Costa Barbuto Fernão de Oliveira

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FERNÃO DE OLIVEIRA:

HOMEM DO MAR E DAS LETRAS


“A minha pátria é a língua portuguesa!”
Fernando Pessoa
1T(RM2-T) Thaís Araujo
1T(RM2-T) Ana Barbuto

Trazemos na epígrafe deste artigo a referência à obra Neste artigo, pretendemos, então, discorrer a res-
de um célebre e multifacetado português, o poeta Fer- peito da vida e da obra deste autor que, expoente do
nando Pessoa, para introduzirmos a reflexão a respeito pensamento racionalista lusitano e ibérico, foi o pri-
de outro português também multifacetado que no sécu- meiro gramático da Língua Portuguesa e também o
lo XVI atuou em distintas áreas e cuja produção literá- primeiro tratadista naval em todo o mundo. Interessa-
ria, embora de autoria hoje muitas vezes desconhecida, -nos aqui observar, principalmente, as condições de
foi de fundamental importância para o desenvolvimento produção e o funcionamento da sua Gramática da
e para a propagação da cultura portuguesa, a saber: o Lingoagem Portuguesa (1536), de modo a relacioná-la
gramático-filólogo-historiador-cartógrafo-frade-diplo- ao momento histórico de sua publicação, evidenciando
mata-marinheiro-teórico da guerra e da construção na- o modo como este nela se faz presente.
val Fernão de Oliveira1 (1507-158... [?]).

1
FERNÃO DE OLIVEIRA
Nos registros históricos, ora aparece o nome Fernão de Oliveira,
ora aparece o nome Fernando Oliveira. A gramática, por exemplo, Nascido em 1507 e de origem relativamente humil-
é assinada por Fernão, mas o livro A arte da guerra no mar é apre- de, Fernão de Oliveira teve uma vida, além de eclética,
sentado sob a autoria do Padre Fernando Oliveira. Apesar disso, de
bastante conturbada. Não há um consenso em relação
modo geral, é considerado pela maioria dos estudiosos que se trata
de uma só pessoa, ainda que não se possam dar garantias disso.
ao local do seu nascimento. Para alguns pesquisadores

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a sua cidade natal é Aveiro; para Francisco Contente por causa das suas opiniões heterodoxas e por negar-
Domingues (2000), em sua tese de Doutorado, Olivei- -se a condenar as ações de Henrique VIII, seu generoso
ra teria nascido na cidade de Beira Alta; mas, segundo anfitrião durante o período em que esteve preso na In-
o comandante Quirino da Fonseca num comentário glaterra. Obteve a liberdade somente em 1550, graças
feito ao livro A arte da guerra no mar, ele teria nascido à intervenção do Cardeal D. Henrique, após confessar
em Santa Comba. É de comum acordo, no entanto, seus erros e jurar reassumir o aspecto sacerdotal.
que, em 1520, aos treze anos, iniciou seus estudos no Em 1552, foi nomeado Capelão Real. Em uma de
Convento Dominicano da cidade de Évora. Em 1532, suas missões neste cargo e a serviço da armada portu-
aos 25 anos, por motivos desconhecidos, conforme guesa, foi ainda mais uma vez preso, agora no Nor-
nos relata Mario Maestri, no artigo intitulado “Fernão te da África. Após tantas aventuras no mar, retornou
de Oliveira – o cristão-velho abolicionista: a repressão a Portugal e começou a escrever A arte da guerra no
ao pensamento racional e abolicionista em Portugal do mar, livro pelo qual, em 1554, viera a sofrer mais uma
século 16”, Oliveira teria abandonado o convento e se ordem de prisão. Em dezembro do mesmo ano, já li-
refugiado em Castela, de onde, ainda de acordo com vre, passou a exercer o cargo de revisor tipográfico da
o autor, teria regressado em 1535 para lecionar para Imprensa da Universidade de Coimbra, onde também
jovens fidalgos2 e, posteriormente, em 1536, publicar passou a ministrar aulas de Retórica. Durante esse perí-
em Lisboa a primeira gramática da Língua Portuguesa odo, Fernão conseguiu concluir o seu livro, o qual fora
sobre a qual discorreremos mais adiante. publicado em 04 de julho de 1555. Entre 1555 e 1557,
Após 1540, Oliveira fez muitas viagens internacio- Fernão foi mais uma vez perseguido e encarcerado. A
nais, durante as quais se envolveu em aventuras e mis- partir daí, não há muitos relatos a respeito de sua vida,
sões de cunho religioso. Ao longo de suas andanças, consta somente que por volta de 1565 recebia por seus
chegou a alistar-se por duas vezes a bordo de uma nau serviços uma espécie de pensão de D. Sebastião e que
francesa, onde exerceu a função de piloto3. Em uma veio a falecer na década de 80 do século XVI. Muitos
dessas vezes, em 1546, ao lado de seus companheiros pesquisadores localizam a morte de Fernão de Oliveira
franceses, Fernão foi capturado no Canal da Mancha no ano de 1581. Domingues (2000), no entanto, dis-
pela frota inglesa. Na Inglaterra, de acordo com Maes- corda desse posicionamento e argumenta que, em seu
tri, “o infeliz prisioneiro”, devido as suas ideias políti- livro História de Portugal, há a citação de um livro
co-religiosas, teria caído nas graças de Henrique VIII, publicado em 1585, donde se deduz que pelo menos
que se encontrava em dissensão com Roma. até este ano ele se encontrava vivo.
Retornou a Portugal somente em 1547, aos 40 anos,
após a morte do monarca inglês. Logo em seguida, em AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA PRIMEIRA
1548, foi preso pela Inquisição pelo período de três anos GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
2
Estavam entre esses jovens os filhos de João de Barros, o cronista Conforme Borges Neto (2007), no artigo intitulado
das Índias, e de D. Fernando da Almada, último integrante da “A teoria da linguagem de Fernão de Oliveira”, Fernão
família Almada a obter o cargo de Capitão-Mor do Mar (hoje nasceu e morreu no século XVI e, embora tenha sido um
chamado de Capitão-General da Armada Real dos Galeões de homem de capacidade intelectual privilegiada que criticou
Alto Bordo do Mar Oceano), que era exercido desde o tempo
o modo tradicional de pensar característico de sua época,
de D. João I pelos primogênitos dessa família. O nobre recebeu
Fernão como hóspede em sua casa, onde este permaneceu de suas ideias não poderiam se distanciar demasiadamente do
1535 até 1540 e, por causa disso, em agradecimento dedicou- pensamento médio de um homem desse século, isto é, de
lhe sua gramática, colocando no frontispício (folha de rosto) o um homem que viveu sob a égide do Renascimento.
brasão da família Almada.
O Renascimento, como se sabe, foi um período
3
Na verdade, este não é ponto pacífico em relação à vida de transitório no qual, ao mesmo tempo em que se olha-
Fernão de Oliveira. Domingues (2000) afirma que, curiosamente, va para o passado, procedendo à retomada de alguns
primeiro Oliveira teria sido aprisionado pelas galés francesas,
aspectos da cultura clássica, também se olhava para o
quando estava a bordo de um navio português, indo de Barcelona
para Gênova, e, posteriormente, teria passado de prisioneiro de
futuro, para as portas que se abririam com os novos
guerra a piloto das mesmas galés francesas que antes o haviam descobrimentos.
feito prisioneiro. Parece-nos que o termo piloto, encontrado nos O pensamento renascentista – ou humanista –, como
documentos que narram a história de Oliveira, refere-se à função
não poderia deixar de ser, exerceu, também, influência
que, na Marinha brasileira, é desempenhada pelo navegador.

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sobre os estudos linguísticos. De acordo com Borges Deve-se destacar, entretanto, que, diferentemente
Neto (idem), retomando Juan Zamora, havia nessa dos autores dos compêndios gramaticais latinos, que
época um “humanismo clássico” e um “humanismo tinham uma grande quantidade de estudos para os
vernacular”. O primeiro visava à recuperação do latim apoiarem, os vernaculistas, como Nebrija e Oliveira,
clássico; e o segundo, à aplicação às línguas vernáculas tendo em vista o pioneirismo de seus intentos, tinham
dos ideais de correção reconhecidos no latim clássico. a árdua missão de descrever línguas sobre as quais
As obras do castelhano Antonio de Nebrija Introduc- pouco se sabia.
tiones Latinae, publicada em 1481, e Gramatica de la Além disso, ao contrário dos gramáticos do período
lengua Castelhana, publicada em 1492, são exemplos clássico, os vernaculistas não tinham a sua disposição
desses dois tipos de estudos, respectivamente. textos canônicos para apoiarem as suas descrições e,
É importante ressaltar aqui que, ao contrário do que por isso, não poderiam alcançar um dos objetivos bási-
muitos pensam, o latim era, na verdade, uma língua bas- cos das gramáticas latinas, que era justamente, confor-
tante heterogênea. Assim como nos ensina o mestre Ismael me apontado por Borges Neto, “registrar a forma mais
de Lima Coutinho (2005), na sua Gramática Histórica, ini- perfeita da língua – língua literária – e usar a norma
cialmente o que existia era apenas o latim, que era de base literária como padrão para o uso ‘correto’ da língua”
essencialmente oral. Com o tempo, contudo, o idioma, ao (2007, p. 3). Com isso, as primeiras gramáticas das lín-
estilizar-se, foi transformado num instrumento literário, guas neolatinas passaram a ter como principal finalida-
passando a apresentar, então, dois aspectos: o clássico e o de fazer a descrição do uso linguístico da elite cultural.
vulgar, os quais foram distanciando-se cada vez mais. O Os primeiros compêndios gramaticais que se dedi-
emprego daquele restringia-se às obras literárias, ao passo cavam à descrição das línguas oriundas do latim ti-
que este, inicialmente falado pelas classes menos abastadas, veram, portanto, condições peculiares de produção,
posteriormente difundiu-se por todo o império romano. visto que, em consonância com o que postula Borges
Coutinho (idem) nos explica ainda que o latim vul- Neto, “o apoio ‘teórico’ de que dispunham seus auto-
gar era uma espécie de “denominador comum” entre res provinha de descrições de outras línguas; não havia
os diversos falares das camadas populares mais humil- uma literatura canônica a ser usada como modelo de
des que funcionava como instrumento familiar de co- língua padrão; e nem sequer havia norma ortográfica
municação diária. Foi esta modalidade do latim já ex- estabelecida”. Por tudo isso, ainda de acordo com o
tremamente diversificada que, mais tarde, após a ruína pensamento desse autor,
do império romano, ao entrar em contato com outras não é de se estranhar que boa parte de
línguas e culturas, deu origem às línguas neolatinas. sua atividade devesse se concentrar em
Alguns estudiosos da linguagem, à época, consi- cobrir as diferenças entre o latim e o
deravam que tais línguas eram deformações do latim castelhano ou o português, em determi-
clássico. Os estudiosos das línguas vernaculares, em nar um padrão de língua ‘exemplar’, em
função disso, passaram a envidar esforços no senti- observar, registrar e sistematizar essa for-
do de atestar que elas tinham estrutura semelhante à ma privilegiada de língua e em descobrir
do latim. Desse modo, uma vez que o latim clássico modos de projetar sobre essa língua as
era considerado uma língua superior, segundo Borges categorias teóricas desenvolvidas para o
Neto (2007), quanto mais uma língua se parecesse a grego e o latim. (2007, p.3-4)
ele, mais perfeita ela seria considerada.
Assim sendo, dadas as condições de produção da A GRAMÁTICA DA LINGOAGEM PORTUGUESA
época, as gramáticas das línguas vernáculas, como a
Gramatica de la lengua Castelhana, de Nebrija, e a Ao publicar a Gramática da Lingoagem Portugue-
Gramatica da Lingoagem Portuguesa, de Fernão de sa, em 1536, Fernão de Oliveira consagrou-se como
Oliveira, foram elaboradas a partir do modelo latino precursor dos estudos gramaticais aplicados ao portu-
e receberam deste, de acordo com o epistemólogo Syl- guês de Portugal. Sua gramática, definida por ele mes-
vain Auroux (1992), a “latinidade”, o que acarretou mo como uma “anotação da linguagem portuguesa”,
uma certa padronização dessas gramáticas, as quais, tem como objetivo principal registrar a linguagem, os
por isso, foram classificadas por esse autor como falares, as impressões e as ações do povo português. Se-
“Gramáticas estendidas do latim”. gundo Oliveira (1975, p. 38), “a linguagem é figura do

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entendimento, e assim é verdade que a boca diz quanto
lhe manda o coração, e não outra coisa”, e a gramáti-
ca, por sua vez, é caracterizada pelo autor como a “a
arte que ensina a bem ler e falar” (idem, p. 43).
Em seu compêndio gramatical, Fernão utilizou-se,
portanto, da descrição do modo de ser português para
com isso perpetuar a língua e a cultura do seu povo,
instaurando ainda o pensamento da necessidade da
normatização da Língua Portuguesa, necessidade esta
devida ao momento histórico por que passava à épo-
ca o continente europeu. Naquele momento, a Europa
dava os primeiros passos em direção à gramatização das
línguas nacionais, estabelecendo, conforme Eni Orlandi
(2009, p. 21), em seu livro intitulado Língua Brasileira e
outras histórias, um discurso particular sobre as línguas,
o da gramática, ao mesmo tempo em que se instituía o
processo de colonização de que nós seríamos objeto.
Apesar da delimitação como anotação, foi atribu-
ído o título de Gramática à escrita de Fernão. Nessa
época, tal denominação era pertinente, pois essa não se Para demonstrar que é a partir das similitudes e
apresentava como uma formalização, nem como uma também das diferenças que se formam as identidades de
sistematização das normas e das regras de escrita e da cada povo, Fernão tenta estabelecer semelhanças entre
fala, mas como uma descrição de aspectos e conteúdos outras línguas e sua língua materna. Não somente isso,
voltados à língua. para esse teórico, a língua tem uma função social e é
A linguagem é, pois, para Fernão, o meio pelo qual através dela que se torna possível a afirmação nacional
os seres humanos se expressam e se comunicam. Para de uma nação. Esta era uma tarefa importante para
ele, ela funciona como um elo entre os seres, porque a Portugal quinhentista na conjuntura das novas des-
define características próprias de cada povo, estabele- cobertas: estabelecer a língua pátria e difundi-la tanto
cendo, assim, a identidade de cada nação. Daí a neces- entre os portugueses, como entre os povos subjugados.
sidade de, naquele momento histórico, produzirem-se O gramático empenha-se nessa tarefa, na constru-
instrumentos linguísticos que garantissem a visibilida- ção de um sentimento português, não somente no que
de e a legitimidade da Língua Portuguesa diante das se refere ao vernáculo, mas também à gente portuguesa
demais línguas europeias e que ainda permitissem aos como constitutiva da língua nacional. O termo “portu-
portugueses levá-la – e, através dela, também a cultura guês” vem retratado nas anotações de Fernão com du-
portuguesa – aos povos recém-conquistados. plo sentido, como o idioma do povo e como o homem
Lembremos que a esta época Nebrija, o autor da de origem portuguesa. Dessa forma, o adjetivo toma
primeira gramática espanhola, já havia antecipado essa proporções maiores e mostra-se como uma tentativa de
questão, colocando a Espanha no cenário mundial, de fixação da maneira de falar dos portugueses. Há um in-
acordo com Eni Orlandi, como “um país militante do teresse na preservação da pronúncia das palavras e da
processo civilizatório, ou seja, da colonização” (idem, história desse povo. Assim como em todas as primeiras
p. 26). Diante do sucesso de seus vizinhos, os portu- gramáticas neolatinas, Fernão em sua obra também faz
gueses não poderiam ficar para trás, e isso fica claro alusão aos povos e às línguas que deram origem à língua
quando Fernão afirma em sua gramática que a língua portuguesa, porém, dá ênfase à importância de o seu
portuguesa é a principal entre muitas. A partir desse po- povo conhecer a sua própria história; ou seja, apesar de
sicionamento do autor, o qual comparece em suas obras estar preso ao modelo clássico de gramática, o autor se
em diversos momentos, inclusive quando afirma expli- atém muito mais ao funcionamento da sua língua ma-
citamente a superioridade de Portugal sobre a Espanha, terna que aos esquemas das línguas precursoras, regis-
podemos depreender a importância atribuída a sua lín- trando não só o modo de falar português, mas a cultura
gua e a preocupação latente com a questão do ensino. do povo, como podemos observar na passagem a seguir

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extraída de sua gramática: português. E é através da maneira de agir e de pensar
Porque Grécia e Roma só por isto ain- dessa nação que ele define o entrelaçamento existente
da vivem, porque quando senhoreavam entre a própria língua e os costumes dos seus falantes.
o Mundo mandaram a todas as gentes a Em seguida, o autor parte para uma outra discussão
eles sujeitas aprender suas línguas [...]. E sobre as diferenças existentes em uma mesma língua, o
desta feição nos obrigaram a que ainda que para ele é diretamente influenciado pelos hábitos
agora trabalhemos em aprender e apu- e pelas vivências de uma nação, e assim aproveita para
rar o seu, esquecendo-nos do nosso. Não evidenciar a ausência de uma norma padrão da língua
façamos assim, mas tornemos sobre nós portuguesa e reivindicar a sua padronização.
agora que é tempo e somos senhores.
(OLIVEIRA, 1975, p.42) CONCLUSÃO
No inserto acima, extraído do capítulo IV de sua
gramática, intitulado “Cultura e Glória da terra”, ao
lado da exortação da cultura nacional, podemos ob-
servar a preocupação com a questão da colonização.
Grécia e Roma entraram para a história, “ainda vi-
vem”, porque impuseram a sua língua aos povos do-
minados. A partir dessa constatação, mais adiante
Fernão afirma que é melhor ensinar a Guiné do que
ser ensinado por Roma, ainda que esta seja valorosa e
tenha prestígio. Segundo o autor, os homens fazem a
língua, e não o contrário, de modo que fica claro que
tanto a língua grega quanto a língua latina primeira-
mente foram grosseiras, mas os homens a “puseram na A obra de Fernão tem um valor inaugural no que se
perfeição que agora têm”. Sendo assim, seguindo seu refere aos estudos sobre a língua portuguesa e à forma-
raciocínio, Fernão de Oliveira incita o povo português ção da identidade do povo lusitano. A valorização do
a trabalhar a língua portuguesa, em detrimento da es- modo de ser e de falar dessa nação promove uma parti-
trangeira, a fim de que ela seja eternizada e possa ser cularização da língua em relação ao latim. A descrição
ensinada a muita gente. dessa língua, por sua vez, representa não só a afirma-
Conforme Eni Orlandi (2009, p. 29), na gramática ção, mas também o reconhecimento do homem portu-
guês, do seu idioma e, por conseguinte, da sua pátria.
de Fernão, “a produção de um conhecimento sobre a
língua e a promoção da própria língua vão juntas”. E É pungente, em Portugal do século XVI, a difu-
esta é, para a autora, uma questão política. Ao argu- são da língua e a sua consequente compreensão como
mentar no sentido de expor a necessidade da publica- forma de construção da nacionalidade. Fernão, em
ção de sua gramática, Fernão de Oliveira deixa explí- sua gramática, apesar de manter um caráter descriti-
cita a relação que estabelece entre língua, processo de vo, aponta a necessidade de a língua portuguesa ser
colonização e produção de instrumentos linguísticos. normatizada. Dessa maneira, ele dá o primeiro passo
A conjuntura política, desse modo, faz-se significar em para que muitas outras obras e estudos surjam sobre a
sua obra. É preciso gramatizar a língua portuguesa, linguagem, sobre a cultura e sobre o povo português.
descrevê-la, ter dela uma representação estável e uní- O homem quinhentista – renascentista – vive em
voca em relação às demais línguas nacionais, para que um século de novidades, de expansão territorial e co-
se possa ensiná-la e impô-la a outros povos. A arte, mercial, no qual a sua língua serve não somente como
segundo o autor, isto é, a gramática, pode nos ensinar objeto de reconhecimento, mas como instrumento para
a falar melhor, ela ensina aqueles que não conhecem a educar. Essa foi a proposta de Fernão quando sugeriu a
língua e aos que já sabiam ajuda. aprendizagem da língua e a sua difusão para que fosse
possível ensinar “muitas gentes”.
A gramática de Oliveira é, pois, um registro, um
livro de memórias dos costumes, da língua do povo

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 Outras obras do autor:
- A arte da guerra no mar (1555) – Livro ocultado pelos portugueses em virtude das críticas sistemá-
ticas tecidas em praticamente dois capítulos pelo autor às justificativas para o tráfico negreiro e para a
escravidão. Portugal à época era a grande potência europeia e seu sucesso estava estritamente ligado ao
tráfico e à escravidão de negros oriundos da África. Sendo assim, em prol da consolidação do ponto de
vista lusitano sobre essas questões, era preciso que as vozes que, segundo Maestri, destoassem e se opu-
sessem “ao monocórdio coro negreiro” fossem silenciadas. Nesse livro, Fernão de Oliveira discorre sobre
pontos como “Quem pode fazer a guerra” e “Qual é a guerra justa” e se apoia em Santo Agostinho para
fundamentar o seu posicionamento. Para ele, somente ao príncipe, ou seja, ao Estado, cabe o direito à
guerra, desde que esta seja, porém, exclusivamente em defesa do seu povo ou em defesa da verdadeira fé.
Desse modo, não era admissível, para Oliveira, a guerra que exorbitasse dessas finalidades; era
para ele, conforme destaca Maestri, “muito ‘mal feito’ fazer guerra sem justiça”, sendo considerado
condenável o ato daquele cristão que a praticasse contra qualquer homem de qualquer condição e
estado. Devido à perseguição incessante sofrida pelo autor, o seu pensamento foi pouco difundido e,
como consequência, este livro foi reeditado, pelos comandantes Quirino da Fonseca e Alfredo Bote-
lho de Souza, somente no século XX, mais especificamente em 1937; em 1969, foi feita uma repro-
dução da segunda edição; e, em 1983, uma reprodução da segunda edição acrescida do fac-símile do
texto original – todas as reedições sob o auspício da Marinha portuguesa.
- Ars Nautica (1570 [?]) – É considerado o primeiro tratado enciclopédico sobre navegação, guerra naval e construção
de embarcações publicado no mundo. De acordo com Domingues (2000), embora não se trate de um livro técnico, essas
matérias são tratadas com profundidade e extensão não encontradas até então na literatura europeia daquela época. O seu
público-alvo, conforme corroborado pelo fato de ter sido escrito em latim, são os humanistas interessados pelo assunto, e
não os homens do mar.
- Livro da fábrica das naus (1580 [?]) – Livro inacabado. Foi o primeiro compêndio sobre arquitetura naval escrito em
português. Segundo Domingues (idem), apesar de seu caráter técnico, a finalidade dessa publicação era expor os preceitos
gerais da disciplina de forma clara e ordenada.
- Hestorea de Portugal (158...[?]) – Com o desaparecimento de D. Sebastião em 1578, Portugal corria o risco de ser in-
corporada aos domínios de Filipe II, da Espanha. Fernão de Oliveira opunha-se veementemente à união das duas coroas e,
por isso, em 1580, escreveu a sua História de Portugal com o intuito de legitimar e documentar o direito do reino português
a manter-se independente.

BIBLIOGRAFIA
AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas, SP: Ed. da Unicamp,
1992.
BORGES NETO, J. A teoria da linguagem de Fernão de Oliveira (DRAFT – texto apresentado no simpósio “Fernão
de Oliveira: 500 anos” – IEL – Unicamp, setembro de 2007. disponível em http://people.ufpr.br/~borges/publicacoes/
para_download/FERNAO_DE_OLIVEIRA.pdf. Acesso em 23/05/2012 às 08:40h.
COSERIU, Eugenio. Língua e funcionalidade em Fernão de Oliveira. Trad. Maria Christina de Motta Maia. Rio de
Janeiro: Presença, 1991.
COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 2005.
DOMINGUES, Francisco Contente. Os navios da Expansão. O livro da Fábrica das Naos de Fernando Oliveira e a
arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII. Tese de Doutorado. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2000.
MAESTRI, Mario. Fernão de Oliveira – o cristão-velho abolicionista: a repressão ao pensamento racional e abolicio-
nista em Portugal do século 16. Disponível em http://revistaestudios.unc.edu.ar/articulos03/articulos/4-maestri.php.
Acesso em 08/05/2012 às 10h.
MARIGUELA, Adriana Duarte Bonini. Português dos Quinhentos: cultura, gramática e educação em Fernão de Olivei-
ra. Dissertação de Mestrado. Piracicaba: UMP, 2006.
OLIVEIRA, Padre Fernando. A arte da guerra no mar: estratégia e guerra naval no tempo dos descobrimentos. Edição
com fac-símile. Lisboa: Edições 70, Lda.
OLIVEIRA, Fernão de. A gramática de linguagem portuguesa de Fernão de Oliveira. Lisboa: Imprensa Nacional. Casa
da Moeda, 1975.
PINTO, Margarida da Silva. Grammatica da lingoagem portuguesa de Fernão de Oliveira. Disponível em: http://purl.
pt/369/1/ficha-de-obra. html. Acesso em 08/05/2012 às 10h.

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