Ebook Inteligência Artificial em Psicoterapias
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RESUMO
Este trabalho objetiva fazer um apanhado de evoluções e tendências da Inteligência Artificial (IA)
para projetar cenários quanto à sua aplicabilidade em psicoterapias. Reconhecendo novos aspectos
clínicos na angústia cotidiana, e afirmando o caráter científico da futurologia, o autor realizou pesquisa
bibliográfica e seleção de informações nos campos técnico-computacional, filosófico e psicoterapêutico,
de modo a esboçar contornos éticos para uma interação entre a objetividade impessoal da tecnologia, e
a subjetividade daqueles que padecem de angústia, de modo a evitar reducionismos na atividade
terapêutica. As conclusões conduzem à conceituação da empatia enquanto critério diferencial entre uma
possível disponibilização de psicoterapias por aplicativos de IA e aquela prestada por psicoterapeutas
humanos.
Palavras-chave: IA. Psicoterapia. Futurologia.
ABSTRACT
This work aims to provide an overview of evolutions and trends in Artificial Intelligence (AI) to
design scenarios regarding their applicability in psychotherapies. Recognizing new clinical aspects in
everyday anguish, and affirming the scientific character of futurology, the author carried out
bibliographical research and selected information in the technical-computational, philosophical and
psychotherapeutic fields, in order to outline ethical contours for an interaction between the impersonal
objectivity of technology, and the subjectivity of those who suffer from anguish, in order to avoid
reductionism in therapeutic activity. The conclusions lead to the conceptualization of empathy as a
differential criterion between the possible provision of psychotherapies by AI applications and that
provided by human psychotherapists.
Keywords: Artificial intelligence. Psychotherapy. Futurology.
Introdução
1
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https://abre.ai/iSLU
2
da IA na minoração do sofrimento daqueles que buscam, nos aplicativos, alívio
instantâneo para suas angústias.
Buscamos, portanto, extrair a essência da diferença entre 1) a psicoterapia
prestada por um terapeuta humano, e 2) as facilidades que a tecnologia oferece
através da IA, a partir de referências bibliográficas, cotejamentos e considerações
éticas.
As informações foram filtradas entre discussões filosóficas e artigos técnicos
sobre a IA, desde uma opção decisiva de orientação ocorrida nos anos 80, ora
cotejadas às referências em psicoterapias, com ênfase na humanista existencial e
fenomenológica, e a detecção de tendências visando a projeção de cenários futuros.
Para atingir esses objetivos, estruturamos as seguintes seções: 1. A futurologia
aplicada à intersecção entre IA e psicoterapias; 2. Uma nova formatação do indivíduo;
3. Criamos um novo oráculo?; 4. Evolução de tendências na IA; 5. Um embrião de
empatia; 6. Aspectos humanos dos sistemas; 7. Defeitos da padronização, e 8.
Considerações finais.
Nossa atitude é dúbia diante da presença da IA, que pode ser classificada ora
como ferramenta tangível, ora como sujeito numa relação com seus usuários.
Ferramenta ou sujeito, a IA vem se desenvolvendo como célula dentro de um
organismo maior a que chamamos nossa inteligência. Às vezes a célula imita o
organismo; às vezes o organismo observa a célula e aprende mais sobre si mesmo,
iluminando o pensamento que a criou e desenvolve.
O embrião da IA alimenta-se de informações. Gerenciando seu “alimento”, a IA
identifica padrões e exceções, capta, incorpora, fragmenta, armazena, e ainda reserva
o material inútil em compartimentos, para que não atrapalhem seu desempenho.
Outro paralelo biológico: no nosso cérebro, a informação é processada por meio
de conexões entre bilhões de neurônios, que se comunicam através de sinapses,
transmitindo sinais elétricos e químicos. Embora menos complexa, a IA desenvolveu
redes neurais artificiais capazes de processar dados em camadas simultâneas, atribuir
pesos às conexões e aprender com a experiência.
Decorre daí a questão sobre se a ampliação da capacidade pensante da IA será
capaz de abrigar também nossas questões existenciais. O aprofundamento na
essência desta indagação exige exame das virtualidades artificiais que lançamos, no
universo orgânico do nosso pensar, objetivando mimetizar nosso modelo mental.
Verifica-se que através de IA, já é possível criar roteiros para filmes, a partir de
poucos dados e preferências, substituindo-se inclusive os atores e suas vozes por
avatares. Diante disto, facilmente a IA poderá projetar, durante uma sessão de
psicoterapia, numa tela tridimensional ou mesmo em óculos de realidade virtual,
imagens que deem suporte ao que está sendo dito pelos interagentes (Marques, 2023,
informação verbal).
Interagimos cotidianamente com progressos e novidades em IA. O sistema
Alexa já se tornou corriqueiro. Outros sistemas combinam informações pessoais para
criar séries de exercícios físicos, e aprendem com o desempenho dos usuários. O
Chat-GPT responde, em linguagem escorreita e em várias línguas, a praticamente
qualquer questão que lhe seja submetida. O aparelho AI PIN, que pode ser ajustado na
lapela da roupa, entende mensagens verbais em mais de 37 línguas, responde por voz
e pode projetar uma tela na mão do usuário. A Apple está divulgando um capacete
contendo processador de dados e óculos de realidade virtual que, além de entender e
emitir mensagens de voz, também projetam no campo de visão do usuário todos os
recursos e imagens de uma tela de computador. O aplicativo POLY.AI disponibiliza
diferentes máscaras digitais (avatares) de personalidades famosas ou imaginárias, com
as quais o usuário pode interagir.
As inovações se superam, impulsionadas pela capacidade de aprendizado:
[...] Quando o agente é um computador, chamamos a isto de aprendizado da
máquina: um computador observa alguns dados, constrói um modelo baseado
nos dados, e usa esse modelo tanto como hipótese sobre o mundo como uma
peça de software capaz de resolver problemas (Russel, Norvig et al., 2022, p.
669, tradução nossa, grifos no original).
3
FREUD, 2019, p. 22-23.
está atrelada à experiência do duplo: nosso alter ego deveria estar oculto, mas ainda
assim se manifesta (Cesarotto, 1987). Muitas fantasias distópicas revelam o temor de
que nossa criação possa desenvolver vontade própria e assim, empregar suas novas
capacidades na tarefa de nos suplantar.
Vontade própria, no caso das máquinas, significa ir além da sua programação.
De fato, presentemente a IA já pode incorporar dados aleatórios, como nos cassinos, e
escolher, num dicionário de analogias, as aplicações mais prováveis aos dados
produzidos. Interações dessa espécie podem sugerir ao usuário um aspecto
semelhante à sincronicidade: uma coincidência significativa entre um evento casual e o
estado psíquico do observador (Jung, 2020).
Manifestações de um sábio intangível não são novidade no mundo. Antigas
culturas oraculares admitiam confortavelmente que houvesse uma inteligência superior
atuando através dos hexagramas sorteados do I Ching, das runas, do voo dos
pássaros e assim por diante. Os jogos oraculares se perpetuaram ao longo dos
milênios, e ainda hoje, muitos de nós deles fazemos uso: consultamos o aleatório para
exercitar nossas interpretações. Assim, examinando a conexão entre o aleatório e o
inconsciente, Jung critica o pensamento ocidental fundado na causalidade (Jung,
1984).
Essa propensão aos oráculos pode nos aproximar de compreender melhor o
impulso de quem busca aconselhamento instantâneo na IA. A confiança no acaso de
outra opinião não se assemelharia, ainda que remotamente, à posição inicial do
paciente diante de seu terapeuta humano? Afinal, a atenção flutuante imprime à
relação terapêutica o acaso de nossas percepções no momento do discurso: conforme
o fluxo de nosso inconsciente, invisível para o paciente, e aliado à técnica terapêutica,
escolhemos quais significantes iremos salientar, para ampliar seu exame.
A função oracular em psicoterapia é bastante conhecida e até, prestigiada. De
modo a não infantilizar o paciente, fornecendo-lhe uma interpretação definitiva de seus
conteúdos, alguns psicoterapeutas podem se comunicar de modo ambíguo, em
proveito do progresso da terapia:
A interpretação como fala oracular. ‘Uma interpretação cujos efeitos são
compreensíveis não é uma interpretação psicanalítica’ [Lacan, Cahiers pour
l’Analyse 3 (1966), p.13]. [...] Tal como o oráculo de Delfos, o analista diz algo
polivalente o bastante para que tenha repercussão mesmo não sendo
compreendido, para que desperte a curiosidade e o desejo de saber por que o
analista disse o que disse, e para que convide a novas projeções (Fink, 2021,
p. 57-58, título do capítulo destacado no original).
4. Evolução de tendências na IA
5. Um embrião de empatia
7. Defeitos da padronização
A nosso ver, a resposta mais interessante às restrições quanto à IA tem por foco
uma metáfora empregada por John Searle: um humano que não saiba chinês, fechado
em uma caixa com um manual de decifração de símbolos nessa língua, pode receber
mensagens e produzir respostas coerentes em chinês, com base em seu manual.
Segundo o filósofo, esta é a situação da IA: falta aos transístores aquilo que provoca o
entendimento. Retrucam os especialistas que robôs poderiam dizer o mesmo sobre
humanos: “afinal, um humano é feito de células, as células não entendem, assim, não
há entendimento” (Russel, Norvig et al., p. 1036, tradução nossa).
Inobstante, o mero entendimento de padrões não é similar, e nem leva à empatia
pelos desejos. As máquinas não desejam nada: quem deseja, ainda somos nós, que as
criamos. Porém, ao modo como estamos desenvolvendo a IA e sua capacidade de
interação conosco, é previsível, a partir das tendências examinadas, que a IA possa
mimetizar com perfeição crescente o nosso desejar.
Mas afinal, sistemas seriam capazes de investigar nosso desejo?
Aparentemente, não. Em seminário on-line, o psicanalista Alfredo Jerusalinsky
observou:
Parece que não somos formigas, adaptáveis a um mecanismo automático
coletivo [...]. Exige-se um campo onde possamos colocar essa articulação entre
conhecimento e saber [...]. O Inconsciente é como um arquivo infinito - uma
extensão significante. Não é o saber, mas a ignorância: o saber se perguntar é
sua principal riqueza. O analista devolve ao sujeito sua capacidade de se
perguntar qual é seu principal desejo (Jerusalinsky, 2023, grifamos).
Assim, queremos crer que sempre faltará às máquinas, enquanto seres não
desejantes, tanto a “abertura ao mistério”, quanto uma real empatia. Diferentemente da
compaixão, a empatia não se refere apenas a partilhar um sofrimento concreto, atual,
mensurável, cujas consequências sensíveis poderiam até ser introduzidas num
programa de computador. Eventuais sistemas terapêuticos eletrônicos carecerão da
empatia substancial pelo desejar, pela esperança assim como pela angústia de existir,
de ter que fazer escolhas e renúncias, de enfrentar a perspectiva do próprio
desaparecimento e, por fim, assumir a responsabilidade pelo uso da liberdade.
8. Considerações finais
REFERÊNCIAS:
ARENDT, Hannah, A Condição Humana, Ed. Forense Universitária, 11a ed., 2010 a.
DREYFUS, H., e DREYFUS, S., Making a Mind Versus Modeling the Brain: Artificial
Intelligence Back at a Branchpoint, in Daedalus, Journal of American Academy of
Arts and Sciences, 1988, volume 117, number 1 of the Proceedings of the American
Academy of Arts and Sciences, Cambridge, MA, USA, disponível em
https://abre.ai/iSoo, acessado a partir de agosto de 2023.
FREUD, S., Inibição, Sintoma e Medo, Ed. L&PM, vol. 1276, 2019.
JUNG, Carl Gustav, prefácio ao I CHING, o livro das mutações, Richard Wilhelm, Ed.
Pensamento, 1984.
JUNG, Carl Gustav, Sincronicidade, Editora Vozes, vol. 8/3 da coleção Obra
Completa de C.G. Jung, 2020.
LUSTOZA, Rosane Zétola, A angústia como sinal do desejo do Outro, disponível
em https://abre.ai/iSoa, Revista Mal-Estar e Subjetividade, v.6 n.1, Fortaleza, 2006,
acessado em 06 de fevereiro de 2024.
RUSSEL, Stuart J., NORVIG, Peter et al., Artificial Intelligence a Modern Approach,
Pearson Education Limited, UK, 4th ed., 2022.