Os Sonhadores - Laura Hankin

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O Arqueiro
GERALDO JORDÃO PEREIRA (1938-2008) começou sua carreira aos 17
anos, quando foi trabalhar com seu pai, o célebre editor José Olympio,
publicando obras marcantes como O menino do dedo verde, de Maurice
Druon, e Minha vida, de Charles Chaplin.

Em 1976, fundou a Editora Salamandra com o propósito de formar uma


nova geração de leitores e acabou criando um dos catálogos infantis mais
premiados do Brasil. Em 1992, fugindo de sua linha editorial, lançou Muitas
vidas, muitos mestres, de Brian Weiss, livro que deu origem à Editora
Sextante.

Fã de histórias de suspense, Geraldo descobriu O Código Da Vinci antes


mesmo de ele ser lançado nos Estados Unidos. A aposta em ficção, que
não era o foco da Sextante, foi certeira: o título se transformou em um dos
maiores fenômenos editoriais de todos os tempos.

Mas não foi só aos livros que se dedicou. Com seu desejo de ajudar o
próximo, Geraldo desenvolveu diversos projetos sociais que se tornaram
sua grande paixão.
Com a missão de publicar histórias empolgantes, tornar os livros cada vez
mais acessíveis e despertar o amor pela leitura, a Editora Arqueiro é uma
homenagem a esta figura extraordinária, capaz de enxergar mais além,
mirar nas coisas verdadeiramente importantes e não perder o idealismo e
a esperança diante dos desafios e contratempos da vida.
Título original: The Daydreams

Copyright © 2023 por Laura Hankin


Copyright da tradução © 2024 por Editora Arqueiro Ltda.

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida
sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito
dos editores.

coordenação editorial: Taís Monteiro


produção editorial: Ana Sarah Maciel
preparo de originais: Sheila Til
revisão: Ana Grillo e Rachel Rimas
diagramação: Guilherme Lima e Natali Nabekura
adaptação de capa: Natali Nabekura
capa: Zero-media
e-book: Marcelo Morais

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
H218s
Hankin, Laura
Os sonhadores [recurso eletrônico] / Laura Hankin ;
tradução Carolina Rodrigues. - 1. ed. - São Paulo : Arqueiro,
2024.
320 p., recurso digital

Tradução de: The daydreams


Formato: e-book
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-5565-653-4 (recurso eletrônico)

1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Rodrigues,


Carolina. II. Título.

24- CDD: 813


89038 CDU: 82-3(73)

Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643


Todos os direitos reservados, no Brasil, por
Editora Arqueiro Ltda.
Rua Artur de Azevedo, 1767 - conjunto 177 – Pinheiros
05404-014 – São Paulo - SP
Tel.: (11) 3868-4492 – Fax: (11) 3862-5818
E-mail: [email protected]
www.editoraarqueiro.com.br
Para Dave,
que me ajudou a acreditar em segundas chances
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Epílogo
Agradecimentos

Sobre a autora

Sobre a Arqueiro
1
••••••

2018

Todos nós tínhamos um papel. O meu era A Escrota.


Ou, como a emissora que exibia nossa série preferia,
para usar uma linguagem adequada a famílias: A Garota
Má. Uma vilã dissimulada e com uma sobrancelha que
arrasava qualquer um. Um leve arquear e eu
transformava até mesmo o insulto mais bobo em um tipo
de escárnio que deixaria a pessoa sem dormir. (Minha
sobrancelha fez muita ginástica.)
Liana era A Melhor Amiga, acolhedora e verdadeira, a
que podia ser engraçadinha, sempre longe do centro das
atenções.
Summer e Noah eram Os Astros e Os Pombinhos Que
Nunca Conseguem Ficar Juntos. Adolescentes lindos e
maravilhosos, praticamente feitos em laboratório para
entrarem cantando e dançando em nossos corações.
Summer se derretia por Noah – assim como milhões de
garotas. Noah era louco por Summer – e milhões de
homens eram loucos para que ela completasse 18 anos.
Interpretávamos um grupo de alunos do ensino médio
que tinha uma banda. Durante as duas temporadas da
série, as aparições em shows e o último episódio ao vivo
– que abriria caminho para um filme de sucesso –, as
histórias se alternavam entre a carreira musical
promissora da banda e o drama escolar, que era tão
estéril que a gente parecia viver num mundo onde os
bebês eram trazidos por cegonhas.
O nome da série era Os sonhadores e, nos 13 anos
desde que deu tudo absurdamente errado na
transmissão ao vivo do nosso último episódio, tenho
tentado deixar o passado para trás. Ainda assim, aqui
estou, escondida no meu escritório, morrendo de medo,
estreitando os olhos para o link do vídeo que pode me
sugar de volta para o caos do qual me esforcei tanto para
fugir.
Aliás, agora sou advogada. E estou batalhando para
me tornar sócia do escritório em que trabalho. Uso
roupas mais sérias, e as pessoas que encontro
presumem que sou a versão da vida real da namorada
chata da cidade grande que não curte o Natal naqueles
filmes românticos de fim de ano. Mas, às vezes, dou uma
derrapada no disfarce. Acabo esquecendo e usando a
sobrancelha devastadora com um cliente difícil que tem
um filho que assistia à série ou uma secretária que era
pré-adolescente bem naquela época. Nesse momento
tudo se encaixa para eles: a Katherine que responde com
paciência a todos os e-mails urgentes que eles enviam às
nove da noite de sexta-feira é na verdade Kat, que,
durante alguns anos gloriosos e estranhos, foi uma das
protagonistas de um fenômeno das telinhas. O interesse
deles em mim se renova, e me perguntam por que
abandonei Hollywood e se um dia eu voltaria. “Ser
estrela de TV não chega aos pés de fusões e aquisições”,
respondo com um sorriso, e geralmente funciona.
Mas teve uma vez que um homem de negócios de
meia-idade insistiu no assunto. “Sabia que aquela
Summer Wright ia...”, começou ele. Derrubei minha
xícara de café no colo do sujeito, e a conversa foi
encerrada.
Liana também assumiu um novo papel: A Esposa. O
marido dela joga no Texas Rangers e tem batido todos os
recordes, mas não entendo nada disso porque não
acompanho esportes. Ela fica ótima na arquibancada
assistindo aos jogos dele, mais decidida e glamourosa do
que era na série. Já nas fotos dos tabloides, com as
manchetes especulando quando Liana e Javier vão ter
um filho, ela não fica tão ótima.
Mas você quer saber dos Astros. É o que todos sempre
querem.
Não falei com nenhum dos dois desde o último
episódio e tenho mais o que fazer do que ficar sentada
atualizando páginas de redes sociais o dia todo. Ainda
assim, não vivo em outro planeta, então eis o que sei:
Noah é o único de nós que não mudou de papel. Aliás,
ele ficou ainda mais maravilhoso, com uma indicação ao
Oscar no bolso e inúmeros boatos sobre qual será seu
próximo grande projeto. Os burburinhos sobre sua vida
amorosa também cresceram, agora que ele e a
namorada de longa data terminaram. Desejo a ele tudo
de pior.
E Summer. A etérea Summer, com seus olhos
imensos, que tinha todo o potencial do mundo. Ela é A
Que Serve de Lição.
Não quero que o que fiz nas telas no passado defina a
forma como os outros me veem, nem que o que fiz fora
das telas defina como eu mesma me vejo. No entanto, no
momento me vejo encarando o vídeo no celular, com o
título “Exclusiva da Janela da Fama: Entrevista com Noah
Gideon”. Meu namorado, Miheer, me enviou durante
minha reunião com um cliente, além de algumas
mensagens de texto. A primeira foi:
Estão falando de você on-line!
Em seguida:
Ih, a coisa vai ficar feia.
E, por fim:
Compro vinho quando for pra casa.
Enquanto meu cliente falava em um tom monótono, a
vibração do celular no meu bolso aumentava – uma
notificação atrás da outra –, até parecer que eu estava
sentada em um vibrador. Dei uma desculpa e fugi para o
escritório, sabendo que alguma coisa relacionada a Os
sonhadores devia ter acontecido. Alguma coisa
importante. Provavelmente ruim.
Meu coração dispara. Dou o play.
2
••••••

2018

Lá está ele na tela do meu celular: Noah, com uma barba


bem-feita e olhos azuis vívidos, esparramado em uma
cadeira. A entrevistadora – na casa dos 20 anos, toda
risonha, magra como eu mesma era antes de abandonar
Hollywood e começar a comer pão – se inclina para a
frente, quase ofegando de tanta empolgação. Seu
entusiasmo não parece afetar Noah. Ele está acostumado
a ser idolatrado.
– É muito legal poder conversar com você hoje sobre o
seu novo filme maravilhoso, Gênio! – diz ela.
– Obrigado por me receber – responde Noah.
A entrevistadora indica o pôster atrás deles, de algum
filme horroroso criado por computação gráfica que
provavelmente vai faturar milhões de dólares.
– Você é a voz de um funcionário de TI que fica preso
em um computador que está consertando. É claro que eu
quero saber tudo sobre o trabalho de composição do
personagem.
Noah dá um sorriso cheio de charme para a jovem.
– Foi difícil, levando em conta que as minhas
habilidades tecnológicas só vão até: “Tenta desligar e
ligar de novo.”
– Aah, tenho certeza que não é verdade!
– Tem razão, não é – diz ele, com o semblante sério. –
Também sou bom em colocar coisas pra secar no arroz.
– Muito engraçado – elogia ela. – Mas, antes que a
gente fale mais sobre o filme, meu eu de 14 anos me
mataria se eu não perguntasse sobre Os s ­ onhadores.
– Ai, não – diz Noah. – Tem certeza?
– Nós, fãs, ainda não superamos, Noah!
Isso acontece algumas vezes: os entrevistadores
lançam uma ou duas perguntas de leve para Noah sobre
a série antes de seguir em frente. (Não que eu assista a
todas as entrevistas de Noah! Eu tento evitá-las, porque
em geral fico furiosa ao ver todo mundo bajulando o
sujeito como se ele fosse um deus grego. Mas foram
longos 13 anos e, às vezes, eu tenho uma recaída.)
A jovem se vira para a câmera.
– Acho que todos nós concordamos que o último
episódio ao vivo da segunda temporada foi um pouco...
como posso dizer... conturbado?
– Claro, “conturbado” é uma boa palavra.
Noah sorri como se entrasse na brincadeira. Essa é a
estratégia dele desde que a série implodiu. Ele entra na
brincadeira enquanto o restante de nós é o alvo dela.
Ainda assim, tem coisas que a gente não esquece a
respeito de alguém, principalmente se no passado você
tivesse sido uma das melhores amigas da pessoa e
tivesse uma baita queda por ela. Noah não costuma ficar
nervoso – o mundo é gentil demais com ele até hoje –,
mas, quando fica, transfere sua ansiedade para o
calcanhar. Olho para baixo – a tomada é ampla – e lá está
seu pé, batendo no chão.
Tenho certeza de que ele fez um acordo de
cavalheiros com a emissora para não falar muito sobre o
assunto. Além do mais, todos assinamos algo, muito
tempo atrás, que garantia que não diríamos nada que
manchasse a marca Atlas, e qualquer fala pública sobre o
último episódio que não tivesse sido meticulosamente
planejada por um time de relações públicas sem dúvida
corria o risco de manchar. Mesmo assim, a entrevistadora
vai em frente.
– O que se dizia era que, no fim da última temporada,
ia ter um gancho para um filme. Talvez uma redenção
pra Kat, um solo pra Liana, um grande contrato da banda
com uma gravadora.
Logo depois de sermos escalados, o criador da série
mudou de ideia e decidiu que os personagens teriam o
mesmo nome de seus respectivos intérpretes. Foi uma
jogada de mestre que apagou os limites entre ficção e
realidade. Nossos fãs achavam que a gente interpretava
versões de nós mesmos. Que eu odiava mesmo a
Summer. Que Liana faria qualquer coisa por ela. E que
Noah a amava do jeito mais puro e único que existia.
Algumas coisas eram verdadeiras. Mas, às vezes, o que
acontecia nos bastidores estava bem longe do que a
censura teria permitido.
A entrevistadora continua:
– Mas o meu eu de 14 anos ficou mais empolgado com
o boato de que você e a Summer iriam finalmente se
beijar, depois das várias vezes em que isso quase
aconteceu. – Ela começa a contar nos dedos. – O quase
beijo no baile dos alunos antigos da escola, que a Kat
interrompeu! O quase beijo no parque de diversões,
quando a Kat trava a roda-gigante! O quase...
– Você sabe todos de cabeça, hein? – interrompe
Noah.
– Claro que sei. Teve até um quase beijo meio confuso
na transmissão ao vivo, logo antes de a Summer sair do
roteiro. E aí a emissora cortou a exibição, então a gente
nunca viu o fim da cena! Milhões de telespectadores
ficaram arrasados. O tempo que passei em sites de
fanfiction tentando superar esse trauma... bom, é
constrangedor. Então, por favor, fale mais pra gente
sobre o que deveria ter acontecido.
Noah engole em seco, ainda com o sorriso estampado
no rosto.
– Sabe, hoje em dia eu mal me lembro daquilo. Mas o
que eu sei é que serei eternamente grato à série por ter
lançado a minha carreira. – Ele muda de assunto como se
fosse mestre em fazer isso. – Aliás, posso contar mais
sobre Gênio e...
– Já, já! Mas primeiro... estamos em uma época de
refilmagens. Então, o que acha? Você consideraria voltar
pra um reencontro e dar aos fãs o final que eles querem
há 13 anos?
O que essa garota está fazendo? Algum assistente
deve ter se esquecido de instruí-la a respeito dos
assuntos proibidos. Ou isso, ou ela se revoltou em busca
de uma manchete, mandou a cautela pelos ares para
aparecer na internet e que se dane o acordo de
cavalheiros. O relações-públicas de Noah nunca mais vai
deixar que ela o entreviste.
– Acho que eu diria...
Ele faz uma pausa de poucos segundos, mas parece
durar para sempre. Seu pé bate tão rápido no chão que
ele poderia ser o protagonista de um musical da
Broadway. Se fosse em outro momento, eu adoraria ver
Noah se contorcer, incomodado. Mas não agora, não em
relação a isso.
Não, não, não, penso, mesmo já sabendo qual vai ser
a resposta. Ele não tem escolha. Essa entrevistadora
toda risonha e animada o encurralou. Noah se recosta e
solta uma frase casual que vai deixar minha vida muito
difícil:
– Se as meninas toparem, eu topo também.
3
••••••

2018

Para surpresa de ninguém, um fã apaixonado já criou


uma petição – Refilmem o último episódio da segunda
temporada de Os sonhadores! – e milhares de pessoas
assinaram. No tempo que levo para ler o texto por alto,
aparecem mais mil assinaturas.
Já sei que vou me arrepender, mas entro no Twitter:
#ReencontroSonhadores já está nos trends. Em meio ao
clamor e à empolgação, algumas pessoas postaram GIFs
do último episódio desastroso: um zoom lento no meu
rosto atônito, Noah com uma expressão de quem está
segurando o choro, Liana interrompendo sua coreografia
no meio de um giro.
E, é claro, para seguir uma das leis imutáveis da
internet – do mesmo nível de “Até os sites que parecem
inofensivos estão coletando seus dados” e “Se existe, já
fizeram um pornô dele” –, sempre que Os sonhadores
fica em alta aparece alguém postando um vídeo dos
últimos segundos antes de a emissora cortar a
transmissão. Ali, na tela, capturada para sempre, a curva
dos peitos de Summer aparece por cima de seu gracioso
vestido amarelo e reacende o debate on-line: aquilo é
uma sombra criada pela iluminação ou é o mamilo dela?
Lógico que nos últimos 13 anos um monte de tarados
se voluntariou para resolver o mistério, dando zoom e
manipulando digitalmente a pele de Summer com o tipo
de devoção que em geral é reservada a detetives
caçando assassinos em série.
Vejo o debate on-line – a curiosidade doentia, a
preocupação por ela, a opinião ocasional de que na
verdade deveríamos dirigir nossas críticas à Atlas, a
empresa que expôs crianças à fama e virou as costas
para elas no minuto em que cresceram e demonstraram
algum traço de sexualidade! – até que me sinto enjoada,
o pânico ameaçando cortar meu oxigênio. Então entro
em reunião com mais um cliente, um engravatado de um
banco importante que está sendo um babaca teimoso a
respeito de uma exigência contratual. Ele me olha com
uma expressão esquisita. É porque estou distraída ou
porque ele anda atento às fofocas das celebridades?
Pigarreio, volto do mundo da lua e exponho um plano
de como podemos, com mais eficácia, ferrar a
companhia menor com quem ele está querendo fazer
negócio.
É, eu sei que o mundo corporativo jurídico não é o
melhor lugar para uma mulher que está tentando não ser
tachada de escrota. Vou ser clara: eu queria salvar
crianças e/ou baleias. Mas, embora os empregos sem fins
lucrativos e altruístas não paguem bem, eles são os mais
difíceis de conseguir. Muitos advogados querem sentir
que são boas pessoas por alguns anos antes de passar o
resto da carreira defendendo empresas farmacêuticas.
Tentei dez cargos altruístas e passei por rodadas de
entrevistas só para ser rejeitada em todas. Aí tentei um
cargo em uma firma corporativa de médio porte e recebi
uma oferta na semana seguinte, então aqui estou.
Além disso, assim que eu virar sócia, as coisas vão
mudar. Minha mentora, Irene, a mulher mais experiente
na firma, começou a atender clientes que não tinham
como pagar no minuto em que virou sócia. Ela garante
que vou poder fazer o mesmo e que estou bem perto
disso. Logo vou poder usar os recursos da firma para
ajudar pessoas que em geral não teriam condições de
pagar por nossos serviços. Pessoas que estão tentando
começar o próprio negócio e que, digamos, precisam de
proteção contra os predadores que tentam tirar
vantagem delas. Se eu puder realmente fazer a diferença
na vida de pelo menos algumas pessoas a cada ano... é
esse pensamento que me leva adiante. Graças a Os
sonhadores, sei muito bem o que acontece quando não
há ninguém pra te defender.
– Bom – diz o cliente, quando termino de falar –, fico
feliz por ter a garota má ao meu lado nessa.
Então é fofoca de celebridades. Ranjo os dentes e
abro um sorriso enquanto o acompanho até a porta.
Quando volto para meu telefone, tem seis novas
mensagens de voz, que escuto debruçada sobre minha
mesa, a maioria de jornalistas pedindo declarações. Mas
minha antiga agente, com quem não falo há anos,
também me deixou uma gravação:
Kat, querida! A Atlas ficou muito interessada nesse
reencontro depois de ver a resposta dos fãs. Estão
oferecendo uma boa quantia por um contrato de um
mês. E isso ainda vai dar uma turbinada na sua marca e
pode ser um ótimo trampolim para voltar à TV, ou pelo
menos fazer alguns comerciais. Sempre achei que você
era a cara da Geico. Me liga!
Não tenho interesse nenhum em dar uma turbinada
na minha marca nem em ser a cara de uma empresa de
seguros. Então mando uma mensagem de texto para ela.
Lamento, mas no momento isso não é o melhor pra
mim. Aliás, agora é Katherine. Obrigada e espero que
esteja bem.
Ela responde:
Liana já confirmou que topa e está muito animada,
então só estamos esperando você e a Summer. Pelo
menos promete que vai pensar!
Eu paro, sentindo que algo me impede de enviar a
recusa imediata que sei que deveria. Talvez valha a pena
esperar a recusa de Summer também, para que eu não
seja a única babaca na história. Não tem a menor chance
de ela querer voltar, não depois da forma como tudo
terminou. Minhas mãos estão tão suadas que preciso
secá-las na saia antes de responder:
Tá legal, vou pensar.
4
••••••

2018

Miheer, essa criatura maravilhosa, me oferece uma taça de


vinho assim que chego em casa.
– Você está bem? – pergunta ele, no instante em que
entro pela porta do nosso apartamento, em Logan Circle.
Não respondo. Só vou até ele e me apoio em seu peito.
– Um dia e tanto, hein? – continua ele.
Solto um gemido gutural, e ele ri e me entrega a taça.
Eu bebo tudo sem ligar para gosto ou textura ou qualquer
outra coisa para a qual em geral eu finjo ligar, entrelaçando
a outra mão na dele.
– Obrigada – digo, e estendo a taça pedindo mais.
– Quando vamos nos mudar para Los Angeles? –
pergunta ele.
– Que tal... nunca?
– Pra mim tá ótimo.
Ele sorri, meu namorado magrelo, lindo e confiável. (Se
bem que “namorado” não parece a palavra certa depois de
três anos juntos.) Nós nos jogamos no sofá, e tudo fica bem
normal. Temos uma boa TV, cinco plantinhas que ele rega
todo domingo e nossa rotina calma e fácil. Em algumas
noites da semana, até chego mais cedo, a tempo de jantar
com ele. Deito a cabeça em seu colo e ele me faz um
cafuné.
– Acha que vai ser estranho se os outros voltarem sem
você?
– Não, eu segui em frente – respondo, como se dizer isso
com firmeza fosse o suficiente para ser verdade.
Miheer não viu a série na adolescência. Apesar de ter
nascido nos Estados Unidos, ele retornou com a família
para a Índia quando tinha 10 anos e só voltou para cá
depois de começar a faculdade de direito, então perdeu o
fenômeno. Ele não fazia ideia da minha vida secreta de
estrela mirim até nosso terceiro encontro, quando tive a
sensação de que teria algo mais duradouro com ele e
decidi fazer logo a grande revelação. Deixei que ele
assistisse a um episódio para que pudesse me “entender”,
mas pedi que não se desse ao trabalho de ver mais do que
isso. Ele respeitou minha vontade. Ou talvez não quisesse
ver mais porque é adulto e está mais interessado em
coisas como direito ambiental do que em um enredo sobre
quem vai vencer o concurso de talentos da escola. Ele
encara minha breve carreira de atriz como algo banal da
minha adolescência, como se eu tivesse tirado um ano de
folga depois do ensino médio ou tivesse tido uma fase
gótica.
E, graças aos céus, ele nunca me pediu para fingir ser
minha personagem enquanto transávamos. Estremeço só
de lembrar quantos caras que pareciam normais me
levaram para a cama quando eu tinha 20 e poucos anos,
criaram um clima perfeito e então me pediram para erguer
a sobrancelha e dizer algo terrível. Estremeço mais ainda
ao lembrar que, algumas vezes, quando eu estava muito
sozinha ou com muito tesão, eu fiz.
– Sabe o que pode ser uma boa distração? – pergunta
ele, a mão ainda fazendo carinho no meu cabelo daquele
jeito bem amoroso. – A gente viajar no fim de semana.
Podemos pegar um belo quarto numa pousada pequena,
um desses lugares que parecem decorados pela tia-avó
meio doida de alguém.
Miheer não sabe disfarçar. Já estragou mais de uma
festa-surpresa para os nossos amigos, sem querer. E a fala
meio roteirizada sobre a tia-avó meio doida, o jeito casual
demais de sugerir uma viagem, como se tivesse treinado
na frente do espelho, tudo isso o entrega. É uma viagem
para me pedir em casamento.
Na primeira vez que conversamos sobre nosso futuro
juntos, falei que eu precisava de tempo para conquistar
meu espaço no escritório. Planejar um casamento que
satisfizesse os pais dele, uma viagem até a Índia para
celebrar com sua família, tirar uns dias para a lua de mel,
tudo isso me deixaria muito atrás dos caras que entraram
na firma comigo, rapazes mais novos que não tinham
gastado os últimos anos da adolescência tentando ser
famosos. “Me dá mais alguns anos”, pedi a Miheer, dois
anos atrás. Então eu já estava esperando isso. E querendo
muito. Quando penso em nós dois velhinhos e passeando
juntos pelo mundo, meu coraçãozinho gelado fica
ridiculamente meloso.
Mas agora a ansiedade me domina. Miheer acha que
não sinto falta dos “dias de glória” nem divirto as pessoas
com histórias da série durante jantares porque agora quero
ser levada a sério. Ou talvez ele ache que não curto me
lembrar do fim – de como fiquei paralisada, boquiaberta,
enquanto minha amiga surtava na frente de milhares de
pessoas.
É mais do que isso. Não gosto de quem eu era naquela
época – não só a pessoa que não ajudou Summer, mas a
pessoa que contribuiu para aquele surto, para começo de
conversa. Miheer não sabe disso, porque ninguém sabe. E
acho que ele não me amaria do mesmo jeito se um dia
descobrisse.
Ele me olha, fingindo indiferença, tentando esconder a
esperança que reluz em seus olhos. Droga, ele é uma das
melhores pessoas que conheço, alguém que está de fato
salvando crianças e/ou baleias, e não só para poder passar
por uma fase de altruísmo antes de entrar nos negócios
com tudo, mas por acreditar em causas nobres, como
transformar o mundo num lugar melhor.
O problema é que me apaixonei por um bom homem
que acha que sou boa também, que me trata com ternura,
como se eu fosse digna de um presente assim. Mas agora
essa entrevista idiota com Noah ressuscitou algo que
enterrei bem fundo em mim: culpa. Como posso permitir
que Miheer atrele sua vida alegremente à minha, como
posso viajar e comemorar com essa culpa me rondando?
Então finjo ignorância.
– Estou com tanto trabalho agora, acho que não consigo
dar uma escapada. – A decepção domina o semblante de
Miheer, e eu me inclino para a frente para beijá-lo. – Que
tal no fim do mês? É uma ideia muito boa mesmo.
No fim do mês, a ferida não vai parecer tão aberta. Só
preciso ficar o mais distante possível desse caos de Os
sonhadores. Deixar a culpa cansar e voltar para baixo da
terra, onde não posso vê-la. Aí, Miheer nem vai conseguir
terminar de dizer as palavras antes que eu grite Sim, mil
vezes sim.
Pego meu telefone e envio uma mensagem para minha
agente.
Não preciso pensar. Minha resposta é não.

••••••

No dia seguinte, chego ao trabalho de cabeça erguida. A


Atlas pode fazer o reencontro sem mim, se quiser – eu era
importante, mas não era uma Summer ou um Noah (algo
de que me lembravam o tempo todo naquela época). Este
escritório, esta vida, este é o meu lugar.
Um e-mail de Liana chega algumas horas depois:
Kat! Não vejo a hora de te encontrar de novo... Vai ser
mesmo uma experiência muito especial para os fãs! E
quem sabe você finalmente conheça meu marido. Ainda
não acredito que não apresentei vocês dois. Você vai
adorá-lo, ele é incrível.
Eu franzo a testa. Será que ela ainda não sabe que
recusei? Ou está tentando me deixar culpada o bastante
para mudar de ideia? Respondo desejando sorte no
reencontro e sugerindo bem vagamente um telefonema em
breve. Ela responde na hora, como se estivesse sentada
diante de sua caixa de entrada:
Você é tão engraçada! Agora para de bancar a difícil.
Eu ignoro.
No fim da tarde, nossa recepcionista bate à porta da
minha sala e enfia a cabeça pelo vão.
– Katherine, tem alguém aqui querendo falar com você.
– Eu tenho uma reunião em cinco...
– Eu sei – diz ela, o rosto ficando vermelho, o tom
profissional e resoluto. – Mas ela está insistindo. Ah!
Senhorita, hum...
A visita indesejada a seguiu até a porta da minha sala.
Ela passa pela recepcionista, ignora seus protestos fracos e
intimidados e se senta na cadeira diante da minha mesa.
Noto o short jeans desfiado e o moletom largo. Depois
reparo no cabelo louro, quebradiço e ressecado depois de
tantos anos de tintura. Minha boca fica seca. Só então me
volto para seus olhos imensos como os de uma princesa
em um desenho, fixos em mim.
– Kat – diz Summer. – Vamos sair pra beber.
DEVORANDO FOFOCA, 19 DE SETEMBRO DE 2012

TOP 5 MOMENTOS
MAIS LOUCOS DE
SUMMER WRIGHT!
Com a notícia de que Summer Wright vai para
uma clínica de reabilitação (segunda rodada!
Tomara que ela esteja bem!), reunimos os
momentos mais insanos dessa estrela caótica,
dos mais escandalosos aos quase violentos!

5. OQuem
Fracasso do Show de Retorno, 2007 –
achou que seria uma boa ideia
deixar Summer fazer um show ao vivo outra
vez? Ela apareceu bêbada, esqueceu a letra da
música (não que fosse difícil – qualquer um
consegue se lembrar de “me humilha, me
humilha, só não vai me dominar”, repetido
umas 25 vezes?) e tentou compensar com um
rebolado que deixou todo mundo sem graça!

4. Namoro
algumas
e Topless, 2006 – Summer fez
demonstrações de afeto
PÚBLICAS e BEM EXPLÍCITAS em uma viagem
ao México com seu casinho passageiro, o astro
de reality show Ryan Delizza. Um conselho para
ela: que tal usar a parte de cima do biquíni em
um barco se não quiser que as pessoas tirem
fotos?

3. Ocomo
Ataque do Refrigerante, 2008 – Não tem
esquecer o momento em que
Summer perdeu a linha e tacou seu
refrigerante na cara de um paparazzo. Por
sorte, outros paparazzi estavam lá para
documentar tudo. Ela destruiu a câmera
caríssima do homem, e o canudo do copo
acabou acertando o olho do sujeito! Ele entrou
com um processo (quem não faria o mesmo?),
que terminou em um acordo feito fora do
tribunal. A quantia é desconhecida, mas temos
a sensação de que era uma vez o resto da
grana de Os sonhadores.

2. OtodoQuase Casamento, 2010 – É claro que


mundo ficou estarrecido quando
Summer anunciou que iria se casar com seu
personal trainer, que ela conhecia havia três
longos meses. Só que ficamos MAIS
estarrecidos ainda quando, no dia do
casamento, em vez de aparecer no local, ela
deu entrada numa clínica de reabilitação,
deixando duzentos convidados com a tarefa de
comer bolo e tentar consolar o noivo.

1. Último episódio de Os sonhadores, 2005 –


O que mais poderia ocupar o primeiro
lugar? Você sabe o que é e você adora. É o
momento de loucura que deu início a tudo. Se
por algum motivo você vive em um casulo,
assista ao vídeo aqui.
5
••••••

2002

Não dá para acreditar em certas emoções até que você


as sinta. Por exemplo, alguém sentir raiva a ponto de
querer matar uma pessoa. Primeiro você não consegue
entender como uma pessoa chegaria a isso, mas aí algo
ou alguém te faz morrer de raiva e a ideia de assassinato
começa a fazer sentido.
Um sentimento em que eu não acreditava até senti-lo
foi a satisfação plena, a consciência de estar fazendo
exatamente o que deveria. Antes de Os sonhadores, eu
era uma adolescente normal. Nada de rebeldias que
tirassem o sono dos meus pais. (Eles ficavam acordados
por conta própria, berrando num volume que dava para
ouvir através da parede do meu quarto.) Tirava notas
boas, competia em corridas escolares e beijei alguns
meninos, com quem decidi não ir mais além, mas era um
tipo de vida superficial, só para preencher o tempo até a
hora de dormir. Quase doía ouvir o despertador me
acordar de manhã. Nos restaurantes, enquanto esperava
nosso pedido, eu ia até o banheiro, mesmo que não
precisasse fazer xixi, só para ter algo para fazer e porque
talvez isso ajudasse a comida a chegar mais rápido e,
depois que ela viesse, a gente poderia comer e ir para
casa, e eu voltaria para a cama.
Há quem diga que isso indicava que eu estava um
pouco deprimida, ao que eu responderia... tem razão.
O teste para Os sonhadores também foi só mais uma
dessas coisas que eu fazia para passar o tempo. Eu
estava em San Diego, visitando minha tia e a família dela
por algumas semanas, em tese para dar uma olhada nas
faculdades, mas na verdade porque meus pais me
queriam do outro lado do país enquanto concluíam seu
divórcio e brigavam para ver quem ia ficar com a louça
cara. Minha prima, que era louca por cinema e teatro, me
arrastou com ela para um teste de elenco em West
Hollywood, apesar dos meus protestos: eu não tinha
nenhuma experiência, só uma passagem pelo coro do
ensino fundamental. Talvez ela achasse que pareceria
boa quando a comparassem comigo. Eu nem tinha uma
foto profissional direito, só a que minha tia tirou com sua
câmera descartável no jardim dela. Nós a imprimimos em
uma farmácia.
A mulher que organizava o teste deu uma avaliada
rápida na minha prima e entregou as páginas de uma
cena a ela.
– Essa personagem é a melhor amiga, então seja
firme, mas divertida. – Ela olhou para mim. – Bom, e aqui
estão as partes da protagonista.
Estiquei a mão para pegar as páginas, mas ela não as
soltou. Quando ergui o olhar, a mulher me fitava com
mais atenção. Então tomou uma decisão sobre a qual
passei horas e horas refletindo: se essa pessoa aleatória
não tivesse me observado melhor, o que teria
acontecido? Será que eu teria me saído mal e nem
receberia uma ligação com a resposta ou será que eu
teria conseguido o papel de Summer?
– Pensando bem, não. Você vai ler a parte da garota
má.
Quando chegou minha vez, entrei em uma sala branca
grande, onde um diretor de elenco e um leitor de roteiro
estavam sentados atrás de uma mesa com uma câmera.
O leitor começou a recitar em um tom monótono as falas.
– Espera aí, não foi isso que a gente concordou em
usar pro show – leu o homem.
Fui atingida por uma estranha sensação: nervosismo,
talvez. Ao olhar para o papel, meu cabelo caiu no rosto,
fazendo cócegas na minha bochecha. Eu o joguei para
trás, irritada. O que é que eu estava fazendo ali? Só que
meu gesto ao afastar o cabelo foi mais dramático do que
eu pretendia, e o diretor de elenco deu uma risadinha.
Ergui o olhar para ele e para o leitor e, de repente, a
estranha sensação não era mais nervosismo. Era
adrenalina.
– Esqueci de te falar – recitei minha parte. – Essa coisa
de banda tá sendo legal e tudo mais, mas meu destino é
ser uma estrela solo.
– Você vai sair? Logo antes do grande concurso de
talentos? E o que a gente vai fazer?
– Foi mal – falei –, mas não existe Madonna e seus
amigos. – Eu queria mais que tudo fazer aqueles rostos
na mesa rirem de novo, mas, dessa vez, de propósito. O
roteiro na minha mão se tornou um tipo de cofre com
segredo. Se eu conseguisse girar na direção certa, ele se
abriria. Ergui a sobrancelha e dei ao leitor um olhar
fulminante. – É só Madonna.
O leitor deu uma risada pelo nariz. O diretor de elenco
piscou algumas vezes, surpreso, então chegou mais para
a frente enquanto eu lia o resto da cena e ia
acrescentando tudo em que conseguia pensar: fazia
caretas, jogava o cabelo, saía pisando fundo pela sala…
Um assalto a banco, eletrizante e cheio de adrenalina: é
assim que atuar sempre faria eu me sentir quando fosse
bom. Eu estava me saindo bem, fazendo mágica com
habilidades só minhas.
Eles me chamaram uns dias depois para cantar e
dançar. Minha prima não foi chamada e parou de falar
comigo pelo resto da minha estada. Depois, mais
nenhuma notícia sobre o teste. Voltei para a Pensilvânia
e comecei meu último ano, em que filtrei melhor a minha
lista de faculdades, parei de correr e me inscrevi no
teatro da escola, deixando todo mundo estarrecido
quando consegui o papel de Annie em Bonita e valente.
Então, um dia, quando eu estava sentada à mesa da
cozinha com minha mãe, ela lendo o jornal enquanto eu
folheava um catálogo de roupas, o telefone tocou.
– Não – disse minha mãe, depois que desliguei o
telefone e, sem fôlego, repeti a oferta para ela. – Você
teria que largar a escola?
– Eles têm um professor no set de filmagem!
– De jeito nenhum. Diz pra ligarem depois que você se
formar.
Levei meus documentos de emancipação para o meu
pai. Ele os assinou, talvez porque estivesse feliz por mim,
mas principalmente para irritar minha mãe. Depois de
uma pressão gigantesca minha (“Papai está tranquilo
com isso! Por que você não pode ser como ele?”), dele
(“Você quer mesmo negar à nossa filha a oportunidade
de realizar os sonhos dela só porque você nunca correu
atrás dos seus?”) e de algumas pessoas da Atlas (que
deram todas as garantias de que iriam cuidar bem da
gente), minha mãe cedeu.
Eu me lembro como se fosse ontem do primeiro dia
em que encontrei os outros. Liana já estava lá quando
entrei para a leitura do roteiro. Era a única pessoa negra
na sala e estava destacando suas falas com marca-texto.
Usava dois coques no alto da cabeça. Michael, a mente
por trás da ideia da série e o responsável por toda a
produção, nos apresentou. Liana se levantou, jogou os
braços ao meu redor e depois me puxou para sentar ao
lado dela. Ficamos ali, conversando baixinho enquanto os
adultos andavam de um lado pro outro, arrumando tudo.
– Nem acredito que isso está mesmo acontecendo –
falei.
– É sua primeira vez na TV? – Quando assenti, seu
rosto redondo se abriu em um sorriso. – Uma bebezinha
no ramo! Quantos anos você tem?
– Faço 18 daqui a uns meses.
– Ai, meu Deus, você é muito fofa. Tenho 20 e já estou
nessa há alguns anos, então posso te mostrar como as
coisas são. A gente nunca deve criar expectativa com
série nenhuma. Já fiz dois pilotos que não foram pra
frente. Mas com este aqui a gente pode ficar animada.
Ela se inclinou e chegou tão perto que senti até o
cheiro de seu gloss de cereja.
– Não olha agora, mas tá vendo aquele cara de óculos,
sentado no canto? Aquele é o Sr. Atlas. Tipo, o cara que
manda na rede toda.
Dei uma espiada. Ele devia ter uns 50 anos. Estava
quieto, uma das pernas dobrada sobre a outra, as pontas
dos dedos unidas diante do corpo, os óculos apoiados no
nariz. Um homem de aparência comum, mas com um
campo de força a seu redor que ao mesmo tempo atraía
todos os adultos e impedia que qualquer um se
aproximasse demais.
– Eu não tinha percebido que o sobrenome do cara
que manda é o mesmo do estúdio – falei.
– Oi? – Liana me encarou, escandalizada por eu não
ter feito minhas pesquisas. – Tá bom. Então: o pai dele
começou tudo, e aí, quando ele morreu, o Sr. Atlas Júnior
assumiu o comando e transformou o estúdio de filmes
em um império e...
– Michael! – chamou alguém, desinibido e confiante.
Tem pessoas que nasceram para aparecer em um
pôster, e esse garoto, com o cabelo louro desgrenhado e
adentrando a sala como se fosse um deus concedendo o
ar da graça, era uma delas. Ele trazia um exemplar
surrado de On the Road – Pé na estrada, o que agora
talvez eu ache algo pretensioso, mas na época me
deixou convencida de que ele era um intelectual. (Eu
gostava de On the Road também! Ou... bem... sabia que
era um livro considerado genial, então tinha lido com
muita atenção até me convencer de que gostava dele.) O
intelectual gato e Michael se abraçaram e trocaram
tapinhas nas costas. Ele estava dando um abraço no
mandachuva da série? Eu morria de medo do homem!
Liana e eu nos olhamos, abafamos o riso e nos
comunicamos sem palavras: Gatinho, gatinho, gatinho!
– Meninas, esse é o Noah – disse Michael.
O rapaz abriu um sorrisinho preguiçoso e cheio de
charme para nós duas, aquele que vem acompanhado de
um olhar semicerrado – ao que parecia, com o intuito de
ser sedutor. E funcionou. Quando ele se sentou ao meu
lado, apaguei por um instante.
Summer foi a última do elenco principal a chegar,
levada até a sala por um homem gigante e forte, que
soltou:
– Não se preocupem, galera, a estrela chegou!
– Pai – disse Summer, espiando por trás dele,
constrangida de um jeito meio orgulhoso.
– Desculpa, mas você não pode me repreender por
estar todo prosa – falou ele, sorrindo para a filha, que
brincava com as mangas de seu cardigã.
Summer tinha braços esguios e uma beleza muito
delicada. Ao meu lado, Noah teve um sobressalto, atento.
Dessa vez, seu sorriso foi diferente, não o charme
sedutor de antes, mas algo meio fora de controle,
exagerado.
– Bom te ver de novo – disse ele assim que Summer
se acomodou a seu lado, alisando a saia e cruzando as
pernas com timidez.
– Vocês já se conhecem? – perguntou Liana.
– Eles nos chamaram pra um teste juntos – disse
Summer. – Um… Como é que se chama isso?
– Uma leitura pra ver a química – respondeu Noah,
rápido demais.
O pai de Summer riu e bateu no ombro de Noah.
– Não conta essa parte pro namorado dela!
Por um instante, a expressão de Noah desabou, mas
ele logo se recompôs.
Fizemos uma roda e nos apresentamos uns aos outros,
menos o Sr. Atlas, que recebeu uma apresentação
especial de Michael.
– Temos muita sorte de ter o chefe do nosso estúdio
aqui, Sr. Atlas, que tornou tudo isto possível.
O Sr. Atlas assentiu.
– Tem muito potencial nesta sala. Estou ansioso pra
ver aonde isso vai dar – disse ele.
Sua voz era baixa e firme. Ainda assim, as palavras
chegaram a todos, exigindo atenção.
– Acham que ele tem nome? – sussurrou Noah para
nós três.
Segurei uma risada.
– Não, acho que ele nasceu como “senhor”.
– É Gerald – contou Liana.
Michael estava falando, fazendo um discurso
autoelogioso sobre sua visão da série.
– Vamos espalhar alegria – disse ele, por fim. – Dar às
pessoas uma sensação de fascínio, a possibilidade de
que elas também tenham uma vida cheia de amizades,
criatividade e quem sabe até um grande amor. Então...
quem está pronto pra começar?
Summer, Liana, Noah e eu nos entreolhamos, a
eletricidade deixando o ar carregado. Então começamos.

••••••

Naquela noite, depois da leitura do roteiro, os três vieram


até o apartamento de um quarto que algum funcionário
da Atlas encontrara para mim na Barham Boulevard, uma
verdadeira ala de astros mirins. “Quanto mais vocês
criarem laços, melhor vai ser a série!”, tinha dito Michael
ao dispensar a gente enquanto ia com os adultos até o
bar para criarem laços do tipo deles.
O meu apartamento era o mais próximo e não teria
ninguém lá. (Summer ainda morava com os pais, a uma
hora e meia dali, enquanto Noah e Liana dividiam
quartos com outras pessoas.) Só que o apartamento
insípido sugeria solidão e tristeza. E se eles achassem
que aquela falta de personalidade refletia a minha? Que
eu também não tinha alma? Eu já estava desesperada
para impressionar todo mundo.
Para piorar, ainda tinha o problema das paredes. A
pessoa que tinha morado ali antes de mim decidiu, por
algum motivo bizarro, pintar as paredes de um marrom
que parecia lama. A cor sem vida sugava toda a luz do
local, o que dava a impressão de que eu tinha me
mudado para um pântano tenebroso, e não para a
ensolarada Los Angeles.
– Não é bonito, nem tá terminado ou coisa assim –
avisei a eles, ao abrir a porta. – Acabei de me mudar.
Eles vieram atrás de mim, largando suas coisas, e
Noah se jogou no meu sofá-cama.
– Humm – disse Liana, ao observar as paredes. – Essa
cor é... um pouco demais.
– Eu sei. É bem deprimente – falei. O jeito como todo
mundo tinha rido na leitura do roteiro quando falei as
piadas mordazes me motivou a tentar uma das minhas. –
Vocês acham que a pessoa que escolheu é masoquista
ou só daltônica? – Eles deram sorrisos educados. Eu devo
ter parecido uma babaca, mas não era assim. – Enfim,
querem pedir uma pizza?
– Peraí, você pode pintar as paredes, não? Não é
contra as regras, é? – perguntou Summer.
– Não – respondi. – Acho que não.
Summer e Noah se encararam, dois sorrisos surgindo
em seus rostos, uma comunicação sem palavras
acontecendo entre eles.
– Tem uma loja de ferragens aqui pertinho – disse
Noah.
Summer pegou minha mão.
– Por favor, deixa a gente te ajudar a pintar? – pediu
ela, como se fosse eu que estivesse lhe fazendo um
favor, seus olhos imensos cheios de esperança fitando os
meus.
– Ué, claro – respondi. – Sério?
– Sim! – Summer apontou para Noah. – Vamos
comprar tinta. Vocês duas pedem o jantar.
Eles desapareceram pela porta.
Eu folheei a lista telefônica em busca de pizzarias nas
redondezas, uma onda empolgante de independência no
ar, enquanto Liana dava uma olhada na minha coleção
de CDs.
– Kat. É sério? – perguntou Liana. – Linkin Park e Sum
41?
Foi um julgamento engraçado e sem maldade, apenas
a crença dela de que eu tinha potencial para ser mais
descolada. Liana abriu sua bolsa carteiro abarrotada e
começou a revirá-la, empurrando maquiagens, revistas e
um tocador de CD.
– Vamos lá. – Ela puxou um estojo de CDs e abriu o
zíper, revelando a coleção lá dentro. – A gente precisa de
um pouco de Mariah.
Summer e Noah voltaram depois de meia hora com
quatro latas de tinta, alguns rolos e uma lona, sem ar de
tanto rir e quase derrubando tudo no chão.
– O que acha de amarelo? – perguntou Summer, seus
braços trêmulos do esforço de carregar as latas. – Eu sou
louca por paredes amarelas. Mas trouxe outras opções
pra você.
– Eu amo amarelo – respondi, ainda que até então não
tivesse opinião nenhuma sobre isso.
Começamos a pintar as paredes de branco, cada um
com um rolo de tinta, nos apoiando na ponta dos pés, a
não ser Noah, que era o mais alto. Dançamos no ritmo da
música que Liana tinha colocado e contamos uns aos
outros sobre nossas vidas. Falamos sobre nossas cidades
(Noah era de Boston e falou muito sobre isso), sabores
favoritos de sorvete (“laticínio não faz bem para as
cordas vocais”, disse Liana, “mas chocolate com
marshmallow e castanha é uma delícia”) e histórias dos
nossos testes de elenco. Era assim que eu imaginava que
seria a faculdade, e ali estava eu, vivendo isso mais
cedo.
– Você é tipo uma noiva muito jovem? – perguntou
Liana a Summer, em certo momento, apontando para o
anel no dedo dela.
Summer ficou um pouco corada.
– Ah, não – respondeu. – Isto é um anel de castidade.
– Minha nossa! Então você é do tipo eu-escolhi-
esperar, só-vou-transar-com-meu-marido?
– A ideia é essa – respondeu ela.
Um breve lampejo de desolação passou pelo rosto de
Noah.
Tontos pelo cheiro das tintas, começamos de um
modo hesitante a nos apaixonarmos uns pelos outros.
Noah se exibiu daquele jeito bobo que fazia as garotas
suspirarem, mesmo que não fosse por algo muito
impressionante: colocou quatro fatias de pizza na boca
só para mostrar que conseguia, tentou equilibrar uma
lata de tinta na cabeça. Aos gritos e gargalhadas,
pedimos que ele parasse antes de derrubar tudo no chão.
Liana desistiu de pintar depois de um tempo.
– Eu vou ser a parte do entretenimento. Não fui feita
pra trabalho braçal – declarou ela.
Ela então começou a cantar, usando o rolo de tinta
como microfone.
O celular de Summer, um Nokia tijolão, tocou.
– Posso ficar mais uma hora? – sussurrou ela. – Tá
bom, tudo bem. – Ela desligou e se virou para nós. – Meu
pai está vindo.
Era engraçada a diferença que mais ou menos seis
meses podiam fazer: eu era só um pouco mais velha do
que ela, e ali estava eu, no outro lado do país, longe da
minha família, morando sozinha em um apartamento,
enquanto o pai dela ainda vinha buscá-la.
Ele chegou à minha porta fedendo a álcool. Devia ter
saído com os adultos que trabalhavam na série.
– Ora, mas olha só isso – disse ele, ao entrar. – Além
de todos os seus outros talentos, vocês também pintam?
– Nós rimos. – Mas é mesmo – continuou ele. – Aquela
leitura do roteiro hoje foi especial. Não tô dizendo que a
trama seja Guerra e paz.
Em suma, o piloto era: logo antes do grande concurso
de talentos da escola, eu saía da banda que Summer,
Liana e eu tínhamos formado para poder me apresentar
sozinha em um número musical. No desespero, Summer
chamava o novo gatinho da escola, Noah, para me
substituir. A apresentação deles deixava uma promessa
de sucesso no ar, além de muita tensão do tipo “vai rolar
ou não vai?”, enquanto Liana cedia sua voz firme no
apoio. Depois do show, um dos pais na plateia se
aproximava. Por acaso, ele trabalhava no ramo da
música e queria saber se eles já tinham pensado em
tentar uma carreira profissional. Assim que ouvia isso, eu
forçava minha volta à banda como um quarto integrante,
determinada a prejudicar Summer e assumir meu lugar
de direito como vocalista principal, o que nos levava a
uma temporada de infortúnios, sabotagem e diversão.
Então, é, não era bem Guerra e paz.
O pai de Summer continuou:
– Mas vocês quatro, juntos… Bom, não posso prever o
futuro, mas estou com um bom pressentimento.
Ele passou um dos braços ao redor de Summer, e ela
se aninhou no pai. Mesmo chateada por ter que ir
embora, ela o amava.
Senti um formigamento nos olhos diante do orgulho
descarado que ele sentia da filha, do entusiasmo com
que via tudo aquilo. Quando liguei para minha mãe para
contar que tinha me acomodado bem em Los Angeles,
ela só tinha dado um suspiro e perguntado sobre a
questão das aulas no set. É claro que talvez o pai de
Summer estivesse a um passo do exagero, mas eu
aceitaria isso sem pensar duas vezes.
Quando o pai de Summer se virou para sair, ela pegou
minha mão.
– A gente volta amanhã pra terminar de pintar. Pode
ser?
Foi como se ela não percebesse que eu não tinha mais
nenhum amigo ali. Foi um modo generoso de me
enxergar, pensando em mim da melhor forma possível.
E logo eu não precisaria de mais nenhum amigo,
porque tinha os três. Nós quatro nos apaixonamos uns
pelos outros enquanto filmávamos a primeira temporada
da série. Com muitas pessoas, leva tempo para se criar
intimidade. Relacionamentos são construídos colocando
um tijolo em cima do outro, devagar, mas com confiança.
Nós quatro construímos uma casa inteira juntos na
primeira noite, talvez porque tivéssemos sido jogados em
uma experiência nova e intensa, talvez porque
estivéssemos destinados uns aos outros.
Todos tínhamos falhas: Summer às vezes era
arrogante. Liana usava o fato de ser mais velha para
provar que era mais sábia. (Se bem que, para ser
sincera, em geral ela era mesmo.) Às vezes, Noah ficava
irritado com a imagem de bom moço que tinha que
passar por ser um ídolo para pré-adolescentes e fazia
coisas idiotas para afirmar sua masculinidade, como
escalar parte do set onde ele não deveria estar ou flertar
com toda corista que passasse na frente dele. Eu era
insegura e ficava preocupada que alguém se desse conta
de que eu não pertencia àquele lugar e me mandasse de
volta para minha vida sem sal. E eu não queria voltar,
porque, pela primeira vez, sabia o que era levantar
animada da cama e desejar que o dia não terminasse.
Estávamos fazendo algo que a gente torcia para que
fosse especial, que pudesse nos dar uma pequena base
de fãs devotados que, de vez em quando, nos
reconhecessem na rua, mas o mais importante era que
nos sentíamos vivos. Nosso lugar era uns ao lado dos
outros. Não percebemos, mas logo iríamos pertencer a
todo mundo.
Filmar a primeira temporada da série foi perfeito. Foi
na segunda temporada que tudo foi para o ralo.
6
••••••

2018

– Não – diz Summer diante da porta do primeiro bar que


escolho, um lugarzinho sofisticado perto do escritório, o
tipo que tem coquetéis com bourbon a 15 dólares e um
jazz agradável como música ambiente. Ela entrelaça o
braço no meu, os olhos brilhando. – Ainda não somos
velhas. Aonde podemos ir pra nos divertir?
Ao ver minha hesitação, ela abre o telefone e faz uma
pesquisa rápida. Logo estamos numa espelunca com chão
pegajoso. O lugar é a cara de jovens de 20 e poucos anos
que querem encher a cara, com uma mesa para jogos em
um canto e um equipamento de karaokê no outro. São
cinco e pouca da tarde quando entramos, e lá dentro só
tem umas dez pessoas. Summer se senta em um banco no
bar. Ela se inclina para a frente e pede dois gins-tônicas.
Por sorte, o atendente não nos reconhece. Enquanto espera
nossas bebidas, ela brinca com as pontas duplas do cabelo,
e percebo que está ficando nervosa.
Eu a observo e tento disfarçar o nervosismo que
também revira meu estômago. Não vejo Summer há 13
anos. Bom, não pessoalmente. Embora eu tenha tentado
largar o hábito de pesquisá-la no Google, até desistido da
empreitada algumas vezes, sempre voltava a procurar,
torcendo para que algo tivesse mudado. Quem sabe dessa
vez, ao digitar o nome dela, o primeiro resultado seja a
notícia de que ela fundou uma instituição de caridade, foi
chamada para um papel empolgante em um filme e se
apaixonou por um homem íntegro.
Até onde sei, ela tem vivido com o que restou do
dinheiro daquela época, além de alguns comerciais que fez
ao longo dos anos, anúncios degradantes que evidenciam o
caso perdido que ela é. A propaganda de um aspirador de
pó mostrava Summer vagando por uma casa cheia de lixo
enquanto o narrador falava sobre como este aspirador
conseguia limpar até as piores sujeiras. O aparelho
aspirava migalhas de salgadinhos e tampas de garrafa, até
sugar Summer, que protestava.
Ela me entrega a bebida e também me observa. Talvez
tenha feito suas pesquisas no Google ao longo dos anos,
como eu.
– Então, o que veio fazer em Washington? – pergunto.
Summer não combina com Washington. Pelo que sei,
mora em Nova York, embora tenha passado um tempo no
Novo México e outro em Las Vegas. E algumas vezes em
clínicas de reabilitação. Não por causa de álcool, então
acho que não tem problema a gente tomar um drinque. Por
“exaustão”, segundo a versão oficial. “Vício em cocaína” foi
o que noticiaram os blogs de fofoca.
– Ficou com vontade de visitar os monumentos? –
continuo.
Ela ri sem muito entusiasmo.
– Sentia sua falta, Kat.
– É Katherine agora.
– Quê?
– As pessoas me chamam de Katherine.
– Tá bom, então, Katherine. – Ela tamborila no copo. As
unhas estão roídas até o sabugo. – Por que não vai voltar
pro reencontro especial?
Solto um gemido, então dou um longo gole no meu
drinque.
– Não acredito que o Noah abriu essa caixa de Pandora.
Onde é que ele estava com a cabeça?
– O Noah só faz o que bem entende e sempre consegue
o que quer. Sorte dele, né? O único de nós que escapou
ileso da série.
– Liana – digo. – A Liana está bem.
Summer dá uma risada debochada.
– Tá, por isso ela posta tanto sobre o time de beisebol do
marido e o tal chá dela pra secar barriga. – Summer
mastiga a rodela de limão. – Era pra ter ido muito mais
longe que isso.
– Além disso – falo –, eu estou ilesa.
– Parabéns.
A porta do bar se abre e um grupo de jovens de 20 e
poucos anos entra e se divide entre a mesa de jogos e o
karaokê. Dou uma olhada no meu telefone e vejo a
enxurrada de e-mails de clientes que eu deveria estar
respondendo. Summer pega o telefone da minha mão e o
coloca no balcão com a tela virada para baixo.
– Não vai nem disfarçar? – indaga. – “Não, Summer,
você também saiu ilesa!”
– Eu...
Ela ri, mas de um jeito frágil e sem alegria.
– Tô brincando. Não precisa vir com esse papinho pra
cima de mim. – Ela pega minha mão e acaricia meu polegar
com o dela. Summer sempre gostou muito de contato
físico. Tocava todos nós de um jeito doce e natural em
momentos de tédio ou nervosismo: a mão nas nossas
costas, a cabeça em nossos ombros. Mas, dessa vez, ela
me olha direto nos olhos. – Na verdade, estou melhor
agora. E quero fazer o reencontro. Pra minha redenção.
Talvez possa ser um trampolim, sabe? Ia ser bom pra mim.
Um cara liga a máquina de karaokê e começa a cantar
desafinado uma música de Whitney Houston para uma
plateia cada vez maior. Summer se vira para ver, com uma
expressão indecifrável. Então ela diz, tão baixinho que
quase não dá para ouvir com a música:
– Não quero entrar pra história como uma piada.
Engulo em seco, meu coração indo parar na garganta.
– Bom. Torço pra que o reencontro aconteça e que possa
mudar tudo – afirmo, com cuidado.
– Não tem como acontecer sem você.
– Vocês não precisam de mim.
– Não – começa ela, com frustração. – Não faz isso. Você
sempre desmereceu a sua importância na série. Além do
mais, se você pular fora, o Noah também vai pular. Ele
disse se todas nós quiséssemos voltar.
– Summer – digo, balançando a cabeça. – Eu tenho me
esforçado muito pra ser uma pessoa normal.
– Dá pra ver. – Ela estica a mão e toca a gola do meu
terninho, esfregando o tecido entre os dedos. – Não dizem
que os astros mirins param de amadurecer na idade em
que ficaram famosos? – Ela solta uma risadinha sarcástica,
o hálito com cheiro de gim. – Acho que isso não vale pra
você. Está tão adulta agora! Aquele seu escritório mais
parecia o set de alguma série sobre uma mulher elegante
focada na profissão. – Mais pessoas entram no bar, prontas
para aproveitar os especiais do happy hour, e Summer se
vira para dar uma olhada nelas. – Provavelmente você
gosta de um bom vinho, já planeja a aposentadoria e odeia
este lugar, não é?
– Não é bem a minha praia.
– Mas podia ser se você se permitisse. Lembra como a
gente perdia a linha? Eu me lembro de umas fugas
movidas a álcool na segunda temporada.
Um sorriso se abre em seu rosto. Ela vira o resto da
bebida, se levanta e alonga a coluna. Então anda até o
microfone enquanto Whitney ­Houston está acabando e
passa por algumas mulheres que conferem a lista de‐ ­
músicas.
– Ei – diz uma das mulheres com a lista. – Nós somos as
próximas e... – Ela para no meio da frase ao ver o rosto de
Summer. – Ai, meu Deus. É... é você? – Ela cambaleia de
leve, a voz ficando estridente. – É verdade mesmo?
Summer pisca para ela.
– Coloca “Um pedido diferente” pra mim?
– Claro! – A mulher dá uma cotovelada na que está a
seu lado. – Encontra essa música!
A outra folheia a lista furiosamente em busca do código,
então o digita na máquina de karaokê.
Uma onda de reconhecimento vai atingindo os clientes
quando começam os acordes animados da canção, e
Summer joga o cabelo, pronta para cantar uma de suas
músicas solo mais famosas de Os sonhadores. Um grito
ressoa em um dos cantos do bar. As pessoas começam a se
aglomerar na beirada do pequeno palco, algumas com as
mãos unidas, em choque.
– O que houve? – pergunta um cara na minha frente à
mulher ao lado dele. – O que tá acontecendo? Não estou
entendendo.
– Humm, é, você sabe bem – começa a cantar Summer.
– Algo mudou depois que a gente se encontrou.
(Nossas letras não ganharam nenhum prêmio.)
– Quem é ela? – pergunta o mesmo sujeito para a
amiga.
– É a Summer Wright – sibila ela, antes de gritar para o
palco: – Minha rainha!
Summer acena para ela, então rebola e fecha os olhos,
cantando. Sua voz é mais áspera agora, mas mesmo assim
há algo de magnético na apresentação. Ela ainda consegue
manter uma plateia na palma da mão, embora não
necessariamente só por causa da potência de seu talento.
Talvez seja como ver um trem descarrilar ou ter a
consciência de que um acidente de trem está prestes a
acontecer, porque esse trem em particular tem o hábito de
correr desenfreadamente e sem controle.
– Quem? – pergunta o sujeito, e a mulher solta um
rosnado de irritação.
– A estrela adolescente toda certinha de Os sonhadores,
a série, lembra? – diz ela. O rapaz balança a cabeça. – A
que arruinou o último episódio ao vivo? – Outro balançar de
cabeça. A voz dela fica mais aguda de incredulidade. – O
escândalo do mamilo?
– Ela surtou – fala outra mulher, se inclinando para perto
deles. – E a gente ficou sem saber o que ia acontecer!
– Foi tipo... – continua a primeira mulher. – Imagina só se
The Office acabasse do nada logo antes de o Jim e a Pam
ficarem juntos e você tivesse que viver sem nunca ter visto
isso.
– Acho que eu ia ficar de boa – comenta o cara.
– Ah, tá, não vem com essa, Todd – responde a primeira
mulher, virando-se de novo para Summer.
– Cantem comigo o refrão – grita Summer com uma
facilidade treinada, como se o tempo não tivesse passado
desde que empregamos essa técnica nas nossas
apresentações especiais. (Ou talvez ela cante músicas de
Os sonhadores no karaokê com estranhos o tempo todo.)
Não é uma plateia grande, umas 25 pessoas, mas a
energia faz parecer que estamos em um lugar com cem.
Ela estende o microfone e a galera canta, extasiada, com a
pureza do que eles deviam sentir quando eram
adolescentes. Muitos filmam com o celular. Summer
estende a mão livre na direção da plateia, e algumas
pessoas se esticam para segurá-la e sentir a pele dela só
por um instante.
– Eu tô chorando – diz uma delas, e é verdade: seus
olhos estão cheios d’água.
Talvez essas lágrimas alimentem Summer – conseguir
inspirar tanta emoção nos outros é um dom incrível. Talvez
não tenha importância que um pouco dessa emoção seja
pena ou zombaria, porque é alguma coisa. Ser o tipo de
pessoa cuja mera presença arrebata alguém e faz a pessoa
chorar… Bom, isso dá uma boa compensada nas coisas.
Estou paralisada no banco diante do bar, assistindo.
Torcendo para que ninguém se vire e me reconheça.
Ansiando por estar naquele palco também.
Summer termina a música e se curva para agradecer à
plateia, corada de prazer enquanto as pessoas gritam.
– Canta “Me humilha”! – berra alguém, e alguns dão
risada.
Ai, não, pelo amor de Deus. Essa não é de Os
sonhadores, e sim do período estranho e tenebroso logo
depois, quando Summer assumiu a imagem de garota má e
gravou um álbum com alguns abutres que a encorajaram a
ser a versão mais desprezível de si mesma. Se era para ser
sensual, ela seria a mais sensual, sairia por aí usando a
música para declarar que ninguém a impediria de ser
SAFADA! Vendeu que nem água, rendeu muita chacota nos
programas de TV noturnos e matou qualquer chance que
ela tivesse de ressuscitar a carreira.
– “Me humilha”! – pedem mais pessoas e Summer pisca,
confusa.
Vejo os ombros dela desabarem e percebo: ela sabe que
parte do motivo para aquelas pessoas terem se
aglomerado ao redor do palco é quererem estar na
primeira fileira caso haja qualquer drama. Estão filmando
com os celulares não só porque o momento é especial, mas
para o caso de ela cair ou dizer algo ridículo que eles
possam postar na internet mais tarde.
Do nada, estou lá de novo, no dia do último episódio:
Summer olhando para nós para que fizéssemos alguma
coisa, qualquer coisa. Eu não a ajudei 13 anos atrás, mas
talvez agora eu consiga.
– Me humilha, me humilha, só não vai me dominar –
canta alguém na plateia, enquanto uns poucos dão
gargalhadas.
Eu me levanto e me embrenho pela aglomeração até a
mesa com a lista do karaokê. As mesmas mulheres que
estavam com ela antes se adiantam para pegá-la, sem
dúvida para procurar a música que Summer não quer
cantar, mas eu puxo o caderno primeiro, ignorando os
ruídos ofendidos delas. Folheio as páginas com
determinação até encontrar o que procuro.
– Acho que já tá bom por hoje – diz Summer, do palco, e
alguns vaiam em protesto, recomeçando o coro com o
nome da música.
Essa mudança de clima repentina acontecia às vezes
com fãs da série na época em que éramos famosos. O que
começa com pura empolgação por estar perto de você
pode se transformar, de uma hora para outra, em raiva por
você não dar o que eles querem.
Teclo o número 3945 na máquina e dou o play. Quando o
primeiro acorde soa, a plateia interrompe o coro – será que
seu pedido será atendido? Summer reconhece a música na
mesma hora e, ao olhar na direção da máquina, dá de cara
comigo. Então os cantos de sua boca se curvam para cima.
Ela pega mais um microfone de um banco no palco e o
estende para mim. O começo da música de um dos nossos
raros duetos em Os sonhadores continua, e dou um passo
à frente para pegar o microfone.
Fico ao lado de Summer no palco tentando ignorar o
burburinho de questionamentos na plateia. Não sou tão
reconhecível quanto ela, já que fiquei distante dos
tabloides por mais de uma década e estou usando um dos
meus uniformes de mulher de negócios. Summer canta os
primeiros versos, um número acústico folk com nuances de
“Landslide” que sempre achei surpreendentemente bonito.
Michael tinha pedido que os compositores escrevessem
algo com belas harmonias para que Summer e eu
cantássemos em um breve momento de paz entre nossos
personagens. E assim os compositores fizeram.
As pessoas vão se dando conta de que música é.
Gritinhos de êxtase começam a eclodir na plateia.
– Caramba! É a Kat! – berra alguém quando os versos de
Summer terminam e está na hora do meu solo.
Minhas mãos suam tanto que tenho medo de o
microfone escorregar. Não canto na frente de outras
pessoas há anos, só “Parabéns pra você” nas festas de
amigos. E, mesmo aí, eu praticamente sussurro para não
chamar atenção. Agora, minha preocupação é que eu
tenha perdido qualquer habilidade que tivesse, que o
nervosismo feche minha garganta e só saia um grasnido.
Mas Summer sorri para mim como fez da primeira vez
que cantamos essa música juntas. (“Vamos fazer um
dueto!”, tinha dito ela quando recebemos o roteiro da
semana. “E é tão lindo que mal posso esperar!”) Respiro
fundo e me jogo, com a empolgação aterrorizante de me
atirar de uma altura imensa. Minha voz vacila nas primeiras
notas, mas vou em frente, e logo estamos no refrão, nossas
vozes subindo em harmonia.
Cantar pode ser algo agradável de duas maneiras
quando se faz do jeito certo. Tem a vibração das cordas
vocais, uma cadência agradável dentro do crânio. E aí você
se ouve do lado de fora, ou talvez ouça sua voz se misturar
com outra para fazer algo ainda melhor do que você teria
conseguido por conta própria. O prazer em dobro de ouvir e
sentir às vezes é insuportável demais de tão grande. E eu
nem sou uma cantora tão incrível.
Summer e eu nos encaramos enquanto nossas vozes
vão crescendo e a plateia está lá e ao mesmo tempo não
está. A energia deles alimenta a nossa, mas estou
concentrada na mulher diante de mim. Ela ergue as
sobrancelhas num convite, e eu assinto, então nos jogamos
na dança que acompanhava essa música, algo que, de
alguma forma, nós duas ainda lembramos, 13 anos depois,
como se estivesse congelada todo esse tempo, preservada
com perfeição, esperando que nós a trouxéssemos de
volta. A coreografia não é cheia de passos vigorosos, como
muitos de outros números nossos, mas sim um balanço
lânguido e gracioso. Devíamos estar parecendo duas
ridículas: Summer em seu short curto, eu no meu terninho
com saia, cantando uma música para adolescentes. Mas
não me sinto ridícula. Me sinto completa.
A música chega a uma pausa. Summer usa esse tempo.
Vira para a plateia e aponta para mim.
– Gente, deem oi pra minha amiga Kat. Foi mal:
Katherine. – Olho para ela com raiva, e ela sorri antes de se
voltar para o público. – Vocês devem ter ouvido alguma
coisa sobre um reencontro especial dos Sonhadores.
Katherine disse que não quer voltar, mas a gente não tem
como fazer isso sem ela, não é?
– É! – grita alguém.
– Kat, você tem que voltar!
As pessoas me observam, olhares focados em mim de
todas as direções.
Tenho motivos para não voltar, mas sei que vou dizer
que aceito. Não é só a pura pressão ou a glória que vem
quando um bando de jovens bêbados de 20 e poucos anos
puxa o celular para tirar uma foto minha. Eu me sinto mais
viva agora do que me senti em anos. Além disso, preciso
voltar porque Summer quer que eu volte. Porque ceder um
mês do meu tempo pode recuperar sua vida arruinada, e
foi por minha causa que a vida dela saiu dos trilhos, para
início de conversa.
Talvez o truque para lidar com a culpa não seja se
afastar o máximo possível, mas correr direto em direção à
origem dela. É aí que posso consertar tudo. Então posso
voltar para casa, com a consciência tranquila, pronta para
dizer “sim” para Miheer e, enfim, seguir em frente.
Além disso, se Summer, Liana e Noah voltarem sem
mim, quem sabe o que podem descobrir?
– Então, o que me diz? – pergunta Summer no
microfone. – Vai voltar?
Ela tem aquele ar de inocência – os olhos imensos
causavam esse efeito –, mas, mesmo assim, não sei se
estou me deixando enganar por Summer. Não estou
convencida de que os motivos dela sejam de todo
inocentes. Só que a pausa na música está terminando, é
quase hora do refrão final.
– Tá bem – digo no microfone, incitando um estrondo na
plateia enquanto Summer e eu nos damos as mãos e
terminamos a música.
VANITY FAIR, FEVEREIRO DE 2004

A GAROTA DOS SEUS


SONHOS
Por Chris Matheson

Como explicar o sucesso estrondoso de Os


sonhadores, uma série de TV boba e previsível
para pré-adolescentes e adolescentes que virou
uma religião para seus espectadores mais
jovens e uma fonte de fascínio meio irônico
para os mais velhos? Seria pela tensão
narrativa ou pelas tiradas sagazes? Não, parece
que essas coisas não existem no mundo de faz
de conta da série. E o que falar da evolução do
personagem? Infelizmente, os protagonistas
passam pelos mesmos ciclos a cada episódio,
com uma dedicação interminável. Sem dúvida,
o elenco jovem é muitíssimo atrativo,
apresentando-se em números musicais a cada
episódio com um entusiasmo contagiante
(ainda que insípido).
Porém, na minha opinião, o ingrediente
mágico é a garota perfeita, a figura central da
série, Summer Wright. Ainda que seu nome
signifique “verão”, Summer evoca a primavera
– aquela lufada de ar fresco que vem depois de
um longo inverno. Ela é broto, ela é flor. Mas,
poesia à parte, olhemos os aspectos práticos.
Summer é o arquétipo da queridinha dos
Estados Unidos: loira, com olhos imensos e um
bronzeado saudável. Feche os olhos e é fácil
imaginá-la saltitando, praticando uma
coreografia de torcida sob o sol. Meninas de
todo o país podem estar pendurando pôsteres
do colega dela, o astro Noah Gideon, em suas
paredes, mas Summer já recebeu propostas de
posar para três revistas masculinas de grande
circulação no dia em que completar 18 anos
(daqui a apenas alguns meses, a quem
interessar). Ela recusou todas, confusa por esse
interesse. E aí reside a chave de seu encanto:
sua completa falta de noção a respeito do
assunto.
“Às vezes”, me conta ela durante uma prova
de figurinos da segunda temporada da série,
cuja produção começa a rodar no mês que
vem, “eu penso: ‘Sou uma garota do interior. O
que estou fazendo aqui?’ Eu devia estar
atuando na minha comunidade, na produção do
teatro local de Adeus, amor!’”
O interior que ela cita fica a noventa
minutos de Los Angeles. Na maior parte de sua
infância, sair para se divertir significava ir até
Bakersfield para jantar. Os fins de semana
eram dedicados à prática teatral (ela começou
como a pequena órfã Annie, aos 9 anos) e ir à
igreja com a família.
Quando pergunto sobre a igreja, ela brinca
com um anel em seu dedo. É um anel de
castidade, explica, que ganhou do pai para
simbolizar seu compromisso com a fé. Prepare-
se para ficar perplexo e um pouco empolgado:
Summer Wright é virgem e pretende continuar
assim até se casar. Sua vida pessoal se
compara à da série, em que os alunos do
ensino médio são castos e o casal “será que vai
rolar?” que protagoniza a história ainda nem se
beijou. A Atlas, que produz e exibe Os
sonhadores, já foi acusada de ser cruel com
astros mirins no passado. Como não lembrar
que o estúdio cortou Amber Nielson, estrela do
antigo programa de sucesso da emissora,
Garota do poder, quando ela apareceu em um
vídeo cheirando um pó branco em uma boate?
Mas Summer Wright jura que seu papel de
jovem inocente não tem nada de
representação. Ela é um modelo a ser seguido,
o que a torna perfeita para os moldes da Atlas.
E o que dizer de seu namorado, um colega
do ensino médio que também frequenta a
igreja? Será que ele se incomoda com o voto de
castidade ou com o interesse incessante em
sua namorada? Um rubor sobe às bochechas
de Summer, e ela morde o lábio inferior
carnudo. “Não, eu tenho muita sorte por ele me
apoiar em tudo”, diz ela, como se não estivesse
ciente dos milhares de homens que trocariam
de lugar com ele sem pensar duas vezes, com
voto de castidade e tudo.
Quem assiste à série poderia supor que
Noah Gideon seja um desses homens. Jovens
fãs fantasiam com um romance entre ele e
Summer na vida real por causa da química
entre os dois na frente das câmeras. “Ai, meu
Deus!”, hesita a atriz, colocando as mãos no
rosto. “Não, Noah e eu achamos engraçado
quando as pessoas falam isso! Porque somos
os melhores amigos uns dos outros, eu, ele, Kat
e Liana.” (Kat Whitley e Liana Jackson
interpretam de forma prestativa as
coadjuvantes principais da série.)
Por enquanto, parece que a fama de
Summer Wright crescerá cada vez mais. “Eu
gostaria de ficar em Os sonhadores o máximo
de tempo possível”, diz ela, comendo
pedacinhos da salada de agrião que um
assistente trouxe. “E depois… quem sabe?
Talvez um álbum solo. Talvez uma carreira no
cinema.”
Ainda assim, antes de nos despedirmos,
noto um indício de que Summer já esteja a
caminho de se tornar maior que a série que a
deixou famosa. Enquanto experimenta uma das
roupas escolhidas pela figurinista para a
segunda temporada, um vestido na altura do
joelho com estampa de margaridas, ela sobe a
bainha para expor um pouco mais da coxa
tonificada e sem pelos, o tipo que deixaria
homens feitos de joelhos. “Que tal”, diz ela
para a figurinista, “usarmos deste jeito aqui?”
7
••••••

2018

Um mês depois da minha aventura no karaokê, Miheer


me leva até o aeroporto.
Os dias passaram em um borrão, cheios de trabalho e
preparativos. Na minha firma, Irene ficou perplexa, para
dizer o mínimo, quando avisei que iria tirar uma licença.
– Deixa eu ver se entendi direito – disse ela. – Você
quer tirar um mês de licença, justo agora que está tão
perto de ser levada em consideração como sócia, e não
para fazer algum tipo de treinamento, nem pra atuar
como advogada voluntária em alguma região carente,
nem mesmo pra ter um bebê, mas pra fazer um musical
especial de TV?
– ... Sim – respondo.
– Deus do céu, Katherine! Preciso te desencorajar em
relação a isso.
Irene sempre cuidou de mim, indicando outros
associados juniores para os clientes terríveis (bom, na
maioria das vezes, pelo menos). Ela e a esposa, Leah,
convidam Miheer e a mim para jantar uma vez por mês,
e sempre ficamos horas lá, fofocando, nos
empanturrando e nos dando superbem. Eu a amo.
– Sei que pode ser imprudente, mas preciso ir. Não vai
acabar com as minhas chances de sociedade, vai?
– Não. Mas pode... prejudicá-las. Você conhece os
caras daqui, eles estão sempre atrás de um pretexto. –
Os olhos dela se voltam para a porta do escritório, que
está fechada, e depois para mim. – Bando de idiotas.
– Quero mostrar pra todo mundo que estou
comprometida, apesar disso. – Seguro com força a
beirada da cadeira. Se eu acabar com minha chance de
ser sócia, nunca vou conseguir fazer o trabalho para
pessoas carentes que tanto tenho tentado. – Me enche
de serviço. Vou cuidar do máximo de casos que
conseguir antes de sair.
Ela fez isso. Jogou tanta coisa pra mim que precisei
passar várias noites em claro. E, nas poucas horas vagas,
fiz aula de dança em um estúdio local, para relembrar
como movimentar o corpo, saltitando com um bando de
adolescentes e senhoras aposentadas.
Nem preciso dizer que Miheer e eu não tivemos tempo
para um fim de semana romântico em uma hospedaria
pequena. E, nas poucas vezes em que ele falou de
sairmos para “um jantar especial” ou “só tomar uns
drinques” com um desespero cada vez mais evidente na
voz, bom, eu disse que não tinha tempo para nada disso.
Eu me odeio por me esquivar de suas tentativas de me
pedir em casamento. Mas eu me odiaria ainda mais se
aceitasse.
Agora, ele me acompanha até o portão de embarque.
Arrasto minha mala de rodinhas e entrelaço a mão livre
na dele. Minha palma está suada. Ou talvez o suor seja
das mãos de nós dois enquanto pensamos no que me
aguarda do outro lado desse voo e o que isso vai nos
causar. O cheiro doce de pão açucarado domina o ar,
vindo de uma confeitaria aqui perto, e meu estômago
ronca.
Em geral, quando estamos juntos no aeroporto,
passamos pela segurança e vamos direto até o estande
de livros. Escolhemos um romance um para o outro, que
temos que ler no avião, sem reclamar. (Sempre pego os
suspenses policiais mais repulsivos que consigo
encontrar para Miheer. Gosto de ver a carinha fofa de
horror dele ao ler os detalhes mais violentos e dou risada
sempre que ele pergunta, se lamuriando cada vez mais:
“Por que está fazendo isso comigo?” Ele escolhe para
mim dramalhões sentimentais sobre bichinhos de
estimação nobres que mudam a vida de seus donos,
determinado a me ver chorar.) Só que, dessa vez, vou
passar sozinha pela segurança.
Nós nos viramos um para o outro no momento da
despedida. Ele está usando seus óculos de aro preto, o
que o deixa lindo de morrer.
– Boa sorte lá – diz ele. – Você vai deixar todo mundo
impressionado.
– Valeu. Eu vou arrumar um ingresso do show pra
você, mas, sério, não precisa ir.
– Tem certeza? Quero te dar apoio.
– Vai ser bem bobinho. Não é muito a sua cara.
– Tá bem, vou ver como vai estar o trabalho na época
e se dá pra escapar. – Ele estende a mão e aperta a
minha. – Ei, vou ficar com saudade.
– Vai ser esquisito ir pra cama sozinha toda noite.
– Como é que eu vou conseguir dormir sem você
respondendo seus e-mails de trabalho que nem uma
louca do meu lado?
– Vai ter que comprar uma máquina de ruído branco.
Talvez colar uma foto do meu rosto estressado nela.
– Se der, manda também uma gravação sua
murmurando coisas como “clientes imbecis” e “eu já
falei isso umas cinco vezes pra eles” a intervalos
irregulares. Ia ajudar muito.
– Pode deixar – respondo, rindo.
Dou um passo à frente e o beijo, abraçando-o. Ele tira
um fio de cabelo do meu rosto com delicadeza. Nenhum
de nós quer se soltar, mesmo com a fila no portão
aumentando a cada minuto.
A gente se afasta com relutância.
– Bom, tchau – digo.
– Só mais uma coisa – diz ele, enfiando a mão no
bolso e pegando uma caixinha.
Não, não, não, agora não, penso, enquanto ele
começa a se ajoelhar, e então não estou só pensando,
mas sim falando em voz alta, e ele para no meio do
movimento, seus olhos castanhos ficando cheios de
mágoa.
– Não, você não quer se casar comigo?
– Não é... Não é isso que eu... – gaguejo. Ele se
levanta, piscando com força como se tentasse não
chorar. – Eu quis dizer aqui não, num aeroporto cheio de
gente, perto de uma confeitaria...
– Ah, bem. – Ele contrai os lábios. – Sei que não é o
lugar mais romântico do mundo. Tentei o mês todo fazer
isso em algum local legal, mas você andou tão ocupada
que não me deixou escolha a não ser a confeitaria e...
– O problema não é a confeitaria. – Pego a mão dele. –
Eu quis dizer agora não, quando estou prestes a viajar e
ficar fora um mês. Quero poder curtir isso, sem ter que
me preocupar em ficar presa na fila de segurança.
Ele recua um passo, e agora sou eu que pisco com
força.
– Mas você não vê que é por esse motivo que quero
fazer isso agora? Estou tentando te dar apoio, mas estou
muito confuso. Você fala que não vai voltar pra TV, aí, de
repente, recebo um aviso do Google dizendo que você
aceitou o convite deles em um bar cheio de estranhos.
– A Summer me coagiu e...
– Você fala que a série não é uma parte importante da
sua vida, que eu nem deveria assistir porque você fica
constrangida, mas aí larga tudo pra ir pra Los Angeles
durante um mês. Eu tô... sem chão e, pra ser sincero,
meio que surtando, e acho que só queria saber que você
não vai ser sugada de volta pro mundo hollywoodiano e
esquecer a nossa vida e...
– Como é que eu posso esquecer você? Eu te amo
tanto.
Seu rosto transparece dúvida. Não é de admirar.
Acabei de reagir como se ele tivesse me oferecido uma
aranha gigante, não um anel de noivado.
Por que não conto tudo para ele? Porque tenho pavor
de vê-lo franzir a testa, como se dissesse: Você não é
quem eu pensava. Porque não quero que ele retire o
pedido de casamento por desgosto. E porque agora não é
mesmo a hora de abrir meu coração. Estamos em um
aeroporto cheio de estranhos, incluindo duas jovens que
nos olham com curiosidade, sussurrando uma para a
outra. Merda, a última coisa de que precisamos é que
algum boato – Kat Whitley e o namorado brigam FEIO no
aeroporto! – surja na internet. Se o reencontro não sair
do jeito que eu espero, vou contar a verdade para ele e
rezar para qualquer divindade que me ouça para que isso
não mude os sentimentos dele por mim.
– Ei – digo, baixinho, tentando manter um semblante
plácido para qualquer bisbilhoteiro. – Saiba que isso não
tem nada a ver com você. Você é a melhor coisa da
minha vida. Eu só não tinha percebido quanto eu
precisava encerrar esse capítulo. Vou em busca disso e,
depois, acabou. Me pede de novo no dia em que isso
tudo terminar, tá bom?
Ele engole em seco. Então dá um passo à frente, me
abraça forte e diz:
– Melhor você não perder o voo.
8
••••••

2004

A primeira vez que alguém gritou ao me ver, eu estava em


um Walmart na Pensilvânia. Foi duas semanas antes do
início da filmagem da segunda temporada da série, e eu
estava visitando meu pai em seu apartamento triste de
solteiro (minha mãe ficou com a casa no divórcio). Ele tinha
convidado uma “nova amiga legal” para jantar com a
gente. Enquanto ele percorria a loja atrás do que precisava
– mantimentos, velas e... ai, não, ele estava mesmo
colocando camisinhas no carrinho comigo bem ali? –, fui
até o corredor de revistas e fiquei folheando a última
edição de CosmoGirl para fazer o teste estampado na capa:
“Quem é você em Os sonhadores?”
Tirei Liana.
O grito arrepiante cortou o ar, e quase larguei a revista.
Terroristas? Um atirador? Parei de ler, pronta para procurar
um esconderijo, então dei de cara com uma garota, talvez
de 12 anos, me encarando e tremendo.
– Você está bem? – perguntei, observando-a e
procurando um ferimento.
– Você é a Kat! – disse ela. – Ai, meu Deus, ai, meu
Deus.
Relaxei os ombros ao perceber o que estava
acontecendo.
– Sou eu!
– Os outros também estão aqui?
– Só eu – respondi, e logo entrei no personagem. – E é
claro que sou a melhor de todos, então de nada.
Ela riu, os olhos brilhando, e eu sabia que os meus
também cintilavam. Minha mera presença tinha feito com
que ela ganhasse o dia, talvez até a semana. Ela ligaria
para as amigas naquela noite e diria: Você não vai
acreditar no que aconteceu! E, por um breve instante, ela
seria a garota mais popular do grupo, todo mundo
querendo ouvir sobre sua aventura com uma celebridade. E
eu só precisei entrar no Walmart para fazer isso por ela. Me
senti nas nuvens.
– Quer um autógrafo? – perguntei, já começando a
remexer na minha bolsa atrás de uma caneta, enquanto ela
guinchava, concordando.
Ela olhou pelo corredor, escolheu um caderno na
prateleira e me entregou. Rabisquei uma assinatura cheia
de firulas, que eu tinha praticado nos meus próprios
cadernos quando era mais nova, sem nunca imaginar que
alguém um dia fosse mesmo querer, que fosse tratar um
pedaço de papel como um prêmio só porque meu nome
estava nele.
Ela me abraçou e saiu correndo para encontrar a mãe.
Fiquei olhando depois que ela saiu, acenando até ela
desaparecer. Então voltei para a revista, para a descrição
de “Liana” nos resultados do teste (Parabéns, você é a
melhor amiga que uma garota poderia ter!), meu corpo
todo agitado, vibrando de adrenalina. Ah, e de algo mais:
meu celular. O nome de Summer estava na tela.
Meu rosto se abriu em um sorriso na mesma hora. Ela
me ligava toda noite enquanto estávamos em casa, de
folga entre a filmagem das temporadas. Ao contrário de
Noah e Liana, nós duas não tínhamos irmãos, então
brincávamos que éramos irmãs. A gente se falava por
horas, trocando histórias das experiências inusitadas que
vivíamos agora que estávamos em evidência. Tínhamos
subido tão rápido! Nas semanas que antecederam a estreia
do primeiro episódio, a Atlas lançou um anúncio com
Amber Nielson, protagonista de Garota do poder (sobre
uma adolescente que fazia magia), conjurando uma tocha
e a entregando para nós. No dia em que ela foi filmar com
a gente, ficamos todos impressionados. Ela era a maior
estrela do canal! Quando eu trabalhava como babá,
costumava ver o programa dela com a criança. Amber foi
legal com a gente, ainda que meio distante. É claro que a
Atlas tirou o anúncio do ar quando ela foi pega cheirando
cocaína. Ainda assim, estreamos com números incríveis de
audiência, e, dali em diante, crescemos cada vez mais.
Abri o telefone.
– Que bom que você ligou, porque tenho que te contar:
uma menina gritou tão alto quando me viu que acho que
meu tímpano estourou.
Ela fez um barulhinho de soluço, algo que não era sua
risada de sempre, mas eu mal reparei, porque meus olhos
correram da parte sobre “Liana”, atraídos pela descrição de
“Maioria C – Kat”: A gente sabe que ninguém quer ser a
Kat. Mas você é, então tem duas opções: abrace sua vilã
interior ou tente ser uma pessoa melhor para que, da
próxima vez que fizer esse teste, você seja a Summer.
É incrível como pequenas coisas ruins podem acabar
com grandes coisas boas, uma gotinha de corante que
tinge um copo de água por completo. Estraga. De repente,
só conseguia pensar na pergunta que a garota fez: “Os
outros também estão aqui?” Eu tinha sido o prêmio de
consolação. Ela ficou animada por me ver, sim, mas
preferia ver os outros. Porque ninguém quer ser a Kat.
Summer deu aquele soluço esquisito de novo enquanto
eu franzia a testa para a página.
– Meu pai morreu.
Aquele teste idiota sumiu da minha cabeça. O Sr.
Wright, com sua voz retumbante, que tinha me feito
entender o significado da palavra “caloroso”, não podia ter
partido. Era para ele estar lá no set quando a gente
voltasse para a segunda temporada, sempre do nosso lado,
animando a gente.
– O quê? Como assim?
– Acidente de carro – ela conseguiu falar, a voz bem
baixinha e devastada pelo luto. – Ele estava voltando bem
tarde de um bar, dirigindo rápido demais no escuro.
Minha própria incapacidade me deixou paralisada. Como
é que se consola uma pessoa quando a pior coisa do
mundo acontece com ela?
– Vai ficar tudo bem – falei, como uma idiota de 19 anos
que nunca tinha precisado lidar com nada parecido com
isso. – Ele está em um lugar melhor.
Eu nem acreditava em Deus, mas Summer acreditava,
então achei que era o que eu devia dizer.
– Preciso ir – falou Summer. – Tenho que ligar pros
outros. Mas você pode vir pra cerimônia?

••••••

Todos nós fomos: Noah, Liana e eu. Michael também, de


terno preto, bem diferente das camisas largas que ele
usava quando dirigia as filmagens no set. Até o Sr. Atlas
estava lá, sentado quieto em um banco da igreja para
prestar seu respeito. Uma Summer que parecia apenas a
casca da menina que eu conhecia estava ao lado de uma
mulher latina miúda que usava óculos escuros grandes.
– Essa é minha mãe, Lupe – disse ela para mim, quando
fui lhe dar um abraço, e a mulher me deu um aperto de
mão rígido.
– Obrigada por vir – disse a mãe, com um leve sotaque.
Foi estranho, porque o pai de Summer tinha dominado a
primeira temporada com sua risada alta e sua preocupação
constante com os interesses da filha, mas Summer quase
nunca mencionava a mãe. Eu simplesmente havia
concluído que ela fosse tão branca quanto o Sr. Wright.
Do outro lado de Summer estava um garoto bonito e
meio sem sal, de terno e com a camisa abotoada até a
gola, de um jeito desconfortável. Então aquele era Lucas, o
namorado. Noah se apresentou, estendendo a mão, e os
dois trocaram um aperto um pouco vigoroso demais, se
avaliando.
A igreja estava abafada, o ar carregado de perfume e
transpiração. Summer foi até a frente e cantou “Danny
Boy”, trêmula mas determinada, e o barulho de choro ao
meu redor aumentou. O pastor fez um longo sermão, e o
irmão do Sr. Wright, um discurso fúnebre. Àquela altura, eu
só ansiava por ar fresco e luz do dia.
Porém, quando saímos da igreja, as pessoas tinham se
juntado do lado de fora. Havia uns cinco ou seis paparazzi.
Eles nos rodearam, rodearam Summer, as câmeras com
seus cliques frenéticos, alguns deles gritando o nome dela,
pedindo que falasse do pai, perguntando se ela precisaria
se afastar um tempo da série. Summer recuou, como um
animal que se esquivasse de um chute. O namorado fechou
a cara, confuso. Noah pulou na frente dela para bloquear
as câmeras.
Mas os paparazzi te cercam por três lados. Assim,
quando você tenta se afastar de algum deles, outro
consegue a foto. Eles se espalham, trabalham juntos como
um exército sinistro e estratégico. Liana e eu nos
encaramos, nos dando conta juntas daquela realidade. Em
determinado momento, a fama fica tão grande que não
tem como se esquivar dela. A gente tinha noção de que
esse momento da virada aconteceria. Talvez já tivesse
acontecido para Summer. Às vezes, eu recebia o assédio de
bom grado, como aquela fã no Walmart que gritou ao me
ver. Será que eu estava disposta a aceitar isso também nos
momentos ruins, momentos tão tristes quanto aquele? Sim,
concluí, durante o clique frenético das câmeras. Era uma
troca justa: abrir mão da privacidade em nome da
oportunidade de fazer algo que se ama. Ficaríamos juntos e
nos protegeríamos. Liana e eu demos um passo à frente e
cobrimos os outros dois lados de Summer, que Noah não
tinha como bloquear. Se os paparazzi eram um exército,
então nós também seríamos.
Houve uma discussão sobre adiar o começo das
filmagens da segunda temporada para que Summer
pudesse lidar com o luto. Mas, embora ela preferisse isso,
os executivos não quiseram esperar. Nossa agenda de
lançamento era rigorosa e tínhamos conseguido algo muito
raro: impulso. Se tirássemos uma folga longa demais,
corríamos o risco de deixar o frenesi morrer.
– O luto é importante – disse Michael, explicando o
dilema para mim enquanto comíamos um lanchinho no
canto do velório. – Mas você também não vai querer deixar
de lado outras responsabilidades e aí, além do luto, ter o
arrependimento.
– Você acha mesmo que as pessoas iam parar de ligar
pra série?
Ele assentiu, com uma expressão sombria.
– Ou, se Summer insistir em ficar fora muito tempo, a
rede pode fazer a idiotice de substituí-la.
Não tinha como a série funcionar sem Summer. O
restante de nós ficaria arrasado por perdê-la.
– Não fariam isso – falei, sem saber direito.
– A emissora é um deus cheio de caprichos – respondeu
ele, enfiando o resto do sanduíche na boca. Então fixou o
olhar em mim, como se me visse pela primeira vez. –
Summer confia em você. Aposto que te escutaria se você
tentasse abrir os olhos dela.
Quando nós duas nos falamos por telefone alguns dias
depois, perguntei como ela estava.
– A semana foi muito ruim – contou Summer, e
pigarreou. – Eu, hum…
– Talvez fosse bom você se distrair.
– Você acha? – perguntou ela. Parecia uma criança do
outro lado da linha. – Será que você e a Liana poderiam
ficar um pouco por aqui? Tenho uma cama pra visitas e...
– É. E voltar ao trabalho pode ajudar bastante. Sabe, aí
todos nós podemos ficar juntos, fazer alguma coisa. – Sem
resposta. – O Michael falou que seria uma droga se as
pessoas perdessem o interesse no programa e a gente não
pudesse continuar.
Ela soltou um suspiro resignado e baixinho.
Uma semana depois, estávamos de volta ao set de
filmagem.

••••••
Liana e eu tentamos ajudar Summer fazendo noites de
filmes e festas do pijama no meu apartamento. Ela nos
dava um sorriso vazio. Durante a primeira semana de
retorno aos estúdios, Summer era incapaz de lembrar
coreografias mais elaboradas, esquecia a porta do trailer
destrancada.
Uma vez, fui buscá-la em seu trailer e havia um buquê
de tulipas na cadeira.
– Quem mandou essas flores? – perguntei.
– Não faço ideia – disse ela, pegando-as e passando o
polegar nas pétalas. Seus olhos ficaram cheios de lágrimas.
Ela esquecia suas falas. Esquecia de ficar nos lugares
marcados. A situação ficou tão feia que chegou aos ouvidos
dos superiores. Um dia, antes de começarmos a filmar,
Michael foi até onde Liana, Summer e eu nos alongávamos
no canto.
– O Sr. Atlas mandou um presente – disse ele para
Summer. – Quer que saiba quanto a emissora estima você.
Liana me cutucou, e nós duas nos viramos para ver
Michael puxar um diário com uma capa acolchoada verde,
com summer em alto-relevo. Era uma coisa linda. E, mais do
que isso, havia o esforço que o Sr. Atlas fez – de escolher,
de gravar o nome dela no diário –, apesar de ser um
homem ocupado. (Pensando melhor agora, tenho certeza
de que ele deu essa tarefa a algum assistente, mas, na
época, fiquei convencida de que ele, o presidente de uma
das emissoras mais importantes do mundo, tinha
reservado grande parte do seu dia só para comprar um
presente para Summer.)
Michael continuou falando, disse que tinha sido dele a
ideia de escolherem um diário. A escrita podia ser uma
cura, e todos queriam muito que ela se curasse. Eu mal o
ouvia. Estava espiando por cima do ombro de Summer
quando ela abriu o diário e revelou uma dedicatória do Sr.
Atlas: Para nossa estrela mais brilhante.
Summer fechou o caderno e o abraçou junto ao peito.
Ninguém imaginava o desastre que aquilo traria.
DIÁRIO DA SUMMER, 10 DE JUNHO DE 2004

Querido Diário,

Acho que nunca “entendi” muito bem a ideia


de escrever nossos sentimentos em vez de só
sentir. Mas talvez eu tenha sentido coisas
demais nos últimos tempos. Michael me deu
isso ontem, do Sr. Atlas, embora, é claro, ele
também tenha tentado levar crédito, fazendo
um longo discurso sobre a importância de
escrever, dos “poderes de cura” que isso tem,
e fez questão de lançar algumas referências à
própria escrita importantíssima. Olha só como o
fato de ele escrever “Os sonhadores” tinha
curado a ferida aberta em tanta gente por
causa do 11 de Setembro, etc... Foi mal, estou
sendo meio cruel. É um presente maneiro. Acho
que Kat e Liana ficaram com inveja, mas eu
trocaria com elas, sem pensar duas vezes, um
diário por um pai.
Enfim, acho que em tese eu devia escrever
sobre a morte do meu pai, mas não sei o que
falar, a não ser que eu não sabia que era
possível sentir tanta tristeza. Tem um buraco
negro enorme no meio do meu universo onde
antes tinha um sol. Minha mãe perguntou se
quero sair do programa, mas isso seria tipo
meu pai morrer de novo, eu desistir de algo
que o deixava tão feliz. Foi ele que sempre
achou que eu era digna de ser uma estrela. Ele
tinha essa certeza desde que fiz meu primeiro
solo no coro infantil da igreja, quando tinha 5
anos. Minha mãe deixou meu pai assumir as
rédeas e me levar para testes, ensaios, etc...
Não é que ela não acreditasse em mim. Era
mais por ter medo de que eu me magoasse
nessa história. Além do mais, quando eu ficava
chateada com isso, meu pai dizia que era
melhor deixar que ela ficasse em casa, porque
talvez alguém me afrontasse por não ser
totalmente “americana”, o que quer que isso
signifique. OK. Eu sei o que isso significa.
(Minha mãe costumava falar espanhol comigo
quando eu era pequena. Aí, depois que eu fiz o
solo no coro infantil, meu pai disse a ela que
isso estava me deixando muito confusa. Foi ele
também que falou que eu podia pintar o cabelo
de louro, depois que usei uma peruca para uma
das peças da comunidade. Disse que eu ficava
melhor com aquela cor. As pessoas começaram
mesmo a olhar por mais tempo e sorrir mais
para mim depois disso, e recebi mais retornos
dos testes, mesmo que eu achasse que estava
esquisita. Mas agora já me acostumei e acho
que seria estranho voltar pro cabelo castanho.
Acho que a gente se acostuma com qualquer
coisa. Não sei se isso é reconfortante
ou apavorante.)
Fiquei tentada a sair da série, como minha
mãe sugeriu, quando aquele grupo de homens
suados nos cercou do lado de fora da igreja,
depois do velório, e no resto da semana,
quando eu estava me sentindo péssima e nada
do que eu tentava fazia me sentir melhor e
todo mundo do programa dizia que, se
precisassem me esperar por muito tempo, isso
ia acabar com a produção. Fiquei pensando
que, talvez, não valesse tanto a pena assim.
Talvez eu devesse voltar a ser uma pessoa
normal, deixar que escalassem outra garota
enquanto eu concluía a escola e me casava
com Lucas. Meu pai gostava do Lucas.
Mas meu pai gostava de “Os sonhadores”
ainda mais. Além disso, como eu ia abandonar
a Kat e a Liana? (Se bem que, argh, a Kat anda
bem irritante, tipo dizendo que vai ficar tudo
bem sempre que tento falar sobre o assunto e
parecendo tão desconfortável que eu mudo de
assunto. Então tá, não vou conversar com ela.)
E Noah. Não sei se ele mudou ou se eu mudei.
Bom, não, não é verdade, eu sei que mudei.
Agora sou uma garota sem pai. Mas estou
reparando em coisas nele que nunca tinha visto
antes. Sabia que ele tem uma sarda atrás da
orelha, bem no lugar onde dá pra dar um
chupão na pessoa? Sabia... Pra quem eu estou
perguntando? Você é um diário. Lamento por
Michael, mas isso aqui é meio idiota.
9
••••••

2018

Ao acordar na manhã seguinte, o primeiro dia da nossa


volta, num quarto de hotel que a Atlas reservou para mim
pelo próximo mês, estou tão nervosa que vomito.
O primeiro compromisso não é um ensaio, mas uma
coletiva de imprensa, claro sinal de quais eram as
prioridades da Atlas. Ninguém espera que a série seja uma
obra de arte. Eles esperam que renda manchetes.
Vamos nos encontrar em uma sala perto de onde a
imprensa estará reunida. A ideia é nos cumprimentarmos –
Liana, Summer, Noah, Michael e eu – e então sairmos
juntos, em pelotão, para enfrentar os jornalistas e
fotógrafos.
Quando chego, Michael já está lá. Nosso criador. Falar
assim faz parecer que ele nos fez, o que acho que é o caso.
(E também nos arruinou?)
– Kat – diz ele, vindo me cumprimentar.
Está mais rechonchudo do que nunca, usando uma de
suas tradicionais camisas largas (essa tem a estampa do
pôster de um filme clássico antigo), com o cabelo
desgrenhado e o corpo robusto um pouco mais frágil do
que era 13 anos atrás. Não sei se o abraço ou aperto sua
mão. Nunca tivemos uma relação próxima. Eu era tão
ansiosa para cair nas graças de Michael que não conseguia
ficar de boa perto dele como Noah ficava. Tenho quase a
mesma idade que ele tinha quando criou o programa,
trabalho com homens ricos de meia-idade o tempo todo e,
ainda assim, quando Michael vem na minha direção, fico
nervosa e escolho estender a mão para cumprimentá-lo.
– Aliás – digo, apertando a mão dele –, longe das telas
atendo por K ­ atherine.
– Humm – resmunga Michael, então aponta para um
cinegrafista às suas costas. – James está fazendo algumas
filmagens dos bastidores pra gente lançar, então pareça
animada.
Bom, é como dizem por aí: por que não colocar uma
câmera na jogada quando se está prestes a ter um
reencontro constrangedor e aterrorizante com pessoas que
um dia significaram tudo para você?
Assinto para James enquanto Michael continua:
– Cara bacana. A gente trabalha junto em Desastre no
mar. Já viu?
– Ah, sim. Parabéns pelo sucesso.
Digo isso para disfarçar o fato de não ter sentido o
menor interesse em assistir à série mais recente de
Michael sobre um grupo de crianças cujos pais trabalham
em um cruzeiro e as travessuras que elas aprontam no
navio. Não é um fenômeno como Os sonhadores, mas já
tem respeitáveis três temporadas em um serviço de
streaming. Na verdade, “respeitável” é uma boa palavra
para descrever a carreira que ele conseguiu construir
depois de Os sonhadores. Ainda assim, fico me
perguntando quanto tempo ele gastou culpando Summer,
aonde ele acredita que poderia ter chegado se não fosse
por ela.
– Pega um café ou um lanchinho – diz Michael, e aponta
para uma mesa com guloseimas. – A imprensa já está se
preparando. Vamos sair assim que os outros chegarem.
Ele se vira para uma assistente e fala sobre questões
logísticas.
Pego um copo de café, agitada demais para conseguir
comer, e então avisto na mesa umas amêndoas
saborizadas que Miheer ama, ainda que eu jure que elas
têm gosto de chulé. Mando uma foto para ele.
Parece que alguém da produção tem o mesmo mau
gosto que você.
Ele responde na mesma hora.
Ei!
Meus ombros relaxam de alívio. As coisas entre nós
ficaram esquisitas no aeroporto, mas vamos superar.
Meu celular vibra novamente.
Come algumas por mim.
Eu faço questão de continuar com a implicância.
Jamais.
Em seguida ele manda mais uma mensagem.
Boa sorte hoje!
E, um pouco depois:
Não, peraí. Merda pra você? As pessoas falam isso antes
do ensaio?
Estou sorrindo, lendo a mensagem dele, quando Liana
surge de uma porta do outro lado da sala – um banheiro – e
ofega ao me ver. Ela vem rápido até mim, de braços
abertos.
– Kat! – diz ela, com um abraço apertado.
Não estou preparada para o tipo de afeição e o estranho
ângulo por onde ela chega. Fico paralisada enquanto tento
não cuspir o café. Liana foi a única com quem mantive
contato nos meses seguintes ao programa ao vivo. Nós
duas ao telefone, cuidando uma da outra, até que se
tornou doloroso demais falar sobre tudo que perdemos,
então nos afastamos. Ela dá um passo atrás e me segura
pelos ombros. Seu rosto parece mais repuxado do que na
última vez que a vi, como se as bochechas joviais e
redondas tivessem dado lugar a algo mais definido e
anguloso. Algo natural com o passar do tempo e o
envelhecimento ou seria apenas resultado de cirurgias
plásticas e uma rotina implacável de exercícios? Liana
sempre se dedicou com zelo a qualquer coisa que
desejasse, e parece que ela tem se dedicado bastante a ser
a esposa gostosa. Apesar da mudança, é bom vê-la, sentir
suas mãos em meus ombros. Sinto um nó na garganta. Por
um momento, apenas nos encaramos, exaustas. Imagino
nós duas nos dando as mãos e saindo correndo dali,
parando no bar mais próximo e conversando por horas e
horas.
Então ela desvia o olhar.
– Isso foi esquisito. Corri até você feito um velociraptor.
Ela ergue as mãos como se fossem garras e faz uma
careta engraçada.
Dou uma risada.
– É, não foi um abraço muito fofo.
– Será que a gente... – começa ela, então toma uma
decisão. – É, vamos repetir.
Ela aponta para James, o cinegrafista, que estava
filmando nosso momento.
– Espera, sério? – pergunto.
– Quer mesmo que o mundo inteiro veja esse abraço
esquisito?
– Ai, meu Deus – respondo. – Tá bom.
Então largo meu café, planto um sorriso no rosto e
jogamos os braços ao redor uma da outra como se uma de
nós tivesse voltado da guerra para casa. Bem, já que logo
vamos mergulhar em ensaios, acho que é válido tirar a
poeira das habilidades de interpretação.
– Minha nossa! – diz alguém, e todos se viram, porque
Noah Gideon entrou na sala.
Tempos atrás, ele viria depressa até nós, um filhotinho
empolgado e desengonçado que corria atrás do mundo,
louco para ver o que ele lhe ofereceria. Agora, no entanto,
ele se apoia na soleira da porta, um sorriso no rosto ao
avistar nós duas.
– Olhem só vocês, meninas – diz ele, balançando a
cabeça, os braços cruzados.
Ele usa um suéter cinza justo, e a barba aparada (bem
rente mesmo) brilha em seu rosto e lhe dá um ar másculo.
Ele é... firme. Não precisa mais correr atrás do mundo. O
mundo vai até ele.
O jovem encantado se tornou um homem que encanta.
Ele reluz, mas não vou deixar que seu brilho me cegue
outra vez. Agora conheço o segredo dele: Noah tem plena
consciência do próprio brilho e o usa com um propósito. Ele
pode olhar para mim como se eu fosse a única na sala, aí
se vira e encara outra pessoa exatamente do mesmo jeito.
E não sou mais a garota apaixonadinha que era, sempre ao
redor dele para receber só migalhas. Miheer me oferece o
banquete completo. (Literalmente: ele é um cozinheiro de
primeira.)
Ainda assim, o primeiro amor da nossa vida sempre
mexe com a gente de um jeito diferente. Tem uma parte
sua, aquela que sente saudade de quem você foi um dia,
que nunca vai esquecê-lo. Ele sempre vai ter... uma carga,
caso você tenha a sorte ou o azar de revê-lo.
E aí, quando Noah abre os braços, caminho até ele. É
um movimento involuntário. Ele me tira alguns centímetros
do chão – ai, meu Deus, que irritante ele ser tão forte, o
peito sólido e largo sob aquele suéter justo idiota – e aí se
vira para Liana.
– Cuidado, nada de me levantar! – avisa ela, apontando
para a saia curta.
Ele ergue as mãos como quem se rende e dá um beijo
na bochecha dela. Liana aceita com serenidade – os
poderes de Noah nunca a afetaram, ainda mais agora, que
ela está casada com um superastro do esporte –, mas vejo
de relance a jovem assistente de Michael com o olhar
fixado na cena, sua mão indo até o próprio rosto em um
desejo inconsciente de que Noah pudesse se virar e beijá-la
em seguida.
– Tenho que fazer uma pergunta importante – diz Noah
para Liana. – Quando é que seu marido vem até o set pra
eu pegar um autógrafo?
– Ah, ele está louco pra vir. Ele queria poder ficar por
aqui o tempo todo, mas, com os treinos e a temporada,
sabe como é – diz Liana, de um jeito tão fluido que parece
ensaiado. Ela pisca. – Na verdade, vamos tirar uma foto pra
mandar pra ele!
Liana pega seu telefone e tira uma foto de nós três.
Todos sorrimos, então percebo que algo me incomoda.
Quando éramos mais novos, Liana era de uma franqueza
revigorante. Ela se jogava por aí e falava o que pensava, o
que, é claro, talvez aborrecesse as pessoas, mas eu amava.
Só que agora ela parece artificial, como uma planta linda
que a gente admira de longe, mas que não passa de
plástico.
– Fiquei sabendo de você e da Cassie, sinto muito – diz
Liana para Noah, enquanto passa pela tela as fotos que
tirou e envia uma para Javier.
– Valeu – responde ele.
Cassie Mueller, ex de Noah, é o tipo que vai a todos os
eventos badalados e é conhecida por causa do pai famoso,
um diretor que ganhou todas as premiações do mundo.
Cassie explora a criatividade superficialmente, do jeito que
todo filho de gente famosa faz – publicando um livro de
ensaios confessionais, trabalhando com fotografia – e está
tranquila com isso. Mas, se ela fosse uma mulher qualquer
de Dakota do Sul, ninguém abriria espaço em sua galeria
para ela.
– Então você está na pista de novo, é? – continua Liana,
não muito atenta à conversa.
Agora ela está postando nossa foto no Instagram,
digitando uma legenda em que se lê “BFFs REUNIDOS”
enquanto mal olha para nós.
– Melhor as mulheres se cuidarem – digo, em uma voz
mais seca que o deserto.
Michael chama Liana para ver alguma coisa, e o
cinegrafista se vira para eles.
– Ei. – Noah roça a mão na minha e baixa a voz,
mantendo uma expressão casual no rosto. – Sei que a
última vez que saímos foi... – Espero, em silêncio, erguendo
uma sobrancelha e obrigando-o a dizer. – Não foi legal. Mas
podemos ser amigos de novo?
Tivemos 13 anos para voltar a ser amigos. Só que ele
nunca se deu ao trabalho de entrar em contato para se
desculpar ou ao menos conversar. Nesse meio-tempo,
viveu feliz o suficiente para dar risada quando os
entrevistadores faziam algum comentário mordaz em
relação ao programa. Ou em relação a uma de nós.
Forço um sorriso que não chega aos meus olhos.
– Claro. Amigos.
Porém fico pensando: não seria mesmo benéfico para
ele ficarmos amiguinhos? Sem dúvida ele foi sugado para
este reencontro, mas não tem como a reputação dele sair
manchada sendo visto de camaradagem com a gente. Se
não parecer que culpamos Noah pela forma como ele agiu
depois, ninguém vai poder culpá-lo também.
Conversamos sobre a vida uns dos outros por uns dez
minutos, com uma crescente apreensão: Summer ainda
não está aqui.
Por fim, Michael se aproxima.
– Alguém sabe da Summer? – pergunta, e balançamos a
cabeça. Ele dá um sorriso amarelo, os lábios se retorcendo.
– Será que a gente devia apostar se ela vai ou não
aparecer?
Ao meu lado, Liana olha para o chão. Noah dá um
sorriso, mas sua perna treme de um jeito bem sutil quando
ele bate o pé.
Uma assistente toda agitada entra, vindo da sala de
imprensa.
– Estão perguntando se houve algum problema – diz ela
para Michael, em voz baixa.
– Droga – diz ele, alto demais, e então esfrega os olhos.
– Juro por Deus, se ela arruinar este reencontro também...
– Ela vem – digo.
E, como se minhas palavras fossem mágicas, a porta se
abre e Summer aparece.
– Oi! – grita ela, e arqueio as sobrancelhas, surpresa.
Ela parece diferente do que estava um mês atrás,
quando foi até Washington me convencer a participar do
reencontro. O cabelo está cheio e recém-pintado, as unhas
estão feitas, a maquiagem foi aplicada com perfeição. Ela
usa um vestido leve e delicado azul que a deixa com...
Bem, eu não chegaria ao ponto de dizer “um brilho
saudável”, mas é o que parece quando comparado ao
estado anterior, como se ela tivesse largado o álcool e
começado a correr. Claramente Summer passou o último
mês se empenhando ao máximo para se transformar de
novo na versão dela da primeira vez que estivemos todos
juntos, uma jovenzinha inocente. Mas não há como
disfarçar a aspereza na voz, a história que paira sobre ela
como uma nuvem carregada.
É muito, muito esquisito.
Ela não se desculpa pelo atraso, apenas entra, tímida, e
me abraça apertado. Ela segura as mãos de Liana, que
prende a respiração antes de adotar seu sorrisão falso para
a câmera e dizer:
– Que maravilha ver você!
– A gente vai se divertir muito – diz Summer.
Ela nos encara, mas não parece que está de fato
olhando para a gente, mas sim evitando olhar para outro
lugar.
Ao meu lado, Noah pigarreia. Por um breve instante, o
sorriso de Summer falha. Então ela se vira para ele.
No momento em que os dois se encaram, é como se
quisessem se matar ou arrancar as roupas um do outro. Se
esse reencontro acontecesse sem testemunhas, talvez eles
escolhessem uma das opções e partissem pra cima. Mas
agora eles estão diante da lente da câmera e no centro das
atenções de todos. Então, parecendo prender o fôlego,
Noah inclina a cabeça na direção dela.
– Summer – diz ele.
– Olá – responde Summer. Ela toca de leve no antebraço
dele, os dedos apenas roçando a pele que não está coberta
pelo suéter. – Parabéns. Você se saiu muito bem.
Ele não tem como devolver o elogio. Todos nós sabemos
disso.
– É ótimo te ver – diz Noah, engolindo em seco.
– Sabe, eu vi Silvestres – continua ela, e Noah enrijece,
como se estivesse preocupado com o julgamento dela.
Não precisa ficar. Ao que parece, todo mundo ama
Silvestres, uma melancólica animação de aventura que
Noah escreveu (sobre esquilos ou algo assim, não sei,
nunca vi). Ganhou o Oscar de melhor animação e rendeu a
Noah uma indicação-surpresa de melhor roteiro original.
Nem eu, que um dia fui encantada pelo brilho de Noah,
poderia imaginar que ele fosse capaz de algo assim. O
sucesso do filme fez o status de Noah pular de famoso para
respeitado. Ninguém podia alegar que ele era só um
rostinho bonito depois disso.
– É lindo – diz Summer, e algo muda no semblante de
Noah.
Seus olhares continuam fixos um no outro por mais um
instante, que parece durar uma eternidade. Safras inteiras
crescem e secam, cidades nascem e morrem. O resto da
sala começa a falar sobre Silvestres. (“Ah, é, é muito bom”,
“Eu chorei rios, mas também me senti meio que
enlevado?”)
– Ok, ok – interrompe Michael. – Todos aqui acham
Silvestres uma baita obra-prima. Agora, Summer, está
pronta pra encantar a imprensa?
Ela finalmente desvia o olhar de Noah.
– É claro – responde.
Seu tom de voz é ameno, mas um tom rosado surge em
seu pescoço. Os assistentes começam a nos conduzir até a
porta. Olho de relance para Noah. Ele está sorrindo como
todo mundo, mas os pelos dourados em seu braço, onde
Summer o tocou, estão arrepiados, com o de alguém que
acabou de ver um fantasma.
••••••

O barulho da sala de imprensa nos atinge enquanto nos


acomodamos em nossos lugares. Michael faz um breve
discurso sobre o quanto estamos empolgados por voltar, e
então é dada a largada, mãos se erguendo, cliques de
câmeras.
Como é reencontrar todo mundo de novo depois de todo
esse tempo? (“É como uma reunião de família”, diz Liana, o
que, tecnicamente, é verdade, caso você tenha perdido
contato com a sua família.) Será que Noah pode falar
alguma coisa sobre seu próximo projeto? (“Quando eu
puder falar sobre isso, você vai ser a primeira a saber”,
responde ele, lançando um sorriso encantador para a
repórter e se inclinando em sua direção como se fosse uma
conversa particular. Ela fica vermelha como um pimentão.)
Michael passa a vez a uma mulher de ar presunçoso na
primeira fila, e ela se levanta.
– Todos nós aqui lembramos como as coisas terminaram.
Sei que todos estão muito animados com o retorno, mas
como vocês vão garantir que o que aconteceu da última
vez não se repita?
Quando Michael fica desconfortável, seu primeiro
instinto é ser cruel. Fiel a isso, ele se inclina na direção do
microfone e diz:
– Não se preocupe, estamos cuidando para que, desta
vez, as roupas sejam bem mais difíceis de tirar.
Alguns fotógrafos dão risada. Arrisco um olhar rápido
para Summer, que colou um sorriso no rosto como se
tivesse entrado na brincadeira.
– Ninguém vai ter diário dessa vez, vai? – questiona o
repórter seguinte.
– Eu, não – garante Summer. – Não cheguei nem perto
de um diário na última década.
– E por que o atraso hoje? – pergunta alguém,
implacável. – Não é a melhor maneira de começar, é? Já
tivemos algum drama nos bastidores?
Todos os repórteres olham para Summer. Ela é a instável
do grupo, então deve ser o motivo do atraso. Seu sorriso
vacila. Acho que ela não estava preparada para esse
massacre. Meu Deus, é como se a gente estivesse fazendo
Summer passar por essa penitência.
Antes que alguém diga algo, eu me adianto.
– Fiquei presa no trânsito. A gente se muda de Los
Angeles e esquece que as estradas aqui são um inferno.
Os repórteres assentem com empatia e, por um
momento, todo mundo na sala se solidariza, o ódio pelo
trânsito de Los Angeles nos unindo. Então um homem na
terceira fileira se levanta.
– Mas, falando sério – diz ele. – Programas ao vivo
podem dar errado até nas melhores circunstâncias. Dado o
histórico, vocês consideraram fazer um especial gravado?
É uma pergunta válida. Fiquei surpresa quando disseram
que iríamos ao ar ao vivo outra vez, mas, ao que parece, a
Atlas fez uma enquete e descobriu que os espectadores
ficaram bem menos entusiasmados com um especial
gravado. Eles queriam a empolgação e os riscos da
transmissão ao vivo.
– Bom, é pra isso que existem aqueles benditos
segundos de atraso na transmissão hoje em dia, certo? –
diz Michael.
Summer fica pálida, e noto Liana também olhar de
relance para ela. Rápida e plácida, Liana puxa a atenção
para si.
– Olha, a gente era um bando de crianças naquela
época – diz ela. – Talvez vocês não acreditem, mas o fato é
que crianças fazem coisas idiotas, principalmente as que
estão sob holofotes. Agora estamos mais velhos. Pode não
parecer, mas é verdade. – Ela afofa o cabelo e pisca várias
vezes, meio brincando, e então fica séria. – Também
ficamos mais sábios. Sabemos o que os fãs querem e
vamos garantir que recebam, porque o que seria de nós
sem eles, não é mesmo? – Seu discurso é bem persuasivo,
e fico me perguntando se ela preparou isso, assim como a
fala sobre Javier. – Acredito no profissionalismo dos meus
colegas de elenco. Todos nós confiamos uns nos outros,
não é?
Nós sorrimos e assentimos rápido, e fico curiosa para
saber se o coração de mais alguém está tão disparado que
parece que vai sair do peito. Porque, por mais que eu os
ame, os odeie e tenha sentido muita saudade deles, eu não
confio neles. Nem um pouco.
FANFICTION.COM, 10 DE JUNHO DE 2005

Tema: Os sonhadores
Summer/Noah
Tema: Ouse voar
Por: EscritoraNerd882
Classificação: Adulta

** Oi, pessoal! Já que a gente não conseguiu


ver isso, estou escrevendo como eu acho que o
programa deveria ter terminado. Sei que é um
slow burn, mas a relação de Summer e Noah no
programa é assim, rs! Me contem se acharam
bom, e eu continuo escrevendo!

CAPÍTULO UM
Summer sentou-se na sala de música da escola
na tarde da formatura do ensino médio. Ela
suspirou e olhou para seu reflexo na janela. Por
mais que fosse linda, não tinha namorado.
Liana dizia que a amiga era muito exigente.
Mas ela não podia evitar o que seu coração
tanto queria: o único garoto que não poderia
ter.
Noah. Summer via o reflexo dele na janela
também, encarando-a como se jamais quisesse
desviar os olhos. Mas devia ser só coisa da
cabeça dela. Kat tinha dito que Noah não
gostava dela desse jeito e que, se tentasse sair
com ele, isso com certeza acabaria com a
banda.
Mas então ele a cutucou no ombro. Summer
não estava imaginando coisas! Seu coração
disparou.
– Noah! – gritou ela. – O que está fazendo
aqui?
Noah não conseguiu evitar um sorriso.
Summer ficava linda quando era pega de
surpresa. Estavam prestes a sair do ensino
médio e, se ele nunca dissesse a ela o que
sentia, se odiaria pelo resto da vida.
Ele se sentou ao lado de Summer no banco
do piano.
– Passamos muitos momentos importantes
nesta sala ensaiando para Os sonhadores, não
é?
Ela deu um sorriso triste e tocou algumas
notas no piano.
– Acho que agora acabou.
– Então vamos fazer deste último momento
o mais importante de todos – disse ele, e a
beijou.
Ao sentir os lábios quentes de Noah nos
seus, Summer não pôde acreditar que isso
finalmente estava acontecendo! Os lábios
ávidos de Noah eram ainda melhores do que
ela imaginava. Suas línguas se encontraram,
deslizando juntas, até que ela se afastou,
incrédula.
– Espera, achei que você não gostasse de
mim dessa forma!
– Quero fazer isso desde que te conheci.
Summer... eu te amo.
Ela ofegou e o enlaçou pelo pescoço.
– Ah, Noah, eu também te amo.
Ele a beijou de novo, com mais ímpeto
dessa vez. Noah a tornaria sua naquele
instante, naquele banco de piano. Summer
levantou a blusa dele para revelar seu
tanquinho, que era bem bronzeado e sensual.
Ao ouvir o som alto de passos do outro lado
da porta, eles se afastaram. O Sr. Talbot, o
professor de música, entrou na sala.
– Ora, olá! Estou só procurando meu
clarinete. Vocês não deveriam estar se
preparando para a cerimônia de formatura?
O Sr. Talbot os encarou, esperando por uma
reação, então Summer e Noah saíram da sala,
juntando-se à multidão de estudantes no
corredor. Antes de se separarem, porém, Noah
pegou a mão dela e sussurrou em seu ouvido:
– Ainda não terminamos...
Continua...

COMENTÁRIOS:

SONHOSSEREALIZAM91: CHOREI. Não acredito que a gente


nunca vai ver isso!!!!

SRANOAHGIDEON7: Não sei como vc escreveu uma coisa dessa


quando a Summer é uma vagabunda, uma escrota que traiu o
amor sincero do Noah. Parece que vc não leu as coisas
horríveis que ela escreveu sobre ele!! Enfim, tomara que ele
esqueça ela totalmente, porque tem um monte de garotas por
aí que nunca magoariam o Noah e talvez ele devesse nos dar
uma chance.

AVIDAEHASSIM: Escreva o próximo capítulo agora. Preciso que


os dois transem.
10
••••••

2004

Pensando em retrospecto, foi em Nova York que


começamos a rachar.
Depois de alguns meses filmando a segunda temporada,
a Atlas nos fez viajar até Nova York para gravar um
episódio em que fazíamos um teste para um musical da
Broadway. No episódio, um diretor de elenco topava com a
gente cantando com um artista de rua no Central Park e
nos implorava para irmos até o escritório dele. Apesar de
nos oferecerem papéis, no fim decidíamos continuar o
ensino médio e só pensar em nos tornarmos astros da
Broadway depois da formatura. Sério, a quantidade de
realização de sonhos que acontecia em Os sonhadores
deixou muitas crianças com a ideia errada de que era
muito fácil se tornar uma estrela. Deve ter havido uma
geração de pré-adolescentes cantando em público e
olhando desesperadamente ao redor para ver se alguém
lhes ofereceria um contrato com uma gravadora.
Levar a equipe para o outro lado do país só para fazer
um episódio era um gasto astronômico, mas nós valíamos
a pena. O Sr. Atlas tinha dito a Michael que Os sonhadores
era o programa mais importante da empresa, e agora
Michael estava tendo várias ideias, entre elas: a gente
devia fazer o último episódio ao vivo na segunda
temporada! Michael começara a carreira no teatro, e nada
se comparava à adrenalina de se apresentar na frente de
uma plateia! Ele tinha outra ideia também, tão grandiosa
que nem podia nos contar, mas ele prometia que mudaria
nossas vidas se fosse para a frente.
Nossos dias em Nova York começaram bem. Quando eu
soube qual seria nossa primeira parada, minhas pernas
ficaram bambas: nós íamos aparecer no Top 10. O Top 10,
na MTV. Quantas tardes melancólicas não passei em casa,
me reconfortando ao ver minhas celebridades favoritas
visitarem o estúdio na Times Square e votando nos meus
videoclipes favoritos!
Agora, estávamos entrando no estúdio, um atrás do
outro, segurando microfones, tentando nos equilibrar em
saltos altos. Será que meus ídolos tinham pisado
exatamente onde eu estava pisando? Os fãs sortudos
sentados no estúdio berravam loucamente. O VJ falou para
irmos até a janelona e olhar lá para fora.
– Sintam esse amor! – disse ele.
Lá embaixo, na rua, entre letreiros luminosos e o Planet
Hollywood, mais fãs se aglomeravam atrás de uma
barricada, erguendo cartazes e acenando para nós.
Eu senti mesmo o amor, uma bola gigantesca quicando
em todas as direções, vindo até mim e saindo de mim.
Sentia amor pelos fãs e por Summer, Noah e Liana.
Sabíamos muito bem como apoiar uns aos outros durante a
entrevista. Ficamos de mãos dadas, contentes, enquanto o
VJ passava um trechinho de um episódio inédito. No vídeo,
nossa banda tinha sido convidada para se apresentar no
baile dos alunos do último ano, então fomos ao baile,
mesmo sendo mais novos. Eu tinha convencido Summer e
Liana de que precisávamos usar vestidos simples e
combinando em prol da “unidade da banda”, só para
aparecer com um vestido incrível e roubar a cena. Os fãs
no estúdio berraram quando, na tela, Noah falou para
Summer que ela ficaria linda mesmo que aparecesse
usando uma sacola de papel. Eles riram quando meu
vestido de baile ficou enrolado nos fios do microfone e eu
tropecei bem na hora de começar a cantar, o que deixou
Summer com o solo. (E Liana também estava lá.) Então
dançaram junto com o refrão da música, que cantamos em
uma harmonia a quatro vozes:

É a grande noite da vida, então viva!


A noite da sua vida, se divirta
Tuuuuudo o que você tem,
Se joga e se arrisca, vem
É a noite da sua vida!

E não tinha importância que eu nunca tivesse ido a um


baile e nunca fosse, porque estar naquele estúdio com as
minhas três pessoas favoritas colocava as danças do
colégio no chinelo. Eu teria pena de qualquer um que
acreditasse que o baile era a noite mais especial da sua
vida, porque as nossas noites iam ser cada vez melhores.
E podíamos começar agora.
– O que a gente vai fazer de noite? – perguntei, assim
que entramos no elevador para voltarmos à rua, depois
que a gravação terminou.
– Wicked – disse Liana. – A gente tem que ver Wicked.
– Ou, saquem só – disse Noah. – A gente vai a um jogo
dos Yankees só pra vaiar os caras. – Olhamos para ele sem
entender nada. – Não se preocupem, eu trouxe uniformes
do Red Sox pra todos nós.
– Não – respondeu Liana.
– E se – começou Summer, baixinho – a gente ficasse
passeando pela Times Square?
– Isso é coisa de turista – falei.
– Já estamos aqui. Podemos ver o Caubói Nu e a loja de
M&Ms...
– Já fiz isso em excursões e é uma droga, vai por mim.
– Meu pai sempre falou que era bem legal – disse ela.
Nós três nos entreolhamos, vencidos.
– É, vamos sair pela Time Square – disse Noah.
Então, contrariando o conselho de nossos superiores,
fomos para a rua e andamos direto até os fãs.
Lá de cima, do estúdio, ver a multidão tinha sido
emocionante. Fãs gritando à distância era perfeito. Mas
cem pessoas berrando seu nome bem no seu ouvido,
tentando tocar em você, é bem diferente. A empolgação, a
novidade, tudo isso se quebra e vira ansiedade.
– Sorria e acene – disse Liana, estampando um sorriso
torto no rosto, então fizemos o mesmo e depois tentamos
forçar nossa passagem pela aglomeração.
Mal conseguíamos enxergar além da parede de pré-
adolescentes segurando cartazes com “CASA COMIGO, NOAH”
ou usando um penteado no mesmo estilo que Summer
usara em um episódio popular. Flashes de centenas de
câmeras descartáveis explodiam na minha vista, como se
estivéssemos próximos demais de um show de fogos de
artifício. Ainda que eu tentasse me sentir grata, para
lembrar que era isso o que a gente queria, a claustrofobia
me dominou.
– Recuar? – sussurrou Noah.
Nós recuamos, ainda sorrindo e acenando, e nos
refugiamos lá dentro. Mandaram um carro nos buscar. Nada
de Wicked, Yankees, loja de M&Ms ou os diversos museus
que eu queria visitar. Acabamos voltando para o hotel.
Ficamos aninhados no meu quarto, um sentimento
ambíguo e esquisito tomando conta de nós. Tivemos muita
sorte. Mas, ao mesmo tempo, valia a pena abrir mão de
tanta coisa? Liana puxou uma garrafa de vodca – tinha 21
anos agora, o que era um divisor de águas – e passamos a
bebida entre nós, até mesmo Summer.
Olhei para meus amigos. Summer fitava o nada. Noah e
Liana mandavam mensagens em seus celulares. Se isso
tivesse acontecido na primeira temporada, Summer teria
nos mostrado com meiguice o lado bom da situação. Mas
agora ela estava em silêncio, então assumi seu papel.
– Tá legal, isso é ridículo – falei. – A gente ainda pode se
divertir hoje à noite. Estamos em uma suíte chique com
nossos melhores amigos. Tipo, olha só este quarto.
Apontei para as cortinas suntuosas e a cama
gigantesca. Sempre que eu saía de férias com a minha
família quando era mais nova, ficávamos em hotéis simples
ou no quarto de hóspedes na casa dos meus avós. Teve
uma vez, quando esbanjamos mesmo, que ficamos no
Marriott, um hotel bem qualquer coisa.
– Na verdade, eu tenho que... – Noah ergueu o celular
pra gente com uma expressão acanhada. – Michael me
convidou pra sair com ele e alguns escritores.
– Sério? – perguntou Liana. – Sobre o que vocês vão
falar?
– Coisa de homem? – provoquei, ainda que estivesse
com inveja.
Ele tinha muita sorte de ter sido convidado. Eu não
queria sair com Michael, mas queria ter sido chamada.
– Ele falou que, se todos nós fôssemos, ia chamar muita
atenção – continuou Noah. – E não dá pra dizer não pro
Michael, né?
– Tá legal, pode abandonar a gente – falou Liana. –
Vamos fazer uma noite das meninas.
Assim que Noah saiu, Liana colocou “Defying Gravity”
para tocar, e nós três cantamos, uma tentando superar a
outra, fingindo que não ligávamos para quem se saísse
melhor.
Mas, uma hora depois, Liana também foi embora – ela
estava trocando mensagens com um dos caras do coro
fazia algumas semanas e ele a convidara para ir até o
quarto dele.
– Tchau, meninas – disse ela, com um sorriso de
expectativa. – Vou deixar meu corpo ser idolatrado como
ele merece!
Então ficamos só Summer e eu. Ora, estava mais do que
bom. Ela pegou seu laptop grande e pesado e se sentou ao
meu lado na cama, apoiando a cabeça no meu ombro, seu
cabelo fazendo cócegas em mim.
– O que você quer fazer? – perguntou ela.
Tive uma ideia.
– Vamos entrar em uma sala de bate-papo de Os
sonhadores.
Criamos uma conta falsa e fiz o login.
Um usuário mandou mensagem quase na mesma hora:
I/S/L?
Pensei na nossa idade, sexo e localização de verdade e
então, para fazer Summer rir, digitei:
27/M/Alasca
Começamos a escrever várias bobeiras ridículas para os
fãs, que não sabiam que éramos nós do outro lado da tela,
uma incentivando a outra a colocar as coisas mais doidas
possíveis. Duas garotas famosas, na maior cidade do
mundo, conversando com estranhos em um bate-papo
virtual. Apesar da reviravolta da noite, eu estava mais do
que feliz. Digitei mais uma mensagem e mandei:
O que você faria se um dia encontrasse com eles na
vida real??
Uma chuva de respostas veio na mesma hora:
Declaro meu amor eterno!
Canto na frente deles pra me colocarem no programa
também!
Depende de quando.
O autor do último comentário mandou um link.
– Como assim? – perguntou Summer, então cliquei no
link.
Um relógio apareceu na tela, números grandes em
contagem regressiva: três semanas, dois dias, cinco horas,
dezessete minutos e os segundos que iam passando
enquanto olhávamos para eles, sem entender. Então:
– Ah – fez Summer.
O som quase não saiu dela como uma palavra. Foi mais
como se ela tivesse levado um soco no estômago enquanto
íamos registrando fotos dela espalhadas por todo o site.
Três semanas, dois dias, cinco horas, dezessete minutos e
alguns segundos até ela completar 18 anos.
– Fecha isso – disse Summer, mas continuei olhando.
A foto que mais se destacava no site era a de uma
entrevista descarada da Vanity Fair com ela. Summer
estava puxando a saia para cima e revelando um
pedacinho da coxa dourada, um ar de inocência como
quem diz ops! ao registrar o flash da câmera.
Debaixo da foto, mais texto de quem quer que tivesse
criado aquele site:
Se não der pra esperar, é só pegar a versão falsificada.
Kat Whitley fez 18 este ano. Coloca um saco na cabeça
dela e usa a imaginação.
Summer fechou o laptop de repente, quase prendendo
meus dedos.
– As pessoas sabem ser nojentas – disse ela, como se
nunca tivesse pensado nisso.
Se ao menos Liana ainda estivesse ali... Os homens que
se danem, ela teria declarado. Ou talvez: a gente não devia
mais dar pra eles. Boicote já? Até mesmo Noah, sempre
agindo como um cavalheiro indignado a nosso favor, teria
mudado as coisas. Mas, do jeito que aconteceu, fomos só
duas garotas atiradas no mundo sem nenhuma armadura.
E o único inimigo que víamos era uma à outra.
– Não acredito que estão fazendo tanto alarde por causa
dessa foto – disse ela e, de repente, sua inocência pareceu
repugnante.
– Ah, qual é – falei, sentindo um gosto amargo na
garganta.
– O quê?
– Tipo, você tá levantando a saia. É claro que vão fazer
alarde.
Ela me encarou.
– Eu estava só ajeitando. Não sabia que iam tirar uma
foto.
Mas ela podia ter impedido isso se quisesse, pensei.
Summer tinha exigido dar aprovação final em todas as
imagens impressas. Dei de ombros.
– Talvez você devesse ser mais cuidadosa.
Suas bochechas coraram.
– Tem muita coisa acontecendo quando você é a peça
principal de uma sessão de fotos. Mas acho que você não
tem como saber disso.
Ela se retraiu assim que as palavras saíram,
surpreendendo-se com a própria crueldade. Nós nos
olhamos por um instante, sem dizer nada, e então ela se
levantou e se trancou no banheiro.
Fiquei ouvindo sons fracos vindo de trás da porta, tão
baixinhos que mal dava para decifrá-los. Choro, talvez? Eu
me enfiei debaixo das cobertas, puxando-as até o queixo,
ao mesmo tempo querendo me desculpar e dar um tapa
nela. Tentei me perder no sono, mas, sempre que fechava
os olhos, só me via ao lado de Summer, ela perfeita e
radiante, eu grotesca. A versão falsificada. Coloca um saco
na cabeça dela.
Um pouco depois, ela veio até a cama e se aninhou
atrás de mim, de conchinha (ainda que uma voz na minha
cabeça sussurrasse que eu deveria ficar atrás: eu era
maior, ela era delicada).
– Eu não falei sério – sussurrou ela. – Quer que eu vá pro
meu quarto?
Balancei a cabeça.
– Fica.
Ela me abraçou ainda mais apertado, e, de alguma
forma, acabamos mergulhando num sono inquieto.

••••••

De manhã, fingimos que nada tinha acontecido e nos


jogamos nas filmagens. Então, três dias antes de voltarmos
para Los Angeles, surgiu uma reunião importante para
Michael. Estávamos adiantados na programação, então
encerramos o dia de trabalho mais cedo. Noah foi
conversar com uma assistente de produção, tocando em
seu braço e deixando-a toda risonha, depois veio até nós
com a chave do carro dela na mão.
– Vamos fazer trilha – ele nos informou, enquanto dava
um tchauzinho para a moça, que já devia estar convencida
de que eles se casariam na primavera.
Subimos a toda pelo norte do estado, passando pelas
árvores cheias de folhas em tons dourados escuros e
bordô. Summer foi no assento do carona, ao lado de Noah,
que dirigia. Isso nem chegou a ser debatido. Liana e eu
éramos cidadãs de segunda classe no nosso Quarteto
Destemido, então a gente ia atrás, ainda que Liana tivesse
o melhor gosto musical e devesse ficar no comando do
rádio. Summer apenas o ligou em uma estação qualquer
que tocava pop. Uma música do Usher estava acabando e
deu lugar aos acordes familiares de uma de nossas
canções.
– Ah, não, muda – pediu Noah.
– Deixa aí! – falou Liana. Ela acompanhou a música,
fazendo uma paródia das vozes de todo mundo. – Você tem
que seguir aquele sonho – cantou ela, em voz grave,
estreitando os olhos que nem Noah fazia às vezes, quando
entrava mesmo no clima da música, depois veio uma voz
sussurrada e doce quando começou o solo de Summer. Ela
fez cara de desdém na hora dos meus versos e jogou seu
cabelo com orgulho quando entrou a própria parte. Me dei
conta do quanto ela era talentosa, como controlava a voz
sem o menor esforço. Tive a impressão de que Liana
poderia fazer aquilo pra sempre, sem se cansar, e o
espetáculo continuaria a fluir dela. Se eu tivesse que fazer
algo assim, precisaria praticar bastante.
– Pô, Michael, me dá um solilóquio – gritou ela para o
céu, por cima dos nossos aplausos, quando a música
chegou ao fim.
Na maior parte do programa, cantávamos músicas que
tocavam no “mundo real”, participando de concursos de
talentos, testes e assim por diante. Mas, de vez em
quando, Michael rompia com a realidade estabelecida e
entrava de cabeça no teatro musical. Aí fazia coisas como
pôr Summer para cantar uma música sobre seus sonhos e
esperanças enquanto andava despercebida pelos
corredores da escola ou me colocar em uma grande
apresentação em um shopping enquanto eu experimentava
roupas. Era óbvio que essas coisas não faziam muito
sentido dentro da realidade da série, mas nós (e o público)
adorávamos a oportunidade de entrar na cabeça dos
personagens. Entre nós, começamos a chamar esses solos,
meio que brincando, de “solilóquios”, um termo dramático
para destacar quanto eram especiais. Nem preciso dizer
que Liana nunca fez um. Ela mal cantava alguns versos nas
músicas que a gente tocava com a banda. Michael era o
maior idiota do mundo por deixá-la em segundo plano. Pelo
menos ela teria uma estrofe solo inteira na cena que
filmaríamos no dia seguinte, onde todos nos juntávamos a
um artista de rua no metrô. Ela vinha se preparando a
semana toda e eu sabia que Liana ia arrasar.
Noah estacionou no começo da trilha. Uma montanha se
erguia diante de nós, e quase não havia outros carros ao
redor nesse dia de semana aleatório.
Nossas roupas anunciavam diferentes níveis de preparo
para encarar uma trilha. Eu estava com minha roupa de
malhar. Desde que tinha lido o comentário do “saco na
cabeça dela”, eu acordava cedo toda manhã para correr na
esteira da academia do hotel, acelerando dolorosamente
enquanto minha respiração ia ficando mais pesada,
determinada a não dar mais munição para que ninguém
me comparasse a Summer de um jeito desfavorável. Liana
usava um conjunto esportivo de veludo com a palavra ANJO
estampada no bumbum. Summer estava com seu pijama
de florezinhas roxas. E Noah vestia um short esportivo,
ainda que fizesse 13 graus. Garoto doido.
Ele deu alguns pulos, quicando no mesmo lugar, então
passou o braço casualmente pelo meu ombro.
– Pronta?
Quando ele ficava animado, seus olhos azuis brilhavam
de verdade. Tentei relaxar o ombro e deixá-lo confortável
para que, talvez, Noah mantivesse o braço ali durante toda
a subida. Havia outros caras no programa, que faziam
papéis temporários de alguém que estava a fim de uma de
nós ou então interpretavam amigos de Noah no time de
futebol da escola. Às vezes eles tentavam invadir nosso
quarteto, mas nunca conseguiam. Eram membros
inferiores da espécie, inexpressivos em comparação ao
rapaz que já tínhamos.
Estremeci quando Noah tirou o braço e deu um pulo
para ir olhar o mapa da trilha. Então partimos, nossos pés
esmagando folhas secas, Noah apontando para diferentes
tipos de árvores e pássaros à nossa volta.
– Você sabe muito – comentou Liana.
– Quando era criança, eu queria ser guarda-florestal –
respondeu Noah, rindo.
Noah e eu éramos iguais nesse aspecto: vivemos como
crianças normais por um tempo, ao contrário de Summer e
Liana, que perseguiam o estrelato desde sempre. Ele e eu
nos entendíamos.
A trilha ficou mais íngreme. Em poucos minutos, eu
estava ofegando. Logo depois disso, Liana parou.
– Ai, droga. Espera um pouco – disse ela, mexendo na
meia. – Acho que estou com uma bolha.
Eu me virei para ajudá-la a examinar o pé.
– Estou com frio, então vou continuar – declarou
Summer, num tom tenso e determinado.
– É melhor você não ir sozinha – falou Noah para ela,
então se virou para nós duas. – Encontro vocês lá em cima?
Sem esperar a resposta, ele seguiu Summer, os dois
desaparecendo por entre as árvores adiante.
Liana revirou os olhos.
– Valeu por esperar, pessoal – disse ela.
Dei uma risada cansada.
– Quanta consideração.
Seguimos em frente, devagar.
– O que você acha que a Summer tem – começou Liana
depois de um tempo – para as pessoas fazerem as coisas
por ela o tempo todo? Tipo, tá, ela é bonita. Mas me diz
uma garota nesse programa que não seja bonita. E, sem
querer ofender, eu tenho uma voz mais bonita e você é
uma baita atriz.
– Bom, não sei se isso é verdade – respondi.
Se eu descobrisse que Summer e Noah conversavam
sobre os pontos fracos que identificavam em mim e em
Liana, ficaria arrasada. Ainda assim, uma pequena parte de
mim sentiu alívio por eu não ser a única a pensar nessas
coisas.
– Não estou querendo ser escrota – disse Liana. – Eu
amo a Summer. E ela está passando por um momento
muito difícil. Mas você sabe do que eu tô falando.
– Sei. Será que, se a gente estivesse passando por algo
ruim, o Sr. Atlas teria dado um diário pra gente? Tipo, o
máximo que eu receberia seria um tapinha nas costas.
– Bom, nós não somos a estrela mais brilhante. – Liana
riu com pesar. – E ela não tá nem aí pra isso! Outro dia, no
trailer, ela derramou café no diário, fez um “ops” e só jogou
a parada numa gaveta.
A imagem de Summer deixando o diário
despreocupadamente dentro de uma gaveta me deixou
possessa. Para ela, o diário não era especial, algo em que o
diretor da emissora tinha investido tanto tempo e energia
pra encontrar, porque as pessoas davam a Summer
qualquer coisa que ela quisesse o tempo todo. Eu me
entreguei ao alívio, à catarse, ao falar mal dos outros
escondida.
– Às vezes, ela é bem mimada – falei. – Não sei se ela
tem noção disso, mas é.
– Sim! Parece que precisa que todo cara se apaixone por
ela, mesmo que já tenha um namorado bem lindinho.
Na verdade, eu não achava Lucas tão bonito assim. Ele
tinha todas as características que as pessoas costumavam
usar para descrever alguém lindo – louro, olhos azuis,
braços musculosos –, mas, por algum motivo, o conjunto da
obra não era tão completo. Ainda assim, ele parecia o tipo
de pessoa que deveria ser bonita, então todo mundo tinha
decidido que era. (Noah, por outro lado, era uma obra bem
completa. Seu sorriso, sua simpatia, o jeito com que o olhar
dele mirava a gente como se fosse um holofote, fazendo a
pessoa se sentir a mais especial do mundo... tudo isso
favorecia o conjunto.) Enfim, nunca reparei muito na
personalidade de Lucas e não entendia a devoção de
Summer ao garoto. Ela afirmava que o amava. Uma vez,
até falou que provavelmente se casaria com ele um dia,
mas, em todas as conversas sinceras que tivemos, ela
nunca contou de fato o que de tão interessante via nele.
– Tipo – continuou Liana –, acho que o Noah pode estar a
fim de você. – Meu coração disparou. – Ou de mim. – O
coração desacelerou um pouco. – Mas ela sempre dá um
jeito de monopolizar a atenção dele e flertar com ele,
mesmo sendo comprometida!
Chegamos à última subida até o topo, uma escalada
direta. Fui na frente de Liana e agarrei a raiz de uma árvore
para me içar, então atravessei mais algumas curvas
fechadas e árvores densas e saí em uma clareira, uma
enormidade de céu acima do vale lá embaixo. Mas não foi a
magnitude da vista do vale que capturou minha atenção.
Summer e Noah estavam uns três metros na minha
frente, um ao lado do outro, observando a vista. O som do
vento, alto o bastante para encobrir a minha chegada,
esvoaçava o cabelo de Noah e açoitava os longos fios de
Summer. Mas, em meio àquele turbilhão, seus corpos
exibiam uma imobilidade carregada, os ombros subindo e
descendo de um jeito imperceptível, as mãos ao lado do
corpo e tão próximas que quase se tocavam.
Lentamente, Noah foi aproximando a mão, até
entrelaçar os dedos nos de Summer. Não era um toque
casual, como o braço que ele passou ao meu redor. Embora
olhassem para a paisagem, suas energias pareciam
concentradas nas mãos unidas. Noah ergueu a de Summer
e a segurou contra o peito e, finalmente, ela virou a cabeça
para ele, trêmula, quer fosse pelo frio ou por outro motivo.
Ele disse algo para ela, tão baixinho que não consegui
ouvir, mas, mesmo de onde eu estava, dava para perceber
que não havia nada daquele charme suave que ele ‐­
costumava usar com tanta facilidade. Ela o encarou, olhos
nos olhos.
Liana chegou com tudo na clareira atrás de mim, e
Summer e Noah se separaram, sobressaltados.
– Que inferno, Noah, por que fez isso com a gente? –
gritou Liana, meio de brincadeira, cambaleando pela
clareira. – Meu pé nunca mais vai ser o mesmo!
– Tadinha da Liana – disse ele, pigarreando e se
recompondo. – Vai precisar que eu te carregue até lá
embaixo?
– Pois parece muito justo – disse ela, com um trejeito de
zombaria.
Arrisquei um olhar de relance para Summer enquanto
Noah corria até Liana, fingindo que ia jogá-la em cima do
ombro e carregá-la por toda a descida. Summer não olhava
para ele, mas sim para a mão, uma expressão estranha no
rosto, os olhos cintilando. Seriam lágrimas ou só ardência
causada pelo vento? Ela estremeceu, secou os olhos e
olhou para mim.
– Viu essa paisagem? – perguntou ela. – Vem dar uma
olhada!

••••••

Na descida, Summer e Noah foram na frente outra vez,


andando com rapidez e leveza, enquanto Liana e eu
tentávamos não escorregar pela encosta, tão concentradas
que era difícil engajar em qualquer conversa. Um pássaro
cinza-amarronzado cruzou nosso caminho, aninhando-se
em um galho e soltando um trinado baixo.
– Esse é qual? – perguntou Summer a Noah.
– Uma rola-carpideira – respondeu ele.
– É linda – disse ela, observando-o. – Que engraçado. O
que ela teria de carpinteira?
– Não é carpinteira, é carpideira – disse Noah, olhando
para Summer como se ela tivesse cometido o equívoco
mais fofo do mundo. – É carpideira, que chora, se lamenta.
– Ah, dã – disse ela, andando em silêncio por um
instante, depois continuou: – Seria engraçado se uma delas
não entendesse que deveria ficar triste, sabe? Que ficasse
falando: “Que bela manhã, vamos aproveitar o dia!”
– É – disse ele. – E outra sempre tentaria explicar o
trabalho. – Ele empostou a voz. – Tipo: “Não, vamos nos
lamentar o dia todo!”
– Lamentar? Não, obrigada!
Eles continuaram nisso durante a descida pela
montanha e no estacionamento, brincando sobre pássaros
imaginários enquanto a luz do dia ia caindo, até que, para
acabar com o assunto, Liana disse:
– A gente devia sair hoje à noite. – Ela pegou o celular
enquanto seguíamos na direção da cidade. – Filmei um
episódio-piloto com um cara que me falou sobre uma boate
maneira em que ele vai de drag queen de vez em quando.
Não teria pré-adolescentes por lá pra reconhecer a gente.
Então, ainda usando nossas roupas de caminhada,
fomos para uma boate no East Village, onde Liana flertou
com o segurança para distraí-lo enquanto o restante de nós
entrava no local de fininho.
Em um palco pequeno, uma drag queen usando boá de
plumas fazia lip sync de uma canção de Barbra Streisand
enquanto outras esperavam a vez. Liana pegou uma reta
até o bar para pedir bebidas para a gente. Summer, Noah e
eu não parávamos de olhar ao redor, maravilhados e rindo
de nervosismo. Nenhum de nós nunca estivera numa boate
como aquela, um lugar com toalhas de mesa vermelhas,
pessoas em trajes cheios de glitter e saltos altíssimos. Eu
nunca tinha encontrado uma drag queen, só tinha visto
Patrick Swayze em Para Wong Foo, Obrigada por Tudo! Julie
Newmar. Sei que eu era uma estrela da TV, mas nem de
longe era descolada a ponto de estar ali.
Uma das drag queens – que usava uma sombra azul
brilhosa e um penteado bem alto – olhou na minha direção,
então desviou e depois olhou de novo.
– Não acredito, meninas – disse ela para as duas
amigas, e me preparei para o pior.
Tinham visto que eu era menor de idade. Era isso ou
iam me expulsar por ousar aparecer ali com roupas de
malhar. Mas ela me deu um sorriso incandescente.
– É A Escrota!
– O quê? – perguntei, quando se juntaram à minha volta.
– Você é de Os sonhadores, não é? Zsa Zsa Galore… Ela
não está aqui hoje, vai morrer de inveja por ter perdido
essa… Ela cantou uma das suas músicas.
– Aquela “Eu mereço tudo”!
– E a gente amou de paixão, então agora nós vemos o
seu programa.
– Muita obrigada – disse Summer ao meu lado, então
elas perceberam a presença dela e de Noah.
– Os queridinhos também vieram! – falou a primeira
drag queen. – Fofo. – Então todas se voltaram para mim
outra vez. – Faz a sobrancelha.
– E recita o verso da música, aquele “trágico”!
A atenção delas era inebriante. Joguei o cabelo, ergui a
sobrancelha e recitei:
– Isso não é mágico, é trágico!
Elas me seguraram pelos ombros, me elogiaram e
chamaram todas as amigas. E, ali, no centro das atenções,
eu soube o que era ser como Summer ou Noah. Era assim
que eu me sentiria o tempo todo caso aquela mulher do
teste de elenco tivesse seguido sua intuição inicial e me
mandado ler as falas da protagonista, se eu ficasse com o
papel de Summer junto com tudo o que vinha no pacote?
Perdi os outros de vista, arrebatada pela onda de
atenção, me tornando a melhor nova amiga de cada drag
queen a que me apresentavam. Elas colocavam copinhos
com vodca e tequila nas minhas mãos. Por fim, me levaram
até o palco, me entregaram um microfone e penduraram
um boá nos meus ombros. Duas delas se colocaram uma
de cada lado, fazendo o vocal de apoio, e cantamos “Eu
mereço tudo”, meu grande solilóquio da primeira
temporada. E eu brilhava, cintilava, orgulhosa e exibida,
com um futuro superempolgante e sem limites. Eu me
lancei na direção dos aplausos, que, ao menos uma vez,
eram só para mim.
Logo antes de entrarmos no último refrão, começou um
tumulto na plateia. Estreitei os olhos por causa da luz,
desconcertada. Alguém tinha subido em uma das mesas e
cantava junto, enquanto algumas pessoas tentavam
convencer a pessoa a descer para que não se machucasse.
Era Summer na mesa, bêbada e, ao que parecia,
insatisfeita por eu ser o foco dos olhares por uma noite que
fosse. A atenção se voltou para ela, e alguns clientes da
boate puxaram seus celulares para tirar fotos enquanto
Noah tentava com delicadeza fazer Summer descer.
– Parem – dizia Liana, para aqueles que tiravam fotos. –
Não!
Por um instante, fiquei no palco, tão perto do grande
encerramento que eu deveria fazer, só que ninguém mais
ouvia. Então me juntei à aglomeração e fui até Noah.
– Summer – gritei. – Desce!
– Ou sobe você!
– Você tá passando vergonha!
Ela arqueou as sobrancelhas, ofendida.
– Não é passar vergonha. Estamos nos divertindo!
– Acho que tá na hora de ir pra casa – falou Noah para
ela. – O dia foi bem agitado e é hora de ir pra cama, não
acha?
Ela o encarou, então assentiu e deixou que ele pegasse
suas mãos e a ajudasse a descer.
Liana se inclinou na nossa direção enquanto Summer
tropeçava até parar no peito de Noah e ficar ali.
– Merda, aquele cara falou que tem policiais vindo pra
conferir se tem clientes menores de idade – avisou ela.
– Somos astros da TV. Eles não iam nos prender, iam? –
perguntei.
– Mas, se isso chegar aos paparazzi... – disse Liana. – E
todo mundo está tirando foto! Droga, o que a gente faz?
– Cuidem da Summer – disse Noah para mim e para
Liana, e puxou seu celular. – Volto já.
Summer não queria soltar o braço dele.
– Volto já – repetiu ele para ela, com muita ternura,
enquanto se soltava.
– Eu fiz besteira? – perguntou Summer a Noah. – Você
não pensa mais nisso?
Eu não tinha ideia do que ela estava falando, mas Noah
balançou a cabeça.
– Eu sempre penso nisso. Agora fica aqui.
Ela se aninhou em mim enquanto a multidão pulsava à
nossa volta.
– Desculpa – murmurou ela.
Eu estava muito magoada com ela, queria seu corpo
frágil e idiota longe de mim.
Noah voltou alguns minutos depois.
– Pronto. Michael vai mandar a assistente dele para
pegar o contato de todo mundo que tirou foto.
– Você contou pro Michael o que tá acontecendo? –
indagou Liana, as sobrancelhas erguidas. Merda, merda,
merda.
Noah franziu a testa, confuso pela reação dela.
– Ué, contei. E ele falou que os bares costumam ter uma
entrada pelos fundos, então vamos pra lá agora, porque ele
vai mandar um carro pra buscar a gente.
Seguimos a orientação de Michael. Tínhamos muita
prática nisso.
••••••

– O que é que vocês foram fazer lá, pra começo de


conversa? – perguntou Michael, quando nos sentamos um
do lado do outro na cama do quarto do hotel dele, em
vários estágios de sobriedade. – De quem foi a ideia?
Summer, que ainda não estava de todo no controle de si
mesma, olhou para Liana e desviou o olhar na mesma
hora. Mas isso foi o suficiente para Michael, que a fitou.
– Você é a mais velha, devia ser a mais responsável.
– Desculpa – disse Liana. – Eu não imaginava que ia criar
tanto tumulto.
– Foi uma ideia imprudente e burra e...
– Você levou o Noah pra uma boate de strip-tease outra
noite! Como é que isso é...
Liana parou de falar quando Michael a encarou. Então
ele se virou para Summer.
– Você faz a segunda estrofe amanhã.
– O quê? – indagou Liana, boquiaberta e ultrajada.
– Se o seu bom senso é tão ruim, por que eu deveria
confiar em você pra fazer um solo? – Ele apertou a têmpora
para se acalmar. – Enfim, já cuidamos do que aconteceu
esta noite. Deram sorte, porque minha reunião com o Sr.
Atlas tinha acabado na hora em que vocês ligaram. Se tudo
der certo, ele nunca vai saber disso.
– Reunião com o Sr. Atlas? – perguntou Noah.
Pela primeira vez, reparei que Michael estava todo
arrumado, a barba feita, camisa de botão em vez das
blusas largonas. Havia uma garrafa de espumante em um
balde com gelo ao lado da cama.
– Sim. Eu ia chamar todos vocês aqui pra contar as
novidades. – Ele puxou a garrafa e fez sinal para pegarmos
um copo de papel ao lado do balde. – Eu nem devia dar isto
a vocês depois da merda que fizeram, mas, bem... – Um
sorriso surgiu em seu rosto. – Não vamos filmar a terceira
temporada quando a segunda terminar.
Qualquer indício de embriaguez que estivéssemos
sentindo desapareceu diante da surpresa e do assombro.
Não fazia sentido cancelar o programa. Éramos populares,
de longe a série de maior audiência da emissora.
– Por que está sorrindo? – perguntou Liana, a voz
áspera, abalada pela notícia e por sua punição.
– Vamos segurar a terceira temporada porque, antes,
vamos fazer um filme! – gritou Michael, e a rolha do
espumante voou.
Liana arquejou e quase deixou seu copo de papel cair.
– É o quê? – berrei.
Ai, meu Deus, o dinheiro que isso renderia. Todos nós
tínhamos assinado nosso contrato com a TV antes de
sabermos a proporção que o programa tomaria, então
estávamos presos a um salário que parecia empolgante na
época, mas que agora, vendo quanto rendíamos para a
emissora, começava a parecer pouco. O cachê de um filme
partiria de um ponto diferente. Teríamos a chance de
negociar uma participação nos lucros. Eu poderia comprar
um bom apartamento para mim, quem sabe até uma casa,
e fazer dele meu lar, cheio de coisas que eram minhas de
verdade. Ou talvez Summer ou Liana quisessem morar
comigo e a gente alugasse uma mansão em Hollywood
Hills. Eu daria dinheiro para minha mãe para que ela
voltasse a estudar, como sempre falava, e talvez
finalmente ela ficasse feliz com a própria vida. (Talvez, se
ela voltasse a estudar, sua chateação comigo por eu não
me formar também passasse.)
– Não é possível – disse Summer. – Não é possível!
Michael deu o sorriso indulgente que ele gostava de dar
para nós às vezes, para nos lembrar que era muito mais
velho e sábio.
– É possível, sim – disse ele, imitando o tom de Summer.
E então todos nos abraçamos, gritando.
– Agora, escutem bem – continuou Michael, enchendo
nossos copos de espumante. – Isso pode acontecer de duas
maneiras. Estou pressionando o Sr. Atlas pra fazermos uma
versão pras telonas. Estamos conversando com uma
distribuidora internacional, pra colocarem suas carinhas na
China, dublarem vocês em francês. Já sei qual vai ser o
enredo. O verão depois da formatura do ensino médio,
quando vocês saem em uma turnê pela Europa! Então o
último episódio da segunda temporada vai ser a formatura,
e finalmente vamos dar aos fãs um beijo entre Summer e
Noah pra fazer essa gente encher as salas de cinema.
Summer e Noah ficaram vermelhos.
– Que boa ideia – disse ele.
Michael ergueu um dedo.
– Mas também tem outra maneira. Esta temporada não
sai do jeito que a gente quer, vocês continuam fazendo
merda como esta noite, e o Sr. Atlas coloca o filme só na
TV. Então, se concentrem no trabalho e em serem as
estrelinhas perfeitas do Sr. Atlas pelo menos até que todos
os contratos estejam redigidos e assinados. Não quero
ninguém aqui fazendo nada nos próximos meses pra
estragar isso.
– É claro – disse Summer. – Vamos ficar tranquilos.
Mas éramos jovens e éramos famosos. E jovens famosos
não conseguem ficar longe de problemas por muito tempo.
LAMAPOP.COM, 1O DE NOVEMBRO DE 2004

NINGUÉM SEGURA
SUMMER WRIGHT
Desde a morte trágica do pai, a estrela de Os
sonhadores Summer Wright vem sendo
fotografada passando mais tempo com a mãe,
Lupe Wright, e alguns fãs estão se
surpreendendo com o que veem. Summer
interpreta a jovem norte-americana, linda e
loura, como se fosse natural. Mas talvez ela
seja uma atriz melhor do que pensávamos,
porque sua mãe vem do outro lado da fronteira.
E não estamos falando do Canadá. ¡Ay,
caramba!
“Ah, a Summer não é mesmo loura natural”,
conta uma de suas amigas de infância. “Fiquei
muito surpresa quando vi toda essa coisa de Os
sonhadores, porque parecia que ela estava
escondendo a mãe ou algo assim. Talvez ela
tenha pensado que isso a ajudasse na carreira,
mas é bem nojento pra mim.”
Agora que o pai se foi, Summer está
assumindo mais seu lado apimentado. É só
olhar essas fotos da jovem fazendo compras
usando uma blusa curtinha que é um pouco
caliente demais! Vamos torcer para que as fãs
mais jovens e inocentes de Os sonhadores não
vejam isso e comecem a querer roupas curtas
também.
Por aqui, no Lamapop, estamos apenas
preocupados com ela. E ficamos imaginando...
se Summer mentiu a respeito disso, o que mais
tem a esconder?
11
••••••

2018

Depois da nossa coletiva, somos levados a outra sala,


maior e bem iluminada, com uma longa mesa retangular,
para fazermos uma leitura do roteiro. O lugar cheira a
limão e cloro.
Tem mais rostos familiares ali: atores que interpretavam
papéis secundários, como o professor da nossa banda e o
irmãozinho chato de Summer, nossa coreógrafa e a
diretora musical daquela época. Estamos todos nos
cumprimentando quando o Sr. Atlas entra e a temperatura
do ambiente parece cair uns dez graus.
Com seu terno cinza engomado, ele é o bicho-papão
mais comedido que já vi. Cordial mas impiedoso, diziam as
más línguas, o tipo de homem que demitiria na hora
qualquer um que manchasse a marca imaculada da Atlas.
Ele era um perfeito cavalheiro com a gente, mas vivíamos
com medo de sua desaprovação. Ele nunca gritava, mas
também nunca o vi rir em nenhuma das vezes que ele
compareceu a uma leitura de roteiro. Ele apenas nos
observava com um franzir de testa, concentrado, então
puxava uma rodada educada de aplausos no fim. Era
engraçado ser ele a tomar as decisões em relação à
programação da Atlas, já que nunca demonstrava o menor
prazer pelo que assistia. Ele era o homem mais rico e mais
poderoso que eu já tinha encontrado.
Provavelmente ainda é, apesar de a Atlas não ser mais
uma emissora imperdível na TV. Seu conteúdo não é
cativante como costumava ser e as tentativas da empresa
de diversificar a programação têm sido atrapalhadas (por
exemplo, um programa sobre uma adolescente negra
criado e dirigido por... um homem branco). Mas a Atlas vem
ganhando muito dinheiro com cinema: eles entraram na
onda de coproduzir filmes de heróis, o que causa um
burburinho na internet com rumores sobre elencos cada
vez que anunciam um novo projeto. O mais recente é
Leopardo da Neve, cujos superpoderes são sua rapidez e
conseguir se manter aquecido no frio, ou seja, ele corre
sem camisa na neve.
Os últimos 13 anos acrescentaram um leve
arqueamento aos ombros do Sr. Atlas. Ele deve estar na
casa dos 60 agora, e seu cabelo, antes grisalho, ficou
totalmente branco. Nossas colunas se endireitam
automaticamente assim que ele vem em nossa direção –
comportem-se bem, crianças! Ele aperta nossas mãos em
sequência, com uma frase gentil para cada um de nós.
– Soube que você fez Direito – diz para mim. – Parabéns.
Para Liana:
– Gosto de ver seu marido jogar. Ele é muito talentoso.
Para Summer:
– Você parece bem.
Mas o homem evita o olhar dela, como se sentisse
desgosto. E, por fim, para Noah, com um leve sorriso:
– Que prazer trabalhar de novo com você.
Uma assistente distribui cópias encadernadas do roteiro,
escrito pelo próprio Michael, que nem se preocupou em
chamar um grupo de roteiristas para ajudar. Nenhum de
nós tinha visto o texto, só tínhamos uma noção geral do
enredo: se passava em um reencontro da turma do ensino
médio, dez anos depois.
Viramos a primeira página e começamos. A série abre
com o coro, então Liana e eu entramos, depois Noah.
Minha personagem se tornou uma executiva mandona de
uma gravadora e usa terninhos poderosos, toda
corporativa. (Hum, de onde será que Michael tirou essa
ideia?) Liana vive falando do marido, orbitando agora ao
redor dele, e não dos melhores amigos, embora a piada
aqui seja o sujeito ser um zé-ninguém, tão sem sal que
nenhum de nós consegue lembrar seu nome. Noah é um
professor de teatro que molda as mentes do futuro. Mas
onde está Summer?
Viramos a página. Lá está sua entrada. Ela respira fundo
e lê a fala.
– Olá, gente festeira!
Cravo as unhas na coxa quando assimilo tudo: Michael
escreveu a personagem dela para ser um caso perdido. Ao
estilo aprovado pela Atlas, é claro, com insinuações sobre
ela ter passado um tempo “tentando se encontrar”, mas
nenhuma carreira sobre a qual falar com os amigos. Ela
não se embebeda no reencontro, mas vira tantos copos de
ponche que tem uma “overdose de açúcar”, tenta subir no
palco onde a banda costumava se apresentar, cai e bate a
cabeça.
Summer lê com hesitação, tentando ser corajosa. Todos
nós lemos com hesitação. Não temos mais química. É
necessário confiar nos seus parceiros de cena para fazer
qualquer coisa ficar boa. Mas não sabemos quando nos
olhar, como trocar falas em um ritmo natural em um
diálogo. Não existe afinidade nem conforto, apenas uma
conversa constrangedora e travada.
Pelo menos as coisas dão uma melhorada para o
personagem de Summer depois que ela bate a cabeça,
porque isso a faz desmaiar, o que proporciona a
oportunidade perfeita para uma sequência fantasiosa
dentro de sua mente que se passa nos velhos tempos, um
remix dos nossos números mais famosos. Quando ela
acorda, ela se “reabilita”, pede desculpas por causar tanto
tumulto, todos nós nos abraçamos e então cantamos e
dançamos uma música épica no final. Nada de grandes
solos para Liana. Ergo o olhar para ver se ela está
enfurecida. Como era de se esperar, sua boca está franzida
enquanto ela folheia as páginas do roteiro, embora sua
expressão não seja bem de raiva. É quase como se fosse...
desespero? Isso já parece um pouco demais. Talvez eu
esteja vendo coisas.
Os olhos de Michael disparam pela sala, tentando ver as
reações de todos a essa coisa que ele fez, algo que
deliberadamente extraiu das nossas vidas. (Liana logo se
recompõe e volta a sorrir.) Talvez ele andasse sem tempo
para conseguir produzir algo e não houvesse tido a
oportunidade de ser criativo. Ou talvez ele quisesse
continuar misturando as coisas, como costumava fazer.
Ao fim da leitura do roteiro, o Sr. Atlas puxa os aplausos
educados de sempre, fala baixo com Michael por um
momento e então vai embora, seguindo para o próximo
evento importante em sua agenda. Uma assistente entra
na sala.
– Noah precisa sair em alguns minutos – diz ela a
Michael. – Outro compromisso.
– Sim, sim, claro – diz ele.
No instante seguinte, ele está distraído por elogios,
pessoas exaltando-o daquele jeito hollywoodiano em que
todo mundo fica muito empolgado com coisas que são
apenas ok. Porque, depois de ouvir o texto em voz alta, não
resta dúvida de que seja apenas ok, nada além disso. É
uma desculpa para uma volta ao passado, com uma
pequena dose extra de humilhação para Summer.
E esse é o melhor cenário, se conseguirmos descobrir
como recuperar um pouquinho da nossa química. Pela
primeira vez, percebo que o pior resultado para Summer
não é o reencontro nunca acontecer. O pior é ele acontecer
e ser ruim. É mais um constrangimento para se somar aos
vários que ela acumula.
Como se a mesma percepção estivesse ressoando em
sua mente, Summer fica sentada em silêncio, a testa
franzida quando um dos atores secundários tenta elogiá-la.
(“Nossa, você ainda é muito boa! Não achei que você
seria.”)
Meu telefone vibra com uma mensagem de Miheer.
Como estão as coisas?
Respondo na mesma hora:
Olha, li o roteiro e tem potencial... pra ser absurdamente
humilhante.
Ele responde com uma carinha emburrada.
Então, beleza. Vou trabalhar como uma condenada para
interpretar meu papel o melhor possível. Todos nós vamos
ter que trabalhar que nem uns condenados, nos
comprometer para valer, e então talvez a gente pelo
menos chegue a “mediano”, já que não vai ser “incrível”.
Talvez possamos causar certa nostalgia e algum produtor
se inspire e ofereça a Summer uma oportunidade em um
projeto melhor e...
– Você esqueceu o beijo? – pergunta Summer, e a sala
fica em silêncio ao ouvir a voz dela. – Entre mim e Noah? –
Ela ainda fala com meiguice, piscando aqueles olhos
imensos.
– Ué, não – começa Michael. – Vocês se dão um belo
abraço.
– Ah, só achei que os fãs iam querer isso.
– Claro, mas...
– Achei que, sendo um reencontro de turma dez anos
depois, a gente pelo menos fosse se beijar. – A fachada de
meiguice começa a rachar um pouquinho. – No mundo real,
a gente ia ficar bêbado e transar no banheiro.
Noah dá uma risada, quase sem querer, então pigarreia,
enquanto outros ao redor do círculo se entreolham de
sobrancelhas erguidas.
Summer sorri para ele.
– Brincadeirinha. Sei que a Atlas ainda não se sente
confortável com sexo no banheiro. Mas pelo menos um
beijo. – Ela se vira para a ampla sala e diz, como se fosse
uma pergunta inocente: – Ou tem algo errado? Não é
constrangedor pra ele me beijar, é?
Michael fica corado, porque esse é o motivo. Um grande
astro como Noah beijar um desastre como Summer – isso
não mancha o brilho dele? Todos na sala parecem se dar
conta disso, depois que Summer fala. Era uma vaga
sensação, mas ela transformou em algo concreto.
– Claro que não – diz Michael para Summer. – Podemos
transformar o abraço em um beijo, se todos se sentirem
confortáveis com isso.
Há uma mudança na sala. O que ele quer dizer é: se
Noah se sentir confortável. E como Noah vai dizer não no
meio de toda essa gente? Ele beija estrelas de cinema em
filmes o tempo todo. Por que seria diferente com Summer?
É só um beijo. Ainda assim, parece algo muito maior.
Arrisco um olhar de relance para Liana. Sua boca está
levemente aberta, o olhar indo e voltando entre Summer e
Noah, como se o resto da sala estivesse paralisada pelo
constrangimento. Liana sempre amou um drama, foi a
primeira de nós a ficar perdidamente apaixonada por
reality shows.
– Com certeza – responde Noah, como se chegasse à
mesma conclusão. – Devemos dar aos fãs o que eles
querem.
Summer baixa a cabeça, mas, ainda assim, vejo antes
que ela o disfarce: um sorriso de triunfo.
DIÁRIO DA SUMMER, 28 DE OUTUBRO DE 2004

Quando Noah me toca, começo a questionar


tudo o que sempre pensei sobre sexo. Nunca
me pareceu importante eu não ter feito ainda.
Mas agora... Não estamos em um
relacionamento nem nada, mas me sinto toda
dormente quando ele sorri pra mim. Fico
vermelha quando ele roça o braço no meu. Se
ele tentasse algo a mais, eu não diria não.
Teve uma noite que me toquei pensando
nele. Eu nunca tinha pensado em ninguém
específico enquanto fazia isso antes. Eram
tipo... situações, talvez? Cenas de filmes em
que um homem deseja tanto uma mulher que
eles transam na mesma hora, não importam as
consequências. Ou de histórias que leio na
internet no computador da sala de estar
quando não tem ninguém em casa, mas eu não
imaginava o rosto das pessoas ou algo assim,
só prestava atenção nas palavras.
Mas naquele dia ele tinha brincado mais
comigo durante a filmagem, me pegado no colo
e me girado do jeito que ele faz com todas nós.
E, quando voltei pro meu trailer pra descansar,
continuei vendo ele na minha cabeça, o jeito
como o rosto dele se abria quando ele sorria, o
jeito como o cabelo brilhava na luz, o jeito
como ele olhava pra mim às vezes, como se eu
fosse a única que ele via, e, sem perceber, de
repente eu estava me tocando e foi a melhor
coisa que já senti.
Faço isso desde os 13 anos, acho, e, por um
tempo, senti muita vergonha. Nenhuma das
garotas que eu conhecia falava sobre isso,
então concluí que elas não faziam e que eu era
uma pervertida. Mas Liana fala disso com a
gente o tempo todo. Ela sempre fala: “Como
você vai conseguir deixar alguém amar o seu
corpo se você não se ama?” Então eu não me
acho mais tão estranha. Só que eu ia morrer se
falasse o tempo todo disso igual a ela. Liana
fala mesmo sobre essas coisas, porque ela é
meio piranha.
12
••••••

2018

Quando chego para o ensaio na manhã seguinte, Michael


está conversando com Kyle, seu diretor-assistente muito
magro e nervoso. Não há mais ninguém ali.
– Ah, Kat – diz Michael. – Direto pro figurino.
Eu paro.
– Não vamos direto pro ensaio?
– Depois. Primeiro, preciso que vocês todos deem um
jeito nesse problema da química. Um passarinho me
contou que foi cada um pra um lado ontem à noite
depois da leitura do roteiro. Então, hoje, vocês, meninas,
vão fazer sua prova de roupa juntas e felizes.
– E o Noah?
– Quer experimentar roupa com o Noah?
– Não! Tenho namorado. – Dava até para dizer que
tinha um pré-noivo! – Eu quis dizer...
Ele me lança um olhar que diz que tem pena de mim
pela minha estupidez.
– O Noah é um cara muito ocupado, tá bem? Tem
coisa mais importante pra fazer.
Beleza. Noah é o astro célebre que foi obrigado a
passar um mês com três pessoas com quem não se
importa, então vai dedicar o mínimo de energia possível
a isso. Eu também deveria estar fazendo coisas
importantes – trabalhando em contratos multimilionários,
voltando para Miheer e pedindo a mão dele –, mas...
– Abaixa essa sobrancelha – continua Michael. – E vai
se divertir experimentando as roupas junto com as
outras.
Qualquer um que ache que experimentar figurinos é
legal é porque nunca fez prova de roupa com Harriet,
nossa figurinista, uma mulher alta e de rosto franzido.
Tinha uns quase 40 anos em 2004 e o hábito de fazer
observações passivo-agressivas a respeito do corpo
alheio que deixava a pessoa em uma espiral de vergonha
por dias a fio. “Anda entediada no set?”, perguntava ela,
estreitando os olhos para as minhas coxas na calça capri
que escolhera para mim. “Porque tem jeito mais
produtivo de ocupar seu tempo do que ficar à toa na
mesa do lanche.”
Eu me pergunto se ela já parou de humilhar
adolescentes. Dizem que sempre fazia elogios e mais
elogios a Noah, que não entendia por que Summer, Liana
e eu fechávamos a cara sempre que marcavam uma
prova de roupas. Ou talvez ela achasse que estava nos
fazendo um favor ao nos pressionar para sermos o mais
magras possível. Queria nos poupar do escárnio do
mundo, nos salvar de nós mesmas. Talvez fosse mais por
pena do que por malícia. Não sei o que é pior.
Mas o problema era que Harriet era genial. Ela nos
vestia com tanta clareza que, só de olhar, você sabia
exatamente quem nossos personagens deveriam ser.
Como os vestidos de verão que ela deu a Summer, lindos
de morrer, delicados e virginais. Liana ficou com as
roupas “divertidas” – os vestidos por cima dos jeans de
boca larga, as boinas –, para que sua personagem
ganhasse mais personalidade do que o roteiro lhe
conferia. Bastava um olhar para minhas saias xadrez e já
ficava óbvio que eu era a escrota cheia de dinheiro que
achava que merecia tudo o que desejasse.
Na segunda temporada, Harriet sabia exatamente o
limite entre doçura e sensualidade e foi cautelosa nessa
direção. As blusas de Summer ficaram um pouco mais
apertadas e as saias, um pouco mais curtas, mas nunca
a ponto de alguém reclamar.
Só teve uma vez que Harriet pode ter passado do
limite. Durante um enredo em que eu causava uma briga
imensa entre Noah e Summer, o que o fazia sair da
banda temporariamente, nós três tínhamos um número
juntas. Harriet desenhou vestidos combinando em cores
diferentes, feitos de couro sintético neon brilhante, com
pequenos recortes na cintura. Lembra o vestido da Spice
Girl que tinha a bandeira do Reino Unido? Do collant
vermelho da Britney Spears em “Oops! . . . I Did It
Again”? Nossos vestidos tinham a mesma pegada. Eram
bem justos, mas de gola alta, então talvez tenha sido por
isso que Harriet conseguiu aprovação para eles. Nossos
espectadores mais conservadores ficaram indignados,
mas o episódio acabou tendo uma das maiores
audiências que registramos. Naquela primavera,
coleções inspiradas por aqueles vestidos
esgotaram nas lojas de todo o país. Harriet ficou se
achando muito por conta disso.
Harriet voltou para o reencontro, assim como todos
nós. Mas, dessa vez, não vou deixar que ela me atinja.
Entro no provador de cabeça erguida.
Liana já está lá, dando um golinho em um suco
colorido, falando sobre Javier em uma resposta a alguma
pergunta de Harriet.
– ... queria poder ficar por aqui o tempo todo – diz ela.
– Mas, com os treinos e a temporada, sabe como é.
Espera aí, essas não são as mesmas palavras que ela
usou ontem comigo e com o Noah?
Harriet nota minha entrada.
– Kat – diz ela, me dando um beijo no rosto. Seu
cabelo ralo está pintado de bordô. – Arrumei uns
terninhos de megera pra você.
Vejo no cabideiro que vou usar versões mais
chamativas do que costumo vestir no trabalho. Harriet
me olha de cima a baixo e contrai os lábios.
– Tem certeza que me mandou os tamanhos certos?
Você parece maior do que suas medidas.
Estou vendo que ela não perde tempo. Por sorte,
Summer entra com um café com leite de quase 1 litro, e
Harriet se volta para ela.
– Ah, aí está você – diz. – Fiquei preocupada com você
esses anos todos.
O que é que a gente responde quando as pessoas
dizem coisas assim? Fica óbvio que Summer tem muita
prática, porque ela faz um breve aceno de cabeça.
– Obrigada. Estou melhor agora.
– Ótimo, que bom – diz Harriet, fazendo um minuto de
silêncio pela morte da juventude promissora de Summer.
Então ela bate palmas. – Vamos começar
experimentando este.
Ela puxa uma cortina para o lado e revela um
cabideiro com vestidos familiares de cores coordenadas.
Ah. Merda. O remix da sequência fantasiosa inclui
nosso antigo número só com as meninas. E agora os
icônicos vestidos com recorte na cintura que usamos
estão pendurados à nossa frente.
– Achei que a gente não fosse usar esses vestidos, já
que vamos fazer um pot-pourri – digo, com cautela. – Não
dá tempo de trocar de roupa e colocar isso, não é?
– Vocês vão usá-los durante todo o pot-pourri – diz
Harriet. – Michael e eu já falamos disso.
Olho para as peças, nada convicta, então vejo que
Summer exibe uma expressão parecida. Liana nem olha,
está postando algum story no Instagram. (“Beleza, time”,
diz ela para o telefone. “Hora de brincar de se arrumar.
Por sorte, desde que comecei a tomar os sucos da
Eutêntica, estou amando meu corpo. Agora experimentar
roupas é uma das coisas que mais gosto de fazer.” Ela
vira a câmera rapidamente na nossa direção.
“Principalmente quando estou com as minhas meninas!”)
– Anda logo – diz Harriet. – Tenho mais o que fazer.
Ela nos indica os provadores, separados uns dos
outros por cortinas penduradas no teto. Eu me contorço
para entrar no vestido, o tecido gelado e grudento na
minha pele, então encolho a barriga e uso toda a minha
força para fechar o zíper. Harriet nunca coloca espelhos
nessas cabines improvisadas. Você tem que ir até a área
principal para ver como está, o que significa que Harriet
também vê. Ela toma todas as decisões.
Ainda assim, olho para o meu corpo e, mesmo sem
espelho, dá para dizer que o vestido é um desastre. Sinto
meu coração afundar. O couro está esticado no limite na
parte das minhas coxas. Dou um passo, hesitante, e ele
encolhe e enruga. Se eu fizer qualquer movimento de
dança, o vestido vai subir aos poucos e deixar minha
bunda à mostra. Os recortes na cintura se cravam na
minha pele como dedos, pinçando a área entre o osso do
meu quadril e minhas costelas e fazendo o excesso de
gordura saltar.
Já aceitei que meu corpo não é mais como antes. É
uma questão de tempo e idade, sim, mas também de
felicidade. Danem-se os padrões de beleza de Hollywood
que diziam que eu era um lixo que ninguém poderia
amar se não tivesse coxas finas. Miheer me acha sexy. Eu
me acho sexy!
Falo essas coisas para mim mesma porque, no
momento, não acredito mais nelas. Caramba, Harriet vai
acabar comigo assim que eu sair. Já estou até vendo: Se
eu fosse aparecer na TV de novo, teria me preparado
melhor. Sinto o pânico na garganta.
– Está pronta? – pergunta Harriet.
– Hum, só um instante – responde Summer.
– Quase – fala Liana.
– Kat? – Harriet puxa a cortina sem avisar e me avalia.
Ela contorce os lábios. – Minha nossa. Vem aqui fora e
vou ver o que dá pra fazer.
Harriet me conduz pelos ombros até o espelho, onde
me deparo com a visão completa e indesejada. Ao me
olhar, não quero mais nada além de me enfiar em um
avião para voltar à minha vida normal, porque cometi um
tremendo erro.
Cinco meses depois do último episódio ao vivo, um
blog horroroso chamado Lamapop publicou algumas
fotos minhas em Nova York. Eu tinha voltado a morar
com a minha mãe e passava boa parte do tempo no sofá
ou comendo salgadinhos, arrasada pela tristeza e
endividada, deprimida demais para fazer planos para o
futuro. Um dia, minha mãe me arrastou até a cidade para
um dia só de meninas, na esperança de me dar um sopro
de vida outra vez. Eu estava de moletom em um canto,
comendo um pedaço de pizza, quando os paparazzi
tiraram fotos. O Lamapop me destruiu: Kat Whitley já não
tem a vida dos sonhos. Parece mais que está vivendo em
uma pizzaria! Eu me afundei mais ainda no buraco
depois daquilo. Levei meses para sair, para ignorar as
críticas e me inscrever em faculdades do Canadá e do
Reino Unido, onde eu poderia me apresentar como
Katherine, não Kat, e ficar no anonimato.
E agora decido voltar à televisão, na frente de
milhares de espectadores, e me expor à crítica outra vez.
Visualizo os sócios homens da minha firma me vendo
nesse vestido e concluindo que me falta seriedade para
dar o próximo passo no trabalho. Imagino Miheer
constrangido por mim. E tem coisa pior do que saber que
as pessoas que te amam estão com pena de você? É
bem possível que eu esteja mandando minha carreira e
meu relacionamento pelos ares só para amenizar um
sentimento de culpa, para “consertar as coisas”
minimamente. Será que a Atlas me processaria por
quebra de contrato se eu fosse embora agora ou acharia
que a publicidade negativa não iria compensar?
Então Summer puxa a cortina e sai do provador. Nós
nos olhamos. Ela deixa escapar uma risada rápida e
bruta, quase um rosnado, e minha primeira reação é ficar
na defensiva: ela está rindo de mim. Mas, ao prestar
atenção nela, percebo que a risada é da situação, porque
ela também está tenebrosa na roupa. Diferente de mim,
está esquelética, quase abatida, embora com estrias e
celulites visíveis nas coxas.
E aí a ficha cai: é claro que ela está horrível. É claro
que nós estamos! Esses vestidos foram feitos para
adolescentes, e não somos mais adolescentes.
– Bom, é óbvio que eles estão... – começo.
– Horríveis? – pergunta Summer, começando a rir de
verdade.
– Eu ia dizer “abomináveis”, mas “horríveis” também
serve.
Harriet faz um “tsc”, ofendida.
– Dediquei muito tempo a isso – diz ela.
– Desculpa, Harriet. Eles são muito bem-feitos – diz
Summer.
– Só que é impossível esse vestido cair bem em uma
mulher de 30 e poucos anos – falo.
Nesse momento, Liana puxa a cortina e sai do
provador. Summer e eu a observamos, então nos
encaramos e, de repente, algo se desfaz. Estamos
gargalhando de novo, mas dessa vez é um riso sem
limites, de doer a barriga, o tipo de gargalhada que você
não consegue conter nem se quiser.
Porque Liana, escultural e toda malhada, está de
arrasar no vestido, ainda melhor do que na primeira vez.
Quero dizer, ela está ridícula. É uma adulta usando um
vestido de couro azul brilhante com recortes na cintura.
Mas, de algum jeito, fica bom.
– Que foi? – pergunta ela.
– Minha nossa, Liana – falo, com a barriga doendo.
– O que tem de tão engraçado?
– Tá bem, a gente já entendeu – digo, chiando. – Você
é uma gostosa profissional agora.
– Eu malho... – diz ela.
– Olha só isso – diz Summer, e vira todas nós de frente
para o espelho, colocando Liana no meio. As roupas
parecem inspiradas na história da Cachinhos Dourados:
grande demais, pequena demais, ideal. – Dá pra
imaginar a gente usando isso na TV ao vivo?
Liana observa nossos reflexos por um longo momento
de silêncio enquanto Summer e eu enxugamos as
lágrimas. Então ela cai na risada também.
– É, isso não está legal – conclui.
– Por que alguém faria um vestido com recortes de
cada lado da cintura? – pergunto.
– Porque as pessoas são uns monstros – diz Summer,
e então, por cima do ombro: – Você não, Harriet. Tô
falando de quem inventou o conceito.
– Olha isso – digo, fazendo um passo de dança de um
lado para o outro. – Olha a bainha subindo até entrar na
minha bunda.
Summer se agacha do meu lado e finge estudar com
atenção o couro guinchando na minha pele.
– Uau – diz ela, em um tom falso de perplexidade. – É
como ver uma cortina subir.
– Hora do show! – diz Liana.
– Linda metáfora – comento. – Esse show não é feito
para crianças.
– Não se preocupe – diz Liana, fingindo seriedade. –
Arrumei uma solução. É só a gente acrescentar um passo
“esticar a roupa” à coreografia. – Ela cantarola a música
e gira de um lado para o outro, então sacode os ombros
enquanto tenta desesperadamente baixar o vestido de
novo. – Vai dar supercerto.
Estou rindo de um jeito que não acontecia havia anos
e, droga, talvez Michael estivesse certo em relação a
como dar um jeito no nosso problema de química,
porque, de alguma forma, o estranhamento entre nós
três desapareceu, deixando apenas aquele tipo de
intimidade em que as pessoas riem tanto juntas que
quase fazem xixi na calça.
– A gente precisa que vocês usem isso – diz Harriet. –
Já foi decidido.
– Por favor, eu imploro – falo. – Não pode deixar a
gente ir lá fora usando isso.
– Bom – diz Summer –, dá pra deixar a Liana ir.
– Não vou usar isso sem vocês – fala Liana.
– Tá bem – diz Harriet. – Vou falar com Michael.
Ela sai de forma intempestiva da sala, deixando a
gente sem ar de tanto rir e um pouquinho sem graça.
– Melhor a gente se acalmar ou vou fazer cocô – avisa
Liana.
– Não, isso acabaria com o vestido! – diz Summer,
então bate com o dedo na boca com um ar de
conspiração. – Na verdade...
– Espera aí, cocô? – pergunto. – Eu estava me
preocupando só com xixi.
– Esses sucos idiotas que tenho que postar têm muita
fibra – diz Liana, o que faz a gente ter outro acesso de
riso.
– O problema – falo, enxugando os olhos de novo – é
que não acho que a Harriet entenda que a gente merece
ser amada mesmo comendo carboidrato. – Liana dá uma
gargalhada, e continuo: – Olha que loucura se o Javier
ainda amasse a Liana mesmo que ela não ficasse uma
tremenda gostosa nesse vestido! Olha que coisa, é
possível ser feliz sendo quem a gente é de verdade, em
vez de virar a louca da academia e dos sucos verdes,
como tivesse passado por uma lavagem cerebral e...
Vejo de relance a expressão brava de Liana. Não há
mais qualquer indício de sua risada.
– Foi mal, seus sucos parecem ótimos. Eu não quis
dizer que...
– Que passei por uma lavagem cerebral tipo em
Mulheres perfeitas? – devolve ela, em um tom de
desdém. – Acredite se quiser, dá pra ser feliz e cuidar do
próprio corpo ao mesmo tempo.
Ela volta para sua cabine improvisada, deixando tudo
em silêncio.
Summer faz uma careta para mim. E, simples assim, o
feitiço se quebra e a estranheza retorna.
13
••••••

2004

Um fim de semana, Liana nos convidou para uma festa


em Hollywood Hills de outro ator da Atlas, Trevor. Ele era
o protagonista de Garota do poder, contracenando com
Amber Nielson. Garota do poder tinha sido cancelada,
mas Trevor havia feito sucesso e seria o astro de uma
comédia adolescente que estrearia em alguns meses. Eu
não tinha muita certeza de que a gente deveria ir a essa
festa depois do aviso de Michael.
– Vai ter um monte de funcionários da Atlas. Você
acha que vai acontecer algo indecente? – indagou Liana.
– Provavelmente a gente vai ficar ensaiando
coreografias.
Summer não poderia ir com a gente. O Lamapop,
aquele novo blog horrível e mordaz que tinha começado
a ganhar impulso nos meses anteriores (relatando
acontecimentos com muito mais rapidez que os tabloides
e as revistas semanais a que estávamos acostumados), a
acusara de “esconder” a mãe. Em vez de ignorar a
publicação, tão absurda e racista, Summer fora obrigada
a convidar um repórter para ir à sua casa vê-la cozinhar
tamales com a mãe para mostrar que não tinha
“vergonha de suas raízes”. Summer me contou que
quase nunca preparavam tamales e que Lupe só falava
espanhol com a família da terra natal, ao telefone, então
Summer mal sabia uma palavra, mas agora estava
tentando aprender. Além disso, o tempo em casa seria
uma boa oportunidade para ficar com o namorado. Ele
vinha se sentindo negligenciado. Tadinho do Lucas.
Eu não estava tão arrasada diante da perspectiva de
uma noite sem Summer. As palavras de Liana durante o
passeio na trilha, sobre ela achar que Noah poderia ficar
a fim de mim se Summer não monopolizasse a atenção
dele, ficavam ressoando na minha cabeça. Eu até saí
para comprar um vestido novo e gastei demais em um
modelo dourado cintilante curto, com alcinhas finas. (E
daí? Eu teria o cachê do filme em breve!)
Alisei o cabelo e passei meia hora me maquiando. Na
série, eu nunca podia aparecer muito bonita. Era uma
piada cada vez que eu tentava conquistar Noah. Todo
episódio, minha personagem chegava ao extremo da
escrotidão, sim, mas aí, para compensar, eu precisava
ser humilhada de alguma forma: tomar um choque ao
tentar sabotar o equipamento de som de Summer ou
levar uma fatia de pizza na cara em uma guerra de
comida no refeitório. Mas a garota que eu encarava no
espelho naquela noite parecia alguém para quem coisas
boas podiam acontecer.
Liana nos levou de carro até a festa, buscando
primeiro Noah, depois eu. Ela assobiou ao me ver
caminhar até o carro.
– É, alguém quer arrumar um namorado hoje.
– Nossa, você tá linda – falou Noah, com um sorriso, e
tentei não ficar muito corada.
– Ah, essa roupa velha? – falei, dando um giro para
que eles admirassem o vestido.
Quando chegamos, uma jovem – que ou era uma
assistente ou uma amiga tão encantada pelo carisma de
Trevor que se dispunha a fazer todo tipo de tarefa para
ele – conferiu nossos nomes na lista de convidados antes
de permitir nossa entrada.
Trevor veio nos cumprimentar sem camisa e com um
boné de beisebol.
– Bem-vindos, galera! – disse ele, nos mostrando sua
casa.
Não era muito grande, mas era toda decorada e havia
umas vinte ou trinta pessoas por ali. A sala de estar tinha
janelas que iam do chão ao teto, com vista para as
colinas, e uma porta de correr que levava a um deque
com piscina. Reconheci outros artistas de programas
antigos e novos da Atlas bebendo todas e fazendo outras
coisas também. Liana estava enganada quanto à
natureza da festa. Trevor reparou na minha expressão.
– Ouça a voz da experiência. Esse é o segredo pra se
divertir sendo uma estrela da Atlas – disse ele, jogando
um braço ao redor de Liana. – Só vá a festas em casas
particulares, onde não tem xeretas nem paparazzi.
Ele nos levou até a cozinha e serviu um rum forte com
refrigerante para nós, então deu as costas para mim e
Noah e ficou de papo com Liana, que estava cheia de
charme para cima dele. (Não era só eu que estava na
esperança de que algo acontecesse aquela noite.) Noah
e eu ficamos juntos enquanto tomávamos nossas
bebidas e começamos a explorar, olhando pôsteres
emoldurados que Trevor tinha de si mesmo na sua
lamentável estante de livros.
– A coleção é toda de autoajuda e biografias do Marlon
Brando? – perguntou Noah para mim.
– Ei – falei. – Talvez ele mantenha o Steinbeck na mesa
de cabeceira.
– Eu te desafio a perguntar ao Trevor o que ele acha
da temática de Ratos e homens.
Éramos tanto os novatos da festa quanto os grandes
astros da Atlas, além de sermos as pessoas mais
ingênuas dali. Os outros atores nos abordavam para
compartilhar sua sabedoria, então davam uma deslizada
e pediam para falarmos deles para o nosso diretor, caso
ele buscasse participações especiais. Muita gente ali que
não estava mais na programação da Atlas ia caindo no
esquecimento. Bom, a gente era diferente.
Depois da segunda bebida, precisei
desesperadamente fazer xixi. A porta do banheiro estava
destrancada, mas já tinha gente lá dentro, uma jovem
alguns anos mais velha que eu, limpando o nariz.
– Ah, foi mal! – falei, começando a recuar.
Então a reconheci. Amber Nielson. Depois que fora
dispensada de Garota do poder por causa da foto com a
cocaína, ela havia pedido um milhão de desculpas na
imprensa, alegando que cometera aquele erro só uma
vez, mas, a julgar pelo saquinho de pó que segurava, não
fora algo tão raro assim. A Amber diante de mim tinha
pouca semelhança com a jovem cheia de vida a que eu
assistia na TV quando trabalhava como babá (era
estranho me dar conta de que, em algum lugar, uma
adolescente tomava conta de uma criança enquanto me
via na TV e eu nunca mais teria que ser babá) ou com a
garota que conheci rapidamente quando filmamos um
vídeo promocional com ela. O rímel estava borrado, o
cabelo ruivo longo fora alisado ao extremo e a saia
estava tão larga na cintura que deixava à mostra a barra
da calcinha de um jeito que parecia não ser intencional.
Ela estreitou os olhos para mim.
– Ei, Kat de Os sonhadores! – Ela ofereceu o saquinho.
– Quer um pouco? – Sua voz era rouca como a de um
fumante inveterado.
– Não, mas valeu – respondi.
– Garota esperta. – Ela arregalou os olhos como se me
contasse uma história de terror diante da fogueira em
um acampamento. – Se não andar na linha, pode acabar
que nem eu.
– Sinto muito pelo que aconteceu – falei. – Foi muito
ruim mesmo.
– É – disse ela, observando-se no espelho e puxando o
cabelo de um lado para o outro como se não conseguisse
decidir onde parti-lo. – A merda é que todo mundo estava
fazendo umas paradas bem loucas, mas é claro que o Sr.
Atlas só soube de mim, então fui o bode expiatório. –
Seus olhos encontraram os meus no espelho. A cocaína
fizera Amber decidir que eu era sua nova melhor amiga.
Ou talvez ela contasse seus problemas com a Atlas para
qualquer um. – Você não ia querer aquele homem furioso
com você. Ele é tipo um deus implacável. Saiu da linha
uma vez, ele se livra de você, como se você não tivesse
desperdiçado sua adolescência enchendo o bolso dele de
dinheiro.
– Que insensível – falei.
– O pior de todos. É como se ele ficasse com raiva por
você ter causado polêmica e, além disso, se ofendesse
por você se comportar mal quando ele te encheu de
oportunidades. – Ela parou de mexer no cabelo,
parecendo satisfeita, e puxou o gloss do bolso. – Enfim,
que se dane ele. E que se danem meus colegas de
elenco. Foram eles que me entregaram, aposto o que
você quiser. Achei que a gente era amigo, mas você
precisa se cuidar. Alguém sempre se ferra. Só um alerta
pra você.
– Então por que está aqui, na festa do Trevor, com
todos eles?
– O Trevor tem a melhor cocaína. – Ela estalou os
lábios e correu um dedo pelo contorno da boca para tirar
o borrado do gloss. – Vou voltar lá pra fora. Boa sorte,
novata.
Ela me abraçou, então parou para me observar antes
de sair pela porta.
– Que coisa – disse. – Você é bem mais gata do que
parece no programa.
Mandei uma mensagem de texto para Summer
enquanto usava o banheiro, ainda me acostumando com
meu Nokia novo e todas as suas funções maravilhosas.
Acabei de ter o encontro MAIS ESTRANHO DO MUNDO
com a Amber de Garota do poder. A gente precisa
conversar!
Ela respondeu rápido:
Mal posso esperar!!! Ai, saudade de vocês. É estranho
eu ficar triste por vocês estarem juntos uma noite sem
mim? :) :)
Dou um sorriso.
Muito estranho, sua esquisitona.
E ela responde:
A entrevista foi esquisita. Eles acham que minha mãe
e eu conversamos em espanhol. Eu sei só umas dez
palavras e ela fica desconfortável com isso.
Quando saí, passei por Liana e Trevor se pegando em
um canto. Bom para ela. Noah estava lá fora, tomando
uma cerveja perto da piscina, com algumas admiradoras
encantadas à sua volta. Ele jogou a lata no chão e,
triunfante, passou um braço ao redor de uma das moças,
então me viu e veio até mim, deixando as puxa-saco
para trás sem nem se despedir. Eu nunca o vira tão
bêbado. Seu ar de filhotinho empolgado ficava ainda
mais evidente.
– Você sumiu um tempão! – disse ele, me pegando no
colo e girando. Ele me colocou no chão e apontou para a
piscina. – A gente devia nadar! É uma loucura a gente
estar aqui numa festa, o clima estar perfeito, mas
ninguém cair na água – disse ele, com um leve sotaque
de Boston, perdendo um pouco do controle que
normalmente lhe permitia soar como se pudesse ser de
qualquer lugar.
– Na água? – repeti. – Tá bom, Sr. Boston.
– Eu não tenho vergonha! Acho que a gente devia
entrar, e vai ser bem divertido. Outro dia, uns caras do
estúdio me levaram a um restaurante que tinha uma
piscina bem no meio e ninguém entrava nela. – Ele me
segurou pelos ombros, com uma expressão sincera,
como se tentasse me fazer rir com a gravidade do
assunto. – A piscina era só decoração.
– Que tragédia.
– Não é?! Dá pra imaginar ficar tão acostumado a
morar em Hollywood que você acaba nem curtindo a
oportunidade de nadar numa piscina que é sua? – O
semblante continuava sincero. Talvez eu estivesse
enganada sobre ele querer me fazer rir. – Nunca quero
me tornar o tipo de cara que se acostuma com as coisas.
Sabe? – Ele pegou minha mão e a apertou, olhando bem
dentro dos meus olhos. – A gente não pode deixar
Hollywood anestesiar a gente pras piscinas, Kat. Não
pode.
Não me aguentei e deixei uma risada escapar.
– Não, você tem razão.
– Desculpa – disse ele e soltou minha mão, sacudindo-
se para se livrar do que quer que o tivesse dominado, um
sorriso tímido no rosto. – Então vem, vamos nadar.
– Não temos roupa pra isso!
– É pra isso que servem as roupas íntimas.
Ele tirou a camisa pela cabeça e puxou o short para
baixo até ficar só de cueca sob a luz da lua. Tentei não
olhar descaradamente, ainda que meu instinto fosse
passar os dedos por seu peitoral, memorizar cada sarda
e cada músculo. Então ele pulou na água e emergiu para
respirar, sorrindo e tremendo, como um menino tão
apaixonado pela vida que ela cedia a seus caprichos.
– Você vem?
– Eu quero, mas... – Amaldiçoei minha decisão de usar
um vestido de alcinha com decote nas costas. – ... não
estou de sutiã.
– Ah – disse ele, tirando o cabelo dos olhos, enquanto
gotinhas de água deslizavam por sua pele. – Droga.
Ele pareceu muito decepcionado, e senti uma
estranha alegria. Era eu a causa de sua decepção e era
eu também que tinha o poder de corrigir isso.
Eu era uma estrela, e estrelas são ousadas. Então,
sem me deixar pensar duas vezes, tirei o vestido pela
cabeça e pulei seminua na piscina.
– Caramba! – disse Noah, rindo, incrédulo. – Você é
maluca!
– E o que você vai fazer quanto a isso? – perguntei.
Ele jogou água em mim, eu devolvi, e nós dois
lutamos na água como crianças barulhentas,
mergulhando, um pegando o tornozelo do outro. Na
borda da piscina, a água ia formando uma poça ao redor
do meu vestido delicado. O cloro ia acabar com o tecido,
mas era um sacrifício que valia a pena.
Boiamos lado a lado, olhando para as estrelas pálidas
lá em cima, o barulho dos outros na festa abafado em
comparação às batidas do meu coração. Meu braço roçou
no dele, e senti uma agitação no corpo que nada tinha a
ver com a água. Virei a cabeça para Noah. Seus olhos se
demoraram nos meus seios por um instante, então se
desviaram – que cavalheiro! – direto para cima,
interessados de repente em identificar constelações por
entre a névoa.
– Que foi? – perguntei, em voz baixa, sedutora.
– Nada – respondeu ele.
– Fala o que você está pensando.
Se alguma coisa fosse acontecer entre nós, o
momento era aquele.
– É só que... você não queria que a Summer estivesse
aqui?
De repente, a água pareceu muito gelada. Eu tinha
me humilhado, igual à minha personagem. Encaixava
direitinho: Kat tropeça do palco, Kat leva uma fatia de
pizza na cara, Kat pula de topless numa piscina com um
cara e, ainda assim, ele não a deseja.
– Não acredito que nunca deixem ela ser engraçada
na série – comentou ele. – Ela é hilária! Quero dizer, ela
também é linda, então entendo por que focam nisso,
mas, sabe, ela disse que ver séries de comédia tem sido
uma boa distração desde que o pai morreu e que ela
queria fazer as pessoas rirem daquele jeito. E eu acho
mesmo que conseguiria, se dessem uma chance a ela.
Cruzei os braços por cima do peito, uma múmia em
seu sarcófago. Ela nunca me contara nada disso, e eu era
sua melhor amiga. Pela primeira vez, imaginei Summer e
Noah saindo sem mim e Liana: um indo ao trailer do
outro ou tomando um café na área externa do estúdio.
Talvez Summer até ligasse para conversar com ele de
noite, algo que tinha parado de fazer comigo.
Então a verdade me atingiu: se Summer perdesse
alguém que amava, eu não seria mais a primeira pessoa
para quem ela ligaria. Doce e discretamente, ela me
substituíra por Noah, e eu nem fazia ideia.
Ele amava Summer, não a mim, e a pior parte era que
eu entendia. Não é que eu não a quisesse com a gente.
Sentia saudade dela também. Mas eu a queria ali em um
tipo de mundo diferente, um mundo onde ela e Noah
prestassem atenção em mim, em vez de um no outro.
Um mundo onde eu seria a pessoa favorita, a primeira
escolha.
Quando você é jovem e ama uma pessoa, você quer
ser essa pessoa e se ressente dela, tudo ao mesmo
tempo, e é difícil dar um passo atrás e reconhecer esses
sentimentos conflitantes. Eles apenas se tornam um
grande turbilhão de emoções que logo pode ser rotulado
de ódio.
14
••••••

2018

Se fosse um programa de TV, aqui seria a parte da


montagem, cenas curtas entrecortadas pra nos mostrar
mergulhando em ensaios enquanto nossa primeira semana
passa voando. Digo “ensaios”, mas, na verdade, a primeira
semana é tipo treinamento militar.
Imagine só eu reaprendendo a cantar, atuar e dançar
mais de uma década depois de abandonar essas
habilidades. Cá estou eu, de camisa de malha e legging,
tentando uma combinação de passos rápidos que nosso
coreógrafo montou – um giro, um salto, uma série de
movimentos em que mãos e pés, em tese, deveriam de
algum jeito fazer coisas diferentes ao mesmo tempo.
– Talvez fosse melhor simplificar – diz o coreógrafo, na
segunda vez em que quase me dou um tapa no rosto.
Insisto em tentar de novo e de novo. Treino diante do
espelho do banheiro na pausa para o almoço, lanço para
mim mesma o olhar com a sobrancelha devastadora
quando cometo os mesmos erros. (E funciona, me sinto
humilhada.) Finalmente, finalmente, consigo encaixar a
sequência e surfo numa onda de adrenalina até chegar a
hora de aprender a próxima coreografia complicada.
Imagine só eu voltando para o meu quarto à noite –
Liana, Summer e eu fomos hospedadas no mesmo hotel,
mas não voltamos juntas – completamente exausta. Mas é
um tipo bom de exaustão. Em casa, depois do expediente,
tento esquecer o trabalho até voltar para o escritório. Aqui
eu pratico meus passos de dança enquanto escovo os
dentes e canto minhas músicas no chuveiro. Estou exausta,
mas também... é como se eu despertasse. Toda noite, me
aninho na cama e ligo para Miheer. Nossas mensagens de
texto continuam bem-humoradas, divertidas e constantes,
mas, no telefone, seu quase pedido de casamento invade a
ligação, uma terceira presença, pesada, que engessa o
papo. Além do mais, ele sempre vai dormir mais cedo do
que eu, e agora temos que lidar com três horas de
diferença de fuso. Ainda assim, tentamos heroicamente nos
falar. Fico perguntando detalhes sobre os projetos dele no
trabalho, que novos pratos aprendeu a cozinhar, com quais
dos nossos amigos saiu.
– Como anda o roteiro ruim? – pergunta ele. – Melhorou
um pouco?
Digo a ele que não, mas que eu reaprendi a dar uma
pirueta e então explico o que de fato é uma pirueta.
– E como está com os outros?
Respondo que está meio esquisito, mas agradável o
suficiente. Porque é um ponto sensível demais para
explicar com palavras.
Imagine só Liana, com aquela solidez brilhante dela que
não consigo penetrar. Suas redes sociais anunciam a glória
de estar de novo com os velhos amigos, ainda que ela
passe o intervalo entre os ensaios postando fotos ou
fazendo chamadas com Javier, durante as quais ela se
distancia de nós em busca de privacidade. Nos meus
momentos mais sensatos, imagino que ela esteja se
tornando uma daquelas mulheres que ficam tão imersas no
relacionamento que esquecem como é sair com qualquer
pessoa que não seja o Seu Único Amor. Quando estou na
paranoia, temo que ela esteja distante de mim porque
desconfia do que fiz naquela época.
Imagine só Noah, sempre saindo para outros
compromissos. Ele usa o charme até que todo mundo coma
na mão dele, aí seu assistente entra em cena como o vilão,
arrastando-o para “sessões de foto para revista” ou
“entrevistas”. Ele nunca dá detalhes. Talvez, na realidade,
Noah só vá para casa descansar ou saia para jantar e
beber com supermodelos. Talvez pense que pode
simplesmente nos encaixar na agenda enquanto o resto de
nós trabalha até dizer chega o tempo todo. Temos sorte só
de tê-lo aqui, e é isso que devemos dizer a qualquer um
que perguntar. (Que cara fantástico! É muito gentil da
parte dele dar uma passada aqui!)
– Não me olha assim – diz Michael para mim, uma tarde,
depois que volto do almoço e fico sabendo que Noah tirou
o resto do dia de folga.
– Ele tem trabalhado como ator nos últimos 13 anos,
então não precisa reaprender a fazer tudo como o restante
de vocês.
Ora, que interessante.
E imagine só Summer, mantendo seu teatrinho esquisito
de inocência. As assistentes de produção a procuram,
curiosas, pressionando-a para saber detalhes escandalosos
a respeito dos homens mais famosos com quem ela saiu ou
do período que ela passou em um reality show onde
estrelas decadentes viviam juntas em uma casa por seis
meses. (A coisa durou só um mês.) Ela pisca e responde
algo genérico, com educação e parecendo inabalável.
Mas um dia, durante uma pausa, eu a vejo vacilar.
Vários de nós estamos no lado de fora do estúdio, curtindo
o sol. Summer está falando com um ator secundário que
participou da primeira versão do programa fazendo um dos
nossos professores esquisitões. O bom e velho Scotty, que
sempre manda e-mail no Natal com cópia para um monte
de gente. Eles não me veem passar por trás deles.
– Então você não tem mesmo ideia de quem vazou isso
pra imprensa? – pergunta Scotty, e sinto minha garganta
fechar.
Porque estão falando do diário. O lindo diário de capa
acolchoada que o Sr. Atlas comprou para Summer, páginas
em branco prontas para serem preenchidas com os
pensamentos mais íntimos de alguém.
O diário que acabou em todos os noticiários e blogs de
fofoca, as páginas escancaradas para que o mundo as
examinasse minuciosamente.
Paro de andar, quase paro de respirar, enquanto espero
a resposta de Summer, que balança a cabeça.
– Eu era péssima em trancar meu trailer naquela época.
Alguém deve ter entrado e pegado.
– Que tipo de monstro... – começa ele. – Bom, sinto
muito.
– Obrigada.
Summer lhe dá um sorriso, mais verdadeiro que os
outros, e o homem põe uma das mãos no ombro dela de
um jeito reconfortante.
– E, olha, se um dia quiser recriar qualquer coisa que
escreveu ali, sei ser bem discreto.
Ela recua, surpresa, a mão dele ainda em seu ombro, só
que já não é reconfortante, apenas lasciva, possessiva.
– Ah, não. Obrigada.
– Ei, tá tudo bem, sei que gosta de se divertir. Eu
também. Então, se mudar de ideia, sabe onde me
encontrar.
Ela se enrijece, e ele aperta seu braço, depois vai
embora.
Summer fica olhando para a frente, uma veia pulsando
no pescoço. Então seus olhos se fixam nos meus quando
ela me nota a observando.
– Que foi? – pergunta, cortante.
As lembranças borbulham na minha cabeça, no meu
peito: o clique baixinho ao abrir a porta do trailer dela, meu
coração martelando enquanto vasculho as gavetas, meus
dedos se atrapalhando, fechando-se em volta da capa
macia. Por um instante imprudente, penso em confessar
tudo, implorar por seu perdão. Mas não posso. Não posso
falar nada.
Ela olha para mim por um instante a mais, depois funga
e volta para o ensaio. Mas a podridão do diário é inevitável.
Fica nela agora, como ficou nos últimos 13 anos. E eu fico
ali, fora do estúdio, com o estômago revirado.
Porque fui eu que fiz isso com ela.
TRANSCRIÇÃO: LINHA CRUZADA, RÁDIO NPR, 2004

Fiona Savage-Fune: Olá! Bem-vindo ao Linha


Cruzada da Rádio NPR, onde discutimos
questões atuais com pessoas de opiniões
diferentes. Eu sou a apresentadora, Fiona
Savage-Fune. Hoje tenho a companhia de Carol
Donaldson, do Guia de TV para Família, e de
Mai Rodriguez, do Essência Feminista. Bem-
vindas.

Carol Donaldson: Obrigada, Fiona.

Mai Rodriguez: É um prazer estar aqui.

Fiona Savage-Fune: Nosso tema de hoje são os


padrões de decoro na mídia. Estamos todos
cientes do recente alarde que aconteceu
quando as estrelas de um programa popular da
Atlas apareceram na tela usando roupas que
alguns espectadores consideraram
inadequadas. Carol, você é uma das vozes mais
atuantes nessa repercussão.

Carol Donaldson: A questão é a saúde das


nossas crianças. Minha filha pré-adolescente e
eu assistimos à primeira temporada de Os
sonhadores juntas, e o programa trazia
mensagens sobre amizade, trabalho em equipe
e a importância de conexões emocionais em
vez de físicas. A personagem de Summer
Wright usa até um anel de castidade, uma
escolha sutil na caracterização dela que abriu
espaço para uma conversa valiosa entre mãe e
filha. Mas meu medo é que tudo isso tenha sido
uma porta de entrada para uma segunda
temporada sem limites e cheia de luxúria.

Mai Rodriguez: Os protagonistas nem se


beijaram, Carol.

Carol Donaldson: Mas a tensão entre eles é


nítida! E isso é confuso para minha pré-
adolescente. Outro dia, eu a flagrei em seu
quarto fazendo carinho no pôster de Noah
Gideon.

Mai Rodriguez: Olha, o verdadeiro problema não


é o que acontece na tela. É o que acontece nos
bastidores. Na minha opinião, a Atlas destrói as
adolescentes em nome do entretenimento. A
empresa descarta suas estrelas quando elas
mostram qualquer indício de que cresceram e
estão agindo como adultos. Para ser sincera, o
número de ex-estrelas que vão parar em
clínicas de reabilitação é assustador. Com
certeza você viu o vídeo da Amber Nielson, sob
o efeito de alguma droga, sendo importunada
por paparazzi.

Fiona Savage-Fune: Vamos ouvir essa gravação.

Áudio de Amber Nielson: Vocês... Não, escuta.


Vocês acreditam em universos paralelos?
Aposto que tem um universo onde eu nunca fiz
um programa na Atlas e sou feliz de verdade.
Mai Rodriguez: Nós, do Essência Feminista,
temos questionado o presidente da empresa,
Gerald Atlas, sobre quando vai começar a
cuidar melhor de suas estrelas, mas ele se
recusa a falar com a gente.

Carol Donaldson: Não sei o que isso tem a ver


com o assunto em pauta.

Mai Rodriguez: A verdadeira indecência é o


comportamento da Atlas! Uma após outra,
várias estrelas estão se autodestruindo diante
do olhar público enquanto a gente devora o
caos que essas jovens causam.

Fiona Savage-Fune: Humm... e são sempre as


jovens, não é?

Mai Rodriguez: Exato. Mas a gente pode lutar


contra isso. É o poder do consumidor, Fiona. Se
a emissora não tomar atitudes concretas para
resolver o problema, é hora de mudar de canal.
15
••••••

2018

Volto para o ensaio tentando esquecer a conversa sobre


o diário de Summer que testemunhei lá fora. Por um
curto período, quase consigo. Estamos reaprendendo a
canção do nosso encerramento musical, nós quatro de
pé, ao redor do piano, cantando em harmonia. Parece
algo bem perto de natural. E então, como um relógio, o
assistente de Noah corre até Michael, agitado, e sussurra
algo em seu ouvido.
– Pausa – diz Michael. – Beleza, o Noah tem que ir.
– Droga. Logo agora? – diz Liana.
– Desculpa, gente – diz Noah, erguendo as mãos, um
sorriso gentil no rosto. – Eu queria ficar, mas o dever me
chama.
Summer morde o lábio. Sua decepção é evidente.
Estou furiosa. Como é que Summer vai conseguir a
redenção que tanto deseja se Noah não levar isso a
sério?
Noah anda com arrogância até a porta, e Michael
folheia o roteiro.
– Vamos nos concentrar na cena de Summer e Liana
da página 32 pelo resto da tarde – começa ele.
– Posso ir? – pergunto.
– Claro, claro, tanto faz – diz ele.
Saio em disparada, correndo atrás de Noah no
estacionamento.
– Ei! – chamo na hora em que ele chega até seu carro.
Noah se vira, surpreso.
– Oi – responde ele. – Foi mal, estou meio atrasado
para...
– Eu sei que você é muito mais badalado do que a
gente agora, mas essa palhaçada de largar o ensaio já tá
ficando batida. – Agora que comecei, não paro mais. –
Estamos todos aqui. Abrimos mão de coisas nossas pra
fazer isto! Joguei uma bomba na minha vida e você não
pode nem se dar ao trabalho de fingir que isto aqui é
prioridade pra você? O que mais é tão importante?
– Eu... – começa ele, então olha para o relógio.
Ele vai embora mesmo assim. É claro. Que filho da...
– Quer vir comigo? – pergunta ele, abrindo a porta do
carona.

••••••

No carro, Noah diz:


– Provavelmente, vão te fazer assinar um termo de
sigilo quando chegarmos lá, mas vou me adiantar logo e
te contar. – Ele olha para a rua à frente. – Eu vou ser o
Leopardo da Neve.
Ele está tentando parecer de boa com isso, mas os
cantos de sua boca o denunciam, formando um sorriso
incontrolável.
Eu me recuso a ficar impressionada.
– Ah. Parabéns.
Mas essa é uma notícia e tanto. Os fãs de quadrinhos
amam o Leopardo da Neve, e, por causa de questões de
direitos autorais que só foram resolvidos recentemente,
nunca houve um filme sobre ele. Desde que anunciaram
o projeto do filme, a internet explodiu em um frenesi de
especulações sobre o elenco. Noah foi citado, assim
como vários Chris, uma vasta gama de gostosões
britânicos e basicamente todo mundo com um nome
famoso e um tanquinho. Se eu achava difícil evitar ver
Noah no noticiário antes, agora vai ficar impossível.
Mantenho um tom de voz casual.
– Você vai ficar conhecido no mundo todo. Está
nervoso?
– Bom, agora estou. Valeu mesmo. – Ele sai da estrada
principal, nos levando por ruas secundárias estreitas. –
Eu não tinha muita certeza se devia aceitar.
– Depois que recebe uma indicação ao Oscar, a
pessoa fica importante demais pra interpretar super-
heróis?
– De agora em diante, faço apenas faroestes cults
sobre caubóis angustiados. – Ele balança a cabeça. –
Nah, não consigo mais fazer faroeste. Não me dou bem
com cavalos.
– O quê? Não acredito.
– É sério. Fiz um faroeste e tentei montar três cavalos
diferentes. Todos eles quase me arremessaram no chão.
– O que você fez pra eles? – pergunto, dando uma
risadinha, mesmo sem querer.
– Nada! Talvez eles conseguissem sentir que eu me
importava com eles?
– Você tentou um quarto cavalo?
Ele balança a cabeça.
– Os produtores tiveram que chamar um dublê de
corpo e colocar meu rosto nele com computação gráfica.
Uma vergonha que carrego comigo.
– E é por isso que você não sabia se devia fazer
Leopardo da Neve. Por causa dos cavalos correndo pela
tundra.
Ele dá um sorrisinho e empurra meu ombro de
brincadeira.
– Não, é por causa do que você falou. É algo que vai
mudar minha vida. É assinar um contrato pra virar parte
de uma máquina imensa. Mas não dá pra recusar algo só
por medo, não é?
– A menos que o medo tenha um bom motivo. –
Começo a rir, então levo a mão à boca. – Tipo cavalos.
Ele balança a cabeça e fala baixinho.
– Acho que eu seria maluco se recusasse essa
oportunidade.
Por um momento, ele parece quase hesitante, como
se tentasse convencer a si mesmo disso. Ah, tá bom. Ele
passou a carreira toda fazendo o que fosse preciso para
chegar ao topo, ficando amigo das pessoas certas e
deixando as erradas para trás sem pensar duas vezes. Só
que é bastante inconveniente para ele que essas pessoas
deixadas para trás tenham voltado à sua vida bem no
momento em que ele chegou ao topo. Bom, ele só
precisa aguentar mais algumas semanas com a gente e
então vai poder sair com outros grandes astros do seu
nível.
– Então é por isso que você anda sumido? – pergunto.
– Já começou a trabalhar?
– Estamos filmando um curta pra fazer um grande
anúncio – diz ele. – A Atlas vai exibi-lo durante o intervalo
do nosso programa ao vivo.
Zero pressão.
Noah para e estaciona o carro em frente a um prédio
de tijolos cinza, uma estrutura discreta quase sem
janelas que não dá a menor pista do que há lá dentro.
Vou atrás dele até a porta.
– Hoje eles querem documentar minha
“transformação” – conta ele, abrindo a porta e revelando
uma academia, tatames no chão e fileiras de
equipamentos reluzentes. Mas não tem ninguém se
exercitando. Em vez disso, o local está repleto de
membros da equipe de filmagem. – Estamos filmando um
treino.
Um homem franze a testa ao me ver.
– Noah! Quem é? Ela não está na lista de pessoas
autorizadas.
– É minha amiga – responde Noah, passando um braço
ao meu redor. – Não vai contar pra ninguém.
O homem estala os dedos para um assistente. Um
termo de sigilo se materializa nas minhas mãos enquanto
Noah é levado até a maquiadora. Ela começa a enchê-lo
de base e pó compacto. O suor não vai fazer aquilo tudo
escorrer depois? Ela faz um gesto para que ele tire a
camisa.
– Sem nem me convidar pra jantar primeiro? –
pergunta ele, dando uma piscadinha e fazendo a mulher
corar quando ele tira a camisa pela cabeça.
Tento me controlar para não ficar boquiaberta. Eu
sabia que Noah era sarado. Ele é um astro do cinema.
Mas seu peitoral agora está em outro patamar. Que
tanquinho que nada: ele agora tem uma lavanderia
inteira. Para ser sincera, passou um pouquinho da conta:
do atraente para o caricatural, como se ele estivesse
deixando de ser de carne e osso para se transformar em
um boneco de plástico.
A maquiadora pega uma garrafa e borrifa água em
Noah para deixá-lo suado na medida exata, que é: ele
está brilhando, mas você ainda vai querer percorrer o
corpo dele de cima a baixo com os dedos, em vez de
mandá-lo para o banho. Ela dá um passo atrás, estreita
os olhos para ele (um balãozinho de pensamento onde
está escrito “Para de babar e se concentra!”
praticamente aparece acima da cabeça dela) e então
pega o óleo de bebê. Noah fica parado enquanto ela dá
tapinhas em seu peitoral, o que produz um som esquisito
e molhado. Reprimo uma risada.
O diretor da cena se inclina na direção de uma mulher
a seu lado, que parece ter sido enviada pela Atlas.
– Devemos cortar a barba? – pergunta ele, enquanto
os dois observam Noah ser besuntado de óleo.
– Humm – diz a mulher, o tom sério como se ele
tivesse acabado de perguntar se deveriam declarar
guerra a um país vizinho. – Se o Leopardo da Neve tem
poderes de autoaquecimento, devemos deixar o máximo
possível de pele exposta. E isso inclui a pele do rosto.
– Exato. Pensamos igual. – O diretor vai até Noah e a
maquiadora. – Muito bem, vamos raspar essa barba bem
rápido.
– Ah. – Noah pisca. – Claro. – Ele coça a nuca. – Mas
não acham que ela ajuda a deixar o Leopardo da Neve
mais rústico?
– Ah, você parece bem rústico com ela – rebate o
diretor.
– Como se estivesse pronto pra derrubar algumas
árvores – diz a emissária da Atlas, entrando na conversa.
– Mas acho que o que queremos aqui é liso –
acrescenta o diretor.
– E o Leopardo da Neve deixaria as árvores em paz,
porque respeita a natureza – afirma a mulher.
Noah pigarreia quando a maquiadora puxa uma
navalha.
– Beleza.
Enquanto está sendo tosado, Noah olha para o teto,
com o rosto inexpressivo. A maquiadora vira a cabeça
dele na minha direção e ele me flagra a observá-lo. Por
um momento, há algo de indefeso em seu olhar. Então
ele logo dá uma piscadinha, como se dissesse: Que
profissão ridícula, hein?
Depois que Noah é limpo e espanado o suficiente, seu
preparador físico – um cara grandalhão todo tatuado
chamado Xander – se apresenta, pronto para pelo menos
fingir que está pondo o astro para malhar. Noah começa
fazendo abdominal alpinista, e um câmera chega perto
para capturar a única gota de suor que rola pelo seu
rosto sem pelos. Depois Noah levanta pesos e rosna de
um jeito performático.
– Podemos dar mais destaque ao bíceps depois, não
é? – pergunta um membro da equipe a outro, que
assente.
Enquanto a câmera percorre as coxas torneadas de
Noah de cima a baixo e se fixa em seu abdômen, me
pergunto se ele se sente desumanizado. O vídeo que vejo
em um monitor à minha frente parece voraz, do mesmo
jeito que muitos vídeos de Summer foram ao longo dos
anos.
A equipe de filmagem consegue o que precisa e
começa a guardar tudo. Pego minha bolsa, crente que
estamos de saída, mas Noah balança a cabeça.
– Agora é que começa o treino de verdade – diz ele.
– Não vou ficar sentada aqui vendo você levantar peso
– digo, irritada.
– Eu sei. Você vai me acompanhar.
– De jeito nenhum – respondo.
– Você já está com a roupa – diz ele, indicando as
roupas de malhar que usei no ensaio. – Me faz
companhia. Vai ser legal.
Fuzilo Noah com o olhar.
– Kat! Kat! Kat! – canta ele, fazendo alguns dos
assistentes e seu preparador se juntarem a ele.
Jogo as mãos para o alto.
– Tá bem – digo. – Mas é Katherine agora.
Xander me faz malhar mais pesado do que nunca na
vida. Não é de admirar que Noah tenha um abdômen
trincado agora. Estou com medo de meu coração sair
pela boca ou de escorregar na minha poça de suor e ter
uma concussão. Que sofrimento.
– Eu vou matar você – falo para Noah, com o que
restou de fôlego depois que Xander nos botou para fazer
agachamentos.
– Acho que o Xander vai conseguir isso primeiro – diz
ele, resfolegando.
Quando o treino enfim termina, me deito no chão e
Noah desaba ao meu lado, nós dois tontos de alívio por
termos sobrevivido. Saímos do prédio rindo do quanto
vamos estar doloridos amanhã. Noah esfrega a
bochecha, distraído, e então esfrega de novo.
– Saudade da barba? – provoco. – Você pode deixar
crescer de novo.
– Claro, em dez anos, quando o Leopardo da Neve se
sacrificar pela próxima geração de super-heróis, talvez eu
consiga deixar uma barba rala crescer.
– Perdão, estou ouvindo uma nota de autopiedade? É
difícil ser um astro do cinema?
– É. – Ele faz um muxoxo e então dá um sorriso. – Eu
sou muito insuportável? Nah, está tudo bem. Sente só
como meu rosto ficou lisinho.
Ele pega minha mão e a coloca em sua bochecha e,
sim, a combinação de se barbear, passar óleo e suar
deixou a pele supermacia. E quente também. Por um
breve instante, ele é o adolescente Noah outra vez,
intocado pelo tempo, e eu sou a garota que teria feito
qualquer coisa por ele.
Não, droga, não estou aqui para cair em sua
armadilha brilhante de novo. Puxo a mão e continuo
andando até o carro. Então paro e me viro para encará-
lo.
– Ainda estou furiosa com você, sabia? Só porque você
ficou comigo hoje, só porque vai ser um super-herói, não
significa que pode negligenciar Os sonhadores.
Lá atrás, Noah tinha um estilo próprio, o sorriso
preguiçoso e o olhar meio oculto pelos cílios. Dava a
sensação de enxergar a gente de verdade. Agora ele me
encara com os olhos levemente semicerrados, uma
ruguinha na testa. Parece que seu novo estilo próprio é
ouvir de verdade. Dá uma raiva. A menos que seja de
verdade.
– A gente precisa de você – concluo e, depois de um
instante, ele assente.
Acho que vejo alívio em sua expressão, talvez alívio
por ser só esse o motivo de eu estar chateada.
– Tem razão – diz ele. – Vou falar com a Atlas e ver o
que dá pra fazer.
16
••••••

2005

O mundo pode ter sido privado de um beijo entre Summer


e Noah, mas eu vi acontecer tantas vezes que fiquei
enjoada, depois que começamos a ensaiar para o último
episódio da segunda temporada.
A primeira vez que Michael os conduziu no ensaio do
beijo, os dois estavam hesitantes, com sorrisos tímidos que
tentavam esconder, o pé de Noah batendo de ansiedade. O
programa ao vivo seria realizado em um grande palco, com
fogos de artifício preparados para explodir acima do teatro
no fim do nosso último número, mas, por enquanto,
estávamos em uma sala para ensaiar, com lâmpadas
fluorescentes no estúdio, alguns adolescentes de moletom,
sem maquiagem e com marcas de acne nas bochechas,
como se estivéssemos ensaiando para um musical da
escola. Liana e eu estávamos sentadas nos bastidores,
prontas para nossa entrada.
– Então – disse Michael. – Vocês vão dizer suas falas e,
aí, Summer, você dá um passo à frente e beija o Noah.
Noah, você reage como se tivesse ganhado na loteria,
beleza?
Os dois assentiram e começaram, um rubor surgindo no
rosto de Summer.
– Vou sentir saudade da banda – disse ela. – Mas, mais
do que isso, vou sentir saudade de você.
– Vai? – perguntou Noah.
– Porque eu... Bom, eu...
Foi como se todo mundo ao redor prendesse a
respiração enquanto Summer dava um passo à frente.
Havia um peso, um desânimo no meu peito. Eu queria que
o beijo fosse estranho e decepcionante.
E foi. Summer não sabia onde colocar as mãos. Noah
ficou rígido. A consciência de estarem cercados por outras
pessoas parecia pairar sobre eles, uma sensação de
constrangimento a cada gesto. Eles se juntaram por um
instante, então se separaram, Noah esfregando a nuca,
Summer mordendo o lábio. Senti uma centelha esquisita de
satisfação. Engulam essa, tarados da internet: Summer
beija mal!
– Vamos de novo? – pediu Summer.
– Acho que vocês precisam ir de novo – respondeu
Michael.
– Desculpa, é muita pressão! – falou ela.
– Por quê? Porque é o beijo com que milhões de
adolescentes vêm sonhando?
– Tipo isso – respondeu Noah.
– Finjam que estão sozinhos, tá bom?
– Tá – falou Noah, sacudindo os ombros.
Ele e Summer se olharam e... foi tão rápido que quase
perdi, mas ela ficou vesga e pôs a língua para fora. Ele
soltou uma risada que a fez rir também.
– Tá – disse ela, então repetiu suas falas e foi até ele.
Dessa vez, foi um daqueles beijos em que o resto do
mundo desaparece, um beijo em que duas pessoas sentem
algo totalmente novo e conhecido ao mesmo tempo. Dava
quase para ouvir uma música de fundo, ainda que não
houvesse nenhuma. Noah deslizou a mão até as costas
dela, puxando-a. Ela se ergueu na ponta dos pés e
mergulhou os dedos no cabelo dele.
– Bem melhor – falou Michael.
Então os dois se separaram, com Summer deixando
escapar um pequeno suspiro.
Eu desejei que, ao menos uma vez na vida, alguém me
beijasse daquele modo, com tanta atenção, com tanta
vontade. E desejei, ao menos uma vez, também beijar
alguém assim. Não por estarmos no mesmo lugar, não por
eu achar que deveria, mas porque algo voraz dentro de
mim não ficaria satisfeito até que eu estivesse colada na
pessoa.
Ensaiamos de novo e de novo, entrando com a música
de fundo, tentando cronometrar a entrada de Liana e a
minha. A cada vez, o beijo ficava mais apaixonado, mais
audaz. Com mais tesão. Não era mais um daqueles beijos
em que a música toca delicadamente – a menos que fosse
“Let’s Get It On”, do Marvin Gaye.
– Gente – chamou Michael. – Vocês não podem ficar se
devorando a bel-prazer. Precisamos sincronizar com a
Liana.
– Foi mal! – disse Summer.
– Liana, Kat, prontas?
Nós nos levantamos num pulo.
– Ah – murmurou Liana. – Então a gente não vai ficar
sentada aqui o dia todo vendo eles se pegarem?
– Que esquisito – sussurrei em resposta. – Achei que
fosse essa a nossa função.
••••••

Naquela noite, depois do ensaio, eu tinha prova de figurino


com Harriet. Fiquei lá enquanto ela enfiava alfinetes na
minha roupa, reclamando de algum sermão que Michael
lhe dera por ela ter adicionado recortes à cintura daqueles
vestidos sensuais sem a aprovação dele, de última hora.
– E essa polêmica de nada está ajudando todos vocês,
não está? Mas ele tem tanto medo do Sr. Atlas ficar
zangado que precisa me repreender de qualquer jeito –
disse ela. Harriet me encarou e cacarejou consigo mesma.
– Acho que dá pra apertar aqui, tentar te deixar com um
pouco mais de cintura.
Olhei direto para a foto em cima da mesa dela, Harriet
com a filha, uma menina no começo da adolescência.
Harriet a trouxera uma vez até o set de filmagem e nos
apresentara. A menina ficara tão impressionada que
perdeu a fala. Se Harriet era ruim assim com a gente, eu
nem imaginava o complexo gigante que aquela menina ia
desenvolver.
– O Michael nunca ia conseguir fazer o que eu faço, mas
aposto que consigo aprender o que ele faz – continuou ela.
Por eu ter cara de má e interpretar o papel da megera
tão bem, as pessoas vinham até mim para compartilhar as
próprias desumanidades. Eu vivia ouvindo sobre problemas
de alguém com outra pessoa. Sabia exatamente quem
odiava quem e por quê. As pessoas queriam que eu
ouvisse e participasse para que elas pudessem sair com a
sensação de que tinham se confessado. Ouvi pessoas se
virarem contra amigos que pareciam amar, criticar sem dó
seus maridos ou esposas, falar mal de parceiros de cena
que tinham descrito para a imprensa como “parte da
família!”. Dava para acreditar que alguém se importava
com você tanto quanto a pessoa dizia? Ou todo mundo se
odiava em segredo pelas costas? Eu as absolvia e absorvia,
examinando todas as formas como alguém podia ser
perverso e inserindo isso na minha performance. Mas eu
não era assim. Eu era boa, era gentil.
– Tenho certeza de que você conseguiria fazer o trabalho
dele sem dificuldade – falei. – Talvez você coordenasse os
ensaios com mais eficiência e a gente não teria que passar
horas vendo Summer e Noah se engolirem.
Bem, eu era boa e gentil na maior parte do tempo.
Então ela me fitou.
– Química é um negócio engraçado, não é? O que a
Summer e o Noah têm... – Ela balançou a cabeça. – É como
os vestidos que fiz.
– Como assim?
– Não ultrapassaram nenhum limite, mas flertaram com
essa ideia. Se fossem um pouquinho mais em certa
direção, seriam recatados e tediosos. Se fossem um
pouquinho para a direção oposta, ficariam inadequados. As
pessoas não conseguem parar de assistir, porque “e se
alguém ultrapassar o limite”?
Quando saí da sala de prova de figurinos, na volta até
meu trailer, parei de repente ao ver duas pessoas mais à
frente, no escuro. Summer e Noah, perto um do outro,
conversando baixinho no ar fresco da noite. Era quase
como se o comentário de Harriet tivesse feito os dois
surgirem ali. Cheguei um pouquinho mais perto para ouvir
a conversa deles, andando pelas sombras entre os trailers.
– Você também sente isso – falou ele e esticou a mão
para tocar o braço dela. – Eu sei que sente.
– Noah... – disse ela, mas não afastou o braço.
– E não estou nem aí pro sexo! Se sua preocupação for
que eu já fiz, acho legal você estar esperando – disse ele,
todo sem jeito. Nunca tinha ouvido Noah falar assim,
agitado e aflito. – Eu te admiro por isso. Tipo... talvez goste
de você ainda mais.
Na escuridão, revirei os olhos.
– Gosta? – perguntou Summer.
– Gosto! Quero que saiba que eu te respeito de verdade.
E aí, se um dia a gente fizer... vai ser mais especial. Só
quero saber que estamos um com o outro e mais ninguém.
Fica comigo.
Por um longo instante, Summer não respondeu. Então
se lançou nos braços dele.
– Eu quero – disse ela. – Vou terminar com o Lucas.
Noah soltou uma gargalhada de alegria e fez um carinho
no rosto de Summer, que correu as mãos pelo cabelo dele.
Ele se inclinou para beijá-la, mas ela o deteve.
– Só preciso de algumas semanas, tudo bem? Não quero
que o término com ele faça muito barulho logo antes do
programa ao vivo. Ele vai ficar chateado e nossos amigos lá
da cidade também, e tenho medo de que alguém vá até os
paparazzi e tente causar alguma polêmica idiota. Você viu
o que aconteceu com as pessoas da escola que não
gostaram de eu ter falado com a imprensa sobre a minha
mãe. Vamos deixar passar o programa, assinar o contrato
do filme, e aí vamos estar a salvo. Pode me conceder isso?
– É claro que posso – disse Noah, abraçando Summer e
se inclinando para beijá-la, dessa vez só eles, num beijo
mais ávido e mais longo.
Fiquei imóvel enquanto os dois se acariciavam, as
respirações suaves e rápidas, e eu sabia que deveria ir
embora, não queria testemunhar o que estava
acontecendo, mas não conseguia desviar o olhar enquanto
Noah deslizava a mão por baixo da saia dela. Summer
gemeu e então afastou a mão dele.
– Para – disse ela. – Ainda não.
– Tá. Tá bem, tudo bem.
– Estou com medo – disse ela. – Isso... me assusta. Acho
que a gente pode tentar e acabar se enlouquecendo em
três semanas, e aí tudo vai ficar muito estranho.
– Mas você ainda quer tentar?
– Quero.
– Você e eu – disse ele – vamos dominar o mundo.
Um carrinho de golfe soou ao longe, e eles se
separaram enquanto o barulho se aproximava. Um
assistente de produção dirigia, o Sr. Atlas no assento ao
lado fazendo suas rondas pelo terreno do estúdio, indo de
set em set para anunciar seu parecer, para decidir quem
continuaria a fazer o programa que tinha se tornado seu
mundo todo e quem não continuaria. Ele tocou no chapéu
para cumprimentar Summer e Noah ao passar, e os dois
acenaram com inocência para ele.
– Oi, gente – chamei, surgindo sob a luz do poste. – O
que estão fazendo?
– Só repassando uma cena – respondeu Summer.
– É? – perguntei, erguendo minha sobrancelha.
– É, mas acho que já acabamos.
Ela me encarou também, com um semblante plácido,
como se não estivesse sussurrando de modo desesperado
com Noah no escuro. Ele não teve essa frieza. Seu rosto
ficou corado, mesmo sob a luz fraca, com um sorriso bobo,
apesar de tentar lutar contra isso. Mas Summer mentia
como se acreditasse no que dizia... ou como se fosse
natural para ela. Como se ela mentisse o tempo todo.
US WEEKLY

ROMANCE SECRETO?
Fontes dizem que Summer Wright e Noah
Gideon finalmente vão dar o beijo que os fãs
sempre quiseram ver e estão um pouquinho
empolgados demais com isso. Parece que os
ensaios para o último episódio (que será
exibido ao vivo no Atlas na próxima quarta-
feira, às 20h) têm sido bem tórridos! “Acham
que a Summer é um exemplo a ser seguido”,
conta uma fonte, “mas ela basicamente está
traindo o namorado diante de uma sala cheia
de gente. Não seria surpresa se
descobríssemos que tem algo mais rolando
entre Summer e Noah por trás das câmeras.”
17
••••••

2018

Na manhã seguinte à malhação surpresa com Noah, mal


consigo mexer os braços. Ainda assim, movida a café e
analgésico, me arrasto até o ensaio. Michael começa a
passar o cronograma.
– E o Noah tem que sair mais cedo, então nós vamos...
– Na verdade – diz Noah, erguendo a mão –, posso
ficar numa boa.
Michael ergue a sobrancelha, surpreso.
– Mudei o horário do outro compromisso – explica
Noah, depois se inclina para mim e diz, bem baixinho: –
Dormir pra quê?
Dou a ele um breve sorriso e o mais ínfimo dos
créditos.
Então, mais à tarde, enquanto Liana e eu ficamos
sentadas no canto para decorar nossas falas, Noah e
Summer vão até o piano para reaprender seu dueto. Essa
foi a primeiríssima canção que os dois cantaram juntos, a
música que botou a casa abaixo no nosso concurso de
talentos da escola.
Eles ficam a um palmo e meio um do outro e, de
alguma forma, o espaço entre eles crepita, como se uma
cerca elétrica invisível pudesse machucá-los caso se
aproximassem.
Ainda assim, Noah dá um sorrisinho relaxado para a
pianista como se não tivesse percebido a tensão no ar, e
Summer começa.
– Tem gente que caminha sem rumo pela vida.
– Que diz “não” – canta Noah – de tantas formas
distintas.
A melodia sobe meia oitava na palavra “tantas” e
parece pegar Noah de surpresa, porque a voz dele não
consegue acompanhar e sai sem força e baixa. Ele ri e
pigarreia.
– Eita, desculpa por isso.
Meu primeiro pensamento, nada generoso, é um “vai
se ferrar” para Michael. No fim das contas, Noah precisa
ensaiar! Ele pode ser o único de nós que ainda é
chamado para trabalhos nas telas, mas não é um Deus
do Talento entre os plebeus.
A pianista recomeça a música, e Summer canta seu
verso com os olhos colados na partitura. Noah continua
sorrindo, mas, dessa vez, ele pensa demais na nota e vai
além do necessário. Ele balança a cabeça rápido, então
tenta outra vez, e sua voz falha com um breve estalo,
como se ele fosse um adolescente passando pela
mudança de voz. O papel na mão dele treme, ainda que
um pouquinho. Será que, na verdade, o incrível Noah
está nervoso?
Liana, que estava fixada no telefone (sem dúvida
mandando coisas melosas para Javier), baixa o aparelho
e também observa Noah. Ela e eu trocamos um olhar
rápido.
Penso em Noah tentando montar três cavalos
diferentes numa gravação, até precisar desistir,
envergonhado. Ele está começando a ficar agitado por
causa dessa nota. E ficar agitado assim só acontece
quando você se importa de verdade com alguma coisa.
– Foi mal – diz ele para Summer, baixinho.
– Tudo bem – responde ela. Com uma expressão
plácida, focada em sua partitura, ela continua, em uma
voz que ouço sem querer: – Estamos todos tentando
recriar nossos eus da juventude. Você só foi um pouco
longe demais e recriou a puberdade.
Ele deixa escapar uma risada, perplexo.
– Estou lembrando um mês horrível no oitavo ano.
– Tadinho do Noah. – Summer morde o lábio e
continua, em tom casual: – Sabe, sempre gostei mais do
seu verso do que do meu. – Ele olha para ela. – Essa
parte do “de tantas formas” fica melhor numa voz
feminina. Então eu troco numa boa se você quiser.
Eles recomeçam com Noah fazendo o primeiro verso
e, dessa vez, os dois cantam com perfeição. Summer não
diz nada nem se vira para olhá-lo, mas a pele ao redor de
seus olhos se enruga. Ela está satisfeita consigo mesma.
Eles continuam a canção, alternando as linhas do vocal
pelo resto da estrofe (Meu medo é ser desse jeito, talvez
meu grande defeito, mas agora você chegou e, desde
então, tudo melhorou), então Summer se aproxima
alguns centímetros de Noah, cruzando aquela cerca
elétrica invisível entre os dois bem na hora em que
entram no refrão:
Meu destino é dançar e meu destino é gritar
Meu destino é saber o que fica no ar
Na poesia e na canção
Fico feliz por não ter razão
Pois seu destino é rir e é flutuar
Pegue minha mão e nunca se vá
Seu destino é aqui do meu lado
Você está aqui do meu lado.

Se Noah tivesse que cantar com Liana naquela época,


ele desapareceria. Mas ele e Summer sempre
combinaram muito no que dizia respeito aos vocais.
Agora, com as vozes um pouco mais ásperas, eles se
completam tão bem quanto antes. Ouvindo os dois,
quase dava para fingir que eles ainda se completavam
de outras maneiras também, naquelas que importam:
credibilidade, estabilidade, felicidade. Essa ilusão parece
inebriar Summer. Ela ergue os olhos da partitura para o
rosto de Noah e volta para o papel. Seu corpo se
aproxima um pouco mais do dele quando o diretor
musical lhes entrega anotações e bota os dois para
tentar outra vez. Noah também dá umas olhadas de
relance para ela. Não consigo decifrar seu olhar.
Perplexidade, talvez, como se ele tentasse encaixar a
mulher dos tabloides na que está ao lado dele. Mas o
olhar de Summer... Ela parece voraz. Como se devorasse
cada sorriso que ele lhe dá, cada risada que arranca
dele, e quisesse mais e mais.
Ah, não. Se ela se apaixonar, Noah vai partir o coração
dela.
18
••••••

2005

No dia seguinte à matéria da Us Weekly insinuando um


romance secreto entre Summer e Noah, fizemos um ensaio
geral para um pequeno grupo de produtores e convidados
especiais. Pessoas importantes estavam reunidas ali. O Sr.
Atlas se acomodou em seu assento, folheando uma pasta
com recortes de jornais e revistas – que algum assistente
organizara – enquanto esperava o ensaio começar. Dei uma
espiada neles. “Queda Vertiginosa de Amber Nielson!”, lia-
se em uma manchete. “Quem Será a Próxima Estrela da
Atlas?” Havia uma do editorial da Essência Feminista:
“Atlas: Destruidora de Meninas?”
Entre as pessoas importantes, uma parecia deslocada:
Lucas, o namorado de Summer.
– Por que ele está aqui? – perguntou Liana a Summer,
quando nós três estávamos sentadas no chão fazendo
alongamento no canto da sala de ensaio.
– Ai, nem me fale – desabafou ela, se inclinando para a
frente e segurando os dedões do pé, o cabelo caindo no
rosto. – Ele anda paranoico, então falei que podia vir hoje.
Ele olhava ao redor da sala, furioso e de cara feia,
enquanto assumíamos nossas posições. Eu preferia não ser
tão óbvia em relação ao meu ciúme. Mantinha o
sentimento escondido e lidava com ele de outras maneiras.
Demonstrar tudo diante das pessoas fazia você parecer
idiota, além de vulnerável.
O ensaio correu bem, principalmente para um grupo que
estava acostumado a fazer várias tomadas até que tudo
saísse direito. O número em que eu era a voz principal fez
as pessoas rirem na plateia. Até vi de esguelha um sorriso
de leve no rosto do próprio Sr. Atlas. Mas, quando chegou o
momento do beijo de Summer e Noah, ela se aproximou
dele, hesitante, como naquela primeira tentativa
constrangedora, então deu um selinho em Noah. Na
plateia, Lucas zombou em voz alta. Noah se afastou dela, a
testa franzida, os olhos mirando Lucas em um canto, mas
seguiu o resto da cena normalmente, e conseguimos
vencer os cinco minutos que restavam até o fim.
Depois, tomamos fôlego para nos prepararmos para
ensaiar os problemas que a apresentação deixara em
evidência. O Sr. Atlas chegou para parabenizar um por um.
– Bem engraçado – disse para mim, e se virou para
Liana: – Um entusiasmo de primeira.
Ele deu a Summer um sorriso paternal.
– Tem mesmo algo muito especial acontecendo aqui –
disse para ela. – Estou orgulhoso de ver como você cresceu
nesse papel e como superou as dificuldades que teve que
enfrentar.
Ela juntou as mãos no peito e agradeceu.
Então ele pigarreou.
– E vocês, meninas, todas... estão bem? Estão se
sentindo bem? – perguntou ele.
E, por apenas um instante, o homem poderoso de quem
nós todos tínhamos tanto medo pareceu ter um pouquinho
de medo da gente. A empresa não conseguiria lidar com
outra Amber, outra queda vertiginosa, logo agora.
Todas nós assentimos e sorrimos.
– Que bom, que bom – respondeu ele, e foi até Michael,
em um canto, para discutir suas ideias mais urgentes.
Summer andou até Lucas e deixou que o namorado
elogiasse sua apresentação enquanto ela bancava a
modesta. Liana me cutucou, e nós observamos Noah se
aproximar deles.
– É – disse Noah. – Você se saiu muito bem, Summer.
Embora tenha sido difícil, porque alguns membros da
plateia estavam causando muita distração.
– Eu não fiquei distraída – rebateu Summer, esforçando-
se para manter a voz estável, mas sem conseguir por
completo. – Só que é assustador fazer isso na frente do
presidente da emissora.
– É – concordou Noah, desviando o olhar para Lucas.
Ele queria dar um olhar frio, de desdém, mas estava
envolvido demais para conseguir.
– Ei, cara – disse Lucas. – Eu só estava assistindo. Não é
minha culpa se te deixei desconfortável.
– E por que você me deixaria desconfortável?
– Vamos deixar isso pra lá – disse Lucas, balançando a
cabeça, um modelo de autocontrole, e passando um braço
ao redor dos ombros de Summer.
– Pois então – falou Summer.
Noah a interrompeu, fuzilando Lucas com o olhar.
– Não, sério: por quê?
– Porque você tem inveja de mim. É óbvio.
Noah deu um sorriso de escárnio.
– Eu tenho inveja de você? Estou prestes a me tornar
um astro do cinema. E você? Está fazendo o quê da vida?
– É, um astro do cinema pra garotinhas de 12 anos.
Muito maneiro.
Eles começaram a fazer uma cena ridícula, estufando o
peito e se aproximando cada vez mais um do outro. Talvez
eles achassem que pareciam dois homens. Na verdade,
pareciam dois garotinhos.
Liana segurou minha mão com força.
– Eita, vai dar ruim! – sussurrou ela em meu ouvido.
– Você sabe o motivo da inveja – disse Lucas.
– Gente – chamou Summer, o tom de voz ficando mais
agudo. – Para com isso.
Do canto, o Sr. Atlas e Michael se viraram para ver a
cena.
– Por causa do seu trabalho ridículo ou do seu carro
podre? – vociferou Noah.
– Não. Porque eu tenho a Summer e você, não.
– Tem certeza? – perguntou Noah.
O rosto de Lucas se contorceu. Ele deu um passo
adiante e empurrou Noah, que cambaleou para trás e em
seguida avançou, querendo revidar, o que fez todos no
elenco de apoio soltarem um arquejo de surpresa.
– Parem! – gritou Summer, entrando no meio dos dois.
Eles se afastaram. Nenhum deles queria machucá-la.
– Que isso, Noah?! – sibilou ela. – Qual o seu problema?
– Sai da minha frente, Sum – disse Lucas.
– Senhores – chamou o Sr. Atlas, a boca contraída até
formar uma linha fina. Seu tom de voz estava baixo como
sempre, mas, mesmo assim, a sala toda ficou em silêncio e
até os dois brigões se viraram para ouvir. – Sou o dono
desta sala. Na verdade, sou o dono deste terreno todo e
abomino violência nos meus sets. Então, se querem se
agredir, vão ter que levar essa disputa para a propriedade
de outra pessoa. – Ele olhou para Lucas. – E vou pedir que
não acerte o rosto dele. Apostei muito dinheiro na boa
aparência de Noah e ela precisa ser exibida na TV semana
que vem.
Noah fitou o chão e murmurou um pedido de desculpas.
Summer pegou o braço de Lucas.
– Vamos dar uma volta.
Ela nem olhou para Noah ao sair.
Com uma expressão desolada no rosto, Noah ficou
observando os dois. Michael e o Sr. Atlas foram até ele.
– Desculpa – pediu. – Eu não queria... Ele é um...
– Olha, todos nós já quisemos dar um soco na cara de
um idiota – disse Michael.
O Sr. Atlas inclinou a cabeça em uma breve
concordância, embora a ideia de vê-lo dar um soco em
alguém fosse risível. (Ou ele nunca apelaria para a
violência, pois estava muito acima disso, ou já tinha dado
ordens para seus capangas se livrarem de vários corpos
em um rio em algum lugar, sem nunca ter sujado as
próprias mãos. Eu não saberia escolher a opção certa.)
– Não deixe esse garoto te hostilizar. – Michael bateu no
ombro de Noah. – Ele é um zé-ninguém. Você é um astro.
DIÁRIO DA SUMMER, 18 DE ABRIL DE 2005

É engraçado como os sentimentos que a gente


tem por alguém podem desaparecer de uma
hora para outra. Passei muito tempo colocando
o Noah no pedestal do cara perfeito, que não
fazia nada de errado. Mas agora eu vejo que
ele é humano como qualquer pessoa. E, às
vezes, ele é realmente um pé no saco. Será
que eu conto mais? E por que não?
Número um: ele é egoísta. A única coisa que
importa é o que ele quer. E ele não está nem aí
para como isso pode fazer os outros se
sentirem.
Número dois: ele finge ser superatencioso.
Faz aquele olhar cheio de emoção durante uma
conversa pra você se sentir especial, mas será
que está mesmo ouvindo? Ou só está
concentrado em franzir a testa de um jeito
sensual? Sempre pensei: “Ah, o Noah é um cara
normal, não é um narcisista que busca atenção
o tempo todo, como tantas celebridades. É que
ele é tão lindo e maravilhoso que todo mundo
decidiu que ele deveria ser famoso!” Mas, na
verdade, ele se acha O ASTRO, o herói, quando,
às vezes, deveria se dar conta de que nem
tudo diz respeito a ele. Ele não é o único
homem do planeta. Quero dizer, quem é que
fala coisas como “Você e eu vamos dominar o
mundo”? E, depois, brigar com o Lucas na
frente de todos?? O que leva a...
Número três: o jeito machão, como se
precisasse provar que ele é um Grande
Homem, ainda que trabalhe em um programa
idiota para pré-adolescentes. Provavelmente
ele achou que estava abafando, brigando
daquele jeito, mas na verdade foi patético. Se
as garotas que adoram tanto o Noah vissem
aquilo, aposto que muitas arrancariam o pôster
dele da parede.
Enfim, ele está me irritando, e agora tenho
outra perspectiva dele. É óbvio que vou
continuar tratando o Noah como sempre tratei.
Não quero ficar nessa série idiota pra sempre.
Sou uma atriz bem melhor do que as pessoas
pensam e posso chegar mais alto, mas só se
usar as cartas certas, se fizer esse filme e
deixar todo mundo de boca aberta. (Credo!
Quantos clichês eu acabei de usar em uma
frase só?) A última coisa que eu quero é mais
drama. Vou continuar a ouvir as histórias dele
cheia de admiração. Mas agora eu sei.
19
••••••

2018

Naquela noite, eu me esparramei na cama e liguei para o


número de Miheer para nossa chamada de sempre. Ele
pareceu estranho ao atender o telefone.
– Você está bem? – pergunto. – É só cansaço?
– Eu... hã... li uma matéria sobre você.
Ele me manda por mensagem, e ligo o viva-voz
enquanto abro a matéria.
Sob a manchete “Noah Gideon Partindo Para a
Próxima?”, tem uma série de fotos: Noah e eu saindo da
academia. Na primeira, estamos rindo. Nas outras,
estamos nos encarando, ele segurando minha mão em
seu rosto.
– Ai, meu Deus – digo. Esqueci como é horrível ser
seguida por paparazzi. De alguma forma, esses abutres
talentosos e implacáveis capturaram um dos breves
momentos em que um velho sentimento se reacendeu,
antes de eu despejar meu ódio gélido em cima da faísca.
– O que está acontecendo nessas fotos é que estou
dando uma bronca no Noah por ele ser um babaca.
Porque é isso que eu penso dele.
– Não quero bancar o ciumento. É só que, bom, o cara
é um astro de cinema.
– E você está trabalhando pra proteger o meio
ambiente, o que, para mim, é bem mais sexy.
– Valeu – diz ele. – Mas você está meio... radiante.
– A gente estava malhando. Deve ser o efeito da
endorfina.
Ele meio que dá uma risada, mas então fica em
silêncio por um instante.
– Mas é mais do que isso. Você está iluminada de um
jeito diferente de quando está em casa.
Eu examino a foto. Ele tem razão.
– Se é verdade, não é por causa do Noah. É por
causa... – gaguejo, e então me dou conta. – Estou me
dedicando a um compromisso aqui de um jeito diferente
de quando estou no trabalho. – Humm, “compromisso”
provavelmente não foi a melhor escolha de palavra. –
Acho que está sendo uma folga interessante do estresse
do escritório.
– Interessante em que... Espera, você não está em
dúvida em relação ao escritório, está?
– Não, claro que não!
Tenho falado com Irene com frequência, respondendo
perguntas que surgiram dos clientes que não querem
trabalhar com mais ninguém, só comigo. E tem uma
coisa que eu amo nisso, que é ser vista como
competente, uma tomadora de decisões, mais do que um
corpo agindo de acordo com os caprichos alheios.
– Tá bem – diz ele.
– Além disso, estou em Los Angeles, onde a gente é
obrigado a comer muitas sementes, espirulina e essas
porcarias todas. Talvez isso esteja me fazendo parecer
mais radiante.
Dessa vez, ele dá uma risada de verdade.
– É claro, as comidas oficiais de Los Angeles. Desculpa
ficar inseguro com isso. Acredite se quiser, não estou
acostumado a namorar celebridades.
– Acho muito difícil que eu conte como celebridade. E,
por favor, não precisa pedir desculpa. Eu é que peço
desculpa.
Depois que desligamos, entro no e-mail do trabalho
com o intuito de falar com Irene. Não posso me deixar
ser tão engolida por esse mundo de Os sonhadores
quando o mundo real me aguarda lá em casa.
Mas já tem um e-mail dela para mim na caixa de
entrada.
Cara Katherine,
Esse artigo de tabloide a seu respeito causou uma
comoção e tanto no trabalho hoje à tarde. Tenho certeza
de que é uma distorção grotesca da realidade; foi o que
eu disse para todo mundo. Mas você deve saber que
esse tipo de história não favorece a reputação da firma
nem a sua. Não dê aos homens da empresa a desculpa
que buscam para diminuírem o respeito por você, ainda
mais quando está tão perto de se tornar sócia. Se houver
mais alguma coisa que você possa fazer de longe para
demonstrar seu compromisso, eu a aconselharia a levar
isso em consideração.
Merda. Esfrego os olhos, pensando. Eu tinha me dado
um dia a mais em Los Angeles no fim da viagem para
arejar a mente. Agora, remarco minha volta para um voo
noturno que sai logo depois do final do espetáculo.
Respondo à mensagem de Irene com a novidade, além
de me oferecer para pegar trabalho remoto e agradecer
por ela cuidar de mim. Rezo para que seja suficiente.
Depois disso, tentar dormir é inútil. Chuto os lençóis e
desejo poder me virar e me aninhar em Miheer, tirar
nossos pijamas e fazer algo que nós dois fazemos muito
bem juntos. Estou com saudade dele. Tenho medo de que
ele e minhas chances de sociedade estejam escapando
por entre meus dedos. E, para coroar, acho que me sinto
solitária.
Eu não esperava voltar e sentir toda a magia da nossa
primeira temporada juntos. Mas o constrangimento, a
sensação de que todo mundo tem estranhos critérios
ocultos, a paranoia e a culpa que fecham minha garganta
sempre que olho muito para Summer... Tudo isso está me
afetando.
Acendo a luz e pego meu telefone para dar uma
olhada nas redes sociais. Minha agente me obrigou a
fazer uma conta no Instagram logo no começo disso tudo
e designou sua assistente para administrá-la. Algumas
vezes por semana, ela me manda uma foto e a legenda
para que eu aprove, respondo com um joinha e ela posta.
Minha conta segue todos os integrantes de Os
sonhadores. Summer quase não posta nada e, em geral,
coloca legendas enigmáticas. Noah recebeu permissão
para ficar longe do Instagram, esse nojento sortudo – ele
é tão famoso que dar um tempo das redes sociais só faz
as pessoas ficarem mais interessadas nele. Liana posta o
tempo todo: selfies cheias de filtro, promoções de
produtos como influencer, fotos dela e do marido se
olhando com carinho e, agora, toda a narrativa de um
universo alternativo sobre nossa nova aventura com Os
sonhadores, onde voltamos a ser os melhores amigos
uns dos outros na mesma hora. Olho para a selfie que ela
postou de nós duas fazendo caretas engraçadas para a
câmera e algo saudoso dentro de mim deseja que a
gente estivesse mesmo se divertindo tanto juntas.
Ela posta uma foto nova enquanto ainda estou em seu
perfil. Ela usando o roupão de banho do hotel, com um
batom bem vermelho e fazendo um olhar sexy para o
espelho. A legenda diz: “Amando o trabalho, mas com
saudade do meu amor!”
Curto o post, paro, então mando uma mensagem para
ela:
Você também está acordada, né?
Depois de um momento, ela responde.
Rs. Meu corpo está cansado, mas não consigo dormir.
Respiro bem fundo e mando mais uma mensagem.
Eu também. Quer vir pro meu quarto saquear o
frigobar?
Aparecem três pontinhos na tela, depois eles somem.
Ela vai dizer não. Então:
Número do quarto?
Dez minutos depois, ela bate à porta. Em vez do
roupão, está de vestido longo e suéter. Talvez eu também
devesse ter colocado uma roupa decente, no lugar do
short e da camiseta superlarga que uso para dormir.
– Bem-vinda ao meu lar – digo com zombaria, em um
tom formal.
– É lindíssimo – diz ela, levando a mão ao peito como
se fingisse observar o lugar, impressionada. – Parece
muito com o meu.
– Que coisa – respondo, então me agacho no frigobar.
– Beleza, o que vamos beber na conta da Atlas?
Ela se esparrama na poltrona da suíte, em uma
postura que deveria ser de tranquilidade, mas não
convence.
– Me surpreenda.
Giro a tampa de uma garrafinha de uísque e sirvo nas
canecas de café fornecidas pelo hotel, entregando uma a
ela.
– Sabe, queria pedir desculpas pelo que falei outro
dia, na prova de figurino. Espero que você saiba que eu
não quis dizer...
– Eu também fui escrota. – Ela dá um gole e então,
olhando com indiferença para a xícara, pergunta: – E aí, o
que tá achando da Summer?
– Acho que ela está bem. Ela dança pra caramba,
ainda que a voz esteja um pouquinho diferente e...
Liana se inclina para a frente, e seu tom de voz
demonstra urgência.
– Não, eu quis dizer... tipo... mentalmente.
Emocionalmente.
– Ah. Não sei.
– Pra ser sincera, eu esperava que ela fosse... caótica.
Tipo uma máquina de drama ambulante, mas ela parece
mais estável, não é?
– Acho que sim – respondo.
– É, ela está se saindo bem.
Nós duas soltamos um suspiro meio aliviado que
estivemos prendendo por mais de uma década.
– Fico feliz – diz ela. – Mas ela está total flertando com
o Noah.
– Então não fui só eu que reparei!
– Eu fico tipo “Garota, relaxa”. Além disso, ela não vai
conseguir usar aqueles truques de novo com ele! Não
depois que ele e todo mundo leu o diário dela!
– Talvez não sejam truques. Só espero que ela não
pense que ele pode ser a solução pros problemas dela.
Viro o resto do uísque da minha caneca e abro outra
garrafa do frigobar.
– Então... o que está acontecendo de verdade? –
pergunta ela, me observando. – Por que me chamou pra
te fazer companhia à meia-noite?
Em seu muro reluzente e firme, Liana está abrindo
uma janela. Dou um passo na direção dela.
– Relacionamento à distância é complicado. Você é
praticamente uma especialista. Tem alguma dica?
– Só as de sempre. Comunicação aberta e envio de
muitos nudes.
– Morro de medo de fazer algo assim depois de ver
como todo mundo enlouqueceu por causa do que houve
naquele último episódio.
– É – concorda ela, e ficamos em silêncio por um
momento. – Alguma vez você desejou que a gente
tivesse ficado famoso tipo sete anos depois? O mundo
ficou mais gentil com meninas sete anos depois.
– As crianças que trabalham pra Atlas agora não
sabem como se deram bem – respondo.
– Elas que se danem. – Ela sorri para mim, e ficamos
ali, juntas, por um momento, sem dizer nada, quase
confortáveis.
Eu me inclino para a frente.
– Como você soube que estava pronta pra se casar
com o Javier?
– Uma revista nos ofereceu uma grana pra fazermos
fotos exclusivas do noivado. E eu queria um carro novo.
Eu a encaro, sem saber o que dizer.
– Brincadeira – diz Liana, mexendo em sua aliança,
que tem uma pedra preciosa gigante. – Sei lá. Eu amava
o Javier. Estar com ele era a coisa mais empolgante da
minha vida. – Ela observa o brilho do diamante na mão. –
Eu estava entediada, muito entediada, e aí, quando
estávamos juntos, eu mal conseguia respirar.
– Que engraçado.
– Por quê?
– É bem o oposto de mim e do Miheer. Fazíamos parte
do mesmo grupo de estudos na faculdade de Direito. Só
começamos a sair depois, quando já morávamos em
Washington, mas foi assim que nos conhecemos. Eu
estava muito estressada o tempo todo, e aí, em algum
momento, percebi que, sempre que ele e eu
estudávamos juntos ou apenas conversávamos nos
intervalos, ou quando ele sorria pra mim... era só nessas
horas que eu conseguia respirar.
– Como ele é? – pergunta ela.
E aí conto tudo sobre ele ser inteligente e discreto,
digo que já o conhecia fazia um semestre inteiro quando
um dos amigos dele soltou que ele tinha feito um
intercâmbio no exterior com uma bolsa de estudos
concorridíssima. Falo que, se ele quisesse trabalhar no
setor privado, a essa altura provavelmente seria podre
de rico, mas, em vez disso, ele escolheu o caminho nada
sexy e nada lucrativo da preservação do planeta. Conto
que ele tem uma risadinha boba que sai sempre que algo
muito engraçado o pega de surpresa, o que sempre me
faz gargalhar também. E explico que ele simplesmente...
cuida das pessoas que ama. (Em contraste com Noah,
que cuida de si mesmo. Se bem que, para ser sincera,
ponto para ele por ter dito ao pessoal do Leopardo da
Neve para esperar enquanto vem trabalhar com a
gente.) (Não falo nada disso em voz alta.)
– O Miheer provavelmente vai ser o melhor pai do
mundo – falo. – As crianças vão atrás dele como se ele
fosse o flautista mágico.
Liana inclina a cabeça, prestando mesmo atenção em
mim, e, de algum jeito, meio que estamos nos
conectando, então sigo em frente.
– Se bem que isso aí é outra caixa de Pandora – digo. –
O pai dele já era bem velho quando teve o Miheer e
morreu quando ele estava com 20 e poucos anos, então
Miheer queria que tivéssemos filhos logo, mas, se eu
quiser tentar uma sociedade no trabalho, principalmente
depois de tirar um tempo pra este reencontro...
Aceno com a mão vagamente.
– É um grande passo – pondera Liana.
– Você parece estar se saindo bem com o “que se
dane a pressão, vamos fazer isso no nosso tempo”. Deve
ser horrível, com todas essas revistas e as manchetes
idiotas.
Ela segura a caneca com mais força, olhando para ela.
– Na verdade, a gente vem tentando. Estamos
tentando há um tempo.
Eu e minha boca grande de novo.
– Sinto muito mesmo.
Ela me dá aquele olhar de para de ser idiota do qual
eu vinha sentindo falta nessa versão nova e de unhas
feitas de Liana.
– Tudo bem. Tenho feito um bom trabalho em dar a
entender que somos muito ocupados e fabulosos e ainda
não pensamos nisso. – Ela balança a cabeça. – Lembra
como era ser adolescente e ter pavor de engravidar?
Bom, talvez não, acho que você não andava por aí
transando tanto quanto eu. Sendo meio piranha que nem
eu.
– Sinto muito por estar sendo difícil.
– Vamos continuar tentando.
– Estou aqui se quiser conversar sobre isso.
– Obrigada. – Por um instante, parece que Liana vai
dizer algo mais, mas ela contrai os lábios e se levanta. –
É melhor eu ir deitar e descansar pro ensaio de amanhã.
Estou me sentindo muito mais relaxada agora. Isto
ajudou muito.
Ela me dá um abraço rápido, ainda tenso e forçado,
mas um pouquinho melhor. E então vai embora.
20
••••••

2005

Eu não era mais a primeira pessoa para quem Summer


ligava quando algo ruim acontecia, mas ela era a primeira
pessoa para quem eu ligava.
Durante os preparativos para o programa ao vivo,
descobri que meu pai ia se casar de novo. Minha mãe
estava arrasada ao telefone – mais do que eu esperaria,
levando em conta o tanto que eles gritavam um com
o outro.
– Ele está trocando a gente por um modelo mais novo e
mais radiante – disse ela, fungando, então se recompôs. –
Eu não deveria ter dito isso. Ele não está trocando você. Ele
te ama muito.
– Vocês brigavam o tempo todo. Você não gosta dele.
– Eu só queria que ele permanecesse triste mais um
tempinho. – Ela ficou em silêncio por um momento. – Estou
com saudade de você.
Imaginei meu pai com uma família mais jovem e mais
bonita. Eu queria dizer que entendia o tipo de rejeição que
ela sentia, mas, dominada pela emoção, acabei falando:
– Vamos fazer um filme. Vai rolar muito dinheiro. Você
sempre disse que queria voltar a estudar. Eu poderia... eu
poderia bancar isso.
– Meu amor – disse ela, as palavras carregadas de
emoção. – Isso é muito gentil. Mas é melhor você usar esse
dinheiro na sua educação.
– O filme vai ganhar continuações. Vai ter mais dinheiro.
– Bom – disse ela, e deu pra notar o sorriso se abrindo
em sua voz em meio às lágrimas. – Talvez eu compre
alguns cadernos, só pra ter.
Assim que liguei para Summer e contei o que tinha
acontecido, ela me perguntou onde e quando queria me
encontrar com ela (na entrada do estacionamento, dez
minutos) e se ela deveria levar Liana (sim).
– Quero comprar um carro – contei, quando as duas
terminaram de me abraçar. – Bem extravagante.
Eu vinha rodando com um bom carro, digno de uma
dona de casa privilegiada, porque era o que a Atlas tinha
arrumado para mim na minha chegada.
Só que agora eu queria ostentar. Queria algo que fizesse
as pessoas virarem a cabeça para me ver passando.
Então nós três entramos em um táxi e fomos até uma
concessionária. Liana encheu o vendedor de perguntas
para garantir que eu saísse com um bom negócio. Summer
sorriu com educação para vários clientes que se
aproximaram e tentaram impressioná-la. Vimos carro atrás
de carro em uma faixa de preço sensata, mas nenhum era
o que eu queria.
O vendedor nos observou e então disse:
– Eu tenho mais uma opção.
Ele trouxe um BMW conversível vermelho. Ficamos
boquiabertas. Nem importou que o preço fosse 40 mil
dólares. Entreguei meu cartão de crédito.
Entramos no carro – Liana correu para o banco do
carona e Summer seguiu com elegância para o banco de
trás – e eu, na mesma hora, baixei a capota. Colocamos
música pop nas alturas, cabelos ao vento, gritando e
correndo pelas estradas, os ressentimentos se
desprendendo e ficando bem para trás. E, só de estar ali, já
bastava. Não, mais que bastava ser jovem, promissora e
feliz com minhas amigas.
– Estou com fome – berrou Summer. – Que tal um
hambúrguer?
Agora eu estava sempre com fome.
– McDonald’s! – entoou Liana. – McDonald’s!
Eu não podia comer um lanche enorme e gorduroso
como aquele, principalmente não tão perto do programa ao
vivo. (Coloca um saco na cabeça dela.) Mas talvez eu me
permitisse algumas batatinhas.
Entramos no drive-thru animadas, ainda curtindo.
Quando uma voz robótica nos perguntou o que queríamos,
respondi com a afetação de uma estrela de cinema antigo:
– Sim, querida, vou querer uma Coca-Cola diet.
Summer se inclinou para a frente e fez uma imitação
aceitável de Katharine Hepburn, embora seus acessos de
riso atrapalhassem.
– Uma porção grande de fritas e um hambúrguer seriam
absolutamente ótimos, por favor.
– E aí, gatinha – disse Liana, com uma voz arrastada. –
Me vê os melhores nuggets que você tiver.
Ainda estávamos rindo quando viramos na curva da
janela de entrega e vimos os paparazzi.
– Boa noite, rapazes – disse Liana, lhes dando um sorriso
enquanto eu pagava e esperava a moça à janela aprontar
nosso pedido.
Havia só uns caras. E daí que flagrassem a gente se
divertindo à beça com um lanche do McDonald’s?
– O que vocês pediram? – perguntou um deles, puxando
conversa, a câmera já fazendo os seus cliques.
– Alguma coisa pra jantar – respondi.
– Estão se divertindo? – perguntou outro, enquanto nos
filmava. Seu tom era simpático, como um pai orgulhoso
fazendo um vídeo caseiro.
– É claro – respondeu Liana, passando o braço ao meu
redor. – Eu amo essas meninas.
A atendente se distraiu com a presença das câmeras.
Em vez de pegar nosso ketchup, ficou acenando e fazendo
caras e bocas para as lentes.
– Summer, aqui! – Summer deu um sorriso radiante. –
Você e o Noah estão tendo um romance secreto? – gritou o
terceiro sujeito, um cara de meia-idade ganhando a vida
tentando descobrir se dois adolescentes andavam
transando.
A expressão de alegria de Summer vacilou enquanto a
moça finalmente me entregava a sacola com os pedidos.
– Summer, o que seu namorado acha disso? – gritou o
cara que tinha sido tão paternal antes.
– Beleza, hora de ir embora – falei.
Então, do nada, mais homens apareceram. Aconteceu
tudo muito rápido. Sério, aquilo era um esquadrão de
paparazzi? Alerta máximo, três jovens comendo batata frita
em Melrose, mandem todos os carros!
Eles se amontoaram à nossa volta como gafanhotos,
bloqueando nossa passagem. Aqueles homens tinham
experiência e estavam competindo pela foto perfeita,
aquela que lhes renderia alguns milhares de dólares. Ou
então iriam nos provocar para fazermos algo que rendesse
muito, muito mais para eles. Era assim que colocavam
comida na mesa, sustentavam suas famílias. Por um breve
momento, me perguntei se algum deles tinha sonhado em
fotografar belas paisagens, tirar foto de algo que realmente
tivesse importância. Talvez eles nos odiassem como nós os
odiávamos, odiassem o sistema que os tornava nossos
parasitas. Mas nós também dependíamos deles, não é? A
gente queria aquilo.
Um sujeito deu a volta até meu lado, entre o carro e a
janela do drive-thru, e ficou cara a cara comigo.
– Kat, tem certeza que é boa ideia comer isso aí? –
perguntou ele, apontando para a embalagem de batata
frita.
Estávamos muito expostas e muito encurraladas.
– Sobe a capota – falei para Liana, enquanto tentava dar
a ré.
Mas... Caramba, também havia mais deles atrás da
gente. Liana procurou, frenética, pelo botão da capota e o
apertou com força enquanto, no banco de trás, Summer se
encolhia para fugir das câmeras.
Os homens chegavam mais perto. Ouvimos o barulho de
algo raspando, como unhas em um quadro-negro, na
lateral do carro. A fivela do cinto de um deles fez pequenos
arranhões na pintura vermelha novinha do veículo em que
eu tinha acabado de gastar uma grana. Os homens batiam
nas janelas, gritando para olharmos em sua direção, para
abrirmos o vidro e falarmos com eles um pouquinho. Para
sorrirmos como boas meninas.
Summer choramingou.
– Esses caras são malucos – disse Liana.
O baque surdo de punhos veio do teto. A qualquer
momento, eles conseguiriam arrebentar a capota, suas
mãos desceriam para agarrar nosso pescoço e reivindicar
nossa posse. Onde eu estava com a cabeça para comprar
um carro conversível tão chamativo? Eu deveria ter
comprado uma minivan. Ou um tanque.
Aquele massacre era como se estivéssemos dirigindo
numa tempestade e parássemos em um lugar mais alto
para esperar, porque, se continuássemos, algo muito ruim
poderia acontecer. Mas aquilo ali não era um fenômeno
natural, algo que vinha dos céus. Esses homens nos
tratavam como se devêssemos algo a eles só porque
tínhamos ousado sair de casa para tomar uma Coca diet.
– Summer, você está bem? – perguntou Liana.
Olhei para trás e vi Summer tremendo no banco,
segurando um moletom por cima da cabeça. Não dava
para ver seu rosto, mas sua respiração saía em arquejos
agudos.
Um baque no capô chamou minha atenção. Um dos
sujeitos tinha subido ali e estava a apenas alguns
centímetros do vidro que nos separava.
– Olhem pra cá, meninas – gritou ele, apoiado no para-
brisa, a câmera em um ângulo que capturasse nós três.
Acionei o esguicho do para-brisa, molhando o sujeito, e
depois liguei os limpadores para que ele precisasse recuar.
Ele limpou o rosto, estupefato, e então gritou para mim:
– Sua vaca!
A raiva me dominou, junto com o pânico.
– Sai, porra! – rosnei.
Engatei a marcha e pisei no acelerador, sem dar opção
para aqueles homens a não ser sair da frente. Avançamos
devagar a princípio, depois mais rápido e, quando saí do
estacionamento para a rua, Liana abriu a janela e se
inclinou para fora, o dedo do meio na direção deles.
Aceleramos pela rua de novo, como tínhamos feito meia
hora antes, só que dessa vez a capota ficou. Eu não sabia
se algum dia voltaria a baixá-la.
••••••

Liana e eu fomos chamadas ao escritório de Michael na


manhã seguinte, antes do ensaio. Chegamos com a visão
meio turva, mas tentando disfarçar a ressaca. Ela havia
dormido no meu trailer depois que deixamos Summer no
dela e nós duas tínhamos bebido à beça para apagar as
lembranças do drive-thru. Michael nos mandou sentar e
acessou um link no computador.
– O Lamapop postou algumas fotos de vocês no
McDonald’s ontem – disse ele.
– Foi muito assustador – comecei a falar, com uma ideia
nascendo. Michael era um adulto de verdade. Ele saberia o
que fazer. A Atlas tinha muitos recursos e era obrigação
deles nos proteger, não era? Talvez a empresa pudesse
soltar algum tipo de declaração pedindo que os paparazzi
fossem mais delicados, lembrando a eles que ainda éramos
jovens.
Porém a cara fechada de Michael era para nós, não para
a situação. Ali, no site do Lamapop, estampada na tela,
estava a manchete: “Sonhadoras ou Garotas-Pesadelo? As
Estrelas da Atlas Nada Boazinhas!” Abaixo, havia uma foto
que mostrava Liana e eu no banco da frente. Nós
parecíamos... doentes: os olhos arregalados, minha boca
escancarada, fios de saliva visíveis enquanto eu berrava
para o homem que tirava fotos nossas. Atrás, via-se
Summer encoberta pelo moletom, então não dava para
enxergar seu rosto, só os ombros tensos. Uma segunda
foto mostrava Liana erguendo o dedo do meio para as
câmeras.
– Tem vídeo também – disse Michael, colocando um
onde eu aparecia gritando para o paparazzo sair, porra.
Eu odiava o Lamapop com todas as minhas forças.
Poucos meses antes, saíam notícias sobre a gente uma vez
por semana, talvez, nos jornais e nos tabloides. E esses
veículos tinham espaço limitado, então só publicavam as
histórias mais importantes. Mas graças àquele blog
horroroso, as filmagens eram notícia quase imediata, a
máquina era sempre mais e mais faminta.
– A gente sente muito – falei, o rosto ficando quente. –
Eles meio que nos atacaram.
– O que vocês acham que o Sr. Atlas achou disso? –
perguntou ele.
– A gente não fez nada errado! – falou Liana. – Eles
arranharam o carro novo da Kat. O teto está todo marcado.
E ela acabou de comprar!
– Vocês deveriam ter ignorado e não respondido – falou
Michael. – Como a Summer fez.
– Então a gente deveria cobrir a cabeça com um
moletom e ficar sentada lá enquanto um bando de homens
destruía o carro? – rebateu Liana. – Alguém tinha que tirar
a gente de lá!
– Com certeza não é pra ficar xingando os caras! – falou
ele. Então apertou as têmporas. – Vocês não são
essenciais, está bem? As pessoas não assistem ao
programa por causa de vocês duas. A atração aqui é a
Summer. Eu poderia fazer esse filme todo só com ela e o
Noah. Não quero fazer isso, é um saco, mas, se
continuarem fazendo esse tipo de merda, vão acabar me
deixando sem opção.
Senti meu estômago revirar. Eu não queria ser expulsa
do paraíso. Além disso, eu não tinha como bancar isso, não
depois das compras e das promessas que tinha feito.
Pisquei para conter as lágrimas, constrangida, querendo
mais do que nunca que Michael não me visse chorar, mas
aquelas lágrimas não eram do tipo que dava para secar
sutilmente. Senti o nó fechar minha garganta, meu nariz
começar a escorrer.
– Ai, cara, não... – falou ele, suspirando. – Eu só queria
que vocês fossem mais como a Summer.
Liana ergueu as sobrancelhas ao ouvir isso, mas
contraiu os lábios com força.
– Tirem uma hora, se recomponham e se aprontem pro
trabalho – disse Michael.
– Vamos fazer isso, a gente promete – falei, soluçando. –
Esse programa é a coisa mais importante do mundo pra
gente.
– Então comecem a agir de acordo – disse ele,
levantando-se e nos guiando até a porta.
Ao encontrarmos a luz do dia na área externa do
estúdio, Liana balançou a cabeça.
– Eu só queria que vocês fossem mais como a Summer –
disse ela, puxando um lencinho da bolsa e me entregando.
Assoei o nariz com um ruído alto e desagradável, acabada
e triste, enquanto a meu lado Liana se empertigava e
crescia com uma fúria genuína. – Beleza, então a gente
leva a culpa toda pela bagunça que você fez, Michael? Não
teria tanto paparazzi lá, pra começo de conversa, se a
Summer não estivesse com a gente. E a gente estava
tentando protegê-la!
– É muito injusto – falei.
Liana chutou uma pedrinha, que saiu quicando pelo
chão.
– Mas o Michael tem razão. Não sou essencial –
continuou ela. – Ele nem me deu um solo, ainda que eu
fosse arrasar. Eu sei que ele está com raiva de mim por
causa da boate drag, mas eu me desculpei várias vezes.
– Você já pediu uma música a ele?
– Claro que sim! Acho que ele não me dá nada porque
sabe que as pessoas veriam que sou mais talentosa que a
Summer e isso mandaria pelos ares o mundo de fantasia
que ele criou, onde ela é a estrela da escola e eu não sou
ninguém.
– Você é, sim, e...
– Não, eu sou a cota. E, como ele tem certeza de que
esse é meu único propósito, quando ele concluir que já
deu, pode simplesmente escolher outra menina negra e me
substituir, que nem a Tia Viv, de Um maluco no pedaço, e
ninguém vai dar a mínima. Ou talvez ele não precise mais
de elenco negro nenhum, agora que a Summer também faz
parte das “minorias”.
Eu a abracei apertado, enquanto um carrinho de golfe
passava por ali. Ela se afastou e se empertigou.
– E o pior de tudo – falou ela – é que a Atlas prendeu a
gente direitinho e eu nem posso fazer teste pra outros
trabalhos em que eu tenha um papel interessante. Eles são
nossos donos até que a gente se torne maior do que a
nossa utilidade para eles.
– Vamos pedir pro Noah conversar com ele – falei. – O
Michael ama o Noah. Eles têm esse lance de código secreto
dos homens.
Michael sempre convidava Noah para sair com os
rapazes, contava piadas para ele, ouvia suas sugestões no
ensaio, coisas que nunca fazia com a gente.
– Você acha?
– Acho. Aposto que, depois do último episódio, quando o
Michael estiver surfando na onda do sucesso, o Noah pode
dar uma de astro e falar tipo “Quero que a Liana faça um
solo no filme”. Não, não só um solo. Vamos arrumar um
solilóquio pra você.
Ela me encara, atenta.
– E ele faria isso?
– Claro que sim. Posso sondar com ele se você quiser.
– É? – perguntou ela.
Assenti, convicta de que eu era alguém que fazia a coisa
certa. Eu podia ter inveja, claro, mas, no fundo, era uma
boa amiga.
– Tá bem – falou ela. – Quero dizer, sim. Sim, eu
sinceramente ficaria muito feliz com isso, mais do que com
qualquer coisa no mundo.
– Então, beleza. E acho que a gente deveria se
comportar muito bem no futuro próximo.
Segui à risca a primeira parte do plano. Naquela tarde,
no intervalo do ensaio, falei com Noah.
– Cara, lógico – disse ele. – Aposto que o Michael nem se
ligou ainda.
Porém, a parte do “se comportar muito bem” durou uns
dois dias, até Trevor (com quem Liana andava saindo
casualmente) nos convidar para uma festa particular de
estreia do novo filme dele.
– O Trevor falou que vai ter astros do cinema de verdade
lá – disse Liana.
O ensaio tinha passado para o palco onde faríamos o
último episódio ao vivo. Liana e eu descansávamos numa
fileira de cadeiras da plateia: duzentos assentos com uma
ampla área aberta nos fundos para mais gente se
amontoar. No palco, Summer executava uma música solo.
– Dizem que o Denzel Washington é tio do ator
coadjuvante e que talvez vá à festa – anunciou Liana.
Ela me deu um doce de alcaçuz do pacote que estava
comendo. Separei as tiras, mastigando uma de cada vez
em pedacinhos bem pequenos. Se eu levasse um bom
tempo comendo, talvez conseguisse me convencer de que
tinha feito uma refeição de verdade.
– Não podemos – lembrei.
– Denzel. Washington. Se ele nos conhecer e gostar de
nós, tem ideia de quanto isso pode ser bom pra nossa
carreira? Não dá pra gente ficar neste programa aqui pra
sempre. Além do mais, tenho 22 anos. Já era para eu poder
sair de casa e ir a uma festa.
– A gente deveria ser mais como a Summer, lembra?
Ela soltou um grunhido de frustração e, sem perceber,
roeu uma das unhas. No palco, um holofote apontou para o
cabelo de Summer, fazendo-o reluzir. Ela virou o rosto todo
para a luz, radiante. Era claramente uma jovem a um passo
de algo grandioso. Do estrelato, talvez, ou do amor
verdadeiro. Hoje sei que o algo que vinha em sua direção
não era nenhuma dessas opções. Era o desastre.
Liana e eu olhamos para ela.
– Ou – disse Liana – a gente vai, mas toma cuidado.
Entramos, saímos, tomamos um drinque, só pra conhecer o
Denzel. E vamos nos certificar de levar a Summer com a
gente.
DIÁRIO DA SUMMER, 23 DE ABRIL DE 2005

A verdade sobre sexo é que ele não tem nada


de especial. Você espera e espera por Alguém
Especial, aí um dia você simplesmente decide
fazer e não é mais virgem. E não se sente nem
um pouco diferente. Achei que seria o Noah.
Por um tempo, eu quis que fosse ele. Mas o
Noah não é o único homem no mundo, mesmo
que ele acredite que seja.
Ontem à noite fomos a uma festa, só nós, as
meninas, seguindo um plano todo complicado
pra evitar os papa­razzi. (Perucas, porta dos
fundos, telefonema pra passar uma dica de que
estaríamos em algum lugar do outro lado da
cidade.) Liana me perguntou se deveria
convidar o Noah e eu falei que não. Era para o
Denzel Washington estar lá, mas ele não foi. E,
parando pra pensar agora, é claro que o Denzel
Washington não iria. Então a gente meio que
ficou decepcionada logo de cara, mas aí
começamos a beber e nos divertir. Ainda que o
Denzel não estivesse lá, nessa boate particular
maneira as pessoas sabem ser discretas, então
ninguém se importaria se fôssemos menores
de idade, porque estávamos na lista de
convidados.
Nós três nos perdemos umas das outras
conforme íamos curtindo mais a festa. Eu só
queria dançar, beber e não pensar na pressão
do programa ao vivo. Eu estava dançando
sozinha, então um garoto (um homem? ele era
mais velho, talvez quase 30) começou a dançar
comigo. Ele era bonitinho, o cabelo castanho
cacheado, e me queria muito. Dava pra sentir
quando se esfregava em mim. A gente tentou
conversar, mas o barulho não deixou. Não sei
se ele me reconheceu do programa. Às vezes,
parece que o mundo todo sabe quem a gente
é, mas, na verdade, um monte de adultos
normais provavelmente não nos conhece,
porque é só um programa idiota que em tese
deveria ser para pré-adolescentes. Esse cara
não falou nada sobre “Os sonhadores”, só
perguntou se eu estava me divertindo, e,
então, depois que a gente dançou um pouco,
se eu queria ir para algum lugar mais calmo,
pra gente poder se ouvir.
Tenho me esforçado muito pra viver de
acordo com essa chatice de “ser a Summer
perfeita”, mas é exaustivo. Ao menos uma vez,
eu quis não pensar, só seguir os instintos do
meu corpo, ir com ele até um beco atrás da
boate. Então foi o que fiz. E ele não queria
conversar de verdade. Só me empurrou contra
a parede de tijolos e me beijou. Eu estava
naquele nível perfeito de bebedeira em que
você sabe o que está fazendo, mas não parece
que está tomando decisões: as coisas só
acontecem e você vai na onda. Ele pegou
minha mão e pôs dentro da calça dele. E,
quando ele disse que tinha camisinha, eu fui
em frente.
Doeu um pouco. Talvez menos do que eu
esperava, porque eu estava bêbada. Mas foi
excitante, apesar da dor. Como se eu e ele
fôssemos as únicas duas pessoas que
importassem no mundo por aqueles poucos
minutos enquanto acontecia. E eu nem sabia o
nome dele, só que nunca mais ia vê-lo de novo,
então, de certa forma, foi como se EU fosse a
única pessoa que importasse no mundo, até
que ele estremeceu, saiu de mim e jogou a
camisinha no chão.
– Então – disse ele. – Quer que eu pague
uma bebida pra você?
– Não, tudo bem – falei e voltei lá pra dentro
sem olhar mais pra ele.
Não contei pra ninguém o que aconteceu,
nem pras meninas. Com certeza, nem pro
Noah. Meu segredo. Foi tão fácil do jeito que
tudo aconteceu. Talvez, em breve, eu faça de
novo.
21
••••••

2018

Quando chego ao estúdio de ensaio com meu café, uma


multidão de paparazzi maior do que o normal aguarda do
lado de fora do prédio, estreitando os olhos por causa do
sol forte. Só tinham aparecido alguns a cada dia, mas
agora deve ter uns quinze ou vinte deles.
O que está acontecendo? Alguma coisa antiga surgiu,
um segredo ou um escândalo finalmente veio à tona,
muito bem escondido por mais de uma década, apenas
para arruinar vidas e reputações agora? Minha garganta
fica seca. Eles viram as câmeras para mim, os olhos
brilhando, as bocas abrindo, um frenesi surgindo. É
agora. De alguma forma, todo mundo sabe do diário. Fico
paralisada quando eles avançam, olhando para mim.
Não, olhando para além de mim: tem um homem
descendo de um carro. É alto e lindo, com braços tão
definidos que poderia quebrar um tijolo só com as mãos.
Isso ou acertar uma bola de beisebol e mandá-la por
cima da cerca com uma regularidade impressionante.
Javier Torres, marido de Liana, dá um sorriso reluzente
para a multidão, e meus batimentos cardíacos voltam a
um ritmo mais normal. Graças a Deus.
A energia dos paparazzi é diferente com Javier. Em
geral, os fotógrafos ficam felizes de nos ver porque
podemos ajudá-los a ganhar dinheiro, é claro, mas eles
não são fãs do nosso trabalho. Já com Javi, eles querem a
foto e um autógrafo.
– Aqui! – gritam, torcendo para que ele lhes dê um
sorriso e também os cumprimente com um soquinho,
bata um papo.
Seus olhos se fixam em mim, e ele se aproxima.
– Kat, não é?
Sem aviso, ele me dá um abraço, e as câmeras
pipocam. Ele projeta uma sensação de estrelato
amistoso. Nada dessa coisa humilde de “ah, quem, eu?”.
Ele sabe que é muito especial.
Entramos juntos no prédio, passamos pelo vigia, que
assente para mim de modo sonolento e então fica
maluco ao ver o astro do beisebol.
Quando Javier entra na sala de ensaio, Liana olha
duas vezes ao vê-lo, piscando incrédula por um instante,
antes de dar um grito.
– O que você está fazendo aqui?
– Quis fazer uma surpresa pra minha bela esposa – diz
ele, e Liana o abraça.
Porém reparo que o abraço parece tão estranho
quanto da primeira vez que ela me abraçou. Ele também
está rígido, como se ambos interpretassem um papel
para nós ou, talvez, um para o outro.
– Puta merda! – grita Noah.
Ele vem correndo, todo fanático, e é até fofo vê-lo
tendo a mesma reação de tanta gente ao encontrar
Javier. No fim das contas, todos nós ainda ficamos
arrebatados ao encontrar pessoas famosas.
– E aí, cara – diz Javi.
Summer fica para trás, um sorriso delicado no rosto,
nada impressionada.
– Sei que você provavelmente quer sair com sua
mulher – diz Noah para Javier. – Mas não quer sair comigo
também?
– Vai com calma, Noah – alerta Liana. – Tá tentando
roubar meu homem?
– Foi mal – responde ele, sorrindo.
– Tá legal, tá legal – fala Michael, um copo gigantesco
de Coca diet na mão. Ele não curte muito esporte, então
não está surtando como tantas outras pessoas no
momento. – Ótimo te ver aqui, Javier, mas vamos fazer a
cena, pode ser?
Javier se senta na cadeira que um assistente
materializou ali para ele.
Hoje, pela primeira vez, vamos ensaiar a parte em
que Summer “consome muito açúcar”, cai do palco e
bate a cabeça. Essa queda humilhante é uma desculpa
para a sequência fantasiosa e também um rumo
estranho para a personagem. Naquela época, era a
minha personagem que precisava ficar constrangida ou
ser colocada em seu devido lugar. Summer tinha seus
momentos esquisitos e vulnerabilidades, como qualquer
garota, mas, apesar de tudo, era a personagem dela que
deveria representar um ideal. Agora, Michael está
basicamente pedindo que ela banque a bêbada (ou
doidona), e isso não se encaixa, não nesse cenário. Todos
nós já a vimos desse jeito, é claro, mas em vídeos
granulados da mídia sensacionalista ou em posts
questionáveis no Instagram que mais tarde foram
excluídos. A Summer Desgarrada da Vida Real não se
encaixa na Summer de Os sonhadores, mas Michael está
forçando a barra. Até aqui não houve problemas, porque
estávamos aprendendo as músicas e as coreografias e a
maior parte delas faz parte da sequência delirante, no
fim das contas, em que Summer escolheu interpretar sua
personagem como era antes. E, quando desperta do
desmaio, ela se “reabilita”, então essa parte também foi
tranquila.
Só que, nas cenas antes da pancada na cabeça,
Summer cai dentro do ponche do reencontro sem
nenhum motivo, só para ter uma “overdose de açúcar” e
ficar fora de controle. Ela sobe no palco onde a banda
contratada pelo comitê do reencontro deveria se
apresentar (eles ficam presos em uma nevasca e ainda
não apareceram), faz um discurso inflamado sobre os
velhos tempos e então tropeça em um cabo elétrico.
O texto é preguiçoso, mas, nas mãos certas, a cena
poderia ficar bem divertida. Só que as mãos de Summer
não são as certas para isso. Ainda assim, ela baixa o
roteiro e se embrenha pelas emoções, tentando entrar no
jogo.
– Eu pegaria mais leve no ponche se fosse você – falo,
na personagem, erguendo uma sobrancelha.
– Só se vive uma vez! – responde ela, fingindo encher
a cara com o copo vazio que usamos como adereço. Ela
limpa a boca. – Ei, quanto você acha que tem de açúcar
nisto aqui?
Liana semicerra os olhos para o próprio copo.
– Sabe, meu marido é cientista. Aposto que sabe dizer
o teor exato de glucose ou sei lá o quê!
Javier ri, e Liana não consegue evitar um olhar para
ele, levada pelo momento.
– Acho que ninguém precisa ser cientista pra saber
que tem bastante açúcar – emenda Noah.
Summer joga o copo longe e começa a escalar o
“palco” (que no momento está indicado com fita adesiva
no chão da nossa sala de ensaio).
– Lembram quando a gente se apresentava aqui? –
pergunta ela. – Os dias de glória e...
– Para – diz Michael, e saímos das personagens. – É
pra ser constrangedor. Você se sente constrangida.
– Foi mal – diz ela, esfregando os olhos. – Eu sei. Vou
recomeçar.
Recomeçamos e tentamos outra vez e mais outra.
Summer não parece disposta a admitir a derrota, mas
está se contendo, e a interpretação sai meio artificial.
– Só... – diz Michael, por fim. – Esquece essa coisa de
precisa ser adequado a todas as idades por um instante.
Manda a cautela às favas, tá bem?
Dessa vez, Summer vai com tudo. Ao vê-la escalar o
“palco”, o rosto corado, os olhos meio fechados, posso
jurar que ela está mesmo sob o efeito de algo.
– Lembra quando a gente... – gagueja ela, então dá
um soluço. – Foi mal. Lembra quando a gente se
apresentava aqui? – Pela sala, todo mundo se remexe,
alguns assistentes dão risada, como se fosse esperado
isso deles, mas é algo desconfortável, mais como um riso
de escárnio. – Era tãããããão legal.
A fala seguinte é de Noah, então olho para ele
esperando a cara de oh-oh! que ele tem feito nessa cena.
Mas sua expressão está tensa. Triste. Ao lado dele, Liana
morde o lábio. Ela olha outra vez para Javier, mas agora
ele mira o telefone, sem prestar atenção ao redor.
– Noah! – instiga Michael.
– Foi mal – responde ele, e entra no papel. – É, é
quase tão legal quanto se sentar, não é?
Summer finge que vai descer, então cai de um jeito
ridículo e se estatela no chão. Parece real demais. Tenho
a sensação de estar vendo a Summer que ela foi ao
longo dos anos em que não nos falamos, a Summer que
ela tem o potencial de voltar a ser se esse reencontro
não sair do jeito que espera. Para onde ela vai se isso for
um fracasso? O que é que vai fazer com o resto da
própria vida?
– Bem melhor – diz Michael, e ela ergue a cabeça do
chão, tirando o cabelo da frente do rosto para fitá-lo.
– É sério? – pergunta ela, mas sua voz está carregada,
como se Summer estivesse à beira das lágrimas.
– É – responde ele.
O restante de nós fica quieto. Amber, de Garota do
poder, lampeja em minha mente. A cobertura zombeteira
que os tabloides fizeram de sua primeira overdose. A
zombaria que precisaram deixar de lado na cobertura da
segunda overdose, porque foi a que a matou.
Eu nunca dava opinião nos ensaios naquela época. Era
Michael quem mandava ali, e eu só queria cair em suas
boas graças e permanecer nelas. Mas, nesse momento,
tenho a mesma sensação de quando trabalho com um
cliente que cisma com algo que não vai acontecer. Meu
trabalho – o qual passei anos exercendo, no qual sou
mesmo muito boa – é acabar com a enrolação e fazer o
que precisa ser feito.
Então as palavras simplesmente saem da minha boca.
– É evidente que isso não está funcionando. – Todos
param e olham para mim, surpresos. Michael franze a
testa. – A Summer nunca perdeu o controle na série. Isso
não se encaixa na história.
– Kat, não tenho tempo de explicar o que é um roteiro
pra você no momento – diz ele. – Mas vai dar certo se
todos vocês se comprometerem de verdade.
– Estou só comentando. E se o motivo for ela estar
nervosa?
Uma das características de Summer nos primeiros
episódios era que ela ficava adoravelmente tímida,
arregalando os olhos de medo quando era dominada por
uma crise de pânico antes de subir ao palco.
– Não sei como isso daria certo – diz Michael.
– Eu posso beber o ponche rápido demais porque
estou nervosa por estar perto do Noah de novo – diz
Summer.
– Sim! – concordo. – Isso tem mais a cara da
personagem, não uma mulher festeira com esse papo de
“Só se vive uma vez!”, mas uma pessoa normal que
precisa manter as mãos ocupadas.
– Mas como vou bater a cabeça? – pergunta Summer,
curiosa de verdade.
Hesito.
– Talvez você precise fazer xixi depois de tanto ponche
– diz Liana, a voz estranhamente rouca. Ela pigarreia. –
Mas está tão cheio de gente que você só consegue
chegar ao banheiro cortando caminho pelo palco, onde
você tropeça no cabo elétrico.
Nós quatro, atores, contemplamos a ideia – ainda não
é o ideal, mas é bem melhor do que temos agora.
– Não – fala Michael. – Não gostei.
– Eu entendo por que você escreveu do jeito que
escreveu – diz Summer para ele. – Mas eu voltei para
interpretar a personagem. Eu dou conta, tenho
trabalhado muito sério e...
– Quem é o roteirista aqui? – questiona Michael. – Na
última vez que conferi, era eu. Agora, vamos do começo
e, Summer, tenta fazer algo entre os dois extremos que
você fez.
Summer, Liana e eu murchamos, então voltamos a
nossas marcações.
Noah interrompe.
– Michael, na verdade, eu acho que o argumento delas
é válido.
Michael solta sem querer um grunhido de frustração,
porque ele tem que dar ouvidos a Noah. Apesar de todo o
papo de ser o roteirista, não é por causa dele que os fãs
vão ficar sintonizados no programa. Ele precisa manter
seu astro feliz.
– Tá bem – diz ele. – Vou dar outra olhada e considerar
uma mudança. – Ele se levanta de repente. – Já estamos
quase na hora de qualquer jeito, então estão todos
dispensados e depois vemos isso.

••••••

Saímos todos juntos do ensaio, nós quatro e Javier, que


está falando com Liana em voz baixa, dizendo que eles
deviam voltar direto para o hotel (e partir para a ação
com tudo, imagino). Dou uma olhada no meu telefone:
uma mensagem de Miheer perguntando como está o
ensaio. Começo a responder, mas sou distraída porque, à
minha frente, Summer toca a mão de Noah com
delicadeza.
– Obrigada pelo que você fez lá. Te devo essa. Talvez
um jantar?
Noah se vira para ela bem na hora em que abrimos a
porta que dá no estacionamento e somos atingidos pelo
rugido dos paparazzi. Ah, sim, esqueci que Javier tinha
nos transformado na atração mais imperdível da cidade.
Todos sorrimos e acenamos.
– Liana e Javi, aqui!
– Liana e Javi, deste lado!
Naquela época, quase ninguém gritava o nome de
Liana. Ela ficou mais famosa do que nunca com o marido.
Os dois estão de mãos dadas. Javier dá um sorriso, mas
seus olhos correm de um lado para o outro. Ele está...
nervoso?
– Liana – grita uma mulher com um microfone,
forçando passagem até a frente do tumulto. Liana se
inclina em sua direção, pronta para responder a qualquer
pergunta sobre como é bom estar junto do marido. –
Algum comentário sobre a gravidez da amante do Javier?
22
••••••

2018

Liana franze a testa, o rosto congelado em uma máscara


de incredulidade. Summer, Noah e eu nos viramos uns
para os outros. Estou surpresa (se bem que estou tão
surpresa assim? Era óbvio que tinha algo estranho), mas
não temos tempo para ficar conjecturando o que está
acontecendo.
Javier dá um passo à frente, dirigindo-se à imprensa.
– Minha esposa e eu pedimos que nos deem um pouco
de privacidade nesse momento – diz ele, uma resposta
ensaiada que sai com tanta facilidade que tenho certeza
de que ele sabia que isso ia acontecer, se não agora,
muito em breve.
A expressão de Liana vai mudando para algo parecido
com fúria, e os repórteres avançam, prontos para devorá-
la. Caramba, essa traição deve ter sido um soco no
estômago. Mas, além de tudo, está acontecendo da pior
maneira possível para alguém que se orgulha de estar
sempre um passo adiante. Liana pratica, trabalha muito
e apresenta certa imagem de si mesma. Porém, no
momento, o mundo está vendo o chão sob seus pés
desaparecer. Essas fotos vão sair em todo lugar, e Liana
ainda está com as roupas de ensaio, a testa brilhando de
suor, e não sabe o que dizer. As câmeras vão se deliciar
com isso.
– A gente tem que tirar ela daqui – digo para Summer
e Noah. – Não é?
– É – responde Summer.
– Vocês levam a Liana – diz Noah no meu ouvido. –
Vou distrair todo mundo.
Noah dá passos largos até o meio do tumulto, indo na
direção de Javier e se colocando na frente de Liana,
enquanto Summer e eu chegamos por trás dela.
– Javier! – diz ele. – Mas como assim, cara?
As câmeras se viram para Noah. Summer pega a mão
de Liana.
– Vem com a gente? – pergunta ela, e Liana assente,
grata e atordoada.
– Achei que você fosse um cara maneiro! – continua
Noah, encarando Javier, mas sem ao menos encostar
nele. – Eu te respeitava.
A possibilidade de uma briga muda temporariamente
o foco das atenções, o que permite que a gente escape.
Valeu, Noah, por ser um exibido. Corremos rumo ao meu
carro alugado, e então a represa se rompe e uma onda
de esperança me inunda: talvez eu tenha sido muito dura
com Noah, talvez ele tenha mudado. Mas não há tempo
para pensar muito nisso. Tem um homem com uma
câmera apoiada no capô do meu carro.
– Vamos no meu – diz Summer, e mudamos de
direção, abrimos as portas do carro dela e pisamos
fundo.
O silêncio reina por alguns minutos. No banco de trás,
Liana parece em choque.
– Ei – digo com delicadeza. – Quer voltar pro hotel?
Ela faz um movimento brusco com a cabeça.
– O Javier sabe qual é o meu hotel. E, se ele for lá, os
paparazzi vão atrás.
– Beleza, vamos pensar em outra coisa – respondo, e
Summer assente, dando seta e virando à direita, em vez
do caminho costumeiro para a esquerda.
Liana começa a fazer um som desamparado, no limiar
entre risos e lágrimas.
– Vocês foram com tudo – diz ela. – Vocês duas,
praticamente me jogando nos ombros e me levando
embora, o Noah se esgoelando com Javi.
– Ué, sim, estamos do seu lado – respondo, e então
ela começa a chorar de verdade.
Estico a mão sem jeito para trás e dou tapinhas em
seu joelho enquanto ela se apoia na porta do carro, o
rímel escorrendo pelo rosto.
Summer e eu nos entreolhamos.
– Será que a gente não encontra um lugar com uma
sala particular? – pergunto. – Ou, sei lá, um parque
enorme?
Mas Summer parece já ter um destino em mente. Ela
vira na autoestrada, segurando o volante com tanta força
que os ossos esticam sua pele.
– Aonde estamos indo? – pergunto.
Ela engole em seco, olhando direto para a frente.
– Pra casa.
••••••

Pouco mais de uma hora depois, Summer sai da


autoestrada, segue pelo centrinho de uma cidade (lojas
tampadas com tábuas a cada poucas fachadas) e
estaciona na entrada de uma casa modesta.
Sua expressão é melancólica. Summer abre o portão
na cerca de arame e atravessa o jardim empoeirado e
com um limoeiro todo retorcido, feito uma sentinela
solitária.
– Deve ter... – murmura ela, virando um lagarto de
cerâmica pintado com cores vívidas no degrau da frente
e revelando uma chave ali embaixo. – Bom – diz ela, ao
destrancar a porta do lugar onde cresceu –, entrem.
As duas coisas que me chamam a atenção quando
vejo a sala de estar são: (1) o sofá florido tenebroso,
comprido e baixo e (2) a quantidade imensa de fotos de
família na parede. Estão todas muito próximas, mal dá
para ver o papel de parede atrás: o casamento dos pais
de Summer, os dois se abraçando. As fotos escolares de
Summer da época em que a conheci. Fotos dela em
produções teatrais da cidade, seu cabelo castanho
comprido. O pai com ela nas costas, a mãe a segurando
ainda neném. Mas não tem nada recente, como se tudo o
que aconteceu depois que Os sonhadores foi ao ar
tivesse desaparecido em um vazio.
Summer está absorvendo a situação toda, assim como
eu. Ela também está hospedada no hotel – é bem mais
perto –, e temos trabalhado tanto que ela provavelmente
ainda não teve oportunidade de vir até aqui para fazer
uma visita.
Liana passa direto por nós e se joga de cara no sofá
com um baque.
– Ai, meu Deus – diz ela, a voz abafada pelo tecido. –
Não era tão confortável quanto eu achei que seria.
– Foi mal – fala Summer.
– Álcool. Por favor.
– Minha mãe não é de beber, mas vou dar uma
olhada.
Summer se vira para ir até a cozinha, e vou atrás
dela.
– Cadê sua mãe? – pergunto, enquanto ela vai direto
até a despensa e vasculha por entre enlatados e sacos
de farinha até encontrar uma garrafa de vinho.
– Visitando a irmã.
A resposta é concisa. Desde que passamos pela porta,
ela fica mexendo os ombros de um jeito esquisito.
Summer serve o vinho em três copos grandes para
nós, e dou um gole, hesitante. Aff, é açúcar puro. Mas
Liana não dá a mínima. Ela o vira enquanto Summer e eu
nos sentamos uma de cada lado no sofá.
– Quer conversar? – pergunto, colocando a mão em
seu joelho. – Você deve estar em choque.
Liana limpa os lábios.
– Eu já sabia.
– Oi?
Liana se levanta e começa a andar de um lado para o
outro na sala, como se pudesse fugir de seu pesar.
– Ele me prometeu que a notícia só viria à tona depois
do reencontro ir ao ar. Deve ter sido por isso que ele
apareceu hoje. Ela avisou que iria até a imprensa e ele
queria estar comigo nessa hora. Mas eu já sabia.
Summer afunda no encosto do sofá, observando a
movimentação frenética de Liana.
– Desde quando? – pergunto.
– Desde... sei lá... Ele me contou algumas semanas
antes daquela entrevista do Noah? – Ela faz uma
imitação da voz de Javier (que, na verdade, acaba sendo
muito boa: ela é supertalentosa até em seus piores
momentos). – Eu estraguei tudo, amor. Fiquei tão sozinho
sem você na estrada. – Ela para diante de nós e aperta
as têmporas. – Tenho certeza de que não é a primeira vez
que ele dorme com outra mulher, só que é a primeira vez
que engravida uma. Ou talvez seja a primeira vez que ele
engravida uma e quer ter a criança, já que eu não
consigo dar um filho pra ele. – Ela olha para Summer, a
voz amarga e dura. – É, ainda por cima, parece que eu
sou infértil.
Summer mexe nas pontas duplas do cabelo.
– As pessoas superestimam a ideia de ter filhos. Eles
cagam, choram e acabam com a sua vida. Foi o que ouvi
dizer, pelo menos.
Liana a encara por um momento. Nós duas
encaramos: esta é a Summer que veio atrás de mim em
Washington, não a versão estranhamente ingênua de si
mesma que ela tem apresentado nos ensaios. Então
Liana chora mais ainda ajoelhando no chão.
– Beleza – falo, indo para perto dela e dando tapinhas
hesitantes em suas costas. – Precisa de um advogado?
Tenho ótimas indicações.
Ela funga, mas não responde, e eu a encaro,
boquiaberta.
– Você não vai ficar com ele, vai? – indago.
– Ele acha que a gente não deve se separar –
responde ela. – Podemos ser pais junto com essa mulher.
Porque nós dois formamos um casal poderoso. E, se a
gente se divorciar, as pessoas vão continuar interessadas
nele, só que ninguém mais vai se importar comigo. Ele
está me fazendo um... – O choro a faz soluçar. – ... favor.
– As pessoas também vão se importar com você! –
rebato.
– Vão fazer uma cobertura de um mês pra mim, no
estilo força, mulher, depois todos vão me deixar de lado.
– Ela balança a cabeça. – Você não sabe como é. Ele não
é só meu marido. Ele é meu sustento. Achei que voltando
aqui... talvez eu pudesse lembrar a todos que eu existo
além dele e isso ia me ajudar a descobrir o que fazer.
Ah, isso explica os posts superanimados no Instagram,
o desespero por Michael ter feito a personagem dela
gravitar ao redor do marido.
– Mas claramente não está dando certo – continua
Liana. – Vou desistir do reencontro.
– Quê? Não! – falo, entregando um lencinho a ela.
Ela assoa o nariz ruidosamente, se encolhe no chão e
estende as mãos para pegar outro lencinho.
– Pra que continuar? Fazer backing vocal pra vocês e
falar do meu marido, enquanto o público sabe da minha
humilhação? Não, valeu, tô fora!
– Vamos pedir pro Michael mudar o enredo do marido
pra você – falo.
– O Michael não vai fazer nada por mim – responde
Liana, que está exausta, detonada, o rosto puro
desânimo. – Além disso, estou triste demais.
Summer tinha ficado quieta até então, mal se
pronunciando, apenas observando. Mas agora, em um
movimento repentino, ela desce do sofá e se ajoelha na
frente de Liana, aninhando o rosto dela nas mãos.
– Para com isso – diz. – Você não vai desistir por causa
desse homem. E também não vai ficar com ele.
– Não sei quem eu sou se não for a esposa dele – fala
Liana. Sua voz é baixinha e cheia de amargura. – Além
de ser só motivo de chacota.
– Bom, bem-vinda ao clube da chacota.
– Você não é...
– É claro que eu sou – continua Summer. – Meus
términos, minhas decisões ruins e meus momentos
constrangedores foram estampados em toda capa de
revista, e é uma coisa horrível. Todo mundo com quem
você conversa espera que você caia no choro, se
pergunta como é que você ainda aparece em público. A
maioria acha que você merece toda e qualquer
humilhação, porque eles nunca se colocariam em
situações tão ruins. As pessoas boazinhas dizem que
você é muito corajosa. Mas não se trata de coragem.
Você não quer aparecer em público. Você queria só poder
se enfiar na cama. Não em cima, mas dentro dela. Você
quer abrir um buraco no colchão e morar ali. Mas você se
levanta e vai lá pra fora de novo, porque não tem
escolha.
– Eu sei quem você é se não for a esposa ele – digo. –
Você é a Liana Jackson, que sempre foi a mais talentosa
de todos nós. – Olho para Summer. – Sem querer ofender.
– Não ofendeu – diz ela para mim, então se volta para
Liana. – Não deixe que ele tire isso de você, junto com
tudo o mais.
Liana olha para Summer por um instante em silêncio.
Então ela se inclina para a frente e puxa Summer para
um abraço, um abraço de verdade, sem vaidade nem
encenação. Summer a abraça bem apertado, até que
Liana vira o rosto para mim.
– Ah, vem aqui você também.
E eu vou, nós três engalfinhadas no chão, molhadas
pelas lágrimas e pelo ranho de Liana, um bolo de
mulheres no chão. Não sei quem fala primeiro. Talvez a
gente fale ao mesmo tempo, e logo estamos repetindo
aos sussurros: ah, como a gente sentiu saudade uma da
outra.
23
••••••

2005

Os últimos dias que antecederam o programa ao vivo


foram turbulentos. Liana se encrencou com Michael outra
vez por causa da festa com Denzel Washington, da qual
ela foi embora com Trevor. Eles estavam indo para a casa
dele quando foram parados pela polícia. Os paparazzi
apareceram bem a tempo de tirar fotos dele soprando no
bafômetro com Liana ao lado.
– Eu não fiz nada errado! – disse ela para mim e para
Summer em nosso camarim, enquanto trocávamos o
figurino depois do último ensaio.
O resto do dia foi um misto de coisas: trabalhar
músicas, últimas provas com Harriet. E Liana foi
chamada no escritório de Michael para mais um sermão.
– O Trevor falou que dirigia bem e eu confiei nele. Não
era eu que estava ao volante – nos contou ela.
– Não fica na defensiva – disse Summer, em nosso
camarim. – Vai lá e pede desculpa. Fala que o Trevor
mentiu pra você. O Michael não vai fazer nada com você,
não com o programa ao vivo sendo amanhã.
Liana lhe dirigiu um olhar penetrante.
– Pra você é fácil falar.
Ela deu meia-volta e saiu. Quando a vi depois, ela não
quis falar sobre o que houve no escritório de Michael. Só
quis ir para casa dormir. Todos fomos para casa mais
cedo naquela noite e tentamos dormir, os nervos à flor
da pele e as expectativas a mil.
O dia do programa ao vivo nasceu claro e quente.
Acordei uma hora antes do despertador e fiquei na cama,
o coração martelando no peito. Milhões de pessoas já
tinham visto eu me apresentar, mas aquele dia era
diferente. Não havia margem para erro, nada de gritar
“corta” e tentar outra vez. Eu não queria fazer besteira. E
se o meu desempenho ruim fizesse o Sr. Atlas decidir que
a gente não merecia ir para as telonas? Ou, pior ainda, e
se eu fosse cortada do filme e tivesse que assistir de
longe ao seu sucesso estrondoso?
Evitei laticínios a semana toda, porque isso podia
atrapalhar minhas cordas vocais, e peguei uma banana
no café da manhã em vez do leite com cereal que eu
costumava comer. Me alonguei por uma hora, aquecendo
o corpo todo. Você está preocupada, disse a mim
mesma, mas vai ser ótimo. Ainda assim, os piores
cenários surgiam na minha mente: eu torcendo um
tornozelo durante a coreografia, eu esquecendo as falas.
O pior cenário de verdade, aquele que acabou
acontecendo, nem passou pela minha cabeça.
Summer, Liana e eu estávamos sentadas lado a lado,
caladas, enquanto fazíamos cabelo e maquiagem, nos
transformando nas versões mais brilhantes de nós
mesmas. A cabeleireira passou tanto a chapinha no meu
cabelo que quase dava para ouvir os fios crepitarem.
Depois enfiou uma peruca na cabeça de Liana, porque
não sabia o que fazer com ela. A mulher mal mexeu no
cabelo de Summer, apenas o penteou e borrifou algo
enquanto murmurava elogios.
Nossas conversas foram fragmentadas, porque não
conseguíamos nos concentrar, nossas mentes já voltadas
para o palco. Falamos sobre a comemoração que a Atlas
planejara para nós depois do programa, sobre quem
conhecíamos que estava na plateia. Meus pais haviam
cruzado o país para estar aqui depois que comprei as
passagens para eles (embora obviamente não tivesse
comprado uma para a noiva do meu pai). Os de Liana
tinham vindo da Geórgia com seus irmãos e um monte
de tias e tios.
– Minha mãe está no camarote dos diretores – disse
Summer. – E o Lucas também.
– Vai conseguir manter o Lucas longe do Noah na
festa? – perguntou Liana.
– Espero que sim. Vou precisar que vocês duas
interfiram.
Pelo que parecia, Summer e Noah tinham feito as
pazes depois da briga dele com Lucas, embora desde
então ela estivesse mais contida em seus beijos no
ensaio, como se tentasse despistar todo mundo. Eu
queria perguntar o que rolava entre os dois, mas não
sabia se ela diria a verdade. Além disso, eu queria que
ela me contasse sem eu ter que perguntar. Era o tipo de
coisa que deveria ser revelada para uma amiga. Mas
talvez agora eu fosse só uma pessoa convocada para
“interferir”, ainda que ela não me confiasse os detalhes
da história.
Uma assistente de produção enfiou a cabeça pela
porta.
– Prontas? Está na hora.
Nós nos reunimos em uma área grande nos
bastidores: o elenco, Michael, figurinistas, maquiadores e
assistentes. Uma energia inquieta e vibrante dominava o
ambiente. O que acontecesse na hora seguinte teria o
potencial de nos levar às alturas ou nos arruinar.
Integrantes do coro tremiam. Assistentes se
atrapalhavam com suas pranchetas. De longe, vinha um
rugido constante: o som dos fãs prontos para nos ver,
nos celebrar, nos devorar.
– Sei que devem estar nervosos – gritou Michael. –
Mas espero que estejam animados também. Essa é uma
chance de mostrar pra todo mundo do que vocês são
capazes. Se apoiem, e vamos fazer algo tão incrível que
a Atlas não vai ter escolha a não ser nos lançar logo nas
telonas.
Uma TV no canto estava sintonizada no Show da
Noite, sem som. Estavam fazendo uma cobertura do
“antes do programa”, como se fôssemos o Oscar ou o
Super Bowl. A aposta de Michael valera a pena: fazer o
último episódio ao vivo tinha atraído mais atenção do
que se fizéssemos do jeito normal.
Havia meninas pré-adolescentes no auditório usando
blusas com nossos rostos, se esgoelando e acenando
para a câmera, os dentes com aparelho à mostra. Mas
elas não eram as únicas lá. A câmera capturava
adolescentes mais velhas à vontade em seu fandom,
muitos pais (alguns claramente entediados, mas muitos
tão animados quanto os filhos) e pessoas na casa dos 20
e dos 30 que pareciam não ter filho nenhum. A gente
tinha crescido tanto e tão rápido. Dava para falar o que
fosse de Michael, mas os instintos dele eram imbatíveis.
Ele sabia criar algo colossal.
Summer encontrou Noah e segurou sua mão.
– Está pronto? – perguntou ela.
Pensei no que Harriet tinha falado sobre a química
deles. O público queria que fosse a mais forte possível
sem virar algo perigoso. Summer entrelaçou os dedos
nos de Noah e roçou seu polegar no dele como se fossem
dois gravetos e Summer estivesse atiçando a chama
entre eles, uma que tinha o tamanho certo. Seu anel de
castidade reluzia sob a iluminação no teto.
– Estou pronto – disse Noah, e ergueu a mão para
colocar uma mecha de cabelo atrás da orelha dela. – A
gente vai arrasar.
De alguma forma, os dois eram as únicas pessoas
calmas ali.
– Mais dez minutos – avisou o diretor assistente, a voz
trêmula.
– A coisa tá boa – disse Michael para ninguém em
particular, tentando dominar a própria inquietação. –
Ouvi dizer que tem uma fila de mais de um quilômetro lá
fora, as pessoas passaram a tarde debaixo do sol, só na
esperança de conseguirem entrar.
Um assistente entrou correndo na sala e sussurrou
algo no ouvido de Michael, que o encarou, sem entender
por um instante. Então ele fez um movimento brusco de
cabeça, e o assistente aumentou o volume da TV.
Todos se viraram ao ouvir aquele som inesperado. O
programa tinha voltado do intervalo direto para os dois
âncoras no estúdio, ambos com expressões solenes.
– Bem-vindos de volta – disse o homem. –
Lamentamos por interromper a cobertura do último
episódio da temporada, mas temos o dever de informar
uma nova história sobre um escândalo que pode abalar
Os sonhadores momentos antes do início da transmissão
ao vivo.
A mulher assentiu.
– Agora podemos confirmar que o blog de
entretenimento Lamapop teve acesso ao diário particular
de Summer Wright.
24
••••••

2018

Liana bebe a garrafa de vinho quase toda pelas horas


seguintes, enquanto nos atualizamos sobre nossas vidas
nos últimos 13 anos. Vez ou outra, ela tenta servir mais
para mim e para Summer, e eu ajudo um pouquinho,
apesar de o doce fazer meus dentes doerem. Summer
recusa.
– Merda, desculpa – diz Liana, sem filtro nenhum, sua
franqueza voltando em boa hora. – É coisa da
reabilitação?
Summer balança a cabeça.
– Nunca tive problema com bebida, só com cocaína. E,
de vez em quando, com ecstasy. Mas quero reduzir meu
consumo de álcool enquanto estou aqui. Tô tentando ser
profissional. Não se preocupa.
– Eu tenho me preocupado muito – diz Liana, os olhos
marejados outra vez. – Ao longo de todos esses anos.
– Você podia ter falado comigo – diz Summer.
– Eu sei. Fiquei tão... chateada com o contrato do filme
e, depois que superei isso, pareceu tarde demais. Você
não tem ideia de quanto me martirizei, de quanto queria
ter voltado no tempo e feito tudo diferente. – Ela seca os
olhos e fala mais devagar para que as palavras saiam
menos enroladas, o que enfatiza ainda mais sua emoção.
– Eu teria te procurado logo em seguida. – Ela balança a
cabeça, depois pega a garrafa, bebe o restinho e se
levanta, cambaleante. – Preciso do meu sono de beleza –
anuncia. – Agora mais do que nunca.
– Podemos dormir aqui? – pergunto a Summer, e ela
assente.
Então nos colocamos uma de cada lado de Liana e a
levamos até o quarto da mãe de Summer. Ela coloca
Liana na cama com delicadeza e acaricia seu cabelo.
Apago a luz, e voltamos para o corredor na ponta dos
pés.
– Vamos apagar também? – pergunta Summer, me
flagrando encarando-a. – Que foi?
– Por que não tem sido você mesma nos ensaios?
– Não sei do que você está falando – responde ela.
Ergo minha sobrancelha devastadora, e, depois de um
instante, ela joga as mãos para cima.
– Tá bem. Talvez eu esteja tentando fazer um bom
trabalho e ser a pessoa de que todo mundo gostava
antes do diário acabar com tudo. É tão errado assim?
Balanço a cabeça, e Summer entrelaça o braço no
meu, com um pouco da nossa velha e fácil intimidade
física. Ela não parece perceber que a menção ao diário
me deixou rígida e descansa a cabeça no meu ombro.
– Vamos dormir.
Ela me leva até o outro quarto da casa. O dela.
Abrimos a porta, e volto no tempo.
Vou direto para o começo dos anos 2000. Paredes
rosa, uma delas com uma pequena cruz pendurada. Tem
até um pufe verde peludo. Há um quadro de cortiça com
fotos – meu próprio rosto, mais jovem, sorri para mim. No
canto, tem uma cama de solteiro com um edredom cheio
de babados. Summer se abaixa e puxa a cama de baixo.
Ando pelo quarto e paro para olhar a estante de
Summer. Tem um porta-CDs cheio de música pop, e a
madeira está coberta de adesivos que às vezes vinham
nas revistas de adolescentes naquela época, adesivos
com fotos das celebridades. Dou uma olhada em Amber
e Trevor de Garota do poder, além dos integrantes de
várias boy bands que a gente era obrigada a amar por
ser uma adolescente de 13 anos.
– Sua mãe nunca quis se mudar?
A casa é pequena e está em mau estado, não é o tipo
de lugar onde as pessoas imaginem que a mãe de uma
estrela da TV more.
– Ela não aceitava meu dinheiro. E aí as clínicas de
reabilitação custaram caro, então não tinha mesmo
dinheiro nenhum pra dar a ela. – Summer dá de ombros.
– E, depois, sair daqui seria como perder meu pai de
novo. A relação deles era complicada, mas eles se
amavam muito.
– É como se fosse um museu. Ela podia fazer
excursões – brinco, mas Summer não ri.
– “Siga por aqui para ver o quarto da minha maior
vergonha” – diz ela, baixinho, fazendo um gesto com o
braço.
Está tudo coberto por uma fina camada de poeira. O
cheiro enjoativo de sabonetes e cremes velhos
empesteia o quarto. O ar parece mais denso aqui – ou
talvez eu esteja com dificuldade de respirar por outro
motivo: porque a culpa e a ansiedade fecham minha
garganta.
Summer treme como se estivesse com frio. Sem me
olhar, ela diz:
– Ela foi visitar a irmã de propósito. Eu disse que
estava vindo pro reencontro, aí ela aproveitou para
programar uma viagem de um mês pro Texas.
– Eu... eu sinto muito – digo, e ela entra de vez no
quarto, encarando as paredes.
– Ela me ama, sei que ama. Só não suporta olhar pra
mim. É difícil demais encarar o desastre que eu virei. Ela
foi me buscar quando saí das clínicas de reabilitação. E
posso ficar aqui sempre que precisar de verdade. Mas
acho que ela nunca mais me olhou nos olhos depois que
o diário veio à tona.
Quando cheguei em casa depois do final desastroso,
minha mãe me acolheu de braços abertos. Enquanto me
abraçava e eu chorava em seu peito, dava para sentir os
“eu te avisei” borbulhando, mas ela engoliu todos eles.
Nunca me repreendeu ou perguntou sobre o dinheiro que
prometi para seus estudos. Ela me disse para ficar o
tempo que precisasse.
– Eu só queria entender – diz Summer. – Por que
alguém iria querer me sabotar tanto assim? Acho que,
em parte, é por isso que não consigo deixar tudo isso pra
trás. Você tenta e trabalha muito, aí vem alguém e... –
Ela deixa a frase no ar.
De costas, se eu estreitar os olhos, ela ainda parece a
adolescente que era dona deste quarto. Mas, quando ela
se vira, é a adulta que eu destruí. Ela puxa para baixo as
mangas do moletom largo e esfrega os braços, tentando
se aquecer. Suas pernas magras ficam arrepiadas, mal
cobertas pelo short jeans desfiado.
– Preciso contar uma coisa – falo.
Ela encontra meu olhar, um último momento de
ingenuidade. Um último momento em que ela gosta de
mim, talvez até me ame. Mas então vê a expressão no
meu rosto, e não tem mais volta.
– Ah. – Ela ofega, compreendendo tudo. – Foi você que
entregou o diário pra imprensa.
25
••••••

2005

– Normalmente, não expomos o conteúdo do diário


particular de uma pessoa – começou o âncora do Show
da Noite. – Contudo, dado o nível de hipocrisia, nos
sentimos na obrigação de compartilhar.
Claro. Com certeza eles só queriam ser o primeiro
programa de TV a noticiar a história. Talvez até
estivessem em conluio com o Lamapop: tráfego para o
blog em troca de um furo exclusivo para a TV.
A mulher na bancada, uma loura com luzes grossas
nos cabelos, que brilhavam sob a iluminação do estúdio,
estava quase quicando de empolgação, apesar da
expressão solene.
– Summer tem uma reputação angelical, mas, no fim,
ela não é assim tão casta. Seu diário está repleto de
injúrias sobre o que ela chama de “este programa
idiota”, e nenhum dos colegas de elenco é poupado.
Aviso aos pais: parte da linguagem a seguir pode ser um
pouco inapropriada. De acordo com Summer, Kat Whitley
é “irritante” e Liana Jackson é “meio piranha”.
As pessoas se voltaram para nós, querendo ver
nossas reações. Liana engoliu em seco.
– Como assim, Summer?
– Eu... – disse Summer, perplexa, segurando-se em
uma cadeira, os nós dos dedos cada vez mais brancos.
O âncora prosseguiu:
– Mas ela reserva as palavras mais cruéis para Noah
Gideon. Esperávamos que eles ficassem juntos e, por
mais que Summer tenha se apaixonado por ele em
algum momento... tampem os ouvidos, crianças, ela fala
sobre se tocar enquanto pensa nele... agora ela parece
odiar o rapaz, pois dedicou uma página inteira a listar os
seus defeitos.
– Isso não é verdade – disse Noah. – Isso é palhaçada.
Eles estão inventando! – Ele se virou para Summer. – Não
é?
– É, eu não sei do que eles estão...
– Ao que parece, Noah Gideon é egoísta, patético e,
nas palavras dela: “Ele deveria se dar conta de que nem
tudo diz respeito a ele. Ele não é o único homem do
planeta. Quero dizer, quem é que fala coisas como ‘Você
e eu vamos dominar o mundo’?”
– Sinceramente – disse a âncora –, fico surpresa que
isso venha dela.
– Como eles sabem que falei isso? – perguntou Noah,
a voz baixa e trêmula. – Você contou pras pessoas?
– Não – disse Summer. – Não contei pra ninguém.
– Mas a maior bomba é... Apesar de sempre alegar o
contrário, ela não é virgem. Embora publicamente ela
fale como “sexo” deve ser especial, de acordo com o furo
do Lamapop, cito: “Na semana passada, ela mandou ver
em um beco com um cara de quem nem quis saber o
nome.”
– Preciso dizer, Erin – falou o âncora. – Você pode estar
surpresa, mas eu, não. Tinha aquela ladainha sobre ser
um exemplo, mas dava pra saber que havia algo errado
e...
Michael fez um barulho estrangulado, desligou a TV de
repente e cercou Summer. A sala ficou em silêncio.
– Como é que você deixou isso acontecer?
Todos olhavam para Summer. Ninguém se virou para
mim, enquanto o tempo passava mais devagar e meu
coração martelava no peito. Vozes na minha cabeça
berravam para que eu dissesse alguma coisa, mas
também para que fugisse e me afastasse o máximo
possível dessa teia de eventos que eu tinha
desencadeado.
Eu não deixei o diário de Summer vazar para a
imprensa. Eu o escrevi.

••••••

Summer usou o diário uma vez e depois o jogou em uma


gaveta acumulando poeira. Liana me contou isso durante
a trilha que fizemos. Pouco depois disso, Summer e eu
tínhamos marcado de nos encontrar no trailer dela antes
do almoço. Assim que cheguei, recebi uma mensagem
dela no celular.
Chego em 15 minutos!! Foi maaaal!
Girei a maçaneta do trailer – porta destrancada, como
sempre – e entrei. Peguei uma revista na mesa dela, mas
então meus olhos pousaram na cômoda. Com o coração
acelerado, me aproximei e comecei a vasculhar as coisas
que Summer tinha descartado. Eu só queria segurar o
diário, sentir aquela capa linda, imaginar por um instante
que o Sr. Atlas me considerava digna de um presente
como aquele.
A primeira gaveta que abri estava cheia de grampos,
presilhas de borboleta e um bolo de cartas de fãs, do tipo
fofinhas e decoradas com estrelas e corações por
menininhas que a amavam. A segunda gaveta tinha mais
cartas de fãs, mas essas eram perturbadoras, escritas
em garranchos e enviadas por homens mais velhos.
Alguns afirmavam que dariam dinheiro por sua
virgindade, outros prometiam esperar por ela. Por que
Summer guardava essas cartas em vez jogá-las logo no
lixo? Ainda assim, uma vozinha na minha cabeça se
perguntava por que nenhum tarado escrevia para mim.
Empurrei as últimas cartas de lado, e lá estava:
aquele caderno verde lindo. Passei os dedos pela capa
macia, traçando o nome de Summer em alto-relevo. Eu o
abri, minha garganta se fechando. Para nossa estrela
mais brilhante. Tinha apenas uma entrada, com a data
de mais de um mês antes, e o resto das páginas estava
em branco, todas elas cheias de possibilidades.
Caramba, até nossa letra era parecida, só mais uma
coisa que me fazia querer chorar por eu ter chegado tão
perto de ser ela. Eu não tinha intenção de ler o texto,
mas aí vi meu nome. Ela tinha me chamado de irritante.
Quando Summer abriu a porta do trailer, cheia de
sorrisos e pedidos de desculpa, o caderno estava
enterrado na minha bolsa.
Comecei a usá-lo como meu próprio diário. Não com
muita frequência. Afinal, eu não podia pegá-lo sempre
que sentia vontade de escrever alguns pensamentos. Só
o usava na privacidade do meu trailer ou do meu
apartamento, pegando-o com a maior discrição possível.
Eu não queria que ninguém me visse com ele e contasse
para Summer, ainda que, provavelmente, ela não fosse
ligar muito. Talvez até tivesse me dado o diário de
presente se eu pedisse. Summer era generosa de várias
maneiras e doava de bom grado as coisas que não
queria, mantendo apenas o que tinha importância para
ela: atenção e amor, como tinha com Noah, como
recebera na boate em Nova York, quando não tivera a
decência de permitir que uma noite fosse só para mim,
quando roubei seu lugar de centro das atenções.
Eu não queria que ela me desse algo. Eu queria pegar
algo dela.
Teria devolvido se Summer comentasse que o diário
tinha sumido. Arrancaria as páginas que tinha usado e o
colocaria discretamente na gaveta dela. Mas ela nunca
reparou que ele não estava mais lá.
Naquela época, eu não tinha me dado conta de como
seria fácil alguém ler minhas anotações e achar que
tinham sido escritas por Summer. Mas a letra redonda e
graciosa era bem parecida. E eu não a mencionava no
meu texto por causa da culpa ou, talvez, porque não
parecia certo falar mal dela em seu diário. Ou talvez
porque me aprofundar muito em como era Ser A Kat teria
me lembrado de que o nome na capa não era o meu, de
que eu tinha pegado algo que ninguém pensara em me
dar. Que eu não era, no fim das contas, a estrela mais
brilhante mencionada na inscrição. Enfim, escrevi sobre
meus sentimentos, meu amor por Noah e minha
desilusão com ele também e, de algum jeito, os
pormenores de quem eu era não vieram à tona. Mas
escrever me acalmava e me dava um segredo que não
magoava ninguém.
Ou assim deveria ser. Como ele tinha ido parar na
imprensa?
Pensei na última vez que eu tinha escrito algo nele, o
dia em que perdi minha virgindade numa festa porque
precisava me sentir desejada e impulsiva. Eu estava de
ressaca, com manchas de sangue na calcinha a manhã
toda, dolorida e sensível cada vez que me mexia. E, pela
primeira vez, eu tinha quebrado minha regra. Eu
precisava escrever naquela mesma hora para processar
os sentimentos e me tranquilizar de que o que tinha feito
era certo. Enfiei o diário na bolsa e escrevi no nosso
camarim, durante minha pausa, enquanto Summer e
Liana ensaiavam uma cena na qual eu não aparecia.
Furtiva e curvada em minha cadeira, eu estava tão
perdida em pensamentos que nem ouvi a assistente de
produção me chamar para o palco. Ela veio até a porta,
me procurando, e levei um susto. Enfiei o diário de volta
na bolsa e a joguei em uma pilha de coisas nossas no
canto. Fiquei tão distraída com os preparativos para o
programa ao vivo que não pensei em pegar o diário
quando cheguei em casa.
Merda. Eu nem tinha certeza de que tinha fechado a
bolsa direito. O diário podia facilmente ter caído e ficado
exposto no chão para qualquer um que passasse por ali.
O camarim era só meu, de Summer e de Liana. Atores
secundários e membros do coro tinham o próprio
camarim, menos chiques, e nem ousavam invadir o
nosso. Os homens também ficavam longe.
Trabalhávamos para a Atlas, e ninguém queria ficar com
a reputação de mal-intencionado, alguém que, por acaso,
entrava no camarim de estrelas adolescentes na
esperança de flagrá-las trocando de roupa. (Por tudo que
a Atlas nos fez passar, pelo menos a empresa nos
protegia nesse aspecto. Outras jovens, em outros sets,
não tiveram tanta sorte.) Mas, de todo jeito, muita gente
transitava pelo nosso camarim, desde cabeleireiros e
maquiadores até figurinistas e, de vez em quando, uma
assistente de produção, enviada para pegar qualquer
coisa que a gente deixasse para trás sem querer. Talvez
alguma delas tivesse visto a capa verde com o nome de
Summer gravado e houvesse decidido ganhar uma
graninha fácil. Alguém que trabalhasse muitas horas e
ganhasse pouco, para quem um contrato
cinematográfico não mudaria em nada sua vida, seria só
mais do mesmo. Para alguém assim, o diário poderia ser
uma mina de ouro, uma oportunidade de enfim
descansar, escapar de diretores autoritários berrando
ordens, de catorze horas de trabalho por dia, de ir para
casa às duas da manhã só para estar de volta ao set
pouco depois de o sol raiar. Para fugir dessa vida,
bastava apenas arruinar uma adolescente.

••••••

Amaldiçoei minha estupidez e minha falta de cuidado.


Abri a boca para confessar. E então Michael voltou a
falar.
– O Sr. Atlas vai vetar o filme.
Ai, meu Deus, eu tinha ficado tão distraída no meio da
mágoa enorme e da vergonha, desesperadamente
tentando lembrar o que tinha escrito (quando perdi a
virgindade, tive a sensação de estar usando aquele
homem, mas, ao ouvir os âncoras falando, pareceu mais
que o homem me usou), que nem pensei nas
consequências.
– Michael... – começou Summer.
Ele se virou para ela, um olhar furioso, e praticamente
cuspiu:
– Eu devia ter vergonha de apostar minha carreira em
uma adolescente medíocre!
Summer deu um passo para trás, como se ele tivesse
dado um tapa em seu rosto.
– Eu... eu não escrevi essas coisas. Não sei como isso
aconteceu, mas não é... Eu mal usei aquele diário!
Summer se virou para mim e Liana em busca de
apoio. Liana virou o rosto. Os olhos de Summer se
fixaram nos meus.
Se eu colocasse tudo para fora naquele momento, a
ira de Michael se voltaria toda para mim. E eu era
descartável. Ele já tinha dito. Aquilo seria ruim para
Summer, claro, mas a gente não tinha como fazer o filme
sem ela, isso se o filme fosse sair. Eu, por outro lado...
Michael se livraria de mim num piscar de olhos. Eu seria
a vilã de verdade, não apenas na tela, mas também na
vida real, a garota que tentou ferrar a estrela e recebeu o
que merecia. Veria meus melhores amigos alçarem voos
mais altos sem mim, enquanto eu, afundada em
arrependimento e dívidas de cartão de crédito, diria aos
meus pais que não conseguiria dar a eles o que
prometera. Eu precisava descobrir como amenizar a
situação, como inocentar Summer sem me colocar na
fogueira. Tinha que ter um jeito, mas, na confusão do
momento, não consegui pensar, não consegui evitar que
o choque me deixasse atordoada. Uma vozinha,
condicionada depois de meses ouvindo confissões cruéis,
encontrou um caminho em meio ao caos, falando
baixinho mas firme, como o Sr. Atlas fazia. Todos aqui
estão pensando só em si mesmos, sussurrou ela. Não
seja a única tola a sacrificar tudo por outra pessoa.
Então, só balancei a cabeça, impotente, para
Summer, como se eu não tivesse ideia do que estava
acontecendo.
– Odeio ter que interromper, mas precisamos sair e
começar o programa. Tipo, agora – disse o diretor
assistente.
– Merda! – falou Michael, claramente sem clima para
uma conversinha motivacional antes do programa.
Então Harriet, entre todas as pessoas, entrou em cena
e bateu palmas com seriedade, chamando a atenção de
todo mundo.
– Escutem aqui. Isso é ruim. Mas pode não ser tão
ruim quanto achamos. Vão lá e façam o melhor programa
que puderem. Façam algo tão bom que não permita que
a Atlas cancele vocês. Summer, faça melhor do que todo
mundo, tá bem? Vamos dar um jeito nisso tudo depois.
Bendita Harriet, pensei pela primeira vez. Aquela era
a solução. Todos nós íamos fazer nossa melhor
apresentação da vida. Depois do programa, assim que eu
organizasse minha história direito, falaria com Michael.
Não, com o Sr. Atlas! Diria a ele que eu sabia que
Summer não tinha escrito aquelas coisas, que eu tinha
visto o diário dela com apenas uma página escrita e que,
depois, ele tinha desaparecido. (Eu deixaria de fora a
parte que revelava que tinha sido eu a escrever aquilo.)
Sentia pavor dele, mas o encararia por Summer. Liana e
eu poderíamos interceder publicamente a favor de
Summer, dizer que estávamos na festa com ela e que ela
nunca foi para beco nenhum com ninguém, que isso
claramente era armação de algum fã maluco ou algum
assistente pessoal invejoso para destruir uma garota
inocente. A gente ia superar essa.
– Summer, vai ficar tudo bem – falei, correndo para o
lado dela.
Porém ela olhou para algo atrás de mim, sem nem
mesmo me escutar, se livrou do meu toque e foi até
Noah, que estava com o semblante atordoado, o peito
subindo e descendo com a respiração pesada. A multidão
se juntou ao redor deles, tirando-os da minha vista, e não
consegui ouvir nada do que disseram.
– Agora – chamou o diretor assistente.
Noah disparou porta afora, atravessando a
aglomeração de gente e seguiu até sua marca inicial,
que ficava do outro lado do palco, distante de todo
mundo. De alguma forma, Summer, Liana e eu seguimos
a multidão pelo corredor que levava até nossa entrada.
Toda a adrenalina, os corpos suados, tudo dava uma
sensação quase violenta, a empolgação se
transformando em algo agourento. Na multidão, uma
mulher abriu caminho. Era a mãe de Summer. Eu não
sabia como tinha chegado aos bastidores, mas veio em
nossa direção.
– Aquela é a minha filha – berrou ela para um homem
que tentou barrá-la.
– Mãe! – gritou Summer, correndo até ela em busca de
conforto.
Lupe a abraçou por um momento. Então segurou
Summer pelos ombros e lhe deu uma bofetada. Ao ver
isso, o segurança que a deixara passar deu um passo à
frente e puxou a mulher, protegendo a estrela.
– Você partiu meu coração – disse Lupe para Summer,
enquanto o segurança a empurrava para trás. Ela ergueu
os olhos para o teto, em direção ao céu. – Sei que
também partiu o coração do seu pai.
Summer levou a mão ao rosto, desconcertada,
enquanto o segurança conduzia a mãe dela corredor
afora e a banda começava a tocar a música de abertura
no palco. Os olhos de Summer estavam vermelhos e
anuviados pela confusão.
– Ei – falei para ela, que levou um susto e olhou para
mim. Ver a dor em seu rosto foi devastador. – Faz a
melhor apresentação que você puder. A gente vai
consertar isso depois, eu prometo.
Summer assentiu para mim sem dizer nada e
pigarreou. Ela fechou os olhos, respirou fundo e
endireitou a postura. Estampando um sorriso inocente no
rosto, ela se virou e correu para a luz.
26
••••••

2018

Agora, conto a verdade para Summer.


– Eu não entreguei o diário pra imprensa. Eu peguei
de você e escrevi coisas minhas nele. – Seus olhos estão
enormes, abrindo um buraco a ferro e fogo em mim. – Fui
descuidada e levei o diário pro set, aí alguma assistente
deve ter pegado e decidido ganhar dinheiro com ele. Me
desculpa, de verdade. Eu voltei pra fazer o que puder pra
te ajudar.
Ela me dá as costas e se apoia na mesa no canto, com
os ombros tensos.
– Eu ia falar com o Sr. Atlas depois do programa pra
tentar ajeitar as coisas pra você, mas... – Ela ainda está
quieta. – Mas não importa. Eu deveria ter me
posicionado.
Algumas vezes ao longo dos anos, imaginei como
seria esse momento e achei que talvez ela riria. Mas que
mal-entendido bizarro! Só que isso nunca ia acontecer.
Fico esperando, e os sons da casa rugem em meus
ouvidos.
– Diz alguma coisa – imploro. – Grita comigo, me dá
um tapa. É por minha causa que tudo deu tão errado pra
você. É por minha causa que o mundo todo achou que
você tinha mentido sobre o lance de ser virgem e...
– Eu menti sobre ser virgem – diz ela, tão suave que,
de cara, acho que entendi errado.
– Quê?
Ela se vira para mim, um músculo pulsando no
pescoço. Exceto por isso, está mortalmente parada. Em
suas veias, não corre sangue, corre fúria.
– Senta aí – diz ela. – Você vai escutar tudo o que fez
comigo.
27
••••••

SOLILÓQUIO DA SUMMER

Quando pequena, eu era uma menininha normal que


sonhava em assinar um contrato maravilhoso para fazer
cinema. Na sequência, eu me arrumaria toda e sairia para
o jantar mais chique possível. Eu me esbaldaria em
lagostas bem vermelhas e bolo de chocolate amargo, além
de provar um pedacinho de cada aperitivo do cardápio.
Porém, quando o contrato maravilhoso para o cinema
esteve ao meu alcance e eu já não era nem menininha
nem normal, a coisa que eu mais fantasiava em fazer no
momento em que a tinta secasse era terminar com Lucas.
Acho que sempre gostei de contar histórias para mim
mesma. Eis como foi a de Lucas, a princípio: ele era o
garoto mais bonito da igreja. Eu era o anjo mais doce que
cantava no coral e que cativou o coração dele. Viveríamos
felizes para sempre. Mas aí eu transei com ele. Foi na
semana seguinte à que meu pai morreu, quando eu
precisava sentir alguma coisa além de tristeza e estava
furiosa com Deus por ter levado a pessoa que eu mais
amava. Bastou uma vez para mudar tudo. Mesmo
enquanto estávamos no meio do ato, eu já sentia o conto
de fadas se desfazer.
Conforme o programa de TV foi crescendo, Lucas foi
ficando com mais raiva. Às vezes, ele gritava comigo, dizia
que eu o levara a pecar e agora ia esquecê-lo. Como ele
podia confiar em mim quando eu mentia para todo mundo
sobre ser casta? Talvez as pessoas merecessem saber
quem eu era de verdade. Eu falava que ele não tinha nada
com que se preocupar.
Mentir é como nadar. Na primeira tentativa, você abre a
boca e acha que vai se afogar. Mas, com a prática, você faz
sem nem pensar muito. Meu namorado tinha razão para
não confiar em mim. Eu tinha me apaixonado por outra
pessoa e não podia acreditar que um dia sequer cogitara
me casar com Lucas quando existia Noah.
Começou com as flores que apareciam como num passe
de mágica no meu trailer depois que meu pai morreu. Eram
tulipas amarelas, tão vibrantes em contraste com o resto
do mundo, que agora era cinza. Muita gente tinha me
oferecido coisas, desde um diário até um ombro para
chorar, e era como se dissessem: Está vendo o que eu
estou fazendo por você? Quando você for a maior estrela
do mundo, lembre-se de que eu estava aqui quando você
era só uma estrela em ascensão! Mas as flores não tinham
bilhete.
Tentei mantê-las vivas o máximo possível, passando-as
de uma bancada para outra no meu trailer para que
pudessem receber a quantidade ideal de sol. Quando enfim
murcharam e não tinham mais salvação, quase chorei.
Mas, na vez seguinte em que voltei para o meu trailer, as
tulipas tinham sumido, substituídas por um vaso de
margaridas. Elas também eram amarelas, minha cor
favorita.
Nas duas vezes, as flores chegaram numa terça-feira.
Então, na terceira semana, dei meia-volta depois de sair do
meu trailer bem a tempo de ver Noah desaparecer lá
dentro, com um buquê de girassóis na mão. E, embora até
aquele momento a coisa toda parecesse um grande
mistério, vê-lo só confirmou algo que eu nem sabia que
sabia.
Liguei para ele naquela noite. Já tínhamos nos falado ao
telefone, mas quase sempre em alguma conferência com
você e Liana ou para discutir coisas práticas.
– Eu descobri – falei, quando Noah atendeu o telefone.
– Não sei do que está falando – disse ele, e então
aconteceu uma coisa muito estranha.
Sabe como é quando certas pessoas conseguem
imaginar algo com muitos detalhes? Tipo... você fala para
pensarem em uma maçã e algumas delas conseguem ver
até as gotinhas de água brilhando na casca? Eu nunca fui
assim – sempre formei só a ideia da maçã em si, nunca um
quadro completo de verdade. Mas, quando Noah falou, só
de ouvir sua voz, consegui ver seu rosto como se ele
estivesse bem ali, do meu lado.
– Obrigada. Os girassóis são meus favoritos até agora.
Sua voz transbordou de entusiasmo.
– São lindos, não são? Posso te contar a melhor maneira
de mantê-los vivos mais tempo, mas só se você quiser,
porque afinal você não pediu pra...
– Me conta – pedi, e só fomos desligar uma hora e meia
depois.
Na noite em que voltamos da nossa viagem a Nova York,
aquela em que ele me dissera no topo da montanha que eu
era a garota mais incrível que ele já tinha conhecido, liguei
para ele outra vez. Quando ele atendeu, percebi que eu
não tinha uma desculpa para ligar. Ele falou meu nome e
eu entrei em pânico, disparando:
– Eu estava pensando nos pássaros!
– As rolas-carpideiras? O que tem elas?
– Bom. – Fiz uma pausa. – O que você acha que
aconteceria com a feliz se um dia ela passasse por uma
coisa muito ruim?
– Que tipo de coisa?
– Tipo... perder algo que fosse importante pra ela. Acha
que isso mudaria sua essência? Será que faria com que ela
perdesse a parte bonita, esperançosa e feliz que tem
dentro de si?
Ele ficou pensando. Retorci o cabo do telefone no dedo,
deitada de costas na minha cama e imaginando-o deitado
na dele.
– Não – respondeu ele. – Acho que ela poderia ver o
mundo com mais clareza sem perder essa parte valiosa de
si mesma.
– Você acha?
– Acho. Talvez fosse difícil por um tempo, mas aquela
parte bonita dela seria forte o bastante para voltar.
Será que o edredom dele era macio? Qual seria o cheiro
dos lençóis dele? A mãe de Lucas lavava os lençóis dele a
cada duas semanas. Aposto que Noah lavava os próprios
lençóis, talvez a cada dois meses. Ele era homem, mas não
era desleixado, não era do tipo que passaria o ano
dormindo em lençóis cheios de farelo. Se tivesse alguém
dormindo com ele, Noah lavaria os lençóis com mais
frequência, por ser atencioso. Não gostei de imaginar outra
pessoa dormindo ao lado dele.
– Acho que você tem razão – falei. – É como... como se
tivesse um tempo pra ser triste, mas também um tempo
pra ser estupidamente otimista, apesar dos pesares.
– Estupidamente otimista, apesar dos pesares – repetiu
ele. – É, é isso.
Começamos a conversar quase todas as noites, o
telefone grudado na orelha, ele na linha esperando até que
eu adormecesse. Ele sempre esperava, nunca dormia
primeiro. Será que ele me esperaria de outras formas
também? Às vezes, a gente falava mais sobre os
personagens dos pássaros, inventava uma jornada para
eles, mas Noah também me ouvia quando eu falava do
meu pai. Ele nem mesmo tentou fingir que entendia como
era porque seu cachorro ou seu avô tinham morrido, nem
falou nada sobre serem os planos de Deus. Ele ouvia e me
contava do que ele se lembrava do meu pai: que ele era
engraçado, que tinha uma luz e que eu tinha o mesmo tipo
de luz, então era como se meu pai continuasse por aqui.
Todos nos viam como astros e eram ofuscados por nosso
brilho. Mas nós dois brilhávamos do mesmo jeito, e isso, de
alguma forma, se anulava e permitia que nos
enxergássemos como éramos de verdade.
Você já se apaixonou assim, de um jeito que parece...
sagrado? Às vezes, quando ele ia para algum lugar de carro
sem mim, eu ficava louca de ansiedade. E se ele morresse
em um acidente de carro e eu não estivesse ao lado dele?
Mas nada podia acontecer até que a gente assinasse o
contrato do filme. Porque, se Lucas descobrisse, poderia
contar para a imprensa que eu não era virgem, e Michael
tinha avisado que um escândalo poderia botar tudo por
água abaixo.
Quando eu transasse com Noah, sabia que seria do jeito
que tinha que ser. Eu não achava que conseguiria esperar
muito, mas talvez não tivesse problema. O sexo pode ser
uma linda expressão de amor, mesmo que a pessoa não
seja casada. Eu argumentava comigo mesma: nossos
corpos foram feitos por Deus. Então, ao nos adorarmos,
estaríamos também adorando Deus! Fazia todo o sentido.
Como eu não tinha percebido isso antes?
Além do mais, a gente se casaria um dia. Os paparazzi
tentariam entrar de qualquer jeito no casamento. A People
e a Us Weekly iam nos oferecer centenas de milhares de
dólares por fotos exclusivas, mas a gente não ia querer,
porque não estávamos fazendo aquilo por dinheiro nem
fama. Mas, se a gente negasse e fechasse o portão na cara
deles, os sujeitos mandariam um helicóptero sobrevoar a
cerimônia e tirariam as fotos que quisessem lá de cima.
Talvez a gente só devesse fugir juntos, deixar o programa e
todo mundo para trás.
Teve uma noite em que quase contei para Noah o
verdadeiro motivo de não poder terminar com Lucas.
Tínhamos passado o dia todo nos beijando no ensaio, e eu
estava louca de desejo por ele. Depois, lá fora, ele me
puxou de lado no escuro.
– Não consigo... Desculpa, mas não consigo parar de
pensar em você. E sei que você também sente isso. Fica
comigo.
Às vezes, eu tinha a sensação de que estávamos tão
conectados que ele conseguia ler meus pensamentos,
então não fiquei surpresa quando, assim que pensei em
sexo, ele começou a falar disso também.
– Acho legal você estar esperando. – Havia hesitação em
sua voz, até mesmo desespero. – Eu te admiro por isso.
Tipo... talvez goste de você ainda mais.
Embora doesse, fazia sentido. Eu tinha aprendido a lição
desde pequena: meninos não gostam de meninas
defloradas. E Noah, mesmo sendo o melhor dos meninos,
ainda era um menino. Talvez eu nunca tivesse que contar
para ele. Eu era uma atriz muito boa. Quando finalmente
acontecesse, eu poderia fingir que era minha primeira vez.
De certa forma, seria. A primeira vez que escolheria fazer
por amor, não por tristeza.
Então menti para Noah também. Era que nem nadar.

••••••

Nos bastidores, antes do programa ao vivo, todos estavam


respirando bem fundo para lidar com a ansiedade, mas eu
não precisava. Até que Michael mandou o assistente
aumentar a TV e foi tudo pelos ares.
Quando os repórteres mencionaram o diário, só
consegui lembrar que eu tinha escrito algo sobre o meu pai
tentar me deixar mais branca. Ai, não. Será que isso ia
manchar a memória dele? Eu me sentia bem confusa
sempre que pensava nisso, mas sabia que ele acreditava
de verdade que tudo o que tinha feito era só para facilitar
minha carreira. Eu já estava pensando em ligar para o meu
agente e escrever um comunicado, aí os repórteres
disseram que eu tinha chamado Liana de piranha.
Talvez isso já tivesse passado pela minha cabeça uma
ou duas vezes, mas, pensando bem, tinha sido por inveja.
Ela podia sair com quem quisesse sem causar um
problema nacional. Mas eu tinha certeza de que nunca
tinha escrito aquilo. Eu só tinha usado o diário uma vez. E
os repórteres continuavam a falar, e eu fui ficando com a
sensação de estar me... desprendendo do mundo.
Porque muitos pensamentos no tal diário pareciam
mesmo com os meus. Eu também fantasiava com o Noah.
E tinha ficado com raiva depois que ele arrumou aquela
briga idiota com Lucas na frente de todo mundo. A briga
fez Lucas surtar.
– O que ele quis dizer com “Tem certeza?”? – perguntou
Lucas naquela noite, dirigindo a toda velocidade para casa.
(Será que Noah alguma vez ficou com medo de eu estar no
carro sem ele e morrer em um acidente e ele ter que viver
sem mim?) – Se eu tenho certeza que tenho você?
– Por favor, vai mais devagar – pedi. – Por favor.
De repente, ele deu uma guinada para o acostamento
da estrada às escuras, desligou o carro e deu um soco no
volante.
– Eu não tenho certeza, Sum!
– Não – falei, a pancada seca do punho dele fazendo eu
me encolher. Era tipo um conto de fadas que eu nunca
tinha lido, um conto de fadas às avessas, onde o belo
príncipe perde a pele e se transforma em uma fera. – O
Noah só... tipo... tem uma obsessão bizarra por mim. E não
quero que ele se chateie antes do programa ao vivo,
porque pode arruinar tudo pra todos nós.
– Talvez seja bom que arruíne. Não gosto do que esse
programa está fazendo com você.
Alarmes dispararam na minha cabeça. Tentei falar com
ele com o máximo de doçura possível, como a garotinha
que ele tinha conhecido no coro da igreja.
– Mas não sou só eu. Tanta gente depende disso. Kat,
Liana, todo mundo que perderia o emprego. Preciso fazer
isso por eles.
Mesmo assim, ele continuou alterado.
– Você é uma atriz muito boa. Como posso confiar em
você? Tem ideia de como é ruim ver todas as revistas do
país falando sobre sua namorada beijar outro cara?
– Por favor, confie nisso – falei, e o beijei.
Ele ficou imóvel por um instante. Então gemeu e
suspirou na minha boca, me beijando, com a língua azeda.
Ele soltou seu cinto de segurança e depois soltou o meu.
Deixei que ele me levasse para o banco de trás, me
agarrasse e entrasse em mim. Encarei isso como tomar
uma injeção: dói um pouco a curto prazo para deixar a vida
melhor no futuro. Eu atuei para ele, imaginando o tempo
todo que fosse o Noah.
Ali, nos bastidores, vendo os âncoras na TV, cravei as
unhas nas palmas das mãos, como tinha feito enquanto
Lucas se mexia em cima de mim. Havia detalhes no diário
que eu não tinha contado a ninguém. Será que eu tinha
escrito durante o sono, como se estivesse sob um feitiço e
levantasse da cama para extravasar minhas meias-
verdades, meus semipesadelos? Não, alguém estava
tentando me sabotar. Ficaram me observando para
escrever uma versão da minha vida e vender para a
imprensa, e eu não fazia ideia do porquê.
Ser famoso tem esse lado terrível, não tem? Você ocupa
a mente das pessoas mesmo quando não quer. Você nunca
vai conhecer todas as pessoas que estão pensando em
você, querendo te possuir ou te arruinar.
Mal percebi os olhares de todos, os sussurros
escandalizados, só fui abrindo caminho pela multidão até
chegar ao lado de Noah, minha mão buscando a dele, meu
coração disparado.
– Por favor, me diz que nada disso é verdade – disse ele,
seus olhos azuis assustados e examinando os meus.
– Eu não escrevi essas coisas, eu juro – falei, enquanto a
multidão nos cercava e o diretor-assistente mandava
começarmos o programa.
– Mas elas são verdade?
– Não! – Apertei a mão dele com força. – Eu não te
odeio. – Ele ainda me encarava, o rosto pálido e magoado,
querendo acreditar no que eu dizia. – Eu... eu te amo. – Eu
vinha me segurando, precisava esperar até estar
totalmente livre para contar a ele. Eu gostei do som
daquilo, então falei outra vez: – Eu te amo.
– Você me ama? – perguntou ele, a esperança espiando
por trás das dúvidas.
– Essa é a verdade. Acho que você é o amor da minha
vida.
– Agora! – gritou o diretor-assistente.
– Vamos conversar sobre isso depois do programa. Mas,
por favor, confia em mim.
– Eu também te amo – disse Noah. – Eu te amo muito.
Ele me deu um último olhar, então correu para sua
posição.
Fui flutuando até meu lado do palco, quase em um
estado de fuga. Ninguém por quem passei parecia
surpreso. Era como se tivessem recebido a confirmação de
algo de que sempre tinham desconfiado. O tapa da minha
mãe disparou uma buzina na minha cabeça. Precisei
colocá-la em um compartimento pequenininho dentro de
mim para abri-lo depois que o programa terminasse.
Naquele momento, as coisas estavam acontecendo com a
Summer do Diário, não com a Summer da Vida Real.
A Summer da Vida Real não tinha perdido Noah. Então
ela ia ficar bem.
Eu já tinha sido impulsiva antes, claro – com coisas
inofensivas, como decidir que seria divertido pintar seu
apartamento todo, e coisas estúpidas, como na noite em
que fomos à boate de drag queens e fiquei tão feliz por não
ser o centro das atenções ao menos uma vez que passei da
conta e bebi demais. Mas, ao longo das duas temporadas
na TV, eu tinha aprendido a manter meus verdadeiros
sentimentos à margem e sorrir para as câmeras. Então ia
ficar tudo bem. Minha voz saiu limpa e forte, os passos de
dança fluíram com facilidade. O público não sabia o que
tinha acontecido, ainda não.
Saí correndo do palco por alguns minutos na parte de
um solo de Noah. A maquiadora retocou minha
maquiagem, evitando me olhar e saindo de perto assim
que terminou. Reparei no Sr. Atlas nos bastidores, me
encarando. Ele devia estar sabendo de tudo, alguém devia
ter corrido ao camarote VIP para sussurrar a terrível notícia
no ouvido dele.
Ele tinha recebido Noah e a mim em jantares de família
na mansão dele, junto com a esposa e os filhos, algumas
vezes. Não contei para você e Liana porque eu sabia que
ficariam com ciúme. A inveja de vocês me fazia sentir tanta
culpa, era tão óbvia. Mas ele sempre falava sobre grandes
planos para o futuro da franquia e quanto estava orgulhoso
de nós, quase como se tentasse ser um pai substituto. Meu
próprio pai teria confiado em mim nessa história toda,
então talvez o Sr. Atlas também confiasse.
Corri até ele.
– Sr. Atlas, não sei o que o senhor escutou, mas não
escrevi aquelas coisas, eu juro. Alguém roubou o diário de
mim depois que o usei pela primeira vez. Estão inventando
isso tudo.
Ele cerrou o maxilar. Estava na penumbra, mas um
holofote desenhou um arco pelo palco, e a luz nos banhou
por alguns instantes. Eu me encolhi diante da expressão
em seu rosto normalmente plácido. Aversão. A intensidade
dela me deixou apavorada. Ele desviou o olhar. Claro,
porque mal podia olhar para mim. Porque não acreditava
em mim. Porque ninguém acreditava, a não ser Noah.
– Apenas vá lá e veja se consegue permanecer vestida –
disse ele, e se afastou.
Corri de volta para fazer meu solo. Faltava pouco agora
para que tudo acabasse. O solo terminou, e Noah voltou ao
palco, o programa se direcionando para o beijo e a última
música. Só que tinha alguma coisa estranha. Ele não me
olhava nos olhos.
Mas minha falha fatal é que eu sempre me volto para a
esperança. Não importa que o mundo sempre ria de mim,
não importa que eu sempre estrague tudo. Cada vez que
vou para a reabilitação, acredito que vou me ajustar. Cada
vez que cheiro uma carreira de cocaína, acredito que vai
ser só uma. Noah tinha me levado de volta à esperança
depois que meu pai morreu, então, ali no palco, ainda que
ele olhasse para um ponto acima do meu ombro em vez de
para mim, acreditei que a gente ia ficar bem.
Na televisão ao vivo, estupidamente otimista, apesar
dos pesares, dei um passo à frente para beijá-lo. E ele
desviou.
Pousei com um baque em seu peito. E, no momento
antes de me separar dele e tentar seguir em frente, vários
pensamentos se chocaram na minha cabeça.
Primeiro: confusão. Eu não sabia o que tinha mudado, só
que ele tinha escolhido a verdade do diário em vez da
minha. Bem, a versão do diário era tão diferente? Eu tinha
manipulado pessoas, deixando-as no escuro para que eu
pudesse manter o holofote para mim. Eu tinha quebrado
minha promessa para Deus e falhado em permanecer casta
para Noah. Agora, ele sentia tanta repulsa que não
conseguia nem fingir que queria me tocar.
Depois: todas as outras mágoas que eu tinha enfiado
em uma caixinha na minha mente foram libertadas. Você e
Liana não terem nem se importado em me defender;
Michael confirmando que, sem meu apelo doce e virginal,
eu não era mais talentosa do que qualquer garota que ele
pegasse no coro; o Sr. Atlas deixando claro seu desgosto. E
minha mãe. Depois que eu tinha transado aquela primeira
vez com Lucas, eu tinha corrido até o porão e lavado meus
lençóis na configuração mais quente possível enquanto
minha mãe estava fora. Eu me ajoelhei e rezei para que ela
não voltasse para casa antes do fim do ciclo da máquina.
Ela havia me avisado que eu estava seguindo um caminho
perigoso, chorou por causa daquele artigo da Vanity Fair
com a minha foto ajeitando a saia, e eu não tinha escutado.
Ela nunca iria me perdoar, não é?
Por fim: raiva. Eu vinha carregando o programa nos
ombros, namorando um cara que eu odiava por causa do
contrato do filme, tentando andar na linha com todo o
cuidado. Em outro mundo, talvez eu estivesse na
faculdade, indo a aulas que me interessavam e tentando
entrar pra uma irmandade, mas em vez disso eu vinha me
dobrando mais e mais. Uma pessoa normal tinha certa
responsabilidade com a família, os amigos e os chefes e já
podia se sentir bem pressionada com isso. Mas eu devia
algo a milhões de pessoas. Mulheres que eu nunca tinha
visto me diziam que suas filhinhas estavam no hospital e
que as pequenas viviam por mim, sua heroína, e era
melhor que eu não as decepcionasse. Você e os executivos
me disseram que eu não podia dar um tempo depois que
meu pai morreu, porque o programa poderia ser cancelado
e todos perderiam o emprego. Eu me empenhava muito
para ser a garota perfeita que todo mundo queria que eu
fosse, de algum jeito: exemplo para pré-adolescentes,
objeto de desejo para homens, amiga prudente para
garotas da minha idade, e mais, e mais, e mais, vinte eus
diferentes em uma só.
Mas quantas pessoas desses milhões se importavam de
verdade com o meu bem-estar? Quando foi preciso,
ninguém saiu em minha defesa. Ninguém deu a mínima
para mim além do que eu podia fazer pelos outros.
Liana surgiu no palco, você logo atrás dela, a música de
fundo para o número final começando a tocar.
– Gente! Não precisamos acabar com a banda no fim
das contas! Abriu um espaço inesperado no Festival de
Música de Roma e querem a gente lá.
– É – disse você, revirando os olhos do jeito de sempre
de sua personagem quando fazia algo gentil contra a sua
vontade. Mas você falou com um ardor esquisito, quase
hiperativo. – Meu pai mexeu uns pauzinhos e conversou
com os organizadores do show. Mas vocês têm que me
deixar voltar. É parte do acordo.
– A gente não ia querer que fosse de outro jeito – falou
Noah, forçando as palavras a saírem.
– E eu fico com o maior solo – disse você.
– Bom – falei, atordoada, enquanto a música
aumentava. – A gente vê o que pode fazer.
Noah começou a cantar o primeiro verso da música:
– Quando estamos juntos, nada pode nos deter.
Em seguida, era eu, minha voz um fiapo do que
costumava ser:
– Não existe eu, somos nós: eu, você, você e você.
Então Liana:
– Porque, com amigos, a vida é mais leve.
E você:
– Pode até tentar, mas não vai dar pra negar.
Todos nós juntos:
– E somos amigos pro resto da vida.
E aí entrou o coro, os dançarinos secundários encheram
o palco, e Noah não esticou a mão para pegar a minha, o
que ele faria nessa parte da coreografia.
“Veja se consegue permanecer vestida”, tinha dito o Sr.
Atlas.
Bom, ele que se danasse. Que se danasse todo mundo.
Se estavam todos tão preparados para que eu fosse uma
vagabunda, então eu ia dar a eles uma vagabunda. Toda
essa preocupação com a minha castidade camuflava um
desejo: as pessoas queriam que eu estragasse tudo para
poderem dizer que sempre souberam que eu faria isso. Eu
tinha dado a elas exatamente o que queriam por anos,
então daria isso também.
Eu sabia nossos passos de dança normais e animados
de cor e salteado, mas eles eram feitos para uma versão
de mim que tinha morrido. Olhei para meu corpo, o corpo
que tinha causado tanto problema, e então comecei a
passar as mãos nele, de cima até embaixo. Balancei o
quadril como se estivesse em uma boate, a garota mais
safada da pista de dança. Já que Noah não chegava perto
de mim, eu me virei para você. Eu me esfreguei contra a
lateral do seu corpo, uma punição por não fazer nada ao
ver Michael e minha mãe acabarem comigo. Você ficou
paralisada, assim como alguns membros do coro.
Cantei em um grunhido ofegante. Liana cantou ainda
mais alto para tentar me encobrir, então me virei e
comecei a dançar com ela também. Ela me afastou por
reflexo, tropecei e, por pouco, não caí no chão. Por um
instante, isso quase enfiou algum juízo na minha cabeça.
Estreitei os olhos para a plateia: os fãs murmuravam,
confusos. Mas então vi Noah se virar como se fosse sair do
palco. Ele simplesmente ia embora, deixaria tudo para trás.
Então eu me endireitei e dancei sob o foco de luz para o
grand finale.
Não fazia sentido o mundo ter tanto interesse no meu
corpo e no que eu fazia com ele. Era só um corpo – claro,
era um corpo bonito, mas, ainda assim, só mais um no
meio de seis bilhões de outros. Talvez, se as pessoas
pudessem vê-lo, o mistério acabaria e elas me deixariam
em paz. Comecei a desabotoar meu vestido. Eu ia tirar a
roupa toda, mostrar tudo a todo mundo bem ali, sob a luz
branca e dura.
Só que as câmeras e Liana não deixaram. O câmera
cortou quando eu mal tinha desabotoado o vestido. Liana
me derrubou no chão logo depois que deixei um seio à
mostra, então as pré-adolescentes horrorizadas e seus pais
ávidos na plateia só conseguiram um vislumbre rápido
dele. Bati com a cabeça no chão do palco e mordi a
bochecha por dentro. Minha boca se encheu com o sabor
amargo do sangue enquanto alguém nos bastidores jogava
um cobertor em cima de mim para esconder meu corpo,
como se faz com cadáveres.
O arrependimento veio logo em seguida, depois que fui
arrastada para fora do placo e entrei em uma longa reunião
com meu agente, Michael e o Sr. Atlas, onde eles deixaram
claro que era o fim de Os sonhadores. Um assistente nos
interrompeu para dizer que já havia mais homens alegando
ter transado comigo, caras com quem eu tinha falado uma
vez em uma festa ou que nunca tinha sequer visto na vida.
Depois da minha atuação, ninguém ia acreditar se eu
negasse. Então, para que tentar?
Ainda assim, havia uma pessoa com quem eu queria me
acertar. Saí correndo no escuro até o trailer de Noah, sem
fôlego. Eu ia me desculpar, contar qualquer coisa que ele
quisesse saber, fazer qualquer coisa para dar um jeito nas
coisas entre nós. Fui desenrolando a história enquanto
corria: ele me perdoaria. A gente fugiria juntos e viveria no
meio do mato, onde ninguém iria nos incomodar mais.
A uns cinco metros de sua porta, quase colidi com Liana
no escuro.
– Mas que droga – disse ela. – Summer? O que está
fazendo?
– Sai da frente, preciso falar com o Noah.
Ela agarrou meu braço e bloqueou meu caminho.
– Qual é o seu problema? Por que você foi fazer...
– Me larga, preciso falar com ele. – Meus olhos se
encheram de lágrimas. – Porque ele é o amor da minha
vida e...
Então o rosto dela se transformou.
– Ah, não. – Ela tentou me abraçar, mas me
desvencilhei. – Eu... eu não entraria ali se fosse você. Ele
está com uma pessoa.
Eu não tinha percebido que era possível me sentir ainda
pior do que já me sentia.
– Quê?
– Uma garota do coro – disse ela, baixinho. – Acho que
você não vai querer ver isso. Mas, Summer...
Ninguém dava a mínima se Noah transasse naquela
noite. Ninguém teria dado a mínima se Noah fosse parar
num beco com uma garota desconhecida, porque ele
sempre tinha sido livre para fazer o que quisesse. Para ele,
estava tudo certo me julgar, mas, se a gente vivesse num
mundo onde Noah recebesse cartas constantes de
mulheres de meia-idade implorando por sua virgindade,
onde repórteres bizarras sempre perguntassem sobre sua
castidade, destruíssem a convicção dele de que pertencia a
si mesmo, será que ele teria se saído melhor? Eu duvidava
muito, ainda que o amasse. Havia agora um abismo
intransponível entre nós.
Não esperei para ouvir o que mais Liana tinha a dizer.
Eu me virei e saí correndo em direção a um futuro de
ridicularização e arrependimento, em direção a novos
empresários, que extrairiam a pior versão de uma jovem de
18 anos assustada e traumatizada, em direção a
substâncias que me ajudariam a esquecer o vislumbre de
conto de fadas que eu quase tinha alcançado. Corri para o
mais longe possível de Os sonhadores.
TRANSCRIÇÃO: HORA DA IDIOTICE COM HERBIE, 2005

Herbie: Estou aqui com Noah Gideon, astro de


Os sonhadores. Digo: ex-astro de Os
sonhadores. Sei que você está aqui para falar
do seu novo single, mas, cara, aquele
programa ao vivo foi épico.

Noah: É, foi… uma coisa e tanto.

Herbie: A Summer Wright surtou e começou a


tirar a roupa como se trabalhasse num clube de
strip-tease, não na Atlas. O que passou pela
sua cabeça?

Noah: Eu, hum, acho que apaguei nessa hora.

Herbie: Aposto que você não é nem de longe o


primeiro a apagar ao ver os peitos da Summer
Wright.

Noah: Haha, talvez.

Herbie: Por favor, diz que a Summer deixou você


mandar ver antes de ela perder as estribeiras.

Noah: Foi mal, Herbie, não sou do tipo que sai


contando tudo.

Herbie: Ah, olha só esse sorrisinho convencido.


Você mandou ver mesmo. Ouvintes, vocês
escutaram isso? Essa é a voz de um homem
que transou com a Summer Wright. Conta pra
gente, ela era tão louca na cama quanto é na
vida real?

Noah: [Rindo] Vamos falar do meu single antes


que eu arranje um problema.
28
••••••

2018

Fiquei de coração partido por causa de Summer um


milhão de vezes nos últimos 13 anos. Mas agora, quando
ela termina de falar, ele se despedaça totalmente, talvez
até de um jeito irreparável.
– Nunca contei isso tudo pra ninguém – diz Summer. –
Ninguém entenderia.
Estico o braço para tentar alcançá-la, mas ela recua e
aponta um dedo com fúria para mim.
– Não fica achando que isso significa que eu te
perdoo.
– Eu não acho – respondo, absurdamente triste por
tudo. – Sei que você provavelmente nunca vai conseguir
me perdoar. Aceito qualquer punição que você queira me
dar. Mas, mais do que isso, eu quero te ajudar com o
motivo que fez você voltar. Vou te apoiar do jeito que for
para que você se saia bem no programa.
Ela desvia os olhos dos meus, e sou tomada pela
desconfiança. Penso em como Summer olha para Noah
nos ensaios, de um jeito penetrante e ávido. Como se
estivesse sempre ciente de onde ele está.
– Espera aí. Isso tudo é por redenção? Ou você
também voltou por causa do Noah?
– Eu também voltei por causa do Noah – responde ela.
Por um instante, vejo acontecer: os dois se libertando das
camadas de ressentimento que nutriram na última
década e voltando um para o outro como os jovens
maravilhosos que foram um dia. Mas, em um tom de voz
duro, Summer completa: – Pra acabar com a vida dele
como ele acabou com a minha.
Solto uma risada, mas então percebo que ela está
falando sério.
– Porque ele se afastou de você? – indago.
Claro, isso foi horrível e, claro, ele tem sido um
escroto desde então. Mas que se dane! Na última
semana, comecei a ter certa esperança de que ele vinha
se empenhando para dar um jeito nas coisas, assim
como eu. É como se ele fosse o time de futebol horroroso
da minha cidade natal: sempre me decepciona, mas
existe um senso de lealdade intrínseco e estranho que
não me deixa parar de torcer por ele.
Ela me encara com incredulidade.
– Você nunca assistiu a Silvestres? – pergunta
Summer.
– O filme que ele escreveu? Nunca vi filme nenhum
dele. Tentei ficar o mais distante possível de todos vocês.
– Ah – diz ela, e dá uma risada vazia e impotente,
daquelas que facilmente viram lágrimas. Ela se
recompõe, seca os olhos e começa a seguir para a sala
de estar. – Bom, vem.
A sala de estar pode ser um pouco antiquada, mas a
televisão de Lupe é bem atual.
– Minha mãe gosta de ver os programas dela – diz
Summer ao ligar a TV, rolar a lista de filmes disponíveis
pela tela, escolher Silvestres e dar o play. – Senta aí.
– Já é quase meia-noite. A gente não deveria ir...
– Você vai assistir.
Surge uma floresta na tela em um estilo de animação
antigo. A cena ganha vida com todas as criaturas
silvestres que vi nos anúncios que passaram na TV:
alguns esquilos engraçadinhos e falantes, um rebanho de
cervos apáticos, um urso grandalhão mas bondoso. Um
bando de pássaros voa por ali. As criaturas vivem em paz
e harmonia enquanto se preparam para a chegada do
inverno. Não entendo por que Summer parece chateada,
por que está estreitando os olhos para o filme.
Então um pássaro com olhos enormes e brilhantes
chega voando para se juntar ao resto do bando.
– Que bela manhã! – trina ela. – Vamos aproveitar o
dia!
– Puta merda – digo. – É você.
Ela assente, melancólica.
Seguimos assistindo, e um pássaro menino (dublado
por Noah) voa para encontrar a menina e tenta explicar
que eles eram rolas-carpideiras, não carpinteiras. Ela não
dá ouvidos e continua animada e tagarela, uma luz
brilhante em meio ao bando taciturno, não importava
quantas vezes o menino exasperado tentasse explicar
aquilo para ela.
– Por que somos feitas para lamentar se a vida é tão
empolgante e bela? – diz ela, animada, descrevendo
círculos no ar, fazendo um arco até o céu e dando um
rasante rente ao chão, o rosto cheio de alegria. Um
pássaro macho mais velho, a figura paterna do bando,
balança a cabeça com indulgência e manda o menino
incomodado deixá-la pra lá. Ela vai acabar aprendendo.
Então, um dia, uma tragédia se abate sobre o lar dos
silvestres. Uma tempestade atinge a aldeia pacífica das
criaturas, destruindo as provisões que tinham guardado
para o inverno longo e gelado. Todos os grupos de
animais têm subtramas interligadas, mas os pássaros são
os principais. O bando se abriga do vento terrível, então
o pássaro menino percebe que a menina não está ali. Ela
ficou fora tempo demais enquanto o vento mudava,
acreditando que seria uma grande aventura. Quando o
pássaro paternal vai em seu resgate, é atingido por um
galho de árvore bem diante dos olhos da menina.
E, naquele momento, ela muda. Ela finalmente
“entende” o que o menino explicara, que o destino dela
era lamentar. O vento terrível a carrega para longe de
casa, e ela sai em uma jornada de perigos e tristezas
depois que abrem seus olhos para o mundo. Nesse meio-
tempo, na floresta, o pássaro menino percebe que a
única maneira de reconstruir tudo é ter esperança, como
a menina tinha. Ele voa para encontrá-la e levá-la para
casa. Seguem-se várias desventuras, mas, no fim, eles se
reencontram – ele ajuda a salvá-la, embora ela também
tenha se salvado, e os dois voltam para a floresta com a
compreensão de que lamentar faz parte da vida, mas
não é só isso que existe. Há tempo para se lamentar,
mas também para se alegrar, e um tempo para ser
estupidamente otimista, apesar dos pesares. (Eu já tinha
ouvido essa frase antes, “estupidamente otimista, apesar
dos pesares”, não tinha? Ah, sim, já tinha visto isso
tatuado no braço das pessoas ou transformado em uma
arte bem bonita no Instagram.) No fim, é o novo
amanhecer de uma primavera e os pássaros voam para o
céu, sobrevoando as árvores que florescem, e estou aos
prantos no sofá cheio de calombos da mãe de Summer.
Summer desliga a TV no meio dos créditos, cortando a
linda trilha sonora original do filme, cantada por Noah
(um hino meio folk, meio bluegrass), e a sala fica em
silêncio, a não ser pelo meu choro. Sem dizer nada, ela
vai até a cozinha e volta com um copo de água em cada
mão. Pego um deles e bebo direto, depois seco a boca.
– Ele deu um final feliz a vocês – observo.
O filme é uma confirmação de que Noah amava
mesmo Summer, não só com a luxúria de um rapaz, mas
com uma compreensão real de quem ela era.
– Mas não me deu crédito. – A voz dela está grave e
falha, por raiva ou cansaço, ou as duas coisas. São quase
duas da manhã, e a única luz no cômodo vem de um
relógio digital na lareira. – A gente bolou essa história
toda dos pássaros juntos, quando ficava até tarde no
telefone. E aquela fala, “estupidamente otimista”, que
virou a referência do filme, fui eu que falei pra ele. Sabe
quantas entrevistas o Noah deu pra falar sobre “como ele
tinha tido essa ideia genial”? E a resposta sempre era:
“Ah, minha família costumava fazer trilha. Quando eu era
criança, queria ser guarda-florestal!” Não teve uma única
vez que ele mencionasse meu nome ou o fato de que,
uma noite no telefone, eu disse: “Ei, talvez um dia a
gente possa transformar isso em filme.” Sabe onde eu
estava quando ele foi à cerimônia do Oscar? Na clínica de
reabilitação. Ele nunca me ligou pra pedir permissão ou
pra saber se eu queria dublar a menina, nem mesmo só
pra me avisar. Eu tive que ver isso durante nossa
“maratona de filmes em comunidade”. Passavam filmes
indicados a prêmios e que não envolvessem bebidas ou
drogas, porque a gente não podia ir ao cinema por conta
própria. – Summer mexe no cabelo, e fios quebradiços
saem em seus dedos. Ela os joga no tapete. – É por
causa desse filme que todo mundo ama o Noah. E a ideia
foi minha.
Pego a mão dela. Sua palma está pegajosa e rígida.
Ela permite que eu a segure, mas não segura a minha.
– Eu sinto tanto – digo a ela. – Por isso e por tudo que
eu fiz. Eu faria qualquer coisa pra voltar no tempo e
mudar tudo.
– Mas não dá. Nenhum de nós pode voltar no tempo,
não tem como.
Ela descansa a cabeça na almofada a seu lado no
sofá, o rosto virado para o teto e estampando derrota e
exaustão.
Eu me recosto também, tentando pensar no que dizer,
mas minha cabeça está pesada, meu raciocínio está
lento por causa do cansaço. Não sei quando comecei a
pegar no sono, mas, em algum momento, percebi que
Summer tinha entrelaçado as pernas nas minhas no meio
do sofá. Eu me dou conta disso só por um instante, e
talvez ela não tenha percebido nada, mas logo, logo nós
duas nos entregamos ao sono.
29
••••••

2018

Na manhã seguinte, acordamos com Liana de pé ao


nosso lado, gritando:
– Ninguém pensou em colocar um despertador pra
tocar?
Summer e eu erguemos a cabeça, sonolentas, os
cabelos desgrenhados, resquícios de baba no queixo e as
roupas amarrotadas do dia anterior. Ai, meu pescoço.
Estou velha demais para dormir num sofá. Vou passar
dias sem mexer a cabeça direito.
Summer solta um grunhido, e eu olho para o relógio
digital na lareira. São 10:02. O ensaio começou às nove e
meia. E estamos nos arredores de Bakersfield. Eu me
levanto num pulo.
– Temos que sair neste minuto! – avisa Liana.
– Droga – diz Summer, ao registrar a hora. – Eu não
faço nada direito.
Sua aversão por si mesma é como um suéter velho e
familiar que ela veste com facilidade, um que ela passou
muito tempo usando nos últimos anos.
– Ei, não – repreendo-a. – Estamos atrasadas pro
ensaio um dia. Não é o fim do mundo.
– Quando sou eu, sempre é o fim do mundo – rebate
ela, tão mordaz que Liana ergue as sobrancelhas.
– O que foi que eu perdi ontem à noite? – pergunta
ela.
– Nada – respondemos em uníssono, então
começamos a jogar água no rosto e procurar café nos
armários da mãe de Summer.
– Sua mãe tem Gatorade? – pergunta Liana, com um
gemido.
– Por que minha mãe teria Gatorade?
No carro, olho de relance para Summer, que morde o
lábio, arqueada para a frente no banco, segurando o
volante como se fosse o pescoço de um inimigo. Ela está
correndo, o rádio nas alturas, um rap sem criatividade
nenhuma saindo dos alto-falantes.
Liana olha seu telefone no banco de trás e faz
barulhinhos estranhos.
– O que você está fazendo? – pergunto.
– Lendo o que andam dizendo na internet sobre mim e
Javi.
– Pode parar.
– Preciso saber o que estão falando!
– Você não tem uma relações-públicas? Ela não pode
ler pra você?
– Ela trabalha pra nós dois – responde Liana. – E quer
que a gente fique juntos. E é uma escrota petulante,
então estou ignorando as ligações dela.
– Beleza, eu vejo então – falo. – Me dá seu telefone.
Tem gente com pena, o que não surpreende, e
pessoas postando corações partidos e deixando claro que
estão com raiva de Javi. Leio para Liana só os mais
gentis, que falam que ela merece coisa muito melhor, e
escolho não ler em voz alta aqueles que dizem que ela
era um peso morto na relação, então não era de
surpreender que Javi a tivesse traído.
Mas também... semicerro os olhos para a tela. Tem
tanta coisa sobre Noah ter tomado as dores dela e
confrontado Javier.
Issooooo, é ASSIM que um aliado faz! Amei ver isso!
Bom, funcionou: ele distraiu a imprensa. Mas talvez
tenha feito isso bem demais. Agora ele é tão parte da
história quanto Liana e Javier.
As fotos que os paparazzi tiraram de Liana não são
muito lisonjeiras, embora Noah esteja ótimo nelas, os
músculos salientes, cada centímetro do herói de ação
que ele vai viver e está prestes a ser revelado. Paro em
uma foto em particular. Algum fotógrafo arrojado
capturou o momento em que Noah me disse que ia
distrair a imprensa. Ele está se inclinando, a boca na
minha orelha, e seguro seu braço. Parece
assustadoramente íntimo em meio ao caos, e uma
subcategoria de fãs já se aproveitou disso.

É a cara da Kat, sempre apaixonadinha pelo Noah.


Meu Deus, vocês acham que ela vai tentar roubar ele
da Summer como sempre fazia no programa?
KKKKKK É óbvio que ele não ia ficar com a Summer
na vida real, ela é o caos em pessoa.
A Kat não tem namorado?
A irmã da amiga da minha amiga viu os dois
brigando no aeroporto, então TALVEZ NÃO TENHA
MAIS. Enfim, eu shipparia Kat/Noah, ia ser tipo
Draco/Hermione.

Isso são os fãs sendo fãs, penso, mesmo com medo de


que, talvez, eles estejam percebendo uma pontinha de
verdade. Enquanto estou de olho nisso, Summer para no
estacionamento e pisa no freio de repente, o carro fora
das marcas da vaga. Então ela sai correndo para a sala
de ensaio, e Liana e eu nos apressamos atrás dela.
Quando entramos, o coro está repassando alguns
passos de dança, nossas posições diante deles
evidentemente vazias. Noah está com a aparência ótima
e reluzente ao vir andando até mim.
– Opa, teve festinha ontem à noite? Por que não fui
convidado? – Olho para ele, e sua expressão muda. – Ei,
você tá bem? – começa ele, então Michael vem para
cima de nós segurando sua onipresente Coca diet.
– Têm ideia do desperdício colossal de tempo e
recursos que é ter que esperar vocês? Estamos aqui
nessa perda de tempo há duas horas!
Liana e eu nos preparamos. Já tínhamos sido alvo das
explosões de Michael. Mas ele não está gritando com a
gente dessa vez. Seu alvo é Summer.
– Desculpa – diz ela. – Meu telefone descarregou à
noite, aí o alarme não tocou e...
– Voltou a usar? É isso que está acontecendo?
– Não joga a culpa nela – diz Liana, dando um passo à
frente. – Ela ficou me consolando por causa do Javier e...
Mas Michael não pega leve.
– Ou foi simplesmente pura preguiça e falta de
comprometimento? E já não basta você fazer isso
sozinha, agora tem que arrastar as outras também
nessas suas aventuras?
Michael está tão aborrecido que fica vermelho. Sem
querer, me pego imaginando que ele vai infartar e, nesse
instante, os berros cessam, a fala dele fica enrolada e
Michael desaba no chão.
30
••••••

2018

Logo na esteira do colapso de Michael vem a confusão


sobre quem deve acompanhá-lo ao hospital. Meu instinto
diz que nós quatro deveríamos ir na ambulância com ele,
como se fôssemos os filhos e ele, o pai que nos faz
competir para cair em suas graças. Mas ele vai sem nós,
apenas com um assistente trêmulo como acompanhante.
Quando o colocam na ambulância, ele já conseguiu se
sentar, atordoado mas vivo, graças a Deus.
Ficamos todos por ali, inúteis, retorcendo as mãos e
falando em sussurros. Por que as pessoas baixam o tom
de voz quando acontece alguma tragédia? Falar mais
baixo não vai mudar nada, mas, mesmo assim,
sussurramos.
Depois de meia hora, o diretor assistente, Kyle, recebe
uma ligação e então convoca a todos.
– Foi um ataque cardíaco brando. Ele vai ficar bem. –
As pessoas suspiram de alívio, até aplaudem sem muita
emoção. – Vamos pedir que alguns fiquem, mas a maioria
deve ir para casa descansar. Obviamente isso foi
traumático, então, por favor, não deixem de se cuidar.
Ele manda para casa o pessoal do coro, assistentes de
produção e todo mundo abaixo de determinado nível.
Eles vão embora em bandos, preocupados, enquanto o
Sr. Atlas entra com alguns representantes da corporação
Atlas prontos para se reunirem com nossa equipe de
superiores, nós quatro e alguns dos atores secundários
mais importantes.
– Beleza – diz Kyle, dando uma olhada para conferir se
todos já foram mesmo embora.
Ele é um homem gentil e apreensivo, quase um
garoto, mais jovem que a gente, e é óbvio que está
surpreso por sua nova responsabilidade. Michael não
contrataria um suplente com muita experiência, já que
gosta de estar no comando de tudo. É a cara do Michael:
contrata uma pessoa inexperiente para poder orientá-la
quando, na verdade, só não quer ser desafiado.
– Sr. Atlas?
O homem entrelaça os dedos, sentado em uma
cadeira.
– Michael vai ficar bem – diz o Sr. Atlas. – Mas precisa
permanecer no hospital por um ou dois dias para ser
acompanhado e depois terá que descansar e se
recuperar por mais alguns dias.
Ninguém quer fazer a pergunta, para não parecer
insensível e egoísta, mas estamos todos pensando nisso.
Por fim, Summer ergue a mão.
– O que isso representa pro reencontro?
– A gente devia adiar, não é? – pergunta Liana. – Já
que a ideia é ir ao ar em duas semanas e o Michael vai
estar fora metade desse tempo, não? A gente não quer
fazer papel de idiota...
Um dos representantes da corporação se posiciona.
– Adiar vai ser difícil por causa dos patrocinadores que
já compraram espaço.
– Mas com certeza eles vão querer que o programa
seja bom, não? – pergunto, embora logo perceba que
provavelmente ficarão satisfeitos com um desastre,
contanto que as pessoas assistam.
– Não podemos adiar – diz Noah. – Não vou ter
disponibilidade. – Ele olha rápido para o Sr. Atlas.
– Sim – diz ele, quase para si mesmo. – Talvez seja um
bom momento para dar uma boa notícia. – Ele se
levanta. – Acredito que todos aqui nesta sala
compreendem a natureza sigilosa do que vou dizer.
Ele vai até a cadeira de Noah, coloca a mão em seu
ombro como um tio orgulhoso. Nesse meio-tempo, mal
olha para Summer, ao lado de Noah. Na verdade, mal
reconheceu a presença dela nesse tempo todo desde que
voltamos. Ainda com raiva por ela ter estragado seu
programa mais lucrativo, ofendido demais pelos pecados
dela.
– Precisamos manter a data do programa ao vivo.
Noah vai fazer uma turnê de divulgação logo em seguida.
Porque vamos anunciar, durante a exibição do
reencontro, que ele vai ser o Leopardo da Neve.
Noah sorri com educação para o grupo. Olho para
Summer, que acaba de saber da novidade. Seu corpo fica
imóvel, ao passo que o restante da equipe e do elenco
explodem em aplausos e gritos, alguns se levantando
para dar tapinhas nas costas de Noah. Imagino o que
deve estar passando na cabeça dela: vai ser impossível
evitá-lo. Ele desaparece em meio à aglomeração de
gente animada, enquanto Summer, Liana e eu
permanecemos em nossos lugares. Liana bate algumas
palmas, porém a ressaca não a deixa se levantar.
No bolso, meu telefone vibra. Miheer. As pessoas
estão ocupadas ao redor de Noah, querendo saber
detalhes, então me retiro e corro para o corredor, o medo
se avolumando em meu estômago. Miheer ainda está no
horário de trabalho, não é hora do nosso telefonema de
sempre.
– Oi, não posso demorar muito, está dando merda
geral aqui. Mas o que houve?
– Eu vi as fotos de tudo que aconteceu com a Liana.
Ela está bem?
– Não sei. É bem horrível.
Ele se solidariza com a situação dela, então dá um
suspiro entrecortado ao tentar se forçar a continuar. Em
geral, o mero som da voz dele aplaca qualquer
ansiedade em mim, mas hoje não.
– O que mais está rolando? – pergunto, embora eu
tenha certeza de já saber o que é.
– Também vi uma foto sua e do Noah e a conversa
sobre ela.
– Ah.
– Eu não fico procurando muito, mas minha mãe, logo
ela, me ligou preocupada. Acho que minha prima
comentou com a irmã da minha mãe, que falou com ela
e... Estou tentando não me deixar afetar. Nunca passei
pela experiência de ter que lidar com gente aleatória na
internet dando pitaco sobre meu relacionamento, sabe?
Odeio ser um babaca desconfiado e ciumento, mas fiquei
pensando, ainda mais depois de como as coisas ficaram
entre a gente no aeroporto... Ele não é o capítulo que
você precisava encerrar, é?
– Não, eu juro que ele não é o motivo pra eu ter
voltado.
– Tá bom. – O alívio transborda pela voz dele e, por um
instante, acho que vamos ficar bem. Mas então ele
continua: – E odeio até perguntar, mas, só pra parar de
ficar paranoico... Nunca aconteceu nada entre vocês, não
é?
Apoio a cabeça na parede de azulejos fria. Seria tão
fácil dar a resposta que o tranquilizaria, mas não posso
fazer isso. Posso ter omitido coisas, mas não vou mentir
para ele.
Engulo em seco.
– Só uma vez.
31
••••••

2005

Na noite do episódio ao vivo, a atenção ficou toda


voltada para Summer, para a contenção dos danos e
para as negociações frenéticas. Liana, Noah e eu fomos
orientados a ficar por ali – nada de ir a nenhum
restaurante com nossos familiares, que estavam
preocupados –, tanto para evitar mais publicidade
negativa quanto para o caso de os superiores precisarem
de nós. Mas estavam todos esgotados demais com
Summer para ligarem para a gente, então, em estado de
choque, fugimos para o trailer do Noah com uma garrafa
grande de tequila, que a gente tinha pensado em usar na
comemoração.
– Não vai mais ter filme – falou Liana. – Não é? Não
tem como a gente fazer um filme depois disso.
– É – falei, tentando não chorar. Estávamos todos
tentando não chorar enquanto bebíamos da garrafa,
passando-a entre nós. Noah mal tinha falado uma
palavra. – Não tem como mesmo.
– Os sonhadores acabou – disse Liana, andando de um
lado para o outro no trailer, então deu um chute de
frustração em um dos gaveteiros do Noah. – Ela ferrou a
gente.
– O que a gente acabou de fazer... foi a última vez que
vamos interpretar esses personagens juntos – falei. –
Provavelmente é a última vez que vamos atuar juntos. Ai,
meu Deus.
Eu estava furiosa comigo mesma. Mas, conforme a
tequila queimava minha garganta e afrouxava meus
braços, fui ficando cada vez mais furiosa com Summer
também. Como é que ela podia não ter segurado a onda?
Eu tinha dito para ela que a gente ia dar um jeito. Ela
tinha transformado meu erro – um erro covarde e podre,
sem dúvida, mas que dava para desfazer ou administrar
– em algo muito maior, um segredo horrível que eu teria
que guardar. Eu já sentia a culpa me rondando,
inevitável.
O telefone de Liana começou a tocar. Ela olhou para a
tela.
– Meu agente. Já volto.
Noah lia as notícias no laptop. Tinha se deitado na
cama, olhando quase catatônico para o texto. Eu me
aproximei e sentei na beirada. Eu tinha causado a dor
dele e talvez pudesse fazer algo para ajudar.
– Você está bem? – perguntei. Ele deu uma meia
risada. – Desculpa, quero dizer, é claro que nenhum de
nós está bem.
– Ela é uma atriz bem melhor do que eu pensava. – A
voz dele saiu sem emoção.
– Beleza, olha aqui. Você não pode acreditar no que foi
escrito no diário. Eu estava com a Summer naquela festa,
e ela com certeza não transou com ninguém em beco
nenhum e...
– Talvez não, mas isso tem alguma importância agora?
A Summer que eu achei que conhecesse nunca teria
ferrado a gente assim. Além disso, tem um monte de
caras que já estão dizendo que... – Ele se sentou,
esfregando os olhos. – Olha, não sei de tudo, mas sei que
a Summer é uma mentirosa. E ela acabou com o
programa sozinha.
Eu não tinha como argumentar contra isso.
– Eu fui tão burro! Fiquei tão fascinado por ela que
nem olhei pro lado nos últimos meses, mesmo com
garotas melhores por aí, que não vivem num drama o
tempo todo. – A mão dele se arrastou até a minha na
cama, roçando meus dedos. – Garotas como você.
Eu me virei para encará-lo, e então sua boca já estava
na minha. Ele devia saber desde sempre,
conscientemente ou não, que eu não o rejeitaria. Eu era
a que lhe dava segurança, a que oferecia conforto e
conselho e afagava seu ego, e era disso que ele
precisava depois de uma noite tão terrível. Finalmente
estava acontecendo. Eu estava conseguindo o que queria
e só tinha custado a destruição da Summer.
Tentei me perder no beijo, no jeito com que ele me
puxou para a cama e veio para cima de mim. Eu estava
bêbada, igual à vez em que transei com o cara que eu
nem conhecia, e me perguntei quando eu iria transar
sóbria, sem ter que minimizar minhas inibições com
álcool. Quando a sensação seria mais do que mero
instinto animal. Quando seria amor.
Porque eu amava Noah, sim – ou, pelo menos, tinha
amado –, mas aquilo ali era apenas uma sombra do que
eu tinha fantasiado, suja e errada e triste. E talvez eu
nunca tivesse amado Noah de verdade, mas sim o que
ter a atenção dele representava: a prova de que eu tinha
tanto valor quanto Summer.
Sim, eu deixei a coisa seguir, deixei ele desabotoar
minha calça e deslizar os dedos para dentro de mim,
pensando que talvez, se eu o beijasse com mais força, a
sensação seria a que eu sempre quis.
A porta do trailer se sacudiu, e nós dois nos
separamos, os rostos vermelhos, as roupas
desgrenhadas, e nos sentamos, eu fechando
freneticamente a calça, quando Liana entrou.
– Aquele desgraçado – dizia ela. – Ele vai me deixar
e... – Ela parou e absorveu a cena diante dela. – Estou
interrompendo alguma coisa?
– Não – respondi.
– Só matando o tempo – falou Noah.
– Hum-hum. – Ela contraiu os lábios. – Bom, podem
continuar “matando o tempo”. Eu vou dormir. Esta foi a
pior noite da minha vida.
Liana pegou as coisas dela e saiu do trailer antes que
a gente pudesse protestar muito. Lá fora, agora eu sei,
ela deu de cara com Summer e escolheu protegê-la da
verdade plena sobre a companhia de Noah. Devia ter
suposto que nós todos já tínhamos sofrido o suficiente
naquela noite.
A porta bateu atrás dela, deixando apenas nosso
silêncio constrangedor. Noah se inclinou na minha
direção outra vez, mas recuei.
– É melhor eu ir também.
– Qual é, não vai – disse Noah. – A gente ainda tem
essa tequila toda.
Ele lançou aquele seu olhar, o ar de vítima, e senti
vontade de chorar. Porque eu podia ter transado com ele.
Mas saberia o tempo todo que ele queria que eu fosse a
Summer. E a verdade é que eu também desejaria estar
com outra pessoa. Alguém que eu ainda não tinha
conhecido, que ia me querer não como uma distração,
mas como eu mesma.
(Anos depois, a primeira vez que Miheer e eu
transamos, corados, acanhados, devagar, foi no meio da
tarde. A luz entrava no meu quarto pela cortina branca e
macia, e a gente não tinha bebido nada. Isso, pensei,
várias e várias vezes.)
– Desculpa. – Se eu continuasse com Noah, na manhã
seguinte ia me sentir muito pior do que já me sentia.
Tínhamos acabado com a ilusão. – Estou exausta.
– Beleza.
Ele se virou para o outro lado e deu outro longo gole
na tequila. Fiquei ali, sem jeito, querendo que falássemos
mais alguma coisa: para reafirmar que significávamos
algo um para o outro, mesmo depois de tudo; para
prometer que, não importava o que acontecesse,
tentaríamos nos apoiar enquanto o mundo desabava
sobre nós, ávido por drama e detalhes.
Mas ele tinha se virado para o laptop e navegava pela
página do Lamapop, com a manchete “Segredos Sexuais
Sórdidos de Summer” estampada na tela.
– Que tal a gente tomar café amanhã cedo? Eu, você e
Liana – convidei, mas ele não respondeu.
Saí pela porta, e aquela foi a última vez que nos vimos
em 13 anos.
32
••••••

2018

Miheer fica calado por um instante depois que conto


tudo.
– Então você tem mesmo assuntos inacabados com
ele – conclui.
– Acho que ele é parte do todo. Mas não foi por isso
que...
– Que você parou tudo que a gente estava construindo
juntos pra fazer esse programa idiota?
A raiva me domina.
– Não é idiota.
– Estou citando uma frase sua! Você diz o tempo todo
que o programa é idiota!
Pode ser, mas eu sou a única que tem o direito de
falar assim.
– Você não estava lá. Não fez parte disso e não
chegou nem a assistir, então não tem como entender.
– Tem razão. Eu não entendo. Estamos juntos há três
anos e, pela primeira vez, sinto que não sei quem você é!
Eu só...
Ele se detém, e sinto meu estômago afundar.
– Você só o quê? – pergunto, cautelosa.
Ele suspira.
– Tem muita coisa rolando aí, e eu preciso deixar você
se concentrar.
– O que isso quer dizer?
A voz dele fica severa e formal.
– Acho que essa é uma conversa importante, e
devemos esperar pra nos falar cara a cara.
– Miheer, não.
– Você me pediu que não te pressionasse com a
questão do noivado enquanto você estivesse fora. Agora
sou eu que peço isso a você.
– Mas... mas eu te amo.
– Eu também te amo. – A voz dele fica rouca. – É por
isso que essa merda toda acaba comigo.
Miheer só fala palavrão em momentos extremamente
difíceis. Depois que ele desliga, fico olhando inutilmente
para o telefone por um momento. Já era a chance de ele
me pedir de novo em casamento no instante em que isso
tudo acabasse. É mais provável que termine comigo no
minuto em que eu entrar pela porta.
Meu telefone vibra de novo. Será que é ele? Quase
machuco o pescoço outra vez ao baixar a cabeça rápido
para o aparelho. Mas é uma mensagem de Irene:
Está ficando bem difícil segurar as pontas para você.
Em seguida, mais uma mensagem:
E talvez eu seja a última pessoa que deveria lhe dar
“conselhos sobre homens”, mas, se trocar o maravilhoso
do Miheer por algum saradão de Hollywood, vai cometer
o maior erro da sua vida.
Bato a cabeça contra a parede, curtindo a pontada de
dor que isso me causa. As minhas conquistas aqui se
resumem a fazer Summer me odiar e a literalmente
causar um infarto no cara que comanda o programa.
Estou com raiva de tudo, mas principalmente de mim
mesma, por derramar fluido de isqueiro na minha vida
normal e atear fogo nela.
Quando volto à sala de ensaio, zumbindo de raiva, as
pessoas ainda estão dando tapinhas nas costas de Noah,
parabenizando-o pelo trabalho que conseguiu conquistar
por rir do restante de nós junto com o mundo, por roubar
as ideias de Summer e transformá-las em um filme que
todos amaram, por ser amiguinho dos caras no poder e
sempre, acima de tudo, se colocar em primeiro lugar.
Cara, como fui burra ao achar que ele tinha mudado!
Ora, só porque ele me levou para malhar? Porque se
jogou na frente das câmeras no lugar de Liana? Preciso
lembrar que Noah está a serviço de Noah. E hoje em dia
é legal ser um defensor das mulheres, ser um cara “do
bem”. Os homens estão começando a ser cancelados por
seu mau comportamento. Aposto que ele viu a chance de
ficar acima da média. Provavelmente ficou radiante por
poder gritar com Javier e estampar seu nome nas
manchetes. Quanto arrependimento ele sentiu em
relação a tudo nos últimos 13 anos? Olhando para ele
agora, todo vaidoso e bronzeado, o tanquinho delineado
pela blusa fina, é óbvio que a resposta é: absolutamente
nenhum.
– Então não vamos adiar o reencontro – diz o Sr. Atlas
quando o clamor ao redor de Noah por fim diminui. – Kyle
vai assumir aqui e manter comunicação constante com
Michael para implementar as orientações dele. Kyle,
gostaria de dizer algo?
Kyle se levanta. Parece abjetamente aterrorizado.
– Beleza, gente. Tirem o resto do dia de folga e vamos
nos organizar e voltar amanhã prontos pra ir com tudo! –
Soa estranho, como um menino interpretando um
discurso inflamado de Coração valente em sua primeira
tentativa na aula de teatro. – Hum... sei que vamos fazer
um programa incrível e estou honrado por ser seu novo,
ainda que temporário, líder. Hum... e...
O Sr. Atlas dá tapinhas no ombro dele.
– Obrigado, Kyle.
A sala é dominada pelo guincho de cadeiras sendo
arrastadas, a agitação de pessoas juntando suas coisas.
Noah vai direto até o Sr. Atlas. Nesse meio-tempo, vários
integrantes da equipe ficam por ali, esperando a
oportunidade de puxar o saco do Próximo Grande Astro
de Cinema Mundial.
Liana, Summer e eu continuamos sentadas. Liana se
curva e pega sua bolsa do chão com um grunhido.
– Vou voltar pro hotel e começar a lidar com essa zona
toda. – Ela se levanta e nos dá um sorriso fraco. – Mas
obrigada pela noite de ontem. Não sei o que eu teria
feito sem vocês duas.
Liana se encaminha para a porta enquanto Summer
pega as próprias coisas, se afastando de mim sem me
olhar duas vezes.
Dou uma corrida atrás dela.
– Espera!
Summer se vira, e não há gentileza em seu olhar. Já
mandei minha vida pelos ares para dar um jeito na dela.
Então, tem que valer a pena. Tem que valer. Pigarreio,
olho ao redor e então pergunto:
– Quando você disse que queria acabar com o Noah...
Que tal uma mãozinha?
33
••••••

2018

Mais uma vez, Summer está ao volante, me levando para


algum lugar. Pegamos trânsito até chegarmos a um
trecho da estrada abençoadamente vazio. Então abrimos
as janelas e vamos contornando os desfiladeiros,
acelerando rumo ao mar, até que Summer estaciona em
um trecho da praia menos movimentado, mais selvagem
e rústico. Ela pega um boné de beisebol no porta-luvas e
o coloca, puxando a aba para baixo, uma tática de
camuflagem rápida para desestimular os outros a se
aproximarem.
Há pessoas dando uma corrida e outras sentadas na
areia. Um casal mais velho joga uma bolinha para seu
cão hiperativo. Mas, no geral, temos privacidade, uma
coisa rara e linda. Eu me enrolo com mais força em meu
casaco enquanto o vento marinho sopra à nossa volta.
Summer tira os sapatos, deixa-os na areia e caminha até
onde as ondas se desfazem na areia. Já está com água
no tornozelo quando tiro meus sapatos e vou até ela.
– Aaah, que gelada! – digo, quando uma onda bate
nos meus dedos.
Ela continua encarando o horizonte, imóvel. Está
acostumada a se resignar diante de um mundo que lança
todo tipo de infortúnio na direção dela. A água gélida do
mar não é nada, ela machuca só o corpo – e Summer
abriu mão de ser dona dele há muito tempo.
– Você não vai me ferrar de novo – diz ela.
Não sei se é uma pergunta – seu tom de voz é
monótono –, mas balanço a cabeça mesmo assim.
– Uma vez já foi bem ruim – digo.
– De qualquer modo, isso não vai acertar as coisas
entre a gente.
– Eu sei.
Não tenho expectativas de que ela vá conseguir me
perdoar. Mas talvez, um dia, consiga me olhar sem tanta
raiva e tristeza. Se é assim que ela quer ajuda, que assim
seja. Além do mais, também tenho um bocado de raiva
do Noah. Minha oferta não é tão altruísta.
– Beleza, você manja de direito. Silvestres é em parte
ideia minha... Não é o tipo de caso que se sustente em
um tribunal, é?
– Talvez no tribunal da opinião pública. Mas, em um
tribunal de verdade, não.
– Foi o que pensei. – Ela mordisca a unha do polegar. –
Então quero fazer o Noah sentir algo por mim de novo. –
Uma gaivota passa acima de nós. – Venho tentando
sozinha, mas não sei se está dando certo. Você é
observadora. O que acha?
– Ele parece que está sempre... ciente de você. Como
se soubesse onde você está nos ambientes.
– Isso é bom, mas não o suficiente. Você podia
descobrir o que ele está pensando e sentindo. Falar bem
de mim.
Mais uma vez, estou a serviço dela, mas agora eu
mereço. É para pagar uma dívida.
– Qual é o objetivo disso?
– Quero que ele se abra comigo. Se eu conseguir ficar
sozinha com ele, vou deixá-lo relaxado com uma ou duas
bebidas e depois fazer com que fale sobre Silvestres...
Quero uma gravação do Noah admitindo que o filme foi
ideia nossa, de nós dois, e que ele nunca me procurou
pra falar disso. Conheço uma repórter. Ela sempre me
tratou bem. Se eu conseguir o áudio, ela vai publicar a
história logo antes do programa ao vivo. Quero que isso
seja divulgado do mesmo jeito que o diário foi, só que,
dessa vez, ele é que vai subir no palco se perguntando se
o mundo vai se virar contra ele. Quero que ele faça o
episódio acreditando que gosto dele. E então, quando
chegar a hora do nosso beijo, eu é que vou me afastar.
Ela estremece enquanto fala, me olhando nos olhos e
então desviando para o horizonte, louca para que eu
ache o plano bom, mas ao mesmo tempo fingindo que
minha opinião não importa. E o que eu acho desse
grande plano? Tenho... minhas reservas. Mas ela precisa
muito disso.
– Beleza – digo. – Eu falo com o Noah.
– Ótimo. – Os olhos dela ficam vermelhos. Summer
finalmente esfrega os braços para se esquentar. – Eu só...
Você acha que alguém vai se importar? – Sua voz vai
ficando baixinha, e preciso chegar mais perto para ouvir
por cima do vento e das ondas. – Tenho medo que
ninguém dê a mínima. Que isso talvez não tenha
importância. Qualquer idiota pode ter uma ideia, bolar
um enredo e uma fala memorável, mas o Noah é o único
que poderia ter escrito aquele roteiro.
– Você não é uma idiota.
– É a única coisa de valor que eu já criei ou pensei,
mas não fiz nada com isso. Fui para a reabilitação. Ele é
que transformou em algo especial.
– Ei, isso não é verdade. – Eu a viro para mim. Ela
parece tão frágil, cabisbaixa, com rugas nos olhos. – Não
é a única coisa de valor que...
– E o que mais, então? Fala uma só coisa que eu fiz
nos últimos 13 anos.
Eu hesito, e ela ri com sarcasmo.
– Outro dia você me perguntou por que eu estava tão
diferente. Por que venho tentando ser como era
antigamente? Porque foi a última vez que eu fui boa. A
última vez que as pessoas ficaram impressionadas
comigo. – Sua voz falha, mas ela vai em frente. – O Noah
não vai sentir nada por mim agora. Uma pessoa que é só
uma piada, acabada e derrotada, que vive furiosa,
amarga, triste e é só uma sombra do que deveria ter
sido, que não consegue passar um dia neste mundo sem
que os outros achem graça dela ou, pior, sintam pena. –
Summer limpa o nariz na manga e pisca para tentar
afastar as lágrimas, ainda que seu rosto ameace
desmoronar. – Não é o tipo de mulher pra quem Noah
Gideon daria bola.
Eu a puxo para um abraço. Provavelmente ela tem
razão. O resultado mais provável desse plano desastroso
e mesquinho é que ela se apaixone por Noah outra vez,
enquanto ele só vai sentir pena dela.
Summer resiste ao meu abraço a princípio, mas
depois relaxa em meus braços, o corpo pesando contra o
meu, trêmulo e soluçante, suas lágrimas molhando meu
ombro. Ainda bem que o destino, a sorte e um retorcer
desagradável dos meus lábios me impediram de ser a
garota no centro das atenções. Eu não teria sobrevivido.
Quem conseguiria sobreviver?
– Ei, por favor. Você tem que saber que é digna de
amor do jeito que você é.
– Você parece minha terapeuta – diz Summer.
– Ah, você está fazendo terapia! Que ótimo – falo. Ela
se afasta e franze a testa para mim, e eu recuo. – Não
porque você precise tanto assim. Acho que todo mundo
deve fazer terapia.
– Você faz? – Ela espera um instante, o rosto inchado e
exausto. – Sei. Bom, eu faço há anos e já experimentei
meditação guiada e coquetéis de antidepressivos. Tentei
várias igrejas e igreja nenhuma. Me disseram um milhão
de vezes que sou digna de amor do jeito que eu sou, que
preciso me olhar bem no espelho, que preciso ser mais
madura e seguir em frente. Mas de que vale ser uma
pessoa mais madura quando ninguém mais precisa
mudar? – Ela trinca os dentes e entra mais um pouco na
água. – Vou seguir em frente quando todo mundo
também tiver que se olhar no espelho.
– Já falou isso pra mais alguém além de mim?
– Não. Quanto menos gente no meio, melhor. A Liana
já tem muita coisa pra resolver. E não quero que você
conte pra ninguém. Sei que as pessoas contam tudo pros
parceiros quando estão em um relacionamento sério e...
– Não se preocupa, isso não vai ser problema.
Ela estreita os olhos para mim.
– Ah. O Miheer não sabe, não é? Do diário e de você
cavar minha cova?
– Eu... eu não queria mudar o que ele sente por mim.
Se bem que acho que mudei, de qualquer forma.
Se ficar pensando muito na conversa que tivemos no
telefone, sou capaz de chorar um oceano maior do que o
que tenho diante de mim.
– Você também destruiu as coisas pra si mesma – diz
ela. – Não só pra mim.
– Tomara que isso te traga algum conforto – respondo,
enfiando meus dedos dos pés na areia.
– Ei – diz ela, olhando para o mar, a voz bem sincera. –
Você tem que saber que é digna de amor do jeito que
você é.
– Tá, tá.
– Talvez você devesse fazer terapia...
– Para de deboche, ou desisto de te ajudar.
Um sorrisinho aparece em seus lábios. Não há perdão
para mim. Mas há uma aliança entre nós.
34
••••••

2018

Na manhã seguinte, temos nosso primeiro ensaio com


Kyle na direção. O começo não é muito promissor.
Estamos tentando fazer a cena que causou tanto
problema para Michael, aquela em que Summer bate a
cabeça. Michael não reescreveu nada antes do infarto –
não dá para saber se ele tinha intenção de mudar algo
ou se planejava nos enrolar até que fosse tarde demais.
– Hum, tá – diz Kyle. – Então, eu falei com o Michael
hoje de manhã. Os médicos disseram para ele não se
sobrecarregar. Ele acha que ia ser muito estressante
fazer mudanças a essa altura, então disse pra seguir em
frente com a cena já escrita.
Nós quatro nos entreolhamos, mas fazemos o que Kyle
manda: seguimos para nossas posições, Summer mais
uma vez finge virar o ponche, a mulher festeira caricata.
Ao passar por mim para subir no palco, ela sem querer
tropeça no meu pé.
– Foi mal.
– Tudo bem, vamos fazer de novo – diz ela, então para
do nada. – É isso. Você me faz tropeçar.
Eu entendo na hora.
– Ah, dã. Um pouquinho da clássica sabotagem da
Kat!
– Isso mesmo!
Kyle inclina a cabeça, confuso. Noah esfrega o queixo
em seu novo estilo estou prestando atenção, observando
Summer, embora ela nem esteja olhando para ele.
Summer está focada na inspiração que teve, as peças
do quebra-cabeça à sua frente. Ela fala atropelando as
palavras, como se tivesse que descrever sua visão antes
que desaparecesse.
– Talvez a coisa toda seja sabotagem da Kat. Tipo, se
eu sei que há boatos sobre mim quando estou indo pro
reencontro do ensino médio, fico muito nervosa e quero
que tudo dê certo.
– Mas eu estou com inveja e quero manter você fora
da jogada – falo.
– Então você me enche de ponche e me faz tropeçar,
pra que eu pareça ainda mais descontrolada do que
estou.
Nós sorrimos uma para a outra, quase sem ar, como
se tivéssemos acabado de participar de uma corrida.
Sabemos que é bem clichê, mas também é perfeito.
– Isso fica... hum, bem diferente do roteiro – observa
Kyle.
– Do roteiro que não está funcionando – rebate Liana.
– Acho que a ideia é bem maneira – fala Noah. – Pior
do que está não vai ficar.
Kyle retorce as mãos, sem saber como lidar com essa
rebelião simpática e entusiasmada. Além, é claro, do
respeito a Noah, que não pode ser descartado como se
fosse uma diva instável ou um zé-ninguém, como o
restante de nós.
– Bom... tá bem. No que estão pensando?
A hora seguinte é pura magia: nós quatro
improvisamos e atuamos, damos ideias, dizemos sim uns
para os outros e quase reescrevemos essa parte toda do
roteiro. Mudamos uma coisinha, ela tem ligação com
outra, então precisamos ajustar também.
– Não quero que meu lance seja só falar quanto eu
amo meu marido – diz Liana.
– Acho que o Michael queria que isso fosse cômico –
começa Kyle. – Por causa do Javier, sabe?
– Estou sabendo – diz Liana, e o fuzila com o olhar.
– Bom, é, hum... acho que não é mais tão engraçado.
– A gente pode inventar outra coisa – digo.
Então ficamos bolando algo para isso também. Liana
lista várias sugestões e nos faz rir, Summer dá ideias
para ela. Quando ficam indecisas demais, eu corto o
papo furado e decido. A mudança que fizemos para
Summer a faz relaxar. Ela está cativante e gloriosa no
papel, os anos quase sumindo enquanto ela se
transforma outra vez na garota que todos amavam. Não
parece mais algo forçado.
Entregamos um laptop a Kyle para que ele vá
anotando o que dizemos, depois Noah dá uma olhada
nas anotações e as aprimora. Se ele não tivesse um rosto
tão bonito, será que teria se tornado professor de inglês
ou então um daqueles roteiristas seguros e sérios que
são respeitados na indústria, mas desconhecidos fora de
Hollywood? Ele não é mais o garoto que anda por aí
exibindo livros clássicos com capas surradas. Sua
inteligência é mais discreta, mas também mais
competente.
– Tem certeza? – pergunta Kyle, enquanto Noah digita
uma nova fala para Liana.
– Ei, temos um roteirista indicado ao Oscar aqui. –
Passo um braço ao redor de Noah, que cora de leve,
dando uma olhada de relance para Summer. – Temos que
aproveitar o talento dele.

••••••

Durante uma pausa, vou até Noah. Ele está


esparramado, bebendo uma garrafa de água, e dá
tapinhas na cadeira ao lado dele ao me ver.
– Oi – diz ele, enquanto tomo um gole da minha
garrafa. – Nada contra o Kyle, mas o Michael deveria
colocar você pra dirigir também.
Quase cuspo minha água só de imaginar.
– Que foi? – pergunta Noah.
– Não sei se você percebeu, mas provavelmente ele
não dá ouvidos a uma mulher desde a professora do
terceiro ano.
– Tá bem, tá bem. Só quis dizer que você é boa nisso.
Deve ser uma potência no escritório de advocacia.
Levo um instante para entender o que ele acabou de
dizer, porque meu primeiro pensamento é: Eu não
trabalho em um escritório de advocacia, do que você
está falando? Então, é claro, pensar na minha vida
normal quase me faz surtar. Não, se concentra em ajudar
a Summer.
Noah fica em silêncio e volta a olhar para Summer,
que está revendo alguns passos de dança com o
coreógrafo para refletirem o novo rumo que demos à
personagem dela. Noah a observa com uma expressão
intrigada, como se não conseguisse decifrá-la.
No centro da sala, com o cabelo preso em um rabo de
cavalo todo suado, ela estica um braço, mexe o quadril
devagar e então executa um giro rápido e um salto. Ela
sempre foi a melhor dançarina entre nós todos. Pegava
os passos logo e investia tanta energia neles que, às
vezes, parecia um borrão em cena e, outras, exibia um
controle quase hipnótico. Ela balançava o corpo como se
dissesse a cada parte individual o que fazer e elas
obedecessem, extasiadas, tão arrebatadas por seu
carisma como todos os espectadores do programa.
– A Summer está mandando bem, não é? – pergunto.
Ele leva um susto, mas quase não deixa transparecer.
– É. É, é bom de ver.
– Acho que eu estava preocupada... com base em tudo
o que sai na imprensa, que ela fosse ser instável ou
infeliz. Mas passamos um bom tempo juntas, e ela não é.
– Olho para ele, nós dois atuando ao fingir casualidade. –
Vocês já tiveram a chance de se ver fora dos ensaios?
– Nah – diz ele. – Com o Leopardo da Neve, a vida está
muito ocupada. Estão um pouco chateados por eu ter
cancelado alguns compromissos do curta por causa do
reencontro.
– Humm. Bom, nós agradecemos. A gente estava
falando disso outra noite.
– Você e a Summer?
Assinto.
– Quer saber por que a gente se atrasou de verdade
pro ensaio naquele dia? Ficamos até tarde da noite em
uma conversa franca e perdemos a hora. A gente perde a
noção do tempo conversando com ela, sabe?
– Sei – diz ele, o joelho subindo e descendo, a voz
suave. – Sei, sim.
Summer termina sua série de passos, faz uma
pequena reverência e então, eufórica, olha para nós.
Noah e eu sorrimos para ela com o mesmo olhar bobo no
rosto.
35
••••••

2018

No dia seguinte, Kyle decide nos deixar no comando


total. Ele senta em sua cadeira de diretor e assente,
pensativo, para o que fazemos, como se nos desse
permissão, mas sabemos que ele está atuando tanto
quanto nós. Durante as pausas, ele se concentra na tela
do celular, olhando o Twitter ou o Grindr.
Repassamos as mudanças que fizemos no dia
anterior, e fica evidente que todos nós ensaiamos. Sem
combinarmos nada, cada um decorou suas novas falas.
Claro, é difícil – faz um dia que as reescrevemos! –, mas
é também divertido e cheio de ternura. E, quem sabe,
um pouco inapropriado e talvez deixe as coisas óbvias
demais, mas eu amo.
Continuamos no roteiro. Passamos da parte do sonho,
cheia de alegria, e então seguimos rumo ao final, mesmo
sem termos ensaiado essa parte direito até agora.
Ninguém quer interromper a magia que criamos.
– Summer! Você está bem? Ai, graças a Deus – diz
Liana, enquanto Summer “acorda” do desmaio.
– Me desculpa – digo, improvisando com base na nova
sequência de eventos que inserimos mais cedo. – Eu
queria ser o centro das atenções, mas não se isso
significar que você vai entrar em coma.
– Estou bem – garante ela, se sentando.
Mesmo no roteiro que estamos elaborando, ela se
recusa a dizer que me perdoa.
Chegamos ao momento em que Summer e Noah
devem se abraçar – Michael não escreveu nada sobre um
beijo entre eles, embora tivesse dito que faria isso, e
Summer sai da personagem.
– Na verdade, eu... – começa ela a dizer, tímida – ...
escrevi algo que achei que a gente podia tentar. – Ela
puxa duas folhas dobradas da bolsa, o papel timbrado do
hotel que sempre ficava na mesa de cabeceira, sua
caligrafia espalhada por toda a superfície. – Não sei se é
bom.
Noah engole em seco. Pega um dos papéis da mão
dela e o desdobra. Vejo Liana se encolher, talvez já
prevendo o constrangimento por tabela caso a cena seja
ruim.
– Você estava lá, dentro da minha cabeça – começa
Summer.
– Você esteve na minha nos últimos 13 anos –
responde ele, então os dois decolam.
É uma cena curta, não mais do que um ou dois
minutos. Ainda assim, Summer capturou alguma coisa.
Um sentimento. Arrependimento, mas também a
esperança de que segundas chances talvez sejam
possíveis. A voz de Noah falha. Eu estou prendendo o ar.
E, então, é hora do abraço.
Há uma camada de suor na testa de Summer por
causa da agitação da dança na parte do sonho. Fios de
cabelo se soltaram do rabo de cavalo dela. Noah os tira
de seu rosto. Ela ergue os olhos para ele, a respiração
entrecortada, e ele não a abraça. Ele a puxa para si e
cola os lábios nos dela.
Às vezes, os críticos enaltecem a química de um casal
de protagonistas de algum filme ou série que vi e não
tenho a menor ideia do que estão falando. Claro, tem
casais de protagonistas que se divertem juntos, tem
outros que embarcam em suas cenas de sexo com um
entusiasmo e tanto, mas, na minha opinião, nenhum
deles chega nem perto de superar Summer e Noah.
Quando se olham nos olhos, eles parecem esquecer por
completo que tem mais gente ao redor. Talvez seja
porque os conheço pessoalmente, mas sinto a tensão de
cada movimento entre os dois.
E agora eu sei o que se passa na cabeça de Summer
quando ela leva as mãos ao rosto de Noah, colocando-se
na ponta dos pés, apoiando-se nele. Summer beija Noah
como se esse beijo fosse salvar sua vida e, de certa
forma, se tudo sair como o esperado, talvez salve
mesmo. O beijo, o que ele representa e o jeito como
Summer vai negar isso a Noah, tudo tem ajudado
Summer a sair do fundo do poço do desespero e dado a
ela algo a que se dedicar. Mas, para Noah, que não sabe
de nada disso, todas as emoções no abraço dela – a
vingança, a raiva, o triunfo – devem parecer paixão.
Devem parecer amor.
Ao meu lado, diante da cena, Liana agarra minha
perna e a aperta. Esse deveria ser o momento em que o
coro todo entra no palco e executamos um final
poderoso, mas pedimos para eles não virem hoje. Então
o pianista começa a tocar a música final, mas ninguém
canta, aí o pianista vai parando, e Summer e Noah
continuam entrelaçados.
– Gente, isso ficou ótimo – digo, e Noah dá um passo
atrás.
Ele pigarreia.
– É, a passagem toda parece promissora.
– Kyle, tem alguma observação? – pergunto.
– Hã – diz ele, piscando rápido. – Achei que foi muito...
uau. Eu cresci vendo o programa, então achei muito
maravilhoso.
Dou um sorriso para ele. Por isso Kyle ficou ansioso o
tempo todo: ele é nosso fã! Como parece que não há
mais nenhuma observação, eu me viro para os outros.
– Eu, particularmente, achei que, Noah, você ficou
hesitante demais no começo do dueto – digo. – E, Liana,
aquela fala hilária na página 6 é boa demais, a gente
precisa garantir que ela não fique perdida.
– Beleza.
– Mas acho que devemos manter a cena que a
Summer escreveu do jeito que está.
– Ah, se devemos – concorda Liana. – Eu não sabia
que você tinha esse talento todo.
Summer fica vermelha. Talvez esteja atuando para
Noah. Mas eu acho – e torço para isso – que ela está
maravilhada de verdade com o elogio.
O telefone de Liana toca, e olhamos para ele: o nome
de Javier está na tela. Em um ato de comunicação tácita,
Summer e eu erguemos as sobrancelhas para Liana: ela
quer conversar sobre isso? Liana acena com a mão no ar:
não, ainda não sabe o que fazer, então vamos nos
concentrar no ensaio, está bem?
– Não sei se mais alguém pensa assim – diz Summer
–, mas não faz mais sentido que eu seja o vocal principal
de “Borboleta”, faz?
– Não – respondo. – Não com o novo rumo da
personagem.
Summer cantou essa música – um bom e velho
solilóquio! – no episódio em que ela estava sendo
excluída por colar em uma prova, algo que não tinha
feito (ela nunca faria!), apesar de eu espalhar boatos
sobre isso. É um hino que fala sobre não ligar para o que
as pessoas pensam de você, com a sugestão sutil de
querer que os outros vejam quem você é de verdade.
(Vão tentar me deter, vão tentar me calar. E eu posso ir
embora ou posso ficar, ser borboleta e me transformar.)
Michael deu um novo propósito à música, que funcionava
quando Summer aparecia como a mulher festeira. É seu
maior solo nesse reencontro e uma de suas músicas mais
icônicas no programa. Mas parece menos relevante
agora, com a personagem dela sendo tímida.
– A gente podia reescrever a letra – diz Noah, batendo
com um lápis nos lábios.
– Acho que a Liana podia cantar – observa Summer.
Liana lança um olhar confuso para ela.
– Não. Sério? Não faz isso só porque está com pena de
mim no momento. Nem se atreva.
– Não estou fazendo! Faz mais sentido pra sua
personagem. E você sempre mereceu um solo.
– Mas aí você não vai ter um grande número só seu.
Summer sorri com desdém e esfrega o ombro de
Noah.
– Eu tenho o nosso dueto. E várias outras coisas
também.
Quando Summer retira a mão, Noah olha para onde
ela estava.
– Vai pelo menos tentar? – pergunta Summer.
Liana hesita por um bom momento, então assente
para que o pianista comece.
É uma música pop animada, uma precursora de
“Firework”, da Katy Perry, começa mais lenta e mais
baixa, então acelera e cresce até chegar a um refrão
vibrante. Summer sempre a executou com o poder
feminino que a música demanda, cantando de todo o
coração e seguindo à risca a batida.
Mas Liana vai muito além. A letra simples já não
parece boba. Parece a única forma possível de expressar
sentimentos tão grandes, como se Liana destilasse suas
emoções na metáfora da borboleta porque, se tentasse
falar sobre elas de forma mais direta, talvez desabasse.
Assistimos deslumbrados à apresentação. Noah fica
boquiaberto e balança a cabeça no ritmo, mas parece
fazer isso sem nem perceber. Uma lágrima rola pelo rosto
de Summer, ainda que, em tese, a música não seja tão
triste. Mas Liana entrega tudo de si. Interpretar uma
música é uma tremenda tábua de salvação para ela, não
é? Acho inconcebível que ninguém tenha lhe dado uma
oportunidade de fazer isso antes. Para mim, cantar traz
uma sensação boa, mas, para ela, é uma forma de lidar
com a montanha-russa que é a vida, de validar a tristeza,
de transformá-la em algo que conecta você com outras
pessoas, não em algo que te diminui. Meu Deus, o tanto
que deixei a dor me diminuir nos últimos 13 anos...
Noah mexe o joelho, apenas alguns centímetros, e
encosta no de Summer durante a apresentação. Talvez
ele esteja tão absorto na música que nem tenha
reparado no gesto. Ou talvez a música seja a desculpa
perfeita para algo que ele já queria fazer.
Summer endireita a coluna. De esguelha, ela percebe
meu olhar e ergue os lábios em um meio sorrisinho.
Então voltamos a observar Liana.
Diante dos nossos olhos, Liana canta a letra simples
que fala sobre ser uma borboleta, e fica claro para todos
nós que ela é uma estrela.
36
••••••

2018

Mais alguns dias se passam enquanto consolidamos o


trabalho e voltamos com o coro. Todos ficam surpresos
com as mudanças, mas observam e se engajam – alguns
até perdem suas deixas por estarem envolvidos demais
no programa. Kyle fala com Michael toda noite e nos
passa as orientações dele pela manhã. Nós as ignoramos
solenemente. Tenho para mim que Kyle não está
comunicando a extensão das nossas alterações. Talvez
ele seja um jovem ansioso que a gente colocou em uma
situação bem complicada. Ou talvez Kyle saiba que
Michael daria um fim ao nosso experimento se
descobrisse a verdade e queira nos dar a chance de que
isso dê certo. A Atlas envia um representante que fica no
ensaio uma ou duas horas toda tarde, para garantir que
estejamos progredindo. Nesse período, focamos nas
partes que não foram modificadas, enquanto Kyle se
posiciona com ar de carrasco e nos obriga a repassar o
remix várias e várias vezes.
Por fim, a menos de uma semana da apresentação de
verdade, descobrimos que Michael já está bem o
suficiente para voltar. Ele quer começar com um ensaio
geral para avaliar em que pé estamos e o que
precisamos trabalhar durante o tempo limitado que nos
resta.
Chego ao estúdio ao mesmo tempo que Summer.
– Como você está? – pergunto a ela.
– Ah, nervosa.
– É.
– Mas – ela me dá um olhar astuto – falei com o Noah
ontem na hora em que fomos embora. Vamos sair esta
noite. Pra “botar o papo em dia” sozinhos. Vou conseguir
esse áudio.
Michael entra como um rei que retorna, e todos na
mesma hora o bajulam, saindo correndo para pegar uma
cadeira para ele. Vou para o corredor e me alongo, e um
homem vem em minha direção. O Sr. Atlas.
– Katherine – me cumprimenta, inclinando o chapéu
para mim.
Sério, ele saiu direto de uma foto em preto e branco.
Ele é a única pessoa nesse reencontro que me chama
pelo nome, como pedi. O restante continua me
chamando de Kat. Em algum ponto, eu parei de me
importar.
– Ah! Não sabia que o senhor viria hoje.
– Bem, temos passado por uma combinação e tanto
de eventos. Nossa audiência vai ser maior do que
esperávamos. Estou tornando isso minha prioridade
máxima.
Os assistentes de produção organizam uma fileira de
cadeiras para os espectadores importantes. Kyle se senta
em uma delas, claramente apavorado, observando
Michal de soslaio. A garrafa térmica com chá treme tanto
em suas mãos que a tampa é a única coisa que impede
que as pessoas perto dele ganhem uma queimadura de
segundo grau.
Na cadeira ao meu lado, o telefone de Liana se
acende com uma mensagem de texto de Javier e, em
seguida, mais uma:
Amor, por favor, vamos conversar?
Ela vira a tela do telefone para baixo. Digitei um
milhão de mensagens parecidas com essa para Miheer e
as excluí, tentando respeitar sua vontade de dar um
tempo.
Nós quatro nos juntamos.
– Beleza – digo, em voz baixa. – Eles vão ficar...
surpresos com o que fizemos. Mas, se a gente se
apresentar bem o suficiente, não vão ter escolha a não
ser reconhecer que esse roteiro é bom. Então, coragem.
– É isso aí – diz Noah.
Summer assente, os lábios franzidos, enquanto Liana
cantarola para fazer um aquecimento de última hora nas
cordas vocais. Nós quatro apertamos as mãos. E então
começamos.
O programa tem um começo bem normal. E então
chega a hora de Summer entrar.
“Olá, gente festeira!”, era o que Michael a fazia gritar
em seu roteiro. Em vez disso, a multidão se abre e lá está
ela, no meio, corada.
– Oi, pessoal – diz, toda inocente e nervosa. – Ah,
como é bom estar de volta.
Não vou olhar para Michael. Não vou olhar para o Sr.
Atlas. Eu me jogo de cabeça no programa, assim como os
outros estão fazendo, e seguimos em frente, surfando na
adrenalina, atentos e cheios de energia e com uma
conexão incrível entre nós.
Tem algo de transgressor no que criamos. Fazer de
Summer alguém mais inocente, do jeito que era naquela
época, causa uma dissonância cognitiva no público. Se
ela surgisse como um desastre total, eles poderiam rir e
se sentir superiores a ela. Chegando doce e tímida, como
se os últimos 13 anos nunca tivessem acontecido, fará a
mente deles entra em pane. Será que ela é assim de
verdade e fomos injustos? Ou, se for mesmo o caos que
aparece nos tabloides, quem é o responsável, quem é
cúmplice em sua queda até o momento? Somos todos
nós?
Liana se destaca de uma forma que nunca tinha feito.
Embora eu evite olhar para Michael e o Sr. Atlas, sem
querer vejo de relance algumas pessoas na plateia
enquanto Liana canta “Borboleta”, e elas estão
inclinadas para a frente como se estivessem prestes a
cair da cadeira.
Noah some no fundo do palco. Ele tem coisas mais
grandiosas em andamento, então não precisa estar sob
os holofotes aqui e, tenho que admitir, mesmo relutando,
que isso é bem generoso de sua parte. Ele está se
divertindo, voltando a mostrar um pouco daquela energia
pueril que costumava ter, mas, acima de tudo, está nos
pondo em foco, sendo encantador, mas não espetacular.
Bom, a não ser pelo beijo e pela cena que o precede,
escrita por Summer. Isso, sim, é espetacular.
Eu me saio bem no meu papel. Não vim aqui para
fazer o mundo exigir meu retorno como atriz. Sou
competente, como sempre fui. Até chegarmos ao final,
quando Summer acorda e eu me desculpo com ela.
Contenho as lágrimas enquanto ela me abraça. Claro,
não minto para mim que Summer me perdoou e ela
também não vai dizer isso. Mas é muito bom estar em
seu abraço.
O último acorde da música final soa, nossas vozes
triunfantes se mesclando, o estúdio de ensaio tomado
pelo nosso som. É tão incrível e bom. Eles têm que
perceber isso. Com essa versão, Liana vai tornar
impossível que a ignorem, tão gigante e esplendorosa
que Javier nunca mais vai poder diminuí-la. Summer vai
conquistar sua redenção, junto com a vingança pela qual
tanto anseia, e talvez a redenção em si seja tão doce que
ela decida que é o suficiente e não precise se vingar no
fim das contas. (Por que estou pensando desse jeito? Eu
quero acabar com o Noah!) E eu vou poder ir para casa
depois de ter feito o que vim fazer e ver o que me resta
lá.
Nós nos curvamos, e então o silêncio impera. Por fim,
olho para Michael, que está rígido em sua cadeira. Todos
olham para ele. A seu lado, o rosto de Kyle está verde.
– Mas – diz Michael, bem devagar – que porra foi essa?
– Não grite, não se estresse – murmura seu assistente.
– Não estou gritando! – Ele aperta a têmpora com o
dedo. – Estou perguntando com toda a calma do mundo
o que é que eles pensam que estão fazendo com o meu
programa.
Tudo bem, isso não é de todo inesperado. Ninguém diz
nada, então pigarreio.
– A gente sabia que você queria bolar alternativas pro
que não vinha funcionando, mas a gente não queria
interferir na sua recuperação, então trabalhamos juntos
para...
– Para fazer isso não ter nada a ver com Os
sonhadores? Os sonhadores é pra ser divertido! É pra
deixar as pessoas felizes, beleza? – A voz de Michael
começa a ficar mais alta.
– Calma – sussurra seu assistente e, com muito
esforço, Michael respira fundo, baixa o tom e continua.
– É pra fazer as pessoas rirem e baterem os pés no
ritmo da música. Não é pra elas quererem se afogar!
Michael quer proteger o que escreveu, mas quem
manda de verdade aqui é o Sr. Atlas, a pessoa cuja
aprovação vai fazer a diferença, então ainda há uma
chance. Ainda bem que ele veio. Ele está vendo Michael
vociferar, esperando o homem cansar.
– E nem me venham com essa troca de quem canta o
quê. O público não vem pra ver outra pessoa cantar a
música da Summer.
Ao lado dele, Kyle assente, tentando parecer solícito, e
diz:
– Hum, hum.
Michael se vira para ele.
– Kyle, você está demitido.
– A culpa não é do Kyle – diz Summer.
– Ah, tenho certeza de que é culpa de todo mundo,
mas, infelizmente, não posso demitir nenhum de vocês
quatro.
– Michael, a gente botou muita pressão nele – afirma
Noah.
– E um bom diretor não deve se deixar ser
pressionado!
Kyle lentamente recolhe suas coisas e começa a ir
embora. Noah bate em seu ombro.
– Olha, cara – diz ele, bem baixo –, vamos manter
contato. Vou dar um jeito nisso pra você.
Liana olha para baixo. É como se tivesse uma pedra
no meu estômago. O Sr. Atlas ainda não se pronunciou.
Noah tenta mais uma vez, com um sorriso amigável no
rosto.
– Mas, olha só, podemos tentar encontrar um meio-
termo. Deixar a coisa leve, mas...
– A criatividade é ótima, mas vocês não são os
roteiristas do projeto. O Michael é. – Como sempre, a voz
suave do Sr. Atlas tem certo peso e emudece todos nós.
Embora ele fale com tranquilidade, percebo a tensão em
seu corpo. Nossas mudanças também o aborreceram. –
Devo lembrar que vocês todos assinaram um contrato
como atores. Atores seguem o roteiro. – Ficamos imóveis
feito crianças levando um sermão, e ele continua: – Há
muita atenção voltada para esse reencontro e não é hora
de arriscar. É hora de dar ao público o que eles querem
ver. Entendido?
Todos nós assentimentos, sem dizer nada. E temos
escolha? Esse tempo todo, a gente já devia saber: a
máquina Atlas sempre vence.
– Ótimo – diz o Sr. Atlas.
Michael bate palmas.
– Temos muito trabalho a fazer, então vamos voltar
para o momento em que Summer entra.
Nós recomeçamos. O elenco de apoio evita nos
encarar.
Summer entra e agita os braços, mas seus
movimentos são vazios.
– Olá, gente festeira!
37
••••••

2018

Depois de um resto de ensaio deprimente, no qual


jogamos fora tudo a que tínhamos nos dedicado tanto e
voltamos à declamação mecânica das falas escritas por
Michael, saímos do estúdio lado a lado, cabisbaixos.
Ficamos em silêncio até que Noah diz:
– Um amigo meu é dono de um bar que não fica muito
longe daqui e tem uma sala privativa. Querem ir?
Espero encontrar uma boate requintada, mas o bar
em questão é um restaurante mexicano – um mexicano
de Los Angeles que está em alta e oferece coquetéis
elaborados de mezcal, mas é aconchegante e receptivo.
Quem dera se a gente pudesse ficar na parte da frente,
com as janelas enormes, as paredes pintadas com cores
vibrantes e grupos de amigos se divertindo. Em vez
disso, andamos rápido até a sala nos fundos, que tem
uma iluminação mais tênue, e nos sentamos numa ponta
da mesa grande. Um homem com uma camisa
artisticamente desbotada e um enorme sorriso no rosto
chega carregando quatro copinhos e uma garrafa de
tequila.
– Meu chapa!
Ele dá um tapinha nas costas de Noah, que o
apresenta: Hector, o dono do local. Eles trocam
amenidades, enquanto nós três viramos nossas bebidas
e esperamos os dois terminarem. Hector nos serve mais
uma dose e bate papo com Noah por um tempo
desconfortavelmente longo. Summer vira a segunda
dose.
– Vou pedir que um dos meus melhores garçons cuide
de você e dessas lindas moças – diz Hector.
Não demora muito, um garçom surge com uma cesta
de batatas fritas e molho, além de quatro taças de um
coquetel de tequila que ele afirma ser o “favorito da
nossa mixologista”, e anota os pedidos da rodada
seguinte.
Todos nós nos jogamos nas bebidas e apenas olhamos
para as batatas – que estão com uma cara ótima:
brilham da fritura e têm um toquezinho de sal –, porque a
voz de Harriet na nossa cabeça e nossos antigos
complexos entram em ação. Depois do ensaio
desastroso, eles nos impedem de ser o tipo de gente que
consegue comer batata frita de graça em um bar. Até
Noah fica só olhando, o que evidencia uma mudança
nele. Antigamente, ele comia tudo o que queria. Mas
agora Leopardo da Neve deve ter enfiado algumas ideias
nada saudáveis em sua cabeça também. Além disso,
todas as suas roupas são feitas sob medida (algum
estilista parece ter incinerado sua coleção de bermudas
esportivas largas). Quanto mais Noah se torna o maior
gostosão das telonas, mais está sujeito à mesma pressão
que o restante de nós sofre desde o início.
Noah e Liana estão em um papinho desanimado sobre
como ele conheceu Hector quando interrompo.
– É muito frustrante saber que a gente podia ser muito
melhor.
– Se a gente não precisasse afagar o ego do Michael?
Sim – responde Liana.
Nossas ideias serem rejeitadas não deveria ser algo
tão ruim assim. O Sr. Atlas tem razão. Não somos nem
roteiristas nem diretores. Somos o rosto, a voz e o
drama, e eu entendo essa parte. Claro, a gente ouve
histórias sobre sets de filmagem idílicos onde todo
mundo colabora para valer e, se um dia alguém me
desse um filme para dirigir, eu seguiria por esse
caminho. Mas a maioria dos projetos não opera dessa
forma.
Ainda assim, Os sonhadores está muito atrelado a
quem somos. Nossos personagens levam nossos nomes,
pelo amor de Deus, então como é que não temos o
direito de opinar em nada a respeito deles?
De alguma forma, não consigo mesmo acreditar que
vamos desistir sem lutar. Não tinha me dado conta de
que eu era tão idealista e tola.
– Não consigo parar de pensar que tem que ter um
jeito de fazer esse pessoal entender – começo.
– A gente não vai ganhar, porque eles são homens
poderosos. E homens poderosos fazem o que bem
entendem – diz Liana. – Porque homens são um lixo. Sem
ofensa, Noah.
Ele solta algo que fica entre uma tosse e uma risada.
– Entendo por que pensa assim. Me avisa se eu puder
pagar alguma penitência em nome do meu gênero.
Ah, Noah não tem ideia de quanto a gente vai fazê-lo
pagar. Claro, fui envolvida pela magia de trabalhar com
ele nos últimos dias, mas o Sr. Atlas e Michael foram de
grande ajuda ao me lembrar que isso não é o mundo
real.
Summer está quieta de um jeito inquietante, bebendo
mais rápido e com mais vontade do que a vi fazer nesse
tempo todo desde que voltamos. Ela não disse que
estava pegando leve na bebida para manter o
profissionalismo? Ela vira seu coquetel de tequila de uma
vez só, como se fosse um universitário entornando uma
cerveja goela abaixo, então pega a metade que restava
da minha.
– Na verdade, eu ia beber – falo.
O garçom volta com uma bandeja de copos.
– Pode levar essa batata – diz Liana para ele, que põe
a cesta toda na bandeja sem pensar duas vezes.
Afinal, isso aqui é Los Angeles.
Ficamos ali em silêncio mais um tempo. Liana pega
seu telefone e rola a tela de mensagens de Javier, as
mesmas que tem ignorado. Começa a digitar uma
resposta – um coração, sério? –, então me pega
bisbilhotando.
– Que foi?
– Me diz que não vai ficar com ele. Você não pode
fazer isso.
– Desculpa, mas a vida é minha.
Ela me fuzila com o olhar e volta a digitar.
– Mas... – começo.
– Por que não bota ordem na sua casa antes de julgar
a dos outros? – rebate ela. – Não ouvi você falar do
Miheer a semana toda.
Sinto meu coração afundar no peito, e Noah se mete.
– Beleza, quero propor um brinde. – Ele ergue seu
copo. – Sei que a gente está se sentindo um lixo agora.
Isso é um saco. Mas um brinde a nós, que demos o nosso
melhor.
Liana e eu brindamos com ele, mas Summer primeiro
leva sua bebida aos lábios e dá um longo gole, depois
estreita os olhos e ergue seu copo.
– Ah, é, um saco – diz ela, imitando a voz de Noah,
mas lhe dando um tom grosseiro e indiferente. – Que
pena. Enfim.
Nós três trocamos olhares, confusos.
– Hum... – diz Noah.
Ela põe o copo na mesa com força.
– É claro que pra você é só um saco. É só uma parada
de descanso nas belas férias que são a sua vida. Você
pode ir lá e dizer qualquer fala medíocre que o Michael
tenha escrito pra você e vai ficar tudo bem, porque você
é o Leopardo da Neve. Aliás, tem um monte de super-
heróis idiotas, mas esse aí se supera.
– Olha, vamos com calma – digo, colocando a mão no
braço dela, que se livra do meu toque.
– Só estou comentando. Puxa vida, ele consegue ficar
aquecido no frio, então está sempre correndo pela neve
sem camisa? O Homem-Aranha é que ele não é.
Liana beberica seu drinque, os olhos indo e vindo
entre Summer e Noah, como se assistisse a seu reality
show favorito.
– Eu sei que não é arte de alto nível – diz Noah, em
voz baixa. – Mas é uma oportunidade incrível.
– Bem, nem todo mundo tem oportunidades incríveis.
Pra alguns de nós, esta é a última chance. Você não tem
ideia do que é a sua vida toda ser definida por isso,
porque esse programa te deu só um começo. – Ela fala
cada vez mais alto, as bochechas ficando vermelhas. – E
digo mais: nem é porque você tenha um talento incrível
que a gente não tem. A Liana canta melhor, a Kat atua
melhor e eu danço melhor, então, sério, você é melhor
em quê? Seu poder de super-herói não é você ficar
aquecido no frio. É você conseguir escapar de qualquer
coisa ileso.
– Summer... – começa ele.
– Guarda essa ladainha de “que pena” pra você. Eu
não quero ouvir.
Ela olha ao redor, buscando o garçom, então empurra
a cadeira para trás e sai da sala em direção à barulheira
da entrada.
O rosto de Noah está pálido.
– Isso foi... hum. – Ele engole em seco. – Melhor eu ir
atrás dela.
Liana ergue uma sobrancelha.
– No meio de um bar lotado?
– Eu vou – digo. – Fiquem aqui.
Quando chego à área principal do restaurante,
Summer está tomando tequila com estranhos no balcão,
uma multidão começa a se formar e pessoas sacam
celulares e comemoram quando ela lambe o sal em sua
mão, ergue o braço e grita. Um pop mexicano moderno
retumba nas caixas de som. O lugar estava cheio quando
a gente chegou, mas agora está lotado. Uma garota
muito magra, de 20 e poucos anos, vira uma dose ao
lado de Summer, joga os braços ao redor dela e sussurra
algo em seu ouvido.
Summer hesita, mas a garota a pega pela mão e a tira
de vista. Passo pelo meio da multidão, me livrando das
pessoas que querem tomar uma dose comigo também.
– Não... Foi mal... Não – repito, até chegar ao banheiro.
A porta está trancada, e eu a esmurro.
– Tá ocupado! – grita a garota, cheia de risinhos.
– É a Kat. Me deixa entrar.
– Ai, meu Deus, a Kat de Os sonhadores? – A porta se
abre. Ela está segurando um cartão de crédito, as bordas
cheias de pó branco. – Melhor noite do mundo! Quer um
pouco?
No banheiro, Summer olha para a prateleira acima da
pia onde está a cocaína que a garota estava partindo. Ela
olha para o pó como quem não sabe se corre até ele ou
para longe dele, então ajo por instinto: jogo tudo para
fora da prateleira, e o pó se dissipa no ar. A garota solta
um grito estrangulado, estendendo a mão inutilmente,
como se pudesse refazer as carreiras.
– Tinha uns cinquenta dólares de coca aí!
Faço minha expressão mais perversa e a olho de cima
a baixo.
– Some daqui agora.
Ela engole em seco e então se vira para a porta.
– Você me deve cinquenta dólares – cospe ela, antes
de desaparecer.
A porta se fecha atrás dela, transformando o barulho
lá de fora em um leve zumbido.
– Obrigada – diz Summer, baixinho, sem me olhar nos
olhos. – Eu ia... Não sei o que eu ia fazer.
Ela desliza pela parede até o chão do banheiro. Eu me
agacho ao lado dela. (Não vou me sentar. Provavelmente
dá para uma pessoa pegar umas cinco doenças
diferentes nesse chão, e não estou bêbada a esse ponto.)
Ela olha fixo para a frente.
– Eu estraguei tudo. Fui burra e impulsiva e fiquei com
raiva. Não tem como ele se abrir comigo de novo. – Ela
finca as unhas na palma da mão. – É claro que eu não ia
conseguir me segurar só mais uma noite.
– Vou conseguir pegar o áudio – digo.
Ela me encara, os olhos injetados.
– Vai?
– Vou. Foi por isso que você me deixou te ajudar, não
foi? Pra que eu assuma o controle quando você precisar
descansar. Volta pro hotel, bebe uns três litros de água e
vai pra cama.
Ela assente, tira o cabelo do rosto, então diz em um
tom de voz baixo e envergonhado:
– Acho que preciso que alguém fique comigo.
– Vou mandar uma mensagem pra Liana.
Pego meu telefone e digito:
Encontra a gente no banheiro. Leva a Summer pro
hotel e toma conta pra ela não ter uma recaída? Por
favor.
Summer se levanta devagar e se encara no espelho, o
rosto sofrido, os olhos sem brilho.
– Odeio isso – diz ela para seu reflexo. – Odeio que
nunca tenha fim. Nunca chega um dia em que a gente
sabe que, dali em diante, vai ficar tudo bem.
Coloco a mão nas costas dela, hesitante, e sinto sua
respiração acelerada. A porta se abre. É Liana, meio sem
fôlego.
– Vem aqui, meu amor – diz ela para Summer,
colocando os braços a seu redor, e Summer descansa a
cabeça no ombro de Liana. – Eu e você vamos ver um
filminho esta noite e falar sobre como o mundo é um lixo,
está bem?
– Tudo certo? – pergunto baixinho para Liana.
– Sim, já chamei um Uber.
Ela se vira e leva Summer embora.
Eu me olho no espelho, o coração disparado, e tento
bolar um plano. Dane-se, vou no improviso.
Volto pelo bar até a sala privativa, onde Noah está na
mesa tomando uma cerveja.
– Você está bem? – pergunto para ele.
– Ela está?
– Vai ficar. Foi só um dia difícil pra todos nós.
O barulho da música lá fora também faz um zumbido
aqui, apesar da porta, e o chão vibra sob meus pés no
ritmo do grave pesado. Não é o lugar ideal para tentar
gravar um áudio secreto, ainda mais com o garçom
entrando e saindo, interrompendo qualquer possibilidade
de alguém abrir o coração.
– Vamos sair daqui.
– Boa ideia.
Noah se levanta e deixa dinheiro na mesa, uma
gorjeta generosa para o garçom.
– Quer ir pra sua casa? – pergunto. Ele hesita, então
pressiono mais. – A noite já foi bem dramática por si só.
Acho que a gente deveria ir pra algum lugar sem outras
pessoas em volta.
Ele passa as mãos pelo cabelo e fecha os olhos com
força.
– Talvez a gente devesse ir pra cama dormir e...
– Por favor? Não posso ir pra casa agora.
Nós dois nos encaramos. Será que ele acha que estou
dando em cima dele, querendo concluir o que
começamos tantos anos atrás? Bom, se isso fizer Noah
se abrir, ótimo.
Ele é o primeiro a desviar o olhar.
– Claro. Vamos nessa.
38
••••••

2018

Noah mora em uma casa cinzenta e fria em uma colina


de Silver Lake: paredes de concreto entrecortadas por
janelas imensas, uma daquelas residências que parecem
mais arte moderna do que um lugar onde as pessoas
tomam café da manhã e fazem cocô. Não é enorme, mas
é fantástica. Ele destranca a porta e me conduz para
dentro de sua ampla sala de estar, que tem um quê de
apartamento sofisticado de homem solteiro. No meio da
sala, fica um sofá de couro com mesas de metal em cada
ponta.
– Tem algo pra beber? – pergunto.
– O que você quer?
– Podemos continuar na tequila.
Ele vai até um carrinho de bar e serve duas doses de
tequila com gelo enquanto olho ao redor. Há um toca-
discos num canto, uma janela grande e uma parede
personalizada, verde-escura com um padrão de folhas e
nozes em preto. Tudo combina muito bem e lembra um
pouquinho um set de filmagem.
– Esse lugar é bem moderno – comento.
– É, minha casa é mais moderna que eu. – Ele aponta
o toca-discos com um leve sorriso no rosto. – Não ouço
discos. Acho que não sei nem ligar isso aí.
– Comprou para se inspirar a ser diferente?
– A Cassie escolheu este lugar e, quando me mudei
pra cá, no ano passado, ela contratou um designer como
presente. Estava cansada da aparência de república de
universitários da minha casa antiga. Eu falei pro designer
que gostava de música e natureza, aí deu nisto aqui.
– Fiquei triste quando soube que vocês terminaram –
digo.
– Pois é. Ela é uma boa pessoa. Mas a gente chegou
naquele ponto em que ela precisava saber se a gente ia
se casar ou não e eu não tinha muita certeza, então...
Noah balança a cabeça, dá um gole na bebida e vem
me entregar o outro copo. Agora que estou aqui, sozinha
com ele em sua casa, tomo ciência de sua presença de
uma nova maneira: como ele é grande, como é vital.
Quando ele me entrega o copo e eu o pego, nossos
dedos se tocam por um instante. Estamos tentando
desvendar as intenções um do outro – talvez a nossa
própria intenção. Sei o que aconteceu da última vez que
o ego de Noah foi ferido e ele precisou de uma distração.
E pode ser que eu compreenda o comportamento dele,
porque, cada vez que penso na dor que me espera em
casa, também fico ansiosa por uma distração.
Então Noah solta o copo, e dou um golinho mínimo,
tentando me manter atenta para fazer o que prometi a
Summer. Ando pela sala de estar em direção à cozinha.
– Estou fazendo um tour por conta própria – brinco. –
Vou chutar e dizer que você mal usou qualquer coisa que
tenha aqui também.
– Isso aí – responde ele, enquanto despejo a maior
parte da minha tequila na pia. – Fico muito tempo fora da
cidade filmando, sabe?
Quando volto, ele está sentado no sofá. Eu me sento
também. Perto, mas não tão perto, então ergo meu copo.
– Tem refil?
– Eita, beleza. Preciso correr pra te acompanhar.
Ele vira o resto de sua bebida.
Pego o telefone e finjo mandar uma mensagem.
– Vou só ver como estão a Liana e a Summer.
– Claro. Você me conta o que elas falarem?
Dou uma olhada rápida na mensagem que já recebi
de Liana, que diz que colocou Summer na cama, mas vai
ficar no quarto com ela, só para garantir. Então abro o
aplicativo de gravação de voz e o aciono, depois coloco o
telefone do meu lado no sofá de couro, com a tela virada
para baixo.
– Acho que elas estão bem – digo. E então contemplo
sua parede personalizada. – Você sempre foi da natureza,
não é? Lembro que uma vez você disse que queria ser
guarda-florestal quando era criança. Foi quando levou a
gente pra fazer trilha.
– Aquele dia foi legal.
Ele estreita os olhos para o próprio copo vazio.
– Eu finalmente vi Silvestres – conto, e ele olha para
mim, cauteloso. – É excelente. Chorei à beça, óbvio.
– Valeu.
– Eu não tinha percebido... Aqueles pássaros são você
e a Summer. São os personagens que vocês fizeram
juntos, não é?
Ele se levanta e vai encher o copo outra vez.
– É – diz ele, em um tom de voz baixo, quase
inaudível, enquanto a tequila cai no copo.
Não faço ideia se o gravador conseguiu captar do
sofá. Pego o telefone e vou até ele.
– Você sabia disso? – pergunta ele. – Eu achava que
fosse uma coisa particular.
– Não, eu me lembro de você e da Summer
inventando aqueles pássaros.
Ele assente com uma expressão indecifrável.
– Não foi a Summer que inventou a personagem da
rola-carpideira?
– Foi. Na trilha – responde ele.
Talvez isso já baste, mas ainda é muito inconsistente,
então queimo a cabeça pensando em outra forma de
pressioná-lo. Só que ele prossegue:
– Não escrevi aquele roteiro pra ser produzido. Não
contei isso pra ninguém, mas talvez você entenda. A
Summer estava numa clínica de reabilitação. Foi naquela
vez em que ela ia se casar, lembra? E eu só fiquei...
preocupado. Você deve ter sentido algo parecido.
Summer vai ouvir isso, e não quero magoá-la, mas
preciso que Noah continue, então assinto.
– Fiquei preocupado. E escrever esse roteiro me
ajudou. Foi como se eu tivesse que despejar tudo, ou não
conseguiria dormir. Era pra ser uma coisa só minha. A
gente criou a história juntos, e a Summer era o pássaro,
e, pelo menos no roteiro, eu ia dar um final feliz pra ela. –
Noah morde o lábio. – Mas acabou ficando muito bom.
– Então você decidiu... – eu o instigo.
– Bom, a Cassie sabia que eu estava escrevendo
alguma coisa... Quero dizer, fiquei obcecado com aquilo...
E deixei aberto no meu computador um dia. Ela leu e
falou que eu seria um idiota se não deixasse ela entregar
o roteiro pro pai dela dirigir. E eu não queria que o texto
ficasse pra sempre em um disco rígido. Acho... – Ele para
e dá um sorriso melancólico. – Tem o cara que consegue
tirar 10 em matemática no ensino médio e tem o Gênio
indomável, sabe? Sempre fui o aluno que tirava 10, e
Silvestres foi a primeira vez que senti que eu podia ser
muito mais. Então quis que as pessoas vissem. Talvez
tenha sido puro egoísmo. Sei lá.
– O que a Summer falou quando você a procurou pra
conversar sobre isso?
Ele franze a testa, e finjo surpresa. Estou atuando em
uma cena com ele, como já fiz tantas vezes antes. É só
isso.
– Você não procurou a Summer?
– Bom, não. Ela estava em reabilitação. Eu não quis...
atrapalhar. Achei que, se eu entrasse em contato do
nada pra dizer que tinha escrito um roteiro sobre nós
dois... Eu não sabia contra o que ela estava lutando, mas
não achei que isso fosse ajudar.
– Mas pelo menos você avisou a ela quando o filme
saiu.
Ele fica meio atrapalhado.
– Àquela altura, ela estava na clínica de novo. Falei
com uma pessoa de confiança: meu agente. Ele tinha
entes queridos que foram e voltaram pra reabilitação e
disse que não é pra incomodar quando eles estão lá.
– Ué, seu agente não quis que você entrasse em
contato com alguém que tinha que receber esse crédito?
Estou chocada. – Isso sai com mais rispidez do que eu
pretendia.
– Eu... – começa ele, a tequila agora batendo de
verdade. – Achei que colocar o nome dela talvez fosse
violar sua privacidade.
– E eu acho que foi bem egoísta nem ter dado essa
escolha a ela.
Ele tem um milhão de desculpas, não? E cada uma me
deixa com mais raiva, prestes a estourar.
– Mas ela falou... Ela me disse que assistiu e achou
lindo. Ela está de boa com isso.
– Ah, para de ser escroto e olhar só pro próprio
umbigo! Como é que alguém vai ficar de boa com isso? E
como alguém pode ser tão egocêntrico a ponto de...
Eu me interrompo. Já consegui exatamente o que
queria, então paro, salvo a gravação e, em seguida, abro
um aplicativo para pedir um carro.
– Desculpa. Preciso ir.
– Kat, espera – pede ele, e segura meu braço.
Esse é o momento em que ele vai tentar me beijar, se
perder no encontro dos nossos corpos, ou confirmar,
apesar da minha raiva, que eu ainda o desejo.
E, assim que ele me toca, percebo com absoluta
clareza que não o desejo. Ele é meu passado e, sem
dúvida, causou algumas... perturbações nas últimas
semanas. Mas elas não foram nada além de tremores
secundários. Meu futuro é um homem do outro lado do
país, se ele ainda me quiser. Caramba, como eu torço
para que ele ainda me queira.
Porém Noah não tenta me beijar. Em vez disso, pede:
– Posso te contar umas coisas?
E então ele descarrega seu fardo em mim.
39
••••••

SOLILÓQUIO DO NOAH

Eu não queria me apaixonar por Summer Wright. Eu tinha


19 anos, estava começando a me tornar um astro e, pela
primeira vez, me sentia livre pra ficar com quem
quisesse.
Quando eu estava no ensino médio, disse para os
meus irmãos mais velhos que fazia teatro só porque as
meninas ficavam tão desesperadas por héteros lá que
era o melhor lugar para conseguir pegar alguém. Mas só
falei isso para eles pararem de me dar apelidos
homofóbicos. Na verdade, depois que você sai com uma
das garotas do teatro, não pode sair com nenhuma
amiga dela, senão elas acabam tentando arrancar os
olhos uma da outra em cena.
Aí, de repente, eu estava morando em Hollywood e
cercado por um monte de garotas lindas para sair um dia
e nunca mais dar sinal de vida, e me empolguei um
pouquinho. Tinha um grupo de caras que sempre
aparecia nos mesmos testes que eu. Eles me deram o
apelido de Carimba-Pomba. Não precisa comentar:
também me odeio por isso.
A última coisa que eu queria era ficar sofrendo por
alguém que tinha namorado e, talvez, para piorar ainda
mais, se guardasse para o casamento.
Mas aí eu conheci Summer na sala de espera do teste
para ver nossa química. Estávamos conversando quando
um dos caras com quem eu andava saiu do teste.
– CP! – disse ele, me dando um tapinha nas costas. –
Boa sorte lá dentro!
Quando ele foi embora, Summer se virou para mim,
piscando com inocência.
– O que é CP?
– Hã – falei. – Controle de Paternidade.
– Ah – disse ela.
Eu me recostei, tranquilo por saber que ela era só
mais uma atriz doce e meio tapada sobre quem eu tinha
vantagem intelectual. (Acho que a gente precisa
estabelecer logo de cara que eu era um merdinha
arrogante aos 19 anos.) Então ela apontou para a minha
blusa horrorosa.
– Porque essa blusa que você está usando é um ótimo
método contraceptivo?
Eu a encarei. Ela levou as mãos à boca e ficou corada,
como se não acreditasse na própria audácia.
– Me desculpa! Isso foi muito grosseiro.
– Não, você tem razão. Onde é que eu estava com a
cabeça pra usar isso?
Eu só tinha pegado uma blusa qualquer da pilha de
roupas naquela manhã, sem dar importância. Porque,
sim, trabalho é trabalho, então eu queria conseguir
entrar para o programa. Mas, ao mesmo tempo,
trabalhar para a Atlas não era maneiro. Eu preferia
interpretar um sujeito solitário atormentado em alguma
adaptação literária ou, sei lá, um surfista na Warner Bros.
Mas, sentando ali ao lado da Summer, nós dois
gargalhando, percebi que eu faria qualquer coisa para
ser contratado – dar cambalhota, fazer um juramento de
sangue – se ela atuasse comigo.
Eu entendia Summer, ou ao menos achava que sim.
Ela era do tipo que se esforçava para agradar, sempre
tentava se apresentar do jeito que as pessoas queriam
que ela fosse. Mas, comigo, ela podia baixar a guarda e
ser ela mesma: bobona, meio nerd (o amor dela por
musicais é coisa de outro mundo, ela sabia a letra de
qualquer música que eu dissesse), criativa e inteligente.
É, tudo bem, eu me sentia especial por ser quem
conseguia deixar Summer ser quem era de verdade. Mas
eu também gostava muito da Summer de verdade. Não.
Gostava, não: amava. Eu a amava tanto que acordava às
seis da manhã sempre que a gente filmava, mesmo que
eu não precisasse sair até as oito. Era como se o meu
corpo tivesse um alarme interno que disparava: Hoje
você vai encontrar com ela de novo.
E aí apareceu a merda daquele diário.
A Summer que eu conhecia não ia mentir para mim.
Eu ia subir naquele palco e beijá-la na frente do mundo
todo. Que eles achassem o que quisessem, mas eu
acreditava nela.
Eu estava assistindo ao solo de Summer dos
bastidores quando aquele namorado idiota dela apareceu
com um crachá de VIP pendurado no pescoço. Lucas.
Sério, eu odiava aquele cara. Não olhei para ele, só fiquei
com o olhar fixo à frente, torcendo para que ele passasse
direto, porque, se tentasse algo comigo, eu ia arrebentar
a cara dele ali mesmo, nos bastidores, e o Michael ia ficar
transtornado.
– Ela enganou a gente direitinho, hein? – disse ele,
como se fôssemos companheiros de guerra.
– Ela não escreveu o diário, cara. Eu sei.
– Como?
– Porque eu conheço ela. – Não tinha mais por que
tentar evitar controvérsias. – Porque a gente se ama e
vai ficar junto, então é melhor você se acostumar com a
ideia.
Achei que ele fosse me dar um soco, mas, em vez
disso, ele me olhou com pena. Pelo menos, eu achei que
era pena. Era difícil dizer qual emoção ele queria
demonstrar naquele rosto imbecil. (Eita, beleza. Parece
que ainda odeio o cara.)
– Ela falou que quer ficar com você? Que coisa! Faz
meses que ela vem dizendo que não tenho motivo pra
me preocupar com você. – Eu já sabia disso. Ela
precisava fazer isso por causa do contrato com o filme. –
Ela mentiu pra nós dois, mentiu pra todo mundo sobre
ser virgem e...
O voto de castidade de Summer era algo importante
para ela. Eu não ia deixar Lucas jogar o nome dela na
lama. Meus punhos se fecharam.
– Eu já falei, o diário não é verdade.
– Não sei do lance do beco, mas sei que ela não é
virgem. Por experiência.
Fico paralisado. Então me livro do sentimento. E daí se
ela não fosse mais virgem? Eu estava tentando apoiar as
escolhas dela, mas, ei, se ela não quisesse esperar até o
casamento, eu podia dar muito apoio a isso. Ela
provavelmente tinha transado com Lucas meses atrás,
até anos, antes de saber o que eu sentia por ela e de
sentir o mesmo por mim.
Lucas teve a audácia de colocar a mão no me ombro.
– Acho que nós dois fomos enganados por uma ótima
atriz.
Empurrei a mão dele para longe.
– Fale por você. Comigo, é de verdade.
Ele assentiu como se estivesse montando um quebra-
cabeça (provavelmente um destinado a crianças com
menos de 10 anos).
– Ah. Ela me contou que você tinha uma obsessão
bizarra por ela. Semana passada, antes de dar pra mim
no meu carro.
A expressão chula não saiu com naturalidade. Fez
Lucas contorcer o rosto de um jeito meio estranho, como
se ele soubesse que era algo que as pessoas diziam, mas
nunca tivesse descido tanto o nível. Ele esfregou a testa.
– Olha, estou falando pro seu bem. Ela ia esperar o
contrato do filme sair pra deixar você na mão. – Lucas se
virou para ir embora. – Mas, se quiser viver no mundo da
fantasia, ela é toda sua. – E então foi embora.
O que me matou foi que eu sabia que Lucas não
estava mentindo. Porque ele não era esperto o bastante
para ser manipulador. Não era inteligente como a
Summer.
O contrato do filme. Ela tinha usado exatamente a
mesma desculpa para nós dois. Então ela me enxergava
como um fardo, como se fosse só mais um Lucas? Por
que ela me enganaria? Nossa química, foi a única coisa
em que consegui pensar. Éramos bons atores, mas era
nossa química que nos tornava especiais. Talvez ela não
quisesse destruir isso antes do contrato do filme.
Alguém do meu lado me cutucou.
– É a sua deixa!
Entrei no palco correndo para a última cena, dúvidas e
mais dúvidas se amontoando na minha cabeça. Desde
que soube da morte do pai dela, eu não tinha beijado
mais ninguém. Eu tinha sido leal a ela, e o que ela
andava fazendo?
Eu acreditava que, de todas as pessoas do mundo, era
para mim que ela mostrava seu verdadeiro eu. Mas todo
mundo acreditava que estava vendo seu verdadeiro eu.
O que me tornava tão diferente? Ela virou seus olhos
lindos e doces para mim e chegou mais perto. Se eu a
beijasse, ia começar a chorar, bem ali no palco, na frente
de todo mundo. Eu não ia conseguir cantar a última
música. Ia desmoronar. E naquela hora só consegui
pensar: “Carimba-Pomba, nada.” Eu era só um covarde.
Então, quando ela deu um passo à frente, eu desviei.

••••••

Michael me deu bons conselhos. Ele me disse aonde eu


deveria ir para ser visto, os lugares onde desaparecer,
que pessoas bajular e que pessoas evitar. Ele acreditava
no meu potencial. E conhecia a gente muito bem.
Quando acordei no dia seguinte depois do programa ao
vivo, cheio de ressaca, confuso e tentando entender as
coisas, fui à casa dele.
Michael me levou até a cozinha e fez um café para
mim. Havia uma edição do Los Angeles Times no balcão,
perto de uma pilha de louça suja, aberto em uma
manchete sobre nós. Ele vasculhou um armário, pegou
uma garrafa de uísque e colocou um pouco no café dele,
depois me ofereceu também.
– Pra curar a ressaca? – perguntou ele. Aceitei. – E aí,
o que está havendo?
– Você acha que tem alguma chance de... – comecei,
sem saber como explicar com palavras a minha
inquietação.
Eu estava completamente perdido depois do que
Summer tinha feito na noite anterior. Mas talvez tivesse
algo que eu estivesse deixando passar.
– Quero dizer, eu nem sei se a Summer teria arranjado
tempo para encontrar todos esses caras que estão
dizendo que... – Minha voz foi morrendo.
Pelo rosto de Michael, deu pra perceber como eu
estava sendo patético. Ele suspirou.
– Olha, se quer meu conselho... vai se divertir com as
atrizes, mas não se apaixone por elas. Confia em mim, já
passei por isso. – Michael estava falando da ex-mulher.
Ele a mencionava às vezes, dizia que ela tinha se tornado
uma pessoa horrível. – Aposto que você ia se dar bem
com supermodelos. E elas mentem muito mal.
– Mas talvez fosse melhor eu ver se a Summer está
bem e...
– E deixar que ela te arraste pro drama dela? – Ele
balançou a cabeça. – Você precisa fazer o que tem que
ser feito. Do meu ponto de vista... daqui a dez anos, você
pode olhar pra trás e pensar: “Caramba, fui tão
dominado por essa maluca que deixei ela acabar com o
meu potencial.” Ou você pode encarar como um
aprendizado... todo mundo passa por isso... e sair melhor
e maior dessa situação. – Ele me segurou pelo ombro. –
Quero que você seja o cara que olha pra trás e pensa:
“Sabe, a Summer ter mostrado quem era de verdade foi
a melhor coisa que me aconteceu.” Consegue fazer isso?
Acho que, desde então, eu tenho tentado.
Não quero bancar um James Bond sofrido, um cara
fechadão que se abriu para uma mulher uma vez, ficou
arrasado e nunca mais amou de novo.
Eu amei a Cassie. Não da mesma forma, mas eu
também não era mais adolescente quando a conheci.
Não havia joguinhos entre nós. Transamos depois de dois
encontros e ficamos juntos de vez depois de dois meses.
Eu a respeitava muito. Mas, de alguma forma, sempre
que a gente começava a falar sobre casamento, eu dava
para trás. Porque eu estava ficando mais famoso e queria
minha liberdade? O retorno do Carimba-Pomba? Não
mesmo. Quem dera nunca mais ouvir esse apelido.
Talvez eu fosse o tipo de pessoa que nunca ia ter certeza
em relação a essas coisas. Uma vez eu achei que tinha
certeza, mas meu radar estava desregulado.
Um dia eu estava na academia, tentando ficar o mais
sarado possível para o meu segundo teste para Leopardo
da Neve, e esbarrei com um cara no rack de pesos.
– E aí, Noah Gideon! – disse ele. – Sou um grande fã.
Tinha algo de familiar nele, embora fosse igual a todos
os outros caras que estavam levantando peso. Ah, sim,
ele era um dos homens que tinham contado para a
imprensa como tinha ido para cama com Summer
durante a segunda temporada de Os sonhadores. Eu não
culpava o sujeito por dormir com ela. Teria feito o
mesmo, sem pensar duas vezes. Mas as entrevistas
reveladoras eram uma merda. Talvez elas me irritassem
especificamente porque eu tinha insinuado algumas
coisas ou tinha rido junto com as pessoas que
insinuavam coisas naquela época, um ou dois anos
depois do programa ao vivo. E, quando penso nisso, eu...
Bom, se pudesse, lidaria com tudo de um jeito diferente
hoje em dia.
Quando aquele cara viu que o reconheci, ele teve a
decência de parecer envergonhado.
– Pois é, aquele lance da Summer. Cara, eu nunca
roubei ela de você – falou ele. – Quero dizer, se é que
vocês tinham mesmo alguma coisa rolando nos
bastidores.
– Como é?
Assim que perguntei, eu já sabia o que ele ia dizer, e
parte de mim quis tampar a boca dele, fazer o cara
engolir as palavras e me deixar em paz. Porque tinha
sido muito conveniente pensar o pior da Summer.
Significava que eu podia pensar o melhor de mim.
– Eu só queria sair no jornal. – O cara deu de ombros.
– E aí, posso tirar uma foto com você?
Não consegui parar de pensar no cara da academia, nem
mesmo durante mais testes para o Leopardo da Neve,
nem mesmo depois de finalmente dizer para Cassie que
achava que não éramos feitos um para o outro e ela ter
me xingado até cansar. Acho que suas palavras exatas
foram “criancinha emocionalmente limitada que não
sabe o que é amor de verdade”. Aliás, ainda gosto muito
da Cassie, mesmo que ela não sinta o mesmo por mim.
Ela vai ficar noiva de algum cara bacana em um ano e
ele vai idolatrar o chão em que ela pisa, e sinto muito
que algo tenha impedido que esse cara bacana fosse eu.
Não muito depois, eu tinha uma entrevista marcada
para falar sobre Gênio (fiz esse filme só pelo dinheiro,
não perde seu tempo assistindo), e, na manhã anterior a
ela, o Sr. Atlas me ligou.
– Você fez um trabalho de altíssima qualidade nos
testes para Leopardo da Neve – começou ele. – Tenho a
honra de oficialmente oferecer o papel a você.
E ali estava eu, melhor e maior, como tinha me
esforçado tanto para conseguir. E, quando abri a boca,
precisei me conter para não responder: “Não, obrigado.”
– Noah? A ligação está ruim? – perguntou ele. – Você
ouviu o que...
– Sim – respondi. – Isso é... Nossa! Não acredito. Estou
ansioso para trabalharmos juntos de novo.
– Vai ser bom trabalhar assim, sem ter que depender
das oscilações de humor de uma adolescente – disse o
Sr. Atlas.
Ele falou isso de um jeito jovial, num tom de olha só
para nós, bons e velhos amigos, rindo como se
estivéssemos no mesmo time, no time dos sensatos, o
tempo todo. E acho que eu tinha escolhido aquele time.
Eu fui na direção do poder: as noites na boate com
Michael, ouvindo-o se gabar de ter levado garotas do
coro para a cama. Jantares com o Sr. Atlas, seguindo
regras de vestimenta para parecer profissional e casual
(por que eu tinha que usar camisa social para comer um
hambúrguer?) em algum restaurante de Los Angeles,
onde ele me apresentava a figurões que esperavam que
eu agisse de determinada forma. Eu ria de suas piadas
batidas, embora qualquer coisa que Summer, Liana e
você tivessem criado fosse muito mais divertido. Na
época, os jantares pareceram importantes, mas os
melhores momentos de Os sonhadores foram aqueles em
que nós quatro estávamos juntos, dirigindo a toda um
carrinho de golfe pelo estacionamento, com uma garrafa
de vodca que Liana tinha arranjado, e a gente se
acabando de rir.
Estou tentando explicar por que eu estava tão
esquisito quando entrei no estúdio de TV naquela manhã.
– Toc, toc – disse a entrevistadora, toda animada, ao
enfiar a cabeça pela porta do camarim antes do
programa. – Só queria repassar as perguntas que vou te
fazer!
Essa é a forma que os entrevistadores têm de dizer:
“Sei que você é ator, então gostaria de ensaiar suas
falas, meu bem?”
– Vamos falar sobre a história por trás de Gênio, o que
você fez para dar vida ao personagem. Talvez a gente
fale por alto de Os sonhadores, porque qualquer um que
me conheceu no ensino médio ficaria pasmo se eu não
perguntasse algo sobre isso. – Ela me deu um sorrisinho.
– Mas não se preocupa: sua equipe já me avisou para não
falar do último episódio, da Summer Wright ou se você
um dia voltaria para Os sonhadores.
Em geral, os jornalistas não querem se queimar com
você fazendo perguntas constrangedoras. Mas eu
também tinha começado a impor limites rígidos nos
últimos anos conforme fui ganhando poder, justamente
pensando em algumas coisas que eu tinha dito no
passado ao ser pego de surpresa.
Mas, naquela manhã, enquanto a entrevistadora
tagarelava, eu abri a boca e falei, sem pensar muito:
– Me pergunta isso.
– Como é?
– Me pergunta se eu faria um reencontro. Porque eu
acho que faria.
Não importava como ou por que Summer tinha me
enrolado: eu deveria ter dado aquele beijo nela, como o
roteiro mandava. Eu deveria ter sido profissional. Foi
naquela hora que percebi. Talvez um reencontro fosse
uma forma de reparar as coisas para ela. Para todas
vocês. Se ela quisesse uma nova chance na TV, era só
aceitar. Se não quisesse ter mais nada a ver com isso,
era só recusar.
E, beleza, tudo bem. Também me ocorreu que poderia
ser... revelador encontrá-la outra vez, me ajudaria a dar
fim a algumas dúvidas.
Os olhos da entrevistadora brilharam. Ela era toda
animada, sim, mas perspicaz.
– Você me daria esse furo?
– Você quer?
Ela sorriu.
– Óbvio.
40
••••••

2018

O vídeo volta à minha mente, claro como se eu o tivesse


visto ontem: na câmera, o pé de Noah batendo no chão,
cheio de ansiedade. Achei que ele estivesse nervoso por
ter sido encurralado pela entrevistadora, mas, na
verdade, era porque tinha colocado algo imenso em
andamento.
Ele afunda de novo em seu sofá, o cabelo todo
desgrenhado porque ficou remexendo nele, e tenho
vontade de lhe dar um tapa na cara por fazer isso com
todos nós, embora, em parte, eu também esteja grata.
Passei por mais emoções no último mês do que senti em
anos, tanto boas quanto ruins, como se uma parte
adormecida e fraca de mim voltasse a brilhar.
– Droga, Noah.
– Eu sei. Desculpa. Achei que pudesse ser uma boa
oportunidade pra ela. Um presente. Mas, com o rumo que
o programa está tomando... talvez eu esteja colocando a
Summer em uma situação humilhante outra vez. E talvez
tenha sido mesmo por causa dos meus motivos egoístas.
– Seu olhar perde o foco, até que, de repente, se volta
para mim. Ele engole em seco. – Me diz a verdade: eu
sou um cara ruim?
Quero dizer a verdade. Só que já não sei qual é.
– Não sei – respondo, por fim. – Mas acho... acho que
você não é um cara bom.
Ele pisca algumas vezes e baixa a cabeça.
– Vou nessa. – Pego minhas coisas e o deixo largado
no sofá. Então, com a mão já na maçaneta, eu me viro
para ele. – Sabe, você me magoou também. Depois do
programa ao vivo, quando me beijou.
– Como assim?
– Você sabia que eu sentia algo por você, não sabia?
Eu fiquei na merda por causa daquilo, por entender que
você só me queria porque outra pessoa tinha te
magoado.
– Não sei o que dizer. Achei que nós dois estivéssemos
tentando nos divertir em uma noite muito, muito ruim.
Balanço a cabeça.
– E o que mais me magoou foi que, depois que eu não
dormi com você, você descartou a nossa amizade como
se ela não tivesse importância nenhuma.
– Tinha, sim, tinha – diz ele, com os olhos vermelhos. –
Tem importância. Eu sinto muito mesmo.
Passei tanto tempo esperando ser perdoada que
acabei esquecendo que eu também podia perdoar. Mas
não digo nada, apenas saio noite afora, mais confusa do
que nunca, com tudo de que preciso no telefone no meu
bolso.
41
••••••

2018

No dia seguinte, no ensaio, parece que todos nós


tomamos algum remédio para insônia. Acertamos nossas
posições e recitamos nossas falas, mas é tudo sem alma.
Cada vez que precisa fazer uma de suas “piadas” sobre o
marido incrível, Liana não consegue deixar de fazer uma
careta. Ela olha para baixo enquanto Summer canta uma
versão nada inspiradora de “Borboleta”. Noah está
pálido, talvez em boa parte por causa da ressaca, mas
também porque ele sente que algo ruim está prestes a
acontecer. Seu sorrisinho charmoso sumiu. Seu beijo com
Summer (Michael manteve pelo menos o beijo, como
prometido) é rápido e sofrido. Summer agora desistiu
totalmente de reconquistar Noah, e a química deles é
esquisita, azeda.
Depois do primeiro ensaio, enquanto Michael passa
algumas orientações para o coro, Summer se aproxima.
– Como foi ontem à noite?
– Consegui o áudio.
Ela se vira para mim, as sobrancelhas arqueadas e a
respiração ofegante, como se tivesse levado um soco no
estômago.
– Tem tudo de que a gente precisa?
Faço que sim.
– Você precisa escutar. E... como você está?
Ela cruza os braços, rígida.
– Estou bem. – Então ela descruza os braços e, muito
rapidamente, aperta minha mão. – Mas obrigada. Por
estar comigo.
Durante a pausa para o almoço, enquanto Liana sai
para malhar, Summer e eu vamos de fininho para o
camarim. Coloco minha bolsa no chão e pego meu
telefone e os fones de ouvido, mas Harriet entra com
nossos vestidos de couro sintético, aqueles que quase
nos fizeram surtar há algumas semanas.
– Finjam que não estou aqui – diz ela, e se põe a
pendurá-los com todo o cuidado nos cabideiros dos
nossos figurinos.
Os vestidos ainda são burlescos e apertados, mas,
milagrosamente, ela se livrou dos recortes na cintura.
Summer e eu erguemos as sobrancelhas uma para a
outra e entramos no banheiro. Nós nos apoiamos na pia,
e plugo os fones no aparelho, depois os entrego pra
Summer. Ela começa a colocar os fones no ouvido e
então para.
– É estranho eu ficar nervosa? – pergunta. – Depois de
todo esse tempo pensando...
– Posso te dar privacidade. Algumas coisas que ele
disse podem ser mais difíceis de ouvir.
Ela assente.
– É, acho melhor assim.
Então volto para o camarim e a deixo sozinha.
Encontro Harriet mexendo na minha bolsa, que tombou,
espalhando tudo o que tinha dentro no chão. Sem o
menor respeito pelo meu espaço pessoal ou minha
privacidade, ela pega meus absorventes e meu
carregador e os coloca de volta na bolsa. Harriet sempre
foi obsessiva. Ficava irritada porque bagunçávamos seu
território com nossas maquiagens e nossas tralhas.
Pigarreio, e ela se vira.
– Está bem, está bem – diz ela, erguendo as mãos no
ar. – Se quer suas coisas bagunçadas, vou deixar que
fiquem bagunçadas.
Sou tomada pela desconfiança. Seria tão bom ter mais
alguém, além de mim, para culpar. O comportamento de
Harriet quando o diário foi divulgado... Todos nós ficamos
em vários estágios de estupefação, Michael não soube o
que fazer, e ela calmamente assumiu o controle. Quase
como se já estivesse preparada, como se soubesse que o
vazamento aconteceria.
– Você vivia arrumando nossas coisas – digo, sem
parar para pensar direito. – Foi assim que encontrou o
diário da Summer?
Ela me encara, boquiaberta.
– Como é?
– Ele desapareceu do camarim.
Harriet solta uma risada pasma.
– E você acha que eu...? Por que raios eu faria isso?
– Porque o dinheiro era bom. Além do mais, você não
gostava muito da gente. Todos os comentários maldosos,
sempre que a gente não estava magra o bastante pra
você e...
– Você tem ideia de quantas garotas eu vi serem
demitidas porque tinham ganhado peso? – Harriet contrai
os lábios. – Você provavelmente não lembra, mas eu
tenho uma filha, e vocês, meninas, eram as heroínas
dela. Principalmente a Summer. Eu a trouxe pra conhecer
vocês todas.
Na verdade, eu lembro bem: a menina guinchou e
perdeu o fôlego ao segurar a mão de Summer. Ficou
olhando admirada para ela e mal conseguiu falar.
– Por que eu iria querer destruir a heroína da minha
filha? – pergunta Harriet, e então a sede de justiça que
me instigou se transforma em algo enjoativo. Talvez
vergonha.
– Harriet... – digo.
– Mas é bom saber o que pensa de mim. – Ela para. –
Acredite se quiser, sempre tentei proteger você e as
outras meninas.
– Desculpa – começo a falar, mas ela já foi embora.
Fico olhando para onde Harriet estava, me punindo,
quando a porta do banheiro se abre. Summer, com o
rosto pálido, tira os fones.
– Mandei pra repórter que eu conheço – diz ela, mas
não soa triunfante, apenas exausta, como se
compartilhar o áudio não fosse só apertar um botão, mas
correr uma maratona. A vingança cura mesmo ou só
corrói a pessoa por dentro? – Você conseguiu exatamente
o que eu precisava.
42
••••••

2018

Já faz um tempo que não nos jogam na cova da imprensa


feito carne fresca, então, no dia anterior ao show ao vivo,
eles marcam uma entrevista com todos nós em um
programa noturno que tem um apresentador simpático
chamado Jimmy. (E eles não são todos simpáticos?) As
pessoas importantes da empresa já aprovaram os
assuntos aceitáveis para debatermos. Jimmy não é o tipo
de apresentador que coloca os convidados em situações
difíceis, então ele vai nos fazer perguntas bem
tranquilas. Nada relacionado aos problemas de Liana
com Javier, ou aos relatos de tensão no set. Vamos focar
em como estamos indo em frente, cheios de coragem,
apesar da doença de Michael, e mais. Nossa função é
fingir que somos grandes amigos e que estamos
animadíssimos por estarmos sob as asas da Atlas mais
uma vez. Um último desafio de atuação antes do grande
show.
A equipe de Jimmy também faz filmagens no estúdio
da Atlas, e ele aparece logo pela manhã. Filmamos um
esquete em que ele interpreta “o quinto dos
sonhadores”, o Esquecido, e a piada é que ele sempre
esteve lá, ao fundo, tentando desesperadamente atrair a
atenção de alguém. Interpretamos nossos papéis com a
quantidade necessária de empolgação.
Então, depois do nosso último ensaio deprimente,
tomamos banho e vamos para o estúdio dele. Todos nós
nos arrumamos, cada um no seu estilo. Liana usa um
macacão dourado lindíssimo que me parece muito um
“estou de volta ao mercado” chique, embora também
passe a sensação de “ele vai perceber como é sortudo e
nunca mais vai me ferrar”. Eu escolhi uma blusa creme e
uma saia de couro justa. Noah vestiu uma blusa de
botão, uma calça bonita e um blazer marrom. E Summer
optou por seu vestido leve e virginal amarelo-claro que
esvoaça quando ela anda, mas não convence totalmente.
Assim que a banda do talk show entra em ação para
nossa entrada, os saxofones em um ritmo constante, nos
apertamos no sofá comprido de Jimmy: Summer e Noah
no meio, Liana e eu nas pontas. Acenamos e sorrimos
para a plateia empolgada do estúdio, umas cem pessoas
no total, com muito mais mulheres na casa dos 20 anos,
algo que não me parece tão comum nesse programa.
Elas aplaudem e gritam por tanto tempo que um
assistente da produção acaba tendo que aparecer e
gesticular para que se acalmem e a gente possa começar
a falar. Nossa entrevista não é bem ao vivo – o programa
só vai ao ar mais tarde –, mas vai ficar, em sua maior
parte, sem edição, com talvez alguns poucos cortes (se
errarmos uma palavra, ou um bipe de censura para
algum palavrão, embora a gente tenha prometido que
não vai falar nenhum).
Não quero fazer pouco da empolgação e da
estranheza que é estar aqui. Nunca participei de um talk
show. Summer foi a um na primeira temporada, e ela e
Noah participaram de outro, juntos, na segunda, mas
Liana e eu nunca fomos convidadas. Agora, o holofote
aquece meu rosto, mas o resto de mim congela. (Por que
faz tanto frio neste estúdio?) Eu me sinto brilhar, mas
não sei se estou transpirando de entusiasmo ou
nervosismo, ou as duas coisas.
Meus pais conhecem Jimmy. Acham que ele é “um
sujeito legal”. Recebi mensagens dos dois desejando boa
sorte hoje. Agora que eu “dei certo”, minha mãe adora
contar para os amigos sobre meu breve período como
estrela mirim, meus dois anos de rebeldia e fama. Ela e
meu pai vão assistir ao programa hoje à noite: ele com a
segunda esposa e dois filhos adolescentes, ela com o
grupo de amigos do clube do livro.
Fico na dúvida se Miheer vai assistir também. Enviei
uma mensagem para ele mais cedo:
Sei que estamos esperando pra conversar, então não
responda, mas vou estar no Jimmy esta noite, o que meio
que faz parte da lista de coisas pra se fazer antes de
morrer, então seria muito importante pra mim se você
assistisse.
– Então, contem pra gente o que podemos esperar –
começa Jimmy, e é dada a largada.
Enfatizamos nossa dinâmica: Summer e Noah flertam
um com o outro, ergo minha sobrancelha devastadora
quando Jimmy faz uma piadinha ruim, Liana é
perfeitamente simpática.
– Foi esquisito voltar? – pergunta ele. – Pra muitos de
vocês, já faz um bom tempo desde a última vez na TV! E,
você, Noah, agora que tem uma indicação ao Oscar,
bom, deve ser legal se divertir um pouco.
– É, a gente se diverte – diz Noah, sorrindo para
Summer.
Ela devolve o sorriso.
– Com certeza.
– Para algumas coisas, é como se o tempo não tivesse
passado – diz Liana. – Eu voltei e foi tipo: “É isso aí! Meus
melhores amigos e eu vamos atuar juntos de novo!”
– E, para outras coisas, é bem esquisito – falo. – Meu
corpo está penando bem mais pra fazer todos os passos
de dança.
Jimmy ri.
– É mesmo, agora você é advogada em Washington!
Acho que você não sai cantando e dançando pelo
escritório... ou sai? Porque, se sair, quero que seja minha
advogada.
– Eu adoraria cuidar dos seus negócios, Jimmy.
– Espero que seus clientes não fiquem muito fanáticos
quando você voltar.
Ele sorri para mim, e sei que devo fazer uma piadinha,
mas nada me vem à mente.
Porque, nesse momento, não me imagino voltando
para o escritório e a minha vida de antes. A ideia de
retornar para uma vida superficial é tão provável quanto
brotarem asas nas minhas costas. Ao tentar fugir de Os
sonhadores, foi isso que eu construí para mim. Treze
anos atrás, as três pessoas sentadas neste sofá comigo
me ensinaram uma nova maneira de sentir, me
mostraram que a vida podia ter paixão e criatividade,
então os sentimentos cresceram demais e
transbordaram. Aí eu fugi de sentir muita coisa, construí
uma vida onde não havia baixos, mas também não havia
altos. Eu não tinha percebido isso até agora, porque tinha
um elemento naquela vida que estava certo. Uma pessoa
que valia por todo o resto.
– Pois é – digo. – O engraçado é que, depois que o
programa acabou, acho que segui na direção mais
oposta a ele possível. E voltar aqui me fez questionar se
é isso que eu quero de verdade.
Os outros estão sorrindo para mim, mas sei que não
compreendem o que estou fazendo. Jimmy deveria seguir
em frente e perguntar algo para outra pessoa, mas, de
alguma forma, continuo falando, direto para a câmera,
para Miheer, mesmo sem ter a menor ideia de que ele
vai assistir.
– A única coisa que não foi apenas uma reação, a
única coisa sobre a qual não tenho dúvida nenhuma, é o
meu relacionamento. Sei que as pessoas no Twitter
adoram comentar os boatos ou tentar formar casais
improváveis, mas sou apaixonada por um homem
maravilhoso de Washington. E entendo se ele não quiser
amar alguém que vive sob os holofotes. Mas espero que,
não importa o rumo que a vida tome depois deste
reencontro, ele esteja comigo.
Ai, meu Deus, estou chorando? Além do mais, acho
que acabei de largar meu emprego de verdade em rede
nacional. Desculpa, Irene. Liana me dá um olhar de se
recomponha, então pigarreio.
– Que amor – fala Jimmy. Os produtores gesticulam
freneticamente para ele, indicando que desviamos
completamente do roteiro. – E agora está na hora de
jogar!
Ele nos conduz em um jogo rápido chamado “Mais
Provável”, em que ele lê uma frase tipo “no reencontro
do ensino médio, é mais provável que quem...”. Cada um
de nós tem cartões na mão com nossos nomes enquanto
a banda toca a bateria ao fundo. Não vimos as perguntas
de antemão – para haver “surpresa de verdade” em
nossas reações –, mas alguém da Atlas as leu para
garantir que evitariam quaisquer tópicos sensíveis.
– É mais provável que quem passe a noite toda na
pista de dança? – pergunta Jimmy e todos nós
levantamos os cartões como o nome de Summer,
inclusive a própria.
– Ela é, de longe, a que dança melhor entre a gente –
digo.
– É mais provável que quem pegue o microfone e
cante com a banda? – pergunta Jimmy.
Essa é Liana, por unanimidade.
– É mais provável que quem assuma o comando do
comitê de planejamento?
Todos votam em mim.
– É mais provável que quem passe o tempo todo
falando de trabalho?
Levanto o nome de Liana, pensando em toda aquela
autopromoção que ela fazia no Instagram, embora eu
perceba que foi uma escolha meio esquisita assim que
vejo quem os outros escolheram. Noah me escolheu e
Liana e Summer escolheram Noah.
– Beleza, um voto pra Kat e Liana, nenhum pra
Summer, dois pro Noah. Parece que essa é do Noah!
Summer mantém um sorriso no rosto, mas a pergunta
inofensiva claramente machuca: ninguém escolheu o
nome dela, porque ela não tem trabalho nenhum.
– Não fica sem graça, Noah – diz Jimmy, e percebo que
Noah reparou no sorriso desconfortável de Summer. – Se
eu criasse algo como Silvestres, também passaria a noite
falando do meu trabalho.
– Ah, obrigado.
Noah dá um sorriso que as mulheres da plateia vão
encarar como acanhado, mas, conhecendo-o como eu
conheço, vejo que ele está tenso.
Summer mantém o rosto plácido, mas sei que está se
esforçando para isso.
– Sem querer sair muito do assunto – diz Jimmy –, mas
eu amei aquele filme. Minha mulher diria que eu chorei
no ombro dela o tempo todo, e eu nego!
Risadas indulgentes vêm da plateia.
– Ora – diz Noah, coçando a nuca, olhando para
qualquer lugar, menos para a mulher a seu lado. – Não
precisa ter vergonha de chorar.
Que tortura para Summer, ficar sentada ao lado do
homem que roubou sua ideia enquanto ele recebe todos
os elogios. Pelo menos, em breve, ela vai concluir sua
vingança.
– E a rola-carpideira que não entende de onde vem
seu nome? – Jimmy leva a mão ao coração. – Bom
demais. – A plateia reage com “aaahs” e assente. – Acho
que muitos de nós te subestimamos, mas, desde o início,
você era um cara inteligente!
Summer engole em seco e senta em cima das mãos,
como se quisesse se impedir de revelar tudo aqui e
agora. Bato com o joelho no dela, tentando distraí-la,
lembrando que esperar sua amiga repórter publicar a
história é mais seguro. Acusar Noah de roubar sua ideia
no meio desta entrevista vai pegar muito mal para ela.
Não seja impulsiva, penso, tentando influenciá-la.
– Enfim, chega disso! – diz Jimmy, e volta ao jogo.
Respiro fundo, aliviada. – Última: é mais provável que
quem saia do reencontro direto para uma festa
daquelas? – Ele ergue a sobrancelha para Summer, com
um sorrisinho de “tudo pela piada” no rosto, e logo
assume um semblante de simpatia: – Não, sem
brincadeira, sei que as coisas saíram... um pouco dos
trilhos, vamos colocar assim? Mas estou feliz por te ver
tão bem.
– Na verdade, eu queria dizer algo sobre Silvestres.
As palavras penetram em mim. Droga, respirei fundo
cedo demais. Mas meu cérebro trava e leva um instante
para entender. Porque a pessoa que está se inclinando
para a frente e falando em um tom de voz tenso não é
Summer.
É Noah.
– Ótimo, posso passar o dia falando disso! – responde
Jimmy.
Um produtor gesticula para indicar que, na verdade,
ele não pode, porque precisamos começar a nos despedir
em um minuto.
Noah bate o pé no chão preto reluzente. Ele abre e
fecha a boca, esfrega a nuca, nós três olhando para ele,
e a pausa se prolonga demais. Com certeza ele vai soltar
algo protocolar como Que bom que você gostou!, mas
por que tanta hesitação? Ao meu lado, Summer prende a
respiração. Seu corpo inteiro fica arrepiado ou pelo frio
do estúdio ou por uma premonição do que vai acontecer.
Jimmy começa a fazer uma piada (“Extrovertido por dois
segundos, é?”), e Noah se joga na fogueira.
– A rola-carpideira que você mencionou... A ideia foi
da Summer.
O rosto de Jimmy congela. Liana arregala os olhos de
forma dramática. Summer agarra a borda do sofá com
força, segurando-se como se o mundo todo estivesse aos
poucos pendendo para um lado, a pele dos dedos tão
esticada que tenho medo de que se rompa. No canto, o
baterista deixa uma das baquetas cair, causando um
estrondo.
– Foi mal – sussurra ele ao se abaixar para pegá-la.
– Ah, nossa – gagueja Jimmy. – Sério? Eu não fazia
ideia de que vocês dois tinham mantido contato.
Noah parece aterrorizado, pasmo com a própria
honestidade, mas prossegue:
– Os pássaros menina e menino foram personagens
que a gente criou juntos no set de Os sonhadores. – Suas
mãos se remexem ao lado do corpo, sem jeito. – Eu não
poderia ter escrito esse filme se não fosse pela Summer.
E, sabe aquela frase que todo mundo repete:
“estupidamente otimista, apesar dos pesares”? Foi a
Summer que criou.
– É a minha favorita – diz Jimmy, meio atordoado.
– Você disse que as pessoas me subestimavam, mas
muito mais gente subestima a Summer, e em parte por
culpa minha.
Noah se vira para falar direto com ela. Summer não
pisca. O sofá é pequeno demais para quatro pessoas,
então eles estão bem próximos e apertados um contra o
outro. Os dois estão no olho do furacão, estranhamente
imóveis, ainda que o ar ao redor esteja crepitando.
Ouvem-se sussurros, e as câmeras dão um close neles,
enquanto o resto do estúdio fica em polvorosa.
– Desculpa por não ter te dado mais crédito antes. Eu
deveria ter feito isso.
O assistente de produção volta a gesticular para que
todos fiquem quietos, enquanto Summer mantém uma
postura calma, um sorrisinho tímido no rosto. Mas eu a
conheço. Aquele sorriso é enrolação. Ela recebeu o
crédito que queria, mas, ainda assim, tem algo muito
errado. Noah a conhece também, mesmo depois de todo
esse tempo, e seus olhos se enchem de preocupação,
questionando a sensatez desse pedido de desculpas
público sem falar com ela primeiro.
Ela não diz nada, então Jimmy se inclina para a frente.
– Summer, você tem algo pra dizer ao Noah?
Há um momento de silêncio enquanto ela e Noah se
olham. Talvez ela esteja bolando uma rejeição
devastadora e perfeita para ele ou a melhor maneira de
dizer “O que acham de mim agora, seus desgraçados?”.
Sua voz sai aguda e esquisita, quase tão inadequada
quanto a resposta que ela ­escolhe:
– Obrigada.
O produtor de Jimmy gesticula – o tempo acabou –,
ainda que sua expressão deixe bem claro que ele sabe
que seria muito melhor para os índices de audiência
deixar a coisa rolar.
– Bom – diz Jimmy –, acho que preciso te agradecer
também pelo meu filme favorito! E obrigado a todos
vocês por virem ao show! Quando e onde os fãs devem
sintonizar?
Summer, Noah e eu ficamos calados. Liana assume o
controle enquanto a banda começa a tocar.
– Amanhã, na Atlas, ao vivo, às oito da noite.
Esperamos por vocês.
43
••••••

2018

Depois da entrevista, há um caos generalizado. Noah se


vira para Summer, mas Jimmy o segura pelo braço e
Summer começa a sair do palco, comigo e Liana em seu
encalço. Um produtor vai atrás dela.
– Espera! A gente queria que você ficasse pra
filmarmos um segmento extra com vocês dois falando
sobre a origem de Silvestres. Não se preocupa, a gente
pode cortar alguma coisa do resto do programa ou lançar
como uma exclusiva on-line...
– Não – responde ela, sucinta, e arranca da roupa o
microfone, que entrega ao técnico de áudio.
– Mas os espectadores iam adorar...
– Os espectadores iam adorar se você sumisse da
minha frente – diz ela, então desaparece no camarim
para pegar suas coisas.
– Credo – ralha o produtor para ninguém em
específico. – Ela é mesmo caótica, hein?
– Você não sabe do que está falando – respondo, e
arranco meu microfone enquanto Liana faz o mesmo.
Seguimos Summer até a área externa e ensolarada do
estúdio. Atrás de nós, ouço Noah chamar seu nome.
– Summer, vai devagar – peço, mas ela segue em
frente.
Summer passa por um grupo de turistas confusos que
estão ali para um passeio. Vai direto até seu trailer, sobe
os degraus com estrépito e deixa a gente entrar. A porta
se fecha atrás de nós.
– Eu só respondi “obrigada”. – Sua voz está trêmula e
confusa. – Não consegui raciocinar. Não era pra
acontecer assim.
– Eu sabia que já tinha ouvido falar dessa coisa dos
pássaros! – comenta Liana, alheia ao que está de fato
acontecendo. – Isso é uma maluquice. Mas aposto que
vai dar audiência à beça.
Summer esfrega o rosto, borrando a maquiagem.
– Como ele ousa? Depois de tudo, ele admite por
conta própria e tira isso de mim também?
– Acho que ele estava tentando ser gentil – falo e
estico a mão para segurar seu ombro trêmulo.
– Primeiro ele não me dá crédito, agora não deixa eu
me vingar. Ele me encurralou na frente de todo mundo, e
eu não estava preparada, aí ficou parecendo que eu o
perdoei. – Ela se vira para mim e afasta minha mão. – Ele
sabia o que ia acontecer? E aí decidiu se adiantar pra
poder controlar a narrativa?
– Acho que não, não sei como ele poderia ter...
– Espera aí, o que ia acontecer? – pergunta Liana,
tentando acompanhar, mas Summer a ignora.
– Você contou pra ele – me acusa ela, com raiva, e
vejo como isso a deixa arrasada, quanto ela esperava
pelo alívio que destruí-lo poderia trazer.
– Do que você está falando? – indago.
– Estava tudo bem até você falar com ele.
– Espera aí, você acha que eu alertei o Noah pra ele
se proteger depois que parei de gravar? Foi mal, mas isso
é ridículo e...
– Acho que você deu uma de sabe-tudo e passou um
sermão nele, dizendo o quanto errou comigo.
– Eu... – Penso desesperadamente no que falei para
Noah em sua sala de estar. – Claro, eu te defendi, mas...
– E isso foi o mesmo que avisar! Porque não bastava
fazer o Noah admitir, você precisava se sentir especial,
assim como da primeira vez e...
– Gente, para – pede Liana. – Vamos....
Mas Summer não para.
– Porque você ainda tem inveja e...
As semanas que passei tentando fazer qualquer coisa
que Summer quisesse, sacrificando minhas necessidades
para consertar as coisas para ela, tudo isso me atinge, e
eu perco o controle.
– Fala sério, não tenho inveja de você há anos! Eu
tenho pena de você e... – Eu me detenho ao ver o
semblante dela, o jeito como suas feições desabam,
como um prédio em demolição. – Eu só queria ajudar.
– Não preciso da sua ajuda. Eu sabia que não era pra
confiar em você de novo depois do que fez com o diário.
Liana olha de mim para ela, sem saber o que fazer. E,
se eu não estivesse tão absurdamente magoada com
tudo isso, acharia engraçado: nós aqui, superarrumadas,
com delineados de gatinho e salto alto, emperiquitadas
para acabar com nossa amizade.
– Você precisa acreditar que eu não tinha intenção
de... – digo, me aproximando, mas Summer dá um pulo
para trás.
– Fica longe de mim. Você acabou com a minha vida
uma vez, e eu fui burra o bastante pra deixar você voltar.
Achei que talvez a gente pudesse ficar bem. – Seu tom
fica mais triste. – Que a gente pudesse voltar a ser
importante uma pra outra.
– A gente pode.
– Não, isso foi um erro.
Meus olhos ficam cheios de lágrimas, mesmo que eu
tente evitá-las. Aí está. Algumas feridas são profundas
demais e não têm cura. Algumas coisas e algumas
pessoas não podem ser perdoadas. Fazer tudo a meu
alcance para ajudar não colocou a vida de Summer de
volta nos trilhos. Eu a reergui mal e porcamente, até ela
cair de novo e se machucar ainda mais.
Os olhos dela também estão ficando vermelhos, mas
ela não amolece. Vai até a porta, abre com força e
aponta para fora.
– Sai. Vou fazer o programa com você porque preciso.
Fora isso, não quero te ver nunca mais.
– Summer, para – pede Liana.
– Você não sabe o que ela fez. O diário foi culpa dela.
– Ela se vira para mim. – Sai.
– Para! – repete Liana, com tanta urgência que
Summer e eu só conseguimos olhar para ela. – A Kat não
pegou o seu diário.
Seu rosto é tomado por uma expressão de tristeza e
cansaço profundos. É a aparência de uma mulher que
vem tentando fugir de algo que finalmente a alcançou.
Ela ergue as mãos, suplicante, como se tentasse nos
fazer entender.
– O Michael ia me cortar do filme.
44
••••••

SOLILÓQUIO DA LIANA

Tudo bem, adoro um drama, mas não sou xereta nem


dedo-duro. Teve só uma vez que me rebaixei a esse
ponto.
Em minha defesa, eu estava tendo um dia muito ruim.
Michael me chamou no escritório dele, logo depois que
Trevor foi parado por dirigir embriagado e eu estava no
banco do carona. Ele me mandou sentar diante dele,
cruzou os braços no outro lado da mesa e falou que
estava farto das minhas palhaçadas.
– Ainda preciso da aprovação dos superiores pra te
cortar do filme, mas, conhecendo o Sr. Atlas, acho que
isso não será problema.
Meus pais não me pressionaram a ser famosa,
tampouco me desencorajaram. Quando falei para eles
que eu simplesmente morreria de tristeza se não
pudesse seguir meus sonhos, eles suspiraram e fizeram
tudo ao alcance para me ajudar. O investimento em aulas
de canto e dança, o mês que minha mãe e eu
passávamos em Los Angeles todo ano, quando chegava a
época de gravarem os pilotos – tudo isso os levou à beira
da falência e do divórcio. Os sonhadores era para ser o
começo de algo incrível, para que, algum dia, quando eu
fosse uma estrela, nós nos reuníssemos na mansão que
eu compraria para eles e agradecêssemos por não
termos desistido quando as coisas ficaram ruins.
Vamos falar sério: eu não tinha nada de interessante
mesmo para fazer no filme. Tem hora que não dá mais
para repetir alguma versão de “Summer, você é a
melhor!”. Mas ser cortada pegaria muitíssimo mal. Todo
mundo ia querer saber o motivo, depois ia comprar a
versão do Michael. Haveria fofocas e mais fofocas, até
que a rádio corredor de Hollywood estivesse em
polvorosa com o boato de que eu era “difícil”. Não existia
mercado para mulheres negras difíceis, a menos que eu
quisesse entrar em algum reality show, o que eu não
queria. Eu adorava ver a confusão que as pessoas faziam
nesses programas, mas eu era talentosa demais para
deixar minha carreira girar em torno de com quem eu
transei em uma banheira.
– O que posso fazer pra você mudar de ideia? –
perguntei para Michael. – Eu paro de beber. Vou virar um
anjo. Está vendo, nem falei palavrão.
– Esta conversa está encerrada. Eu te avisei várias
vezes e você continuou se metendo em confusão. E pra
quê? Pra dar pra um aspirante a Ashton Kutcher?
Tive vontade de gritar para Michael que, primeiro,
Trevor era, na verdade, bem talentoso e, segundo, era
gay. Ele se abriu comigo depois de uma tentativa toda
atrapalhada de sexo (“Não é você! Você é incrível!”) e
me implorou para não contar para ninguém, porque ia
acabar com a carreira dele. (Só estou contando isso para
vocês duas agora porque ele desistiu deste ramo e está
noivo de um cara.) Quanto a dar... Olha, naquela época,
eu gostava de sexo como qualquer outra garota. Mais, eu
acho, comparada a vocês duas, puritanas. E, para sua
informação, curtir seu corpo precioso e fantástico não te
torna meio piranha. Mas eu estava disposta a ajudar
Trevor ao “ficar com ele” durante alguns meses. Nós, que
não nos encaixávamos nos moldes da Atlas, tínhamos
que cuidar uns dos outros.
Então fiquei transtornada ao ver Michael sentado em
sua cadeira, com as mãos atrás da cabeça. Aquela pose
de homem tranquilo, que sentia prazer com a situação.
Aquilo no rosto dele era um sorrisinho quando ele indicou
a porta com a cabeça? Que cara desprezível!
– É que nem beisebol, sabe? Três erros e você está
fora.
Eu me levantei, meu tom de voz tão ácido quanto eu
sabia fazer.
– É, eu entendo de beisebol.
Na porta, eu me virei. Ele já estava fazendo outra
coisa, digitando algo no computador. Aquele babaca
nunca tinha me dado uma chance de verdade.
– Por que é que você me contratou?
Ele nem teve a decência de me olhar enquanto
respondia.
– O estúdio achou que seria bom ter uma personagem
negra.
“Não deixe que te vejam chorando”, minha mãe tinha
me falado quando conquistei meu primeiro papel em
Hollywood, então eu nunca chorava no set, diferente de
outras garotas. E, mesmo arrasada, mesmo sem
entender por que o que eu tinha feito era tão ruim assim
(o contrato não era pra eu abrir mão da minha vida! Eu
tinha 22 anos! Claro, eu me divertia muito, mas
trabalhava mais ainda!), mantive a postura durante todo
o caminho até o camarim, onde vi um lindo diário verde
no chão e pensei: Aleluia, uma distração.
Mas, à medida que fui lendo, a injustiça foi me
fazendo querer gritar. Todo aquele tempo, a perfeitinha
da Summer estava sendo tão “ruim” quanto eu, até pior,
já que ela era hipócrita. E lá estava eu, vendo minha
carreira ir pelo ralo, enquanto ela saía ilesa? Eu teria que
voltar para casa e fazer as propagandas para a
concessionária de carros usados do meu pai em Atlanta,
enquanto ela ia se tornar uma estrela internacional do
cinema? Não se eu pudesse evitar.

••••••

O Sr. Atlas tinha uma foto da família no escritório. Aliás,


duas: uma dele com o pai, que tinha fundado o estúdio, e
uma dele e da esposa (quinze anos mais nova, pois é)
com seus dois filhos pequenos, a família toda Loura com
L maiúsculo. Fiquei imaginando se algum dia um dos
filhos ia assumir o estúdio. Talvez os dois acabassem
brigando pelo controle, saindo no braço e cortando
relações porque, no mundo da Atlas, apenas uma pessoa
podia ser a melhor. Eu observava as fotos enquanto,
sobre a superfície de mogno, o Sr. Atlas folheava em
silêncio o diário.
Sim!, eu tinha repetido para mim mesma enquanto
marchava até aquela parte do estúdio e solicitava uma
reunião com ele. Você é CORAJOSA. Você está lutando
pelo que precisa! Mas, depois que fui atendida por ele,
minha certeza começou a vacilar. O Sr. Atlas não era
cruel como a gente ouvia dizer que outros donos de
estúdio eram. Ele não jogava as coisas na parede ou na
cabeça dos assistentes. Nunca vi o homem levantar a
voz. Mas, se você o desagradasse, ele simplesmente
extirpava você, e aí, puf, era como se você não existisse.
Talvez eu não existisse mais depois daquilo. Mas, se
Michael me tirasse do filme, eu deixaria de existir de
qualquer forma.
Ele terminou de ler a última página, fechou o diário e
o deixou em cima da mesa, unindo as pontas dos dedos
em cima dele.
– O que espera que eu faça com isto? Demita a Srta.
Wright?
– Não, é claro que não!
Endireitei a postura e cruzei as mãos em cima do colo,
como se eu estivesse em uma reunião de negócios
normal. Uma profissional de verdade. Eu deveria ter
colocado um terninho ou algo assim. Parecia que o Sr.
Atlas vivia de acordo com um código moral, então eu ia
apelar para seu senso de justiça.
– Só queria saber como o senhor vai deixar o Michael
me demitir se não sou a única a fazer esse tipo de coisa.
Ou vocês demitem nós duas ou nenhuma de nós, mas se
livrar apenas de mim é extremamente injusto. O senhor
não percebe?
Ele ficou em silêncio por um longo momento, me
olhando.
– O que percebo é que não é muito legal da sua parte
tratar sua amiga desse jeito.
Eu não estava nem aí para ser legal. “Legal” era
sinônimo de “chato”, e qualquer um podia desempenhar
esse papel, como eu bem sabia, já que meu papel não
exigia quase nada de mim. Mas eu esperava ser alguém
gentil. Na vida real, eu não ficava elogiando minha
melhor amiga o dia inteiro, mas, quando dava merda,
ficava ao lado dela. Ou, pelo menos, costumava ficar.
Meu Deus, Summer, quando eu te conheci, eu quis te
abraçar para sempre. Você era a coisinha mais fofa e
doce do mundo e eu estava pronta pra te proteger. Mas
esse programa, a reação descomunal a ele e toda a
máquina da Atlas, tudo isso pegou algo puro e o
corrompeu. Os homens que comandavam nossas vidas
não nos deixavam crescer e foram nos enchendo de
ressentimento umas pelas outras. No final, foi como se a
minha pele ficasse apertada demais para tudo o que
havia dentro de mim.
Então talvez eu explodisse. Os pedacinhos que
sobrassem de mim se espalhariam entre as fibras do
carpete do Sr. Atlas. (Ah, isto aqui?, diria ele a algum
visitante curioso. Estes pedacinhos eram de uma jovem
chamada Liana, cheia de sonhos e ambições, e ela se
considerava uma boa pessoa, mas então, um dia,
descobriu que estava errada.) Em vez disso, baixei a
cabeça na mesa dele, a superfície fria e lisa contra minha
testa, e comecei a chorar. A que ponto eu tinha chegado?
Desabar na frente de um dos homens mais importantes
de Hollywood? Eu não tinha mais nada a perder.
– Desculpe. Não quero ser esse tipo de pessoa – falei,
de cara para a mesa.
Quando ergui o rosto, vi que ele estava me
oferecendo um lenço! Mas não mesmo, aquela atitude de
cavalheiro sulista não ia me convencer. Como ele ousava
agir com tanta cortesia quando fora ele a criar o
ambiente que tinha desencadeado tudo aquilo? Ah, além
de triste, eu estava furiosa.
– Eu não era esse tipo de pessoa quando o programa
começou. Mas o senhor fez isso com a gente, com sua
competitividade e seu código moralista e essa noção
constante de que poderia... acabar com a gente.
Uma ruga na testa dele ficou mais marcada enquanto
eu cavava minha cova ainda mais fundo. Mas e daí? Todo
mundo já me achava difícil mesmo. Eu ia me enterrar no
centro da porcaria do planeta Terra.
– A gente só está crescendo! E só quer fazer aquilo
em que a gente é bom e deixar as pessoas felizes, mas,
de alguma forma, isso não basta pro senhor.
– Muitas crianças admiram todos vocês – disse ele,
muito sensato e muito calmo. – Ser um exemplo a ser
seguido também é uma parte crucial do trabalho.
– A Atlas está ganhando certa reputação: fria e
impiedosa. “A empresa que arruína suas jovens.” Já leu
esse artigo?
Ele inclinou a cabeça muito de leve. Provavelmente
aquele homem nunca tinha tomado uma chamada na
vida. Estava na hora de encarar a realidade.
– Os fãs têm comentado comigo sobre o que o senhor
fez com a Amber Nielson, o jeito como se livrou dela, e
agora ela está pior do que nunca.
– Amber tem os próprios problemas.
Ele estava unindo as pontas dos dedos de novo, dessa
vez com tanta força que elas perdiam a cor.
– Eu assisti àquele vídeo dela umas cem vezes, aquele
em que a Amber fala que o senhor fez dela o que ela é.
Já viu? Pois deveria ver. Porque aí saberia que, um dia, o
mundo vai olhar para trás e nos perdoar por mostrar o
dedo do meio para os paparazzi. Mas continue assim, e
eles nunca vão te perdoar.
Enquanto eu falava, me senti uma deusa da justiça
dizendo a verdade diante do poder, o tipo de mulher que
seria homenageada com estátuas um dia. No momento
em que me calei, não tive certeza de que conseguiria
falar outra frase sequer na vida.
Eu me recostei enquanto o Sr. Atlas dobrava o lenço
de novo até virar um quadradinho, que ele guardou no
bolso. Então ele pigarreou.
– Bem, você me deu muito em que pensar.
– Por favor, não deixa o Michael me demitir.
– Vamos discutir a questão, mas me reservo o direito
de tomar a melhor decisão para a franquia. Agora, você
deveria descansar para o programa de amanhã. Não
quero que isso afete seu desempenho.
Eu me levantei e fui pegar o diário.
– Vou devolver isso pra Summer.
Ele colocou a mão em cima da capa.
– Neste momento, não confio em você com isto. Um
dos meus assistentes vai devolvê-lo para a Srta. Wright,
com um aviso para que ela seja mais cuidadosa e não o
deixe em qualquer lugar.
– E eles vão contar pra ela que eu...?
Ele me encarou, então me deu a mais ínfima das
clemências.
– Eles não vão dizer a ela como conseguiram isso.
45
••••••

2018

– Mas então... não foi você que entregou o diário pra


imprensa – digo, quando Liana termina seu relato e
murcha.
– Não. Não sou uma sociopata. – Liana se vira para
Summer. – Mas você não sabe quanto eu queria ter
devolvido o diário pra você quando o encontrei. Aí, o
assistente do Sr. Atlas nunca teria...
Esse tempo todo, eu não tinha enxergado Liana direito.
Presumi que a situação com Javier explicasse por que ela
vinha agindo de forma tão esquisita, tão reservada. Mas ela
também carregava tanta culpa quanto eu. Ela balança a
mão, os olhos vermelhos.
– Bem, eu entendo. O cara podia continuar a servir café
e entregar diários para aquele homem, que sempre me
deixou apavorada, ou podia ganhar uma grana alta.
Que jogada audaciosa do assistente. Teria ficado óbvio
para o Sr. Atlas quem era a fonte de vazamento. Imagino
que a pessoa tenha aceitado pegar o dinheiro e deixar
Hollywood para sempre. Ainda assim, algo não está
encaixando.
Summer está muito calada. Bom, é claro que está. Esse
reencontro mostrou para ela que não tem ninguém em
quem possa confiar de verdade, e é o tipo de coisa que faz
qualquer um prometer que nunca mais vai falar com outro
ser humano. Mas ela fala agora, e sua voz é rouca.
– Por que o Sr. Atlas entregaria algo tão sigiloso para
outra pessoa se ele ia estar comigo naquela noite?
– Oi?
– Isso não foi na noite antes do programa ao vivo?
Tínhamos uma reunião marcada, eu, ele e Noah, pra falar
do “futuro”. Ele cancelou em cima da hora, disse que tinha
surgido um imprevisto.
Nós três ficamos imóveis, sem chão.
– Não – falo. – Não. Por que ele iria querer arruinar seu
programa mais popular?
– Ele não queria arruinar. Queria me perdoar. É
exatamente o que a Liana falou. – Summer se vira para ela.
– Você deu a ele muito em que pensar. Estávamos
crescendo. As pessoas começavam a mudar. – Ela olha
para mim. – E o que você escreveu no diário foi ruim, claro,
mas não tão ruim.
– O que a Kat...? – pergunta Liana.
– As últimas anotações eram minhas – falo. – Eu
também estraguei tudo.
– Então a Summer nem fez aquelas merdas todas? –
Liana me olha boquiaberta. – Caramba, agora eu me odeio
mais do que nunca.
Summer anda pelo trailer enquanto coloca as peças no
lugar.
– Ele podia deixar a imprensa saber do diário e fazer
com que eu fosse punida. Eu ia ser alvo de todo o ódio e
julgamento que ele achava que eu merecia por não ser a
garota perfeita que eu deveria ser. Ele queria que eu me
humilhasse e me desculpasse, chorasse em uma coletiva
dizendo que eu tinha decepcionado todas as garotinhas,
mas que tinha aprendido a lição e nunca mais faria aquilo.
E aí, quando estivesse satisfeito por eu ter sofrido
bastante, ele contrariaria todas as expectativas e seria
misericordioso. Ele me aceitaria de volta, e as pessoas
pensariam: “Nossa, talvez a Atlas não esteja tão presa ao
passado. Talvez a Atlas seja o futuro.”
– É como aqueles vestidos que a Harriet fez – comento. –
A quantidade certa de controvérsia.
– Ele teria me salvado. Eu teria uma dívida de gratidão
com ele para sempre.
– Mas aí você tirou a roupa na TV, e esse era um limite
extremo demais pra ele – diz Liana.
– Exatamente.
– Mas por que deixar isso vir à tona logo antes do
programa ao vivo? – pergunto.
Summer balança a cabeça.
– Talvez o Lamapop tenha se precipitado e publicado
mais cedo do que disseram. Ou ele supôs que isso faria
mais pessoas verem o último episódio.
Sob muitos aspectos, eu achava que o Sr. Atlas nos
protegia. Administrava uma empresa onde homens mal-
intencionados nunca entravam em nossos camarins. Tinha
um comportamento gracioso. Uma força pacata. Mas, o
tempo todo, acima de tudo, ele era um homem de
negócios.
– O que a gente faz? A gente devia só... ir embora? Não
fazer o programa? – pergunto.
– Temos contratos assinados – diz Liana. – E nenhuma
evidência concreta.
– Mas como vamos subir naquele palco amanhã
sabendo tudo o que a gente sabe?
Summer enterra o rosto nas mãos por um momento,
apertando os olhos com os dedos como se tentasse deter
as lágrimas prestes a cair. Então ela ergue a cabeça e a
balança em um movimento conciso.
– Vamos só fazer e pronto. E, depois, nunca mais vamos
ceder nem um pedacinho de nós pra Atlas. Estão de
acordo? Mesmo que o programa supere as expectativas e
eles nos ofereçam um reboot ou um filme, nunca mais
vamos nos envolver em nada de Os sonhadores.
– De acordo – Liana e eu respondemos juntas.
– E isso deixa a gente em que pé? – pergunto.
Summer abre a porta do trailer. Nós duas olhamos para
ela, desesperadas por qualquer migalha de perdão. Logo
antes de sair, ela diz:
– Depois de amanhã à noite, não tem mais “a gente”.
TWITTER

@GOSSIPGILLIAN: Hummm, tem mais alguém vendo essa


entrevista do Jimmy com o elenco de Os sonhadores? O Noah
acabou de dizer que roubou Silvestres da Summer, é isso
mesmo???

@SONHADORA23: É CLARO QUE ROUBOU. Eu falo isso há anos! O


Noah é um Lixo com L maiúsculo!

@EUSOUSEB: Calma aí, ele não roubou dela. Ele escreveu o roteiro
sozinho. Não é porque você conversa uma coisa com alguém que
você não pode escrever nada sobre o assunto. Acontece o
tempo todo.

@EUSOUSEB: E ela com certeza não ia escrever.

@GOSSIPGILLIAN: Mas nem pra falar com ela?? Vocês viram o


artigo que saiu com mais detalhes???

@SONHADORA23: Foi ela que escreveu a fala. Tenho as palavras


dela tatuadas em mim esse tempo todo e EU NEM SABIA.

@CAROLINETWEETS88: Ele é mais um homem que lucra em cima


do trabalho não remunerado de uma mulher e, para ser sincera,
acho que nós, como cultura, já superamos essa coisa de precisar
dele.

@GOSSIPGILLIAN: Tomara que durante o programa ao vivo amanhã


ela pise na cara dele.

@SONHADORA23: SIM, QUE MATE ELE!


46
••••••

2018

O dia do programa amanhece quente e com muito vento.


E sei disso porque acordei às cinco e meia da manhã e
não consegui mais voltar a dormir.
A manhã é toda nossa para fazermos quaisquer rituais
necessários. Dirijo até uma trilha e subo uma colina. Uso
um chapéu para proteger meu rosto, bebo água e ando
mais rápido que o ritmo dos meus pensamentos, até que
o telefone toca com uma mensagem de Irene:
Devo entender que você não vai se candidatar à vaga
de sócia, então.
Eu me sento no topo da colina para digitar uma
resposta.
Desculpa te decepcionar. E sei que é egoísmo desistir
da chance de ajudar as pessoas.
Logo chega mais uma mensagem dela:
Bom, dizem que a arte também ajuda.
Decido falar o que tenho pensado sobre isso:
Meu medo é que as únicas pessoas que dizem isso
sejam artistas que querem se sentir nobres ao brincar de
faz de conta.
Três pontinhos e então:
Qual é! Você é mais esperta que isso.
Sinto a garganta formigar enquanto olho o horizonte
que se estende diante de mim. Todo mundo tem alguma
fase da vida que precisa deixar pra trás e depois sente
falta. Talvez algumas pessoas tenham saudade da
faculdade. (Eu, não – eu era dois anos mais velha que a
minha turma e me mantive bem longe do teatro do
campus, onde poderia ter encontrado minha galera. A
faculdade foi horrível.) Outros sentem falta dos seus 20 e
poucos anos, quando bebiam vinho barato e pegavam o
metrô pra voltar para casa às duas da madrugada, ou da
época em que corriam por quilômetros toda manhã, até
que estouraram o joelho, ou do tempo em que os filhos
eram pequenos e dependentes e cheios de amor.
Sem ter ciência total disso, nos últimos 13 anos senti
falta da fase chamada Criatividade. Cara, a tristeza é
uma cretina sorrateira. Ela se esconde por longos
períodos, depois aparece mais forte do que nunca. E
agora, sentada no chão de terra no topo desta colina, eu
choro, esmagada pela falta que senti de fazer coisas com
as pessoas de quem eu gostava, percebendo finalmente
quantos anos perdi. Não quero encerrar esta fase. Não
quero mesmo que seja apenas uma fase.
Tenho um mau pressentimento. Sei que eu deveria me
lembrar que um coração disparado é uma resposta
normal ao fato de se apresentar na frente de milhões de
pessoas e que o pior cenário raramente se concretiza.
Mas é difícil me lembrar disso quando, da última vez, o
pior aconteceu.
À tarde, nos encontramos no estúdio: Summer, Liana
e eu de um lado para o outro do nosso camarim para
fazer cabelo e maquiagem. O maquiador briga com a
gente por estarmos com olheiras. Pelo jeito, não fui a
única que não conseguiu dormir direito.
Summer mal olha para nós duas enquanto,
furtivamente, lançamos olhares desesperados para ela. E
responde com monossílabos sempre que Liana tenta
puxar conversa. Que indício animador para a nossa
química da noite! Os minutos vão passando, e meus
batimentos cardíacos vão a ­ umentando.
– Querem repassar a harmonia da última música? –
pergunto, mesmo que a gente já tenha ensaiado um
milhão de vezes, como se um ensaio a mais fosse fazer a
diferença entre o sucesso e o fracasso.
Liana assente com vigor, e Summer inclina muito de
leve a cabeça.
– Chamo o Noah? – pergunto a Summer, porque não
sei se ela consegue ficar no mesmo cômodo que ele e
tenho certeza de que mal está aguentando ficar com a
gente.
O que ela vai fazer hoje à noite, depois que o
programa terminar? Para onde ela vai?
– É melhor – diz ela, ainda sem nos encarar.
Então vou até o camarim dele e dou de cara com a
maquiadora e um assistente de produção sussurrando.
Não vejo Noah em lugar algum.
– Ah – digo. – Sabem onde o Noah está?
Eles me olham com expressões apavoradas.
– Hum – diz o assistente. – Estamos tentando... A
gente acha que ele deve chegar logo, logo.
Mas como assim? Saio de lá direto para o nosso
camarim.
– O Noah ainda não chegou – falo. – E falta meia hora
pro começo do programa.
Provavelmente ele está fazendo alguma coisa de
última hora para Leopardo da Neve. Mesmo assim,
imagens de acidentes de carro ou fãs malucos
sequestrando Noah passam pela minha cabeça. Malucos
de amor por ele? Ou malucos querendo se vingar por
Summer? No Twitter, as reações à revelação que ele fez
no programa de Jimmy não foram boas, principalmente
depois que a amiga repórter de Summer publicou um
artigo hoje, aproveitando o ensejo da notícia, e confirmou
que Noah nunca falou com Summer sobre dar crédito a
ela – além de a jornalista ter comentado, casualmente,
que fontes revelaram que ele está prestes a ser
anunciado como o Leopardo da Neve.
– Quê? Isso não tem graça. Ele precisa chegar logo! –
diz Liana.
Ela já está pronta, cabelo e maquiagem finalizados.
Enquanto ela pega seu telefone correndo para ligar para
ele e perguntar o motivo do atraso, Summer permanece
sentada, com toda a calma do mundo, ainda de roupão.
Por fim, ela olha direto para mim, um sorriso estranho
rondando seus lábios.
Eu olho duas vezes para seu rosto.
– Espera aí – digo. – O que você fez?
47
••••••

SOLILÓQUIO DA SUMMER (REPRISE)

Noite passada, após descobrir que todos em quem eu já


tinha confiado na vida haviam me traído, voltei para meu
quarto no hotel e encontrei Noah sentado no corredor.
A princípio, não tinha conseguido ver quem era. Ele
estava com um boné e tinha puxado a aba para baixo.
Normalmente, quando me deparo com um desconhecido
esparramado à minha porta, é um péssimo sinal. Mais
um stalker que decidiu que enviar cartas já não é
suficiente. Hoje em dia, isso não acontece tanto quanto
acontecia quando eu era jovem e fofa. Mas às vezes
ainda aparece algum sujeito que se sente injustiçado
pelo mundo e pensa que entendemos um ao outro. O
melhor a fazer é ter empatia. Ajuda a sentir menos
medo. Se eu pensasse em todos eles como homens que
querem me fazer mal, nunca mais sairia de casa.
Comecei a recuar até o elevador. E então notei o boné
do Red Sox, que não combinava com o terno elegante
que a emissora tinha aprovado. Vi o jeito como a pessoa
abraçava os joelhos e batia o pé no chão, então percebi
que o tipo de perigo que eu corria era outro.
– Por que você está aqui? – perguntei.
Ele ficou de pé num salto. Na adolescência, Noah
conseguia dançar, correr e se lançar montanha acima,
mas agora ele tem um jeito diferente de se mexer,
parece disciplinado. O adestramento do Leopardo da
Neve, imagino.
– A gente pode conversar? – pediu ele.
Eu estava com muita raiva dele e de todo mundo. Mas
também estava curiosa.
Para onde mais poderíamos ir além do meu quarto?
Entramos, acendi o abajur da mesa de cabeceira e olhei
em volta para ver o que eu tinha deixado fora do lugar
que ele pudesse julgar. Pouca coisa, graças ao serviço de
quarto, que havia arrumado minha cama e toda a
bagunça da minha vida.
Eu não ia oferecer nada para ele. Nada de bebida nem
gentileza. Eu me sentei na poltrona sob a luz fraca do
abajur e o deixei de pé a poucos metros de mim, como se
eu fosse uma rainha em meu trono e ele tivesse vindo
implorar misericórdia. Noah tirou o boné e o segurou, o
que tornou a metáfora ainda mais completa. Ótimo.
– Veio pegar outra ideia para um roteiro? – perguntei.
– Não conseguiu escrever mais nada desde Silvestres
porque não tinha mais de quem roubar?
– Eu não escrevi nada desde Silvestres porque aquela
era a única história que eu tinha vontade de contar –
respondeu. Ele sabia exatamente o que dizer até decidir
que não precisava mais da pessoa, não é? – Vim pedir
desculpas por ter te deixado constrangida durante a
entrevista pro Jimmy. Ele estava te tratando de um jeito
tão humilhante e...
– Seu hipócrita. – Eu queria me manter fria e
impiedosa, mas ele conseguiu me deixar com muita
raiva. – Você não vai conseguir dar uma de príncipe
encantado que veio salvar a minha honra agora, depois
de ter me atirado aos leões quando eu te amava.
Ele se endireitou.
– Você me amava mesmo, então?
– Claro que sim. Eu falei que te amava!
– Mas o Lucas disse... – ele começou a falar, e,
finalmente, uma peça do quebra-cabeça se encaixou.
– Você ficou chateado por eu ter dormido com ele.
– Fiquei chateado porque você mentiu para mim. –
Seus olhos azuis pareciam sinceros, buscando os meus. –
E, sim, talvez eu tenha ficado chateado porque você
transou com ele uma semana antes de...
– Você acha que eu queria? – Não consegui mais
continuar imóvel na poltrona. – Você tinha deixado o
Lucas muito desconfiado, e ele ia falar para todo mundo
que eu não era virgem se eu não o acalmasse e... – A
expressão dele ficou insuportavelmente triste e, de
repente, comecei a sentir muito frio. – Além disso, não
preciso justificar a minha vida sexual para você!
Vasculhei a cômoda atrás de um suéter, algo quente
para me envolver e abraçar. Agora, tantos anos depois,
parece ridículo não ter contado ao Noah que eu tinha
dormido com o Lucas. Passei a acreditar em um Deus
que perdoa, que não se importa com o que faço com o
meu corpo. Mas, naquela época, a virgindade era
sagrada. Eu achava que meu erro tinha sido entregá-la
para alguém que não era o Noah, mas, na verdade, meu
erro foi pensar que eu não tinha valor nenhum sem ela.
– Eu queria que você tivesse confiado nos meus
sentimentos por você – falei. Não olhei para ele enquanto
vestia o suéter, depois fiquei segurando firme o tecido
dos pulsos. Se eu me concentrasse em algo concreto,
não precisaria pensar em arrependimento. – Mas agora
não tem mais jeito. Você já se desculpou. Pode ir embora.
– Espera. – Ele segurou a minha mão, a palma dele tão
quente, a minha gelada. Eu me afastei. – Também sinto
muito que o programa que vai ao ar amanhã à noite não
seja a nossa versão. Eu não queria desdenhar disso no
bar. Eu queria voltar e consertar as coisas.
Eu precisava me afastar mais, então fui chegando até
a parede oposta e me apoiei nela. Eu sabia que seria
melhor pedir que ele fosse embora, mas, em vez disso,
perguntei:
– O que isso quer dizer? Como você acha que a minha
vida vai ficar depois desse programa?
Ele passou a mão no rosto.
– Você vai poder ter a carreira que deveria ter tido.
Talvez consiga entrar em uma sitcom, ser engraçada
como você sempre disse que...
Nós dois sabíamos que não havia chance disso agora.
– Mesmo que tudo corra bem amanhã à noite –
comecei –, acho que a fama arruinou a minha vontade de
atuar. Eu gostava de me perder na personagem, mas não
sou mais capaz de fazer isso. A vigilância constante, a
pressão... – Parei, lutando para articular as palavras. Ele
esperou, dando o tempo de que eu precisava. – Eu
costumava achar a câmera gentil, como se ela
capturasse o melhor de mim. Agora ela parece
implacável.
– Eu entendo.
– Beleza, Leopardo da Neve.
– Não, eu não... – Ele se sentou no chão. – Não dá para
recusar uma oferta como essa. Eu sei que tenho sorte de
estar nessa posição. Mas parece que estou numa esteira
que acelera cada vez mais e alguém arrancou o botão
que controla a velocidade, então eu tenho que continuar.
Entende o que quero dizer?
– Foi assim que me senti durante a segunda
temporada. – Também deslizei até o chão. – Às vezes eu
queria que Os sonhadores nunca tivesse surgido e que
eu levasse uma vida em que tivesse formado uma boa
família e, sei lá, fizesse teatro amador. As pessoas viriam
pra me ver em Vendedor de ilusões e depois
comentariam: “Sabe quem se saiu muito bem? Marian, a
bibliotecária.” Mas nem se lembrariam do meu nome ou
do meu rosto, só lembrariam que fiz com que elas se
sentissem bem por duas horas e meia. Acho que a vida
assim teria sido muito boa.
E ali estávamos de novo, conversando como fazíamos
quando éramos adolescentes ao telefone, tudo tão fácil,
mas ao mesmo tempo extremamente difícil. Enrolei o
cabelo ao redor do dedo com força para não precisar
olhar para ele.
– É uma pena que eu fosse tão gata.
Eu o fiz rir ao dizer isso.
– Uma pena mesmo.
Ficamos em silêncio. Mais uma vez, eu sabia que
deveria pedir que ele fosse embora. Era hora de acabar
com aquele perigo, com a dança, de deixar que alguém
que me machucou ficasse.
Mas, dessa vez, foi ele que falou.
– Se servir de consolo, meu agente me ligou... Parece
que vai sair uma matéria sobre como eu te sacaneei por
causa de Silvestres. – Ele já tinha se adiantado, não ia
ser atingido por isso. – Acho que a Kat conversou com
uma repórter.
– Não – falei. Acabou saindo mais agressivo do que eu
pretendia, e ele franziu a testa. Balancei a cabeça, lhe
lançando um olhar desafiador. – Eu conversei com a
repórter. Fui eu quem fez a Kat perguntar a você sobre
isso.
Ele me encarou. Em seguida apoiou a cabeça nas
mãos:
– Você... – Então Noah fez um barulho, e seus ombros
tremeram. ­Quando ele voltou a olhar para cima, pensei
que veria mágoa em seu rosto, mas havia apenas
admiração. Como se eu o tivesse surpreendido, mas, ao
mesmo tempo, por algum motivo, ele não estivesse nem
um pouco surpreso. – Claro que foi você.
– Cansei de não receber crédito pelas coisas que faço.
Ele assentiu e abriu a boca para dizer algo, mas
tornou a fechá-la.
– Que foi? – perguntei.
– É engraçado que a gente acreditasse que era o amor
da vida um do outro sem nunca nem ter saído juntos.
– Hilário.
Olhando para o próprio sapato, ele disse:
– A gente bem que podia, sabe?
Foi a minha vez de rir.
– O quê? Sair?
– Por que não?
– Porque você partiu o meu coração e roubou a nossa
ideia. Porque você vai ser o Leopardo da Neve e eu sou
uma piada.
– Você não é uma piada.
– Você precisa assistir a alguns programas
humorísticos que passaram tarde da noite nos últimos 13
anos.
– Você não é uma piada pra mim – disse ele, com uma
voz suave, uma hesitação que não era natural num
homem tão acostumado a ser amado. – Você não sentiu
nada desde que a gente voltou?
– Mal fui eu mesma. Passei o tempo todo atuando.
– Não enquanto a gente deixava o programa do nosso
jeito. Não quando você gritou comigo no bar aquela
noite.
– Ah, e foi nessa hora que reconquistei seu coração?
– Mais ou menos. Foi.
– Para de graça. – Estreitei os olhos. Mas que audácia.
Depois de tudo, ele ainda achava que poderia conseguir
o que quisesse. Os homens sempre acham isso. Um mero
pedido de desculpas não ia consertar todo aquele
estrago. Fiquei de pé. – Já tenho muito em que pensar
sem me humilhar por completo amanhã à noite e encarar
o Sr. Atlas, agora que sei que foi ele quem passou o
diário pra imprensa...
– O quê?
Então contei a tudo a ele. No fim, Noah também tinha
se levantado e andava de um lado para o outro, com os
punhos cerrados.
– E eu vou ser o rosto de uma franquia pra esse
homem? E você precisa subir no palco e dançar para ele?
Fiquei sentada na beira da cama, mexendo no
edredom.
– Eu queria poder viajar pra longe e deixar que ele
juntasse os cacos.
– É – concordou Noah, sentando-se ao meu lado, a
poucos centímetros de mim. Ele colocou a mão sobre a
minha, um gesto de conforto. – Não ia ser bom?
Nós só estávamos concordando por um momento,
nada mais do que isso. Mas, de repente, eu entendi o que
poderia fazer para ferir Noah. Ele tinha me dado as
costas e pegado nossa ideia para si, e então tivera a
audácia de pedir desculpas antes que eu pudesse culpá-
lo por tudo. Mas ainda havia uma coisa que eu podia
tentar. Lentamente, como se estivesse sendo tomada
pela inspiração, sugeri:
– Então por que a gente não faz isso?
– O quê?
Virei a mão para que nossas palmas se tocassem,
causando um arrepio.
– Não aparecer amanhã. A gente pode
simplesmente... ir pro aeroporto e pegar um avião para
longe de Atlas.
Ele ficou me encarando, talvez com admiração ou
talvez como se eu falasse numa língua que ele não
conhecia.
Passei muitos anos lutando contra minha
impulsividade. No entanto, por mais que ela tenha me
feito mal em vários momentos, também me ajudou em
outros. Foi ela que me impediu de seguir em frente num
casamento malfadado – eu estava no carro, a caminho
do local onde ia me arrumar, com o vestido de noiva
embalado ao meu lado, e tudo em que conseguia pensar
era que eu mal tinha passado um tempo sóbria com
aquele homem. Na verdade, mal tinha feito qualquer
coisa sóbria nos meses anteriores e, em vez de casar,
decidi ir para uma clínica de reabilitação, a melhor
decisão que poderia ter tomado. Agora eu tinha fama de
impulsiva o suficiente para que Noah me levasse a sério.
– Você quer deixar a Kat e a Liana na mão?
– Depois do que elas fizeram com o diário, não vou
perder o sono por causa disso.
– Sabe o que isso representaria para as nossas
carreiras?
– Eu não tenho carreira. Mas, sim, você não ia mais
ser o rosto da franquia do Sr. Atlas. Eu entendo se,
mesmo assim, você não quiser abrir mão disso.
Ele puxou a mão e passou pelo cabelo. Eu o fitei, um
homem iluminado pela luz do abajur.
– Não dá pra consertar as coisas pela metade – falei. –
Então, se estiver falando mesmo sério, pode comprar
duas passagens para onde quiser, e a gente foge dessa
empresa tóxica.
Noah hesitou. Ele queria me ajudar a me reerguer,
mas será que não sabia que era impossível? Eu tinha me
tornado um peso grande demais. Minha satisfação teria
que vir de arrastar os outros para baixo comigo.
– Participar do programa para o Sr. Atlas amanhã à
noite... vai me destruir. Se viajar sozinha, vou ser um
desastre ambulante. Se fugirmos juntos, vai ser o mesmo
que dar uma declaração que o mundo não pode ignorar.
– Estava sendo a minha melhor atuação em anos, tão
emocionante que eu mesma quase acreditei. – E aí, claro,
depois de descer do avião, podemos finalmente sair
juntos.
Ele olhou para baixo, o peito subindo e descendo com
a respiração. O silêncio se estendeu, tão longo e absoluto
que dava para ouvir o zumbido do ar-condicionado, o
ruído baixo da TV no quarto vizinho. Dava até para ouvir
a fraca batida do coração de Noah, pensei. É claro que
ele não iria topar. É claro que eu não tinha esse poder
sobre ele.
– Beleza – disse ele.
– Oi? – Senti uma onda de eletricidade percorrer meu
corpo, da cabeça até a ponta dos dedos dos pés.
– Não vamos fazer o programa. Aeroporto
internacional, amanhã à noite.
De repente, senti dificuldade de respirar, porque tudo
o que eu respirava era ele. Noah estava brincando, só
podia estar. Segurei seu rosto e virei sua cabeça. Eu
precisava olhá-lo nos olhos.
– Está falando sério? – perguntei.
Teve uma época em que eu conhecia Noah todo de
cor, como se fossem as letras das nossas músicas
antigas. Agora, ele estava voltando para mim com novos
versos: linhas finas na testa, uma serenidade contida no
lugar da empolgação juvenil.
Ele sustentou meu olhar, as pupilas se dilatando. Na
época em que ficamos famosos, descobri que as revistas
às vezes aumentavam nossas pupilas com Photoshop.
Assim, qualquer um que olhasse a imagem imaginaria
que estava sendo desejado. Naquele momento, as
pupilas de Noah quase cobriam o azul de sua íris. Ali
estava ele, desarrumado, arruinando meus planos,
enquanto eu segurava seu rosto lindo e bronzeado. Seu
maxilar se mexeu sob meus dedos.
– Estou falando sério – disse ele, a voz pouco mais que
um sussurro.
Noah era um bom ator. Ele ia mudar de ideia. Então, o
que fiz em seguida eu quis fazer logo, naquele instante
breve e inebriante em que ainda conseguia acreditar que
ele desistiria de tudo por mim. Puxei seu rosto e o beijei.
Talvez tenha sido uma atitude estúpida. Mas eu havia
me negado isso quando era mais jovem. Durante anos,
falei para mim mesma que nunca o teria, que nem o
queria, mas bastava ver fotos dele com uma namorada
que, antes que pudesse me conter, eu pensava: Mas ele
é meu.
Para Noah, talvez aquilo fosse o começo de alguma
coisa, enquanto ele me puxava com força contra o peito,
enquanto eu tirava sua camisa e nós caíamos na cama,
mas eu sabia que seria nossa única vez juntos. Eu ia me
concentrar em cada instante ali.
Eu não era mais uma garota de 18 anos, corada, cheia
de potencial, fingindo que era a minha primeira vez.
Tanta coisa havia acontecido desde o tempo em que ele
me amava. Seu corpo tinha ficado mais forte, e eu não
queria que ele se decepcionasse com o meu. Achei que
eu não fosse aguentar se isso acontecesse, então
estiquei a mão para apagar a luz, mas ele segurou meu
braço na cama.
– Não – disse ele com uma voz rouca e baixa, uma voz
secreta que ninguém mais tinha a oportunidade de ouvir.
Ele me segurou e estudou cada pedacinho de mim.
Minha respiração ficou presa na garganta. O tempo
parecia livre de todas as suas regras habituais. Então ele
baixou a cabeça com urgência e me beijou outra vez.
Agarrei seus ombros fortes e macios e pensei: É o
Noah, em cima de mim. E então, embora quisesse me
concentrar, memorizar tudo, parei de pensar. Eu me
perdi nas sensações, a princípio fragmentadas, depois
devastadoras. Quando terminamos, senti um gosto
salgado e pensei que fosse suor, mas Noah passou o
polegar pela minha bochecha, os olhos tensos de
preocupação.
– Eu te machuquei?
Foi só então que reparei que eu tinha começado a
chorar.
48
••••••

2018

– Puta merda – diz Liana. – Então ele está a caminho do


aeroporto?
Summer assente e começa a vestir o figurino para o
número de abertura.
– E você não vai? – pergunto.
– Ele nem vai chegar lá. Vai pensar melhor, dar meia-
volta, correr para cá e aparecer dez minutos antes de
começarmos. Mas, pelo menos, vai ter tomado um belo
susto e, ao menos uma vez, as pessoas vão ficar
comentando que ele é uma pessoa difícil.
– Meu Deus. – Liana olha para cima por um momento,
apertando as têmporas. – E o que a gente vai fazer se ele
ficar preso no trânsito?
– Sei lá, jogar o roteiro no lixo e cantar as músicas –
diz Summer. – Mas ele vai chegar. Ele é o Noah Gideon, e
nós todas sabemos que, no fim das contas, só se
preocupa com ele mesmo. Além do mais, ele já
conseguiu transar comigo, então não é como se...
O telefone de Liana vibra. Ela olha para a tela e clica
num link.
– Um amigo acabou de me enviar isso.
Ela segura a tela para Summer e para mim, e nós três
inclinamos a cabeça enquanto passa um vídeo do Twitter.
Está tremido, feito com o celular por uma jovem
andando e se filmando com a câmera frontal.
– Estou vendo coisas ou o Noah Gideon está no
aeroporto internacional neste instante? – A câmera vira e
revela um sujeito sentado numa fileira de assentos
desconfortáveis no aeroporto. Ele está com um café
gelado do Dunkin’ Donuts na mão, a perna balançando. –
Ele não deveria estar fazendo Os sonhadores agora? Vou
lá falar alguma coisa ou vou me sentir uma idiota se não
for ele?
E o vídeo acaba aí.
– Ele foi para lá. – Estou desnorteada. – Quero dizer,
era ele, não era?
– Ah. Bom, que ótimo – diz Summer.
Seu corpo está rígido ao meu lado, sua respiração fica
superficial conforme ela percebe a enrascada em que nos
meteu. Como vamos refazer todo o programa em meia
hora? Aquilo é demais para a minha cabeça. É oficial:
Summer Wright não é mais a maior encrenqueira do
grupo. Noah acabou de colocar esse manto pesado sobre
seus ombros largos que ele tanto malhou para ser um
super-herói que nunca vai interpretar. Depois de tantos
anos construindo uma imagem de galã confiável,
passando por cima de tudo e de todos, ele jogou tudo no
lixo. E nos arranjou um belo de um problema.
– Beleza, ele ainda consegue voltar, né? – indaga
Liana. – Se sair de lá imediatamente?
– A tempo do início do programa? No trânsito de Los
Angeles? – pergunto. – Não.
– Ah, que ótimo, ainda tem mais – diz Liana, lançando
um olhar acusatório para Summer enquanto abre o vídeo
seguinte, postado um minuto atrás.
– Estou tão nervosa – diz a jovem ao se aproximar do
homem. Ela vira a câmera. – Noah Gideon?
Noah olha para cima. Definitivamente é ele. Liana
agarra minha mão e a aperta tanto que eu temo que ela
vá quebrar meus dedos.
– O que está fazendo aqui? – pergunta a fã. Noah
começa a cobrir o rosto e se vira, mas a fã insiste. – O
que está acontecendo?
Então Noah parece tomar uma decisão. Ele para de
encolher os ombros e tira o boné.
– Pode chamar de surto. Pode dizer que estou indo
para uma clínica de reabilitação.
Ele sorri, mas não com seu sorriso encantador de
astro de cinema, nem aquele sorriso desmedido que ele
às vezes não conseguia conter e que se espalhava por
todo o rosto quando ele estava com Summer. É o sorriso
trêmulo de um homem que sabe que está sendo
insensato, mas que decide seguir em frente mesmo
assim.
– O quê? – pergunta a garota. – Você está indo para a
reabilitação?
– Na verdade, espera – responde Noah. – Você vai
postar isso? Porque, se for, eu quero dizer... – Ele olha
diretamente para a câmera, a voz embargada. – Eu sei
que vou esperar, esperar, e você provavelmente não
vem. Eu entendo. Mas vou continuar aqui. Como você
disse, não dá pra consertar as coisas pela metade. – A
garota começa a mover a câmera, mas ele ergue a mão.
– Ah, e se você acabar fazendo o programa, merda pra
você.
– Que loucura – comenta a garota, e então, como se
tivesse acabado de se lembrar de algo: – E é verdade
que você vai ser o Leopardo da Neve?
– Que se exploda a Atlas – responde Noah. – Nunca
mais trabalho com eles.
O vídeo acaba. Encaramos a tela em estado de
choque.
– Merda – digo, tentando me situar nessa nova
realidade. – Então vamos transformar o programa num
show e cantar as partes dele?
– Porra, Summer! – explode Liana. – Grande vingança,
mas você estragou tudo para nós três.
Summer fica encarando a bancada de maquiagem.
– Eu sou uma idiota – diz ela.
– Não – começo a falar, mas Liana interrompe:
– É, sim.
Por fim, Summer se ergue, pronta para assumir o
controle da situação que criou. Seu olhar vaga pelo
camarim, perdido, como se na verdade visse algo dentro
da própria cabeça – ideias do que precisamos fazer, de
como explicaremos isso para Michael e para o público.
Ela se abaixa para pegar algo na bolsa.
Não, ela pega a bolsa inteira e a coloca no ombro.
– Esqueci que sempre acabo me voltando pra
esperança – diz Summer, se virando para nós com um
olhar assustado. Ela está reluzente, as bochechas
coradas, iluminada por dentro. – Sinto muito, mas preciso
pegar um avião.
Fico sem palavras por um momento. Mas Liana avança
para tentar bloquear o caminho de Summer.
– Como vamos fazer o programa sem você?
– Você sempre foi a mais talentosa mesmo. Vai até lá
e mostra pra todo mundo.
– Mas... – Liana gagueja, erguendo o braço para que
Summer não consiga passar.
– Depois do que me contou ontem, você não tem o
direito de ficar irritada.
Summer dá um passo à frente, beija Liana no rosto,
passa por ela e vem até mim. Então me abraça forte e
passa a mão no meu cabelo. Ela parece tão frágil nos
meus braços.
– A propósito, eu perdoo vocês duas – diz e sai
correndo pela porta.
49
••••••

2018

– O que a gente faz? Ai, meu Deus, o que a gente faz? –


pergunta Liana enquanto afunda em uma cadeira.
Ela coloca a cabeça entre as pernas, alternando entre
respirações profundas e gemidos trêmulos. Eu me
belisco. Isto é um sonho. Com certeza os astros do nosso
programa não fugiram juntos em uma tentativa
insensata de dizer dane-se para a emissora.
Os dois sempre foram bons em contar histórias. Noah
escreveu um filme inteiro para dar a si e a Summer um
final feliz. Talvez ele esteja construindo uma narrativa
para si mesmo agora também, fazendo a própria vida ser
sua história mais emocionante, concluindo o arco da
redenção – ele se posiciona a favor do que é certo e
acaba ficando com a mulher dos seus sonhos! E Summer
está se autodestruindo mais uma vez. Eles vão implodir
em uma semana.
Ou talvez um gesto grandioso assim seja o necessário
para ajeitar tudo e esses dois jovens imprudentes
tenham sido feitos um para o outro. A obsessão dela em
acabar com ele... ninguém fica tão obcecado assim, a
menos que haja um pouquinho de amor.
Eu poderia encher um semestre inteiro de faculdade
com aulas sobre todos os motivos pelos quais eles vão se
arrepender disso. Mas não tenho tempo no momento,
porque o programa começa em vinte minutos e estamos
diante de uma crise.
Não sou de desmaiar, mas de repente fico tão zonza
que preciso me segurar na bancada onde estão nossas
maquiagens, escovas, meu telefone.
Então pego o telefone e ligo para Miheer.
– Está tudo dando errado – falo assim que ele atende.
– E não posso ir lá pra fora e eu te amo e quero me casar
com você mais do que tudo, mas primeiro preciso te
contar as coisas ruins que eu fiz na época em... – Eu
paro, porque está muito barulhento onde ele está. –
Espera aí, o que está acontecendo? O que você está
fazendo?
– Hum, eu estou aqui.
– Onde?
– Na plateia. Cercado por um monte de mulheres de
20 e poucos anos bem empolgadas. Estou me sentindo
meio estranho.
– Você veio?
– Vim. Eu vi sua entrevista no Jimmy ontem à noite e...
Espera um pouco...
Meus olhos se enchem de lágrimas. Meu telefone
vibra com uma mensagem dele. Ele me enviou uma foto
que acabou de tirar de si mesmo em meio a uma
multidão, com o polegar para cima e sorrindo acanhado
para a câmera. Ai, meu coração: ele está com uma blusa
que diz TIME KAT.
– Você está lindo – falo.
– Valeu. Espera, o que você quis dizer com não poder
vir aqui fora?
– Summer e Noah fugiram.
– Achei que... Estavam falando disso por aqui. Minhas
novas amigas ao meu lado disseram que tinha alguém
igualzinho ao Noah no aeroporto, mas elas não
acreditaram na história.
– É verdade. E a Summer foi se encontrar com ele.
– Eles estão mesmo apaixonados? Que empolgante!
Ele está agindo como um fã da série. Eu acharia fofo
se não estivesse em pânico total.
– Então vamos ter que cancelar o programa.
– Não – diz ele. – Você não vai fazer isso. Você é Kat
Whitley e faz as coisas acontecerem. A plateia veio só
pra isso.
– Eles não vieram me ver.
– Bom, se não vieram, deveriam ter vindo! Você é tão
engraçada nesse papel... aquele episódio em que você
para a roda-gigante... mas você é fofa também, tipo no
seu dueto com a Summer e...
– Espera aí, você assistiu aos episódios antigos?
– Depois da última vez que nos falamos, comecei a
pensar: esse programa é uma parte importante de você e
eu não tinha percebido quanto. E, é claro, eu podia ter
ficado chateado com você por não ter me falado mais
sobre isso, mas eu também nunca perguntei.
– Você viu o programa – digo em pouco mais do que
um sussurro.
– Todos os episódios.
Tenho dificuldade em articular as palavras, mas de
algum jeito encontrei um porto seguro em meio à
tempestade – ou ele que me encontrou.
– Se nada mais contar, eu vim ver a Kat, então faz o
programa pra mim.
– Se for um fracasso, a imprensa vai acabar com a
gente.
– Você já sobreviveu uma vez. Vai sobreviver de novo.
– Eu te amo – digo. – Preciso ir.
– Te vejo logo, logo.
Quando tiro o telefone do ouvido, Liana está me
observando, uma parada temporária em sua
hiperventilação.
– Ligar pro Javi em busca de conforto nem passou pela
minha cabeça – diz ela, bem baixinho.
Dou um passo à frente para dar um abraço nela
quando meu telefone toca de novo. Uma mensagem de
Summer:
Espero que você também se perdoe. E posso pedir
mais uma coisinha?
Liana e eu esperamos. Bem na hora em que chega a
mensagem seguinte de Summer, há uma comoção, e a
voz de Michael ecoa da coxia.
– Então vai atrás dela! E chama o Sr. Atlas. É, estou
falando com você.
Um enxame de gente se espalha pelo corredor e pela
coxia, com sussurros ansiosos. Forço passagem entre a
massa apavorada e chego até Michael, que anda de um
lado para o outro enquanto seus assistentes saem do
caminho.
– Aqueles idiotas – diz Michael ao me ver e se apoia na
parede. – Onde eles estão com a cabeça? Você sabia
disso?
– Até agora, não – respondo.
– Vamos cancelar o programa – diz ele, não para mim,
mas para si mesmo. – Vamos ter que passar a reprise de
alguma coisa. – Ele pressiona a cabeça contra a parede. –
Merda, os patrocinadores.
– E os fãs.
– É, eles também.
O Sr. Atlas entra apressado nos bastidores, o paletó
levemente desalinhado, o rosto pálido, enquanto um
assistente o atualiza de tudo o que está acontecendo. Ele
leva um lenço aos lábios.
– Michael, qual é o seu plano?
Michael olha para além de mim, e eu me viro para ver
que um grupo grande – o elenco inteiro, todos os
assistentes e a equipe dos bastidores – se juntou,
conversando e choramingando.
– Michael? – insiste o Sr. Atlas.
– Eu não sei, não consigo pensar, não consigo... Eles
estão tentando me matar. Não posso me estressar desse
jeito!
Michael afunda no sofá, inútil.
Então eu me apresento.
– Podemos fazer no estilo de um show – digo para o Sr.
Atlas.
Ele semicerra os olhos, cético. Não quer que eu tome
as rédeas. Mas que escolha ele tem?
– Explique – diz.
Eu me viro para o pessoal.
– Alguém tem um pedaço de papel?
Uma assistente traz correndo um bloco de notas
amarelo, e começo a escrever a lista de músicas na
ordem em que devemos apresentá-las. Logo de cara,
passo “Borboleta” para Liana. Para os números com o
grupo todo – em que Summer e Noah fariam pequenos
solos –, pergunto ao pessoal do coro se algum deles quer
substituí-los e escolho entre quem ergue a mão. Todos
me observam apreensivos.
– Fita adesiva?
A assistente volta correndo, e colo o setlist na parede.
– Muito bem, time, esqueçam o roteiro. Em vez disso,
vamos cantar e dançar até dizer chega. Vamos chamar
alguns fãs no palco pra fazer as músicas da Summer e do
Noah daquela época. Eles sabem todas as letras e todo
mundo adora quando a plateia participa, não é? – Olho
para Liana, que ainda está com a respiração ofegante, os
olhos fixos nos meus. – Você está bem pra entrar comigo
e preencher a sequência, brincar com o público e
coisas assim?
Ela assente com um breve aceno de cabeça.
– Isso não vai usar o tempo total reservado pra
apresentação – diz o Sr. Atlas.
– Então bota o seu pessoal pra editar alguma
montagem ou coisa assim pra passar no final.
Liana se pronuncia.
– Kat e eu podemos contar algumas histórias dos
bastidores se vocês quiserem que a gente ganhe
tempo...
– Apenas as que forem adequadas às famílias – alerta
ele.
Liana ergue o queixo para ele, o homem que se
aproveitou de um lapso momentâneo da sensatez de
uma adolescente e arruinou completamente o nosso
programa.
– Não se preocupa, sabemos quanto a Atlas se
importa em proteger sua marca.
Depois de um instante, ele desvia o olhar e se volta
para mim.
– Não tenho certeza quanto a esse plano. Vai ser uma
bagunça.
– Mas, pelo menos, vai ser alguma coisa.
Ele pensa um pouco, então assente. Temos a
aprovação. Eu me viro de novo para o pessoal. Na
verdade, é estranhamente empolgante.
– Vão terminar de se arrumar e vamos botar pra
quebrar, beleza? Espera aí. – Puxo um dos assistentes de
produção. – Preciso falar com um cinegrafista.
Todo mundo se dispersa, e ficamos apenas o Sr. Atlas
e eu.
– Obrigado por assumir o controle. – Ele olha
fixamente para o setlist com minhas anotações, o nariz
se enrugando. – E lamento que eles tenham deixado
vocês sozinhas para se apresentarem em uma situação
desconfortável. Vou enviar minha equipe jurídica atrás
deles, não se preocupe.
– Não é uma boa ideia.
Eu também cravo os olhos no setlist, meu tom de voz
é baixo.
– O que quer dizer?
Respiro fundo e entro no modo advogada.
– Da minha vasta experiência trabalhando com
contratos, imagino que haja uma cláusula que diz que os
signatários têm direito de desistência caso informações
prejudiciais venham à tona. E o presidente da emissora
ter entregado à imprensa o diário particular de uma
funcionária é algo bastante prejudicial, não acha?
Ele pisca para mim, surpreso. Mas não nega. Não diz
nada. Summer me contou que, nos bastidores, durante o
último episódio, ele mal olhou pra ela, o rosto tomado
por aversão. Ela acreditou que a aversão fosse por ela, e
eu concordo. Mas talvez, em parte, fosse por si mesmo.
Espero que isso tenha assombrado esse homem do jeito
que assombrou a todos nós. Espero que ele também
goste de consertar as coisas.
– Você já causou estrago demais – falo. – Deixe os dois
em paz.
Ele remexe nos óculos, então engole em seco e dá
batidinhas no setlist.
– Estou ansioso para assistir ao programa.
50
••••••

2018

A multidão ecoa a palavra “sonhadores” sem parar,


enquanto Liana e eu, nos bastidores, pingando de suor,
aguardamos nossa deixa. Liana está tremendo enquanto
murmura algo bem baixinho: “Ela ferrou a gente. Ela
ferrou a gente.”
Recebemos a deixa, e ela joga a cabeça para trás,
sempre profissional, e entra no palco para o número de
abertura, comigo logo atrás. Cantamos e dançamos com
o coro, substituindo Noah na coreografia, e a multidão
grita quando terminamos a apresentação.
Vejo pessoas nas primeiras fileiras esticando o
pescoço, querendo saber onde raios estão Summer e
Noah. Dou um passo à frente com Liana e me dirijo a
todos.
– Esta noite, vamos fazer as coisas um tantinho
diferente do planejado. Mas não seria um programa ao
vivo de Os sonhadores se a gente não saísse um pouco
dos eixos, seria?
A perplexidade do público se transforma em
murmúrios caóticos. Liana ergue a mão.
– Summer e Noah tiveram uma... emergência de
última hora, então vamos ser suas guias esta noite.
A expressão das pessoas murcha, gritos de raiva e
preocupação cruzam o ar.
Lanço mão da minha sobrancelha devastadora em
todos eles.
– Com licença! Quero ser uma estrela desde que
nasci. Este momento é meu, então nem ousem vaiar.
Há uma onda de risadas. As pessoas não entendem
direito o que é realidade e o que é roteiro.
– E esperamos que eles dois se juntem a nós no final –
diz Liana.
– Nesse meio-tempo, por mais que eu ache que devo
cantar todos os números do mundo sozinha, preciso ser
gentil com meu belíssimo instrumento – digo, acariciando
meu pescoço de um jeito bem exagerado. – Então, algum
fã gostaria de vir até aqui nos ajudar?
Escolho algumas pessoas da plateia: duas que estão
de mãos erguidas com tanto entusiasmo que correm o
risco de deslocar os braços e um cara que esconde o
rosto de constrangimento (será?) quando os amigos
apontam para ele.
Enquanto passam os comerciais, digo a cada um deles
onde ficar e qual parte cantar e os acalmo. E então
estamos de volta e, puta merda, estamos presos em uma
montanha-russa sem saída.
A adrenalina é diferente de tudo que já senti. O que
estamos fazendo é estanho e confuso, mas, aos poucos,
as pessoas vão se envolvendo. Elas se divertem,
aplaudem os fãs que, corajosamente, se
apresentaram. Liana e eu contamos algumas histórias
inéditas dos bastidores (com classificação livre) e
fazemos graça com maestria. E, claro, é bom atuar. Mas
o que realmente me faz flutuar a três metros do chão é o
quadro geral aqui, a sensação de que dei a outras
pessoas aquilo de que precisavam para brilhar.
Então chega a hora de “Borboleta”. Liana dá um passo
à frente, sob os holofotes, e a multidão fica em silêncio
enquanto ela canta. É ainda mais visceral, sua voz ainda
mais cheia, do que a vez que ela cantou no ensaio. Ela é
uma jogadora em dia de campeonato e, além disso, está
sentindo muitas coisas no momento. Quando ela termina,
um rugido enorme emana da plateia. Esta noite vai ser o
começo de algo para ela, eu aposto minha vida nisso. Ela
se vira para mim, lágrimas rolando pelo rosto enquanto a
multidão ecoa seu nome, e eu a abraço.
– Você é maravilhosa – sussurro em seu ouvido.
– Eu sou, não sou? – diz ela, e dá um passo atrás,
radiante.
Ela olha bem dentro dos meus olhos por um instante,
e o estalo de coragem finalmente acontece. Ela leva o
microfone aos lábios e se vira para a plateia.
– E, Javier, se estiver assistindo, eu quero o divórcio.
Isso provoca uma nova rodada de clamor da multidão.
Mas sempre tem algum pessimista, sempre tem algum
troll. E, enquanto o aplauso vai diminuindo, uma mulher
na frente da plateia começa a gritar:
– Cadê a Summer?
– Ela deve entrar a qualquer momento – respondo,
olhando para os bastidores.
A assistente de produção que está ali balança a
cabeça e sinaliza sem som: Nada ainda. O Sr. Atlas está
ao lado dela de braços cruzados. Parece muitíssimo
satisfeito com o que está acontecendo no programa. De
certa forma, é até melhor para os índices de audiência,
não? Se executássemos aquele programa medíocre,
teríamos cobertura por um ou dois dias, alguns artigos
aqui e ali. Mas isto aqui? As pessoas vão comentar por
semanas.
A mulher que perguntou sobre Summer vaia. Essa é
uma das coisas que a gente esquece em relação aos fãs,
quando de repente há tantos deles. Eles não são uma
massa de pessoas que se sentem da mesma forma em
relação a tudo. Cada um tem a própria história de vida,
as próprias razões para se sentir atraído pelo que você
faz. Essa mulher em particular sente algo diferente dos
outros e, quando ela cria um tumulto, outros vão atrás,
aqueles que pagaram uma boa grana por algo específico
que lhes foi negado.
– Ela continua sendo o caos em pessoa! – grita a
mulher.
Outros fazem coro. Coisas como “típico” e “desastre”
se destacam em meio aos gritos. Estamos perdendo o
controle, e as pessoas começam a discutir entre si na
multidão.
– Beleza, eu tenho uma história dos bastidores pra
todo mundo – grito – sobre o que realmente aconteceu
com o diário da Summer.
Isso atrai a atenção deles. Minha garganta fica seca
enquanto o silêncio se espalha e todos me observam.
Tem um momento, em vários filmes, em que o vilão fica
sob os holofotes e ganha um monólogo sobre seus atos
de covardia. Agora é a minha vez.
Liana me lança um olhar de alerta: Tem certeza? Não
seja estúpida. Mas eu me obrigo a começar a falar. Estou
fazendo isso para acalmar as pessoas que estão vaiando,
mas talvez eu também deva isso às pessoas que se
dedicaram tanto a nós.
– Tudo o que tinha lá, todas as opiniões sobre todo
mundo, o homem no beco, tudo pelo que o mundo a
condenou... Ela não escreveu nada daquilo.
Miheer está em algum lugar ali, no escuro, me vendo,
e, por mais que eu esteja com medo, sei que é hora de
ele saber disso. Preciso acreditar que ele ainda vai me
amar depois disso.
– Fui eu que escrevi.
Da multidão, sobe um ressoar de confusão e choque.
– Eu usava o diário dela. E, quando ele foi parar na
imprensa, deixei que Summer levasse a culpa. Porque eu
tinha pavor do que a Atlas faria comigo. Do que todo
mundo faria comigo!
Dos bastidores, o Sr. Atlas grita:
– Katherine, pare com isso agora mesmo!
Ele faz um gesto para que eu pare de falar, mas não
dou ouvidos, porque meu nome é Kat.
– Ah, que se dane – diz Liana, atrás de mim, e dá um
passo à frente. – Foi minha culpa também. Eu encontrei o
diário e o entreguei a alguém em quem eu não deveria
ter confiado, porque eu queria salvar meu emprego. O
ambiente de trabalho tinha ficado muito acirrado por
causa de toda a competição que os homens no poder
geravam entre nós.
O Sr. Atlas vai até a assistente de produção, toma seu
walkie-talkie e faz contato com a sala de controle.
– Cortem a programação – ordena ele. – Vão para os
comerciais, passem a montagem, façam o que for
preciso.
Não sei se obedeceram ou não. Seja como for, vou em
frente, e Liana agarra minha mão. Talvez o resto do país
não veja, mas este lugar está lotado de fãs e eles vão
ouvir. Esqueça o monólogo do vilão. Eu sou mais do que
só A Escrota. Eu sou humana e erro feio na vida. Algum
dia, vou cometer outro erro. Sempre cometemos. O que
nos torna boas pessoas não é o fato de fazermos besteira
ou não, mas se as ignoramos ou tentamos consertá-las.
– Deixei que Summer levasse a culpa por mim. E
sempre vou me arrepender disso. Mas por que é que
tínhamos que puni-la tanto, afinal? Destruímos uma
jovem em prol do nosso entretenimento, mas podemos
encontrar formas melhores de nos divertirmos.
Precisamos encontrar.
A multidão está em completo silêncio. Vejo pontinhos
de luz na plateia. Telefones filmando. Mesmo que a Atlas
tenha interrompido a transmissão, a filmagem vai sair.
Dos bastidores, a assistente de produção chama meu
nome. Olho para ela, que levanta o polegar para mim.
– E agora, com vocês, o grand finale – digo para a
multidão. – Summer e Noah.
Uma tela no palco que vinha projetando closes dos
nossos rostos começa a exibir um novo cenário: o
aeroporto. Nele, o cinegrafista que mandei atrás de
Summer a segue pelo terminal. De repente, Noah
também surge na tela, largado em um banco, as pernas
esticadas enquanto outros passageiros apontam para ele
e ficam olhando.
Summer se vira, joga os ombros para trás e diz,
olhando direto para a câmera:
– Eu escrevi esta cena. – Então ela grita para Noah: –
Você estava lá, dentro da minha cabeça.
É uma das falas que ela escreveu num papel timbrado
do hotel para eles dois. Falas que eles decoraram e
recitaram tão bem em uma sala de ensaio, até que
mandaram os dois pararem, porque era visceral demais,
exagerado.
Noah ergue a cabeça ao ouvir a voz dela. Um milhão
de pensamentos parecem atingi-lo. Alívio e alegria por
ela estar ali. A consciência do câmera atrás dela. A súbita
compreensão do que ela está fazendo. Ele se põe de pé,
tira o boné e diz a fala seguinte da cena.
– Você esteve na minha nos últimos 13 anos.
Eles vão na direção um do outro enquanto recitam o
restante. Não é muita coisa, apenas um ou dois minutos,
mas é grandioso. Seus olhos brilham. Todos no terminal
param o que estão fazendo para assistir.
Summer diz sua última fala. E então corre para os
braços de Noah, que a ergue do chão. Se isso fosse um
filme, o jeito como eles se unem agora valeria uma
indicação sem mais concorrentes para a categoria de
melhor beijo do prêmio MTV Movie Awards. Esse beijo
vale as cinco indicações: ninguém mais ousaria competir.
Eles se separam devagar, ele a coloca de volta no
chão, e as pessoas ao redor no terminal vibram,
enquanto nossa plateia aplaude também – não que
Summer e Noah possam ouvir. Não sei nem se eles estão
ouvindo as pessoas à sua volta.
Então Summer desvia o olhar. Ela se vira e fala
diretamente com a câmera.
– Aí está o beijo que vocês queriam. – Ela pega a mão
de Noah e diz uma última coisa antes de a tela ficar
preta. – Agora, por favor, deixem a gente em paz.
Epílogo
••••••

2019

OITO MESES DEPOIS

Miheer e eu estacionamos em uma entrada de carros


com chão de terra. Um chalezinho branco surge entre as
árvores à nossa frente.
– Tem certeza de que é para eu entrar? – pergunta ele
ao desligar o carro. – Posso ir até a cidade, dar uma
olhada no antiquário ou algo assim, deixar vocês a sós.
– Não. Vai ser bom ter sua ajuda, já que podemos
confiar em você pra não divulgar nada. Além do mais,
quero que eles conheçam meu marido.
A palavra ainda soa um pouco esquisita, no melhor
sentido possível. Sorrio para ele, explodindo de
felicidade.
Ele me dá um sorriso igualmente feliz enquanto
saímos do carro.
– Então tá, esposa.
Quando Summer abre a porta, quase não a reconheço.
Quem é essa morena saudável diante de mim?
– Oi – diz ela, e nos dá um abraço rápido e distraído. –
Entrem. Liana já está aqui. – Ela olha para trás enquanto
nos conduz por uma aconchegante cozinha à moda
antiga. – Querem um chá ou algo assim? Temos chá pra
caramba.
– Hum – diz Miheer. – Camomila?
Summer começa a preparar o chá e nos indica as
portas duplas.
– Podem ir pra sala de estar.
Do outro lado das portas, Liana está sentada no sofá.
Ela guincha ao nos ver e tenta se levantar, mas antes
tem que tirar umas cinco mantas da frente.
– Desculpa, estou sendo sufocada – diz ela, então
grita para a cozinha. – Summer, você compra uma manta
nova toda vez que fica entediada?
– Não! – grita Summer em resposta. – Aqui faz muito
frio.
– Eles estão se aninhando – diz Liana para nós, em
tom confidencial, e abre os braços para nos receber. –
Parabéns! Quero que saibam que estou feliz por vocês,
mesmo que eu seja uma mulher divorciada amargurada
e vocês não tenham me convidado pro casamento.
Miheer ri.
– A gente não convidou ninguém, sério mesmo. Em
Washington, as pessoas podem celebrar os próprios
casamentos, então só colocamos umas roupas legais e
fomos ao parque.
– Tudo bem, estão perdoados.
Quando Summer chega da cozinha com o chá de
Miheer, Noah vem atrás dela trazendo uma pilha de
folhas impressas. Seu corpo está mais delicado, de novo
como o de um ser humano. Há algo de confortável entre
ele e Summer, algo feliz. O primeiro encontro deles virou
outro e mais outro. Nos últimos meses, enquanto lidavam
com a derrocada de suas carreiras, eles vieram morar
neste chalé no norte do estado de Nova York. A imprensa
não os deixou em paz por completo, mas ninguém
acampa do lado de fora da casa deles.
Noah nos abraça e depois entrega um bolinho de
páginas a cada um. Nós nos sentamos em nossos
lugares, e Summer atribui os papéis que vamos ler, suas
mãos trêmulas. Noah aperta seu ombro, e ela se acalma.
O problema de romper drasticamente com seu
empregador é que outros empregadores passam a
confiar pouco em você. As pessoas têm interesse em
nós, sim, mas ficam inseguras. De todos nós, Liana é a
que está se dando melhor, como deveria ser: acabou de
filmar um longa e está no processo de gravar um álbum.
Ainda assim, para cada produtor que ficou obcecado por
sua interpretação de “Borboleta”, tem alguém ao lado
dizendo que ela chamou a Atlas de “ambiente tóxico” em
cima de um palco. Tenho colado em alguns diretores para
aprender mais sobre o trabalho deles e comecei a
produção de um curta de baixíssimo orçamento, mas
tenho a sensação de que o Sr. Atlas deve ter elaborado
uma lista sutil de pessoas indesejáveis e espalhado por aí
que não é boa ideia confiar um set a mim. Summer e
Noah? Eles receberam inúmeros convites para reality
shows tenebrosos e entrevistas reveladoras, mas nada
além disso.
Pelo menos a carreira de Michael também está na
merda. A notícia do surto dele nos bastidores quando
ficou sob pressão se espalhou, junto com relatos de que
já é difícil lidar com ele no trabalho há anos. Outra
pessoa vai assumir a direção da quarta temporada de
Desastre no mar.
Nossa única grande oportunidade veio do lugar mais
inesperado de todos: a Atlas, que nos convidou para
fazer uma minissérie, como uma oferta de paz. Porque
eles também foram afetados. O grandioso gesto de Noah
e Summer inspirou uma horda de jornalistas a começar a
vasculhar, o que gerou um sem-fim de artigos de opinião
e retrospectivas sobre os fracassos da empresa. Além do
mais, rendemos uma audiência excelente para a
emissora. O novo programa proposto por eles seria
gravado, não ao vivo, mas daria maior controle criativo a
nós quatro. Poderíamos voltar, ganhar uma boa grana e
mostrar para o público que era tempo de perdoar e ser
perdoado.
Talvez tenha sido burrice, mas recusamos a oferta.
E então Summer nos chamou para dizer que escreveu
o rascunho de um roteiro. Liana seria perfeita para o
papel da protagonista. Talvez eu fosse uma boa escolha
para dirigir. Noah tinha sido de grande ajuda dando
ideias aqui e ali e podia executar um papel menor e
cuidar da produção. Será que a gente não queria se
reunir para ler em voz alta e ver se era bom?
Então, aqui estamos, metendo a cara, confiando uns
nos outros e dando um gigantesco salto no escuro.
Porque talvez o roteiro não seja nem um pouco bom.
Ou talvez seja e não dê em nada por falta de
financiamento. Talvez Liana receba a oferta para o papel
mais importante da sua vida e precise nos deixar. Talvez
Summer e Noah terminem no meio da filmagem e se
recusem a estar no mesmo cômodo, ou ela tenha uma
recaída, ou ele comece a se ressentir por tudo de que
abriu mão quando a publicidade de Leopardo da Neve
(agora estrelado por um Chris qualquer) começar. Talvez
algum desastre – natural ou artificial – se abata sobre o
mundo logo antes da estreia e as pessoas só consigam
pensar nisso. Tem um milhão de “talvez”.
Ainda assim, viramos a primeira página. O ar estala
de eletricidade. Olho ao redor, para as pessoas que me
ensinaram uma nova forma de sentir. Então,
estupidamente otimistas, começamos a ler.
Agradecimentos
••••••

De certa forma, este livro é uma carta de amor para bons


colaboradores criativos: pessoas que te entendem,
apoiam e engrandecem. Tive a sorte de trabalhar com
alguns dos melhores colaboradores da área. Jen Monroe,
minha editora, me pressiona do jeito mais gentil possível.
Sem sua perspicácia, esses personagens provavelmente
seriam totens de papelão de si mesmos e eu estaria
dando com a cabeça na parede, me perguntando por que
o livro não alcançou seu potencial. Stefanie Lieberman,
Molly Steinblatt e Adam Hobbins são uma baita equipe
de agentes: determinados, inteligentes e divertidos. Seu
entusiasmo com minha ideia desde o início tornou tudo
possível. Dá para acreditar que já trabalhamos em TRÊS
livros juntos? E que venham mais!
Sou muito grata a toda a equipe da Berkley, a
começar pelo meu time de estrelas de publicidade e
marketing: Jessica Mangicaro, Danielle Keir e Tara
O’Connor. Sou a pessoa mais sortuda do mundo por ter
vocês do meu lado. Candice Coote forneceu
maravilhosamente um novo olhar editorial; Angelina
Krahn pegou meus erros na preparação de originais (e
estava certa em apontar que talvez eu não devesse usar
tantas vezes a expressão “amigos do peito”); Liz Gluck
foi uma produtora editorial incrível; e Craig Burke,
Jeanne-Marie Hudson, Claire Zion, Ivan Held e Christine
Ball são todos excelentes defensores dos livros que
publicam. Agradeço também a Jin Yu, Emily Osborne e a
todos os outros funcionários da Berkley e da Janklow &
Nesbit que apoiaram este livro de inúmeras formas.
Também sou muito grata aos amigos escritores que fiz
pelo caminho. Sei que, se eu tentar listar todos aqui, vou
acordar suando frio no meio da noite depois que o livro
estiver na gráfica, me lembrando de todos os nomes que
deixei passar, então vou só dizer: se tivemos a chance de
nos conectar e nos apoiar nessa indústria tão louca,
muito obrigada. Na verdade, não temos “colegas de
trabalho” como as outras pessoas costumam ter, mas às
vezes encaro vocês dessa forma (só que, tipo, bons
colegas de trabalho, com quem eu gostaria de passar
mais tempo na copa). Um agradecimento especial a
todos que tiraram um tempo para enviar elogios tão
generosos sobre meus livros.
Sempre fico surpresa diante da paixão e do talento da
comunidade Bookstagram e da hashtag BookTok, dos
livreiros e bibliotecários e de todo mundo que se dedica a
falar dos livros que ama. Gente que ama livro é o melhor
tipo de gente que existe.
Sash Bischoff, Lovell Holder, Blair Hurley e Daria
Lavelle me deram feedbacks animadores e perspicazes
desde o primeiro rascunho. Kate Emswiler, Becca Roth e
Celey Schumer: é uma honra fazer parte do universo
cinematográfico do Lamapop com vocês. Obrigada a
Paavana Lepard, por me dar aulas sobre advogados; Will
Wagner, por me dizer qual carro as riquinhas do ensino
médio dele tinham; e Becca Mohr, por tantas anotações
úteis.
Como bem sabem os personagens deste livro, o
mundo de Hollywood pode ser confuso e avassalador,
mas Olivia Blaustein me ajudou a transitar por ele com
seu entusiasmo, seu trabalho árduo e seu bom senso
fantástico.
Também quero manifestar meu apreço pelas mulheres
que estavam sob os holofotes e atingiram a maioridade
no começo dos anos 2000. Nas pesquisas para este livro,
li artigos e entrevistas daquela época e assisti a muitos
vídeos antigos que me deixaram desolada. Espero que o
mundo reconsidere seu valor e que todas elas consigam
o reconhecimento que merecem. Se este romance abriu
seu apetite pela cultura pop dos anos 2000, indico uma
obra que amei ler, Open Book, de Jessica Simpson, no
qual ela pôde contar sua história nas próprias palavras.
Para todos os amigos que me incentivaram com tanta
gentileza durante a escrita deste livro e me disseram que
estavam ansiosos para ler: aqui está, espero que
gostem! Sou grata à minha família, que fico feliz por ter
se expandido ao receber o clã Christie/Handelsman. Meu
pai, Mark, e meu irmão, Matt, estiveram ao meu lado, me
dando amor e apoio, durante a escrita de tantas obras.
Minha mãe me ensinou muito do que sei, mesmo que ela
não esteja aqui para ler este livro. E, por fim, meu
marido, Dave: ainda bem que a gente não levou 13 anos
para perceber que deveria ficar juntos.
Sobre a autora
••••••

LAURA HANKIN é atriz, roteirista e autora de


romances que você pode ler tanto na praia quanto em
um clube do livro. Atualmente tem projetos para a TV e
alguns filmes em andamento. Os sonhadores foi incluído
nas listas de melhores leituras de verão de 2023 da
Harper’s Bazaar e da Cosmopolitan. Mora em
Washington, onde certa vez conseguiu a façanha de cair
da esteira ergométrica duas vezes no mesmo dia.
Para saber mais sobre os títulos e autores da Editora
Arqueiro,
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Além de informações sobre os próximos lançamentos,
você terá acesso a conteúdos exclusivos
e poderá participar de promoções e sorteios.

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