Ebook Inteligência Artificial em Psicoterapias

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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM PSICOTERAPIAS

Luiz Fernando Andrade de Oliveira1

RESUMO
Este trabalho objetiva fazer um apanhado de evoluções e tendências da Inteligência Artificial (IA)
para projetar cenários quanto à sua aplicabilidade em psicoterapias. Reconhecendo novos aspectos
clínicos na angústia cotidiana, e afirmando o caráter científico da futurologia, o autor realizou pesquisa
bibliográfica e seleção de informações nos campos técnico-computacional, filosófico e psicoterapêutico,
de modo a esboçar contornos éticos para uma interação entre a objetividade impessoal da tecnologia, e
a subjetividade daqueles que padecem de angústia, de modo a evitar reducionismos na atividade
terapêutica. As conclusões conduzem à conceituação da empatia enquanto critério diferencial entre uma
possível disponibilização de psicoterapias por aplicativos de IA e aquela prestada por psicoterapeutas
humanos.
Palavras-chave: IA. Psicoterapia. Futurologia.

ABSTRACT
This work aims to provide an overview of evolutions and trends in Artificial Intelligence (AI) to
design scenarios regarding their applicability in psychotherapies. Recognizing new clinical aspects in
everyday anguish, and affirming the scientific character of futurology, the author carried out
bibliographical research and selected information in the technical-computational, philosophical and
psychotherapeutic fields, in order to outline ethical contours for an interaction between the impersonal
objectivity of technology, and the subjectivity of those who suffer from anguish, in order to avoid
reductionism in therapeutic activity. The conclusions lead to the conceptualization of empathy as a
differential criterion between the possible provision of psychotherapies by AI applications and that
provided by human psychotherapists.
Keywords: Artificial intelligence. Psychotherapy. Futurology.

Introdução

A evolução vertiginosa da Inteligência Artificial (IA) abre oportunidades de


inovação em todas as áreas do conhecimento humano, e é de se prever que as
psicoterapias não estejam imunes a essa onda transformadora.
Muitos psicoterapeutas já se depararam com a demanda de pacientes por
soluções imediatistas. Sob risco de banalização da subjetividade, aplicativos fornecem
testes de personalidade, rótulos padronizados para a organização ou distúrbios
psíquicos dos usuários, e até aconselhamento2.
Para investigar esse cenário, a fenomenologia nos sugere a suspensão
temporária de julgamentos pré-concebidos, de modo a indagar sobre as possibilidades

1
[email protected]
https://abre.ai/iSLU
2
da IA na minoração do sofrimento daqueles que buscam, nos aplicativos, alívio
instantâneo para suas angústias.
Buscamos, portanto, extrair a essência da diferença entre 1) a psicoterapia
prestada por um terapeuta humano, e 2) as facilidades que a tecnologia oferece
através da IA, a partir de referências bibliográficas, cotejamentos e considerações
éticas.
As informações foram filtradas entre discussões filosóficas e artigos técnicos
sobre a IA, desde uma opção decisiva de orientação ocorrida nos anos 80, ora
cotejadas às referências em psicoterapias, com ênfase na humanista existencial e
fenomenológica, e a detecção de tendências visando a projeção de cenários futuros.
Para atingir esses objetivos, estruturamos as seguintes seções: 1. A futurologia
aplicada à intersecção entre IA e psicoterapias; 2. Uma nova formatação do indivíduo;
3. Criamos um novo oráculo?; 4. Evolução de tendências na IA; 5. Um embrião de
empatia; 6. Aspectos humanos dos sistemas; 7. Defeitos da padronização, e 8.
Considerações finais.

1. A futurologia aplicada à intersecção entre IA e psicoterapias

Não conhecemos limites para nossa inteligência natural, e desafiamos


diariamente aqueles da IA, que estamos criando. Quando afirmamos que criamos a IA
podemos distinguir, por um lado, nossas ações e interações no mundo humano, e por
outro, a produção de objetos tangíveis que voltarão à natureza, por consumo ou
deterioração:
Se o trabalho não deixa atrás de si vestígio permanente, o pensamento não
deixa absolutamente coisa alguma de tangível. Por isso mesmo, o pensamento
jamais se materializa em objetos (ARENDT, 2010 a, p. 111).

Nossa atitude é dúbia diante da presença da IA, que pode ser classificada ora
como ferramenta tangível, ora como sujeito numa relação com seus usuários.
Ferramenta ou sujeito, a IA vem se desenvolvendo como célula dentro de um
organismo maior a que chamamos nossa inteligência. Às vezes a célula imita o
organismo; às vezes o organismo observa a célula e aprende mais sobre si mesmo,
iluminando o pensamento que a criou e desenvolve.
O embrião da IA alimenta-se de informações. Gerenciando seu “alimento”, a IA
identifica padrões e exceções, capta, incorpora, fragmenta, armazena, e ainda reserva
o material inútil em compartimentos, para que não atrapalhem seu desempenho.
Outro paralelo biológico: no nosso cérebro, a informação é processada por meio
de conexões entre bilhões de neurônios, que se comunicam através de sinapses,
transmitindo sinais elétricos e químicos. Embora menos complexa, a IA desenvolveu
redes neurais artificiais capazes de processar dados em camadas simultâneas, atribuir
pesos às conexões e aprender com a experiência.
Decorre daí a questão sobre se a ampliação da capacidade pensante da IA será
capaz de abrigar também nossas questões existenciais. O aprofundamento na
essência desta indagação exige exame das virtualidades artificiais que lançamos, no
universo orgânico do nosso pensar, objetivando mimetizar nosso modelo mental.
Verifica-se que através de IA, já é possível criar roteiros para filmes, a partir de
poucos dados e preferências, substituindo-se inclusive os atores e suas vozes por
avatares. Diante disto, facilmente a IA poderá projetar, durante uma sessão de
psicoterapia, numa tela tridimensional ou mesmo em óculos de realidade virtual,
imagens que deem suporte ao que está sendo dito pelos interagentes (Marques, 2023,
informação verbal).
Interagimos cotidianamente com progressos e novidades em IA. O sistema
Alexa já se tornou corriqueiro. Outros sistemas combinam informações pessoais para
criar séries de exercícios físicos, e aprendem com o desempenho dos usuários. O
Chat-GPT responde, em linguagem escorreita e em várias línguas, a praticamente
qualquer questão que lhe seja submetida. O aparelho AI PIN, que pode ser ajustado na
lapela da roupa, entende mensagens verbais em mais de 37 línguas, responde por voz
e pode projetar uma tela na mão do usuário. A Apple está divulgando um capacete
contendo processador de dados e óculos de realidade virtual que, além de entender e
emitir mensagens de voz, também projetam no campo de visão do usuário todos os
recursos e imagens de uma tela de computador. O aplicativo POLY.AI disponibiliza
diferentes máscaras digitais (avatares) de personalidades famosas ou imaginárias, com
as quais o usuário pode interagir.
As inovações se superam, impulsionadas pela capacidade de aprendizado:
[...] Quando o agente é um computador, chamamos a isto de aprendizado da
máquina: um computador observa alguns dados, constrói um modelo baseado
nos dados, e usa esse modelo tanto como hipótese sobre o mundo como uma
peça de software capaz de resolver problemas (Russel, Norvig et al., 2022, p.
669, tradução nossa, grifos no original).

Máquinas que aprendem são uma das novidades mais impressionantes de


nosso mundo, tendendo a transformá-lo radicalmente. A futurologia, enquanto projeção
de cenários a partir de tendências, não significa fantasia futurista, mas é um estudo
científico complexo e cuidadoso:
Através de uma exploração sistemática, mas de mente aberta, sobre como
tendências impactam e se interseccionam, novas vias de mudança aparecerão,
que poderiam de outro modo permanecer ocultas à nossa visão. Nossa
pesquisa baseia-se na suposição de que o futuro, até certo ponto, pode ser
explicado por meio de forças sociais condutoras relativamente certas
(megatrends), que nos levam do passado até ao presente, e ao futuro. Outros
aspectos do futuro estão além de nosso controle, o que significa que o futuro
nunca pode ser único ou predeterminado, e que uma série de incertezas dão
forma a diferentes trajetórias possíveis (Copenhagen Institute for Future
Studies, disponível em https://cifs.dk/the-institute/, aba Our Research,
acessado em 07 de fevereiro de 2024, tradução nossa).

Aplicando o método científico da futurologia, delineado acima, é possível


detectar e examinar tendências ao ingresso da IA nas atividades psicoterapêuticas,
projetando cenários a fim de antecipar e mensurar dilemas éticos, para defender o
desejável.

2. Uma nova formatação do indivíduo

Desde o desafio para a decifração da criptologia utilizada pelos submarinos


alemães na 2ª Guerra Mundial, e seguindo aquela exigência premente de precisão e
rapidez, vimos que para atenuar a angústia surgiu um anseio por racionalizar o uso da
liberdade em nossas opções e renúncias, até o último limite do cognoscível. Desse
modo, esperaríamos, talvez, nos aliviar do peso da responsabilidade por constituir
nossa própria essência, dentro da existência, no cenário da subjetividade desenhado
por Sartre (Abrão e Coscodai, 1999).
No entanto, a multiplicidade de opções de navegação na internet tornou-se mais
rica que a realidade de fato vivenciada. Parodiando Fernando Pessoa, “navegar é
preciso; viver, não é preciso”. Lemas e propostas de vida perderam a aura de
autenticidade (Benjamin, 1983): tornaram-se artigos de consumo instantâneo,
independentes do esforço do indivíduo em decidir e desenvolver suas escolhas.
Se a realidade do mundo tornou-se múltipla e pode ser reproduzida por artefatos
humanos, por onde andará o Sujeito que aciona e gerencia essas opções? Seu Eu não
é mais mediador entre os princípios do prazer e da realidade, pois a produção desta
escapou do seu controle. Buscamos algo que não podemos atingir: a certeza de
nossas opções, atestada por algoritmos. Quedou-se amortecida a reflexão: o processo
de voltar-se para si mesmo de modo crítico (Arendt, 2010 b). Adotamos um jogo
imediatista de aprovação ou rejeição pela multidão, com raízes psíquicas profundas:
O desejo necessita do Outro para se constituir enquanto tal, o que exprime a
clássica tese lacaniana segundo a qual "o desejo do homem é o desejo do
Outro" (LUSTOZA, Revista Mal Estar e Subjetividade, v.6 n.1, versão online).

As redes sociais, geridas pela classificação de perfis e seu apascentamento


através de algoritmos, induzem a uma restrição forçada da subjetividade, subordinada
às opções disponíveis para tornar-se amado; intensificam-se, assim, a alienação do
Sujeito e sua submissão às preferências do Outro.

3. Criamos um novo oráculo?

Renato Zwick, tradutor de Freud, preferiu o termo “medo” para significar a


palavra Angst, usada pelo autor e habitualmente traduzida como “angústia” 3. O medo,
“[...] como estado afetivo, é reproduzido conforme uma imagem mnemônica existente”
(Freud, 2019, p. 57).
Nossa relação ambígua, por um lado fascinada e por outro, temerosa diante da
IA, tem origens primitivas em nossa memória. A sensação do “sinistro”, o Unheimlich,

3
FREUD, 2019, p. 22-23.
está atrelada à experiência do duplo: nosso alter ego deveria estar oculto, mas ainda
assim se manifesta (Cesarotto, 1987). Muitas fantasias distópicas revelam o temor de
que nossa criação possa desenvolver vontade própria e assim, empregar suas novas
capacidades na tarefa de nos suplantar.
Vontade própria, no caso das máquinas, significa ir além da sua programação.
De fato, presentemente a IA já pode incorporar dados aleatórios, como nos cassinos, e
escolher, num dicionário de analogias, as aplicações mais prováveis aos dados
produzidos. Interações dessa espécie podem sugerir ao usuário um aspecto
semelhante à sincronicidade: uma coincidência significativa entre um evento casual e o
estado psíquico do observador (Jung, 2020).
Manifestações de um sábio intangível não são novidade no mundo. Antigas
culturas oraculares admitiam confortavelmente que houvesse uma inteligência superior
atuando através dos hexagramas sorteados do I Ching, das runas, do voo dos
pássaros e assim por diante. Os jogos oraculares se perpetuaram ao longo dos
milênios, e ainda hoje, muitos de nós deles fazemos uso: consultamos o aleatório para
exercitar nossas interpretações. Assim, examinando a conexão entre o aleatório e o
inconsciente, Jung critica o pensamento ocidental fundado na causalidade (Jung,
1984).
Essa propensão aos oráculos pode nos aproximar de compreender melhor o
impulso de quem busca aconselhamento instantâneo na IA. A confiança no acaso de
outra opinião não se assemelharia, ainda que remotamente, à posição inicial do
paciente diante de seu terapeuta humano? Afinal, a atenção flutuante imprime à
relação terapêutica o acaso de nossas percepções no momento do discurso: conforme
o fluxo de nosso inconsciente, invisível para o paciente, e aliado à técnica terapêutica,
escolhemos quais significantes iremos salientar, para ampliar seu exame.
A função oracular em psicoterapia é bastante conhecida e até, prestigiada. De
modo a não infantilizar o paciente, fornecendo-lhe uma interpretação definitiva de seus
conteúdos, alguns psicoterapeutas podem se comunicar de modo ambíguo, em
proveito do progresso da terapia:
A interpretação como fala oracular. ‘Uma interpretação cujos efeitos são
compreensíveis não é uma interpretação psicanalítica’ [Lacan, Cahiers pour
l’Analyse 3 (1966), p.13]. [...] Tal como o oráculo de Delfos, o analista diz algo
polivalente o bastante para que tenha repercussão mesmo não sendo
compreendido, para que desperte a curiosidade e o desejo de saber por que o
analista disse o que disse, e para que convide a novas projeções (Fink, 2021,
p. 57-58, título do capítulo destacado no original).

Defensor dos oráculos, Jung prestigia a fenomenologia e a abordagem holística


do I Ching ao afirmar que não se encontram na natureza dois cristais de quartzo
exatamente iguais, embora todos sejam hexagonais (Jung, 1984). Desse modo, não há
duas pessoas ou circunstâncias iguais: o momento presente é uma produção única.
Ora, ao acionar um mecanismo capaz de resultados aleatórios, aceitamos um jogo
oracular: o fenômeno do resultado. Porém, diferentemente dos oráculos tradicionais, a
própria máquina pode produzir esses resultados, interpretá-los e aprender com suas
interpretações. Insinua-se aí a presença temível do autômato: a esfinge se propõe a
nos devorar sem mesmo oferecer a alternativa de decifrá-la.

4. Evolução de tendências na IA

Desde meados 60 já se discutia se seria melhor produzir uma mente a partir de


um projeto, capaz de atuar numa representação formal do mundo, ou reproduzir o
modelo neural de um cérebro humano, para simular as interações entre os neurônios.
A primeira opção, que empregava uma lógica hierárquica, ainda hoje serve para
resolver problemas exatos. A segunda opção apoiava-se na interação entre os
neurônios artificiais por probabilidade estatística: a IA produziria excitação entre seus
menores fragmentos, gerando aprendizado (Dreyfus, 1988).
Nos anos 80, após uma década de ostracismo, findou por prevalecer a segunda
diretriz, então chamada IA emergente. Esta, mais afeta à fenomenologia, veio a
suplantar a lógica hierárquica do processamento de informações: “[...] nós agimos
inteligentemente no mundo mesmo sem ter uma teoria sobre este mundo” (Dreyfus,
1988, p. 35, tradução nossa). No processamento de informação a IA corresponderia à
imagem de um engenheiro, e a IA emergente, à de um cientista (Turkle, 1988, p. 248).
A vitória da IA emergente, que passou a se chamar conexionismo, perdura até
nossos dias: o Chat GPT, por exemplo, afirma que sua programação é conexionista.
Essa evolução dos sistemas inspirados na reprodução do modelo do cérebro humano
permite-nos compreender melhor assertivas tais como:
...A a IoT, Internet das Coisas, já se tornou um dos temas mais comentados
quando falamos de tecnologia hoje. Mas, afinal, no que a AIoT é diferente da
IoT, e que vantagens essa inovação traz? Segundo o CEO da HartB, ‘A
principal diferença está relacionada à capacidade: o IoT funciona como um
sistema nervoso, por exemplo, se pensarmos no corpo humano. O IoT
trabalha com o tráfego de informações de todos os sinais elétricos. A função
dele é transportar informações seja para nuvens ou servidores.’ Ele prossegue,
destacando pormenores dessa comparação: ‘No entanto, com ele, não existe
a análise dessas informações e, por consequência, não há tomada de decisões
assertivas. Já no caso do AioT, nós temos o cérebro e o sistema nervoso
juntos. Isto é, com essa combinação existe a coleta de informações e
algoritmos de IA para análise de dados, o que assegura dados mais ricos para
que decisões possam ser tomadas de maneira mais assertivas e rápidas.’
(Digital Futurecom, 2022, grifos nossos).

Em resumo: os dois principais modos de IA se diferenciam porque o


processamento de informações busca mimetizar a inteligência humana dentro de um
programa de computador, enquanto o conexionismo, inspirando-se no modelo de
cérebro humano, dirige-se a resolver problemas de modo ainda mais complexo, ou
seja, sem necessariamente usar os modelos da inteligência humana (McCorduck,
1988).

5. Um embrião de empatia

Como navegamos num turbilhão de informações intelectuais e emocionais, a


noção e definições de consciência também se esvaneceram, com vantagem para as
máquinas: delas, mais ou menos se sabe o que esperar. “Uma definição atual de
consciência permanece vaga, e a aparentemente objetiva propriedade de ‘inteligência’
permanece veementemente contestável pela espécie humana” (Ashrafian, 2016,
tradução nossa, artigo sem numeração de páginas).
Mas esse autor vai além da questão da consciência ao indagar se os robôs
podem adoecer. Ora, a virtualidade de adoecer é um dos quesitos da empatia que
separa, ao menos até o momento presente, a psicoterapia prestada por humanos
daquela que hipoteticamente possa vir a ser autorizada à IA. Ashrafian afirma que, se
estamos propostos a desenvolver a IA ao ponto de levá-la o mais próximo possível da
mente humana, estamos também produzindo sua capacidade de tornar-se disfuncional.
Assim, ele desdobra sua hipótese em três possibilidades:
1) poderiam os robôs ser inadvertidamente programados para ter desordens
mentais, e neste caso, seria fácil reverter [o quadro] corrigindo sua
programação? 2) se os robôs tivessem consciência e livre arbítrio, poderiam
desenvolver doenças mentais de-novo (contra sua programação original); 3)
por extensão, se as inteligências artificiais desenvolvessem doenças mentais
(contra sua programação original), isto representaria sua transição inicial para
uma consciência similar à humana, e subsequentemente para a doença
mental? (ibid., tradução nossa).

Indo além, Possati demonstra a possibilidade de um sistema “curar-se” da


própria disfuncionalidade:

[…] Cully et al. (2015) demonstram que é possível construir um algoritmo


inteligente que por tentativa e erro ‘permita aos robôs adaptarem-se ao dano
em menos de dois minutos, em amplos espaços de pesquisa, sem requerer
autodiagnostico ou planos contingenciais pré-especificados’ (p.503). Quando o
robô está danificado, usa seu conhecimento prévio para ‘guiar um algoritmo de
aprendizado por tentativa e erro que conduz experimentos inteligentes para
rapidamente descobrir um comportamento que compense o dano’ (p.503), o
que torna o robô capaz de se adaptar a muitas possíveis situações diferentes,
assim como animais [...]. Sistemas de IA são capazes de criar uma forma
completamente nova de comportamento, adaptando-se a novos contextos. Isto
é uma criatividade artificial (Possati, 2020, tradução nossa artigo sem
numeração de páginas).

6. Aspectos humanoides dos sistemas

É controverso afirmar que todos os efeitos psíquicos decorrem de combinações


entre os neurônios – seria reduzir o psiquismo ao seu condutor material. Ainda que se
perfilhe essa tese, o cérebro humano é muito mais complexo que qualquer tecnologia
atual, e nossa existência, mais intrincada. Claramente, os sistemas de IA ainda não
alcançaram a plena autoconsciência, nem a capacidade de real empatia, cruciais para
a tarefa psicoterapêutica.
Porém, se por um lado a IA ainda não é capaz da reflexão que se volta para si
mesma (Arendt, 2010 b), por outro, nem todo pensamento humano é reflexivo - sendo
jogar xadrez um exemplo. Assim, até que ponto isto, que as máquinas fazem,
corresponde ao nosso pensar?
Alguns filósofos sustentam que uma máquina que aja inteligentemente não
está de fato pensando, mas apenas simulando pensamento. Mas em sua
maioria, os pesquisadores de IA não estão preocupados com essa distinção, e
o cientista computacional Edsger Dijkstra (1984) disse que ‘a questão sobre se
máquinas podem pensar... é tão relevante quanto a questão sobre se
submarinos podem nadar’” (Russel, Norvig et al., 2022, p. 1035, tradução
nossa).

Apesar de “pensarem”, reconhecendo padrões (Dreyfus, 1988), ao ver de Turing,


as máquinas não seriam capazes de distinguir o certo do errado (Russel, Norvig et al.,
2022). A capacidade de distinguir o certo e o errado determina o bom-senso humano,
conduzindo (muitos de nós) à razoabilidade e prudência, pois reconhecemos nossa
possibilidade de errar. No entanto, em janeiro de 2024 o Chat GPT pediu desculpas a
este autor por ter cometido um erro em sua resposta:
Sim, é possível projetar uma IA (IA) para reconhecer e corrigir respostas
equivocadas durante uma interação com o usuário. Essa capacidade de
autorrevisão é parte integrante do desenvolvimento de sistemas de IA mais
robustos e responsivos (GPT).

Nesse sentido, “pesquisadores afirmam que algoritmos podem ser perfeitamente


capazes de adaptação a novas situações, inclusive criando novas formas de
comportamento” (Possati, 2020, tradução nossa).
De qualquer modo, o pensar atual das máquinas é menos do que ter
consciência. Turing chegou a dizer que há muitos mistérios envolvendo a consciência,
mas não precisamos resolvê-los todos para criar uma máquina que se comporte de
modo inteligente. Em hipótese, “aspectos individuais da consciência – conhecimento,
autoconhecimento, atenção – podem ser programados e tornarem-se parte de uma
máquina inteligente” (Russel, Norvig et al., 2022, p. 1037, tradução nossa).
Se a discussão sobre a autoconsciência das máquinas pode ser postergada,
adiemos também a questão sobre a IA ter acesso ao Inconsciente. O Inconsciente não
se rege pelo princípio da não contradição; assim, é possível ao humano a ambiguidade,
ou seja; desejar simultaneamente objetos ou resultados opostos. Contudo, o que dá
substancialidade terapêutica ao fenômeno do inconsciente é a linguagem com que o
paciente o revela - e essa linguagem, progressivamente, as máquinas estão se
tornando capazes de interpretar, inclusive em suas incongruências.
Note-se, quanto à captação de informação sobre emoções, que embora não
compartilhem nossas angústias:
[...] existem sistemas e tecnologias que buscam analisar expressões faciais,
tons de voz e outras pistas não verbais para interpretar as emoções dos
usuários. Essa área de pesquisa é conhecida como "computação afetiva" ou
"tecnologia afetiva". Algoritmos e softwares são desenvolvidos para reconhecer
padrões em expressões faciais, movimentos corporais, tom de voz e até
mesmo na escolha de palavras para inferir estados emocionais (GPT, fevereiro
de 2023).

De fato, armazenar e gerir informações sobre o usuário é um recurso de que as


máquinas já dispõem, não somente a partir do discurso, mas também por leituras
diversas, como a biometria ocular, ou todo o aparato usado para monitorar pacientes
internados em unidades de terapia intensiva. Nada impede que máquinas possam
identificar padrões na velocidade da fala e da respiração, pulsação, pressão arterial,
movimentos oculares e dilatação das pupilas, narrativas de interação do paciente com
outras pessoas ou em outras situações.
A junção de todas essas informações poderá assim, com relativa facilidade,
formatar uma visão holística do paciente, não só no momento da sessão como no
conjunto de suas sessões, emitindo avaliações, ponderações e resultados
mimetizados, similares aos que emitiria um terapeuta humano.

7. Defeitos da padronização

A nosso ver, a resposta mais interessante às restrições quanto à IA tem por foco
uma metáfora empregada por John Searle: um humano que não saiba chinês, fechado
em uma caixa com um manual de decifração de símbolos nessa língua, pode receber
mensagens e produzir respostas coerentes em chinês, com base em seu manual.
Segundo o filósofo, esta é a situação da IA: falta aos transístores aquilo que provoca o
entendimento. Retrucam os especialistas que robôs poderiam dizer o mesmo sobre
humanos: “afinal, um humano é feito de células, as células não entendem, assim, não
há entendimento” (Russel, Norvig et al., p. 1036, tradução nossa).
Inobstante, o mero entendimento de padrões não é similar, e nem leva à empatia
pelos desejos. As máquinas não desejam nada: quem deseja, ainda somos nós, que as
criamos. Porém, ao modo como estamos desenvolvendo a IA e sua capacidade de
interação conosco, é previsível, a partir das tendências examinadas, que a IA possa
mimetizar com perfeição crescente o nosso desejar.
Mas afinal, sistemas seriam capazes de investigar nosso desejo?
Aparentemente, não. Em seminário on-line, o psicanalista Alfredo Jerusalinsky
observou:
Parece que não somos formigas, adaptáveis a um mecanismo automático
coletivo [...]. Exige-se um campo onde possamos colocar essa articulação entre
conhecimento e saber [...]. O Inconsciente é como um arquivo infinito - uma
extensão significante. Não é o saber, mas a ignorância: o saber se perguntar é
sua principal riqueza. O analista devolve ao sujeito sua capacidade de se
perguntar qual é seu principal desejo (Jerusalinsky, 2023, grifamos).

A capacidade de perguntar está conectada à fenomenologia:


Cada pergunta objetiva é já uma ponte para a resposta. Respostas essenciais
são, constantemente, apenas o último passo das próprias questões. Este
passo, porém, permanece irrealizável sem a longa série dos primeiros passos e
dos que seguem. A resposta essencial haure sua força sustentadora na in-
sistência do perguntar. A resposta essencial é apenas o começo de uma
responsabilidade. Nela o interrogar desperta mais originariamente. É também,
por isso, que a questão autêntica não é suprimida pela resposta encontrada
(Heidegger, 1999, posfácio, p. 68).

No texto “Serenidade”, o filósofo distingue duas espécies de pensamento: aquele


que calcula, e a reflexão. A reflexão, como vimos, exigiria das máquinas que se
voltassem para a experiência de sua própria subjetividade – algo que a tecnologia
ainda não encontrou um meio de lhes conferir. Entretanto, o deslumbramento com a
técnica coloca o homem em risco de “renegar e rejeitar aquilo que tem de mais próprio,
ou seja, o fato de ser um ser que reflete”:
Denomino a atitude em virtude da qual nos mantemos abertos ao sentido
oculto no mundo técnico a abertura ao mistério [...]. A serenidade em relação
às coisas e a abertura ao segredo são inseparáveis. Concedem-nos a
possibilidade de estar no mundo de um modo completamente diferente.
Prometem-nos um novo solo sobre o qual nos possamos manter e subsistir
(stehen und bestehen), e sem perigo, no seio do mundo técnico. A serenidade
em relação às coisas e a abertura ao mistério dão-nos a perspectiva de um
novo enraizamento. Que um dia poderá mesmo conseguir recordar, de uma
nova forma, o velho enraizamento que agora se desvanece rapidamente
(Heidegger, 1955, p. 25, grifamos).

Assim, queremos crer que sempre faltará às máquinas, enquanto seres não
desejantes, tanto a “abertura ao mistério”, quanto uma real empatia. Diferentemente da
compaixão, a empatia não se refere apenas a partilhar um sofrimento concreto, atual,
mensurável, cujas consequências sensíveis poderiam até ser introduzidas num
programa de computador. Eventuais sistemas terapêuticos eletrônicos carecerão da
empatia substancial pelo desejar, pela esperança assim como pela angústia de existir,
de ter que fazer escolhas e renúncias, de enfrentar a perspectiva do próprio
desaparecimento e, por fim, assumir a responsabilidade pelo uso da liberdade.

8. Considerações finais

A perspectiva do reducionismo em psicoterapias por meio de aplicativos não é


remota; ao contrário, responde a um anseio coletivo de nossa geração por banalizar-
se, de modo a tornar-se com mais facilidade objeto do desejo do Outro nas redes
sociais - e, portanto, ampliativamente, no convívio e interações com o mundo.
Mesmo que sejam postas de lado, provisoriamente, as diferenças entre
consciente e inconsciente no que tange às possibilidades de interpretação do discurso
pelas máquinas, forçoso é considerar que psicoterapia não é impessoal, mas atende às
singularidades do interagente, de sua circunstância, e de seu entendimento.
Nossos diferenciais humanos parecem brotar todos da mesma fonte: a
capacidade de experimentar o relato do outro como nossa própria experiência. Ainda
que máquinas terminem por classificar muitas das nossas dores, e estabelecer
interconexões entre essas categorias, nós, seres desejantes, reagimos de modos
infinitamente diferentes às excitações, trazendo fenômenos às terapias.
No aspecto do simples bom-senso, como a máquina somente dispõe de
informações sobre seu próprio usuário, dificilmente conseguirá discernir fenômenos no
aspecto interrelacional. Acerca do Outro, nenhuma programação disporá de
informações ou amplitude suficientes para mapear o contexto cultural e linguístico
dentro do qual se processa a multiplicidade das interações emocionais.
Será assim muito raro que um sistema, por mais aperfeiçoada que seja sua
programação, consiga nos próximos anos simular completamente a empatia, pois lhe
faltarão quesitos e referências de memória sinestésica, angústia existencial ou
sensações de prazer e plenitude que por ora, somente outro humano pode compartilhar
com seu paciente. Nem há como mimetizar os modos e improvisos com que as
pessoas de carne e osso, dores e esperanças, fazem frente às suas angústias, mas
também resgatam os encantos que dão graça à vida.
Assim, se queremos nós, psicoterapeutas, evitar a banalização de nossas
atividades por aplicativos cada vez mais sofisticados, precisamos, sim, continuar
estudando os muitos fundamentos e vertentes clínicas, mas também dar um passo
além, para investir na reflexão e desenvolvimento de nossa capacidade de empatia,
aperfeiçoá-la e colocá-la, tecnicamente, a serviço dos pacientes.

REFERÊNCIAS:

ABRÃO, Bernadette S., COSCODAI, Mirtes U., História da Filosofia, coleção


Pensadores, Ed. Nova Cultural Ltda., 1999, capítulo “Sartre e a Angústia de Ser Livre”,
p.444-450.

ARENDT, Hannah, A Condição Humana, Ed. Forense Universitária, 11a ed., 2010 a.

ARENDT, Hannah, A Vida do Espírito, Ed. Civilização Brasileira, 2a ed., 2010 b.

ASHRAFIAN, Hubert, Can Artificial Intelligences Suffer from Mental Illness? A


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