Educando e Inovando - Miolo

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EDUCANDO E INOVANDO: EM BUSCA

DE UM ENSINO DE QUALIDADE

Organização:
Maxçuny Alves Neves da Silva &
Elizabete Barros de Sousa Lima

2018

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Título Original
EDUCANDO E INOVANDO: EM BUSCA DE UM ENSINO DE QUALIDADE

Copyright @ 2018 by Maxçuny Alves Neves da Silva & Elizabete Barros de Sousa Lima

Direitos reservados com exclusividade para o Brasil, ao CEMEIT – Centro de Ensino Médio
Escola Industrial de Taguatinga
St. Central - Taguatinga, Brasília - DF, 70297-400 Tel.: (61) 39010683

Impresso no Brasil

Preparação de originais
Maxçuny Alves Neves da Silva

Revisão técnica
Maxcury Alves Neves da Silva
Elizabete Barros de Sousa Lima

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, DF.

Silva, Maxçuny Alves & Lima, Elizabete Barros de Sousa


EDUCANDO E INOVANDO: EM BUSCA DE UM ENSINO DE QUALIDADE / Org.
Maxçuny Alves Neves da Silva & Elizabete Barros de Sousa Lima – Brasília:
Editora: GC FERNANDES GRAFICA E EDITORA EIRELI, 2018

182p

ISBN nº: 978-85-907018-1-1

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Dedicatória

Agradeço
A todos os alunos do CEMEIT, razão maior desse trabalho;
A todo o corpo diretivo, pelo imensurável apoio e cooperação;
Às pesquisadoras e amigas Julliany Mucury e Elizabete Barros, pela impres-
cindível contribuição ao longo do projeto e por emprestar suas belíssimas vo-
zes como mestre de cerimônia do evento e aos demais membros da comissão
organizadora;
À Profª. Sandra Rabelo, com grande carinho, por seu empenho e dedicação
incondicional; e
A todos aqueles que se empenharam para que esse Simpósio se tornasse rea-
lidade.
A Coordenadora.

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PREFÁCIO

Gabriel Souza Rodrigues


Supervisor Pedagógico - CEMEIT

A inquietude faz o ser humano usar de criatividade nas ações da sua


vida. É assim que gostaria de começar este livro, que não é nada mais do que
uma junção de atitudes criativas fruto de inspirações que docentes, espalha-
dos pelo país, em especial no Distrito Federal, usam na sua prática de ensino
para levar um pouco mais de concretude no conhecimento que transmitem
em suas salas de aula.
É preciso lembrar, com carinho, da faísca motora do projeto. Numa
manhã em 2016, em meio ao agito de uma escola com mais de 2.000 alunos,
estava eu vice-diretor do Centro de Ensino Médio Escola Industrial de Tagua-
tinga (CEMEIT) no Distrito Federal, quando recebi, da Professora Maxçuny
Alves – da área de Língua Portuguesa - a proposta de fazermos um encontro,
sediado em nossa escola, a fim de trazer professores que pudessem partilhar
suas experiências em sala. Ou seja, o que eles faziam para traduzir em ações
o conteúdo, por vezes maçante e incompreendido quando só falado ou trans-
crito num quadro?
É desse desenrolar que tal encontro ganha o nome de Simpósio de
Integração e Cooperação Educativa, que em 2017 aconteceu envolvendo
as mais diversas áreas do conhecimento, como você verá ao folear este li-
vro. Mas, por que tal simpósio é importante em pleno século XXI? Já temos
tantos ganhos provindos do avanço da tecnologia (data-shows, aplicativos,
celulares, mídias digitais que informam e fazem interagir), qual a necessidade
de um encontro como esse? Que criatividade existe nisso?
Desculpem-me, mas a pergunta aqui é outra: de fato, por que não jun-
tarmos professoras e professores que conseguiram transmitir seus conteúdos
de forma a levar conhecimento aos seus estudantes? Partir do pressuposto
que somos mestres naquilo que fazemos e, por isso, tudo sabemos, tudo
está claro, tudo está óbvio, rouba de nós a sensibilidade de atualização e

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faz-nos estar inertes, imóveis e, às vezes, perdidos na ação do ensinar dentro
de nossas escolas. Como nos diria Will Durant - filósofo, historiador e escri-
tor estadunidense – ao falar sobre seus conhecimentos: sessenta anos atrás,
sabia tudo. Hoje sei menos. A educação é a descoberta progressiva da nossa
ignorância. É, inclusive, por acharmos que sabemos demais o que ensina-
mos que alguns de nós estagnamos no tempo e não mais conseguimos atin-
gir os estudantes que estão começando e que, por sinal na atual conjuntura,
trazem muitos outros saberes adquiridos nas telas dos computadores e dos
celulares, julgando nossa presença desnecessária pois já sabem de tudo.
Observemos, a título de exemplo, a realidade dos estudantes matri-
culados em nossas escolas: muitos já perderam o diálogo na família, quando
não perderam a própria convivência familiar, muitos estão desamparados
pelo Estado que não garante uma educação de qualidade a começar pelos
salários dos professores, outros tantos ainda não têm perspectiva alguma de
futuro, de curso superior, muito menos de vida. Como pode uma professo-
ra ou um professor em sã consciência deixar de se atualizar, investindo, dia
após o outro, em metodologias arcaicas, quando na verdade deveríamos bus-
car, diuturnamente, meios de traduzir em conhecimento prático o conteúdo
transmitido em nossas aulas. Que desafio!
Há que se considerar que nossa humanidade, ao longo de sua história,
trocou experiências que a fizeram dar passos significativos à frente e chegar
onde chegamos. Por outro lado, quando em algum momento nos “ensimes-
mamos”, abrirmos mão de conviver com as diferenças e rompemos com a
nossa própria história, transferindo um bla bla bla sem fim que não atinge
nem as moscas que voam na sala, muito menos os estudantes que gostariam
de voar como elas.
Sim, tem espaço um Simpósio como esse na nossa educação atual!
Precisa ter lugar em nossas escolas, nossas regionais de ensino e em nossas
Secretarias de Educação encontros assim que instiguem docentes a sair do
mesmo, pois é a partir de eventos assim que podemos ouvir experiências
significativas para nossa missão de “ensinar” além de atualizarmos nossas
metodologias e nossas práticas em sala.
Na arte de ensinar, a partilha da experiência é fundamental. É por con-
ta dela que precisamos parar um momento para ouvir o que o outro / a outra

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faz em sua aula que dá certo, que atinge, que promove, que faz amadurecer,
que gera conhecimento. Foi exatamente isso que o nosso II Simpósio promo-
veu ao trazer expoentes e suas obras, professores e professoras e suas pe-
dagogias. Como foi bom aos nossos ouvidos ingerir metodologias e poesias,
músicas e silêncios, inquietações e ações, experiências e vivências de tantas
e tantos que lutam a cada dia por estudantes que, estando em nossas salas
de aulas, muitas vezes sem ter noção do que é isso, sejam transformados
em seres humanos com capacidade de serem livres pelo conhecimento que
recebem e, mais ainda, pela integração com as diferentes formas de pensar.
Por fim (para que você comece logo a leitura destas partilhas), a nossa
gratidão a cada uma e a cada um, desde os que ajudaram a organizar, aos
que apoiaram financeiramente, aos estudantes que se propuseram a auxiliar,
enfim, a todas e todos que, nesses dias, se dispuseram a contar um pouco
do como fazem para gerar em nós um outro jeito de fazer. Que ao ler estas
compilações, você se sinta, também, motivada/motivado a “criativizar” suas
aulas, suas metodologias, suas pedagogias e sua própria vida. Boa leitura!

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SUMÁRIO

Limucine: temas transversais e linguagens artísticas na educação


Allan Michell Barbosa ................................................................................ 11

Leitura de literatura na escola: o conhecimento pela ficcionalidade


Anderson Luís Nunes da Mata ................................................................... 21

Gênero e poder na Educação Básica - As relações de gênero na Educação:


Uma Leitura Pós-Crítica
Cristiano de Souza Calisto .......................................................................... 35

Ensino de literatura: inquietações


Elizabete Barros de Sousa Lima ................................................................. 47

Si sabrá más el discípulo? Algumas observações sobre problemas de


recepção e intertextualidade
Erivelto da Rocha Carvalho ........................................................................ 55

Violência-imaginário e pensamento colonial na narrativa latino-americana


contemporânea: observações a respeito d’a parte dos crimes em 2666
Fabiana de Oliveira Santos ........................................................................ 67

A arte no horizonte da formação continuada:literatura em diálogo com o


cinema
Isabel Cristina Corgozinho ......................................................................... 83

Letramento literário: uma sedução


Ivan Rodrigues Ramos ............................................................................... 97

Renato Russo e o diálogo com a poesia: uma prática de ensino


Julliany Alves Mucury ................................................................................ 111

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O Papel da pesquisa em registrar memórias e apontar perspectivas para
uma educação igualitária e inclusiva
Kelly Fabíola Viana dos Santos .................................................................. 119

“Ainda há de haver esperança”: desafios e possibilidade na experiência da


formação leitora de alunos do ensino médio
Maxçuny Alves Neves da Silva ................................................................... 129

Estratégias de leitura de 6º a 9º ano: ensinar a compreender


Renata Junqueira de Souza e Gislene Aparecida da Silva Barbosa ............ 143

Por uma aprendizagem cidadã em tempos líquidos: os desafios do


educador
Sylvia Helena Cyntrão ................................................................................ 157

A importância do dicionário como instrumento gerador na criação de uma


sequência didática nas aulas de Língua Portuguesa.
Vilmar Lourenço de Melo ........................................................................... 169

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LIMUCINE: TEMAS TRANSVERSAIS E LINGUAGENS
ARTÍSTICAS NA EDUCAÇÃO

Allan Michell Barbosa1*

“A leitura do mundo precede a leitura da palavra.” (Paulo Freire)


“Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e
faz doces. Recomeça.” (Cora Coralina)

As epígrafes de Paulo Freire e Cora Coralina supracitadas resumem


bem a discussão deste texto, porque tratam da capacidade de abrir os olhos
para uma nova visão sobre a vida, ou mesmo sobre os instrumentos que uti-
lizamos para fazer a vida. E um desses instrumentos é a Educação. E a Educa-
ção, por sua vez, vem sendo reavaliada já há algum tempo, vem sendo redis-
cutida, provavelmente porque parece ter chegado a hora de reler o mundo,
de recriar tirando as pedras do passado, recomeçando, encontrando novos
métodos capazes de tornar a escola o verdadeiro lugar da cidadania.
Há um impasse sendo vivenciado pelo sistema educacional vigente, e
esse impasse se deve a uma parte da comunidade escolar que pensa na Edu-
cação segundo os moldes tradicionais e outra parte que vê a necessidade de
mudança dos padrões curriculares e disciplinares.
Em 1997, o Ministério da Educação determinou como medida obriga-
tória para o plano de ensino das escolas públicas e particulares a incorpora-
ção dos chamados temas transversais, bem como as condutas de transversa-
lidade e interdisciplinaridade. Desde então, muito se vem discutindo sobre
métodos de avaliação, projetos político-pedagógicos e papel da comunidade
escolar dentro da área da Educação. Professores, pais e/ou responsáveis, es-
tudantes, direção, coordenação, supervisão e orientação pedagógica têm se

1*
Mestre em Literatura. Doutorando da Universidade de Brasília – UnB, na área de Literatura
e Práticas Sociais. Professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal. Participante
do Grupo de Pesquisa de Literatura e Cultura na Universidade de Brasília – UnB. E-mail:
[email protected].

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visto em constante reflexão sobre como trabalhar com as novas gerações,
cada vez mais computadorizadas, informatizadas e multifuncionais. Nunca
ficou tão claro que para de fato chegar à leitura da palavra, nos livros, aposti-
las e atividades, devemos primeiro fazer a leitura do mundo em que estamos
envolvidos, do mundo em que vivem nossos estudantes e seus pais, e em que
mundo os profissionais da Educação se percebem vivendo.
Os temas transversais elencados pelo Ministério da Educação no docu-
mento dos Parâmetros Curriculares Nacionais são a Ética, o Meio Ambiente, a
Saúde, o Trabalho e o Consumo, a Orientação Sexual e a Pluralidade Cultural.
Nos moldes tradicionais, eram geralmente temas trabalhados nas áreas das
Ciências Sociais e Humanas e das Ciências Naturais, mas com o advento do
documento em 1997, ficaram a cargo de todos os componentes curriculares
trabalharem e discutirem tais assuntos, em conjunção com os conteúdos das
disciplinas, bem como a cargo de toda a comunidade escolar, ficando todos
cientes dos projetos de integração em prol da construção da escola como um
lugar de reflexão sobre a cidadania.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais incorporam essa tendên-


cia e a incluem no currículo de forma a compor um conjunto
articulado e aberto a novos temas, buscando um tratamento
didático que contemple sua complexidade e sua dinâmica, dan-
do-lhes a mesma importância das áreas convencionais. O currí-
culo ganha em flexibilidade e abertura, uma vez que os temas
podem ser priorizados e contextualizados de acordo com as di-
ferentes realidades locais e regionais e outros temas podem ser
incluídos. (BRASIL, 1997, p. 21)

Essa gradual incorporação dos temas transversais às disciplinas trou-


xe e traz fortes discussões dentro do âmbito docente, uma vez que muitos
professores não tiveram e não têm até o presente momento a capacidade
de abertura de seus conteúdos programáticos para a transversalidade e in-
terdisciplinaridade. Simplesmente não aceitam que suas matérias dadas em
sala de aula devam abrir espaço para se conversar sobre questões sociais
mais específicas que atravessam seus alunos e a realidade em que vivem,

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assim como atravessar as outras disciplinas, entrando em diálogo com con-
teúdos outros que não os categoricamente ligados aos das suas disciplinas. É
impensável para muitas disciplinas de exatas, por exemplo, trabalharem com
questões humanas, artísticas e das ciências naturais, e vice-versa.
Contudo, o mote principal desse jogo da transversalidade e da inter-
disciplinaridade está na questão de que todas as disciplinas trabalham unica-
mente com as linguagens, mesmo que nas suas diferentes nuances, mas são
linguagens. Todos os professores podem e devem, segundo os próprios Pa-
râmetros Curriculares Nacionais, abraçar quaisquer linguagens para sua dis-
ciplina, como forma até mesmo de facilitar a sua metodologia de ensino em
prol da aprendizagem dos discentes. Interessantemente uma das linguagens
mais buscadas é a linguagem artística. O cinema, o teatro, as artes plásticas, a
literatura, a dança, a música são linguagens muito buscadas quando da cons-
trução da interdisciplinaridade justamente pela capacidade que elas têm de
atingir os diferentes públicos. É como se a Arte fosse a ponte de conexão en-
tre todas as disciplinas, a matéria matriz capaz de estabelecer diálogos com
todas as outras e de, portanto, ensinar a todas elas como conversar entre si,
conseguindo importantes resultados para o crescimento cognitivo, afetivo,
cultural e social de todos.

A arte cria uma nova forma como uma nova relação axiológica
com aquilo que já se tornou realidade para o conhecimento e
para o ato: na arte nós sabemos tudo, lembramos tudo; mas é
justamente por isso que na arte o elemento da novidade, da
originalidade, do imprevisto, da liberdade tem tal significado,
pois nela há um fundo sobre o qual pode ser percebida a novi-
dade, a originalidade, a liberdade – o mundo a ser conhecido
e provado, do conhecimento e do ato, e é ele que na arte se
apresenta como novo, é pela relação com ele que se percebe a
atividade do artista como sendo livre. (BAKHTIN, 1990, p.34).

Como Bakhtin nos fala muito bem acima: é a Arte uma forte introdu-
tora da novidade, da realização de cadeias dialogizantes entre as diversas ca-
pacidades de ações humanas. Por isso mesmo é por ela que mais facilmente

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conseguimos estabelecer a transversalidade e interdisciplinaridade entre os
diferentes saberes.
Foi pensando nessa necessidade de mesclar as linguagens dentro das
disciplinas e da escola como um todo, que em 2012 deu-se início a um pro-
jeto no Centro de Ensino Médio Escola Industrial de Taguatinga – CEMEIT,
chamado LIMUCINE – Literatura, Música e Cinema (vide plano do projeto em
anexo). Os objetivos principais estavam ligados a levar a um grupo de alunos
a discussão dos temas transversais propostos pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais através das linguagens artísticas, haja vista a Literatura, a Música
(nacional e estrangeira) e o cinema (principalmente os curtas-metragens).
O projeto começou a funcionar com os alunos do 1º ano do Ensino
Médio, no turno contrário ao das suas aulas regulares, como uma roda de
leitura, debate e reflexão acerca de um tema específico que incorporasse a
gama essencial dos temas transversais. De imediato, o professor, que na épo-
ca era eu, Allan Michell Barbosa, atuando com a disciplina de Língua Portu-
guesa, perguntava aos estudantes (que desejaram participar do projeto) qual
o tema sobre o qual eles gostariam de conversar. Nos encontros apareceram
temas como “Vida e Morte”, “Amor e Sexo”, “Guerra e Paz”, sempre com
palavras antitéticas, e a partir daí eram escolhidos por mim, pelo professor,
pequenos trechos de livros literários, até mesmo poesias, bem como músicas
que tratassem do tema e um curta-metragem – geralmente nacional, que,
pelo audiovisual, retratasse a temática e suscitasse o debate –. Esse momen-
to se tornava uma verdadeira terapia e profunda conversa sobre as vivências,
experiências, opiniões e emoções de cada componente do grupo.
O projeto acontecia geralmente às segundas-feiras ou quintas-feiras,
no horário de coordenação do professor, e turno contrário das aulas dos alu-
nos, de forma que não atrapalhasse as aulas regulares. Interessantemente,
as discussões feitas no grupo começaram a surtir efeito dentro das disciplinas
dos professores, pois os alunos começaram a participar mais em sala de aula,
a se tornarem mais críticos e reflexivos, bem como melhorarem seus argu-
mentos na parte escrita das atividades realizadas com os professores, uma
vez que a abrangência das temáticas levava os adolescentes a repensarem
muitas de suas ideias, atitudes e capacidades.

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Diversos estudos e pesquisas, da Biologia à Psicologia, da Filosofia à
Antropologia, falam sobre a vulnerabilidade dos meninos e meninas na épo-
ca da adolescência e da juventude, da sua premente necessidade de viver
de forma mais arriscada, de experimentar os diferentes gostos e vontades
do ato de existir, e por isso mesmo, aumenta para a sociedade a respon-
sabilidade de conversar, guiar, ouvir, aconselhar e fazer suscitar neles suas
verdadeiras capacidades e essências para o lado construtivo e progressivo da
vida, em detrimento de uma massa constante de distrações no mundo que
possam levá-los a comportamentos autodestrutivos ou autodepreciativos. É
uma fase da vida em que biológica e culturalmente os estudantes desejam
encontrar seus grupos, seus guetos, suas formas de se expressar em conjun-
to, porquanto ainda estejam construindo sua individualidade, assim, nada
melhor que esse encontro seja feito de forma saudável, aberta, guiada.

Em um contexto em que a juventude surge de forma múltipla


como questão social relevante – seja pelos problemas que vi-
vencia, seja pelas potencialidades de realizações futuras, seja
ainda pelo que há de genuinamente rico nesse momento do
ciclo da vida –, cabe pensar os desafios que se apresentam
para a sociedade brasileira em termos de atenção aos jovens.
Esta agenda indiscutivelmente aproxima a temática da juven-
tude das reflexões sobre o desenvolvimento do país, pois, ain-
da que hoje a juventude requeira atenção per se e demande
uma abordagem que incorpore também a perspectiva própria
dos jovens, ela ainda encerra uma ‘aposta’ da sociedade no seu
futuro, para onde está projetado o ideal do desenvolvimento.
(IPEA, 2008, p. 12)

Muito se fala que é responsabilidade unicamente da família a cons-


trução de valores na vida das crianças e adolescentes, e que a escola seria
apenas o lugar de absorção dos conhecimentos técnicos, científicos, sociais,
históricos, acadêmicos, enfim. Contudo, se estamos inseridos em sociedade
e no trabalho escolar, o que é feito é um serviço público, inevitável se torna,
portanto, o engajamento nesse processo de formação do indivíduo como ci-

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dadão. Não que os professores tenham que fazer os papéis dos pais e/ou
responsáveis dos seus alunos, mas é inerente à sua função o conhecimento
sobre as pessoas humanas com quem estão lidando diariamente, por isso
mesmo os documentos oficiais da Educação tanto tratam da não só premen-
te necessidade, mas também da responsabilidade do profissional docente e
da comunidade escolar como um todo de trabalharem os temas transversais
com seus alunos. Nisso implica a capacidade de saber falar dos preceitos éti-
cos da humanidade, das questões de proteção e preservação do meio am-
biente, da importância da saúde e das formas de conhecimento, prevenção e
tratamento de doenças, da ativação do não preconceito à orientação sexual
das pessoas e do entendimento da complexidade que é a sexualidade em um
indivíduo, das reflexões sobre os trâmites do trabalho e do consumo no meio
econômico, da abertura do olhar sobre a pluralidade cultural que vivemos
não somente em relação a outros países mas dentro do nosso próprio terri-
tório nacional.
Nas reuniões que ocorriam no projeto LIMUCINE era bastante notável
a surpresa dos adolescentes com os textos literários, as músicas e os filmes
que eram levados para o grupo, como se estivessem entrando em uma sea-
ra nunca antes explorada, num estilo de leitura, de audição e de visão das
linguagens artísticas que nem imaginavam existir. Essa falta de contato dos
estudantes com literaturas, músicas e filmes além dos que estão acostuma-
dos fazem-lhes abrir o campo de visão sobre outras realidades presentes em
um mundo próximo a eles, mas com o qual não convivem. Não obstante, os
professores também precisam adentrar o “mundo” em que seu corpo dis-
cente vive, porque quando há muita disparidade entre ambos a barreira na
comunicação é inevitavelmente violenta e improdutiva. É como se a “função
professor” e a “função aluno” deixassem ambos separados, com cada um
nos seus papéis e obrigações, hierarquicamente posicionados, sem interação
humana verdadeira, apenas maquinal, passiva e automatizada.
Em um dos encontros do projeto, no qual o grupo decidiu falar sobre
o tema “Guerra e Paz”, muitos alunos discursaram bastante diante do poema
“Rosa de Hiroshima”, de Vinícius de Moraes, diante das citações de Karl Kraus e

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Voltaire2, diante das músicas “A canção do senhor da guerra”, da Legião Urba-
na, e “Imagine”, do John Lennon, bem como diante do curta-metragem “Jogos
de Guerra”, com direção de Ariane Kretschmer. Todavia, não foram as realida-
des da questão da guerra e da paz no mundo externo que chamaram a atenção
dos alunos: essas questões externas trouxeram à tona na verdade as questões
internas de cada um, a vivência no cotidiano, na comunidade, na escola, em
casa, nos relacionamentos, na família, ou seja, a guerra e a paz que cada um
vivencia internamente, no seu âmago. As linguagens artísticas foram apenas
instrumentos catalisadores das questões mais introspectivas da vida do indi-
víduo, fazendo-o ser capaz de conversar sobre sua realidade, para, assim, ser
capaz de construir uma consciência, equilibrar seus pensamentos e emoções e,
portanto, se tornar hábil a entender melhor o mundo à sua volta, captar a ne-
cessidade da cidadania e conseguir estabelecer diálogos com os vários saberes
que lhe são entregues todos os dias dentro de sala de aula.
As mesmas situações aconteceram nas diferentes temáticas que foram
trabalhadas durante as reuniões. Alguns professores, mais abertos à discus-
são, também fizeram parte dos momentos de integração dos alunos. O pro-
jeto pôde durar apenas o ano de 2012 na escola pública CEMEIT, por conta
do meu contrato temporário, já que eu era o professor mediador e tive que
sair da escola. Hoje trabalho numa escola de ensino fundamental e procu-
ro fazer junto com os professores das diferentes disciplinas um trabalho de
integração dos temas transversais nos bimestres, procurando estabelecer a
interdisciplinaridade. Poucos são aqueles que abraçam a causa com maior
dedicação, muitas vezes mais preocupados com os conteúdos dos seus com-
ponentes curriculares, ou não conseguindo estabelecer pontes entre esses
conteúdos e os temas transversais propostos pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais. Um projeto aqui e acolá, abraçado por específicos professores,
direção e coordenação, às vezes funciona e tem bons resultados, mas nada

2
As citações de ambos foram:
“A guerra, a princípio, é a esperança de que a gente vai se dar bem; em seguida, é a
expectativa de que o outro vai se ferrar; depois, a satisfação de ver que o outro não se deu
bem; e finalmente, a surpresa de ver que todo mundo se ferrou”. (Karl Kraus)
“O maravilhoso da guerra é que cada chefe de assassinos faz abençoar suas bandeiras e
invoca solenemente a Deus antes de lançar-se a exterminar a seu próximo”.(Voltaire)

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como uma unidade de todo o grupo docente e escolar. Como dito no início do
artigo, ainda vivemos na seara da Educação um grande impasse entre aque-
les que são adeptos às renovações curriculares propostas há cerca de vinte
anos atrás, pensadas até muito antes dessa época, e aqueles que preferem
manter o modelo e a padronização da escola secular e tradicionalista, focada
numa educação bancária, não progressiva ou não crítico-social. Esta crítica
aberta aos profissionais da Educação e à comunidade escolar é base apenas
para uma reflexão mais profunda sobre a nossa responsabilidade como agen-
tes sociais, como seres humanos dentro de uma população cada vez mais
necessitada de rever valores, comportamentos, pensamentos e atitudes, não
uma discussão para iniciar uma nova guerra ou embate.
As linguagens artísticas podem ser a ponte de que tanto necessitamos
para fazer a aproximação entre professores e alunos, escola e comunidade,
consciência e ignorância, em prol de levarmos a debate os temas que atra-
vessam nossa realidade e promovem o diálogo entre os diferentes saberes,
não os separando mais, não os desigualando, mas impulsionando a uma in-
tegração e cooperação educativa da nossa sociedade, a fim de construir uma
educação cada vez mais real e igualitária.

Referências bibliográficas

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros


curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance.


Tr. Aurora Fornoni Bernardini et alli. São Paulo: Unesp/ Hucitec, 1990.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três textos que se completam.


3 ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1983, p. 11-24.

IPEA. Org. CASTRO, Jorge Abrahão; AQUINO, Luseni. Juventude e políticas


sociais no Brasil. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada,
Governo Federal, 2008.

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ANEXO – PLANO DO PROJETO LIMUCINE (CEMEIT/SEEDF – 2012)

Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal - SEEDF


Centro de Ensino Médio Escola Industrial de Taguatinga – CEMEIT

Projeto LIMUCINE
(Literatura, Música e Cinema)

Apresentação:
O projeto LIMUCINE (Literatura, Música e Cinema) baseia-se na prática
da interpretação das linguagens da literatura, da música e do cinema, como
forma de aprimoramento do conhecimento e da visão crítica dos alunos e
como forma de interação entre professor, aluno, escola e mundo, no trabalho
com os temas transversais propostos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Objetivo geral:
O objetivo geral do projeto é trabalhar as diferentes nuances da inter-
pretação da linguagem artística, filosófica, sociológica e linguística de livros
literários, de músicas nacionais e internacionais e da cinematografia, tendo
como base os temas transversais da Ética, Meio Ambiente, Saúde, Orientação
Sexual, Trabalho e Consumo e Pluralidade Cultural.

Objetivos específicos:
• Ler, compreender, interpretar e discutir os diferentes textos dos gê-
neros e autores da Literatura nacional (principalmente) e interna-
cional;
• Ouvir, sentir e interpretar os sons e as letras dos diversos gêneros
musicais dentro da história da humanidade e o reflexo disso na con-
temporaneidade;
• Assistir a filmes nacionais e estrangeiros relacionados a temas dis-
cutidos através dos textos literários e das músicas, como forma de
interpretação audiovisual.

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Metodologia:
Primeiramente, será selecionado – a partir de desejo de participação
ou sorteio, caso convenha – determinado grupo de alunos dos anos do Ensi-
no Médio – cerca de 25 alunos. Os encontros serão mediados pelo professor
no horário da sua coordenação, com duração de duas horas (podendo pro-
longar-se dependendo da atividade a ser realizada), duas vezes ao mês (de
quinze em quinze dias). A intenção é que os encontros ocorram ao longo de
todo o ano letivo.

Recursos:
• Sala de aula
• Sala de vídeo
• Som
• Xerocópia de textos e letras de música.

Professor Mediador: Allan Michell Barbosa (2012)


Supervisão e Coordenação do CEMEIT

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LEITURA DE LITERATURA NA ESCOLA:
O CONHECIMENTO PELA FICCIONALIDADE

Anderson Luís Nunes da Mata1

Ainda que na sociedade tecnocrática em que vivemos os saberes cons-


truídos a partir das práticas artísticas, seja na sua fatura ou na sua recepção,
possam ter tido seu prestígio abalado, é difícil encontrar quem negue que a
literatura é uma forma específica de conhecimento do mundo. No entanto,
igualmente difícil é explicar que forma é essa, bem como justificar sua impor-
tância, para além da contundente obviedade de que, respeitados os limites
éticos, não se pode prescindir de nenhuma forma de conhecimento.
A dificuldade em se definir como a literatura dá a conhecer o mundo
esbarra, primeiramente, na própria diversidade do conjunto de textos que
consideramos literários. Em uma aula de literatura cabem tanto a Carta de
Pero Vaz de Caminha quanto Dom Casmurro, os sermões de Padre Antonio
Vieira e os contos de Conceição Evaristo, os sonetos de Camões e as letras
das canções de Caetano Veloso, as narrativas tradicionais do povo macuxi e o
teatro de Plínio Marcos, para ficar apenas em alguns exemplos. O que pode,
então, haver de comum entre todos esses textos? Uma possível resposta,
que tentarei justificar aqui, é a de que todos eles são marcados pela ficcio-
nalidade e que é justamente esse aspecto que pode caracterizar o fenômeno
literário como uma forma de conhecimento do mundo.
Menciono fenômeno literário, e não literatura, porque considero que
se trata de um conjunto dinâmico de relações que se colocam a ocorrer si-
multaneamente, envolvendo imaginação, escuta, leitura, escrita, pensamen-
to, ensino, aprendizagem (e até mesmo, é claro, comércio). O enfoque aqui,
contudo, será dado sobretudo nas questões relativas à leitura, ao ensino e à
aprendizagem.

1
Professor Doutor- TEL - UnB

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A fim de defender que a literatura é uma forma de conhecimento do
mundo, fundada na ficcionalidade, da qual não se pode prescindir, proponho
um percurso que passa por cinco pontos, mediados pela leitura do poema
“Noite”, de Wislawa Szymborska. O primeiro deles diz respeito à própria defi-
nição do que é o ficcional, ao qual se segue a defesa de que o ficcional é uma
das chaves para se acessar um texto literário. O terceiro ponto é a justificativa
das razões pelas quais a ficcionalidade é uma forma de conhecimento do
mundo, que tem como sequência a defesa de que a escola é um espaço que
não só deve assumir a responsabilidade por oferecer as chaves para a leitura
da literatura, entre elas a da ficcionalidade, como também não pode prescin-
dir dela. O quinto e último ponto é uma reflexão sobre o modo como, diante
desse percurso, pode-se “ensinar” literatura na escola.

1. O que é o ficcional?

No poema “Noite”, publicado em 1957, a poeta polonesa Wislawa


Szymborska, retoma a narrativa do sacrifício de Isaac, uma das histórias do
livro do Gênesis, do Velho Testamento. No texto, em epígrafe, apresenta-se
uma citação do texto bíblico: “Deus disse: toma teu filho, teu único filho,/ a
quem tanto amas, Isaac, e vai a terra de Moriá,/ Onde tu o oferecerás em
holocausto sobre um dos montes/ Que eu te indicar”. Ainda que se trate de
uma tradução possível dos versículos, sem marcas evidentes de intervenção
da autora no encadeamento dos eventos, o trecho, no entanto, já não é mais
o texto do livro do Gênesis, pois fragmento faz parte do poema que está sob
a assinatura de Szymborska. Se podemos reconhecê-lo como uma voz alheia
ao texto, é preciso também assumir que se trata de parte dele, como o verso
seguinte confirma: “Mas o que foi que o Isaac fez?” Dialogicamente, as vozes
colocam-se em tensão e iniciam uma conversa. Os versos iniciais, portanto,
insinuam uma leitura, ou uma escuta, que a poeta faz do trecho, incorporan-
do-o ao próprio poema. No caso, podemos, inclusive, afirmar que há uma
cena que se monta no exato momento em que a pergunta é feita. A polêmica
instaurada pressupõe o diálogo e constrói personagens, além daqueles da
narrativa do Pentateuco: Deus, Isaac e Abraão.

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A cena que se monta nos versos iniciais do poema é evidentemente
ficcional, assim como a narrativa sobre o sacrifício também o é. Não se trata
aqui de questionar a veracidade, se Abraão e Isaac existiram de fato ou não,
se acreditaram ter tido contato com Deus ou mesmo se Szymborska viveu o
diálogo ou o presenciou. Na medida em que se constrói uma narrativa em
linguagem, há um processo de representação que insere o texto na ordem
do ficcional. A relação entre o real e o texto é mediada por inúmeras repre-
sentações. Em um de seus textos seminais, Luiz Costa Lima propõe que sendo
molduras condicionadas por contingências históricas, as representações são
pontes que “conduzem o real ao texto da mimesis” (Costa Lima, 1981). Se o
poema é o texto da mimesis, há um conjunto de representações que levam
o real até lá, onde ele chega transformado, reformatado pelos limites dessas
molduras. Por exemplo, como estou lidando com o texto de Szymborska a
partir da tradução do polonês de Regina Przybycien, já temos, na própria es-
colha da língua em que se lê o texto, uma rede complexa de representações
que afetam sobremaneira o modo como o texto da mimesis se constitui.
Desse modo, é prudente supor que não há relação direta entre o real
e qualquer texto com que se lide. O que há ali é uma representação do real
- sua imaginação. Muitas vezes, mimesis, palavra tomada do grego clássico,
é traduzida por imitação. Costa Lima, em textos mais recentes, tem criticado
essa tradução (Costa Lima, 2000, 2013). Para ele, a mimesis é produção, não
imitação e a representação, na medida em que depende do leitor para se fa-
zer, é, antes de tudo, um efeito, uma “representação-efeito”, como ele deno-
mina (Costa Lima, 2000). Há algo que se cria quando se trata de um processo
em que há agências em tensão. No caso, as agências podem ser consideradas
como a do autor, a do texto e a do próprio leitor. Portanto, sem supor que
haja algo como um texto verdadeiro, da definição do ficcional já podemos ex-
cluir da definição de ficcionalidade a acepção mais comum do termo, que é a
de uma fantasia, em oposição a algo que possa ser tomado como verdadeiro.
O ficcional não é necessariamente uma mentira, embora possa sê-lo.
Ainda seguindo as pistas dadas por Costa Lima, o ficcional, portanto,
é parte fundamental de todo discurso: onde há retórica, há ficcionalidade
– mas só a arte aprofunda o ficcional na consideração de semelhança e dife-

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rença, na que é a consciência da “cláusula do ‘como se’” (Costa Lima, 2013,
p. 166). O ficcional compreende a narrativa, o drama e a lírica. Está também
em outras linguagens artísticas, além da literária. Minha hipótese é de que o
ficcional está inclusive além desses gêneros clássicos da literatura e da arte.
Porém, a literatura, pelo modo como se funda na ficção, ao ponto de a ficção
ser identificada como uma espécie de sinônimo seu (especialmente a narra-
tiva, mas, já sabemos, não apenas ela – também a lírica e o drama), é espaço
privilegiado para o mergulho na ficcionalidade.

2. O ficcional como chave para se acessar a literatura

Voltando ao poema de Szymborska, ao iniciar o diálogo com a voz que


enuncia o trecho do Gênesis, nos vemos diante de uma impertinência teo-
lógica. Como se trata de texto que pode ser lido na perspectiva do sagrado,
tanto na tradição judaica quanto na cristã, em um tipo de leitura de reveren-
te, a pergunta “Mas o que foi que Isaac fez?”, não é esperada, pois contraria
a própria dogmática da infalibilidade divina. Mas ela continua: “Seu padre
me diga./ Quebrou a vidraça do vizinho?/ Rasgou a calça nova que usava/
Quando pulou a cerca de ripa?/ Roubou um lápis?/ Enxotou galinhas?/ Colou
na prova?”
O humor e a verossimilhança das perguntas sobre a narrativa, pois se
há castigo, deve ter havido um crime, instaura no texto, pela imprevisibilida-
de, o ficcional. De acordo com Costa Lima, “A experiência ficcional supõe a
experimentação do que não se conhece, empreendida a partir do que pro-
dutor e receptor tomam por verdadeiro”. Nesse passo, a poeta questiona o
padre a partir da sua própria experiência. O tempo solene, de gestos grandio-
sos, do Velho Testamento não fazem parte do seu cotidiano – e é só a partir
dessa moldura que ela é capaz de construir sua representação do mundo. A
ficcionalidade do texto que ela lê permite-lhe experimentar sobre o que não
conhece, atiça a curiosidade e ativa a imaginação.
É interessante notar que no ficcional se inclui mesmo o texto lírico,
eliminado do campo da mimesis aristotélica porque Aristóteles identificara
a mimesis com a presença de personagens em ação. Se a narratividade do

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poema permite que reconheçamos personagens, o diálogo não chega a co-
locá-los em ação. A ficcionalidade, portanto, está diretamente relacionada
ao pensamento que explora os próprios limites. O discurso interrogativo da
poeta em “Noite” reforça esse princípio na medida em que a pergunta é o
núcleo de toda investigação e é sempre motivada pela curiosidade. Os ques-
tionamentos, além disso, desestabilizam os sentidos já dados. O episódio do
sacrifício de Isaac é conhecido e seus sentidos, do ponto de vista da herme-
nêutica judaico-cristã, podem ser considerados estáveis. Porém, na medida
em que o texto é investido de ficcionalidade, há uma desestabilização dessa
interpretação já dada, abrindo-a para outras possibilidades.
Da ficcionalidade participam, desse modo, categorias caras à leitura do
texto literário, como a ironia, a indecidibilidade, a indistinção, a ambiguidade
e a ambivalência, processos provocados no texto que, quando encontram
o leitor disposto a explorá-los, torna os signos instáveis e abertos a novas
possibilidades de produção de presença e sentido, em uma oscilação como a
proposta por Hans U. Gumbrecht (2010). O que vai se tornando claro aqui é
que a ficcionalidade é menos uma característica ontológica do texto que um
modo de se aproximar dele, e que, por isso, dependem da atitude do próprio
leitor. A ficcionalidade nos lança nos espaços liminares, em que não se dis-
tingue, em que não se decide. O sujeito dessa indistinção e indecisão não é
apenas o autor, mas também o leitor. Sem um leitor disposto a investir em
uma leitura ficcional do texto, ela será limitada, ou mesmo apagada. Quando
a ficcionalidade se instaura, porém, há margem de manobra, há lugar para a
criação – a imaginação, enfim, se instala.

3. A ficcionalidade como forma de conhecimento do mundo

O ficcional está presente em todos os discursos. Porém, nem sempre


há consciência de sua presença. Em “O direito à literatura”, Antonio Candido
parte do pressuposto de que nós precisamos de literatura – e de que fazemos
uso dela a todo o tempo (Candido, 2004, p. 174). Para ele, a literatura é “uma
forma de conhecimento do mundo, inclusive como incorporação difusa e in-
consciente” (Candido, 2004, p. 176). Por isso, Candido acaba por defender

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que há uma tarefa posta ao homem de seu tempo que é a de democratizar
o acesso à possibilidade de leitura de todo texto literário. Não discordo do
ponto de partida de Candido. Porém, não posso concordar que o “jogo” da
leitura consciente do ficcional só não esteja “ganho” no universo dos textos
eruditos, como ele sugere, ao afirmar que, negando-se a ampliação da frui-
ção do “bem humanizador” que é a literatura, vista como instrumento cons-
ciente de desmascaramento, para o “homem do povo”, restam “a literatura
de massa, o foÌclore, a sabedoria espontânea, a canção popular, o provérbio”,
negando-se o acesso a autores como Machado de Assis e Mário de Andrade
“devido à pobreza e à ignorância” (Candido, 2004, p. 186). Porém, mesmo a
literatura de massa, o foÌclore, a sabedoria espontânea, a canção popular e
o provérbio não são necessariamente lidos por meio do que chamamos aqui
de ficcionalidade e, por isso mesmo, defenderemos mais adiante, essa pode
ser a chave para abrir todos os textos que caibam dentro dos limites do lite-
rário, nas práticas pedagógicas que os envolvem,
Há uma força que nos impele a rejeitar o ficcional – dentro e fora do
universo erudito – como uma espécie de sobra, como um supérfluo, como
algo que não mereça atenção diante dos “reais problemas” ou dos “proble-
mas da realidade”. Historicamente, como aponta Costa Lima (2013, p. 162-3),
a ideia de ficção tem sido “desprezada como questão pouco séria”: entre os
gregos clássicos, na Roma Antiga e, até mesmo, pela filosofia moderna, em
figuras como Descartes e Bentham, comprometidos com a verdade e com o
real. A palavra real não aparece aí por acaso como um contraponto ao fic-
cional. Este seria a mentira, o falso. Não é de hoje que se condena esse fal-
seamento: Platão já o fazia, parte da teologia judaico-cristã também o faz,
a tecnocracia contemporânea – uma das caras do capitalismo – também o
faz. Ler literatura é atividade que se faz no ócio – e o ócio significa perda de
produtividade e de dinheiro.
No poema de Szymborska, a poeta não rejeita o ficcional como algo de
menor importância. Ao contrário, assume sua seriedade ao reagir à leitura
com o medo: “Os adultos que durmam/ Um sono tolo assim,/ Esta noite/ Eu
preciso vigiar até a aurora, / A noite se cala contra mim,/ Escura /Como o fer-
vor de Abraão”. Ela sabe que não se trata do fervor de Abraão, é como ele. O

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foco, então, se desloca do que foi para o que pode ter sido e, principalmente,
para o que pode vir a ser outra vez. É o “como” que delimita a sua impressão
como vinculada à ficção. Os tolos, aqui, são os adultos, que, talvez não dão à
ficção a importância que ela requer.
A experiência de Abraão, e, principalmente a de Isaac, afinal, não é
minimizada pela poeta. Há um efeito da representação contida no Gênesis
que atinge em cheio a menina: “Onde vou me esconder,/ Quando em mim
pousar/ O olhar bíblico de Deus/ Como pousou em Isaac?/ Antigos feitos se
quiser/ Deus pode ressuscitar. /Por isso gelada de medo/ Cubro a cabeça com
o cobertor.” Há uma continuidade entre a ficção e o vivido, pois há uma di-
mensão de presença que se constitui na leitura. O corpo sente a ameaça que
o texto contém e prevê uma aparição, como a materialização da ideia, antes,
somente textual: “Algo logo vai/ Embranquecer diante da janela, /Encher o
quarto com o zumbido de um/ pássaro ou do vento. /Mas não há nenhum
pássaro/ De asas grandes como aquelas/ E nem vento/ De camisa assim tão
longa.”
No texto de Szymborska, portanto, conhece-se algo do mundo pela
narrativa. O texto, lido como uma história exemplar, funde-se com a própria
experiência do leitor. Sem ser Issac, a poeta sabe que pode ser como Isaac,
vítima de uma sentença terrível: “Deus vai fingir/ Que voou para dentro por
acaso,/ Que não era para estar realmente ali,/ E depois vai levar meu pai/
Para a cozinha confabular sobre o caso/ E com uma grande trombeta lhe
soprar/ Ao ouvido”. É interessante notar que a experiência transmitida pelo
texto gera o efeito estético, de presença e de sentido, na poeta, contrariando
o vaticínio de Walter Benjamin de que, após a experiência radical da guerra,
e empobrecimento da experiência faria desaparecer o narrador como existira
até ali, imbuído do compromisso de transmitir experiências (1987).
Embora sua reflexão seja iluminadora para pensar a modernidade, é
evidente que o vaticínio de Benjamin estava equivocado. Nem a experiência,
nem sua troca por meio de narrativas (ou de outras ficções) desapareceu.
Pode-se discutir que essa experiência passou a ser mais pobre, menos mode-
lar, menos pretensiosa, menos grandiosa, menos arquetípica, mas é inegável
que a ficção segue viva na sociedade contemporânea. Também seguem vivas

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as experiências - e, poderíamos dizer, até mesmo uma certa ansiedade por
experiências, como propõe Ligia G. Diniz, sugerindo que se trataria de um
traço de nossa contemporaneidade, como um modo de sublinhar o presente
(DINIZ, 2016, p. 65). Da experiência provocada por um voo de asa delta à
experiência da simulação de um voo de asa delta. De uma paixão vivida nos
muros da escola a uma paixão vivida em uma série de TV, em uma canção, em
um poema, em um romance.
Essas experiências estéticas são vividas por quem lê e, ao mesmo tem-
po, cria. A leitura, nos sugere John Dewey, está articulada ao ato de criação,
pois “A experiência estética, em seu sentido estrito, é vista como inerente-
mente ligada à experiência de criar”(DEWEY, 2010, p.129). Quem lê imagina
– e a imaginação, que é invenção, é libertadora. Nesse espaço, a literatura
é uma forma de conhecimento do mundo (ou muitas) – pois acessa a ex-
periência do vivido e produz novas experiências na leitura. Essas experiên-
cias, tradicionalmente vistas como imateriais, são vividas na singularidade de
cada interação com o texto, porém podem projetar outros gestos materiais
no mundo. É aí que o texto de Szymborska toca, especialmente por sua es-
colha de diálogo com um texto sagrado, estabelecendo uma conexão entre a
materialidade da voz de uma deidade na enunciação do texto do Velho Testa-
mento, cujas chaves de leitura pressupõem a presença divina, com a leitura
desse mesmo texto pela sua ficcionalidade, em que Deus é um “fingidor”,
sem descartar que essa experiência também é capaz de produzir presença.

4. A escola pode prescindir da ficção?

A escola é um lugar de letramentos. É o letramento que permite que o


indivíduo que passa pela experiência escolar tenha autonomia sobre o mun-
do que conhece. O letramento favorece a reflexão sobre as tecnologias de
leitura (leitura do que quer que seja) e amplia os espaços em que o leitor
pode circular. Amplia porque a leitura, como nos lembra Michèle Petit a leitu-
ra é uma “oferta de espaço” (PETIT, 2009, p. 69) – e nesses espaços o sujeito
encontra uma “margem de manobra”. Quanto maior o domínio que ele tiver
sobre as chaves que permitem o acesso a um texto, maior será sua margem

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de manobra, maior – e mais plurais – serão os espaços que a leitura consti-
tuirá.
É por isso que o letramento, plural, sem um imperativo hermenêutico,
é o que de mais interessante a literatura pode oferecer enquanto
conhecimento de mundo. A ficção instaura a dúvida e, assim, pode tornar o
sujeito mais crítico. No poema “Noite”, a poeta afirma: “E quando amanhã
bem cedo/ Meu pai pela estrada me levar,/ Vou, vou, / Enegrecida de ódio,
/Em nenhum amor, nenhuma bondade,/ Vou acreditar, /Mais indefesa/ Do
que as folhas de novembro. /Nem confiar,/ De nada vale a confiança./ Nem
amar, /Carregar um coração vivo no peito./ Quando acontecer o que tem
que acontecer, /Quando acontecer, /Vai me bater um fungo seco/ Em vez do
coração.” Do medo, a experiência estética a leva a outras emoções, para além
dele e para fora do texto. A desconfiança declarada em relação ao próprio
pai e o ódio com a injustiça. Não é possível dizer que essa personagem é uma
má-leitora do texto bíblico: ela absorve dele exatamente o que lhe é possível.
Se não há relação com o propósito sagrado da hermenêutica cristã, pois ela
não toma o texto como exemplar da fé absoluta em Deus, o que lhe resta é,
na leitura pela ficcionalidade desconfiar – de Deus, do pai (haverá mesmo
diferença?, desconfio eu) – e odiar, como reação ao absurdo sacrifício.
O espaço da escola, portanto, não pode prescindir da ficção, mas deve
prescindir das leituras normativas, que enclausuram o texto em sentidos pré-
-formatados e em funções moralizantes. É aí que a imagem do professor como
um missionário capaz de “salvar” o aluno, ou o mundo, com sua profissão de
fé no conhecimento frequentemente fracassa. Ninguém precisa ser salvo. A
recusa da leitura moralista é o que leva a poeta, no poema de Szymborska a
planejar morrer para demonstrar sua resistência: “Deus espera/ E da sacada
das nuvens espia/ Para ver se alta e bela/ Queima a fogueira/ E verá como/
Se morre de teimosia,/ Porque vou morrer,/ Não vou deixar que me salve!”.
Se essa divindade acha que pode jogar com a vida para provar a fé, ela nega a
possibilidade de ser salva. O que ela nega também, junto com isso, é a leitura
moral da narrativa. Se essa é a única leitura possível, ao se colocar na posição
de Isaac e imaginar outro ponto de vista, ela abre a possibilidade para outra
leitura e outros gestos. Uma literatura exemplar não lhe interessa, afinal.

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Isso porque, a literatura, em si, não salva o mundo. É um equívoco
esperar que ela seja um agente de melhoramento de pessoas. Ao contrário,
ela pode ser instrumento poderoso de dominação. Basta conhecer a histó-
ria das Américas para se compreender como a literatura foi ferramenta para
dominar, subjugar, controlar, e ao mesmo tempo, funcionou como uma for-
ma de resistência, abrindo possibilidade de leituras e gestos descolonizado-
res2. O controle do imaginário é uma forte ferramenta de opressão. Mas a
literatura – e a leitura – podem (e o podem aí é fundamental) ser espaços
para manobras, espaços de liberdade, espaços de descolonização, espaços
de enfrentamentos de paradoxos, de ambiguidades, de ambivalências, de
indecidíveis, de indiscerníveis.

5. O “ensino” de literatura

Uma pergunta que, então, o professor de literatura com frequência se


faz é “Como, então, ensinar literatura para que ela seja esse espaço liberta-
dor, para que ela se constitua como uma forma de conhecer o mundo singu-
lar e da qual não podemos prescindir? Primeiramente, é preciso entender
que não se “ensina” literatura nos termos de um ensino transmissivo. Se já
compreendemos que uma pedagogia transmissiva não dá conta da complexi-
dade do processo de ensino e aprendizagem, em que estão implicados sujei-
tos, a começar pelo professor e pelo estudante (mas não se encerrando aí),
é em uma aula de literatura que esse modelo transmissivo fracassa de modo
mais evidente.
Caso insistamos no modelo transmissivo que o próprio termo “ensino”
sugere – e é muito comum que a gente tente, pela força do hábito, do exem-
plo e mesmo pelas expectativas da sociedade – temos que identificar “con-
teúdos” a serem transmitidos e “passá-los” aos alunos. E é aí começamos e
paramos na história da literatura, sem nunca chegar à literatura, como forma
de conhecimento de muno, de fato. Nesse modelo de fracasso, datas, nomes
de autores e quadros de características de estilos de época são o começo e

2
Esse processo de dominação e resistência por diferentes formas de fazer literário são magistralmente
analisadas por Antonio Cornejo Polar em O condor voa (2000).

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o fim de toda leitura. Porém, se entendemos que a literatura constitui um
modo particular de conhecer o mundo, por que razão paramos apenas na sua
história? O mais importante não seria ler e pensar o mundo que se ergue no
mundo com o texto?
Chegamos, então, ao ponto central dessa discussão final: o professor
de literatura tem de saber lidar com um passo em falso e com o fracasso. O
passo em falso porque não há um roteiro a ser seguido. Ao analisar um poe-
ma de Emily Dickinson, Harold Bloom (2001) chama a atenção para a imagem
de um passo precário, em falso, que ela descreve e chama, no verso final de
seu poema conhecido como “Experiência”3. A experiência, em Dickinson é
um caminhar precário, diante da incerteza, e Bloom, que lê nessa imagem
uma representação lírica da ironia, aproveita essa imagem para tratar da pró-
pria leitura do texto literário, pois “a morte da ironia é a morte da leitura”
(Bloom, 2001, p. 22).
Podemos, então, afirmar que cada texto, em cada momento da histó-
ria, se abre para diferentes leituras, no caminhar precário dos leitores. Cada
grupo de leitores e cada leitor, no limite, também se apropria desse texto
com diferentes leituras. Não infinitas, mas múltiplas, como sugere Jorge Luis
Borges ao tratar, em “O jardim de veredas que se bifurcam”, o texto literário
como um labirinto cujo plano inteiro não é conhecido. Dar uma aula de lite-
ratura é, necessariamente, ter de lidar com o imprevisto, com a ausência de
uma resposta correta, com as trocas de experiências que surgirão em cada
análise do ficcional presente em um texto. Uma aula de literatura é uma aula
de compreensão do outro – porque é disso que se trata a representação afi-
nal: uma ponte que liga o real (e um conjunto de experiências) ao objeto da
mímesis (e o conjunto de experiências que ele provoca, ligadas às experiên-
cias de cada leitor, que podem ou não ser partilháveis entre si).
É por isso que o papel do professor de literatura é menos o de alguém
que “ensina”, no sentido de alguém que transmite, que o de alguém que
media, que “catalisa eventos intelectuais”, para usar a expressão de H. U.

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O poema de Dickinson é: I stepped from plank to plank/ So slow and cautiously; The stars
about my head I felt,/ About my feet the sea./ /I knew not but the next/ Would be my final
inch,-- This gave me that precarious gait/ Some call Experience. (Bloom, 2001).

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Gumbrecht (2010, p. 162). A catálise, e aqui entramos em um universo simbó-
lico mais próximo das ciências da natureza, requer um conjunto de enzimas,
os catalisadores, que são capazes de modificar a velocidade de uma reação
química. O catalisador não impõe, ele apenas conduz, modifica a velocidade,
ajuda o processo – é um dêitico. E é aí que entra o fracasso. Tendemos a
partir de nossas experiências de leitura para construir nossas aulas. Gumbre-
cht argumenta que é impossível garantir que uma experiência estética que
vivemos seja revivida por toda uma turma de alunos (Gumbrecht, 2010, p.
125-127). Todo professor pode recuperar na memória inúmeras experiências
frustradas de compartilhamento de leitura em sala de aula. Trazemos para os
nossos alunos aquilo que nos moveu. As razões podem ser inúmeras: um tex-
to que nos fez entender um momento histórico, um processo filosófico, um
imperativo ético, um personagem, um processo social, nós mesmos. Ou, ain-
da, um texto que nos tocou, sem que sejamos capazes de traduzir em pala-
vras, a razão pela qual ele o fez – sem um sentido claro no nosso horizonte. O
problema é que não temos como garantir que essa experiência será também
vivida pelo outro que é o estudante. Ele não tem nossas mesmas experiên-
cias. Nosso limite, muitas vezes, é mostrar como a experiência estética, em
toda a sua complexidade, se deu no nosso ato de leitura. E isso não é pouco.
Com sorte, faremos com que vivam as deles. Ou, no mínimo, compreendam
que é possível vivê-las. Para isso, vamos dando a eles as ferramentas que
temos: os modos pelos quais, para nós, as imagens do texto se formam e se
deformam, se organizam e se desorganizam na percepção, assim como os
modos pelos quais os sentidos aparecem e se deslocam. E até mesmo o que
pode estar acontecendo antes desses sentidos surgirem.
Por isso, proponho aqui uma forma, entre tantas, de pensar o texto
literário: pela ficcionalidade. Defendo que ela é capaz iniciar um jogo em
que a consciência do ficcional diminui sua distância para o real. Porém, é
fundamental entender que não apaga sua diferença. É essa diferença, que
também é o que abre no processo mimético uma fenda capaz de desafiar o
pensamento (Costa Lima, 2000), que a leitura pelo ficcional é capaz de pro-
por desde as figuras de linguagem mais elementares (e nem por isso menos
complexas) como a metáfora. O poema “Noite” termina, de modo surpreen-
dente com um Deus poeta que abre mão da literalidade: “Desde aquela noi-

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te/ Além dos limites de um sono malsão,/ Desde aquela noite/ Além dos li-
mites da solidão,/ Deus começou/ Pouco a pouco/ Devagarinho/ A mudança/
Do literal/ Para o metafórico.” A leitura do texto para o leitor de Szymborska
ganha outra camada com os dois versos finais, pois, a poeta sugere que nem
a narrativa de Abraão é deve ser lida na literalidade, nem a sua própria. Logo,
há uma suspensão completa dos significantes envolvidos no texto, pois os
sentidos passam a se movimentar.
No entanto, a curiosidade, o medo e o ódio vividos pela poeta não dei-
xam de fazer parte de sua experiência pelo deslocamento. A oposição entre
“literal” e “metafórico” aí abriria a possibilidade para o reexame do poema,
e, talvez, inclusive, a crítica radical ao que escrevi até aqui. Porém, por ora,
essa é a leitura que faço, a partir da experiência estética que tive ao ler o
poema. E é da nossa experiência como leitores (e por isso é fundamental que
todo professor seja um leitor) que seremos capazes de “ensinar” algo sobre
leitura para os estudantes. E mostrar-lhes que a literatura é uma potência,
que dela pode partir muito (não tudo!), que conhecer o mundo pela ficciona-
lidade é uma das formas de habitá-lo, sem a prisão das certezas, com o poder
transformador da imaginação.

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Francisco Alves, 1981.

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34

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GÊNERO E PODER NA EDUCAÇÃO BÁSICA – AS
RELAÇÕES DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO:
UMA LEITURA PÓS-CRÍTICA

Cristiano de Souza Calisto1

I – Apresentação

O presente trabalho se propõe a discutir as relações de poder na Edu-


cação sob a perspectiva da ótica de gênero segundo uma leitura pós-crítica e
pós-estruturalista do contexto educacional. Para tanto, propomos a reflexão
com vistas à construção de novos saberes a respeito das questões de Gênero,
considerando a situação do masculino e do feminino na educação, tomando,
por exemplo, a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (Brasília-
-DF) – SEDF e o seu Currículo em Movimento da Educação Básica do Distrito.
Muito se fala a respeito da forma com que as questões de gênero e se-
xualidade delimitam e determinam as relações sociais e, consequentemente,
as influências diretas deste fator na educação. Surgem a todo o momento
novos estudos com objetivos voltados para a necessária percepção das trans-
formações rumo à igualdade de gêneros.
Contudo, as perguntas que se fazem são: - De que forma as questões
de gênero se relacionam com as estruturas de poder na educação e em que
medidas tais relações reverberam na construção dos documentos, tidos
como marcos normatizadores do fazer pedagógico, tais como, e principal-
mente, no Currículo? A resposta para esta questão perpassa por indagações
de caráter tanto objetivo quanto subjetivo: - Como se configura o magistério
nos dias atuais, considerando-se o viés de gênero? - Sendo o indivíduo uma
produção e um produto do poder e do saber, como se relacionam com os
diferentes tipos de gênero nas estruturas da Educação sob a perspectiva da
construção e utilização curricular? - Considerando-se que o poder “funciona

1
Professor Mestre

35

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e se exerce em rede” como o Estado realiza a sua distribuição na hierarquia
da educação, uma categoria notadamente composta por profissionais majo-
ritariamente femininas? E, por fim: - Como estas questões se traduzem nos
marcos legais produzidos neste horizonte de relações normatizados pelos
currículos, orientações pedagógicas, portarias etc.?
Nesse sentido, o debate aqui proposto transita pela compreensão da
forma com que o Estado, enquanto ente catalisador de grande parte da hie-
rarquia de poder, organiza e distribui o exercício de tal poder na perspectiva
da relação entre os gêneros no âmbito educação, considerando-se, aí, suas
estruturas normativas, pedagógicas, administrativas, de comando etc.
Propomos como ponto de partida a análise do Currículo em Movimen-
to da Educação Básica do Distrito Federal, produto de trabalho coletivo ini-
ciado no ano de 2011 na Rede Pública de Ensino do Distrito Federal que, após
três anos de trabalho, teve o texto final do documento concluído em 2013
e publicado e adotado como normativo legal no ano de 2014, sendo atual-
mente o principal marco referencial da estrutura da Secretaria de Estado de
Educação do Distrito Federal (Brasília).
Na busca pela melhor análise e entendimento possível acerca do estu-
do aqui proposto, os principais aportes teóricos utilizados para este intento
encontram-se referendados nos trabalhos de Michael Foucault, Paulo Freire,
Pablo Gentili, Heleieth Saffioti, Raewyn Connell, Tomaz Tadeu da Silva, Judith
Butler, Demerval Saviani, Henry Givoux, Peter McLaren, Jacques Derrida en-
tre outros.

II – Generificação da Educação: A Masculinização do Poder.

Analisar e construir conhecimento sobre a questão de poder na educa-


ção trata-se, pois, de compreender a questão da generificação na educação
de um ângulo específico. Tal perspectiva perpassa objetivamente pelos pro-
cessos de construção e implementação do fazer pedagógico materializado
nos currículos escolares. Nesse sentido, pois, discutir os aspectos vinculados
ao gênero na educação fatalmente recai também sobre o fato da marginali-

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zação do trabalho feminino, o que vale dizer, da marginalização da própria
mulher enquanto socius. (Saffioti, 2013, p. 68)
Ao lançar luzes sobre as estruturas de poder, a percepção da margina-
lização do trabalho feminino salta aos olhos, o que aponta uma clara hierar-
quização de “importância” para divisão do poder entre homens e mulheres
no campo do trabalho, onde é atribuída às mulheres, principalmente, a res-
ponsabilidade por atividades outras, não relacionadas ao poder e à Gestão
do Estado. Podemos dizer aqui que “Os ‘interesses práticos de gêner são par-
tilhados por todas as mulheres, mas eles coincidem parcialmente com os in-
teresses de classe.” (Holmstrom, 2014, p. 347), assim cabe categoricamente
afirmar que: na estrutura atual de nossa sociedade o poder na esfera pública
tem gênero, e ele é masculino.
Se por um lado a leitura das relações sociais segundo uma perspectiva
marxista não seria equivocada, afirmar que às mulheres sempre foi relegado
o papel de cuidar da prole e de provedora de indivíduos aptos para atuarem
como mão de obra na classe proletária ou burguesa. Seria também notória
a existência da tentativa de uma naturalização do “status” de cuidadora da
mulher em detrimento do arquétipo de provedor “naturalmente” destinado
aos varões de nossa espécie. As mulheres executam sempre a maior parte do
trabalho de cuidados no mundo inteiro, mas algumas compram o trabalho de
outras mulheres para realizar essa tarefa, em particular nos países desprovi-
dos de sistemas de proteção social eficazes. (Holmstrom, 2014, p. 347)
Uma possível naturalização do dever da mulher, enquanto principal
agente reprodutivo das forças de trabalho deveria lhe conferir um posicio-
namento mais elevado na hierarquia social. O contrário do que verificamos
na prática em nossas sociedades. Neste sentido, K. Marx propôs o conceito
da existência de uma “escravidão latente” que se origina na família e se per-
petua nos demais segmentos da sociedade, resultando na dominação dos
homens sobre as mulheres e seus trabalhos.
Desta maneira, trazer estas questões para o debate no campo da edu-
cação requer uma profunda compreensão dos constructos constituintes dos
currículos escolares, uma vez que estes instrumentos representam a espinha
dorsal do processo de ensino/aprendizagem, apresentando-se como pilar

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central da construção cultural das sociedades modernas irradiados por inter-
médio dos processos educativos promovidos pelas escolas modernas.

III – Gênero, Currículo e a Divisão Social do Trabalho.

Trazer a discussão de gênero para o contexto do Currículo em uma so-


ciedade notadamente sexista e patriarcal como a brasileira, fatalmente torna
necessário transitar pelo campo das disputas de classes e divisão social do
trabalho. Para tal intento podemos utilizar como profícuo exemplo a consti-
tuição da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal.2
O desafio que se apresenta é o de, ao analisarmos este horizonte, es-
capar da perspectiva estruturalista. Buscar, então, a possibilidade de dar voz
a questões historicamente silenciadas, compreender a questão a partir de
ângulos que permitam fugir da simplicidade das respostas meramente mate-
máticas e estatísticas, onde, sem desconsiderar a importância dos números,
também considere de maneira especial o modo como os sujeitos e as rela-
ções sociais são atravessadas por diferentes discursos, símbolos, representa-
ções e práticas em suas construções identitárias, como proposto por Louro
ao referir-se aos significativos avanços, marcas dos estudos feministas:

Uma das mais significativas marcas dos Estudos Feministas: seu


caráter político. Objetividade e neutralidade, distanciamento
e isenção, que haviam se construído, convencionalmente, em
condições indispensáveis para o fazer acadêmico, eram proble-
matizados, subvertidos, transgredidos. Pesquisas passavam a
laçar mão, cada vez com mais desembaraço, de lembranças e
de histórias de vida; de fontes iconográficas, de registros pes-
soais, de diários, cartas e romances. (Louro, 1997, p. 19)

2
O Sindicato dos Servidores da Secretaria de Educação contava no ano de 2015 com um
número de 35.952 associados, sendo destes 82,01% composto por professoras e 17,99%
por professores. Cabe registrar que segundo o último censo do IBGE, em 2013, apontou
que a Secretaria de Educação do Distrito Federal conta com 28.443 profissionais, sendo
6.586 homens (23,16%) e 21.857 mulheres. As mulheres expressam, portanto, 76,84% da
categoria, maioria incontestável.

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Os dados apresentados colocam em pauta uma questão fundamental
a ser discutida no seio de nossas escolas. A discrepância entre a composição
da categoria do magistério na relação masculino / feminino e que as ocupa-
ções dos espaços de poder representam a materialização da reprodução da
“pseudo” superioridade do homem sobre a mulher. Esta, sim, é uma ques-
tão que pode e deve ser observada, na perspectiva curricular, segundo uma
questão identitária.

A pretensão é, então, entender o gênero como constituinte da


identidade dos sujeitos. E aqui nos vemos frente a outro con-
ceito complexo, que pode ser formulado a partir de diferentes
perspectivas: o conceito de identidade. Numa aproximação às
formulações mais críticas dos Estudos Feministas e dos Estudos
Culturais, compreendemos os sujeitos como tendo identidades
plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não
são fixas ou permanentes, que podem até mesmo, ser contradi-
tórias. (Louro, 1997, p. 24)

Neste contexto é fundamental compreender o sentido de gênero en-


quanto uma categoria analítica, em que a questão deve ser problematizada
segundo a proposição da desconstrução de “dicotomias”. Precisamos perce-
ber a fragilidade implícita em uma visão rigidamente polarizada entre mas-
culino e feminino. Alguns argumentos para a desconstrução do pensamento
cartesiano e polarizado podem ser encontrados nas proposições de Jacques
Derrida, quando este lembra que o pensamento moderno foi e é marcado
pelas dicotomias (presença/ausência, teoria/prática, ciência/ideologia etc.)
(Louro, 1997, p. 31). Ultrapassar as fronteiras desse pensamento dicotômico
não será tarefa fácil. Para tanto torna-se preciso que seja historicizada a po-
laridade e a hierarquia nela implícita.
Ao trazer a discussão de gênero para o contexto da construção do Cur-
rículo na educação devemos propor, portanto, a realização de processos que
possibilitem o subsídio à elaboração de políticas públicas que observem os
aspectos político e estrutural, o que fatalmente torna necessário transitar
pelo campo das disputas de classes e divisão social do trabalho.

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O poder no ocidente é o que mais se mostra, portanto o que
melhor se esconde: o que se chama a ‘vida política’, a partir do
século XIX, é (um pouco como a Corte na época monárquica)
a maneira pela qual o poder se representa não é ai nem assim
que ele funciona. As relações de poder estão talvez entre as coi-
sas mais escondidas no corpo social. (Foucault, 1999, p. 237).

Propomos aqui, portanto, lançar um olhar crítico sobre as questões


ora apresentadas, no sentido da construção de conhecimentos referentes ao
estudo de gênero e a construção curricular da educação básica, questões pri-
mordiais para a elaboração de novos patamares do saber, no que tange ao
fazer pedagógico e a construção de saberes no campo educacional.

IV – Algumas reflexões - À guisa de conclusão.

Se o papel de educar tem sido historicamente delegado às mulheres,


tornando a educação uma atividade altamente feminilizada, cabe questionar
como se dão as relações de poder entre os gêneros nos espaços de poder no
âmbito da educação, observando-se principalmente a forma com que tais
aspectos se traduzem e são registrados na elaboração e implementação do
currículo escolar enquanto principal eixo norteador das políticas educacio-
nais.
Um ótimo ponto de partida encontra-se em tratarmos da questão do
machismo. Machismo, ou chauvinismo masculino é a crença de que os ho-
mens são superiores às mulheres. A palavra “chauvinista” foi originalmente
utilizada para descrever pessoas fanaticamente leais a seu país, mas a partir
do movimento de libertação das mulheres, nos anos 60, este termo passou a
ser usado para descrever os homens que mantêm a crença na inferioridade
da mulher com base em pressupostos sexuais (Foucault, 2012, p.15).
Ainda à título de conclusão podemos afirmar que se a escola não re-
presenta um reflexo da sociedade, com todas as suas idiossincrasias, isto
significa que ela é uma realidade artificialmente construída e, aí, algo está

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errado com essa escola. E é nesse contexto que prosseguimos nossa linha
de raciocínio. A escola é, portanto, e não poderia ser diferente, um reflexo
dos constructos sociais com todas as suas idiossincrasias, nuances e contra-
dições.
No cerne desta perspectiva destacamos, como dito anteriormente, o
termo gênero. Este conceito começou a ser utilizado justamente para marcar
as diferenças entre homens e mulheres. Introduzindo a concepção de que
não devemos tratar a questão segundo apenas um processo de ordem física
e biológica, conforme o proposto por autores como Guacira L. Louro (1997)
e Eliane Maio Braga (2007). Nessa perspectiva, como não existe natureza hu-
mana da cultura, para as autoras, a diferença sexual anatômica não pode
mais ser pensada isolada das construções socioculturais em que estão imer-
sas. Trazemos neste ponto para o debate as proposições de Judith Butler que
aprofunda o debate apresentando estudos sobre a teoria queer ao tratar a
questão de gênero, assim como Louro, as relações de gênero de forma “não
unidimensional”, o que vai ao encontro das proposições pós-estruturalista e
pós-crítica.
Compreendemos aqui, pois, gênero como uma estrutura social, con-
forme proposto por Connell, 2015:

O gênero deve ser entendido como uma estrutura social. Não é


uma expressão da biologia, nem uma dicotomia fixa na vida ou
no caráter humano. É um padrão em nossos arranjos sociais, e
as atividades do cotidiano são formatadas por esse padrão. O
gênero é uma estrutura social de um tipo particular – envolve
uma relação específica com os corpos. Esse aspecto é reconhe-
cido no senso comum que define gênero como uma expressão
de diferenças naturais entre homens e mulheres. (p.47)

A diferença biológica é apenas o ponto de partida para a construção


social do que é ser homem ou ser mulher. O sexo é atribuído ao biológico,
enquanto gênero é uma construção social e histórica. A noção de gênero
aponta para a dimensão das relações sociais do feminino e do masculino na
nossa sociedade. (Braga, 2007)

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A manutenção de padrões amplamente difundidos entre rela-
ções sociais é o que a teoria social chama de “estrutura”. Nesse
sentido, o gênero deve ser entendido como uma estrutura so-
cial. Não é uma expressão da biologia, nem uma dicotomia fixa
na vida ou no caráter humano. É um padrão em nossos arranjos
sociais, e as atividades do cotidiano são formatadas por esse
padrão. (Connell, 2015, p.47)

Logo, temos que discutir, de forma transversal, de que maneira se dá


essa construção social feita a partir de características biológicas e de que for-
ma a sexualidade tem a ver do modo como as pessoas vivem seus desejos
e prazeres de acordo com a cultura e a sociedade. Dessa forma, a escola,
enquanto instituição social, envolve-se também com as formas culturais e
sociais em que se constituem as identidades de gênero e poder.

Assim, não podemos pensar o ser mulher ou o ser homem como


experiências fixadas pela natureza. Mas também não podemos
pensá-los apenas como uma imposição externa realizada por
meio de normas sociais ou da pressão de autoridades. As pes-
soas constroem a si mesmas como masculinas ou femininas.
(Connell, 2015, p.39)

Torna-se, deste modo, profícuo o entendimento das relações de poder


no saber, tomando-se como eixo norteador a ótica das relações de gênero
e sexualidade na educação, tomando-se como espinha dorsal de análise e
parâmetro o currículo da educação básica. Para tanto, será considerada a
perspectiva da teoria pós-crítica em uma perspectiva histórica no processo
educativo, aplicando-se tal aporte teórico às práticas e relações inseridas no
contexto educativo em seus mais variados níveis. Como indica Lopes (2013),
a utilização aqui do prefixo “pós” representa a ruptura e o abandono de axio-
mas essencialistas até então estabelecidos. A opção por tal enfoque ocorre
com o propósito de um:

desmoronamento da ideia de verdade centrada na prova empí-


rica, na objetividade, na natureza ou na evidência matemática.

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Um tempo de explosão das demandas particulares e das lutas
da diferença, de aceleração das trocas culturais e dos fluxos glo-
bais, de compreensão espaço-temporal. (Lopes, 2013 p. 8)

Nesse contexto, deve ser dispensada especial atenção as possíveis re-


lações entre a configuração dos microespaços de poder e as contribuições
da teoria pós-crítica na construção do currículo para a educação básica. Tal
enfoque traz a possibilidade de reflexão sobre questões há muito naturaliza-
das e cristalizadas nos processos de construção da identidade de gêneros no
âmbito da escola, ao tempo em que se torna possível vincular tais questões
com as estruturas de poder constituídos na educação.
Entendemos por teoria pós-crítica as correntes de pensamento que:

trata-se de uma expressão vaga e imprecisa que tenta dar con-


ta de um conjunto de teorias que problematizam esse cenário
pós-moderno: cenário de fluidas, irregulares e subjetivas pai-
sagens, sejam elas étnicas, midiáticas, tecnológicas, financeiras
ou ideológicas (Appadurai, 2001). Esse conjunto de teorias in-
clui os estudos pós-estruturais, pós-coloniais, pós-modernos,
pós-fundacionais e pós-marxistas. (Lopes, 2013, p.10)

A baliza metodológica que propomos, portanto, encontra-se referen-


dada, sobretudo, nas proposições da teoria pós-crítica afeitas à organização
e construção do currículo, instrumento preponderante para o planejamento
e implementação de processos educativos, segundo a relação de gêneros,
poder e ideologia. (Lopes, 2013)
Trilhar os caminhos de uma perspectiva crítica na construção de co-
nhecimentos na educação nos leva objetivamente a trilhar nossos estudos
na direção da “pedagogia crítica”. Perspectiva teórico-metodológica bastante
difundida por pensadores como Paulo Freire, Henry Giroux, Antônio Gramsci,
John Dewey, Michel Foucault, Pierre Bourdieu entre tantos outros. Fica, por-
tanto, aqui a proposição de que sejam realizadas conexões entre as práticas
educativas e a justiça social. Tal proposta fatalmente sugere uma ruptura com
os processos tradicionais de ensino-aprendizagem. Ao tratar do assunto o
Filósofo Henry Giroux (1997, p. 148) chama atenção para o fato de que:

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[...] os educadores críticos fornecem argumentos teóricos e
enormes volumes de evidências empíricas para sugerir que as
escolas são, na verdade, agências de reprodução social, eco-
nômica e cultural. Na melhor das hipóteses, o ensino escolar
público oferece mobilidade individual limitada aos membros da
classe trabalhadora e outros grupos oprimidos, mas, em última
análise, as escolas públicas não instrumentos poderosos para
a reprodução de relações capitalistas de produção e de ideolo-
gias legitimadoras da vida cotidiana.

Ainda segundo Giroux (1997, p. 148), o sistema tradicional de ensino


visa, entre outros aspectos, cumprir com a função de reproduzir e preservar
uma cultura do silêncio. Mantendo-se, assim, o status quo social na perspec-
tiva da dominação, impossibilitando uma real mobilidade e deslocamento
das estruturas de poder vigentes.
Ao elegermos Henry Giroux como um referencial para a construção
deste processo investigativo é necessário frisar que os estudos de Giroux
estão baseados na perspectiva freiriana de educação. Segundo o próprio fi-
lósofo, “a obra de Paulo Freire continua a representar uma alternativa teori-
camente renovadora e politicamente viável para o atual impasse na teoria e
prática educacional” (Giroux, 1997, p. 145). Paulo Freire e Henry Giroux nos
propõe reflexões intimamente vinculadas ao objeto deste trabalho, quais se-
jam, gênero e poder:

[...] a lógica da dominação representa uma combinação das prá-


ticas materiais e ideológicas, históricas e contemporâneas que
nunca tem sucesso total, sempre incorporam contradições, e
estão sempre sendo disputadas dentro das relações assimétri-
cas de poder. (Giroux, 1997, p. 146).

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ENSINO DE LITERATURA: INQUIETAÇÕES

Elizabete Barros de Sousa Lima1

Ele me dizia que o mundo não era só aquelas plantas,


era também as pessoas que passavam e as que ficavam
e que cada um tem o seu drama. (Noll)

No conto intitulado Aqueles dois, de Caio Fernando Abreu, o leitor in-


terage com a história de dois rapazes. De forma detalhada, a escritura não
perde um detalhe da vida dos protagonistas da narrativa, e até seus bens ma-
teriais são fotografados por um narrador altivo, atento aos riscos que ence-
nam e compõem a sua cotidianidade. Os detalhes parecem convidar o leitor
a se inscrever dentro da ambientação contística, e é impossível não se dizer
parte do enredo, ou não se inserir na modernidade retratada. Os objetos, os
gestos, as caricaturas são provas reais da inscrição do outro no texto.

E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comen-


tários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de
futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho,
endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquan-
do salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em
copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma
alma especial reconhece de imediato a outra – talvez por isso,
quem sabe? Mas nenhum se perguntou.

Os rapazes dividem suas vidas em uma manhã chuvosa, sentados em


um café, ambiente romantizado por elementos do cotidiano. Nesse cenário
os causos se arrolam sobre a folha que até o exato momento permanecia em
branco: a partir desse agora, um já é parte da história do outro, e o desejo da

1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília. Pesquisadora do
Grupo de Pesquisa Literatura e Cultura (UnB). Email: [email protected]

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presença outra passou a interpelar as almas dos personagens. No desenvol-
vimento da relação, o leitor se compadece e se emociona com o desejo que
une aqueles dois; do sofrimento e da impossibilidade da felicidade, devido ao
discurso social preconceituoso, que vê o amor entre pessoas do mesmo sexo
como um desvio. O percurso desse afeto é traçado pela discriminação.
O conto retratado é um material simbólico a ser trabalhado em sala de
aula, pois põe em pauta os afetos da modernidade, bem como insere nesse
contexto a possiblidade de inserção de discursos próprios à contemporanei-
dade. A circulação em sala de aula, desse conto, permite reflexões que ultra-
passam o cotidiano do jovem, que está sufocado por uma cultura dominante
de exclusão. Quando o educador se apropria desses materiais literários que
não são frequentes em sala de aula, ele cumpre o mesmo papel já explícito
na obra: olhar para os vários sujeitos como integrantes de um espaço único
da vida, levando os alunos a perceberem que fora da unicidade particular, o
humano é marcado por suas diferenças. Dessa forma, o texto oferece possi-
bilidades de atualizar a função da literatura, ao apontar para realidades des-
consideradas no contexto social. Na visão do professor Flávio Kothe (2011) a
arte “sacode as pessoas para além de seu cotidiano imediato, ensina a pensar
e sentir, permite ver tudo em outras dimensões.” (p. 62).
O ensino da literatura visa quase sempre aos clássicos, reiterado pela
escolha dos professores, que, mesmo ainda de forma tímida, já incluam tex-
tos da contemporaneidade. As políticas educacionais se atêm, quase de for-
ma hegemônica, ao cânone; mesmo que o educador, nos grandes centros
urbanos, já inclua em seu planejamento temáticas de ordem mais transgres-
soras e voltadas para as tendências do momento, essa fresta ainda é tímida
se pensarmos no contexto do país. Pesquisas apontam para uma rejeição,
pelos estudantes, da seleção dos textos clássicos da literatura selecionados
para compor o currículo do ensino. Os temas abordados pelos textos canôni-
cos não atingem a constituição subjetiva dos alunos, pois vivem outras pro-
blemáticas e outros desejos. Nesse sentido, o professor precisa estar atento
aos interesses dos educandos, mas sem deixar de apresentar, também, os
livros importantes para a história da literatura e para o sistema de pensamen-
to particular e universal, levando-os a entenderem a literatura como um ato
de diversão e um gesto de pensamento.

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Desde os tempos em que o ensino passou a enxergar o educando
como sujeito de seu próprio conhecimento, a leitura não pressupõe mais um
processo cognitivo voltado apenas para as pessoas fazerem um exame; ela se
integra à formação do sujeito social, que a utiliza como mecanismo de ques-
tionamento e de reflexão do ambiente social o qual faz parte. Imersos nessa
compreensão, o conhecimento chega aos indivíduos como meio de realiza-
ção de si: a partir de sua vivência, o homem passa a exercer papéis dentro da
sociedade; e suas ações estão diretamente vinculadas às experiências e aos
ensinamentos apreendidos ao longo da formação. As narrativas, frutos de
variadas vivências, possibilitam o choque de visões, de culturas, de olhares
sobre um mesmo eu, possibilitando a performance do sujeito, bem como a
transformação dessas histórias encenadas em papel em um novo enredo,
mitigado por variados pontos de vista, mas que, ao final, escreve a trama de
um novo sujeito, reflexivo e pensante.
A prática social deve estar aliada à prática da leitura; dessa forma en-
tendemos que o ensino da literatura não deve apenas retratar as obras que o
cânone determina como prioridade, mas chegar àqueles livros que alcançam
o espírito do leitor em suas diversas demandas. Quando o educando lê uma
obra e sente-se participante da ação narrativa, dos costumes ali plasmados,
a leitura passa a ganhar novos significados, e os olhares diferenciados para o
elemento de reconhecimento é que proporcionam a reflexão e o crescimento
intelectual: é perante a argumentação dissonante, a falta de compreensão e
a discordância que surge o questionamento, e a busca por um novo saber,
para entender os sentimentos que a leitura transmite, desenhando novas ex-
periências de vida.

A leitura de textos literários, ao colocar o sujeito-leitor diante


de um trabalho de linguagem inusitado, fora de normas roti-
neiras, apostando no estranhamento de um mundo recriado,
renovado e não prescrito, permiti-lhe desenvolver, no nível da
subjetividade como um todo sincrético, habilidades que não se
esgotam no momento da leitura propriamente dita. (PAULINO,
2004, p. 61).

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Como sugere Paulino, narrações como a de Abreu são importantes, na
medida em que inserem o sujeito na problemática de seu tempo. É importan-
te que o ensino também se preocupe com a face lúdica da literatura, aquela
que está voltada a satisfazer o senso do jogo e da fantasia. Esses elementos,
entretanto, não devem obliterar a reflexão sobre o próprio eu, deve convidar
à relação do saber ficcionalizado com a própria realidade. Pesquisas apontam
que uma das formas mais interessantes de atrair a atenção para a leitura é
trazer para o ambiente escolar textos que chamam a atenção dos estudantes;
e pensando na condição da educação de jovens e adultos, aquelas leituras
que para eles representam alguma função, tenham uma utilidade em suas
vidas. Partindo desse olhar, na maioria das vezes o que chamará a atenção
são narrativas que retratam o cotidiano do sujeito, por trazer semelhanças
com a vida do leitor.
O contanto familiar entre sujeito e obra proporciona o acolhimento
dos universos representados. O espaço romanesco carnavaliza a vida, e assis-
te-se, nesse momento, a própria vida do homem, com suas fraquezas, seus
defeitos, e todos os aspectos integrantes do espaço não oficial: ao mesmo
tempo que particulariza os sujeitos, os une em suas diferenças. É importan-
te que o aluno perceba que a literatura não se faz de ilusões, que todo o
seu conteúdo está enraizado na realidade e, desse modo, ele pode ampliar
e fazer uma leitura de mundo mais complexa. Um exemplo interessante da
literatura para esse fato se encontra no romance Memórias de um Sargento
de Milícias, na descrição do Major Vidigal; “Era o Vidigal um homem alto, não
muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, movimentos
lentos e voz descansada e adocicada” (ALMEIDA, 2013, p. 52). O retrato do
major leva-nos à fraqueza, contrariando o poderio que sua farda represen-
tava para a sociedade da época; e, também, proporcionando a aproximação
entre os sujeitos. Com o retrato carnavalizado do homem, o narrador propor-
ciona o contato familiar entre leitor e personagem, bem como desmistifica o
olhar de superioridade entre as classes sociais, constituindo um painel crítico
cultural, bem como levando o leitor a repensar os papéis sociais.
Roland Barthes, em seu livro O prazer do texto (1987), vem ao nosso
encontro ao falar sobre o texto que toca o leitor, que ultrapassa sua vivência

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cotidiana e testa seus limites de compreensão. O texto que retira o leitor do
lugar comum, que o leva à reflexão sobre outros dados da vida, é a obra em
que o leitor sensível deve chegar. O conto de Caio Fernando Abreu se inscre-
ve nesse estilo de escrita; narrativa da simplicidade, que o interlocutor mer-
gulha sem dificuldades linguísticas para chegar ao significado final da relação
de afeto entre os personagens. A reflexão sobre a vivência social dos sujeitos
é um dos maiores desafios da escrita contemporânea. Não se vê apenas um
texto para a fruição imediata, para a apreciação de um pequeno romance
entre dois rapazes; o que está escrito é a história da aceitação do outro, da
responsabilidade com a vida. Essa camada narrativa não pode ficar alheia ao
leitor, pois aí o objetivo da obra haveria se perdido.
Mikhail Bakhtin (2011) argumenta que existe a necessidade de comu-
nhão entre ciência, arte e vida na unicidade do indivíduo. E quando pensa a
condição do artista, revela que, infelizmente, essa comunhão não existe, pois
o escritor faz a separação entre vivência-homem e vivência escritural: “quan-
do o homem está na arte não está na vida e vice-versa.” Por sua vez, a arte se
torna patética a partir do momento que não responde ao apelo da vida, que
não inclui em si a unidade da responsabilidade:

A vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mú-


tua, mas também com a culpa mútua. O poeta deve compreen-
der que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é
bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência
e a falta de seriedade das suas questões vitais respondem pela
esterilidade da arte. (BAKHTIN, 2011, p. XXXIV).

Nesse encalço, revela-se tanto a necessidade de a obra responder à vida,


como também de um interlocutor ativo, que não se satisfaz com a obra de
arte de escritório, que não tem compromissos com a história de seu tempo,
com o mundo que perfura as janelas do escritório com seus ruídos de lamen-
to. Eis aqui a inscrição do leitor que possui o arcabouço cultural; e a função
do educador: mediar a relação arte-homem-mundo. O impulso ao ensino de
qualidade parte desse instante íntimo de reconhecimento das possibilidades

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de a palavra alcançar os sentidos, subverter pensamentos, construir formas
plurais de olhar um mesmo objeto de conhecimento.
É necessário ressaltar que vivemos em tempos de grandes narrativas.
Fazemos aqui defesa dos meios de produção de leitura, por sua vez, salienta-
mos que o mundo textual se escreve por múltiplos olhares sobre o mundo, e
não podemos nos afincar à narrativas que possuem, em sua essência, o dis-
curso autoritário, bem como aquelas que são doutrinárias, pois podem des-
merecer e empobrecer a capacidade de o aluno de se colocar, também, como
sujeito da escritura, participando do poder de criar novos sentidos. O tecido
social produz narrativas de sujeitos que todos os dias se locomovem da casa
para o trabalho, e que em seu ambiente particular revivem a utopia pregada
pelo programa de televisão que assistem, da igreja que cotidianamente fre-
quentam, e os dogmas pregados por esses espaços de vivência cotidiana. A
produção artística seria uma forma de desestabilizar os discursos prontos e
construir novos enredos para a vida desses sujeitos.
Nietzsche (2012) nos fala em tempos de tragédia. Vive-se a socieda-
de da idolatria, da necessidade de deuses, de protetores; a igreja, nos dias
atuais, dispõe de muito poder por causa da fraqueza humana. O impulso à
conservação da espécie, que tantos intelectuais gritam, é o que alimenta a
sede de vida da sociedade; é a poesia, a literatura, a canção, entre outros
modos de vida, que impulsionam a vida do homem, pois ele ainda precisa
de uma bengala muito forte para o sustentar; não é estranho que a maioria
das pessoas que se dizem ateias estão ligadas a alguma fonte artística, ou à
ciência do conhecimento, pois, como bem explana Platão, em sua Alegoria
da Caverna, ultrapassaram uma linha tênue de conhecimento e reconheci-
mento da vida que poucas pessoas são capazes de ultrapassar; dessa forma,
tornaram-se críticas das idolatrias sociais. Nesse arcabouço se escrevem vá-
rias obras literárias dissonantes, que trazem os fatos da vida contrários ao
cotidiano dito comum, que mascara o erro e vive da utopia.
“Quando você aprender a ler vai possuir de alguma forma todas as coi-
sas, inclusive você mesmo.” João Gilberto Noll, em seu conto “Alguma coisa
urgentemente”, deixa esse pensamento para seus leitores refletirem sua pró-
pria condição de leitor, um ato que não pressupõe simplesmente a decodifi-

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cação de signos, o entendimento do enredo, a tensão narrativa em torno do
núcleo das ações, mas está diretamente relacionado à reflexão dos dados do
cotidiano rascunhados em papel, os conflitos inerentes à natureza humana, e
uma possível discussão acerca da vivência do homem. Se ainda vivemos nos
tempos das idolatrias, é porque a leitura literária, atrelada ao ensino, ainda
não está dando conta de criar sujeitos para além de seu pequeno cotidiano,
de sua pequena trajetória de vida, manjada pela aparência, pela utopia que
nivela os costumes e que une as diversas épocas. Dessa forma, ainda vivemos
em presentes de passados, de reatualização dos mesmos problemas, de cul-
turas à procura de ídolos, e não se ultrapassou os limites do agora.
Perante as reflexões distendidas ao longo do texto, ressaltamos a im-
portância da leitura literária, bem como a função do educador como media-
dor. O que se busca do leitor em formação é a capacidade de percepção dos
limites da obra, das possibilidades que ela apresenta, da captação das infe-
rências e críticas de mundo, vendo, nessa fresta, a possibilidade da mudança,
de um novo olhar, crítico e atuante, sobre o mundo.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Obra dispersa. Rio de Janeiro: Graphia, 1991.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6.


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo, Edi-


tora Perspectiva, 1987.

http://coral.ufsm.br/alternativa/images/Aqueles_dois_Caio_Fernando_
Abreu.pdf. Acesso in: 14/02/2018.

http://www.releituras.com/joaognoll_alguma.asp. Acesso in: 14/02/2018.

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KOTHE, Flávio. Ensaios de Semiótica da cultura. Brasília: Editora Universidade
de Brasília, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São


Paulo: Companhia das Letras, 2012.

PAULINO, Graça. Formação de leitores: a questão dos cânones literários.


2004. In: DIAS, Janainna Alves de Freitas Rocha. MENEZES, Tadna Si-
mone Azevedo Ralile. Reflexões sobre o ensino da literatura na sala
de aula: entraves e possibilidades. Rio de Janeiro: Cifefil, 2014, p. 121.

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SI SABRÁ MÁS EL DISCÍPULO? ALGUMAS
OBSERVAÇÕES SOBRE PROBLEMAS DE RECEPÇÃO
E INTERTEXTUALIDADE

Erivelto da Rocha Carvalho1

La historia, «madre» de la verdad; la idea es asombrosa. Menard,


contemporáneo de William James, no define la historia como una indagación de
la realidad sino como su origen. La verdad histórica, para él, no es lo que sucedió;
es lo que juzgamos que sucedió. Las cláusulas finales -«ejemplo y aviso de lo
presente, advertencia de lo por venir» – son descaradamente pragmáticas.
(Pierre Menard, autor del Quijote, Jorge Luis Borges)
*

Primeiro, gostaria de agradecer pelo convite e a oportunidade de tecer


algumas observações sobre o tema que me toca neste simpósio. O título da
minha fala é mais rebuscado do que ela realmente propõe: “Si sabrá más el
discípulo? Algumas observações sobre problemas de recepção e intertextua-
lidade”.
Recepção e intertextualidade são duas noções que estão no centro
dos meus interesses nos últimos anos, na Universidade de Brasília, noções
que dizem respeito às relações entre os textos literários, ou ainda, a “uma
relação de co-presença entre dois ou mais textos, ou seja, eideticamente e
frequentemente, como a presença efetiva de um texto em outro” (Genette,
1982, p.8. Tradução nossa). Dita relação pode ser entendida tanto diacronica-
mente, ou ao longo do tempo histórico, como sincronicamente, ou no que diz
respeito à relação imediata entre os textos literários nos tempos que correm.
No tocante à recepção, e à sua importância nos contextos educacio-
nais, pode-se pensar em como cada comunidade de leitura, cada escola ou
cada ambiente de aprendizagem pode se aproximar dos textos literários de
forma distinta. O que se entende por literatura em cada espaço? Como cada

1
Professor Doutor - UnB

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agente escolar se aproxima dela? E, finalmente, mas não menos importante,
o que se entende por leitura? Essas são perguntas derivadas desse tipo de
questão geral que envolve as noções de recepção e intertextualidade.
Os problemas relativos às formas literárias, aos modos de leitura nos
levam também, em certa perspectiva, às questões relativas à retórica literária
ou, pode-se dizer, à retórica ‘da’ ou ‘na’ literatura. Proponho aqui relacio-
nar recepção e intertextualidade pelo interesse que tenho em estreitar, em
“amarrar alguns fios soltos” dentro do que venho fazendo já há algum tempo,
e penso especificamente na relação de alguns trabalhos que já escrevi e que
apontam, de distintas maneiras, nesta direção.
Lidando com textos de épocas e índoles distintas, senti a necessidade
de parar e pensar no que estava fazendo ao me debruçar sobre eles, pensan-
do em relacionar alguns problemas teóricos a certa prática de leitura, mais
especificamente aos problemas que me levam a essa prática de leitura. Pen-
so num movimento, num tipo de ação que não está longe do que na Peda-
gogia, e particularmente em Paulo Freire (2001), chama-se de movimento de
reflexão-ação-reflexão que, no meu caso, relaciona determinados pontos de
partida teóricos a certa prática de leitura dos textos literários. Ainda que sob
desconfiança, a teoria literária é fundamental como ponto de inflexão para
refletir sobre os pressupostos que embasam qualquer leitura literária.
Gostaria de destacar, que pensar o papel da literatura nos contextos
educacionais supõe um desafio para mim, que é o desafio ao qual pretendo
me ater aqui hoje. Ou seja, o desafio para mim é pensar em certas questões
ligadas às noções de recepção e intertextualidade em contextos educacio-
nais. Desde meu ponto de vista, pensar nestas questões supõe um desafio
não porque eu esteja alheio às discussões sobre a literatura na sala de aula,
mas porque me coloca um incômodo, que é o de perceber que sobre as re-
lações entre Literatura e Educação recai quase sempre sobre o texto literário
o problema da instrumentalização, ou seja, o texto literário responde a uma
concepção de si como “reflexo” da sociedade, como referencial de algo que
está alheio a si mesmo. Falo aqui a partir da minha experiência como profes-
sor e pesquisador de literaturas estrangeiras, mais especificamente de Letras
Hispânicas, ocupação a que me dedico.

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Invariavelmente, e no caso das literaturas “estrangeiras” isso é mais
claro, a Literatura em sala de aula está em função de “algo” (às vezes so-
mente da língua, às vezes de outras diretrizes ideológicas ou formais). Acom-
panhando as discussões sobre a literatura em sala de aula, sobre a didática
da literatura ou sobre a função de formação educacional e cultural que a
Literatura pode ter, diria que o tipo de discussão e estudo que faço assinala
as relações entre Literatura e Educação em outros termos, ou busca apontar
para outras direções que não os da instrumentalização e direcionamento da
Literatura em função do “algo” que se quer que ela diga ou represente.
Ao estudar determinados problemas de recepção e intertextualidade,
ou seja, problemas relativos à forma como os textos literários são lidos e se
relacionam ao longo do tempo e no seu presente imediato, penso em ques-
tões que dizem respeito em como a Literatura opera na sociedade, e não
nesta como um “reflexo” ou uma mera representação da própria sociedade.
Parece-me que boa parte dos estudos sobre a Literatura em sala de aula par-
tem de um equívoco básico que é pensar que a Literatura irá “levar” certa
visão da sociedade à sala de aula, por exemplo, ou que ela fará a sociedade
refletir sobre ela mesma.
Este me parece um equívoco básico, porque a Literatura ela mesma
é um modo discursivo, ela mesma é um modo de ler a sociedade e que – e
isso é fundamental – está inserida socialmente, e não está fora da sociedade
como podem crer alguns. Ela não é uma ferramenta neutra para observação,
reflexão e ação sobre o social, se não que é a própria sociedade pensando-se
e fazendo-se a si mesma enquanto se expressa, se articula desde o ponto de
vista lingüístico-comunicativo.
Então, como pensar a abordagem dos textos literários, da história lite-
rária, em relação com a história social? Em geral, uma visão reducionista vai
pensar a história literária e a história social como histórias paralelas, com re-
flexos de mútua interferência que se dão às vezes, se não raramente. Prefiro
ver a relação entre essas duas séries, quando é possível isolá-las, como uma
tensão ou um jogo de trocas mútuas que ocorrem de maneira contínua e
sistemática, e que vai da história social para a história literária, e desta para a
história social ou a grande História (peço licença aqui aos pós-modernos para
usar o termo com “H” maiúscula).

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Para não me estender mais neste ponto, remeto aqui aos conhecidos
textos dos teóricos da recepção, em especial às teses de Hans Robert Jauss
(1978), que vão aceitar o desafio de questionar a teoria literária a partir de
sua abordagem da história literária, pensando-a em função do que denomi-
nam de “experiência estética”, e que aqui denominarei de forma mais simples
de “experiência” literária ou da leitura literária como base do conhecimento
sobre a Literatura em suas relações com o tecido social, em suas mais diver-
sas manifestações. Nesta perspectiva, importa saber especialmente como os
textos literários são lidos, e não só como eles são produzidos, importa saber
os mecanismos e as formas de circulação e compreensão dos textos literários
entre produtores e leitores, estes últimos entendidos num sentido amplo e
colocados num papel de destaque.
Como pensar a relação entre a Literatura e a Educação desde a pers-
pectiva dos problemas levantados pelas noções de recepção e intertextuali-
dade? Falando grosso modo, e de maneira mais direta, este tipo de perspec-
tiva explora de maneira especial e parte daquilo que poderíamos chamar de
“experiência estética” ou literária do leitor, ou do que, trocando em miúdos,
poderia ser traduzido como a chamada “bagagem cultural” do leitor. No caso
do contexto educacional, dos agentes educativos, sejam eles os próprios es-
tudantes, professores, ou o corpo pedagógico ou social de forma geral.
Acrescento ainda que, em consonância com esta perspectiva, que vista
desta forma a Literatura não deixa de “ser” a própria sociedade, não tendo
sentido pensá-la como objeto de representação de algo externo a si mesma.
Diante do desafio já comentado, pensei então em apresentar uma provoca-
ção... O que os estudos literários teriam a dizer, teriam a contribuir ao tra-
tar da cooperação e da integração educativa ou, dizendo em outros termos,
como posso aqui contribuir para uma reflexão voltada sobre a Educação me-
nos partícipe de uma visão utilitarista, instrumental e individual do estudo da
Literatura e mais comprometida com uma concepção participante, coletivista
ou que pelo menos problematizasse a relação entre a linguagem e o social,
e que pudesse desta forma apontar para uma visão progressista da própria
idéia de Educação.
Para tanto, pensei em trazer uma provocação, que é esta gravura de
Francisco de Goya, o Capricho n. 37 (1792), que me faz recordar primeiro mi-

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nha própria trajetória como aluno, estudante universitário, pesquisador, até
passar do ensino não-universitário para chegar a ministrar aulas na Univer-
sidade de Brasília. Pensando na perspectiva da recepção, a melhor imagem
que um estudante, um crítico ou um pesquisador pode ter de um leitor que
é ele mesmo, tal como já sugerido por Jauss em um de seus textos críticos
(1980). Quando vejo a imagem que vocês têm a sua disposição, costumo co-
mentar entre amigos ou alunos: “Se vocês não ficarem ofendidos, também
não ficarei”. Esta gravura tece um excelente comentário sobre as relações en-
tre professores e alunos em sala, ou sobre as relações entre o saber científico
e não-científico em qualquer ambiente de aprendizagem.

Quando vejo esta imagem, me vêm diretamente três anotações ou ob-


servações que gostaria de fazer pensando no que as questões de recepção
e intertextualidade nos facilitam enquanto instrumental para a abordagem

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do fenômeno literário. Para esclarecer a que tipo de questões me refiro, vou
enumerá-las em seguida de maneira sucinta e esquemática: 1) o primeiro
tipo de questão diz respeito às relações entre diacronia e sincronia na com-
preensão da Literatura; 2) o segundo tipo de questão diz respeito á relação
entre imagem e texto; 3) e o terceiro tipo de questão diz respeito ao que
prefiro referir-me aqui como “poéticas da leitura”, que são extremamente
relevantes para perceber, de forma mais objetiva, algumas das retóricas en-
volvidas quando se trata pensar os textos literários a partir das noções de
recepção e intertextualidade, ou seja, a maneira como os textos literários são
transmitidos e como se dá a relação entre eles.
O problema da relação entre diacronia e sincronia aparece quando
passamos a pensar a Literatura de forma aberta e a partir de uma dupla pers-
pectiva, que conjuga a idéia de transmissão do texto literário ao longo do
tempo e as modalidades de leitura podem ser aplicados a ele desde o tempo
presente. Pensar essas dimensões não oferece maior problema quanto ao
estudo Literário quando pensamos nelas como categorias que se opõe, mas
elas se tornam mais problemáticas e complexas se tentamos refletir sobre as
mesmas como qualidades contíguas, contínuas e mesmo concomitantes. O
texto literário com uma história não tem, é claro, uma história acabada visto
desde o presente.
Saliento este tipo de problema quando me refiro, por exemplo, aos
clássicos da Literatura, e penso nos clássicos (antigos ou modernos) quando
toco nesta problemática mais do que quando penso em textos considerados
contemporâneos. Um clássico, pelo lastro de leituras que o acompanham,
dificilmente pode ser lido de uma forma “inaugural”. Um exemplo que tomo
das aulas que ministro na Universidade de Brasília é o do Dom Quixote, que
mesmo não tendo sido lido pela maior parte do público brasileiro, é acompa-
nhado desde a sua mesma menção por uma “imagem formada” do livro, seja
esta imagem considerada mais ou menos superficial, ou totalmente equivo-
cada quando comparada aos cânones da crítica.
O Dom Quixote idealista formado pela leitura do Romantismo alemão
é talvez essa “imagem formada” que o público contemporâneo ainda car-
rega do livro de Cervantes quando se debruça sobre o mesmo. Diferente

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seria pensá-lo desde a perspectiva do Quixote de Jorge Luis Borges (1989),
que recria em Pierre Menard, autor del Quijote, um personagem literário
que deliberadamente se torna uma espécie de copista da obra cervantina
para poder recolocá-la em seu próprio tempo. As mesmas palavras sacadas
de uma digressão do narrador cervantino sobre a história são repetidas na
ficção borgiana e tomadas de significado e sentido totalmente distinto, sim-
plesmente pelo fato de que não se pode repetir uma obra do século XVII no
século XX, não devido ao texto ou ao livro mesmo, mas senão pela própria
passagem do tempo.

“... la verdad cuya madre es la historia, émula del tiempo, depósito de las acciones,
testigo de lo pasado, ejemplo y aviso de lo presente, advertencia de lo por venir.”
(Dom Quixote de la Mancha, I, 9)

Um mesmo enunciado repetido em tempos distintos pode levar a sen-


tidos e significados diferentes. Com esta observação passamos ao segundo
tipo de problema, não sem antes notar que a escolha da passagem anterior
ligada ao conceito de História não é um acaso em Cervantes e, por tabela, em
Jorge Luis Borges. Pensar a relação entre a ficção (ou poesia) e a história é um
elemento central do que chamamos aqui de “poética da leitura”.
O segundo ponto, como anunciado, é o que diz respeito à relação entre
imagem e texto, do qual em certa medida já tratamos ao mencionar a “ima-
gem” de Dom Quixote que cada leitor pode levar consigo mesmo sem haver
lido a obra de Cervantes, ou mesmo sem ter em consideração todos aque-
les aspectos sócio-culturais que dizem respeito à Espanha do século XVII. No
Brasil, este talvez seja o caso paradigmático de obra em que se conheça mais
a “imagem” dos seus protagonistas, Dom Quixote e Sancho Pança, do que o
próprio texto literário.
Como já disse alguém com sentido de humor cervantino, é comum o
interesse pelos ossos de Cervantes, mas não tanto pelas páginas que o au-
tor espanhol deixou. A obsessão por datas comemorativas e a celebração de
Congressos de ocasião é uma prova do quanto a indústria da fortuna crítica

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estabelecida se espraia e se apresenta como única possibilidade de ler qual-
quer obra literária, não me refiro aqui somente a do autor do Dom Quixote de
la Mancha. E retomo aqui a provocação com a gravura de Goya, pois se com a
imagem acompanhada do texto a sátira goyesca permite algumas interpreta-
ções da sátira à Educação tradicional e autoritária, sem o texto de epígrafe ela
perde um “horizonte de leitura” que, claramente, irá dificultar sua mínima
retomada e compreensão.
É claro que poderíamos pensar que o contrário também é verdade, e
o texto da epígrafe da gravura de Goya (possivelmente escrito pelo drama-
turgo Moratín filho), se desacompanhado de sua imagem, perde também o
espectro da crítica virulenta que se coloca como idéia fundamental na cena
que a gravura apresenta. Assim, pode-se pensar por analogia que a relação
dialógica entre texto-imagem corresponde à relação do texto literário lido na
contemporaneidade com a “imagem” fixada do mesmo pelas leituras ante-
riores que ele recebeu ao longo do tempo. No caso de obras e leitores con-
temporâneos, essa “distância” se perde e a “imagem” do texto está presente
e é praticamente simultânea à sua primeira leitura.
Para além dessa relação com o texto literário no tempo (sincronia),
está a operação que seus leitores fazem com ele, seja ele um texto clássico
ou não (diacronia). O personagem de Borges, ao recriar o Dom Quixote de la
Mancha, tratava de traçar “um diagrama de sua história mental”. O leitor, ao
entrar em contato com uma obra literária, trata de recolocar suas expecta-
tivas em função daquilo que se lhe apresenta. Neste sentido, ele tem várias
possibilidades, porque entrar em contato com um novo texto literário é sem-
pre recolocar a posição que alguém toma diante da própria Literatura, um
exercício contínuo que Genette (1972, p.130) chamou de “tarefa infinita”.
É claro que nem todo tipo de texto se presta a este “jogo”, e nem mes-
mo se coloca como um jogo possível do leitor consigo. Mas, em determinada
tradição das literaturas modernas e contemporâneas, é possível reconhecer
uma série de autores que vão tomar para si esta possibilidade de “jogar” com
o texto e vão dirigir os seus esforços no sentido de trabalhar com esse tipo
de relação. É aquela que chamamos aqui de “poética da leitura” (Monegal,
1980), e que constitui em si mesmo uma tradição possível que conta, certa-

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mente, com os reconhecidos nomes de Borges e Cervantes com parte de um
repertório focado nesta visão dinâmica do texto literário.
Diacronia/sincronia, imagem/texto, poética da leitura: três tipos de
questões que se apresentam sobre a égide das noções básicas de recepção
e intertextualidade. No caso de uma poética da leitura, ela não só chama
a atenção para a transmissão textual ao longo do tempo, aquilo ao que se
reduz algumas vezes a idéia de recepção, mas também com as relações que
os textos estabelecem entre si, relações estas que são ativadas por meio do
leitor e da leitura. É bom não perder de vista que diante do texto literário o
leitor tem uma liberdade (liberdade da recusa e do rechaço da Literatura,
por exemplo), uma responsabilidade (pois fazer uma opção de leitura ou de
interpretação é também fazer uma escolha por determinados valores em de-
trimento de outros), e assim sua ativa operação diante do texto tem também
uma dimensão ética.
Neste sentido, vale aqui mais uma vez evocar outro ensaio de Jorge
Luis Borges, aquele intitulado como Kafka y sus precursores, em que aparece
a idéia de que cada escritor inventa a sua própria tradição. Esta é uma idéia
radical que poderia ser aplicada ao sistema literário como um todo, ao pen-
sar que toda fortuna crítica e toda ação do público diante de uma obra é uma
ação também de reescritura da mesma, de situação de um texto presente
(ou de uma voz) ante o complexo cultural que representa a tradição literária
e a leitura de um texto em seu próprio tempo, a partir das conexões que se
estabelecem entre ele e outros textos coetâneos, por exemplo.
Finalmente, menciono que sob essa perspectiva, venho me debruçan-
do sobre a ideia da busca de um “Quixote brasiliense”, de uma leitura do
texto cervantino que denomino como “cervantesca”, que busca ultrapassar a
dicotomia entre uma leitura historicista ou mesmo retoricista que “prende”
o clásssico cervantino ao século XVII ou uma leitura da tradição clássica que
tenta restringir os seus códigos de leitura – a esta leitura chamo de cervanti-
na; e outra leitura que chamo de quixotesca, cristalizada na visão romântica
e ultra-romântica, impressionista, da obra prima de Cervantes, que lida com
a mesma como uma espécie de tábua ou escudo refletor de formas diversas
de realismo, idealismo ou formalismos vários.

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Neste caminho em curso, busca-se uma terceira jornada a partir das
aproximações brasileiras do texto de Cervantes, como a que faz Darcy Ribeiro
nas aldeias kaapor, ao tomar o Dom Quixote como emblema que explica sua
situação diante dos indígenas e da própria antropologia (CARVALHO, 2012);
a da tradução de O Sepulcro de Dom Quixote (de Miguel de Unamuno), que
não deixa de ser uma releitura de Unamuno ante Cervantes, visão sobre um
“original” cervantesco aparecido muito antes que Borges escrevera o Pierre
Menard e antes que a teoria literária decretasse a morte do autor; e a da lei-
tura do Dom Quixote em cordel de J. Borges, que ilustra à perfeição a síntese
entre opostos que convergem e se confundem, tal como se trata de Cervan-
tes e a tradição popular de origem ibérica vista desde o Brasil.
Esses trabalhos em conjunto, sem discutir cada um pontualmente e
sem querer falar das suas mais que improváveis imperfeições, atentam de
qualquer forma para o desenho projetivo de uma analogia entre manifes-
tações literárias que partem de Brasília ou estão radicadas nela e que con-
formariam um “Quixote brasiliense”, filho da analogia entre o texto literário
cervantino e a cidade moderna, irmanados por essa perspectiva aberta, pro-
cessual e prospectiva que caracteriza a arte moderna e que, por fim, constitui
essa crítica “cervantesca” que, ao final, busca a cidade projetada e o texto de
Cervantes a partir de uma ética da leitura.

Referências bibliográficas

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Janeiro, Globo, 2000. 4 vols.

CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Madri: Arco, 2007.

CARVALHO, Erivelto da Rocha. ‘Dom Quixote em cordel de J. Borges: uma


adaptação brasileira de Cervantes’. Em: Diálogos Latinoamericanos
(2013), n.21. pp. 158-170.

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_______. ‘Dom Quixote em Darcy Ribeiro : riso e loucura nos Diários Índios’.
Em: Cerrados (2012), n. 21. pp. 358-375.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

GENETTE, Gérard. Figuras. São Paulo, Perspectiva, 1972.

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Barcelona: Gustavo Gili, 1980.

JAUSS, Hans Robert. Pour une esthétique de la réception. Paris: Editions


Gallimard, 1978.

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Costa. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1980. pp. 305 – 358.

MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: uma poética da leitura. São Paulo,


Perspectiva, 1980.

UNAMUNO, Miguel de. ‘O Sepulcro de Dom Quixote’. Em: Cerrados (2013),


n.35. pp. 259-268. Trad. Erivelto da R. Carvalho.

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VIOLÊNCIA-IMAGINÁRIO E PENSAMENTO COLONIAL
NA NARRATIVA LATINO-AMERICANA CONTEMPORÂNEA:
OBSERVAÇÕES A RESPEITO D’A PARTE DOS
CRIMES EM 2666

Fabiana de Oliveira Santos1

“A violência que fala é já uma violência que procura ter razão; é uma violência que
se coloca na órbita da razão e que começa já a negar-se como violência.”

Paul Ricoer2

1. A AMÉRICA LATINA COMO UMA NARRATIVA DE VIOLÊNCIA

As narrativas de violência têm ocupado um importante espaço na li-


teratura contemporânea. São narrativas que, muitas vezes, fazem emergir
discussões próprias da contemporaneidade. A instabilidade do mundo pós-
-moderno obriga que se evidenciem discursos anteriormente marginalizados
(JOZEF, 2005, p.247), como as vozes da loucura, do feminino, das populações
negras. Essa nova configuração de espaços discursivos, sejam eles físicos ou
simbólicos, cria a uma tensão entre os discursos que conservam as vozes de
identidades e culturas historicamente dominantes e o reconhecimento de
discursos periféricos, que, na atualidade se difundem ante a pluralidade de
elementos possíveis na literatura. Nesta perspectiva, as narrativas de violên-

1
Mestranda em Literatura pelo Programa de Pós-graduação em Literatura e Práticas Sociais
– UnB e professora de Língua Portuguesa na Secretaria de Estado e Educação do Distrito
Federal.
2
A eleição da epígrafe de Ricoer deu-se para fomentar a reflexão sobre a ambivalência da
efetivação do pensamento colonial na contemporaneidade. Essa reflexão deve ser orienta-
da pela ideia de que sujeitos colonizadores e colonizados protagonizam múltiplos discursos
e que, não raro, esses discursos se contradizem às suas realidades materiais. Curiosamente,
na mesma fala da qual foi extraída o fragmento que compõe esta epígrafe, Paul Ricoer,
filósofo francês, desqualifica a filosofia feita na China e na Índia. Para ele, não são filosofia
e sim “outra forma de pensar”.

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cia surgem como uma opção literária privilegiada, já que tensão e violência,
convergem, de certa forma, a um mesmo campo de pensamento.
Construídas sob o peso da colonização, certas sociedades, culturas e
nações, destaca-se aqui a América Latina, estão familiarizadas com a violên-
cia. A colonização permitiu sempre que a violência fizesse parte das narrativas
sobre a América Latina. Para tanto, é preciso compreender, numa ótica abran-
gente, “o ato de narrar como um traço distintivo de todo o discurso humano;
e a narrativa uma forma expressiva universal presente, seja na experiência
biográfica seja nas vissicitudes da interação social” (GOODY, 2001, p.19). Tra-
balha-se com a tese de que discurso e narrativa não só se assemelham, como
também se fundem, para fins de análise do que é real ou fictício, em um texto
social, onde, embora o discurso preceda a narrativa, não é ele mais relevante
que ela na projeção do ficcional. O entendimento do ato de narrar, que se apli-
ca neste momento da análise, não compreende a ideia amplamente difundida
de que narrativas literárias são naturalmente ficcionais, tampouco exclui as
narrativas históricas do terreno da ficção (ISER, 2013, p. 31). Todavia, a aten-
ção aqui prestada se orienta ao texto literário e suas relações com discursos,
figurados em narrativas, pertencentes ao mundo real e material.
Ao refutar a ideia de antagonismo entre ficção e realidade, Wolfgang
Iser, em seu estudo O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropolo-
gia literária, estabelece a tríade fictício-real-imaginário. O imaginário, nesta
perspectiva, constitui a natureza daquilo que trará à luz o elemento fictício
do texto ficcional. Explica-se, dessa forma, por que pensar a América Latina é,
quem sabe, pensar em uma narrativa de violência. Numa realidade edificada
sob signos de violência, como a da América Latina, o componente imaginário
das narrativas será a violência. Ela translucida no texto os efeitos materiais
e arrebatadores que a colonização imprimiu naquele espaço geográfico. Na
literatura contemporânea produzida na (e a respeito da) América Latina, o
imaginário-violência desvela aquilo que foi silenciado por uma realidade que
pressupõe uma violência, de cunho colonial, já superada. A violência como
temática recorrente nessa literatura é um elemento textual e estético que,
para Iser, consistiria no fator determinante da sutileza entre realidade e fic-
ção, já que

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“[...] há no texto ficcional muita realidade que não só deve ser
identificável como realidade social, mas que também pode ser
de ordem sentimental e emocional. Estas realidades por certo
diversas não são ficções, nem tampouco se transformam em
tais pelo fato de entrarem na apresentação de textos ficcionais.
Por outro lado, também é verdade que estas realidades, ao sur-
girem no texto ficcional, não se repetem nele por efeito de si
mesmas. Portanto, se o texto ficcional se refere à realidade sem
se esgotar nesta referência, a repetição é um ato de fingir pelo
qual aparecem finalidades que não pertencem à realidade re-
petida. Se o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida,
nele emerge um imaginário que se relaciona com a realidade
retomada pelo texto. (idem)

É preciso compreender que a violência presente na literatura latino-


-americana contemporânea, em trabalhos como alguns romances de Mario
Vargas Llosa, em Bernardo Kucinski e em 2666, de Roberto Bolaño – principal
objeto de análise deste estudo – não se restringe ao tratamento de violências
específicas. Embora as narrativas em si se refiram a casos específicos de violên-
cia, como a de gênero, a violência policial, a violência decorrente de regimes
políticos ditatoriais, que integram a história de muitos países latino-america-
nos na segunda metade do século XX, a violência-imaginário que compõe as
narrativas sobre a América Latina é um conceito, exaustivamente repetido, em
atos de fingir aportados em um processo civilizatório violento e exclusivo da
América Latina3: a colonização. Este processo permitiu que a violência trans-
cendesse o espaço, a causa, a língua, o tempo, a estética das narrativas – e
assim o fez porque o processo em si excede estes elementos e ainda hoje re-
produz seus reflexos nas nações, culturas e sociedades nas quais se deu.
Para Césaire (1978, p. 16), não é possível que a colonização tenha re-
sultado em algo que beneficie a diversidade cultural, ou, em suas palavras,

3
Entende-se que os modos como a colonização se deu na América Latina produziu efeitos
diferentes dos produzidos em outras partes do mundo. Aqui, construiu-se, ao longo dos
anos após as independências, uma narrativa do colonizador como um disseminador de um
progresso que, em verdade, serviu para que se velasse a violência do processo produzindo,
assim, também violências veladas no cenário contemporâneo.

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em “um só valor humano”. A violência, em sentido algum, pode ser conside-
rada um valor humano. Ela dispensa o conceito de civilização e aproxima-se
muito mais da ideia de selvageria. Nas narrativas que concernem à América
Latina, aquelas pautadas no mundo real e material, é comum que se asso-
cie a figura do colonizador à ideia de civilização; e a figura do colonizado à
imagem de selvageria. Por conseguinte, é do selvagem que parte a violência.
Contudo, a “invenção” dessa violência é, ainda do colonizador, embora de
maneira obscura, velada. O colonizado é uma voz que protagoniza, forçada-
mente e em silêncio, um papel que não lhe pertence. Dessa forma, é nos
territórios da literatura que se quebra esse silêncio.
Pensa-se que, nas narrativas do material, o lugar do colonizado é o de
sujeito subjugado, vítima de um ato violento, sob a justificativa de lhe imbuir
civilidade. Se imprime a ele uma condição de violência. A violência surge na
literatura latino-americana contemporânea como expoente do ficcional. Ela
está incrustada nos sujeitos latino-americanos enquanto colonizados e, por
isso, conforma um certo traço identitário da América Latina, que pode ser
entendido como este imaginário interseccional entre realidade e ficção.
No caso particular de 2666, a violência é linha comum às cinco partes
de fragmentação formal. Como um todo, a estrutura da obra indica, por si só,
um ato de violência. Verdadeiramente, a suposta divisão da narrativa, alude
aos resultados de um processo de violentamento. Os assassinatos de mulheres
na cidade fictícia4 de Santa Teresa, que são explícitos em “A parte dos crimes”,
ressonam como ecos nas outras quatro partes da obra, sugerindo que a aquela
narrativa fora una e que passou por um processo de quebra. Os cacos da nar-
rativa, dessa forma, são encobertos por uma aura de violência, onde “A parte
dos crimes” por tratar de forma notória da temática, concebe o lugar em que se
deu o rompimento. Analogamente, uma narrativa de violência é uma narrativa
da própria América Latina, diluída por uma história de colonização.
A questão da representação dos sujeitos colonizados e silenciados e dos
efeitos velados do colonialismo não consiste na única razão da violência em

4
Não se pretende antecipar a análise da caracterização da cidade em 2666, mas é importante
ressaltar que, enquanto “lugar da violência”, a cidade também funciona como elemento
fictício do texto ficcional no contexto amplo da obra.

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2666. É razoável estabelecer um diálogo entre os pensamentos de Candido e
Iser. Se para Candido a realidade social passa a integrar a obra e assim permite
que ela seja analisada por si só, compreendendo a função que ela exerce (CAN-
DIDO, 2006, pp. 9-13) e para Iser (2013, p. 34) os textos “representam, como
sistema, as formas de organização do mundo sociocultural”, em 2666, a violên-
cia também tem uma razão estética, ancorada na intenção do texto de fingir
o real, aparentando ser, sem sê-lo. Os elementos intratextuais (ISER, 2013, P.
38) que se relacionam em 2666 por meio da retratação da violência – mais ou
menos subjetiva, em A parte dos críticos, A parte de Amalfitano, A parte de
Fate e A parte de Archimboldi, ou direta, em A parte dos crimes, – são a fixação
do mundo material na estrutura do texto, da qual trata Antônio Candido. Há
uma violência na América Latina, impressa pela colonização, que extrapola os
limites narrativos (e, em vista disto, presunçosamente incutidos do ficcional), é
uma violência factual. Ao mesmo tempo, essa violência factual escapa ao mun-
do material na medida em que sua ocorrência reiterada ocasiona o surgimento
de um imaginário (de cunho narrativo) a respeito dela. 2666 é uma narrativa de
violência do ponto de vista estrutural e estético, tendo em vista que a violência
constitui o fictício do texto ficcional nesta obra.

2. A VIOLÊNCIA COMO UM ECO COLONIAL E NEOLIBERAL

A epígrafe de 2666, “Um oásis de horror em meio a um deserto de tédio”,


é um apontamento para estabelecer a relação entre violência e colonialismo
na novela. A parte dos crimes narra aleatoriamente diversos feminicídios co-
metidos na cidade fronteiriça de Santa Teresa, no México. Estes assassinados
são mencionados ou percebidos de forma secundária nas outras partes. Há
certo incômodo em se notar os ecos d’A parte dos crimes no restante da narra-
tiva, mesmo quando não estão insertos em contextos claramente violentos ou,
por vezes cômicos, como ocorre em A parte de Amalfitano.
Para compreender este incômodo é interessante pensar na questão
das representações na obra. Tome-se a narrativa de 2666 como uma repre-
sentação da América Latina. Como aponta Raposo (2016, p. 30)

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O cenário apresentado em 2666 é bastante parecido àquele
ocorrido em Ciudad Juárez, no estado de Chihuahua, também
na fronteira do México com os Estados Unidos. Por mais que
Bolaño localize Santa Teresa no estado mexicano de Sonora, o
leitor não encontra dificuldades em notar que a cidade ficcional
aponta diretamente para Ciudad Juárez, que também alberga
montadoras e onde, desde o início dos anos 1990, centenas de
mulheres têm sido mortas em circunstâncias muito similares
àquelas descritas na ‘Parte dos Crimes’ de 2666.

Nota-se que a constituição do contexto de 2666 deu-se a partir de um


ato de fingir as violências factuais ocorridas em Ciudad Juárez. Também per-
cebe-se que essas violências se estabeleceram num lugar límitre entre o real
e o imaginário desde o momento em que, a partir de sua origem na materia-
lidade, passaram a compor as narrativas também dessa materialidade. Essa
violência sonda as narrativas de Ciudad Juárez (realidade concebida a partir
de um imaginário) e de Santa Teresa (ficção concebida a partir do mesmo
imaginário).
A violência pontual d’A parte dos crimes, que se reverbera nas outras
partes da narrativa, é a violência escancarada no local (Santa Teresa/Ciudad
Juárez) que repercute de forma sutil, mas não menos agressiva, no global (a
América Latina como um todo). É digno lembrar que esta violência é um as-
pecto da identidade latino-americana e, portanto, Santa Teresa é, na narrativa,
o ponto mais notório desta característica. Para Mignolo (2014), a colonização
resultou em um processo de mundialização do pensamento europeu. Aqui, é
preciso envolver-se com a ideia de que o autor da violência latino-americana
é o colonizador, enquanto o colonizado a reproduz, num duplo processo de
ocultação da responsabilidade do colonizador e elucidação da violência como
sendo genuinamente pertencente ao colonizado. A partir desta perspectiva,
Santa Teresa e Ciudad Juárez definem-se como uma metáfora à proliferação
dos modos de agir e pensar do colonizador, desenhadas no imaginário-violên-
cia, ao redor da América Latina. No mesmo sentido, A parte dos crimes é a
figuração deste imaginário-violência no interior da novela. Essas relações fa-
zem compreender a natureza do horror na narrativa de 2666. O mal-estar de-

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corrente dos ecos d’A parte dos crimes é também um mal-estar decursivo da
normalização das violências a partir de um processo histórico e cultural que
justifica o violentamento de toda uma cultura, considerada menor, em prol de
outra considerada mais evoluída, progressista, (Mignolo) como já tratado ante-
riormente, ao se estabelecer a oposição entre selvagem e civilizado.
Na mesma direção, a localização da cidade de Santa Teresa (ou Ciudad
Juárez), na fronteira com os EUA, não parece ser acidental. É preciso conside-
rar que a posição dos Estados Unidos ocupam no contexto global atualmente
se aproxima da posição ocupada pelos países colonizadores da América no
século XVI. Há certa propagação cultural e ideológica por parte deste país que,
embora não se dê na forma de violências factuais (ao menos não nas relações
mais recentes com a América Latina), como outrora, se dá na forma de vio-
lências simbólicas firmadas sob um ideário neoliberal. É possível que a aproxi-
mação geográfica entre os EUA e Santa Teresa aluda a um avizinhamento, na
verdade, deste pensamento neoliberal. Para Mbembe (2014, p. 13)

“[...] o neoliberalismo baseia-se na visão segundo a qual todos


os acontecimentos e todas as situações do mundo vivo (podem)
deter um valor no mercado. Este movimento caracteriza-se
também pela produção da indiferença, a codificação paranoica
da vida social em normas, categorias e números, assim como
por diversas operações de abstração que pretendem racionali-
zar o mundo a partir de lógicas empresariais.”

A forma crua e detalhista da narração d’A parte dos crimes corrobora


para a construção da ideia de oásis de horror, de aura neoliberal, na novela.
Por vezes, o texto faz lembrar o conteúdo de boletins de ocorrências policiais,
devido a sua obsessão cronológica e descritivismo:

[...] o legista concluiu que havia sido estuprada anal e vaginal-


mente, apresentando numerosos dilaceramentos em ambos os
orifícios, e depois estrangulada. Mas, após uma segunda autóp-
sia, concluiu-se que Penélope Méndez Becerra havia morrido
por um ataque cardíaco enquanto era submetida aos abusos
antes expostos. (BOLAÑO, 2010, p. 390)

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Após uma longa explanação sobre a vida da vítima Penélope Méndez
Becerra, o caso de seu assassinato se “conclui” de forma rápida e precisa
no texto acima excertado. De assalto, a personagem, antes retratada com
grande preocupação, converte-se em mais um número, como se sua essên-
cia estivesse sendo arquivada junto a insolubilidade de sua morte. É possível
depreender desta escolha de estilo que há uma intenção na narrativa em se
expor a violência com a maior clareza possível, como em uma propaganda
que expõe seu produto. Logo que um corpo é encontrado, já se pode consu-
mir uma outra morte. Interessa o acúmulo de cadáveres, indiferente às vidas
que antes ali habitaram.
O segmento narrativo a respeito desta personagem inicia-se, como em
tanto outros segmentos n’A parte dos crimes, com o anúncio de sua morte:
“A morta seguinte se chamava Penélope Méndez Becerra. Tinha onze anos.”
(idem, p. 387). Nota-se que a personagem tem sua história introduzida a par-
tir da materialização de sua morte. A morte, neste sentido, é a obra-prima da
violência, algo valioso a se consumir num contexto neoliberal. A menina mor-
ta, tendo sua história comum transformada em produto funesto, é também
um prêmio, resultado da eficiência desta “globalização” de um pensamento,
ao mesmo tempo colonial e neoliberal, em que a violência é justificada, não
responsabilizada e recompensada. A narrativa adota um caminho semelhan-
te à da ideia de consumo, em que se delineia o anúncio da morte, seguida
de uma sensibilização por meio da individuação da personagem e, por fim,
empilha-se mais um corpo dilacerado, ou, quem sabe, empilha-se o relato do
que foi um vida, perdida em meio a uma necessidade sem sentido à própria
vida, mas, de grande valia a quem vende este produto.
É preciso salientar que todo o oásis de horror de 2666 é construído
sobre um deserto de tédio. A repetição excessiva dos feminicídios – já que
mais de cem deles são relatados ao longo da narrativa em A parte dos cri-
mes – faz parecer que há uma normalidade nesses fatos, que assumem um
caráter cotidiano e, por isso, não são dignos de atenção. Raposo (2016, p. 34)
aponta que “a indiferença dos habitantes de Santa Teresa pode ser lida como
mais uma das variantes ao deserto de aburrimiento que circunda o oásis de
horror”. A morte, o horror e a violência em tom gore perdem sua razão de

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ser por tamanho espaço que ocupam na narrativa. É possível que, a própria
América Latina ocupe um lugar imaginário de oásis de horror num deserto
de tédio, dado seu histórico de violências naturalizadas. Observe-se, a seguir,
no relato da morte de Isabel Cansino, em como a atenção dada aos fatos se-
cundários a esse relato, contribuem para a leitura do feminicídio como algo
comum naquele contexto:

Um mês depois, um amolador de facas [...] viu uma mulher


agarrada num poste de madeira, como se estivesse bêbada.
Do outro extremo da rua, coberto de moscas, viu se aproxi-
mar o vendedor de picolés. Ambos convergiram para o poste
de madeira, mas a mulher havia escorregado e não tinha mais
forças para se agarrar. A cara da mulher, em parte oculta pelo
antebraço, era uma maçaroca de carne vermelha e roxa. [...] O
sorveteiro olhou para a mulher e disse que parecia ter lutado
quinze rounds com Torito Ramírez. O amolador se deu conta
de que o sorveteiro não iria se mexer e pediu que ele vigiasse
o seu carrinho que ele já voltava. Quando atravessou a rua de
terra, virou para trás, a fim de certificar-se de que o sorvetei-
ro lhe obedecia, e viu todas as moscas que antes rodeavam o
homem do picolé em torno da cabeça ferida da mulher. Pouco
mais tarde chegou uma ambulância e os enfermeiros quiseram
saber quem se responsabilizava pelo translado. [...] Como vou
me responsabilizar se nem sei como se chama? (BOLAÑO, 2010,
pp. 346-347)

O relato segue com a uma discussão entre o enfermeiro e o amola-


dor, que insiste, ameaçando o enfermeiro com um facão, que não pode se
responsabilizar pela mulher. Enquanto isso, outro enfermeiro atesta a morte
da vítima. A partir deste momento, o relato passa a girar em torno de uma
perseguição do amolador ao enfermeiro. Agora, o amolador acusa o último
de ser culpado pela morte da mulher, mas logo desiste de sua investida, por-
que “a raiva, a sanha ou o rancor minguaram” ou porque se cansou (idem, p.
347). Há, neste fragmento, dois importantes aspectos a serem observados: a
naturalização da morte e a questão da responsabilidade pela violência. Não

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se pretende neste momento analisar o mote da violência de gênero. Mais
adiante, este fator será discutido como o diferencial no tratamento da vio-
lência na obra, como uma manifestação de pensamento liminar (MIGNOLO,
2003). Por hora, é importante perceber que a indiferença, a selvageria e a bu-
rocracia atribuídas às três personagens homens deste relato têm ao menos
algumas possíveis formas de serem lidas.
O amolador, inicialmente, dá atenção a essa possível vítima. Quando
a avista, ela está viva e, devido à distância, ele não pode ainda perceber os
ferimentos em seu rosto. Porém, ao se aproximar de Isabel, o amolador não
esboça qualquer expressão de espanto diante das marcas de agressão, mes-
mo que a narrativa ratifique o caráter grotesco da cena, ressaltando a trans-
ferência das moscas do carrinho de sorvete para a cabeça da mulher. Isto
sugere que a passagem é corriqueira para o amolador, tal qual uma violência
justificada que acaba por se naturalizar no imaginário coletivo. Além disso, o
amolador demonstra preocupar-se, antes de tudo, com a segurança de seu
carrinho de trabalho. Césaire (1978, pp. 19-21) aborda essa posição do co-
lonizado ao discutir o pensamento de um “humanista” a respeito da certeza
do destino dos homens a partir de sua raça. Para este “filósofo”, chineses
e negros seriam naturalmente destinados ao trabalho, enquanto aos euro-
peus caberiam as posições de senhores e soldados5. O ponto comum entre
chineses e negros naquele contexto era o lugar de colonizados e, portanto,
silenciados. Já o europeu possui o lugar de fala do discurso e, justifica, na
ideia de que estaria destinado a um status de poder, sua ação de violen-
tar outras raças. Comparável aos lugares dos negros e chineses é o lugar do
amolador neste contexto da narrativa. Césaire (idem) prossegue explanando
a respeito da passividade de todos diante deste discurso violento. Cabe lem-
brar que os pensamentos coloniais e neoliberais dos quais estamos tratando
são pensamentos reverberam e que, mais que isso, são a única voz dada aos
colonizados, que funcionam como dublês, porta-vozes dos colonizadores. A
passividade do amolador diante da iminente morte da mulher é um dese-

5
Reproduziram-se as aspas do texto original em “filósofo” e “humanista” a fim de se repro-
duzir também a ironia de Césaire ao tratar de pensamentos conservadores que se autopro-
clamam progressistas.

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nho alegórico das relações de poder colonial em 2666. O amolador assume
seu lugar de força braçal e trata de cuidar de seu carrinho ao mesmo tempo
em que seus esforços para reivindicar justiça pela morte da mulher são logo
suprimidos pela lembrança de que não há nada errado na violência (porque
a raiva passou ou porque cansou-se). Trata-se de uma violência-imaginário
tão profundamente internalizada que as tentativas de combatê-la parecem
demasiado dispendiosas e potencialmente inúteis.
A banalização da morte e, consequentemente da violência, já que se
tratam de mortes violentas, é ainda tratada no discurso do sorveteiro, que
acrescenta a este fragmento da narrativa certo tom de comicidade lúgubre.
O sorveteiro compara a cena da vítima com o rosto deformado pelas agres-
sões a um evento de entretenimento, uma luta (possivelmente) de boxe. Essa
comparação não só atesta a indiferença do sorveteiro diante do horror, como
também remete ao seu caráter corriqueiro. Se a violência pode ser tratada
de forma cômica, existe uma possibilidade dessa violência não ser um mo-
tivo de preocupação, de não ser um fator extraordinário naquele contexto,
ocupando assim, o mesmo espaço de eventos de distração, que, nesta pers-
pectiva, não irão produzir alguma reflexão a respeito deles. Retomam-se, no
comentário do sorveteiro, por um lado, a alcunha de selvagem atribuída ao
colonizado – não se pode considerar civilizado aquele que ri de um grotesco
tão aterrorizante – por outro, também se evidencia a natureza passiva e inte-
riorizada da violência daquele que está protagonizando atos de outrem. Ao
tratar da banalização da vida, Santos (2015, p.31) toma como parâmetro os
regimes de exceção latino-americanos e pontua:

Descartabilidade da vida como expressão de um regime excep-


cional que encontra sentido no direito soberano de “fazer mor-
rer” o outro para “deixar viver” o igual: os “falsos positivos”, os
“descartáveis”, simbolizam um regime que dá morte aos inimi-
gos para produzir a vida normalizada.

Neste sentido, o inimigo deste pensamento colonial e neoliberal o qual


ressona por 2666 – que se configura, na abstração, também em um “regime
excepcional” – seria a atenção real à violência contra inúmeras mulheres,

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a negação do empilhamento de seus corpos em A parte dos crimes. Disso,
pode-se extrair que, quem sabe, a desresponsabilização por suas mortes seja
um artifício de manutenção deste regime excepcional na obra, por meio da
figuração da violência.
O enfermeiro é quem procura encontrar o responsável pela mulher,
mas há certa ironia nisto, uma vez que é a demora (ou busca sem funda-
mento) em encontrar seu responsável que a leva à morte. Isto faz pensar na
condição do colonizador de autor da violência. De acordo com Césaire (ano,
p. 21), a colonização é a “testa de ponte numa civilização barbárie donde,
pode, em qualquer momento, desembocar a negação pura e simples da ci-
vilização.”. Na narrativa, é possível associar a figura do enfermeiro à ideia de
racionalidade e civilidade. A ambulância que chega para o socorro da vítima,
em meio a personagens preocupadas com o trabalho (amolador) ou em se
entreter com o fato (sorveteiro), referencia à noção (equívoca) de que os co-
lonizadores estariam levando apenas o progresso às terras colonizadas, mas,
mais do que isso, seriam a voz da razão entre indivíduos não pensantes. Em
princípio, a atitude do enfermeiro de querer identificar os responsável pela
mulher parece bastante razoável ao contexto, entretanto, pode denotar essa
descivilização do colonizador da qual trata Césaire. Ao tentar forçar o amo-
lador a se responsabilizar pela, até então desconhecida, Isabel, o enfermeiro
negligencia seu papel de ser racional, isso, por si só, já seria violento, todavia,
é neste fato que se elucida o real protagonista da violência. A partir do mo-
mento em que aceita a colonização e aceita o uso da força, o colonizador é
conduzido ao lugar de selvagem, portanto, de autor da violência. (idem)

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS OU A RESISTÊNCIA PELO SILÊNCIO


NARRADO EM “A PARTE DOS CRIMES”

Em 2666, a violência se revela como fio orientador para o entendimen-


to do pensamento colonial e de suas difusões e ramificações na contempo-
raneidade. Já se compreende que a incorporação da violência ao imaginário
narrativo latino-americano – e sua transmutação como elemento ficcional do

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texto fictício em 2666 – se deu pela combinação dos elementos determinan-
tes de lugares de discurso de colonizador e colonizado. Esses discursos, no
texto fictício, não se resumem à uma ideia maniqueísta que antagoniza o co-
lonizador e vitimiza o colonizado. Esses lugares de discurso são cambiantes e
promovem uma ampliação de horizonte discursivo, onde se estabelece uma
relação dialética entre a reprodução ordenada do pensamento colonial e a
oportunidade de percepção do lugar de colonizado e consequente expressão
de um pensamento genuíno advindo deste lugar.
As violências retratadas em 2666 são, objetivamente, violências de
gênero. Em todo o conjunto da narrativa, imperam as mais diversas mani-
festações de violência contra a mulher. Como indica Raposo (2016, p. 34)
“Em 2666, há uma forte sinalização de que o machismo e a misoginia, que
marcam a sociedade local, estão ligados às mortes das mulheres como uma
causa indireta e incontornável.” e ainda aponta que essas mortes “são apre-
sentadas como concepções individuais que devem ser estendidas ao tecido
social do México de Bolaño.”. Essas escolhas narrativas, em especial a escolha
por narrar feminicídios, apresentam-se como um contraponto à perpetuação
do pensamento colonial na obra.
Entende-se aqui que o mal-estar, as repetições, a indiferença, a ambi-
guidade das posições de discurso e outros aspectos da narrativa 2666, men-
cionados como um representação das relações de colonialidade na obra, têm
também um caráter denunciativo. É impreterível lembrar que na contempo-
raneidade há uma pluralidade de espaços discursivos e que, na literatura,
é possível que esses espaços se deem das mais variadas formas. Em 2666,
opta-se por ocupar um espaço de silêncio. As mulheres mortas não tem voz
ativa no texto e tampouco se sabe se elas poderiam ocupar algum desses
lugares de discursos dicotômicos de colonizador ou colonizado. Pode-se dizer
que as mulheres assassinadas em A parte dos crimes são imaginário-violên-
cia materializado em personagens suspensas da narrativa. Significa dizer que
os feminicídios são de profunda importância para o entendimento da obra
como uma opção de pensamento liminar.
Mignolo (2001) define o pensamento liminar como a atitude de pen-
sar além do lugar de discurso do colonizador, abrindo possibilidades para a

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emergência de uma visão não etnocida por parte do colonizado. Vasconcel-
los (2013) explica que “o pensamento liminar desenvolve-se nas fissuras da
colonialidade, constrói-se no diálogo com os saberes hegemônicos, mas a
partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais colo-
niais.” 2666 apresenta a violência como a evidenciação deste diálogo com
os saberes hegemônicos. O tom subjetivamente denunciativo à violência de
gênero, o qual traz à tona a discussão a respeito da natureza do machismo e
da misoginia, revela um saber que foi sempre subalterno, mesmo em cultu-
ras que não fizeram parte das algozes na colonização moderna. Esse saber, à
margem, é um conhecimento feminino, que fala em silêncio na obra. É por
meio da degradação dos corpos femininos e principalmente, do silêncio atri-
buído a cada personagem suspensa que a narrativa d’A parte dos crimes faz
ver que é preciso reimaginar os discursos e as narrativas que se propagam
numa América Latina que ainda não superou seu histórico colonial.
Solucionar e prevenir os casos de violência de gênero que se ficciona-
lizam em Santa Teresa, pressupõe ouvir a voz da margem. Em 2666, A parte
dos crimes cumpre parcialmente este papel ao apontar, nas vozes mortas,
os vestígios do que elas teriam a dizer em vida. Todavia, a solução definitiva
dos assassinatos na narrativa só é possível a partir da audição viva e presen-
te dessas vozes que, enquanto discursos, não deixam de ser marginais, mas
podem protagonizar os papéis que lhe são devidos e proferir, deste lugar,
narrativas mais coerentes a respeito de si. Em Putas Assassinas verifica-se a
emblemática sentença que diz “a violência, a verdadeira violência, é inevi-
tável, pelo menos para aqueles que, como nós, nasceram na América Latina
[...]” (BOLAÑO, 2001, p. 5 – livre tradução). É realmente provável que não se
possa evitar a violência, mas, talvez seja possível observá-la de perspectivas
que contribuam para a reconstrução do imaginário latino-americano.

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Referências Bibliográficas

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A ARTE NO HORIZONTE DA FORMAÇÃO CONTINUADA:
LITERATURA EM DIÁLOGO COM O CINEMA

Isabel Cristina Corgozinho 1

O que quer, o que pode esta língua? (Caetano Veloso)

I – Preliminares

O curso Literatura, cinema e outras linguagens faz parte do grande


leque de cursos oferecidos pelas Equipes dos Eixos Transversais e Educação
Básica da EAPE. A nova concepção do ensino da arte e, em particular, da li-
teratura e do cinema ousa interferir sobremaneira no ensino interdisciplinar
dos conteúdos e, principalmente, na área de Códigos e Linguagens e suas
Tecnologias.
Em sintonia com os pressupostos teóricos da pedagogia histórico-crí-
tica do Currículo em Movimento, as concepções que alicerçam o curso cons-
tituem condição imprescindível para o exercício da cidadania, na medida em
que torna o indivíduo capaz de compreender o significado transformador
das artes e das vozes que se manifestam por meio delas, instigando-o a pro-
nunciar-se com voz própria na arena discursiva do debate social. Além disso,
torna o professor apto a trabalhar na prática com a concepção do multiletra-
mento artístico.

II – A cultura como processo intertextual

De acordo com Luiz Fiorin (1994), todo texto é produto de uma criação
coletiva: a voz de seu produtor se manifesta ao lado de um coro de outras

1
Professora Doutora, Formadora da EAPE - SEEDF

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vozes que já trataram do mesmo tema e com as quais se põe em acordo ou
desacordo. Por isso, é possível afirmar que a cultura é um processo intertex-
tual, em que cada produção humana dialoga necessariamente com as outras.
O texto, como objeto cultural, tem uma existência física que pode ser apon-
tada e delimitada por nós: um romance, um filme, uma música, um anúncio.
Entretanto, esses objetos não estão ainda prontos, destinam-se ao olhar, à
consciência e à recriação dos leitores. Cada texto constitui uma proposta de
significação que não está inteiramente construída. A significação se dá no
jogo de olhares entre o texto e seu destinatário – interlocutor ativo no pro-
cesso de significação, participa do jogo intertextual tanto quanto o autor.
Ler com proficiência implica ser capaz de apreender os significados ins-
critos no interior de um texto e de correlacionar tais significados com o co-
nhecimento de mundo que circula no meio social em que o texto é produzido.
A arte como forma de conhecimento coloca-se ao lado das demais formas de
o homem intuitivamente apreender os sentidos do mundo, compreenden-
do e interpretando a especificidade da função estética na transgressão dos
códigos. A linguagem artística privilegia o aprendizado e a competência de o
professor poder operar criativamente com os saberes nas fronteiras culturais
e seus dados armazenados e expressos em textos verbais e não verbais, que
envolvem mecanismos mais complexos de dialogismos entre as linguagens e
seus modos de circulação e recepção.

III – Por que ler os clássicos?

Italo Calvino (1993), no livro Por que ler os clássicos, apresenta várias
definições do termo clássico na literatura, que são retomadas em nosso curso
como parte significativa da fundamentação teórica. As definições do escri-
tor lígure nos são favoráveis por vários motivos: entre eles, estão os nossos
cursistas professores que já leram as obras propostas em nosso curso e, ao
mesmo tempo, outros cursistas e também seus alunos, que as lerão pela pri-
meira vez. Por isso, a pertinência da segunda definição de Calvino:

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dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza
para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma rique-
za não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela pri-
meira vez nas melhores condições para apreciá-los. (CALVINO,
1993, p. 10).

No primeiro caso, desejamos que nossos professores cursistas possam


reler essas obras como uma leitura de descoberta como leram em sua pri-
meira vez; para os nossos jovens, que possam comunicar ao ato da leitura
um sabor e uma importância peculiares, e que tenham a sorte de lê-los nas
melhores condições para apreciá-los, por meio de ações pedagógicas signifi-
cativas.
As obras trabalhadas neste curso são aquelas mais citadas nas provas
do ENEM e estão no rol das consideradas clássicas porque nunca terminaram
de dizer aquilo que tinham para dizer. Em se considerando que os textos li-
terário e cinematográfico são produtos de uma criação coletiva, a voz de um
autor é mais uma voz que se manifesta ao lado de um coro de outras vozes,
no tempo grande da literatura, com as quais se põe em acordo ou desacor-
do. São dialógicos os livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas
das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram
na cultura ou nas culturas que atravessaram, segundo a sétima definição de
clássico de Calvino (1993) e a perspectiva dialógica de M. Bakhtin (1993).

IV – A experiência estética

A questão de como a experiência estética, do lado receptivo, tem se


manifestado na história da arte e especificamente na relação da literatura
com o leitor é sempre – em menor ou maior grau – uma exigência teórica que
só vai se tornar expressiva com a entrada da Estética da Recepção no cenário
da teoria da literatura.
Segundo Regina Zilberman (1989), é na relação dialógica entre o leitor
e o texto que se dá o fato primordial da história da literatura, e não no inven-

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tário elaborado após a conclusão dos eventos artísticos de um período: “A
possibilidade de a obra se atualizar como resultado da leitura é o sintoma de
que está viva; porém, como as leituras diferem a cada época, a obra mostra-
-se mutável, contrária à sua fixação numa essência sempre igual e alheia ao
tempo” (ZILBERMAN, 1989, p.33).
Dessa forma, a historicidade acontece como atualização, e se dirige
para o sujeito capaz de efetivá-la: o leitor. Em suma, a obra predetermina a
recepção, oferecendo orientações a seu receptor. De acordo com Robert Jauss
(1967), a obra evoca o horizonte de expectativas e as regras do jogo familia-
res ao leitor, que são imediatamente alteradas, corrigidas, transformadas ou
apenas reproduzidas. Nesse contexto, cada leitor pode reagir individualmen-
te a um texto, mas a recepção é um fato social.
Nesse sentido, a perspectiva apontada no livro O ato da leitura: uma
teoria do efeito estético, de Wolfgang Iser (1999), oferece alguns pontos de
contato com aquilo que se espera do leitor, por exemplo, quando Iser afirma
que os textos são percebidos pelos leitores como pistas, que podem se trans-
formar em caminhos interpretativos: o pacto entre leitor e obra acontece na
travessia da leitura e da escritura, já que a obra literária possui organização
própria, cuja carência de sentido, ou efeito, só se completa pela presença
atuante do leitor.

V – O valor estético

Por outro lado, temos a questão do valor estético, que depreendemos


do estudo aprofundando de Jan Mukarovsky (1990), que interfere sobrema-
neira na forma como concebemos o valor da obra literária em relação as
outras artes e aos fatos do cotidiano.
1) A esfera da função estética é mais ampla que a esfera do valor es-
tético. Pois, nos casos em que a função estética apenas acompanha
outra função, a questão do valor estético é também secundária na
avaliação da ação ou objetos dados.
2) O cumprimento da norma não é uma condição indispensável do va-
lor estético, especialmente porque este valor predomina sobre os
outros, quer dizer, na arte.

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Disto conclui-se que a arte é a esfera própria do valor estético, pois é
ela a esfera privilegiada dos fenômenos estéticos. Enquanto fora da arte o
valor se subordina à norma, aqui é a norma que se subordina ao valor. A cada
época que uma obra de arte é avaliada, mesmo que se tenha uma avaliação
positiva, o objeto da avaliação é, em cada vez, um objeto estético diferente.
Variando assim o objeto estético, muda também o valor estético. O valor de
uma obra pode se transformar no decorrer dos tempos de positivo em nega-
tivo e vice-versa.
Em compensação, há obras que se mantêm durante muito tempo em
nível elevado. São os chamados valores eternos, como Homero, Shakespea-
re, Rafael, Rubens. A permanência dessas obras, porém, não deve ser com-
preendida como variabilidade. Seu valor pode ser histórico, representativo,
escolar, exclusivo, popular etc. A permanência dos valores de certa obra deve
ser vista como processo, e não como estado.
Mesmo sem mudanças de tempo e de espaço, o valor estético aparece
como um processo multiforme e complexo. As razões dessa dinâmica são
apontadas por Mukarovsky (1990) como sociais: a relação livre entre o artis-
ta e o consumidor, entre a arte e a sociedade. Esta cria instituições e órgãos
por meio dos quais influi sobre o valor estético, regulando a avaliação das
obras. São elas: a crítica, os peritos, o mercado de obras de arte e os seus
meios publicitários, os inquéritos sobre as obras de maior valor, os museus,
as bibliotecas públicas, os concursos, os prêmios, as academias e, por ve-
zes, a censura. Em síntese, podemos apreender que o valor estético é, pois,
um processo cujo movimento é determinado, por um lado, pela evolução
imanente à própria estrutura artística e, por outro, pelo movimento e pelas
mudanças da estrutura do convívio social.

VI – A teoria da adaptação

Robert Stam (2006), ao colocar o problema da adaptação de roman-


ces para o cinema, escreve um ensaio onde apresenta os vieses teóricos

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e práticos desse procedimento, voltados à questão da intertextualidade
entre as duas linguagens artísticas. Como podemos colocar o problema
da adaptação? Ela pode transmitir “o espírito” ou a presença da intenção
autoral? Se levarmos em consideração a concepção bakhtiniana do autor
como um orquestrador de discursos pré-existentes, aliado ao que Michel
Focault (citado por Stam) chamou de anominidade penetrante do discur-
so, chegaremos a conclusão de que a noção de obra originária é bastante
relativa; é mais provável a ideia de não-originalidade para todas as lingua-
gens artísticas. Ao desenvolver o conceito de dialogismo, Mikhail Bakhtin
(1993) lança um sentido mais expansivo às práticas discursivas geradas pela
cultura. “ Qualquer texto que tenha “dormido com” outro texto, como dis-
se um gracejador pós-moderno, também já dormiu com todos os outros
textos que o outro texto já dormiu. É essa “doença” textualmente trans-
mitida que caracteriza o troca-troca que Derridá (citado por Stam 2006)
chamou de “disseminação”. Dialogismo e intertextualidade são conceitos
que nos ajudam a compreender e ultrapassar os dilemas tão arraigados
da fidelidade do cinema à literatura, bem como a exclusão da compreen-
são responsiva, suplementar do leitor/espectador aos objetos artísticos. Os
conceitos de Gerard Genette (1982), citado por Stam (2006), também po-
dem beneficiar a compreensão da teoria da adaptação ao postular os cinco
tipos de relações transtextuais: a intertextualidade (o efeito de co-presença
de dois textos, nas formas de citação, plágio, paródia, paráfrase, epígrafe,
alusão); a paratextualidade (títulos, prefácios, posfácios, epígrafes, dedica-
tórias, ilustrações. Nos filmes poderíamos considerar os pôsteres, trailers,
resenhas, entrevistas etc); a metatextualidade (evoca toda a tradição de
versões crítica de romances, seja na literatura ou no cinema); a arquitex-
tualidade (que diz respeito aos títulos e subtítulos de um texto.).
Nesse caso, parece ser irrelevante, se considerarmos que a maioria
das adaptações carregam com elas o título do romance adaptado.). Segundo
Robert Stam (2006), de todas as categorias de intertextualidades elencadas
por Genette (1982), a mais relevante para as adaptações cinematográficas
é a hipertextualidade, ou seja, a relação de um hipertexto com um anterior

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hipotexto, que o primeiro transforma, modifica, elabora ou estende. O hiper-
texto é considerado por Genette (1982) como aquele responsável por vitali-
zar as artes, por seu caráter de inventar novos canais, circuitos de significados
concebidos de formas mais antigas. Uma tendência recente na literatura (e
também no cinema) é reescrever um romance a partir da perspectiva de per-
sonagens secundários ou até imaginários.
Estamos em sintonia com Stam (2006) quando ele declara que, ao in-
vés de ser mero “retrato” de uma realidade pré-existente, tanto o romance
quanto o filme são expressões comunicativas, situadas socialmente e molda-
das historicamente. E é nesse sentido que o curso Literatura, cinema e outras
linguagens trabalha com as abordagens fílmicas, tratando a especificidade
da linguagem cinematográfica em estudo comparativo com a linguagem do
romance, procurando desmistificar a transposição linear e o estatuto de su-
perioridade de uma linguagem para outra.

VII – A prática interpretativa

Poderíamos apresentar a prática interpretativa entre um romance e


uma adaptação fílmica, mas optamos por concluir nosso trabalho com a apli-
cação de alguns textos poéticos que, a nosso ver, ilustram com muita proprie-
dade a questão da função e da norma estética, assim como o intrigante valor
estético. Poderíamos afirmar que o que nos levou a escolha desses nomes
foi, sem dúvida, o que seria para muitos motivo para uma não escolha, ou
seja: o estigma de poetas desumanos, antissentimentais, tecnicistas e incom-
preensíveis, obras difíceis de escritores pedantes e alheios à compreensão
dos leitores. Instiga-nos o difícil, pois o nosso tempo é de impasses e de ex-
tremas dificuldades.
Queremos uma poesia que traduza nossa época, e não mais aquela
que nos iluda com sentimentalismos temáticos. É impressionante a capa-
cidade sintética de comunicação da poesia! Em apenas quinze versos, Ma-
nuel Bandeira (1993) conseguiu poetizar questões teóricas que Mukarovsky
(1990) apresenta sobre a verdadeira arte.

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NOVA POÉTICA
(Manuel Bandeira)

Vou lançar a teoria do poeta sórdido.


Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco
[bem engomada, e na primeira esquina
[passa um caminhão, salpica-lhe o paletó
[ou a calça de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:


Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas
as virgens
cem por cento e as amadas que
envelheceram sem maldade.

19/05/1949 (Belo Belo)

A Nova Poética é uma metalinguagem dirigida àqueles que estão acos-


tumados à fruição do brim branco, da poesia fácil, feita sob encomenda pelas
expectativas do leitor. A eles, o poeta sórdido oferece a nódoa de lama no
brim. A complexidade da vida atinge a poesia: ela é prazer e desagrado. Fazer
o leitor satisfeito de si dar o desespero é acionar a tensão que advém da dife-
rença de valores entre o leitor e a obra de arte, é possibilitar ao indivíduo e à
coletividade a apreensão de outras realidades e, portanto, cultivar uma nova
sensibilidade.
Essa sensibilidade está em outro poeta. Oswald de Andrade (1991)
coloca-se entre um dos primeiros a preparar a linguagem do despojamen-
to sentimental. Em seu livro Memórias Sentimentais de João Miramar, ele
realiza aquilo que Haroldo de Campos (1964) chama de a “estética do frag-

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mentário”. Desenvolve o projeto de um livro estilhaçado, feito de elementos
que se articulam no nosso espírito à medida que vamos recompondo-o, um
livro que é praticamente a antologia de si mesmo. Somos surpreendidos pela
superpulverização dos capítulos, que produz efeito desagregador em nossa
mente, acostumada à norma da leitura linear.
Antropofagicamente, o poeta paulista soube deglutir as contribuições
vindas do estilo cubista e da técnica de montagem cinematográfica. Aliado e
propulsor confesso das artes de vanguarda, Oswald, com a técnica metoní-
mica, recombina os elementos frásicos à sua disposição, arranjando-os em
novas e inusitadas relações de vizinhança, afetando-os em seu nexo de conti-
guidade, mais ou menos como se fosse um Picasso das palavras a articular os
objetos fragmentados em sua folha-tela.
O poeta paulista continua na vanguarda se comparado à estética pós-
-moderna, que tem como um de seus eixos o fragmentário. A atualidade de
sua obra está justamente na elevação do fragmento à sua forma de expressão
substancial e, como tal, segundo Omar Calabrese (1987), é um discurso que
mediante fragmento ou sobre fragmento não exprime um sujeito, um tempo,
um espaço da enunciação, ou seja, é extemporâneo. Outra característica da
obra oswaldiana é a paródia, a sátira social, denunciando a burguesia endinhei-
rada que roda pelo mundo o seu vazio, as suas convenções, numa esterilidade
apavorante, como bem observou A. Cândido, citado por Campos (1964).
Para Haroldo de Campos (1964), existe um rarefeito fio condutor cro-
nológico, calcado no molde residual de um “Bildungsroman”, que nos oferece
– em termos paródicos – a infância, a adolescência, a viagem de formação, os
amores conjugais e extraconjugais, o divórcio, a viuvez e o desencanto medi-
tativo do herói, o “literato” memorialista cujo nome lhe dá o título.
Acreditamos que nessa obra podemos encontrar aquilo que Muka-
rovsky (1990) chama de valor estético independente, pois todos aqueles
valores que tínhamos de romance, de novela ou de conto são totalmente
dirimidos diante dessa nova ideia de texto. Confirma-se que o valor estético é
tanto maior e mais duradouro quanto menos facilmente a obra se submete a
uma interpretação literal do ponto de vista do sistema de valores geralmente
aceito na época ou no meio em questão. Vejamos alguns fragmentos do livro
Memórias Sentimentais de João Miramar (ANDRADE, 1991: 61-62).

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INDIFERENÇA

Montmartre
E os moinhos do frio
As escadas atiram almas ao jazz de pernas nuas

Meus olhos vão buscando lembranças


Como gravatas achadas

Nostalgias brasileiras
São moscas na sopa de meus itinerários
São Paulo de bondes amarelos
E romantismos sob árvores noctâmbulas

Os portos de meu país são bananas negras


Sob palmeiras
Os poetas de meu país são negros
Sob bananeiras
As bananeiras de meu país
São palmas calmas
Braços de abraços desterrados que assobiam
E saias engomadas
O ring das riquezas

Brutalidade jardim
Aclimatação

Rue de la Paix
Meus olhos vão buscando gravatas
Como lembranças achadas

ORFÃO

O céu jogava tinas de água sobre o noturno que me devolvia a São Paulo.
O comboio brecou lento para as ruas molhadas, furou a gare suntuosa e me
jogou nos óculos menineiros de um grupo negro.
Sentaram-me num automóvel de pêsames.
Longo soluço empurrou o corredor conhecido contra o peito magro de tia
Gabriela no ritmo de luto que vestia a casa.

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No ritmo oswaldiano, outro poeta escolhido foi João Cabral de Melo
Neto (1985). Embora use formas poéticas fixas, elas lembram os cantadores
populares medievais e nordestinos. João Cabral deve ser estudado dentro
da concepção do novo, pois a preocupação verbal vem em primeiro plano. A
pesquisa criadora na área do sistema verbal traz novas maneiras de encarar
a realidade artística: deforma a realidade aparente para destacar as linhas
estruturais básicas. Para ele, as palavras não são patrimônio particular que
podem ser usadas indistintamente. A educação do leitor dá-se pela pedra: o
nosso intelecto é submetido duramente à sua arguta composição, é a vida na
sua crueza verbal.
É aventura fascinante deixar nossa sensibilidade crítica lanhar-se nas
pedras afiadas – estão vivas na mobilidade das palavras: “a de poética, sua
carnadura concreta”; a do sertão, “uma pedra de nascença, estranha à alma”
(NETO, 1985:15). Registramos aqui o seu antilirismo.

ANTIODE
(contra a poesia dita profunda)

Poesia te escrevia:
Flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,

gerando cogumelos
(raros, frágeis cogumelos)
no úmido
calor de nossa boca.

Delicado, escrevia:
Flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie

extinta de flor, flor


não de todo flor,

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mas flor, bolha
aberta no maduro).

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.

Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
Como as brisas.

Sei que outras


palavras és
palavras impossíveis de poema.

Conclusão

Esperamos que a nova concepção do ensino da literatura em relação


dialógica com o cinema possa interferir no ensino interdisciplinar dos con-
teúdos, amparados pela pedagogia histórico-crítica do Currículo em Movi-
mento. Por outro lado, pretendemos tornar os nossos cursistas capazes de
compreender o significado transformador das artes e das vozes que se ma-
nifestam por meio delas, na arena discursiva do debate social, por meio da
apropriação do multiletramento artístico. O ensino da literatura deve ser
amparado por teorias que levem em consideração a questão de como a ex-
periência estética tem se manifestado na relação com o leitor. Hoje, mais do
que nunca, é uma exigência teórica e metodológica de fundamental impor-
tância considerar revitalizar a leitura dos clássicos brasileiros, no rol das obras
que nunca terminaram de dizer aquilo que tinham para dizer aos leitores do
futuro. Deve-se levar em consideração o ganho recíproco da intertextualida-
de entre os textos literários e cinematográficos e a relação dialógica entre

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leitor e texto na atualização permanente das obras, que se manifestam no
tempo grande da literatura.
Sintoma de que a literatura está viva é perceber a atualidade de es-
critores entre os quais encontramos: Oswald de Andrade, Manuel Bandei-
ra, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Machado de
Assis, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector, que nos chegam com as faces
orvalhadas em plena manhã do século XXI, mostrando-nos como as leituras
diferem a cada época e as obras mostram-se mutáveis, contrárias à fixação
numa essência sempre igual e alheia ao tempo. Instauram-se novos valores
estéticos que interferem na forma como concebemos o valor da obra literá-
ria em relação às outras artes e aos fatos do cotidiano. São as grandes obras
artísticas que nos instigam a reinventar homens de olhos livres e atentos às
possibilidades que se abrem no horizonte.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Oswa1d. Memórias sentimentais de João Miramar. 3. ed. São


Paulo: Globo, 1991.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,


1993.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética – a teoria do romance.


Trad. Aurora Fornoni Bernadini et alii. São Paulo: Editora UNESP, 1993.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.

BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. Dialogismo, polifonia,
intertextualidade: em torno de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Edusp,
1994.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das letras, 1993.

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CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. São Paulo: Difusão Europeia do
Livro, 1964.

GENETTE, Gerard. Palimpsestos a literatura de segunda mão. Trad. Luciene


Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte: Faculdade
de Letras, 2006.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, vol.2. São
Paulo: Editora 34, 1999.

MUKAROVSKY, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Tradução de


Manuel Ruas. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1990.

NETO, João Cabral de Melo. Os melhores poemas. São Paulo: Global, 1985.

PAULINO, Graça et al.. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte:


Formato Editorial, 2001.

STAM, Robert. Teoria e prática de adaptação: da fidelidade à intertextualidade.


Revista Ilha do desterro, nº 51. Florianópolis, jul./dez. 2006, p. 019-53.

ZILBERMAN, Regina. A estética da recepção e história da literatura. São Paulo:


Ática, 1989.

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LETRAMENTO LITERÁRIO: UMA SEDUÇÃO

Ivan Rodrigues Ramos 1

O artigo “Letramento literário: uma sedução” é um recorte do projeto


de pesquisa, em andamento, direcionado a alunos de uma escola da rede
pública do Distrito Federal, intitulado “A sedução do leitor poético no ensino
fundamental sob o olhar do letramento literário: um lugar para a poesia”. A
área de concentração desse projeto refere-se à linguagem e ao letramento.
O nosso interesse centra-se na teoria e na prática do letramento literário.
Um dos caminhos para a apreensão da leitura literária na qual se va-
loriza a presença do leitor que interage com o texto e o escritor – muitas
vezes dialeticamente, sob a perspectiva dos estudos sobre a teoria estética
da recepção e do efeito estético (JAUSS, 1994; ISER, 1979) – é a sedução des-
se leitor em largo e profundo (PERRONE-MOISÉS, 2006) a partir da prática
do letramento literário na escola. Por isso, apresenta-se uma proposta em
que o letramento literário ofertará um diálogo entre leitura e sedução com o
intuito de enveredar o leitor a “ler levantando a cabeça” (BHARTES, 1970, p.
26) na singularidade do poético, que trabalha palavras, sons e imagens. Por-
tanto, a pesquisa parte do pressuposto de que a composição de um projeto,
cuja temática explora a interação entre poesia e leitor, numa perspectiva do
letramento literário, possibilita seduzir os alunos a refletirem e a dialogarem
sobre a feitura e a leitura literária.

Letramento, sedução e letramento literário

O primeiro momento de desvendar as palavras é proporcionado pela


alfabetização, o segundo, que conota a condição de ser e estar no mun-
do, pelo letramento. Por isso, não basta somente decodificar o alfabeto,

1
Mestrando PROFLETRAS UFU – Orientador Dr. João Carlos Biella - UFU

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é mister “(...) também saber fazer uso do ler e do escrever, responder às
exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente - daí
o recente surgimento do termo letramento.” (SOARES, 1998, p. 20 – grifo
no original). Atualmente, faz-se necessário compreender às exigências so-
ciocomunicativas e interacionistas relativas à leitura e à escrita recorrentes
na sociedade e, por meio delas, buscar em plenitude os direitos enquanto
exercício de cidadania. Contudo, verifica-se que muitas pessoas se alfabe-
tizam, mas não incorporam o ato de ler, nem adquirem competência para
fazer uso da leitura e da escrita nas práticas sociais. Por conseguinte, essas
pessoas precisam ser seduzidas pelo letramento. Para Soares (1998, p.47),
alfabetização e letramento são ações que se complementam: “(...) tería-
mos alfabetizar e letrar como duas ações distintas, mas não inseparáveis,
ao contrário: o ideal seria alfabetizar letrando (...)”. Isto é, ao procedimen-
to tecnológico de aquisição da leitura e da escrita deve-se unir as práticas
sociais envolvidas no ato de ler e de escrever, esse processo denomina-se
letramento. Ao acrescentar a esse processo um modo de vivenciar a litera-
tura a partir da ampliação do horizonte de leitura do educando, teremos o
letramento literário.
Conforme Soares (1998), o termo letramento que utilizamos em língua
portuguesa corresponde à tradução do vocábulo inglês literacy, palavra de
origem latina: litera (letra); cy (condição, estado).

[…] adquirir a “tecnologia” do ler e escrever e envolver-se nas


práticas sociais de leitura e de escrita – tem consequências so-
bre o indivíduo, e altera seu estado ou condição em aspectos
sociais, psíquicos, culturais, político, cognitivos, linguísticos e
até mesmo econômico; (…). O “estado” ou a “condição” que o
indivíduo ou grupo social passam a ter, sob o impacto dessas
mudanças, é que é designado literacy. (SOARES, 1998, p. 18).

Letramento, portanto, condiciona o aprendizado da leitura e da escri-


ta a um estado ou condição que interfere nas práticas sociocomunicativas,
culturais, políticas e econômicas. No Brasil, o termo letramento começa a
ser utilizado com essa concepção somente em meados da década de 80 por

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linguistas e pedagogos. Primeiro com Mary Kato em 1986 e posteriormente
com Leda Tfourni em 1988, como cita Magda Soares:

Uma das primeiras ocorrências está em livro de Mary Kato, de


1986 (No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística,
Editora Ática); a autora, logo no início do livro (p. 7), diz acre-
ditar que a língua falada culta “é consequência do letramento”.
Dois anos mais tarde, em livro de 1988 (Adultos não alfabetiza-
dos: o avesso do avesso, Editora Pontes), Leda Verdiani Tfourni,
no capítulo introdutório, distingue alfabetização de letramento:
talvez seja esse o momento em que letramento ganha estatuto
de termo técnico no léxico dos campos da Educação e da Ciên-
cia Linguística. (SOARES, 1998, p. 15).

Em relação à dimensão sociocultural e política do letramento, Soares


(1998, p. 72) atesta que o letramento está nas práticas sociais que as pessoas
produzem com as habilidades de leitura e escrita. A natureza dessa dimen-
são pode ser apresentada como progressista liberal de caráter funcional ou
numa perspectiva revolucionária, como “um conjunto de práticas socialmen-
te construídas que envolve a leitura e a escrita (…), responsáveis por reforçar
ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder presentes
nos contextos sociais.” (SOARES, 1998, p. 75). A autora cita Paulo Freire como
um dos primeiros educadores a destacar, implicitamente, o poder sedutor
do letramento, visto que Freire, mesmo sem utilizar o termo letramento, ar-
gumentava que na aquisição da leitura e da escrita o alfabetizando deveria
ser sujeito e não se sujeitar ao processo de alfabetização. Paulo Freire, em
seus estudos sobre educação libertária na qual a leitura de mundo precede a
leitura da palavra, desenvolveu a ideia de práticas sociais equivalente à ideia
que encontramos no conceito de letramento. Freire defendia a concepção na
qual a aprendizagem da leitura e da escrita deve partir da leitura de mundo
por meio de uma relação dinâmica em que a linguagem esteja vinculada à
realidade. A pesquisadora Kleiman (2005, p. 19) também defende que Freire
usou o termo alfabetização com um significado próximo ao que possui o ter-
mo letramento para indicar uma prática social de uso da língua escrita.

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Consoante Coenga (2010, p. 55), Kleiman (1995), em sua conceitua-
ção sobre letramento, além de revelar a sua natureza tecnológica e social,
o relaciona à dimensão simbólica da escrita. Coenga admite que o conceito
de letramento literário está contido no conceito de letramento assumido
por Kleiman, “[...] como conjunto de práticas sociais que usam a escrita,
enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específi-
cos, para objetivos específicos (KLEIMAN, 1995, p. 19 apud COENGA, 2010,
p. 55)”. Coenga sugere que o acréscimo do adjetivo literário à definição de
Kleiman o direciona também às especificidades do letramento relacionado
à literatura:

Na aplicação desse termo para os estudos literários, acrescen-


ta-se ao termo letramento o adjetivo literário, assumindo dessa
maneira a seguinte conceituação: conjunto de práticas sociais
que usam a escrita literária, enquanto sistema simbólico e en-
quanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos es-
pecíficos (COENGA, 2010, p. 55 – grifo nosso).

O termo letramento literário, de acordo com Rosa (2011), é grafado


pela primeira vez, no Brasil, pela pesquisadora Graça Paulino no texto Fun-
ções e Disfunções do Livro para Crianças, publicado em 1997 na obra O jogo
do Livro Infantil. Em 1999, Graça Paulino, com o texto Letramento Literário:
cânones estéticos e cânones escolares, apresenta o termo letramento literá-
rio à ANPEd - Associação Nacional de Pesquisa em Pós-Graduação – na 22ª
reunião Anual. Rosa (2011) descreve como Paulino desenvolve o termo letra-
mento literário:

[...] – letramento literário – é conceituado como um “processo


ativo de apropriação da literatura enquanto construção literá-
ria de sentidos”. Para Graça, “o letramento literário configura a
existência de um repertório textual, a posse de habilidades de
trabalho linguístico-formal, o conhecimento de estratégias de
construção de texto e de mundo que permitem a emersão do
imaginário no campo simbólico” (ROSA, 2011, p. 188).

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Para Soares (1998, p. 18), o letramento é o estado ou condição de quem não
tão somente faz uso do ato de ler e escrever, mas de quem exerce e cultiva
as práticas sociais inseridas no processo da escrita e da leitura. Do mesmo
modo, o letramento literário também é revisitado, consoante Silva e Silveira
(2013, p. 96), “como estado ou condição de quem não é apenas capaz de
ler texto em verso e prosa, mas dele se apropriar efetivamente por meio da
experiência estética; saindo da condição de mero expectador para a de leitor
literário”. Essa apropriação da leitura que o letramento literário proporciona,
liberta o leitor da condição de expectador passivo e o leva a dialogar tanto
com o texto quanto com o autor, ou seja, o letramento literário seduz o aluno
a ter atitude interlocucionária com a obra literária. Nessa perspectiva, Cosson
salienta que o letramento literário é uma prática social de responsabilidade
da escola:

“[...] o processo de letramento que se faz via texto literário com-


preende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social
da escrita, mas também, e sobretudo, uma forma de assegurar
seu efetivo domínio. Daí sua importância na escola” (COSSON,
2014, p. 12)

No desenvolvimento do letramento literário na escola o aluno precisa


ter voz ativa, ou seja, a leitura literária precisa possibilitar ao aluno um diálogo
ressignificativo com as palavras, pois uma das funções do letramento literário
é proporcionar voz poética ao aluno. Não havendo esse comprometimento na
escola ao se ensinar literatura, será pouco provável que haja também letra-
mento literário. Tanto o professor de língua portuguesa e literatura, em seu
plano de ensino, quanto a escola em seu Projeto Político Pedagógico devem ter
ciência de que o letramento literário é impreterível para que a literatura seja
vivenciada pelo estudante como uma prática social de leitura literária plurissig-
nificativa. Por isso, o letramento literário precisa ser pensado para o momento
presente que vivencia o estudante e ir para além dele, pois o letramento está
relacionado à apropriação do ato de ler e escrever refletido nas práticas inte-
racionistas culturais, políticas, históricas e sociocomunicativas. Essas práticas

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sociais são imperativas para que o letramento se realize progressivamente jun-
to ao processo de aprendizagem do aluno. A leitura literária na escola insere,
mesmo que circunstancialmente, o aluno em grupos cujos horizontes sociocul-
turais são largos e diversificados, pois amplia seu conhecimento de mundo e,
sobretudo, potencializa a sua linguagem, seu modo de ser, de pensar e de agir.
Consoante Cosson, com o letramento literário, o aluno, além de conhecer o
mundo, tende a encontrar a si mesmo nesse mundo:

Na leitura e na escrita do texto literário encontramos o senso de


nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura
nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o
mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma
experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser
reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem re-
núncia da minha própria identidade. No exercício da literatura,
podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos
romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência, e
ainda assim, sermos nós mesmo. É por isso que interiorizamos
com mais intensidade as verdades dadas pela poesia e pela fic-
ção. [...] Ou seja a ficção feita palavra na narrativa e a palavra
feita matéria na poesia são processos formativos tanto da lin-
guagem quanto do leitor e do escritor. (COSSON, 2014, p. 17).

Essa experiência a ser realizada que a literatura propõe, exposta na cita-


ção acima, permite uma confluência entre texto, leitor e escritor. Interação que
se processa em ambientes sociais diversificados, entretanto, a escola apresen-
ta uma atmosfera privilegiada para o desenvolvimento do letramento literário
durante a educação de crianças, jovens e adultos. Nesse sentido, o letramento
literário manifesta-se como prática escolar com o intuito de reorganizar a pró-
pria escolarização da literatura, pois, se a literatura está na escola, ela deve
ocupar maior espaço e melhor compreensão de si mesma. Dessa forma, des-
tacamos três situações escolares que a prática do letramento literário procu-
ra reorganizar, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio: a) as
aulas de leitura pela leitura sem objetivo; b) as leituras extraclasse das fichas

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literárias “condenadas por cercear a criatividade ou podar o prazer da leitura,
são no geral voltadas para a identificação ou classificação de dados” (COSSON,
2014, p. 22); c) as interpretações literais propostas nos livros didáticos. Essa
reorganização deve iniciar-se pela revisão da acepção de literatura que funda-
menta o ensino dessa disciplina na instituição escolar. Em relação ao ensino
fundamental, há na concepção de literatura uma generalização entre o ato de
ler e a arte literária. Já no ensino médio, por apresentar uma visão conteudista
consolidada, a noção de literatura confunde-se com a história da literatura e
torna-se estereotipada, em parte, pelo estudo das escolas literárias. A exposi-
ção da literatura baseia-se na comparação entre estilos de época, reverência e
acanhamento ao cânone literário e descrição bibliográfica dos autores. As lei-
turas de um romance ou de parte dele (prática mais comum) são sugeridas, por
exemplo, se forem antes citadas em algum programa de vestibular. Nesse caso,
a maioria dos estudantes secundaristas (vestibulandos) optam por resumos ou
por análises pré-fabricadas dessas obras. Para Cosson, essas situações ampliam
a crise que se alojou no ensino da literatura:

[...] estamos diante da falência do ensino da literatura. Seja


em nome da ordem, da liberdade ou do prazer, o certo é que
a literatura não está sendo ensinada para garantir a função es-
sencial de construir e reconstruir a palavra que nos humaniza
(COSSON, 2014, p. 23).

Conforme escreve Cosson, nos anos iniciais principalmente, mas também


nos anos finais do ensino fundamental, o sentido da literatura é tão amplo
que acolhe todo tipo de texto que se aproxime da poesia ou da ficção, des-
de que sejam textos contemporâneos e divertidos. A atividade literária com
esses textos restringe-se, no mais das vezes, apenas à fruição da leitura. Para
Cosson, a leitura de um texto, sem um objetivo claro, não deve ser conside-
rada atividade escolar de leitura literária:

Não é possível aceitar que a simples atividade da leitura seja


considerada a atividade escolar de leitura literária. Na verdade,
apenas ler é a face mais visível da resistência ao processo de le-

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tramento literária na escola. [...] Os livros, como os fatos jamais
falam por si mesmos. O que os fazem falar são os mecanismos
de interpretação que usamos, e grande parte deles são apren-
didos na escola (COSSON, 2014 p. 26).

Esses mecanismos de interpretação - manifestados por Cosson - apren-


didos na escola também são objetos de estudo de teorias relacionadas às es-
tratégias cognitivas e metacognitivas de leitura. Consoante Kleiman (2008), a
leitura precisa nascer de uma necessidade clara para chegar a um propósito
com o intuito de alcançar significado e sentido; do contrário a leitura torna-
-se uma atividade mecânica, sem objetivo e desprendida de expectativa. A
autora afirma que para melhorar a capacidade de compreensão e memória é
eficaz que se forneça objetivos capazes de gerar expectativas positivas ao se
determinar algum tipo de leitura aos alunos. De acordo com Kleiman (2008),
as atividades como revisão de conhecimentos prévios, estabelecimento de
objetivos, reformulação de hipóteses, entre outras são de natureza meta-
cognitiva, por isso são procedimentos que pressupõem reflexão sobre o ato
de ler e compreender. Elas se opõem aos automatismos presentes no passar
de olho dos alunos que leem sem um determinado propósito e que muitas
vezes esse mecanicismo é reconhecido como leitura na escola. Essa crítica
que Kleiman salienta em relação à leitura pela leitura desenvolvida na escola
torna-se mais evidente quando se trata da leitura de textos literários, pois
não há literatura quando o aluno apenas passa os olhos. O aluno fica, desta
forma, mais distante e resistente ao letramento literário. Quando o aluno lê
um texto literário sem expectativa, o vazio se instala, a leitura se torna insos-
sa, sem sabor e sem propósito. Para Kleiman, se não há propósito, tampouco
haverá leitura:

[...] a leitura que não nasce de uma necessidade para chegar a


um propósito não é propriamente leitura, como acontece fre-
quentemente na escola, estamos apenas exercendo atividades
mecânicas que pouco tem a ver com significado e sentido. Aliás
essa leitura desmotivada não conduz à aprendizagem (KLEI-
MAN, 2008, p. 35).

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E se não há leitura literária, não poderá haver letramento literário. Um
caminho apontado por Cosson (2014) para que o ensino da literatura seja
pautado pelo letramento literário é o desenvolvimento da metodologia de-
nominada pelo autor de sequência básica aplicada ao ensino fundamental e
a sequência expandida aplicada ao ensino médio. Para a sequência básica,
Cosson estabelece quatro percursos: motivação, introdução, leitura e inter-
pretação. A motivação gera uma situação, “moldura”, que permite ao aluno
uma interação com a palavra de modo criativo, pois a intenção é preparar o
aluno a entrar no texto. Segundo Cosson, a motivação gera a necessidade
de imaginar uma solução para algo ou de prever determinada ação de modo
a conectar o aluno ao mundo da ficção e da poesia e a iniciar vivências lite-
rárias relativas ao texto a ser trabalhado. Após a motivação, processo que
ocorre em no máximo uma aula, inicia-se a introdução. Esse é o momento no
qual autor e obra são apresentados. A apresentação do autor da obra deve
ser sucinta, pois uma exposição prolixa com detalhes bibliográficos torna-se
enfadonho para o aluno. Cosson (2014, p. 60) lembra “que a leitura não pre-
tende reconstituir a intenção do autor ao escrever aquela obra, mas aquilo
está dito para o leitor”. A obra deve ser exposta pelo professor de modo
didático com o intuito de instigar o aluno a descobrir o que há nas linhas e
entrelinhas daquele livro.
Assim como a motivação, a introdução também não deve ser longa.
A introdução é uma ponte para iniciar a leitura. Essa etapa precisa de uma
atenção especial tanto do professor quanto do aluno. Para Cosson (2014),
“(...) a leitura escolar precisa de acompanhamento porque tem uma direção,
um objetivo a cumprir e esse objetivo não deve ser perdido de vista”. Tão
importante quanto a leitura é a interpretação, última etapa e mais complexa
da sequência básica. A interpretação no campo da literatura é complexa por
haver um elevado número de correntes (algumas que se complementam e
outras não) dispostas a compreender os limites da obra literária. A interpre-
tação defendida por Cosson na perspectiva do letramento literário divide-se
em dois momentos: um interno e outro externo. O primeiro foca na decifra-
ção das partes constituintes do texto até chegar à absorção geral da obra,
isto é, o momento interior é o encontro do leitor com o texto, classificado

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por Cosson como o núcleo da experiência da leitura literária e o momento
externo, por sua vez, ratifica o caráter social da fase interior da interpretação
ao consumar e materializar nesse estágio exterior a interpretação como ato
de construção de sentido em uma comunidade leitora.
Para Zilberman (2016), o momento que Cosson (2014) denomina como
interno constitui uma atividade sintetizadora. O leitor ciente de suas próprias
dimensões expande, a partir de sua imaginação, as fronteiras do conhecido.
O momento externo constitui o ângulo social da leitura em que o leitor cole-
tiviza sua experiência.

[...] o ângulo social decorre dos efeitos desencadeados. O lei-


tor tende a socializar a experiência, cotejar as conclusões com
as de outros leitores, discutir preferências. A leitura estimula
o diálogo (...) aproxima as pessoas e coloca-as em situação de
igualdade, pois todos estão capacitados a ela (ZILBERMAN,
2016, p. 26).

A instituição educacional deve ser atuante, incentivar, proporcionar e


valorizar projetos voltados para o despertar literário; o professor precisa se-
duzir o seu aluno à leitura e à feitura de textos literários/poéticos para que
sejam atores/autores no processo de letramento literário. O aluno deve com-
preender por que e para que está lendo, interferir significativamente nessa
leitura e de modo recíproco deixá-la agir, sem receio, uma vez que estará
inquietado pelas palavras, pela poesia, pelo romance, pela ficção.
O Letramento literário, consoante Cosson (2016), faz parte de um pa-
radigma contemporâneo, denominado de paradigma do letramento literário
ou paradigma experiencial e que objetiva, sobretudo, ampliar a competência
do leitor. A partir dessas reflexões sobre o paradigma experiencial ou para-
digma do letramento literário defendida por Cosson nós estamos pensando
a poesia como uma linguagem sedutora em si mesma no interior da lingua-
gem literária. Dessa forma, a poesia constrói e desconstrói os sentidos não
somente da palavra, mas também da linguagem. A linguagem inserida aqui
comunga com a percepção de literatura de Roland Barthes (1980), a lingua-

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gem que carrega toda forma de poder e o suporta. À poesia interessa o poder
da palavra. A (des)construção que ocorre na poesia - tanto no ato de escre-
vê-la quanto no ato de lê-la - inicia-se com a sedução do escritor, envolve a
situação sociocomunicativa e seduz o leitor. Essa (des)construção ocasiona,
consoante Barthes (1980), na própria língua uma trapaça salutar. Porque na
língua, servidão e poder se embaralham inelutavelmente; nessa circunstân-
cia somente poderá haver liberdade fora da linguagem, pois para Barthes
(1980), a linguagem humana é um lugar fechado, sem exterior. Para sair dela,
Barthes cita duas (im)possibilidades: a mística do sacrifício de Abraão descri-
ta por Kierkegaard como ato inédito, vazio de toda palavra ou:

[...] pelo amen nietzschiano, que é como uma sacudida jubilató-


ria dada ao servilismo da língua (...). Mas a nós, que não somos
nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim
dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça
salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução perma-
nente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura. En-
tendo por literatura não um corpo ou uma seqüência de obras,
nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo
complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever
(BARTHES 1980, p. 14 e 15).

O letramento literário revela-se na convergência entre o ato de ler/


escrever textos literários, a reflexão desse processo e a prática social intera-
cionista entre escola e sociedade. Podemos comparar o letramento literá-
rio a uma peça teatral encenada, e o estudo da literatura a uma leitura dra-
matizada dessa mesma peça. Na leitura dramatizada a personagem ganha
apenas voz, enquanto no teatro a personagem precisa ter ato; do mesmo
modo, no letramento literário, é preciso ter atitude leitora para realizá-lo.
Dessa forma, a literatura proporciona um modo privilegiado de inserção no
mundo da leitura e da escrita por meio de uma linguagem plurissignifica-
tiva. Pois, como afirma Kleimam (2010, p. 51) “O letramento nos permite
aprender a continuar aprendendo”, de sorte que o letramento literário é

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um continuum espiral na busca do ser, do outro e do devir na literatura e da
sedução do leitor.
Sedução que, segundo Perrone-Moisés (1990), está na morada da lin-
guagem, pois esta, ao processar a sedução, “é o próprio lugar da sedução”.
É na linguagem que se constrói todo o cenário da sedução, desde o jogo das
palavras, com desvios e atalhos semânticos, à fantasia ou decepção final de
um sentido. O jogo sedutor da linguagem impõem ao leitor regras múltiplas
e ambíguas, pois entre o livro, o autor e o leitor: quem é que seduz quem?
Para Perrone-Moisés, há filtros na sedução, filtros amatórios:

Seduzir (do latim seducere) quer dizer, literalmente, “levar para


o lado”, “desviar do caminho”. Das acepções registradas pelo
Aurélio, uma me seduz: “desonrar, recorrendo a promessas, en-
cantos ou amavios. [...] As línguas estão carregadas de amavios,
de filtros amatórios, que não dependem nem mesmo de uma
intenção sedutora do emissor. O próprio dicionário, que se supõe
provido das mais honestas intenções, parece levar-nos, sorratei-
ramente, a infinitos desvios (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 13).

Por analogia, o letramento literário desvia-se do caminho para tornar-


-se o próprio caminho da sedução do leitor.

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Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. Aula. Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. 14 ed.


São Paulo: Editora Cultrix, 1980.

_______. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva,


2015.

COENGA, Resemar. Leitura e letramento literário – diálogos. Cuiabá, MT:


Carlini e contato, 2010.

COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto,


2014.
________. Literatura: a formação de um leitor todo seu. In: www.ceale.fae.
ufmg.br/ceale-debate-videos

FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam.


44 ed. - São Paulo: Cortez, 2003.

ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução:


Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996, vol. 2.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria


literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática. 1994
(Série temas, v. 36).

KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 11. Ed.


Campinas: Pontes, 2004.

PERRONE-MOISÉS, Leila. Promessas, encantos e amavios. In: Flores da


escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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SILVA, Antonieta Mírian de Oliveira Carneiro, SILVEIRA, Maria Inez Matoso.
Letramento literário na escola: desafios e possibilidades na formação
de leitores. In: Revista Eletrônica de Alagoas. V. 01, nº 1 www.educacao.
al.gov.br/

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2014.

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RENATO RUSSO E O DIÁLOGO COM A POESIA:
UMA PRÁTICA DE ENSINO

Julliany Alves Mucury1

Nosso diálogo começa a partir da seguinte premissa de Ana Regina


Gomes, a fim de questioná-la: “os alunos gostam de ler, mas não de como
a literatura é trabalhada na escola”. E lanço algumas provocações para nos-
so diálogo hoje: “Se nossos alunos gostam de ler, o que eles consomem?
Best-sellers, quadrinhos, contos, crônicas, letras de canção? E se consomem,
como interpretam e ressignificam isto para sua formação como indivíduos?
E os que não gostam de ler, onde nasce esse repúdio?”. Pensando as estra-
tégias de ensino a que temos acesso hoje e a prática diária em sala de aula,
podemos inferir que há um contingente de leitores aí, de fato, mas que con-
somem em massa títulos que, por vezes, não são contemplados nos currícu-
los escolares. Há uma gama de alunos que leem e consomem textos rápidos
na internet, alguns via celular. O consenso geral, no entanto, que cabe a nós
educadores, é o de que precisamos mais do que outrora aprimorar nossos
esforços para encantar um público que está disperso, para o qual o hábito de
leitura é falho, e esse vão literário gera o fracasso não só do indivíduo como
aluno, mas como cidadão.
Partindo dessa ideia, pensando como educadores engajados em pro-
piciar experiências significativas de leitura a nossos alunos, temos de enca-
rar ainda uma triste realidade, cito Rocco e Marcuschi: “o aluno brasileiro lê
pouco, entende mal e escreve com dificuldade sobre suas opiniões e expe-
riências”. Sempre duvidando das generalizações, mas cientes da realidade
desafiante das salas de aula em todo o país, trabalhar o lúdico em meio ao
caos é nossa tarefa mais árdua. Evoco Paulo Freire para ser nosso guia, quan-
do reafirma a necessidade de que educadores e educandos se posicionem

1
Mestre em Literatura pela UnB, Doutoranda em Literatura pela UnB

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criticamente ao vivenciarem a educação, superando posturas ingênuas ou
“astutas”, negando de vez a pretensa neutralidade da educação.
Octavio Paz, ao discorrer sobre o labor poético, define a poesia como
“conhecimento, salvação, poder, abandono”. Em sua concepção, o poema
seria capaz de transformar o mundo, pois “a atividade poética é revolucioná-
ria por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior”. O
poder da poesia não se questiona, mas a pergunta que nos fazemos é como
fazer essa beleza atingir nossos alunos, como prover uma experiência de lei-
tura frutífera e engajada por parte deles? Trago hoje aqui a ideia de trabalhar
a poesia das letras de canção como ferramenta didática, tendo a base dos
“Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Médio (2000), que
pontuam a força da revolução tecnológica, criando novas formas de sociali-
zação e até mesmo de identidade individual e coletiva”, (citando trecho do
texto de Márcia Molina), para aproximar o universo particular de cada aluno
às aulas de Língua Portuguesa, mais especificamente, de literatura.
Meu objeto de estudo acadêmico é o compositor Renato Russo, voca-
lista da banda Legião Urbana, falecido em 1996. Assim, minha proposição de
trabalho em sala de aula parte da produção artística de Russo, como poesia
que revela este mundo, criando outro, dentro do entendimento de Paz, que
discutimos acima. O gênero musical com o qual Renato trabalhou é o rock
and roll. O rock é heterogêneo, varia individual e coletivamente, para que se
adapte ao tempo e ao espaço em função do processo de fusão (ou choque)
com a cultura local e com as mudanças que os anos provocam de geração
em geração. Cito o historiador Paulo Chacon: “Mais polimorfo ainda que seu
mercado básico – o jovem –, é dominado pelo sentimento da busca que difi-
culta o alcance ao porto da definição e da estagnação”.
Para Ricardo Piglia, perguntar-mo-nos hoje “o que é um leitor?”, exige
que vejamos o quadro inteiro, com aquilo que o cerca. O leitor está diante
de uma infinidade de possibilidades paralelas à leitura de um livro, diante
de uma proliferação de informações desconexas e reduzidas a poucos ca-
racteres, que ele absorve de modo horizontalizado, sem se aprofundar. No
entanto, precisamos exigir dele, como aluno, mais profundidade, o mergulho
vertical que pede atenção, concentração e pausa, neste mundo cada vez mais

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acelerado e vivido em superfície. O ato de ler transporta o indivíduo, este ato
em si é irreal. Compete também a nós, educadores, colaborar para que essa
experiência se complete, “desenvolvendo um indivíduo competente critica-
mente, que sabe se comunicar e buscar conhecimento” (PNE, p. 12). Para a
professora Maria Inês Campos, “se o ensino de literatura se centrar na leitura
dos textos e for sustentado por teorias literárias e práticas pedagógicas que
contemplem a interação do leitor com o texto, é possível levar os alunos ao
desenvolvimento do prazer do texto, do prazer estético” e é a isso que nos
propomos aqui.
Renato Russo soube captar o mal-estar (que também era o dele) da
juventude de um período de transição marcado pela ditadura e por um es-
paço urbano, o de Brasília, planejado, artificial, povoado por jovens vindos
dos mais diferentes pontos do globo e apresentar às massas um texto reflexo
delas mesmas. Como compositor/poeta representou bem o entendimento
de Octavio Paz acerca do seu papel, cito: “o poeta não se limita a descobrir o
presente; desperta o futuro, conduz o presente ao encontro do que vem; cet
avenir sera matérialiste (isto virá materialista). A palavra poética não é me-
nos materialista do que o futuro anuncia: é movimento que gera movimento,
ação que transmuta o mundo material.”.
Sua poesia compõe um projeto poético-musical que visa bordar sobre
um tecido cultural consagrado, mediante releituras de obras literárias, da mi-
tologia grega, da herança judaico-cristã, enfim, um novelo cultural já absorvi-
do, que desencadeia um processo de significação a partir do emaranhado das
linhas que as letras das canções de Renato Russo apresentam, cenário perfei-
to para servir de base para análises em diferentes direções, no contexto de
sala de aula. Há como perfilar um eixo temático no conjunto de sua trajetória
poética, pois que questões sobre ética, sentimento amoroso, política e hu-
manidade são recorrentes, tendo a perspectiva social como base. Segundo
depoimentos do autor, estraídos do livro de Simone Assad, esses elementos
encontram-se materializados em uma linguagem simples, possibilitando um
contato maior com seu público, portanto, com alunos de diferentes faixas
etárias.

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Letra de canção e poesia

Renato compôs letras aparentemente simples, mas que rendem diálo-


gos interessantes em sala de aula. Quando os textos elencados para a prática
em sala de aula tocam o imaginário do aluno, ativam sua atenção e reco-
nhecimento, deixa de ocorrer a relação monológica e monótona entre a li-
teratura e o sujeito que a apreende, todos falam e pensam sobre essa forma
de expressão artística, todos agora dialogam, tornamos, portanto, o ato de
ensinar, dialógico. Aqui, hoje, nosso foco é analisar o uso das letras de canção
compostas por Russo e apresentar o caminho a ser construído em conjunto
na análise delas.
Nosso enfoque hoje recairá em Faroeste Caboclo. Para Renato Russo,
“Faroeste Caboclo” é um pouco de “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil, cito
trecho: “Foi no parque / Que ele avistou / Juliana / Foi que ele viu / Foi que
ele viu / Juliana na roda com João / Uma rosa e um sorvete na mão / Juliana
seu sonho, uma ilusão / Juliana e o amigo João...”,
e
“Aquela coisa”, de Raul Seixas, cito também: “Minha cabeça só pensa
aquilo que ela aprendeu / Por isso mesmo, eu não confio nela eu sou mais eu
/ Sim... pra ser feliz e olhar as coisas como elas são / Sem permitir da gente
uma falsa conclusão / Seguir somente a voz do seu coração”,
Tudo isso juntado à tradição oral do povo brasileiro. “Brasileiro adora
contar história e eu também queria imitar o Bob Dylan. Eu queria fazer a mi-
nha Hurricane”, afirmou Renato Russo, em 1990.
“Hurricane” é o poema que Dylan escreveu em conjunto com Jacques
Levi para narrar a trágica história de Rubin “Hurricane” Carter, pugilista norte
americano negro que teve uma ascensão incrível neste esporte em meados
da década de 1960 e por isso acabou acusado de um crime, pelo qual respon-
deu, e somente depois de cerca de vinte anos cumprindo a pena, e sempre
alegando inocência, foi libertado. Essa história foi eternizada nos versos de
Dylan e sua canção tornou-se emblema das injustiças cometidas por precon-
ceito em uma época de morte e violência nos Estados Unidos por querelas
raciais. Os versos musicados de Hurricane somam mais de oito minutos de

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duração e inauguram um fenômeno que respinga na composição de “Faroes-
te Caboclo”, as músicas que quebram os ditames de tempo do mercado fono-
lógico e seduzem o público, inclusive quando executadas nas rádios lembre-
mos que Faroeste Caboclo tem 9 minutos.
O personagem é o herói dramático João de Santo Cristo, cujo nome, de
referência bíblica, já revela sua saga de sofrimento. Há sangue, suor, amor,
lágrimas e redenção, quase uma fórmula de telenovela, reeditada para servir
de poema canção, com um final trágico para a história de amor com Maria
Lúcia, moldada pelos desencontros da prisão de João e a traição com Jere-
mias, traficante concorrente com quem ela acaba tendo um filho.
Cito o trecho final: “O povo declarava que João de Santo Cristo / Era
santo porque sabia morrer / E a alta burguesia da cidade não acreditava na
história / Que ele viram da TV // E João não conseguiu o que queria / Quando
veio pra Brasília com o diabo ter / Ele queria era falar com o presidente / Pra
ajudar toda essa gente que só faz // Sofrer”.
Tema conhecido e reciclado por Russo em moldes de um faroeste ur-
bano, que acontece na utopia frustrada da vinda de João de Santo Cristo para
a capital do país, essa canção tornou-se denúncia do que vinha acontecendo
nos arredores do Plano Piloto (centro do Distrito Federal, cercado de cidades
dormitório – as cidades satélite, algo como São José de Ribamar e São Luís) e
também da falsa integração entre os playboys e os que ousam acreditar que
são inseridos nesse grupo restrito dos “filhinhos de papai” que residiam na
área nobre da cidade e configuravam o grupo dos “rebeldes sem causa”. Nun-
ca punidos, são retratados mais uma vez em protesto diante de uma máquina
social feita de engodos, que pune apenas os que não dispõem de privilégios
e consolida uma elite que se compadece falsamente (quando assistem pela
TV, nos sofás de suas casas), com o drama da violência cotidiana do entorno.
O trabalho proposto para sala de aula é a análise da letra desta canção
e da letra de “Hurricane”, pedindo ao aluno que relate casos semelhantes
de injustiça social que tenham acontecido em sua região ou em nosso país.
Pode-se também propor neste momento que o aluno traga para sala de aula
um RAP (não podemos deixar de pensar em narrativas como “Diário de um
detento”, dos Racionais Mc’s) ou qualquer outra produção musical que dialo-

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gue com Russo e Dylan, até mesmo de autoria do próprio aluno, o que seria
ainda mais enriquecedor.
O intuito aqui é despertar o aluno para a maneira como a arte repre-
senta de maneira poética a realidade, por pior que esta se apresente. Há
também a possibilidade de diálogo com “Morte e Vida Severina”, de João
Cabral de Melo Neto, e “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles,
proposição feita pelo professor ao aluno ou mesmo provocada numa primei-
ra instância para que o aluno traga suas constatações diante das similitudes
percebidas nessas narrativas poéticas e as letras de canção trabalhadas em
sala de aula.
Há um mistério neste texto, no íntimo do eu representado e do eu
autor, no outro visto pelo prisma de uma representação, nos cacos de uma
geração que foram captados por Renato Russo e fizeram-se todos elementos
de um eu em colisão consigo mesmo. As particularidades e as condições im-
postas aos sujeitos que fizeram a década de 1980 podem ser lidas nas obras
de Russo. Ele, representante dessa geração, viveu e contou em suas letras o
vivido, fez da realidade poesia e isso permite o deslocamento da letra da can-
ção para o discurso acadêmico, a fim de melhor perceber os fatos narrados
que representam um sujeito e seu tempo histórico. Sua arma foi a palavra e
o gênero que escolheu, o rock brasileiro, tornou-se pop e o que eclodiu dessa
evolução foi batizado de pop-rock, pura arte pop, na qual o entretenimento e
o consumo surgiram como principais objetivos, diluindo-se no lucro e na efe-
meridade do mercado altamente rotativo. A arte como manisfesto do sujeito,
seu maior papel.
O sujeito que Renato Russo evocou como persona (eu-lírico, performer,
homem público nas entrevistas) foi, indo além, ícone de um tempo de mudan-
ças radicais para os indivíduos. O fim da ditadura no Brasil impôs uma nova
postura, trouxe a revolta, a palavra que havia sido censurada, os resquícios da
impunidade experimentada em seus limites e depois houve como que um es-
tado de inquietação que gerou um olhar para si, o eu em detrimento do pensa-
mento coletivo, a dor interior, pelos amores perdidos, pela existência frustrada
e sem rumos, um abismo sem definições de causa. A poesia desse novo tempo,
sob o manto histórico sob o qual ela se deita, ajuda a entender esse novo sujei-
to, juntas – poesia e história – tornam possível “compreender”.

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Concluindo o inconcluso

Trabalhar as letras de canção em sala de aula como munição para diá-


logos diversos com os alunos é apenas uma sugestão possível para enrique-
cer o cenário de sala de aula quando o assunto é literatura. As letras aqui
apresentadas são esboço de uma extensão infinita, de um campo sem fim de
possibilidades que se abre ao professor para causar essa aproximação com
o aluno. Este sujeito do qual falamos hoje é atingido por referências várias,
pouco absorvidas, o que gera uma necessidade de irmos além nos projetos
didáticos. Interdisciplinariedade e contextualização são ferramentas que usa-
mos aqui para nos aproximar da LDB e dos PCNs, evidenciando com o uso
das letras de canção expansões possíveis com outras disciplinas e temas. Não
digo, com isso, que teremos vitória e alunos ávidos por leitura após o proces-
so, acredito apenas, como Freire, que antes da leitura do livro temos de criar
uma leitura do outro, daquilo que me envolve, capacitando linguisticamente
e tornando sensível este indivíduo, para quiçá torná-lo, também, um leitor.
O professor é o regente desta atuação em sala de aula e cabe a ele
expandir ou não os recursos didáticos possíveis. Não se trata apenas de apa-
ratos tecnológicos, mas de explosão de temas a partir de um só texto, como
extrapolar um ideário sem que se tenha recursos como televisão, projetor
ou internet. Essa proposta parte da motivação para que o outro dialogue
comigo, o professor com seu aluno, sempre levando e trazendo suas caracte-
rísticas regionais, observando a sociedade, a cultura, a economia deste grupo
que se apresenta diante do educador, como prevê nossa LDB. Desde o ensi-
no fundamental perseguimos essas habilidades em nós e nos alunos, para
expandi-las no ensino médio, sujeitos a todos os tipos de carência de recur-
sos e, por vezes, de solidariedade com nossas propostas. É um embate a ser
vencido cotidianamente, tecendo e desfazendo nossos tapetes imaginários e
nossas motivações pessoais, à maneira de Penélope, à espera de seu Ulisses,
na “Odisseia”, de Homero.

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Referências bibliográficas

CHACON, Paulo. O que é rock. São Paulo: Editora Brasiliense 1982.

HOMERO. Odisseia e Ilíada. 2 Volumes. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira


2015.

MEIRELES, Cecília. Os melhores poemas de Cecília Meireles. 3. ed. São Paulo:


Global,
1988.

NETO, João Cabral de Melo. João Cabral de Melo Neto - Obra completa. Rio
de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

PIGLIA, Ricardo. O último leitor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

PNE. Disponível em no portal do INEP: portal.inep.gov.br. Brasília, 1998.

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O PAPEL DA PESQUISA EM REGISTRAR
MEMÓRIAS E APONTAR PERSPECTIVAS PARA UMA
EDUCAÇÃO IGUALITÁRIA E INCLUSIVA

Kelly Fabíola Viana dos Santos1

Todo professor comprometido com uma educação de qualidade, igua-


litária e inclusiva, deve levar em consideração duas vertentes de seu traba-
lho: os processos de ensino e aprendizagem e a pesquisa. Dessa forma, não
basta a esse professor obter domínio dos conteúdos e do currículo de sua
área específica, pois ele percebe a necessidade de relacionar os conteúdos
e o currículo ao contexto sócio educacional de seus estudantes, bem como
aos diversos temas e dilemas da sociedade contemporânea. O processo de
ensino e aprendizagem, especialmente na atualidade, caracteriza-se pelo di-
namismo e pela rapidez de acesso a informações. Esse contexto contribui
para a necessidade de formação didático-pedagógica contínua do professor
e também formação científica, propícias para que ele se torne um professor
pesquisador.
A fim de melhor abordarmos o tema professor pesquisador, trazemos
o conceito de pesquisa, que significa investigação profunda e fundamenta-
da de um determinado assunto. As atividades de pesquisa são variadas e
podem ter como objetivo a compilação e exame crítico de dados e da lite-
ratura existente sobre o assunto; ou a confirmação de uma hipótese. Para
o desenvolvimento de pesquisas, foram criados os métodos científicos, que
fornecem orientações sobre os procedimentos de investigação e exposição
de um tema.
Dessa forma, o professor pesquisador, seguindo um método científico,
ou por seus próprios métodos de investigação, busca elaborar ou expor de

1
Doutoranda em Literatura pela UNB. Professora de Artes pela SEEDF. Email: kvyanna@
gmail.com

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maneira elucidativa um conhecimento que poderá ser usado em benefício de
uma coletividade, em contexto atual e para as gerações futuras. As ativida-
des de pesquisa proporcionam novas interpretações, possibilitam abertura
à diversidade de entendimentos em relação a um assunto, derrubam mitos
e apontam novos paradigmas. Além disso, a pesquisa pode assumir o papel
de registrar memórias e apontar perspectivas. Quando se trata de tornar a
educação mais igualitária e inclusiva, a pesquisa tem de fazer parte da rotina
de todos os envolvidos com a prática educacional, e daqueles que se compro-
metem com esse objetivo.
Atualmente, até mesmo os estudantes do ensino regular apresentam
necessidades de aprendizagem diferenciadas e o sistema educacional se vê
diante do desafio de proporcionar educação de qualidade em contexto de
excesso de informação. Cada vez mais se percebe a necessidade de debate
sobre esse assunto, no intuito de que a escola se torne um espaço em que as
pessoas possam, de fato, produzir, adquirir e expor conhecimentos. O progra-
ma Currículo em Movimento, em seus pressupostos teóricos, observa que

Os(as) estudantes que frequentam nossas escolas e salas de


aula hoje são muito diferentes dos(as) estudantes de épocas
anteriores por apresentarem saberes, experiências e interesses
muitas vezes distantes do que a escola na sociedade atual privi-
legia em seus currículos. Esse(s) novo(a) estudante requer outra
escola, outro profissional, outra relação tempo-espaço escolar.
A não observância desses elementos pode estar na gênese de
resultados dos desempenhos escolares dos(as) estudantes, ex-
pressos pelos altos índices de reprovação, evasão e abandono
escolar de uma parcela significativa da população que à escola
teve acesso, mas que nela não permanece. Ou, quando perma-
nece, não obtém o êxito desejado [...] (DISTRITO FEDERAL)2

Em meio à parcela da população que tem acesso à escola, mas que


enfrenta dificuldades em nela permanecer e, quando permanece não obtém

2
Texto dos cadernos do Currículo em Movimento (sem data) – Pressupostos Teóricos

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o êxito desejado, encontram-se os estudantes com altas habilidades/super-
dotação. São pessoas que, por suas características peculiares em relação à
obtenção e expressão de conhecimentos, necessitam de um atendimento di-
ferenciado para que possam desenvolver os seus potenciais de forma plena e
adequada.
O Atendimento Educacional Especializado em Altas Habilidades/Su-
perdotação (AEE-AH/SD) está inserido no âmbito da educação inclusiva e
deve fundamentar-se pelos princípios que a orientam, ou seja, conforme o
que preconiza as diretrizes do currículo em movimento da Educação Básica –
Educação Especial:

[...] fundamenta-se em princípios de equidade, de direito à


dignidade humana, na educabilidade de todos os seres huma-
nos, independentemente de comprometimentos que possam
apresentar em decorrência de suas especificidades, no direi-
to à igualdade de oportunidades educacionais, à liberdade de
aprender e de expressar-se, e no direito de ser diferente. (DIS-
TRITO FEDERAL)3

Diferentemente de outras especialidades do Ensino Especial, em re-


lação ao ingresso/matrícula no sistema regular de ensino, os alunos com al-
tas habilidades/superdotação não costumam encontrar obstáculos. Entre os
obstáculos enfrentados por essa população encontra-se a sua invisibilidade
dentro do espaço escolar. Muitas vezes estes indivíduos passam desperce-
bidos no ambiente escolar, por não apresentarem grandes dificuldades de
aprendizagem ou de socialização. Sendo assim, apenas quando apresentam
certos desvios comportamentais, decorrentes de suas características, é que
os estudantes com altas habilidades/superdotação passam a ser notados e,
quem sabe, encaminhados a um atendimento específico.
A razão por que, muitas vezes, os estudantes com altas habilidades/
superdotação se encontram em situação de omissão e exclusão dentro do
próprio sistema de ensino se deve, em parte, aos mitos que foram sendo

3
Texto dos cadernos do Currículo em Movimento (sem data) – Educação Especial

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construídos em torno desse assunto. Mitos, quando naturalizados cultural-
mente, acabam por engessar as ideias e ações que são imprescindíveis para
a realização de mudanças. Portanto, faz-se necessário derrubar os mitos para
ensejar a mudança de paradigmas.
A pesquisadora Ângela Virgolim alerta, em seus estudos, a respeito das
inúmeras falsas concepções que permeiam o tema da superdotação. Atual-
mente, tem-se buscado fortalecer e divulgar pesquisas que venham contri-
buir para que haja um posicionamento mais realista e acolhedor quando se
trata do assunto, afinal, muitas dessas falsas concepções contribuem para a
omissão e exclusão da pessoa com altas habilidades/superdotação, no pró-
prio sistema de ensino.
Entre as falsas concepções enumeradas pela pesquisadora Ângela Vir-
golim, está a ideia de que todo superdotado é um gênio. Em seus estudos ela
mostra que vários pesquisadores como Renzulli e Gagné, trazem um conceito
mais amplo de superdotação que tende a incluir todos os estudantes que se
destacam em uma área ou mais do conhecimento, por suas habilidades inte-
lectuais, e também aqueles que se destacam pelas habilidades criativas, de
liderança, produtivas, artísticas e psicomotoras. Portanto, o estudante super-
dotado não é necessariamente um gênio que se destaca em todas as áreas
do conhecimento. Mas, conforme a teoria dos três anéis, de Renzulli (....), o
conceito de superdotação abrange os estudantes que apresentam habilidade
acima da média em uma ou mais áreas do conhecimento, envolvimento com
a tarefa e criatividade.
Outra falsa concepção é a de que a superdotação é um fenômeno
estático, percebido na infância e que vai se manifestar durante toda a vida.
Tem-se verificado, no entanto, que as condições do meio para o desenvolvi-
mento da superdotação é fundamental. A crença de que a pessoa superdo-
tada sempre terá sucesso na vida, independentemente das condições am-
bientais a que está sujeita, pode ser prejudicial ao desenvolvimento de seus
potenciais, pois difunde a ideia de que ela não precisa de suporte do meio
em que vive.
Por meio de suas pesquisas, no Centro Nacional de Pesquisas sobre o
Superdotado e Talentoso da Universidade de Connecticut, Estados Unidos,
Joseph Renzulli (apud Virgolim) tem concluído que os comportamentos de

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superdotação podem ocorrer de formas diferentes de indivíduo para indiví-
duo e se manifestar em alguns momentos da vida e em outros não, conforme
as circunstâncias e a motivação externa. Essas pesquisas fornecem funda-
mentos sólidos ao se buscar estratégias de atendimento e inclusão da pessoa
com altas habilidades/superdotação. A partir desse entendimento, ressalta-
-se a necessidade de se garantir à pessoa com altas habilidades/superdota-
ção um ambiente e recursos favoráveis ao seu desenvolvimento.
Outra falsa concepção acerca do assunto, analisada por Virgolim, é a
de que o estudante não pode saber que é superdotado. Algumas pessoas
acreditam que, ao saber de sua condição, o estudante poderia se tornar ar-
rogante e superior aos demais. Entretanto, pesquisadores como Galbraith
& Delisle (1996) demonstram que esse pensamento pode ser limitador das
potencialidades da pessoa superdotada, no sentido de se negar a ela opor-
tunidades de se desenvolver devido ao simples receio de que ela se torne
arrogante. Além disso, furta-lhe o direito de buscar construir a sua própria
identidade como diferente.
Há também quem insista na ideia de que os pais não devam saber
que seus filhos são superdotados, para que não venham nutrir expectativas
demasiadamente elevadas em relação ao filho. Mais uma vez, porém, essa
se demonstra ser uma falsa concepção. Estudos, como os de Virgolim, têm
verificado cada vez mais a importância de se levar aos pais conhecimentos
sobre comportamentos de superdotação e as formas mais eficazes de se lidar
com as questões emocionais e psicológicas que afligem algumas pessoas com
características de superdotação.
Destarte, podemos perceber o quanto a pesquisa tem sido fundamen-
tal para que haja avanços na forma de se perceber e orientar os estudantes
com altas habilidades/superdotação. Muito estudo ainda é necessário para
o progresso das ideias que giram em torno desse tema e muitos mitos limi-
tadores ainda precisam ser derrubados. O professor, como protagonista de
inúmeras situações envolvendo comportamentos de superdotação, detém
um grande potencial em levantar as discussões e problematizações neces-
sárias para que surjam mais pesquisas e mais respostas satisfatórias em
torno de como garantir a todos os estudantes uma educação mais igualitá-
ria e inclusiva.

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Os estudos sobre memória e identidade cultural podem auxiliar bas-
tante a compreensão dos fenômenos sociais e, assim, contribuir para me-
lhorar a qualidade do ensino e atenda os estudantes de forma igualitária e
inclusiva, levando-se em consideração as suas características e necessidades
individuais. Não há dúvidas de que a memória, com seus valores simbólicos,
pode ser usada para proteger, reajustar e fundamentar ações em benefício
do devir.
Pierre Nora, historiador Francês, compreende a memória como vida,
processo carregado por grupos vivos e, por isso mesmo, em permanente evo-
lução. Nessa perspectiva, o historiador também aponta as dificuldades desse
fenômeno, uma vez que a memória está aberta à dialética da lembrança e
do esquecimento, nem sempre toma consciência de suas deformações, está
sujeita a usos e manipulações, pode levar tempos sem se manifestar e, de re-
pente, ser revitalizada. Em se tratando de educação, todos os envolvidos no
processo educacional, têm o dever de carregar a sua memória, enfrentando
suas dificuldades e deformações. Utilizá-la para proteger as gerações futuras
de sistemas falidos, elitistas, que propiciam a exclusão de determinados gru-
pos. Revitalizá-la, destacando e comemorando ações que vieram em benefí-
cio dos valores educacionais de acesso, inclusão, permanência e qualidade.
Quanto ao registro da memória, a pesquisa tem grande atuação no
levantamento e análise de dados que possam garantir a atualização, a justiça
e a elaboração documental dos acontecimentos. Paul Ricoeur (2007), estu-
dioso do assunto, alude à memória como processo, em que as lembranças
podem ser espontâneas (mneme), ou buscadas (anamnésis). O papel da pes-
quisa, nesse sentido, seria o da anamnésis, em confronto com os vestígios
históricos encontrados.
Em consonância com Santo Agostinho, Ricoeur discorre sobre a luta
contra o esquecimento, como sendo uma das principais finalidades do ato
de memória. Temos, segundo o autor, um “temor de ter esquecido”, advin-
do de uma sensação de dever de memória, que é, na verdade, um dever de
não esquecer. Portanto, ao se lançar numa pesquisa sobre memória, estamos
falando sobre o dever de não esquecer. Conforme as reflexões de Ricoeur, a
memória seria a “única guardiã de algo que efetivamente ocorreu no tempo”.
Trata-se, sobretudo, de uma tarefa visando a registrar e difundir memórias, o
que desempenhamos por meio da pesquisa.

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Além do dever de memória, a anamnésis apresenta um caráter de
afirmação de laços sociais. As comemorações se apresentam, então, como
uma forma de revitalização dos acontecimentos e, também, como uma uti-
lização social da memória. Em seu artigo “Rememoração”/comemoração:
as utilizações sociais da memória (2002), a prof.ª Dr.ª Helenice Rodrigues da
Silva afirma que comemorar significa: “reviver de forma coletiva a memória
de um acontecimento considerado como ato fundador, a sacralização dos
grandes valores e ideais de uma comunidade constituindo-se no objetivo
principal.”
O projeto “Construção e difusão da memória e identidade cultural dos
estudantes de Altas habilidades/superdotação do Distrito Federal, que foi
concebido em decorrência das comemorações dos 40 anos do Atendimento
Educacional Especializado em Altas Habilidades/Superdotação no Distrito Fe-
deral – AEE-AH/SD, visa justamente a atender o significado de comemoração
descrito no parágrafo anterior. Qual seja: reviver, de forma coletiva, a memó-
ria da inauguração do AEE-AH/SD no DF, como ato fundador desse atendi-
mento, que é de grande importância para as pessoas com altas habilidades/
superdotação. E, por meio de pesquisas, seminários, debates e compilação
e análise de dados, sacralizar os valores e ideais dessa comunidade escolar.
Enfim, os projetos e pesquisas que buscam revitalizar a memória de ações
educacionais bem sucedidas contribuem na elaboração de conhecimentos
em prol de uma educação igualitária e inclusiva.
A elaboração de conhecimentos por meio da pesquisa e da anamnésis,
nos auxilia a enxergar a memória como os estudiosos do assunto, já citados,
a compreendem: uma construção social e um fenômeno coletivo. O papel
da pesquisa, nesse sentido, seria o de alcançar legitimidade histórica para
consolidar uma memória coletiva. Assim, a consolidação e a legitimidade
histórica de um grupo, contribuem para que os seus direitos a uma educação
de qualidade, não lhes possa ser negado.
A experiência humana, quando averiguada pela memória e registrada
pela escrita é marcada pelo seu caráter temporal. Ricouer investiga como
a articulação do tempo, de maneira narrativa, se torna tempo humano. O
filósofo nos apresenta o conceito de identidade narrativa como um proces-
so ininterrupto de construção de si mesmo. A identidade narrativa pode ser

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considerada como aquela que elabora uma resposta às perguntas: “quem é
você?” Quem sou eu?”.
Segundo o pensamento de Ricoeur, narrar é compreender melhor. Por-
tanto, a identidade de um grupo se constrói por meio da articulação narrati-
va. E a identidade narrativa assume o papel de mediadora entre a memória
individual e a memória coletiva. Daí a importância em se investigar e elaborar
de forma narrativa a identidade de um grupo. A narrativa vem em auxílio à
compreensão desse grupo e à articulação escrita de sua memória. Toda essa
construção se torna necessária para se verificar as perspectivas do grupo e,
então, indicar os movimentos adequados em prol de se alcançar objetivos.
Entretanto, nenhum conhecimento pode ser adquirido, registrado ou
divulgado sem que se empreenda antes a sua averiguação por meio de re-
visão da literatura, análise de dados, visitas técnicas, saídas em campo, ela-
boração de textos científicos, entre outros meios. Portanto, compreender os
fundamentos da pesquisa, incentivá-la e relacioná-la à prática do ensino é
imprescindível para se alcançar as mudanças e a melhora nos resultados dos
processos educacionais.
Para que haja melhora nos resultados dos processos educacionais, é
preciso primeiro estar inserido nesse processo, compreender o seu contexto,
a sua história e as suas necessidades. Uma parcela da comunidade educa-
cional pouco conhecida e que tem sido negligenciada devido, entre outros
motivos, aos mitos e falsas concepções a seu respeito é a dos estudantes com
altas habilidades/superdotação.
Quando se trata de fomentar uma educação mais igualitária e inclusi-
va, não podemos nos esquecer que igualitária significa tratar de forma dife-
renciada os iguais, dando oportunidade a todos, levando-se em consideração
as suas características individuais e propiciando a sua integração em grupos
de interesses comuns. Dessa forma, podemos pensar em uma educação in-
clusiva, quando há empenho na satisfação das necessidades educacionais
das pessoas. No caso dos estudantes com altas habilidades/superdotação,
muitas vezes suas necessidades educacionais estão acima do que as escolas
regulares oferecem em classes comuns, havendo a necessidade de suple-
mentação das atividades previstas.

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Por meio da pesquisa, mitos e falsas concepções vão sendo superados
e mudanças de paradigmas são elaboradas, de forma a dar maior abertura
aos métodos de atendimentos educacionais que atuam a favor da diversida-
de. Nesse sentido, a busca da memória contribui para que erros do passado
não sejam repetidos, identidades sejam afirmadas, lutas históricas sejam le-
gitimadas e perspectivas mais bem elaboradas possam emergir, orientando
adequadamente as ações que afetarão o futuro.
As comemorações, como forma de manipulação da memória, relacio-
nam-se ao ato fundador de algo que, de fato, aconteceu, e também à afir-
mação de valores de um grupo. Pelo caráter seletivo da memória, as come-
morações podem ser usadas para destacar as lembranças que interessam a
determinado grupo e ideologia, mas também para lançar no esquecimento.
Dessa forma, precisamos buscar memórias (anamnésis) de fatos relevantes
no processo educativo e trazê-las à tona, de modo que sirvam à legitimação
da busca por mais qualidade, por direitos igualitários e pela inclusão de todos
nos processos educacionais.

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“AINDA HÁ DE HAVER ESPERANÇA”: DESAFIOS E
POSSIBILIDADE NA EXPERIÊNCIA DA FORMAÇÃO
LEITORA DE ALUNOS DO ENSINO MÉDIO

Maxçuny Alves Neves da Silva1

“Sou biólogo e viajo pela savana do meu país. Nessas


regiões encontro gente que não sabe ler livros. Mas
que sabe ler o mundo. Nesse universo de outros sa-
beres, sou eu o analfabeto.(...) Nessas visitas que faço
à savana, vou aprendendo sensibilidades que me aju-
dam a sair de mim e afastar-me das minhas certezas.”
Mia Couto 2

Consideração iniciais

Vários teóricos têm se dedicado a analisar a polêmica e delicada re-


lação professor – texto literário – aluno da educação básica, esse tema tem
afetado milhares de alunos no Brasil e, quiçá, no mundo. Embora estejamos
falando da educação brasileira, é notório que a obrigatoriedade de leitura
dos clássicos transcende as fronteiras de nosso país, pois é uma realidade em
todos os países os quais tive a oportunidade de observar esse quesito espe-
cífico da educação.
Minha experiência pessoal serviu de parâmetro para minha prática do-
cente e a produção do presente texto que está mais para um relato de expe-
riência que um artigo propriamente dito.
Sempre fui uma leitora compulsiva, lia tudo que estava ao alcance das
mãos, desde revistas de fotonovela a romances de uma coleção antiga publi-
cada em papel jornal e de qualidade não muito recomendada pela academia

1
Professora Doutora em Literatura pela UnB, professora da SEEDF, autora de livros didáticos
e pesquisadora.
2
COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? e outras intervenções. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p.15.

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(coleção Sabrina – Editora Nova Cultural), livros estes que eram adquiridos
por minha mãe a preços módicos em bancas de jornais. Tudo isso aconteceu
quando eu ainda era uma criança (de nove a onze anos) pobre da periferia
de Brasília onde livros eram raridade, mas isso não foi barreira ou impedi-
mento. Quando meus pais compravam os livros didáticos das seis filhas e
cuidadosamente os encapava, eu lia todos os textos dos seis livros de Língua
Portuguesa antes de começarem as aulas. Quando tive acesso a uma biblio-
teca escolar de qualidade virei frequentadora assídua. A série Vagalume foi
totalmente devorada por mim em pouco tempo. Enfim, cheguei ao primeiro
ano do ensino médio já tendo lido grande parte da obra de José de Alen-
car, Machado de Assis e muitos outros da literatura clássica além de tudo o
que havia disponível em literatura infanto-juvenil, mas não estava preparada
para o despreparo de minha brava professora do primeiro ano do EM que
me impôs uma leitura que marcaria minha vida de leitora. Não preciso citar
o autor, mas fui obrigada a ler um livro modernista de grande valor literário
e confesso que não consegui terminar, era secura demais para minha vida
de leitora “romântica”. Minha mãe foi chamada à escola, fui publicamente
exposta e tratada quase como uma criminosa e sentenciada à sagrada leitura
sob pena de reprovação. Li enfim o famigerado livro, mas odiei seu autor por
anos a fio e acabei por desistir da leitura, passei pelo segundo ano sem ler
absolutamente nada, não foi difícil, pois já conhecia grande parte dos autores
trabalhados naquela série.
Cheguei ao terceiro ano e fui colocada diante daquele autor que eu
sequer ousava pronunciar o nome, dava-me arrepios só de pensar. Foi nesse
momento que uma professora fez a diferença em minha vida, ela me chamou
para conversar e perguntou qual era o meu problema com a leitura, conver-
samos e ela me emprestou um livro de seu acervo pessoal e propôs que eu
lesse para que pudéssemos conversar a respeito, era um desafio; demorei
meses naquela leitura, minha turma toda estava envolvida em um projeto de
leitura grandioso e eu ali empacada com um livro; eu também era obrigada
a ler aquele livro ou iria reprovar, mas não houve pressão e nem escândalo.
Enfim consegui ler o livro e ele mudou minha vida para sempre. Essa profes-
sora é a fundadora da Biblioteca Machado de Assis em Taguatinga, nunca me

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esqueci dela, lembro-me de sua voz, de seu rosto e até de seu nome: Lucy.
Mas aquela professora do primeiro ano, fiz questão de esquecer.
Essa experiência faz com que eu concorde com algumas reflexões que
tenho lido a respeito do papel do professor como mediador desse processo,
mas não creio que a obrigatoriedade seja propriamente o problema. Muitos
professores apresentam propostas que podem não ser as melhores, mas tal-
vez funcionem em seu contexto educacional. Lajolo aponta, em seu livro Do
mundo da leitura para a leitura do mundo, que:

Vários professores, ouvidos na pesquisa da editora Abril, têm


sugestões a fazer. Trata-se, geralmente, de propostas que so-
mam, ao idealismo ingênuo, o imediatismo das soluções enla-
tadas: sugestões bem-intencionadas, sem dúvida, que reduzem
o atrito e aumentam a digestibilidade da aula; mas lidam su-
perficialmente com a questão, resolvendo o problema pelo seu
contorno, passando ao largo das zonas profundas do conflito.
(LAJOLO, 1993, p. 14)

Em seguida ela mostra que o papel do professor passou de protagonis-


ta a coadjuvante nesse processo, pois as editoras e livros didáticos ditam as
regras da escolha dos livros e dão o script pronto para o professor que passou
a ter papel secundário. Concordo plenamente com a crítica em questão. Mas
discordo da forma como se fala, não apenas essa autora, mas muitos outros
que apontam o professor como vilão desse processo.
Ele, em sala de aula, pode até ser considerado “inocente” e “sonha-
dor”, mas a realidade vivida por ele é como a vida na savana descrita por
Mia Couto na citação em epígrafe. Há um ditado do meio rural brasileiro
e que ouvi diversas vezes pela boca de meus avós: “Mais vale uma expe-
riência que um caminhão de abóboras”. Nunca intendi bem ao certo essa
comparação da experiência com o caminhão de abóboras (mesmo porque
eu não gosto de abóbora), mas afinal, naquele universo, sou eu a analfabe-
ta. No entanto, em se tratando de sala de aula, creio que eu não seja tão
analfabeta assim, são mais de vinte anos de experiência na educação básica
com maior dedicação ao Ensino Médio (EM). A partir dessas experiências,

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convido o leitor a refletir sobre o papel do professor de EM na formação
leitora.
Professora desde 1993, tenho me dedicado à prática docente de forma
a contribuir para a formação de jovens no Ensino Médio. A busca por um
contato mais efetivo desse jovem com a literatura é um grande desafio, pois
o que se espera é que nesse momento da vida estudantil os jovens já estejam
firmados como leitores ativos e competentes, tanto que a maioria dos estu-
dos voltados à formação leitora estão direcionados ao Ensino Fundamental
(séries iniciais e, mais raro, séries finais) o que se configura como um dos
problemas a serem enfrentados, posto que essa suposta competência leitora
não se verifica na prática.
Além disso, o Currículo em Movimento, documento que serve de parâ-
metro para a criação dos planos de curso da educação básica no DF, reproduz
o senso comum de parâmetros curriculares anteriores, que apresentam a li-
teratura em sua face historiográfica com a apresentação de autores da litera-
tura brasileira e portuguesa e características dessas obras que as enquadram
em determinada escola literária. Uma das poucas inovações que esse novo
currículo traz é o acréscimo da literatura africana de língua portuguesa, mas
esse é outro fator que esbarra na falta de atualização e formação continuada
dos professores e acaba criando um outro abismo entre a realidade e o que
se propõe.
Por outro lado, os livros didáticos parecem não ter evoluído muito nes-
ses últimos vinte anos, a abordagem dos conteúdos de literatura é sempre a
mesma e até mesmo os textos ou excertos de textos que sevem de exemplo
para o real conteúdo abordado (historiografia literária) ainda são os mesmos.
Assim temos uma luta desigual entre os recursos disponíveis na maioria das
escolas brasileiras e os recursos tecnológico a que a maioria desses jovens
estão habituados.
Muito se fala, nas escolas e no meio acadêmico, da importância da lei-
tura, mas pouco se faz a respeito. São muitas as propostas apresentadas pe-
los teóricos, embora as críticas às práticas atuais superem significativamente
tais propostas, em um eterno ciclo de críticas que não saem do papel e não
vivenciam a realidade de sala de aula e cujas propostas são utópicas diante

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da realidade de sala de aula, pois são eles, os teóricos, os ingênuos sonhado-
res desse processo educacional.
Há muita crítica dos teóricos à obrigação imposta pelos professores
aos alunos com relação à leitura, mas a incoerência está no fato de que es-
ses teóricos estão nas Universidades e nada fazem para acabar com a obri-
gatoriedade imposta pelos exames de acesso desses alunos à Universidade
(Vestibular, PAS, Enem) os quais apresentam longas listas prévias de leituras
“obrigatórias”. Outro fator importante a ser observado é que a maioria dos
livros didáticos adotados pelas escolas são escritos por professores de uni-
versidades. Convém destacar, porém, que a maioria desses professores uni-
versitários, grandes teóricos e/ou autores de livros didáticos não possuem
nenhuma ou quase nenhuma experiência na educação básica, alguns nunca
atuaram como docente em uma escola pública da periferia ou sequer visita-
ram alguma dessas unidades educacionais nos últimos dez anos. As propos-
tas apresentadas por esses teóricos podem até atender a um modelo utópico
de escola, mas não atende à realidade das periferias do país. É muito comum
encontrar, nessas teorias, a ilusão de que exista um professor de literatura
com um número de alunos bem reduzido e com tempo suficiente para ela-
borar planejamentos fora de sala de aula e executá-los com tranquilidade em
sala.
Desmistificando essa escola ideal, quero apresentar a dura realidade
e convidar o leitor a “afastar-se de suas certezas” (Mia Couto). O professor
do qual estou falando aqui é aquele que atua em um, dois ou três turnos
com um total de aproximadamente duzentos e oitenta alunos por turno e
ainda precisa lecionar Língua, literatura e redação com um total de cento e
sessenta horas/aula anuais (quatro horas/aula semanais) e que precisa cum-
prir um conteúdo extenso proposto pelo Estado além de atender a agendas
e obrigatoriedades burocráticas inerentes ao cargo, além de ser duramente
responsabilizado pelo fracasso de seus alunos, sendo que o sucesso é sempre
atribuído ao Estado. É esse mesmo professor que aparece no processo ensi-
no/aprendizagem como o principal responsável por promover o acesso dos
alunos ao Ensino Superior.

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A proposta

Esses são só alguns dos problemas enfrentados pelos “vilões” desse


processo e que inviabilizam o despertar do interesse desse aluno pela lite-
ratura. Mas a proposta aqui não é defender o professor da educação básica
das diversas injustiças que contra ele se vocifera no meio acadêmico e jorna-
lístico. Voltemos ao fato de que a obrigatoriedade de leitura dos clássicos da
literatura é uma imposição conjunta dos currículos básicos e dos exames de
acesso ao Ensino Superior e não se trata de uma imposição do professor.
Diante dessa problemática, pensou-se em partir não mais de uma con-
textualização histórica e de uma visão historiográfica, mas da materialidade
do texto por meio da performance ou da leitura. A proposta é ler para eles
sempre (performatizando), ler com eles e deixar que eles leiam para si mes-
mos e para os outros em propostas de performance individual e coletiva. O
protagonismo do aluno no processo ensino-aprendizagem é de fundamental
importância dentro dessa proposta.
Nesse processo de vivência com o texto se alcançam camadas mais
profundas de análise e interpretação e a contextualização histórica e carac-
terísticas do período literário surgem em função do texto e não inversamen-
te como vem sendo abordado no EM e em seus livros didáticos. Busca-se,
por esse processo, alcançar o leitor/ouvinte pelo desejo da descoberta como
uma consequência natural após o prazer que o texto propicia.
Outra proposta importante é buscar uma aplicabilidade prática do tex-
to para os dias atuais em uma comparação diacrônica e prática por meio de
atividades que levem os alunos a refletirem a respeito do valor do texto. Pois,
de acordo com as teorias de Jauss, as obras literárias são consideradas um
conjunto aberto de possibilidades, podendo adquirir novos sentidos, permi-
tindo uma constante reavaliação do texto literário com base na observação
de seus aspectos diacrônicos.
Lajolo (1993, p. 15) afirma, em seu texto já citado, que “ou o texto
dá um sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum.” Observando “a
função da literatura”, ou o sentido que esse texto pode ter para além dos
exames de acesso ao Ensino Superior, é preciso promover atividades de lei-

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tura que desenvolvam o senso crítico e promovam o exercício da cidadania
de forma crítica e coerente, assim como já vislumbravam os gregos no século
V a.C. que incentivavam o conhecimento da língua e da poesia a fim de que
seus cidadãos dispusessem de melhores recursos retóricos no exercício da
cidadania em defesa de seus direitos, incluindo o da propriedade conforme
nos lembra Barthes3.
Dentro dessa perspectiva, passo a apresentar o projeto que foi desen-
volvido no CEMEIT4.
Inicialmente é apresentada uma lista de possibilidades de leitura que
se abre a possíveis contribuições dos próprios alunos, mas que apresenta
uma confluência das listas indicadas pelas universidades como sendo de
leitura obrigatória, lembrando que essa “obrigatoriedade” também é utó-
pica, pois, de acordo com o art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, “nin-
guém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtu-
de de lei”.
O presente projeto tem sido aplicado todos os anos desde que se veri-
ficou a necessidade de alguma ação capaz de despertar o gosto pela leitura,
mas ele vem sendo modificado e adaptado a cada ano de acordo com a ne-
cessidade do grupo de alunos. O presente relato refere-se especificamente à
execução do projeto no ano de 2017.
No início do ano de 2017 foi aplicada uma avaliação diagnóstica a um
grupo de 278 alunos do 3º ano do EM com vários questionamentos de son-
dagem, dentre os quais foram feitas as seguintes perguntas:
1. Você gosta de ler/ouvir poesia?
66,8% respondeu que não
2. Você gosta de ler/ tem o hábito de leitura?
83,5% respondeu que não
3. Quantos livros você já leu em sua vida? (respostas fechadas)
Nenhum livro – 8% (aproximadamente)

3
BARTHES, Roland. Investigaciones retóricas I. La antigua retórica. Ayadamemoria. Buenos
Ayres: Tiempo Contemporaneo, 1974.
4
Centro de Ensino Médio Escola Industrial de Taguatinga, escola situada no centro da cidade
de Taguatinga, periferia de Brasília.

135

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Um livro – 14% (aproximadamente)
Menos de cinco livros – 21% (aproximadamente)
Menos de dez livros – 31% (aproximadamente)
Mais de vinte livros – 16% (aproximadamente)
Não sei – 10% (aproximadamente)

O resultado indica o pouco envolvimento dos alunos com a leitura e


a falta de interesse da grande maioria. Outros questionamentos com rela-
ção ao contato que eles já tiveram com os clássicos da literatura obtiveram
respostas abertas que ligam a falta de interesse à pouca “utilidade” de tais
textos para a vida e a realidade desses alunos, alguns indicaram a utilidade
dos clássicos no estudo da história como forma de ilustrar o estilo de vida de
épocas passadas e outros relacionaram a leitura à necessidade de contato
com a linguagem de séculos passados.
O que se observou nas respostas, além dos fatores anteriormente
apresentados, foi que eles possuem um conhecimento superficial das obras
que dizem ter lido, como se a leitura não ultrapassasse as camadas mais su-
perficiais, sendo, tais textos, incapazes de se firmar na memória desses alu-
nos ou fazer qualquer diferença significativa em suas vidas.
Com base nessas observações iniciais traçamos algumas metas a se-
rem alcançadas:
a) fazer com que todos os alunos lessem pelo menos um livro durante
o ano;
b) fazer com que todos os alunos tivessem pelo menos uma experiên-
cia de leitura transformadora5;
c) fazer com que pelo menos a metade dos alunos lessem um livro por
bimestre;
d) fazer com que o maior número possível de alunos melhorasse seus
hábitos de leitura.

Diante das metas traçadas iniciamos o projeto com a leitura “obrigató-


ria” do livro Clara dos Anjos de Lima Barreto e a proposta era dividir a turma

5
Uma experiência capaz de se firmar na memória e fazer diferença em sua vida.

136

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em dois grupos e, por meio de sorteio, designar um grupo para defender o
posicionamento de que o racismo não existe mais no Brasil como no tem-
po do livro e o outro grupo para defender que pouca coisa mudou desde
o tempo do livro. Após a leitura os grupos deveriam desenvolver pesquisas
capazes de embasar seus posicionamentos e fundamentar a argumentação
na hora do debate, além de contextualizar a obra. Só participariam do debate
os alunos que leram o livro e os demais poderiam pesquisar para enriquecer
o debate com perguntas. Como o tema havia sido explorado na redação do
Enem do ano anterior6, o debate foi extremamente proveitoso e foi possível
perceber a frustração dos que não leram o livro no momento do debate, des-
pertando o interesse e fazendo com que alguns lessem o livro mesmo depois
da atividade avaliativa. O debate foi aproveitado nas aulas de preparação
para a redação do Enem. Atividades como essa foram desenvolvidas também
com outros livros e a adesão dos leitores foi cada vez maior. Essa primeira
atividade, que se repetiu outras vezes, consistia no processo de leitura indivi-
dual: eles lendo para si mesmos.
Eu lendo para eles. Nessa etapa os alunos baixaram o livro O ano de
1993 de José Saramago e eu li para eles que acompanhavam a leitura em
suas cópias. Essa atividade de leitura buscava análises mais profundas de cada
capítulo, assim cada dia era lido um capítulo e eles apresentavam suas contri-
buições em relação à análise e interpretação, além de relacionarem a leitura
com seus conhecimentos das diversas áreas, tal atividade despertou o inte-
resse por leituras prévias com pesquisas, pois cada aluno queria participar da
aula e dar contribuições significativas. A atividade mobilizou os alunos de tal
maneira que o livro passou a ser o assunto dos corredores e dos momentos
de intervalo. A atividade era desenvolvida em cerca de 15 minutos da cada
aula dupla, pois os capítulos são curtos (1 página cada) e a leitura era feita
em aproximadamente 5 minutos e o debate demandava mais dez minutos,
sempre buscando uma análise diacrônica da obra. Essa atividade também se
encontrava intimamente ligada à redação do Enem que solicita que os alunos
relacionem conhecimentos as diversas áreas ao tema proposto.

6
“Caminhos para combater o racismo no Brasil”

137

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Eles leram para eles. Foi proposta a leitura cênica do Livro Morte e vida
severina de João Cabral de Melo Neto, as partes do livro foram previamente
distribuídas, todos leram o livro com antecedência e desenvolveram pesquisa
a respeito. Em uma data marcada a aula foi integralmente dedicada à leitura
cênica do livro com posterior debate e análise diacrônica da obra. Essa ativi-
dade surpreendeu por sua capacidade de integrar o grupo, desfazer alguns
focos de Bullying nas turmas e promover maior consciência e respeito pelas
diferenças, além da análise crítica do texto.

Considerações finais

Após duzentos dias letivos, ao término do ano de 2017, foi aplicado o


teste diagnóstico final por meio do qual foi possível avaliar o projeto. Algu-
mas perguntas foram refeitas e o resultado superou as expectativas:
1. Você gosta de ler/ouvir poesia?
100% dos alunos responderam que sim.
2. Você gosta de ler/ tem o hábito de leitura?
23,2 % respondeu que não.

A pergunta de número um teve o acréscimo: “comente sua resposta”.


Embora os alunos tenham sido unânimes em afirmar que gostavam de ler/
ouvir poesia, 98,4% comentaram suas respostas indicando que a leitura/per-
formance poética em sala produziu efeitos positivos em suas vidas. As per-
guntas permitiam comentários os mais diversos e alguns alunos falaram da
impactante experiência que tiveram com a literatura durante o ano de 2017,
demonstrando que o projeto fez com que eles percebessem a importância da
literatura para suas vidas.
Pensando nas metas traçadas inicialmente, pudemos observar que
cada uma delas obteve relativo sucesso, como se pode observar a seguir:
a) fazer com que todos os alunos lessem pelo menos um livro durante
o ano;
c) fazer com que pelo menos a metade dos alunos lessem um livro por
bimestre;

138

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Aproximadamente 12% dos alunos relatou que leu um livro inteiro
pela primeira vez em toda a vida, aproximadamente 23% dos alunos decla-
rou que leu todos os livros propostos, aproximadamente 56% afirmou ter lido
pelo menos um livro a cada bimestre e aproximadamente 9% afirmou ter lido
alguns dos livros propostos (entre dois e três livros ao ano). Assim foi possí-
vel observar que algumas das metas cujos valores eram quantitativos foram
alcançados em índices além do esperado.
b) fazer com que todos os alunos tivessem pelo menos uma experiên-
cia de leitura transformadora7;

Alguns alunos relataram que por meio das leituras conseguiram obter
mais clareza a respeito do curso superior a que pretendiam concorrer, sendo
cursos das mais diversas áreas do conhecimento. Os alunos foram unânimes
também em afirmar que participaram, em alguma das atividades propostas,
de uma experiência da qual nunca poderão se esquecer.
d) fazer com que o maior número possível de alunos melhorasse seus
hábitos de leitura.

Alguns alunos relataram que tinham se distanciado do hábito da leitu-


ra ao longo dos anos e que o projeto os fez retomar.
Dessa forma, o projeto alcançou todas as metas propostas e muito
além disso, sem contar com os mais diversos relatos de experiências trans-
formadoras que essa avaliação final foi capaz de apresentar. Ao longo dos
anos a avaliação diagnóstica inicial e final sempre foi feita e os progressos
eram notórios, além do espaço aberto a sugestões dos alunos que sempre
contribuiu para a melhoria do projeto ao longo dos anos, pois, para usar as
palavras de Paulo Freire (1996), “quem ensino aprende ao ensinar e quem
aprende ensina ao aprender”.
Mas a proposta de abrir cada uma das perguntas fechadas a comen-
tários complementares foi uma experiência nova e, embora tenha sido des-
gastante, a leitura dessas respostas foi infinitamente enriquecedora, pois os

7
Uma experiência capaz de se firmar na memória e fazer diferença em sua vida.

139

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alunos que normalmente não falam em sala sentem-se mais à vontade para
escrever suas opiniões que nem sempre são positivas, mas que sempre con-
tribuem para o processo.
Um dos comentários mais marcantes foi de um aluno que relatou ter
lido apenas dois livros porque estava sem óculos há mais de um ano e tinha
muita dificuldade para enxergar. Levei o caso aos colegas e conseguimos fazer
uma “vaquinha” para ajudar o aluno, depois de feito o exame oftalmológico
todos ficaram espantados, pois o aluno tinha mais de quatro graus de miopia
e estava sem óculos há cerca de um ano por falta de condições financeiras, o
mais espantoso é que assim que ele pegou os óculos a primeira coisa que fez
foi pedir autorização à direção para pegar os livros que foram lidos durante o
projeto para ler durante as férias.
Portanto, é desafiador ler mais de duzentos e cinquenta comentários
a cada pergunta, mas isso faz parte da vida dos “vilões” (professores) que na
verdade são heróis anônimos espalhados por esse Brasil de norte a sul com
seus próprios problemas locais e suas realidades desafiadoras.
“Mas esse é o país que me deram e nele é que espero livrar-me do meu
tormento”8 de ver os privilégios distanciando as minorias de seus sonhos.
Também é nesse país que espero ver o professor ser tratado com dignidade
e respeito por todos aqueles que dependem/dependeram desse profissional
para alcançar seus objetivos.

8
Trecho do poema Que país é este de Affonso Romano de Sant’Anna – grifo meu

140

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Referências Bibliográficas

BARTHES, Roland. Investigaciones retóricas I. La antigua retórica.


Ayadamemoria. Buenos Ayres: Tiempo Contemporaneo, 1974.

COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? e outras intervenções. São Paulo:


Companhia das Letras, 2011, p.15.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria


literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. (Série Temas,
v.36)

______. A Estética da Recepção: Colocações Gerais. In: LIMA, Luiz Costa


(Coord. e Trad.). A literatura e o leitor: Textos de estética da recepção.
2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002a. p. 67-84.

______. O Prazer Estético e as Experiências Fundamentais da Poiesis, Aisthesis


e Katharsis. In: LIMA, Luiz Costa (Coord. e Trad.). A literatura e o leitor:
Textos de estética da recepção. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2002b. p. 85-103.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. Ática: São


Paulo, 1993.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra,1996 p. 165.

ZILBERMAN, Regina. Recepção e leitura no horizonte da literatura. Alea vol.


10 nº 1: Rio de Janeiro, 2008. Disponível em http://dx.doi.org/10.1590/
S1517-106X2008000100006

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ESTRATÉGIAS DE LEITURA DE 6º A 9º ANO:
ENSINAR A COMPREENDER

Renata Junqueira de Souza1


Gislene Aparecida da Silva Barbosa2

Introdução

A competência leitora viabiliza o acesso ao conhecimento em todas as


áreas, é uma forma de preservação cultural de uma sociedade, amplia as pos-
sibilidades de interação do sujeito com o mundo, alargando também as pos-
sibilidades de gerar mudança em paradigmas sociais excludentes, portanto
a leitura é primordial na formação dos alunos de educação básica, para que
lhes sejam garantidas condições de desenvolvimento da cidadania, conforme
preconizam as leis educacionais brasileiras.
Mais do que ser capaz de decodificar elementos gráficos, o cidadão
do presente século tem de ser capaz de interagir com a língua, utilizando
a linguagem para o sucesso nas relações sociais, para compreender as dis-
tintas situações a que se expõe e interagir com elas, construindo sentidos e
ressignificando a vida (SOARES, 2002, p. 44). Saber ler deixa, portanto, de
se referir apenas ao domínio do código e passa a se referir à necessidade do
desenvolvimento de um estado ou condição, no qual o indivíduo assume a
postura de interlocutor e participa ativamente das diversas práticas de leitura
na sociedade.

1
Livre-Docente em Língua Portuguesa. Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista
Julio de Mesquita Filho (UNESP). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da
UNESP – campus de Presidente Prudente. Bolsista de produtividade em pesquisa, CNPq.
Líder do GP “Formação de professores e as relações entre as práticas educativas em leitura,
literatura e avaliação do texto literário”. E-mail: [email protected]
2
Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho. Docente
da Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE) e da Secretaria de Estado da Educação de São
Paulo. Membro do GP “Formação de professores e as relações entre as práticas educativas
em leitura, literatura e avaliação do texto literário”. E-mail: [email protected]

143

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No ensino fundamental (anos finais: de 6º a 9º ano), no entanto, a
permanência de hábitos de ensino arraigados em práticas docentes de repe-
tição de conceitos relega à leitura um valor menor, reprodutivista. Com isso,
embora os estudantes digam que leem, falta-lhes o essencial para garantir o
processo: falta-lhes a compreensão do que é lido. Rojo (2001) aponta que a
realização da transposição didática nas aulas nem sempre se dá de maneira
adequada, haja vista a força exercida pela “tradição cristalizada” sobre as ro-
tinas docentes. Significa dizer que, muitas vezes, os professores ainda se va-
lem de posturas pedagógicas herdadas de outro momento social e histórico,
as quais, geralmente, não são compatíveis com a realidade atual da escola,
tampouco com as indicações oriundas das mais recentes pesquisas educacio-
nais, produzindo, portanto, baixos índices de aprendizagem.
Como exemplo, os resultados da quarta edição da pesquisa Retratos
da Leitura no Brasil (2016) evidenciaram, com base também no Indicador
Nacional de Alfabetização Nacional, que apesar de a escolaridade da popu-
lação brasileira, de 2001 a 2015, saltar de 61% para 73%, o aumento foi mais
quantitativo que qualitativo, pois a compreensão leitora não avançou: ape-
nas 8% dos que concluíram o ensino fundamental nos últimos anos conse-
guem compreender plenamente o que leem, sendo capazes de analisar e
criticar diferentes textos. Dessa maneira, a organizadora dos resultados da
pesquisa destaca que “quem não consegue compreender uma frase que lê
está condenado a não aprender qualquer disciplina ou conteúdo” (FAILLA,
2016, p. 29), fato que incidirá em dificuldades de estudos tanto no ensino
fundamental quanto nas etapas subsequentes, afetando a relação dos su-
jeitos com a sociedade e diminuindo sua condição de agir criticamente para
promover mudanças.
Para reverter essa situação é necessária a garantia de um mediador de
leitura na escola para ensinar a compreender: o professor. Assim, é importan-
te zelar pela formação inicial e continuada dos docentes, a fim de que estes
sejam leitores fluentes e tenham consciência do processo metacognitivo de
ensino da significação. Aprender a compreender, interagindo com os textos, é
um processo complexo que requer o desenvolvimento de “intimidade” entre
o leitor e o texto. Esta pode ser conquistada pela ativação de conhecimentos

144

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que o leitor já possui e que é capaz de reconhecer no texto lido, articulando o
já sabido ao elemento novo e (re)construindo sentidos. De acordo com Girot-
to e Souza (2010, p. 50) a compreensão de um texto não se dá apenas no final
da leitura, mas também durante a leitura. O uso intencional das Estratégias
de Leitura favorece o desenvolvimento da compreensão.
Neste texto, serão explicitadas as Estratégias de Leitura, bem como
sugeridas atividades que possam ser realizadas na escola de ensino funda-
mental para apoiar o trabalho docente e desenvolver a compreensão leitora
nos estudantes.

As Estratégias de Leitura no ensino fundamental

De acordo com a concepção de linguagem como forma ou processo de


interação não basta apenas o domínio do código linguístico e de suas regras,
pois o enfoque deve estar nos usuários da língua que interagem não só com
base em regras linguísticas internalizadas, mas também inseridos em um
contexto histórico e social. “O indivíduo, ao fazer uso da língua, não apenas
exterioriza o seu pensamento, não somente transmite informações; na ver-
dade, mais do que isso, realiza ações, age, atua, orientado por determinada
finalidade, sobre o outro” (CURADO, 2004, p. 19). Dessa maneira, todo leitor
é, em parte, um autor, porque elabora o sentido do texto. Assim, também
comentam Koch e Elias (2006, p. 11):

O sentido de um texto é construído na interação texto-sujei-


to e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois,
uma atividade interativa altamente complexa de produção de
sentido, que se realiza evidentemente com base nos elementos
linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de
organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de
saberes no interior do evento comunicativo.

As Estratégias de Leitura são procedimentos que o leitor fluente usa


para interagir com os diferentes gêneros textuais com o objetivo de com-

145

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preendê-los. São ações cognitivas, feitas intencionalmente, após o estabe-
lecimento de objetivos de leitura e mediante a ativação de conhecimentos
prévios. Elas envolvem o estabelecimento de diálogos entre os saberes já
construídos com os novos; a realização de imagens mentais; a construção de
deduções; a relação entre ideias; a elaboração de sínteses etc.

Um leitor capaz de compreender os significados do texto reali-


za um complexo exercício cognitivo quando lê. Sua compreen-
são advém das paráfrases que realiza, motivadas pela projeção
de imagens mentais conforme lê. Algumas vezes, as deduções
são evolutivas, ou seja, o leitor as constrói gradativamente, en-
quanto aprofunda a leitura. Esse movimento do leitor é ativo,
relaciona ideias do texto com seu conhecimento prévio, cons-
trói imagens, provoca sumarizações, mobilizando várias estra-
tégias de leitura. Assim, a atribuição consciente de significados
ao texto faz parte do movimento de formar o leitor autônomo.
(GIROTTO; SOUZA, 2010, p. 51).

Girotto e Souza (2010) apresentam 7 Estratégias de Leitura para a com-


preensão do texto3: conhecimento prévio, conexões, visualização, inferência,
questionamento, sumarização e síntese. As referidas autoras destacam que
todo ato de leitura precisa ter objetivo, uma vez que este influenciará as de-
cisões que o leitor tomará enquanto lê. O objetivo de leitura definirá quais
procedimentos serão realizados e com qual finalidade.

Um bom leitor não mergulha num livro do começo ao fim sem


antes saber o que quer do texto (aprender algo, recolher algu-
ma informação, pesquisar algum tópico para o dever escolar,
entre outras finalidades). O aluno folheia o livro lendo partes,

3
As autoras brasileiras amparam-se nas seis estratégias indicadas por Harvey e Goudvis
(2008, p. 10-11, tradução nossa): fazendo a conexão entre conhecimento prévio e o
texto; fazendo perguntas; visualizando; construindo inferências; determinando ideias
importantes; sintetizando informações (making connection between prior knowledge and
the text; asking questions; visualizing; drawing iferences; determining important ideias;
synthesizing information).

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essa atividade revela informações sobre o conteúdo, a estrutu-
ra da história, a localização dos elementos mais importantes e,
principalmente, se o texto é pertinente diante dos objetivos do
leitor. (GIROTTO; SOUZA, 2010, p. 50).

A partir dos objetivos de leitura, o leitor ativa seus conhecimentos pré-


vios relacionados ao texto que lerá. Essa é, segundo Santos e Souza (2011, p.
30), “a base para outras estratégias de leitura, porque o leitor não consegue
entender o que está lendo sem pensar naquilo que já conhece”. Podemos
dizer que o conhecimento prévio é considerado, na abordagem teórica sobre
a qual discorremos, elemento primordial da construção do sentido. Nessa
esfera de reflexão, Girotto e Souza (2010, p. 50) assinalam que:

Antes de ler, bons leitores geralmente ativam conhecimentos


prévios que podem então ser relacionados às ideias do texto.
O exercício de ativar essas informações interfere, diretamente,
na compreensão durante a leitura. Folhear o livro passando ra-
pidamente os olhos pela narrativa na pré-leitura, geralmente,
resulta na formulação de hipóteses baseadas no conhecimento
prévio do leitor sobre o que trata e como trata a história.

Girotto e Souza (2010) valorizam a ativação de conhecimento prévio e a


realização de previsões sobre a história e a criação de perguntas para o texto,
porém as últimas autoras avançam no sentido de oferecer propostas para a
atuação em sala de aula, caso os alunos não tenham desenvolvido autono-
mia e fluência na leitura.
Para exemplificar como atividades podem ser feitas com as Estraté-
gias de Leitura, segue o texto de Ricardo Azevedo: “O louco e o cachorro do
louco”, o qual será retomado ao longo de todo capítulo. Vale destacar que as
Estratégias podem ser aplicadas na leitura de qualquer texto, especialmen-
te dos textos literários. Elas ajudam a organizar o pensamento e a dialogar
com os textos, agindo intencionalmente na construção de sentido, tornando
explícita a operação mental necessária para compreender, tendo, a princípio
a mediação do professor, para gradativamente, com diversas atividades de
leitura, o aluno ir conquistando a autonomia.

147

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O louco e o cachorro do louco
(versão de uma anedota)

O louco vinha de pijama, andando pelo corredor do hospício, puxando um


tubo de pasta de dente amarrado num barbante.
As pessoas passavam e riam, sentindo pena do sujeito.
Uma enfermeira chegou perto e perguntou:
– Qual o nome do bichinho?
O louco parou com cara de quem não tinha entendido:
– Que bichinho?
A moça:
– Esse cachorrinho aí que você está levando para passear.
O louco sorriu.
– Que é isso, moça? Isso não é cachorro. É uma pasta de dente. Não tá
vendo não?
A moça ficou achando que o louco estava melhorando. O louco despediu-
-se, sapateou, pererecou, deu uma cambalhota e foi embora.
Dobrando a curva do corredor, virou-se para a pasta de dente o disse
baixinho:
– Viu, Totó? Enganamos mais um!
Fonte: AZEVEDO, 2013, p. 41-42.

Para uma ação com o conhecimento prévio, Santos e Souza (2011, p. 66) des-
tacam a realização de perguntas: “o que eu já sei sobre a história a ser lida?”
e “o que eu quero saber sobre o que irei ler?”, pois é isso que leitores fluentes
fazem quando iniciam uma atividade de leitura. Dessa maneira,

Os leitores vão além do sentido literal da história ou texto. Um


leitor que entende pode perceber a mensagem em uma histó-
ria folclórica, formar uma nova opinião de um editorial, desen-
volver um entendimento mais profundo de problemas quando
ler um artigo. Adquirir informação nos permite ganhar conheci-
mento sobre o mundo e nossa relação com ele. Nós edificamos
nosso armazém de conhecimentos não para o seu próprio bem,

148

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mas para desenvolver o insight (compreensão/solução). Com o
insight, nós pensamos mais profundamente e criticamente. Nós
indagamos, interpretamos e avaliamos o que lemos. (HARVEY;
GOUDVIS, 2008, p. 9, tradução nossa4).

Com o texto “O louco e o cachorro do louco” é possível realizar a ativa-


ção do conhecimento prévio pelo título, antes de ler o texto na íntegra, fazen-
do perguntas aos alunos: O que sabemos sobre as atitudes de pessoas que
são chamadas de loucas? O que queremos descobrir na história? Também
são possíveis atividades de apresentação da obra e do autor, com momento
de exploração do livro como objeto material (capa, ilustração, cores, título
do livro; contracapa, informações sobre o autor; folha de rosto, dados de pu-
blicação; prefácio, sumário, composição do livro pelos títulos das histórias) –
evidenciando aos alunos que todo texto é publicado em algum suporte e que
reconhecer os lugares por onde esse suporte circula e a função social dele já
trazem pistas que ajudam a entender o texto.
Uma segunda estratégia é a conexão, a qual consiste em o leitor esta-
belecer relações entre o texto lido e suas experiências de vida. As conexões
podem ser de três tipos: conexão texto-leitor; conexão texto-texto; conexão
texto-mundo. As conexões texto-leitor acontecem quando alguma informa-
ção ou trecho do texto lido faz o leitor se lembrar de algo que ele viveu. As
conexões texto-texto ocorrem quando o leitor reconhece, no texto que está
lendo, semelhanças (temáticas, estruturais ou de situações/enredo/persona-
gens) com algum outro texto já lido. As conexões texto-mundo se manifestam
quando o leitor identifica semelhanças entre o texto que é lido e aconteci-
mentos da sociedade, um acontecimento mais global. Sobre esse estabeleci-
mento de conexões, Girotto e Souza (2010, p. 67) completam:

4
“The readers go beyond the literal meaning of a story or text. A reader who understands
may glean the message in a flok tale, form a new opinion from an editorial, develop a deeper
understanding of issues when reading a feature article. Acquiring information allows us to
gain knowledge about the world and ourselves in relation to it. We build up our store of
knowledge not so much for its own sake but in order to develop insight. Whit insight, we think
more deeply and critically. We question, interpret, and evaluate what we read”.

149

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Fazer conexões com as experiências pessoais facilita o entendi-
mento. As vivências e conhecimentos prévios dos leitores abas-
tecem as conexões que fazem. Livros, discussões, boletins de
notícias, revistas, internet e até mesmo as conversas informais
criam conexões que levam a novos insights. Ensinar as crianças
a ativar seus conhecimentos prévios, bem como seus conheci-
mentos textuais, e pensar sobre suas conexões é fundamental
para compreensão.

Leitores fluentes fazem conexões mentalmente, como se conversas-


sem com o texto que está sendo lido. Quando os alunos não conseguem
fazer isso “naturalmente”, são possíveis intervenções em sala de aula, Gi-
rotto e Souza (2010, p. 71-74) sugerem a utilização de uma “folha do pen-
sar”, na qual o leitor poderá anotar as conexões que fez durante a leitura
do texto.
Com o texto “O louco e o cachorro do louco”, uma possibilidade de
realizar conexões está na leitura em voz alta do texto pelo professor, que
faz paradas intencionais na leitura, manifesta as conexões que fez (a fim de
compartilhar com a turma o pensamento que teve: modelização docente)
e pergunta aos estudantes que conexões eles veem no texto: De que his-
tórias da vida de vocês se lembraram (texto-leitor)? Já assistiram a algum
filme ou leram algum livro que tratasse do mesmo assunto (texto-texto)?
Já viram alguma notícia nos jornais sobre isso (texto-mundo)? Para sis-
tematizar as conexões da turma, é possível organizar, com os alunos, um
quadro na lousa, registrando cada uma delas e explicitando qual foi o tre-
cho do texto que permitiu estabelecer essa ligação.
Uma terceira estratégia é a visualização, que tem como objetivo
central a criação de imagens mentais pelo leitor. Quando o leitor imagina o
que está lendo, está ativando seus conhecimentos prévios e criando a his-
tória em sua mente, atribuindo a ela um sentido. Leitores que visualizam,
enquanto leem, conseguem se lembrar mais do texto lido. Girotto e Sou-
za (2010, p. 85) apontam que: “Quando os leitores visualizam, elaboram
significados ao criar imagens mentais, porque criam cenários e figuras em

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suas mentes enquanto leem, fazendo com que se eleve o nível de interesse
e a atenção seja mantida”.
De acordo com Cosson (2014, p. 117), “uma forma de visualizar é ve-
rificar no texto palavras e expressões que remetem aos sentidos ou como
as descrições são transformadas em imagens pelo leitor”. Em “O louco e o
cachorro do louco”, é possível solicitar aos alunos a ilustração da história,
pois tal construção de imagens no papel ajudará a retomar o sentido das
palavras no texto escrito.
Uma quarta estratégia é a inferência, que significa chegar a uma
conclusão lógica a partir de pistas que estão no texto: “O leitor, ao inferir,
ultrapassa o sentido literal do que está lendo e encontra o que não está
explícito, compreendendo o implícito, as entrelinhas do texto” (SANTOS;
SOUZA, 2011, p. 32). Para realizar inferências, é preciso ativar o conhe-
cimento prévio: “Leitores inferem quando utilizam o que já sabem, seus
conhecimentos prévios e estabelecem relações com as dicas do texto para
chegar a uma conclusão, tentar adivinhar um tema [...]. Se não inferem,
[...] não entendem a essência do texto” (GIROTTO; SOUZA, 2010, p. 76).
Uma das possibilidades de utilização da inferência consiste em construir o
sentido de um vocábulo a partir da análise do seu contexto de utilização ou
de imagens disponíveis; em “O louco o e cachorro do louco” cabe a seguin-
te pergunta aos alunos: O que a frase “- Viu, Totó? Enganamos mais um!”
indica sobre a atitude do personagem e sobre as pessoas que enganou?
Outra estratégia é a do questionamento ou perguntas ao texto. Ela
consiste na relação que o leitor estabelece com o texto durante a leitura,
fazendo perguntas que ajudam a entender a história:

As perguntas são o coração do ensino e da aprendizagem. Os


seres humanos são levados a dar sentido ao seu mundo. Per-
guntas abrem as portas para a compreensão [...]. Questionar é
a estratégia que impulsiona os leitores para a frente. Quando os
leitores têm perguntas, eles são menos propensos a abandonar
o texto. Os leitores proficientes fazem perguntas antes, durante
e depois de ler. Eles questionam o conteúdo, o autor, os even-

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tos, as questões e as ideias no texto. (HARVEY; GOUDVIS, 2008,
p. 22, tradução nossa5).

As perguntas são criadas e usadas pelo leitor experiente no processo


de construção do sentido. Quando o leitor não vai fazendo questões ao texto,
corre-se o risco de a interação não ocorrer e de a compreensão não se efeti-
var. Considerando o professor como mediador de leitura, cabe a ele mostrar
aos alunos, enquanto lê o texto, exemplos de perguntas para entender/cons-
truir o sentido. A estratégia questionamento ou perguntas ao texto também
pode ser utilizada no momento depois da leitura, dando a oportunidade de
ampliação da compreensão do estudante. Exemplo: em “O louco e o cachor-
ro do louco”, com que atitude a enfermeira se dirige ao homem: amigável ou
hostil? Justifique sua resposta.
Uma sexta estratégia é a sumarização, que consiste na identificação
das partes ou ideias mais relevantes do texto. Quando o leitor compreende
a estrutura do texto, ele consegue identificar as partes essenciais do que leu.
Portanto, ter domínio dos elementos da narrativa ou da estrutura do pará-
grafo em textos informativos, por exemplo, ajuda a priorizar o que é mais
importante em cada texto. Em “O louco e o cachorro do louco”, por exemplo,
é possível usar o grifo, as anotações às margens do texto ou o uso de blocos
de notas para parafrasear a informação em busca dos personagens, espaço
onde ocorre a história, ações essenciais do enredo (situação inicial – conflito
– resolução), tempo da narrativa, narrador.

Sumarizar é aprender a determinar a importância, é buscar a


essência do texto. Preferimos pensar que os dias de sublinhar
e checar a ideia principal acabaram. Infelizmente, exercícios de
compreensão e questões nas provas ainda exigem que os leito-
res escolham uma ideia principal [...], aquilo que determinamos

5
“Questions are at the heart of teaching and learning. Human beings are driven to make
sense of their world. Questions open the doors to understanding [...]. Questioning is the
strategy that propels readers forward. When readers have questions, they are less likely to
abandon the text. Proficient readers ask questions before, during, and after reading. They
question the content, the author, the events, the issues, and the ideas in the text”.

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ser importante em um texto depende de nosso propósito em
lê-lo. Quando o leitor lê ficção, está focado nas ações das per-
sonagens, motivos e problemas que contribuem para o tema.
(GIROTTO; SOUZA, 2010, p. 93).

A última estratégia é a síntese, a qual está intimamente relacionada a


um processo de produção textual, uma vez que sintetizar consiste em apre-
sentar um resumo do texto acrescido de uma visão pessoal. Na síntese, o lei-
tor autônomo manifesta sua apreciação acerca do texto, tem a oportunidade
de explicitar o seu pensamento:

Os leitores, ao sintetizarem a informação, enxergam uma figura


maior, eles não estão simplesmente se lembrando dos fatos ou
repetindo-os. Antes, acrescentam a nova informação aos co-
nhecimentos já existentes. Algumas vezes, adicionam novas in-
formações para o aprimoramento do conhecimento prévio, de-
senvolvendo o pensar e aprendendo mais durante o processo.
Outras vezes, mudam o seu pensar baseado em suas leituras,
ganhando uma perspectiva inteiramente nova, por isso, quando
sintetizam, as crianças alcançam um entendimento mais com-
pleto do texto. (GIROTTO; SOUZA, 2010, p. 103).

A partir dos elementos principais (identificados na etapa da sumari-


zação), os alunos podem reescrever o texto “O louco e o cachorro do louco”
com suas próprias palavras, fazendo, portanto, a síntese, na qual, com base
nos dizeres de Harvey e Goudvis (2008), eles acrescentam novas informações
ao que já sabem e constroem significado conforme leem, sintetizando gran-
des quantidades de informação para com elas realizar uma combinação e
garantir a reelaborarão do essencial.

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Considerações finais

Para que a compreensão leitora se desenvolva nos alunos de ensino


fundamental (de 6º a 9º ano), é condição a transposição didática eficiente
que ensine o aluno a pensar, a interagir com os textos construindo sentidos.
Assim, as Estratégias de Leitura são essenciais em sala de aula, pois podem
ser aplicadas a qualquer texto e ajudam na compreensão, pois são organiza-
das para ativar conhecimentos prévios, dialogando com as experiências dos
estudantes e buscando, no texto que se lê, as evidências/ marcas linguísticas
que comprovem ideias e permitam a construção de um todo significativo.
Planejar aulas com o uso das Estratégias de Leitura explicita a concep-
ção de linguagem como forma ou processo de interação, pois valoriza os sa-
beres dos leitores e os incentiva a “conversar” com o texto lido, fazendo co-
nexões, reconhecendo intencionalidades e preenchendo as lacunas textuais,
por meio de inferências e questionamentos.
Ainda no processo de construção de sentidos, os alunos podem, com
as Estratégias de Leitura, observar a modalização feita pelo professor e se-
guir esse referencial em busca da autonomia de compreensão. Para isso, con-
tam também com o apoio da visualização, que permite a criação de imagens
mentais que ajudam a entender o contexto da história, e da sumarização e
síntese, as quais, respectivamente, favorecem a seleção das informações es-
senciais no texto e a reescrita/reelaboração com a atuação autoral do leitor,
que, por exemplo, ao selecionar o vocabulário a ser empregado atua como
produtor de sentido.
A melhoria dos resultados de aprendizagem na educação básica do
país está intimamente relacionada ao desenvolvimento da compreensão lei-
tora, portanto as Estratégias de Leitura podem colaborar nessa empreitada,
especialmente nas ações de formação docente.

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Referências bibliográficas

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POR UMA APRENDIZAGEM CIDADÃ EM TEMPOS
LÍQUIDOS: OS DESAFIOS DO EDUCADOR

Sylvia Helena Cyntrão1

Vivemos a morte de uma época, e a nova era ainda


não nasceu. Tudo a nossa volta é prova disso, a
mudança radical nos costumes, na educação,
religião, tecnologia e outros aspectos da vida
moderna. É preciso coragem para viver nesse limbo.

Rollo May, em A coragem de criar

A escola e os valores: o presente-futuro

Começo perguntando que pontes seriam necessárias a escola cons-


truir em nossa sociedade, nesse momento em que na cultura ascendente do
século XXI o efêmero das relações humanas, de laços frouxos, parece vencer?
Que valores éticos a escola deveria promover para propiciar uma verdadei-
ra formação cidadã de seus estudantes e, assim, garantir a dignidade social
para o futuro? Como ensinar solidariedade, responsabilidade e valorização
da vida?
A resposta a isso, naturalmente, deve iniciar-se com um reconheci-
mento do espaço a que se pertence. Para o local e para o global. Olhar para a
crise da estabilidade deste momento histórico. Se há crise, há causa. Por que
estamos em crise? Uma crise é tão somente um evento negativo, ou, como
querem os dois ideogramas que formam a palavra em chinês, comportam a
reflexão sobre a oportunidade de transformação em meio ao perigo?

1
*Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de Brasília- UnB. Professora titular
do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília. ssylvia.c@
gmail.com

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Sabemos que a estabilidade de um conjunto de crenças comuns tem
sido abalada pelo enfraquecimento da confiança no Estado e nas instituições
que historicamente têm criado os alicerces da evolução social, como a escola.
Há uma nova realidade globalizada e articulada nas mídias que não deve ser
desconsiderada.
A prática nos tem mostrado que é urgente a escola (re)pensar-se em
suas estruturas. As interrogações contemporâneas exigem que se corram os
riscos de rever valores decadentes redutores, para estabelecer novos elos
que possibilitem a harmonização desse descompasso entre a ordem e a de-
sordem, a estabilidade e o caos que sentimos no dia-a-dia.
Com certeza, todos poderíamos então concordar que a escola, em seus
diversos níveis, deve ir além das fronteiras disciplinares informativas e buscar
respostas interdisciplinares aos novos problemas sociais e tecnocientíficos.
Todos os humanos estamos sujeitos, por exemplo, ao perigo das armas
nucleares, porque nossa comunidade de destino é a mesma. Então, o primei-
ro ponto, base de todo ensino, deveria ser civilizar as relações humanas. E
por civilizar entendamos criar comportamentos éticos de respeito ao outro.

Problematização conceitual em tempos de mutação

O fato de estarmos em um novo tempo de “mutação”, segundo o fí-


sico nuclear Fritjof Capra, onde os fenômenos biológicos, psicológicos, am-
bientais, econômicos e sociais estão interligados na nova cultura ascendente,
obriga-nos a refletir sobre um também novo e melhor paradigma para as
ações no ensino, na pesquisa e na sua extensão, que contemplem a interco-
nectividade das diversas áreas do conhecimento humano.
Tais propostas derivam do fato de termos uma distinção entre a cha-
mada “Ciência acabada”, na qual os objetos de que trata são totalmente de-
limitados no mundo da lógica formal e a “Ciência em vias de se fazer”, que
se apresenta com um sistema de pensamento diferenciado, que é o caso das
ciências humanas.
Nos últimos anos, vem-se observando um grande esforço, em nível
mundial, no sentido de uma conciliação e de uma conexão desses dois siste-

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mas de pensamento. Foi justamente nesse ínterim que os homens das ciên-
cias do impreciso ou “ciência em vias de se fazer” descobriram a grande saída
para a construção de um sujeito mais íntegro na construção da cultura: a
transdisciplinaridade.
Nossa sociedade ainda resiste muito ao confronto de que o salto da
transdisciplinariedade tem que ser dado, mas a grande força das ciências é
ser um sistema cumulativo e progressivo ao mesmo tempo . A razão pura não
basta para dar conta da totalidade dos fatos e dos atos da vida do ser huma-
no. O impreciso e o nebuloso são dados do próprio campo da consciência
do pesquisador e fazem parte do jogo dos possíveis que podem levar o ser
humano à novas descobertas.
Sabemos que existe ainda em muitas instituições de ensino a hiper
valorização da metrologia das ciências bio-físico-químicas e das técnicas que
suscitam, impossíveis de nelas serem contestadas enquanto no campo da
ciência experimental. O grande problema é a utilização, não da medida como
método, mas da irracionalidade de querer-se reduzir tudo à precisão da me-
dida. Não estaríamos aí mais tão somente no campo da lógica formal, mas no
da ideologia.
E esse é o grande labirinto no qual nos encontramos agora. Contra os
paradigmas hegemônicos, deve, então, colocar-se a escola como promotora
do honesto desenvolvimento integral da pessoa humana. Ensinar é formar o
pensamento crítico, e levar o aluno a construir sua própria autonomia; ensi-
nar é levar também ao confronto com o que é vago, porque o vago é o verda-
deiro tecido da vida real. Ideias vagas, cabe ressaltar, não são ideias falsas.

O “novo mundo” e a educação. A quem serve a discriminação e o


preconceito?

Novo mundo. Nova visão da realidade. Novos paradigmas. Transcen-


der as atuais fronteiras disciplinares parece ser o caminho do que aqui va-
mos chamar de “concepção sistêmica da vida”: um estado de interrelação
e de interdependência essencial de todos os fenômenos, sejam eles físicos,

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biológicos, psicológicos, sociais ou culturais. Tal estrutura conceitual parece
acomodar bem a área do conhecimento conhecida como “área das huma-
nas”, tidas como relacionais, integrativas e dinâmicas. (E eu me pergunto aí,
a partir dessa denominação de área que sempre me causou um certo estra-
nhamento: não seriam “humanas” as demais áreas?!)
De toda forma, nessa área do conhecimento não há estruturas rígidas,
mas manifestações flexíveis e sempre associadas ao processo. E processo não
é o oposto de estabilidade: a auto-organização e a autoexpressão dão o ritmo
da interação e formam modelos, das simples células do indivíduo à amplitu-
de ecológica social.
A mente humana é o nosso maior modelo de sistema integrado em
múltiplos níveis e de processos que representam a dinâmica da auto-organi-
zação consciente. Máquinas são determinadas e descritas por sua estrutura,
organismos por processos.
Nesse momento são os aspectos qualitativos do pensamento que bus-
cam voz pela via do que é particular, contra a ideia totalitária de homogeneiza-
ção, vinda de uma interpretação errônea do significado de mundo globalizado.
Este mundo “pós-moderno” se estrutura sobre o afastamento da “uni-
ficação”, bem como da centralidade e da fundamentalidade, distorções que
têm sido os estopins de todas as guerras e ações terroristas recentes que
temos presenciado.
O mundo vivencia a interseção de valores, provocada pelo encontro,
nada pacífico, da cultura ascendente com a cultura decadente que serviu os
outros séculos anteriores. Segundo Capra, é a mudança definitiva da concep-
ção mecanicista (ou cartesiana) para a concepção holística da realidade.
Esse novo enfoque indica uma visão sistêmica de vida, mente, cons-
ciência e evolução; e uma reação de dimensões intelectuais, morais e espiri-
tuais, já que o antigo sistema de valores que ainda vigora, de origem raciona-
lista, desprezou e abafou a própria natureza integrada e interconectada dos
elementos vivos. Esse enfoque torna possível assumir o caminho da cultura
ascendente que toma forma neste novo milênio.
Temos podido observar que a antiga rigidez de ideias e comportamen-
tos, com o fim único e absoluto do crescimento material das sociedades,

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tem-se desintegrado em favor das chamadas minorias criativas, num proces-
so de transformação e adaptação dos antigos valores que foram petrificados.
A deterioração do meio ambiente social seria um dos indicadores sociais de
mudança de que fala o físico citado, Fritjof Capra. Como reação de sobrevi-
vência da espécie, um novo modelo de vida se instaura.
O conhecimento das experiências de sucesso e fracasso da história da
humanidade trouxe ao homem uma visão de futuro possível, mais consciente
de sua responsabilidade, visão que propicia a instauração de um equilíbrio
dinâmico entre os domínios do mundo físico e os do mundo psicológico e
social.
Tais reflexões nos remetem ao conceito de cultura sistematizada, da
qual a Escola é promotora privilegiada, e à revisão do ethos do qual participa.
Que valores considerar para afastar o desserviço do individualismo em
nossas instituições acadêmicas? Que novos comportamentos trilhar para re-
verter o quadro de infelicidade e de frustração do homem-social, tal qual
hoje observamos? Qual a função do professor em sala de aula, do professor
pesquisador, do administrador do ensino, seja em instituição pública ou pri-
vada? Sobre que estrutura filosófica, espiritual e ética deveria, a partir deste
novo milênio, atuar o ensino?

A Escola que queremos e a trandisciplinaridade

O físico teórico Basarab Nicolescu, fundador e presidente do Centro


Internacional de Pesquisa e Estudos Transdisciplinares e signatário, com Lima
de Freitas e Edgar Morin, da famosa “Carta da Transdisciplinaridade”, dis-
ponível no site do Centro de Pesquisa, nos diz que , “se pretendemos ser
agentes válidos do desenvolvimento sustentável, temos primeiramente que
reconhecer a emergência de um novo tipo de conhecimento- o conhecimen-
to transdisciplinar- complementar ao conhecimento disciplinar tradicional”.
Ora, assim colocado, o conhecimento transdisciplinar proporcionaria
a abertura multidimensional da Escola. E podemos estender essa concepção
em direção à sociedade civil; em direção a outras instituições de produção de

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conhecimento; em direção aos objetivos éticos de geração e de comunhão
do saber; em direção à redefinição dos valores que governam nossos progra-
mas e projetos.
O “reinado da disciplinaridade” já está bem comprometido há pelo
menos umas três décadas. É preciso esclarecer, como ensina Nicolescu, que
disciplinaridade, multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdiscipli-
naridade são quatro flechas lançadas de um mesmo arco, o do conhecimen-
to, mas que se diferenciam quanto às suas METAS.
Enquanto na multidisciplinaridade e na interdisciplinaridade o objetivo
permanece nos limites do quadro de referência da pesquisa disciplinar e está
sempre a serviço de uma disciplina-foco, na transdisciplinaridade o objetivo
é compreender ao mesmo tempo o que está entre as disciplinas, através das
diferentes disciplinas e além delas. Sua META é a unidade de conhecimento e
sua integralização.
A compartimentação do conhecimento é inevitável, mas apenas como
um momento, parte de um processo, já que na educação para o mundo con-
temporâneo (e nem estamos falando de futuro...) as pontes conceituais entre
as diferentes disciplinas são uma indispensável necessidade para a “forma-
ção integral da pessoa humana”. Informar e formar devem ser simultâneos.
“Guerras” acontecem, não quando se estabelecem fronteiras delimitativas,
naturais dentro de uma multiplicidade, mas, sim, quando levantamos barrei-
ras protetoras e eugênicas.
A realidade não é unidimensional, portanto o disciplinar não se basta.
A realidade é multidimensional, e seus diferentes níveis atuam ao mesmo
tempo na mente humana. Assim, à pesquisa disciplinar cabe nutrir um espa-
ço de conhecimento no qual a meta maior seja a funcionalidade integradora,
com um propósito unificador engajado nas questões sociais, propiciando co-
nectividade entre Efetividade e Afetividade.
O tipo de educação proposto para o século XXI em vários documentos
da Unesco revelam, por parte de seus pensadores, a preocupação em inte-
grar todas as dimensões do ser humano, propiciando um caminho educativo
para a autotransformação que vise ao equilíbrio entre a inteligência analítica,
os sentimentos e o cuidado com o corpo. É um grande desafio, sem dúvida,
porque pressupõe a quebra de um paradigma centenário, talvez milenar.

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No entanto, se já há resultados positivos com essa nova postura, é
preciso continuar intensivamente a alinhar esforços, estabelecer propósitos
flexíveis e passíveis de enriquecimento transpessoal, pois cooperar não é
apenas “conectar coisas”, é preciso também treinarmo-nos na aquisição de
comportamentos que essa nova atitude exigirá.
Ainda que seja uma tarefa de longo prazo, precisamos criar espaços
de compartilhamento, aceitação e discussão das dimensões pessoais e espi-
rituais dos membros de nossa comunidade acadêmica, para que o medo de
se expor seja substituído pela coragem de assumir posicionamentos criativos
e inovadores, confiantes na missão de educadores-formadores de pessoas
mais integradas em seu mundo interno e externo e, elas próprias, formado-
ras de um mundo mais harmonizado.

A prática pedagógica- opções éticas

O professor é alguém que participa ativamente desse processo de


transformação. A ruptura que se propõe ao professor não é só (mas também)
da ordem externa. É necessário ter coragem de repensar diariamente sua
prática docente e seus próprios objetivos de vida.
Não basta apenas expor uma pluralidade de informações, por mais re-
levantes que sejam. É preciso reconhecer que as contradições fazem parte da
vida e com elas trabalhar na prática cotidiana de sala-de-aula, para possibili-
tar o desenvolvimento de atitudes ativas frente ao mundo e à história.
A prática pedagógica (os objetivos, conteúdos, metodologias, estraté-
gias e avaliações) não é neutra e envolve opções políticas menos ou mais
conscientes, das quais, por sua vez, apenas o discurso disciplinar não conse-
gue dar conta. É preciso pensar no que acontece agora, no presente histórico,
para que o conteúdo programático a desenvolver tenha uma face realista.
Assim, a seleção de informações já apresenta uma visão de mundo,
possível de ser transformada na prática social, atendendo a um dos objetivos
do ensino, que é aperfeiçoar o espírito crítico do estudante, em relação ao
mundo real.

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Em primeira e última análise, a Escola trabalha em todas as áreas do
conhecimento com a cultura humana, seu legado e a expressão dos contex-
tos em que se insere o ser social. O profundo sentido dos conhecimentos
disciplinares só aparecerá no rastreamento da sua interrelação com os outros
que o cercam e com o contexto espaço-temporal que o envolve.
A matriz criadora do conhecimento é a própria vida, a soma de nossas
experiências enquanto sujeitos, localizados num tempo e num espaço defini-
dos, cujos ingredientes não são mágicos nem sobrenaturais, mas ideológicos,
e implicam forçosamente uma opção ética.
Do ponto de vista da universidade como formadora de formadores,
destaco nesse processo a responsabilidade da formação de um leitor crítico.
Se acreditamos na força transformadora da leitura, não podemos nos omitir,
enquanto cidadãos e educadores. Assim, evitar a trivialização no trabalho é
procurar na diversidade (de autores e metodologias) romper com a limitação
do totalmente conhecido e transportar o aluno através da luta pela busca de
novos significados para o conhecimento que apreende e desenvolve.
O trabalho científico, contemporaneamente, ora vai além das frontei-
ras nacionais e se internacionaliza, ora vai em busca da identidade em univer-
sos mais restritos do que a nação.
Na identificação das contradições e impasses por que passa nossa pá-
tria, temos que estar muito atentos, pois podemos tanto ser coautores dos
fracassos como dos êxitos históricos. Para termos êxito, que é o que todos
queremos, será preciso lutar pela participação do saber na construção de
uma sociedade que atenda principalmente os exilados em nosso próprio
país, os excluídos.

Ética nacional ∕ estética textual (proposta de uma leitura transversal


do mundo)

Segundo o filósofo da educação Edgar Morin2 “Literatura, poesia, cine-


ma devem ser considerados (...) escolas de vida, em seus múltiplos sentidos.
2
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento . tradução
Eloá Jacobina. - 8a ed. -Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 128p.

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Relaciona entre eles o sentido da “Escola de descoberta de si”, em que o
aluno pode reconhecer sua vida subjetiva na dos personagens dos romances,
ou no sentimento de um poema de amor frustrado, e ter a noção importante
de que não está só nesses tempos de grandes incompreensões e cegueiras.
Também deve funcionar como “Escola de complexidade humana”. Morin nos
explica que: “é na literatura que o ensino sobre a condição humana pode
adquirir forma vívida e ativa para esclarecer cada um sobre sua própria vida.”
Essa relação entre o autor e o leitor, mediada pelo professor, mobiliza
um patrimônio cultural coletivo em sua carga simbólica que é ressignificada
de geração em geração. O artista vai atuar, então, como antena do contexto
que o cerca, mesmo que não perceba, e também como uma espécie de pris-
ma na revelação de suas aspirações e angústias mais subjetivas.
Buscar nas imagens do texto literário o ser social e suas reflexões exis-
tenciais propicia a ampliação da consciência crítica dos estudantes, pois,
como sabemos, a palavra é o fenômeno ideológico por excelência. Mergulhar
no mundo das palavras é estar em contato com o que se diz, mas também
com o que é silenciado. O texto literário é sempre revelador do ser humano
e de suas relações com os micro e macrocosmos sociais. Interpretar um texto
deve ter, portanto, um sentido para além do exercício narcísico intelectual,
deve abrir fronteiras para a compreensão do mundo em que vivemos.
O conceito de relativismo cultural passa a ser a base desse paradigma
que seguimos, cuja premissa é de que a realidade é sempre culturalmente
constituída. E mais, o que era considerado imutável é agora encarado como
uma “construção cultural”, sujeita a variações, tanto no tempo como no es-
paço.
A sociedade brasileira, com seu passado colonial, absorveu nestes
pouco mais de 500 anos de história elementos sociais, étnicos, éticos e es-
téticos de outras civilizações, incorporando-os aos elementos nativos e de-
senvolvendo nas gerações que se sucederam uma identidade composta de
“múltiplas linguagens” Isso é o que temos proposto como ética de ação, dire-
cionada ao ensino na literatura em todos os níveis.
Alguns dos textos de cancionistas que vou mostrar na sequência in-
dicam como este “ser cultural” está potencialmente nos textos poéticos e
falam de uma consciência crítica da História:

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“olho ao pé do ∕ homens agachados ∕ esperando comida ∕ como a borda
cresce/ como as mãos são duras ∕ negras de cansaço (...) Como poderia compreen-
der-te, América, é muito difícil”.
(“América”— Carlos Drummond de Andrade)
“num tempo ∕ página infeliz da nossa história ∕ passagem desbotada na
memória ∕ das nossas novas gerações.
“ (...) seus filhos ∕ erravam cegos pelo continente ∕ levavam pedras feito penitentes ∕
erguendo estranhas catedrais”.
(“Vai Passar”—Chico Buarque de Hollanda)
“eu sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco ∕ sem parentes
importantes e vindo do interior (...) ∕ Mas sei que nada é divino ∕ nada é maravilho-
so ∕ Nada é secreto. Nada é misterioso”
(“Apenas um rapaz latino-americano”- Belchior)
“vocês que fazem parte dessa massa ∕ que passa nos projetos do futuro ∕ É duro
tanto ter que caminhar ∕ e dar muito mais do que receber. Êh, oh, oh, vida de gado
∕ povo marcado ∕ povo feliz”.
(“Admirável Gado Novo” — Zé Ramalho)
“Que preto, que branco, que índio o quê? (...) Aqui somo mestiços mulatos, cafusos,
pardos mamelucos sararás ∕ crilouros guaranisseis e jurárabes (...) somos o que
somos ∕ inclassificáveis”
(“Inclassificáveis”- Arnaldo Antunes)
“Meus heróis morreram de overdose ∕ meus inimigos estão no poder ∕ ideologia, eu
quero uma pra viver”
(“Ideologia”- Cazuza)
“Brasil, mostra a tua cara, quero ver quem paga ∕ pra gente ficar assim ∕ Brasil ∕
Qual é o teu negócio...”
(“Brasil”- Cazuza)

As letras poéticas dessas canções abrem a possibilidade da consciência


dos nexos que vinculam linguagem ∕ sociedade ∕ cultura, propiciando uma vi-
são que transpassa a expressão estrutural linguística e expõe a incidência dos
fatores socioeconômicos, ético-políticos, filosóficos e psicológicos nos signos.
É devido a esse papel privilegiado que une as funções de “antena” e
“prisma” que a literatura pode ser um poderoso instrumento da consciência.
Aliás, tal ideia foi plenamente articulada nos versos da canção “Cálice”, de

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Gilberto Gil e Chico Buarque de Holanda, quando diz “talvez o mundo não
seja pequeno nem seja a vida um fato consumado”. Essa, creio, é a proposta
do filósofo Edgard Morin quando propõe como urgente na escola contempo-
rânea a religação dos saberes.
Felizmente, há sinais positivos de vontade de mudança. Apesar de to-
das as dificuldades como educadores para levar adiante nossa vocação, so-
mos os promotores de uma cultura ascendente, na qual os fenômenos bio-
lógicos, psicológicos, sociais, ambientais e todos os demais que conhecemos
estão interligados. Como sabemos, em nossa missão, temos que tomar isso
como compromisso pessoal.
Segundo nos ensina o sociólogo da modernidade líquida Zigmunt Bau-
man , tão inevitavelmente quanto o encontro do oxigênio com o hidrogênio
3

produz água, a esperança é concebida sempre que a imaginação se encontra


com o senso moral.
Proponho, então, para finalizar, que, seja qual for a área do conhe-
cimento envolvida nas aprendizagens que somos responsáveis por encami-
nhar, que nosso trabalho seja o da conexão e o da inclusão. Somente com
essa generosidade poderemos construir um também melhor modelo para o
ensino que nos revigore a esperança, de, nesse Terceiro Milênio, formarmos
seres humanos mais completos, íntegros e, por isso, mais felizes.

Brasília, junho de 2017

3
BAUMAN, Zygmunt . Vida Líquida. S.P: Editora Zahar, 2005, 210 p.

167

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A IMPORTÂNCIA DO DICIONÁRIO COMO INSTRUMENTO
GERADOR NA CRIAÇÃO DE UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA
NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Vilmar Lourenço de Melo1

Considerações iniciais

Atualmente, segundo o último censo (DOU - PORTARIA No - 984, DE


1o - DE OUTUBRO DE 2015), temos aproximadamente dez milhões de alunos
matriculados nas séries finais do ensino fundamental nas escolas públicas
estaduais ou municipais brasileiras. As práticas para se fazer com que essas
crianças desenvolvam um potencial criativo no trato com a língua portuguesa
é exaustivamente aplicado por muitos professores nas mais variadas situa-
ções possíveis de interação, no entanto o sucesso atingido com essas técnicas
ainda deixa muito a desejar quando se tem como objetivo sanar alguns pro-
blemas específicos em relação, por exemplo, ao estudo do léxico.
Desse modo ao tomar a realidade brasileira como exemplo, o que te-
mos são salas superlotadas, alunos carentes, falta de material didático e,
principalmente, estrutura física que não proporciona a possibilidade de tra-
balho, no mínimo decente, com os estudantes que comparecem as aulas.
Resta ao professor, figura ainda símbolo da resistência e do compromisso
com a tarefa de criar situações diversificadas para ensinar, elaborar condi-
ções favoráveis para tornar a maneira de se trabalhar determinado assunto
de forma eficiente e de um modo que desperte a atenção do aluno para o
assunto explorado naquele momento. Quando se trata, por exemplo, da pos-
sibilidade de se desenvolver a capacidade de consulta, uso e aplicação do
dicionário para fomentar a discussão sobre a significação das palavras e o
desenvolvimento da ampliação vocabular, temos vários entraves. A tendên-

1
Mestrando PROFLETRAS UFU, professor da SEEDF

169

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cia é que se o professor tenha acesso ao número necessário de dicionários
que precisa na biblioteca da escola; ele, então, os usará em forma de consulta
pura e simples. Ou, como acontece na maioria das vezes, nem se utiliza desse
suporte didático, faz valer seu próprio conhecimento impositivo e catedrático
e revela ele mesmo a significação das palavras para o aluno.
O que esse estudo pretende promover nada mais é do que sugerir,
através de uma sequência didática, uma forma a mais de se trabalhar com
a aplicação do dicionário. Não obstante, fundamentar essa possibilidade em
teóricos que a defenderam e justificar seu uso com exemplos práticos que
possam auxiliar os interessados em diversificar suas metodologias, principal-
mente se essas se assemelham com aquelas que já foram apresentadas ante-
riormente.
Mais que uma tentativa de mudar costumes e metodologias, que já
estão presentes há muito nas práticas didático pedagógicas de nossas rea-
lidades escolares, o mais importante nesse estudo é chamar a atenção para
que se perceba o quanto as formas simples podem resgatar nossos estudan-
tes para um caminho mais proveitoso e profícuo no estudo do Português. É,
também, a certeza de que qualquer inovação pode ser usada como estímu-
lo ao aprendizado, principalmente quando se conseguir realizar atividades
relacionadas ao lúdico com a predisposição do professor em colocá-las em
prática.

Uma prática (in)comum

Quando buscamos a compreensão de uma língua, seu uso, praticida-


de e capacidade de comunicação entre falantes, geralmente podemos fazer
por dois caminhos. Ou desenvolvemos naturalmente essa capacidade, utili-
zando-a desde criança e aprendendo a fazer as analogias necessárias para
se estabelecer o diálogo com nossos pares; ou estudamos suas estruturas
nas conhecidas formas de metalinguagem e nos debruçamos sobre os livros
confeccionados com esses propósitos: o dicionário e a gramática. Embora
essas obras falem do mesmo objeto, o dicionário ainda consiste na melhor

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alternativa de sanar as dificuldades quando o assunto é léxico, uma vez que
tradicionalmente o professor de língua materna toma como prática frequen-
te a consulta usual para encontrar respostas sobre a significação das palavras
de uma língua. Mesmo sendo essa prática ainda padrão ela é se torna uma
questão contraditória uma vez que por mais que se estude o léxico de uma
língua jamais alguém conseguirá dominar totalmente seu vocabulário O que
esse estudo pretende promover nada mais é do que sugerir, através de uma
sequência didática, uma forma a mais de se trabalhar com a aplicação do
dicionário. Não obstante, fundamentar essa possibilidade em teóricos que a
defenderam e justificar seu uso com exemplos práticos que possam auxiliar
os interessados em diversificar suas metodologias, principalmente se essas
se assemelham com aquelas que já foram apresentadas anteriormente.
Ou seja, potencialmente falando, temos um vasto material de leitura
para nos adequarmos ao processo de consulta que norteia os planejamentos
utilizados quando se trata da pesquisa vocabular, necessária quando se quer
realizar estudos sobre a estrutura lexical de qualquer língua. No entanto o
que se percebe é que na maioria das vezes ou isso não é trabalhado por parte
do professor – que já elucida todas as questões vocabulares para seus alunos
e resolve a questão – ou se usa a forma ainda muito centrada em levar os li-
vros para a sala, entregar um para cada estudante, fazê-lo somente consultar
e procurar a significação das palavras e dar o trabalho por encerrado. E se,
como o próprio Debov afirma, o dicionário é a única forma de aproximação
lexical ideal, mesmo sem atingi-la na sua plenitude, o que podemos fazer
para diversificar o trabalho feito com ele sem cansar nossos aprendizes?
Ao contrário do que muitos acreditam, muitos países consideram mui-
to importante não só o ensino quanto o uso dos dicionários em trabalhos es-
colares. Na Alemanha, por exemplo, o uso e a consulta do dicionário em exa-
mes são permitidas. Em outros países se incentiva a consulta desde criança,
ainda que em livros adaptados à linguagem infantil e com características que
certamente facilitam seu manuseio. Isso sem dizer que a defesa do seu uso
não é feita somente pelos lexicógrafos. O filólogo e foneticista Henry Sweet
(1899, p 258-259), por exemplo, argumenta que:

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Um dicionário realmente útil [...] deveria fornecer amplas in-
formações sobre aquelas construções gramaticais que caracte-
rizam palavras individuais e que não podem ser deduzidas com
certeza e facilidade de uma simples regra gramatical. [Também
deveria] indicar as formas anômalas e irregulares [...] (p. 257)
Para facilitar a consulta recomenda-se a ordem alfabética. (p.
258). (HENRY SWEET, 1899, p. 258-259)

Ou seja, não devemos deixar de lado o uso do dicionário, mas sim sa-
ber optar pelos que tenham qualidade. Não conseguiremos alcançar sempre
os significados por intermédio do contexto ou da mera suposição, se faz ne-
cessário tal tipo de suporte que inclusive facilita a consulta e se mostra mais
eficaz na composição das interpretações da linguagem que nos são apresen-
tadas. Ainda se tratando do uso dos dicionários como elemento auxiliador no
ensino de uma língua, Mathews (1955) num artigo sobre o uso desse recurso
para calouros universitários na disciplina redação, afirma que:

Dicionários são instrumentos – muito mais complicados e com


muito mais usos do que os estudantes imaginam. Nós todos sa-
bemos que os alunos precisam de estímulo e de orientação no
uso de dicionários, e talvez haja poucos professores de redação
dedicando uma parte de seu programa a ajudar os estudantes
a formarem o hábito de consultar dicionários. [...] poucos estu-
dantes são capazes de usar seus dicionários de maneira eficien-
te. [...] uma coisa é achar uma palavra num dicionário, outra to-
talmente diferente é compreender plenamente as informações
dadas sobre ela. (MATHEWS, 1955, p. 167)

O argumento reforça o que já foi dito anteriormente em ralação a


como o uso dos dicionários tende a ser abandonado pela maioria dos pro-
fessores nas suas práticas docentes. Outra estudiosa da linha de pesquisa le-
xicográfica, autora de vários estudos na área, Maria da Graça Krieger, afirma
na Revista de Língua & Literatura da Universidade Integrada do Alto Uruguai
(2005, p.102) que:

172

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A adoção de um dicionário como um dos instrumentos básicos
para o ensino do idioma revela a consciência do valor didático
desse tipo de obra que oferece informações sobre o léxico, seus
usos e sentidos, apresentando ainda os padrões gráficos e silá-
bicos dos vocábulos e expressões de um idioma entre outros
elementos. (KRIEGER, 2005, p. 102)

Vejamos então o que os Parâmetros Curriculares Nacionais abordam


sobre a questão do uso dos dicionários (tratado como léxico) para as séries
finais do ensino fundamental:

O trabalho com o léxico não se reduz a apresentar sinônimos de


um conjunto de palavras desconhecidas pelo aluno. Isolando a
palavra e associando-a a outra apresentada como idêntica, aca-
ba-se por tratar a palavra como portadora de significado abso-
luto, e não como índice para a construção do sentido, já que as
propriedades semânticas das palavras projetam restrições sele-
cionais. Esse tratamento, que privilegia apenas os itens lexicais
(substantivos, adjetivos, verbos e advérbios), acaba negligen-
ciando todo um outro grupo de palavras com função conectiva,
que são responsáveis por estabelecer relações e articulações
entre as proposições do texto, o que contribui muito pouco
para ajudar o aluno na construção dos sentidos. Consideran-
do a densidade lexical dos universos especializados, em que a
carga de sentidos novos supera a capacidade do receptor de
processá-los, o domínio de amplo vocabulário cumpre papel es-
sencial entre as habilidades do leitor proficiente. A escola deve,
portanto, organizar situações didáticas para que o aluno pos-
sa aprender novas palavras e empregá-las com propriedade.
Do que se veio afirmando, é possível depreender um princípio
orientador: não são apenas as palavras difíceis que precisam
ser objeto de estudo; a formação de glossários é, apenas, uma
das tarefas. É preciso entender, por um lado, que, ainda que se
trate a palavra como unidade, muitas vezes ela é um conjunto
de unidades menores (radicais, afixos, desinências) que concor-
rem para a constituição do sentido. E, por outro, que, dificil-

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mente, podemos dizer o que uma palavra significa, tomando-a
isoladamente: o sentido, em geral, decorre da articulação da
palavra com outras na frase e, por vezes, na relação com o ex-
terior linguístico, em função do contexto situacional. (BRASIL,
1998, p. 84-85)

Posta, pois, a recomendação defendida pelos PCN, justifica-se então a


ideia inicial desse trabalho, porque essa se apoia na premissa de defender a
importância do uso sistemático do dicionário nas aulas de língua portuguesa,
sem, no entanto, deixar de empregar novas práticas que diversifiquem e dife-
renciem o uso paradigmático desse recurso tão importante.

Comparando formas de trabalho

Em um texto de Ana Maria Machado, por nome de Entre vacas e gan-


sos – escola, leitura e literatura, a autora comenta sobre sua presença em
um simpósio de literatura infantil para professores de alunos de classe mé-
dia e reforça o quanto se perde tentando buscar na interpretação literária
(exemplo no caso) algo técnico; como se fosse uma receita de bolo ou uma
fórmula química que levasse os alunos ao tão sonhado e desejado “interesse
pela leitura”. O mais curioso é que a própria autora relata numa passagem
adiante, onde conta a experiência de uma professora que, com dificuldades
enormes e trabalhando em uma situação totalmente adversa em uma escola
que só tinha em seu acervo dois livros, conseguiu fazer com que seus alunos
produzissem com qualidade e lessem. Como os alunos gostavam muito de
ouvir histórias, ela sugeriu que os mesmos ouvissem histórias em casa e a
trouxessem para a sala de aula numa experiência mais ou menos assim rela-
tada:

Cada dia se contava uma, depois todos comentavam, desenha-


vam, reescreviam. Foram juntando os textos e desenhos num
caderno especial. Na verdade, em dois cadernos – um com his-
tórias de assombração e “alma do outro mundo”, outro com

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contos de bichos, índios e folclore da beira do rio. Agora, a esco-
la tinha mais esses dois livros. A pergunta que essa professora
me fez foi sobre a conveniência ou não de continuar desenvol-
vendo esse tipo de atividade e criando esse novo material de
leitura que, evidentemente, não era “literatura”, mas era o úni-
co disponível. Para justificar sua atitude, mencionou que ainda
dispunha de muito material, falou em várias das histórias que
os meninos contaram e em outras mais que ela conhecia e lem-
brava, cheia de entusiasmo – uma verdadeira biblioteca oral.
(MACHADO, 2001, p. 114)

Consequentemente se evidencia, pela citação e exemplo dado pela


autora, que se nos envolvermos com um trabalho que conte com a efetiva
participação dos estudantes e que resulte também em um produto final, a
satisfação e o empenho serão quase sempre totais. Claro que agora a meta se
traduz, assim como a experiência relatada, em aliar uma forma de produção
dos alunos, vinculada ao uso do dicionário e à pesquisa do léxico, que nos
permita alcançar um produto final de autoria deles, ou pelo menos com a
sua participação direta. A fundamentação teórica para se alcançar o objetivo
pedagógico almejado será a sequência didática, por intermédio dos, já tão
conhecidos, Schneuwly e Dolz.

Justificando o uso da sequência didática de Schneuwly e Dolz

É possível ensinar a escrever textos e a exprimir-se oralmente em si-


tuações públicas escolares e fora da escola. A sequência didática surge, como
aporte, por intermédio de um conjunto de atividades escolares, organizadas
em torno de um gênero textual oral ou escrito. Ela auxilia diretamente no tra-
balho com gêneros, e dominá-los, lhes permite escrever ou falar de maneira
mais adequada numa dada situação; as sequências possibilitam ao aluno a
prática de linguagens novas ou dificilmente domináveis.
Para realizarmos tal tarefa, vamos precisar de um roteiro que inclui:
apresentação da situação (preparação), produção inicial (reguladora), módu-

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los (decomposição do problema) – na quantidade necessária – e a produção
final (prática e avaliação). Cada um deles dirigidos às situações adequadas e
exigidas, com a finalidade de que o procedimento seja pertinente e com a
linguagem, oral ou escrita, mais conveniente. Resta ao professor trabalhar as
dificuldades que aparecerão, quando as mesmas mostrarem-se destoantes
da teoria.
Para se chegar a tal procedimento, serão utilizadas escolhas pedagógi-
cas, linguísticas e psicológicas; tudo isso requer, para que fique claro, não só a
mudança prática de postura e posicionamento do docente como também do
discente, juntamente com o aproveitamento do saber cultural prévio. Além
disso, a aplicação da metodologia, por vezes utilizada para dimensionar o
ensino da gramática e ortografia, bem como a opção por gênero a ser traba-
lhado e sua inserção na série pertinente, pode conduzir os alunos a um texto
final ideal.
Eis um grande desafio: convencer sobre a aplicabilidade das sequên-
cias didáticas em um sistema já tão condicionado por práticas tradicionais. E
seguindo, em conformidade com os autores:

As práticas de linguagem são consideradas aquisições acumu-


ladas pelos grupos sociais no curso da história. Numa perspec-
tiva interacionista, são, a uma só vez, o reflexo e o principal
instrumento de interação social. É devido a essas mediações
comunicativas, que se cristalizam na forma dos gêneros, que as
significações sociais são progressivamente reconstruídas. Disso
decorre um princípio que funda o conjunto do nosso enfoque:
o trabalho escolar, no domínio da produção de linguagem, fa-
z-se sobre os gêneros, quer se queira ou não. Eles constituem
o instrumento de modificação de toda estratégia de ensino e o
material de trabalho, necessário e inesgotável, para o ensino da
textualidade. A análise de suas características fornece uma pri-
meira base de modernização instrumental para organizar as ati-
vidades de ensino que esses objetos requerem. (SCHNEUWLY &
DOLZ, 2004, p. 44)

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Consequentemente só se corrobora uma afirmação por intermédio de
interferências didáticas que sustentem sua base metodológica e que se afi-
nem com as necessidades sociais que antes se faziam presentes. Os domínios
que a linguagem requer acontecem tanto na expressão oral quanto na escri-
ta. A forma de constituí-los e que pode variar.

Trabalhando a sequência didática

TÍTULO: A aquisição lexical por intermédio da ludicidade no uso do dicionário.


Modalidade: Ensino Fundamental II
Ano: 9º ano (turma com aproximadamente 30 alunos (?))
Componente curricular: Língua Portuguesa
OBJETIVOS: Ao final da proposta o aluno poderá/deverá estar apto a:
• Consultar com maior eficiência os dicionários de língua portuguesa;
• Identificar os sinônimos das palavras, bem como fazer a associação dos
seus significados;
• Produzir um portfólio com palavras e seus significados;
• Interagir com os colegas proporcionando um melhor ambiente para a
aprendizagem.

DURAÇÃO DAS ATIVIDADES (H/A): 04 (podendo se estender de acordo com a


necessidade da turma)

CONHECIMENTOS PRÉVIOS:
• Habilidade de consulta a dicionários;
• Oralidade;
• Confecção de portfólios.

ESTRATÉGIAS E RECURSOS UTILIZADOS:


• Utilização de dinâmica de grupo;
• Dicionários de língua portuguesa;
• Cartazes confeccionados com palavras da língua portuguesa e outros com
seus respectivos significados;
• Folhas pautadas para registro.

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ETAPA 1 – 02 aulas
Atividade 01 (organização)
• Dividir a turma em três grupos de dez alunos;
• Os grupos serão organizados em três filas, compostas por dez alunos cada,
dispostas em formato de “U” na sala de aula;
• Uma fila será numerada de 01 a 10 e cada um dos alunos receberá um
cartaz previamente produzido, e sem ordem preestabelecida, com uma
palavra da língua portuguesa. Esse só será revelado no momento em que
o número for escolhido;
• A segunda fila será caracterizada por letras de “A” a “J” e cada aluno tam-
bém receberá um cartaz, em modelo idêntico aos da primeira fila, conten-
do os significados distribuídos para a primeira fila. Esse só será revelado
no momento em que a letra for escolhida;
• A terceira fila será dividida em dois grupos (com cinco alunos), os cinco
primeiros receberão (cada) um dicionário da língua portuguesa. Os últi-
mos cinco receberão folhas pautadas para registro.
Atividade 02 (desenvolvimento)
• O professor, como elemento mediador, nos moldes do jogo batalha na-
val, dita um número e uma letra simultaneamente. O aluno escolhido da
primeira fila levanta o cartaz com a palavra escolhida e o da segunda fila
também. Dada a quantidade de palavras é bem provável que não coincida
de a palavra escolhida ter seu significado elucidado com o sorteio. Nesse
momento o primeiro grupo da terceira fila, de posse dos dicionários rece-
bidos, consulta para confirmar a correspondência entre palavra e signifi-
cado. A partir do momento em que houver certeza dessa correspondên-
cia, os alunos responsáveis pelo registro anotam palavra e significado.
• O sorteio dos números e letras prossegue até que todas as palavras te-
nham seus significados elucidados. Todas as palavras serão registradas
para a confecção do portfólio na aula seguinte.

ETAPA 2 – 02 aulas (produção de material)


Atividade 1
• A turma fará uma avaliação oral sobre a atividade, relatando a experiência
de cada participante dentro do seu grupo, de acordo com a tarefa que
realizou.

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• Será confeccionado um portfólio a ser exposto num local de muito movi-
mento no interior da escola e de preferência em uma reunião de pais, acor-
dado previamente com a coordenação e direção da instituição, com as pa-
lavras transpostas dos registros dos alunos e seus respectivos significados.
Perspectiva
• Caso o professor perceba a necessidade de que novas rodadas de palavras
sejam aplicadas à(s) turma(s), diferentes palavras e seus significados (in-
clusive em sistema de rodízio com as outras turmas de 9º ano da escola)
serão utilizados como uma repetição do processo.

Considerações finais

Educar não é uma tarefa fácil, conseguir convencer em situações con-


sideradas adversas às vezes parece intransponível, cada passo é decisivo e,
porque não dizer, fundamental no desenrolar das mais atribuladas situações.
Tratar esses momentos com a devida atenção que eles merecem pode fazer
a diferença entre o poder de difundir o conhecimento definitivo e o de se
resignar ao lugar comum em que nos encontramos. Essa tentativa de recons-
truir conceitos no uso e na consulta aos dicionários de língua portuguesa visa
uma tentativa de estimular a prática da consulta sem o pragmatismo que se
espera do uso casual dessa prática.
Quando defendemos a questão lúdica como fundamental nas novas
vertentes da pedagogia moderna, nos defrontamos com a difícil tarefa de
reformularmos as práticas didáticas sem nos distanciarmos das exigências
programadas e defendidas pelos currículos adotados nas nossas escolas. Ao
incentivar novas possibilidades na construção do conhecimento, sem abdicar
do conhecimento prévio que todo estudante traz como bagagem cultural e
vivencial, reforçamos a ideia de que o saber se propaga com mais facilidade
quando harmonizado a técnicas que insistem em ter o prazer como aliado.
Fazer diferença nesse tipo de relação de intercâmbio cognitivo e metacogni-
tivo pode ser o que venha a transformar o jeito como atualmente se ensina
na nossa sociedade.

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Referências bibliográficas

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Morais. Alfa, São Paulo, 28(supl.):45-69, 1984.
MACHADO, Ana Maria. Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira. 2001.
DOLZ, Joaquim, SCHNEUWLY, Bernard & NOVERRAZ, Michele: Sequências
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Campinas, SP; Mercado das letras, 2004. p. 81-108.
SWEET, Henry. The Practical Study of Languages. A Guide for Teachers and
Learners. Tradução de Clóvis Barleta de Morais. London: Dent, 1899.
CONCEIÇÃO, Mariney P. Vocabulário e consulta ao dicionário: analisando as
relações entre experiências, crenças e ações na aprendizagem de LE.
2004. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos), Universidade Federal
de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004.
MACHADO, Maria Teresa. Dicionários: não será preciso ensinar como usá-
los? Claritas (Revista do Departamento de Inglês da PUC-SP), v. 7, p.
85-93, 2001.
MATHEWS, Mitford M. The Freshman and His Dictionary. College Composition
and Communication, v. 6, p. 197-190, 1955. (Republicado em: ALLEN,
H. B. (Ed.), Readings in Applied English Linguistics. New York: Appleton-
Century-Croft, 1964. p. 434-438.)
MORAES, Adriana C. de. A utilização de dicionários de Língua Portuguesa em
salas de aula do Ensino Fundamental. 2007. Dissertação (Mestrado
em Lingüística), Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto,
2007.
KRIEGER, Maria da Graça. Revista de Língua & Literatura da Universidade
Integrada do Alto Uruguai, 2005, p. 102
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA.
Parâmetros nacionais de qualidade para o ensino fundamental da
educação básica. Ministério da Educação. Secretaria de Educação
Básica: Brasília (DF), 1998.

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POSFÁCIO

O presente livro é o produto do II SICED-CEMEIT e nele estão apenas


algumas das muitas discussões que ocorreram nos três dias do evento, foram
cinco conferências e diversas mesas redondas com a participação de gran-
des nomes da educação no Brasil, além das muitas mesas de comunicação
protagonizadas por professores da Secretaria de Estado de Educação com a
apresentação de suas pesquisas e experiências em sala de aula.
O ‘II Simpósio de Integração e Cooperação Educativa: construindo uma
educação igualitária’, do Centro de Ensino Médio Escola Industrial de Tagua-
tinga, se propôs a promover divulgar as pesquisas que vêm sendo desenvol-
vidas pelos profissionais da educação pública do DF para que haja melhor
aproveitamento. A intenção primordial do evento é incentivar a discussão
das questões relativas à educação básica; problematizar as relações entre
as áreas do conhecimento; debater a respeito de novas propostas multidis-
ciplinares e interdisciplinares de pesquisa e de ensino, na busca por uma in-
tegração entre experiências, ensino e pesquisa que possa impactar de forma
construtiva a educação pública do DF.

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Coordenadora:
Maxçuny Alves Neves da Silva – CEMEIT – SEEDF

Comissão organizadora:
Maxçuny Alves Neves da Silva – CEMEIT – SEEDF
Elizabete Barros de Sousa Lima – UnB
Kelly Fabíola Viana dos Santos – SEEDF
Julliany Alves Mucury – UnB
Juliana Estanislau de Ataíde Mantovani – IFB
Vilmar Lourenço de Melo – CEMEIT – SEEDF
Fabiana de Oliveira Santos – SEEDF

Corpo Diretivo do CEMEIT:


Marilene Vieira Campos Gomes – Diretora
José Roberto Uchôa Pinheiro – Vice-Diretor
Gabriel Souza Rodrigues – Supervisor
Keyli Christina S. de M. de Resende – Supervisora
Márcia Cristina Suzano Melo - Supervisora

Apoio:

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