Oliveira - 2004 - O Trabalho e Seu Significado

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OLIVEIRA, R. P.

“Tudo é arriscado”: a representação do trabalho entre trabalhadores


informais da construção civil. 2004. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva).
Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2004.

O Trabalho e seu Significado

Apesar de alguns autores como Offe (1995) e Gorz (1982) afirmarem a perda da
centralidade do trabalho e da tendência ao fim do emprego, o trabalho ainda representa
um dos aspectos mais importantes da vida pessoal, organizacional e societal, sendo um
dos pilares fundamentais em que se assenta a sociedade. Contra a idéia do fim do
trabalho, Sorj (2000) argumenta que:

... o trabalho, na pluralidade de formas que tem assumido, continua a ser um


dos mais importantes determinantes das condições de vida das pessoas. Isto
porque o sustento da maioria dos indivíduos continua a depender da venda
do seu tempo e de suas habilidades de trabalho no mercado. Mais ainda, sua
presença tem invadido de tal forma diferentes esferas da vida que temos,
hoje, grandes dificuldades em estabelecer as fronteiras que separam o
âmbito do trabalho do não-trabalho. (2000, p.26)

Castel (1998b) também não comunga a tese do fim da sociedade do trabalho. Ele
coloca que a relação com o trabalho se alterou,

Mas é ainda sobre o trabalho, quer se o tenha, quer este falte, quer seja
precário ou garantido, que continua a desenrolar-se, hoje em dia, o destino
da grande maioria dos atores sociais. Nesse sentido, pode-se continuar a
falar de centralidade do trabalho, no sentido de que ele permanece, positivo
ou, muitas vezes, negativamente, no centro das preocupações da maior parte
das pessoas. (1998b, p.157)

A atualidade mostra não o fim do trabalho, mas, como argumenta Meyer (2000), sua
reafirmação como obrigação e fonte de exploração. Como resultado das novas
tecnologias o tempo de trabalho necessário reduz-se ao mínimo. Contudo, a riqueza daí
decorrente cresce sem que seja repartida com os trabalhadores, o que evidencia um
crescimento na taxa de exploração. A relação entre crescimento da riqueza social e
elevação da taxa de mais-valia indica que o trabalho continua no epicentro das
transformações em curso.

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Dejours (2001) corrobora esta idéia quando afirma que:

... o trabalho não diminui; ao contrário, aumenta, mas muda de local


geográfico graças à divisão internacional do trabalho e dos riscos. Por fim,
uma parte do trabalho, evidentemente não mensurável, é deslocada não mais
para o Sul [os países subdesenvolvidos do Hemisfério Sul] e sim para o
interior, pelo recurso à terceirização, ao trabalho precário, aos biscates, ao
trabalho não remunerado (estágio em empresas, aprendizado, horas extras à
vontade, etc.) e ao trabalho ilegal (estabelecimentos clandestinos no setor de
vestuários, terceirização em cascata na construção civil ou na manutenção
de usinas nucleares, nas firmas de mudança ou de limpeza, etc.). (2001, p.
42)

Pode se afirmar que, como aponta Sorj (2000), ocorreu uma grande mudança em relação
ao regime de emprego que prevaleceu nas sociedades avançadas desde o pós-guerra -
período chamado de "a idade de ouro do capitalismo". Denominado por Castel (1998a)
de "sociedade salarial", este momento histórico caracterizou-se por um alto grau de
padronização em vários aspectos como: o contrato de trabalho, o lugar do trabalho, a
duração da jornada de trabalho. Buscava-se combinar trabalho e proteção, concedendo à
condição de assalariado não apenas uma retribuição monetária em forma de salário, mas
um certo número de garantias e de direitos, essencialmente direito ao trabalho e à
proteção social. Neste sentido,

Havia uma forte presença do 'salário indireto', um salário para a


'segurança', destinado a financiar os trabalhadores e as suas famílias tanto
nos períodos de suspensão provisória da atividade (o acidente, a doença)
como por ocasião da cessação definitiva do trabalho (a aposentadoria).
(CASTEL, 1998b, p.147)

Entretanto, nos dias de hoje, torna-se cada vez mais evidente que o emprego como uma
carreira contínua, coerente e estruturada não é mais uma opção que esteja amplamente
disponível, manifestando a ruptura da relação salarial que associava trabalho e
segurança (CASTEL, 1998b; SORJ, 2000). Os novos postos tendem a ser flexíveis no
tempo, no espaço e na duração, dando origem a uma grande variedade de contratos de
trabalho. Tais mudanças, longe de representarem ganhos para o trabalhador, revestem-

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se de um sentido extremamente negativo para estes, pois "proliferam estudos em que se
observa um indisfarçável saudosismo dos sistemas produtivos tayloristas ou fordistas
que, até ontem, eram considerados modelos supremos da alienação do trabalho"
(SORJ, 2000, p.26).

Nesta dissertação será adotado o conceito marxista de trabalho como:

... um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o


ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu
intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma
de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e
pernas cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza,
imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza
externa e modificando-a, ao mesmo tempo que modifica sua própria
natureza. (Marx, 1987, p.202)

Destarte, o trabalho humano é definido como consciente e proposital, produto e


produtor da espécie humana, força pela qual a humanidade criou o mundo como o
conhecemos (BRAVERMAN, 1977).

Para que haja trabalho, é necessária a existência de alguns elementos que, de acordo
com Marx (1987), conformam o conceito de processo de trabalho. São eles: o próprio
trabalho como atividade adequada a um fim; a matéria a que se aplica o trabalho, o
objeto de trabalho; e os meios de trabalho, o instrumental de trabalho. Os objetos e os
meios de trabalho, utilizados na produção social para a criação dos bens materiais,
formam os meios de produção.

Contudo, fruto de um determinado desenvolvimento histórico anterior, na sociedade


capitalista existem indivíduos que são possuidores de capital e dos meios de produção, e
outros destituídos destes bens. Deste modo, o trabalho ocorre através de uma relação de
compra e venda de força de trabalho entre o capitalista - proprietário do capital - e o
trabalhador - detentor da força de trabalho -, que faz tal contrato posto que as condições
sociais não lhe dão outra alternativa para ganhar a vida (BRAVERMAN, 1977).

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Marx (1987, p.187) define força de trabalho como "o conjunto das faculdades físicas e
mentais, existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele
põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espécie". Esta força de
trabalho é trocada por um valor para que o trabalhador possa assegurar os meios de
subsistência diário. Todavia, o valor pago pelo capitalista é muito inferior ao valor
efetivamente produzido, o que dá origem a um excedente de produção - mais-valia -,
cujo destino é a apropriação pelo capitalista.

Logo, a lógica da organização do processo de produção no capitalismo torna-se criar o


máximo de mais-valia. É no processo de trabalho, diante da exploração do trabalhador,
que ocorre a extração da mais-valia. Para tal intento, configuram-se duas formas de
extração da mais-valia: a absoluta, que representa o aumento da utilização da força de
trabalho pelo prolongamento da jornada de trabalho com o mesmo valor salarial; e a
relativa que resulta da intensificação do trabalho através da introdução de inovações nas
condições técnicas e sociais do processo de trabalho em uma mesma jornada e com o
mesmo salário (MARX, 1987). Quanto maior a extração de mais-valia, menor será a
condição do trabalhador repor a sua energia consumida no trabalho.

Para o capitalista, o processo de trabalho é um processo que ocorre entre coisas que lhe
pertencem (MARX, 1987). Nesta concepção, o trabalhador está desumanizado, reduzido
a uma mercadoria, a um "fator de produção" (BRAVERMAN, 1977). O cuidado do
dono do capital é com a força de trabalho enquanto energia para a movimentação das
máquinas, e não com os operários como seres humanos.

O interesse dos industriais não permite que os operários fiquem em casa por
doença; estes não têm o direito de ficar doentes, se não o industrial poderia
ter que parar suas máquinas ou incomodar a sua nobre cabeça para
proceder a uma substituição temporária. Antes disso acontecer, despede as
pessoas quando estas se permitem não gozar de saúde. (ENGELS, 1985;
apud PENA, 1990)

O capitalista passa a se preocupar com a saúde da população para garantir a manutenção


e reprodução da força de trabalho (DONANGELO e PEREIRA, 1979; ROSEN, 1980;
PAIM e ALMEIDA FILHO, 1998).

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Como argumenta Foucault (1988), o exercício de dominação do capital sobre o
trabalhador é feito através de seu corpo. Este é investido por relações de poder e
dominação quando tomado como força de produção, o que se torna possível porque o
trabalhador está preso em um sistema de sujeição, isto é, tem que assalariar-se para
garantir sua subsistência. Deste modo, o corpo só se torna força útil se é ao mesmo
tempo corpo produtivo e corpo submisso.

É possível apreender que Foucault (1979) não considera o poder como uma realidade
concreta que tenha em si uma essência. Para ele, o que existem são formas distintas e
heterogêneas de poder, que se caracterizam como uma prática social historicamente
constituída e em constante transformação. Poderes ditos periféricos e moleculares
estariam disseminados por toda a sociedade, assumindo formas mais regionais e
pontuais. Neste sentido, não existiriam indivíduos que têm poder ou não o têm, posto
que o poder não se caracterizaria como uma propriedade, e sim como relações que se
estabelecem entre atores sociais. Da mesma forma que o poder não é considerado uma
mercadoria que possa ser dada ou negociada, não é também um lugar que se ocupa. O
poder, conforme este autor, é algo que se exerce, que se concretiza e acontece nas
relações sociais.

Já Poulantzas (1986, p.100) designa poder como "a capacidade de uma classe social de
realizar os seus interesses objetivos específicos". Este conceito reporta-se aos tipos de
relações sociais caracterizadas pelo conflito, pela luta de classe, pela capacidade de uma
determinada classe social realizar seus interesses próprios, os quais são opostos aos das
outras classes. Isto determina uma relação específica de dominação e subordinação das
práticas de classes, que é precisamente caracterizada como relação de poder. A relação
de poder implica pois na possibilidade de demarcação de uma linha nítida, a partir desta
oposição, entre os lugares de dominação e de subordinação. Essas relações de poder,
lastreadas na produção da mais-valia e na ligação aos poderes político-ideológicos,
materializam-se nas unidades de produção, lugares de extração da mais-valia e de
exercício desses poderes (POULANTZAS, 1980).

A partir desta discussão, é possível concluir que o trabalho, no modo de produção


capitalista, adquire um significado de exploração, um processo que ocorre em uma zona
de conflito de interesses contraditórios: os de quem vende sua força de trabalho e os

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daqueles que a exploram. O poder é então exercido por aquele que detém o capital sobre
aqueles que são explorados, sendo improvável se pensar em uma cooperação.

O trabalho, consoante inúmeros estudos (LIMA, 1988; ZALUAR, 1994; SARTI, 1996),
representa um valor moral na sociedade, algo central na vida das pessoas que subsidia
tanto a sobrevivência material como social. Independentemente do seu conteúdo, dos
objetivos que visa atingir, do prazer que proporciona a quem o executa, o trabalho
representa um valor. A busca de realização através do trabalho é descrita por Lima
(1988) como a finalidade última da existência, e o desempenho de uma atividade
profissional como o cumprimento de um dever. A autora, contudo, chama atenção para
o fato de que esta concepção de trabalho teria sido forjada por uma ideologia capitalista.
À medida que o trabalho vai perdendo seu conteúdo, seu significado mediante o
processo de desenvolvimento industrial, maior valor vai sendo atribuído ao trabalho em
si, qualquer que seja a atividade desenvolvida.

O significado do trabalho foi se modificando à medida que a relação do trabalhador com


o produto final foi se empobrecendo, deixando de ser fonte de realização pessoal para se
transformar numa relação comercial. O processo produtivo, fragmentado em tarefas,
está organizado de tal forma que o trabalhador passa a desconhecer o significado das
atividades realizadas. Em busca de lucros crescentes, o capital se reinventa,
apresentando diferentes formas de gerenciamento da produção, que intensificarão a
produção de mais-valia. Este trabalho, fonte de tantos sentimentos contraditórios, pode
vir a significar opressão e escravidão. Por isso, deve-se buscar um melhor entendimento
de quais as forças que emergem dele ou para ele e que o afastaram de seu conteúdo
inicial (SELIGMANN-SILVA, 1990).

Zaluar (1994), em um estudo sobre o modo de vida das classes populares, no conjunto
habitacional Cidade de Deus na cidade do Rio de Janeiro, descreve que o termo
"trabalhador", quando utilizado por um adulto - homem ou mulher - é sempre dito com
orgulho. A categoria "trabalhador" é usada para indicar um valor moral superior das
pessoas assim referidas em relação a outras rotuladas de "vagabundos", "bêbados",
"malandros" ou "bandidos". Contudo, os filhos jovens de pais que, exercendo o papel de
provedor principal da casa, trabalham um número excessivo de horas "sem descanso",
têm a visão do trabalho como algo que aprisiona, que torna seus pais "escravos", cujas

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vidas não comportam mais o prazer. O trabalho, que assume uma conotação positiva
para alguns integrantes de uma família, significando um diferencial de superioridade
moral, para outros mostra-se um elemento de rebaixamento à condição de escravo.
Esta autora coloca também a oposição que se configura entre a categoria trabalhador e a
categoria patrão. Nesta relação são atualizados os conflitos entre o capital e o trabalho,
quando invocada a condição de subalterno e dependente do trabalhador frente ao patrão.
Muitas vezes a situação do trabalhador é descrita, conforme Zaluar (1994), com
palavras que falam da humilhação ou da exploração que sofrem. O autoritarismo é um
dos problemas que marca esta relação de trabalho, fazendo emergir o ethos masculino,
esta "moral do homem" que "clama pela democratização das relações de trabalho". As
relações autoritárias tornam-se fonte permanente de conflitos e razão para macular a
imagem do trabalho, podendo levar até ao abandono deste. Entretanto, como apontam
os sujeitos entrevistados por Zaluar (1994), o "pobre" não tem como fugir desta
situação, pois necessita trabalhar para conseguir o dinheiro que lhe permite sobreviver,
enquanto que o "rico" - o patrão - já tem o dinheiro e não precisa trabalhar para viver.

Sem chegarem ao conceito de 'venda de força de trabalho', estes


trabalhadores possuem, no entanto, uma concepção proletária do trabalho.
(...) Todavia, apesar das privações que a pobreza traz, apesar do esforço
incessante e desgastante, apesar das possíveis humilhações por parte dos
patrões, o trabalho ainda é fonte de superioridade moral dos trabalhadores e
seus familiares. (Zaluar, 1994, p.90;146)

Ao investigar o sentido do trabalho entre trabalhadores desqualificados da periferia de


São Paulo, Sarti (1996) corrobora Zaluar (1994) quando apresenta a representação que
estes trabalhadores têm sobre si próprios: "Eu não tenho nada, só tenho a saúde e a
disposição para trabalhar" (SARTI, 1996, p.66). O trabalho é traduzido em termos de
uma troca, onde o trabalhador dá, trabalhando, e, em retribuição, pleiteia receber o
salário e o respeito que lhe são devidos. Daí a indignidade do desemprego que
representa não apenas privação material, mas, sobretudo, moral. Desta forma, a
identidade de trabalhador se confunde com a de pobre que, através do trabalho, da
honestidade e da disposição de vencer, busca se tornar "igual" aos ricos. Como explica a
autora, vencer aqui não significa necessariamente ascender socialmente, mas se afirmar
pelo valor positivo do trabalho.

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A saúde, como pontua Sarti (1996), também é trazida pelos trabalhadores como um
valor moral relacionado ao trabalho. "Mesmo não tendo nada, o pobre tem saúde e
disposição para trabalhar. Assim, a saúde, sendo uma condição para o trabalho, faz
com que aquele que, no registro do poder, é fraco e pobre, torne-se forte e rico"
(SARTI, 1996, p.69).

Esta mesma autora descreve ainda que a honra, entre os pobres, vincula-se a virtude
moral, sendo o trabalho um dos instrumentos fundamentais desta afirmação pessoal e
social.

No que se refere ao trabalho a honra pode estar contida no fato de se ter


uma profissão, reproduzindo em sua aspiração os orgulhos das corporações
de ofício pré-capitalistas; em trabalhar por conta própria, sem precisar ter
um chefe nas costas da gente, reafirmando seus anseios de autonomia
através do trabalho; ou, em face dos trabalhos 'desqualificados' que têm ao
seu alcance, traduzem-nos como trabalho duro, serviço pesado que exige
qualidades morais como coragem, força e disposição. (SARTI, 1996, p.68)

Como observado, investigações sobre o trabalho tem ressaltado as diferentes funções


que este desempenha para indivíduos e grupos, levantando o caráter positivo e negativo
destas. Salanova, Peiró e Prieto (1993; apud SALANOVA, GRACIA e PEIRÓ, 1996)
assinalam onze funções que o trabalho desempenha na vida das pessoas:

1) Função integrativa ou significativa: algo que pode dar sentido a vida na medida em
que permite a realização pessoal;
2) Função de proporcionar status e prestígio social: funciona como uma fonte de
respeito e reconhecimento;
3) Função de formação da identidade: dimensão importante para a formação e o
desenvolvimento da identidade pessoal;
4) Função econômica: possibilita a sobrevivência material e a aquisição de bens de
consumo;
5) Função social: fonte de oportunidades para a interação e contatos sociais;
6) Função de estruturar o tempo: papel dominante na estruturação do tempo das
pessoas em períodos regulares e previsíveis, se constituindo em um marco de
referência temporal útil;

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7) Função de manter o indivíduo numa atividade mais ou menos obrigatória: um dever
para com a sociedade;
8) Função de ser uma fonte de oportunidades para desenvolver habilidades:
proporciona ao sujeito uma prática diária que permite a aquisição e/ou o
melhoramento de suas habilidades;
9) Função de transmitir normas, crenças e expectativas sociais: a comunicação entre
os trabalhadores proporciona uma transmissão de normas, crenças, valores, idéias,
desempenhando um papel socializador;
10) Função de proporcionar poder e controle: pode-se experienciar relações de poder e
controle sobre outras pessoas e processos;
11) Função de comodidade: as pessoas podem ter a oportunidade de desfrutar de boas
condições físicas e segurança financeira.

Apesar do trabalho normalmente cumprir uma série de funções positivas para as


pessoas, também, em certas ocasiões, pode ser disfuncional. Quando o trabalho é
repetitivo, desumano, humilhante, monótono e sem autonomia, pode ser prejudicial para
a pessoa, trazendo possíveis conseqüências negativas.

O significado do trabalho na sociedade atual está enraizado nas diferentes


representações que este tem tido ao longo da história. Em distintas épocas e culturas o
trabalho assumiu formas diferentes, de acordo com as circunstâncias históricas,
filosóficas, políticas, culturais, econômicas e psicossociais. Por isso, é de grande
importância o estudo do significado do trabalho na história da humanidade. A partir das
contribuições de Salanova, Gracia e Peiró (1996), é possível estruturar um quadro
ilustrativo dos vários significados assumidos pelo trabalho durante a História desde
épocas pré-civilizadas até o advento da Revolução Industrial.

Conforme estes autores, em épocas pré-civilizadas a distinção entre atividades de


trabalho e não-trabalho não era clara como nos dias de hoje. Atividades como caçar e
cultivar o campo, necessárias à sobrevivência das populações, eram realizadas de forma
natural, não se distinguindo das atividades do ócio. Já na Grécia clássica, a dedicação ao
trabalho ou ao ócio passou a ser uma questão de direitos políticos. O trabalho era
considerado uma maldição, atividade própria dos escravos. Isto porque se considerava
degradante o caráter impositivo e obrigatório de se ter de trabalhar para sobreviver. Por

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outro lado, a possibilidade de decidir de que forma ocupar o tempo, podendo se dedicar
à contemplação da natureza em busca da "verdade e da virtude" era considerada um
patrimônio dos cidadãos livres.

A tradição judáico-cristã manteve a concepção grega que concedia pouco valor ao


trabalho, tomando este como um castigo, produto do pecado original. Em outras
religiões, os significados atribuídos ao trabalho tomaram outras conotações. No
islamismo, por exemplo, o trabalho é visto como uma obrigação social que tem de ser
cumprida para ser aceito por Alá. Já no budismo, é assumido como um atividade que
contribui para o desenvolvimento do caráter pessoal, na medida em que as pessoas são
capazes de comprometer-se com tarefas difíceis e vencer a tentação de dedicar-se a
outras atividades que exigem menos sacrifício.

Na sociedade feudal, a visão do senhor feudal se diferenciava da visão do servo sobre o


trabalho. Para o primeiro, o trabalho era considerado sujo, pouco elegante, próprio de
vassalos, enquanto que para o servo era meio de subsistência, atividade que realizavam
a maior parte do dia.

No Renascimento, época marcada pela busca da plenitude pessoal, a realização do


trabalho em si adquire o sentido de prazer, livre de conotações religiosas. Com a
Reforma Protestante, o trabalho passa a ser considerado uma obrigação como
contribuição para a criação do Reino de Deus. Passou-se a definir um modelo de vida de
disciplina, trabalho e boas obras como meio para obter a salvação eterna. Esta ideologia
- a Ética Protestante do Trabalho - conformou, segundo Weber (1980), o recrutamento e
a educação de uma força de trabalho disposta ao sacrifício, e, o mais importante, a
aparição de uma vida econômica racional e de caráter burguês, pautada na acumulação
de capital. O caráter instrumental do trabalho adquiriu relevância, levando as pessoas a
trabalharem para conseguir a salvação através da acumulação de riqueza pessoal.
Assim, a doutrina protestante desempenhou um importante papel na construção da
representação social do trabalho que iria vigorar na civilização industrial.

Com o advento da Revolução Industrial o trabalho se converteu no meio dominante de


aquisição de bens e serviços. A partir deste momento, o homem passou a se dedicar à
acumulação de capital não só para alcançar a própria salvação, mas como fim em si

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mesma. Fundava-se assim, baseada nas características do modo de produção capitalista,
a subordinação do indivíduo como meio para fins econômicos, tendo a acumulação de
capital como objetivo da atividade econômica.

É possível observar que, através da história, sucederam-se representações sociais


diferentes de trabalho de acordo com a cultura, a religião e a situação sócio-política. Da
mesma forma, também a história individual com seus aspectos sócio-demográficos, a
socialização e as características do contexto de trabalho influenciam o significado
atribuído ao trabalho. Mesmo dentro de uma cultura existem diferenças na
representação entre as diversas pessoas e os grupos sociais, a exemplo da sociedade
feudal. Neste sentido, o significado do trabalho pode ser considerado como uma
construção sócio-histórica.

Em um artigo que teve como objetivo oferecer um panorama das pesquisas nacionais e
estrangeiras sobre significado do trabalho nos últimos quinze anos, Mourão e Borges-
Andrade (2001) ratificam a noção de que as representações de trabalho vêm sendo
alteradas com as diferentes concepções de sociedade. Contudo, consideram que três
proposições sintetizam as formas mais freqüentes de apreensão do significado do
trabalho: a de que sua função é instrumental ou econômica; a de que o trabalho é algo
inseparável da natureza e das necessidades humanas; e a proposição de que o trabalho
tem uma natureza sócio-psicológica. Também, nessas pesquisas, torna-se manifesto o
caráter central do trabalho na vida das pessoas.

Um dos maiores estudos sobre o significado do trabalho foi o desenvolvido pelo Grupo
MOW - Meaning of Working -, nos anos oitenta, ao conduzir uma ampla pesquisa
comparativa acerca do significado do trabalho em oito países (BASTOS, COSTA e
PINHO, 1995; SALANOVA, GRACIA e PEIRÓ, 1996; MOURÃO e BORGES-
ANDRADE, 2001). Neste estudo, o Grupo concluiu que os indivíduos atribuem muitos
significados ao trabalho e que o padrão desses significados varia de acordo com
características individuais, características e qualidade das experiências, ocupação e
outros antecedentes, resultando em um padrão complexo de significado do trabalho.
Segundo Mourão e Borges-Andrade (2001), uma das maiores contribuições do Grupo
foi demonstrar que grande porção do significado atribuído ao trabalho é moldada pela
institucionalização do trabalho e por sua relação com outros papéis da vida do

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indivíduo. As pessoas não desenvolvem os significados do trabalho somente como
resultado das experiências e condições de trabalho, mas atribuem significados ao
trabalho para mudar organizações e estruturas sociais.

Para o Grupo MOW (1987; apud, SALANOVA, GRACIA e PEIRÓ, 1996), o


significado do trabalho é um constructo psicológico multidimensional composto por
diferentes variáveis ou dimensões. Como resultado de suas investigações, foram
assinaladas três importantes dimensões:

1) Centralidade do trabalho: se refere ao grau de importância geral do trabalho, ou


seja, o valor deste na vida das pessoas;
2) Normas societais e crenças relativas ao trabalho: consiste na relação que o
indivíduo estabelece com as normas socialmente aceitas acerca do trabalho. Trata-se
da crença que se tem sobre os direitos e deveres relacionados ao trabalho;
3) Resultados e objetivos valorizados no trabalho: dimensão definida como o conjunto
de produtos que os indivíduos buscam no trabalho. Está relacionada às finalidades
que as atividades de trabalho possuem para o indivíduo. Conforme esta pesquisa, o
trabalho pode proporcionar seis diferentes funções: status e prestígio; econômica;
manter ocupada a pessoa; contatos interpessoais; servir a sociedade; e auto-
expressiva, que permite a auto-realização. Dentre os valores relativos ao trabalho, é
feita uma distinção entre valores intrínsecos e extrínsecos ao trabalho. Os valores
intrínsecos se centram nos aspectos relacionados ao conteúdo de trabalho, cujas
atividades realizadas são sentidas como tendo um fim em si mesmas, sendo
expressivas, valoradas e satisfatórias para a pessoa. Já os valores extrínsecos estão
relacionados com o contexto do trabalho. A atenção fica voltada para os objetos,
eventos ou situações externas à pessoa. Neste sentido, as atividades são realizadas
com o intuito de obter benefícios, sendo portanto, um meio para obter um fim.

Utilizando-se de uma versão reduzida dos itens que integram o questionário proposto
pelo MOW, Bastos, Costa e Pinho (1995) desenvolveram um estudo entre trabalhadores
inseridos em organizações formais na Região Metropolitana de Salvador. Os autores
afirmaram que o trabalho é considerado uma importante esfera da vida, sendo elemento
ponderável na definição da identidade dos indivíduos. Os motivos relacionados ao
trabalhar estão predominantemente associados ao fato de desenvolver uma atividade

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interessante e auto-realizadora, como também à função econômica do trabalho.
Contrariando os achados de Lima (1988), esses autores descrevem que o trabalho foi
colocado mais como um direito, em detrimento da idéia de obrigação ou dever do
indivíduo para com a sociedade.

Abordando o significado do trabalho como uma cognição subjetiva e social, Borges e


Tamayo (1999) consideram-no como um constructo inacabado. Para os autores, este
constructo varia individualmente à medida que deriva do processo de atribuir
significados e, simultaneamente, apresenta aspectos socialmente compartilhados,
associados às condições históricas da sociedade. Portanto, o trabalho pode ser
caracterizado como rico de sentido individual e social, meio da produção da vida de
cada um, provedor da subsistência, criador de sentidos existenciais, além de contribuir
na estruturação da personalidade e identidade, sendo categoria central da própria
organização societal.

É o homem em sociedade que constrói o mundo do trabalho, estruturando suas


experiências e significados. Sendo uma realidade socialmente construída e reproduzida
pelos indivíduos, o significado do trabalho pode ser considerado como uma
representação social. Desta forma, para se ter uma melhor visão do que se entende por
trabalho, é importante considerar a forma como os trabalhadores em geral o
representam.

O significado do trabalho orienta e dá sentido às formas como o trabalhador se inscreve


no processo de trabalho, que é, em última análise, a materialização do trabalho
propriamente dito. O significado atribuído à experiência que se produz no cotidiano do
trabalho remete à constituição de práticas diferenciadas por parte dos trabalhadores. Na
medida em que se abre espaço para compreensão das experiências que emergem de
relações estabelecidas no cotidiano do trabalho, pode-se pensar em um movimento
dinâmico que vincule o trabalhador a seu trabalho. Assim, torna-se possível criar formas
de alterar e produzir novas práticas e novos significados a elas atribuídas nesse
processo, sem desconsiderar, em absoluto, os limites impostos pela organização do
trabalho (TITTONI, 1994).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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