Cavalo de Guerra - Michael Morpurgo
Cavalo de Guerra - Michael Morpurgo
Cavalo de Guerra - Michael Morpurgo
MICHAEL MORPURGO
Tradução
Rodrigo Neves
Para Le ice
Muitas pessoas me ajudaram a escrever este livro. Quero
agradecer em particular a Clare e Rosalind, a Sebastian e Horatio, a
Jim Hindson (veterinário), a Albert Weeks, ao falecido Wilfred Ellis e
ao falecido capitão Budge — os três octogenários do vilarejo de
Iddesleigh.
Nota do Autor
Joey.
Pintado pelo capitão James Nicholls, outono de 1914.
Pode ser que o contraste com os meses idílicos que passamos com
Emilie e seu avô tenha tornado o que veio a seguir uma experiência
amarga para Topthorn e eu; ou talvez tenha sido a guerra, que
estava ficando cada vez mais sangrenta. Em alguns lugares, os
canhões perfilavam-se por quilômetros e quilômetros, com apenas
alguns metros de espaço entre eles, e, quando começavam a ser
disparados, faziam a terra tremer sob os nossos cascos. As fileiras de
homens feridos pareciam não ter fim, e o campo que ficava atrás da
linha de frente tinha sido quase todo devastado.
O trabalho em si não diferia muito de puxar a carroça hospitalar,
mas agora dormíamos ao relento e, é claro, não tínhamos a nossa
Emilie para nos confortar. De repente, a guerra ficou mais próxima.
Tínhamos voltado para o barulho insuportável, para o cheiro
repugnante da batalha, puxando canhões pelo terreno lamacento,
sendo impelidos e chicoteados por homens que não se importavam
com o nosso bem-estar. Tudo o que lhes importava era levar os
canhões até o local combinado. Talvez não fossem homens maus. O
fato é que estavam sendo movidos por uma compulsão medonha
que não deixava espaço nem tempo para a cordialidade nem para a
preocupação com o próximo, seja ele homem ou cavalo.
Com a chegada do inverno, a comida ficou escassa. Recebíamos a
nossa ração de milho em intervalos irregulares e tínhamos direito a
apenas uma pequena ração de feno por dia. Um a um, começamos a
perder peso e condicionamento físico. Por outro lado, as batalhas
pareciam ficar cada vez mais sangrentas e longas, de modo que
tínhamos de puxar os canhões por mais tempo. Sentíamos dores
constantes e estávamos sempre com frio. Chegávamos ao final do dia
cobertos por uma camada de lama úmida e gelada que escorria pelo
corpo e parecia entrar nos ossos lentamente.
Bastante diversificado, o time que puxava o canhão era composto
de seis cavalos. Dos quatro a que nos juntamos, apenas um tinha
força e altura suficientes para realizar o trabalho. Seu nome era
Heinie. Ele era um cavalo enorme que parecia não se importar com o
que acontecia ao seu redor. O restante do grupo tentava imitá-lo,
mas apenas Topthorn era bem-sucedido. Heinie e Topthorn
formavam a parelha da frente, e eu vinha logo atrás deles, atrelado a
um cavalo pequeno e magro, mas resistente, chamado Coco. Coco
tinha no focinho marcas brancas que divertiam os soldados que
passavam por nós, mas não havia nada de engraçado nele — ele
tinha o pior temperamento que eu já vi num cavalo. Quando Coco
estava comendo, ninguém ousava chegar perto o bastante para ser
mordido ou levar um coice. Atrás de nós, vinha uma parelha de
pôneis idênticos, com pelo ruço e crina e rabo brancos.
Nem mesmo os soldados conseguiam diferenciá-los um do outro.
Eles não eram chamados pelo nome, mas de “os dois Haflingers
dourados”.
Como eram bonitos e invariavelmente dóceis, recebiam mais
atenção e carinho dos artilheiros. Deviam ser uma visão estranha,
porém divertida, para os soldados cansados que nos viam trotando
pelos vilarejos destruídos, rumo à linha de frente. Não havia dúvida
de que eles trabalhavam tanto quanto cada um de nós e, apesar do
tamanho diminuto, eram tão fortes e resistentes quanto nós. No
entanto, quando marchávamos a meio galope, agiam como um freio,
atrasando-nos e atrapalhando o ritmo do grupo.
Surpreendentemente, o gigante Heinie foi o primeiro a
demonstrar sinais de fraqueza. A lama fria e movediça e a falta de
boa forragem por causa do inverno rigoroso fizeram com que ele
perdesse musculatura, transformando-o em poucos meses numa
criatura magra e frágil. Então, confesso que, para minha grande
satisfação, fui mudado de lugar e colocado ao lado de Topthorn.
Heinie ficou atrás de nós, emparelhado com o pequeno Coco, que
também estava fraco e cansado. Os dois pioraram rapidamente, até
que não conseguiram mais puxar em superfícies que não fossem
planas e firmes, e, como raramente encontrávamos terrenos desse
tipo, passaram a ser de pouca valia para o grupo e fizeram com que
tivéssemos de trabalhar mais arduamente.
Dormíamos ao relento, cobertos de lama gelada até os jarretes,
em condições muito piores do que as enfrentadas no primeiro
inverno da guerra, quando Topthorn e eu pertencíamos à cavalaria.
Naquela época, havia para cada cavalo um cavaleiro dedicado a
confortá-lo e a cuidar dele da melhor maneira possível. Agora, a
eficiência da artilharia era mais importante, e nós amargávamos um
pobre segundo lugar na lista de prioridades. Éramos tratados como
simples cavalos de tração.
Os próprios artilheiros tinham o cansaço e a fome estampados no
rosto. Para eles, a sobrevivência era o mais importante. Apenas o
velho artilheiro que conduzia a carroça de munição parecia ter
tempo para ficar conosco. Dava-nos de comer pedaços de um pão
duro e escuro e passava mais tempo conosco do que com os
companheiros, que o evitavam tanto quanto possível. Ele era um
homem pequeno, corpulento e deselegante que ria o tempo todo e
falava mais consigo mesmo do que com qualquer outra pessoa.
Os efeitos da exposição ao sereno, da má alimentação e do
trabalho árduo eram visíveis em todos nós. Poucos de nós ainda
tinham pelos crescendo na porção inferior das pernas, e nessa região
a pele tinha se tornado um aglomerado de feridas abertas. Até
mesmo os pequenos e vigorosos Haflingers começaram a emagrecer.
Como todos os outros, quando caminhava, eu sentia dores
lancinantes, sobretudo dos joelhos para baixo, e não havia um único
cavalo no grupo que não estivesse mancando. Os veterinários faziam
o possível para nos ajudar, e até mesmo os artilheiros mais
insensíveis pareciam se afligir à medida que a nossa condição
piorava, mas não havia nada que pudesse ser feito para que a lama
desaparecesse.
Os veterinários balançavam a cabeça, desesperados, e, sempre
que podiam, dispensavam alguns de nós do trabalho, para que
pudéssemos descansar e nos recuperar, mas alguns tinham piorado
tanto que eram levados para longe e sacrificados depois da inspeção
médica. Certa manhã, Heinie teve esse fim. A caminho da linha de
frente, passamos por ele, um colosso de cavalo naufragado na lama.
O mesmo aconteceu com Coco, que foi atingido no pescoço por
estilhaços de granada e teve de ser sacrificado no lugar onde caiu, na
margem da estrada. Por mais que eu o detestasse — ele era um
animal maldoso —, era uma visão terrível e dava pena ver um
colega, com quem eu havia trabalhado por tanto tempo, sendo
descartado e esquecido numa vala.
Durante todo o inverno, os pequenos Haflingers ficaram conosco,
contraindo o dorso largo e puxando os tirantes com toda a força que
podiam reunir. Eram gentis e bondosos, dóceis e corajosos, e, por
esse motivo, Topthorn e eu passamos a gostar muito deles, que, por
sua vez, procuravam-nos sempre que precisavam de apoio e de
amizade, e nós lhes dávamos ambas as coisas de bom grado.
Comecei a perceber que Topthorn começava a fraquejar quando
senti a carroça mais pesada do que antes. Estávamos atravessando
um pequeno riacho quando as rodas atolaram na lama. Virei-me e vi
que ele caminhava com a cabeça baixa e com grande esforço. Seus
olhos me diziam o quanto ele estava sofrendo, de modo que comecei
a puxar o tirante com mais força para aliviar a sua carga.
Naquela noite, a chuva caiu implacavelmente sobre nós. Tentei
protegê-lo quando ele se deitou de lado na lama, as patas esticadas, e
passou a erguer a cabeça de vez em quando com espasmos de tosse.
Ele tossiu a noite toda e teve um sono irregular. Fiquei
preocupado.
Toquei-o com o focinho e o lambi para aquecê-lo e confortá-lo,
tentando lhe mostrar que não estava sozinho. Consolei-me com o
pensamento de que Topthorn teria uma grande reserva de energia
para superar a doença, uma vez que ele era o cavalo mais forte e
resistente que eu conhecia.
Na manhã seguinte, ele já estava de pé antes mesmo que os
artilheiros nos trouxessem a ração de milho, e, embora mantivesse a
cabeça mais baixa do que o costume, movendo-se com certa cautela,
vi que ele teria forças para sobreviver se pudesse descansar.
No entanto, naquela manhã, depois de ter examinado os cavalos
um a um, o veterinário fixou o olhar em Topthorn e auscultou-lhe o
peito.
— Esse é forte — disse ele ao oficial de óculos, que era odiado
tanto pelos cavalos quanto pelos homens. — Tem pedigree. Isso pode
atrapalhá-lo, major. Ele é bom demais para puxar canhões. Acho que
ele deveria descansar um pouco, mas o senhor não tem cavalos para
substituí-lo, não é? Ele vai sobreviver, mas pegue leve, major.
Conduza-os com delicadeza. Caso contrário, não haverá cavalos,
e, sem cavalos, seus canhões serão inúteis.
— Ele tem que trabalhar como todo mundo, doutor — disse o
major com a voz fria. — Nem mais nem menos. Não posso abrir
exceções. Se o senhor disser que ele está liberado, ele estará liberado.
É isso.
— Ele está liberado — disse o veterinário, relutante. — Mas tome
cuidado, major. Estou lhe avisando.
— Vamos fazer o possível — disse o major, com desdém. E, para
ser justo, eles faziam o possível. Era a lama que estava nos matando
um a um, a lama, a falta de abrigo e a escassez de comida.
CAPÍTULO 13