SAHLINS - Ilhas de História Capítulo 5
SAHLINS - Ilhas de História Capítulo 5
SAHLINS - Ilhas de História Capítulo 5
Coleção
ANTROPOLOGIA SOCIAL
diretor
154071
MOVIMENTO PUNK NA CIDADE AFETO
Janice Caiafa Mynam Lins de Barros
O ESPÍRITO MILITAR ILHAS DE HISTÓRIA
Os MILITARES E A REPÚBLICA Marshall Sahlins
Celso Castro
DESVIO E DIVERGÊNCIA
VELHOS MILITANTES INDIVIDUALISMO E CULTURA
Angela Castro Gomes, PROJETO E METAMORFOSE
Dora Flaksman, Eduardo Stotz SUBJETIVIDADE E SOCIEDADE
DA VIDA NERVOSA A UTOPIA URBANA
Luiz Fernando Duarte Gilberto Velho
ISBN 85-7110-127-2
homenagem que se prestaria ao capitão Cook. Essa também foi a própria hierarquia, expresso no aloha recíproco mas desigual
a razão de Kaneoneo atropelar as canoas: (as pessoas foram cap- entre o povo e o chefe que mantinha as terras do povo como seu
turadas por um paradoxo havaiano, pois era impossível abrir ca- património. As relações sociais das pessoas comuns, além da-
minho para a canoa e ao mesmo tempo se prostrar diante dela.l quelas mantidas com parentes imediatos, eram mediadas pelos
Tomarei esse incidente como um paradigma concentrado da chefes dominantes ("solidariedade hierárquica"). Enquanto que
história havaiana: das relações mutantes entre chefes e popula- os chefes, por suas próprias ligações com o reino espiritual (Ka-
ção, marcadas por formas de opressão sem precedentes, desenvol- hiki), mediavam também as relações do cosmos com a totalida-
vidas a partir das .respectivas relações com os aventureiros euro- de social. E, assim, temos as tão famosas demandas sexuais das
peus, especialmente com o crescente número de comerciantes. havaianas para com a ávida tripulação dos navios britânicos.
Essa colisão de havaianos não é somente um paradigma, mas Era sua maneira de "encontrar um senhor", através de ligações
também resume uma possível teoria da história, da relação entre,- ascendentes, que estabeleceriam relações de parentesco com e rei-
estrutura e evento, que se inicia com a proposição de que a trans-v^ vindicações junto aos poderes estabelecidos. Portanto, quando os
formação de uma cultura também é um modo de sua reprodu- marinheiros foram saudados com uma efusão do aloha tradicio-
ção. Cada qual à sua maneira, chefes e povo reagiam ao estran- nal, como ainda se saúdam os turistas, foi exatamente devido à
geiro de acordo com suas autoconcepções e seus habituais inte- mesma síntese interessada de libido e lucro.
resses. As formas culturais tradicionais abarcavam o evento ex- Por outro lado, examinemos mais de perío o comportamento
traordinário, e, assim, recriavam as distinções dadas de status, do chefe sagrado de Kahua'i, Kaneoneo. Seu status cosmológico,
com o efeito de reproduzir a cultura da forma que estava consti- como o de outros chefes importantes, pressupunha que tivesse
tuída. Porém, como já frisamos, o mundo não é obrigado a obe- uma intervenção privilegiada junto ao divino estrangeiro, (p ad-
decer à lógica pela qual é concebido. As condições específicas do vento de Cook em 1778 introduziu uma certa "estrutura da con-
contato europeu deram origem a formas de oposição entre chefia juntura" histórica: um sistema de relações que estava determi-
e pessoas comuns que não estavam previstes nas relações tradi- nando o futuro do comércio europeu e da política havaiana. Os
cionais entre elas. Temos aqui, então, a segunda proposição de/^ ingleses estavam para os havaianos em geral, assim como a che-
nossa possível teoria da história: no mundo ou na ação — tecnica-^- fia havaiana estava para seu próprio povo. De início, as implica-
mente, em atos de referência — categorias culturais adquirem ções eram, no entanto, equívocas ou até mesmo perigosas. Pois
novos valores funcionais. Os significados culturais, sobrecarrega- na versão havaiana da teoria de reis-estrangeiros, o reino do sa-
dos pelo mundo, são assim alterados. Segue-se então que, se as grado soberano de Kahiki é fundado com base na usurpação da
relações entre as categorias mudam, a estrutura é transformada. dinastia já existente. De fato, em toda ascensão — do mesmo
Primeiro, portanto, mostremos a base tradicional das rea- modo que em toda cerimónia anual de Makahiki — o rei toma
ções havaianas à presença inglesa. Homens e mulheres comuns, o poder, "celebra a vitória", como diz Hocart, fazendo de seu
cada um à sua maneira, ensaiavam trocas espontâneas com o pes- antecessor uma vítima do sacrifício ou de feitiçaria. Daí essa
soal de Cook, resultando num ágil comércio material. Esse prag- ambivalência inicial da aproximação de Kaneoneo com os navios
matismo simples era especialmente característico da consciência de Cook: o chefe só viera no quarto dia após a chegada, por-
cultural — do habitus — do povo havaiano, contrastando com a tanto, bastante tempo depois das pessoas comuns. O comporta-
de seus chefes e sacerdotes (cf. Cap. 2). Essa conduta da parte mento de Kaneoneo seria repetido por outros chefes importantes
da população estava especificamente em concordância com aquele nas décadas que se seguiram. Várias vezes eles se aproximaram
interesse que os havaianos chamam de "mi haku", "buscar um\ dos navios depois dos populares e com igual demonstração am-
senhor". Era a contrapartida do sistema de dominação heróica j bígua de dignidade e circunspecção. No caso de Kaneoneo, quan-
da chefia. O princípio global mais importante de organização era do finalmente chegou a abordar o Discovery, foi impedido por
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seu séquito de ir além da prancha de embarque onde haviam for- identidades preeminentes estrangeiras tinha virado alta moda no
mado um círculo protetor a seu redor e não permitiram a apro- Havaí. Como testemunho desse fato, temos o relato de um co-
ximação de outro inglês a não ser o capitão Clerke. O problema merciante americano sobre a reunião de figurões havaianos em
era que se os britânicos realmente eram deuses, eles eram, en- 1812:
tão, os rivais naturais do chefe.
Porém, o comportamento de Kaneoneo, a sua hesitação, o Na pista de corridas, observei Billy Pitt, George Washington
levou a contradições práticas com seu povo. A trajetória de co- e Billy Cobbet passeando de maneira muito íntima... en-
lisão pode ser mapeada a partir das categorias da cultura tradi- quanto no centro de outro grupo se encontravam Charley
cional, enquanto vetor das diferenças habituais entre a população Fox, Thomas Jefferson, James Madison, Bonnèpart e Tom
comum e o chefe sagrado. Ser o primeiro nas relações com o di- Paine, conversando de modo igualmente amigável. (Cox,
vino estrangeiro não era a única prioridade do chefe. Ele era o 1832:44)
primeiro em todas as coisas: o primogénito, o primeiro a agir
na guerra e na paz, aquele que iniciava o ano agrícola através Nessa época, Cox (pseudónimo de Kahekili Ke'eaumoku)
dos sacrifícios apropriados e coletava os primeiros frutos como era governador de Maui, John Adams (aliás Kaukini) logo seria
seu tributo. Essa prerrogativa de "primazia" é o princípio essen- governador de Hawai'i, enquanto o antes mencionado Billy Pitt
cial de hierarquia polinésia, tornando o funcionamento político (Kalaimoku) era "primeiro-ministro" do remo. Por volta dessa
da sociedade igual à atividade criativa da divindade. E essas rei- época, marcada pelo lucrativo comércio do sândalo, também de-
vindicações de Kaneoneo à precedência o colocavam em violenta senvolveu-se uma intensa competição por status no seio da aris-
oposição ao povo que estava em seu caminho. Mesmo assim, tocracia havaiana. Essa competição tomou a forma do consumo
ligação privilegiada do chefe com os deuses sempre fora mantida conspícuo de bens de luxo vindos da Europa — mas também
com o sacrifício dos homens sem lei, ou seja, dos violadores dos j o mana esteve sempre associado a um estilo de luminosidade ce-
tabus reais. lestial. O item principal de consumo eram as roupas finas, e as
Nas décadas seguintes à visita fatal de Cook, chefia e plebe, modas sofriam loucas mudanças, como se vê no lamento de um
homens e mulheres, tabus rituais e bens materiais, se engajaram mercador de Boston sobre uma carga inútil de seda, de um tipo
na troca prática com europeus, de maneira a alterar os sentidos que já havia chegado jor outro navio no ano anterior. O objetivo^
e as relações habituais. E essas reavaliações funcionais sempre dos chefes era ter algoi "que jamais haviam visto".3 Logo, tecidos \
aparecem como extensões lógicas dos conceitos tradicionais. A"j finos da China e da Nova Inglaterra eram acumulados em supe- )
estrutura dominante da situação inicial, a de que os chefes dis- \ rabundância estéril, apodrecendo nos armazéns dos chefes, para l
tinguiam-se do povo assim como os europeus eram diferentes dos f finalmente serem jogados ao mar.
havaianos em geral, tornou-se um conceito de identidade pessoal / 1? Contudo, o acesso popular ao mercado permanecia severa-
— do qual surgiria uma ordem de economia política. Os chefes ' mente restrito, mesmo em relação a utensílios práticos e domés-
se apropriaram de personagens da grandeza europeia ao mesmo ticos. Ou, melhor dizendo, os produtos do povo entravam no co-
tempo que imitavam o estilo adequado de vida luxuosa da Eu- mércio europeu sob forma de tributos ou aluguéis coletados pe-
ropa. O célebre Kamehameha, conquistador das ilhas entre 1795 los chefes nos moldes quase tradicionais e para seu benefício ex-
e 1810, não se cansava de perguntar aos visitantes europeus que clusivo. A antiga historia do comércio de ferro já havia provado
por ali passavam se não vivia "de modo exatamente igual ao rei que os poderes estabelecidos eram capazes de organizar o tráfico
George". Já em' 1793, três dos chefes havaianos dominantes ha- para atender suas próprias demandas e em detrimento das neces-
viam dado a seus filhos e herdeiros o nome de "Rei George". sidades populares. Já em meados de 1790, os chefes dominantes
(Bell, 1929:64). No início do século XDC, esse "vestir-se" como tinham um excesso de ferramentas e não queriam nem olhar para
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mais um machado e, assim, o comércio europeu foi desviado para oenefícios divinos, estavam agora diretamente contrapostas ao bem-
outros meios e signos de poder do chefe, como tecidos e mosque- estar comum. Em Historical Metaphors, demonstro como o povo
tes. Isso tudo acontecia muito antes de a população em geral ter não hesitara então em violar tabus de todos os tipos, em um de-
esgotado suas necessidades ou capacidades de uso produtivo do safio mais ou menos claro aos poderes estabelecidos. As mulheres
ferro. Em época tão tardia quanto 1841, um missionário america- quebravam aqueles tabus rituais que as deixariam confinadas às
no na ilha do Hawai'i dizia que não havia um conjunto decente de suas casas para se ocuparem de suas relações amorosas com as
ferramentas de carpintaria, a não ser aqueles pertencentes aos che- tripulações dos navios europeus. Esse tráfico apaixonado logo veio
fes locais (Forbes, 1842-155). Nessa época, também, a resistência a ser um importante meio de atividade comercial popular com o
popular havia sido reduzida ao uso de metáforas escatológicas, duplo propósito de driblar os tabus dos sacerdotes e os negócios
como quando pessoas do povo de Waialua, O'ahu, misturaram da chefia. O status sagrado do homem em relação à mulher aca-
excrementos de bode na farinha de taro, reservada para ser tri- bou também a partir do momento em que viram que tinham os
buto ao chefe dominante (Emerson para Chamberlain: 19 out. mesmos interesses na transgressão de tabus. Antigamente, e no
1835). Pode-se dizer que a tradicional cultura havaiana fora pre- culto doméstico, homens eram tabu em relação a mulheres, assim
servada por inversão lógica, já que excremento é alimento ne- como chefes eram tabu em relação ao povo. O tabu cortava trans-v
gativo e, portanto, a reciprocidade era apropriada para o tipo de versalmente .todas as distinções de posição social e, portanto,
aloha que os chefes estavam descarregando no povo. nesse aspecto não poderia ser privilégio exclusivo da chefia. Ao
Qualquer tipo de resistência séria havia há muito terminado, contrário, o argumento era pela inclusão da sociedade como um
sendo transcendida por utilizações negociadas dos tabus dos che- todo na chefia, mesmo que de forma subordinada. Agora a cli-
fes, em um processo que terminou em uma reavaliação do sig- vagem de classe que se vinha desenvolvendo revisava as antigas
nificado de tabu que pode ser correlacionado com as distinções proporções do tabu e punha em evidência a oposição radical que
emergentes de classe (Sahlins, 1981). Desde os primórdios do existia entre chefes e povo, enquanto respectivamente tabu e noa,
contato, a chefia havia usado tabus para regular o tráfico com ou "livre" de restrição. Essa é uma verdadeira transformação es-
o europeu, fazendo assim uma extensão de propósitos rituais para trutural, ou seja, a redefinição pragmática das categorias alteran-
a prática, justificada pelas funções e significados antigos de pre- do as relações entre as mesmas. O tabu agora sacralizava de for-
cedência dos chefes. O grande Kamehameha, entre 1795 e 1819, ma singular as oposições de classe às expensas daquelas de gé-
impôs essas interdições às épocas e aos termos de comércio com nero.
navios estrangeiros, com o interesse de evitar negócios por parte
da população ou, pelo menos, de garantir que as demandas do
consumo político e aristocrático teriam prioridade sobre os inte-
resses populares por bens domésticos. No caso, o conceito de, Fenomenologia da Vida Simbólica
tabu, de coisas colocadas à parte para o deus, passou por uma
extensão lógica até haver uma transformação funcional. O tabu Parece-me haver algo a mais nessa tempestade num copo de água
era cada vez mais usado como signo de direito material e de pro- do Pacífico Sul do que apenas uma possível teoria da história.
priedade. Podemos ainda ver essa forma final no Havaí de hoje: Há também uma crítica básica às distinções ocidentais através
nos numerosos avisos onde se lê KAPU, que significa "entrada das quais geralmente se pensa a cultura, como as supostas oposi-
proibida". ções entre história e estrutura ou entre estabilidade e mudan-
Essa utilização comercial do tabu por Kamehameha e por ou- ça. Utilizamos constantemente, em nosso folclore nativo assim
tros chefes teve o significado para a população em geral de que como em nossas ciências sociais académicas, essas dicotomias
aquelas restrições sagradas que (quando respeitadas) prometiam reificadas na divisão do objeto antropológico. Não será ne-
180 illias de história
estrutura e história 181
cessário lembrar-lhes que a antítese entre história e estrutura está
sacramentada na antropologia desde Radcliffe-Brown e o apo- No final, quanto mais as coisas permaneciam iguais, mais A
geu do funcionalismo, e foi confirmada mais recentemente pelo elas mudavam, uma vez que tal reprodução de categorias não é l®
estruturalismo inspirado por Saussure. Porém, aquilo que sugere' igual. Toda reprodução da cultura é uma alteração, tanto que, na í ~
este breve exemplo havaiano, é que não há base alguma em ter- açao, as categorias através das quais o mundo atual é orquestrado .'
mos de fenómeno — e, menos ainda, alguma vantagem heurís- assimilam algum novo conteúdo empírico. O chefe havaiano para
tica — em considerar a história e a estrutura como alternativas quem o "rei George" da Inglaterra servia de modelo de mana ce-
mutuamente exclusivas. A história havaiana está, toda ela, basea- lestial não é mais o mesmo chefe, nem tampouco está Ha mesma
da na estrutura, na ordenação sistemática de circunstâncias con- relação com seu povo.
tingentes, ao mesmo tempo que a estrutura havaiana provou ser j Minha argumentação é que esse diálogo simbólico da histó-
histórica. ria — diálogo entre as categorias recebidas e os contextos per-
O que, então, acontece com a oposição corolária entre esta- cebidos, entre o sentido cultural e a referência prática — colocai
bilidade e mudança? O pensamento ocidental pressupõe, mais cmi questão uma série inteira de oposições calcificadas, pelas quais
uma vez, que estas sejam antitéticas: contrários lógicos e ontoló- habitualmente compreendemos ambas, a história e a ordem cul- ) &
gicos. Efeitos culturais são identificados enquanto contínuos com tural. Não quero dizer apenas estabilidade e mudança ou estru-
o passado, ou descontínuos, como se existissem tipos alternati- tura e história, mas o passado enquanto radicalmente diferente
vos de realidade fenomenal, em distribuição complementar em do presente, sistema vs. evento, ou até mesmo o contraste entre y
qualquer espaço cultural. Essa distinção atravessa em profundi- mfraestrutura e superestrutura. O que proponho, portanto, se
dade uma série inteira de categorias elementares organizadoras me aguenlarem através de uma digressão semifilosófica, um tipo
do saber comum: o estático vs. o dinâmico, ser vs. devir, estado de ingénua filosofia da ação simbólica, é de/éxplorarmos essas
distinções reificadas com vistas a descobrir sua síntese mais ver-
vs. ação, condição vs. processo e, — por que não incluir? — /' dadeira^
substantivo em oposição a verbo. A partir desse ponto, resta ape-
O problema enfim recai na relação de conceitos culturais e
nas um pequeno passo lógico até confundir história com mudan- experiência humana, ou o problema de referência simbólica: de
ça, como se a persistência da estrutura através do tempo (pense- ^como conceitos culturais são utilizados de forma ativa para en-
mos na pensée sauvage) não fosse histórica. Porém, mais uma gajar o mundo/Afinal, aquilo que está em questão & existência
vez, a história havaiana certamente não é única em demonstrar de estrutura na história e enquanto história?/Mas iniciarei de uma
que a cultura funciona como oima síntese de estabilidade e mu- forma mais simples, fazendo duas observações elementares, ne-
dança, de passado e presente, de diacronia e sincronia. / nhuma das quais é novidade nem descoberta minha. A primeira ®
Toda mudança prática também é uma reprodução cultural/ e aquele .venerável princípio boasiano de que "o olho que vê é
Por exemplo, a chefia havaiana, enquanto incorpora identidades o órgão da tradição...". A experiência social humana consiste 7
e meios materiais estrangeiros, reproduz o status cósmico do chefe , da apropriação de objetos de percepção por conceitos gerais: '
como um ser celestial vindo de Kahiki. Nesta mitopráxis da Me-/ uma ordenação de homens e dos objetos de sua existência que
rarquia, o ariki polinésio, o primogénito real, "começa sua vida nunca será a única é possível, mas que, nesse sentido, é arbitrária
à época da criação do mundo"; ou para sermos mais exatos em e histórica. A segunda .proposição é de que o uso de conceitos^
termos de Havaí, sua vida é a criação (Koskinen, 1960:110; cf. convencionais em contextos empíricos sujeita os significados cul- '
Cap. 4). A chefia havaiana, segura de seus privilégios cósmicos, jurais a reavaliações práticas. As categorias tradicionais, quando >
pôde incluir a aparição do capitão Cook em seus próprios termos levadas a agir sobre um mundo com razões próprias, um mundo l
•nitopráticos. que e por si mesmo potencialmente refratário são transformadas, j
ass;m como o mundo pode escapar facilmente dos esque- /
182 ilhas de história estrutura e história 183
mas interpretativos de um dado grupo humano, nada pode ga- (o tipo de ato ou atributo predicativo dele), a frase de proposi-
rantir que sujeitos inteligentes e motivados, com interesses e bio- ção se desdobra igualmente como um ato de classificação sim-
grafias sociais diversas, utilizarão as categorias existentes das bólica:
maneiras prescritas. Chamo essa contingência dupla de o risco
das categorias na ação./' He akhua ia.
Mas primeiro falemos da continuidade da cultura na ação: Um deus ele
o olho que vê enquanto órgão da tradição. E dessa forma estou "Ele é um deus."
invocando uma longa tradição filosófica, que pode ser traçada
até Kant em especial e que foi continuada na linguística por Saus- O sujeito identifica um espaço-temporal particular (em um mundo
sure e por Whorf, assim como na antropologia social de Boas e possível): "Ele", "Cook." O predicativo descreve por meios ge-
Lévi-Strauss. Esses (e outros) ensinam que a experiência de SVL-\ rais relativos: "deus." Muitos filósofos reconheceram esta hierar-
jeitos humanos, especialmente do modo como é comunicada no / quia de tipos lógicos do discurso. Strawson, por exemplo:
discurso, envolve uma apropriação de eventos em termos de con- \
ceitos a priori. A referência ao mundo é um ato de classificação, Dois termos acoplados em uma sentença verdadeira estão
no curso do qual as realidades são indexadas a conceitos em uma ' respectivamente em posição referencial e predicativa, se aqui-
relação de emblemas empíricos com tipos culturais. Conhecemos ; lo que o primeiro termo designa ou significa for uma instân-
cia do que o segundo termo significa. De itens deste modo
o mundo como instâncias lógicas de classes culturais: "Capitão \ relacionados (ou os termos que se designam ou significam)
Cook é um deus." Não é, como alguns acreditam, que tenhamos '< pode-se dizer que são respectivamente de tipo [lógico] su-
uma "necessidade" de classificar. A classificação formal é uma perior ou inferior. (Strawson, 1971:69)
condição intrínseca da ação simbólica.
Ou como diz Walker Percy (1958:138), o caráter simbólico Poderíamos resumir, pelo que foi visto até o momento, que
da consciência consiste no cotejamento de um objeto de percep- não há tal coisa que seja a imaculada percepção. "A represen-
ção e um conceito, por meio do qual os objetos de percepção tor- tação 'objetiva'", como diz Cassirer, "não é ponto de partida para
nam-se inteligíveis para nós e são transmitidos a outros. "Toda o processo de formação da linguagem, mas sim o ponto de che-
percepção consciente", diz.Percy, "tem a natureza de um reconhe- gada. .. A linguagem não entra em um mundo de percepções
cimento, um cotejamento, o que é o mesmo que falar que ,o ob- completamente objetivas apenas para adicionar aos objetos —
jeto é percebido como aquilo que é... não é suficiente dizer já dados e claramente distinguíveis uns dos outros — 'nomes' que
que estamos conscientes de algo; estamos conscientes de algo seriam somente signos externos e arbitrários; ela própria é uma
como sendo alguma coisa." — "Ele [Cook] é um deus." Este mediadora na formação dos objetos" (1933:23).
reconhecimento, porém, é uma espécie de reconhecimento: o even- Esta constituição da objetividade dos objetos é consequência
to é inserido em uma categoria preexistente e a história está direta da posição saussuriana de assinalar o caráter "arbitrário"
presente na ação corrente. O surgimento de Cook, vindo de além do sistema simbólico: uma certa ^découpàgè) das continuidades
do horizonte, fora realmente um evento sem precedentes, jamais possíveis do sentido, implicando uma segmentação do mundo em
visto antes. Mas, por assim abarcar aquilo que é realmente sin- referência enquanto função das relações entre signos de caráter
gular naquilo que é conceitualmente familiar, introduz o presente interno à língua (valor linguístico). As categorias pelas quais a
no passado. experiência é constituída não surgem diretamente do mundo, mas
O mesmo acontece na estrutura lógica do discurso: o modo. de suas relações diferenciais no interior de um esquema simbó-
como frases descrevem ou afirmam. Assimilando um tipo parti- lico. O contraste que existe no francês entre fleuve e rivière im-
cular (o sujeito gramatical) no interior de um outro mais geral plica uma segmentação de objetos fluviais diferentes das ver-
184 ilhas de história estrutura e história 185
soes usuais do inglês, que seriam "rio" e "riacho".* No entanto, ticulares e mais gerais do que as expressões utilizadas para desig-
os termos franceses não estão baseados em tamanho relativo ná-los. Os objetos são mais particulares enquanto emblemas em
como estão os ingleses, mas sim no fato de se águas correm para um espaço-tempo específico do que os signos, enquanto catego-
o oceano ou não (cf. Culler, 1977). De modo semelhante vemos rias ou classes conceituais. Por outro lado, as coisas são mais gê- '
que a distinção inglesa (ou francesa) entre "deus" e "homem" rais do que suas expressões, por apresentarem sob a forma de ex-
não é igual ao seu aparente paralelo havaiano de akua e kanaka, periência mais propriedades e relações do que poderiam ser esco-
porque kanaka, utilizado para designar "homens (comuns)", está lhidas e valorizadas por qualquer signo. Assim temos aquele co- /
em posição de contraste de definição com ali'i ou "chefe". Em nhecido princípio: de que é impossível esgotar a descrição de/
havaiano, "chefe" e "deus" são transitivamente iguais por oposi- qualquer objeto.
ção aos homens. Nem corresponderia esta diferença entre deuses e IPortanto o signo, enquanto sentido, se torna duplamente ar-
homens àquela entre espíritos e mortais, já que alguns mortais (os bitrário na referenciarão mesmo tempo uma segmentação relati-
chefes) também são deuses. Não existe ponto algum de partida va e uma representação seletiva. Conclui-se da natureza arbitrá-
para esses esquemas na "realidade", como escreve Stuart Hamp- ria do signo que a cultura é, por sua própria natureza, um objeto
shire ao observar que alguns filósofos acreditavam que houvesse histórico. Saussure, famoso naturalmente por fazer a distinção en-
(1967:20). Ao contrário, cada esquema cultural particular cria as tre pontos de vista diacrônicos e sincrônicos no sentido da lín-
possibilidades de referência material para pessoas de uma dada gua, foi o primeiro a admitir, no entanto, e sempre insistiu nisso,
sociedade, enquanto esse esquema é constituído sobre distinções que um sistema linguístico é inteiramente histórico. É histórico
de princípios entre signos que, em relação aos objetos, nunca são porque é arbitrário: por não refletir simplesmente o mundo exis-
as únicas distinções possíveis. Ou para citar o antecessor de Saus- tente; mas, pelo contrário, porque na ordenação dos objetos exis-
sure, Michel Bréal: tentes pelos conceitos preexistentes, a língua ignoraria o fluxo
do momento. A totalidade e a particularidade de objetos lhe es-
não há dúvida de que a língua designa coisas de modo in- capam. Então, inversamente, o sistema é arbitrário porque é his- x
completo e inexato ... Substantivos são signos ligados a coi- tórico. O presente, seja lá qual for, é reconhecido enquanto pas-
sas: eles incluem somente parte da vérité que possa ser abar-
cada por um nome, uma parte que é tanlo mais fracional sado. O paradoxo de certas ordens culturais consideradas como
quanto mais realidade tenha o objeto... se tomo um ser "a-históricas" é que elas insistem inteiramente em um "approche
real, um objeto existente na natureza, será impossível para historicisante du monde" (to^iando-se emprestada uma frase de
a língua pôr no mundo todas as noções que este objeto des- Délivré [1974]). Vimos que Cook já era uma tradição para os
perta na mente. (Bréal, 1921:178-79) y havaianos antes de se tornar um fato. /
Por outro lado, as realidades empíricas em todas as suas
Bréal está falando da desproporção inevitável entre a língua, " particularidades jamais poderão corresponder aos mitos, nem o
qualquer que seja, e o mundo: "As nossas línguas estão conde- poderia Cook enquanto homem corresponder ao exaltado status
nadas a uma falta de proporção entre a palavra e a coisa. A ex- - que lhe pretendiam atribuir. Isso nos traz à segunda consideração
pressão é, por vezes, ampla em demasia, por outras restrita de- geral de nossa digressão, às formas elementares da vida simbó-
mais" (Ibid., p. 107). Poderíamos dizer que é sempre ambas, lica: o risco da ação cultural, que é o risco das categorias em re-
desde que os objetos de referência sejam ao mesmo tempo mais par-/ ferência. As pessoas colocam, na ação, seus conceitos e catego-
rias em relações ostensivas com o mundo. Esses usos referenciais
põem em jogo outras determinações dos signos, além de seus sig-
* No original, "river" and "stream"; os termos em português também nificados recebidos, ou seja, o mundo real e as pessoas envolvi-
são baseados em tamanho relativo. (N.T.) das. A práxis é, portanto, um risco para os significados dos sig-
186 Uhtu de HUtóría estrutura e história 187
nos na cultura da maneira como está constituída, do mesmo modo da inevitável diferença entre o valor do signo em um sistema
como o sentido é arbitrário em sua capacidade enquanto refe- simbólico, ou seja, suas relações semânticas com outros signos
rência. Como o mundo tem propriedades próprias, ele pode vir e seu valor para quem o utiliza. O signo, no sistema cultural,
a se mostrar intratável, podendo muito bem negar os conceitos tem um valor conceituai fixado por contraste a outros signos;
que lhe sejam indexados. A(fiubrjs) simbólica do homem se torna quando na ação, o signo também é determinado como um "inte-
uma grande aposta feita com as realidades empíricas. Esta aposta resse", que é seu valor instrumental para o sujeito ativo. Lem-
é de que a ação referencial, que coloca os conceitos a priori em brem-se de que a palavra "interesse" deriva de uma construção
correspondência com objetos externos, implicará alguns efeitos impessoal do latim (inter est) que significa "isso faz uma dife-
imprevistos que não podem ser ignorados. Além disso, a ação rença". Porém, se o interesse por alguma coisa é a diferença que
envolve um sujeito (ou sujeitos) pensante(s) relacionado(s) ao faça para alguém, paralelamente e em outro plano, Saussure de-
signo na posição de agente(s). O esquema cultural é colocado era finiria então o signo como um valor conceituai. Enquanto concei-
uma posição duplamente perigosa, isto é, tanto subjetiva quanto to, o signo é definido por relações diferenciais com outros signos.
objetivamente: subjetivamente pelo uso motivado dos signos pe- O significado de "azul" é determinado pela coexistência na lín-
las pessoas para seus projetos próprios; objetivamente, por ser ~, gua de outras palavras como o "verde". Se, como é verdade para
o significado posto em perigo em um cosmos totalmente capaz muitas línguas naturais, não existisse o "verde", o termo "azul"
de contradizer os sistemas simbólicos que presumivelmente o
descreveriam. (ou "azerde") teria maior extensão conceituai e referencial: tam-
bém cobriria o campo que, em nossa língua, chamamos de "ver-
A aposta objetiva reside, portanto, nas desproporções entre
palavras e coisas. Toda implementação de conceitos culturais em de". O mesmo vale para Deus, o Pai, a nota de um dólar, a mater-
um mundo real submete esses conceitos a alguma determinação nidade e o filé mignon: cada um tem um sentido conceituai de
pela situação. Isto é aquilo que já foi descrito como a reavalia- acordo com sua posição diferencial no esquema total de objetos
ção funcional dos signos; por exemplo, a reavaliação do conceito simbólicos. Por outro lado, o objeto simbólico representa um
de tabu havaiano. Pois signos como "tabu" são notoriamente po- interesse diferencial para diversos sujeitos, de acordo com a sua
lissêmicos: eles têm muitos sentidos possíveis, enquanto virtuais posição em seus esquemas de vida. "Interesse" e "sentido" são
ou na sociedade em geral. O "tabu" quando realizado, quando dois lados da mesma coisa, ou seja, do signo, enquanto este é
utilizado em um conceito específico tal como a regulamentação respectivamente relacionado a pessoas e a outros signos. No en-
do comércio, é valorizado em algum sentido seletivo. Um signi- tanto, meu interesse em algo não é igual ao seu sentido.
ficado é posto em primeiro plano em relação a todos os outros A definição de Saussure de valor linguístico ajuda a fechar
significados possíveis. Ao mesmo tempo a referência é feita a par- a questão, por ser formulada em uma analogia com o valor eco-
ticulares concretos que não são iguais a todos os usos prévios. nómico. O valor de uma moeda de cinco francos é determinado
No evento, a estrutura do campo semântico é revista (cf. Lyons, pelos objetos dessemelhantes pelos quais ela pode ser trocada,
1977:l:250s.). A ideia de tabu tem sido objetivada como um tais como uma certa quantidade de pão e leite e por outras uni-
direito comercial e de propriedade, um sentido que pode vir a dades de moeda, às quais pode ser comparada por contraste: um
ser generalizado pelos poderes das pessoas que o impõem — franco, dez francos etc. Por essas relações é que se determina
tendo efeitos recíprocos nas definições e nas relações dessas pes- o valor que cinco francos têm para mim. Para mim, ele surge
soas e de seus poderes. O "tabu" assim emerge da ação com um como um valor instrumental ou interesse específico e se compro
resíduo empírico. O mundo dá uma certa carga à ideia. pão ou leite com ele, se o dou ou o coloco no banco, isto vai
O risco subjetivo consiste da possível revisão dos signos pe- depender de meus objetivos e de minhas circunstâncias particula-
los sujeitos ativos em seus projetos pessoais. A contradição surge res. Do modo como for implementado pelo sujeito ativo, o valor
188 ilhas de história estrutura e história 189
conceituai adquire um valor intencional — que pode muito bem simbólica, sincronia e diacronia coexistem em uma síntese indis-
ser diferente de seu valor convencional. solúvel. A ação simbólica é um composto duplo, constituído por
Da maneira como o signo for posto em ação, ele estará su- um passado inescapável e por um presente irredutível. Um pas-
jeito a outro tipo de determinação: aos processos de consciência sado inescapável porque os conceitos através dos quais a expe-
e inteligência humana. Não mais um sistema semiótico virtual ou riência é organizada e comunicada procedem do esquema cultu-
desencarnado, o significado agora está em contato com os pode- ral preexistente. E um. presente irredutível por causa da singula-
res humanos originais de sua criação. Não há razão para crer — ridade do mundo em cada ação: a diferença heraclitiana entre a
apesar da crença ser o a príori de certas formas de relativismo experiência única do rio (ou jleúve) e seu nome. A diferença ré-
linguístico — que esses poderes criativos fiquem suspensos uma side na irredutibilidade dos atores específicos e de seus conceitos
vez que as pessoas tenham uma cultura. Pelo contrário, os sig- empíricos que nunca são precisamente iguais a outros atores ou
nos na ação são incluídos em várias operações lógicas, como me- a outras situações — nunca é possível entrar no mesmo rio duas
táforas e analogias, redefinições de intensidade e de extensão, es- vezes. As pessoas, enquanto responsáveis por suas próprias ações,
pecializações ou generalizações de sentido, deslocamentos ou realmente se tornam autoras de seus próprios conceitos; isto é,
substituições, para não falar de "mal-entendidos" criativos. E por- tomam a responsabilidade pelo que sua própria cultura possa ter
que os signos são engajados em projetos por interessses e, dessa feito com elas. Porque, se sempre há um passado no presente,
forma, em relações temporais de envolvimento e não apenas em um sistema a priori de interpretação, há também "uma vida que
relações simultâneas de contraste, seus valores são arriscados, por se deseja a si mesma" (como diria Nietzsche). Isto é o que Roy
assim dizer, sintagmaticamente e não apenas paradigmaticamente. Wagner (1975) deveria estar querendo dizer com a "invenção da
Essas utilizações interessadas não- são meramente imperfeitas por cultura": a inflexão empírica específica de significado dada a con-
relação com os ideais platônico-culturais, mas são potencialmente ceitos culturais quando estes são realizados como projetos
inventivas. Vimos como os chefes havaianos puderam reconhecer pessoais.
o seu mana nos bens extravagantes dos mercadores estrangeiros,
Mais uma vez, é necessário insistir em que a possibilidade do
em oposição às coisas mais rudes ou às utilidades domésticas.
presente vir a transcender o passado e ao mesmo tempo lhe per-
Os bens oferecidos para troca eram administrados de acordo com
as autoconcepções dos chefes. O significado do mana sofreu uma manecer fiel depende tanto da ordem cultural quanto da situa-
mudança através da metáfora motivada de luminosidade celes- ção prática. Para iniciantes, existem todos os tipos de "approches
tial, cuja lógica recebia da cultura tradicional sua razão de ser, historicisanies du monde". Em hopi, como Whorf demonstrou,
conforme descoberta, entretanto, na situação existente por uma não é gramatical supor que "amanhã será um novo dia": pois
certa intencionalidade. simplesmente amanhã é o mesmo dia que volta envelhecido. Além
disso, há o sistema social, e nos sistemas sociais existem poderes
diferenciais. Vimos que no Havaí, qualquer que tenha sido a in-
terpretação dada pela população ao capitão Cook, os sacerdotes
Antítese e Síntese e os chefes tinham o poder de objetivar suas opiniões por meio
de cerimónias rituais e, não somente isso, podiam também obri-
Dadas essas compreensões fenomenológicas, seguem-se certas re- gar, o povo a render tributos materiais a tais opiniões. Ou, nova-
flexões críticas concernentes às dicotomias c^rocrustiana|) da sa- mente, tudo aquilo que já foi dito sobre sociedades heróicas (Cap.
bedoria académica. 1) sugere capacidades diferenciais dos poderes estabelecidos para
Em um certo estruturalismo, história e estrutura são antino- transformarem suas inovações pessoais em compreensões gerais.
mias; supõe-se que uma negue à outra. Já na natureza da ação Giddens (1976) coloca o diálogo de ação ("estruturação") de
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forma geral, referindo-se à dualidade de estrutura como um con- significaníe. Um evento é de fato um acontecimento de significân-
ceito preexistente e como uma consequência não-intencional — cia e, enquanto significância, é dependente na estrutura por sua
sem tampouco se esquecer das consequências intencionais das pes- existência e por seu efeito. "Eventos não estão apenas ali e acon-
soas que estão no poder. Essa fenomenologia que estivemos dis- tecem", como diz Max Weber, "mas têm um significado e acon-
cutindo permanecerá "ingénua" enquanto continuar a ignorar que tecem por causa deste significado." Ou, em outras palavras, um
a ação simbólica é tanto comunicativa quanto conceituai: um evento não é somente um acontecimento no mundo; é a relação
fato social retomado nos projetos e nas interpretações dos outros. entre um acontecimento e um dado sistema simbólico. E apesar
Desse modo é que a "estrutura da conjuntura" entra aqui: a so- de um evento enquanto acontecimento ter propriedades "objeti-
ciologia de situação das categorias culturais com as motivações vas" próprias e razões procedentes de outros mundos (sistemas),
que oferece aos riscos de referência e às inovações de sentido. não são essas propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas
Uma prática antropológica total, contrastando com qualquer re- a sua significância, da forma que é projetada a partir de algum
dução fenomenológica, não pode omitir que a síntese exata do esquema cultural. O evento é a interpretação do acontecimento,
passado e do presente é relativa à ordem cultural, do modo como e interpretações variam.
se manifesta em uma estrutura da conjuntura específica. Considerem mais uma vez a apoteose dos ingleses no Havaí,
Mais ainda, o caso havaiano já nos mostrou, mesmo com e também sua queda eventual desse estado de graça. O capitão
toda a sua historicização do mundos, que não há base alguma nem Cook era .verdadeiramente um grande homem (ou pelo menos
razão para a oposição excludente entre estabilidade e mudança. assim pensamos), mas nada havia de inerentemente divino na
Todo uso efetivo das ideias culturais é em parte reprodução das maneira pela qual conduziu seus navios para dentro daquela baía
mesmas, mas qualquer uma dessas referências também é, em parte, havaiana, quanto mais algo que representasse o retorno de
uma diferença. De qualquer jeito, nós já sabíamos disso. As coi- Lono, o antigo deus da fertilidade e do povo, como supuseram
sas devem preservar alguma identidade através das mudanças ou os havaianos. Por esse motivo, havia dez mil pessoas aglomera-
o mundo seria um hospício. Saussure articulou o princípio: das na praia para comemorar o retorno de Cóok em 1779. Raras
"Aquilo que predomina em toda mudança é a persistência da vezes o colonialismo gozara de tão auspicioso início. Por outro
substância antiga: a desconsideração que se tem pelo passado é lado, quando as mulheres começaram a viver e comer com a tri-
apenas relativa. É por esta razão que o princípio da mudança pulação a bordo dos navios britânicos, surgiram sérias dúvidas
se baseia no princípio da continuidade" (1959:74). Mas, em uma a respeito da divindade do estrangeiro. Não há nada de' ineren-
certa antropologia e notoriamente no estudo da história, isola- temente irreligioso no fato de haver comensalidade com mulhe-
mos algumas alterações e as chamamos de "eventos", em opo- res — exceto que, no sistema havaiano, isso polui e destrói o
sição a "estrutura". tabu dos homens. Os eventos não podem ser entendidos, portan-\
Esta realmente é uma distinção perniciosa, se apenas .pelo to, separados de seus valores correspondentes: é a significância •
motivo relativamente trivial de que toda estrutura ou sistema é que transforma um simples acontecimento em uma conjuntura
eventual em termos fenomenológicos. A ordem cultural, enquanto fatal. Aquilo que parece para alguns como um mero encontro
um conjunto de relações significativas entre categorias, é apenas
para o almoço, para outros é um evento radical. Então, cá esta-
virtual. Existe meramente in potentia. Portanto, o significado de
mos separando judiciosamente sistema e evento por atos heróicos
qualquer forma cultural específica consiste em seus usos parti-
culares na comunidade como um todo. Mas este significado é rea- de teoria académica, enquanto o fato simbólico humano é de que i
lizado, w presentia, apenas como eventos do discurso ou da ação. não existe evento sans sistema.
O evento é a forma empírica do sistema. A proposição inversa, Os erros antropológicos (ou históricos) gémeos, o materia-
a de que todos os eventos são culturalmente sistemáticos, é mais lismo e o idealismo, consistem claramente em tentativas de ligar
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uma significância prenhe de sentido a uma relação mecânica ou havaiana em geral, isso se tornaria a organização do comércio
"fisicalista" de causa e efeito. Para o materialismo, a significân- material e também da identidade pessoal — sem mencionar que
cia é efeito direto das propriedades objetivas do acontecimento. ela (a prática) aparece de forma decisiva nos eventos históricos,
Ignorando, portanto, o valor relativo do sentido dado pela socie- tais como a rivalidade entre o capitão Cook e o rei havaiano
dade ao acontecimento. Enquanto que, para o idealismo, o acon- que provou ter sido desastrosa para o Grande Navegador. A
tecimento é simplesmente o efeito de sua significância, ignoran- práxis se desdobraria como a exclusão relativa do povo dos bens
do, assim, sua carga de "realidade": as forças que têm efeitos europeus, especialmente daqueles colocados na categoria havaia-
reais, mesmo que sempre em termos de algum esquema cultural. na de itens de prestígio e apresentando cenas como as de "Billy
O mesmo é válido para a teoria e a prática, se as tomarmos Pitt" Kalaimoku e "John Adams" Kuakini exibindo-se em robes
como alternativas de natureza de fenómeno: essa distinção obje- de seda chinesa e coletes europeus, em aposentos deporados com
tivada entre conceitos culturais e atividades práticas é falsa na finos móveis de teca e espelhos decorados ou em jantares ser-
prática e absurda na teoria. Toda práxis é teórica. Tem sempre vidos em serviços de prata pura. O povo afundava-se progressi-
início nos conceitos dos atores e nos objetos de sua existência, vamente na miséria, da qual até hoje não se recuperou. Nem
nas segmentações culturais e nos valores de um sistema a priori. tampouco a prática pode ser retomada simplesmente em seus
Portanto, não há materialismo algum que não seja histórico. efei:os pela superestrutura, como uma consciência distorcida che-
Marx já o dissera, mas um certo marxismo contemporâneo e gada ao palco da história, por assim dizer post festum. Pois, já
de modismo, confuso pela oposição entre teoria e prática, nega vimos que as utilidades do comércio estavam constantemente
esse fato. Considerem a afirmação feita por Hindess e Hirst: sujeitas à definição pelas demandas de consumo da chefia. De
modo que aquilo que aparece nos livros de contas e nas cartas
Os eventos históricos não existem [em] e não podem ter dos mercadores de Boston, no Havaí, documentando mudanças
efetividade material alguma no presente. As condições de nas demandas por armas de fogo, suprimentos navais ou esse ou
existência das relações sociais atuais existem necessariamen- aquele tipo de tecido de cashmere, representa intimações politi-
te e são reproduzidas constantemente no presente. Não foi camente contextuais da divindade polinésia. O mercado era
ao "presente" que o passado se dignou a nos dar acesso, mas uma condição irredutível da práxis material, onde os preços eram
sim à "situação atual"... Toda teoria marxista, por mais atribuídos com base nas inevitáveis concepções polinésias de
absfrata que seja, existe para tornar possível a análise da mana.
situação atual. Uma análise histórica da "situação atual" é
impossível. (Hindess e Hirst, 1975:312). Poderíamos continuar fazendo semelhantes observações ("des-
construções") sobre as sínteses históricas dessas dicotomias
No entanto, a cultura é justamente a organização da situa- radicais, como o "individual" e o "coletivo" ou o "real" e o
ção atual em termos do passado. Nem tampouco existe infra- "ideológico". Mas já foi dito o bastante, porque essas oposições
estrutura sem superestrutura, pois, "em última análise", as ca- são apenas outras tantas expressões análogas da mesma concre-
tegorias pelas quais se define a objetividade são, elas mesmas, cos- tude deslocada. A questão mais verdadeira jaz no diálogo entre
mológicas —do mesmo modo que, para os havaianos, o advento sentido e referência, visto que a referência põe o sistema de
dos britânicos foi um evento de dimensões universais cujas ex- sentido em situação de risco em relação a outros sistemas: o
pressões orientadoras eram os conceitos de mana, akua e a geogra- sujeito inteligente e o mundo intransigente. E a verdade desse
fia celestial de Kahiki (as origens espirituais). Se a prática, então, diálogo maior consiste da indissolúvel síntese de coisas como
postulou a correspondência estrutural entre os chefes havaianos e passado e presente, sistema e evento, estrutura e história.
os europeus preeminentes, enquanto opunha ambos à população
194 ilhas de história
Notas