Lara-Arrudaa, 2. WELKSON PIRES - PRAXEOLOGIA

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 25

Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n.

24

DA PRAXIOLOGIA BOURDIEUSIANA À SOCIOLOGIA PSICOLÓGICA DE


LAHIRE: ESTABELECENDO UM DIÁLOGO DISPOSICIONALISTA
Welkson Pires da Silva1

RESUMO
Presente desde as reflexões de Aristóteles, passando pelos escolásticos e pela sociologia
clássica até a sociologia contemporânea, a noção de habitus tem se mantido como um dos
caminhos mais profícuos ao entendimento das ações dos sujeitos enquanto estruturadas
socialmente. Com Bourdieu, aquela noção ganhou toda uma sistematização teórico-
metodológica, o que a fez ganhar um aspecto mais cientificista. Lahire, numa relação
crítica com a teoria bourdieusiana, apropriou-se dessa análise disposicional como base de
sua sociologia psicológica, ampliando as possibilidades heurísticas daquele conceito a
fim de abarcar outras estruturas disposicionais para além do habitus. Tal diálogo crítico
se define como o principal objetivo desse artigo, que buscará: 1) traçar uma breve gênese
do conceito de habitus; 2) expor as perspectivas de Bourdieu e de Lahire acerca desse
conceito; 3) apontar suas aproximações e divergências; e 4) delinear suas contribuições
para a firmação de uma sociologia disposicionalista, voltada à compreensão das práticas
sociais.

PALAVRAS-CHAVE
Habitus. Disposições. Praxiologia. Sociologia Psicológica.

1
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco.

37
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

1. Habitus: a gênese de um conceito

A origem do conceito de habitus remonta, até onde se sabe, ao pensamento

aristotélico e sua doutrina sobre as virtudes e os vícios, mais precisamente relacionando-

se à ideia de hexis: visando compreender a conduta humana para além da determinação

natural, Aristóteles aponta que as inclinações (virtudes ou vícios) individuais não são

inatas, mas sim estabelecidas ao longo de um processo de repetição dos atos que em

última instância promove a constituição do hábito (hexis): “não é, pois, por natureza, nem

contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se, antes, que somos

adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo hábito”, ou seja,

“adquirimo-las pelo exercício” (ARISTÓTELES, 1984, p. 67). Destarte, por meio da

recorrência, as práticas são capazes de moldar, no corpo e na mente do sujeito, um caráter

relativamente durável: “nenhuma função humana desfruta de tanta permanência como as

atividades virtuosas, que são consideradas mais duráveis do que o próprio conhecimento

das ciências” (Ibid., p. 60).

Com isso, podemos dizer que, ao chamar atenção para essas propriedades

adquiridas pelos sujeitos através de um longo processo de aprendizagem e que lhes

orientam os sentimentos, os desejos e, consequentemente, as ações em determinados

contextos situacionais, Aristóteles forneceu a base conceitual sobre a qual veio a se

desenvolver todo um pensamento de orientação disposicionalista. A escolástica, nesse

sentido, pode ser considerada sua primeira grande herdeira, principalmente no tocante à

obra de Tomás de Aquino, sendo a responsável pela tradução do termo grego hexis na

forma latina habitus. Em sua argumentação sobre esse conceito, Aquino deixa evidente

que lhe manteve, quanto aos seus aspectos gerais – concernentes à criação, estrutura e

funcionamento –, a interpretação aristotélica, tratando o habitus como princípio que

38
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

regula as ações dos sujeitos: “todo hábito”, diz Aquino, “implica principalmente

ordenação ao ato” (AQUINO, 1989a, p. 384). Interessante observar que a constatação da

multiplicidade disposicional que orienta os sujeitos e, consequentemente, a ideia de uma

taxonomia dos habitus – questões de grande relevo na sociologia disposicionalista

contemporânea – já ganhavam certo destaque na explanação daquele filósofo cristão: “há

vários hábitos ou disposições em um mesmo sujeito” (Ibid., p. 410); “os hábitos se

diferenciam porque muda a espécie de seus atos; todos os atos de uma espécie pertencem

ao mesmo hábito” (AQUINO, 1989b, p. 238).

No contexto sociológico, uma das utilizações do conceito de habitus está na obra

de Durkheim, principalmente em seu estudo sobre a evolução pedagógica na França.

Assim, discorrendo sobre a educação cristã, esse pensador nos diz: “para ser cristão não

basta ter aprendido isto ou aquilo, saber discernir certos ritos e pronunciar certas fórmulas,

conhecer certas crenças tradicionais. O cristianismo consiste essencialmente num certo

estado de alma, num certo habitus do nosso ser moral. Suscitar na criança esta atitude

será o objectivo essencial da educação” (DURKHEIM, 1994, p. 184). Vale ressaltar que

o emprego estruturalista que esse pensador faz de tal noção acaba por lhe atribuir um

caráter mais homogêneo e constante. Isso se dá justamente porque Durkheim tende a

conceber a relação do sujeito com o mundo de maneira coerente e relativamente estável,

o que pressupõe ações portadoras dessas mesmas qualidades.

Já Mauss tende a enfatizar o aspecto corporal da noção de habitus ao discorrer

sobre as técnicas do corpo, as quais ele compreende enquanto determinadas socialmente:

por exemplo, “a posição dos braços e das mãos enquanto se anda é uma idiossincrasia

social, e não simplesmente um produto de não sei que arranjos e mecanismos puramente

individuais, quase inteiramente psíquicos”. Isso o leva a seguinte conclusão: os habitus

39
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

“variam sobretudo com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os

prestígios” (MAUSS, 2003, p. 404), sendo inculcados nos sujeitos seja através dos

processos de imitação ou de educação, ambos remetendo ao princípio, já enfatizado, da

repetição – condição sine qua non a constituição do habitus.

Com Elias e sua abordagem relacional dos fenômenos sociais, interessada em

superar a dicotomia sociedade-indivíduo, a noção de habitus se torna o instrumento

fundamental a evidenciação do caráter social dos sujeitos – ou, nos termos elisianos, “a

composição social dos indivíduos” (ELIAS, 1994, p. 150). Mais que isso, ao conjugar as

análises sociogenética e psicogenética, consegue flexibilizar a leitura estruturalista do

habitus – tão marcante no uso que lhe é dado por Durkheim –, mostrando que às mudanças

nas configurações sociais, ou seja, nas relações de interdependência entre os sujeitos,

correspondem transformações também na estrutura psicológica desses, em outras

palavras, nos seus habitus. Assim, em Elias, como enfatiza Dunning e Mennell (1997, p.

9, grifo nosso), “o conceito de habitus implica um equilíbrio entre continuidade e

mudança”.

Utilizações mais pontuais da noção de habitus, no campo da sociologia, também

podem ser encontradas, por exemplo, no trabalho de Veblen (1965) sobre a classe ociosa

– aqui, ele menciona, dentre outros, o “hábito desportivo” –, em Weber (2000) quando

analisa o papel da ascese religiosa na transformação do habitus físico, ou em Schutz sob

a forma da expressão “conhecimento habitual”, referente às habilidades, conhecimentos

práticos e conhecimentos de receitas que os sujeitos mobilizam no mundo da vida

(SCHUTZ; LUCKMANN, 2003).

40
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

2. (Des)encontros na sociologia disposicionalista contemporânea

Da sociologia contemporânea, Bourdieu pode ser considerado o grande

responsável pela sistematização de uma teoria do habitus, a qual, em certa medida,

aparece como uma síntese original das diversas abordagens anteriores de tal conceito.

Assim como Elias, Bourdieu também estava envolvido com a problemática

epistemológica em torno da oposição sociedade-indivíduo, ou, como normalmente ele a

descrevia, objetivismo-subjetivismo. A noção de habitus é suscitada no contexto desse

embate, de modo a escapar a seguinte alternativa teórica referente à ação social: “de um

lado, o mecanismo segundo o qual a ação constitui o efeito mecânico da coerção de causas

externas; de outro, o finalismo segundo o qual [...] o agente atua de maneira livre,

consciente e, como dizem alguns utilitaristas, with full understanding, sendo a ação o

produto de um cálculo das chances e dos ganhos” (BOURDIEU, 2007, p. 169). A

plausividade do conceito de habitus, como solução para tal embate, está justamente no

fato de que, em sua definição, consegue sintetizar, de maneira coerente, tais perspectivas:

“estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes”. Com

isso, Bourdieu busca evidenciar que “o habitus está no princípio de encadeamento das

‘ações’ que são objetivamente organizadas como estratégias sem ser de modo algum o

produto de uma verdadeira intenção estratégica” (BOURDIEU, 1983a, p. 61).

Em um diálogo crítico com a perspectiva bourdieusiana do habitus, vem ganhando

destaque, hodiernamente, as considerações do pesquisador Lahire, cujos trabalhos sobre

o campo educacional lhe permitiram alcançar uma compreensão mais abrangente das

possibilidades disposicionais dos sujeitos: a análise sobre as disposições não pode se

restringir à mirada sobre os campos sociais, espaços mais ou menos institucionais, mas

abranger todo espaço social, todas as formas de interdependência dos sujeitos, mesmo as

41
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

mais informais. Mais que isso, apesar de manter o foco sobre o social incorporado

(disposições), Lahire dá destaque também aos contextos situacionais, mostrando a

importância da situação presente na definição da ação: “se a situação em si não explica

nada, é ela que abre ou deixa fechados, desperta ou deixa em estado de vigília, mobiliza

ou deixa como letra morta os hábitos incorporados pelos atores” (LAHIRE, 2002, p. 53).

Nossa exposição se seguirá com a sistematização da perspectiva disposicional

desses dois autores, Bourdieu e Lahire, mostrando suas confluências e divergências. Em

última instância, poderemos vislumbrar os caminhos que, hodiernamente, tem tomado a

noção de habitus como instrumento de compreensão das práticas sociais.

2.1. O habitus bourdieusiano ou a preponderância do passado incorporado

Como já mencionamos anteriormente, a abordagem sociológica de Bourdieu

emerge na sociologia contemporânea como uma síntese teórica possível às duas formas

de conhecimento, que têm predominado no âmbito das ciências sociais, acerca da ação

social: o objetivismo e o subjetivismo. O primeiro busca explicar as ações dos sujeitos

enquanto pura execução das normas ou ordenamentos da estrutura social, ou seja,

“submete as liberdades e as vontades a um determinismo exterior e mecânico”

(BOURDIEU, 2009, p. 77) – dito dessa maneira, estamos diante do homo automaton.

Assim sendo,

O objetivismo está condenado ou a deixar na mesma a questão do


princípio de produção das regularidades que ele se contenta então em
registrar, ou a reificar abstrações, por um paralogismo que consiste em
tratar os objetos construídos pela ciência – a “cultura”, as “estruturas”,
as “classes sociais”, os “modos de produção” etc. – como realidades
autônomas, dotadas de eficácia social e capazes de agir enquanto
sujeitos responsáveis de ações históricas ou enquanto poder capaz de
pressionar as práticas (BOURDIEU, 1983a, p. 56).

Já o subjetivismo, por partir do pressuposto da plena racionalidade dos sujeitos,

toma as ações como produto de um cálculo estratégico. Destarte, ele “substitui os

42
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

antecedentes da explicação causal pelos fins futuros do projeto e da ação intencional ou,

caso se queira, a esperança dos benefícios que virão” (BOURDIEU, 2009, p. 77) – cria-

se, com isso, a imagem do homo economicus. Nesse sentido, o subjetivismo parte do

pressuposto de que o sujeito, tendo plena consciência de suas ações, é capaz de oferecer

as suas verdadeiras motivações. Consequentemente, ele tende a “identificar a ciência do

mundo social a uma descrição científica da experiência pré-científica desse mundo”

(Ibid., p. 45), excluindo “a questão das condições de possibilidade dessa experiência”

(Ibid., p. 44).

Como uma solução para essa dicotomia entre os conhecimentos proporcionados

pelo objetivismo e pelo subjetivismo, Bourdieu propõe a praxiologia, desviando o foco,

que ora se voltava às instituições sociais – e sua normatividade –, ora aos indivíduos –

plenamente conscientes e racionais –, como determinantes únicos e necessários das ações

sociais –, em direção às práticas: “há uma economia das práticas, ou seja, uma razão

imanente às práticas que não encontra sua ‘origem’ nem nas ‘decisões’ da razão como

cálculo consciente nem nas determinações de mecanismos exteriores e superiores aos

agentes” (BOURDIEU, 2009, p. 84): “os agentes sociais”, nos diz Bourdieu, “não são

partículas submetidas a forças mecânicas, agindo sob a pressão de causas; nem tampouco

sujeitos conscientes e conhecedores, obedecendo a razões e agindo com pleno

conhecimento de causa”. Desviando-se dessas duas compreensões, o pensamento

bourdieusiano toma como pressuposto a noção de um sujeito dotado de um senso prático,

o qual nada mais é do que “um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão

e de divisão”, “de estruturas cognitivas duradouras” e “de esquemas de ação que orientam

a percepção da situação e a resposta adequada” (BOURDIEU, 2011, p. 41-42). A esse

senso prático, Bourdieu denominou habitus, cuja primeira característica a ser ressaltada

43
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

é o fato dele se apresentar enquanto mediação fundamental entre as instâncias agencial e

estrutural: “entre o sistema de regularidades objetivas e o sistema de condutas diretamente

observáveis uma mediação sempre intervém, a qual não é nada mais do que o habitus”

(BOURDIEU, 1968, p. 705).

Como já dissemos, o habitus é definido como “estruturas estruturadas

predispostas a funcionar enquanto estruturas estruturantes”: são estruturadas por se

originarem de determinadas condições de existência, ou seja, o sujeito, a partir das

experiências travadas com um tipo particular de meio social, acaba por incorporar suas

estruturas constitutivas – interiorização da exterioridade; são estruturantes, pois tais

estruturas, outrora incorporadas, passam a funcionar como “princípio gerador e

estruturador das práticas e das representações” dos sujeitos – exteriorização da

interioridade. Com isso, estamos diante de uma virada paradigmática que se coloca como

um contraponto a alternativa entre a reação mecânica e a ação racional: as práticas sociais

são “objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser o produto da obediência a regras,

objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio

expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser

o produto da ação organizadora de um regente” (BOURDIEU, 1983a, p. 61). O principal

aspecto dessa virada paradigmática, através do conceito de habitus, é ter conseguido

sintetizar os princípios de regularidade e coerência estruturais com o inconsciente

agencial, sem apagar no agente seu aspecto ativo: “o habitus torna possível a produção

livre de todos os pensamentos, de todas as percepções e de todas as ações inscritas nos

limites inerentes às condições particulares de sua produção, e somente daquelas”. Nesse

sentido, “a liberdade condicionada e condicional que ele garante está tão distante de uma

44
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

criação de imprevisível novidade quanto de uma simples reprodução mecânica dos

condicionamentos iniciais” (BOURDIEU, 2009, p. 91).

As estruturas constitutivas das condições de existência, das quais o habitus

emerge, estão fundamentadas, como ressalta Bourdieu, na ordenação posicional-

hierárquica que define as relações sociais. Tal ordenação é denominada, por aquele

sociólogo, de campo: “em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede

ou uma configuração de relações objetivas entre posições” (BOURDIEU; WACQUANT,

1995, p. 64). Mas cabe uma ressalva: nem todo complexo de relações sociais constituirá

um campo. Esse pressupõe certo grau de autonomia, ou seja, uma especialização

estrutural, ordenamento específico de posições específicas, que encerra práticas também

específicas. Em outras palavras, deve apresentar um elevado nível de institucionalização

– alguns exemplos de campos: religioso, econômico, educacional, político, midiático,

artístico, etc. Eis a segunda característica fundamental do habitus bourdieusiano: ele está

necessariamente atrelado a um campo social.

Para análise disposicionalista, importa frisar que o campo emerge enquanto um

“espaço de posições sociais [que] se retraduz em um espaço de tomadas de posição pela

intermediação do espaço de disposições (ou do habitus)”. Isso significa que “a cada classe

de posições corresponde uma classe de habitus (ou de gostos) produzidos pelos

condicionamentos sociais associados à posição correspondente e, pela intermediação

desses habitus e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens e

propriedades, vinculadas entre si por uma afinidade de estilo”. Evidencia-se aí uma

terceira característica da noção de habitus para a teoria bourdieusiana: “dar conta da

unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente singular ou de uma classe

45
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

de agentes” (BOURDIEU, 2011, p. 21, grifo nosso). Ou seja, o habitus incorporado pelo

sujeito apresenta um elevado grau de coerência entre seus esquemas.

Como já aludimos acima, as posições, que constituem um campo, estão

hierarquicamente dispostas, isto é, apresentam, entre si, um equilíbrio desigual de poder.

Tal diferenciação resulta numa constante luta concorrencial, com vistas ao domínio do

campo, entre os atores ocupantes daquelas posições: de um lado, encontram-se os sujeitos

posicionados no nível inferior da hierarquia social, buscando ascender, e, de outro, os

indivíduos de extratos superiores, buscando barrar aquela ascensão e se manter no ponto

mais elevado da escala social. O que determina o posicionamento hierárquico de um

sujeito, quanto a sua superioridade ou inferioridade, é a quantidade de capital –

econômico, social, cultural – que ele detém:

O capital – que pode existir no estado objectivado, em forma de


propriedades materiais, ou, no caso do capital cultural, no estado
incorporado, e que pode ser juridicamente garantido – representa um
poder sobre um campo (num dado momento) e, mais precisamente,
sobre o produto acumulado do trabalho passado (em particular sobre o
conjunto dos instrumentos de produção), logo sobre os mecanismos que
contribuem para assegurar a produção de uma categoria de bens e, deste
modo, sobre um conjunto de rendimentos e ganhos (BOURDIEU, 2010,
p. 134).

Como é possível se deduzir da citação acima, o capital, ao mesmo tempo em que

garante ao sujeito uma posição dominante no campo, ou seja, que funciona como

instrumento (meio) de poder, também é o grande objetivo (fim) das lutas travadas pelos

sujeitos pertencentes ao tal campo. A força do capital advém de seu efeito simbólico, em

outras palavras, de sua capacidade de se fazer reconhecer como legítimo. “Mais

precisamente, o capital existe e age como capital simbólico [...] na relação com um

habitus predisposto a percebê-lo como signo de importância, isto é, a conhecê-lo e a

reconhecê-lo em função de estruturas cognitivas aptas e tendentes a lhe conceder o

46
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

reconhecimento pelo fato de estarem em harmonia com o que ele é” (BOURDIEU, 2007,

p. 296).

Enquanto instrumento que outorga poder aquele que o detém, o capital (objetivado

e incorporado) se torna princípio de distinção que se materializa tanto através da posse

propriamente dita do capital quanto por meio das práticas que esse possibilita – pois

reproduz “as diferenças ligadas à posição na estrutura da distribuição dos instrumentos

de apropriação, transmutadas, assim, em distinções simbólicas” (BOURDIEU, 1983b, p.

83). Da mesma forma que o capital é institucionalizado, os processos distintivos, por meio

dele desencadeados, também o são. Isso significa que a distinção tende a tornar-se

legítima, natural: “a institucionalização da distinção, isto é, sua inscrição na realidade

dura e durável das coisas ou das instituições, caminha com sua incorporação, que é o

caminho mais seguro para a naturalização” (BOURDIEU, 2009, p. 233). Estamos, com

isso, diante da quarta característica sobressalente do habitus na ótica de Bourdieu, a saber,

o seu caráter distintivo: trata-se de uma marca social que distingue um dado sujeito dos

demais.

Um último aspecto, de fundamental importância na argumentação bourdieusiana,

acerca da ideia de habitus tem a ver com o princípio de repetição que lhe é inerente: a

lógica da reprodução estrutural. “As práticas que o habitus produz”, enfatiza Bourdieu

(1983a, p. 61), “são determinadas pela antecipação implícita de suas consequências, isto

é, pelas condições passadas da produção de seu princípio de produção [o habitus] de modo

que elas tendem a reproduzir as estruturas objetivas das quais elas são, em última análise,

o produto”. Essa tendência à reprodução só se torna possível devido à ocorrência de uma

“cumplicidade ontológica” entre as situações, circunscritas a um determinado campo

(estruturas objetivas), que se apresentam ao sujeito e o habitus (estruturas subjetivas) por

47
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

esse incorporado. Dito de outra maneira, o habitus, mobilizado diante de uma dada

situação, configura práticas que evidenciam uma compatibilidade/efetividade com a

realidade que se apresenta, justamente porque essa traz em si os princípios estruturais que

outrora foram responsáveis pela produção daquele aparato disposicional. Nas palavras de

Bourdieu (2009, p. 90): “passado que sobrevive no atual e que tende a se perpetuar no

porvir ao se atualizar nas práticas estruturadas de acordo com seus princípios”.

2.2. O olhar disposicional-contextualista de Lahire ou o passado à luz do presente

No que diz repeito à sociologia psicológica ou sociologia à escala individual,

proposta por Lahire, podemos dizer que ela, de certa forma, segue a esteira dos trabalhos

praxiológicos bourdieusianos, mas marcando, em relação a esses, certa ruptura. Lahire,

assim como Bourdieu, também toma as práticas dos sujeitos enquanto caminho

privilegiado de acesso a sua condição social, percebendo, nesse sentido, a importância

das estruturas sociais que lhes são incorporadas, durante um longo processo de

socialização, na definição de suas ações: “estudar o social individualizado, isto é, o social

refratado em um corpo individual – cuja peculiaridade é atravessar os diferentes grupos,

instituições, campos de forças e de lutas e cenas –, é estudar a realidade social sob a forma

incorporada, interiorizada” (LAHIRE, 2008, p. 375). Mas, diferentemente de Bourdieu,

Lahire lança um olhar mais atento e minucioso à situação presente: “se a situação em si

não explica nada, é ela que abre ou deixa fechados, desperta ou deixa em estado de vigília,

mobiliza ou deixa como letra morta os hábitos incorporados pelos atores”. Por isso, aquele

autor afirma: “os elementos e a configuração da situação presente têm um peso

inteiramente fundamental na criação das práticas” (LAHIRE, 2002, p. 53).

Esse olhar sociológico sobre a ação, que o próprio Lahire descreve como

indissociavelmente disposicionalista e contextualista, é uma tentativa de ajustar a mirada

48
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

sobre a ação e o ator, a qual vem padecendo de dois grandes desvios contrários entre si:

de um lado, o foco recai sobre o passado do ator e “negligencia-se o estudo das

características singulares dos diferentes contextos de ação” – aí se localiza, em certa

medida, a teoria bourdieusiana do habitus; de outro, a ordem da interação é privilegiada

em detrimento de “tudo o que, na ação presente, depende do passado incorporado dos

atores (disposições, inclinações ou hábitos mentais e comportamentais)” – o

interacionismo de Goffman é um bom exemplo nesse sentido (LAHIRE, 2010, p. 17-18).

Frente a essas duas abordagens, Lahire enfatiza que as práticas só podem ser

compreendidas no cruzamento das disposições incorporadas com os limites contextuais

da situação presente.

Cabe aqui uma observação: Lahire está ciente de que a teoria da ação proposta por

Bourdieu, inicialmente, parece compreender as práticas como resultantes da dialética

entre habitus e contexto – segundo o pensamento bourdieusiano, não se pode deduzir as

práticas apenas pelas “condições presentes” ou pelas “condições passadas que produziram

o habitus”, a sua compreensão só é possível a partir da relação entre tais condições

(BOURDIEU, 2009, p. 92-93) –, mas, em seu desenvolvimento, “o modelo teórico

proposto implica na maioria das vezes uma relativa primazia das experiências passadas

na medida em que estas estão ‘no princípio’ não só da compreensão das experiências

ulteriores, mas também de sua seleção” (LAHIRE, 2002, p. 48). De fato, como já

acenamos acima, ao expor o funcionamento do habitus, Bourdieu evidencia-lhe

claramente sua tendência reprodutiva e, com isso, sua preponderância sobre a ação dos

sujeitos, em certa medida descurando os imperativos do contexto presente: o habitus “é

o que confere às práticas sua independência relativa em relação às determinações

exteriores do presente imediato” (BOURDIEU, 2009, p. 93). Isso se dá, justamente, “pela

49
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

‘escolha’ sistemática que ele opera entre os lugares, os acontecimentos, as pessoas

suscetíveis de ser frequentadas”, com isso “o habitus tende a se proteger das crises e dos

questionamentos críticos garantindo-se um meio ao qual está tão pré-adaptado quanto

possível, ou seja, um universo relativamente constante de situações apropriadas para

reforçar suas disposições oferecendo o mercado mais favorável para seus produtos”

(Ibid., p. 100-101).

Diante disso, Lahire (2002, p. 48) é enfático ao apontar que Bourdieu, ao

privilegiar o passado incorporado em detrimento do contexto presente, confunde a

propensão (disposição) dos atores em “querer evitar as crises maiores” e as situações

reais “que não permitem sempre tais evitamentos nem deixam verdadeiramente escolha

aos atores”. Para Lahire (2010), a situação, na qual se desenrola a ação, também exerce

um “papel ativo”, pois funciona como um filtro ao acionar certos esquemas ao mesmo

tempo em que impede outros de se expressarem, ou mesmo motiva a (trans)formação de

esquemas.

Talvez o grande empecilho a uma maior flexibilização do habitus bourdieusiano,

quando confrontado com a situação presente, seja seu atrelamento ao conceito de campo.

Já expomos que Bourdieu tende a pensar a relação habitus-campo segundo o princípio da

“cumplicidade ontológica” – o habitus e o campo são apenas os dois lados,

respectivamente, subjetivo (modus operandi) e objetivo (opus operatum), das mesmas

estruturas sociais –, essa construção, por mais que a encaremos enquanto ideal-típica

(VANDENBERGHE, 2010), gera uma série de dificuldades quanto à sistematização

teórica, em correlação com uma determinada formulação metodológica, que possibilitaria

apreender as fissuras entre aquelas instâncias. Até porque, a própria situação social

presente, em relação a qual poderia haver um descompasso do aparato disposicional

50
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

incorporado, é encerrada sobremaneira nos limites do campo, ou seja, estrutura-se

segundo seus princípios. Se as situações são estruturadas de acordo com os mesmos

princípios que estruturaram o habitus – sendo, por isso, capaz de lhe ativar – e esse tende

a atualizar tais estruturas através das práticas que motiva, estamos diante de uma

construção teórica que apresenta uma lógica circular: “as condições de sua formação”,

diz Bourdieu (2007, p. 182) em relação ao habitus, “são também as condições de sua

realização”. Daí ser compreensível a interpretação que, normalmente, se faz da obra

bourdieusiana: trata-se de um esforço analítico que tende a enfatizar a reprodução social.

Evidentemente, Bourdieu busca escapar a tal lógica, principalmente quando ele

destaca os processos de luta que, sendo inerentes ao campo, tendem a lhe conservar ou

transformar. No entanto, o problema reside justamente no fato de se conceber aqueles

processos enquanto totalmente estruturados segundo as estruturas do seu próprio campo

de atuação – o que é bastante coerente em relação ao pressuposto da autonomia dos

campos, condição que lhes garante a própria existência: “as transformações da estrutura

do campo são o produto de estratégias de conservação ou de subversão que têm seu

principio de orientação e eficácia nas propriedades da posição que ocupam aqueles que

as produzem no interior da estrutura do campo” (BOURDIEU, 1983c, p. 134). Ou seja,

todas as movimentações já estão previstas estruturalmente no interior do campo, através

das posições que o constituem, já que essas definem o habitus (princípio de orientação)

que está, por sua vez, na base daquelas estratégias: “o sistema de disposições é o princípio

das transformações e das revoluções regradas” (Ibid., p. 76) – o qualificativo “regrado”

realça a lógica estruturada das transformações segundo os princípios do campo em que

essas se dão. Isso nos leva a constatação de que, teoricamente, não há uma verdadeira

51
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

ruptura, em todos os sentidos desse termo, com a estrutura precedente, na verdade há

apenas o desdobramento das possibilidades estruturais já implícitas no campo.

De toda forma, mesmo que Bourdieu tenha buscado evidenciar, em suas

argumentações – por vezes em resposta às críticas recebidas –, que seu arcabouço teórico

também contemplava os processos de transformação, suas análises empíricas pouco se

concentraram nessa dimensão. Pelo contrário, a situação de quase perfeita “cumplicidade

ontológica” entre habitus e campo, que pressupõe os processos de reprodução, tem sido

sistematicamente privilegiada – vide o exemplo de uma de suas principais obras, cujo

título, A reprodução, já evidencia previamente os rumos de sua análise. Pressupondo que

o trabalho empírico de Bourdieu sempre esteve na base de suas formulações teóricas,

podemos aventar a hipótese de que, dada a prioridade que o autor deu às grandes crises,

concernentes a mudanças importantes em nível institucional – que normalmente se dão

em longo prazo –, tomando-as como referência empírica de sua argumentação sobre a

dinâmica social, é possível se compreender sua tendência a ver mais reprodução que

transformação no espaço social:

O habitus como sistema de disposições de ser e de fazer constitui uma


potencialidade, um desejo de ser que, de certo modo, busca criar as
condições de sua realização, portanto a impor as condições mais
favoráveis ao que ele é. Salvo algum transtorno importante (por
exemplo, uma mudança de posição), as condições de sua formação são
também as condições de sua realização. (BOURDIEU, 2007, p. 182,
grifo nosso)

É nesse sentido que Lahire (2010, p. 30) prossegue sua crítica à Bourdieu,

acusando-o de “negligenciar todas as pequenas crises ou médias que os atores são levados

a viver no seio de uma sociedade diferenciada”. E completa: “crises de adaptação, crises

de ligação de cumplicidade ou de conivência ontológica entre o incorporado e a situação

nova, estas situações são numerosas, multiformes nas sociedades diferenciadas”.

52
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

Seguem-se alguns exemplos de possíveis situações de desencadeamento dessas crises:

deslocamentos mais ou menos forçados de um universo para outro – serviço militar,

prisão, imigração...; transformações importantes na trajetória individual – decadência

social, casamento, divórcio, aposentadoria...; descompasso entre certas propriedades

sociais do ator e as de seu meio social – a mulher ocupa um cargo socialmente

considerado como masculino e vice-versa... (LAHIRE, 2002). Tendo em vista as variadas

e variáveis situações que rodeia os indivíduos, demandando-lhes, imperativamente, um

posicionamento, Lahire, sem desprezar os momentos de reprodução estrutural, chama a

atenção também para aqueles em que a transformação é necessária:

Mudar de contexto (profissional, conjugal, familiar, de amizade,


religioso, político, etc.), é mudar as forças que agem sobre nós. E se as
forças exigem às vezes, de nós, coisas que não podemos dar, então não
temos, em geral, outra escolha além de encontrar uma outra maneira de
continuar a viver – o menos mal possível – no mesmo contexto
(adaptação mínima), de mudar o contexto (fuga) ou de transformá-lo
radicalmente para que ele seja passível de ser vivido (reforma e
revolução). Da natureza de contextos que somos levados a atravessar
depende a força de inibição ou de rejeição de uma parte mais ou menos
importante de nossa reserva de maneiras de ver, de sentir e de agir das
quais somos portadores. (LAHIRE, 2010, p. 34)

Além de enrijecer o habitus, o conceito bourdieusiano de campo – quando deixa

de ser uma teoria regional do mundo social para se tornar uma teoria geral e universal

(LAHIRE, 2002) – ainda traz, pelo menos, mais dois outros empecilhos para uma

compreensão mais acurada das práticas sociais: ele estabelece a unicidade do aparato

disposicional dos sujeitos, além de circunscrevê-lo aos seus limites.

No que concerne à primeira problemática, ela se sustenta no pressuposto do


ajustamento disposição-posição que pode ser vislumbrado na seguinte afirmação de
Bourdieu (1981, p. 306): “a mesma história habita simultaneamente o habitus e o habitat,
as disposições e a posição, o rei e sua corte, o empregador e sua empresa, o bispo e seu
bispado”. Tudo se passa como se fosse possível definir o sujeito e explicar as suas
práticas, nas mais diversas situações, a partir do seu posicionamento num determinado

53
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

campo, já que o habitus, por esse constituído, seria responsável por certa unicidade no
estilo de vida daquele sujeito:

A correspondência que se observa entre o espaço das posições sociais e


o espaço dos estilos de vida resulta do fato de que condições
semelhantes produzem habitus substituíveis que engendram, por sua
vez, segundo sua lógica específica, práticas infinitamente diversas e
imprevisíveis em seu detalhe singular, mas sempre encerradas nos
limites inerentes as condições objetivas das quais elas são o produto e
as quais elas estão objetivamente adaptadas. (BOURDIEU, 1983b, p.
82-83, grifo nosso)

De fato, o habitus funciona, quando atrelado à relativa autonomia do campo,

enquanto princípio “sistemático” e “unificador” das práticas: ele “permite construir e

apreender de maneira unitária as dimensões da prática que geralmente são estudas em

uma ordem dispersa” (BOURDIEU; WACQUANT, 1995, p. 90). Nesse sentido, emerge,

sugestivamente, a seguinte máxima quanto ao complexo de práticas geradas pelo habitus:

“todas as práticas e as obras de um mesmo agente são, por um lado, objetivamente

harmonizadas entre si, fora de qualquer busca intencional da coerência, e, por outro,

objetivamente orquestradas, fora de qualquer concertação consciente, com as de todos os

membros da mesma classe” (BOURDIEU, 2008, p. 164, grifo nosso). Diante dessa

construção teórica, a crítica de Lahire é bastante coerente. Segundo esse autor, o

pensamento bourdieusiano tende a generalizar o caso particular de um longo processo de

socialização através de contextos sociais relativamente homogêneos – algo que ele

constatou, por exemplo, numa sociedade tradicional fracamente diferenciada como a

sociedade cabila –, visando dar conta daqueles processos de socialização marcados pela

heterogeneidade contextual:

A coerência dos hábitos ou esquemas de ação (esquemas sensório-


motores, esquemas de percepção, de apreciação, de avaliação...), que
cada ator pode ter interiorizado, depende, portanto, da coerência dos
princípios de socialização aos quais esteve sujeito. Uma vez que um

54
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

ator foi colocado, simultânea ou sucessivamente, dentro de uma


pluralidade de mundos sociais não homogêneos, às vezes até
contraditórios, ou dentro de universos sociais relativamente coerentes
mas que apresentam, em certos aspectos, contradições, então trata-se de
um ator com o estoque de esquemas de ações ou hábitos não
homogêneos, não unificados, e com práticas conseqüentemente
heterogêneas (e até contraditórias), que variam segundo o contexto
social no qual será levado a evoluir. (LAHIRE, 2002, p. 31)

Essa postura permite, por exemplo, que Lahire (1995) compreenda de maneira

mais acurada a condição dos trânsfugas de classe, cuja trajetória em heterogêneos campos

de socialização fez com que eles incorporassem um complexo disposicional variado e por

vezes conflitante. Nesse sentido, para recuperar o título de um de seus livros, longe de

ser singular, o homem seria plural devido à pluralidade de seus processos de socialização.

Quanto à problemática do necessário atrelamento que Bourdieu realiza entre o

habitus e o campo, Lahire levanta o seguinte questionamento: “se principalmente os

habitus, como sistemas de disposições, são específicos aos campos, pode-se

legitimamente perguntar pelo que se constitui cognitivamente, afetivamente e

culturalmente fora desses campos” (LAHIRE, 2002, p. 35). A procedência de tal

questionamento se deve ao fato de que o conceito de campo, que se volta aos espaços

fortemente institucionalizados, exclui, dessa forma, diversos outros espaços e momentos

de socialização capazes de favorecer a formação de esquemas de pensamento, sentimento

e ação:

O universo familiar, por exemplo, não é, propriamente falando, um


campo, como também os encontros ocasionais de amigos num bar, os
encontros amorosos ou as práticas de velejar no verão ou de escalar não
constituem situações que possam ser atribuídas a um campo social
particular. Ao contrário do que as fórmulas mais gerais possam fazer
pensar, nem toda interação social, nem toda situação social pode ser
atribuída a um campo. (LAHIRE, 2002, p. 34)

55
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

Com isso, o pensamento de Lahire é totalmente contrário à redução do aparato

disposicional dos atores aos seus habitus de campo, justamente porque suas experiências

vão além daquelas vividas no contexto de um campo. Mais que isso, ao recusar tal

perspectiva redutora, Lahire busca dar existência específica àqueles sujeitos que se

definem socialmente fora da circunscrição do campo – por exemplo, “é o caso ainda de

numerosas donas-de-casa sem atividade profissional ou pública” (LAHIRE, 2002, p. 35).

Se a teoria praxiológica proposta por Bourdieu, ao invés de se contentar em

simplesmente deduzir o aparato disposicional dos sujeitos a partir das práticas sociais –

alimentares, esportivas, culturais, etc. –, mais frequentemente observadas – em termos

estatísticos – nas investigações, e se voltasse à compreensão sistemática dos processos de

socialização responsáveis pela construção, inculcação, incorporação e transmissão de

disposições, talvez não tivesse operado a redução do social às interações no interior dos

campos e, com isso, talvez não tivesse sistematizado seu conceito de habitus de maneira

a caracterizá-lo tão fortemente com o aspecto da unicidade. Assim como ressalta Lahire

(2008, p. 377), “é difícil compreender totalmente uma disposição sem reconstituir sua

gênese”, por isso, torna-se imperativo ao pesquisador buscar compreender as “as

condições e modalidades de sua formação”.

Tendo ressaltado a importância do contexto presente da ação e, em seguida,

evidenciado a condição plural do aparato disposicional dos sujeitos, que não se restringe

ao nem procede inteiramente do campo, Lahire (2002) prossegue sua elaboração teórica

enfatizando uma tarefa que se coloca ao pesquisador: compreender a relação entre o

passado incorporado e a situação presente. Nesse sentido, é de fundamental importância

o direcionamento do olhar para as condições e possibilidades da ativação dos esquemas

disposicionais, o que nos leva aos seguintes processos: a transferibilidade – quando

56
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

disposições, surgidas em determinados contextos, são mobilizados em outros – e o

conflito disposicional – quando a situação mobiliza disposições conflitantes entre si, pois

originárias de contextos antagônicos. Além dos processos de ativação, o pesquisador

também deve estar atento tanto aos momentos nos quais certos esquemas são postos em

estado de dormência (inibição) – “porque cada um de nós pode ser portador de uma

multiplicidade de disposições que não acham sempre os contextos de sua atualização” –

quanto àqueles momentos que solicitam a transformação do aparato disposicional de

modo a adequá-lo a uma nova situação – “porque nós podemos ser desprovidos de boas

disposições que permitam fazer face a algumas situações mais ou menos inevitáveis em

nosso mundo social multidiferenciado” (LAHIRE, 2008, p. 388).

3. Considerações finais: contribuições de Bourdieu e Lahire à sociologia

disposicionalista

Apesar das limitações já delineadas, é possível se afirmar que os trabalhos

praxiológicos empreendidos por Bourdieu são os responsáveis pela sistematização

teórico-metodológica que foi capaz de evidenciar, com certo grau de cientificidade, uma

dimensão do social que, até então, só era alcançada de maneira mais ou menos

especulativa: o social incorporado. Isso porque, ao implementar um processo rigoroso de

classificação das práticas sociais, conseguiu alcançar “as formas de classificação

originárias”, os esquemas do habitus, que revelam a própria organização estrutural do

complexo social, permitindo assim a classificação dos próprios agentes sociais

(BOURDIEU, 2008). Para a evolução de uma sociologia disposicionalista, trata-se aí de

um empreendimento de valor inestimável.

57
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

No entanto, aos poucos se tornou imperativo dar um passo além dessa

contribuição, justamente porque, em seus desenvolvimentos, constatou-se que amplas

dimensões do social estavam sendo descuradas: a insistência em relacionar as disposições

(habitus) dos sujeitos aos espaços (campos) profundamente institucionalizados do espaço

social estava causando sérios impedimentos à compreensão tanto daquelas práticas que

estão aquém e além de uma instituição quanto dos fenômenos de mudança social – já que

devido à pressuposição de uma “cumplicidade ontológica” entre habitus e campo, há uma

tendência da análise bourdieusiana a privilegiar os processos de reprodução. Assim,

buscando superar tais limitações, Lahire nos propõe sua sociologia à escala individual

que, ao se abrir à compreensão das condições e modalidades de formação do aparato

disposicional dos sujeitos, consegue evidenciar, de forma sistemática, os momentos de

criação, reprodução e transformação dos esquemas incorporados. Diferentemente de

Bourdieu, que tende a privilegiar o passado incorporado enquanto determinante das ações

dos sujeitos, Lahire retoma a importância do contexto presente à luz do qual o passado

incorporado é atualizado. Enfim, se com Bourdieu, a percepção da reprodução social

parece tão acentuada – apesar de não necessária (WACQUANT, 2007) –, com Lahire, o

social nunca é estanque, pois está sempre a se ajustar, a se adaptar, buscando superar as

crises que, mesmo sendo pequenas, sempre estão presentes.

58
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

REFERÊNCIAS
AQUINO, Santo Tomas de. Suma de Teologia. Tomo II. 2. ed. Madrid: Biblioteca de
Autores Cristianos, 1989a.
______. Suma de Teologia. Tomo III. 2. ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1989b.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In. ______. Aristóteles: Metafísica; Ética a
Nicômaco; Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 47-236. (Coleção Os Pensadores).
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto
Alegre: Zouk, 2008.
______. Esboço de uma teoria da prática. In. ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu:
sociologia. São Paulo: Ática, 1983a, p. 46-81. (Grandes cientistas sociais, 39).
______. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu:
Sociologia. São Paulo: Ática, 1983b, p. 82-121 (Coleção Grandes Cientistas Sociais, 39)
______. Meditações pascalianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
______. Men and machines. In. KNORR-CETINA, Karin; CICOUREL, Aaron (orgs.).
Advances in social theory and methodology: toward an integration of micro- and macro-
sociologies. Londres-Boston: Routledge & Kegan Paul, 1981, p. 304-317.
______. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: Sociologia. São
Paulo: Ática, 1983c, p. 122-155. (Coleção Grandes Cientistas Sociais, 39)
______. O poder simbólico. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
______. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009.
______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 11. ed. Campinas: Papirus, 2011.
______. Structuralism and theory of sociological knowledge. Social Rechearch, New
York, v. 5, n. 4, p. 681-706, 1968.
______; WACQUANT, Loïc. Respuestas: por una antropología reflexiva. México:
Grijalbo, 1995.

DUNNING, Eric; MENNELL, Stephen J. Prefácio à edição inglesa. In. ELIAS, Norbert.
Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997, p. 7-14.
DURKHEIM, Émile. A evolução pedagógica em França. Revista Educação, Sociedade
& Culturas, Porto, n. 2, p. 171-119, 1994.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

59
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

LAHIRE, Bernard. Esboço do programa científico de uma sociologia psicológica. Revista


Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 34, n.2, p. 373-389, maio/ago. 2008.
______. Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.
______. Por uma sociologia disposicionalista e contextualista da ação. In. JUNQUEIRA,
Lília. Cultura e classes sociais na perspectiva disposicionalista. Recife: Ed. Universitária
da UFPE, 2010, p. 17-36.
______. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática,
1997.
MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In. ______. Sociologia e antropologia. São
Paulo: Cosac Naify, 2003, p. 399-422.
SCHUTZ, Alfred.; LUCKMANN, Thomas. Las estructuras del mundo de la vida. Buenos
Aires: Amorrortu, 2003.
VANDENBERGHE, Frédéric. Teoria social realista: um diálogo franco-britânico. Belo
Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2010.
VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições.
São Paulo: Pioneira, 1965.
WACQUANT, Loïc. Esclarecer o habitus. Educação & Linguagem. São Bernardo do
Campo, ano 10, n. 16, p. 63-71, jul/dez 2007.
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva –
Volume 1. 4. ed. Brasília: Editora UnB, 2000.

60
Estudos de Sociologia, Recife, 2018, Vol. 2 n. 24

FROM BOURDIEUSIAN PRAXIOLOGY TO LAHIRE'S PSYCHOLOGICAL


SOCIOLOGY: ESTABLISHING A DIALOGUE DISPOSITIONALIST

ABSTRACT
Present since Aristotle’s reflections, of the scholastics and classical sociologists until
contemporary sociology, the notion of habitus remains one of the most proficuous
pathways to understand the subjects’ actions as being socially structured. Through
Bourdieu studies, that notion’s earned a broad theoretical and methodological
systematization, which gave him a scientistic aspect. Lahire assimilated, critically, the
bourdieusian analysis in the development of its psychological sociology, extending the
heuristic possibilities of the habitus’ notion in order to include other dispositional
structures. To establish a dialogue between Bourdieu and Lahire is the main objective of
this paper, which will seek: 1) to outline a brief genesis of the concept of habitus; 2) to
expose Bourdieu and Lahire’s perspectives about this concept; 3) to point out the
similarities and differences between these authors with regard to the notion of habitus;
and 4) to delineate their contributions to the establishment of a dispositionalist sociology.

KEYWORDS
Habitus. Dispositions. Praxiology. Psychological Sociology.

61

Você também pode gostar