade de maior status e garantia de alianças importantes.
Mas, como observamos, era também uma oportunidade de manter economicamente os
órfãos, já que houve casos em que a família ficou bastante endividada com o
falecimento do pai. Assim, para o grupo 2 — patrimônios intermediários— o casamento
assumiu mais uma função além daquelas buscadas pelas famílias mais abastadas.
O menor número de tutoras que deixaram indícios da educação dada aos órfãos
foi o grupo daquelas pertencentes ao grupo 3 – menores patrimônios. Identificamos
apenas quatro (11,76%) tutoras no conjunto de 33 mulheres. Acreditamos que um
número tão pequeno se deva ao fato de que constituíram as que menos foram
chamadas para apresentar as contas de sua tutela. Como já mencionamos, o valor dos
bens era muito pequeno, e, em virtude das custas do processo, algumas tutoras
conseguiram que os bens não fossem partilhados. Além disso, identificamos algumas
mulheres que simplesmente não responderam à convocação do juiz de órfãos para
trazer as contas de sua tutoria, documentos que, como destacamos, em geral
apresentam mais informações sobre a educação dos menores230.
229
Apesar da aprovação por parte do juízo, no inventário consta um requerimento da viúva, datado de 1809,
no qual menciona que sua filha estava casada com o soldado Francisco José de Lima. Assim, mesmo que,
conforme a avaliação da tutora e das testemunhas, Domingos fosse “um bom partido”, o contrato de
casamento parece que não se concretizou. De qualquer modo, para a viúva, o importante era garantir que a
filha tomasse “estado de casada”, o que foi alcançado. Três anos depois – em 1812 – consta que Dona
Ponciana estava morando no Rio de Janeiro. Nessa data, sua filha já estava casada, e o filho havia se tornado
soldado, o que demonstrava que ela havia atingido seus objetivos de educar e dar condições de
sobrevivência aos filhos.
230
É importante mencionar que as famílias aqui estudadas, ainda que classificadas como possuidoras de
menores patrimônios, não correspondem àquela parcela da população que era mais pobre. Na verdade, esse
grupo não foi abarcado na presente pesquisa. Como já mencionamos, apenas a população que tinha algum
bem era obrigada a fazer inventário. Nesses termos, já estamos trabalhando com uma população
162
Entretanto, ainda que o número identificado seja pequeno, julgamos importante
apresentar as estratégias femininas para educar as crianças e jovens sob sua tutela e
os direcionamentos educativos dados.
Começamos por Maria Coelha de Barros. Ela era casada com o Furriel João
Ferreira da Rocha, de quem teve quatro filhas, concebidas antes do matrimônio e
legitimadas pelo casamento. Além dessas quatro filhas, o falecido era pai de mais um
filho natural, que era seu homônimo. No testamento João nomeou Maria Coelha por
tutora de todos os filhos e declarou que o fazia pela “grande capacidade que tenho
experimentado no decurso de muitos anos”. O furriel fez questão de destacar em várias
partes de seu testamento a pobreza em que vivia sua família e determinou que sua
esposa acabasse de cuidar da testamentaria pertencente à Madalena Ferreira da
Rocha, pois seria da herança proveniente dessa administração que seria possível
satisfazer suas dívidas e deixar algum legado para os filhos. Realmente sua herança
era constituída de sua casa de morada, localizada na Ponte de Antônio Dias em Vila
Rica, um escravo e alguns poucos trastes de casa, que perfaziam um total de
267$525231.
Apesar das dificuldades financeiras pelas quais, segundo o marido, a família
estava passando, Maria Coelho Barros fez questão de investir no aprendizado de um
ofício para suas quatro filhas. Dois anos após o falecimento do marido, Maria Coelha
entrou com um requerimento ao juiz de órfãos em que solicitava o dinheiro que estava
guardado no cofre para comprar roupas para suas filhas. Segundo a tutora, as roupas
seriam para frequentar a casa de mestras que estavam ensinando às suas filhas as
costuras.
Conforme destacou Oliveira (2008, p. 131), o ensino de ofícios como a costura,
considerada uma ocupação lícita e “honesta” para o sexo feminino, era uma forma de
garantir “uma ajuda na renda da família como um todo e até mesmo o ganho do próprio
sustento”. É possível que a tutora Maria Coelha tenha investido na educação de suas
filhas, pois elas poderiam ajudar no sustento e sobrevivência da família, sendo a
ocupação eleita “bem vista pelas autoridades locais”. Tanto foi assim que o juiz,
entendendo a necessidade apontada pela tutora, concedeu o pedido feito e mandou que
fosse entregue a quantia solicitada. Por outro lado, investir na educação das “prendas
femininas” era uma forma de prepará-las para exercer os papéis a elas destinados de
esposa e mãe.
“diferenciada”, ainda que, para os interesses dessa pesquisa, classifiquemos parte da nossa amostra como
possuidores de menores patrimônios
231
Inventário de João Ferreira Rocha. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 108, Auto 1360, Ano 1788
163
Como vimos, ao menos entre as tutoras, todas as mulheres analisadas no grupo
3 —menores patrimônios — eram legitimamente casadas. Isso representa em alguma
medida o aspecto já apontado anteriormente: de que o valor do casamento foi difundido
e internalizado em alguma medida por algumas pessoas daquela sociedade.
Encontramos também nesse grupo uma preocupação em dar “estado de casado”
para sua filha. Trata-se de Maria do Espírito Santo, moradora de Vila Rica e viúva de
Inácio Francisco Xavier, de quem teve duas filhas. Inácio faleceu sem testamento, e,
por causa disso, Maria foi nomeada tutora pelo juiz em 1808. Segundo o juiz de órfãos,
ele a nomeara por “fazer dela bom conceito e saber que cria e está sustentando [os
filhos] com amor e zelo louvável”. O juiz ainda adjudicou à viúva todos os bens do casal,
que eram constituídos unicamente de um escravo avaliado em 130$000. Onze anos
depois dessa nomeação, consta que suas duas filhas estavam casadas com autorização
do juiz232.
A preocupação em garantir que seus tutelados tivessem condições de ganhar o
próprio sustento também se fez presente em relação aos órfãos do sexo masculino.
Uma das tutoras que investiu na aprendizagem de ofícios por parte dos meninos foi
Teresa Ribeiro de Miranda. Mãe de três filhos, todos menores quando seu marido
faleceu, ela era moradora de Vila Rica. Teresa foi nomeada tutora por seu marido
Manoel Pereira Campos. Entre os poucos bens, consta que o casal tinha dois escravos
e uma pequena mina, que em conjunto com algumas ferramentas foram avaliados em
193$275233.
Como era determinado pela legislação, uma vez inventariados os bens, o juiz
determinou que eles fossem colocados em praça para arrematação. Entretanto, em
requerimento, a tutora pediu que um dos escravos – chamado Manoel – não fosse
colocado em praça. Segundo Teresa, era esse escravo que estava servindo de “mestre
de ofício de minerar” para os filhos e, por isso, se fazia muito necessária sua
manutenção. A partir dessa informação apresentada pela tutora, percebemos que as
estratégias para educar seus filhos poderiam partir dos mais diferentes pontos. Teresa
aproveitou-se do próprio escravo para ensinar um ofício aos filhos e dar condições de
sobrevivência aos mesmos234.
Mas a tutora no grupo 3 —menores patrimônios — que mais investiu na
educação de seu tutelado foi Maria de Castro Lima. Assim como algumas mulheres
pertencentes aos outros dois grupos, Maria de Castro Lima possibilitou uma educação
232
Inventário de Inácio Francisco Xavier. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 17, Auto 180, Ano 1808.
233
Inventário de Manoel Pereira Campos. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 47, Auto 527, Ano 1804.
234
Não podemos deixar de considerar também que ao pedir que o escravo não fosse colocado em praça a
tutora estivesse, na verdade, preocupada em não perder a mão de obra e a força de trabalho diária fornecida
pelo cativo.
164
“mista” para seu filho Ventura. Nomeada em testamento por seu marido João Gonçalves
Dias, ela assinou o termo de tutela em 1773. É provável que uma explicação para essa
possibilidade de investimento numa educação “mista” esteja no fato de que, entre as
mulheres pertencentes a esse grupo – menores patrimônios –, era a família de Maria de
Castro que tinha o maior monte-mor — 429$300 — distribuído em algumas ferramentas,
trastes de casa, uma morada de casas no Areão das Cabeças em Vila Rica e um
escravo235.
Maria de Castro Lima foi uma das poucas tutoras que conseguimos identificar
como detentora de mais de uma conta referente à sua tutoria. Foram cinco contas no
total, distribuídas entre 1775 e 1790. Em todas elas, Maria de Castro fez questão de
mencionar a educação dada ao filho Ventura. Assim, nas duas primeiras contas dadas
em 1775 e 1781, declarou que o filho estava na escola “para saber ler e escrever”. Além
disso, afirmou que seu filho estava em sua companhia e que “dava a educação e ensino
que se deve fazer os bons pais de família”. Já nas contas de 1786, 1788 e 1790, reforçou
que o órfão permanecia sob seus cuidados, que era ela quem o sustentava e que o
havia empregado a aprender o ofício de sapateiro. Segundo a tutora, a aprendizagem
do ofício e também das primeiras letras seria para que “em todo o tempo” o filho pudesse
“ter saída e tratar da sua vida”.
Maria de Castro deu claras mostras de seus objetivos ao direcionar seu filho para
que ele pudesse ter acesso a uma educação “mista”. Conforme a tutora, essa forma de
educação seria uma forma de o filho “se arranjar” e “cuidar de sua vida”. Nesses termos,
percebemos que, mesmo no caso do ensino das primeiras letras, a pretensão da tutora
era possibilitar melhores condições para seu tutelado.
A análise dos quatro casos identificados mostrou-nos que no grupo 3 —menores
patrimônios — o investimento na educação foi majoritariamente voltado para o
aprendizado de algum ofício236. Essa constatação já tinha sido observada por outros
autores como Oliveira (2008), Fonseca (2005a) e Paula (2016).
Comparando-se com os outros dois grupos, percebemos que as estratégias das
tutoras para educar os órfãos estavam baseadas nas “cartas” que o jogo social ofereceu.
Entretanto, quando analisamos os direcionamentos dados, percebemos que em todos
os três grupos houve tutoras que investiram tanto na educação das letras quanto no
ensino de ofícios. A diferença que encontramos esteve especialmente nos estudos
avançados, que, no grupo 3, ao que parece, nenhuma tutora teve condições de
proporcionar para seus tutelados. De qualquer modo, percebemos que nos três grupos
235
Inventário de João Gonçalves Dias. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 66, Auto 801, Ano 1772.
236
Para melhor visualização da educação dada a cada um dos órfãos, fizemos um quadro demonstrativo
que se encontra anexado – Anexo 5 – “Educação Direcionada aos órfãos de menores patrimônios”.
165
uma mesma preocupação permeava as ações de algumas das tutoras – garantir que o
órfão conseguisse sobreviver com o próprio trabalho e possibilitar, a partir do acesso às
letras, alguma forma de distinção social.
Do mesmo modo como observou Paula (2016) para o Termo de Mariana,
constatamos que o sexo dos órfãos foi uma variável importante nos direcionamentos
dados à educação dos menores. Vimos que as meninas aprendiam invariavelmente as
“prendas próprias de seu sexo e condição”. Já no que se refere às condições
econômicas, apesar de existir uma propensão a seguir esse fator, consideramos que,
no Termo de Vila Rica, do mesmo modo como apontou Fonseca (2014, p. 34), as
determinações legais eram praticadas com muitas variáveis. Havia uma preocupação
em dar uma educação conforme a condição socioeconômica do menor, mas, ao mesmo
tempo, existiram tutoras que agiram para promover uma educação “mista” para seus
tutelados, o que reflete uma resposta da tutora como jogadora do jogo social numa
sociedade marcada pela diversidade na sua conformação.
166
Capítulo 3
Parcerias que deram certo? – Ajustes entre homens e mulheres para a
educação e conservação dos órfãos
Foi perguntado (...) a ele dito tutor pela pessoa do órfão Basílio e por
ele foi respondido que se achava vivendo na companhia de sua mãe
Efigênia Roseira que o tratava e educava trazendo-o na escola debaixo
da inspeção dele tutor...237
237
Inventário de Manuel Ribeiro Guedes. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 118, Auto 1500, Ano 1788,
fl. 27v.
238
Mesmo nos casos em que o órfão ia morar com o tutor, é possível que ele fosse cuidado por uma mulher
– a esposa do tutor ou uma escrava, por exemplo. Afinal, como apontamos nos capítulos anteriores, era
entendimento do período que o cuidado diário era prerrogativa feminina. Soma-se a isto uma outra forma
de pensar especificamente sobre as meninas: elas deveriam aprender as “prendas próprias de seu sexo” com
uma mulher. Em outros termos, entendemos que essa “divisão de tarefas” entre tutores e o grupo feminino
foi bem maior, apesar de não podermos afirmar em decorrência da ausência de fontes. Essa compreensão
deu-se em decorrência das amostras que analisaremos nesse capítulo, mas também em virtude de uma
167
pagamentos firmados entre o tutor e uma cuidadora239; quando eram parentes240;
quando o tutor assinava o termo de tutoria de maneira coagida241; previamente
combinado entre as partes242; dentre outros.
O objetivo deste capítulo é analisar esses tipos de relações estabelecidas entre
alguns tutores e mulheres. Em nosso entendimento, a constituição de parcerias
configurava-se como uma possibilidade para as mulheres participarem das decisões
ligadas à administração e sobrevivência da família e contribuir na definição do futuro e
educação dos órfãos quando elas não assumiam a tutoria. Nesses termos, as parcerias
poderiam se configurar como uma forma de estratégia para as mulheres.
Para este capítulo, estamos entendendo o termo “parceria” como os ajustes
surgidos entre alguns tutores e mulheres a partir do falecimento do pai do órfão. Esses
ajustes poderiam ser manifestados, como os contratos com criadoras pagas ou
respeitando-se uma organização familiar já existente que não se alterava em
decorrência da morte paterna. Retomando a noção de Bourdieu (2004), essas parcerias
seriam então estratégias na medida em que seriam frutos de decisões explícitas ou
praticadas sem um planejamento prévio entre as partes, mas que permitiam às mulheres
participarem da educação e manutenção de seu grupo familiar.
Podemos dizer que as parcerias surgiam em virtude de uma necessidade
advinda da legislação que obrigava a nomeação de um tutor. Mas não podemos deixar
realidade que será discutida no próximo capítulo a respeito dos expostos. Houve um número significativo
de homens matriculados na Câmara Municipal de Vila Rica que assumiram a criação de enjeitados,
mediante pagamento. Conforme Franco (2014), eles certamente eram casados. Laura de Mello e Souza
(1999) fez as mesmas considerações para a cidade de Mariana do século XVIII e acrescentou que poderiam
ser também senhores de escravos que usavam suas cativas como criadeiras.
239
O Alferes Manoel Dias Monteiro, por exemplo, contratou uma tal de Paula da Costa Guimarães para
cuidar de cinco órfãos, filhos do falecido Alferes Antônio Lopes de Oliveira. Consta que Paula levou todos
os órfãos para sua companhia e que o tutor havia combinado de “assistir com o necessário”. Inventário de
Antônio Lopes de Oliveira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 56, Auto 630, Ano 1816.
240
Dentre as possibilidades: um dos filhos do falecido que assumia a tutoria dos irmãos e ainda morava
com a mãe; o tutor e a mãe do órfão eram irmãos e moravam na mesma casa; o tutor era o padrasto. Antônio
Martins Diniz, por exemplo, era tutor dos órfãos de Antônio Marinho da Cruz. Em um requerimento
existente dentro do inventário deste último, o tutor ressaltou que a mãe dos menores “morava junto com
ele, pois eram irmãos”. Inventário de Antônio Marinho da Cruz. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 56,
Auto 625, Ano 1815, fl. 44.
241
Há vários casos na documentação que evidenciaram como a nomeação de um tutor representava, muitas
vezes, uma tarefa difícil para o juiz de órfãos. Nessas circunstâncias, os homens indicados alegavam
impossibilidades variadas, como já destacamos no capítulo 2 e como, do mesmo modo, foi observado por
Oliveira (2008).
242
João Nunes Maurício Lisboa, por exemplo, foi nomeado tutor de uma exposta chamada Antônia, que
morava na casa de Ana Maria de Faria. A menina havia sido uma das herdeiras de Miguel Moreira Maia,
que lhe deixou em testamento uma casa, que deveria ficar sob os cuidados de Ana Maria até que a menor
tivesse capacidade para cuidar do bem doado. Juntamente ao termo de tutoria que João Nunes assinou
constava a seguinte informação: "Declaro que assina o dito tutor a tutoria sem obrigação alguma de
responder pelos alugueis das ditas casas, mas sim a inventariante [Ana Maria de Faria] que se acha
sustentando e criando a dita órfã, debaixo deste protesto assina o dito tutor e a inventariante..." Inventário
de Miguel Moreira Maia. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 122, Auto 1537, Ano 1812, fl. 06.
168
de considerar também que, em alguns casos, elas ocorriam em decorrência do contexto
existente. Citemos aqui, por exemplo, quando as mulheres eram as inventariantes ou
arrematavam os bens dos menores, o que, consequentemente, provocava a
permanência das legítimas herdadas nas mãos femininas.
Ao analisarmos a documentação, vimos que, a partir das parcerias, os papéis se
imbricavam. Como apresentaremos, era bastante comum as mulheres entrarem em
contato com os juízes de órfãos solicitando dinheiro guardado no cofre do juízo, o que,
em tese, era de obrigação do tutor. Também identificamos prestações de contas de
tutorias declaradas pelo tutor e a mulher, quando sabemos que isso era da obrigação
apenas do primeiro. Sendo assim, para analisá-las, não podemos deixar de considerar
as relações de gênero que se estabeleceram.
Como destacamos na introdução, o “lugar educativo” ocupado pelas mulheres
era dinâmico. Assim sendo, temos que pensar nas relações que se estabeleceram e
que acabaram influenciando as ações femininas. No presente capítulo, especificamente,
temos que considerar as relações constituídas com os tutores que estavam fundadas
nas diferenças entre os sexos: a mulher sendo responsável pelas questões “mais
práticas” da criação e educação dos órfãos; e o tutor, das obrigações “legais”, ligadas
ao poder, em conformidade com Scott (1990).
Nesse sentido, nossa intenção é demonstrar que as parcerias acabaram
permitindo uma releitura da tutoria, na qual os papéis prescritos eram vivenciados
conforme o contexto e as necessidades. Mais do que isto, evidenciar que a tutoria
“compartilhada” permitia um intenso exercício de poder por parte dos tutores e das
mulheres que necessitavam jogar o “jogo social” então existente para alcançar seus
objetivos: no caso dos tutores, não terem problemas com a justiça, correndo o risco de
serem presos ou arcar com possíveis prejuízos das legítimas dos órfãos; já em relação
às mulheres, conseguirem manter a si e a seu grupo familiar, além de promover algum
tipo de educação para os menores como forma de garantir o sustento deles no futuro.
Para realizarmos essa discussão, organizamos este capítulo em quatro partes.
Num primeiro momento vamos apresentar os homens e mulheres que estabeleceram
as parcerias, segundo a documentação investigada. Depois, ater-nos-emos aos motivos
e como se davam as parcerias. É ainda nesta etapa que evidenciaremos algumas
parcerias que não deram certo. Em seguida, nosso interesse é trazermos à luz os tipos
de educação que resultaram desses acordos. Para finalizar o presente capítulo,
consideramos importante trazer a trajetória da família de Dona Josefa de Ávila
Figueiredo. Nossa intenção, a partir dessa família, é tecer um quadro que demonstre de
modo mais particular como a tutoria conferida a um homem não impossibilitava a
169
participação feminina nas questões familiares ligadas à administração dos bens e
educação das crianças e jovens.
170
os menores; no grupo 2 — patrimônios intermediários —, 25; e no grupo 3 —menores
patrimônios —, nove tinham os órfãos em sua companhia.
Gráfico 10
30
2 Não consta essa
20 informação
2
10 25 Órfãos com as mulheres
14 2
0 9
grupo 1
grupo 2
grupo 3
243
Trata-se de Dona Ana Umbelina Marciana de Urzedo, que era casada com o Capitão Domingos
Rodrigues Pinto. Eles não tiveram filhos, mas acolheram uma enjeitada chamada Maria que, no momento
do falecimento do inventariado, estava com 7 anos de idade. Domingos nomeou-a herdeira dos
remanescentes de sua terça. Consta no inventário que Dona Ana continuou com a enjeitada mesmo depois
do falecimento de seu marido. Inventário de Domingos Rodrigues Pinto. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício,
Códice 36, Auto 447, Ano 1818
171
tutor ou mesmo pelo pai dos órfãos, mas que ainda estavam com os menores: uma no
grupo 1, uma no grupo 2 e duas no grupo 3. As outras três mulheres eram todas
pertencentes ao grupo 2, sendo: uma tia dos órfãos; uma irmã e a última era a mãe
legítima do menor, mas ela era a nora do inventariado.
Diante desses dados, podemos dizer que 11 mulheres – as oito mães naturais,
aquela que estava com a órfã enjeitada e as três parentes consanguíneas do menor –,
caso desejassem ser tutoras, dependiam de uma nomeação feita pelo falecido ou pelo
juiz de órfãos, o que não aconteceu244. Já as outras quatro mulheres tinham uma relação
de outra natureza, mediante pagamentos, e, por isso, acreditamos que não era de seu
interesse pedirem a tutoria.
Mas e as outras 39 mulheres que eram casadas com o falecido pai? Para buscar
entender os motivos para não terem assumido a tutoria, analisamos dois aspectos: qual
era a relação de parentesco existente entre os órfãos e os tutores e quantos homens
haviam sido nomeados pelos pais em testamento.
Primeiramente, tentamos identificar as nomeações testamentárias e
percebemos que, nas tutorias com a participação da esposa do falecido, apenas uma
teve o tutor nomeado pelo inventariado. Trata-se do Alferes Manoel Coelho Rodrigues,
que era casado com Dona Josefa de Ávila e Silva. Dos nove filhos do casal, seis ainda
eram menores quando Manoel faleceu. Em seu testamento, ele elegeu o genro, o
Capitão Luiz Lobo Leite Pereira, para assumir a tutoria245.
Esse número tão baixo levou-nos a outro ponto. Na verdade, o número de
homens casados que faleceram com testamento era muito pequeno. De um total de 39
documentos em que identificamos uma parceria entre os tutores e a esposa do falecido,
apenas 11 (28,20%) deles tinham o testamento do inventariado, sendo a maioria no
grupo 1 – maiores patrimônios – com seis testadores casados; no grupo 2 – patrimônios
intermediários – quatro maridos deixaram seus últimos legados; e finalmente no grupo
3 – menores patrimônios – apenas um deixou suas disposições testamentárias. Tais
dados demonstraram que a opção por um homem como tutor não foi, na maioria das
vezes, uma escolha dos pais dos órfãos, e, sim, dos juízes.
244
Apesar de as Ordenações Filipinas não mencionarem que apenas as mulheres legitimamente casadas
poderiam solicitar a função de tutor, os requisitos para assumir a função deixam entrever essa interpretação.
Nessa legislação, dentre os elementos condicionantes para ser tutora, a mulher não poderia ter se casado
novamente. Dessas mães naturais, apenas uma foi nomeada em testamento pelo pai. Trata-se de Dona
Francisca de Almeida Pinta, que teve dois filhos com o negociante e português Jerônimo Ferreira de Souza.
Entretanto, o juiz de órfãos optou por nomear o Alferes Manoel Pinto Cardoso, sem nenhuma justificativa
no inventário para essa alteração. Apesar disso, os dois órfãos permaneceram com a mãe, conforme
informação do tutor. Inventário de Jerônimo Ferreira de Souza. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 72,
Auto 858, 1793.
245
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777.
172
Entretanto, um caso específico pertencente ao grupo 1 chamou-nos a atenção.
Antônia da Rocha de Jesus era casada com o português Francisco de Almeida Pinto.
Em seu testamento feito em 1774, Francisco elegeu sua esposa para assumir a tutoria
dos quatro filhos, que ainda eram menores. Todavia, Antônia declarou ao juiz que não
queria assumir tal encargo e pediu a nomeação de outro que fosse "capaz". Nesses
termos o juiz escolheu o genro da viúva. O detalhe importante foi que ela permaneceu
com os órfãos e administrando os seus bens, conforme declarou o irmão da viúva 246.
Diante dessa situação acima apresentada, passamos a tentar identificar qual era
a relação de parentesco entre os tutores que estabeleceram a parceria e os órfãos.
Nossa hipótese era que, apesar de a maioria das mulheres serem as mães dos
menores, para o juiz de órfãos um parente do sexo masculino seria preferível. Talvez,
na avaliação dos magistrados, eles fossem considerados mais capazes para o exercício
da função. Ao mesmo tempo, acreditávamos que algumas mulheres tivessem o mesmo
entendimento e preferissem que algum parente ficasse com a obrigação legal de
responder às questões jurídicas, já que num total de 47 mães – somando-se as legítimas
e as naturais – apenas quatro (8,51%) fizeram a solicitação da tutoria assumindo o cargo
posteriormente.
Como já mencionamos, selecionamos 54 inventários para o estudo mais
verticalizado. Desse total de documentos, houve casos em que ocorreu mais de uma
nomeação de tutor247. Sendo assim, tivemos 76 tutores: 19 no grupo 1 —maiores
patrimônios; 43 no grupo 2 — patrimônios intermediários; e 14 no grupo 3 —menores
patrimônios.
A partir da análise dos dados, percebemos que a maioria dos homens eleitos
para assumir a tutoria dos órfãos não era de parentes dos menores248. Em outros
termos, a nossa hipótese de que haveria uma preferência por um homem pertencente
ao grupo familiar do menor nas nomeações feitas pelo juiz de órfãos não se confirmou.
Na verdade, apenas no grupo 1 – maiores patrimônios – foi que essa proposição
aconteceu. Isso porque, dos 19 tutores, apenas cinco (26,31%) não tinham uma relação
declarada de parentesco com o menor. Já no grupo 2 – patrimônios intermediários –, o
número de tutores que não mencionaram alguma consanguinidade com seus tutelados
chegou a 25 (58,14%) de um total de 43. E no grupo 3 – menores patrimônios – apenas
três (21,42%) dos 14 tutores eram parentes dos órfãos. No quadro 4 apresentamos de
246
Inventário de Francisco de Almeida Pinto. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 58, Auto 696, 1774.
247
No capítulo 2 explicamos como acontecia a nomeação dos tutores, prazos e pedidos de desoneração da
função.
248
Incluímos nessa variável também aqueles homens que tiveram alguma relação próxima da família e que
foram mencionados no inventário, tais como: vizinhos, sócios do falecido, padrasto e agregados que
moravam com a família.
173
modo detalhado os vínculos familiares identificados na documentação entre os tutores
e os órfãos.
Quadro 4:
RELAÇÃO DE PARENTESCO DO TUTOR COM O TUTELADO
Grupo 1 Grupo 2 Grupo 3
Tio 4 6 2
Irmão 5 3 1
Cunhado 2 4
Avô 1 2
Agregado da família 1
Vizinho 1
Sócio 1
Padrasto 2
Não consta Informação 5 25 11
Total 19 43 14
Fonte: Banco de Dados da Pesquisa
249
Nenhum dos tutores que eram também parentes dos órfãos se negou a assinar o termo de tutor quando
foi convocado.
174
escrivão, eles tinham sido nomeados porque não havia nenhum parente para assumir a
função250.
Havia situações ainda nas quais o parente não era considerado uma pessoa
“digna” para assumir a função. José Teixeira, por exemplo, havia sido convocado para
assinar o termo de tutoria dos órfãos do falecido Manoel Ferreira da Silva. Entretanto,
conforme informação do escrivão, ele não trabalhava e, por isso, não pôde assumir tal
encargo251.
De qualquer modo, mesmo nos casos em que não existia uma relação de
parentesco, é possível que houvesse uma concordância por parte das mulheres sobre
a pessoa eleita. Defendemos essa possibilidade primeiro porque algumas mulheres
pediram a substituição do tutor nomeado pelo juiz de órfãos quando eles não “atendiam”
aos requisitos que elas consideravam importantes. Maria Francisca da cruz, “mulher
branca e solteira”, era a mãe de Boaventura, filho do falecido Custódio José de Araújo,
que faleceu em 1780, mesmo ano em que o inventariante, pai de Maria Francisca,
assinou o termo de tutoria. Como ele estava ausente, o juiz de órfãos determinou que
um tal de Leandro Moreira de Araújo, homem pardo e estranho ao grupo familiar,
ocupasse a função. Maria Francisca, por sua vez, não concordando com a nomeação
de um “homem pardo”, pediu que a tutoria fosse transferida para João da Costa Soares,
“homem branco”, o que foi atendido pelo juiz252.
Além disso, houve outras situações em que algumas mulheres indicaram os
homens que deveriam assumir a tutoria dos menores de seu grupo familiar, o que era
sempre aceito pelo juiz. Ana Francisca Pereira, por exemplo, era viúva de Manoel Lopes
da Lavra. Eles tiveram três filhos, e, para assumir a função de tutor, a esposa indicou o
Alferes Antônio Alves Passos, que, segundo suas próprias palavras, era pessoa de
“reconhecida capacidade e abonação e morador no mesmo Arraial [de São
Bartolomeu]..."253. Tal sugestão foi aceita pelo juiz, e o Alferes Antônio assinou o termo
em 1821.
Para além dessa questão, os dados analisados ajudaram-nos a perceber que,
mesmo entre aqueles tutores a respeito dos quais não identificamos nenhuma relação
de parentesco, ainda assim parecia existir um interesse em estabelecer as parcerias.
Provavelmente isso estava relacionado com a possibilidade de diminuir os encargos da
função como, por exemplo, levar os órfãos para sua companhia e sustentá-los à sua
custa. Afinal, como destacamos no capítulo 2, nem sempre os bens dos menores eram
250
Inventário de Jerônimo Ferreira de Souza. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 72, Auto 858, 1793.
251
Inventário de Manoel Ferreira da Silva. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 36, Auto 397, 1799.
252
Inventário de Custódio José de Araújo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 29, Auto 315, 1780.
253
Inventário de Manoel Lopes da Lavra. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 122, Auto 1531, 1819.
175
rentáveis e, quando era esse o caso, a obrigação dos encargos da criação acabava
ficando com o tutor.
Finalmente, não podemos deixar de considerar algumas parcerias que, em
alguma medida, acabavam sendo estabelecidas a partir de uma imposição por parte do
juiz. Como já abordamos em capítulo anterior, na documentação investigada, muitos
inventários não contêm um tutor nomeado para os órfãos. Muitos homens, uma vez
citados para assinar o termo de tutor, alegavam motivos diversos para não ocupar o
cargo, esquivando-se da função. Outros, não conseguindo provar os “impedimentos”
declarados, acabavam sendo constrangidos. Nestes casos, acreditamos que a tutela
era certamente negociada, ocorrendo a partilha das funções. O já mencionado João
Nunes Maurício Lisboa, por exemplo, assinou o termo de tutor da exposta Antônia
apenas depois de constar que ele não teria que responder pelas legítimas dessa menor.
Essa obrigação seria da cuidadora, que já estava sustentando e criando a exposta
Antônia254.
Uma vez definidos esses aspectos, o próximo passo foi a identificação do local
de moradia dos inventariados (quadro 5). Como a legislação determinava que o tutor
deveria ser da mesma localidade que seu tutelado, acreditamos que esse mapeamento
nos ajudaria a definir se as parcerias ocorriam mais na sede do Termo de Vila Rica,
onde havia uma maior circulação de pessoas, ou nos arraiais.
Quadro 5:
Locais de moradia identificados nos inventários
GRUPO 1 GRUPO 2 GRUPO 3
Sede do Termo: Nossa Senhora do Pilar + Nossa
Senhora da Conceição de Antonio Dias 5 17 9
Capelas (próximas à sede):
Capela do Morro de Santana e Piedade 2
Morro do Taquaral 1
Arraiais:
Cachoeira do Campo 4
Itabira do Campo 1
Lavras Novas 2
Ouro Branco 1 1
São Bartolomeu 1
Casa Branca 1
Congonhas do Campo 6
Itaverava 1
Capão do Lana 1
Suaçuí 1
TOTAL 16 27 11
Fonte: Banco de Dados da Pesquisa
254
Inventário de Miguel Moreira Maia. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 122, Auto 1537, Ano 1812.
176
Os dados presentes nos inventários revelaram que a maioria dos inventariados
morava na sede do Termo de Vila Rica – 31 ou 57,41%: cinco do grupo 1 —maiores
patrimônios; 17 do grupo 2 — patrimônios intermediários— e nove do grupo 3 —
menores patrimônios —, como podemos ver no quadro 5.
Entretanto, quando analisamos os grupos em separado, percebemos que, no
grupo 1, outro local importante foi o Arraial de Congonhas do Campo, onde seis
(37,50%) dos 16 inventariados indicaram-no como lugar de residência, quantidade
acima daqueles que declararam como moradia a sede do Termo. Já no grupo 2, além
da sede, o Arraial de Cachoeira do Campo apareceu como um lugar de destaque, já
que quatro (14,81%) inventariados pertencentes a esse grupo indicaram-no como local
de moradia.
Finalmente, estabelecido o perfil das mulheres e alguns dados que nos ajudaram
a conhecer sobre os órfãos e suas famílias, restavam ainda os tutores. Como vimos,
muitos deles estabeleceram algum tipo de parentesco com os órfãos. Mas qual era a
ocupação deles? Possuíam alguma patente militar? Qual era a "qualidade e condição"
deles?
Como já destacamos no capítulo 2, de acordo com as Ordenações Filipinas, para
ser nomeado tutor era necessário que fosse um parente mais próximo ou "um homem
bom do lugar"255. Pensando nisso, nossa hipótese era de que aqueles eleitos pelo juiz
de órfãos seriam homens respeitados nos lugares onde moravam e com condições para
assumir a responsabilidade da educação e cuidado do menor e também sobre os bens
destes. A tutoria gerava grande encargo, já que a cada dois anos deveriam ser
prestadas contas dessa função, e uma má administração poderia equivaler a grandes
perdas para os menores e bens.
A maioria dos tutores não nos deixou qualquer dado que nos ajudasse a
identificá-los como "homens bons do lugar". De um total de 76 tutorias masculinas com
participação feminina, apenas 31 (40,79%) continham informações sobre a ocupação
desses homens ou a menção a patentes militares que porventura possuíssem256.
Conforme detalhamos no quadro 6, a maioria informou-nos que eram detentores
de alguma patente militar – 24 no total. Já em relação à ocupação, nove tutores
declararam as atividades que exerciam: três padres; um médico; um solicitador de
255
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 102, § 7.
256
Um dos tutores era solicitador de causas e alferes. Nesse caso contabilizamos apenas uma vez. Trata-se
do tutor Manoel Pinto Cardoso, que assinou o termo de tutoria dos órfãos de Jerônimo Ferreira de Souza.
Esse documento, para os interesses dessa pesquisa, foi classificado como pertencente ao grupo 2 –
patrimônios intermediários. Inventário de Jerônimo Ferreira de Souza. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício,
Códice 72, Auto 858, Ano 1793.
177
causas e dois negociantes. Sendo assim, podemos dizer que ao menos aqueles 31
homens possuíam cargos e patentes que lhes davam determinado status, conferindo-
lhes a prerrogativa de “homens bons”.
Quadro 6:
Identificação de patentes e ocupações:
257
Inventário de Manuel Vieira. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 123, Auto 1542, 1786.
258
Inventário de Custódio José de Araújo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 29, Auto 315, 1780.
178
uma filha natural com a crioula forra Luzia das Neves, e o juiz elegeu Francisco para
tutor259.
Como houve poucos tutores que nos deixaram a informação a respeito de sua
qualidade e condição, entendemos que muitos deles agiram dessa maneira na tentativa
de galgar um melhor status. Conforme o entendimento do período, o "branqueamento"
era uma forma de alcançar determinado status social260. Diante disso, acreditamos que
um número tão pequeno de tutores informando sua "qualidade e condição" poderia
significar que alguns homens preferiram não mencionar tais dados como parte da
construção da imagem de "homem bom do lugar".
Os elementos analisados até aqui ajudaram-nos a construir um quadro sobre
esses sujeitos – homens e mulheres – que acabaram transformando a relação que
possuíam – de parentes, conhecidos, vizinhos, dentre outros – numa parceria para reger
a tutoria de algumas crianças e jovens do Termo de Vila Rica. A partir desse quadro,
buscamos então pensar de que maneira esses “arranjos” foram estabelecidos e, mais
do que isso, como eles puderam ser utilizados pelas mulheres para participar das
questões ligadas à sobrevivência da família e da definição da educação dos menores,
elementos que iremos discutir a seguir.
259
Inventário de Manoel Pinto Brandão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 40, Auto 461, 1810.
260
Sobre branqueamento, ver PAIVA (2001)
261
Apenas reforçando, devemos lembrar que, como destacamos no capítulo 2, quando uma mulher não era
nomeada pelo pai do órfão em testamento e, ainda assim, desejava assumir a tutoria do menor, ela deveria
solicitar tal encargo. Para isso, dependendo do valor das legítimas, era necessário recorrer à provisão régia,
o que representava despender de recursos e tempo, pois era preciso abrir um processo no qual haveria uma
avaliação da capacidade da mulher para assumir ou não a tutoria. Além disso, essa possibilidade era restrita
às mães e avós. Diante disso, entendemos que é possível que algumas mulheres preferissem estabelecer
uma parceria, na qual ela teria condições de participar da administração dos bens e educação dos órfãos,
mas sem a necessidade de recorrer aos trâmites legais. E, para isso, concordavam com as nomeações feitas
pelo juiz de órfãos. Por outro lado, para aquelas mulheres cuja nomeação, feita em testamento, não foi
aprovada pelo juiz de órfãos, como já destacamos, o estabelecimento das parcerias provavelmente se
configurava como a única oportunidade para estar com os menores e manter os meios para o sustento
próprio e da família.
179
Entretanto, para além das causas das parcerias, a partir das informações
presentes na documentação podemos trazer alguns indícios sobre o modo como elas
se deram, isto é, as circunstâncias que promoveram uma espécie de “contrato” entre os
tutores e algumas mulheres.
Na documentação investigada, foi possível perceber que havia algumas ações
femininas que acabavam facilitando essas parcerias. De um modo geral, essas ações
acabavam convergindo para um mesmo resultado: a manutenção dos bens sob a
responsabilidade da mulher e também o compromisso por parte delas pelo sustento,
criação e educação dos menores. Podemos destacar, por exemplo, a arrematação das
legítimas dos órfãos; a compra da parte dos bens que pertencia ao marido; as mulheres
tornavam-se depositárias da parte que cabia aos menores, dentre outros.
Como vimos no capítulo anterior, algumas dessas mesmas práticas foram
comuns também quando as mulheres assumiram a tutoria. Entretanto, se na condição
de tutoras tais ações possibilitavam uma maior autonomia no exercício da função, na
questão aqui analisada entendemos que elas ajudavam a criar condições para que as
mulheres mantivessem ou até mesmo aumentassem a participação nas decisões sobre
a educação e administração dos menores e seus bens.
Assim, buscamos mapear cada uma dessas operações. Iniciamos pela
arrematação dos bens dos menores. De um total de 54 mulheres, 13 (24,07%) utilizaram
essa estratégia e, detalhe importante, mantiveram os órfãos sob seus cuidados262. O
grupo em que identificamos a maior quantidade de arrematações foi no primeiro –
maiores patrimônios –, em que seis (37,50%) mulheres de um total de 16 compraram a
parte de seus filhos que havia sido colocada em praça pública. No segundo e terceiro
grupos – patrimônios intermediários e menores patrimônios – respectivamente, essa
prática já foi menos utilizada, pois das 27 mulheres pertencentes ao grupo 2, apenas
cinco (18,52%) agiram dessa mesma maneira; e no grupo 3, foram somente duas
(18,18%) das 11 mulheres.
Essa mesma realidade repetiu-se quando eram tutoras, ou seja, foram as
mulheres pertencentes ao grupo 1 – maiores patrimônios – que tiveram maiores
condições de comprar a parte de seus filhos, impedindo que a herança do grupo familiar
fosse dissipada. É possível que, como aconteceu no caso das tutoras, quando as
mulheres eram partícipes, o valor dos bens daquelas que pertenciam aos demais grupos
fosse um impeditivo para algumas transações, já que não seria suficiente para a
262
Na verdade, foi a manutenção do menor sob os seus cuidados que diferenciou a arrematação por parte
das mulheres, se comparada a outros arrematantes. Consideramos importante destacar esse aspecto porque
a arrematação era prática comum no período, mas, ao assumir a obrigação de manter e educar o órfão, as
mulheres acabavam facilitando a parceria.
180
garantia. De qualquer modo, em todos os grupos, havia mulheres que pareciam
acreditar que esse tipo de estratégia garantiria a manutenção de sua família, seja no
que se refere à posse dos bens, seja na conservação de todos os membros sob o
mesmo teto.
Esse é pelo menos o entendimento quando nos deparamos com requerimentos
como o elaborado por Dona Joana Bernarda Manso de Castro. Viúva do Sargento-mor
José Luís Saião, ela era mãe de seis filhos, todos menores quando o pai faleceu. Para
ocupar a função de tutor foi nomeado o tio, o Dr. Manoel Joaquim Marreiros. Dona
Joana, por sua vez, interessada em arrematar os bens dos filhos, entrou com o
requerimento pedindo autorização para o juiz de órfãos. Segundo suas próprias
palavras, os bens estavam colocados em praça e, como seria “grande o prejuízo” caso
fossem “desunidos”, era pretensão da suplicante “rematar a totalidade da meação dos
bens”, pois “conservando-se juntos prometem mais segura subsistência e manutenção
para os mesmos órfãos sem deterioração de suas pequenas legítimas”. Em
contrapartida, ela se obrigava a sustentar seus filhos “enquanto não forem hábeis a
receber as suas respectivas partes”, alimentando-os, curando-os e fazendo “todas as
despesas necessárias para a criação e honesta educação dos mesmos órfãos"263.
Os bens pertencentes a esse casal eram constituídos de muitas joias, louças,
quadros, liteira, moradas de casa e 40 escravos que, somados, alcançaram o valor de
9:862$341. Por causa disso, para os interesses desta pesquisa, entendemos que esse
casal fazia parte do grupo 1 – maiores patrimônios. Em resposta ao desejo manifestado
pela viúva de comprar a parte que cabia aos filhos, o tutor concordou e declarou ainda
que permitia tal transação em decorrência da “reconhecida capacidade da suplicante".
Mas, se a possibilidade de arrematação não era uma realidade vivenciada por
todas as mulheres, havia ainda aquelas que buscavam outras formas de manter todos
os bens nas mãos de seu grupo familiar. Estamos nos referindo aqui àquelas mulheres
que entraram com requerimentos solicitando que os bens não fossem arrematados. Ao
menos duas mulheres no grupo 2 – patrimônios intermediários – fizeram esse tipo de
pedido.
Dona Teresa Emerenciana Pereira, por exemplo, era viúva do Alferes Antônio
Rodrigues Pereira Taborda, do qual teve dois filhos. O tutor dos órfãos era o Ajudante
Miguel Dionizio Vale, que assinou o termo em 1809. Conforme requerimento feito pela
viúva e existente no inventário do falecido, ela, enquanto “cabeça do casal”, havia sido
citada para colocar em praça os bens de seus dois filhos, bens que deveriam ser
vendidos e seu produto recolhido no cofre do juízo. Entretanto, para a viúva, ainda que
263
Inventário de José Luís Saião. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 28, Auto 312, 1790, fl. 75.
181
isso fosse “conveniente há justa causa noutras circunstâncias”. De acordo com a
suplicante, tal procedimento só iria empobrecer mais o casal, “se ele ainda mais pobre
pode ser” e, sendo assim, entendia que era mais justa a conservação dos bens, pois
eram pessoas “nobilitadas, seguem os estudos e não tem outra renda, nem lhes
chegaria para nada o juro do produto”. Diante desses argumentos, ela “implorava a
piedade e justiça” do juiz de órfãos para que a venda fosse suspensa e que todos os
bens fossem conservados no governo da suplicante, o que foi atendido pelo
magistrado264.
Se os pedidos como esse feito por Dona Teresa acabavam possibilitando que
os bens dos menores fossem mantidos no seio da família, outras práticas, como já
destacamos, acabavam produzindo o mesmo efeito. Houve, por exemplo, alguns casos
em que as mulheres compravam a parte que pertencia ao marido antes que estes
falecessem. Identificamos essa prática nos três grupos analisados. Entretanto, ela foi
mais comum entre as mulheres do grupo 1 —maiores patrimônios —, em que três delas
declararam que haviam se tornado proprietárias da parte que cabia aos maridos. Já nos
outros dois grupos, identificamos apenas um caso em cada um deles.
Apesar dessa pequena quantidade, entendemos que esse tipo de prática poderia
ser importante para algumas mulheres, porque a possibilidade da manutenção do
conjunto dos bens não dependia mais da aprovação dos juízes de órfãos. Por outro
lado, a documentação confirmou um aspecto já destacado: que essas mulheres, ao
realizarem esse tipo de transação, acabavam assumindo o compromisso de sustentar,
educar e cuidar dos órfãos. Além disso, que a partilha das posses ficava apenas para
depois da morte da mulher, garantindo assim o conjunto dos bens para a manutenção
da família.
Finalmente, houve algumas mulheres que se tornaram depositárias dos bens de
seus filhos. Tal situação ocorria principalmente quando os bens de raiz não eram
rendosos ou eram de pouca monta impedindo a divisão265. João Mendes de Matos
Teodoro, por exemplo, era tutor dos órfãos do falecido José Rodrigues da Silva,
pertencente ao grupo 3 – menores patrimônios. Segundo a sua declaração, todos os
bens estavam com a viúva – Brígida Francisca de Lima – e eles eram constituídos
apenas de um pequeno rancho, poucas cabeças de gado, alguns trastes de casa e um
264
Inventário de Antônio Rodrigues Pereira Taborda. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 01, Auto 08,
1809, fl. 29.
265
Explicamos no capítulo 2 que os bens imóveis não eram colocados em praça. Eles deveriam ficar sob a
responsabilidade do tutor, que era obrigado a apresentar os rendimentos que porventura houvesse na
prestação de contas da tutoria, e esses lucros eram posteriormente colocados no cofre do juízo.
182
escravo. Como essas posses não rendiam nada, elas foram entregues para a viúva no
intuito de ajudá-la com as despesas266.
Micaela dos Anjos Gonçalves Lima, por sua vez, havia sido contratada pelo
inventariado Florêncio José Ferreira Coutinho para cuidar de suas duas filhas naturais
e, mesmo depois do falecimento dele, consta no inventário que as meninas continuaram
com a cuidadora. Como elas eram menores, foi necessária a nomeação de um tutor.
Francisco Ferreira Coutinho, que era tio das duas órfãs, assinou o termo em 1820.
Apesar dessa nomeação e da relação de parentesco existente entre o tutor e as
meninas, há a menção no inventário de que Micaela se tornou a “fiel depositária dos
bens”, não ocorrendo a partilha de um monte que tinha alcançado o valor de 176$310267.
Como vimos a partir da documentação, esse tipo de prática – tornar a mulher a
fiel depositária – era mais comum no grupo 3 – menores patrimônios. Acreditamos que
isso se devia à própria realidade vivenciada por este grupo, que teoricamente precisava
encontrar meios para a sobrevivência; e separar os bens ou vendê-los só aumentaria
as dificuldades dessas famílias. Por outro lado, a maioria dessas mulheres não teria
condições de arcar financeiramente com outra prática, como por exemplo, a compra dos
bens.
De qualquer modo, independentemente das ações promovidas pelas mulheres
e do fato de que algumas dessas práticas foram mais comuns em grupos sociais
específicos, podemos dizer que elas acabavam desonerando o tutor. E, em nosso
entendimento, isto acabava sendo interessante para os homens, que se tornavam uma
espécie de “fiscais” das ações femininas. Já para as mulheres, determinadas práticas
existentes nos inventários revelaram-se como uma oportunidade para uma maior
participação das mesmas na educação e administração de seu grupo familiar.
Para além dessa questão, acreditamos que, quando existiam atitudes como
essas apresentadas acima, as mulheres aumentavam seus espaços de manobra,
especialmente na administração dos bens. Entretanto, mesmo entre aquelas a respeito
das quais não identificamos nenhuma prática de natureza semelhantes àquelas
mencionadas, ainda assim havia possibilidades de participação.
Estamos dizendo isso porque mesmo aquelas que não buscaram assumir a
posse dos bens “legalmente” ainda assim tiveram oportunidades de intervenção,
especialmente na educação e criação dos órfãos. Afinal, como já apontado
anteriormente, de um total de 54 mulheres, ao menos 48 (88,88%) estavam com os
266
Inventário de José Rodrigues da Silva. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 81, Auto 989, 1817.
267
Inventário de Florêncio José Ferreira Coutinho. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 54, Auto 644,
1820.
183
menores — número muito maior do que aquelas que buscaram formas de tomar posse
dos bens dos órfãos.
O compartilhamento das obrigações referentes à tutoria acabava tomando
contornos particulares, conforme o tutor e a mulher envolvida, além da necessidade
vivenciada. Analisando a documentação foi possível perceber que alguns homens
dividiam com as mulheres as mais diferentes tarefas, como, por exemplo, a prestação
de contas da tutoria ou a definição dos investimentos com vestuário, alimentação e,
especialmente, a educação dos menores, dentre outros. Em outros termos, podemos
dizer que ocorreu inclusive uma sobreposição de papéis tornando algumas ações, que
porventura fossem entendidas de apenas uma das partes, tarefa dos dois.
A parceria estabelecida entre Dona Teresa de Jesus e o padre Antônio Ribeiro
de Azevedo é um bom exemplo dessa divisão e sobreposição das tarefas. Dona Teresa
era viúva do Tenente José Francisco de Sá Mourão, de quem teve cinco filhos, todos
menores quando seu marido faleceu. O casal era proprietário de terras de mineração,
alguns bens de raiz, joias, certos trastes de menor valor e mais 14 escravos que, em
seu conjunto, foram avaliados em 9:130$622, permitindo que esta família fosse
classificada como pertencente ao grupo 1 – maiores patrimônios.
Pelos indícios presentes no inventário, acreditamos que a “sociedade” entre
Dona Teresa e o tutor, o padre Antônio, foi previamente acordada. O mencionado padre
assumiu a função depois que Dona Teresa pediu ao juiz de órfãos que o primeiro tutor
nomeado – o Tenente Diogo da Silva Ribeiro – fosse destituído do cargo por não atender
a alguns requisitos importantes, na avaliação da viúva268. Segundo a declaração de
Dona Teresa, o padre, “para a beneficiar e favorecer a seus filhos, se ofereceu” para
assumir a tutoria. Ela, por seu turno, entendia que o mesmo tinha todas as qualidades
para ser tutor, situação que lhe traria “grande felicidade”, pois, além de ser um “sujeito
de toda abonação”, ele tinha “capacidade e parentesco espiritual como compadre”.
Sendo assim, ele assinou o termo em 1784269.
A partir daí, os vestígios deixados revelaram uma parceria que ao que parece
deu certo. Seguindo os mesmos moldes vivenciados nesses tipos de “arranjos”, Dona
Teresa ficou responsável pela criação e educação dos órfãos, mantendo os filhos sob
seus cuidados, enquanto o tutor respondia pelas questões legais. Entretanto, além de
vivenciarem essa espécie de combinado que, como já destacamos, foi bastante comum,
vimos que essa “divisão” nem sempre foi respeitada, pois a viúva se fez presente em
várias situações de contato com a justiça.
268
Trataremos sobre esse aspecto mais à frente quando faremos algumas considerações sobre as parcerias
que não deram certo.
269
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 34, Auto 381, 1783.
184
Citemos aqui dois exemplos. O primeiro deles foi o consentimento por parte da
viúva dos pagamentos feitos pelo tutor, aprovação que Dona Teresa teve que fazer na
presença do juiz de órfãos e através de termo assinado. Já o segundo foi a prestação
de contas que foi dada pelo padre e a viúva no ano de 1785. Nestas contas, além do
reconhecimento dos gastos a partir da assinatura de ambos, consta que foram eles que
venderam um cavalo ou que os dois haviam feito a cobrança dos devedores, dentre
outras ações. A demonstração dessa união, em nosso entendimento, parecia buscar,
de um lado, uma forma de dar mais veracidade para as informações prestadas, como
uma tentativa de manifestar que os gastos e investimentos realizados foram necessários
na opinião de ambas as partes. Mas, ao mesmo tempo, revelava que, em alguns
momentos, ocorria uma sobreposição de papéis, pois a viúva se fez presente em
situações que teoricamente eram de responsabilidade apenas do tutor.
Além de situações como essa apresentada, os inventários revelaram outras
práticas em que as parcerias estabelecidas pareciam ser marcadas por um jogo que a
todo instante era acionado conforme os interesses existentes. Esse parece ser o caso
quando analisamos, por exemplo, os pedidos de dinheiro para custear os gastos feitos
com os órfãos.
Como destacamos no capítulo anterior, as Ordenações Filipinas estabeleciam
que o lucro da venda dos bens móveis e provenientes dos bens imóveis que ficavam
sob a responsabilidade do tutor deveria ser colocado no cofre do juízo. Parte desse
dinheiro seria utilizado para o sustento do menor, o que incluía: alimentação, vestuário
e os gastos com ensino e saúde. Era dever do juiz de órfãos estabelecer a quantia que
seria usada para isso, mas, como ressaltamos, isso nem sempre acontecia. E, mesmo
nos casos em que determinado valor já tinha sido fixado pelo juiz, parecia que na prática
a entrega do dinheiro não ocorria de maneira automática. Em decorrência disso, temos
vários casos em que o tutor ou as mulheres entraram com uma solicitação do dinheiro
existente no cofre para o sustento dos menores.
Os pedidos feitos acabaram manifestando alguns aspectos. Primeiramente, que,
em muitos casos, eram as mulheres que terminavam assumindo as custas, o que,
entendemos, revelava a frente ocupada por elas que, em virtude da urgência vivenciada,
não tinham condições de esperar as liberações das autoridades para manter os órfãos.
A já mencionada Maria Francisca da Cruz, por exemplo, estando com o filho em
sua companhia, declarou em requerimento feito no ano de 1788 que desde 1784 o juiz
havia estabelecido uma quantia de 15 oitavas anuais para o sustento do órfão.
Entretanto, ressaltou que esse valor lhe havia sido dado apenas no primeiro ano, e,
185
desde então, era ela quem estava “alimentando, vestindo e trazendo [o filho Boaventura]
na escola a sua própria custa com a ajuda de seu irmão” Felipe Rodrigues de Souza270.
Ao longo do inventário há diversos requerimentos da mãe do menor trazendo a
mesma solicitação e, do mesmo modo, a informação de que era ela quem arcava com
os custos, já que aquele auxílio que havia sido determinado pelo juiz nunca lhe era
entregue. Acompanhando o percurso percorrido por essa mãe através desses
requerimentos, observamos que de 1784 até 1799, ano do último pedido, sempre que a
mesma entrava em contato com a justiça, alguma quantia lhe era dada pelo tutor.
Entretanto, o valor era sempre menor do que aquele estipulado, o que representava dois
aspectos: primeiro que essa mãe, não sendo reembolsada de maneira integral, acabava
assumindo de modo efetivo parte dos custos que certamente não estavam nos seus
planos. Ao mesmo tempo, que ela precisava acionar suas redes de sociabilidade, a
começar pelo irmão, para conseguir cumprir o seu papel de responsável pela
manutenção e educação do filho.
A dificuldade de recebimento de dinheiro e a consequente admissão dos custos
não era uma especificidade das mães. Paula da Costa Guimarães, em requerimento
apresentado no ano 1817, declarou que havia sido contratada pelo tutor – Manoel Dias
Monteiro – para cuidar dos órfãos do Alferes Antônio Lopes de Oliveira, pertencente ao
grupo 2 – patrimônios intermediários. De acordo com essa cuidadora, no contrato ficou
estabelecido que ela deveria levar os órfãos para sua companhia, sustentando-os e
curando-os em suas doenças. Tal ajuste havia dado certo até o ano anterior, quando o
mencionado tutor parou de assistir com o necessário. Ela, por sua vez, estava arcando
com as despesas, mas como era “pobre e mal poderia se sustentar com seu pequeno
trabalho”, solicitava ao juiz que mandasse o tutor cumprir com o trato ou, caso contrário,
levasse as crianças da companhia da suplicante, pois ela não tinha condições de mantê-
las271.
O tutor, certamente preocupado com a possibilidade de ter que assumir os
cuidados diários dos órfãos, seus sobrinhos, respondeu às alegações da cuidadora,
confirmando essa informação. Mas, segundo ele, essa falta apresentada pela cuidadora
era em virtude de uma determinação do próprio juiz de órfãos, que havia suspendido o
recebimento dos aluguéis de umas casas pertencentes aos menores272. O juiz, por seu
270
Inventário de Custódio José de Araújo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 29, Auto 315, 1780, fl.
101.
271
Inventário de Antônio Lopes de Oliveira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 56, Auto 630, 1816, fl.
46.
272
Consta no mesmo requerimento que as referidas casas eram o local de moradia dos órfãos. Entretanto,
com a morte do inventariado, o tutor, que era também testamenteiro e inventariante, mandou seus tutelados
para a companhia da cuidadora e alugou essas casas. A intenção nessa atitude, segundo o tutor, era utilizar-
186
turno, reconhecendo que essa ação era a única que poderia promover algum lucro nos
bens dos menores, autorizou a prática, garantindo a permanência dos menores com a
cuidadora. Como vemos, tutor e cuidadora utilizaram-se das “cartas” disponíveis para
alcançarem seus interesses.
Mas, se as mulheres acabavam arcando com as despesas dos órfãos em algum
momento dessa parceria, percebemos, por outro lado, que tal fato parecia lhes dar maior
autonomia. Assim, mesmo que depois tivessem alguma forma de reembolso, no
momento da definição dos gastos eram elas que estabeleciam aqueles que deveriam
ser considerados prioridades.
Retomando a parceria estabelecida entre Dona Teresa de Jesus e o tutor, o
padre Antônio Ribeiro de Azevedo, vimos que os dois apresentaram em conjunto as
contas provenientes da tutoria. Nessas contas, além dos gastos com escola, alimentos
e as taxas de desobriga da quaresma, identificamos que houve muitas despesas com
vestuário. Em nosso entendimento, para a viúva, seus filhos estavam necessitados de
algumas roupas, o que justificava todo o investimento. Entretanto, avaliação diferente
fez o curador quando foi chamado para aprovar as referidas contas273. Analisando as
despesas realizadas com a órfã Maria Teresa, por exemplo, ele declarou que “vários
gêneros” do vestuário pareciam “supérfluos”. Todavia, como os gastos já tinham sido
feitos, coube apenas ao curador pedir ao tutor que jurasse aqueles dispêndios
apresentados, e a viúva foi reembolsada274.
Acreditamos que a mesma autonomia tinham as viúvas na definição dos destinos
educativos dos órfãos, ainda que, algumas vezes, consultassem os homens de seus
grupos familiares. Nos gastos apresentados pela mesma Dona Teresa e o tutor,
constava que a viúva havia mandado ensinar a ler e escrever à já mencionada órfã
Maria Teresa, de 12 anos de idade. Certamente Dona Teresa entendia que essa órfã
deveria ser inserida no mundo da escrita, do mesmo modo que nos ofícios próprios de
sua “qualidade e condição”275.
Analisando os requerimentos existentes nos inventários, percebemos que
aqueles voltados para a solicitação de dinheiro ocorreram nos grupos 1 e 2, já que
quatro (25%) e nove (33,33%) mulheres, respectivamente, entraram com pedidos dessa
natureza. É provável que a ausência no grupo 3 seja porque não havia o que solicitar,
se desses aluguéis para sustentar seus tutelados. Entretanto, o juiz determinou que as casas não deveriam
ser arrendadas sem a sua autorização e, por isso, suspendeu essa prática.
273
Estabelecemos a diferença entre tutor e curador no capítulo 2.
274
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 34, Auto 381, 1783,
fl. 109.
275
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 34, Auto 381, 1783,
fl. 64
187
já que o mais comum nesse grupo era a determinação por parte do juiz da não
ocorrência das partilhas e a entrega dos bens para a inventariante.
Mariana Alves de Araújo, por exemplo, ficou como depositária dos bens
inventariados por morte de seu marido. Ela tinha cinco filhos, para os quais foi nomeado
como tutor Francisco Alves de Araújo, seu irmão. Ele assinou o termo em 1793, e
passados quase dez anos, as contas dessa tutoria foram pedidas. Entretanto, conforme
declaração da viúva, da herança não havia mais coisa alguma e que, na verdade, eram
os filhos, que agora estavam assentados em praça na tropa paga, que estavam
sustentando a ela e os mais irmãos276. Além disso, para completar os gastos, ela estava
pedindo esmola “por ser a necessidade grande como é público e notório pela vizinhança
da suplicante e se achar a herança sem coisa alguma". Nesse mesmo requerimento
ela pediu que o inventário fosse finalizado, já que a herança estava extinta, o que foi
aceito pelo juiz, que apenas determinou que a viúva deveria dar sustento aos
"miseráveis órfãos como seus filhos277.
Os documentos identificados para o presente estudo acabaram revelando, como
vimos, diferentes ações femininas para participar da manutenção e educação dos
órfãos, possibilitadas pelas parcerias estabelecidas entre as mulheres e os tutores. Em
alguns casos parece que as negociações decorrentes desses “contratos” permitiram
uma sobreposição dos papéis. Por outro lado, houve situações em que alguns tutores
apenas assinaram o termo de tutoria, e as mulheres mantiveram os órfãos sem grandes
alterações da estrutura familiar em decorrência daquela nomeação, não nos deixando
muitas informações dessa relação.
Seja como for, ao considerarmos essas parcerias, percebemos que elas
acabaram sendo, na maioria das vezes, interessantes para ambas as partes. Do lado
do tutor, havia uma diminuição dos encargos que essa obrigação poderia trazer. Já em
relação à mulher, a presença dos órfãos representava uma possibilidade de
manutenção de si mesma e do seu grupo familiar e, também, a oportunidade de
contribuir para o processo educativo dos menores.
3.2.1 “Ele não cumpre com suas obrigações” – os conflitos nas parcerias
276
Não foi possível saber quais os filhos estavam assentados em praça, pois o documento estava muito
danificado.
277
Na primeira página do inventário também consta a palavra “extinto” do lado do termo de abertura do
documento. Inventário de José de Magalhães. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 18, Auto 193, 1793, fl.
28.
188
sempre essas relações ocorriam de maneira tranquila. Na verdade, nas fontes
analisadas, conseguimos identificar inúmeras reclamações por parte das mulheres,
ressaltando, quase sempre, a falta de compromisso dos tutores que, segundo elas, não
assumiam as obrigações relacionadas à função. Ao mesmo tempo, percebemos que
alguns tutores moravam distante de seus tutelados, o que acabava isentando-os de
suas tarefas. Por outro lado, nos inventários investigados, deparamo-nos com algumas
mulheres que, não concordando com as nomeações de certos tutores, solicitavam a
mudança, impedindo assim que determinadas parcerias fossem estabelecidas.
Iniciemos pelas alegações de falta de compromisso com as tarefas do ofício de
tutor. Como destacamos no capítulo 2, era da competência do tutor, dentre outros
aspectos, cuidar das legítimas pertencentes aos órfãos e, ao mesmo tempo, oferecer-
lhes a alimentação, vestuário e a educação. Entretanto, em decorrência das parcerias
estabelecidas, vimos que nem sempre esses deveres ficavam apenas nas mãos dos
tutores, mas, ao contrário, eles eram partilhados com algumas mulheres.
Todavia, os documentos analisados demonstraram que, para certas mulheres,
alguns tutores acabavam sendo ausentes, o que, consequentemente, sobrecarregava
o trabalho exercido pelo grupo feminino. Citemos alguns casos. Tereza Xavier da Silva,
por exemplo, era nora do padre Francisco Manoel da Silva. Quando o referido padre
faleceu, ele era proprietário de terras minerais e de cultura, outros bens de raiz, algumas
ferramentas e trastes de casa, além de quatro escravos, o que, somado, foi avaliado em
2:192$580, permitindo-nos classificá-lo como pertencente ao grupo 2 – patrimônios
intermediários. Entre os herdeiros do padre estava o filho de Teresa, chamado
Francisco, que, por ser menor, dependia da nomeação de um tutor. O juiz de órfãos
elegeu o Tenente Joaquim Rodrigues Fontes, que assinou o termo em julho de 1810278.
Passados alguns meses – em março de 1811 –, a viúva apresentou um
requerimento ao juiz no qual declarou que, apesar daquela nomeação, o tutor não
estava “acautelando” os bens do órfão “como lhe é encarregado”. Nas palavras da viúva,
depois da partilha, o Tenente Joaquim havia ficado na posse dos bens do menor e,
desde então, estava destruindo e “vendendo-os a torto e a direito”. Ela, por sua vez,
“como mãe do miserável órfão”, partilhava por meio daquele requerimento o que estava
ocorrendo.
O juiz, participado da situação, convocou o tutor para dar contas das legítimas
sob pena de prisão e sequestro dos próprios bens caso não se apresentasse. Em
resposta, o tutor não fez nenhuma menção às acusações da viúva, mas declarou que
havia sido autorizado pelo próprio juiz a viajar até o Rio de Janeiro para resolver
278
Inventário de Francisco Manoel da Silva. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 53, Auto 630, 1810.
189
“negócios de importância”. Por isso, mas também porque entendia ser importante haver
uma pessoa que vigiasse e zelasse os bens do dito órfão, pedia que fosse nomeado
outro tutor, o que foi aceito depois de conferidos os bens do menor.
A partir dos dados apresentados, acreditamos que o Tenente Joaquim
aproveitou a oportunidade para ser removido da função, alegando que a ausência de
cerca de quatro meses poderia trazer danos para a legítima do menor. Não consta no
inventário que o tutor tivesse realmente administrado mal os bens do órfão até aquela
data; mas sabemos que foi a viúva que assumiu a tutoria e a administração das legítimas
depois que o juiz a consultou sobre o assunto. Segundo Teresa, ela aceitava a função
porque “desejava todo o bem” ao seu filho. Assim, a partir daquela data, ela tinha
aumentado seu espaço de manobra, já que a responsabilidade pelo menor seria toda
dela.
Inês Martins Fragoso, por sua vez, era viúva de Antônio Vieira Gomes,
pertencente ao grupo 3 – menores patrimônios. O casal tinha uma filha chamada
Teresa, de 5 anos de idade. Para assumir a tutoria dessa órfã, o juiz nomeou o Ajudante
Miguel Dionizio Valle, que assinou o termo em 1799. Entretanto, dois anos após essa
nomeação, a viúva declarou em requerimento que o referido tutor “nada cumpre com as
suas obrigações”. Sendo assim, ela indicava outra pessoa – Manoel José Pimentel –
"que é muito capaz e não tem dúvida de o ser”.
Detalhe importante é que, diferentemente do caso anterior em que o juiz pediu
que o tutor, antes da remoção, fizesse uma declaração da situação dos bens, no
presente caso houve apenas a mudança conforme o requerimento da viúva. Seja como
for, os dados revelaram que a menor permaneceu sob os cuidados de Inês, pois nas
contas da tutoria apresentada por Manoel consta que a órfã “se achava em companhia
de sua mãe (...) a qual lhe tem dado e dá toda aquela educação precisa e necessária
como boa mãe que tem sido para a dita sua filha"279.
Algumas mulheres apresentaram queixas ligadas a assuntos mais cotidianos,
como, por exemplo, as dificuldades financeiras para o sustento do menor. A já
mencionada Maria Francisca da Cruz era mãe de Boaventura, que por sua vez era filho
do português Custódio José de Araújo, pertencente ao grupo 2 – patrimônios
intermediários. Em maio de 1783, ela fez uma solicitação ao juiz de órfãos pedindo que
o tutor João da Costa Soares fosse removido. Como destacamos, ela já havia feito um
pedido semelhante. Entretanto, se na situação anterior o que a motivou foi a qualidade
do tutor – ele era pardo –, agora foi a falta de dinheiro que a incentivou a fazer a
279
Inventário de Antônio Vieira Gomes. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 2, Auto 27, 1799.
190
solicitação280. Segundo suas palavras, o tutor João da Costa Soares não havia buscado
junto ao tesoureiro o dinheiro que o juiz tinha autorizado para o sustento de seu filho. E,
para completar, tinha saído de Vila Rica sem deixar a informação de quando voltaria281.
Importante ressaltarmos que o referido João era, na verdade, o mesmo sujeito
que Maria Francisca havia apresentado para ocupar o lugar do pardo Leandro Moreira
de Araújo. Apesar de ser sua própria sugestão, ela declarou que o nomeado, além de
não defender em nada os interesses do órfão, não cuidava “nas cobranças que lhe
pertencem como tem obrigação". Para completar, ela estava “em extrema necessidade”
e, como João estava ausente, ela pedia que fosse nomeado outro tutor, indicando para
isso o seu irmão – Antônio Rodrigues de Souza. Diante da situação exposta, o juiz
mandou que fosse feito o pagamento sem a presença de João, e poucos meses depois
– em outubro de 1783 – fez a nomeação do quarto tutor daquele inventário282. Mas, ao
contrário do pedido de Maria Francisca, o magistrado optou por outro indivíduo – José
Antônio Moniz.
Outras mulheres, ao reclamarem da ausência dos tutores, acabaram nos dando
alguns indícios de suas avaliações a respeito das funções que deveriam ser assumidas
pelos homens que exerciam a tutoria. A crioula forra Luzia das Neves, por exemplo, mãe
da órfã do português Manoel Pinto Brandão, pertencente ao grupo 3 – menores
patrimônios –, declarou em requerimento que o tutor nunca a tinha ajudado no cuidado
com a menor. Segundo a crioula forra, o tutor, chamado Francisco Xavier da Costa,
jamais tinha buscado a herdeira e muito menos prestado “amparo, socorro, alimento e
doutrina”. Como podemos perceber, ao se queixar de Francisco, Luiza acabou nos
revelando que, no seu entendimento, o tutor deveria não apenas auxiliar no cuidado da
menor, mas também resguardá-la, dando inclusive o sustento e o ensino dos preceitos
civis e religiosos283.
Mas a falta dos tutores poderia ser decorrente de outra questão – a distância da
moradia em relação à de seus tutelados. Como já apontamos, as Ordenações Filipinas
determinavam que a tutela deveria ser exercida por homens da mesma localidade dos
órfãos284. Entretanto, investigando a documentação eleita, acabamos percebendo que
essa prescrição teria sido seguida, mas com algumas variáveis. Assim, não se
280
Importante destacarmos que, ao longo desse processo de inventário, foram nomeados cinco tutores
diferentes.
281
Inventário de Custódio José de Araújo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 29, Auto 315, 1780.
282
O quarto tutor foi nomeado antes do fim do período estabelecido pelas Ordenações, que era de dois
anos. Isso porque João havia assinado o termo em maio de 1782 e foi removido da função em outubro de
1783. Inventário de Custódio José de Araújo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 29, Auto 315, 1780.
283
Inventário de Manoel Pinto Brandão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 40, Auto 461, 1810.
284
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 102.
191
encontrando uma pessoa na mesma localidade de residência dos órfãos, surgia a
necessidade de eleger um homem fora dela. Acreditamos que tal situação estivesse
relacionada com a dificuldade de nomeação de tutores, já mencionada, e que também
foi observada por Oliveira (2008).
Domingos Rodrigues Pinto era morador do Arraial de Congonhas do Campo,
Termo de Vila Rica, e casado com Dona Ana Umbelina Marciana de Urzedo. O casal
era proprietário de uma fazenda, terras de cultura, gado, joias, ferramentas, alguns
trastes de casa e 27 escravos, que somados foram avaliados em 4:292$580, sendo
classificado como pertencente ao grupo 1 – maiores patrimônios. Eles não tinham filhos
e, por isso, o inventariado nomeou como herdeira a esposa; mas estabeleceu em
testamento que deixava os remanescentes de sua terça para a exposta Maria, de 7 anos
de idade, enjeitada em sua casa. Por causa da menoridade de Maria, o juiz nomeou um
tutor, o Tenente João Amâncio Urzedo, que assinou o termo em julho de 1818.
Um ano depois, ao ser chamado para colocar em praça os bens pertencentes à
órfã para serem arrematados, o escrivão declarou que o referido tutor não morava mais
na mesma localidade que sua herdeira. Além disso, a partir de uma petição da viúva,
consta que a mesma havia assumido toda a obrigação de “sustentar, vestir e tratar a
mesma órfã”, isentando dessas tarefas o tutor João. Passados seis anos – 1825 –, o
curador, avaliando o inventário, declarou que o referido tutor não poderia continuar na
tutoria porque o mesmo estava morando em Suaçuí, distante de sua tutelada, o que não
era permitido. Sendo assim, foi nomeado o Sargento-mor Agostinho Nogueira Penido285.
Como vemos, no presente caso, foi o curador que pediu para que aquela parceria fosse
desfeita, pois julgou que o tutor não tinha condições de exercer os compromissos da
função. Por outro lado, como ele morava longe da menor há, pelo menos, seis anos,
podemos dizer que foi a viúva que acabou desempenhando os encargos ligados à
tutoria.
A partir dos casos aqui apresentados, podemos fazer algumas considerações.
Primeiramente, no que se refere às queixas por parte do grupo feminino, percebemos
que aquelas ligadas a dinheiro e à administração dos bens eram praticadas pelos grupos
2 e 3 — patrimônios intermediários e menores patrimônios —, respectivamente.
Entendemos que tal situação se devia ao fato de que essas mulheres estavam mais
propensas a passarem por dificuldades financeiras.
Ao mesmo tempo, os documentos acabaram por confirmar a capacidade de ação
das mulheres e a importância das mesmas dentro do processo de tutoria. Isso porque,
a partir dos dados analisados, vimos que as questões e solicitações apresentadas por
285
Inventário de Domingos Rodrigues Pinto. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 36, Auto 447, 1818.
192
elas eram quase sempre atendidas e, dependendo do caso, provocavam a remoção do
tutor.
Finalmente, percebemos que as reclamações raramente estavam relacionadas
com os cuidados com a educação dos órfãos. Dessa forma, excetuando-se o caso já
apontado da crioula forra Luiza das Neves, que destacou a ausência do tutor no
“amparo” e “doutrina” de sua filha286, não identificamos mais nenhuma mulher que tenha
expressado o interesse nesse tipo de auxílio. É possível que Luiza estivesse, na
verdade, reforçando o fato de que era apenas ela que estava assumindo todos os
encargos relacionados à órfã.
Mas, se algumas mulheres reclamavam de tutores que não estavam cumprindo
o compromisso assumido, havia algumas delas que tentavam agir na tentativa de
impedir qualquer atuação do tutor. Maria Joaquina de Jesus, por exemplo, era viúva do
Tenente Tomaz Rodrigues Braga, pertencente ao grupo 2 – patrimônios intermediários.
O casal era pai de seis filhos, todos menores quando o marido faleceu. Para ocupar a
função de tutor, o juiz elegeu o Capitão Joaquim José da Costa287.
Entretanto, a viúva não concordou com a referida nomeação e, em requerimento,
declarou que o mesmo era “pessoa estranha” e que ela tinha um irmão, chamado Camilo
de Lelis, que poderia assumir a função, o que foi aceito pelo juiz. De qualquer modo,
vimos que a intenção de Maria Joaquina era, na verdade, tornar-se tutora de seus filhos,
pois, um ano após a morte do marido, ela pediu para justificar sua capacidade para
exercer a função, conforme o Auto de Justificativa identificado288.
Dona Teresa de Jesus, por sua vez, era viúva do Tenente José Francisco de Sá
Mourão e pertencente ao grupo 1 – maiores patrimônios. Como já destacamos, ela
conseguiu, com o auxílio de seus procuradores, retirar o Tenente Diogo da Silva Ribeiro
da função de tutor e, para seu lugar, indicou o Padre Antônio Ribeiro de Azevedo 289.
Segundo a viúva, as motivações para o seu pedido de remoção estavam no fato
de Diogo ser pessoa “estranha”. E, além disso, era solteiro e "sem abonação alguma”.
Apesar dessas declarações, inicialmente a viúva não conseguiu alcançar seu intento.
Isso porque, conforme o escrivão, o prazo de dois anos da tutoria do Tenente Diogo
ainda não tinha findado, e, por isso, entendia que o mesmo não poderia ser removido.
Para completar, o padre sugerido pela viúva morava em outra localidade, o que
dificultaria a prestação de contas da tutoria.
286
Inventário de Manoel Pinto Brandão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 40, Auto 461, 1810.
287
Inventário de Tomaz Rodrigues Braga. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 63, Auto 702, 1820.
288
Auto de Justificativa de Maria Joaquina de Jesus. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 418, Auto 8343,
Ano 1821.
289
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 34, Auto 381, 1783.
193
Não se contentando com as alegações do escrivão, a viúva destacou que o
padre era “abonadíssimo” e, para as “seguranças futuras” bastava apenas que fossem
feitas as cautelas necessárias290. De qualquer forma, caso o mencionado reverendo não
pudesse exercer a tutoria, ela indicava mais dois homens: o primeiro era o seu irmão,
tio dos órfãos e também padre, chamado José de Freitas Leitão; e o segundo era Manoel
Pereira de Alvim, “sujeito mais que suficiente não apenas para semelhante negócio, mas
também para certas coisas de maior ponderação”. Finalmente, ressaltou que o seu
interesse era apenas “beneficiar seus filhos”.
As justificativas apresentadas por Dona Teresa para alcançar o seu intento de
retirar o Tenente Diogo do cargo de tutor ainda seriam alimentadas por mais dois
aspectos. Conforme a viúva, até aquela data, o tutor nomeado não tinha “feito ação
alguma tendente a tutoria”291. E, além disso, havia chegado ao conhecimento dela que
existia uma sentença contra o tutor. Nesta sentença, havia a declaração de que o
Tenente Diogo, “dantes abastado”, se achava “caído de bens”. E, para completar,
constava que o referido tutor “tratava ilicitamente” com uma tal de Cristina Pereira da
Gama, "vivendo com ela em torpe comunicação por espaço de doze anos” até a morte
dessa mulher. Nesse período, conforme o julgamento, era a mencionada Cristina que
lhe cozinhava, lavava, engomava e ainda cuidava da “sustentação e trato de uma
mulatinha que ela teve em sua casa, e que algumas testemunhas disseram ser filha do
dito autor”292.
A partir dessas alegações, o juiz determinou a remoção do Tenente Diogo e
nomeou o padre conforme a solicitação da viúva. Em nosso entendimento, o conjunto
de elementos apresentados por Dona Teresa demonstrou que o Tenente Diogo não
poderia ser identificado como “homem bom do lugar” e, nesses termos, estaria
impossibilitado de assumir a tutoria. Mas não podemos deixar de considerar também o
esforço da viúva em dois aspectos: primeiro em indicar um parente, ainda que
“espiritual”, como ela mesma destacou, e que, conforme a legislação, deveria ser
preferido; depois, em ressaltar a “má índole” do tutor que havia sido nomeado que, ao
que tudo indica, não seria questionada caso não houvesse nenhuma reclamação.
A partir dos casos identificados na documentação, percebemos que o
estabelecimento das parcerias respeitava as circunstâncias do cotidiano, como já
290
A viúva estava se referindo à possibilidade de apresentar um fiador.
291
Importante ressaltarmos que havia pouco tempo que o tutor Diogo tinha assinado o termo de tutor. O
inventário havia sido aberto em setembro de 1783, mas o tutor foi nomeado em julho de 1784. A declaração
da viúva de que ele não estava fazendo coisa alguma era de setembro do mesmo ano. Assim, haviam se
passado apenas dois meses depois da nomeação.
292
A sentença era a respeito de um escravo. O Tenente alegava que um dos escravos constantes no
inventário de Cristina era pertencente a ele. Entretanto, o juiz entendeu que essa propriedade não pertencia
ao referido tenente e que, na verdade, era ele quem devia à inventariada.
194
apontamos. Entretanto, ao reconhecermos determinadas estratégias por parte das
mulheres, como a solicitação de remoção de tutores acima destacada, acabamos
compreendendo que o processo de tutoria atendia a interesses específicos, inclusive
das próprias mulheres. Tais aspectos apenas reforçaram nosso entendimento de que
as mulheres, mesmo quando partícipes, tinham certa autonomia que lhes possibilitava
o exercício de seus papéis, inclusive o de educadoras. É esse papel que tentaremos
analisar a seguir, juntamente com outros elementos ligados à tarefa de educar.
Como já destacamos, a tarefa de educar os órfãos era entendida como uma das
principais obrigações do tutor previstas nas Ordenações Filipinas293. Nesta legislação,
as determinações estavam relacionadas especialmente à instrução, isto é, o
direcionamento para ensinos mais práticos, como: ler, escrever e também os ofícios294.
Entretanto, como ressaltamos no capítulo 1, a noção de educação existente no período
englobava também a formação moral – civil e religiosa – e nos “bons costumes”. Diante
desse aspecto, o compromisso do tutor com a educação dos órfãos também perpassa
por esse ponto.
Tendo por base esse entendimento em relação à educação, a nossa intenção
aqui é evidenciar as principais práticas educativas destinadas aos órfãos. Teriam as
parcerias aumentado as chances dos menores de receberem algum tipo específico de
ensino? Houve alguma forma de resistência em relação aos direcionamentos educativos
por parte do tutor ou da mulher enquanto parceiros? E, finalmente, em que medida as
mulheres teriam assumido o seu papel de educadoras junto às crianças e jovens quando
eram partícipes?
Ao tentarmos responder a essas questões, estaremos considerando que o ato
de educar era: uma possibilidade de garantir o sustento futuro do órfão a partir de uma
ocupação; a oportunidade de promover determinada distinção social especialmente
através do acesso ao mundo da escrita; e, também, possibilidade de inserção na
sociedade por meio da aprendizagem dos preceitos civis e religiosos e dos “bons
costumes”.
293
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 102, §15, p. 212.
294
Importante destacarmos que ao nos referirmos ao aprendizado da leitura e da escrita como algo prático,
nossa perspectiva é ressaltarmos que tais conhecimentos poderiam possibilitar alguma forma de ocupação.
Além disso, eles poderiam ser entendidos como “práticos” em detrimento a outros tipos de educação, como:
o aprendizado de valores civis e religiosos, por exemplo.
195
Para isso, dividimos as práticas educativas de acordo com as categorias: “ensino
letrado”; “aprendizagem de ofícios artesanais e mecânicos” e “formação moral e dos
costumes”. Conforme a exposição das diferentes formas de educar, tentaremos também
estabelecer as diferenças e semelhanças de acesso segundo o pertencimento ao grupo
social e o sexo dos órfãos.
Importante ressaltarmos ainda que não foi em todos os documentos eleitos para
um estudo mais verticalizado que identificamos indícios de que os órfãos haviam
recebido algum tipo de educação. Na verdade, de um total de 54 documentos eleitos,
apenas 35 (64,81%) deles traziam alguma informação ligada a práticas educativas: 14
no grupo 1 —maiores patrimônios; 16 no grupo 2 — patrimônios intermediários; e
apenas cinco no grupo 3 —menores patrimônios.
Uma vez salientados esses aspectos, comecemos pela primeira categoria.
196
inventários estão incompletos e que alguns tutores não declararam os direcionamentos
educativos nas prestações de contas de tutoria.
A partir dos dados presentes nos documentos, podemos dizer que o aprendizado
das letras esteve presente nos grupos 1 e 2 —maiores patrimônios e patrimônios
intermediários—, respectivamente, conforme o gráfico 11:
Gráfico 11
10 9 9 grupo 2
9
grupo 3
8 7
7
6 5 5
5
4
3
2
1
0
Tiveram acesso Não declarado
295
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 102, §15, p. 212.
197
camadas mais abastadas tivessem predominantemente o ensino das letras, que no
período era entendido como um elemento de distinção, conforme Vartuli (2014).
Apesar de não encontrarmos nenhuma referência ao tipo de ensino que os filhos
do Capitão Luís Lobo Leite Pereira receberam, podemos dizer que foi preocupado com
a distinção da família que o curador resolveu aprovar as contas apresentadas em 1792
pelo tutor e tio dos menores, o Tenente Agostinho Lobo Leite Pereira296.
Segundo o curador, Dr. Manoel de Souza Oliveira, as despesas apresentadas
pelo tutor somavam 1:307$686 e não teriam sido aprovadas pelo juiz de órfãos.
Entretanto, como ele tinha conhecimento de que os órfãos “não são da qualidade
daqueles que se devem dar à jornal ou soldadas, nem se empregarem em ofícios
mecânicos, não duvido que se arbitrem os rendimentos das mesmas legítimas para
pagamento das despesas até aqui feitas”.
É certo que os órfãos desse inventário fossem mesmo da “qualidade” destacada
pelo curador. Afinal, os bens eram constituídos de 56 escravos, terras minerais, uma
fazenda, gado, louças finas e ferramentas, que estavam distribuídos no Arraial de
Congonhas do Campo, onde a família morava, e também na Vila de São José del-Rei,
na Comarca do Rio das Mortes. Além disso, o pai tinha sido capitão e quando vivo
estabeleceu uma sociedade ligada à mineração e à criação de animais com o irmão,
que depois se tornou o tutor dos órfãos. A parte que coube à família foi avaliada em
8:481$137, tornando-os pertencentes ao grupo 1 – maiores patrimônios.
Quanto ao processo educativo, sabemos apenas, conforme a declaração do
tutor, que os oito órfãos estavam "em companhia de sua mãe (...) com aquele tratamento
e doutrina mais possível”. Além disso, a partir de um cruzamento de fontes, sabemos
que Manoel se tornou capitão, e Antônio, capitão-mor297. Some-se a isso a identificação
no inventário das assinaturas de sete dos oito filhos: Manoel, Antônio, Ana, Antônia,
Joana, Isabel e Luiza, o que nos ajuda a inferir que receberam alguma forma de
educação letrada.
296
Inventário de Luís Lobo Leite Pereira. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 94, Auto 1144, 1788.
297
Há inclusive um requerimento de Antônio no Arquivo Histórico Ultramarino no qual ele declarou que
era capitão-mor das Ordenanças de Vila Rica. Neste requerimento ele estava solicitando a mercê real para
lhe conceder a serventia vitalícia do ofício de tesoureiro da Intendência de Vila Rica. Consta no mencionado
documento que ele estava exercendo o cargo de capitão-mor na Tropa Regular e, gratuitamente,
encarregando-se da arrecadação dos donativos. Apesar de, à margem do documento, constar que “não há o
que deferir” (ou seja, estamos entendendo que ele não alcançou a provisão real), a mencionada solicitação
ajuda-nos a vislumbrar que Antônio tivesse algum conhecimento das letras. Requerimento de Antônio
Agostinho Lobo Leite Pereira, capitão-mor de Vila Rica, solicitando ao Rei... AHU, Cx. 180, doc. 28, 1806.
A respeito da ocupação de capitão-mor da Tropa Regular, sabemos, como destacou Cotta (2014), que os
membros das tropas regulares teoricamente deveriam dedicar-se de modo exclusivo às atividades militares,
sendo esta força militar a única paga pela coroa. A respeito da divisão e organização militar de Portugal e
América Portuguesa, ver Cotta (2014)
198
Figura 5: Assinaturas dos herdeiros: Manoel, Antônio, Ana, Antônia e Luiza
Fonte: AHMINC/IBRAM (1º Ofício, códice 94, Auto 1144, fl. 112v).
Fonte: AHMINC/IBRAM (1º Ofício, códice 94, Auto 1144, fl. 72v).
199
finalmente, não podemos esquecer que havia uma certa flexibilidade da legislação que
acabava permitindo uma educação combinada, conforme mencionou a mesma autora.
Mas o que significava esse acesso ao mundo da escrita? Analisando os
documentos de modo mais detalhado, percebemos que, se houve uma aproximação
dos investimentos nesse tipo de educação nos dois grupos – maiores patrimônios e
patrimônios intermediários —, isso não significou que todos os órfãos ingressaram nos
mesmos “níveis” de ensino. Em outros termos, o aprendizado das letras, dependendo
do pertencimento socioeconômico, ficava restrito às primeiras letras: ler, escrever e
contar, sendo este ponto um primeiro distanciamento que podemos destacar.
A respeito dessa questão, podemos pensar que, no que se refere ao grupo 2 –
patrimônios intermediários – tal fato estivesse relacionado a um aspecto ressaltado por
Fonseca (2006, p. 178). Conforme a autora, no século XVIII, para
298
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777.
Faremos mais adiante um estudo mais verticalizado a respeito das estratégias educativas empreendidas
nessa família. Importante ressaltar também que o tutor – Luís Lobo Leite Pereira – era o mesmo sujeito
mencionado acima, quando destacamos a opinião do curador de que os órfãos eram “de qualidade”, ou seja,
tais órfãos eram netos do Alferes Manoel Coelho Rodrigues, sogro do Capitão Luís. Inventário de Luís
Lobo Leite Pereira. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 94, Auto 1144, 1788.
200
Temos ainda a família de Francisco de Almeida Pinto e Antônia da Rocha de
Jesus. O casal tinha seis filhos, dos quais quatro ainda eram menores quando o pai
faleceu. No momento da feitura do testamento, Francisco elegeu sua esposa para
exercer a tutoria dos filhos. Entretanto, julgando-se “incapaz”, a viúva pediu que outra
pessoa ocupasse a função, apesar de ter mantido os órfãos e bens sob seus cuidados.
Quem assumiu a tutoria foi seu genro — João Gonçalves Vieira. Dos quatro órfãos,
apenas um deles era do sexo masculino – homônimo do pai – e que já se encontrava
com 21 anos de idade. Diante desse dado, acreditamos que o mesmo já se encontrava
adiantado nos estudos. De qualquer modo, sabemos que os investimentos na educação
letrada desse filho renderam alguns frutos, pois consta no inventário que o mesmo havia
se tornado padre299.
Outra família pertencente ao grupo 1 que direcionou ao menos algum dos órfãos
para os estudos secundários foi a do falecido Capitão e negociante Manuel Francisco
de Andrade. Ele era casado com Joaquina Rosa do Sacramento, e, quando faleceu, o
casal tinha sete filhos, todos menores. Para a função de tutor o juiz elegeu um tal José
Ribeiro, que assinou o termo de tutoria em 1794. Apesar de não termos informações de
como ocorreu a parceria entre a viúva e esse tutor, sabemos que os menores ficaram
com a mãe, e do processo educativo que certamente ocorreu constam alguns frutos300.
Dos sete filhos, cinco eram do sexo masculino. Quatro, seguindo o exemplo do
pai, tornaram-se donos de patentes militares: José tornou-se alferes; Manoel, tenente;
Camilo, capitão; e Tristão, cadete. Entretanto, entendemos que os maiores
investimentos foram no processo educativo do filho Domingos que, quando o pai faleceu
tinha 13 anos de idade. Consta no inventário que ele havia se tornado advogado,
informação confirmada por Virgínia Valadares (2004, p. 502), que identificou entre os
matriculados na Universidade de Coimbra o mencionado Domingos. Conforme a autora,
ele havia ingressado no curso de Leis em 15 de outubro de 1799.
Finalmente temos a família do negociante Silvério Anacleto Vilar e Souza.
Casado com Dona Ana Joaquina de Souza Osório, eles tiveram quatro filhos301. O juiz
nomeou João Fernandes Salgado para exercer a tutoria em junho de 1776. Analisando
o inventário, encontramos diversos indícios do “caráter empreendedor” da viúva,
299
Inventário de Francisco de Almeida Pinto. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 58, Auto 696, 1774.
300
Inventário de Manuel Francisco de Andrade. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 115, Auto 1470,
1793.
301
Anacleto, segundo requerimento feito pelo filho Elias e presente no Arquivo Histórico Ultramarino, teria
trabalhado na Real Intendência de Vila Rica nos cargos de ajudante de Capitação e de escrivão da Receita
e Despesa por vinte e sete anos. Requerimento de Elias Anacleto de Souza Vilar... AHU, Cx. 188, doc. 21,
Ant. 1821.
201
inclusive a solicitação régia para assumir a tutoria, pedido que foi atendido, pois em
novembro de 1777 consta o termo de tutoria assinado por ela302.
Entretanto, antes de entregar a função para Dona Ana Joaquina, o juiz pediu que
o tutor João apresentasse as contas de tutoria. Nessas contas, ele declarou que, dos
quatro órfãos desse inventário, um deles, chamado Elias, se encontrava “no
´Guarapiranga nos estudos”. Além disso, o tutor mencionou gastos com sapatos e papel
para o mesmo herdeiro enquanto estava naquela localidade303. Não constam
informações dos frutos desse investimento, mas sabemos que Elias havia se tornado
tenente.
Os quatros casos apresentados ajudaram-nos a fazer algumas considerações.
Como vimos, os direcionamentos para estudos mais avançados geralmente não
aconteciam para todos os órfãos. Eles respeitavam as diferenças de gênero, conforme
o entendimento no período. Tal fato também foi observado em outras regiões por outros
estudos304. Além disso, mesmo entre os órfãos do sexo masculino, na maioria das
vezes, era apenas um deles o escolhido. A respeito desse último aspecto, entendemos
que ele estava relacionado com um ponto já destacado no capítulo anterior: o fato de
que o investimento na educação de um único filho visava atender a interesses da família,
como uma estratégia para manutenção ou ascensão social, inspirando-nos em Brügger
(2007).
Mas, importante destacarmos, apesar de entendermos que os direcionamentos
dos órfãos para os estudos secundários poderiam aumentar as possibilidades de
sucesso das famílias que buscavam determinada distinção, não estamos dizendo com
isso que os investimentos nos estudos menores não tivessem o seu valor. Ao contrário.
Como já destacamos, numa sociedade em que poucas pessoas sabiam ler e escrever,
permitir o acesso a esse tipo de ensino já garantia uma separação em relação àqueles
que não tiveram nenhum conhecimento das letras.
302
Inventário de Silvério Anacleto Vilar e Souza. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 50, Auto 553, 1776.
303
Como já destacamos no capítulo anterior, acreditamos que existia na Freguesia do Guarapiranga um
professor particular de gramática latina. Isso porque os dados a respeito da existência de uma cadeira de
gramática latina paga com o dinheiro da Coroa naquela localidade fazem menção sobre a sua instalação
apenas por volta de 1786 (SILVA, 2004). Conforme destacou Carrato (1968), essa cadeira teria sido
ocupada pelo padre Silvério Teixeira de Gouveia. A respeito desse padre, ver Fonseca (2011).
304
GORGULHO, Talítha Maria Brandão. “Aos órfãos que ficaram”: estratégias e práticas educativas dos
órfãos de famílias abastadas da Comarca do Rio das Velhas (1750-1800). Dissertação (Mestrado em
Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte: 2011;
OLIVEIRA, Cláudia Fernanda de. A educação feminina na Comarca do Rio das Velhas (1750-1800): a
constituição de um padrão ideal de ser mulher e sua inserção na sociedade colonial mineira. Dissertação
(Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
2008; PAULA, Leandro Silva de. O papel dos tutores na educação e inserção social dos órfãos no Termo
de Mariana (1790 – 1822). Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016; dentre outros.
202
Sendo assim, quando o tutor Antônio Martins Diniz declarou que seus tutelados
“machos” estavam “aprendendo a ler e escrever” em companhia dele e da viúva Teresa
Martins Diniz, pois moravam juntos por serem irmãos, entendemos que o referido tutor
estava primeiramente tentando justificar os gastos feitos durante a sua tutoria. Mas
acreditamos também que esses parceiros entendiam a importância desse tipo de
investimento como possibilidade de manutenção das condições socioeconômicas da
família; sem nos esquecermos ainda que poderia ser uma forma de garantir que os
órfãos tivessem condições no futuro de administrarem os bens que haviam herdado305.
Foi considerando inclusive esse último aspecto que analisamos os
direcionamentos educativos feitos por Dona Francisca de Almeida Pinta e o tutor. Dona
Francisca era mãe dos dois filhos naturais do negociante Jerônimo Ferreira de Souza,
que, ao falecer, teve seus bens avaliados em 1:846$925, permitindo considerá-lo como
pertencente ao grupo 2 – patrimônios intermediários. Jerônimo havia nomeado em
testamento a mãe de seus filhos para exercer a tutoria. Entretanto, o juiz de órfãos optou
por escolher o Alferes Manoel Pinto Cardoso, que assinou o termo em 1794. Apesar
dessa opção por parte do magistrado, Dona Francisca manteve os órfãos sob seus
cuidados, e, pelos dados presentes no inventário, podemos dizer que ela e o tutor
conseguiram traçar de modo positivo essa parceria.
Conforme requerimento de Dona Francisca, feito em 1795, era intenção da
suplicante mandar seus dois filhos – José e Ludovina – para a escola, o que estava em
conformidade com a opinião do tutor. Nas palavras de Dona Francisca, além de estar
necessitada de certa quantia para alimentos e vestuários de seus filhos, era de seu
interesse colocá-los na escola e, por causa disso, precisava de dinheiro. O tutor,
entendendo que “parecia justo”, aprovou o pedido de Dona Francisca. Dois anos depois,
ela fez um novo requerimento de dinheiro para o juiz, declarando que vivia “muito pobre
e por isso impossibilitada de poder alimentar os seus filhos, tanto com o sustento diário,
como os vestuários e paga de mestre de escola”. Além disso, ressaltou que mesmo na
escola régia ela não teria condições de mandar os filhos, porque eles não tinham
vestuários suficientes”. Mais uma vez o tutor reforçou a questão de ser um pedido
“justo”, afiançando o pedido de Dona Francisca306.
305
No inventário feito por morte do marido de Teresa – Antônio Marinho da Cruz –, identificamos: 16
escravos, terras agrícolas e minerais, uma fazenda, gado, algumas joias, tudo avaliado em 2:480$940. Em
decorrência do valor do monte-mor e da qualidade dos bens, classificamos essa família como pertencente
ao grupo 1 – maiores patrimônios. Inventário de Antônio Marinho da Cruz. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício,
códice 56, Auto 625, 1815.
306
Inventário de Jerônimo Ferreira de Souza. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 72, Auto 858, 1793.
(Grifos nosso)
203
O inventário termina sem que tenhamos mais informações dos direcionamentos
educativos dados a esses órfãos. Entretanto, a partir dos elementos presentes no
documento, podemos ressaltar dois aspectos. Primeiro que Dona Francisca vislumbrou
a possibilidade de enviar seus filhos para uma escola pública. E, inclusive, utilizou-se
dessa possibilidade para justificar sua solicitação de dinheiro. Dessa forma, entendemos
que havia um interesse de aproveitar as diferentes oportunidades existentes para
garantir esse tipo de educação. Ao mesmo tempo, a partir das palavras da requerente,
vimos que Dona Francisca pretendia mandar também a sua filha para aprender as
letras. Isto pode representar um reconhecimento da importância de alguma familiaridade
com o mundo da escrita, especialmente quando partimos do fato de que Dona Francisca
e o tutor tiveram algum contato com as letras, já que constam as assinaturas dos dois
no documento307.
Fonte: AHMINC/IBRAM (1º Ofício, códice 72, Auto 858, fl. 38).
Fonte: AHMINC/IBRAM (1º Ofício, códice 72, Auto 858, fl. n.c.).
307
Sobre a possível influência do conhecimento das letras na educação de crianças e jovens, ver Paula
(2016).
204
parte do grupo 2 – patrimônios intermediários. Dos três casos, um documento pertencia
também a uma família do grupo 2, e os outros dois eram do grupo 1 – maiores
patrimônios.
O documento do grupo 2 era o inventário de Manoel Ferreira da Silva. Ele era
casado com Ana Clara do Sacramento, com quem teve quatro filhos, sendo duas
meninas. Não temos informações de como se deu a aprendizagem das letras por parte
dos filhos. Entretanto, no citado inventário consta a assinatura dos quatro herdeiros e
uma procuração feita e assinada pela herdeira Joaquina. Essa procuração escrita pela
própria órfã deu-nos mostras de que ela havia aprendido a escrever, especialmente
porque as testemunhas assinantes do mesmo documento confirmaram que tinha sido
Joaquina a autora308.
Fonte: AHMINC/IBRAM (2º Ofício, códice 36, Auto 397, fl. 107).
308
Inventário de Manoel Ferreira da Silva. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 36, Auto 397, Ano 1799,
fl. 107.
205
Em relação aos documentos do grupo 1 — maiores patrimônios —, o primeiro
deles trouxe a referência de contato com o mundo das letras da órfã Dona Mariana, filha
do Alferes Manoel Coelho Rodrigues, e Dona Josefa de Ávila e Silva, que, como já
mencionamos, analisaremos mais à frente309. Já o segundo documento apresentou os
investimentos na educação da órfã Maria Teresa de Jesus. Ela era filha do Tenente
José Francisco de Sá Mourão e Dona Teresa de Jesus. Como já destacamos
anteriormente, quando o Tenente José faleceu, ele deixou cinco filhos – quatro meninos
e a órfã Maria Teresa. Nas contas apresentadas em 1785 pelo tutor – o Reverendo
Antônio Ribeiro de Azevedo –, consta que aquele inventário devia ao mestre André de
Souza Benavides a quantia de 1$800 pelo ensino de ler e escrever durante quatro
meses para a citada órfã310.
Diante desses dados, podemos dizer que o acesso ao mundo da escrita não
estava restrito aos meninos. Na verdade, acreditamos que as possibilidades de
aprendizagem das letras pelas meninas estavam mais relacionadas com as ações das
famílias de modo particular, que julgavam importante ou não esse tipo de investimento.
Tais considerações valem para todos os grupos sociais analisados, ainda que não
tenhamos encontrado essa prática no grupo 3 – menores patrimônios.
A respeito deste grupo, cabe destacarmos um ponto específico antes de
encerramos nossas considerações sobre os investimentos na educação de caráter
letrado. Como demonstramos até aqui, na documentação investigada não encontramos
nenhum direcionado dos órfãos para o mundo da escrita que tenha sido feito por algum
tutor ou mulher pertencente ao grupo 3 – menores patrimônios. Entretanto, isso não
significa que não tenha ocorrido. Na verdade, acreditamos que as famílias pertencentes
a esse grupo também elegeram, em alguma medida, esse tipo de educação,
incentivadas por alguns dos aspectos já apontados: busca de determinada ascensão
social; instrumentalização dos menores vislumbrando maior conhecimento e
aproveitamento das atividades da família ou para o aprendizado da doutrina cristã.
Estamos dizendo isso pois identificamos na documentação referente a esse
grupo a menção à “educação”, sem informação do que exatamente poderia ser esse
dado. E, por outro lado, como destacamos no capítulo 1, o ato de educar poderia
englobar diferentes tipos de investimentos educativos. Ainda nos inventários
pertencentes a esse grupo, é possível identificar a assinatura de alguns órfãos, o que
nos ajuda inferir que eles tiveram algum acesso à escrita.
309
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777.
310
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 34, Auto 381, 1783.
206
Esse é o caso, por exemplo, quando analisamos as prestações de contas de
tutoria apresentadas por Manoel José Barbosa Pimentel. Ele foi o segundo tutor
nomeado para a órfã Teresa, filha do falecido Antônio Vieira Gomes e Inês Martins
Fragoso311. Conforme declaração presente nas mencionadas contas, a órfã estava com
sua mãe “a qual lhe tem dado e dá toda aquela educação precisa e necessária como
boa mãe que tem sido para a dita sua filha". Além disso, consta no processo a assinatura
dessa herdeira:
Como vemos, não apenas a filha sabia assinar, mas também a própria viúva. Tal
aspecto nos leva a considerar que Inês reconhecia a importância desse investimento
partindo da própria experiência. E essa pode ter sido uma realidade para outros sujeitos
desse grupo de menores patrimônios.
Para finalizar, cabe mencionarmos que até identificamos direcionamentos para
o aprendizado das letras; todavia, o documento encontrado trazia informações de
investimentos feitos quando o pai dos órfãos ainda estava vivo. Nesse caso, como no
presente capítulo estamos trabalhando com as parcerias estabelecidas por causa da
morte do genitor, optamos por não contabilizá-lo entre os documentos. Trata-se do
311
Como já mencionamos anteriormente, o primeiro tutor desse inventário era o Ajudante Miguel Dionizio
Valle, que tinha sido uma escolha do juiz de órfãos. Manoel José Barbosa Pimentel, por sua vez, foi
sugerido pela viúva, como já destacamos. As contas referidas acima foram apresentadas por Manoel que,
logo depois, avisou a viúva que iria pedir a remoção da função, pois iria se “transportar” para Portugal, de
onde era. Aproveitando-se dessa situação, a viúva entrou com um requerimento ao juiz de órfãos declarando
que tinha “capacidade e abonação” para ser tutora de seus filhos, o que foi aceito pelo juiz. Ela assinou o
termo em 1804. Inventário de Antônio Vieira Gomes. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 2, Auto 27,
1799.
207
inventário de José de Magalhães. Ele era casado com Mariana Alves de Araújo, e desse
casamento tiveram ao menos cinco filhos, dos quais três eram machos312.
Para os herdeiros menores, o juiz de órfãos elegeu como tutor um tal Francisco
Alves de Araújo, do qual não conseguimos identificar mais nenhuma informação, além
da aceitação da função, graças ao termo de tutoria assinado “com uma cruz” em 1793.
Entretanto, entre as dívidas passivas apresentadas pela viúva inventariante, vimos que
o casal era devedor do mestre José Ribeiro pelo ensino dos filhos José, Francisco e
João. Além disso, entre as mesmas dívidas, consta o valor de duas resmas de papel a
Manoel Marques, que poderiam ter sido utilizadas por esses menores313.
Diante desses aspectos, podemos dizer que nos três grupos analisados houve
um investimento no aprendizado da leitura e da escrita. Quando órfãos, tais
direcionamentos nos grupos 2 e 3 – patrimônios intermediários e menores patrimônios
– poderiam ser uma manifestação das ações das mulheres em parceria com os tutores
que escolhiam fornecer um ensino além do que era determinado pela lei, a qual,
conforme apontamos, estabelecia o aprendizado de ofícios para aqueles que não
pertenciam às camadas mais abastadas.
Na tentativa de apreender em que medida a oferta do ensino das letras teria sido
combinada com a dos ofícios mecânicos e artesanais, abordaremos a seguir os
direcionamentos para o aprendizado desses últimos.
312
A informação a respeito da quantidade de filhos foi retirada das partilhas dos bens, pois o documento
estava em péssimo estado de conservação. Nesse caso, não podemos dizer se o casal teve mais filhos. Essa
informação seria possível apenas na abertura do processo de inventário ou caso o inventariado tivesse feito
o testamento, o que não foi o caso.
313
Inventário de José de Magalhães. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 18, Auto 193, 1793.
208
3.3.2.1 – A educação para o trabalho destinado aos meninos
Conforme destacou Oliveira (2008), a oferta do ensino dos ofícios manuais era
uma das oportunidades de garantir que no futuro os órfãos teriam pelo menos uma
renda para o sustento básico. Foi pensando nesse aspecto que acreditamos que
algumas mulheres, em parceria com os tutores, investiram na educação de crianças e
jovens.
No que se refere a esse tipo de investimento, acreditamos que ele estava
presente em todos os grupos sociais, como destacou Paula (2016). Entretanto, na
documentação investigada, identificamos os direcionamentos para esse tipo de
educação apenas no grupo 2 – patrimônios intermediários – em seis (37,5%) das
famílias.
Dentre essas famílias pertencentes ao grupo de patrimônios intermediários,
destacamos aqui a família de José Rodrigues Pombo. Casado com Dona Faustina
Josefa de Jesus, o casal morava em Vila Rica e teve três filhos. Como eram menores
quando José faleceu, o juiz nomeou um tutor — o Alferes Domingos da Rocha Pereira
—, que assinou o termo de tutoria em 1781. Oito anos depois ele apresentou as contas
de sua tutoria. Nelas, o tutor declarou que os órfãos estavam com a mãe, que sempre
os inspecionava. Além disso, mencionou que era a mencionada viúva que estava
sustentando os menores e que a mesma regia “com aquela educação e ensino que
costumam dar os bons pais de família”. A respeito dessa educação, declarou que ela
trazia o órfão José “a aprender o ofício de sapateiro” e que o caçula João estava na
escola”314.
Acreditamos que José já teria aprendido as primeiras letras, pois no período
dessas contas de tutoria ele estava com cerca de 13 anos de idade. Tal entendimento
parte de dois princípios: primeiramente porque o seu irmão João estava recebendo esse
tipo de ensino, o que nos leva a pensar que a viúva e o tutor agiram do mesmo modo
com o citado órfão. Em segundo lugar, de acordo com a legislação, quando o órfão
completava 12 anos de idade ele deveria ser encaminhado para o ensino segundo “suas
qualidades”315.
Outro inventário pertencente ao grupo 2 – patrimônios intermediários – em que
identificamos um investimento no ensino dos ofícios manuais foi o do português
Custódio José de Araújo. Conforme declarou em seu testamento, Francisca Maria da
Cruz, mulher branca, solteira e também moradora em Vila Rica, estava grávida de um
314
Inventário de José Rodrigues Pombo. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 31, Auto 345, 1780.
315
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 102, §15, p. 212.
209
filho que ele julgava ser dele. Assim, se essa criança nascesse viva, ele determinou que
a mesma fosse sua herdeira. A criança sobreviveu e se chamou Boaventura, e no
decorrer do processo de inventário teve cinco tutores diferentes, como já destacamos.
Muitos dos motivos para essa quantidade de troca de tutores foram em
decorrência da intervenção de Francisca, outro ponto que também já ressaltamos.
Entretanto, acreditamos que foram exatamente as ações dessa mãe, somadas às
contas de tutoria, que possibilitaram que alguns vestígios da educação de Boaventura
fossem deixados. Durante a duração do processo de inventário, houve a prestação de
quatro contas de tutoria, todavia todas foram dadas por um único tutor – José Antônio
Muniz, que permaneceu na função entre 1783 e 1794.
Os onze anos de tutoria de José abarcaram momentos importantes na formação
de Boaventura. Quando José assumiu a tutoria, o órfão estava com 3 anos de idade.
Cinco anos depois, consta um requerimento de Francisca solicitando um auxílio para o
alimento e educação do órfão. Nele, essa mãe declarou que já trazia Boaventura na
escola, informação que foi ratificada na segunda prestação de contas apresentada por
José Muniz na mesma data, na qual ele ressaltou que "...o órfão se achava em
companhia da sua mãe (...) e lhe constava que [ela] o trazia na escola a aprender a ler,
escrever e contar e que ministrava toda a educação própria de uma boa mãe de
família...".
Na terceira e quarta contas de tutoria, não temos informações dos investimentos
educativos feitos para o órfão Boaventura. Entretanto, sabemos que para o mesmo órfão
a estratégia educativa utilizada foi a de combinar dois tipos de educação, pois em
requerimento apresentado por Francisca em 1799 consta que seu filho já estava com
18 anos de idade e que a citada mãe havia mandado lhe ensinar o ofício de
carpinteiro316.
Como vemos, nesta tutoria houve uma preocupação de garantir as duas formas
de ensino. Acreditamos que essa realidade possa ser explicada por um aspecto já
destacado anteriormente: a iniciativa por parte dos tutores e das mulheres em dar uma
formação que não desrespeitasse a lei, quer dizer, conforme a “qualidade do menor”,
mas que, visando alguma possibilidade de distinção social, ofertasse também as
primeiras letras.
A respeito desse aspecto, isto é, a “educação combinada”, vimos que todas as
seis (37,5%) famílias do grupo 2 – patrimônios intermediários - em que identificamos o
direcionamento para a aprendizagem de algum ofício houve também um investimento
no ensino das letras. Certamente esse tipo de prática estava relacionado com os
316
Inventário de Custódio José de Araújo. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 29, Auto 315, 1780.
210
aspectos já mencionados, tais como visar a certa distinção ou possibilitar maior
conhecimento e gerenciamento dos negócios da família. Mas não podemos descartar
também as oportunidades de acesso a algum trabalho ligado com a escrita, em postos
menos elevados, o que ainda assim garantiria determinada ascensão social para o órfão
e sua família.
Sobre os dois grupos sociais — maiores patrimônios e menores patrimônios —
nos quais não identificamos nenhum investimento na educação de ofícios, acreditamos
que, assim como destacamos em relação ao ensino das letras, houve um
direcionamento. Isso porque encontramos essa prática quando as mulheres assumiram
a tutoria e entendemos que não havia motivos para que os tutores e o grupo feminino
aqui envolvido agissem diferente. Além disso, estamos convencidos de que as
considerações de Fonseca (2005a) a respeito da sociedade mineira sendo fluida e
dinâmica caberiam também aqui, permitindo a identificação de uma “educação
combinada” em todos os grupos sociais.
Some-se a isso o fato de que identificamos na documentação casos como as
intenções educativas do português Francisco Teixeira de Morais, morador do Arraial de
Congonhas e pertencente ao grupo 1 – maiores patrimônios. Em seu testamento ele
declarou que havia tido três filhos naturais com Maria Antônia do Sacramento:
Francisco, José e Vicente. Segundo as suas recomendações, os filhos deveriam ficar
com a mãe e, em relação ao mais novo, Vicente, determinou que ele não deveria sair
da escola “onde o tenho posto até que saiba ler e escrever”. Mais à frente, declarou
ainda que era de seu interesse que toda a sua fazenda, composta de gado, terras
agrícolas e minerais, além de 15 escravos, fosse administrada pelos três filhos.
Acompanhando o cumprimento desses legados testamentais, identificamos que
realmente aqueles herdeiros haviam assumido o governo desses bens, o que evidencia
que os três órfãos tiveram seu processo educativo direcionado para esse tipo de
ocupação317.
Temos ainda os investimentos educativos feitos pelo músico Marcos Coelho
Neto, morador de Vila Rica e pertencente ao grupo 3 – menores patrimônios. Segundo
consta numa notificação de inventário, o músico era casado com Joana Teixeira da
Silva, que, por sua vez, tinha um filho natural chamado João Antônio Teixeira Rijo.
Conforme informação presente nessa notificação, antes de Marcos ter ficado demente,
ele havia ensinado a seu enteado a arte da música, ofício que o referido João utilizava
naquela presente data para “granjear algum interesse”318.
317
Inventário de Francisco Teixeira de Morais. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 49, Auto 595, 1786.
318
Notificação para prestação de inventário dos bens de Marcos Coelho Neto. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício,
códice 162, Auto 2711, 1823. Apesar de estar fora do nosso período, consideramos importante trazer o
211
Por outro lado, se consideramos a posse de patentes militares como uma
oportunidade de ocupação, veremos que a mesma esteve presente em todos os grupos
sociais319. Analisando os inventários eleitos, identificamos a seguinte situação, conforme
o gráfico 12:
Gráfico 12
presente documento para elucidar nossa discussão, visto que a prática educativa aqui mencionada já tinha
ocorrido há alguns anos.
319
Como já ressaltamos brevemente, em Portugal e seus domínios, a organização militar era dividida em
três partes distintas: regulares, auxiliares e irregulares (Ordenanças). Apenas a primeira era paga pela Coroa
e, teoricamente, seus membros deveriam se dedicar exclusivamente a essa atividade. Os indivíduos
pertencentes à tropa auxiliar poderiam conciliar essas funções com outras atividades rentáveis. Mesmo no
caso em que não eram remunerados, o serviço militar trazia alguns privilégios, como: isenção de
determinados impostos; liberação de alguns serviços e não poderiam ser obrigados a exercer serviço
público, inclusive a tutoria, caso não desejassem. Finalmente, os irregulares (Ordenanças) eram compostos
de moradores locais e eram convocados apenas em situações emergenciais. As hierarquias dos postos
militares ocorriam nos regimentos auxiliares e regulares. Informações presentes em Cotta (2014).
212
A única exceção foi Elias de Souza Vilar. Filho do negociante Silvério Anacleto
Vilar e Souza e Dona Ana Joaquina de Souza Osório, vimos anteriormente que ele
estava “no estudo no Guarapiranga”. Apesar de não existir mais nenhuma informação
do processo educativo desse órfão e os possíveis frutos desse período durante o qual
ele esteve em Guarapiranga, identificamos na documentação que Elias havia se tornado
tenente320.
Na verdade, consultando a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino,
encontramos vários requerimentos do mesmo órfão, nos quais ele mencionou que
ocupara, além do cargo de tenente do 2º Regimento de Cavalaria Auxiliar em Vila
Rica321, a função de capitão no Regimento de Cavalaria de São João del-Rei, Comarca
do Rio das Mortes. Nesses mesmos requerimentos consta que ele ocupava essa função
há quase vinte anos322.
No grupo 2 – patrimônios intermediários –, diferentemente, apenas em um dos
três casos identificados o pai possuía uma patente militar. Trata-se do Coronel da
Cavalaria Manoel da Guerra de Souza Castro Araújo Godinho. Solteiro, ele teve dois
filhos com Joaquina Felícia de Oliveira, sendo moradores de Vila Rica. Dos dois filhos,
um era do sexo masculino – José –, que, conforme consta no inventário, se tornou
Cadete no Regimento de Cavalaria na mesma localidade323.
Já no grupo 3 – menores patrimônios – identificamos apenas uma família em
que o órfão possuía a patente militar. José de Magalhães era casado com Mariana Alves
de Araújo e morador de Vila Rica. O casal teve cinco filhos. Como já destacamos, entre
as dívidas do casal havia algumas que haviam sido feitas com os investimentos na
aprendizagem das letras pelos três órfãos machos. Também aqui não conseguimos
identificar o processo educativo desses menores. Todavia, pelos dados presentes no
inventário, sabemos que os filhos estavam na tropa. Segundo a viúva, os filhos estavam
na “tropa paga”, e era dessa ocupação que eles estavam sustentando a ela e as
irmãs324.
Como vemos, os investimentos feitos na educação e criação dos filhos tinham
trazido frutos, pois eram eles que estavam auxiliando a mãe naquele momento. Como
destacou Brügger (2007, p. 161), os pais “esperavam de seus filhos um retorno pelo que
haviam ‘investido’ em sua criação”.
320
Inventário de Silvério Anacleto Vilar e Souza. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 50, Auto 553, 1776.
321
Os regimentos de cavalaria auxiliar eram ocupados, conforme Cotta (2014), por homens brancos que
possuíam cavalos e ao menos um escravo para garantir o seu sustento.
322
Requerimento de Elias Anacleto de Souza Vilar... AHU, Cx. 188, doc. 21, Ant. 1821. Requerimento de
Elias Anacleto de Souza Vilar... AHU, Cx. 160, doc. 96, Ant. 1801.
323
Inventário de Manoel da Guerra de Souza Castro Araújo Godinho. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice
47, Auto 520, 1814.
324
Inventário de José de Magalhães. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 18, Auto 193, 1793.
213
Diante dos dados aqui apresentados, podemos dizer que em todos os grupos
sociais houve um investimento na aprendizagem de uma ocupação; e que algumas
mulheres “inspecionadas” pelos tutores buscaram direcionar os menores para o
aprendizado de uma “educação combinada”. Nesses termos, podemos dizer que houve
uma prática que buscou ir além do que havia sido prescrito pela legislação, pois houve
investimentos na tentativa de garantir um sustento futuro e também alguma distinção
social.
325
Importante explicarmos um aspecto. Quando ressaltamos que determinados tipos de ofícios
possibilitavam uma forma de trabalho para as órfãs, não estamos dizendo que todas as meninas pertencentes
aos diferentes grupos socioeconômicos utilizavam de tais ensinamentos como uma forma de profissão ou
ocupação. Na verdade, os “usos” respeitavam o pertencimento socioeconômico. Assim, as órfãs que faziam
parte dos grupos com determinada condição utilizavam esses ensinamentos como uma forma de distração
ou poderia ser ainda uma forma de exercitar a caridade, através da filantropia, como bem destacou Verney
(1746). Para as meninas pertencentes às famílias com patrimônios menores, seria uma forma de sustento
próprio e de ajuda familiar. Nossa intenção ao utilizar o termo “trabalho” ou mesmo “manual” em algumas
partes do presente estudo para se referir à aprendizagem de determinados “ofícios femininos” é apenas para
distingui-los como um tipo de aprendizagem voltada para uma preparação mais “prática”.
326
Inventário de José Francisco de Sá Mourão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 34, Auto 381, 1783.
Pertencente ao grupo 1 – maiores patrimônios.
214
companhia da mãe “com toda a boa educação que a mesma lhe dava"327; ou, finalmente,
que a menina estava recebendo a “educação precisa e necessária” 328.
Nesses termos, vale ressaltarmos um aspecto. Em nosso entendimento, a
menção à “boa educação” ou “educação precisa” era uma alusão àquela preparação
para o exercício dos papéis considerados femininos, como já destacamos. Sendo assim,
decidimos por contabilizar também esses casos no gráfico 13.
Dos 35 casos eleitos para o estudo das práticas educativas, identificamos
investimentos na educação das órfãs em oito (22,86%) casos, assim distribuídos
conforme o gráfico 13:
Gráfico 13
grupo 1
14 13 grupo 2
12 grupo 3
10 9
8
6 5
4
4 3
2 1
0
Tiveram acesso Não declarado
Como podemos ver a partir do gráfico 13, foi no grupo 1 – maiores patrimônios
– que identificamos a maior quantidade de famílias que ofereceram alguma forma de
aprendizagem de ofícios para as órfãs. Cinco (35,71%) famílias de um total de 14. Já
no grupo 2 – patrimônios intermediários – temos o mesmo tipo de direcionamento em
apenas três (18,75%) famílias das 16 eleitas. E no grupo 3 – menores patrimônios –
identificamos apenas uma (20%) de um total de cinco.
Mas, uma vez que incluímos nessa análise quantitativa apresentada no gráfico
13 aquelas declarações mais gerais a respeito da educação feminina, cabe então
destacarmos aqueles casos que revelaram de modo detalhado que tipos de
327
Inventário de José Gomes de Carvalho. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 34, Auto 386, 1793.
Pertencente ao grupo 2 – patrimônios intermediários.
328
Inventário de Antônio Vieira Gomes. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 2, Auto 27, 1799. Pertencente
ao grupo 3 – menores patrimônios.
215
investimentos foram feitos. Identificamos a menção aos ofícios apenas nos três
(18,75%) casos pertencentes grupo 2 – patrimônios intermediários. E, em todos eles, a
referência era de que as meninas estavam aprendendo costuras.
O Alferes Domenciano Ferreira de Carvalho, por exemplo, depois de várias
convocações por parte do juiz de órfãos para vir apresentar as contas de sua tutoria,
declarou nas prestações de contas em outubro de 1826 que todos os seus três órfãos
estavam em companhia da mãe, Josefa Gonçalves Saragoça, moradores de Vila Rica.
Além disso, ao responder a respeito do estado dos órfãos, mencionou que Felisberta,
com 13 anos de idade naquela ocasião, estava “aprendendo a coser”329.
O Alferes Domingos da Rocha Pereira, por sua vez, assim como o tutor anterior,
destacou nas constas de sua tutoria apresentadas em novembro de 1789 que os três
órfãos estavam “debaixo da inspeção de sua mãe”. Quando perguntado sobre a única
órfã, ele declarou que Ana estava “exercitando-se na costura”. E, na tentativa de reforçar
um investimento na educação segundo o sexo da menor, fez questão de mencionar
ainda que que a menina estava aprendendo também as “demais prendas que são lícitas
ao seu estado e sexo"330
Finalmente temos as declarações do tutor, o também Alferes Antônio Pereira de
Carvalho. Ele era cunhado dos dois órfãos filhos do português Nicolau Alves da Rocha
e Ângela da Conceição, moradores de Vila Rica. Conforme a prestação de contas dadas
pelo referido tutor em maio de 1782, a herdeira Ana estava “no exercício de suas
costuras”, em companhia de sua mãe331.
Assim, pensando nos investimentos para a aprendizagem “dos ofícios
femininos”, ainda que não tenham sido declarados quais deles seriam e os
direcionamentos para a aprendizagem das letras, podemos dizer que houve, em alguma
medida, um interesse por parte dos tutores e mulheres em fornecer uma educação
mista. Dizemos isso pois identificamos essa prática nos três grupos analisados.
No grupo 1 – maiores patrimônios – identificamos duas (12,5%) famílias que
decidiram por esse tipo de oferta. No grupo 2 – patrimônios intermediários – foram os
três (18,75%) casos apontados acima que fizeram investimento nos dois tipos de
educação. Já no grupo 3 – menores patrimônios – o inventário identificado também
trazia indícios das duas práticas, pois, como demonstramos, a herdeira Teresa sabia ao
menos assinar o próprio nome332.
329
Inventário de Manuel da Rocha Monteiro. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 121, Auto 1523, 1815.
330
Inventário de José Rodrigues Pombo. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 31, Auto 345, 1780.
331
Inventário de Nicolau Alves da Rocha. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 112, Auto 1424, 1779.
332
Inventário de Antônio Vieira Gomes. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 2, Auto 27, 1799.
216
Assim, os dados identificados ajudam-nos a reforçar que a educação das
crianças e jovens no período acontecia respeitando-se o valor atribuído e o interesse
dos tutores e das mulheres. Apontamos essa mesma situação quando analisamos as
tutoras no capítulo anterior. Do mesmo modo, apesar de percebemos que os ofícios
ofertados às meninas e aos meninos respeitavam o sexo, podemos dizer que o processo
educativo não era determinado apenas por esse aspecto. Assim como os meninos, as
meninas também tinham acesso ao mundo da escrita. Seria isso uma progressiva
apropriação de uma concepção que apontamos no primeiro capítulo de que as mulheres
também deveriam aprender as primeiras letras como uma forma de garantir um melhor
desempenho no exercício de seus papéis de boas mães educadoras, esposas e donas
de casas?
217
modalidades. Como já destacamos, essa família pertencia ao grupo 1 – maiores
patrimônios – e era moradora do Arraial de Itabira do Campo.
O tutor e a viúva eram irmãos, e consta que garantiram o acesso ao mundo da
escrita para os herdeiros “machos” e que a mãe educava as “fêmeas” “como tal”.
Preocupados em promover também uma “boa educação”, consta que os dois levavam
os órfãos para a missa, tendo uma casa na sede do citado arraial que era utilizada
especialmente quando precisavam acompanhar os rituais religiosos333.
Já os órfãos de Nicolau Alves da Rocha e Ângela da Conceição eram tutelados
pelo genro, o Alferes Antônio Pereira de Carvalho. Essa família pertencia ao grupo 2 –
patrimônios intermediários – e morava em Vila Rica. A partir da declaração presente nas
contas de tutoria apresentadas pelo citado genro em maio de 1782, podemos dizer que
também para essa família houve uma preocupação de educar os órfãos nos “bons
costumes”. Conforme o mesmo tutor, todos os menores estavam em poder da mãe e
estavam recebendo uma “boa educação tanto civil como espiritual”. Ele tinha esse
entendimento porque, segundo suas próprias palavras, os órfãos sabiam “a doutrina”334.
A referência a esse tipo de ensino poderia ser dada também de modo mais
indireto. Antônio Lopes de Melo, tutor dos órfãos de Francisco Gonçalves de Lima, por
exemplo, mencionou numa declaração de dívidas existentes por conta de sua tutoria
que devia certa quantia porque tinha comprado um chapéu para que a herdeira
Escolástica pudesse ir à missa. Os órfãos – um total de três – estavam com a mãe, a
viúva Maria do Rosário, e eram moradores do Arraial de Cachoeira do Campo; essa
família era pertencente ao grupo 2 – patrimônios intermediários335.
Entre os sujeitos pertencentes ao grupo 3 – menores patrimônios –, a
preocupação com “a boa educação” dos órfãos pode ser observada no relato da mãe
da menor, filha natural de Manoel Pinto Brandão. Segundo a crioula forra, era ela que
tinha amparado, prestado socorro e alimento e, inclusive, a doutrina para sua filha, sem
o auxílio do tutor336.
A partir do que analisamos a respeito dessas três modalidades de ensino –
primeiras letras, ofícios e a educação moral –, podemos dizer que os investimentos dos
tutores e das mulheres dos diferentes grupos sociais buscaram em alguma medida
fornecer uma educação que pudesse “regular os costumes”, ensinar os preceitos civis
e religiosos no que se refere à formação mais geral. No entanto, não descuidaram da
333
Inventário de Antônio Marinho da Cruz. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 56, Auto 625, 1815.
334
Inventário de Nicolau Alves da Rocha. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 112, Auto 1424, 1779.
335
Inventário de Francisco Gonçalves de Lima. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 51, Auto 621, 1770.
336
Inventário de Manoel Pinto Brandão. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 40, Auto 461, 1810.
218
educação de natureza mais prática, pois entediam que esta era uma forma de garantia
de sustento e/ou ascensão social.
De qualquer modo, se houve uma preocupação de oferta de uma educação
mista, percebemos que foi especialmente no grupo 1 – maiores patrimônios – que os
tutores e as mulheres objetivaram o ensino das letras, demostrando uma tendência. Isso
evidencia o cumprimento da legislação, que determinava uma educação segundo a
“qualidade” dos menores. Por outro lado, foi também nesse grupo que identificamos a
maior quantidade de investimentos familiares na aprendizagem de algum ofício, o que
demonstra que o processo educativo ultrapassava as questões socioeconômicas.
Analisando a documentação, não podemos afirmar que as parcerias
aumentaram as chances educativas dos menores, pois os direcionamentos na
educação dos órfãos seguiram a mesma orientação de quando eram tutoras; isto é, as
mulheres, quando tutoras, também buscaram agir na tentativa de educar as crianças e
jovens nos diferentes tipos de educação.
No que se refere às escolhas a respeito de que direcionamento educativo deveria
ser dado ao órfão, não identificamos nenhum caso em que o tutor e/ou a mulher
demonstraram alguma forma de resistência. Na verdade, os documentos revelaram que
havia sempre uma concordância a respeito disso, ocorrendo inclusive certa
cumplicidade quando eram solicitados valores para investimento na educação dos
menores.
Finalmente, podemos dizer que o fato de serem partícipes não impossibilitou em
nada as ações das mulheres para assumir o seu papel de educadoras. Assim como
quando eram tutoras, percebemos que elas tiveram importância significativa, adotando
diferentes estratégias para educar as crianças e jovens.
Com vistas a demonstrar de modo mais circunscrito a importância das mulheres
na educação e manutenção da sua família, apresentaremos a seguir as ações
desenvolvidas por Dona Josefa de Ávila e Silva.
3.4 Dona Josefa de Ávila e Silva337 - uma viúva e suas ações para educar
seus filhos e administrar a família
337
Ou Dona Josefa de Ávila Figueiredo. Há as duas formas grafadas nos documentos do marido, dela e
também dos filhos.
219
educativas. Dentre essas parcerias, acreditamos que aquela iniciada pela viuvez de
Dona Josefa de Ávila e Silva seja um bom exemplo. Como tentaremos demonstrar, o
fato de Dona Josefa não ter assumido a tutoria dos filhos não impediu que ela
participasse das decisões do grupo familiar e definisse o futuro educativo dos filhos.
Dona Josefa era irmã de mais 13 filhos do Capitão Francisco da Rocha Brandão
e Dona Maria da Silva e Ávila. Ela era originária do Arcebispado da Bahia, de onde veio
com seus pais para as terras mineiras. Ao que tudo indica, toda a família se instalou
inicialmente no Arraial de Congonhas do Campo, Termo de Vila Rica, onde estabeleceu
diferentes negócios tanto no setor agrícola quanto na mineração338.
Dona Josefa casou-se com o Alferes português Manoel Coelho Rodrigues, que,
conforme Trindade (1951), era seu parente339. Ele era filho legítimo de Antônio Coelho
e Maria Seabra, que faleceram em Portugal. Segundo consta no testamento de Manoel
Coelho, o casal tinha nove filhos340, dos quais seis ainda eram menores quando os bens
foram inventariados: Dona Francisca, 23 anos; Dona Ana, 22 anos; Vicente, 15 anos;
Dona Mariana, 18 anos; José, 10 anos e Nicolau, 6 anos341.
Pelos dados constantes no inventário, não foi possível conhecermos as
condições materiais em que vivia esta família342; mas sabemos que as posses que
cabiam ao marido foram avaliadas em 3:957$000, conforme a escritura de compra e
venda que Dona Josefa apresentou no ano de 1777, declarando que havia comprado
todos os bens de seu cônjuge antes do falecimento dele343.
338
Essas informações foram retiradas dos cruzamentos de testamentos e inventários levantados para a
pesquisa; de Trindade (1951) e dos dados disponíveis no site da Family Search:
https://familysearch.org/about Acessado em 16-02-2016.
339
O autor não especificou qual tipo de parentesco seria exatamente, e na documentação não conseguimos
identificar.
340
Os filhos eram: Dona Maria Josefa de Ávila, casada com o Capitão Comandante Luís Lobo Leite Pereira;
Sargento-mor José Coelho de Seabra, que se casou com a sobrinha Dona Francisca Umbelina de Ávila
Lobo Leite Pereira; Capitão Francisco Coelho da Silva Brandão, que se casou com a prima Dona Bárbara
de Vasconcelos Parada e Souza; Dona Mariana de Ávila e Silva, que se casou com o Alferes Miguel da
Silva Brandão; Capitão Nicolau Coelho Seabra, que se casou com Dona Luíza Teixeira de Jesus; Dona
Francisca de Ávila e Silva, que se casou com o Sargento-mor José de Vasconcelos Parada e Souza, enteado
de sua tia Dona Teresa; Dr. Vicente Coelho de Seabra, que se casou com Dona Francisca Pimentel; Dona
Ana Francisca de Ávila e Silva, que se casou com o Capitão-mor Antônio Agostinho Lobo Leite Pereira,
provavelmente primos; e o Capitão Pedro Coelho de Seabra, que se casou com Dona Isabel de Ávila Lobo
Leite Pereira, sua sobrinha. Com exceção de Dona Maria Josefa de Ávila, todos os demais se casaram
depois do falecimento do pai.
341
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777.
O filho Nicolau nasceu depois da feitura do testamento.
342
No inventário feito por morte do Dona Josefa em 1811, podemos ter uma noção das posses dessa família,
apesar de já terem se passado trinta e quatro anos de falecimento do marido. Conforme descrição dos bens,
quando Dona Josefa faleceu, ela tinha: 29 escravos; casas de moradas; fazendas; terras agrícolas e minerais;
várias ferramentas, inclusive tendas para o ofício de ferreiro; todos os ornamentos da capela, dentre eles,
um missal “muito usado”. Todas essas posses foram avaliadas em 13:558$802. Inventário de Josefa de
Ávila e Silva. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 31, Auto 347, Ano 1811.
343
Importante destacarmos que, quando era feita a venda dos bens para um dos cônjuges, tal transação
ocorria da seguinte maneira: primeiramente eram avaliadas todas as posses; depois, o valor total era
220
Mas, para além do valor do monte-mor, foram outros elementos constantes no
inventário que nos ajudaram a afirmar de que se tratava de uma família distinta na
localidade onde vivia. A maioria dos filhos e genros eram donos de patentes militares, e
as mulheres eram sempre referenciadas pelo título de “dona”344. Somam-se a isto as
redes de sociabilidades estabelecidas: no casamento celebrado em 1779 entre a filha
Dona Francisca de Ávila e Silva e o Sargento-mor José de Vasconcelos Parada e
Souza, por exemplo, um dos padrinhos foi o general da capitania D. Antonio de Noronha.
Já em 1780, na celebração do matrimônio entre a filha Dona Ana Francisca de Ávila e
Silva e o Capitão-mor Antônio Agostinho Lobo Leite Pereira, uma das testemunhas foi
o governador da capitania e capitão-general Dom Rodrigo José de Menezes.
Em 1770, o Alferes Manoel, sentindo-se um pouco molesto, temendo a “morte e
desejando por minha alma no caminho da salvação”, decidiu mandar redigir o seu
testamento. Assim como as demais pessoas de seu tempo, ele não deixou de
estabelecer como desejava que ocorresse o seu sepultamento e, do mesmo modo,
mandou celebrar missas por sua alma. Para o cumprimento das suas disposições
testamentárias, Manoel elegeu em primeiro lugar a sua esposa. Mas, para assumir a
tutoria dos seus filhos, ele escolheu o Capitão Luís Lobo Leite Pereira, que, naquela
ocasião do testamento, era seu único genro, e todos os seus filhos eram menores.
Sete anos depois da escrita das disposições testamentárias, o Alferes Manoel
faleceu, e seu genro assinou o termo de tutoria, tornando-se assim o responsável legal
pelos seis cunhados, que ainda eram menores. Entretanto, apesar da aceitação de tal
encargo, os dados presentes no inventário evidenciaram que a efetivação dos
compromissos dessa obrigação ocorreu de modo compartilhado com sua sogra.
Na verdade, podemos dizer que o tutor acompanhava as ações de Dona Josefa,
já que ele fez questão de ressaltar que a viúva dava boa educação aos menores com
“muito cuidado e zelo”. Além disso, quando chamado, ele sempre aprovava os
requerimentos que Dona Josefa apresentava ao juiz de órfãos. Mas, por outro lado,
temos indícios de que a viúva tinha grande habilidade, assumindo a frente de muitas
negociações, da administração dos bens e, especialmente, da continuidade da
educação dos menores. Assim, acreditamos que o tutor assumiu a função em termos
legais, mas na prática foi a viúva que tomou para si a responsabilidade de gerenciar
dividido em duas partes, cabendo ao comprador realizar o pagamento apenas de uma delas. Geralmente,
nesses tipos de transações entre cônjuges, os acordos estabeleciam o início dos pagamentos para depois da
morte do vendedor. Para o caso aqui analisado, não podemos afirmar com certeza, pois não havia a cópia
da escritura. Já em relação aos bens pertencentes ao casal, podemos dizer que, quando os mesmos foram
avaliados, eles valiam mais de 7:900$000.
344
A discussão sobre o termo “dona” será apresentada no capítulo 4.
221
todos os bens e filhos quando se manteve como o “cabeça do casal”, e os menores, sob
seus cuidados345.
No que se refere ao gerenciamento das posses de seu grupo familiar, podemos
dizer que Dona Josefa parecia mesmo ter grande capacidade. Dos nove filhos, consta
no termo de quitação346 a herança de cinco deles, inclusive das duas filhas – Dona
Francisca e Dona Ana –, que eram menores quando o inventário foi aberto, mas se
casaram pouco tempo depois. Dos outros quatro filhos que não se emanciparam no
período abarcado pelo inventário e, consequentemente, não receberam a parte que lhes
cabia da herança paterna, não houve nenhuma reclamação ou questionamento por
parte do juiz de órfãos. Apesar disso, não temos condições de trazer muitas informações
a respeito, pois nem o tutor nem a viúva tinham que prestar contas da tutoria, dado o
fato de que Dona Josefa havia comprado a parte do marido e, conforme o escrivão, ela
estava obrigada apenas a fazer os pagamentos referentes a essa transação.
Podemos afirmar, entretanto, que certamente havia uma preocupação por parte
dela em deixar bem estabelecidas as despesas que poderiam ser feitas com os
menores. Isso porque, dentre os vários requerimentos apresentados por Dona Josefa,
consta um emitido em 1781 em que a mesma apresentou os gastos já feitos e solicitou
ao juiz de órfãos que determinasse uma quantia para a sustentação dos menores a
partir daquela data347.
A partir desse requerimento, o juiz estabeleceu um valor anual de 20 oitavas 348
para cada menor e, por causa disto, as informações que temos sobre os gastos são
referentes apenas ao período de abertura do inventário – 1777 – até aquela data – 1781.
Nesse período de quatro anos, temos muitas informações das despesas feitas com
vestuários, calçados e especialmente com a educação, que nos ajudaram a vislumbrar
345
Explicamos o entendimento da expressão “cabeça do casal” no capítulo 2.
346
O termo de quitação era um documento que comprovava que os bens partilhados tinham sido transferidos
para o herdeiro. Importante reforçar, ainda, que não estamos afirmando aqui que não houve uma negociação
dentro do grupo familiar e até mesmo uma decisão do grupo por determinados direcionamentos, como, por
exemplo, no destino de algum bem. Apenas estamos tentando ressaltar que na documentação há vários
indícios de que o tutor parecia concordar com as ações dessa viúva, aprovando suas práticas e, inclusive,
destacando a desenvoltura que a mesma tinha.
347
De acordo com a solicitação da viúva, tanto a dívida já existente quanto as demais despesas que,
porventura, surgissem com a criação e educação dos menores, deveriam sair das legítimas de cada filho.
Elas seriam descontadas das prestações que a viúva estava pagando em decorrência da compra da meação
de seu marido, o que foi aceito pelo juiz.
348
Conforme destacou Paiva (1995), o valor de cada oitava de ouro em pó durante o século XVIII variou
entre 1.200 a 1.500 réis. Nesse caso, como o juiz determinou 20 oitavas de ouro para cada menor, podemos
dizer que o valor foi de aproximadamente 30.000 réis, na época grafado da seguinte maneira: 30$000.
Sendo assim, ela poderia gastar com os quatro filhos em torno de 120$000 anuais. Para maiores informações
sobre equivalência de valores, consulte “Conversão de Oitavas de Ouro em réis, em Minas Gerais”. Anexo
1 (PAIVA, 1995, p. 208).
Para termos uma noção desse valor em réis, utilizamos a tabela existente em Paiva.
222
um pouco dos investimentos da família no futuro dos menores, corporificados de modo
particular nas ações de Dona Josefa.
Pelas contas presentes no inventário, percebemos que Dona Josefa buscou
deixar registrados os gastos feitos com os filhos de modo individual. No momento da
morte de seu marido, como já destacamos, Dona Francisca e Dona Ana, com 23 e 22
anos de idade, respectivamente, já estavam “quase” emancipadas e se casaram pouco
tempo depois. Por causa disso, as informações dos gastos eram apenas dos outros
quatro menores: Vicente, D. Mariana, José e Nicolau. Comecemos analisando os
investimentos na educação de Dona Mariana.
Foram poucos os dados deixados sobre a educação de Dona Mariana. As contas
apresentadas revelaram que os gastos com essa menor eram exclusivamente com
vestuário e calçados. Entretanto, é provável que Dona Mariana estivesse sendo
preparada para assumir a função de “boa esposa, mãe e dona de casa”, pois sabemos
que ela se casou com o Alferes Miguel da Silva Brandão. Além disso, no inventário de
sua mãe consta a sua assinatura, o que nos leva a inferir que ela foi inserida em alguma
medida no mundo da escrita349. Some-se a isso a declaração da própria viúva que
ressaltou que estava trazendo os quatro filhos, dentre eles, a Dona Mariana, “no estudo
e escolas” para “aprenderem segundo as suas qualidades”, permitindo-nos cogitar
alguma forma de investimento na educação dessa órfã também350.
Mas é sobretudo nos direcionamentos na educação dos três órfãos do sexo
masculino que encontramos os projetos arquitetados com a participação de Dona
Josefa. Decerto, por causa da “qualidade” de seus filhos, percebemos que houve uma
preocupação por parte dela em direcioná-los para o mundo da leitura e escrita.
Assim, temos que, para o órfão Nicolau (que na abertura do inventário estava
com 6 anos de idade), além dos gastos com vestuário e calçados, ela estava devendo
a quantia de seis oitavas e meia (aproximadamente 9$750) na escola em Vila Rica.
Apesar de não mencionar que escola seria essa ou ainda qual era o mestre, sabemos
que esse valor era correspondente a um ano de estudos do menor, conforme consta
nas despesas. Pela pouca idade, é bem provável que ele estivesse aprendendo as
primeiras letras. Já no inventário de Dona Josefa identificamos que ele havia se tornado
capitão, se casado com Dona Luiza Teixeira de Jesus e tinha sido um dos
testamenteiros eleitos pela mãe para cumprir as últimas disposições.
Para o órfão José, com 10 anos de idade, ela declarou que devia pelo “ensino
de ler pelo tempo de um ano”. O valor era o mesmo devido na escola em que o irmão
349
Inventário de Josefa de Ávila e Silva. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 31, Auto 347, Ano 1811, fl.
33v.
350
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777.
223
Nicolau estudava – seis oitavas e meia —, referentes ao ano de 1778. Entretanto, não
temos condições de dizer se os dois menores estudaram no mesmo estabelecimento
de ensino. Sabemos que, por volta de 1779 ele havia sido enviado para o Colégio dos
Padres Osórios, na Freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Sumidouro, em
Mariana, mesmo local onde já se encontrava o irmão Vicente.
Conforme carta enviada em junho de 1778 pelo padre mestre Joaquim da Cunha
Osório, ele havia recebido o órfão José depois de um pedido da mãe, que desejava que
o mesmo terminasse de aprender a ler e escrever351. Nas palavras do padre, ele
aceitava tal pedido “com boa vontade por que julgo imitará o seu irmão [Vicente], que
até o presente me tem causado muito gosto, tanto pelo aumento que tem tido no estudo
como pela sua boa índole”352.
O citado colégio, conforme Villalta (2007, p. 267), “recebia moços de toda a
capitania, de mais de onze anos” e funcionava em regime de internato, o que talvez
pudesse explicar as despesas feitas “em companhia” do Padre Manuel Joaquim da
Cunha Osório com “sustento e ensino”, conforme declaração da viúva353.
José ficou no mencionado colégio por dois anos e meio, segundo informação de
Dona Josefa, sendo que no ano de 1780 consta que ele já estava aprendendo
gramática354. No período que permaneceu no colégio, a viúva despendeu cerca de 79
oitavas de ouro (em torno de 118$500). Não sabemos exatamente o aproveitamento
desses investimentos feitos por Dona Josefa na educação de José, mas consta no
inventário dela que ele havia se tornado capitão e, além disso, dentre todos os irmãos,
fora eleito para tutor dos órfãos seus sobrinhos, filhos do Capitão Francisco Coelho da
351
Essa informação acaba divergindo dos dados apresentados por Villalta (2007) e Carrato (1968), que
declararam que no colégio dos Osórios não havia curso de primeiras letras. Não estamos afirmando que os
padres se dedicaram a esse tipo de ensino, mas parece pelo menos que, em decorrência de pedidos
particulares, eles poderiam assumir essa função também. Estamos dizendo isso porque, na mesma carta, o
citado padre declarou que não cobraria pelo ensino de ler e escrever, apenas o sustento do menor, que ficaria
em 20 oitavas anuais. Para o trabalho de ensinar, a cobrança se iniciaria apenas quando José passasse a
aprender gramática. Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37,
Auto 419, Ano 1777, fl. 57.
352
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777.
353
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777,
fl. 46.
354
A primeira informação de que José estava no Sumidouro nos foi dada pelo padre mestre Joaquim da
Cunha Osório através de uma carta para a mãe – Dona Josefa. A carta é datada de 08/1780, e nela consta
que haviam chegado “a esta casa os nossos estudantes Vicente e José e ficam ambos em minha companhia
segundo v.m. ordena”. Entretanto, acreditamos que ele estava no colégio, pelo menos, desde 1779. Esta
suposição parte das informações presentes na carta enviada em 06/1778, pelo mesmo padre mestre para
Dona Josefa e já mencionada acima, quando ele disse que aceitaria José para acabar de ensinar a ler e
escrever. Além disso, sabemos que em 1778 ele estava aprendendo a ler, sem referência do local de ensino.
Para o ano de 1779 não houve informações de gastos com estudo nas contas de Dona Josefa, o que
acreditamos tenha ocorrido porque o padre mestre Joaquim declarou que o aceitava sem cobrar pelo ensino
de ler e escrever, como destacamos. Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício,
Códice 37, Auto 419, Ano 1777.
224
Silva Brandão, enquanto sua cunhada Dona Bárbara solicitava mercê régia para
assumir tal encargo355. Ele também foi nomeado testamenteiro da mãe em conjunto com
os irmãos Nicolau e Pedro.
Finalmente temos os investimentos na educação do órfão Vicente, que, na
abertura do inventário de seu pai, estava com 15 anos de idade. Conforme informações
dadas por Dona Josefa e também nas cartas que ela recebia do padre mestre, Vicente
esteve no colégio dos Osórios para aprender gramática. Sabemos que ele permaneceu
naquele estabelecimento até o ano de 1778, e desse período consta, entre os gastos
apresentados por Dona Josefa, que ela devia ao mestre e também pela aquisição de
alguns livros “para o estudo que comprei”. Somadas a estada, o ensino e os livros, ela
declarou que devia em torno de 61 oitavas de ouro (aproximadamente 91$500)356.
Segundo as palavras do padre mestre Joaquim, Vicente teria sido um aluno
exemplar, capaz de dar ao referido professor muito “gosto e contentamento” e
cumprindo sempre “o seu dever”. Dona Josefa, por seu turno, parecia não negligenciar
a educação desse filho. Tanto foi assim que, interessada em mandá-lo para o ensino de
filosofia no Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte, na cidade de Mariana 357, ela
pediu conselho a respeito para aquele padre mestre. Ele, por sua vez, certo de que
Vicente ainda não tinha alcançado “total suficiência (...) que conheço que poderá
aumentar-se”, sugeriu, em carta enviada em agosto de 1778, que ele deveria
permanecer em sua companhia. De qualquer modo, deixou claro que Dona Josefa
deveria determinar “o que melhor lhe parecer”, pois o seu desejo era “vê-lo completo
em todas as ciências”358.
Apesar da sugestão do padre, parece que Dona Josefa optou pela outra
possibilidade, pois, pelas contas apresentadas pela viúva, sabemos que ainda no ano
de 1778 Vicente foi matriculado no curso de Filosofia no mencionado seminário. Talvez
uma explicação para isso seja uma carta, datada de setembro de 1778, do Capitão-mor
355
O capitão José assinou o termo de tutor dos seus sobrinhos em agosto de 1806. Já Dona Bárbara
conseguiu a provisão régia e assinou o termo em março de 1812. Inventário de Francisco Coelho da Silva
Brandão. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 51, Auto 624, Ano 1806.
356
A viúva declarou que devia 46 oitavas e ¼ pelo ensino e sustento; e 15 oitavas e ¼ da compra de livros.
Conforme os dados presentes nesse inventário e também numa carta existente em outro processo – de
Manoel Carreiras da Cruz –, enviada pelos mesmos Osórios, acreditamos que o valor cobrado anualmente
no mencionado colégio era de 34 oitavas (incluídos o ensino e o sustento). Diante disso, é provável que o
menor Vicente estivesse no colégio do Sumidouro há pelo menos um ano e meio, o que indica que tenha
sido enviado antes do falecimento do pai e lá foi mantido pela mãe, Dona Josefa. O inventário mencionado
foi analisado no capítulo 2. Inventário de Manoel Carreiras da Cruz. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice
50, Auto 557, Ano 1772
357
Sobre esse Seminário, ver Villalta (2007); Carrato (1968) e Silva (2004)
358
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777,
fl. 59.
225
José Alves Maciel359 para sua “comadre” Dona Josefa. Nela, o citado capitão-mor
declarou que já havia “arrumado” o menor Vicente e, também, o tinha “bem
recomendado ao reitor, e ao mestre da filosofia”. Dessa forma, acreditamos que ao
mesmo tempo que se aconselhava com o padre mestre, Dona Josefa acionava suas
redes de sociabilidade e capitais que a família possuía para “arranjar” o seu filho
Vicente360.
Uma vez que o filho Vicente estava no seminário, Dona Josefa precisou
despender certa quantia não apenas para o pagamento do mestre, mas também para o
vestuário “para uso dos estudos”, a matrícula, papéis, penas e tinteiro. Segundo Costa
(2015), no período que Vicente permaneceu naquela instituição, ele teria tido aula de
filosofia natural com o Cônego Luiz Vieira da Silva. Este, por sua vez, teria sido “o
proprietário da maior biblioteca dentre os inconfidentes”, conforme Villalta (1999, p. 379).
No mesmo período que esteve no seminário, consta também uma dívida
despendida com o menor na estalagem de João de Caldas. Não conseguimos identificar
informações sobre esta estalagem, mas esse dado nos ajudou a cogitar que Vicente
não morava no seminário.
Não temos informações de como foi o aproveitamento desse órfão no período
que esteve naquele estabelecimento na cidade de Mariana; mas, segundo Costa (2015),
em 1783 ele já estava matriculado no curso de Filosofia Natural que havia sido criado
pela Reforma Pombalina na Universidade de Coimbra. No ano de 1786 ele se matriculou
na Faculdade de Medicina na mesma instituição. O título de bacharel em filosofia e
matemática veio em 1787, e o de médico, em 1790361.
Vicente, conforme Villalta (2007, p. 268), “viria a ser um dos primeiros químicos
fora da França a aceitar as idéias de Lavoisier (...) e a adotar os novos termos
desenvolvidos pelos autores franceses”. Ele teria sido também, de acordo com Costa
(2015), sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, demonstrador de Química,
Lente Substituto de Metalurgia, Zoologia e Botânica na Universidade de Coimbra e teria
exercido a função de médico. Some-se ainda o fato de que, quando estudante, ele teria
publicado sua primeira obra “Elementos de Química”, impressos em Coimbra. Segundo
Villalta (2007, p. 268), esse livro teria sido o primeiro “de química moderna escrito em
língua portuguesa”.
359
Acreditamos que o mencionado capitão-mor era o pai do Dr. José Alvares de Maciel, que se tornaria um
dos inconfidentes. Sobre os inconfidentes e a Inconfidência Mineira, ver, dentre outros: Villalta (1999);
MAXWELL (2010); FURTADO (2000); FONSECA (2001); LEMOS (2003) e RODRIGUES (2008).
360
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777,
fl. 54.
361
Virgínia Valadares (2004) identificou Vicente entre os alunos da Universidade de Coimbra. Entretanto,
ela indicou apenas a matrícula feita no ano de 1783, e no curso de Medicina. Não consta informação sobra
a outra formação.
226
Vicente publicou outras obras científicas, de acordo com Costa (2015). Apesar
disso, enquanto vivo, não teve reconhecimento dentro da Universidade de Coimbra, pois
não chegou ao cargo de professor efetivo e nem mesmo teve seu primeiro livro adotado
e utilizado como manual oficial no curso de Química na Faculdade de Filosofia. Apenas
na segunda metade do século XX é que teria ocorrido um maior interesse por sua obra
e figura, sendo considerado um “químico esclarecido” (COSTA, 2015, p. 43)362.
No que se refere à sua vida particular, sabemos que ele se casou com Dona
Francisca Pimentel em Coimbra, mesmo local onde veio a falecer. Desse casamento,
teve filhos. Entretanto, no inventário de Dona Josefa, o inventariante, o Capitão José
Coelho de Seabra, que era irmão de Vicente, declarou que não sabia nem mesmo o
nome desses herdeiros363. Segundo Costa (2015), um desses filhos teria sido Francisco
de Paula Coelho Seabra, que se mudou para o Brasil e se casou com uma filha de
Raimundo Lobo Leite Pereira. Os dois teriam vivido em Santo Antônio do Rio Bonito, no
Estado do Rio de Janeiro.
Apesar de no inventário do Alferes Manoel não constar nenhuma informação
sobre a estada de Vicente em Portugal, sabemos, pelas informações presentes no
inventário de Dona Josefa, que ela ainda havia dado ao filho a quantia de 1:000$000,
além das legítimas paternas “para suas despesas”. Acreditamos que esse valor tenha
sido entregue depois que Vicente estava em Coimbra, o que nos possibilita conjecturar
que Dona Josefa continuava a auxiliá-lo.
A partir dos dados apresentados até aqui, podemos dizer que Dona Josefa
buscou assumir/manter sua função de educadora e gerenciadora de seu grupo familiar.
Assim, diante desses aspectos, consideramos importante destacarmos mais alguns
elementos sobre esta senhora. Primeiramente, acreditamos que Dona Josefa conhecia
a importância e “facilidades” que o acesso ao mundo da escrita poderia proporcionar,
seja para a anotações do dia a dia, ou como forma de comunicação, etc.
Isso porque consta na documentação que ela enviava cartas ao padre, isto é,
não era apenas o padre que lhe escrevia. Na verdade, as “negociações” e “notícias”
davam-se a partir de troca de correspondências, possivelmente algumas produzidas
pela própria viúva364. Dizemos isso pois há no inventário de seu marido uma procuração
feita de próprio punho e assinada por Dona Josefa, conforme figura 11365. Nesse caso,
362
Mais informações sobre Vicente Coelho de Seabra também podem ser obtidas em VEIGA (1897).
363
Inventário de Josefa de Ávila e Silva. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 31, Auto 347, Ano 1811.
364
Citemos como exemplo uma correspondência enviada pelo padre mestre Joaquim da Cunha Osório à
Dona Josefa. Nela, o padre mestre declarou que o estudante Vicente havia lhe entregado, juntamente com
uma quantia em dinheiro, uma carta de Dona Josefa. Inventário de Manoel Coelho Rodrigues.
AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777, fl. 57.
365
Inventário de Manoel Coelho Rodrigues. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 37, Auto 419, Ano 1777,
fl. 03.
227
acreditamos que ela entendia as possibilidades que o domínio da cultura letrada poderia
trazer, inclusive como forma de distinção e ascensão social, como destacou Vartuli
(2014) e Morais (2009).
Fonte: AHMINC/IBRAM (2º Ofício, códice 37, Auto 419, fl. 03).
228
Cunha Osório. A esmola foi enviada no período em que Vicente e José estiveram no
colégio dos padres Osórios e ajudou na concretização das festividades na instituição.
Entendemos que o interesse de Dona Josefa, para além da caridade, poderia ser
também uma forma de reforçar os capitais estabelecidos, inspirando-nos em Bourdieu
(2015).
Finalmente, no que se refere à administração da família, vimos que Dona Josefa
assumiu papel importante na vida dos filhos, mesmo depois de casados. Isso pelo
menos é o que podemos inferir a partir dos testemunhos dos próprios filhos. Segundo
consta no inventário feito por morte de Dona Josefa, ela havia permitido que eles
usufruíssem de vários bens, inclusive escravos e terras, auxiliando-os assim na
manutenção e sustento de suas famílias366. Além disso, consta no inventário de sua filha
Dona Francisca de Ávila e Silva que foi Dona Josefa quem “lhe assistiu com a quantia
de 650$000” para mandar seu filho Rodrigo para Lisboa367.
A partir da análise dos investimentos de Dona Josefa, podemos enfatizar então
que, em nosso entendimento, ela teve papel fundamental nas negociações, no usufruto
das redes de sociabilidade e capitais, desenvolvendo com isso diferentes estratégias
para a educação e cuidado de seus filhos. Em outros termos, acreditamos que Dona
Josefa incorporou o “sentido do jogo” ou, segundo Bourdieu (2004), o habitus que lhe
possibilitou “jogar”, “escolher”, produzir estratégias visando determinados espaços e
distinções para seus filhos, mesmo que legalmente falando ela não tivesse que
responder pelos menores e seus bens.
Talvez a escolha do genro como tutor dos filhos por parte do Alferes Manoel
Coelho Rodrigues estivesse relacionada mais com a preocupação de deixar eleita uma
pessoa para auxiliar Dona Josefa quando fosse necessário resolver alguma questão
366
Inventário de Josefa de Ávila e Silva. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 31, Auto 347, Ano 1811.
367
Inventário de Francisca de Ávila e Silva. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 11, Auto 108, Ano 1806.
Não sabemos exatamente o que Rodrigo foi fazer em Lisboa. No inventário de seu pai, o Sargento-mor José
de Vasconcelos Parada e Souza, consta que este último era dono de um morgado e outras terras em Portugal,
que lhe haviam sido transferidos por direito de herança. Como Rodrigo era o filho mais velho, por direito
essas terras seriam dele, conforme palavras do próprio pai. Neste caso, é possível que Rodrigo tenha ido
para Portugal para tomar posse e resolver as questões referentes a esses bens. Sabemos apenas que, no
inventário de sua mãe, ele era cadete e ainda estava em Lisboa. Há vários requerimentos de Rodrigo no
Arquivo Histórico Ultramarino. Em um deles, datado de 1807, ele declarou que sua mãe havia requerido
junto à “vossa alteza real” que o cargo de tesoureiro da Intendência do Ouro em Vila Rica fosse transferido
para ele, cargo que ocupava o seu pai. Entretanto, o referido cargo foi dado a Diogo Pereira de Vasconcelos,
advogado. Ainda no mesmo requerimento, ele declarou que seu tio – Fernando de Vasconcelos Parada e
Souza – havia lhe cedido o ofício de receitas e despesas da sobredita Intendência ou de escrivão das Forjas
da Intendência da Vila do Príncipe. Entretanto, não constam mais informações sobre essa solicitação.
Outros documentos aqui mencionados: Inventário de José de Vasconcelos Parada e Souza.
AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 70, Auto 840, Ano 1795; Requerimento de Rodrigo de Vasconcelos
Parada e Souza... AHU, Cx. 184, doc. 21, Ant. 1807. Sobre o Dr. Diogo vide Antunes (2005).
229
judicial. Afinal, quando o testamento dele foi feito, seis dos nove filhos ainda eram
menores, o que poderia representar, na visão do pai, um grande trabalho.
De qualquer modo, tal escolha parece não ter impedido nenhuma das ações de
Dona Josefa, ao contrário. A partir dessa “parceria”, ela teve condições de agir com
determinada autonomia, recebendo aprovação e apoio de seu genro. Mas Dona Josefa
não era a única, como demonstramos ao longo deste capítulo. Na verdade, ela era
apenas mais uma dentre as muitas outras mulheres do período que, aproveitando-se
das “brechas do sistema” e de um costume então existente naquela sociedade, na
perspectiva de Thompson (1998), puderam participar da construção de melhores
espaços e da educação de seus descendentes368.
368
Conforme Thompson (1998, p. 86), o costume seria “a interface, pois podemos considerá-lo como práxis
e igualmente lei". De acordo com o teórico, "em geral [os costumes] se desenvolvem, são produzidos e
criados entre as pessoas comuns" e "repousam sobre 'dois pilares' — o uso em comum e o tempo
imemorial". Além disso, o costume não se autodefine, nem pode ser considerado independentemente de
influências vindas do exterior, mas está "localizado dentro de um equilíbrio particular de relações sociais"
e dentro de um contexto (THOMPSON, 1998, p. 17).
230
Capítulo 4
Entre o desejo e a prática - as formas de atuação feminina na
educação de menores e na manutenção da família
Meu senhor meu pai e meu tudo, nesta tão estreita ocasião em que por
meus pecados faz termo minha tão desconcertada vida, não posso
deixar de trazer à memória todos os princípios que tive reunidos a boa
criação que vossa mercê me deu. É verdade que errei em sair da
companhia de vossa mercê que tanto me estimava, do que hoje,
bastantemente arrependida, torno por este meio a solicitar merecer-lhe
o perdão de tantos agravos, ofensas e desgostos que lhe tenho
causado. Esta graça senhor a suplico pelas benditas chagas e
entranhas de Nosso Senhor Jesus Cristo, perante quem estou para dar
contas no Tribunal Divino (...). E ainda que esta precisa hora é mais
própria para tratar dos negócios da eternidade, contudo, não deixa de
fazer seu ofício a fragilidade humana, acordando-me a evidência de
deixar na terra minha filha Prudência na idade de 12 anos sem tais
outro cabedal que o amparo e abrigo de vossa mercê para se acolher
a ele, acompanhada de quatro escravas (...) Os badulaques que se
acharem em casa podem ajudar para algumas despesas das minhas
disposições, porém como sei que não chegarão, quero merecer de
vossa mercê a esmola de aceitar (...) o meu testamento (...) a fim de
que se não esbandalhe estes escravos que podem servir de dote para
a mesma rapariga se casar, cuja diligência fica ao cargo de vossa
mercê visto que a morte atalha o meu desejo cortando os fios [da]
minha obrigação369.
O trecho apresentado acima trata de uma carta que a parda Teresa Cláudia de
Oliveira deixou para seu pai. Conforme informação presente em seu testamento
produzido no mesmo ano que a citada correspondência – 1789 –, o desejo de Teresa
era que ela fosse uma carta particular que serviria de guia para que seu pai pudesse
concretizar suas últimas determinações.
Entretanto, apesar dessa intenção, a carta particular deixou de o ser e passou a
fazer parte do conjunto de documentos do inventário de Teresa. A explicação para isso
talvez se deva, primeiramente, aos acontecimentos referendados pela testadora: ela
havia abandonado a casa paterna e cometido “agravos, ofensas e desgostos” ao próprio
pai. Além disso, consta no inventário que apesar dessa nomeação, do pedido de perdão
das culpas e da solicitação de que ficasse com a filha Prudência, Teresa não conseguiu
“amansar” o coração de seu pai. Em um escrito de três linhas feito de próprio punho, ele
recusou os pedidos da filha, não nos deixando mais nenhuma informação a respeito
dessa relação.
Todavia, ainda que os desejos de Teresa não tenham se concretizado, a carta
apresentada deu-nos importantes elementos para pensarmos no cuidado dessa mulher
369
Inventário de Teresa Cláudia de Oliveira. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 64, Auto 719, Ano 1790,
fl. 06 (Grifo nosso).
231
com o futuro de sua filha. Somada ao testamento, entendemos que eles trouxeram um
conjunto de intenções pensadas por Teresa para que a filha Prudência fosse protegida
e tivesse o processo educativo continuado mesmo depois da morte da mãe.
Conforme a própria autora370, sua esperança era a de que o avô, comovido,
pudesse acolher e proteger a menina, garantindo-lhe a segurança, pois a mesma estava
com 12 anos de idade, período entendido na época como perigoso para uma mulher
que precisava, mais do que nunca, da proteção de um adulto, preferencialmente um
homem371. Além disso, na tentativa de afiançar o futuro de sua filha, doou-lhe quatro
escravas e ressaltou que elas poderiam “servir de dote” para que Prudência pudesse se
casar. Pediu ainda que o avô cuidasse dessa tarefa, já que, em consequência da morte
que atalhava o seu “desejo cortando os fios” da sua “obrigação”, ela mesma não teria
como arranjar um bom partido para sua filha.
O presente capítulo tem como um de seus objetivos trazer à tona esses desejos,
ou seja, analisar as intenções educativas presentes nos testamentos das mulheres.
Para isso dividimos a sua escrita em partes distintas. Num primeiro momento
abordaremos os desejos e legados presentes nos testamentos. A escrita do testamento,
como já destacamos, era o momento de se acertarem as contas com Deus na tentativa
de alcançar a salvação eterna. Mas, ao mesmo tempo, era a oportunidade de resolver
ou ao menos direcionar as questões mundanas. Sendo assim, ele se configurava como
uma ocasião muito importante de avaliação da vida do testador.
Nosso propósito é partirmos dos desejos presentes nos testamentos a fim de
demonstrarmos que, muitas vezes, os “acertos de contas particulares” e legados
poderiam ser direcionamentos para um processo educativo ou ainda oportunidades para
garantir a manutenção e sobrevivência do grupo familiar. Para desenvolver essa
discussão, elegemos um grupo específico – as ex-escravas e suas descendentes.
Ainda nos atendo a esse grupo, nossa intenção é trazer os eventos educativos
identificados em seus inventários. Para isso nosso propósito é apresentar os vestígios
de práticas desenvolvidas por elas ou em decorrência de seus pedidos. O objetivo,
neste ponto, é demonstrar um processo educativo em curso, que partia, muitas vezes,
das intenções e caminhava para uma prática visando à formação de uma criança ou
jovem em um determinado conhecimento mais prático — leitura, escrita, ofícios— ou
nos valores de mundo – civis e religiosos.
A escolha das ex-escravas e descendentes deve-se ao fato de que se tratava de
um grupo específico, marcado pelo estigma da cor e da escravidão e que certamente
370
Sobre a questão da autoria, mesmo para aquelas pessoas que não detinham a capacidade de escrita, ver
Vartuli (2014).
371
Nizza da Silva, discutindo os “Sistemas de Casamento no Brasil Colonial” (1984), destacou a questão.
232
teve suas ações e intenções avaliadas sob esse prisma. Além disso, no que se refere à
questão de gênero, importante ressaltarmos que, assim como nos demais capítulos, ao
nos atermos ao grupo feminino, não foi nossa intenção desconsiderarmos ou mesmo
ignorarmos a participação e presença masculina. O processo educativo era uma tarefa
do grupo familiar em que todos os membros da família tinham sua parcela de
contribuição. Entretanto, estamos interessados nas formas de atuação feminina.
Juntamente com as ex-escravas e descendentes, trataremos neste capítulo
daquelas mulheres que recebiam crianças e jovens em seus lares, tornando-os, muitas
vezes, membros da família. Era bastante comum no período que afilhados, netos,
sobrinhos e menores expostos, filhos de pais incógnitos ou que não podiam ter suas
identidades reveladas, ficassem sob a responsabilidade de terceiros. A pessoa que
acolhia esse menor era então percebida pelos outros como um ser caridoso e
benevolente. Mas, se por um lado havia esse entendimento, não podemos deixar de
destacar também que o menor poderia ser mais uma força de trabalho e, em muitos
casos, mais uma fonte de renda, já que o acolhedor poderia receber determinada
quantia para assumir a obrigação de criar e educar o menor.
Assim, outro objetivo no presente capítulo é analisar também essa relação
complexa e, para isso, partiremos das cuidadoras pagas pelo Estado e ainda daquelas
mulheres que declararam a companhia de menores em seus lares. Nessa discussão
utilizaremos a documentação da Câmara de Vila Rica e inventários e testamentos que
continham informações sobre esses menores. A proposta é demonstrarmos que as
ações dessas mulheres cuidadoras também poderiam estar relacionadas a interesses
individuais, como o próprio sustento, por exemplo. Entretanto, ao terem como alvo
crianças e jovens, em alguma medida, essas mulheres acabavam contribuindo para a
educação e sobrevivência deles.
Para desenvolvermos essa proposta tentaremos, primeiramente, apresentar as
ex-escravas e descendentes a fim de delinear o perfil dessas mulheres que viveram no
Termo de Vila Rica. Para isso, além da documentação disponível, traremos também
algumas discussões já desenvolvidas pela historiografia. Depois, tomando por base as
informações presentes nas fontes, buscaremos evidenciar as intenções e as práticas
educativas, como já aludido anteriormente.
Numa segunda parte do capítulo, ater-nos-emos às cuidadoras. A proposta é
explicarmos a dinâmica do processo de abandono e acolhimento. Para isso, utilizando-
nos de pesquisas referentes ao tema, apresentaremos os diferentes motivos que
envolviam a prática, seja por parte das pessoas que abandonavam os menores, seja do
ponto de vista daquelas que os recebiam. Além disso, tentaremos evidenciar que se
tratava de um costume compartilhado pelos diferentes grupos sociais. Em seguida,
233
buscaremos apresentar as principais características dessas mulheres, baseando-nos
na documentação. Finalmente, traremos as práticas desenvolvidas por elas que
tivessem alguma relação com a sobrevivência e educação dos menores.
Assim, neste capítulo que fecha o presente estudo, nossa intenção é evidenciar
outras formas de atuação feminina na educação de crianças e jovens, atuação esta que
acabava, muitas vezes, dando contornos específicos para seu grupo familiar e,
principalmente, tornava essas mulheres sujeitos no processo educativo de menores e
na manutenção das famílias.
372
Identificamos na documentação três mulheres que tiveram preservados tanto os registros originais de
seus testamentos quanto os inventários dos seus bens. Nesse caso contabilizamos apenas uma vez e, por
isso, o total de 87 documentos.
234
Gráfico 14
35
21
17
14
373
Inventário de Domingos Vaz de Carvalho. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 41, Auto 485, Ano
1788.
235
se tornou a inventariante de seus bens. Conforme declaração do próprio padre dada em
testamento, os dois tiveram duas filhas que ainda viviam em companhia do testador.
Além disso, antes de se ordenar, foi pai de mais seis filhos, todos pardos.
Na descrição do inventário constam algumas casas, 11 escravos, vários créditos,
algumas joias e outros bens, que somados alcançaram a cifra de 5:232$719 ½. Apesar
de não ter direito à herança, podemos dizer que econômica e socialmente o
estabelecimento dessa relação com o padre possibilitou à Antônia algumas vantagens,
de modo especial para as duas filhas. As duas tiveram direito aos bens partilhados374 e
conseguiram constituir famílias legitimadas pela Igreja, alcançando a posição de
“esposas” e, provavelmente, o respeito dos demais, se comparadas à sua mãe, que
decerto era vista como “a mulher do padre”. Na verdade, podemos dizer que todas as
filhas do padre se beneficiaram em alguma medida dessa condição, pois mesmo
carregando o estigma da cor, estabeleceram contratos matrimoniais, inclusive com
pessoas com determinado status375.
Dentre elas podemos citar Rita Vaz de Carvalho, já apresentada no capítulo 2.
Ela era filha do mencionado padre Domingos Vaz de Carvalho com Maria Lopes, preta
mina e falecida. Rita Vaz casou-se com o português João Francisco dos Santos, com
quem teve uma relação bastante sólida de mais de 35 anos de convivência. João era
ferreiro, tendo alcançado a carta de exame desse ofício em 1750 junto à Câmara de Vila
Rica. Em 1752 foi juiz de ofício e, no ano seguinte, foi escrivão de ofício. Além disso
tinha uma loja de negócio de caldeireiro e um serviço de mina com o sogro 376. Parece
que João tinha grande admiração pela esposa, tanto que em seu testamento fez questão
de declarar a grande capacidade dela para o bom governo do lar e parceira nos negócios
da família. Os dois tiveram cinco filhos, e nas disposições testamentárias optou por
nomear sua esposa como tutora do menor Feliciano e administradora de todos os bens,
avaliados em 1:966$875377.
Júnia Furtado (2001), em seu estudo sobre as “Pérolas negras: mulheres livres
de cor no Distrito Diamantino”, também ressaltou como as relações consensuais
374
Importante destacarmos que, segundo a legislação do período, as duas filhas, assim como os demais
filhos naturais do padre Antônio Vaz de Carvalho só tiveram direito aos bens partilhados porque foram
nomeadas como herdeiras pelo padre em testamento. Conforme as Ordenações Filipinas, somente os filhos
legítimos tinham direito a partilha. Os demais filhos apenas se fossem admitidos em testamento.
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 4,
Título 96, p. 954.
375
Sobre a “família do padre e as redes de sociabilidade desenvolvidas a partir delas, ver NOLASCO
(2014).
376
Algumas dessas informações foram apresentadas por Crislayne Alfagali em “Casa de ferreiro pior
apeiro: os artesãos do ferro em Vila Rica e Mariana no século XVIII” (2012). Aproveito também para
agradecer-lhe por me enviar parte do inventário de João Francisco.
377
Inventário de João Francisco dos Santos. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 70, Auto 831, Ano 1788
236
poderiam trazer vantagens econômicas e sociais para essas mulheres. Entretanto,
destacou também que, muitas vezes, tais relações poderiam ocasionar uma dupla
exploração – sexual e racial. Tendemos a concordar com a autora, pois dificilmente
essas mulheres “de cor” se tornavam esposas legítimas e, como demonstramos no
exemplo acima, não tinham direito sobre a herança do falecido. Na documentação
analisada identificamos apenas quatro homens declaradamente portugueses, quer
dizer, de “qualidade superior” que legitimaram suas relações com mulheres que traziam
o estigma da cor378.
Retomando a análise da documentação a respeito do estado civil destacado no
gráfico 14, o segundo maior grupo era o de mulheres casadas – 21 delas, ou 24,14%.
As viúvas respondiam por 16,09% do total, sendo 14 mulheres. Esses dados revelaram-
nos que, entre as mulheres analisadas, a busca pelo casamento ou a manutenção da
condição de solteira foi equilibrada, já que, ao somarmos as casadas e as viúvas, temos
a mesma quantidade se comparadas àquelas que não se casaram – 35 mulheres. Tal
fato só reforçou a complexidade desse grupo que foi eleito para a presente pesquisa379.
Como já destacamos, o casamento era entendido no período como uma forma
de disciplinar moralmente as pessoas, sendo um dos mecanismos para frear os
impulsos sexuais. E, apesar de ser, conforme destacou Algranti (1997, p. 87), uma
instituição primordialmente da elite, ele foi desejado e valorizado por indivíduos
pertencentes aos mais diferentes grupos sociais. Assim sendo, ele estava no horizonte
de muitas mulheres, independente de suas qualidades e condições. Entretanto,
segundo Praxedes (2008), ele poderia não ser uma prioridade para alguns grupos.
Nesse caso, o casamento assumia uma posição dúbia: um estado ideal numa sociedade
que buscava ordenar as pessoas e difundir determinados valores morais e bons
costumes, mas, ao mesmo tempo, não ocupava uma posição de primeira urgência e
necessidade nessa mesma sociedade.
Para além da questão do matrimônio, ao analisarmos os dados do gráfico 14
sob outra perspectiva, isto é, as mulheres como chefes de domicílio, percebemos que
as solteiras e as viúvas foram a maioria na documentação. Somadas, elas chegaram à
cifra de 49 (56,32%). Ida Lewkowics e Horácio Gutiérrez (1997) já havia apontado essa
questão quando estudaram as viúvas em Minas Gerais. Sem se restringir a um grupo
378
São eles: Francisco Rodrigues Graça, casado com Maria da Silveira da Costa; João Francisco dos Santos,
casado com Rita Vaz de Carvalho; Manuel Carvalho de Andrade, marido de Maria dos Santos Gonçalves;
Antonio da Costa Lopes, cônjuge de Romana Maria da Conceição. Inventário de Francisco Rodrigues
Graça. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 48, Auto 590, Ano 1783. Inventário de João Francisco dos
Santos. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, códice 70, Auto 831, Ano 1788. Inventário de Manuel Carvalho de
Andrade. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 37, Auto 417, Ano 1779. Inventário de Antônio da Costa
Lopes. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, códice 59, Auto 669, Ano 1781.
379
Houve 17 (19,54%) mulheres cuja condição não conseguimos identificar.
237
específico, a autora destacou que, no início do século XIX, 45% dos domicílios de Vila
Rica eram chefiados por mulheres, sendo a maioria solteiras, seguidas das viúvas.
Além disso, do mesmo modo como mencionado pela autora, identificamos na
documentação que as mulheres “de cor”, quando responsáveis por seus lares,
participaram do mercado de trabalho, sendo, muitas vezes, forçadas a essa situação
como forma de manter a si próprias e a seu grupo familiar. Isso representou para esse
grupo uma possibilidade de exercerem sua autonomia.
Tal fato também foi indicado por outros estudos380. Silva (2011), por exemplo, ao
se referir às solteiras e viúvas com ascendência escrava, destacou que houve uma
tentativa por parte delas de acumular capitais e vivenciar sua sociabilidade.
Acrescentamos ainda que, quando responsáveis por alguma criança ou jovem, elas
buscaram criar condições de mantê-las e educá-las.
Esse parece ter sido o caso da preta forra Rita de Miranda Portugal, natural de
Costa da Mina. Ela era escrava na Bahia e veio para Minas Gerais comprada por Antônio
Velho Portugal, com quem depois se casou. Quando ocorreu essa transação, Rita
estava grávida de um filho que se chamaria Francisco. Em seu testamento ela fez
questão de declarar que o menino não era filho de seu marido, mas que Antônio Velho
Portugal sempre o tratara como tal381.
Ao determinar suas disposições testamentárias, Rita encontrava-se viúva e
proprietária de todos os bens do casal, pois havia comprado a parte que cabia ao
falecido marido. Além disso, mencionou que havia sustentado o filho Francisco a vida
toda, inclusive feito alguns pagamentos de várias de suas execuções. Como vemos,
Rita alcançou determinada ascensão social e econômica, manteve certo pecúlio mesmo
380
SILVA, Solange Maria da. Estratégias e práticas educativas dos negros na comarca do Rio das Velhas,
século XVIII. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011; PRAXEDES, Vanda Lúcia. Segurando as pontas e tecendo as tramas:
mulheres chefes de domicílio em Minas Gerais (1770-1880). Tese (Doutorado em História). Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008; CHEQUER,
Rachel Mendes Pinto. Negócios de família, gerência de viúvas: senhoras administradoras de bens e de
pessoas (Minas Gerais, 1750-1800). Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2002. VIANA, Kelly Cristina
Benjamim. Em nome da proteção real: mulheres forras, honra e justiça na Capitania de Minas Gerais. Tese
(Doutorado em História). Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2014; FARIA,
Sheila Siqueira de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro
e de São João del-Rey (1700 – 1850). Tese (Doutorado em História). Departamento de História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. FURTADO, Júnia Ferreira. Pérolas Negras: mulheres
livres de cor no distrito diamantino. In: Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma
história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2001; FURTADO, Júnia
Ferreira. As mulheres nas Minas do ouro e dos diamantes. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de;
VILLALTA, Luiz Carlos (Orgs.). História de Minas Gerais. As Minas Setecentistas. Belo Horizonte:
Autêntica, Companhia do Tempo, 2007. p. 303-320. Vol.2; FARIA, Sheila de Castro. Mulheres forras:
estigma e riqueza social. Tempo, Rio de Janeiro, n. 9, p. 65-92, 2000, dentre outros.
381
Inventário de Rita de Miranda Portugal. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 129, Auto 1620, Ano
1776.
238
depois de viúva e auxiliou o filho em várias questões, inclusive financeiras. E ainda
preocupada com o futuro do filho depois de seu falecimento, deixou como legado um
escravo, que deveria ser descontado dos remanescentes de sua terça.
Uma vez determinada a condição civil dessas mulheres, buscamos ver se tinham
filhos. Como apresentamos no gráfico 15, daquelas mulheres que se conservaram
solteiras, 23 (65,71%) tiveram filhos. O grande número de mulheres com filhos fora do
casamento também foi ressaltado por Donald Ramos (2008) em um estudo comparativo
entre as regiões do Minho em Portugal e as Minas Gerais no final do século XVIII e início
do século XIX. Utilizando testamentos e listas nominativas, o autor destacou como eram
altas as taxas de ilegitimidade na região mineira. A partir desses dados podemos dizer
que a ausência de um casamento legitimado não impediu que as mulheres com
ascendência escrava tivessem uma vida sexual ativa e que a noção de castidade
apresentada no capítulo 1 não necessariamente se adequava a esse grupo382.
Por outro lado, vemos que a presença de filhos entre as mulheres “de cor”
casadas e viúvas também foi grande, permitindo considerar que o casamento para esse
grupo, do mesmo modo, representou o espaço para a constituição de uma família. Das
21 casadas, 16 (76,19%) tiveram filhos. Já entre as viúvas, 11 (78,57%) foram mães.
Gráfico 15:
23
16
12
11 11
6
4 1 3
382
A respeito da castidade entre as mulheres forras, ver Viana (2014).
239
Entretanto, ao analisarmos a presença de filhos entre as casadas e viúvas,
percebemos que algumas delas também tiveram suas crias fora do “manto sagrado do
matrimônio religioso”. Como podemos identificar no gráfico 16, das 21 mulheres
casadas, quatro (19,05%) tiveram filhos antes do casamento. Já entre as viúvas, cinco
(35,71%) das 14 mulheres tiveram filhos naturais, sendo que uma delas foi mãe depois
da morte do marido383.
Gráfico 16:
10
filhos naturais +
8
6 legítimos
6
4 3 3
2
2 1
0
Casadas Viúvas
383
Trata-se de Maria Francisca do Santos, que era viúva de Joaquim Pereira de Almeida. Ela teve uma filha
desse casamento. Uma vez viúva, teve um filho chamado Martinho “por minha miséria”, que havia sido
exposto em casa de Domingas de Tal, moradora na Passagem da cidade de Mariana. Testamento de Maria
Francisca dos Santos. AHMINC/IBRAM. 1º ofício, códice 344, Auto 7180, Ano 1815.
384
Optamos por construir um item chamado “filhos naturais + legítimos” como referência àquelas mulheres
que tiveram filhos quando estavam casadas e também no estado de viúva ou solteira, isto é, com uma prole
legítima e ilegítima. Nestes casos, essas mulheres foram indicadas apenas nesse item.
385
Inventário de Andreza Paula Joaquina. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 58, Auto 656, Ano 1775.
240
Apesar dessa situação, Andreza buscou meios para se arranjar, pois conseguiu
adquirir cinco escravos, algumas joias e outros objetos de menor valor, que somados
alcançaram em seu inventário a soma de 452$525. Andreza conseguiu ainda
estabelecer certa rede de sociabilidade, pois constam no seu inventário créditos e
dívidas variadas. Além disso, ela havia sido juíza da Capela do Patriarca São José dos
Pardos, o que certamente lhe deu algum reconhecimento naquela sociedade386. Como
podemos perceber, não foi o casamento que lhe deu as possibilidades para conseguir
“se arranjar”. E, além do mais, parece que fez questão de ressaltar a doença do marido
como forma de excluí-lo da herança e, de certo modo, justificar suas ações.
Atendo-nos à conformação de pecúlios e à busca de determinada ascensão,
vimos que a maioria das mulheres que carregavam o estigma da escravidão buscou
adquirir ao menos um escravo. O escravo era um bem percebido no período como capaz
de dar status para o seu dono. Nesses termos, percebemos uma reprodução da situação
vigente, ou seja, a busca do alforriado pelo status de proprietário, como bem destacou
Paiva (1995) em seu estudo sobre as estratégias de resistência de escravos e libertos
nas Minas Gerais do século XVIII. Do total de 87 mulheres, 59 (67,82%) tinham ao
menos um escravo, sendo que algumas delas tiveram um plantel considerável, como
apresentado no gráfico 17.
386
Como destacou Delfino (2015), o cargo de juíza dava muitos direitos para as mulheres forras. A autora
analisou vários compromissos de irmandades. Dentre os vários privilégios que o cargo trazia, a autora
destacou: o aumento no número de missas que lhes eram de direito quando assumiam tal encargo; a
participação na organização e nos festejos ocupando lugar de destaque; compartilhavam as decisões da
mesa diretora das irmandades; delegavam as obrigações de manutenção das igrejas, etc. Por outro lado, elas
pagavam certa quantia a mais do que os anuais para ocuparem o cargo, sendo, por isso, eleitas aquelas mais
“benevolentes”; participavam do processo de aquisição de recursos, esmolas e pecúlios para a irmandade,
dentre outras obrigações. Mais sobre o assunto, ver Delfino (2015) e Faria (2004).
241
Gráfico 17:
12 2 escravos
6
3 escravos
4 escravos
9 5 escravos
11
6 escravos
3 7 ou mais escravos
387
Inventário de Cipriana Maria Monteiro de Souza. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 29, Auto 321,
Ano 1788. Como já destacamos no capítulo 1, optamos por deixar Cipriana na análise da documentação
pelo fato de que a maior parte de sua vida foi vivenciada em Vila Rica.
242
Outra mulher que teve um número significativo de escravos foi a preta forra Rita
Maria dos Santos, viúva do preto forro Antonio dos Santos388. Natural da Costa da Mina,
ela era moradora na Freguesia de Itatiaia no Arraial de Ouro Branco, Termo de Vila
Rica. Rita teve apenas um filho quando ainda era escrava, o qual, depois, teve sua
liberdade comprada pela mãe. No momento da descrição dos bens de inventário, consta
que Rita era dona de um pequeno comércio de molhados e algum gado. Para gerenciar
o seu negócio, provavelmente ela contava com uma pessoa que registrava as dívidas e
créditos de sua pequena venda, pois declarou em testamento que ela tinha um livro em
que lançava todas essas movimentações. Além disso, constavam entre os bens dez
escravos, o que nos possibilitou vislumbrar certa condição econômica e social ao
conquistar a liberdade própria e a do seu filho, mas também uma posição de possuidora
de cativos, alterando significativamente a sua condição.
Pensando ainda nos elementos que conferiam certa distinção social para as
mulheres, conseguimos identificar apenas uma delas que recebeu o título de “dona”.
Trata-se da parda Quitéria Gonçalves Fontes, viúva de Antonio Rodrigues Fontes e
moradora da Freguesia de São Bartolomeu. Quando os bens de seu casal foram
inventariados por conta da morte do marido, constava que a família era constituída de
três filhos, dos quais um ainda era menor de idade. Seu marido faleceu sem testamento,
e, desejosa de cuidar da criação e educação do filho Antônio, solicitou mercê régia, o
que foi atendido. O casal era proprietário de uma fazenda de cultura, algumas cabeças
de gado e 14 escravos que, somados, foram avaliados em 3:733$780, ficando tudo sob
responsabilidade de Dona Quitéria depois do falecimento do marido.
Em um estudo anterior em que buscamos apresentar as práticas educativas e
as formas de sociabilidade envolvendo mulheres forras e descentes em São João del-
Rei e São José del-Rei na primeira metade do século XIX, destacamos que o termo
“dona” era uma forma de serem nomeadas as mulheres “distintas da sociedade”, sendo
percebido como um traço de nobreza e separação daquelas pertencentes aos demais
grupos sociais (JULIO, 2007, p. 158). Praxedes (2008, p. 147) também ressaltou tal
aspecto. Assim como essa autora, tentamos demonstrar que o pronome de tratamento
“dona”, quando utilizado, não estava necessariamente relacionado ao ideal de
“recatada, comedida e casta”, mas sim ligado a uma avaliação feita pelas pessoas do
convívio de cada mulher.
Acrescentamos ainda que o nome “dona” parece estar ligado à questão
econômica pois, tanto no estudo anterior realizado sobre São João del-Rei e São José
del-Rei quanto para o Termo de Vila Rica, percebemos que apenas aquelas mulheres
388
Inventário de Rita Maria dos Santos. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 129, Auto 1619, Ano 1790.
243
com ascendência escrava que adquiriram determinado pecúlio foram assim nomeadas.
Isso significa que não necessariamente elas precisavam ser casadas para deterem essa
nomeação. Júnia Furtado (2003), estudando a trajetória de Chica da Silva e seu
contratador de diamantes, também destacou que a citada parda forra recebeu a mesma
forma de tratamento. Ora, não podemos deixar de destacar a posição social de João
Fernandes – o desembargador e contratador de diamantes – com quem Chica manteve
uma relação; mas isso não retira o peso econômico, já que ele era detentor de uma
considerável riqueza da qual a ex-escrava pode ter tirado proveito.
Mas onde moravam essas mulheres que possuíam ascendência escrava e
buscaram construir um espaço diferenciado dentro do Termo de Vila Rica? Como
apresentado no quadro 7, a grande maioria das mulheres morava na sede do Termo de
Vila Rica. Do total de 87 mulheres, 51 (59,77%) delas residiam em Vila Rica, seguido
do Arraial de Itabira do Campo, onde seis (6,90%) mulheres declararam ser seu local
de moradia. As demais estavam proporcionalmente distribuídas nas outras localidades
do mesmo termo389.
Quadro 7:
Local de moradia das mulheres forras e descendentes
389
Importante destacar que houve 17 mulheres cujo local de moradia não conseguimos identificar, pois o
documento estava em péssimas condições de conservação.
390
Trata-se da já mencionada Cipriana que morava no Termo de Mariana, mas viveu a maior parte do tempo
em Vila Rica. Inventário de Cipriana Maria Monteiro de Souza. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 29,
Auto 321, Ano 1788.
244
Donald Ramos (1990), estudando as mulheres e a família em Vila Rica entre
1754 e 1838, observou que 45% dos domicílios dessa localidade eram chefiados por
mulheres no ano de 1804. Conforme o seu entendimento, os centros urbanos ofereciam
maiores oportunidades de trabalho para as mulheres chefes de família. Afinal, era
nesses locais que as mulheres poderiam se dedicar, por exemplo, à venda e a costura,
sendo esse o motivo para maior concentração das mesmas nesses espaços.
Silva (2011, p. 49) também identificou um número significativo de mulheres que
foram chefes de domicílio em Sabará, sede da Comarca do Rio das Velhas. Estudando
os negros na citada comarca durante o século XVIII, a autora foi mais além e ressaltou
que os espaços mais urbanizados eram, dentre outros aspectos, locais “de convivência
e troca de informações, de apropriação e reelaboração de conhecimentos”. Tendendo
a concordar com a autora, percebemos que pareceu existir nesses lugares melhores
condições para trabalhar e exercer a autonomia para essas mulheres. Assim, utilizando-
se de suas palavras, também defendemos a noção de que eles seriam locais propícios
para investir na sobrevivência e educação própria e dos filhos.
Nesse sentido e tomando por base os dados apresentados no quadro,
acreditamos que foram as forras e suas descendentes moradoras na sede do Termo de
Vila Rica que tiveram maiores condições de deixar vestígio de sua existência, o que,
reforçando, pode refletir uma situação mais favorável para acumular maior pecúlio se
comparadas às outras mulheres das demais localidades desse Termo. Tal consideração
é ratificada quando relacionamos a variável moradia e a posse de escravos. A partir de
uma comparação, percebemos que a maioria das proprietárias de escravos era também
moradoras de Vila Rica, ou seja, das 59 mulheres que tinham escravos, 43 (72,88%)
residiam na sede do Termo de Vila Rica.
Diante dos dados apresentados até aqui, percebemos que, uma vez alcançada
a liberdade, as mulheres buscaram maneiras de se inserir na sociedade do Termo de
Vila Rica. Isso também se repetia entre aquelas que eram suas descendentes. Para
isso, quase sempre, elas acabavam se apropriando dos valores e visões de mundo que
eram vivenciados em suas experiências.
Assim, inspirando-nos em Thompson (1987b), acreditamos que essas mulheres
construíram seus modos de viver, “conscientes” de sua condição – estigmatizadas pela
cor, sexo e nascimento. Em outros termos, produziram suas experiências como resposta
para a situação vigente, manifestando, desse modo, suas expectativas e ansiedades.
Entendemos que essas “respostas” se faziam presentes inclusive no que se refere às
ações para a sobrevivência própria e de sua família e também nos direcionamentos
educativos que poderiam ser desenvolvidos. São esses aspectos que tentaremos
apresentar a seguir.
245
Entretanto, para estudarmos os processos educativos presentes nas intenções
e ações dessas mulheres, foi necessário restringirmos esse grupo. Na verdade,
percebemos que nem todos os documentos traziam indícios que poderiam revelar tais
elementos. Assim, de um total de 87 mulheres forras e descendentes, conseguimos
identificar apenas 26 (29,88%), conforme o quadro 8:
Quadro 8
Documentos com indícios de ações e intenções educativas
QUALIDADE
INVENTARIADA/ E ESTADO MONTE
TESTADORA CONDIÇÃO ESCRAVOS MORADIA FILHOS CIVIL MOR
575$662 e
Feliciana Maria da Cruz Crioula forra 2 Vila Rica Sim Solteira ½
Marta Maria da Gama Parda 1 Vila Rica Sim Solteira NC
Rosa Gomes Preta forra 5 Vila Rica Não Solteira NC
Ana Luiza do S. e Vale Crioula forra NC Vila Rica NC NC NC
Antônia Francisca Pinto Preta forra 5 Vila Rica Sim Viúva 561$804
Rita de M. Portugal Preta forra 6 Vila Rica Sim Viúva NC
Rosa Pereira da Silva Parda forra 2 Vila Rica Sim Viúva 533$520
Filha de
Cipriana Maria M. Souza preta 16 Vila Rica Sim Solteira 3:259$900
Simplícia Correa Maia Parda 1 Vila Rica Sim Solteira 154$200
Marcelina P. Vilanova Crioula forra 2 Vila Rica Sim Solteira 164$350
Morro do
Antônia da Silva Costa Crioula forra 2 Santana Sim NC NC
Caetana M. dos Santos Crioula forra 1 Ouro Branco Sim Viúva 424$571
Teresa C. de Oliveira Parda 5 Vila Rica Sim Solteira NC
Sebastiana G. Ramos Preta forra 6 Vila Rica Não Viúva 1:064$225
Teodora J. Rosa da Neiva Parda 3 Vila Rica Sim Viúva 136$400
Morro
Micaela da C. Fagundes Preta forra 1 Sacramento Sim Solteira 295$450
Teresa Goncalves Preta forra 3 Vila Rica Sim Solteira 221$287
Rita Maria dos Santos Preta forra 10 Ouro Branco Sim Viúva 860$500
Rosa G. Santiago Preta forra 1 Vila Rica Sim Solteira NC
Maria Lopes de Oliveira Crioula forra NC Vila Rica Sim Solteira NC
Maria F. da Trindade Parda forra 1 Vila Rica Sim Solteira 202$587
Andreza Paula Joaquina Parda forra 6 NC Sim Casada 452$525
Catarina Ferreira Pires Preta forra 4 Ouro Branco Não NC NC
Josefa da Rocha Andrade Preta forra NC Vila Rica Sim Solteira 159$934
Ana Maria Monteiro Crioula forra 2 NC Sim NC 292$150
Casa
Teresa Ferreira Souto Preta forra 5 Branca Sim Solteira NC
Fonte: Banco de Dados da Pesquisa
246
4.2 - Os legados testamentais das mulheres com ascendência escrava –
indícios de intenções educativas e de sobrevivência familiar
247
seu convívio. Isto certamente traria vantagens para os legatários numa sociedade em
que o importante era “o ver”, o “ouvir dizer” e o “público e notório”.
A comerciante Tereza Ferreira do Souto, por exemplo, era preta forra natural da
Costa da Mina. Ela havia se conservado no estado de solteira e era mãe de sete filhos.
Conforme declaração existente em seu testamento, ela tinha uma roça, uma casa
coberta de telhas em que vivia com a família, os trastes de sua venda, alguns móveis e
cinco escravos no Arraial de Santo Antônio da Casa Branca, Termo de Vila Rica. Dos
cinco escravos, Tereza declarou que fazia questão de quartar a preta Rita porque, além
de lhe servir, tinha ajudado a criar todos os sete filhos “com muito cuidado”391.
Mas o que nos chamou mais a atenção foi o fato de deixar expressa em seu
testamento a preocupação com a educação de seus filhos. Tereza pediu ao
testamenteiro que aceitasse tal encargo, que pusesse também “todo o cuidado na boa
educação de meus filhos, ensinando-lhes a boa doutrina, e nisto me farão mercê e
serviço de Deus”. Pelo que vemos, Tereza julgava importante esse tipo de formação,
isto é, nos preceitos civis e religiosos, deixando expressa essa atenção. Tanto foi assim
que não estabeleceu mais nenhum tipo de especificação para as demais formas de
educação.
Acreditamos que Tereza seria a personificação de uma expressiva parcela da
população daquele período que considerava suficiente esse tipo de educação, face ao
pequeno acesso à escola, por exemplo, especialmente entre as pessoas de origem
escrava. Afinal, como destacou Silva (2011), para os negros e descendentes, de modo
particular, a educação não necessariamente passava pela escola, mas poderia ocorrer
a partir da disseminação em diversos ambientes. Ou ainda, como nos lembrou Fonseca
(2006) quando destacou que a educação no século XVIII para as camadas mais baixas,
grupo onde se encontrava a maioria da população vinda do cativeiro, estava relacionada
com a difusão da doutrina cristã.
Além disso, é importante relembrarmos que a legislação determinava que
apenas pessoas de “qualidade” deveriam aprender a ler e escrever392. Em outros
termos, aqueles indivíduos de origem escrava não estariam incluídos nessas
determinações, apesar de, como já apontamos, essas disposições terem sido
cumpridas com muitas variáveis em Minas Gerais393.
391
Testamento de Tereza Ferreira do Souto. AHMINC/IBRAM. 1º ofício, códice 350, Auto 7319, Ano
1771.
392
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
Título 88, § 15, p. 212
393
Não estamos dizendo aqui que o negro e descendentes não tiveram acesso à escola. Na verdade, como
destacou Marcus Fonseca (2009), não existia nenhuma legislação que proibia os negros —livres, libertos
ou escravos —de frequentarem as aulas. Entretanto, entendemos que havia dificuldades em decorrência da
248
Já a crioula forra Antônia da Silva Costa era moradora no Morro de Santana, em
Vila Rica. Conforme suas disposições testamentárias, ela tinha uma afilhada em sua
companhia, chamada Damiana, de 15 anos de idade. Como não tinha filhos que
pudessem herdar seus bens, determinou que essa afilhada fosse sua herdeira.
Entretanto, fez questão de ressaltar que Damiana só se tornaria herdeira se procedesse
“com honestidade”394. Acreditamos que havia um interesse por parte da testadora em
garantir a sobrevivência da afilhada, ligado à questão econômica; mas, ao determinar
uma postura específica, ela estava também contribuindo para o reforço de certos valores
e concepções de mundo, o que seria alcançado por meio da aprendizagem social.
Como já destacamos no primeiro capítulo, a ideia de honestidade no período era
ligada à honra que, por sua vez, se relacionava à noção de “boa fama”, “respeito” e
“castidade”. Ressaltamos também, baseando-nos em Algranti (1993), que a honra era
“um bem” que toda mulher previamente possuía, cabendo-lhe o cuidado de não o
perder. Entretanto, para que não se perdesse, a mulher deveria aprender a conservá-
lo. Nesses termos, ao condicionar que Damiana seria herdeira apenas se agisse de
forma “honesta”, entendemos que Antônia estava reforçando um processo pedagógico
já iniciado que incluía a aprendizagem e a manutenção dos elementos ligados ao viver
“com honestidade”.
Intimamente ligadas à ideia de formação moral relacionada à noção de
ordenamento, temos também as estratégias voltadas para o casamento. Há na
documentação estudada inúmeros casos de sujeitos que deixaram esmolas e outros
legados para órfãs, afilhadas, netas, dentre outras, para a ajuda no dote ou
condicionados à efetivação do matrimônio. Acreditamos que as doações e as condições
impostas faziam parte de um processo que buscava ensinar os preceitos religiosos
ligados à formação da “família cristã”. Além disso, como identificamos essas práticas
em testamentos de mulheres negras e descendentes, entendemos isso como uma
pedagogia que buscava revestir de importância esses valores também entre os
membros desse grupo social. Dessa forma, o processo que tornava possível a
aprendizagem desses preceitos foi bem-sucedido também entre as mulheres “de cor”395.
condição e da qualidade. Ao mesmo tempo, acreditamos que, naquele contexto, outras formas de educação
eram mais valorizadas, como a doutrina, pois era uma forma de serem aceitos e se inserirem na sociedade.
394
Inventário de Antônia da Silva Costa. AHMINC/IBRAM. 2º ofício, códice 03, Auto 31, Ano 1794.
395
Não estamos dizendo aqui que o esforço do Estado e da Igreja para promover o “casamento legítimo”
tenha sido um sucesso, pois, conforme destacou Figueiredo (1997), nas Minas Gerais o que vemos é uma
multiplicação de relações consensuais à margem dos ensinamentos dessas duas instituições. O autor
destacou vários aspectos para isso: o custo alto dos processos matrimoniais; a questão da igualdade étnica,
econômica e social entre os cônjuges; as práticas extraconjugais adotadas pela população, dentre outras.
Nosso interesse aqui foi reforçar a noção de que havia um reconhecimento, uma valorização do estado de
casado independente do grupo social, como já apontamos no capítulo 2.
249
A preta forra Rita de Miranda Portugal, já apresentada anteriormente, era mãe
de três filhos naturais e mais uma filha legítima chamada Angélica. Essa filha já estava
casada com Manoel da Costa Carreiros quando sua mãe decidiu redigir o testamento.
Nas disposições testamentárias, declarou que a filha Angélica era mãe de uma menina
chamada Maria Nazaria. Interessada em contribuir de alguma maneira para que sua
neta também pudesse tomar estado de casada, deixou-lhe a escrava Francisca “para
ajuda de seu dote”. O detalhe importante era que Rita já tinha agido da mesma forma
quando casou a filha Angélica, conforme declaração do genro396.
O estado de casado não era uma preocupação apenas em relação às mulheres,
apesar de encontrarmos na documentação mais indícios ligados ao grupo feminino. A
mulata forra Maria da Silva Costa, por exemplo, assumindo a tutoria de seus filhos
depois da morte do marido, o português Francisco Rodrigues Graça, esforçou-se para
casar os dois filhos – Maria Rodrigues Graça e Manoel Rodrigues Graça. Segundo
informação existente no inventário, a cerimônia do casamento de Manoel “a face da
Igreja” havia sido assistida por várias pessoas e desde então ele vivia maritalmente com
sua esposa, da qual já tinha três filhos397.
Sendo assim, podemos dizer que também entre as mulheres pertencentes a
esse grupo específico – com o estigma da cor – “havia um comportamento a favor do
casamento” (SILVA, 2011, p. 56). Nesses termos, concordamos com a autora quando
ela ressaltou que para os negros “o casamento foi uma das formas de construir e manter
laços de afetividade, de interesses econômicos e de inserção na sociedade”, podendo
por isso ser entendido como “estratégias e práticas educativas de integração e inserção
na sociedade vigente” (SILVA, 2011, p. 62).
A partir dos dados apresentados até aqui, consideramos que os testamentos
dessas mulheres serviram como espaço para evidenciar uma preocupação com a
formação moral das crianças e jovens de seu grupo familiar. Na sua lista de obrigações,
essas mulheres deixaram registrado o seu desejo de que os menores deveriam
reconhecer e se apropriar do valor de ser um bom súdito e cristão.
Além dessa formação mais geral ligada aos costumes e aos valores é possível
identificarmos também, nos legados testamentais, determinadas intenções voltadas
396
Inventário de Rita de Miranda Portugal. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 129, Auto 1620, Ano
1776.
397
Inventário de Francisco Rodrigues Graça. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 48, Auto 590, Ano
1783.
250
para uma aquisição de conhecimentos mais práticos, tais como ler e escrever e a
aprendizagem de determinados ofícios. Entretanto, importa ressaltar que, nos
testamentos das forras e descendentes para o período da presente pesquisa, as
informações ligadas a tais aspectos foram bastante escassas.
A única mulher que deixou expressas suas intenções ligadas a esse tipo de
educação foi a crioula forra Feliciana Maria da Cruz398. Ela era solteira, moradora de
Vila Rica e havia tido um filho, chamado Francisco Rodrigues de Queiroz, que, segundo
a declaração de Feliciana em testamento, era pardo forro. A história de Feliciana era
em alguma medida um retorno à de sua mãe, a preta mina Quitéria Maria da Cruz, que
do mesmo modo havia concebido a filha no estado de solteira.
Feliciana era proprietária de uma morada de casas na Rua Direita do Ouro Preto,
dois escravos, algumas ferramentas e joias, que somadas alcançaram a cifra de
575$662 e ½. Em seu testamento declarou que tinha um neto chamado Simão, que vivia
em sua companhia. Além disso, segundo informações presentes no inventário, o filho
Francisco morava fora da comarca. Para testamenteiro havia escolhido o filho, mas
quem ocupou o cargo foi a sobrinha Domingas da Silva, também crioula forra, que
assumiu ainda as obrigações do inventário.
Feliciana tinha estabelecido em testamento que o testamenteiro que aceitasse
tal obrigação fosse também tutor de seu neto, devendo ficar com ele e “fazendo-lhe a
despesa necessária do sustento e o mais do vestuário, e estudos quando ele o queira
prosseguir, isto é, procedendo o dito meu neto bem”. A partir dessas disposições e da
análise de outros documentos, entendemos que era interesse da testadora que o neto
Simão fosse direcionado para o aprendizado relacionado às letras399. Tal situação
revela, em nossa opinião, uma valorização da cultura escrita por parte dela.
Conforme destacou Silva (2011, p. 91), as pessoas naquele período davam, a
seu modo, “importância às expressões da cultura escrita à medida que conviviam com
suas diferentes manifestações na sociedade”. Essas “diferentes manifestações”
poderiam ser “o saber pelo ver, pelo ouvir e pelo ler”, que abarcava uma gama de
conhecimentos que seriam aprendidos e apreendidos pelas pessoas em diversos
ambientes. Nesse sentido, concordando com a autora, o universo do escrito abrigava
inclusive aquelas pessoas que não sabiam ler e escrever, mas de alguma maneira
faziam uso da escrita no cotidiano.
Esse é o caso também da já citada Rita Maria dos Santos, que, apesar de não
saber nem ler nem escrever, tinha um livro para lançamento de seus negócios
398
Inventário de Feliciana Maria da Cruz. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 139, Auto 1749, Ano 1800.
A análise dos documentos na presente pesquisa revelou que a menção apenas a “estudos” era relacionada
399
251
estabelecidos na sua venda400; mas é também o caso de todas as outras 20 mulheres
que, no momento da escrita de seu testamento, refletiram sobre suas vidas e, de modo
coerente, elaboraram uma narrativa (SILVA, 2011).
Das 21 mulheres eleitas para a presente análise, 14 (66,66%) buscaram deixar
sua marca de alguma maneira no testamento que mandaram redigir. Doze delas
utilizaram-se da cruz para validar as informações que estavam ali contidas, declarando
que era o “sinal de que uso”401. As outras duas declararam que haviam assinado o
testamento402.
A primeira que declarou que assinou o próprio testamento foi Rosa Gomes,
solteira e moradora de Vila Rica. Ela era natural da Costa da Mina e não tinha filhos.
Segundo as informações contidas em seu testamento, foi Manoel da Costa Pacheco
quem havia redigido suas últimas vontades. Além disso declarou que “depois de feito e
lido por mim palavra por palavra pelo achar a meu gosto e conforme o ditei o assinei
com o meu nome de que uso” 403.
Não sabemos como Rosa adquiriu a habilidade de ler e, pelo menos, de assinar
o próprio nome; muito menos temos informações se essas capacidades contribuíram de
alguma maneira para as atividades do dia a dia. No entanto, sabemos que ela assumiu
o cargo de juíza da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário por quatro vezes, e, como
bem lembrou Silva (2011, p. 59), aqueles sujeitos que tinham algum conhecimento de
leitura e escrita eram privilegiados no momento da escolha de pessoas para ocupar
determinados cargos nessas congregações. Além disso, consta no inventário de Rosa
que ela era cuidadora de um pardo chamado Manoel, e que, inclusive, a Câmara de Vila
Rica ainda lhe devia por tal obrigação.
A segunda mulher foi a parda Teodora Joaquina Rosa da Neiva. Moradora de
Vila Rica, ela era viúva de Felisberto Jorge Pereira de quem havia tido apenas uma filha,
chamada Maria, que estava com seis anos de idade no momento da escrita do seu
testamento. O escrevente de seu testamento foi Marcos José de Alvarenga, que,
segundo as palavras da testadora existentes no próprio documento, “tão somente” o
400
Inventário de Rita Maria dos Santos. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 129, Auto 1619, Ano 1790.
401
Inventário de Feliciana Maria da Cruz. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 139, Auto 1749, Ano 1800.
402
Importante ressaltar que das 21 mulheres eleitas para uma análise mais detalhada, tivemos contato com
o testamento original de apenas três delas. As outras 18 foram analisadas a partir de cópias de testamento
que estavam no inventário. Por isso, estamos nos baseando nas informações dadas por elas quando
declaravam que assinaram com “meu sinal”; rogaram uma testemunha que assinasse por elas “por não saber
ler nem escrever” ou “assinei de meu próprio punho”. As três mulheres a cujos testamentos originais
tivemos acesso foram: Teresa Gonçalves Chaves, Tereza Ferreira Soutos e Catarina Ferreira Pires.
Testamento de Teresa Gonçalves Chaves. AHMINC/IBRAM. 1º ofício, códice 416, Auto 8250, Ano 1804.
Testamento de Tereza Ferreira do Souto. AHMINC/IBRAM. 1º ofício, códice 350, Auto 7319, Ano 1771.
Testamento de Catarina Ferreira Pires. AHMINC/IBRAM. 1º ofício, códice 317, Auto 6768, Ano 1797.
403
Inventário de Rosa Gomes. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 129, Auto 1612, Ano 1791.
252
escreveu e “eu depois de o ler e estar conforme o que lhe ditei, me assinei pela minha
mão e punho e própria assinatura, tudo em presença do mesmo que este escreveu e se
assina404.
Diferentemente de Rosa Gomes, que acreditamos tenha tido algum contato com
o mundo do escrito enquanto era cativa, cremos que a parda Teodora aprendeu as letras
em decorrência dos direcionamentos familiares para esse tipo de educação em sua
infância, pois a mesma nasceu livre. Assim, é provável que seus legítimos pais — o
licenciado Manoel Félix da Costa e Guiomar Bernarda do Santo Antônio— tenham dado
oportunidades para a aquisição ao menos da leitura e da grafia do próprio nome, seja
em casa ou enviando-a para alguma mestra.
Não conseguimos identificar nos testamentos nenhum direcionamento por parte
das mulheres forras e descendentes para algum tipo de aprendizado de ofícios. Por isso
foi necessário analisarmos outros documentos, como se verá a seguir. Em trabalho
anterior (JULIO, 2013), estudando a participação das mulheres no processo educativo
de seus filhos na Comarca do Rio das Mortes entre 1810 e 1852, apresentamos algumas
disposições testamentárias que conseguimos identificar para aquela localidade que
podem nos ajudar a vislumbrar em alguma medida a preocupação dessas mulheres com
esse tipo de formação.
Dentre as mulheres apresentadas naquele trabalho, citemos aqui Vitória Maria
da Conceição. Viúva, preta crioula forra, ela declarou em testamento que não teve filhos
e, por isso, sem herdeiros "forçados". Entretanto, determinou que o escravo "crioulinho",
por nome Domingos, filho legítimo de seus escravos, Agostinho e Maria, já falecidos,
deveria viver sob o domínio de seu testamenteiro, Custódio Lopes de Siqueira, "para o
educar, mandando-lhe ensinar algum oficio para bem viver até que tenha idade
suficiente (...) e então lhe passarão sua carta de liberdade..." 405.
Cláudia Oliveira (2008), investigando a educação de órfãs pobres da Comarca
do Rio das Velhas, destacou que era grande o número de meninas que aprendiam
determinados ofícios mecânicos, como a costura e o bordado, pois eles seriam uma
forma de garantir a própria sobrevivência e sustento; normalmente, contudo, esse
aprendizado ocorria juntamente com a mãe ou alguma mulher do grupo familiar.
Sheila de Castro Faria (2001), por sua vez, em um estudo referente às mulheres
forras, destacou que, após a conquista da liberdade, muitas mulheres adquiriam
escravas e com elas estabeleciam um contato íntimo, nomeando-as, comumente, como
sua família em testamentos. Nessa "escolha e constituição" da família, essas mulheres
404
Inventário de Teodora Joaquina Rosa da Neiva. AHMINC/IBRAM. 2º ofício, códice 65, Auto 723, Ano
1818.
405
Testamento de Vitória Maria da Conceição. AHET2/SJDR/IPHAN, cx. 29, 1827.
253
forras acabavam transferindo para as escravas ou filhos das mesmas suas legítimas, a
continuidade de seu ofício e a forma de subsistência.
Já Crislayne Alfagali (2012, p. 133), estudando os artesãos do ferro em Vila Rica
e Mariana no século XVIII, apontou que provavelmente muitos dos oficiais tenham
aprendido seus ofícios com seus próprios pais, algum parente ou tutores. Dessa forma,
o aprendizado de um ofício era “um saber e uma prática que eram transmitidos entre
gerações”, fosse para o filho ou mesmo para os órfãos ou enjeitados que ficavam sob a
tutela de um mestre.
Diante dessas considerações apresentadas, acreditamos que acaba não soando
estranho o fato de existirem poucos legados testamentais voltados para esse tipo de
formação. Em outros termos, é provável que as mulheres forras e seus descendentes
aqui analisados entendessem não ser necessário declarar os direcionamentos para a
aprendizagem de ofícios das crianças e jovens de seu grupo familiar. Isso porque já era
uma prática comum para aquele que ficava com os menores promover o ensino de
determinadas ocupações, garantindo depois o sustento do órfão.
Esse parece ser o caso da preta forra Sebastiana Gonçalves Ramos, moradora
de Vila Rica. Ela era viúva de Antônio Gonçalves Veiga, com quem não teve filhos; mas,
no seu testamento, declarou que criava uma menina chamada Margarida Gonçalves
Ramos e que queria deixá-la por herdeira, mesmo que para isso fosse necessária a
perfilhação “como se nascesse de meu ventre”. Margarida era crioula forra e tinha sete
anos de idade. Para cuidar da administração dos bens até que a menina tivesse
capacidade para governá-los, a viúva nomeou um tal de Bernardo Gonçalves da Veiga,
que também foi seu testamenteiro e inventariante406.
Já em 1782, quatro anos depois de assinar o termo de tutor, Bernardo declarou
nas contas de sua tutoria que a órfã Margarida “se achava a aprender a costura em sua
companhia” e que lhe dava ainda “bom ensino e educação como deviam fazer os bons
pais de família". Assim, apesar de a falecida Sebastiana não solicitar esse tipo de
direcionamento, o tutor parecia entender que era importante que Margarida aprendesse
algum ofício.
Maria Ferreira da Trindade, por sua vez, era solteira. Moradora de Vila Rica, foi
mãe de dois filhos – Joaquim Peixoto, com dez anos de idade, e Luiza, que tinha oito
meses de idade quando foi feito o inventário da falecida. Ela nomeou como seu
testamenteiro um tal de João Carvalhais, que foi também o tutor dos menores, pois
assinou o termo em junho de 1773. Quase dois anos depois de assinar o termo, João
406
Inventário de Sebastiana Gonçalves Ramos. AHMINC/IBRAM. 2º ofício, códice 64, Auto 713, Ano
1778.
254
apresentou as contas de sua tutoria. Segundo suas próprias palavras, ele tinha
mandado ensinar a ler e escrever ao menor Joaquim e que presentemente “lhe estava
ensinando a sua arte de pintor gratuitamente”407. Como podemos ver, assim como
apontou Alfagali (2012), João estava ensinando sua arte para o seu tutelado, que
provavelmente o acompanhava nas tarefas diárias, auxiliando o pintor enquanto
aprendia o ofício.
O Alferes Jerônimo de Souza Lobo Lisboa, além de inventariante e
testamenteiro, foi nomeado também tutor dos seis órfãos da já citada parda forra
Andreza Paula Joaquina. Após assinar o termo, ele fez um requerimento declarando
que duas tuteladas – Francisca e Maria – eram filhas de Patrício Pereira da Cunha. No
mesmo requerimento ressaltou que o mencionado Patrício tinha um sítio "com todo o
necessário tanto para o devido ensino de costuras como ainda para o sustento e
vestuário das mesmas pupilas". Nesses termos, entendia ser mais proveitoso que o pai
fosse notificado para assinar o termo de tutoria dessas meninas, o que foi aceito pelo
juiz. Conclui-se que, a partir dessa estratégia, Jerônimo tenha resolvido ao menos três
problemas: transferiu a tutoria das duas menores para outra pessoa, retirando de si tal
responsabilidade; garantiu o sustento delas; e, finalmente, possibilitou que suas
“pupilas” aprendessem alguma ocupação408.
Os casos apresentados acima revelaram-nos que havia uma prática de
direcionar os órfãos, independente do sexo, para a aprendizagem de algum ofício.
Entretanto, nem sempre havia menção a essa preocupação, especialmente por parte
da testadora. Parece que, ao nomear o tutor, elas realmente confiavam no cuidado e
atenção que os mesmos teriam para com os menores, não sendo necessárias maiores
declarações.
Esse pelo menos é o entendimento quando nos deparamos com declarações
como as da parda Teodora Joaquina Rosa da Neiva. Quando nomeou Antônio Alves
Teixeira para tutor da única filha Maria, de seis anos de idade, ela apenas ressaltou que
o nomeava para tal encargo “de quem espero a trate e corrija como que se eu estivesse
viva”409. Em outros termos, ela acreditava que o nomeado se utilizaria de todas as forças
e estratégias para educar sua filha, como se fosse ela mesma.
A tarefa de educar mostrou-se como própria da família, sendo a mulher um dos
sujeitos do grupo familiar410. Nesses termos, o direcionamento para conhecimentos mais
407
Inventário de Maria Ferreira da Trindade. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 49, Auto 546, Ano
1773.
408
Inventário de Andreza Paula Joaquina. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 58, Auto 656, Ano 1775.
409
Inventário de Teodora Joaquina Rosa da Neiva. AHMINC/IBRAM. 2º ofício, códice 65, Auto 723, Ano
1818.
410
Ressaltamos que estamos utilizando a noção de família apresentada no capítulo 1.
255
práticos poderia ser desejado pela mulher nas suas disposições testamentárias, mas
parecia ser ponto comum para aqueles que assumiriam a responsabilidade sobre o
menor. Isso só reforçou a importância de considerarmos a participação de todos –
homens e mulheres – nas questões familiares. Temos nesses documentos mostras da
construção e apropriação do papel da mulher na sociedade, mas ao mesmo tempo
manifestações de “uma interação social construída e remodelada” em decorrência das
relações de gênero, como bem destacou Andréa Gonçalves (2006, p.74).
256
Dentre as mulheres que buscaram assegurar pelo menos um auxílio para “suas
crias”, temos a preta forra Rosa Gomes, moradora de Vila Rica. Ela não tinha filhos,
mas, segundo suas próprias palavras, tinha um enjeitado em sua companhia chamado
Manoel, que era pardo. A Câmara de Vila Rica, inclusive, ainda lhe devia por essa
criação, dívida que deveria ser cobrada pelo seu testamenteiro. Mas a relação da
cuidadora com o menor era mais estreita, pois, além de assumir a responsabilidade pelo
sustento, ela também havia tomado para si parte do dever espiritual, uma vez que havia
se tornado madrinha do menino. Assim, ao fazer o testamento, legou ao afilhado a
quantia de 54 oitavas de ouro, que somente lhe deveriam ser entregues quando ele
tivesse “disposição para o receber"; enquanto isso o montante deveria ficar com o
testamenteiro411. É provável que a testadora estivesse vislumbrando que essa quantia
poderia ajudar Manoel quando este se emancipasse e tivesse que buscar o próprio
sustento.
Já a parda Cipriana Maria Monteiro fez questão de determinar inclusive o destino
dos remanescentes de sua terça do inventário, que por direito poderia dispor como
quisesse412. Conforme suas disposições, a terça deveria ser dividida em duas partes:
uma delas seria para os netos, e a outra, para os filhos. Entendemos que essa ação
demonstrava uma preocupação e também um interesse de garantir algum pecúlio
diretamente aos netos, que, conforme a lei, seriam favorecidos nas demais partes do
inventário apenas através da mãe413.
Os legados testamentais poderiam também ser direcionados para outras formas
de conquistas, como por exemplo, a alforria de um filho. Conforme destacou Silva
(2011), estava no rol de conquistas das ex-escravas a alforria da prole. A preta forra
Rosa Gonçalves Santiago, por exemplo, era solteira e moradora de Vila Rica. Conforme
relatou em testamento, ela havia tido dois filhos: uma chamada Luíza, que tinha se
casado com Manoel Fernandes, já falecidos; e mais um chamado Félix, que ainda era
escravo. Dentre seus legados, estabeleceu que seu testamenteiro e inventariante
pagasse pela alforria de Félix, concedendo a este filho ainda o direito de gozar de todo
o restante dos bens. Apenas em caso de falecimento desse descendente é que os
netos, filhos de Luíza, teriam direito à herança414.
O detalhe importante é que, entre os bens, havia dois escravos. Como destacou
Paiva (1995, p. 102), “umas das formas de negar a antiga condição era tornar-se senhor
de escravos após a alforria. De possuído a possuidor: a trajetória de vida dos libertos
411
Inventário de Rosa Gomes. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 129, Auto 1612, Ano 1791.
412
Discutimos as etapas e organização do processo de inventário no capítulo 2.
413
Inventário de Cipriana Maria Monteiro de Souza. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 29, Auto 321,
Ano 1788.
414
Inventário de Rosa Gonçalves Santiago. AHMINC/IBRAM. 1º ofício, códice 129, Auto 1613, Ano 1789.
257
muitas vezes obedeceu a este parâmetro”. Isso porque, segundo o autor, era improvável
a ascensão social e, por isso, restava ao antigo escravo tentar a ascensão econômica
“que lhe garantiria uma colocação social menos discriminada”.
Não temos informações se o testamenteiro conseguiu cumprir as determinações
da falecida no que se refere a esse aspecto. Também a testadora não mencionou o
motivo da não alforria do filho enquanto estava viva. De qualquer modo, entendemos
que, ao buscar libertar o filho, Rosa estava tentando mudar a condição dele, o que, por
si só, representava certa forma de ascensão social para ele. Por outro lado, o fato de
ser proprietária de escravos, sendo que o seu filho ainda estava no cativeiro, pode ter
representado uma forma de investimento e possibilidade de novas rendas, inclusive
para o próprio sustento, com o trabalho de seus cativos.
Há ainda casos em que as disposições testamentárias não visavam um sujeito
específico, mas envolviam uma preocupação com a questão econômica do grupo
familiar como um todo. Também nesses casos, o testamento poderia assumir a função
de reforçar ou apresentar determinadas escolhas da testadora; mas poderia ser também
uma forma de “reparação de algum erro cometido”.
Retomando as discussões sobre a consciência a respeito da importância do
escrito, identificamos a preta forra Micaela da Costa Fagundes, natural da Costa da
Mina. Solteira e moradora do Morro do Sacramento, “subúrbios” de Vila Rica, ela
declarou em testamento que tivera uma filha chamada Ana Martins, que tinha sido
casada com Domingos de Abreu Lisboa, com quem havia tido três filhos. Dos netos,
uma se chamava Maria de Assunção, já defunta, casada, por sua vez, com Francisco
Gonçalves de Carvalho415.
Segundo informações contidas no testamento, o marido de Maria de Assunção
havia aproveitado do fato de que a avó estava “molesta de um tornozelo quebrado” e a
enganou. Conforme a narrativa da própria testadora, ele a havia feito “assinar uma
escritura de venda das [...] casas”, convencendo-a de que era de maior “utilidade de
todos os meus netos e por esse motivo fiz tudo quanto ele quis por sempre ser da minha
intenção deixar a todos eles igualmente o que possuo sem ânimo de interessar mais a
um do que a outro”.
Assim, sentindo que tinha sido induzida ao erro, ela utilizava-se da escrita do
testamento para declarar que estava “anulada e passada com engano”, ressaltando que
não era da sua “vontade e menos [ainda] de prejudicar os meus herdeiros", que, na
verdade, eram os três netos. Como vemos, a testadora utilizou-se da redação do
415
Inventário de Micaela da Costa Fagundes. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 116, Auto 1473, Ano
1804.
258
testamento para declarar sua consciência a respeito da negociação e, ao mesmo tempo,
consertar de alguma maneira uma questão que poderia prejudicar a sobrevivência de
todo o seu grupo familiar.
Mas os testamentos serviam ainda como uma possibilidade para que a testadora
pudesse determinar quem ficaria com o menor depois de seu falecimento. Vejamos
alguns números.
Das 21 mulheres que fizeram testamentos, podemos fazer a seguinte divisão:
quatro (19,04%) não tinham filhos, mas determinaram que os testamenteiros cuidariam
dos legados de seus afilhados e enjeitados que viviam em sua companhia; seis
(27,27%) delas tinham filhos que eram emancipados ou falecidos, e, do mesmo modo,
os legados para netos e afilhados foram deixados com os pais dos menores ou com o
testamenteiro; cinco (22,72%) nomearam para tutor um homem de sua confiança; duas
(9,52%) não deixaram nenhuma pessoa indicada e, por isso, o juiz de órfãos nomeou
os testamenteiros também para tutores; em uma (4,76%), o pai do menor assinou termo
de tutoria; duas (9,52%) nomearam outras mulheres para tutoras; uma (4,76%) tinha o
filho ainda escravo, e não houve nomeação de tutor, mas a testadora determinou que
os bens deveriam ficar na responsabilidade do testamenteiro até que o mesmo pudesse
tomar posse.
As disposições testamentárias ligadas à responsabilidade pelo menor estavam
sempre relacionadas com a ideia de manter e proteger os seus. Sendo assim, estavam
incluídos os cuidados com a educação, criação e sustento. Dessa forma, percebemos
que havia uma preocupação de garantir a sobrevivência e educação de “suas crias”,
mas também uma tentativa de assegurar uma proteção.
Dizemos isso porque, das cinco mulheres que nomearam homens para assumir
o cargo de tutor, o tutelado era em grande maioria do sexo feminino: quatro mulheres
tinham apenas filhas ou expostas em sua companhia e uma tinha sete filhos, dos quais
cinco eram filhas e dois eram filhos. As outras duas testadoras que indicaram mulheres
para assumir a responsabilidade de cuidar dos menores tinham filhos apenas do sexo
masculino.
Essa constatação levou-nos a considerar que, ao escolher um homem, a
testadora estivesse agindo na tentativa de garantir uma figura masculina que poderia
interceder e agir para resguardar aquela menor que estaria desamparada quando sua
mãe, tia, avó, madrinha ou cuidadora falecesse. Essa intercessão poderia estar ligada
à garantia de sustento, como já dissemos, mas também ao cuidado com os bens e,
especialmente, com a honra das meninas.
Nizza da Silva (1984), dissertando a respeito do sistema de casamentos no Brasil
colonial, destacou que, na Capitania de São Paulo, uma casa sem uma figura masculina
259
poderia representar um grande perigo para a honra de uma mulher virgem. Acreditamos
que para essas mulheres do Termo de Vila Rica esse “perigo” poderia ser aumentado
porque as herdeiras eram menores e estariam sozinhas, pois não teriam nem mesmo
aquela mulher que até então lhes amparava e criava estratégias de sobrevivência e
proteção da família: mulheres que provavelmente acionavam suas redes de
sociabilidade em qualquer situação de perigo e necessidade.
Não estamos dizendo que essas redes estariam totalmente perdidas com o
falecimento da testadora. O detalhe era que ela precisava, dentro dessa rede, eleger
uma pessoa para continuar o seu trabalho de proteger, educar e criar aquela menor, e
elas preferiram escolher homens, nem sempre com uma relação de parentesco
claramente expressa. Assim foi o caso da preta forra Sebastiana Gonçalves Ramos,
mencionada acima, por exemplo, que perfilhou a menina Margarida de sete anos de
idade que vivia em sua companhia416.
Por outro lado, há alguns casos em que as mulheres surgiram como uma
segunda opção de indicação para o exercício da tutoria. Isto poderia indicar uma
confiança baseada primeiramente na questão de gênero, dadas as circunstâncias
vivenciadas no período e referenciadas acima. Mas, ao mesmo tempo, poderia haver
uma relação com o modo e com quem a testadora construiu suas redes de sociabilidade,
que precisavam ser acionadas para a definição do amparo do menor. Dessa forma, elas
escolhiam sempre pessoas próximas e, não havendo um homem, preferiam indicar uma
mulher que participasse assim do destino das meninas.
A crioula forra Marcelina Pereira Vilanova, por exemplo, era solteira e moradora
de Vila Rica. Em seu testamento declarou que tinha duas filhas pardas, chamadas Justa
e Ana, com 22 e 10 anos de idade, respectivamente. Para cuidar delas, pediu que o
testamenteiro também aceitasse ser o tutor417. Sabemos que o testamenteiro era aquela
pessoa de confiança, responsável, muitas vezes, por guardar segredos e que
certamente conhecia bem a testadora. Sendo assim, ao elegê-lo também como tutor
das filhas, Marcelina estava reforçando essa relação e os compromissos e
cumplicidades que possuíam. No caso, ela havia nomeado um tal de João Alves Frias
em primeiro lugar e, em segundo, a filha Justa.
Apesar dessa nomeação, João não aceitou tais encargos, cabendo à filha
assumi-los. Entretanto, como era menor de 25 anos de idade, ela não pode assinar o
termo de tutoria, sendo o cargo ocupado por um tal de João Nunes Maurício. Embora
416
Inventário de Sebastiana Gonçalves Ramos. AHMINC/IBRAM. 2º ofício, códice 64, Auto 713, Ano
1778.
417
Inventário de Marcelina Pereira Vilanova. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 105, Auto 1322, Ano
1797.
260
legalmente a função de tutor tenha sido assumida por João Nunes, a partir de um
requerimento de Ana, a filha mais nova, soubemos que ela se achava “vivendo
honestamente em companhia de sua irmã”, que a sustentava; assim, em certa medida,
o pedido da falecida Marcelina havia sido atendido, pois Justa estava responsável pelo
sustento e criação de sua irmã.
Para além da questão de ser um homem ou uma mulher, o que não podemos
deixar de destacar é o cuidado em indicar uma pessoa, fosse para assumir a tutoria e a
administração de todos os bens do menor, fosse para gerenciar determinados legados.
Além disso, devemos lembrar que essas escolhas estavam relacionadas com as
experiências vividas, em que os eleitos provavelmente dariam mostras de que
buscariam agir na tentativa de garantir a sobrevivência e a educação dos menores.
Outro detalhe importante era que a nomeação de uma pessoa não garantia que
o menor moraria sob o mesmo teto, nem que a pessoa seria aceita pelo juiz de órfãos.
Como apresentamos no capítulo 2, nem sempre a indicação de uma pessoa era acatada
pelo juiz de órfãos, pois a mesma deveria ser considerada “capaz”. Ou ainda, como
procuramos destacar no capítulo 3, eram muito comuns os casos de pessoas que
assumiam a tutoria, mas a responsabilidade pelo cuidado e a educação diária era dada
a outro indivíduo.
A parda Simplícia Correa Maria, por exemplo, era solteira e moradora de Vila
Rica. Segundo as informações constantes em seu inventário, ela era costureira e
lavadeira. Ao declarar suas últimas determinações em testamento, mencionou que era
mãe de dois meninos: um chamado José Antônio, de 9 anos de idade, que estava em
companhia do Cadete Francisco Antônio Roquete em Paracatu, na Comarca do Rio das
Velhas; já o outro, de nome Roque, com 12 anos de idade, tinha sido exposto em casa
de Maria Angélica e do Capitão Sebastião Francisco Bandeira, em Vila Rica418.
Conforme informação de seu próprio irmão, Manoel Francisco da Silva, Simplícia
lhe havia dito algumas vezes que tinha enjeitado o filho Roque porque não podia criá-
lo. Simplícia não nos deixou muitas informações dos empecilhos para a criação dos
filhos, mas sabemos que seus bens eram de pouca monta, pelo menos no momento do
inventário, já que eram constituídos apenas de algumas ferramentas de trabalho,
roupas, poucas joias e um escravo, que juntos foram avaliados em 154$200. De
qualquer forma, talvez como tentativa de reparar o ato do abandono e reconhecer a
maternidade dos dois filhos, nomeou-os por únicos herdeiros e pediu ainda que eles
viessem após a sua morte para o poder da sua irmã, a inventariante e testamenteira
Ana Caetana dos Santos.
418
Inventário de Simplícia Correa Maia. AHMINC/IBRAM.1º Ofício, Códice 134, Auto 1682, Ano 1792.
261
Ao analisarmos o inventário da testadora, contudo, vimos que o juiz optou por
nomear um homem, o Ajudante José Antônio Moniz, que assinou o termo de tutoria logo
depois do falecimento da testadora. Além disso, parece que os menores permaneceram
onde estavam, pois não houve nenhuma menção à entrega dos órfãos para a
testamenteira e inventariante.
A partir dos casos apresentados até aqui, vimos que as mulheres buscaram
arranjos diferentes para garantir a sobrevivência das crianças e jovens de seu grupo
familiar e, quando possível, melhorar a condição deles. Evidenciando um habitus
incorporado ao longo de suas vidas, essas mulheres mostraram em seus testamentos
diferentes estratégias que tinham como fim o atendimento de seu interesse, que era
beneficiar o seu grupo familiar.
É provável que muitas outras ações fizeram parte do cotidiano dessas mulheres
forras e descendentes, entretanto não chegaram até os nossos dias. Algumas, por outro
lado, surgiram nas entrelinhas ou foram lembradas por outras pessoas que conviveram
com essas mulheres. São essas atuações que tentaremos apresentar a seguir na
análise dos inventários. Mas não somente elas. Intentamos também evidenciar as ações
que surgiram dos direcionamentos feitos pelas mulheres em seus testamentos.
262
material ou local, entendemos que, em certa medida, estamos descortinando um pouco
do processo educativo.
De posse dos inventários, buscamos responder a algumas questões: o fato de
algumas mulheres não terem feito testamento influenciou nos destinos educativos das
crianças e jovens que estavam sob a responsabilidade delas antes de falecerem? E a
feitura do testamento influenciou em alguma medida a educação dos menores? Que
tipo de educação se fez presente nos inventários dessas mulheres que tinham
ascendência escrava? Além disso, o tipo de educação ofertada dependeu da
“qualidade” e do sexo dos menores?
Das 26 mulheres que deixaram algum indício educativo em seus documentos,
apenas uma era casada, embora não morasse com o marido419. Por isso, nas fontes
estudadas, a grande maioria das informações versa sobre as ações de mulheres
solteiras e viúvas. Uma explicação para isso talvez seja o fato já apontado no capítulo
2. Nele mencionamos que a legislação do período estabelecia que, ocorrendo a morte
de uma mulher, o pai assumia a responsabilidade total pelos menores, e ele não
precisava prestar contas desse encargo, incluindo os direcionamentos educativos420.
Não podemos nos esquecer ainda daquelas mulheres que morreram de modo repentino,
sem condições de declarar suas últimas vontades em testamento e assim não deixando
vestígios sobre suas ações passadas ou intenções.
Comecemos, então, tentar responder à primeira questão. Dos inventários
femininos nos quais conseguimos identificar algum indício de prática educativa, cinco
deles pertenciam a mulheres que tinham falecido sem deixar um testamento. Essa
pequena quantidade de documentos não nos permite afirmar com certeza se o fato de
as ex-escravas e descendentes terem falecido sem deixar por escrito seus últimos
desejos pode ter influenciado em alguma medida o destino de “suas crias”.
Entretanto, baseando-nos nesses cinco casos, podemos dizer que não. Mesmo
nos inventários daquelas mulheres que morreram sem o testamento, encontramos
indícios de práticas educativas. Sendo assim, inferimos que, ao que tudo indica, o
direcionamento para algum tipo de educação parecia ser uma iniciativa da pessoa que
assumia a responsabilidade pelo menor. Tal fato já foi previamente indicado quando
buscamos indícios de investimento na aprendizagem de ofícios nos testamentos dessas
mulheres. Como destacamos, parecia não haver uma preocupação por parte delas em
419
Trata-se da parda forra Andreza Paula Joaquina, que era casada, mas não morava com o marido, o pardo
forro João Francisco Rodrigues, que tinha “a moléstia de mal de São Lázaro”. Por esse motivo ela havia
pedido o divórcio. Inventário de Andreza Paula Joaquina. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 58, Auto
656, Ano 1775.
420
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
título 88.
263
referenciar a necessidade desse tipo de ensino, sendo quase que uma prática esperada
daquele que ficaria com o menor.
Dos cinco inventários, apenas um não trouxe informações de investimentos
educativos para os menores421. Nos outros quatro, quem assumiu a responsabilidade
pela administração da pessoa e bens dos menores buscou direcioná-los para algum tipo
de educação.
A crioula forra Antônia Francisca Pinto, por exemplo, era mãe de seis filhos, dos
quais cinco ainda eram menores de 25 anos de idade quando ela faleceu. Viúva e
moradora de Vila Rica, ela faleceu sem o seu testamento. Quem assumiu a tutoria dos
menores foi o genro da falecida, o também crioulo forro Gonçalo Ferreira Velho. Ele
assinou o termo no mesmo ano de falecimento de sua sogra, em 1785, sendo também
o inventariante. Entretanto, como não cumpriu a determinação do juiz dos órfãos de
colocar os bens em praça422, Gonçalo foi expulso das duas funções, que passaram a
ser ocupadas pelo Ajudante José Antônio Moniz, ao assinar o termo em 1788. No ano
de 1794 José Antônio apresentou as contas de sua tutoria. Conforme informações
presentes nessa conta, a órfã Serafina já tinha sido emancipada; Antônia estava
“aprendendo a cozer na casa de sua mestra”; e Braz, Francisco e Estevão estavam “a
aprender os ofícios a que se inclinaram”423.
A partir das informações presentes nessa conta de tutoria, podemos destacar
alguns aspectos. Primeiramente, podemos dizer que, apesar de o tutor não mencionar
os ofícios que os três órfãos estavam aprendendo, ele investiu na educação dos
menores, provavelmente interessado em garantir uma ocupação e forma de sustento
futuro para os tutelados. Em segundo lugar, observamos que ele procurou direcionar a
aprendizagem dos órfãos respeitando o sexo dos menores. Finalmente, apesar de não
termos dados sobre como se deu a aprendizagem desses ofícios, temos pelo menos a
informação de que a órfã Antônia estava morando com a sua mestra e que, em
requerimento da própria órfã solicitando roupas, foi declarado que essa mestra se
chamava Teresa Rodrigues Meneses.
Já a preta forra Josefa da Rocha de Andrade era solteira e mãe de três filhos.
Ao falecer, no ano de 1808, dois de seus filhos ainda eram menores, e quem assumiu
a tutoria foi o avô, pai da inventariada, Antônio Ferreira Pires. Segundo as palavras do
próprio avô, depois da morte de Josefa, os dois órfãos estavam em sua companhia e,
“como pai duas vezes”, era ele quem sustentava, vestia e educava os meninos. Além
421
Trata-se do inventário de Caetana Maria dos Santos. Inventário de Caetana Maria dos Santos.
AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 08, Auto 85, Ano 1787. Analisaremos esse documento a seguir.
422
Falamos sobre a necessidade de colocar os bens em praça no capítulo 2.
423
Inventário de Antônia Francisca Pinto. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 18, Auto 177, Ano 1785.
264
disso, mencionou que eles estavam aprendendo seus ofícios: um, o ofício de pedreiro,
e outro, de ferreiro424. Também aqui, como podemos ver, houve um esforço do avô em
investir na aprendizagem de ofícios, sendo respeitado, do mesmo modo, o sexo dos
menores.
E quanto às disposições testamentárias voltadas para a educação de crianças e
jovens? Em que medida elas foram cumpridas? Conforme destacamos na análise dos
testamentos, foram poucas as mulheres forras e descendentes que deixaram expressos
os seus desejos ligados à educação das crianças e jovens, especialmente de ordem
mais prática, como: aprender a ler, escrever e contar, além dos ofícios. No que diz
respeito àquelas que deixaram esse tipo de intenções, quando buscamos analisar seus
inventários, não conseguimos identificar qualquer informação de efetivação desses
pedidos. O mesmo pode ser dito em relação aos legados voltados para a formação
moral – civil e religiosa.
De qualquer modo, devemos considerar dois aspectos. Primeiro, como já
mencionado, o testamenteiro era um indivíduo de confiança do testador, ou seja, havia
um entendimento de que a pessoa eleita daria cumprimento às últimas determinações
do falecido. Em segundo lugar, o cumprimento das disposições testamentárias estava
previsto na legislação, sendo possível a remoção do testamenteiro que não satisfizesse
os legados425.
Acrescentemos ainda a esses dois pontos o fato mencionado por Paiva (2001,
p. 184) quanto ao não cumprimento dos legados por parte do testamenteiro. Segundo o
autor, ele nunca encontrou “qualquer registro de testador, testamenteiro de outrem, que
ao fazer seu próprio testamento declarasse ter deixado de cumprir algum legado
envolvendo alforrias”. Acreditamos que essas considerações podem, em alguma
medida, ser feitas no caso dos demais legados. Isso porque até encontramos testadores
que declararam que ainda não tinham terminado os testamentos em que eram
testamenteiros. Entretanto, eles fizeram questão de pedir que a pessoa que ficasse
responsável por seus legados terminasse aquela testamentaria426. Sendo assim,
estamos entendendo que houve um empenho para a efetivação dos pedidos do
testador, inclusive no que se refere aos legados educativos para crianças e jovens.
424
Inventário de Josefa da Rocha de Andrade. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 23, Auto 246, Ano
1808.
425
[Ordenações Filipinas] Código Filipino... Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2012. Livro 1,
título 62.
426
Citemos aqui, por exemplo, o preto forro Antonio da Silva. Em seu testamento ele nomeou a esposa para
tutora dos filhos e também testamenteira. Além disso, pediu que a mesma continuasse a testamentaria de
sua mãe, a preta forra Rita da Silva, em que ele era testamenteiro. Inventário de Antonio da Silva.
AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 01, Auto 04, Ano 1796.
265
Mas, se não encontramos a efetivação dos pedidos testamentários voltados para
a educação dos menores, é possível dizer que houve um esforço por parte dos
testamenteiros, também nomeados tutores, para cumprir os legados direcionados para
a sobrevivência dos menores.
Já apresentamos anteriormente como João Carvalhais, testamenteiro e tutor dos
órfãos de Maria Ferreira da Trindade, se preocupou em cuidar da educação de Joaquim
Peixoto, que estava aprendendo a ler e escrever e ainda seguindo o ofício de pintor.
Não podemos deixar de mencionar ainda as ações para alimentar a menor Luíza, que
tinha apenas 8 meses quando a mãe faleceu. Conforme recibo existente no inventário,
João Carvalhais contratou uma escrava para dar de mamar para a menor. Além disso,
na tentativa de manter os dois menores sob sua tutela e guarda, o tutor requereu ao juiz
de órfãos que a menina Luíza não fosse entregue para a tia Narcisa Pires, que a havia
solicitado, usando da justificativa de que era sua pretensão cuidar da criação da dita
menina. Segundo o tutor, não era do seu interesse entregar Luíza, pois entendia que a
órfã deveria ficar “em casa honesta e desinteressada”, cabendo a ele tutor eleger o
modo de “conservação dos órfãos”, o que foi atendido pelo juiz. Como vemos, houve
um esforço por parte do tutor para se fazer cumprir o pedido da testadora Maria Ferreira
da Trindade, que o havia escolhido para continuar com a tarefa de cuidar da criação e
educação dos menores427.
Além disso, no que se refere aos legados em dinheiro, doação de escravos e
outros bens que, como destacamos, poderiam auxiliar os menores na busca pelo próprio
sustento e sobrevivência, não identificamos nenhum caso em que eles não foram
cumpridos. Isso apenas reforça a questão ressaltada acima sobre a efetivação dos
legados por parte dos testamenteiros.
Focando-nos nas doações para menores, identificamos nos inventários que
algumas mulheres concediam determinados bens quando ainda estavam vivas. São
inúmeros os casos de mulheres que declararam em testamento que já haviam feito a
doação de escravos e casas, por exemplo. Acreditamos que essas doações eram
também formas de auxiliar na criação e sustento dos menores. Nesses casos, o
testamento funcionava apenas como uma ratificação do ato e como uma espécie de
segurança para que o bem não fosse inventariado e partilhado com os outros herdeiros.
Mas aconteciam ainda casos em que a concessão ocorria por escritura. Não nos
foi possível explicar exatamente os motivos dessas formas de doações quando vivas,
mas sabemos que elas estavam quase sempre condicionadas ao falecimento da
427
Inventário de Maria Ferreira da Trindade. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 49, Auto 546, Ano
1773.
266
doadora. Acreditamos, entretanto, que esse tipo de concessão era uma forma de
garantir o cumprimento do legado, caso não desse tempo de se fazer o testamento. Isso
também evitava possíveis questionamentos e ações futuras por parte de outros
herdeiros.
Evitava, mas não impedia. Ana Luiza do Sacramento e Vale morreu sem o seu
testamento. Ela não tinha filhos, mas criava uma menina chamada Dona Emerenciana
Joaquina da Purificação. Segundo consta no processo de arrecadação dos bens para
serem inventariados, ela havia feito a doação de sua casa para essa menina,
ressaltando que dava esse bem "pelo muito amor que lhe tenho e se necessário é a hei
por empossada". Entretanto, logo depois do falecimento de Ana Luíza, seu irmão João
Luís fez questão de assinar um termo de denúncia em que declarava que aquela doação
era falsa. Segundo suas próprias palavras, além de falsa, a concessão havia sido feita
“em prejuízo” dele suplicante e de um sobrinho428.
Conforme seu requerimento, Dona Emerenciana havia sido exposta a um tal
Joaquim José Santana quando este era carcereiro "e porque vivia em amizade ilícita
com a falecida [Ana Luíza] (...) morando juntos nas casas referidas, tomou a mesma
Ana Luiza (...) conta da exposta (...) e a criou até ao ponto de ser mulher”. Próxima de
seu falecimento, Ana Luíza passou o papel de doação. Entretanto, conforme o irmão da
falecida, o papel de doação havia sido escrito pelo mesmo Joaquim José de Santana e
somente assinado com uma cruz pela testadora e pelas testemunhas. No entendimento
de João Luís, essa concessão tinha sido simulada e, por isso, denunciava. O processo
termina sem o desfecho dessa situação. Podemos dizer, assim, que a preocupação de
Ana Luíza em garantir a posse do bem à exposta que tinha criado foi questionada. Tal
fato demonstra que nem mesmo a doação em vida evitava tais situações e,
especialmente, não assegurava que o bem que poderia auxiliar o legatário seria mesmo
usufruído pela pessoa em questão.
A documentação revelou ainda outras ações praticadas pelas próprias mulheres
quando vivas, inclusive ligadas à educação. Isto foi particularmente importante, pois
evidenciou parte das estratégias dessas mulheres, produzidas no cotidiano. A crioula
forra Caetana Maria dos Santos, por exemplo, era viúva do Alferes Eugênio Varela
Santiago e morava em Itatiaia no Arraial de Ouro Branco, Termo de Vila Rica. Seus
bens e dívidas foram inventariados no ano de 1787. Entre as dívidas, consta um
requerimento de Manoel da Costa Pacheco, por cabeça de sua mulher, Domingas
428
Arrecadação dos bens de Ana Luíza do Sacramento e Valle. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 143,
Auto 1812, Ano 1822.
267
Guedes de Jesus. Segundo Manoel, a falecida Caetana ficou devendo um resto de
ensino de aprender a coser e ler à filha, chamada Ana dos Santos429.
Pelo requerimento de Manoel não tivemos condições de saber se a sua esposa
ia até a casa da crioula forra Caetana para ensinar à menor Ana, mas sabemos que a
dívida ainda era de 5$970. Além disso, conforme declaração da própria menor, a quantia
deveria ser paga à mulher do dito Manoel ou a suas filhas, o que nos leva a inferir que
havia um local em que era ofertado esse tipo de educação para as meninas e que a
mestra Domingas era auxiliada por suas filhas. Ao mesmo tempo, podemos presumir os
esforços feitos pela inventariada Caetana para que sua filha Ana pudesse aprender a
leitura e a coser, sendo esta última uma forma de sustento futuro com um ofício próprio
do sexo feminino.
Importante ressaltarmos que, no que se refere os vestígios deixados nos
inventários das mulheres, percebemos que eles se mostraram mais escassos quando
nos ativemos à questão dos investimentos ligados à educação de menores praticados
por elas próprias. Isso se deve certamente ao fato de que se trata de um documento
produzido depois do falecimento delas. De qualquer modo, mesmo diante dessa
questão, podemos dizer que, também entre as mulheres com ascendência escrava,
havia uma preocupação em direcionar os órfãos para tipos de educação que
respeitassem seus sexos. Além disso, vimos que nesse grupo, do mesmo modo, poderia
ocorrer uma educação mista, isto é, voltada para o mundo da escrita e também para a
aprendizagem de ofícios mecânicos.
Isso se mostrou particularmente verdade quando fizemos a análise dos
inventários masculinos em que as mulheres responsáveis pelos órfãos eram ex-
escravas ou descendentes. Como apresentamos nos capítulos 2 e 3, a morte do pai dos
órfãos parecia aumentar as chances de as mulheres agirem, ou ao menos, de tornar
mais evidentes suas ações. Os documentos revelaram que não havia distinção no tipo
de educação ofertada condicionada ao fato de os órfãos terem ascendência escrava.
Na verdade, de um modo geral, as mulheres buscaram promover uma educação mista
para os menores, mesmo naquelas famílias que tinham determinada condição
econômica. Em outros termos, a “qualidade” dos menores não impediu que eles
tivessem acesso ao mundo da escrita, por exemplo, mas esse acesso se deu sem que
houvesse uma transgressão da legislação, já que os menores também aprendiam
determinados ofícios.
A análise da documentação das mulheres com ascendência escrava revelou-nos
que elas também buscaram participar da educação dos menores. O detalhe é que,
429
Inventário de Caetana Maria dos Santos. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 08, Auto 85, Ano 1787.
268
considerando apenas a documentação pertencente ao grupo feminino, os indícios
ligados ao processo educativo foram mais escassos. Seria isso uma menor valorização
do processo educativo por parte dessas mulheres? Acreditamos que não. Nossa
hipótese é que, quando eram tutoras e administradoras dos bens, elas necessitavam
mencionar os investimentos educativos para os menores, até como forma de justificar
determinados gastos perante o juiz de órfãos. Já nos documentos delas isso não se
fazia necessário, porque a relação com aqueles que ficariam com os menores ou
responsáveis pela testamentária era baseada na confiança de que essas pessoas
agiriam “como se fossem seus próprios filhos”430.
430
Inventário de Maria Ferreira da Trindade. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 49, Auto 546, Ano
1773.
431
MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998;
MARCÍLIO, Maria Luiza. A criança abandonada na história de Portugal e do Brasil. In: VENÂNCIO,
Renato Pinto (Org.). Uma história social do abandono de crianças – de Portugal ao Brasil: séculos XVIII
– XX. São Paulo: Alameda/ Belo Horizonte: PUC Minas, 2010, p. 13-38; FARIA, Sheila de Castro. A
Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
FARIA, Sheila de Castro. A propósito das origens dos enjeitados no período escravista. In: VENÂNCIO,
Renato Pinto (Org.). Uma história social do abandono de crianças – de Portugal ao Brasil: séculos XVIII
– XX. São Paulo: Alameda/ Belo Horizonte: PUC Minas, 2010, p. 81-98; VENÂNCIO, Renato Pinto.
Infância sem destino: o abandono de crianças no Rio de Janeiro no século XVIII. Dissertação (Mestrado
em História). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1988;
VENÂNCIO, Renato Pinto. Os expostos de Catas Altas-Minas Gerais (1775-1875). In: RIZZINI, I. (org.).
Olhares sobre a criança no Brasil: século XIX e XX. Rio de Janeiro: Petrobrás - Ministério da Cultura -
USU Ed. Universitária - Amais, 1997; BACELLAR, Carlos de Almeida. Viver e sobreviver em uma vila
colonial: Sorocaba, séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001; SÁ, Isabel do Guimarães.
A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da história
de Minas no século XVIII. Belo Horizonte. Editora UFMG, 1999; MORENO, Alessandra Zorzetto. Vivendo
em lares alheios: o acolhimento domiciliar, criação e adoção na cidade de São Paulo (1765-1822). Tese
(Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
2007. FRANCO, Renato. A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial,
século XVIII. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2014; FERREIRA, Luciana Viana. A criação dos enjeitados em
Vila Rica: a permanência da caridade (1775 – 1850). Dissertação (Mestrado em História). Instituto de
Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2011; PRIORE, Mary Del
269
livro História Social da Criança Abandonada (1998), destacou que era prática
costumeira a criação de filhos alheios. Segundo a autora, era o costume
(org.). História das Crianças no Brasil. 7. ed., 1 reimp., São Paulo: Ed. Contexto: 2013; PRIORE, Mary
Del (Org.), História das Mulheres no Brasil, 9. ed., 1 reimp. São Paulo, Ed. Contexto, 2008, dentre outros.
432
Dentre os estudos ligados à discussão sobre a circulação de criança, citemos: ARIÈS, Philippe. História
Social da criança e da Família. Tradução de Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2012;
BADINTER, Elisabeth. Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985; LOPES, Maria Antónia. As mulheres e as famílias na assistência aos expostos. Região de Coimbra
(Portugal), 1708-1839. Caderno Espaço Feminino, v. 26, n. 02. Uberlândia, jul./dez. 2013; SÁ, Isabel do
Guimarães. A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
433
Entretanto, o mesmo autor advertiu que, quando era descoberto esse tipo de manobra, o enjeitado era
devolvido ao dono.
270
dissertando sobre a criança abandonada em Portugal e no Brasil, destacou mais
algumas razões: a impossibilidade física ou doenças dos pais, inclusive a morte de
algum deles; a esperança de que teriam uma melhor criação numa ambiência com
melhores condições; por resignação, especialmente quando o filho tinha alguma
deficiência física ou mental ou, ainda, de um gênero diferente do desejado; e até
mesmo, por insensibilidade, quando os pais não estavam preparados para assumir a
paternidade/maternidade.
Alessandra Zorzetto Moreno (2007), ao estudar a prática de acolhimento
domiciliar, criação e adoção na cidade de São Paulo entre os séculos XVIII e XIX,
destacou que existiam pelo menos duas formas de acolhimento: a particular e aquela a
partir das instituições de assistência. No primeiro caso estavam as transferências que
ocorriam quase sempre dentro de um mesmo grupo familiar, ainda que houvesse pais
vivos e conhecidos. Podemos incluir aqui os aprendizes, afilhados, netos, sobrinhos e
tutelados. Isso poderia ocorrer por um tempo específico, como o envio de uma
determinada criança ou jovem para morar com um mestre a fim de que aprendesse
algum ofício. No Brasil, como destacou Marcílio (2010), foi esse sistema informal e
privado de criação de expostos em casas de famílias o mais amplo e presente.
Na documentação estudada, identificamos vários casos que correspondem à
essa primeira situação. Antônio Pedro Lopes de Oliveira, por exemplo, era casado com
Antônia Lopes da Silva, e moravam em São Bartolomeu, Termo de Vila Rica. Ao fazer
seu testamento no ano de 1817, ele declarou que não tinha filhos, mas que viviam em
companhia do casal dois meninos que eram filhos do compadre João Antunes de
Oliveira. Ao nomear sua esposa como testamenteira e herdeira, pediu que a mesma
conservasse os dois meninos em sua companhia e que, antes de falecer, fizesse “o que
puder” para eles434. Já Francisca Clara dos Santos era casada com Manoel da Silva
Guimarães, moradores da Freguesia de Itatiaia, no Arraial de Ouro Branco. Do mesmo
modo, não tiveram filhos. Entretanto, conforme Francisca declarou em seu testamento,
a sobrinha Maria Maximiana sempre viveu em companhia do casal435.
Ainda nessa forma de acolhimento particular estavam incluídas algumas
crianças chamadas “expostas” ou “enjeitadas”. Esses casos compreendiam: os acordos
feitos entre os acolhedores e pais ou outros parentes para que os primeiros ficassem
com o menor; ou mesmo algumas crianças encontradas à porta, e que o acolhedor
optava por amparar sem necessariamente receber algum pecúlio. Ana Maria de
Queirós, por exemplo, acolheu Dona Ana Marcelina de Queirós quando esta última
434
Inventário de Antônio Pedro Lopes de Oliveira. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 22, Auto 228,
Ano 1828.
435
Inventário de Francisca Clara dos Santos. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 44, Auto 530, Ano 1828.
271
ainda era bebê. Ela era filha natural de Dona Francisca Maria de Jesus e havia sido
exposta para que “a boa reputação” de sua mãe não “perigasse”. Segundo as
testemunhas do processo de habilitação de herança movido por Dona Ana Marcelina, a
acolhedora criou a menina sem a “meter na Câmara por não consentirem os pais (...) e
ali foi criada até se casar”436.
No caso de acolhimento a partir das instituições de assistência, ele acontecia
necessariamente em decorrência do abandono. Nesse grupo estavam incluídas apenas
aquelas crianças que, no período, eram chamadas de “expostas” ou “enjeitadas”. Vários
sujeitos aqui estudados, ao fazerem seus testamentos, declararam que haviam acolhido
“enjeitados”, ou que tinham expostos seus próprios filhos, ou ainda que eles mesmos
tinham sido abandonados. Maria da Conceição declarou em seu testamento que era
exposta. A mesma informação foi dada por Antônio Freire dos Santos437. Já Cipriana
Leocádia Borges, mulher solteira, confessou que tinha tido uma filha natural e que a
mesma fora exposta em casa de Maria Serqueira, que havia se tornado madrinha da
menina438. Além dos testamentos, percebemos que a documentação da Câmara de Vila
Rica trazia uma quantidade significativa de informações ligadas à assistência de
crianças enjeitadas, como mostraremos a seguir.
Conforme destacou Marcílio (2010), em Portugal, desde o século X, foram
estabelecidas doutrinas e normas, e fundadas instituições para a infância abandonada.
Segundo a autora, desde as Ordenações Manuelinas ficou determinado que as câmaras
municipais seriam, em última instância, responsáveis pela criação e cuidado dos
expostos. Era obrigação da municipalidade mandar o menor para hospitais ou casas de
enjeitados, e, na falta desses lugares, as crianças deveriam ser criadas sob a supervisão
municipal. Para isso, se fosse necessário, toda câmara poderia lançar finta para a
população. Essas mesmas determinações foram mantidas nas Ordenações Filipinas,
segundo a autora.
Ainda de acordo com Marcílio (2010), a responsabilidade dos conselhos
municipais só era cessada quando os menores chegavam aos 7 anos de idade. Depois
dessa data, os expostos passavam a ser responsabilidade dos juízes de órfãos até que
atingissem a maioridade, que, para esse grupo específico, era aos 20 anos de idade.
436
Justificação para habilitar na herança de sua mãe Dona Francisca Maria de Jesus. AHMINC/IBRAM. 1º
Ofício, Códice 441, Auto 9205, Ano 1813.
437
Inventário de Maria da Conceição. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 97, Auto 1185, Ano 1798;
Inventário de Antônio Freire dos Santos. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 03, Auto 30, Ano 1813.
438
Inventário de Cipriana Leocádia Borges. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 30, Auto 343, Ano 1813.
272
Cabia aos magistrados entregar as crianças para famílias que pudessem acolhê-las ou
empregá-las439.
Na América portuguesa, apesar da existência dessas determinações legais,
houve muitas dificuldades por parte das câmaras municipais para assumir essa
obrigação. Nas palavras de Marcílio (2010, p. 32), “as Câmaras Municipais em sua
quase totalidade foram omissas ou parciais nessa sua obrigação, além de oferecer uma
precaríssima assistência às crianças”. Isso porque, de um modo geral, elas alegavam
dificuldades financeiras para cumprir essa obrigação.
Atendo-nos especificamente à Vila Rica, como destacou Franco (2014, p. 55),
no período que compreende a sua criação (1711) até o final da primeira metade do
século XVIII, a Câmara não instituiu pagamentos para enjeitados. O auxílio financeiro,
conforme o autor, começou sistematicamente apenas em 1750, e a Câmara foi a única
instituição a despender recursos para os expostos. No que se refere às Santas Casas
da Misericórdia, elas foram criadas em 1738, mas não se ocuparam com os encargos
ligados à criação dos enjeitados, como as Misericórdias de Portugal. Na verdade, como
ressaltou o autor, foram algumas irmandades, de um modo geral, que assumiram
determinadas funções referentes aos enterros, permitindo que fosse criado “um modelo
informal de caridade”440.
Quanto à roda dos expostos, ela nunca foi instituída em Vila Rica, apesar dos
índices de abandono serem significativos, segundo Franco (2014). De acordo com o
autor, o aumento dos enjeitados em Vila Rica ocorreu especialmente a partir da década
de 40 do século XVIII, mas foi sobretudo no final da década de 1760 que essa prática
se tornou mais corriqueira441. Segundo o autor, esse aumento em 1760 poderia ser
explicado pela lenta aprovação, por parte da Câmara municipal, de auxílios para negros
e mulatos que, até então, ela se negava a conceder. Em meados da década de 1790 o
439
Conforme destacou Moreno (2007), nas localidades em que havia a assistência da Misericórdia, era a
própria instituição que se encarregava dessa distribuição. Marcílio (2010) explicou que a Confraria da Santa
Casa da Misericórdia foi instituída em Portugal em 1492 e tornou-se a instituição beneficente a serviço do
Estado. Com isso, algumas câmaras municipais transferiram para as Santas Casas a gerência e tutela dos
expostos, estabelecendo para isso alguns convênios. Juntamente com as Santas Casas foram criadas também
as Rodas e Casa dos Expostos. As rodas eram em formato cilíndrico e rotatório, fixadas nas paredes ou
muros das Santas Casas e tinham como função recolher os enjeitados. Por causa do seu formato, era possível
depositar a criança preservando o anonimato da pessoa que a depositava. De acordo com Ferreira (2011),
no Brasil foram criadas as seguintes rodas: Salvador – BA (1726); Rio de Janeiro – RJ (1738); Recife – PE
(1789); Campo dos Goytacazes – RJ (1796); São Paulo – SP (1825); Desterro – SC (1828); São Luís (1829);
São João del-Rei (1832); Cuiabá (1833); Porto Alegre – RS (1837); Cachoeira – BA (1840); Rio Grande –
RS (1843); Pelotas – RS (1849); e Cidade da Parayba (atual João Pessoa) - PB (1841).
440
Caio César Boschi (1984) fez a mesma observação quanto às Irmandades.
441
Importante destacarmos ainda que foi nesse mesmo período que a Comarca de Ouro Preto como um
todo sofreu um decréscimo populacional. Entretanto, essa diminuição não se deu em decorrência de baixas
taxas de natalidade, mas à migração interna. Segundo Franco (2010), tal situação pode ser percebida como
uma importante variável para a questão do crescente abandono.
273
número de abandonos atingiu cerca de 20% das crianças nascidas livres, conforme o
mesmo autor.
Diante de números tão significativos e, muitas vezes, da recusa por parte da
Câmara municipal em assumir os encargos referentes aos enjeitados, podemos dizer
que a criação dos expostos ficava a cargo das iniciativas das pessoas de Vila Rica.
Entretanto, é certo dizermos que isso não significou uma desistência por parte de
algumas pessoas que, como mostraremos a seguir, entraram com requerimentos junto
à Câmara municipal solicitando os auxílios, alegando que tais subsídios eram de
obrigação das municipalidades.
Independentemente do modo como as crianças e jovens tinham sido dados a
criar, o certo é que existia uma rede de relacionamentos que permitia a redistribuição
de menores e a manutenção de modo costumeiro dessa prática. Além disso, se havia
motivações para dar as crianças e jovens, certamente existiam interesses por parte
daquelas pessoas que acolhiam e criavam filhos alheios.
Conforme destacaram alguns estudiosos da temática, as razões para acolher um
menor em domicílio poderiam ser: econômicas – os auxílios dados pelas Câmaras ou
mesmo por particulares seriam uma forma de ampliar ou complementar a renda familiar;
caritativas – relacionados com a “generosidade” e a “caridade” cristã, as pessoas
acolhiam os menores “por esmolas” e “pelo amor de Deus”, como uma espécie de
“cumprimento de expectativas piedosas, disseminadas no imaginário cristão”
(FRANCO, 2014, p. 34) ; isenções militares – a legislação previa que aquelas famílias
que recebessem enjeitados sem soldos seriam desobrigadas de determinados deveres
militares, como o envio do filho para a guerra; reforços dos laços de parentesco –
quando os tios criavam sobrinhos, por exemplo, mas também trocas entre parentes de
um modo geral, inclusive entre compadres, possibilitando o fortalecimento das relações
de dependência, solidariedade e interesses mútuos; busca de mão de obra – algumas
pessoas acolhiam os enjeitados vislumbrando mais uma força de trabalho; isenções de
impostos e tributos – o acolhedor poderia ser desobrigado de pagar impostos ou
quaisquer outras contribuições estipuladas pela Câmara ligados à construção ou
reforma de ruas, pontes, praças, dentre outros442.
442
Dentre os autores que ressaltaram os motivos para o acolhimento, destacamos: SÁ, Isabel do Guimarães.
A circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: a Assistência à
criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX. Campinas: Papirus,
1999; FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998; FARIA, Sheila de Castro. A propósito das origens dos enjeitados no período
escravista. In: VENÂNCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças – de Portugal ao
Brasil: séculos XVIII – XX. São Paulo: Alameda/ Belo Horizonte: PUC Minas, 2010, p. 81-98; MORENO,
Alessandra Zorzetto. Vivendo em lares alheios: o acolhimento domiciliar, criação e adoção na cidade de
São Paulo (1765-1822). Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
274
A partir dos documentos analisados para o presente estudo, ressaltamos que
realmente não houve um motivo único para o acolhimento de menores. Assim, cada
uma daquelas mulheres nutriu seus interesses e ações conforme suas necessidades
específicas. Por outro lado, ainda que houvesse uma particularidade de interesses, os
motivos pareciam circular naqueles apontados pelas pesquisas e destacados acima, de
modo especial: os interesses econômicos, caritativos e o reforço dos laços de
parentesco ou compadrio.
Nesses termos, acreditamos que havia mesmo uma prática sociocultural e que
as mulheres eleitas para o presente estudo participavam dessa prática. E, como as
ações circulavam entre aqueles motivos apresentados acima, isso refletia uma
participação no jogo social, como destacado por Bourdieu (2004). Em outras palavras,
gerados por interesses particulares, mas orientados pelas coações do jogo, os motivos
individuais eram observados nas ações de um mesmo grupo de pessoas.
Diante desses aspectos levantados até aqui, podemos dizer que o acolhimento
foi uma prática comum entre todos os segmentos sociais e permitiu que muitos laços
fossem estabelecidos ou reforçados. Interessa para o presente estudo aqueles que
deixaram indícios ligados ao sustento e educação dos menores. Isso porque, como
destacamos no início deste capítulo, ainda que as motivações por parte da acolhedora
fossem particulares, elas poderiam acabar favorecendo os menores.
Entretanto, para refletirmos sobre as práticas desenvolvidas, ligadas à educação
e sobrevivência dos menores, cabe primeiramente estabelecermos o perfil dessas
mulheres com base na documentação investigada. Para isso, como já destacado,
utilizamos os dados presentes na documentação da Câmara municipal e alguns
inventários e testamentos em que havia informações sobre o acolhimento de crianças e
jovens.
Universidade Estadual de Campinas, 2007. MARCÍLIO, Maria Luíza. A criança abandonada na história de
Portugal e do Brasil. In: VENÂNCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças – de
Portugal ao Brasil: séculos XVIII – XX. São Paulo: Alameda/ Belo Horizonte: PUC Minas, 2010, p. 13-
38; FRANCO, Renato. Assistência e abandono de recém-nascidos em Vila Rica colonial. In: VENÂNCIO,
Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças – de Portugal ao Brasil: séculos XVIII – XX.
São Paulo: Alameda/ Belo Horizonte: PUC Minas, 2010, p. 147-176; FERREIRA, Luciana Viana. A
criação dos enjeitados em Vila Rica: a permanência da caridade (1775 – 1850). Dissertação (Mestrado em
História). Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2011
275
de batismo da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto dos séculos XVIII e
XIX, organizadas em um Banco de Dados443. Nesse banco foram contabilizados 645
casos, dos quais, conforme o autor, 95,7% revelaram que os menores haviam sido
enjeitados em portas de particulares.
Dessa porcentagem dos enjeitamentos, Franco revelou que 53% foram deixados
em portas de moradias chefiadas por mulheres e 47%, em casas em que os chefes
eram homens. Para Franco os números ainda revelaram um ponto importante: a
significativa diferença desses lares. Quando eram eleitas as moradias femininas,
geralmente as mulheres eram solteiras e, em menor número, viúvas. Além disso, um
número expressivo era de mulheres forras. No caso dos lares chefiados por homens,
estes eram predominantemente casados e abastados.
Luciana Viana Ferreira (2011), por sua vez, buscou fazer a mesma análise no
que diz respeito ao sexo dos criadores. Entretanto, diferentemente de Franco, a autora
utilizou a Lista de Matrícula dos Expostos da Câmara Municipal de Ouro Preto.
Conforme a autora, entre os anos de 1770 a 1789, o número de matrículas em que o
criador era homem foi maior se comparado ao das mulheres. Todavia, a partir da década
de 1790, o grupo feminino tornou-se maioria, ocorrendo um equilíbrio entre os dois
sexos, de 1810 a 1819, até que voltou a pender para o lado masculino depois dessa
data444.
Como podemos perceber, havia uma disparidade dos dados analisados pelos
dois autores. Provavelmente porque Franco analisou a documentação disponível para
todo o século XVIII e XIX referente apenas à Freguesia de Nossa Senhora do Pilar. Já
Ferreira se ateve aos dados relativos aos anos de 1770 até 1850 para toda a Vila Rica.
Além disso, é possível que muitos dos criadores não tenham matriculado seus expostos
junto à Câmara para solicitar o auxílio, pois, como já mencionamos anteriormente, os
camaristas passaram a aprovar os pedidos de pecúlio de modo gradativo apenas depois
da década de 1760. Antes disso, os expostos ficavam de modo prioritário a cargo de
443
Trata-se, conforme o mesmo autor, do Banco de Dados referentes às séries paroquiais da Freguesia de
Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, séculos XVIII e XIX. Esse banco foi o resultado de um trabalho
coordenado pela professora Dra. Adalgisa Maria Campos (UFMG), que teve início em 1999 e contou com
financiamento do CNPq e Fapemig. Para mais informações a respeito do projeto, ver: CAMPOS (2002).
444
Laura de Mello e Souza (1999), analisando o acervo da Câmara Municipal de Mariana, destacou que
também naquela localidade houve uma predominância masculina entre aquelas pessoas que acolhiam
menores expostos durante o século XVIII. Entretanto, para a autora, os números poderiam guardar aspectos
mais profundos, tais como: senhores de escravas que as usavam como criadeiras; ou aqueles que
reconduziam bebês negros ou mestiços para o cativeiro; dentre outros. Além disso, a autora não descartou
a possibilidade de que alguns homens fossem apenas representantes das mulheres. Como chefes dos
domicílios, eles matriculavam os menores, mas quem se ocupava da criação era uma mulher.
276
particulares e, em alguns casos, das irmandades. Sendo assim, o número de batismo
seria diferente do número de matriculados445.
Independentemente dessa diferença a respeito dos criadores, para o nosso
estudo nos interessaram, de modo específico, as criadoras. É certo que alguns homens
eram registrados como acolhedores do menor, mas, na verdade, eram suas parceiras
que assumiam o cuidado diário, como a documentação revelou. Entretanto, para
analisarmos o perfil, ativemo-nos às mulheres reconhecidas pela autoridade como
responsáveis pela criação e educação dos menores.
Baseamo-nos na documentação da Câmara Municipal de Ouro Preto disponível
no site do Arquivo Público Mineiro e também em alguns testamentos em que as
mulheres declararam a existência de expostos vivendo em sua companhia446.
Chegamos a um total de 194 mulheres, sendo que 168 delas foram identificadas entre
os documentos camarários, e as outras 26 eram testadoras ou inventariadas447.
Desse total, algumas pareciam se tratar das mesmas criadoras. Geralmente isso
acontecia porque algumas mulheres se comunicavam mais de uma vez com os
camaristas por motivos variados, dentre eles: para matricular o exposto com vista a
receberem o pecúlio; para apresentar uma procuração em que nomeavam homens para
cobrarem em seus nomes os valores a serem pagos pela Câmara; quando acolhiam
mais de um exposto. Assim, dos 168 registros identificados na documentação
camarária, acreditamos que 39 (23,21%) deles eram de mulheres que tenham feito mais
de um contato. Chegamos a esses números porque, nesses casos, ao menos duas
variáveis se repetiam, tais como: os nomes dos expostos e das criadoras; ou o nome da
criadora e o local de moradia. Ainda identificamos algumas listas com o nome dos
criadores para quem a câmara devia, e nelas foi possível encontrarmos referências de
uma mesma pessoa criando vários expostos448.
445
A respeito desse aspecto, Franco (2014, p. 168) fez questão de reforçar que na documentação disponível
de Vila Rica houve mais enjeitados batizados do que matriculados na Câmara. Isso, segundo o autor, refletia
a “importância da caridade informal”, pois parte da população continuou a acolher os menores
independentemente da assistência institucional.
446
A documentação pertencente à Câmara Municipal analisada nesta pesquisa é constituída basicamente
de: atestados emitidos por padres ou outra autoridade local testemunhando as condições do exposto (esse
documento era uma exigência dos camaristas para conceder o pagamento dos auxílios. Eles eram
apresentados quando as mulheres não poderiam trazer os expostos pessoalmente); cópias da certidão de
batismo com vistas à matrícula do exposto na câmara; cópia das certidões de óbitos provando quando o
enjeitado havia falecido e, nesse caso, a criadora ainda tinha direito ao pagamento do pecúlio referente ao
período que o exposto era vivo; procurações, nomeando homens para cobrar os valores a serem pagos;
dentre outros.
447
Importante reforçarmos que o número de 168 mulheres correspondeu à quantidade de mulheres
identificadas na documentação. Quer dizer, havia documentos, como, por exemplo, listas a quem a Câmara
devia, que traziam o nome de várias mulheres ao mesmo tempo.
448
Houve casos em que os nomes das criadoras eram os mesmos, mas, como não havia mais uma variável
para a comparação como, por exemplo, o local de moradia, optamos por não as incluir nessa conta. Franco
(2014) fez questão de destacar tal aspecto. Segundo o autor, a população de Vila Rica tinha muitos
277
Esse é o caso, por exemplo, de Dona Ana da Silva Teixeira de Meneses,
moradora dos subúrbios de Vila Rica, num local conhecido como Morro da Queimada.
Na documentação da Câmara Municipal analisada no presente estudo, identificamos
que ela foi criadora de 11 expostos449. Citamos também Ana Maria das Neves, que,
conforme informações existentes numa lista contendo o nome dos “seus” expostos, era
responsável por três enjeitados450. E ainda, da crioula forra Ana Pereira Pinta, moradora
das Cabeças, em Vila Rica, que tinha uma exposta chamada Domitila. Ana Pereira
entrou com dois requerimentos junto à Câmara Municipal. O primeiro tratava-se de uma
solicitação para que fosse alterada a qualidade da exposta451. O segundo registro era
um pedido da certidão de óbito da mesma enjeitada, para comprovar o período em que
a menina ficou sob seus cuidados até o falecimento, com vistas a solicitar os auxílios
atrasados452.
Além dos documentos camarários em que conseguimos encontrar mais de um
registro referente a uma mesma mulher, podemos afirmar com certeza que uma dessas
criadoras também deixou seu testamento. Trata-se da parda forra e casada Catarina
Dias dos Ramos. Quando fez seu testamento, dois filhos ainda eram vivos e outros já
tinham falecido. Ela era moradora do Rosário, em Vila Rica, e dona de uma casa de
molhados que lhe permitiu estabelecer negócios com várias pessoas, inclusive no Rio
de Janeiro. Segundo Ferreira (2011), Catarina também era padeira. Na documentação
homônimos, o que acabou por impossibilitar maiores inferências para a sua pesquisa, fato que acabou aqui
se repetindo.
449
Requerimentos de Ana da Silva Teixeira de Meneses. APM, CMOP, cx. 74, doc. 139, 07/12/1801;
CMOP cx. 74, doc. 63, 16/07/1801; CMOP, cx. 53, doc. 11, 14/04/1779; CMOP, cx. 67, doc. 26,
28/04/1795; CMOP, cx. 79, doc. 22, 05/03/1806; CMOP, cx. 79, doc. 27, 03/1806; CMOP, cx. 76, doc. 83,
1802; CMOP, cx. 55, doc. 07, 15/03/1780. Ferreira (2011), que analisou o Livro de Matrículas, destacou
que Dona Ana foi criadora de 13 expostos.
450
Lista dos nomes e dos débitos dos expostos criados por Ana da Silva Teixeira de Meneses e Ana Maria
das Neves. APM, CMOP, cx. 76, doc. 83, 1802.
451
Segundo a declaração da cuidadora, a menina havia sido registrada no batistério como parda, mas como
ninguém sabia dos pais da menor e que isso poderia ser “prejudicial para a descendência da dita exposta”,
ela pedia que fosse anotada a dúvida da qualidade. O padre, respeitando o despacho, alterou-o, declarando
que, quando ocorreu o batismo, Domitila lhe “parecia parda”, mas agora “branca”. Solicitação enviada ao
reverendo para que seja alterada a qualidade da menor Domitila. APM, CMOP, cx. 67, doc. 32, 06/06/1795.
Para uma discussão sobre a questão da cor dos expostos, ver: FRANCO, Renato. Assistência e abandono
de recém-nascidos em Vila Rica colonial. In: VENÂNCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono
de crianças – de Portugal ao Brasil: séculos XVIII – XX. São Paulo: Alameda/ Belo Horizonte: PUC Minas,
2010, p. 147-176; FRANCO, Renato. A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila
colonial, século XVIII. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2014; FERREIRA, Luciana Viana. A criação dos
enjeitados em Vila Rica: a permanência da caridade (1775 – 1850). Dissertação (Mestrado em História).
Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2011; FARIA,
Sheila de Castro. A propósito das origens dos enjeitados no período escravista. In: VENÂNCIO, Renato
Pinto. Uma história social do abandono de crianças – de Portugal ao Brasil: séculos XVIII – XX. São
Paulo: Alameda/ Belo Horizonte: PUC Minas, 2010, p. 81-98; SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito:
aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte. Editora UFMG, 1999;
452
Solicitação da certidão de óbito da inocente e exposta Domitila. APM, CMOP, cx. 67, doc. 105,
29/12/1795.
278
da câmara analisada na presente pesquisa, consta que ela era criadora de uma exposta
chamada Francelina, que lhe foi entregue pela Câmara. Entretanto, conforme Ferreira,
que analisou o Livro de Matrículas da Câmara e o já citado Banco de Dados organizado
sob a coordenação da professora Adalgisa Arantes Campos, Catarina acolheu seis
enjeitados à sua porta, incluindo a Francelina. Desses seis, ela foi madrinha de dois
deles: Manoel e Maria453.
A partir dessas considerações, tentamos traçar o perfil de 154 mulheres que
assumiram a função de criar filhos alheios. O primeiro ponto a destacarmos é o número
de mulheres com alguma ascendência escrava. É certo ressaltarmos que conseguimos
identificar em apenas 50 (32,47%) registros a condição declarada. Mas, de qualquer
modo, essa constatação vai ao encontro dos dados apresentados por outros
pesquisadores que analisaram a região, como: Franco (2014); Ferreira (2011) e, em
alguma medida, Souza (1999). Desses 50 registros com informações a respeito da
condição das criadoras, 29 (58%) eram mulheres que tiveram parentes cativos ou elas
mesmas vieram do cativeiro, assim distribuídas: 14 eram crioulas forras; 5 eram pretas
forras e 12 eram pardas.
Renato Franco (2014), dissertando a respeito da presença maciça de forras
recebendo enjeitados, fez questão de ressaltar que o número de mulheres com essa
condição declarada é certamente inferior à realidade. O autor identificou, num universo
de 325 criadoras, 146 que tiveram sua condição declarada. Dessas 146 mulheres, 109
(74,7%) eram forras, e 37 (25,3%) eram livres. Mesmo no caso dessas mulheres livres,
poderia ter existido alguma ex-escrava, como bem ressaltou. Isso porque, como
destacou o autor baseando-se em Furtado (2003) e seu estudo sobre Chica da Silva, a
mobilidade desse segmento provocava uma tentativa de “apagamento” das informações
a respeito da ascendência. Entendemos serem procedentes as mesmas considerações
para as mulheres analisadas neste estudo.
As outras 21 mulheres (42%) do nosso estudo foram declaradas como “donas”.
Como já destacamos anteriormente, o termo “dona” conferia distinção à sua portadora
em relação às demais mulheres. Moreno (2007), do mesmo modo, analisando a prática
de acolhimento na cidade de São Paulo entre 1765 e 1822, mostrou em suas análises
que as pessoas lançavam mão do citado termo quando precisavam demonstrar
453
Inventário de Maria Nobre dos Santos. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 139, Auto 1743, Ano 1807.
Solicitação de uma certidão com todos os dados do batistério da Francelina, exposta que lhe foi entregue
pela Câmara. APM, CMOP, cx. 82, doc. 12, 29/01/1812. Sobre a questão da disparidade de informações
contidas nos documentos, isto é, se entregues pelos camaristas ou encontradas à porta, Franco (2014, p. 92)
fez a seguinte consideração: “é difícil saber até que ponto os relatos contidos nas atas de batismo
correspondiam, de fato, aos locais do abandono, ou se as crianças foram realmente abandonadas ou
entregues em mãos dos criadores”.
279
socialmente a distinção de uma mulher. Baseando-se especialmente em Nizza da Silva
(2002) e seu estudo sobre as Donas e plebeias do período colonial, a autora destacou
que essa diferenciação social se dava geralmente por via masculina, através do
nascimento ou pelo casamento. Porém, em suas análises, evidenciou também que
algumas mulheres que tiveram participação ativa na sociedade, isto é, estabelecendo
negócios e exercendo certa autonomia, poderiam ser assim nomeadas.
Das mulheres que receberam o título de “dona” na documentação investigada,
pelo menos uma pareceu ter suas pretensões de acolher um exposto relacionadas à
caridade. Dona Ana da Silva Teixeira de Meneses, já mencionada, entrou com uma
solicitação junto à Câmara de Vila Rica no ano de 1779, destacando que tinha interesse
em criar um enjeitado chamado Antônio sem nenhum ônus para o Estado. Segundo
informações presentes na solicitação, o menor havia sido exposto ao Cabo da Esquadra
Antônio de Souza Rego. Mas como o regimento do qual fazia parte o citado cabo havia
sido destacado para o Rio de Janeiro, o mesmo tinha saído de Vila Rica juntamente
com a mulher, deixando o menor sob os cuidados de uma tal Ana Luísa. Assim, ela
solicitava o referido encargo, autorizando que todas as despesas da Câmara que
porventura pudessem ser feitas com o menor fossem transferidas para outro exposto.
No mesmo requerimento, Dona Ana fez questão de declarar que não conhecia e nem
sabia quem eram os pais do exposto Antônio, mas que seu interesse era “só fazer essa
caridade e servir a certa pessoa que lhe pede”. Essa solicitação foi aceita pela
Câmara454.
É possível que Dona Ana conhecesse os pais biológicos de Antônio, mas em
virtude de alguns acordos prévios, optou por mascarar a informação, alegando que era
apenas um favor a uma pessoa. De qualquer modo, o que nos interessa especialmente
é a busca do exercício da caridade por parte de Dona Ana, mostrando assim uma
tentativa de cumprir com seu dever cristão e garantindo, quem sabe, a salvação de sua
alma. Além disso, ao aceitar o exposto Antônio, em alguma medida ela estava
participando das questões e problemas do cotidiano de Vila Rica, demonstrando certo
interesse por parte dela na sociedade de seu tempo. Isso apenas reforça uma discussão
que já tem sido feita pela historiografia da efetiva participação e mobilidade feminina455.
454
Informação sobre a intenção de criar o enjeitado Antônio sem ônus para o Estado. APM, CMOP, cx. 53,
doc. 11, 14/04/1779.
455
Dentre os autores, podemos citar: FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas famílias: vida
familiar em Minas Gerais no Século XVIII. São Paulo: HUCITEC, 1997; LEWKORWICS, Ida &
GUTIÉRREZ, Horácio. As viúvas em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. Estudos de História. v. 4, n.
01. Franca, p. 129-146, 1997; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Donas e Plebéias na sociedade colonial.
Lisboa: Editorial Estampa, 2002; MORENO, Alessandra Zorzetto. Vivendo em lares alheios: o acolhimento
domiciliar, criação e adoção na cidade de São Paulo (1765-1822). Tese (Doutorado em História). Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2007.
280
Moreno (2007, p.221) também destacou a participação das “mulheres pertencentes à
elite paulistana de fins do século XVIII e início do XIX”. Para isso, a autora apresentou
algumas práticas caritativas exercidas por elas.
No entanto, nem sempre a prática do acolhimento de expostos por parte dessas
mulheres intituladas como “donas” se devia a propósitos ligados à benevolência e à
piedade. Dona Isabel dos Anjos do Amaral, por exemplo, era moradora do Arraial de
Itabira do Campo, Termo de Vila Rica. Consta na documentação da Câmara de Vila
Rica que ela cuidava de uma exposta chamada Felicidade. Interessada em garantir que
alguém pudesse representá-la junto à Câmara de Vila Rica e, consequentemente,
cobrar os auxílios que lhe eram de direito pela criação de Felicidade, Dona Isabel
apresentou duas procurações “feitas e assinadas” por ela: uma no ano de 1795 e a outra
em 1802. Além disso, no mesmo ano de 1802, ela apresentou aos camaristas um
atestado somente assinado pelo Capitão das Ordenanças João Pinto Basto. Neste
atestado, havia a declaração de que a exposta estava sendo criada e sustentada “com
boa educação”, ainda que a criadora estivesse há vários anos sem receber “aquela
pensão que Vossa Alteza Real manda dar para nutrir seus enjeitados”. E continua: “esta
dona pelas suas impossibilidades se faz digna de que os senhores do senado se dignem
compadecer-se de suas necessidades para o penso de uma menina branca...”456.
Como vemos, Dona Isabel parecia mesmo esperar a ajuda dos camaristas para
o sustento e criação da menor e, para isso, buscou usar de todos os artifícios, inclusive
o de destacar a qualidade da menina – “branca”. Nesses termos, consideramos que ao
acolher a citada enjeitada, Dona Isabel estava, no mínimo, lançando mão de estratégias
para a complementação de suas rendas. E, ao agir desse modo, possibilitou à
Felicidade que tivesse uma oportunidade de ser criada e sustentada “com boa
educação”, conforme a avaliação no requerimento existente457.
456
Documento informando que a enjeitada Felicidade está sendo bem cuidada. APM, CMOP, cx. 76, doc.
33, 10/11/1802; Procuração passada ao destinatário para receber pela criação da exposta Felicidade. APM,
CMOP, cx. 78, doc. 32, 25/11/1804; Procuração para receber e dar quitação do pagamento pela criação da
exposta Felicidade. APM, CMOP, cx. 67, doc. 88, 22/12/1795.
457
Não podemos deixar de destacar que, muito provavelmente, alguns desses atestados que certificavam as
condições dos menores referentes à saúde e a maneira como estavam sendo educados pudessem ter sido em
alguma medida forjados. Os atestados, como já destacamos, eram uma exigência da Câmara, que obrigava
a apresentação de tais documentos pelo criador ou seu procurador para que fossem liberados os auxílios.
Sendo assim, não podemos deixar de pensar que alguns deles tenham sido “floreados”, na tentativa de
convencer os camaristas de que os menores estavam sendo bem cuidados. Além disso, não podemos
descartar que alguns desses atestados tenham sido feitos pelos próprios criadores, cabendo à autoridade do
lugar apenas assinar tais documentos, validando a informação como era exigido. Nesses casos, o criador
poderia compor o texto conforme a sua avaliação particular dos seus próprios atos. Esse parece ser o caso,
por exemplo, da já mencionada Dona Isabel dos Anjos Amaral. Acreditamos que o documento que atestava
a “boa condição” da exposta Felicidade muito provavelmente foi escrito pela própria cuidadora, cabendo
ao capitão apenas assiná-lo. Isso porque ela tem a mesma grafia que a procuração redigida por ela.
Documento informando que a enjeitada Felicidade está sendo bem cuidada. APM, CMOP, cx. 76, doc. 33,
281
Na documentação da Câmara de Vila Rica encontramos apenas o caso citado
acima em que houve uma apresentação formal de uma mulher desejosa de criar um
exposto sem que recebesse por tal encargo. Entretanto, acreditamos que a prática de
acolher filhos alheios sem o recebimento de algum pecúlio não foi uma particularidade
das “donas”.
Nos testamentos e inventários também não identificamos nenhuma menção
desse tipo de prática caritativa claramente expressada. Na verdade, no que se refere à
essa documentação, tornou-se difícil estabelecermos os motivos que incentivaram o
acolhimento dos menores, quando isso não era declarado. O mais comum foi a menção
de que tinham enjeitados em sua companhia, mas sem nenhuma referência das
circunstâncias do acolhimento; ou que tinham estabelecido contratos com a Câmara e
que ainda não tinham recebido pela criação; ou ainda casos de acolhimento de menores
dos quais se tinha conhecimento dos pais biológicos, como os netos, sobrinhos e alguns
afilhados.
A crioula forra Feliciana Maria da Cruz, por exemplo, moradora de Vila Rica,
declarou em testamento que sempre tivera seu neto Simão em sua companhia, pois o
pai desse menor morava fora da Comarca de Vila Rica 458. Maria Marta da Gama, por
sua vez, também moradora de Vila Rica, determinou em testamento que o testamenteiro
deveria comprar uma escrava e a dar para Juliana, sua neta, que sempre havia criado
e que à época já se encontrava no estado de casada459. Ou ainda, o casal José Félix de
Magalhães e Faria e Leonor Maria Martins, que, além dos três filhos, tinha em sua
companhia o menor Antônio José Duarte em sua casa em Vila Rica. Conforme as
informações presentes no testamento de José Félix, Antônio havia sido criado “como
um filho” e, durante o tempo que viveu em companhia do casal, tinha aprendido com o
inventariado a arte da música, além de ter sido sustentado e vestido “gratuitamente”460.
Alessandra Moreno (2007, p. 291) destacou essa mesma dificuldade em relação
à documentação de São Paulo. Estabelecendo uma comparação entre as pessoas
pertencentes a grupos econômicos distintos, a autora mencionou que o exercício da
10/11/1802; Procuração passada ao destinatário para receber pela criação da exposta Felicidade. APM,
CMOP, cx. 78, doc. 32, 25/11/1804.
458
Inventário de Feliciana Maria da Cruz. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 139, Auto 1749, Ano 1800.
459
Inventário de Marta Maria da Gama. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 100, Auto 1231, Ano 1791.
460
É possível que este último caso se encaixe na situação já mencionada, quando destacamos que, após os
7 anos de idade, os menores eram dados às famílias interessadas em continuar com a educação dos expostos,
podendo, consequentemente, usufruir deles com alguma forma de trabalho. Estamos dizendo isso pois
consta do mesmo testamento que o menor ajudava financeiramente na casa com o uso de sua voz. Mas não
descartamos também a possibilidade de que Antônio sempre tenha morado com a família de José Félix e
Leonor Maria. Isso porque não há nenhuma informação a respeito, nem ao menos a data em que Antônio
foi morar com o casal. Inventário de José Félix de Magalhães e Faria. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice
24, Auto 255, Ano 1788.
282
caridade foi mais visível entre os mais abastados. Entre aqueles menos afortunados, a
maneira encontrada para exercer a piedade foi especialmente através de algumas
doações em testamentos, tais como: trastes de casa, roupas e também ferramentas
para os acolhidos.
Conseguimos observar na documentação de Vila Rica esses mesmos tipos de
legados, independentemente do grupo socioeconômico pertencente. Joaquina Vieira de
Andrade, por exemplo, morava na rua São José, em Vila Rica. Ela era casada com o
Tenente Marcos José de Alvarenga, e não tiveram filhos. Ao fazer o seu testamento em
1814, declarou que tinha uma exposta de nome Francisca, que teria em torno de 5 anos
de idade. Para essa menina deixou todas as roupas de seu uso461. Josefa Maria de
Queirós era solteira e também moradora de Vila Rica. Mãe de três filhos, ela acolheu
ainda a enjeitada Cândida. Ao escrever seu testamento, legou para essa exposta uma
caixa com dois lençóis, uma fronha, uma colcha de algodão riscado com sua fronha,
toda sua roupa de uso e ainda o catre em que dormia462.
Mas, para além da condição dessas mulheres, consideramos importante
também identificar se elas se mantiveram solteiras ou se casaram em algum momento
de suas vidas. Das 154 mulheres, apenas 48 (31,17%) deixaram informações sobre
isso. Entre essas 48 cuidadoras, a maioria era de viúvas, perfazendo um total de 23
(47,91%). Depois temos as solteiras – 14 (29,17%) —e, por último, as casadas – 11
(22,92%).
A pequena quantidade de documentos que trouxeram informações dessa
natureza não nos permite fazer muitas inferências. Entretanto, pelos dados
identificados, podemos dizer que foram as chefes de domicílio que predominaram entre
as cuidadoras. É bastante difícil pela documentação utilizada compreender os motivos
que levaram essas mulheres a acolher esses menores.
Nizza da Silva (1998, p. 214), em seu estudo sobre a história da família no Brasil,
fez uma análise dos expostos da cidade de São Paulo durante o século XVIII. Segundo
a autora, naquela cidade, foram as mulheres também que receberam a maior
quantidade de expostos. Utilizando uma lista de população que continha “os cabedais”
de cada domicílio, a autora percebeu que a grande maioria das mulheres era detentora
de pequenas fortunas ou não tinha bens nem mesmo para serem declarados. Diante
desses dados, para Silva (1998, p. 214), o acolhimento significava mais “um mero
contrato com o pagamento, por parte da Câmara, de um estipêndio pelos cuidados da
criação”; ou a possibilidade de utilização do menor no mundo do trabalho.
461
Inventário de Joaquina Vieira de Andrade. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 85, Auto 1048, Ano
1816.
462
Testamento de Josefa Maria de Queirós. AHMINC/IBRAM, Códice 326, Auto 6894, 1803.
283
Acreditamos, do mesmo modo, que o acolhimento poderia ser uma estratégia
das mulheres do Termo de Vila Rica para complementar a própria renda ou aumentar o
número de mão de obra no seu grupo familiar. Tendemos a pensar assim pois, como já
destacamos, a maioria dos requerimentos apresentados à Câmara municipal era de
cobranças do pagamento de auxílios atrasados ou solicitações de matrícula para o
recebimento de pecúlio.
Esse é o caso, por exemplo, da crioula forra Ana Batista Pinta. Ela era solteira e
declarou em requerimento que tinha interesse em matricular a menor Feliciana, que
havia sido enjeitada em sua casa, “porque era pobre” e precisava de ajuda para o
sustento da mencionada exposta463. Ou ainda Maria Fernandes de Souza, que em
requerimento declarou que “ela oprimida da necessidade e pobreza e não ter com que
alimentar o exposto João que para não perecer a fome e ao frio se tem valido da
caridade dos fieis de Deus que a tem socorrido com suas esmolas”. Nesses termos,
socorria ao senado daquela câmara e pedia que os camaristas lhe acudissem “na sua
constante miséria para poder ministrar ao dito inocente os ofícios de uma boa mãe e de
uma verdadeira católica, que o não deve deixar morrer ao rigor da miséria"464.
Já no que se refere ao acolhimento, os documentos demonstraram que a maioria
das crianças e jovens que viviam junto com as cuidadoras era do sexo feminino.
Identificamos um total de 178 menores aqui incluídos: aqueles referenciados na
documentação camarária e nos testamentos e inventários. Desse total, 102 (57,30%)
eram meninas e 76 (42,70%) eram meninos. Esses dados vão ao encontro daqueles
identificados por Franco (2014) na Freguesia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto.
Segundo o autor, houve um predomínio de meninas em relação aos meninos no quadro
geral de exposição.
É provável que, uma vez em condições de realizarem algum trabalho, essas
meninas fossem inseridas nas atividades domésticas, existindo casos inclusive em que
contribuíssem para a renda familiar. Sheila de Castro Faria (2001), dissertando a
respeito das ex-escravas, destacou a prática feminina de comprar escravas visando,
dentre outros aspectos, o compartilhamento das atividades comerciais para a
acumulação de pecúlio. Mary Del Priore (2007, p. 506), por sua vez, atendo sua análise
às crianças nas Minas Gerais, também ressaltou as parcerias que poderiam ser
estabelecidas dentro do grupo familiar. Para isso, apresentou-nos Vitória do
Nascimento, moradora de Sabará no ano de 1762. Preta forra e solteira, ela declarou
463
Solicitação do assento e matrícula no Livro da Câmara para que possa criar a exposta Feliciana. APM,
CMOP, cx. 67, doc. 02, 10/01/1795
464
Solicitação de ajuda para criar um exposto chamado João. APM, CMOP, cx. 79, doc. 10, 25/01/1806.
284
em testamento que, além dos escravos, tinha em sua companhia uma enjeitada. Todos
no grupo, segundo suas próprias palavras, “viviam de costurar para fora”.
Os dados disponíveis deram-nos poucas possibilidades para estabelecermos
maiores análises. Podemos reforçar apenas que essas mulheres analisadas
“engrossaram” o número de pessoas que optaram por acolher algum menor, permitindo
a manutenção desta prática, mesmo diante das dificuldades que tinham para o
recebimento de auxílios, quando era o caso. Resta-nos tecer algumas considerações
sobre as possibilidades que esse acolhimento poderia trazer para a educação e criação
do menor. Como já destacamos, os motivos para o acolhimento poderiam ser diversos,
mas, ao acolher, as mulheres acabavam contribuindo para o processo de formação dos
menores e, consequentemente, exercendo o seu papel de educadoras.
285
que se tratava realmente de uma informação necessária para entrar com o pedido de
ajuda junto ao senado da Câmara. Outros já traziam a certidão e, nesses casos, quase
sempre vinha também a confirmação da matrícula para recebimento do auxílio
camarário.
Quanto ao juramento a respeito da identidade dos pais, Ferreira (2011, p. 108)
ressaltou que ele deveria acontecer “sobre os evangelhos”. Isso se fazia necessário
porque alguns membros da Câmara desconfiavam que certos criadores expunham seus
próprios filhos e os acolhiam no intuito de alcançar o auxílio camarário.
Uma vez cumpridas essas duas determinações, a criança era inscrita no Livro
de Matrícula dos Expostos. Neste livro eram especificados o dia, mês e ano da
solicitação do pecúlio, o nome do enjeitado e o local em que o mesmo fora encontrado.
Em alguns casos era registrado também: o nome da pessoa que encontrara a criança;
o dia em que o menor fora achado; o nome do padre e o local onde fora realizado o
batismo; uma cópia da certidão do batismo; o nome e o local de moradia do criador e o
valor a ser pago pela criação (FERREIRA, 2011).
No que se refere ao auxílio dado pela câmara, Ferreira (2011), analisando as
oscilações dos pagamentos realizados pela Câmara de Vila Rica, destacou que, no ano
de 1768, os oficiais daquele senado resolveram uniformizar todos os contratos que, até
então, não seguiam uma regra. Depois dessa data ficou estabelecido que os contratos
fechados desde 01 de janeiro de 1763 seguiriam a seguinte ordem: três oitavas mensais
nos três primeiros anos e duas oitavas mensais nos quatro anos subsequentes. Já em
1772, em reunião com todos os matriculantes, ficou determinado que nos três primeiros
anos seriam concedidas duas oitavas de ouro mensais, somando 24 oitavas anuais; e
nos quatro últimos anos seriam outorgadas 16 oitavas anuais.
Mas quais seriam as práticas que se desenrolariam depois de estabelecidos os
contratos para a criação do menor? Como os acolhidos eram criados? Que tipo de
educação lhes era ofertada? Quais eram as estratégias para manutenção e
sobrevivência deles?
Como apontado anteriormente, para receber algum auxílio da Câmara, as
cuidadoras deveriam apresentar um atestado assinado pelo pároco ou alguma outra
autoridade local, confirmando que o menor estava vivo e em boas condições. Na
documentação camarária aqui analisada, encontramos inúmeros atestados dessa
natureza. Neles foi possível identificarmos alguns indícios de como supostamente
estava acontecendo a criação do menor.
Ana Maria Fernandes, por exemplo, moradora de Ouro Branco, era criadora de
uma exposta chamada Antônia. Em 1798 ela apresentou um atestado escrito pelo padre
Manoel Dias da Costa Lana em que este último afirmava que a referida exposta era viva
286
e estava “sendo criada com muito amor e desvelo não obstante sua nímia pobreza...".
Antônia Soares de Oliveira, por sua vez, moradora da Freguesia de Nossa Senhora do
Pilar, em Vila Rica, teve seus “bons cuidados” atestados pelo Padre José Carneiro de
Morais, que fez questão de mencionar que a cuidadora estava educando o enjeitado
Cipriano, que era pardo, “com todo o desvelo, fazendo as vezes de uma boa mãe”. Ou,
ainda, o testemunho apresentado por Joana Maria da Conceição, moradora da
Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, em Vila Rica, em que o
Sargento Comandante Félix Pereira de Almeida afirmava que o exposto José estava
naquele ano de 1793 com “quatro anos de idade mais ou menos e tenho pleno
conhecimento da sua criação, educação e tratamento com que a dita se tem portado
conforme as suas posses"465.
Como vimos, os testemunhos buscavam destacar que os cuidados dispensados
aos menores eram revestidos de “desvelo” e “atenção”. Isto, em alguma medida,
procurava evidenciar que essas mulheres haviam assumido a função de criadoras,
mesmo que para isso despendessem de suas próprias posses.
Não podemos deixar de considerar que muitos dos escritos presentes nessa
documentação poderiam escamotear uma realidade diferente. De qualquer modo, ainda
que seja esse o caso em alguns dos eventos identificados, acreditamos que alguns
pontos se mostraram importantes. Primeiramente, que esses atestados poderiam ao
menos revelar uma postura imaginada e esperada para essas mulheres – de “bons
cuidados” e atenção para com o menor, sua criação e educação. Para além disso, que
tais escritos ainda poderiam manifestar uma noção do que seria “bem criar” e educar.
Afinal, como apresentamos no primeiro capítulo, os termos “criar” e “educar”
englobavam sentidos que perpassavam desde o fornecimento do alimento, o cuidado
diário, até chegarmos ao ensino de determinados conhecimentos. Finalmente,
acreditamos que esses testemunhos faziam menções a algumas práticas que poderiam
nos ajudar a vislumbrar um pouco mais do processo de criação e educação existentes.
Iniciemos pelos esforços para a garantia do alimento. Sendo o exposto tão
pequeno, havia a necessidade de ainda lhe fornecer o leite materno. Para isso, cabia
às cuidadoras contratar amas-de-leite quando elas mesmas ou alguma escrava própria
não tinham condições de amamentar o enjeitado466. Maria Rosa dos Anjos, por exemplo,
465
Os fragmentos citados neste parágrafo são retirados dos seguintes documentos, em ordem do primeiro
para o último: Informação sobre a criação da exposta Antônia, por Ana Maria Fernandes. APM, CMOP,
cx. 71, doc. 21, 26/11/1798. Documento atestando que o enjeitado Cipriano, exposto na residência de
Antônia Soares de Oliveira, está vivo e bem tratado. APM, CMOP, cx. 66, doc. 24, 07/12/1793. Documento
atestando que o enjeitado José, exposto na residência de Joana Maria da Conceição, está vivo e bem tratado.
APM, CMOP, cx. 66, doc. 40, 26/12/1793. (Grifos nossos).
466
A respeito das amas-de-leite, ver: MORENO, Alessandra Zorzetto. Vivendo em lares alheios: o
acolhimento domiciliar, criação e adoção na cidade de São Paulo (1765-1822). Tese (Doutorado em
287
nos idos de 1795, dirigiu-se à Câmara municipal a fim de justificar o não cumprimento
da exigência de trazer o exposto Manoel ou um atestado certificando que o mesmo
estava vivo. Segundo suas próprias palavras, ela se encontrava impossibilitada, pois
estava doente. Apesar desse descumprimento, fez questão de mencionar que o menor
estava sendo “criado e alimentado em sua casa” e que ainda estava devendo os jornais
da ama-de-leite sem ter condições de pagar esta dívida “pela suma pobreza”. Nesses
termos, aproveitava a oportunidade para pedir que “os meritíssimos fiscais” se
compadecessem dela, “mandando-lhe dar alguma quantia de ouro”467. Pelo que
podemos perceber, a urgência se fez maior, e ela preferiu acionar sua rede de
relacionamentos e garantir o alimento do exposto Manoel, possivelmente na promessa
de que a dívida seria paga assim que recebesse o auxílio da Câmara.
Todavia, parece que alguns desses acordos chegavam até os ouvidos dos
camaristas, provocando determinadas confusões. Vitoriana Teixeira, em 1783, entrou
com um pedido de reforma da matrícula do exposto Francisco. De acordo com a
cuidadora, ela havia acolhido o menino para criar. Entretanto, quando foi receber pela
criação, constava na margem do Termo de Entrega uma nota que dizia ter passado o
dito enjeitado para o poder de Arcângela Gomes. Conforme a cuidadora, tal registro não
tinha lugar, “porque a suplicante nunca demitiu de si o tal menino, nem deu
consentimento para semelhante passagem e menos que ela [tinha sido] ouvida”. Além
disso, acreditava que esse engano havia ocorrido quando ela “ajustou com a dita
Arcângela a dar de mamar ao dito menino”, a qual, por sua vez, “o levou para sua casa”,
pois ela, Vitoriana, estava gravemente molesta. O detalhe importante era que a
cuidadora já tinha feito o pagamento à ama-de-leite, como constava do recibo, e o
menino Francisco já se encontrava novamente no lar de Vitoriana, que desde então era
“criado à custa da suplicante e por ordem e mandato desta [Câmara], como é público e
notório e pode informar a vizinhança da suplicante". Diante dessas considerações, os
camaristas optaram por alterar novamente o registro468.
Outros atestados ajudaram-nos a vislumbrar que alguns menores foram
mantidos com essas mulheres mesmo depois dos 7 anos de idade469. Como destacou
História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2007; LOPES,
Maria Antónia. As mulheres e as famílias na assistência aos expostos. Região de Coimbra (Portugal), 1708-
1839. Caderno Espaço Feminino, v. 26, n. 02. Uberlândia, jul./dez. 2013; SÁ, Isabel do Guimarães. A
circulação de crianças na Europa do Sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1995.
467
Documento comunicando a impossibilidade de comparecer à Câmara com o exposto Manoel, por estar
doente... APM, CMOP, cx. 67, doc. 86, 28/12/1795.
468
Solicitação da reforma da matrícula do enjeitado Francisco, para que possa criá-lo e também receber o
que a Câmara devia... APM, CMOP, cx. 58, doc. 09, 07/05/1783.
469
Como já apontamos, os expostos depois dessa idade poderiam ser devolvidos à Câmara ou conservados
em poder do criador que, por sua vez, poderia usufruir da mão de obra desses menores por tempo igual ao
288
Franco (2014, p. 218), em Vila Rica, foram “as soluções cotidianas” que “deram o tom”
aos destinos dos enjeitados. Em outras palavras, apesar de ser da obrigação dos juízes
de órfãos a reintegração dos maiores de 7 anos, nem sempre isso acontecia. Baseando-
se nas observações de Saint-Hilaire, que esteve em Vila Rica na segunda década do
século XIX, o autor ressaltou que era prática comum a manutenção dos menores com
os cuidadores depois dessa idade, os quais, consequentemente, continuavam a
sustentá-los, vesti-los e, em alguns casos, enviando-os para a escola470.
Esse parece ser o caso da enjeitada Ana, que havia sido exposta na residência
de João da Silva Guimarães, casado com Dona Isabel Jacinta de Jesus, moradores de
Itatiaia, no Arraial de Ouro Branco, Termo de Vila Rica. Consta que Ana sempre tinha
vivido em companhia do mencionado casal, sendo sustentada e vestida à custa deles
até que tomou estado de casada471.
Nesses termos, concordamos com Franco (2014, p. 222) quando o autor
destacou que o destino dos menores “não estava relacionado somente à condição
financeira da família que os criava, dizia respeito também ao intricado universo de
escolhas pessoais”. O menor poderia tornar-se uma mão de obra barata; ou ainda
poderia assumir as vezes de filhos para alguns casais. Estas são apenas algumas das
várias possibilidades que poderiam explicar a manutenção de um menor no seio familiar
depois dos 7 anos de idade, segundo o autor.
Uma vez conservada essa relação, alguns menores poderiam tornar-se
herdeiros de alguns legados ou ainda alvo de ações para a sua sobrevivência ou
educação. Nos testamentos analisados no presente estudo, conseguimos identificar
algumas mulheres que, preocupadas com os destinos de “suas crias”, fizeram questão
de pedir que alguma pessoa próxima continuasse seu trabalho de criação e educação
de crianças e jovens sob suas responsabilidades. Tal situação também se fez presente
quando os menores moravam com essas mulheres, apesar de haver o conhecimento
de seus pais biológicos, como no caso de netos, sobrinhos, etc.
da criação, caso não tivesse recebido por isso. Quando devolvidos à Câmara, o exposto passava a ser
responsabilidade do juiz de órfãos. Como destacou Ferreira (2011, p. 146), essa determinação estava
prevista nas Ordenações Filipinas, e o Alvará Pombalino de 1775 a ratificou. Na verdade, de acordo com
a autora, a partir desse alvará os deveres dos juízes foram ampliados, pois no parágrafo 8º ficou estabelecido
que além de encontrar um lar para “órfãos, desamparados e expostos”, cabia aos magistrados “torná-las
pessoas ocupadas e não ociosas”.
470
Apesar dessas considerações, Franco (2014, p. 219) destacou que “não é possível avaliar a extensão
dessa prática nem é, ao mesmo tempo, factível supor a grande importância do trabalho em troca de casa e
comida”. De qualquer modo, o autor não descartou que grande parte dos expostos tenham se tornado
agregados nas casas que os acolheram.
471
Documento atestando que uma criança foi exposta na residência de João da Silva Guimarães e criada
até o seu casamento. APM, CMOP, cx. 78, doc. 30, 22/11/1804.
289
Teresa Viera, por exemplo, moradora de Vila Rica, era solteira e teve uma filha,
que já era falecida. Ao fazer o seu testamento, ela declarou que viviam em sua
companhia três menores, que ela nomeou de “minhas crias”: Luiza, Maria e Ana. Para
cuidar dessas meninas, ela deixou uma tal Ana Ferreira e pediu que a mesma fosse
morar em sua casa juntamente com essas menores, “fazendo as minhas vezes de
doutrinar”472. Bernarda de Sena, por sua vez, casada com Manoel Gomes da Silva e
também moradora de Vila Rica, não tinha filhos. Entretanto, declarou em testamento
que vivia em companhia do casal o seu afilhado Mateus, o qual deveria ser conservado
junto ao marido e testamenteiro473. Ou ainda Joana de Araújo, viúva e moradora de Vila
Rica, que afirmou que não havia tido filhos, mas que tinha uma enjeitada por nome
Zeferina, “pela qual tem muito amor”. Pediu ao testamenteiro que aceitasse o encargo
de cuidar de suas últimas vontades, que também se responsabilizasse por essa menina,
ressaltando que deveria “tratá-la, educá-la até o tempo de tomar estado de casada”474.
No que se refere ao casamento, percebemos que, para muitas das cuidadoras,
ele era visto como uma oportunidade de preservação da honra e do bom
comportamento, além de uma forma de direcionar o destino dos acolhidos. Não
podemos esquecer, ainda, que ele era uma forma de distinção social, como já
destacamos. Na documentação investigada é bastante comum a preocupação em
deixar dotes ou outros legados relacionados ao matrimônio.
Segundo Franco (2014, p. 224), no caso dos enjeitados, parecia existir uma
tendência de não criar grandes entraves para as relações sacramentadas. Analisando
as celebrações matrimoniais realizadas na paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Vila
Rica, o autor destacou que, entre 1804 e 1839, foram celebrados 84 casamentos
envolvendo pessoas expostas, o que correspondia a 9,5% do total.
Foi a preocupação em garantir que sua enjeitada e afilhada Maria se casasse
que incentivou Maria Pereira de Amorim a lhe deixar em testamento a quantia de
200$000. Segundo suas determinações, tal quantia deveria ficar com o testamenteiro,
que apenas a entregaria para a afilhada quando “ela tomasse estado” de casada475.
Certamente foi a mesma motivação que teve a viúva Dona Micaela Teodora da Silva.
Segundo informações da testadora, ela sempre teve em sua companhia duas afilhadas
por nomes Maria e Micaela. Para a afilhada Maria, a testadora determinou que o
testamenteiro deveria lhe entregar 20$000 para ajudá-la a comprar uma escrava.
Entretanto, fez questão de ressaltar que esse legado estava condicionado ao casamento
472
Testamento de Teresa Viera. AHMINC/IBRAM, Códice 350, Auto 7318, 1802.
473
Testamento de Bernarda de Sena. AHMINC/IBRAM, Códice 312, Auto 6682, 1816.
474
Testamento de Joana de Araújo. AHMINC/IBRAM, Códice 324, Auto 6851, 1816.
475
Inventário de Maria Pereira de Amorim. AHMINC/IBRAM. 1º Ofício, Códice 97, Auto 1184, Ano 1792.
290
que, caso não se realizasse, deveria tornar a determinação sem efeito, pois “nada lhe
deixo”. Já em relação a Micaela, que provavelmente ainda era muito nova, ela pediu ao
testamenteiro que puxasse “para seu poder”, legando a quantia de 30$000 “na ação de
ela se casar”476.
Mas, para além da preocupação de proporcionar que suas crianças e jovens
pudessem ser ordenadas por meio do casamento, identificamos a referência de
investimentos em alguma forma de educação para questões mais práticas, como ler e
escrever, por parte das cuidadoras. A respeito desse aspecto, acreditamos que, para
algumas mulheres, a menção dessas práticas educativas perpassava pela crença de
que tais direcionamentos poderiam servir como “moeda argumentativa”, facilitando o
recebimento do auxílio camarário. Entretanto, não podemos descartar também que, em
alguns casos, o direcionamento para algum saber mais prático poderia refletir uma
preocupação das cuidadoras para com o futuro e sobrevivência desses menores e quem
sabe até para a sobrevivência de seu grupo familiar, formando assim uma mão de obra
mais especializada. E, finalmente, devemos reforçar um ponto já mencionado: se esses
investimentos poderiam favorecer de alguma maneira as cuidadoras, eles não deixavam
de ser vantajosos também para os menores.
Na documentação investigada, identificamos apenas três casos que ressaltaram
alguma forma de investimento na educação dos menores em termos mais práticos. É
provável que direcionamentos desse tipo fossem mais comuns do que os registros
encontrados, mas por motivos variados não foram declarados pelas cuidadoras. Para
além desses aspectos, não podemos esquecer que, para o presente estudo, analisamos
a documentação camarária que, como já destacamos, era responsável pelos enjeitados
até a idade de 7 anos. Segundo Nizza da Silva (1993), era apenas nessa idade que
efetivamente os menores eram direcionados para aprendizagem de algum ofício ou as
primeiras letras477. Já os testamentos eram constituídos de intenções a serem realizadas
e, diante disso, não necessariamente traziam determinações ligadas à educação e ao
cuidado dos menores de modo detalhado, sendo ainda mais raros os relatos das
práticas educativas já desenvolvidas.
476
Testamento de Micaela Teodora da Silva. AHMINC/IBRAM, Códice 460, Auto 9785, 1805.
477
Conforme Nizza da Silva (1993, p. 13), no que se refere à infância, ela era dividida em duas grandes
etapas. A primeira compreendia o nascimento até os 3 anos de idade, conhecida como “primeira infância”,
e se caracterizava “apenas biologicamente pelo facto de a criança ser alimentada com leite humano, da mãe
ou de ama”. Depois dessa fase ocorria a chamada “segunda infância”, que abrangia dos 4 até os 7 anos de
idade. Conforme a autora, nesse período a criança acompanhava “a vida do adulto sem nada lhe ser exigido
em troca, nem trabalho, nem cumprimento dos deveres religiosos, nem estudo”. Somente depois dos 7 anos
é que a criança era colocada para aprender algum tipo de educação mais prática, tal como: ler, escrever ou
algum ofício. Tais aspectos já foram destacados na introdução.
291
Dessas três mulheres identificadas, destacamos a já mencionada Dona Micaela
Teodora da Silva. Além das duas afilhadas que viviam em sua companhia – Maria e
Micaela –, moravam com a viúva também uma prima, chamada Maria Caetana, e alguns
escravos. Micaela Teodora não mencionou o número de cativos. Entretanto, parece que
ela estabeleceu uma relação diferenciada com um deles – a mulatinha Eugênia.
Conforme o legado em seu testamento, determinou que o testamenteiro deveria mandar
ensinar a coser à mencionada menina. Além disso, caso se casasse, “procedesse bem”
e “vivesse honestamente”, deveria receber a carta de liberdade. Porém, se até a idade
de 20 anos a menina se prostituísse, essa “graça” não seria válida e deveria ficar “sujeita
à escravidão”. Pelos dados apresentados no testamento, não temos condições de saber
se o pai ou a mãe da mulatinha Eugênia era um dos escravos de Micaela. Mas, de
qualquer maneira, parece que a testadora assumiu para si a função de cuidar de
Eugênia, demonstrando uma preocupação com o futuro da menor, que deveria aprender
um ofício para buscar o próprio sustento de maneira “lícita”478.
Outra mulher que se preocupou em investir no ensino de ofícios manuais para
sua acolhida foi a crioula forra Ana Teresa. Solteira e moradora do Distrito de Antônio
Dias, em Vila Rica, ela solicitou ao Sargento Comandante Félix Pereira de Almeida que
desse seu testemunho a respeito do cuidado dispensado à exposta Ana. Conforme
atestou o sargento comandante, a menina já estava com 10 anos de idade. Além disso,
mencionou que tinha “bastante conhecimento da criação da dita exposta” e que a
mesma era “bem tratada e educada com a criação necessária”. Tanto era assim que
sua cuidadora a havia posto na “escola a aprender a ler e de presente se acha na
costura”479. Como vemos, a enjeitada já havia ultrapassado a idade estabelecida pela
Câmara, mas continuava em companhia de Ana Teresa, que se empenhou em oferecer
não apenas os ofícios manuais “próprios do sexo feminino”, como também lhe
possibilitou o acesso ao mundo da escrita. O atestado apresentado pela cuidadora
certamente foi produzido para certificar que a menina estava viva e “bem tratada e
educada”, confirmando o dever cumprido por parte de Ana Teresa, que queria receber
os valores atrasados que ainda não tinham sido pagos pela câmara480.
No que se refere ao acesso a alguma forma de instrução, além do caso
mencionado acima, temos também os direcionamentos dados por Dona Joana Rosa de
478
Testamento de Micaela Teodora da Silva. AHMINC/IBRAM, Códice 460, Auto 9785, 1805.
479
Documento atestando que a enjeitada Ana, exposta na residência de Ana Teresa, está viva e bem tratada.
APM, CMOP, cx. 66, doc. 42, 31/12/1793.
480
Sabemos que, até o ano de 1796, Ana Teresa ainda não tinha recebido pela criação da exposta Ana. Isso
porque ela entrou com uma procuração junto à Câmara de Vila Rica nomeando o Capitão Luís Pinto da
Fonseca e Ventura Ribeiro Pinto para cobrarem ao citado senado pela criação da exposta. APM, CMOP,
cx. 66, doc. 03, 04/01/1796.
292
Negreiro e Castro, moradora de Vila Rica. Conforme o atestado passado pelo Capitão
Comandante Antônio Dias Botelho, o exposto Egídio estava sendo “bem educado e
criado”, sendo assistido pela cuidadora “conforme as suas possibilidades”. Além disso,
jurava por ser “a verdade” que a mesma Dona Joana havia colocado o menino na escola
de André de Souza Benavides para “aprender a ler”481.
Apesar do pequeno número de registros com informações dos tipos de educação
ofertadas, consideramos importante reforçar que nos atestados eram comuns
expressões como: “é bem tratada e educada” ou “vive e é criado com todo o desvelo e
cuidado possível"482. Tais informações nos ajudaram a supor que as mulheres buscaram
investir em alguma medida na educação de seus acolhidos.
Além da documentação investigada, temos outros tipos de registros que podem
nos ajudar a vislumbrar investimentos na educação dos expostos. Apesar de ser um
período posterior ao da nossa pesquisa, identificamos, nas Listas Nominativas
organizadas em 1831, a viúva Dona Teresa Iria Fidelis. Moradora do Arraial de
Cachoeira do Campo, consta que ela era costureira. Ao cruzarmos com o inventário de
seu marido, o capitão e boticário Manoel José Teixeira Murta, que faleceu em 1810,
vimos que ela tinha sido tutora de seus cinco filhos, em decorrência de uma provisão
régia483. Já em 1831, na mencionada Lista, vimos que, entre cativos e demais pessoas
que moravam com a viúva, havia três expostos que tiveram a seguinte ocupação
declarada: “na escola de 1ª letras”484.
Voltando ao período abarcado no presente estudo, destacamos ainda Dona Ana
da Silva Teixeira de Meneses. Seria a mesma Dona Ana da Silva Teixeira de Meneses
mencionada anteriormente? Não temos condições de responder a essa questão.
Entretanto, apesar de não ter deixado vestígios na documentação aqui analisada,
sabemos que, nos idos de 1778, um exposto José foi abandonado em sua calçada e
por ela foi acolhido. José tornar-se-ia o Padre José Joaquim Viegas de Menezes que,
para alguns, foi o “pai da imprensa mineira” (VEIGA, 1897). De acordo com Veiga,
quando José tinha 11 anos de idade e já instruído nas primeiras letras, foi mandado
para o Colégio dos Padres do Sumidouro, no Termo de Mariana485. Nessa escola ele
teria aprendido língua latina e poética, tornando-se inclusive regente dos colegas.
481
Informação sobre a criação e a educação que o enjeitado Egídio estava recebendo. APM, CMOP, cx. 71,
doc. 15, 21/11/1798.
482
Documento atestando que a exposta Ana está sendo bem tratada e educada. APM, CMOP, cx. 67, doc.
81, 19/12/1795; Documento atestando que o exposto Joaquim está sendo bem cuidado. APM, CMOP, cx.
78, doc. 34, 03/12/1804.
483
Inventário de Manuel José Teixeira Murta. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício, Códice 42, Auto 476, Ano
1810.
484
Arquivo Público Mineiro (APM). Listas Nominativas, Ouro Preto – 1831. Disponível em
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/ . Acessado em 14-09-2016.
485
Sobre o referido colégio, ver VILLALTA (2007).
293
Depois dessa fase, mudou-se para cidade de Mariana, onde foi matriculado na aula de
filosofia racional e moral, que era ministrada pelo professor Manoel Joaquim Ribeiro.
Veiga destacou ainda que, no ano de 1797, o então subdiácono, título que José teria
recebido em São Paulo, partiu para Portugal onde se ordenou. Em 1830, Dona Joana
Caetana Josefa Viegas reconheceu José como seu filho biológico em testamento486.
Não temos maiores informações sobre Dona Ana da Silva Teixeira de Meneses,
mas acreditamos que os caminhos no mundo da escrita, percorridos pelo exposto José,
foram, em alguma medida, traçados por essa cuidadora. Em outros termos, podemos
dizer que, do mesmo como outros enjeitados, José teve sua história de vida marcada
por várias ações de sua cuidadora, que permitiram produzir contornos específicos para
sua existência.
Diante dessas considerações e dos dados apresentados aqui, entendemos que
as cuidadoras criaram estratégias que acabaram contribuindo para a sobrevivência e
educação dos menores, assim como as demais mulheres analisadas no presente
estudo. Entretanto, entendemos que, no caso das cuidadoras, existiam algumas
particularidades. Elas agiram supostamente em nome da “caridade cristã” e acabaram
assumindo para si o papel de criar e educar as crianças e jovens, como era esperado
do grupo feminino, no entendimento da época. Mas não podemos descartar que o
acolhimento poderia estar relacionado também a interesses mais particulares, alguns já
apontados, mas que merecem ser reforçados: a salvação da própria alma; mais mão de
obra para o sustento do grupo familiar; busca de companheiros na velhice; substitutos
de filhos falecidos ou ausentes; e ainda, uma forma de conseguir determinado pecúlio
junto à Câmara ou particulares.
A respeito das estratégias para a manutenção e sobrevivência dos menores,
vimos que as cuidadoras acabavam, muitas vezes, arcando com os gastos ligados ao
sustento, mesmo que para isso tivessem que confiar em reembolsos futuros.
Reembolsos que talvez nunca teriam, pois, como destacou Franco (2014), alguns
criadores tiveram pagamentos adiados e acabaram não recebendo os valores
estipulados, já que a Câmara alegava falta de verbas.
Próximas da morte, delegaram a responsabilidade do cuidado para outras
pessoas. Em outros casos legaram determinados bens. Tais ações podem nos ajudar a
pensar como a relação entre essas mulheres e seus acolhidos se baseava em questões
mais imbricadas que apenas contratos, fossem estes estabelecidos com instituições ou
com parentes dos menores.
486
Testamento de Joana Caetana Josefa Viegas. AHMINC/IBRAM, Códice 435, Auto 8982, 1831.
294
No que se refere aos direcionamentos educativos, percebemos que não houve
diferença se comparados àqueles empreendidos pelas demais mulheres analisadas no
presente estudo. Na verdade, baseando-nos nos casos analisados, percebemos que
houve uma preocupação em seguir o entendimento da época. Assim, as meninas
receberam uma educação “própria” do sexo feminino, como forma de preparação para
o casamento ou como garantia de um trabalho honesto, como já apontamos. No que se
refere à leitura e à escrita, os encaminhamentos resumiram-se às primeiras letras. Já
os meninos receberam especificamente uma educação voltada para o mundo da escrita.
Isso não quer dizer que os expostos do sexo masculino não tiveram acesso ao
aprendizado de ofícios, entretanto não tivemos condições de analisar tal situação487.
Assim, podemos dizer que essas mulheres escolheram ter a companhia desses
menores. E, ao fazerem isso, possibilitaram formas de sobrevivência para elas, para
sua família e também para “seus” enjeitados. Nesse processo acabaram participando
da educação desses menores. Todavia, importante destacarmos, ao fazerem isso, não
abandonaram padrões estabelecidos. Elas buscaram estabelecer parcerias, educaram
conforme o sexo dos expostos e acionaram suas redes de sociabilidades para
concretizar seus interesses.
487
Na já mencionada Lista Nominativa identificamos, por exemplo, o exposto Manoel, que na época do
censo tinha 17 anos de idade. A ocupação declarada para ele foi a de lavrador, mesma atividade exercida
pelo chefe do domicílio Manoel da Silva. Arquivo Público Mineiro (APM). Listas Nominativas, Ouro Preto
– 1831. Disponível em http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/ . Acessado em 14-09-2016.
295
Considerações finais
296
partir de um padrão ideal europeu, no Termo de Vila Rica esse atributo assumiu uma
perspectiva particularizada, aspecto que já tinha sido ressaltado para outros espaços
pela historiografia. Dessa forma, eram as pessoas com quem as mulheres estabeleciam
determinadas relações que acabavam por lhes conferir o status ou não de mulheres
honradas. Já em relação à capacidade, nosso estudo demonstrou que, no que se referia
às mulheres, para o entendimento do período, ela estava sempre relacionada com a
ideia de destreza para as questões ligadas ao provimento da família no dia a dia, além
da competência para o cuidado com a saúde, alimentação e educação do menor.
Outro ponto importante evidenciado pelo nosso estudo foram as oportunidades
de participação. Percebemos que, quando as mulheres assumiam a tutoria dos órfãos
e a administração dos bens que haviam sido adjudicados a eles ou quando elas tinham
crianças e jovens sob suas responsabilidades e eram também as “chefes do domicílio”,
elas tinham um espaço de manobra maior. Entretanto, isso não significou uma ausência
de subordinação, ao contrário. Na verdade, as atividades femininas ocorriam a partir da
relação e sob a supervisão dos homens com quem elas conviviam, sejam: os juízes de
órfãos, algum parente e mesmo os vizinhos que abonavam ou não suas práticas.
Mas, se era frente a essas circunstâncias que a autonomia feminina se mostrou
mais evidente, não podemos deixar de destacar que outras situações do cotidiano
também acabaram sendo bastante proveitosas para as mulheres. Dentre elas,
ressaltamos as parcerias que os diferentes grupos femininos buscaram construir com
os tutores, o que, do mesmo modo, permitiu que se traçassem algumas ações para
garantir a sobrevivência própria e de sua família, além da participação no processo
educativo dos menores.
Tais parcerias, na verdade, acabaram sendo vantajosas para ambos os lados,
na maioria das vezes. Isso porque o compartilhamento das obrigações também foi
bastante válido para os homens, especialmente para aqueles que eram coagidos a
assumir a tutoria ou não tinham condições de levar os órfãos para sua companhia. É
certo que, em alguns casos, as mulheres se queixavam da ausência dos tutores ou
mesmo requeriam que alguns deles fossem retirados ou impedidos de assumir a tutoria,
aspecto que particularmente nos revelou o “peso” que o público feminino tinha nas
questões ligadas às suas famílias. Entretanto, quando esses acordos deram certo, eles
acabaram se revelando como mais uma oportunidade valiosa para a atuação feminina.
A análise dos documentos ajudou-nos, por outro lado, a perceber que o
pertencimento a grupos sociais distintos acabava permitindo que ações específicas
fossem traçadas ou aproveitadas. No que se refere às intervenções femininas para o
provimento e manutenção da família, vimos que algumas delas dependiam de certa
condição financeira e, nesses casos, elas foram delineadas especialmente pelas
297
mulheres que pertenciam ao grupo de maiores patrimônios e, em alguma medida, por
aquelas que faziam parte do grupo de patrimônios intermediários. Todavia, isso não
significou que as mulheres do grupo de menores patrimônios não tiveram outras
oportunidades. Na verdade, dentro das condições existentes e permitidas pela
legislação, elas também buscaram meios para garantir o sustento próprio e da família.
Já em relação às ações femininas para educar, nosso estudo partiu do que
estava estabelecido na legislação, que determinava que a “qualidade das pessoas e
fazendas” dos menores deveriam ser respeitadas. Após analisarmos a nossa
documentação, percebemos que a situação socioeconômica e o sexo dos menores
foram duas variáveis significativas na definição da educação que seria destinada a eles.
Sobre as condições socioeconômicas, percebemos que houve uma
preocupação em respeitar tal aspecto. Na verdade, é certo afirmarmos que a condição
socioeconômica permeou as escolhas e estratégias das mulheres e tutores (quando
seus parceiros) de modo significativo. Sendo assim, os órfãos pertencentes ao grupo de
maiores patrimônios, especialmente, e, em alguma medida, aqueles que faziam parte
do grupo patrimônios intermediários tiveram um maior acesso ao mundo da escrita.
Entretanto, assim como apontado por outros estudos, a complexidade e a
dinâmica percebidas naquela sociedade acabaram por provocar uma oportunidade de
educação “mista” em algumas famílias. Assim, nos diferentes grupos sociais analisados
no presente estudo, encontramos mulheres que estabeleceram suas estratégias de
modo a garantir o acesso ao mundo da escrita para os seus e, ao mesmo tempo, a
aprendizagem de algum ofício. Tal prática revelou, em nosso entendimento, um
cumprimento da legislação, mas, ao mesmo tempo, refletiu uma resposta da mulher
que, “consciente” do jogo social, deu condições para os menores aprenderem alguma
forma de ocupação para o sustento futuro e, além disso, alçarem alguma distinção
social.
No que se refere às diferenças em relação ao sexo dos menores, percebemos
que esta foi uma variável determinante, ou seja, os meninos e as meninas eram
direcionados para a aprendizagem de algum ofício que era considerado adequado para
o seu sexo. Sendo assim, se em algum momento temos para os dois sexos uma
educação que se aproximava, como no caso do acesso às letras, por exemplo, ela
assumia caminhos diferentes quando era a ocasião de aprenderem alguma ocupação.
Ainda em relação às ações para educar, nosso estudo revelou uma particular
preocupação por parte das mulheres de garantir o aprendizado dos “bons costumes” e
os preceitos religiosos e civis. Vimos um esforço em dar estado de casados ou mesmo
incutir o valor que representava essa condição; identificamos intenções testamentárias
que buscavam reforçar alguma religiosidade; referências à condução dos menores para
298
as celebrações da missa e demais eventos religiosos; ou ainda a declaração ou o pedido
para que os menores fossem educados na doutrina. Em nosso entendimento, a
presença dessas práticas e intenções foi mais um indício de que as mulheres tomaram
para si a função de participar do processo que buscava ordenar as pessoas.
Assim, a partir do nosso estudo, podemos dizer que as mulheres souberam
aproveitar as oportunidades estabelecidas pela legislação, mas também não
dispensaram as circunstâncias produzidas pelas necessidades do cotidiano. Em outros
termos, resguardas as oportunidades e os interesses específicos de cada mulher e seu
grupo social, nossa pesquisa acabou por revelar que, tanto as mulheres marcadas pelo
estigma da escravidão, quanto as “donas” ou ainda as cuidadoras, se valeram da
situação posta e construíram estratégias para garantir a sobrevivência dos seus,
inclusive delas mesmas, e promover alguma forma de educação dos menores.
Todas essas ações não necessariamente ocorreram de modo “consciente”, pois
como destacamos, aproveitando as reflexões de Bourdieu, as estratégias eram
conformadas a partir de decisões racionalizadas, mas também traziam em si o resultado
de um longo processo de interiorização das regras do jogo social, jogo esse que cobrava
a participação feminina nos mais diferentes aspectos do viver. Sendo assim, sem
descartamos que algumas estratégias femininas se deram preocupadas primeiramente
em atender a interesses particulares, como a salvação da alma ou mais uma força de
trabalho para ajudar no sustento diário, por exemplo, a partir do nosso estudo foi
possível percebermos que elas permitiram também que os menores fossem educados
e criados, possibilitando assim a sobrevivência deles.
Finalmente, importante destacarmos, a grande maioria das mulheres aqui
analisadas eram mães dos menores. Entretanto, tal aspecto não trouxe grandes
diferenças nas estratégias para a sobrevivência da família e a educação dos menores.
Na verdade, a partir dos documentos, percebemos que as ações das mulheres que eram
as mães traziam em si as mesmas preocupações daquelas que eram cuidadoras, avós,
tias, madrinhas ou irmãs dos menores. As diferenças percebidas deram-se em
decorrência das condições disponíveis: quando mães, elas se empenharam, por
exemplo, em comprar os bens dos menores ou solicitar a tutoria; quando cuidadoras,
elas poderiam ser contratadas pelo tutor, e a relação estabelecida envolvia outros
interesses. De qualquer modo, o resultado das ações sempre levou para o mesmo
caminho: o sustento dos menores e a possibilidade de aprenderem algum tipo de
educação.
Tal fato também se mostrou particularmente verdadeiro no que se refere à
educação ofertada. A partir do nosso estudo foi possível concluirmos que não houve
distinção no tipo de educação oferecida porque o menor era filho, neto, sobrinho,
299
afilhado, enjeitado, irmão. Nem mesmo quanto à ascendência, pois, como
demonstramos, mesmo os menores que traziam o estigma da escravidão tiveram
oportunidade de acesso ao mundo da escrita e também ao aprendizado de algum ofício.
Diante dos nossos resultados, podemos dizer que as mulheres eleitas para o
presente estudo foram extremamente atuantes. E essa atuação deu-se nos mais
diferentes espaços e situações que envolviam suas famílias e os menores sob suas
responsabilidades. Tal fato apenas reforça um ponto que já foi abordado pela
historiografia — que a população feminina, conformada em seus grupos
socioeconômicos específicos e munida dos instrumentos que lhe eram disponíveis, foi
ativa e contribuiu para a conformação da sociedade.
É possível afirmarmos que conseguimos alcançar os objetivos propostos para a
presente pesquisa. Contudo, ela acabou por evidenciar que há ainda muito o que ser
estudado. Citemos aqui, por exemplo, a possibilidade de conhecermos os resultados
desses investimentos educativos feitos pelas mulheres. Nesses casos, os documentos
relativos aos menores seriam uma oportunidade, já que poderiam revelar as atividades
em que se empregaram e inclusive, no caso das meninas, em que medida elas
reproduziram as práticas de suas mães, tutoras e cuidadoras. Ou ainda verticalizarmos
nosso estudo para tentarmos entender o impacto que o incentivo ao ensino das letras
ocorrido na segunda década do século XIX teve nos investimentos na educação dos
menores por parte das mulheres. Uma outra oportunidade de pesquisa poderia ser
delineada a partir das ações das mulheres na presença de seus maridos e
companheiros, na tentativa de compreendermos os distanciamentos e sobreposições
de seus papéis. Finalmente acreditamos que seria bastante profícuo direcionarmos
nosso olhar para o juízo dos órfãos na tentativa de entendermos a dinâmica, a formação
e possíveis leituras que acabaram influenciando no modo como juízes, escrivães e
curadores interpretavam a lei referente aos menores, pois, como vimos, muitas das
determinações presentes nas Ordenações tiveram entendimentos diferentes conforme
a autoridade envolvida.
Sendo assim, entendemos que essa pesquisa possibilitou, na verdade, que
“abríssemos a porta” para conhecermos algumas das ações femininas e demais facetas
ligadas ao processo educativo dos menores. Mas há ainda muito o que ser feito,
especialmente quando levamos em conta um aspecto levantado por outros estudos para
o período colonial: que as experiências de educar ambos os sexos nos mais diferentes
ambientes ainda é um caminho a ser percorrido pelos estudiosos.
300
FONTES:
Fontes manuscritas:
301
Antonio de Souza Coelho 15 143 1787
Antônio de Souza Lara 8 83 1781
Antônio Ferreira Neves 11 101 1791
Antônio João Belas 21 218 1783
Antônio Joaquim da Rocha 14 117 1806
Antônio Manuel De Moura 14 122 1812
Antônio Pedro Lopes de Oliveira 22 228 1828
Antônio Pereira Malta 22 236 1811
Antônio Rodrigues Fontes 18 169 1817
Barbara Luísa Da Cunha 139 1741 1810
Bartolomeu Paulo Alvares da Costa 24 260 1821
Bernardo dos Reis Coutinho 24 259 1818
Bernardo Ferreira Trigais 24 261 1777
Bibiana Rosa Da Conceição 25 268 1800
Caetano Pereira da Rocha 29 323 1801
Cipriana Leocádia Borges 30 343 1813
Cipriana Maria Monteiro de Souza 29 321 1788
Clara de Barros 29 318 1796
Custódio José de Araújo 29 315 1780
Domingas Lopes 34 397 1810
Domingos Fernandes Barroso 37 456 1789
Domingos José Ferreira 35 422 1802
Domingos Rodrigues Pinto 36 447 1818
Domingos Vaz de Carvalho 41 485 1788
Esperança Maria de Oliveira 35 415 1805
Estevão Alves de Azevedo 39 474 1780
Estevão Antônio Ferreira 40 475 1816
Estevão Veloso de Amorim 34 409 1789
Feliciana Ferreira de Andrade 56 669 1799
Feliciana Maria da Cruz 139 1749 1800
Félix Dias Monteiro 57 682 1802
Florêncio Guedes pinto de Souza Carvalho 48 592 1812
Florêncio José Ferreira Coutinho 54 644 1820
Francisca Clara dos Santos 44 530 1828
Francisca de Ávila e Silva 145 1859 1816
Francisca Fernandes Pacheco 53 631 1813
Francisco Coelho da Silva Brandao 51 624 1806
Francisco de Almeida Pinto 58 696 1774
Francisco de Paula Dias Bicalho 53 637 1817
Francisco Dias Novais 52 627 1803
Francisco Dias do Nascimento 54 649 1819
Francisco Gonçalves de Lima 51 621 1770
Francisco João Tavares 54 653 1793
Francisco Leite Esquerdo 51 623 1809
Francisco Manuel da Silva 53 630 1810
Francisco Rodrigues Graça 48 590 1783
Francisco Soares 52 628 1829
Francisco Teixeira de Morais 49 595 1786
Jerônimo Ferreira de Souza 72 858 1793
Jerônimo José Pereira 85 1032 1804
Joana Gonçalves de Carvalho 81 997 1812
302
Joana Machado de Azevedo 74 885 1774
João Antônio Chaves 71 847 1812
João Antunes Guimarães 84 1028 1811
João da Silva Barbosa 67 804 1788
João Ferreira da Rocha 108 1360 1788
João Francisco dos Santos 70 831 1788
João Gonçalves Dias 66 801 1772
João Nunes Mauricio 89 1080 1812
Joaquina Vieira de Andrade 85 1048 1816
José Antônio da Silva 73 877 1795
José de Vasconcelos Parada e Souza 70 840 1795
José Gregório Ferreira Pinto 64 777 1798
José Luiz Saião 67 803 1817
José Luiz Saião 69 822 1784
José Monteiro 64 780 1782
José Rodrigues da Silva 81 989 1817
José Rodrigues da Silva 69 827 1782
José Soares Rosa 81 991 1809
Luiz Lobo Leite Pereira 143 1799 1789
Luiz Lobo Leite Pereira 94 1144 1788
Manoel Teixeira Campos 118 1499 1780
Manuel da Rocha Monteiro 121 1523 1815
Manuel da Silva Machado 114 1467 1771
Manuel de Magalhães Gomes 97 1190 1813
Manuel Fernandes Pinto 122 1538 1822
Manuel Francisco de Andrade 115 1470 1793
Manuel Gonçalves Dias 119 1514 1815
Manuel Ribeiro Guedes 118 1500 1788
Manuel Leite Couto 111 1416 1786
Manuel Lopes da Lavra 122 1531 1819
Manuel Machado Ferreira 105 1325 1773
Manuel Machado Pereira 109 1385 1785
Manuel Teixeira de Carvalho 104 1312 1774
Manuel Teixeira de Souza 115 1468 1771
Manuel Vieira 123 1542 1786
Marcelina Pereira Vilanova 105 1322 1797
Maria Alves Braga 101 1268 1784
Maria da Conceição 97 1185 1798
Maria de Macedo Campos 101 1271 1820
Maria Josefa Dornelas 100 1226 1820
Maria Martins da Conceição 122 1539 1784
Maria Nobre dos Santos 139 1743 1807
Maria Pereira de Amorim 97 1184 1792
Maria Rosa do Espirito Santo 119 1509 1816
Maria Soares Braga 123 1544 1808
Mariana de Freitas Barbosa 122 1535 1772
Mariana Rangel de Souza 104 1305 1800
Marta Maria da Gama 100 1231 1791
Micaela da Costa Fagundes 116 1473 1804
Miguel Moreira Maia 122 1537 1812
Narciso José Bandeira 111 1421 1822
303
Nicolau Alves da Rocha 112 1424 1779
Pedro da Costa Dias 125 1572 1777
Pedro Fernandes Paredes 126 1578 1792
Pedro Ferreira Matoso 125 1568 1793
Pedro Pereira Lima 127 1582 1789
Pedro Pereira Lima 126 1576 1806
Pedro Simões Braga 113 1449 1807
Quitéria Joaquina Pereira de Andrade 127 1585 1798
Rita da Silva 129 1624 1790
Rita de Miranda Portugal 129 1620 1776
Rita Maria do Sacramento 131 1640 1801
Rita Maria dos Santos 129 1619 1790
Rosa Gomes 129 1612 1791
Rosa Gonçalves Santiago 129 1613 1789
Rosa Gonçalves Veiga 128 1607 1806
Rosa Maria 129 1618 1775
Rosa Pereira da Silva 128 1609 1816
Rosa Pereira Vila Nova 128 1601 1795
Silvestre da Silva Araújo 133 1676 1789
Silvestre da Silva Araújo 132 1664 1811
Simplícia Correa Maia 134 1682 1792
Suzana Borges 135 1689 1822
Suzana de Arantes 132 1661 1811
Teodora Teixeira da Costa 136 1699 1803
Teresa Gonçalves 136 1710 1808
Teresa Teixeira de Morais 136 1700 1813
Venância Lopes de Oliveira 138 1726 1812
Vicente Teixeira de Morais 138 1725 1786
304
Antônio Marinho da Cruz 56 625 1815
Antônio Marques dos Santos 4 40 1821
Antônio Moreira Tavares 67 750 1818
Antônio Moreira Tavares 68 769 1818
Antônio Pereira Matos 66 735 1802
Antônio Rodrigues Pereira Taborda 1 8 1809
Antônio Vieira Gomes 2 27 1799
Bernardo Teixeira Alvares 60 684 1822
Caetana Maria dos Santos 8 85 1787
Caetana Maria dos Santos 47 518 1787
Caetano Rodrigues da Silva 8 78 1783
Casemiro Teixeira Machado 7 73 1767
Francisca de Ávila e Silva 11 108 1806
Francisca Maria dos Santos 14 144 1804
Francisco de Faria Silva 14 141 1770
Francisco Rodrigues Lages 11 106 1787
Francisco Soares 40 450 1778
Francisco Xavier da Costa 14 143 1774
Geraldo Fernandes Santiago 21 220 1822
Inácio Francisco Xavier 17 180 1808
Joana Barbosa Arantes 31 343 1786
Joana da Costa Caldas 24 253 1796
Joana Lopes de Oliveira 28 308 1803
João de Oliveira Silva 25 270 1815
João Ferreira dos Santos 33 377 1791
João Martins da Silva 25 275 1785
João Teixeira Mendes Ribeiro 23 243 1787
Joaquim José Madeira 21 231 1810
Joaquim Rodrigues 19 207 1791
José Antônio de Assunção 53 600 1805
José Antônio de Meira 23 242 1808
José Barbosa de Oliveira 19 198 1810
José Carlos de Siqueira Martins 19 202 1810
José Costa de Almeida 26 284 1776
José de Magalhães 18 193 1793
José Félix de Magalhães Faria 24 255 1788
José Fernandes da Silva 29 320 1771
José Fernandes Ribeiro 25 263 1815
José Francisco de Sá Mourão 34 381 1783
José Gomes de Carvalho 34 386 1793
José Joaquim de Araújo 27 289 1805
José Luiz Saião 28 312 1790
José Marinho de Azevedo 34 379 1815
José Martins dos Santos 31 346 1786
José Rodrigues Pombo 31 345 1780
José Vicente de Morais Sarmento 27 303 1799
Josefa da Rocha de Andrade 23 246 1808
Josefa de Ávila e Silva 31 347 1811
Josefa Maria de Jesus 35 389 1782
Luiz Correa Barreto 33 364 1773
Luiz Gomes da Fonseca 33 376 1806
Luiz Pinheiro Lobo 33 371 1791
Manoel Barbosa Martins 38 423 1787
305
Manoel Carreiras da Cruz 50 557 1772
Manoel Coelho Rodrigues 37 419 1777
Manoel da Cunha Melo 39 438 1816
Manoel da Guerra de S. C. Araújo Godinho 47 520 1814
Manoel da Silveira Goulart 45 496 1778
Manoel de Barros Barbosa 49 544 1789
Manoel de Faria Salgado 37 409 1778
Manoel Fernandes 43 487 1799
Manoel Ferreira da Silva 36 397 1799
Manoel Ferreira dos Santos 47 526 1805
Manoel Gomes de Jesus 36 405 1805
Manoel José Teixeira Murta 42 476 1810
Manoel Lopes Duarte 46 513 1793
Manoel Luiz do Vale 36 404 1810
Manoel Marques Ferreira 31 349 1817
Manoel Pereira Campos 47 527 1804
Manoel Pereira Da Costa 40 458 1805
Manoel Pinto Brandão 40 461 1810
Manoel Ribeiro Guimarães 43 484 1802
Manoel Ribeiro Moreira 43 477 1794
Manoel Rodrigues Casado 40 460 1781
Manoel Rodrigues Fraga 31 350 1818
Manoel Teixeira De Souza 39 442 1822
Manuel Carvalho de Andrade 37 417 1779
Maria Brígida da Conceição 31 348 1804
Maria da Conceição 38 426 1806
Maria de Jesus Teixeira da Silva e Mursa 49 540 1814
Maria Fernandes Pinto 38 427 1784
Maria Ferreira da Trindade 49 546 1773
Maria Lopes de Oliveira 42 474 1817
Maria Marques 47 525 1772
Matias Nunes dos Serafins 36 401 1805
Miguel Alves da Costa 40 450 1778
Nicolau Gonçalves 52 588 1778
Rita da Silva 53 594 1790
Romana Teresa Gomes de Assunção 53 592 1816
Rosa Maria Pinto 51 569 1811
Sebastiana Gonçalves Ramos 64 713 1778
Silvério Anacleto Vilar e Souza 50 553 1776
Silvestre Tavares do Rego 64 711 1791
Teodora Joaquina Rosa da Neiva 65 723 1818
Teodora Maria do Nascimento 65 725 1805
Teresa Claudia de Oliveira 64 719 1790
Teresa Gomes de Jesus Oliveira 66 729 1797
Teresa Rodrigues 64 717 1787
Tomaz Rodrigues Braga 63 702 1820
Vicência de Souza 62 698 1774
Violante Maria de Avelar 62 697 1777
306
Ana Micaela Arcângela 304 6550 1821
Ana Pires Ferreira 301 6498 1803
Andreza Maria da Assunção 310 6631 1802
Antônia da Rocha Pereira 301 6506 1812
Antonio Moreira de Araújo e Antônia Valasca 306 6573 1812
Bernarda de Sena 312 6682 1816
Catarina Ferreira Pires 317 6768 1798
Clara dos Santos 315 6719 1804
Felipa Pereira da Cruz 329 6938 1809
Felizarda Maria de Jesus 337 7077 1804
Joana Carvalho de Araújo 332 6995 1783
Joana Caetana Josefa Viegas 435 8982 1831
Joana de Araújo 324 6851 1816
Joana Gonçalves de Carvalho 326 6897 1813
Joana Machado de Azevedo 443 9292 1775
Joana Pereira 323 6838 1783
Josefa Maria de Queirós 326 6894 1803
Josefa Rodrigues dos Reis 325 6876 1776
Luiza Alves Velho 328 6925 1795
Luiza de Souza Coelho 330 6967 1783
Luiza Ferreira de Matos 328 6915 1803
Maria Francisca dos Santos 344 7180 1817
Maria Macedo Campos 344 7171 1808
Maria Rodrigues Queiroz 344 7179 1805
Maria Souza 347 7224 1817
Maria Tereza de Jesus 348 7257 1798
Micaela Teodora da Silva 460 9785 1805
Teresa Vieira 350 7318 1802
Tereza Barbosa 97 1259 1784
Tereza Ferreira da Costa 416 8239 1777
Tereza Ferreira do Souto 350 7319 1771
Tereza Gonçalves Chaves 416 8250 1808
Tereza Rodrigues de Jesus 416 8251 1774
307
Francisca Coelho de Ávila e Silva Cx. 140, doc. 42 1795
Francisca de Ávila Coelho e Figueiredo Cx. 139, doc. 42 1794
Joana Gertrudes Campos Cx. 122, doc. 26 1784
Josefa de Ávila e Figueiredo Cx. 140, doc. 44 1795
Margarida Eufrásia da Cunha e Matos Cx. 136, doc. 17 1791
Maria Josefa Rodrigues de Oliveira Cx. 172, doc. 8 1804
Maria Rosa do Espirito Santo Cx. 114, doc. 52 1779
Maria Rosa do Espirito Santo Cx. 140, doc. 7 1795
Quitéria Maria da Silva Cx. 121, doc. 57 1784
Rodrigo de Vasconcelos Parada e Souza Cx. 184, doc. 21 1807
Tereza de Jesus Cx. 122, doc. 33 1784
Tereza Fernandes de Jesus Cx. 139, doc. 2 1794
Vicência Afonsa Peixoto Cx. 150, doc. 35 1799
Vicência Afonsa Peixoto Cx. 146, doc. 7 1798
308
Atestado de batismo CX 75 DOC 30 1802
Atestado de batismo CX 75 DOC 47 1802
Atestado de batismo CX 76 DOC 11 1802
Atestado de batismo CX 77 DOC 99 1804
Atestado de batismo CX 78 DOC 23 1804
Atestado de batismo CX 79 DOC 05 1806
Atestado de batismo CX 82 DOC 32 1812
Atestado de batismo CX 82 DOC 34 1812
Atestado de batismo CX 82 DOC 37 1813
Atestado de batismo CX 83 DOC 25 1818
Atestado de batismo CX 83 DOC 26 1818
Atestado de batismo CX 83 DOC 37 1818
Atestado de batismo CX 88 DOC 07 1786
Atestado de batismo CX 88 DOC 93 1793
Atestado de batismo CX 67 DOC 26 1795
Atestado de óbito CX 73 DOC 18 1800
Documento atestando a exposição de um enjeitado CX 78 DOC 30 1804
Documento atestando o batismo CX 69 DOC 81 1796
Documento atestando o batismo CX 72 DOC 34 1800
Documento atestando o batismo CX 74 DOC 139 1801
Documento atestando o batismo CX 74 DOC63 1801
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 55 DOC 55 1780
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 57 DOC 57 1782
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 66 DOC 24 1793
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 66 DOC 26 1793
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 66 DOC 40 1793
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 66 DOC 42 1793
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 67 DOC 81 1795
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 67 DOC 82 1795
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 71 DOC 15 1798
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 71 DOC 20 1798
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 74 DOC 80 1801
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 76 DOC 33 1802
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 78 DOC 34 1804
Documento atestando que o enjeitado está bem tratado CX 79 DOC 66 1806
Documento informando a impossibilidade de ir até a Câmara CX 67 DOC 86 1795
Documento informando que a remetente está criando um enjeitada CX 66 DOC 32 1793
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 45 DOC 55 1772
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 66 DOC 03 1796
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 67 DOC 70 1795
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 67 DOC 71 1795
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 67 DOC 72 1795
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 67 DOC 74 1795
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 67 DOC 87 1795
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 67 DOC 88 1795
309
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 67 DOC 92 1795
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 69 DOC 25 1796
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 69 DOC 37 1796
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 69 DOC 60 1796
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 74 DOC 119 1801
Documento nomeando procurador para receber da câmara CX 78 DOC 32 1804
Entrega de uma criança exposta em sua porta CX 46 DOC 39 1773
Envio da certidão de batismo CX 72 DOC 07 1800
Envio da certidão de batismo CX 80 DOC 4 1806
Informação da intenção de criar o enjeitado CX 53 DOC 11 1779
Informação sobre a criação da exposta CX 71 DOC 21 1798
Lista dos nomes e dos débitos CX 55 DOC 07 1780
Lista dos nomes e dos débitos CX76 DOC83 1802
Solicitação ao escrivão para que atenda seus procuradores CX 67 DOC 94 1795
Solicitação da certidão de batismo CX 60 DOC 37 1786
Solicitação da certidão de batismo CX 61 DOC 38 1787
Solicitação da certidão de batismo CX 63 DOC 56 1791
Solicitação da certidão de batismo CX 64 DOC 47 1791
Solicitação da certidão de batismo CX 67 DOC 44 1795
Solicitação da certidão de batismo CX 67 DOC 91 1795
Solicitação da certidão de batismo CX 72 DOC 40 1800
Solicitação da certidão de batismo CX 74 DOC 115 1801
Solicitação da certidão de batismo CX 75 DOC 85 1802
Solicitação da certidão de batismo CX 78 DOC 04 1804
Solicitação da certidão de batismo CX 79 DOC 22 1806
Solicitação da certidão de batismo CX 79 DOC 25 1806
Solicitação da certidão de batismo CX 82 DOC 12 1812
Solicitação da certidão de batismo CX 83 DOC 12 1818
Solicitação da certidão de batismo CX 77 DOC61 1804
Solicitação da certidão de batismo CX 79 DOC 27 1806
Solicitação da certidão de óbito CX 61 DOC 46 1787
Solicitação da certidão de óbito CX 67 DOC 105 1795
Solicitação da certidão de óbito CX 67 DOC 14 1795
Solicitação da certidão de óbito CX 68 DOC 02 1796
Solicitação da certidão de óbito CX 69 DOC 80 1796
Solicitação da certidão de óbito CX 71 DOC 30 1798
Solicitação da certidão de óbito CX 71 DOC 31 1798
Solicitação da certidão de óbito CX 71 DOC 34 1798
Solicitação da continuidade de pagamentos CX 50 DOC 26 1776
Solicitação da desobrigação de criar uma exposta CX 58 DOC 02 1783
Solicitação da reforma da matrícula CX 58 DOC 09 1783
Solicitação da transferência da renda CX 67 DOC 06 1795
Solicitação de ajuda para criar uma enjeitada CX 68 DOC 49 1796
Solicitação de alteração da qualidade da exposta CX 67 DOC 32 1795
Solicitação de Assento e matrícula CX 67 DOC02 1795
310
Solicitação de auxílio para criar um exposto CX 49 DOC 17 1775
Solicitação de auxílio para criar um exposto CX 79 DOC 10 1806
Solicitação de matrícula de uma exposta CX 75 DOC 83 1802
Solicitação de um mandado de pagamento CX 43 DOC 11 1770
Solicitação do pagamento pela criação de um exposto CX 44 DOC 21 1770
Solicitação dos pagamentos atrasados e roupas CX 58 DOC 26 1783
Fontes impressas:
Fontes eletrônicas:
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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e realidade.
v.15, n.2. Porto Alegre: jul./dez. 1990
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Donas e Plebéias na sociedade colonial, Lisboa, Editorial
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do Rio das Velhas, Século XVIII. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de
Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011
SONNET, Martine. Uma filha para educar. In: DAVIS, Natalie Zemon e FARGE, Arlette
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VARTULI, Sílvia Maria Amâncio Rachi. Por mãos alheias: usos sociais da escrita na
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Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.
VEIGA, Cynthia Greive. Infância e Modernidade: ações, saberes e sujeitos. In: FARIA
FILHO, Luciano Mendes de (org). A Infância e sua Educação: materiais, práticas e
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VIANA, Kelly Cristina Benjamim. Em nome da proteção real: mulheres forras, honra e
justiça na Capitania de Minas Gerais. Tese (Doutorado em História). Instituto de
Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília, 2014
323
ANEXO 1
QUADRO 9 – Tutoras que deixaram indícios sobre a administração dos bens
dos órfãos e estratégias para sobrevivência e sustento das famílias.
324
Grupo 2: Patrimônios Intermediários – 27 tutoras
ANO DO
TERMO OCUPAÇÃO RELAÇÃO
FORMA DE DE PATENTE COM O
NOMEAÇÃO TUTORIA INVENTARIADO QUALIDADE TUTORA ÓRFÃO MORADIA
Manoel Carreiras Francisca Maria da
Testamento 1772 da Cruz Port. Conceição Mãe Sic
Mulata Forra Maria
Francisco da Silveira da Cachoeira
Testamento 1783 Rodrigues Graça Port. Costa Mãe do Campo
Antônio José de Genoveva Rosa da Morro do
Testamento 1784 Andrade Port. Silva Mãe Taquaral
Mãe São Jose
Desembargo José Martins dos Teresa Fernandes do
do Paço 1796 Santos de Jesus Paraopeba
Antônio de Souza Ana Rosa de Mãe
Testamento 1787 Coelho Port. Lemos Vila Rica
João da Silva
Testamento 1788 Barbosa Port. Ana Maria da Silva Irmã Vila Rica
Francisco João Teresa Vaz de Mãe
Testamento 1793 Tavares Bras. Carvalho Vila Rica
Desembargo Antônio Alves Laureana Rosa Mãe
do Paço 1801 Pereira Carneiro Boticário Pereira Vila Rica
Antônio Pereira Maria Gonçalves
Testamento 1802 Matos Port. Lima de Jesus Madrasta Vila Rica
Jose Antônio de Teodora Francisca Mãe
Testamento 1808 Meira do Nascimento Vila Rica
Ana Gonçalves da Mãe Congonhas
Testamento 1809 Jose Soares Rosa Costa do Campo
Militar Mãe
Francisco Leite trombeta e Maximiana
Testamento 1809 Esquerdo Bras. Gonçalves Torres Vila Rica
João Antônio Rosa Teixeira de Mãe Congonhas
Testamento 1812 Chaves Cap. e Port. Jesus do Campo
Antônio Freire dos Bras. e Mãe
Testamento 1814 Santos exposto Ana Rosa de Faria Vila Rica
Francisco de Maria Angélica de Mãe
Testamento 1818 Paula Dias Bicalho Jesus Vila Rica
Geraldo Mãe
Fernandes Cirurgião Genoveva Sutéria
Testamento 1822 Santiago Mor + Bras. de Jesus Vila Rica
Manoel Teixeira Sargento Inácia Francelina Mãe
Testamento 1822 de Souza Mor + Bras. Cândida da Silva Vila Rica
João Francisco Rita Vaz de Mãe
Testamento 1788 dos Santos Ferreiro Carvalho Vila Rica
Vicente Teixeira Ana Maria de Mãe
Testamento 1789 de Morais Tenente Jesus Vila Rica
Estevão Veloso do Mãe
Testamento 1789 Amorim Alferes Ana Ribeira Vila Rica
Joana Umbelina
João de Santana Clara do Mãe
Testamento 1800 Silva Pinto Cap. Sacramento Vila Rica
Joaquim José de Ana Antonio Maria Mãe São
Testamento 1807 Araújo Port. de Jesus Bartolomeu
Ponciana
Luiz Gomes da Constantina da Mãe
Testamento 1806 Fonseca Cap. Silva Vila Rica
325
Manoel Gonçalves Mãe São
Testamento 1816 Dias Maria da Piedade Bartolomeu
João de Oliveira Angélica Albana de Mãe
Testamento 1816 Silva Ajudante Ávila Silva Furtado Itaverava
Arcângela de
Desembargo Sargento Vasconcelos Mãe
do Paço 1818 José Luiz Saião Mor Parada e Souza Vila Rica
Francisco Dias do Apolinária Mãe
Testamento 1819 Nascimento Francisca da Silva Vila Rica
326
ANEXO 2
QUADRO 10 – Tutoras que deixaram indícios dos investimentos na educação dos
órfãos
327
Teodora Mãe
José Antônio de Francisca do
Testamento 1808 Meira Nascimento Vila Rica
João Antônio Rosa Teixeira de Mãe Congonhas
Testamento 1812 Chaves Cap. e Port. Jesus do Campo
Antônio Freire dos Bras. e Ana Rosa de Mãe
Testamento 1814 Santos exposto Faria Vila Rica
Francisco de Mãe
Paula Dias Maria Angélica
Testamento 1818 Bicalho de Jesus Vila Rica
Geraldo Mãe
Fernandes Cirurgião Genoveva
Testamento 1822 Santiago Mor + Bras. Sutéria de Jesus Vila Rica
Manoel Teixeira Sargento Inácia Francelina Mãe
Testamento 1822 de Souza Mor e Bras. Cândida da Silva Vila Rica
João Francisco Rita Vaz de Mãe
Testamento 1788 dos Santos Ferreiro Carvalho Vila Rica
Joana Umbelina
João de Santana Clara do Mãe
Testamento 1800 Silva Pinto Cap. Sacramento Vila Rica
Ponciana
Luiz Gomes da Constantina da Mãe
Testamento 1806 Fonseca Cap. Silva Vila Rica
Angélica Albana
João de Oliveira de Ávila Silva Mãe
Testamento 1816 Silva Ajudante Furtado Itaverava
Maximiana
Francisco Leite Gonçalves Mãe
Testamento 1809 Esquerdo Trombeta Torres Vila Rica
Teresa São Jose
Desembargo José Martins dos Fernandes de Mãe do
do Paço 1796 Santos Jesus Paraopeba
328
Anexo 3 –
“Educação Direcionada aos órfãos de maiores patrimônios”
Monte- Nome do
Nome do Ano da
mor e tutor e ano Nome e idade dos órfãos Educação direcionada aos órfãos e
pai e ano Atividades prestação de
número de no momento da abertura outras informações consideradas
do exercidas pelo pai contas/
de assinatura do inventário relevantes
inventário requerimentos
escravos do termo
"...todos se achavam debaixo da
inspeção da dita sua constituinte tutora e
mãe que os educava, regia e doutrinava
com aquele amor zelo e cuidado que lhe
José 9:130$62 era permitido aos seus estados e sexos.
Francisco Tenente e 2 Teresa de " (fl. 160)
Contas dadas
de Sá proprietário de terras Jesus (1785) Casada com o Furriel Jose Rodrigues
em 1792
Mourão minerais. 14 - mãe Maria Teresa de Jesus (12a) Torres
(1783) escravos "empregado aprendendo o negócio
José de Sá Freitas (9a) (Não especificou qual)
Antonio de Sá Mourão (5a) Aprendendo a ler, escrever e contar
Francisco de Sá Freitas (2a) Aprendendo a ler, escrever e contar
João (6 meses) Aprendendo a ler, escrever e contar
Mariana (falecida) -
Pedro (14a) -
Pedro Manoel (13a) -
Brígida Maria
Pereira 3:535$17 Maria (9a) -
Produção agrícola e do Rosário
Lima 7 Declaração Ana (8a) -
proprietário de gado (1789) – mãe
(1789) Luiz (17a; natural) -
e madrasta
17 Francisco (16a; natural) Tornou-se soldado pago da 1ª Cia da
escravos Praça
Ana (15a; natural) -
Joaquim Luiza (24a) -
Rodrigues Ana Maria Helena (21a) Casou-se com Jose Gonçalves Ferreira
Produção agrícola e 5:749$45
de Gomes Rosa (20a) -
proprietário de gado 0 Declaração
Carvalho (1801) Francisco (17a) -
33
(1801)
escravos
329
Monte- Nome do
Nome do Ano da
mor e tutor e ano Nome e idade dos órfãos Educação direcionada aos órfãos e
pai e ano Atividades prestação de
número de no momento da abertura outras informações consideradas
do exercidas pelo pai contas/
de assinatura do inventário relevantes
inventário requerimentos
escravos do termo
Proprietário de terras
agrícolas. Plantava e 3:733$78
Antônio Quitéria
vendia marmelos, 0 Aprendendo a ler e escrever de 1818 até
Rodrigues Gonçalves Contas dadas
laranjas, feijão e Antonio (10a) 1825 (professor Miguel Francisco de
Fontes Fontes em 1827
milho. Era dono de 16 Carvalho)
(1817) (1818)
bestas e muares escravos
arreadas.
Capitão. Além disso, Dona Tereza (26a) Casou-se com o Capitão Antonio José
Francisco exerceu o cargo de Peixoto
Josefa Maria
Dias vereador da Câmara Contas dadas Dona Ana (25a) -
7:249$60 de Almeida
Novais e foi escrivão da em 1805 Dona Senhorinha (20a) -
6 (1803)
(1803) Irmandade do Manoel (16a) Tornou-se soldado pago da 1ª Cia da
Santíssimo Praça
29
Sacramento de Vila Antonio (14a) Tornou-se soldado pago da 1ª Cia da
escravos
Rica. Proprietário de Praça
terras minerais e de
gado
Nas contas consta que ela estava
mandando os órfãos aprender a ler e
Manoel escrever, mas não menciona quais
José deles*. Consta ainda que os traziam
Teixeira “sempre limpos e asseados como tudo é
3:435$70 Teresa Iria
Murta Capitão, boticário e Contas dadas bem público e constante”
0 Fidelis
((1810) proprietário de gado em 1820
(1810) Luciano (21a) *
19 Inácio (20a) Tornou-se tenente
escravos Carlos (19a) Tornou-se furriel
Manoel (17a) *
José (16a) *
330
Monte- Nome do
Nome do Ano da
mor e tutor e ano Nome e idade dos órfãos Educação direcionada aos órfãos e
pai e ano Atividades prestação de
número de no momento da abertura outras informações consideradas
do exercidas pelo pai contas/
de assinatura do inventário relevantes
inventário requerimentos
escravos do termo
Antônio Ana (16a) “...criada com toda honestidade e asseio
Alferes; proprietário
Pereira Joana (14a) que é devido a seu sexo”
de fazenda de Contas dadas
Malta 4:6069$3
culturas com Ana Maria do em 1816 Antonio (8a)
(1811) 20
capoeiras e alguns Sacramento juntamente com
matos, além de (1812) uma declaração José (6a) Aprenderam a ler e escrever e estavam
10 aprendendo ofício (não especifica)
moinho e paiol. Dono no mesmo ano
escravos João (5a)
de gado.
Consta um requerimento desta órfã
solicitando licença para o juiz e para sua
tutora para se casar. Nele ela declarou
que se achava contratada para se casar
Ana (23a)
José com o Ajudante Francisco Rodrigues
Marinho de Carvalho “sujeito igual a sua pessoa
Proprietário de terras tanto nas teres como em qualidade”.
Azevedo 13:369$0
agrícolas e muito Consta a resposta favorável da tutora.
(1815) 13
gado – vacum e José (21a) -
cavalar. Tinha sido Francisco (16a) -
33 Ana Rosa da Declaração
escrivão da
escravos Cunha Felícia (14a) -
Irmandade do
(1816) Maria (12a) -
Santíssimo de Itabira
Joana (10a) – faleceu
do Campo -
durante o inventário
Custódio (8a) -
Antonio (7a) – faleceu
-
durante o inventário
-
Domingos (3a)
331
Monte- Nome do
Nome do Ano da
mor e tutor e ano Nome e idade dos órfãos Educação direcionada aos órfãos e
pai e ano Atividades prestação de
número de no momento da abertura outras informações consideradas
do exercidas pelo pai contas/
de assinatura do inventário relevantes
inventário requerimentos
escravos do termo
Jacinto Ana Jacinta (16a)488 -
Major, proprietário de
Pereira Não Ana Maria de Requerimento Enviou-o para Coimbra e tornou-se
loja de fazendas José (20a)
Ribeiro identificad Jesus (antes de isenção de advogado
secas e de terras
(Antes de o de 1784) contas de 1784
minerais Antônio (9a) Tornou-se padre
1784)
Ana (9a) Declarou que os filhos estavam em sua
Estevão
2:767$29 Maria companhia e todos estavam aprendendo
Antônio Rita (4a)
5 Joaquina de a ler e escrever
Ferreira Alferes e proprietário Contas dadas Manoel (3a)
Almeida Obs.: consta uma menção ao valor de
(1816) de terras agrícolas em 1823
15 (1816) Constância (1a) 18$000 que havia pago para dois órfãos
escravos aprender a ler e escrever. Mas não
Vitorino (21a) natural especifica quais.
Rita (4a) Tornou-se capitão
Manoel (3a) Casou-se com o Cadete Antonio Bento
Constância (1a) Tornou-se cadete
Francisco Vitoriano (21a) natural -
2:575$15
Coelho da Bárbara de Instruída “nos misteres de sua condição
Capitão. Era 0 Maria (8a)
Silva Vasconcelos e sexo”
proprietário de terras Declaração
Brandão
minerais e agrícolas. 24
Parada e “Suficientemente instruído ler e
Francisco (3a)
(1806)
escravos
Souza (1812) escrever”
Casou-se com Francisco Coelho Seabra
Mariana (2a)
488
Antunes (2005, p.36) declarou que uma “Ana Jacinta” era filha do Major Jacinto e sua primeira esposa Dona Ana Jacinta da Natividade. Entretanto, no requerimento de
Ana Maria de Jesus e também no inventário dela consta também uma Ana Jacinta como sua filha legítima. Inventário de Ana Maria de Jesus. AHMINC/IBRAM. 2º Ofício,
Códice 56, Auto 626, Ano 1807. Requerimento de Ana Maria de Jesus... AHU, Cx121, doc. 02.
332
Monte- Nome do
Nome do Ano da
mor e tutor e ano Nome e idade dos órfãos Educação direcionada aos órfãos e
pai e ano Atividades prestação de
número de no momento da abertura outras informações consideradas
do exercidas pelo pai contas/
de assinatura do inventário relevantes
inventário requerimentos
escravos do termo
João da Costa (8a)
Em companhia da tutora e “com aquela
1ª conta dada Elias (7a) educação que permitirão os seus anos”
em 1786 Ana (2a)
Maria (2a)
Declarou que “achava-se presentemente
José (16a) natural
emancipado”
João da Costa (8a) “Debaixo da inspeção da dita sua
Exercia algum 2ª conta dada Elias (7a) constituinte os quais educava com
serviço de transporte, em 1788 Ana (2a) aquele zelo e cuidado próprio de uma
pois consta que a 1:289$06 Maria (2a) boa mãe de família...”
Antônio da Câmara lhe devia o 2½ Romana Trazia-o a aprender seu ofício – no
Costa transporte de 50 Maria da João da Costa (8a) processo de emancipação consta que
Lopes carros de pedra para 13 Conceição era de “comprar e vender”
(1781) a calçada do escravos (1781) Trazia-o a aprender seu ofício – não
3ª conta dada
Caminho Novo. Tinha Elias (7a) mencionou qual, mas também parece
em 1790
muito gado – vacum ser “negócios”
e cavalar.
Ana (2a) Aprendendo a costurar
Maria (2a) Aprendendo a costurar
João da Costa (8a) Emancipou-se
4ª conta dada Elias (7a)
“Educava e regia como o fazem as boas
em 1799 Ana (2a)
mães de família”
Maria (2a)
Elias (7a) Emancipou-se e se tornou furriel
5ª conta dada
Ana (2a) “Debaixo da inspeção de sua tutela (...)
em 1804
e educava e regia como o fazem as
Maria (2a)
boas mães de família
333
Anexo 4 –
“Educação Direcionada aos órfãos de patrimônios intermediários”
Nome e idade
Nome do Monte-mor Nome do Ano da
Atividades dos órfãos no
pai e ano e número tutor e ano de prestação de Educação direcionada aos órfãos e outras
exercidas momento da
do de assinatura do contas/ informações consideradas relevantes
pelo pai abertura do
inventário escravos termo requerimentos
inventário
Declarou que "o tinha em sua companhia e o
Não Contas dadas
trazia na escola e era ainda de pouca idade"
identificado em 1775
(professor João Lopes da Fonseca)
(a mulher
Declarou que desejava enviar o filho para “o
Manoel comprou a Francisca
estudo no Piranga” para aprender gramática
Carreiras meação do 1:172$542 Maria da Manoel
e latim.
da Cruz marido e, por ½ Conceição Carreiras
(1772) isso, não (1772) Requerimento Obs.: consta 2 cartas do professor enviadas à
houve de 1779 mãe (1 de 1780 e outra de 1781 do professor
descrição Joaquim da Cunha Osório). Há também um
dos bens) recibo. Consta ainda gastos com livros e
demais materiais escolares.
Maria
Francisco Maria da Rodrigues “Havia tomado estado de casada”
427$950
Rodrigues Produção Silveira da Contas dadas (19a)
Graça agrícola Costa em 1788 Manoel
5 escravos “Tinha se ausentado de sua companhia e
(1783) (1783) Rodrigues
que lhe constava também se havia casado...”
(13a)
Antônio de Proprietário Antônio
1:403$469 -
Souza de terras Ana Rosa de Contas dadas (natural) 24a
Coelho minerais e Lemos (1787) em 1793 Tornou-se sapateiro e usava seu ofício “com
6 escravos Serafim (12a)
(1787) gado. crédito e aceitação”
Antônio
369$780 Requerimento
Freire dos Não Ana Rosa de Declarou que a filha achava casada com o
para não dar Matildes (23a)
Santos identificado Faria (1814) Cabo da Esquadra José Felipe Benício
7 escravos contas
(1813)
334
Nome e idade
Nome do Monte-mor Nome do Ano da
Atividades dos órfãos no
pai e ano e número tutor e ano de prestação de Educação direcionada aos órfãos e outras
exercidas momento da
do de assinatura do contas/ informações consideradas relevantes
pelo pai abertura do
inventário escravos termo requerimentos
inventário
Joana Luiz (14a) -
João de
1:810$571 Umbelina
Santana Capitão e
Clara do Declaração Consta que Maria havia se casado com o
Silva Pinto ajudante Maria (13a)
9 escravos Sacramento Bacharel José Joaquim de Oliveira Cardoso
(1799)
(1800)
Manoel
Martins -
(natural) 19ª
Martinho
Produção de Martins (17a)
cachaça e Ensino de ler, escrever e contar (professor
faleceu
José milho. 2:679$243 Teresa Luiz José da Mota)
durante o
Martins dos Consta ainda ½ Fernandes de Pagamento de inventário
Santos vários Jesus despesas Mariana (14a) -
(1786) instrumentos 7 escravos (1796)
Lauriana (11a) Casou-se com Manoel Francisco
do ofício de
Antônia (10a) -
pedreiro
Josefa (7a) -
Vicente (5a) -
João (3
-
semanas)
João
Damasceno Casou
Ajudante e Angélica
João de 2:145$825 (21a)
proprietário Albana de
Oliveira Declaração João Batista
de terras Ávila da Silva Casou
Silva (1815) 8 escravos (21a)
minerais Furtado (1816)
Manoel
Casou e havia se tornado tenente
(adotado) 19a
335
Nome e idade
Nome do Monte-mor Nome do Ano da
Atividades dos órfãos no
pai e ano e número tutor e ano de prestação de Educação direcionada aos órfãos e outras
exercidas momento da
do de assinatura do contas/ informações consideradas relevantes
pelo pai abertura do
inventário escravos termo requerimentos
inventário
Julião (21a) Emancipado
“Se achava emancipado” na prestação de
Antonio (15a)
contas
“Aplicara a aprender os ofícios de alfaiate e
João da 3:091$994 Ana Maria da Anacleto (13a)
torneiro”
Silva Não ½ Silva (1788) – Contas dadas
“Aplicara a aprender os ofícios de alfaiate e
Barbosa identificado irmã dos em 1794 Teodoro (11a)
torneiro”
(1788) 6 escravos órfãos
“Aplicara a aprender os ofícios de alfaiate e
João (9a)
torneiro”
Manoel (1
Não consta nenhuma informação
mês)
Ferreiro e
sócio com o
sogro em
uma loja de
negócio de
João
caldeiro e 1:966$875 Rita Vaz de “Muitos anos serve de sacristão na Igreja de
Francisco Declaração -
uma mina. Carvalho Feliciano (20a) Nossa Senhora da Conceição de Antonio
dos Santos 1796
Foi 8 escravos (1788) Dias
(1788)
representant
e dos
ferreiros, juiz
e escrivão de
ofício
336
Nome e idade
Nome do Monte-mor Nome do Ano da
Atividades dos órfãos no
pai e ano e número tutor e ano de prestação de Educação direcionada aos órfãos e outras
exercidas momento da
do de assinatura do contas/ informações consideradas relevantes
pelo pai abertura do
inventário escravos termo requerimentos
inventário
Capitão.
Declarou em Francisco Tornou-se soldado do Regimento de Linha
testamento (11a) desta Capitania
Luiz Gomes 2:303$008 Ponciana
que havia
da Fonseca Constantina da Declaração
arrematado o
(1806) 9 escravos Silva (1806)
ofício de D. Ana Casou-se com Francisco de Lima que era
tabelião do Claudina (12a) soldado no mesmo regimento do irmão
Papagaio
Maximiano Emancipado e “vivendo de seu trabalho” –
(17a) ele havia se habilitado “na arte de farmácia”
Emancipado e “com praça paga no
Antônio Antônio (14a)
Regimento de Linha desta Capitania”
Alves 950$350 Laureana
Emancipado e “com praça paga no
Pereira Boticário Rosa Pereira Declaração José (13a)
Regimento de Linha desta Capitania”
Carneiro 2 escravos (1801)
“Vive em companhia dela tutora com boa
(1801) Maria (6a)
educação e procedimento”
Camilo (4a) -
Sabino (1a) -
Claudina (9a)
Rita (7a)
José (5a)
José Teodora
488$206 Manoel (3a)
Antonio de Não Francisca do
Declaração Inês (1a) Casou-se com Joaquim Rodrigues de Meira
Meira identificado Nascimento
4 escravos Luiza (9a)
(1808) (1808)
José (6a)
Antônio (4a)
337
Nome e idade
Nome do Monte-mor Nome do Ano da
Atividades dos órfãos no
pai e ano e número tutor e ano de prestação de Educação direcionada aos órfãos e outras
exercidas momento da
do de assinatura do contas/ informações consideradas relevantes
pelo pai abertura do
inventário escravos termo requerimentos
inventário
Casou-se com Ponciana de Seabra e havia
João (15a) se tornado Furriel da 8ª Companhia do 2º
João 2:288$777 Regimento de Cavalaria Miliciana
Capitão. Não Rosa Teixeira
Antônio e½ Pede autorização para casar sua filha
identificamos de Jesus Declaração
Chaves Maria (7a) conforme contrato estabelecido entre ela
ocupação (1812)
(1812) 8 escravos tutora e Joaquim José dos Santos
Ana (4a) Casou-se com Delfino José Coelho
João (18a) -
Francisco
-
(17a)
Dona Ana
-
(15a)
Francisco Tenente e 2:332$660 Maria Angélica
Modesto (14a) -
de Paula proprietário de Jesus Declaração
Declarou que tem contratado para desposar
Dias (1817) de gado. 9 escravos (1818)
D. Bárbara sua filha Bárbara com o José Vieira da Costa
(11a) “é igual a pessoa de sua filha tanto em teres
como em qualidade”
D. Carolina
-
(5a)
D. Francisca
Sargento (14a)
Manoel Dona Inácia No requerimento feito em 1826, ela declarou
Mor. Não 1:347$476 João Batista
Teixeira de Francelina que tinha um filho no “estudo na Serra da
identificamos Requerimento (13a)
Souza Cândida Mãe dos Homens”. Não declarou qual dos
outra 7 escravos Manoel (11a)
(1822) (1822) filhos. Pela data, julgamos ser João Batista.
ocupação Domingos (3a)
– faleceu
338
durante o
inventário
Bernardo (6
meses)
Nome e idade
Nome do Monte-mor Nome do Ano da
Atividades dos órfãos no
pai e ano e número tutor e ano de prestação de Educação direcionada aos órfãos e outras
exercidas momento da
do de assinatura do contas/ informações consideradas relevantes
pelo pai abertura do
inventário escravos termo requerimentos
inventário
Consta que a tutora e os filhos Feliciano e
Francisco tinham interesse em ceder a parte
Pedro (18a) de uma determinada propriedade para fazer
patrimônio ao filho Pedro “para efeito de ser
ordenar em Ordens Sacras”
Declarou que Felício estava empregado
como cirurgião-mor no Batalhão destacado
Felício (16a)
Geraldo no Rio de Janeiro – tornou-se médico. (Ficou
2:007$550 Genoveva com a livraria do pai)
Fernandes Cirurgião-
Sutéria de Requerimento
Santiago mor Declarou que Francisco estava empregado
2 escravos Jesus (1822) Francisco
(1822) como cirurgião-mor no Batalhão destacado
(14a)
no Rio de Janeiro – tornou-se médico
João (8a) -
Roberto (6a) -
Maria da
Conceição -
(3a)
Geralda (1a) -
Trombeta do Havia sido deserdada pelo pai em
Francisco
Regimento 1:387$356 Maximiana testamento “pelos grandes desgostos que
Leite Contas dadas Francisca
de Cavalaria Gonçalves sempre me [deu]”. Mas depois, consta que
Esquerdo em 1814 Leite (24a)
de Linha 4 escravos Torres (1809) se casou durante o inventário com Camilo de
(1809)
desta Lelis.
339
Capitania. Havia sido deserdada pelo pai em
Proprietário testamento “pelos grandes desgostos que
de terras Isabel (19a) sempre me [deu]”. Mas depois, consta que
minerais, se casou durante o inventário com Matias
agrícolas e José dos Santos.
gado. Antonio Leite
-
(23a)
Vivendo em sua companhia e “com bom
comportamento e se tem empregado em
Ana (12a)
aprender a coser e o mais que é próprio e
decente a sua pessoa”
Vivendo em sua companhia e “sabe ler e se
Manoel Leite
acha aperfeiçoando em contas para ir
(10a)
aprender um ofício
João Leite (6a)
– faleceu “Aprendendo a ler e a escrever e vive em
durante o companhia dela tutora”
inventário
Joaquina Leite “Aprendendo a coser e vive em companhia
(5a) da sua mãe e tutora”
340
Anexo 5 –
“Educação Direcionada aos órfãos de menores patrimônios”
Nome do Nome do tutor Ano da Nome e idade dos
Atividades Monte-mor e
pai e ano e ano de prestação de órfãos no momento Educação direcionada aos órfãos e outras
exercidas pelo número de
do assinatura do contas/ da abertura do informações consideradas relevantes
pai escravos
inventário termo requerimentos inventário
O trazia na escola e “dava a educação e
1ª conta dada
ensino que se deve fazer os bons pais de
em 1775
famílias”.
Em companhia da mãe, “...tendo na escola
2ª conta dada para saber ler e escrever para em todo o
Não em 1781 tempo poder ter saída e tratar da sua vida e
João identificado. 429$300 Maria de Castro ofício que haja de aprender”
Gonçalves Tinha quatro Lima 3ª conta dada Ventura (5a) Em companhia da mãe e “se empregava em
Dias (1772) casas de 1 escravos (1773) em 1786 aprender o ofício de sapateiro”
moradas. “Se emprega em aprender o ofício de
4ª conta dada sapateiro e lhe administrava o sustento
em 1788 necessário assim como também a educação
que costumam dar as boas mães de família”
5ª conta dada Em companhia da mãe e “se empregava em
em 1790 aprender o ofício de sapateiro”
Joana (12a) Em casas de mestras lhe ensinando costuras
João
Furriel. Não 267$525 Paula (10a) Em casas de mestras lhe ensinando costuras
Ferreira da Maria Coelho Declaração
identificada a Francisca (5a) Em casas de mestras lhe ensinando costuras
Rocha Barros (1789) (1790)
ocupação 1 escravo Ana (6a) Em casas de mestras lhe ensinando costuras
(1788)
João – filho natural -
Inácio Casou-se com o Cabo da Esquadra Bernardo
130$000 Maria do Joaquina
Francisco Não identificada José Alves
Espírito Santo Declaração
Xavier a ocupação
1 escravo (1808) Inácia Casou-se com Manoel Fernandes dos Reis
(1808)
Manoel José (20a)
193$275 Teresa Ribeiro Declarou em requerimento que o escravo
Pereira Proprietário de
de Miranda Requerimento Manoel (16a) Manoel era quem servia de “mestre do ofício
Campos terras minerais
2 escravos (1804) de minerar” para os filhos;
(1804) Felisberto (14a)
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