O Xintoísmo de Estado Leonardo-Henrique-Luiz

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O ESPÍRITO DE YAMATO

Direção Editorial

Lucas Fontella Margoni

Comitê Científico

Prof. Dr. Richard Gonçalves André


Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Prof. Dr. Monica Selvatici


Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Prof. Dr. Koichi Mori


Universidade de São Paulo (USP)
O ESPÍRITO DE YAMATO

O XINTOÍSMO DE ESTADO E O KYYŌIKU CHOKUGO NA FORMAÇÃO DO


NACIONALISMO JAPONÊS E A IMIGRAÇÃO PARA O BRASIL (1890-1980)

Leonardo Henrique Luiz


Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/

A Editora Fi segue orientação da política de


distribuição e compartilhamento da Creative Commons
Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências


bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma
forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


LUIZ, Leonardo Henrique

O espírito de Yamato: O xintoísmo de Estado e o Kyyōiku Chokugo na formação do nacionalismo


japonês e a imigração para o Brasil (1890-1980) [recurso eletrônico] / Leonardo Henrique Luiz -- Porto
Alegre, RS: Editora Fi, 2022.

229 p.

ISBN: 978-65-5917-492-8
DOI: 10.22350/9786559174928

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Xintoísmo; 2. Nacionalismo; 3. Imigração; 4. Japão; 5. Brasil; I. Título.

CDD: 900
Índices para catálogo sistemático:
1. História 900
Sobre o Mestrado em História Social da
Universidade Estadual de Londrina

O Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade


Estadual de Londrina (PPGHS) foi credenciado pela CAPES em julho de
2006 e iniciou suas atividades no primeiro semestre de 2007. A área de
concentração é História Social e estava organizado inicialmente em três
Linhas de Pesquisa: “Territórios do Político”; “Culturas, Representações
e Religiosidades” e “História e Ensino”. Com as discussões e debates que
ocorreram ao longo desse período de funcionamento do curso e também
por recomendação do Comitê de Avaliação da CAPES, houve uma reor-
ganização na estrutura do programa. A partir de 2013, o Programa
passou a ser organizado em quatro Linhas de Pesquisa: “Territórios do
Político”; “História e Linguagens”; “Práticas Culturais, Memória e Ima-
gem” e “História e Ensino”.
Ao completar quinze anos, o PPGHS escolheu alguns trabalhos re-
presentativos das dissertações defendidas para serem publicados e
distribuídos, na forma de livro eletrônico, ao público leitor, em um es-
forço de ampliar a disseminação do conhecimento produzido
academicamente e solidificar os pressupostos da produção do conheci-
mento histórico baseada em uma relação metodológica entre quadros
teóricos e material empírico.
Este livro é parte deste esforço.
Nota ao leitor

Buscando tornar a leitura acessível e, ao mesmo tempo, possibilitar


diferentes interpretações por parte dos leitores, optamos por traduzir
para o português todas as citações de línguas estrangeiras ao longo do
livro, deixando em rodapé os respectivos originais. Especificamente, os
termos em japonês nas primeiras ocorrências, quando imprescindíveis,
foram colocados em kanji (ideogramas japoneses), seguidos da leitura
latinizada em itálico e a respectiva tradução, conforme explorado no
próprio texto. Seguimos esse modelo recorrente em revistas internaci-
onais, como Monumenta Nipponica, Japanese Journal of Religious Studies,
Journal of Asian Studies, Journal of Japanese Studies, entre outras. Entre-
tanto, é preciso lembrar que o ato de traduzir implica uma série de
perdas e interpretações, por isso optamos por manter as grafias no ori-
ginal, permitindo outras possíveis traduções por parte do leitor.
Espírito de Yamato!
Gritam os japoneses, tossindo qual tuberculosos.
[...]
Espírito de Yamato!
clama a imprensa.
Espírito de Yamato!
exortam os batedores de carteira.
Em um salto, o Espírito de Yamato
cruza os oceanos.
Discursa na Inglaterra,
encena peça teatral na Alemanha.
[...]
O Almirante Togo possui o Espírito de Yamato,
Gin, o peixeiro, também o tem.
Os farsantes, os especuladores, os assassinos,
todos possuem o Espírito de Yamato.
[...]
Mas ao lhes perguntar
“O que é o Espírito de Yamato?”
a pessoa apenas segue seu caminho respondendo:
“É o Espírito de Yamato, ora.”
E após alguns passos,
eu a ouço limpar a garganta: “Ahã.”
[...]
Seria o Espírito de Yamato triangular?
Ou seria o Espírito de Yamato quadrado?
Conforme diz o próprio nome,
o Espírito de Yamato é um espírito.
E por ser um espírito está sempre em mutação.
[...]
Todos falam sobre,
mas ninguém jamais o viu.
Todos ouvem sobre ele,
mas ninguém até hoje o encontrou.
O Espírito de Yamato é uma espécie de monstro
como o narigudo Tengu.

Natsume Soseki
SUMÁRIO

PREFÁCIO 13
R ICHARD G ONÇALVES A NDRÉ

INTRODUÇÃO 21
FERRAMENTAS EPISTEMOLÓGICAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36
ESTRUTURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

1 45
CONSTRUINDO A MODERNIZAÇÃO: O ESTADO MEIJI (1868)
O PROJETO DE NAÇÃO JAPONESA: RESTAURAÇÃO MEIJI? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47
MITOGAKU E O PROJETO DE NAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52
O IMPERADOR E O ESTADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
IMPERIALISMO JAPONÊS NA ÁSIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

2 88
XINTOÍSMO: UMA RELIGIÃO JAPONESA
A PRODUÇÃO SOBRE O XINTOÍSMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
O XINTOÍSMO E O ESTADO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
XINTOÍSMO: UMA RELIGIÃO? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

3 123
EDUCAÇÃO NO IMPÉRIO JAPONÊS
CONTEXTUALIZAÇÃO DO KYŌIKU CHOKUGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
ANÁLISE DO EDITO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140

4 164
O HABITUS XINTOÍSTA NO BRASIL
A COLÔNIA DE ASSAÍ: UM ESPAÇO NIKKEI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165
A EDUCAÇÃO NIKKEI NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
O KYŌIKU CHOKUGO NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189

CONSIDERAÇÕES FINAIS 212

REFERÊNCIAS 217
PREFÁCIO

Richard Gonçalves André 1

Como objeto de investigação acadêmica, o Shintō tem sido relati-


vamente pouco explorado pelos pesquisadores 2. A maior parte da
produção encontra-se em língua estrangeira, sobretudo em inglês e ja-
ponês, o que é válido também no tocante às reflexões sobre as demais
religiões nipônicas ou que tiveram parte de seu desenvolvimento no Ja-
pão, como o Budismo. Além disso, com algumas exceções como este
livro, as discussões embasadas por pesquisas sólidas – dialogando de
forma consistente com a historiografia, com as fontes primárias e com
repertórios teóricos e metodológicos apropriados –, permanecem vol-
tadas para o cenário internacional. Pode-se destacar os trabalhos sobre
o Shintō realizados por pesquisadores como Toshio Kuroda (1981), Mark
Teeuwen e Bernhard Scheid (2002), Helen Hardacre (1989), Hiromi Ma-
eda (2002) e Aike Rots (2015), entre outros. Apesar das abordagens sobre
essa religião ainda serem relativamente pouco numerosas quando

1 Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e pós-doutor em Língua, Literatura e Cultura
Japonesa pela Universidade de São Paulo (USP). É professor do Departamento de História da Universidade
Estadual de Londrina (UEL) e docente do Pós-Graduação em História Social da UEL. Coordena, juntamente com
Leonardo Henrique Luiz, o Laboratório de Pesquisa sobre Culturas Orientais (LAPECO), sendo editor,
juntamente com Luiz e José Rodolfo Vieira, da Prajna: revista de culturas orientais.
2 Embora exista a terminologia aportuguesada “Xintoísmo”, opta-se aqui por “Shintō” não apenas em razão de
sua proximidade em relação ao vocábulo japonês, mas também devido à incômoda sensação de unicidade
gerada pelo sufixo “ismo” comumente utilizado no Ocidente para referir-se às diferentes concepções e práticas
religiosas. Algumas delas, como o próprio Shintō, são fragmentárias a ponto de resistir a essa tônica
centralizadora.
14 • O espírito de Yamato

comparadas, por exemplo, ao Budismo, o campo tem crescido de forma


significativa nas últimas décadas.
No Brasil, o estado da arte sobre as reflexões acadêmicas em torno
do Shintō é ainda mais lacunar. A religião aparece de modo pontual, isto
é, não como objeto central de investigação, em obras como aquelas pro-
duzidas por Tomoo Handa (1987), Takashi Maeyama (1967) e outros
autores que abordaram a questão da imigração japonesa. Poucos pes-
quisadores, como Rafael Shoji (2008), analisaram o Shintō como eixo de
discussão, no caso articulando-o a movimentos como a Shindō Renmei,
grupo ultranacionalista que, no Brasil, fundamentado no ideário religi-
oso japonês, promoveu ações violentas contra membros da comunidade
nipônica que negavam a derrota japonesa na Guerra do Pacífico.
O cenário acadêmico sobre o Shintō contrasta com a importância
da cultura japonesa no Brasil, considerando que, desde 1908, pelo menos
oficialmente, a imigração nipônica se faz presente no país (LESSER,
2001). Em diversas esferas, japoneses e descendentes exerceram e exer-
cem influência profunda no tocante à composição cultural brasileira.
Dentre elas, pode-se destacar a religião, tendo em vista a existência de
templos budistas, santuários Shintō e instituições ligadas às chamadas
Novas Religiões Japonesas, que passaram a emergir no cenário nipônico
desde o final do século XIX. Basta lembrar que uma das figuras religiosas
mais influentes no Brasil, a Monja Coen, pertence ao Budismo de escola
Soto Zen, originado no Japão do século XIII (ANDRÉ, 2018).
Tendo em vista o contraste entre o impacto da cultura japonesa no
Brasil e a escassez de reflexões sobre o Shintō, o livro de Leonardo Hen-
rique Luiz oferece contribuição importante no tocante à questão em
Leonardo Henrique Luiz • 15

diferentes sentidos. O autor analisa os entrelaçamentos entre o Kyōiku


Chokugo (Rescrito Imperial de Educação, produzido em 1890), o Shintō e o
repertório ultranacionalista nipônico, o que possuiu implicações signi-
ficativas sobre o desenvolvimento da imigração japonesa para o Brasil.
Luiz aborda o papel desempenhado pelas escolas japonesas na difusão
dessas representações, na medida em que práticas ultranacionalistas
como a reverência à fotografia do imperador e a leitura solene do res-
crito foram mantidas em território brasileiro. As escolas foram
instituições significativas não apenas no que tange à preservação da
educação formal de filhos de imigrantes, mas também no tocante à re-
construção no além-mar de elementos do “espírito japonês”, o chamado
yamato damashii.
O livro de Luiz não é apenas mais uma obra sobre o Shintō, ofere-
cendo, por outro lado, avanços importantes na historiografia. Em
primeiro lugar, o autor tem desenvolvido pesquisas significativas sobre
as religiões japonesas no Brasil, seja em relação ao Shintō propriamente
dito, seja no tocante ao Budismo, o que se reflete em diversos artigos.
Além disso, o pesquisador é cofundador, juntamente com Richard Gon-
çalves André, do Laboratório de Pesquisa sobre Culturas Orientais
(LAPECO), bem como da Prajna: revista de culturas orientais, ambos liga-
dos à Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Em O espírito de Yamato, Luiz dialoga com produção acadêmica
consistente a respeito do Shintō, amparado, além disso, por metodolo-
gias e fundamentações teóricas sólidas para a análise do objeto de
investigação, assim como das próprias fontes primárias. Conhecedor de
língua japonesa, o autor coteja as diferentes versões do Rescrito
16 • O espírito de Yamato

Imperial de Educação, inclusive suas traduções para o inglês e o portu-


guês, chamando a atenção para o fato de que, no processo, o documento
é reconstruído em diálogo com diferentes contextos históricos.
Além do rigor com o qual conduziu a pesquisa que originou o livro,
realizada em nível de mestrado no Programa de Pós-Graduação em His-
tória Social da UEL, Luiz possibilita reinterpretar o fenômeno do
ultranacionalismo nipônico em dois sentidos. Em primeiro lugar, no
que diz respeito às modalidades específicas que o fenômeno se revestiu
no além-mar, num período em que o Japão se assumiu enquanto impé-
rio, pelo menos até 1945. No Brasil, as escolas, pelo menos em parte,
foram constituídas como reduto do Shintō de Estado, longe dos santuá-
rios que caracterizaram, por exemplo, a presença japonesa na Coreia
(ANDERSON, 2017, p. XIX). Diferentemente de outras regiões da Ásia
submetidas pelo governo nipônico, os santuários no Brasil parecem ter
assumido feições diferentes. Episódio emblemático refere-se ao “San-
tuário Bugre”, fundado sobre um cemitério indígena nas imediações de
Promissão (SP), mas que foi em pouco tempo abandonado.
A segunda possibilidade de reinterpretação do ultranacionalismo
remete à própria periodização em que foi desenvolvido no Brasil. No Ja-
pão, entre 1945 e 1952, a derrota na Guerra do Pacífico foi marcada pela
presença do Governo de Ocupação, que criou dispositivos voltados es-
pecificamente para a desconstrução do nacionalismo, inclusive no
tocante ao Shintō (MULLINS, 2017, p. 231). Em território brasileiro, por
outro lado, a ausência das instituições oficiais de representação – ou
melhor, sua retirada no início dos anos 1940, em razão da situação de
guerra (SHOJI, 2008, p. 21) – levou a um conflito, no pós-guerra
Leonardo Henrique Luiz • 17

imediato, entre os “vitoristas” que afirmavam o sucesso do Japão no


conflito internacional e os “derrotistas” que conheciam e aceitavam a
perda. Como Luiz sugere, a postura dos primeiros refletia o ideário
Shintō de invencibilidade do imperador, em consonância com as obser-
vações de Shoji (2008, p. 23 e 24) a respeito da dissonância cognitiva
gerada pelos efeitos do fim da guerra.
Todavia, de acordo com Luiz, o encerramento das tensões entre vi-
toristas e derrotistas não finalizou totalmente certas práticas
nacionalistas no Brasil, na medida em que, mesmo após décadas desde
o fim da guerra, a recitação solene do Rescrito Imperial de Educação
permaneceu em determinadas escolas japonesas. Sem um Governo de
Ocupação, como no caso do Japão, o nacionalismo nipo-brasileiro esten-
deu-se para além de 1945 em contexto pedagógico. De qualquer forma,
sombras do autoritarismo político permaneceram em ambos os países
de forma residual. No Japão, é possível destacar a peregrinação do ex-
primeiro ministro japonês, Shinzo Abe, ao Santuário Yasukuni, local em
que combatentes do exército nipônico (incluindo criminosos de guerra)
foram elevados à condição de deidades, abalando as relações internaci-
onais com a China e a Coreia.
Tendo em vista essas considerações, o livro de Luiz oferece contri-
buições importantes para um debate acadêmico em processo de
construção, seja em língua portuguesa, seja no tocante à própria refle-
xão sobre o Shintō no Brasil. Determinadas questões permanecem em
aberto para futuras investigações, tais como o alcance do repertório ul-
tranacionalista em território brasileiro: haveria possibilidades de
desvios de leitura do Shintō partindo de alunos e professores,
18 • O espírito de Yamato

afastando-se de concepções ultranacionalistas? Outras modalidades


dessa religião teriam sido desenvolvidas no país, não necessariamente
atreladas ao Shintō de Estado? O próprio Santuário Bugre não poderia
ser visto como algo diferenciado quando comparado ao afã nacionalista
dos ideólogos mais conservadores?
São questões que podem encaminhar certas linhas de investigação
sobre o Shintō no Brasil, arquitetando um campo de investigação. O li-
vro de Luiz alicerça os fundamentos de uma histografia em processo de
construção, convidando à leitura tanto interessados em cultura japo-
nesa quanto novos pesquisadores.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Emily. Introduction: empire of religions: exploring belief and practice in


imperial Japan and colonial Korea. In: ANDERSON, Emily (Org.). Belief and practice
in imperial Japan and colonial Korea. Singapore: Palgrave Macmillan, 2017. p. XVII-
XXVIII.

ANDRÉ, Richard Gonçalves. O dharma na impermanência da web: difusão e


transformações do Budismo na Internet (2015-2017). Horizonte: revista de estudos
de teologia e ciências da religião, v. 16, n. 51, p. 1240-1269, 2018.

HANDA, Tomoo. O imigrante japonês: história de sua vida no Brasil. São Paulo: T.A.
Queiroz Editor, Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 1987.

HARDACRE, Helen. Shinto and the state, 1868-1988. Princeton: Princeton University
Press, 1989.

KURODA, Toshio. Shinto in the history of Japanese religion. Journal of Japanese studies,
n. 7, p. 1-21, 1981.
Leonardo Henrique Luiz • 19

LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela


etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2001.

MAEDA, Hiromi. Court rank for village shrines: the Yoshida house's interactions with
local shrines during the mid-Tokugawa period. Japanese journal of religious studies,
v. 29, n. 3-4, p. 325-358, 2002.

MAEYAMA, Takashi. O imigrante e a religião: estudo de uma seita religiosa japonesa em


São Paulo. 1967. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de São
Paulo, São Paulo.

MULLINS, Mark R. Religion in occupied Japan: the impact of SCAP’s policies on Shinto.
In: ANDERSON, Emily (Org.). Belief and practice in imperial Japan and colonial Korea.
Singapore: Palgrave Macmillan, 2017. p. 229-248.

ROTS, Aike P. Sacred forests, sacred nation: the Shinto environmentalist paradigm and
the rediscovery of chinju no mori. Japanese journal of religious studies, v. 42, n. 2, p.
205-233, 2015.

SHOJI, Rafael. The failed prophecy of Shinto nationalism and the rise of Japanese
Brazilian Catholicism. Japanese journal of religious studies, v. 35, n. 1, p. 13-38, 2008.

TEEUWEN, Mark; SCHEID, Bernhard. Tracing Shinto in the history of kami worship.
Japanese journal of religious studies, v. 29, n. 3-4, p. 195-207, 2002.
INTRODUÇÃO

O poema acima que abre o presente livro 3 foi escrito pelo literato
japonês Natsume Soseki (1867-1916) na obra Eu sou um gato (2008). No
romance, o poema é declamado pelo professor Kushami, personagem
que representa o alter ego do autor, aos seus colegas de profissão. Esse
poema, publicado em 1905, apresenta uma série de elementos comuns
ao discurso intelectual e político japonês da época que é sumarizado por
Soseki na ideia de “Espírito de Yamato” 4.
Há uma carga de ironia nessa descrição do espírito de Yamato feita
por Soseki, pois aqui o espírito está presente e é louvado por todos os
japoneses mesmo não tendo uma definição clara (pelo menos do ponto
de vista das pessoas comuns). Diversas figuras, como o “Almirante
Togo” (líder na vitória japonesa contra os russos em Port Arthur, 1905),
bem como “Os farsantes, os especuladores, os assassinos” também o
possuiriam, de igual maneira, sem distinção hierárquica. Além disso, o
espírito de Yamato seria algo da mesma categoria que o Tengu, um tipo
de ser mitológico que assombraria os bosques e montanhas pregando
peças nas pessoas (HADLAND, 2004). Dessa forma, o espírito de Yamato

3 Produzido a partir da dissertação de mestrado do autor defendida em 2019 no Programa de Pós-graduação


em História Social na Universidade Estadual de Londrina.
4 Nota do tradutor sobre o espírito de Yamato: “O conceito de Espírito de Yamato (ou Espírito do Japão)
remonta ao século XI e se refere à adoção do conhecimento proveniente do exterior apenas como
ensinamento básico, modificando-o de forma a adaptá-lo às circunstâncias japonesas. Na Era Meiji, com a
abertura do Japão ao Ocidente, o conceito ganha nova força entre os japoneses, particularmente durante a
guerra russo-japonesa” (TEIXEIRA, 2008, p. 246).
22 • O espírito de Yamato

assume a forma de um modelo interpretativo mítico que resumiria os


aspectos nacionais do Japão ou, da perspectiva de um discurso mais na-
cionalista, a “niponicidade”, a “essência nacional” ou, literalmente, o
“espírito do Japão” que deveria ser sentido e vivido por todos, sem pre-
cisar ser explicado.
De uma perspectiva ampla, a construção dessas ideias esteve atre-
lada à própria construção discursiva da nação japonesa. Isto é, esse
discurso esteve presente no seio de elementos que compuseram um
quadro conceitual delimitador de práticas e representações 5 no pro-
cesso de definição da identidade nacional 6 japonesa na passagem do
século XIX para o XX, processo denominado de Restauração Meiji (Meiji
Ishin - 明治維新) 7. O presente livro visa discutir a historicidade dessa
construção nacional, enfocando nos aspectos religiosos do discurso na-
cionalista e buscando analisar sua permanência entre os nikkeis 8 no
Brasil. Estabelecemos como foco as práticas nacionalistas reconstruídas

5 Esses conceitos são entendidos com base nas formulações de Roger Chartier (2002, p. 73), segundo o qual as
práticas “[...] visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de estar no mundo,
a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas
graças às quais ‘representantes’ (instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e
perpetuado a existência do grupo, da comunidade ou da classe [...]”, isto é, o conceito de prática está baseado
na forma com que os grupos estabelecem o seu “fazer” baseados em determinado repertório cultural
compartilhado. Os sentidos desse “fazer” são conferidos pelas representações que visam explicar e apresentar
o mundo pelo ponto de vista dos grupos.
6 Partindo do pressuposto de que a nação passou a ser um elemento importante na definição das identidades
no mundo moderno, Stuart Hall (2004) define “identidade nacional” por meio do estabelecimento do Estado-
nação em um território que instituiu símbolos, eventos e histórias como sendo parte de uma representação
coletiva. Na modernidade, essa representação da identidade foi perpetuada pelo sistema escolar visando
unificar o território, pois antes da formação do Estado-nação a lealdade e a identificação eram relacionadas à
tribo, à religião e à região.
7 Transformações que ocorreram no Japão a partir de 1868 (ALBUQUERQUE, 1971). Esse período teve como
marco uma série de mudanças na organização política, econômica e social do Japão, buscando a transformação
da região em país no sentido moderno do termo (Estado-nação), isto é, com mudanças que burocraticamente
instituíram uma educação compulsória, uma moeda oficial, um governo com representantes e leis definidas,
entre outros elementos. Ver também o capítulo 1.
8 Japoneses que vivem no exterior ou descendentes nascidos fora do Japão.
Leonardo Henrique Luiz • 23

no Brasil, principalmente a leitura do Edito Imperial de Educação


(Kyōiku ni Kansuru Chokugo - 教育ニ関スル勅語), que podem ser ob-
servadas pelo menos até a década de 1980, enquanto no próprio Japão o
Kyōiku Chokugo foi abolido após a Segunda Guerra Mundial (NOLTE,
1983).
Nossa fonte, o Kyōiku Chokugo, foi um documento com aproxima-
damente 335 caracteres, dependendo da versão consultada, e
promulgado em 1890 pelo imperador Meiji (1852-1912). Esse texto se tor-
nou um intermediário pelo qual a nova organização política passou a ser
definida, pois serviu como um dos principais suportes para a propaga-
ção da ideia de nação japonesa que estava em construção. O edito
apresenta diversos elementos que definiram a constituição do espírito
de Yamato, isto é, o que no âmbito discursivo tornaria os japoneses di-
ferentes de outros povos e, consequentemente, únicos.
Por ser um texto breve de uma página, o edito era usado para ser
recitado solenemente nas escolas de todo o território nacional. Além
disso, conforme será argumentado ao longo dos capítulos, mesmo o
Kyōiku Chokugo não sendo aprovado por meio de uma lei, todos os ele-
mentos simbólicos em volta desse documento ultrapassaram a esfera
burocrática, tornando-se mais importante que uma regulação. Em ter-
mos de conteúdo, o edito foi criado tendo por base uma construção
discursiva xintoísta, na qual o próprio imperador assumiu um papel
central (SHIMAZONO, 2009). Originalmente escrita em japonês, pode
ser traduzido da seguinte maneira 9:

9 Para os aspectos que envolveram o processo de tradução, ver o capítulo 3.


24 • O espírito de Yamato

Sabei, Nossos súditos: Nossos Ancestrais Imperiais fundaram Nosso Impé-


rio em amplas e eternas bases e implantaram profunda e firmemente a
virtude; Nossos súditos têm, de geração a geração, com lealdade e piedade
filial ilustrado essa beleza. Esta é a característica fundamental da glória de
Nosso Império, e também é a fonte da verdade da Nossa educação. Vós, Nos-
sos súditos, sejam filiais para com seus pais, afetuosos com seus irmãos e
irmãs; sejam harmoniosos como marido e esposa, como verdadeiros amigos
com confiança mútua; porte-se com modéstia; estenda sua mão fraternal-
mente para todos; persiga o aprendizado, a disciplina e cultive as artes, e
assim, desenvolva as faculdades intelectuais e um caráter nobre; além disso,
advogue pelo bem público e promova os interesses em comum; sempre res-
peite a Constituição Nacional e observando as leis; em caso de emergência,
ofereça-se leal e corajosamente ao bem público; e dessa forma, guarde e
mantenha a prosperidade da Fortuna do Nosso Trono Imperial eterno como
o céu e a terra. Então, você não será apenas Nosso bom e fiel súdito, mas
honrará publicamente as melhores tradições dos antepassados; Este Cami-
nho é certamente o ensino legado por Nossos Ancestrais Imperiais, para ser
observado igualmente por seus descendentes e súditos, infalível para todas
as eras e verdadeiro para todos os lugares. É Nosso desejo estabelecer no
coração com toda reverência, em comum com você, Nossos súditos, que to-
dos possamos alcançar essa mesma virtude. 30°dia do 10°mês do 23°ano de
Meiji [1890]. [Selo Imperial].

O conteúdo indica uma série de condutas morais que deveriam ser


seguidas pelos japoneses. De uma forma ampla, podemos entender que
essas eram as condutas esperadas de um japonês idealizado pelo Estado.
Da mesma maneira, a própria existência do Japão como nação foi con-
dicionada ao imperador que assumiu, por intermédio da figura dos
ancestrais, a característica de aglutinador do etnocentrismo japonês,
isto é, o Japão só deveria ser pensado como um território unificado pela
Leonardo Henrique Luiz • 25

presença do imperador. Esse repertório discursivo 10 esteve presente na


construção daquilo que estamos nos referindo como nacionalismo japo-
nês do século XX, que assumiu características exacerbadas
principalmente na década de 1940, conhecido como ultranacionalismo
japonês ou, em alguns autores, como fascismo japonês (SAITO, 2012).
Um dos aspectos marcantes da política japonesa no período de cri-
ação do edito é a adoção de posturas imperialistas objetivando expandir
sua zona de influência. Essas posturas manifestaram-se com a ocupação
de vários lugares na Ásia, conforme pode ser observado no Mapa 1. O
processo de colonização japonesa seguiu um ritmo gradual, alcançando
regiões como a Coreia, partes da China (Manchúria), Taiwan, a região
das Filipinas, entre outras. O domínio nessas áreas durou até o fim da
Segunda Guerra Mundial, com a derrota japonesa. Paralelo a esse impe-
rialismo com características colonialistas, notamos a adoção das
políticas migratórias, em um primeiro momento as migrações para as
ilhas de Hokkaido (no norte) e Okinawa (no sul), e, posteriormente, a
migração externa para diversos países, como Brasil, Estados Unidos e
Peru (MITA, 1999).

10 O conceito é abordado com base na relação entre língua, discurso e ideologia, considerações estas feitas
por Eni P. Orlandi (2009, p. 17). Segundo a autora, “[…] não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem
ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido.”. Mais
precisamente, “[…] o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia,
compreendendo-se como a língua produz sentidos por/para os sujeitos”.
26 • O espírito de Yamato

Mapa 1 – O Império Japonês na Ásia por ano de ocupação

Fonte: Pinheiro (2009, p. 48)

A existência desses processos paralelos gerou um debate significa-


tivo e interdisciplinar tanto no campo acadêmico como no político, no
qual, por um lado, argumentou-se que a própria imigração japonesa
para outros países foi projetada como uma forma de imperialismo. Esse
argumento foi usado, por exemplo, no Brasil por políticos e intelectuais
que eram contrários a essa imigração. Conforme aponta Jeffrey Lesser
(2001), os argumentos desse grupo giravam em torno de pressupostos
eugenistas e da acusação de “[...] que a imigração japonesa era parte de
Leonardo Henrique Luiz • 27

um plano expansionista para destruir a nação brasileira” (LESSER, 2001,


p. 178). Mesmo com essa campanha contrária, a imigração japonesa para
o Brasil foi efetivada oficialmente em 1908. Além disso, no próprio de-
bate acadêmico há análises que indicam as ligações entre o
imperialismo e a imigração, em autores como Sedi Hirano (1999) e
Chiyoko Mita (1999), discutidos no primeiro capítulo.
De outro ponto de vista, o tema da imigração foi bastante discutido
na historiografia brasileira, tendo autores como Marcia Yumi Takeuchi
(2002), Célia Sakurai (2000a; 2000b; 2014), Rogério Dezem (2000), Cacilda
Maesima (2012), Alice Yatiyo Asari (1992), Lesser (2001), entre outros,
que buscaram desconstruir esses estereótipos, evidenciando os confli-
tos, muitas vezes silenciados, derivados desse discurso eugenista e
xenofóbico. Inclusive alguns desses autores, como Asari (1992, p. 12), re-
jeitam explicitamente a relação direta entre imperialismo e imigração.
Para a autora, “[...] há que se reconhecer que o avanço ‘imperialista ja-
ponês’ além-mar não era um jogo de probabilidade e sim o caminho
vislumbrado para conter e quiçá, resolver os problemas causados pela
pressão populacional e a escassez de recursos no país [...]”, isto é, nessa
perspectiva a migração foi impulsionada por motivos demográficos e
pela escassez de recursos, e não por interesses imperialistas.
A partir desse quadro geral, podemos delimitar os objetivos deste
livro, no qual buscamos explorar novas abordagens documentais que
problematizem as possíveis ligações entre o imperialismo e a imigração
japonesa. Isso não quer dizer, contudo, que seguiremos as linhas dos
políticos e intelectuais contrários à imigração, mas sim mostraremos
como as atividades dos imigrantes no Brasil fazem referência a um
28 • O espírito de Yamato

habitus (BOURDIEU, 1989) nacionalista/imperialista que remete a insti-


tuições e práticas ligadas ao xintoísmo de Estado 11.
O conceito de habitus é entendido como a incorporação dos discur-
sos e práticas que são socialmente reproduzidos entre os indivíduos.
Para Bourdieu, o habitus não significa obediência, pois as práticas são
coletivamente adaptadas em um constante processo de renovação e re-
criação. Nas suas palavras,

A noção de habitus [...] é importante para lembrar que os agentes têm uma
história, que são o produto de uma história individual, de uma educação
associada a determinado meio, além de serem o produto de uma história
coletiva, e que em particular as categorias de pensamento, as categorias do
juízo, os esquemas de percepção, os sistemas de valores, etc. são o produto
da incorporação de estruturas sociais (BOURDIEU; CHARTIER, 2012, p. 58).

Como apontado por Bourdieu, a formação desse habitus está con-


dicionado às experiências e não se trata de uma determinação realizada
acima das vontades individuais. Ainda assim, parece oportuno reforçar
que o discurso do Kyōiku Chokugo, como todo discurso de dominação,
não foi recebido passivamente. Nesse sentido, as contribuições teóricas
de Michel de Certeau e Roger Chartier ajudam a problematizar a questão
da recepção e, ao mesmo tempo, flexibilizar o quadro estrutural for-
mado com base na sociologia de Bourdieu.

11 O termo será discutido ao longo do trabalho, mas por ora definimos o Estado xintoísta com base em Rafael Shoji
(2008, p. 16): “O xintoísmo de Estado é essencialmente entendido aqui como uma reinvenção moderna da tradição
que enfatizou elementos seletivos em nome da unidade do povo japonês. Sustentou a centralização política, por
meio da suposta divindade do imperador e do expansionismo imperialista no Japão da Era Meiji”. No original: “State
Shinto is essentially understood here as a modern reinvention of tradition that emphasized selected elements in
the name of the unity of the Japanese people. It sustained political centralization, through the assumption of the
emperor's divinity, and the imperialist expansionism that caught Japan in the Meiji Era”.
Leonardo Henrique Luiz • 29

Para Certeau (2014), o estudo de um processo de difusão, no sentido


da transmissão de uma representação, deve ser complementado pelo da
recepção realizada pelos sujeitos. O grande problema dessa tarefa é que
normalmente a difusão fabrica produtos culturais visíveis e duráveis,
como é o caso do Kyōiku Chokugo, enquanto os agentes que realizam o
consumo muitas vezes não criam materialmente suas recepções. Esses
dois fenômenos são conceituados por Certeau baseado nas noções de
“estratégia” e “tática”, em que a primeira se refere ao processo de pla-
nejar e circunscrever as ações por meio de um poder. Para o autor (2014,
p. 45), “A nacionalidade política, econômica ou científica foi construída
segundo esse modelo estratégico”. Por outro lado, a tática atua nas bre-
chas deixadas pela estratégia, nas quais os agentes buscam maneiras
criativas de utilizar a ordem imposta e produzir respostas imprevisí-
veis. Dessa forma, ao mesmo tempo em que temos o habitus como
exteriorização do adquirido reproduzindo as práticas, há também a
“quebra” desse processo pelas estratégias frente ao discurso estrutu-
rante. Tal fenômeno pode ser entendido pelo conceito de apropriação
formulado por Chartier (2002, p. 68):

A apropriação tal como a entendemos visa uma história social dos usos e
das interpretações, relacionados às suas determinações fundamentais e
inscritos nas práticas específicas que os produzem. Dar assim atenção às
condições e aos processos que, muito concretamente, sustentam as opera-
ções de construção do sentido (na relação de leitura mas também em muitas
outras) [...]
30 • O espírito de Yamato

Portanto, buscamos analisar o papel que o xintoísmo de Estado


exerceu na vida dos indivíduos e como esses elementos xintoístas foram
apropriados e se tornaram habitus que influenciaram as atividades dos
nikkeis no Brasil. Como será argumentado, esse tema é particularmente
sensível na memória nacional japonesa e entre os descendentes, pois
está diretamente relacionado aos eventos da Segunda Guerra Mundial,
sendo o Japão considerado um dos “responsáveis” pelo conflito bélico. O
grande problema nesse debate é que a definição de nação japonesa es-
teve conectada de forma intrínseca às ideias consideradas, pelos
Aliados, como causadoras da guerra, e uma ruptura completa a partir de
1946 com o processo de “democratização” da sociedade japonesa não foi
possível.
Conforme discute Yoshikuni Igarashi (2011), o pós-guerra no Japão
foi marcado pela construção de uma “Narrativa Fundadora” que buscou
dar sentido ao trauma gerado durante a guerra. Essa narrativa apresen-
tou a derrota como algo necessário para a transformação da nova
sociedade japonesa. Como afirma o autor (2011, p. 43-44):

O Japão perseguiu, deliberadamente, narrativas de continuidade histórica


que pudessem abarcar e transcender a perda a qual se teve de aguentar. Ex-
plicações narrativas da derrota permitiram ao Japão reivindicar sua
identidade apesar e por causa de mudanças históricas radicais que a nação
teve de suportar. A perda foi transformada através de representações nar-
rativas em um sacrifício necessário para a futura melhoria do Japão. Ao
explicar a perda como uma pré-condição para a sociedade do pós-guerra,
muitas narrativas da guerra expressavam e re-expressavam, simultanea-
mente, esta perda.
Leonardo Henrique Luiz • 31

Ao construir essas novas narrativas, o enfoque foi direcionado para


a relação de salvação e conversão do Japão a partir da atuação dos Esta-
dos Unidos da América. Esse discurso buscou criar bases a transição da
condição de inimigos para a de aliados entre os dois países, entretanto
deixou deliberadamente de lado a atuação imperialista japonesa na Ásia.
A transição do Império Japonês para a Democracia Japonesa foi marcada
por hesitações que contribuíram à sensibilidade do tema. Por exemplo,
são comuns os protestos de chineses e coreanos para as visitas de polí-
ticos japoneses ao Santuário de Yasukuni (Yasukuni Jinja – 靖国神社),
como ocorreu, por exemplo, em 2016 (MINISTRO, 2016). Esse santuário
xintoísta possui uma espécie de Livro da Almas, que homenageia como
kami 12 (神) alguns japoneses mortos em conflitos bélicos, entre os quais
estão listados indivíduos condenados como criminosos de guerra pelo
Tribunal de Tóquio (KLAUS, 2016) 13.
Mesmo recentemente, a administração do antigo Primeiro-Minis-
tro japonês, Shinzo Abe, esteve rodeada de problemas ligados a essas
questões. A começar que Abe é neto de Nobusuke Kishi, Primeiro-Mi-
nistro entre 1954 e 1960, mas que atuou em cargos importantes na
administração colonial japonesa da Manchúria na década de 1930, sendo
inclusive levado a julgamento no Tribunal de Tóquio e inocentado das
acusações. Além disso, Kishi tentou renovar de forma autoritária o Tra-
tado de Segurança Estados Unidos-Japão em 1960, procedimento que

12 Normalmente essa palavra é traduzida como “deus”, mas conforme André (2011, p. 45), “Ainda que traduzido
para o português como ‘deus’, o conceito de kami refere-se a uma série de entidades diferentes e, portanto,
irredutíveis às noções ocidentais de divindade”.
13 The International Military Tribunal for the Far East, responsável por julgar os crimes cometidos pelo Japão na
Segunda Guerra Mundial, seguiu os modelos de jurisprudência do Tribunal de Nuremberg (KLAUS, 2016).
32 • O espírito de Yamato

gerou diversos protestos e conflitos na sociedade japonesa (IGARASHI,


2011).
Outro ponto marcante da administração Abe foram as polêmicas
pessoais do Ministro envolvendo o discurso nacionalista, como em 2017,
quando ele e sua esposa foram acusados de doar 1 milhão de ienes para
o Moritomo Gakuen Group. Grupo que administra escolas com base em
uma formação ultranacionalista; além disso, ambos também foram acu-
sados de corrupção por facilitar a compra de um terreno público em
Osaka para o mesmo grupo (HURST, 2017).
Esse é um aspecto da história do presente (CHAUVEAU; TÉTARD,
1999) que tem relações significativas com este livro, pois esse grupo ad-
ministra pré-escolas particulares nas quais, segundo Hurst (2017, grifos
no original), “O jardim de infância chamou atenção por exigir que seus
jovens alunos se curvassem diante dos retratos da família imperial, can-
tassem diariamente o hino nacional e aprendessem sobre o Edito
Imperial de Educação de 1890, que enfatiza o sacrifício para o país” (tra-
dução do autor) 14. Além disso, a escola é acusada por pais de ex-alunos
de promover discurso de ódio contra minorias éticas (chineses e corea-
nos) e abusar das crianças.
É revelador que um grupo particular esteja retomando o discurso
nacionalista presente no Kyōiku Chokugo. Essa prática encontra forças
em movimentos revisionistas japoneses que buscam inserir um dis-
curso mais patriótico e contestar, por exemplo, a quantidade de mortos

14 “The kindergarten has attracted attention for requiring its young pupils to bow before portraits of the
imperial family, sing the national anthem daily, and learn the 1890 imperial rescript on education, which
emphasises sacrifice for the country”.
Leonardo Henrique Luiz • 33

no Massacre de Nanquim ou apresentar uma versão segundo a qual o


exército japonês não teve envolvimento oficial no estabelecimento das
“mulheres de conforto” 15, já que isso teria sido atitudes individuais dos
soldados. O próprio Abe é um dos responsáveis por tentar inserir esse
discurso patriótico nos livros didáticos japoneses (FACKLER, 2013; BLA-
KEMORE, 2017).
Em vista dos elementos apresentados, podemos afirmar que a te-
mática do Kyōiku Chokugo está relacionada com a discussão da
representação legítima da história, pois, como defenderemos, existe
uma conexão próxima entre o nacionalismo japonês criado a partir da
Era Meiji, o xintoísmo de Estado e a leitura do Kyōiku Chokugo. E se,
como argumentamos, esses elementos estiveram no Brasil entre os imi-
grantes, uma série de novas interpretações podem surgir e
complexificar a versão da história da imigração japonesa para o Brasil.
Conforme será demonstrado, ao percebemos a existência desse dis-
curso nacionalista no Brasil, especificamente nas regiões colonizadas por
nikkeis, podemos entender de maneira mais profunda diversos eventos
que evidenciam a presença do nacionalismo japonês no Brasil. Como
exemplo disso, no capítulo 4 damos destaque para as questões em torno
da Shindō Renmei 16 e como os discursos dessa organização foram

15 O termo é um eufemismo para designar o recrutamento forçado de mulheres, principalmente da China e


da Coreia, que eram submetidas a prostituição em regime de escravidão durante a ocupação japonesa na
Segunda Guerra Mundial (PINHEIRO, 2009).
16“Liga do Caminho dos Súditos”, organização japonesa que teve grande destaque no período pós-Segunda
Guerra Mundial no Brasil. Os membros da Shindō Renmei se espalharam principalmente pelos estados de São
Paulo e Paraná, defendendo uma série de ideias nacionalistas, como a de que o Japão não teria perdido a
guerra. Com essa postura, a organização implementou um grupo paramilitar para executar os nikkeis que
defendiam publicamente que o Japão, de fato, tinha perdido o conflito (CARVALHO, 2017). Ver a discussão no
capítulo 4.
34 • O espírito de Yamato

construídos com base em uma série de elementos seletivos do espírito de


Yamato criado a partir da Era Meiji. Esse repertório discursivo no Brasil
foi reproduzido nas escolas japonesas, onde as práticas giravam em torno
do discurso contido no Kyōiku Chokugo junto às imagens sagradas da fa-
mília imperial. Dessa forma, buscava-se reproduzir o nacionalismo
japonês no Brasil tendo como referencial as práticas e discursos aprendi-
dos no Japão antes da imigração. Ao analisarmos o caso de Assaí, no
Paraná, percebemos como as práticas escolares atribuíam aspectos sagra-
dos a esses objetos que se tornavam, para os alunos, alvos de inquietações.
Isso não quer dizer que esses nikkeis se tornavam súditos leais ao impe-
rador, mas sim que essas práticas ajudavam a perpetuar o habitus
nacionalista que delegava ao Japão um lugar especial. Portanto, de certa
forma, o presente livro busca analisar as continuidades discursivas em
torno do nacionalismo japonês e suas transformações no Brasil.
Da perspectiva pessoal, não tenho nenhum laço de parentesco com
o Japão, e esse é um elemento que marca toda minha trajetória acadê-
mica nesse campo de estudos. De certa forma, essa característica pode
ser analisada por meio da noção de “distância” no sentido definido por
Ginzburg (2001), pois como não-nikkei, ao mesmo tempo, tenho uma
“distância literal e metafórica” com a cultura japonesa, isto é, por não
ter sido criado em um meio cujos pais ou avôs fossem japoneses, diver-
sos aspectos do que podemos chamar de um habitus nikkei foram
novidade para mim.
Por um lado, esse “estranhamento” apresentou obstáculos difíceis
de serem ultrapassados, a começar com os primeiros contatos com a
língua japonesa até o desconhecimento de práticas comuns aos
Leonardo Henrique Luiz • 35

imigrantes, que, do ponto de vista de um outsider, são reveladoras. De


acordo com Benedict 17 (1972), todas as relações sociais japonesas são
marcadas por uma série de regras de etiqueta partilhadas, denominadas
Giri (義理). Tais regras são seguidas visando à manutenção da harmonia
social e aplicadas em todos os momentos. Por exemplo: ao receber um
presente ou favor, os indivíduos sentem a obrigação de realizar a retri-
buição chamada Okaeshi (お返し). Mesmo entre os imigrantes japoneses
no Brasil, isso foi algo comum em diversas ocasiões, como em um fune-
ral, em que as famílias próximas oferecem um envelope contendo certa
quantia de dinheiro, chamado Kôden (香奠), à família enlutada. Nesse
sentido, as relações sociais são colocadas dentro dessa ordem e hierar-
quicamente estabelecidas: entre alunos e professor; veterano (senpai -
先輩) e aprendiz (kôhai - 後輩); entre pai e filhos, etc.

Por outro lado, ao conhecer esse repertório cultural, seja por meio
dos trabalhos acadêmicos, seja pela literatura ou cultura pop japonesas,
certos elementos que muitas vezes podem ser naturalizados por quem
cresceu nesse ambiente me pareciam diferentes logo nos primeiros
contatos. O próprio tema, que perpassa todo o livro, pode se encaixar
nesse padrão. É comum que em meio aos produtos culturais referentes
ao Japão, mesmo atualmente, haja o contato com a perspectiva naciona-
lista da cultura japonesa que exalta os valores patrióticos e certo
espírito japonês, colocando “as coisas do Japão” em um pedestal

17 Apesar de ser um texto rico em informações sobre as atitudes e pensamentos profundamente enraizados
na cultura japonesa, esse livro foi escrito como produto final do encargo que a autora recebeu em 1944 pelos
Estados Unidos de estudar o Japão para melhor combatê-lo. Portanto, apresenta certos pontos parciais em
relação à cultura japonesa no que se refere aos motivos da guerra. Além disso, é um trabalho antropológico
sem observação de campo (no Japão), na medida em que a autora entrevistou apenas os japoneses que
imigraram aos Estados Unidos e prisioneiros de guerra.
36 • O espírito de Yamato

superior. Ironicamente, no senso comum, mesmo entre não descenden-


tes, não é raro encontrar essa exaltação dos valores da cultura japonesa.
Desde meus primeiros contatos contínuos com a História e a cul-
tura japonesas, por volta de 2007, e nos primeiros passos no campo
acadêmico, ainda na Iniciação Cientifica, ocasionalmente me deparava
com discursos que revelavam certo orgulho da descendência japonesa,
o que é comum em vários outros grupos de imigrantes. Mas, o que mais
me chamava a atenção era que no caso japonês o discurso muitas vezes
surgia junto com certo sentimento ultranacionalista, colocando o Japão
como o melhor lugar do mundo em tudo. Nesse sentido, este livro foi
estabelecido com o objetivo de realizar uma genealogia dos sentidos
desse discurso nacionalista e como ele sobreviveu no Brasil, mesmo pas-
sados mais de 110 anos do início oficial da imigração. Como o leitor
poderá constatar, a fonte selecionada, o Kyōiku Chokugo, fez parte da
criação desse discurso, e a leitura desse texto até pelo menos a década
de 1980 foi um dos suportes para a manutenção do nacionalismo japo-
nês no Brasil, mesmo com mudanças temporais e no próprio conteúdo
do texto.

FERRAMENTAS EPISTEMOLÓGICAS

Tendo em vista o objeto de investigar esse amplo repertório dis-


cursivo com base em sua fundamentação religiosa, em um primeiro
momento adotamos uma postura teórica que busca compreender as ma-
nifestações religiosas de um ponto de vista institucional. Nesse sentido,
refletimos baseados nas noções propostas por Bourdieu (2005), segundo
Leonardo Henrique Luiz • 37

o qual a religião pode ser entendida como campo 18 que atua legitimando
a ordem social com símbolos, regras e práticas definidas. Devido à rela-
ção próxima com o Estado japonês, o xintoísmo pôde atuar em vários
setores da vida pública desde o século XIX. Entretanto, conforme argu-
mentaremos ao longo do livro, essa atuação não era entendida pelos
japoneses como algo religioso, apesar de ser considerada sagrada.
Se observarmos o caso da fonte selecionada, o Kyōiku Chokugo,
desde sua publicação em 1890 até a revogação em 1948, atuou nessa con-
dição de sagrado, mas não propriamente religioso. Por mais que os
japoneses do período tenham lido e conservado o texto como algo que
transcendia o mundo profano, o Kyōiku Chokugo não era colocado como
parte de uma religião específica, sendo nesse sentido, por exemplo, di-
ferente da Bíblia cristã. O edito é algo que só faz sentido tendo como
base o habitus japonês pós-Era Meiji, composto por um repertório dis-
cursivo em torno da nação. Quando os imigrantes japoneses chegaram
ao Brasil, esses indivíduos trouxeram parte significativa desse habitus,
que foi reproduzido de diversas formas. Tal fenômeno é difícil de ser
percebido devido à lacuna nos documentos, entretanto defendemos que
a seleção do Kyōiku Chokugo como fonte possibilita demonstrar a pre-
sença do habitus nacionalista japonês.
Além disso, a própria fonte passou por modificações no território
brasileiro. A mais perceptível se deu na década de 1980, quando o texto

18 Segundo Bourdieu (2005) o campo é um espaço de disputa hierarquicamente organizado, no qual os


agentes lutam em busca de troféus específicos, e cada campo tem regras mais ou menos definidas. Conforme
Ortiz (2003, p. 19, grifos do autor), “O campo se define como o lócus onde se trava uma luta concorrencial entre
os atores em torno de interesses específicos que caracterizam a área em questão”, e essas disputas são
realizadas em busca do monopólio simbólico da estrutura do campo.
38 • O espírito de Yamato

foi traduzido para o português e uma série de elementos foram excluí-


dos e outros acrescentados. Tal mudança ocorreu por conta das novas
representações criadas da identidade nikkei no Brasil. Dessa forma, op-
tou-se por flexibilizar o repertório epistemológico para analisar essa
mudança, pois, apesar de a fonte ter sido criada a partir de um ponto de
vista institucional, objetivando a construção de um discurso oficial so-
bre o Japão, diversos grupos criaram representações tendo como base
esse documento. Diante disso, além de compreender o fenômeno insti-
tucionalmente, é necessário refletir acerca das apropriações e
ressignificações realizadas (CHARTIER, 2002) no próprio Japão e, poste-
riormente, no Brasil. Assim, mesmo que os japoneses recitassem o
Kyōiku Chokugo nas escolas, as interpretações individuais foram múlti-
plas.
Do ponto de vista metodológico, buscamos analisar tanto o conte-
údo como a materialidade da fonte. Em termos de conteúdo, como se
trata de um texto escrito em japonês do século XIX, optou-se por reali-
zar uma tradução para tornar o texto acessível ao leitor. Entretanto, o
ato de traduzir possui uma série de implicações interpretativas, e, no
caso do japonês da fonte, diversos conceitos são difíceis de ser traduzi-
dos para o português (PEREIRA, 2013; HIRATA, 1994). Dessa forma,
nossa tradução foi realizada cotejando a versão em japonês com outras
traduções já feitas em inglês (ver o capítulo 3 para a discussão deta-
lhada). Além desse problema de tradução, o conteúdo do Kyōiku Chokugo
foi analisado levando em conta os debates ocorridos no Japão antes de
sua publicação, e a estrutura textual atentando para as presenças (e au-
sências) expressas na fonte.
Leonardo Henrique Luiz • 39

É preciso levar em conta, também, todo o repertório discursivo do


qual o edito fez parte, principalmente em termos de práticas, isto é, a
recitação do conteúdo que reproduzia o discurso nacionalista. Era nas
escolas japonesas que uma cópia oficial do Kyōiku Chokugo mantinha-se
como objeto sagrado e protegido em um altar (KITAGAWA, 1990), assim
como as fotografias do imperador e da imperatriz. A preocupação em
manter esse objeto seguro não era apenas uma formalidade imposta
pelo governo, mas que os profissionais de educação reconheciam na-
quele texto uma materialidade sagrada. Nesse sentido, analisamos a
fonte como um objeto de cultura material 19 que corporificava o nacio-
nalismo japonês. Entretanto, no Brasil, como a tradução feita pelos
próprios nikkeis alterou os significados do edito, é possível perceber a
historicidade das palavras utilizadas, pois nessa nova versão do Kyōiku
Chokugo, datada de 1980, os elementos que remetiam ao xintoísmo fo-
ram retirados e passou-se a exaltar a origem e o suposto pertencimento
ao Japão moderno (ver a discussão no capítulo 4).
Para analisar esse processo de mudança na ordem discursiva, re-
fletimos com base nas proposições de Chartier (2002). Para o historiador
francês, textos e imagens têm múltiplos sentidos, variando de acordo
com a leitura de cada grupo, e nunca são idênticos àqueles que o autor
atribuiu. Esse ato de “consumo” cultural deve ser tomado como uma
produção que raramente fabrica algo próprio. Entretanto, no caso em

19 A cultura material é entendida aqui pela definição de Julian Droogan (2013, p.14, tradução de Richard
Gonçalves André), que a define como “[...] elementos manufaturados da cultura que são materialmente
corporificados, tais como artefatos, arquitetura, monumentos e assim por diante, bem como objetos que são
materializados, mas não são geralmente vistos como manufaturados, como produtos naturais, lugares e, de
fato, paisagens como um todo [...]”.
40 • O espírito de Yamato

questão, pode-se dizer que a tradução do Kyōiku Chokugo realizada em


1980 no Brasil é a materialização da leitura feita por um nikkei acerca do
discurso nacionalista japonês, que possuiu uma complexa relação com
uma possível crise da cultura japonesa no Brasil, percebida principal-
mente pela primeira e segunda gerações de imigrantes.
Além do Kyōiku Chokugo como fonte primária, optamos por lançar
mão de outros documentos que ajudam a contextualizar as práticas em
torno desse edito. Foram usados processos criminais relacionados às
atividades da Shindō Renmei no Paraná, em que é possível notar vestí-
gios da presença do edito entre os materiais apreendidos pela polícia.
Realizamos, também, uma entrevista com uma descendente de segunda
geração que estudou em uma escola de língua japonesa na cidade de As-
saí e teve contato com o Kyōiku Chokugo desde a infância em ambiente
doméstico (LUIZ, 2019). Esse relato de história oral possibilitou a for-
mulação de hipóteses sobre a circulação do edito entre os nikkeis. Além
disso, utilizamos outras fontes como dados estatísticos, visando explo-
rar as possíveis variáveis que os números apresentam ao serem
relacionados com as hipóteses levantadas ao longo do texto. Todo esse
repertório documental revela indícios das práticas, apropriações e res-
significações operadas no discurso nacionalista japonês, e que por meio
da confrontação desses documentos a linha argumentativa defendida
no presente texto se torna mais prolífica.
Tendo em vista os objetivos em analisar o habitus nacionalista ja-
ponês no Brasil, decidimos recortar espacialmente as manifestações de
nacionalismo em torno da região de Assaí, no norte do Paraná, já que
essa cidade recebeu uma grande quantidade de imigrantes, onde cópias
Leonardo Henrique Luiz • 41

do Kyōiku Chokugo circularam. Mas, é preciso atentar que esse recorte


espacial também leva em conta a circulação da fonte entre as cidades
vizinhas, como Londrina e Rolândia, e até mesmo o estado de São Paulo.
Em termos temporais, além de analisar o processo de criação do edito
no Japão durante a década de 1890, tivemos que limitar a análise no Bra-
sil até o ano de 1980 (quando foi feita a tradução para o português).
Entretanto, isso não significa que a prática de ler o Kyōiku Chokugo te-
nha desaparecido, possivelmente ainda existam escolas ou professores
de língua japonesa que mantenham a leitura do edito, mas com outros
sentidos, que são difíceis de ser captados sem uma análise da situação
dos grupos de descendentes e da própria cultura japonesa no Brasil con-
temporâneo, elementos que ultrapassam os limites deste livro.

ESTRUTURA

Para averiguar como esses elementos se relacionaram é necessário


entender o que é xintoísmo de Estado e como ele se tornou parte essen-
cial da vida dos japoneses antes da imigração, sendo a escola o lugar
privilegiado da atuação dessa religião 20. Por isso, decidimos dividir o li-
vro em 4 capítulos. No primeiro, discutiremos o processo de “tornar-se
moderno” pelo qual o Japão passou a partir da Era Meiji. Nesse capítulo,

20 Conforme é evidenciado ao longo do trabalho, o xintoísmo possuiu várias faces no Japão moderno. Essa
religião era encontrada em relação com o Estado, referenciada como Kōshitsu Shintō 皇室神道 – Xintoísmo
da Casa Imperial ou, mais precisamente, Kokka Shintō 国家神道 – Estado xintoísta; ou como religião
independente do Estado, conhecida como Kyōha Shinto 教派神道 – traduzido muitas vezes para o inglês
como “Sect Shinto”; entretanto, o termo Kyōha não tem o mesmo significado pejorativo de sect ou seita,
portanto preferimos traduzir como “escolas xintoístas” ou “denominações xintoístas”. Além disso, temos o Jinja
Shintō神社神道 – Xintoísmo de santuário, que pode ser entendido como os santuários locais nos quais era
realizada a adoração para algum kami.
42 • O espírito de Yamato

partiremos da polêmica em torno da denominação desse processo de


modernização, argumentando que a maneira de conceituá-la implica
uma série de entendimentos significativos, e com isso disso discutire-
mos qual projeto político de nação foi implementado no caso japonês.
Entre os projetos do período, argumentamos que as discussões prove-
nientes da denominada Escola de Mito apresentaram as principais
contribuições para a organização política Meiji, pois por meio dessas
discussões é que foi elaborada a relação próxima entre a instituição im-
perial e o Estado japonês (tendo uma influência confucionista
significativa). Por fim, discutiremos as diferentes fases do imperialismo
japonês na Ásia, buscando mostrar os projetos de colonização e sua re-
lação com a proposta dos intelectuais japoneses de criar a Esfera de
Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, que visava formar uma comu-
nidade na Ásia para enfrentar o imperialismo ocidental e que deveria
ser liderada pelo Japão.
No segundo capítulo, faremos uma discussão historiográfica para
compreender as maneiras com que os autores conceituam o xintoísmo
e sua relação com o Estado. Defendemos que a nomenclatura usada para
o processo Meiji tem grande impacto no entendimento do xintoísmo
nesse período e que a definição da abrangência do Estado xintoísta tam-
bém está relacionada com a disputa de memória, sendo um elemento
sensível para certos segmentos da sociedade japonesa. Com base nessa
discussão historiográfica, apresentaremos nossa definição de religião
para o caso do xintoísmo de Estado. Ao apresentar a relação entre xin-
toísmo e Estado, discutiremos qual o papel que a religião teve durante o
processo imperialista, principalmente o uso dos Santuários no Exterior
Leonardo Henrique Luiz • 43

como tentativa de formar uma harmonia entre as práticas xintoístas e


os cultos locais em diferentes países. Para finalizar o capítulo, discuti-
remos a relação entre a definição de religião no Ocidente e a encontrada
no Japão, apresentando as principais propostas analíticas para a com-
preensão do fenômeno.
No terceiro capítulo realizaremos uma ampla contextualização do
processo de criação do Kyōiku Chokugo, ressaltando os grupos que dis-
putaram esse dispositivo e quais foram os indivíduos e interesses
presentes no processo de criação. Em seguida, analisaremos o conteúdo
e uma tradução do edito japonês, mostrando quais são os elementos
presentes no texto e como os autores os discutem a partir da contextu-
alização do período. Buscaremos mostrar a ritualização presente na
leitura do texto, cujo conteúdo incentivava o desenvolvimento de facul-
dades morais entre os japoneses. Também defenderemos que o edito
teve a função de um discurso oficial, portanto legítimo, da nação e da
identidade japonesa e atuou como um discurso de verdade no habitus
em formação.
Por fim, o quarto capítulo busca analisar a relação entre esse dis-
curso nacionalista e as práticas dos imigrantes no Brasil. Analisaremos
os locais onde o Kyōiku Chokugo circulou, dando destaque para a região
norte do Paraná, principalmente a cidade de Assaí. Demonstraremos
que essa circulação foi acompanhada por um processo de apropriação,
no qual o edito é traduzido e reinterpretado para o português. Em se-
guida, discutiremos a relação entre o discurso nacionalista do Kyōiku
Chokugo com a atuação da organização Shindō Renmei, ligando o seu
discurso “vitorista” com o habitus nacionalista e xintoísta. Por fim,
44 • O espírito de Yamato

defenderemos como a tradução do edito representa um processo de ela-


boração tática da identidade nikkei, que encontra respaldo ainda hoje
em certas interpretações da história da imigração japonesa para o Bra-
sil.
1
CONSTRUINDO A MODERNIZAÇÃO:
O ESTADO MEIJI (1868)

Os processos de transformação na sociedade japonesa em meados


do século XIX marcaram o estabelecimento de uma série de discursos e
práticas que alteraram a organização política e social em direção à ins-
titucionalização de um Estado aos moldes modernos. Tal processo de
formação da “nação” japonesa é também o de transformação de “cam-
poneses em japoneses”, isto é, no complexo fenômeno de formação da
nação há a construção de elementos identitários unificadores, em ter-
mos de práticas e discursos, que diferenciam os habitantes de
determinada região das outras. Segundo Stuart Hall (2004, p. 48-49 –
grifos no original),

O argumento que estarei considerando aqui é que, na verdade, as identida-


des nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas
e transformadas no interior das representações. Nós só sabemos o que sig-
nifica ser ‘inglês’ devido ao modo com a 'inglesidade' (Englishness) veio a ser
representada – como um conjunto de significados – pela cultura nacional
inglesa. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo
que produz sentidos – um sistema de representação cultural.

Partimos do pressuposto que esses elementos identitários podem


ser entendidos a partir da constituição de um habitus, no qual caracte-
rísticas seletivas passaram a representar um tipo ideal do que seria um
46 • O espírito de Yamato

japonês em termos de comportamento e identidade. Nesse sentido, o


presente capítulo se concentra nas transformações ocorridas durante a
Era Meiji, período em que houve um grande esforço em construir uma
identidade nacional, com base em um programa político para o Japão.
Esse projeto político organizou a educação obrigatória como forma
de dissimular a organização social, ou seja, naturalizou os elementos da
nova ordem política ao mesmo tempo em que criava uma “comunidade
imaginada” ou, pelo menos, uma representação de uma comunidade
imaginada em torno de elementos que definiriam o “ser japonês” (SHI-
MAZONO, 2009). Discutiremos no capítulo quais foram alguns desses
elementos, enfatizando a construção de uma identidade japonesa mo-
derna e o papel da educação na formação do habitus.
É preciso ter em vista que entre 1868 até pelo menos 1890 foi esta-
belecida uma profunda disputa no campo político para a efetivação do
projeto de nação japonesa. Como resultado, diversos elementos ganha-
ram relevância para a definição da nação e da formulação da identidade
japonesa. Dessa forma, destacamos três elementos que perpassaram o
processo de “tornar-se moderno” japonês: o papel do imperador como
centro aglutinador do discurso nacionalista; o xintoísmo como legiti-
mador do discurso nacionalista e identitário; e a educação como forma
de propagar a identidade japonesa. Esses elementos possuem conexões
intrínsecas e são apresentados separadamente nos textos acadêmicos
por uma questão de didática. Da mesma forma, os autores elegem esses
Leonardo Henrique Luiz • 47

ou outros termos como kokutai 21, kokugaku 22, yamato damashii, entre ou-
tros, para analisar algum aspecto específico do período. Entretanto,
salientamos que esses vários elementos estão em constante diálogo e
tomaram forma em 1890 no Kyōiku Chokugo. No entanto, como o pre-
sente livro tem a religião como foco, nossa abordagem privilegia a
discussão com base no xintoísmo.

O PROJETO DE NAÇÃO JAPONESA: RESTAURAÇÃO MEIJI?

Ao discutir o processo de formação do Estado japonês, o consenso


historiográfico entre autores como Antoni Klaus (2016), Nádia Saito
(2012), Eduardo Basto de Albuquerque (1971), Zuleika Alvim (1998), entre
outros, estabelece os anos da Era Meiji como marcos fundamentais de
mudança. Nas análises sobre o período se destacam pelo menos dois ti-
pos de interpretações. A primeira, a mais famosa e consagrada, provém
das contribuições em torno da ideia de “invenção de tradição” (HOBS-
BAWM; RANGER, 2015), a partir da qual a nova ordem teria sido
estabelecida por meio da invenção de

[...] um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou


abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o
que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.

21O kokutai 国体 pode ser definido como “estrutura nacional”, englobando o sistema de governo e a
identidade nacional (KLAUS, 2016). Defendemos que a ideia de nacionalidade japonesa entre 1868-1945 não
pode ser separada da devoção imperial, apesar dessa relação ter variado e se tornado mais próxima nos anos
da Segunda Guerra Mundial.
22O kokugaku 国学 refere-se à corrente intelectual japonesa que rejeitou as influências budistas e
confucionistas, enfatizando os aspectos xintoístas anteriores a esses valores “estrangeiros” (KLAUS, 2016).
48 • O espírito de Yamato

Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um pas-


sado histórico apropriado (HOBSBAWM; RANGER, 2015, p. 8).

A partir dessa formulação, os autores discutem as tradições inven-


tadas no processo de Restauração Meiji (ver, por exemplo, Midori
Ichikawa [2000] sobre as tradições inventadas no xintoísmo a partir da
Era Meiji). A segunda postura teórica surge de certa problematização
dos conceitos abordados por Hobsbawm, sendo apresentada por Bene-
dict Anderson (2008) com base na ideia de “comunidade imaginada”.
Sintetizando a ideia, Lilia Moritz Schwarcz argumenta que “Mais que
inventadas, nações são ‘imaginadas’, no sentido de que fazem sentido
para a ‘alma’ e constituem objetos de desejos e projeções” (SCHWARCZ,
2008, p. 10). Apesar de relativamente parecidas, essa segunda aborda-
gem atribui maior peso para as percepções dos grupos, pois entende que
a nacionalidade ou condição social e “[...] o nacionalismo são produtos
culturais específicos [...]” (ANDERSON, 2008, p. 30) com os quais os in-
divíduos estabelecem identificações.
Com base nos conceitos desses autores, surgem diversas interpre-
tações particulares sobre a Era Meiji. Portanto, pode-se dizer que esta
seja uma terceira postura, que tem ampla quantidade de conceitos, pro-
pondo análises para o caso do Japão. Entre tais autores, podemos citar,
por exemplo, Mária Ildikó Farkas (2016), Carol Gluck (2011) e Benjamin
Duke (2009). Cada um desses autores apresenta diferentes conceitos,
com o objetivo de fornecer melhores subsídios para analisar o período
Meiji. No presente livro, buscamos relacionar essas diferentes contri-
buições, tendo como objetivo construir um quadro analítico pertinente
Leonardo Henrique Luiz • 49

ao estudo do processo de modernização japonesa. Nessas discussões, um


tema que ocasionalmente surge é a própria nomenclatura do período. A
grande maioria dos estudiosos convencionalmente denomina de “Res-
tauração Meiji” (FARKAS, 2016), contudo é comum seguir
problematizações do uso de “Restauração”, que revelam como os senti-
dos das palavras mudam dependendo da forma com que o tema é
abordado.
Normalmente entende-se que esse processo de modernização é
uma “Restauração”, pois se constituiu em uma ruptura com o período
anterior (Tokugawa 23), mas uma ruptura que devolveu o poder às mãos
do imperador, portanto, restaurando o sistema antigo. No entanto, essa
afirmação pode ter uma interpretação dupla: a primeira foi inclusive o
discurso oficial dos líderes Meiji, no qual se argumentou que a Restau-
ração era um processo de devolução do poder a seu legítimo
proprietário (o imperador), que tinha sido usurpado pelos xoguns. Mui-
tas vezes esse discurso encontra espaço em diversos lugares públicos,
estabelecendo certa linearidade da história que seria constituída por um
período antigo, seguida por um medieval durante o xogunato e, por fim,
a modernidade e a restauração do poder em 1868 (FARKAS, 2016).
A segunda implicação do uso de “Restauração” é a que tem maior
aceitação historiográfica, na qual se trataria de uma Restauração, pois,
apesar das mudanças significativas na organização econômica e social,
o quadro político apresentou diversas semelhanças ou analogias

23 Período entre 1603 e 1868, em que a família Tokugawa exerceu o monopólio político. Segundo André (2011,
p. 38), “[…] os Tokugawa permaneceram à frente da vida estatal japonesa, unificando o país e fechando
relativamente suas portas ao Ocidente, excetuando-se algumas trocas com os holandeses”.
50 • O espírito de Yamato

(principalmente na ordem do discurso) com o período anterior ao xogu-


nato. Em seguida, os autores ressaltam as continuidades do período
anterior com a Era Meiji. Por exemplo, de acordo com Albuquerque, “Se
é certo que o crescimento do capitalismo japonês foi vertiginoso [du-
rante a Restauração Meiji], com um aumento cada vez maior da
produção, em outros setores guardava vestígios da antiga sociedade.
Usos e costumes, é claro, não mudaram totalmente, da noite para o dia”
(ALBUQUERQUE, 1971, p. 51).
Além dessas duas possíveis interpretações em torno da nomencla-
tura “Restauração”, dependendo da maneira com que a abordagem
sugerida por Hobsbawm é interpretada, pode-se ter a impressão de que
os conceitos fornecidos pelo autor oferecem subsídios para analisar o
processo Meiji como uma “Revolução”, isto é, as tradições inventadas
seriam algo novo, sem precedentes no passado. De fato, o próprio debate
feito por Hobsbawm em torno da definição de nação e da progressiva
formulação da equação “nação = Estado = povo” (HOBSBAWM, 2013, p.
32) parte do pressuposto segundo o qual o conceito de nação é histori-
camente recente.
Dessa forma, o autor sugere que “[...] o melhor modo de entender
sua natureza é seguir aqueles que, sistematicamente, começaram a ope-
rar com esse conceito em seu discurso político e social durante a Era das
Revoluções, especialmente a partir de 1830, com o nome de ‘princípio de
nacionalidade’.” (HOBSBAWM, 2013, p. 31). Com base nesse princípio de
nacionalidade, o Estado exerceu o poder de transformar o sentimento
da “nacionalidade” em uma “nação” (HOBSBAWM, 2013). Da mesma
forma, o conceito de “Invenção de Tradição” sugere que as práticas
Leonardo Henrique Luiz • 51

aclamadas como antigas são, na verdade, historicamente recentes


frente a situações novas, mesmo que “[...] toda tradição inventada, na
medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e
como cimento da coesão grupal” (HOBSBAWM, 2015, p. 20-21).
Essa discussão entre Restauração ou Revolução pode parecer uma
falsa oposição, mas ao se aprofundar nos elementos que constituíram
as transformações na Era Meji, principalmente no âmbito da educação
e religião, as abordagens que podem ser didaticamente simplificadas
como “Restauração” ou “Revolução” alteram a percepção do fenômeno
e contribuem para certas interpretações conflitantes. No caso do xinto-
ísmo de Estado, optar por Restauração ou Revolução torna a questão
mais complexa, pois de uma maneira geral. No primeiro caso, a ideia
sugere que o mesmo xintoísmo do “período antigo” teria sido reestabe-
lecido na Era Meiji após o monopólio do budismo no período Tokugawa.
No segundo, a legitimação do Estado por meio do xintoísmo seria algo
relativamente recente e diferente do culto em torno da suposta divin-
dade imperial.
De qualquer forma, defendemos que o que essa dicotomia concei-
tual torna evidente é a necessidade de trabalharmos com a ideia de
continuidades e rupturas no processo de tornar-se moderno, no caso
japonês. Isto é, empregaremos uma abordagem levando em conta que,
mesmo que na ordem discursiva os líderes Meiji ressaltassem a tradi-
ção, por exemplo, da Casa Imperial como governantes legítimos e
sempiterno, é preciso diferenciar o tipo de poder em um “sistema im-
perial antigo”/antes do Xogunato (extremamente limitado do ponto de
vista espacial) para um governo moderno nos moldes de um Estado-
52 • O espírito de Yamato

nação com os novos aparelhos coercivos. Dessa forma, entendemos que


a tradição era mais presente de forma discursiva e foi criada, principal-
mente, com base em discussões intelectuais que disputavam a
legitimidade do projeto político de nação japonesa.

MITOGAKU E O PROJETO DE NAÇÃO

Apesar de muitas vezes o projeto político japonês ser apresentado


como algo aparentemente linear, é preciso ter em vista que o “tornar-
se moderno” é mais próximo do fenômeno que Carol Gluck (2011, p. 11,
tradução do autor) chama de “[...] zigue-zague improvisada da moder-
nidade [...]” 24, no qual diferentes projetos políticos entraram em
confronto no século XIX. Esses confrontos passaram principalmente pe-
los campos intelectual e político, nos quais várias propostas para o Japão
foram debatidas. Um exemplo pode ser encontrado na Sociedade 6 de
Meiji (Meirokusha – 明六社), de 1873, que “[…] foi um grupo seleto de es-
tudiosos japoneses pioneiros em estudos Ocidentais (Yôgakusha – 洋學
者) que se juntaram a essa sociedade para discutir questões do dia e para

disseminar suas opiniões entre seus compatriotas menos informados” 25


(BRAISTED, 1976, p. XVII). Esse grupo publicou uma revista denominada
Meiroku Zasshi (明六雑誌), que buscava ser o Iluminismo japonês.
A revista foi projetada pelos interesses de Mori Arinori (fundador
da Meirokusha) na sociedade ocidental e como forma de pensar e

24 “[…] zig and zag of improvisational modernity [...]”


25 “[…] was a select group of pioneer Japanese scholars in Western studies (Yôgakusha – 洋學者) who joined
the society to discuss the issues of the day and to disseminate their views among their less well informed
countrymen”.
Leonardo Henrique Luiz • 53

reestruturar o próprio Japão. Entre os textos dessa revista, estão pre-


sentes debates em torno do papel das escolas, possíveis reformas no
sistema de escrita japonês (que deveria ser mais próximo do ocidental),
o papel da religião, a liberdade de imprensa, reformas financeiras, além
de debates sobre o papel da tortura, os “Abusos da Igualdade de Direitos
entre Homens e Mulheres”, “Criação de Boas Mães”, “Descendentes do
Céu”, “Distinguindo os Direitos Iguais dos Maridos e Esposas”, “Hon-
rando o Imperador e Expulsando os Bárbaros”, entre outros (BRAISTED,
1976).
Nessa revista podemos perceber uma forte tendência que buscou
repensar o Japão com base em parâmetros ocidentais a partir da aber-
tura dos portos na Era Meiji. Entretanto, alguns autores, como Klaus
(2016), atribuem às discussões provenientes da Escola de Mito (Mitogaku
- 水戸学) o desenvolvimento das bases teóricas e conceituais que foram
efetivadas na organização discursiva do Estado japonês.
Klaus (2016) argumenta inclusive que, apesar da importância des-
sas influências ocidentais no século XIX, foi por meio do conceito de
Kokutai (国体) presente nos autores da Escola de Mito que a nação japo-
nesa foi sistematicamente pensada, e que “[…] durante a época
Tokugawa e mesmo anteriormente, pensadores japoneses já tinham de-
senvolvido seu próprio tipo ideal de nação, baseada em conceitos
religiosos associados a um sistema genérico chamado ‘xintoísmo’” 26
(KLAUS, 2016, s. p.). É bastante controverso, se de fato existiu uma ma-
neira própria de pensar a “nação” antes da Restauração Meiji. O que as

26 “[...] during Tokugawa times and even earlier, Japanese thinkers themselves had developed their own kind
of an ideal nation, based on religious concepts associated with a generic system called ‘Shintô’”.
54 • O espírito de Yamato

fontes indicam, principalmente os trabalhos de eruditos como Motoori


Norinaga e Hirata Atsutane (analisados por Klaus), é que existiram dis-
cursos “nacionalistas”, enfatizando elementos seletivos definidores dos
“japoneses” (categoria controversa, mesmo atualmente se pensarmos,
por exemplo o caso dos habitantes de Okinawa e Hokkaido) 27.
Dessa forma, concordamos parcialmente com Klaus quando o au-
tor argumenta que “Os princípios espirituais da Restauração Meiji e,
portanto, do moderno Estado-nação do período Meiji, foram desenvol-
vidos e moldados em uma poderosa ideologia política pelos estudiosos
dessa importante escola nacional no final do período Edo” 28 (KLAUS,
2016, p. 159). Defendemos, pois, que existiram fortes influências das for-
mulações políticas da Escola de Mito no discurso Meiji, no entanto tais
formulações talvez sejam melhores entendidas em termos de estratégia
discursiva Meiji, que buscou a legitimação da transformação política
nas formulações de Mito. Na argumentação de Klaus, a impressão é de
que houve um processo direto entre as formulações políticas da Escola
de Mito e os eventos de Meiji, como uma preparação para o futuro Es-
tado-nação. No entanto, sugerimos que essa conexão foi feita
posteriormente por políticos e intelectuais Meiji visando estabelecer a
legitimidade do processo de “Restauração”. É preciso ressaltar que isso

27 Apesar de aparentemente pequeno, o Japão é formado por um conjunto de ilhas, que, somadas, têm uma
extensão territorial maior que países como Alemanha, Reino Unido e Itália (FERGUSON, 2007). As quatro
principais ilhas são Honshu, Hokkaido, Kyushu e Shikoku (ver mapa 1). Entretanto, conforme demonstra Elisa
Sasaki Pinheiro (2009), dentro da suposta uniformidade da sociedade japonesa existem diversos grupos que
são considerados minoritários, como é o caso dos habitantes de Okinawa (sul) e Hokkaido (norte), ilhas que só
foram formalmente anexadas durante a Era Meiji e passaram pelo processo de imperialismo colonialista.
28 “The spiritual principles of the Meiji Restoration, and thus of the modern, Meiji-period nation-state of Japan,
were developed and shaped into a powerful political ideology by the scholars of this important national school
at the end of the Edo period”.
Leonardo Henrique Luiz • 55

ocorre porque o autor tem como foco os processos de continuidades en-


tre os períodos Tokugawa e Meiji, mesmo não desconsiderando as
rupturas. Além disso, ele não considera que a própria categoria de nação
é historicamente recente, e que antes de todo o processo empregado a
partir da Restauração Meiji o que era referido como “Japão” não englo-
bava regiões como Hokkaido e Okinawa.
Parte significativa das formulações desses eruditos do daimiō de
Mito 29 está relacionada com o conteúdo dos considerados primeiros li-
vros do Japão, o Kojiki (古事記), de 712 e o Nihon Shoki (日本書紀), de 720 30.
Segundo André (2011, p. 43), “De acordo com tais obras, que compilavam
a trajetória da história nipônica do ponto de vista mítico, a linhagem
imperial descenderia da própria deusa solar, Amaterasu-o-mi-kami,
que teria relegado os tesouros celestes – o espelho, a espada e a joia – a
seu neto, Ninigi”. Posteriormente, o bisneto de Ninigi foi conhecido
como Imperador Jimmu, supostamente o primeiro imperador do Japão,
entre os séculos VII e V a.C., cuja linhagem continuaria de forma inin-
terrupta até o atual imperador. Apesar de a existência da espada não ser
confirmada, a joia estaria até hoje no Palácio Imperial em Tóquio e o

29 Os daimiō foram indivíduos poderosos, que controlavam grandes porções de terras (os han) durante o
xogunato. De maneira particular, o daimiō de Mito, atual província de Ibaraki, se destacou por ter concorrido
com o poder do xogunato e se colocado ao lado do imperador Meiji, cedendo armas, conhecimento e o
aparato ideológico (ANDRÉ, 2011).
30 De acordo com Covington Scott Littleton (2010), O Kojiki foi compilado a pedido do clã Yamato por um
cortesão chamado Ono Yasumaro, que buscou realizar a genealogia dos principais clãs que dominaram a vida
política no Período Nara (710-794 d.C.), no qual foi enfatizada a descendência do clã de Yamato com
Amaterasu-o-mi-kami (uma forma de estabelecer a supremacia sobre os demais clãs). Posteriormente, os
principais clãs japoneses reagiram a esse texto encomendando o Nihon Shoki, no qual “[…] os autores do
Nihonshoki sentiram-se obrigados a recontar cada evento mitológico importante de uma série de perspectivas
diferentes, refletindo as versões consideradas sagradas pelos clãs principais. O resultado foi uma mistura de
soluções conciliatórias, redundâncias e até contradições” (LITTLETON, 2010, p. 37).
56 • O espírito de Yamato

espelho, no Santuário de Ise 31. Para o autor, referindo-se à construção


da Escola de Mito,

Tratava-se não apenas de restaurar o passado, mas de inventar uma tradi-


ção, utilizando o raciocínio de Eric Hobsbawm e Terence Ranger, com o
intuito de justificar o presente. A tradição, dessa forma, era vista como um
conjunto de aspectos estáticos, arcabouço dos costumes “corretos”, que te-
ria sido usurpada por Yoritomo Minamoto, o fundador do Shogunato no
século XII (ANDRÉ, 2011, p. 43-44).

Assim, essa construção mitológica da figura do imperador de base


xintoísta, feita pela Escola de Mito em meados da década de 1860, foi
uma das formas de estabelecer a legitimidade para a reconstrução do
poder imperial. De acordo com Klaus (2016, p. 46), essa construção dis-
cursiva de Mito teria começado durante “a Idade Média japonesa” 32, e
embora o imperador não tivesse a posição de prestígio militar igual ao
do xogum, nos circuitos xintoístas essa teologia apresentava a ideia do
Japão como uma terra especial sob proteção divina, ou “shinkoku”
(KLAUS, 2016, p. 46). Ainda para Klaus, esse discurso mítico que diferen-
ciava o Japão das outras regiões estava ligado à ideia de “yamato-
damashii, ou ‘espiríto de Yamato [...]’” (2016, p. 46), que seria uma espécie
de forma pré-moderna do nacionalismo e da religião xintoístas.

31 伊勢神宮 (Isejinguu) é um complexo, formado por vários santuários, dedicado ao culto da deusa Amaterasu.
Segundo Klaus (2016, p. 180), o santuário é a “[...] ‘Meca’ do Xintoísmo imperial”, centrado na figura da família
imperial.
32 A periodização da história japonesa pode variar de acordo com os autores, mas um bom exemplo pode ser
encontrado na definição de Teeuwen e Scheid (2002, p. 196): “Nós usamos ‘período antigo’, ‘período medieval’,
‘período pré-moderno’, e ‘período moderno’ como equivalentes dos termos japoneses kodai, chûsei, kinsei e
kindai. ‘Antigo’ e ‘clássico’ referem-se aproximadamente aos períodos até o século XII, ‘medieval’ entre os
séculos XII e XVI, ‘pré-moderno’ dos séculos XVII ao XIX e ‘moderno’ a partir da Restauração Meiji em 1868”.
Leonardo Henrique Luiz • 57

Defendemos que somente na década de 1860 esse discurso tomou a


forma de um projeto político concreto que foi efetivado na Restauração
Meiji. No campo da religião tal projeto pode ser denominado xintoísmo
de Restauração (fukkô shintô - 復古神道). Esse xintoísmo privilegiou a fi-
gura do imperador como centro do discurso nacionalista e da
constituição da nação, pois o xintoísmo representaria a forma “pura” do
Japão e seria diferente do budismo e do confucionismo, que seriam re-
ligiões/ensinamentos estrangeiros. Esse é um discurso que carece de
sustentação no campo prático, pois grande parte dos pressupostos que
seriam “originais” do xintoísmo de Estado estava intimamente ligada
aos ensinamentos chineses.
Nessa relação, duas religiões assumiram importantes papéis: o bu-
dismo e o confucionismo. Conforme será argumentado no próximo
capítulo, a própria organização do xintoísmo como uma religião foi feita
a partir do contato com as influências chinesas, principalmente com o
budismo, no século VI d.C. (GONÇALVES, 1992).
Conforme apontado por André (2018, p. 293), a presença chinesa no
Japão proporcionou uma dinamicidade religiosa entre o budismo e o
culto local aos kami, “[…] que seriam a base sobre a qual seria arquite-
tado o Xintoísmo muitos séculos mais tarde”. Com esse contato e a
partir dos vestígios de cultura material, o autor demonstra que houve
um processo de “[…] ‘kamização’ do Budismo ou uma ‘budização’ da re-
verência aos kami, na medida em que os ancestrais teoricamente
budistas tornaram-se entidades protetoras do lar” (ANDRÉ, 2018, p.
302), portanto podemos perceber uma profunda influência entre as duas
religiões. Além disso, trabalhos como o de Mark Teeuwen e Bernhard
58 • O espírito de Yamato

Scheid (2002), Fabio Rambelli (2002), Hiromi Maeda (2002), entre outros,
demonstram a existência de uma série de outras relações entre os bu-
dismos e os xintoísmos que podem ser constatadas ao longo da história
japonesa.
Da mesma forma, o confucionismo exerceu um papel importante
no discurso xintoísta. De acordo com a interpretação de Klaus, que tam-
bém adotamos aqui, o nacionalismo japonês que ressaltou as virtudes
individuais (perspectiva presente no Kyōiku Chokugo) esteve ligado às
propostas da Escola de Mito, por meio das quais há também uma nega-
ção das influências estrangeiras. Contradição curiosa, pois grande parte
do discurso moral xintoísta tem base no confucionismo. Ao discutir a
tradição confuciana clássica, que concerne principalmente aos traba-
lhos de Confúcio (552-479 a.C.), Mario Poceski (2013, p. 43) argumenta
que, apesar das transformações políticas na China, os princípios básicos
do confucionismo continuaram a “[…] moldar os valores e comporta-
mentos de muitas pessoas na China e no resto do Leste da Ásia”. Mesmo
tendo várias faces,

Sua orientação básica era francamente humanista e se ocupava com ques-


tões mundanas (mesmo que, em geral, aceitasse as várias divindades,
incluindo muitos dos deuses da religião popular). O confucionismo também
proporcionava um sistema abrangente de ética, que moldou os costumes
públicos e o comportamento pessoal (POCESKI, 2013, p. 45).

Possivelmente esse sistema ético foi o ponto mais importante para


a formação dos comportamentos dos indivíduos nas esferas públicas e
cotidianas, na medida em que abrangia “[…] a organização social, a
Leonardo Henrique Luiz • 59

participação política e as atividades educacionais [...]” (POCESKI, 2013,


p. 45). Nos textos clássicos confucianos, os acontecimentos e os perso-
nagens históricos desempenham um papel fundamental, pois suas
ações na política governamental da corte e suas reflexões pessoais são
usadas como exemplos de conduta, uma perspectiva que enfatiza o pa-
pel da história como mestra da vida. A principal preocupação para o
pensamento confuciano era a busca da perfeição na conduta humana
durante essa vida, que só se realizaria dentro da comunidade, “[…] en-
volvendo a interação apropriada com as outras pessoas e o domínio
elegante dos meandros da complexa teia das relações sociais” (POCESKI,
2013, p. 55).
Nessa busca, o decoro ritual e a benevolência são aspectos centrais,
pois ambas possibilitariam a harmonia social por intermédio do desem-
penho correto das funções de cada indivíduo na sociedade. Esses
elementos eram aplicados dentro de relações sociais entendidas como
hierarquicamente naturais, chamadas de “cinco relacionamentos”: en-
tre pai e filho; governante e súdito; marido e esposa; irmão mais velho
e mais novo; amigo e amigo (POCESKI, 2013, p. 58). Esse complexo sis-
tema foi reformulado, em uma síntese conhecida como
neoconfucionismo, por Zhu Xi (1130-1200), no qual houve a rejeição dos
elementos considerados religiosos e místicos, provenientes do taoismo
e do budismo, e a ênfase foi colocada em uma conduta ética racionalista.
No Japão, esses aspectos foram apropriados e enfatizados no que
dizia respeito às relações hierárquicas e à conduta moral que contribu-
iriam à construção harmônica da sociedade. Como será argumentado na
análise da fonte, o próprio Kyōiku Chokugo apresentava essas ideias,
60 • O espírito de Yamato

tendo em vista sua principal característica de listar as virtudes que de-


veriam ser cultivadas pelos japoneses. Tais virtudes possibilitariam o
desenvolvimento individual dos japoneses e, ao mesmo tempo, contri-
buiria para todo súdito ocupar uma função dentro da sociedade,
obedecendo a relação determinada pela ancestralidade, na qual o impe-
rador era o posto central.
Apesar dessas influências budistas e confucionistas, os intelectuais
de Mito ressaltavam que essas virtudes japonesas eram de origem xin-
toísta, portanto, sui genesis de todos os japoneses, “[...] enquanto a China
deve recorrer a complicados sistemas racionais de ética para trazer or-
dem ao caos espiritual” 33 (KLAUS, 2016, p. 224). De qualquer forma, o
imperador teve um papel central na nova configuração religiosa, social
e política, a partir da qual foi criada uma grande estrutura que repro-
duziu esse discurso. Mas, antes de entrarmos na reprodução desse
discurso pela educação, é necessário refletir sobre a ligação entre o Es-
tado e o imperador. Seria uma ligação feita na ordem discursiva de
legitimação do novo regime? Ou o imperador possuiria grandes poderes
políticos que geravam um controle sobre a população japonesa, crente
na divindade imperial?

O IMPERADOR E O ESTADO

O processo de transformação do Japão em Estado-nação passou


pelo protagonismo de duas notáveis personagens ambíguas: o

33 “[…] while China must resort to complicated systems of rationally based ethics in order to bring its supposed
spiritual chaos under control”.
Leonardo Henrique Luiz • 61

imperador e o Estado. Quando falamos do imperador, não nos referimos


ao indivíduo, e sim à linhagem imperial, pois as referências de devoção
ao imperador não significavam necessariamente uma adoração indivi-
dual, mas à suposta divindade atribuída à linhagem.
Ao discutir o papel do imperador no Japão contemporâneo, Kazuko
Furuno (1990, p. 8) defende que alguns japoneses “[…] argumentam que
o papel original do Imperador não é político, mas religioso/cultural
[…]” 34, sendo o período de 1868 a 1945 uma exceção, entretanto defende-
mos que o papel político do imperador não pode ser separado das
questões religiosa e cultural. De acordo com Furuno, se no Xogunato o
xogum precisava do reconhecimento do imperador,

Da mesma maneira, atualmente o Primeiro-Ministro é aprovado pelo Im-


perador através do saquê. Esta performance de aprovação pelo Imperador
não faz nenhuma diferença no papel do Primeiro-Ministro para o povo ja-
ponês, entretanto, através da aprovação ritual, o Imperador parece mais
poderoso que o Primeiro-Ministro, ao menos para os estrangeiros (FU-
RUNO, 1990, p. 9) 35.

Com base nessa linha de pensamento, o autor argumenta que o pa-


pel do imperador deve ser entendido como aglutinador do
etnocentrismo japonês. Furuno ressalta, também, que há múltiplas
apropriações da imagem do imperador, por exemplo: “O Imperador não
é o indivíduo mais poderoso aos olhos dos japoneses. Entretanto, do

34 “[...] argue that the original role of the Emperor is not political but religious/cultural [...]”
35 “In the same manner, the Prime Minister today is approved by the Emperor for form's sake. This perfunctory
approval by the Emperor does not make any difference in the Prime Minister's role for the Japanese people, but
through the ritual of approval, the Emperor looks more powerful than the Prime Minister, at least to foreigners”.
62 • O espírito de Yamato

ponto de vista estrangeiro, tenno parece ser o Imperador que faz a exi-
bição do poder do Japão, seja em operações militares ou econômicas” 36
(FURUNO, 1990, p. 12). Essa é uma percepção construída por um autor
da década de 1990, portanto devemos nos perguntar como ela foi cons-
truída. Não teria essa imagem do imperador, como um símbolo do poder
japonês aos olhos estrangeiros, de ser considerada uma permanência
com base nas representações criadas pelo próprio Japão entre 1868 a
1945? Além disso, devemos considerar que o Ocidente recebe conveni-
entemente essa representação do corpo sagrado imperial, pois não é
estranho para os ocidentais reconhecer na figura real os símbolos do
poder político, mesmo com características próprias, no caso japonês.
Ao discutir o papel do imperador e do Estado, é necessário levar em
consideração as transformações ao longo do tempo. Nesse sentido, as
mudanças do período Meiji possuem uma série de particularidades. No
caso do Imperador Meiji (1852-1912), Midori Ichikawa (2000, p. 22) argu-
menta que ele pode ser considerado o “primeiro imperador ‘visível’ do
Japão”, pois antes da Era Meiji os imperadores raramente se ausenta-
vam do Palácio Imperial e a maioria da população não estava
familiarizada com eles. Segundo a autora,

Algumas pessoas que viviam na parte norte do Japão, por exemplo, não sa-
biam da existência do imperador. Habitantes do nordeste e do distrito de
Kanto tinham a tendência de respeitar os xoguns (governantes do Japão) e
lordes feudais do antigo governo Tokugawa, mas ser indiferentes ou ter

36 “The Emperor is not the most powerful individual in the eyes of the Japanese people. In the eyes of
foreigners, however, tenno appears to be the Emperor who makes a display of Japan's power either in military
operations or in economic advances”.
Leonardo Henrique Luiz • 63

antipatia ao novo governo Meiji e ao Imperador Meiji. Algumas pessoas que


habitavam o distrito de Kanto chamavam o Imperador Meiji de ten-ko ou
kin-ko. As palavras, ten e kin, significam imperador, mas ko é uma palavra
que é colocada depois do nome para menosprezar seu referente
(ICHIKAWA, 2000, p. 22-23, grifos no original) 37.

Dessa forma, a Restauração foi também um período no qual foram


implementadas diversas medidas para dar visibilidade e tornar o impe-
rador uma figura-chave ao se pensar o Japão. Ichikawa (2000) cita as
viagens realizadas pelo Imperador Meiji ao interior do Japão entre 1876
e 1886. Nelas,

O Imperador Meiji foi recebido por funcionários do governo e escolas em


todos os lugares que ele visitou durante suas viagens. Entretanto, muitos
moradores locais não mostraram respeito ao imperador. Um jornalista que
acompanhou o imperador em uma das viagens escreveu que ao longo da
estrada havia moradores locais usando roupas sujas esperando apenas para
ver algo incomum (ICHIKAWA, 2000, p. 22) 38.

Nessas visitas, o imperador era acompanhado por “[...] lordes feu-


dais do antigo período Tokugawa [...]” (ICHIKAWA, 2000, p. 23), senhores
locais que prestavam respeito como forma de mostrar a superioridade
imperial. Seguindo essa mesma linha de raciocínio, a autora argumenta

37 “Some people who lived in the northern part of Japan, for example, did not even know of the existence of
the emperor at all. Inhabitants in the northeastern and Kanto district tended to respect shoguns (rulers of Japan)
and feudal lords of the old Tokugawa government but be indifferent or have antipathy to the new Meiji
government and the Meiji Emperor. Some people who inhabited the Kanto district called the Meiji Emperor
ten-ko or kin-ko. The words, ten and kin, mean emperor, but ko is a word that is put after a name to belittle its
referent”.
38 “The Meiji Emperor was welcomed by people from government offices and schools at all the places he
visited throughout his journeys. However, many local people showed no respect for the emperor. A journalist
who accompanied the emperor on one of the journeys wrote that along the road there were local people with
dirty working clothes who were expecting to see only something unusual”.
64 • O espírito de Yamato

que a distribuição dos retratos imperiais nas repartições públicas foi


uma das diversas formas de tornar o imperador conhecido pelos japo-
neses.
A leitura de Ichikawa é muito diferente da representação que apa-
rece em alguns trabalhos acadêmicos, nos quais o poder simbólico
imperial seria sui generis à figura do imperador. Sugerimos que essa re-
presentação na qual há uma inflação do poder imperial, estabelecido
como um continuum desde os “tempos antigos”, é uma visão criada du-
rante a Restauração Meiji, que muitas vezes permanece, como forma de
obter legitimidade ao próprio processo de mudança em curso. A inter-
pretação, segundo a qual o poder esteve constantemente ligado à figura
do imperador, pode influenciar uma análise “forçada” ao pensarmos o
Kyōiku Chokugo. Por exemplo, apesar de Ichikawa mostrar que o poder
imperial foi construído durante o período Meiji, a autora argumenta que

O Edito Imperial de Educação começou a ter poder absoluto no sistema de


educação. Ninguém podia se opor a ele. Através desse edito, todas as
pessoas aprenderam que deveriam obedecer ao imperador porque ele e
seus antepassados lideravam o Japão, uma lenda que foi renovada e
promovida pelo governo japonês (ICHIKAWA, 2000, p. 30, grifos nossos) 39.

Ao contrário disso, conforme será argumentado ao longo do livro,


defendemos que a construção do Kyōiku Chokugo envolveu um complexo
processo de disputas e resistências durante sua elaboração na década de

39 “The Imperial Rescript on Education began to have absolute power in the education system. Nobody could
object to it. Through this rescript, all the people in the state learned that they had to obey the emperor because
he and his ancestors had been the leader of Japan, which was a legend renewed and promoted by the Japanese
government” (grifos nossos).
Leonardo Henrique Luiz • 65

1890. É uma leitura forçada defender que essas resistências simples-


mente sumiram e que o conteúdo do edito era respeitado por todos sem
objeções. Pois, se conforme argumentou a própria autora, os habitantes
de Kanto 40, de fato, não prestavam o devido respeito ao imperador, como
em menos de 20 anos o poder do imperador e do edito se tornou extre-
mamente influente para não ser questionado por ninguém? Ao
contrário, defendemos que, mesmo nos períodos de maior recrudesci-
mento do poder do Estado, é possível notar diversas resistências e
disputas de interpretação no campo intelectual e político (LINCICOME,
1999).
Quanto à questão do Estado, a análise de Gluck (2011) revela impor-
tantes contribuições. Para a autora, segundo a versão “canônica” da
modernização Meiji, o Estado teria assumido um papel de protagonista
das transformações e criado

[…] uma política centralizada, um exército conscrito, uma base tributária


nacional, um sistema de educação compulsória, e uma série de outras me-
didas tomadas para a criação, na frase do dia, de uma “nação rica e um
exército forte”. De fato, o Estado pré-Meiji fez menos do que se afirma ter
feito, até porque não tinha poder ou recursos para implementar a onda de
reformas promulgadas no final das décadas de 1860 e início de 1870 (GLUCK,
2011, p. 682) 41.

40 Além disso, Kanto é uma das principais regiões do Japão, formada por cidades como Tóquio, Chiba,
Yokohama etc.
41 “[...] a centralized polity, a conscript army, a national tax base, a system of compulsory education, and a host
of other measures taken toward the goal of creating, in the phrase of the day, a 'wealthy nation and strong
military.' In fact, the early Meiji state did far less than it claimed to have done, not least because it had neither
the power nor the resources to implement the surge of paper reforms it promulgated in the late 1860s and
early 1870s”.
66 • O espírito de Yamato

Para a autora, o Estado Meiji nas primeiras décadas não era tão
forte a ponto de realizar as transformações locais. Segundo Gluck, fo-
ram as elites locais que fizeram grande parte do processo de
modernização. Por exemplo, apesar da proposta de levar a educação bá-
sica para todo o país contida no Código de Educação Básica de 1872,

O governo pode ter legislado o sistema escolar nacional, mas foram as elites
locais que construíram as escolas e pagaram os professores, e foram as fa-
mílias que pagaram as mensalidades para seus filhos […] As famílias
pagavam porque elas acreditavam no valor prático da aprendizagem e por
causa das expectativas sociais. Elas também resistiram ao novo sistema por
suas próprias razões, protestando contra salários, às vezes destruindo edi-
fícios escolares e recusando-se a enviar seus filhos para a escola em vez dos
trabalhos no campo. Em resumo, as pessoas ajudaram a modernizar-se (e
nacionalizar-se), mas eles não o fizeram sempre conscientemente e quase
sempre em busca de seus interesses (GLUCK, 2011, p. 682-683, grifos nos-
sos) 42.

Essa tentativa de relativizar o poder do Estado não significa negar


sua importância, mas mostrar como existiram movimentos em várias
direções que contribuíram à construção do Japão como Estado-nação e,
ao mesmo tempo, existiram resistências e hesitações promovidas por
apoiadores locais ao projeto centralizador nacional. Dessa forma, o pro-
jeto político Meiji não foi apenas imposto pelos aparelhos do Estado,

42 “The government may have legislated a national school system, but it was the local elites who built the
schools and paid the teachers, and it was the families who laid out the tuition for their children. [...] The families
paid up because they believed in the practical value of learning and because of social expectations. They
resisted the new system for their own reasons, too, protesting salaries, sometimes destroying school buildings,
and declining to send their children to school rather than to work in the fields. In short, the people helped to
modernize (and nationalize) themselves, but they did so not always consciously and almost always in pursuit
of their own interests” (grifos nossos).
Leonardo Henrique Luiz • 67

mas as pessoas também abraçaram (e resistiram) as ideias e contribuí-


ram na efetivação desse projeto nacional. Essa é uma questão
particularmente importante, que influência a compreensão, por exem-
plo, da relação entre o xintoísmo e o Estado japonês (ver a argumentação
em relação ao balanço bibliográfico sobre o xintoísmo no presente
texto).
Dessa forma, defendemos que foi a partir do período Meiji que
ocorreu a progressiva aproximação, principalmente em termos de iden-
tidade, do Estado com o imperador, no qual o Japão passou a legitimar
sua identidade nacional pelo sistema de crenças imperiais. Essas ideias
foram reproduzidas no sistema escolar e apropriadas pelos indivíduos,
isto é, não foi apenas um movimento de imposição. Com isso, alguns
elementos, como os conceitos de kokutai, yamato damashii, kokugaku e o
próprio xintoísmo se tornaram parte de um mesmo repertório discur-
sivo, que legitimou uma ideia de nação e de identidade nacional,
materializada no Kyōiku Chokugo.
Um ponto importante a ser trabalhado é a respeito da estrutura no
qual essas ideias circularam, pois elas estiveram presentes dentro e fora
do Japão. Mesmo a imigração esteve atrelada a esse repertório de dis-
cursos e práticas, conforme aponta Mita (1999, p. 27, grifos nossos):

A emigração moderna do Japão começou, por motivo capitalista, com enca-


minhamento de emigrantes trabalhadores assalariados pelas companhias
de emigração. O desenvolvimento do capitalismo japonês teve início dentro
do contexto de competição dos países ocidentais pela implantação de colô-
nias no exterior e, por isso, assumiu características imperialistas de
aumento do poder econômico pela expansão territorial. Surgiram, então,
68 • O espírito de Yamato

tentativas de se interpretar a política emigratória do ponto de vista desse


imperialismo, ou seja, começou-se a encarar a política emigratória atra-
vés de uma outra perspectiva.

Isto é, a imigração japonesa foi repensada como uma política de


estado, na qual surgiram projetos de colonizar áreas estratégicas ao
longo do globo. Por exemplo, a autora aponta a atuação de Takeaki Eno-
moto (1836-1908) em estabelecer colônias nos moldes imperialistas
através do investimento do Estado. Esse político japonês, ao se tornar
Ministro das Relações Exteriores entre 1891-1892, passou a procurar re-
giões para seu projeto: “Como resultado desse empreendimento, foi
escolhida uma área no lugar chamado Escuintla, distrito de Soconusco,
no Estado de Chiapas, extremo sul do México” (MITA, 1999, p. 28).
Conforme é apontado ao longo do presente livro, essa mudança de
uma emigração por motivos econômicos para um interesse expansio-
nista foi acompanhada por uma postura mais agressiva do Japão na Ásia
e pode ser datada a partir da década de 1930. Nas palavras da autora
(MITA, 1999, p. 35, grifos nossos),

Portanto, a política emigratória japonesa, no período anterior à Segunda


Guerra Mundial, começou objetivando a solução do problema econômico ca-
pitalista do Japão, porém, quando a economia japonesa capitalista assumiu
um caráter imperialista, foi dado à política emigratória um traço também
imperialista, visando à expansão territorial. Isso foi um reflexo do capita-
lismo do Japão moderno que se desenvolveu através de guerras de invasão
territorial. Mudança de uma emigração por motivos econômicos para o
imperialismo e expansão territorial.
Leonardo Henrique Luiz • 69

Essa interpretação assume ares mais dramáticos ao pensarmos a


imigração de uma forma geral. Por exemplo, Sedi Hirano (1999, p. 10-11)
argumenta que

A maioria das colônias japonesas no Brasil foram planejadas e povoadas no


decorrer dos anos vinte. Muitas delas foram empreendidas por governos
provinciais japoneses, com forte apoio do Estado Imperial-Militar nipônico,
como por exemplo, as Colônias Alianças. Dentre muitas colônias planejadas
pelo governo japonês, Bastos é um exemplar típico do empreendimento ex-
pansionista imperialista do capitalismo estatal-militar.

Entretanto, é polêmico até que ponto afirmar categoricamente que


Bastos foi um dos empreendimentos do governo japonês com propósi-
tos estatal-militar, pois as fontes apresentam indícios, mas a questão
permanece aberta. Além disso, é difícil saber os limites dos indivíduos
em se virem como agentes do Estado. De qualquer forma, seja por meio
do expansionismo imperialista, seja pelo processo de imigração capita-
lista, o conjunto do habitus nacionalista japonês esteve presente,
marcando as formas nas quais os nikkeis se relacionavam com a socie-
dade. Nesse sentido, é essencial entendermos a formação das
estratégias de imperialismo engendradas pelo Estado.

IMPERIALISMO JAPONÊS NA ÁSIA

Conforme apontado, parte da sensibilidade do tema discutido no


presente livro está relacionada às ações imperialistas japonesas perpe-
tuadas no continente asiático. A análise desses eventos nos permite
entender como o habitus nacionalista foi direcionado para ações
70 • O espírito de Yamato

políticas que tinham o objetivo de expandir o Império japonês. Do ponto


de vista da própria história japonesa do pós-guerra, o imperialismo na
Ásia foi alvo de certo esquecimento pela “Narrativa Fundadora”, que
buscou privilegiar a construção da relação de salvação entre os Estados
Unidos e o Japão (IGARASHI, 2011).
Ao centrar-se nessa narrativa oficial, a Ásia e as memórias do pas-
sado colonial japonês foram silenciadas. Mesmo da perspectiva
cronológica, ao dar grande ênfase ao ataque à base de Pearl Harbor em
1941 e a posterior entrada na guerra pelos Estados Unidos, subentende-
se que a série de ações militares japonesas desde a década de 1930 (ver
mapa 1) pertence a outra esfera. Nas palavras de Igarashi (2011, p. 97),

Com a sua derrota na guerra, o Japão não perdeu apenas antigas colônias,
mas, também as memórias de sua empreitada colonial. Ao trocar o papel de
colonizador do Japão com os EUA, o melodrama EUA-Japão passou a escon-
der a conexão histórica do Japão com a Ásia no discurso social japonês do
pós-guerra.

Entretanto, a atuação colonialista foi uma importante fase da his-


tória japonesa que ajuda a entender o grau de complexidade da
formação nacionalista e como a partir desse discurso foram forjadas
ideias de uma integração asiática liderada pelo Japão, conhecida por Es-
fera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental (Daitōa Kyōeiken - 大東
亜共栄圏). Conforme apontado, autores como Mita (1999) argumentam
que a colonização de certas regiões no Brasil, principalmente Bastos,
seguiram as experiências empregadas em regiões da Ásia, essencial-
mente a Manchúria. Do ponto de vista da documentação, esse elo é
Leonardo Henrique Luiz • 71

difícil de ser traçado, mas defendemos que o repertório discursivo em-


pregado para justificar as ações expansionistas era ensinado nas escolas
japonesas e, portanto, também estava presente de maneira indiciária no
Brasil pela presença do Kyōiku Chokugo.
Dessa forma, um primeiro questionamento a ser feito é sobre os
sentidos do imperialismo japonês. De acordo com William G. Beasley
(1989), o próprio termo imperialismo possui imprecisões e é usado de
maneira ampla para descrever diversos fenômenos temporal e espaci-
almente distantes, abarcando desde os eventos na Roma antiga até os
processos colonizatórios no século XIX, tornando necessária a contex-
tualização ao utilizá-lo. Para o autor, o caso japonês pode ser datado a
partir da Primeira Guerra Sino-japonesa (1894-1895) e apresenta proxi-
midades com o modelo ocidental, focado em um imperialismo
econômico. Mais especificadamente, o autor sugere a comparação com
o imperialismo alemão, pois ambos foram caracterizados por um desen-
volvimento tardio tanto industrial quanto na organização dos impérios.
Mesmo assim, a maneira com que o imperialismo japonês surgiu car-
rega uma série de particularidades, diferentes dos casos europeus.
Nessa perspectiva, o imperialismo japonês emergiu a partir de condi-
ções desiguais nos tratados internacionais impostos pelos poderes
ocidentais, os quais submeteram o Japão à condição semicolonial, re-
vertida ao longo da Era Meiji.
Do ponto de vista discursivo, o imperialismo japonês foi baseado
na prerrogativa de se tornar o líder responsável por proteger toda a Ásia
da influência desigual das potências ocidentais. Esse discurso era sus-
tentado em noções xintoístas, figurando o Japão como uma terra
72 • O espírito de Yamato

privilegiada pelos kami e como centro do mundo. Tal discurso, difun-


dido desde a Era Meiji nos meios intelectuais e de imprensa, sustentava
a necessidade de recursos ao desenvolvimento industrial japonês, que
estaria sendo limitado pela concorrência desigual dos países ocidentais
e pelas próprias limitações espaciais.
Além disso, parte dessa prerrogativa de liderar a Ásia foi baseada
na ideia de discurso civilizatório, que almejava, por intermédio da lide-
rança japonesa, elevar o desenvolvimento de toda a Ásia para se
proteger das influências externas. Grande parte desse discurso foi mol-
dado com base nas ações ocidentais no território chinês, a partir das
quais os líderes japoneses argumentavam que um possível ataque à
China colocaria a própria independência do Japão em risco. Nesse sen-
tido, os líderes japoneses passam a ambicionar influências no
continente, a começar com a região da Península Coreana (BEASLEY,
1989).
Dessa forma, houve uma ênfase na necessidade de estabelecer am-
plos tratados com a Coreia. Esses tratados comerciais foram usados
como uma saída que substituía a via militar, entendida como um des-
perdício de recursos que deveriam ser usados contra a Rússia e a
Inglaterra. Em 1876, foi firmado um tratado desigual (nos moldes do im-
posto pelos Estados Unidos ao Japão no século XIX), colocando o Japão
em uma situação dominante com a Coreia. Nesse acordo, os japoneses
passaram a exercer uma grande influência econômica na península co-
reana, realizando empréstimos e buscando melhorar a estrutura
política e a infraestrutura da região. Tal atuação do capitalismo japonês
Leonardo Henrique Luiz • 73

por meio dos Zaibatus 43 era conduzido pelo Estado Meiji (BEASLEY,
1989).
De acordo com Beasley (1989), a primeira guerra contra a China em
1894-5 ocorreu por essa exploração japonesa a um antigo estado súdito
chinês (a Coreia era mantida como um estado tributário ao Império Chi-
nês). Como resultado da vitória japonesa, a Coreia se tornou sua zona de
influência. Além disso, a ilha de Taiwan e a península de Liaodong (Lia-
otung) foram invadidas pelo Japão. Segundo o autor (BEASLEY, 1989, p.
69),

A vitória do Japão sobre a China em 1894-5 enfraqueceu de imediato a esta-


bilidade do tratado do sistema portuário. Ao demostrar que a fraqueza
chinesa era muito maior do que se pensava, isso encorajou os poderes, lide-
rados pela França, Alemanha e Rússia – aparentemente buscando
compensações para “defender” a China contra as reivindicações japonesas
em Liaotung – em insistir nas demandas que a China tinha sido capaz de
recusar anteriormente 44.

Essa exposição da fragilidade chinesa facilitou a competição impe-


rialista no território chinês e a criação de zonas de influências
europeias. É um período decisivo para a formação do Estado moderno
japonês, pois o Império Russo, por intermédio da diplomacia e com o
apoio ocidental, toma a região de Liaodong e fragiliza a relação entre os

43 Termo para se referir ao conjunto dos conglomerados financeiros e industriais do Império japonês, essas
empresas exerceram o domínio econômico no Japão até o final da Segunda Guerra Mundial, sendo inclusive
incentivadoras de projetos imperialistas. Empresas como Mitsubishi, Mitsui, entre outras, têm raízes nesse
período.
44 “Japan's victory over China in 1894-5 at once undermined the stability of the treaty port system. By
demonstrating that China's weakness was much greater than had been thought it encouraged the powers, led
by France, Germany, and Russia - ostensibly seeking compensation for 'defending' China against Japanese
claims to Liaotung - to insist on demands which China had previously been able to refuse”.
74 • O espírito de Yamato

dois países, levando-os à guerra Russo-Japonesa (1904-1905). Ao vencer


essa guerra, o Japão passou a se projetar como uma força equiparável
aos poderes ocidentais.
De fato, em certos sentidos pode-se argumentar que a guerra
Russo-Japonesa serviu para ampliar o sentimento nacionalista que vi-
nha sendo difundido no Japão. É preciso lembrar que o nacionalismo
japonês foi construído tardiamente e a consolidação do governo Meiji
passou por resistências regionais por parte dos daimiōs ligados ao an-
tigo regime Tokugawa (ANDRÉ, 2011). Dessa forma, a guerra contra o
Império Russo teve também o papel de unificação da nação contra um
inimigo externo e ocidental.
Em 1910, apesar das resistências locais, o Japão anexou completa-
mente a Coreia e passou a investir na região da Manchúria, tendo como
principal meio a Companhia Ferroviária Pública do Sul da Manchúria
(Minami Manshū Tetsudō Kabushikigaisha – 南満州鉄道株式会社), fun-
dada em 1906. Por meio de um forte investimento do Estado japonês,
essa companhia passou a dominar os investimentos na região e a servir
como base do imperialismo em solo chinês (McDOWELL, 2002).
Em um aparato geral desse processo imperialista, é difícil estabe-
lecer com precisão a relação que o governo japonês criou com suas
novas zonas de influências/colônias. Segundo Beasley (1989, p. 143-144)

Tais incertezas persistiram ao longo da história do Império colonial japo-


nês. Diferentes governos em diferentes tempos preferiam ênfases
diferentes. No entanto, havia alguns pressupostos amplamente aceitos, ao
menos no que dizia respeito a ‘soberania’ das colônias de Taiwan, Coreia e
Karafuto [Sul da ilha Sacalina]. Uma delas era o desejo de torná-las
Leonardo Henrique Luiz • 75

integradas ao Japão, cultural e politicamente. Outra era que o Japão tinha


uma missão civilizadora – ou talvez devesse dizer modernizadora, que se
aplicava tanto à promoção da educação, da saúde pública e do desenvolvi-
mento econômico, assim como nos procedimentos políticos. Com o passar
do tempo, houve uma tendência em colocar tais ideias em uma estrutura
tradicionalista do pensamento político japonês, isto é, relacionar as colô-
nias com a “política nacional” (kokutai), implicando em uma relação especial
com o imperador descendente dos deuses 45.

Apesar dessa relação complicada, um programa comum para essas


novas regiões foi o envio de japoneses que buscavam atender a objetivos
específicos, desde buscas por oportunidades individuais de enriqueci-
mento até atuar como um bastião do império. De acordo com Kevin
McDowell (2002, p. 2), no caso da Manchúria que propomos destacar, o
envio de imigrantes obedeceu à dupla necessidade:

No início da década de 1930, com a agricultura japonesa atolada pela de-


pressão, proeminentes Nohonshugisha [intelectuais e pensadores sobre
agricultura] começaram a olhar para a zona rural da Manchúria como a so-
lução para os problemas que dificultavam a agricultura japonesa. Isso se
cruzou com as estratégias do Exército de Kwantung 46 que propuseram

45 “Such uncertainties were to persist throughout the history of the Japanese colonial empire. Different
governments at different times were to prefer different emphases. However, there were some assumptions that
were widely held, at least with respect to the 'sovereign' colonies of Taiwan, Korea, and Karafuto [Sul da ilha
Sacalina]. One was the desirability of their being ultimately integrated with Japan, both culturally and politically.
Another was that Japan had a civilizing - or perhaps one should say modernizing - mission, which applied as
much to promoting education and public health and economic development as it did to political behavior.
With the passing of time there was a tendency to put such ideas into a traditionalist framework of Japanese
political thought, that is, to relate colonies to the 'national polity' (kokutai), implying a special relationship with
a divinely descended emperor”.
46 Foi a mais importante das divisões dentro do exército imperial japonês. Responsável pelas ações na
Manchúria, muitas vezes sua atuação foi considerada independente da vontade de Tóquio. Entre suas filas
surgiram importantes membros do governo japonês, ocupando cargos militares e civis, como Hideki Tōjō, um
dos políticos mais importantes do Estado Showa durante a Segunda Guerra Mundial e que acumulou diversos
cargos, entre os quais o de Primeiro-Ministro (1941-1944) (BEASLEY, 1989).
76 • O espírito de Yamato

mover colonos japoneses para as regiões fronteiriças do norte da Manchú-


ria para bloquear os avanços russos e conter a resistência chinesa. Desde o
início, a emigração agrícola estava ligada com os objetivos do Exército,
desse modo, criando uma mistura com militares e ideologias repletas de
contradições – apresentando problemas para os planejadores da emigração
e para as pessoas que iam ao continente como colonos 47.

O envio desses indivíduos ganhou força na década de 1930, com


propagandas que buscaram criar a imagem de imigrantes heróis e que
devem ir para um novo paraíso promover a harmonia racial. Esse úl-
timo aspecto teve contornos mais amplos a partir de 1932, com a criação
de Manchukuo (Estado fantoche japonês na região da Manchúria), no
qual a harmonia racial entre chineses, manchus e mongóis seria alcan-
çada com os japoneses no centro. Essas ideias eram propagadas pela
Companhia Ferroviária, por meio da qual os investimentos japoneses
buscavam construir uma sociedade harmônica e autônoma. Para McDo-
well (2002, p. 16), tal retórica dava ao empreendimento imperialista
japonês um aspecto altruísta e uma aura de libertação do atraso, en-
quanto, efetivamente transformava a região em um posto estratégico
do Império japonês.
Mesmo McDowell pontuando que a imigração em massa para a
Manchúria só foi efetiva como última opção após as tentativas nos Es-
tados Unidos, Austrália, Peru e Brasil, podemos perceber a existência do

47 “In the early-1930s, with Japanese agriculture mired in depression, prominent Nohonshugisha [intelectuais
e pensadores sobre agricultura] began to look to the Manchurian countryside as a solution to the problems
hampering Japanese agriculture. This intersected with the strategic designs of Kwantung Armyplanners who
proposed to move Japanese settlers to the border regions of north Manchuria to block Russian advances and
tamp down Chinese resistance. From the outset agricultural emigration was linked to Army objectives, thereby
creating a mix of the military and the ideological that was fraught with contradictions - presenting problems
for both the planners of emigration policy and the people who went to the continent as settlers”.
Leonardo Henrique Luiz • 77

discurso da pressão demográfica desde os primeiros anos do período


Meiji. Ao caracterizar o processo migratório para a Manchúria, McDo-
well (2002, p. 32) argumenta:

A fase preliminar do movimento de emigração foi iniciada com um plano de


cinco anos que visava colocar 1000 colonos no norte da Manchúria nos dois
primeiros anos do programa. Esses agricultores-soldados da primeira etapa
forneceram muitas das tendências de longo prazo que caracterizaram as
migrações para a Manchúria: recrutamento nas regiões norte e central do
Japão, locação dos colonos em zonas estratégicas, uma ideologia de harmo-
nia racial e a criação de uma imagem heroica/patriótica usadas para atrair
colonos e estimular o apoio público por trás do movimento 48.

Isso quer dizer que os imigrantes contratados eram alocados es-


trategicamente para defender a região e formar resistências contra
possíveis ataques chineses ou russos. O governo japonês inclusive pro-
mulgou uma proposta em 1936 para levar 1.000,000 de famílias à
Manchúria a partir de cotas fixas anuais, visando principalmente jovens
entre 16 a 19 anos (McDOWELL, 2002, p. 45). Esse movimento foi guiado
pela influência do Exército de Kwantung, que formou as Brigadas Pa-
trióticas da Juventude, buscando suprir as deficiências dos programas
de imigração anteriores com base em uma visão xintoísta. Sobre o re-
crutamento desses indivíduos, o autor argumenta:

48 “The preliminary phase of the emigration movement was set in motion with a five-year trial emigrations plan
that aimed at putting 1,000 colonists into north Manchuria in the first two years of the program. This first farmer-
soldier stage gave rise to many of the long-term trends that characterized the migrations to Manchuria:
recruiting in the north and central regions of Japan, locating colonists in strategic zones, a racial harmony
ideology, and the creation of a heroic/patriotic imagery used to attract settlers and energize public support
behind the movement”.
78 • O espírito de Yamato

Cada nível do governo foi mobilizado no esforço para atender às cotas de


recrutamento. Mas o movimento da Brigada Patriótica da Juventude depen-
dia mais dos líderes comunitários e dos vilarejos, especialmente dos
diretores e professores, para convencer os rapazes a se alistarem. As auto-
ridades escolares encorajaram os estudantes a se voluntariarem para o
programa através de palestras em sala de aula, reuniões especiais e progra-
mas regulares, invocando o patriotismo e a missão especial do Japão na
Manchúria e Ásia. Os governos nacionais e locais patrocinaram uma varie-
dade de treinamento de professores e visitas aos centros de treinamento da
Brigada Juvenil, destinados a informar e doutrinar os educadores com o
éthos Mashû nôgyô imin [Imigração Agrícola Manchu]. Então, os professores
transmitiam a mensagem para as escolas 49 (McDOWELL, 2002, p. 47).

Assim como em todo o processo de construção do nacionalismo ja-


ponês, a escola também parece ter ocupado importante lugar no
recrutamento desses imigrantes/combatentes. Defendemos que tam-
bém nesse período o Kyōiku Chokugo e todo o aparato escolar 50 exerceu
papel relevante ao marcar elementos nacionalistas nesses indivíduos.
Com o passar do tempo e a efervescência no habitus nacionalista, o sis-
tema de recrutamento se tornou mais complexo.

Depois de 1940, cursos especiais de “ascensão da Ásia” (koa) foram acres-


centados ao currículo escolar e um texto exaltando a missão japonesa no

49 “Every level of government was mobilized in the effort to meet recruitment quotas. But the Patriotic Youth
Brigade movement relied most heavily on community and village leaders and especially principals and teachers
to convince boys to join. School authorities encouraged students to volunteer for the program through
classroom lectures, special meetings, and regular programs, invoking patriotism and Japan's special mission in
Manchuria and Asia. National and local governments sponsored a variety of teacher training sessions and tours
to Youth Brigade training centers designed to inform and indoctrinate educators with the Manshu nogyo imin
ethos. Teachers then transmitted the message to the schools.”.
50 O autor ressalta o papel decisivo dos professores: “Em uma tabela de 1941, listando as motivações para aderir
a Brigada Juvenil, 46% apontaram ‘orientação do professor’ como a principal razão (3422 de 7299)” (McDOWELL,
2002, p. 47).
Leonardo Henrique Luiz • 79

Leste Asiático foi publicado em 1941. Além disso, muitas prefeituras imple-
mentaram programas destinados a preparar os rapazes para a inserção na
Brigada Patriótica da Juventude. Dirigidos pelas escolas, os programas ge-
ralmente consistiam em sessões de curta duração com uma programação
diária de cursos fortemente ponderados para doutrinar os estudantes com
o “espírito colonizador” e uma “consciência continente”, enquanto também
proporcionavam treinamento prático na agricultura e na indústria. Um
programa nacional em uma escola secundária de Maebashi tipifica a com-
binação de emigração e educação no sistema escolar durante a guerra.
Representantes dos meninos da segunda série foram selecionados para uma
sessão de treinamentos de quatro dias, focada em desfiles militares, exer-
cícios físicos e palestras, tudo com o objetivo de inspirar a ideia de “colono
continental” entre os participantes. No último dia, os meninos foram obri-
gados a anunciar se planejavam se inscrever na Brigada Juvenil, com os que
se candidatavam obrigado a apresentar uma explicação por escrito descre-
vendo suas razões para não se juntar 51 (McDOWELL, 2002, p. 47-48).

Dessa forma, houve uma confluência entre o habitus nacionalista,


que vinha sendo criado desde os primeiros anos da Era Meiji, e a política
de governo, que se tornou cada vez mais voltada para o expansionismo.
Nesse período, grande parte do currículo escolar foi realocada para su-
prir as necessidades nacionalistas japonesas, tanto por intermédio de
um ensino de História voltado para fomentar o nacionalismo como pela

51 “After 1940 special 'rise-of-Asia' (koa) courses were added to the school curriculum and a textbook extolling
the Japanese mission in East Asia was published in 1941. Further, many prefectures implemented programs
designed to prepare boys for induction into the Patriotic Youth Brigades. Directed by the schools, the programs
usually consisted of short-term sessions with a daily schedule of courses heavily weighted to indoctrinating
students with 'colonizing spirit' and 'continental consciousness' while also providing hands-on agricultural and
industrial training. A Maebashi national high school program typifies the blending of emigration and education
in the wartime school system. Representatives from second-grade boys were selected for a four-day training
session that focused on military parades, physical exercise, and lectures all with the goal of infusing a
'continental colonizing' ideal in the participants. On the last day the boys were required to announce whether
they planned to enroll in the Youth Brigades, with non-applicants obliged to submit a written explanation
outlining their reasons for not joining”.
80 • O espírito de Yamato

ênfase na necessidade dos alunos treinarem fisicamente seus corpos. De


acordo com Igarashi (2011, p. 125), o corpo é um local de luta ideológica,
no qual se tentava “despertar o espírito japonês leal através do treina-
mento”. Essa perspectiva foi acirrada na década de 1940, com a
promulgação de dois programas de controle do corpo, a “Lei Nacional
do Vigor Fisíco (Kokumin Tairyoku Hō) e a Lei Nacional de Eugenia (Koku-
min Yūsei Hō)” (IGARASHI, 2011, p. 127).
A primeira lei obrigava os jovens menores de 20 anos a realizarem
testes físicos que mediam suas capacidades motoras e monitoravam
possíveis doenças. Após esse exame, era emitida uma documentação que
identificava os indivíduos, tarefa importante para os propósitos milita-
res. A lei de eugenia buscava identificar possíveis doenças hereditárias
por meio dos exames de parentescos. Em consonância a essa lei, foi pu-
blicada em 1941 a “Proposta para o Estabelecimento de uma Política de
Aumento da População” (IGARASHI, 2011, p. 128), que incentivava “as
mulheres a se cansarem cedo e a terem no mínimo cinco filhos”. Con-
forme aponta o autor, essas medidas eram acompanhadas por outras
práticas de exclusão, que identificavam os indivíduos indesejados e os
isolavam em tentativas de eliminar os não ajustados. Durante a guerra,
essa sujeição do corpo foi sentida de maneira mais dolorosa entre as
patentes baixas dos militares, que, por meio do discurso de autossacri-
fício, deveriam aguentar a falta de materiais e superar suas limitações
físicas em prol da nação.
Tal processo foi acentuado a partir da década de 1930, principal-
mente com a ascensão da ala militar e o afastamento dos líderes civis do
poder na Era Showa. No entanto, podemos perceber que, desde os
Leonardo Henrique Luiz • 81

primeiros anos da Era Meiji, o corpo passou por processos de sujeição e


foi visto como o local onde a ideologia nacionalista pudesse ser materi-
alizada. Alguns autores, como Diego Avelino de Moraes Carvalho (2017),
argumentam inclusive que o repertório nacionalista foi construído a
partir de uma base samuraica ligada ao Bushido, por meio do qual, antes
mesmo do Kyōiku Chokugo e o sistema de ensino universal, as ideias de
lealdade estavam presentes na sociedade japonesa durante a era Toku-
gawa. Segundo essa interpretação, a lealdade que era ligada aos daimiōs
foi transferida ao imperador. Nas palavras do autor (CARVALHO, 2017,
p. 352),

Os princípios herdados do Bushido em sua tríplice matriz religiosa operam


não somente sob os (ex)samurai e seus descendentes, como reverbera nas
mais variadas camadas sociais que emergem aos fins do século XIX e início
do XX. Isso já havia se materializado na forma como os súditos (e/ou demais
“classes dominadas”) se portavam frente aos poderes constituídos pelos
daimiô e shogun (ou mesmo samurai de relativa envergadura e influência
político/econômica), no transcurso do “Período Edo”. Em suma, a hierarquia
obedecida era proveniente não somente dos “exercícios de poder” - embora
relevantes - constituídos por uma tradição secular. No âmago destas, estava
a cosmovisão impregnada de que se sujeitar as ordens de seus superiores
significam acatar as determinações dos próprios kami, uma vez que esses
haviam sido assim “instituídos em poder” pela palavra do Imperador.

Entretanto, defendemos que tal argumentação encontra dois pro-


blemas fundamentais. Em primeiro lugar, há um problema de
historicização das práticas, na medida em que o termo Bushido começou
a ser amplamente famoso a partir da obra Bushido: the soul of Japan, de
Nitobe Inazo, publicada em 1900, portanto um trabalho tardio. A obra
82 • O espírito de Yamato

de Nitobe supostamente compilou os ensinamentos que eram comuns


aos samurais e praticados desde pelo menos a instituição do xogunato.
É nesse sentido que a primeira problemática surge, pois será que esse
repertório do Bushido era de fato algo que possa ser generalizado como
presente em toda a sociedade japonesa? Além disso, ao se postular como
uma conduta ética e moral dos samurais, será que todos os guerreiros
japoneses se postavam dessa forma? Isto é, até que ponto podemos dizer
que todos os samurais eram guerreiros leais, que colocavam sua honra
acima da própria vida? Não seria essa colocação uma fetichização da
cultura japonesa?
Ligado a essas questões, surge o segundo problema: mesmo que de
fato essas ideias fossem parte significativa da maneira de agir dos sa-
murais, até que ponto essa lealdade e autossacrifício samuraico podem
ser generalizados como uma mentalidade que perpassou os guerreiros
e as pessoas comuns (camponeses, artesãos, intelectuais, etc.)? Mesmo
se essa narrativa de lealdade existisse, sugerimos que foi por intermédio
do sistema universal de ensino que ela se generalizou e foi deslocado ao
imperador e à construção do Estado xintoísta. Esse repertório em torno
do Bushido não seria uma construção tardia, criada a partir da própria
Era Meiji, para representar um Japão guerreiro e destemido frente ao
Ocidente? Os limites do presente livro impedem um aprofundamento
nessas questões, todavia sugerimos que pesquisas em torno das práticas
samurais antes da Era Meiji, buscando vestígios, principalmente na cul-
tura material, de como essas práticas se relacionavam com a sociedade
mais ampla, forneceriam importantes caminhos.
Leonardo Henrique Luiz • 83

De qualquer forma, no período circunscrito pela presente investi-


gação, houve grande ênfase no treinamento corporal com base no
discurso guerreiro (construído tardiamente ou não). Conforme aponta
McDowell (2002, p. 50),

A educação foi dividida entre as instruções em sala de aula, exercício físico


e treinamento técnico. Lições foram dadas sobre o “espírito imperial” da
nação (kokoku seishin), tópicos relacionados à emigração manchuriana
(Manshu shokumin mondai), produção agrícola e manufatura, língua japo-
nesa e “manshugo”, história japonesa/manchu, higiene e nutrição. Para o
treinamento físico/marcial, os rapazes praticavam kendo, judo e sumo. Fi-
nalmente, os participantes aprendiam métodos agrícolas, arquitetura e
construção de estradas 52.

Passar por esse complexo treinamento era necessário para a orga-


nização da sociedade colonial na Manchúria. Conforme argumentado, o
avanço sobre o continente asiático foi uma forma de efetivar a criação
da Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental. De acordo com
Han Jung-Sun (2005), a ideia de uma comunidade cooperativa (Kyōdōtai
– 協同体) ganhou espaço entre intelectuais japoneses. Analisando espe-
cificamente as atividades intelectuais de Royama Masamichi (1895-
1980) no período de guerra, Jung-Sun mostra como o discurso da co-
prosperidade foi sustentado pelo nacionalismo e por ideias
expansionistas.

52 “Education was divided between classroom instruction, physical exercise, and technical training. Lessons
were given on the 'imperial spirit' of the nation (kokoku seishin), topics related to Manchurian emigration
(Manshu shokumin mondai), agricultural manufacturing and production, Japanese and 'Manshugo,'
Japanese/Manchurian history, hygiene, and nutrition. For physical/martial training the boys practiced kendo,
judo, and sumo. Finally, the participants learned agricultural methods, architecture, and road construction”.
84 • O espírito de Yamato

Segundo o autor, nos escritos de Royama a noção do papel civiliza-


tório do Japão ocupou um lugar central, pois os japoneses deveriam
ajudar os demais países asiáticos, especialmente a China, a preencher a
lacuna de desenvolvimento. Por meio desse entendimento, Royama
classificava a China em um estágio inferior ao Japão; efetivamente, o
pensador argumentava que a China não poderia ser entendida como um
Estado moderno, tendo em vista seu desenvolvimento ainda perten-
cente ao nível tribal. Nas palavras de Jung-Sug (2005, p. 497),

[...] Royama afirmou que o que existia entre a Manchúria e o Império japo-
nês não era uma fronteira territorial moderna, mas uma “zona fronteiriça”
(henkyô chitai 辺境地帯). Essa forma peculiar de fronteira, Royama argu-
menta, “pertence ao [estágio particular] antes do estabelecimento de um
Estado moderno soberano, isto é, a etapa de um Estado tribal (shuzoku kokka
種族国家)”. A “zona de fronteira” se desenvolveria em uma fronteira mo-
derna apenas quando o “Estado tribal” evoluísse para um “Estado étnico”
(minzoku kokka 民族国家). A zona de fronteira pré-moderna finalmente de-
sapareceria quando um Estado-nação (kokumin kokka 国民国家) surgisse.
Implícita nessa proposição estava a suposição de que a China contemporâ-
nea não era nem mesmo um “Estado étnico”, muito menos um Estado-nação
soberano 53.

Por meio dessa argumentação, Royama e os demais intelectuais ja-


poneses da época buscaram deslegitimar a soberania chinesa na

53 “[...] Royama claimed that what existed between Manchuria and the Japanese empire was not a modern
territorial border, but a 'frontier zone' (henkyô chitai 辺境地帯). This peculiar form of border, Royama state,
'belongs to the [particular stage] prior to the establishment of the modern sovereign state, that is, the stage of
a tribal state (shuzoku kokka 種族国家).' The 'frontier zone' would develop into a modern territorial boundary
only when the 'tribal state' evolved into an 'ethnic state' (minzoku kokka 民族国家). The premodern frontier
zone would finally disappear when a sovereign nation-state (kokumin kokka 国民国家) came into being.
Implicit in this proposition was the assumption that contemporary China was not even an 'ethnich state,' let
alone a sovereign nation-state”.
Leonardo Henrique Luiz • 85

Manchúria, ao mesmo tempo em que criavam caminhos para a justifi-


cativa da expansão japonesa. Por não ser um Estado soberano, a China
estaria em grande risco de ser invadida pelas potências ocidentais, e é
justamente nesse sentido que a ideia de coprosperidade buscou a acei-
tação, entre os próprios chineses, da presença japonesa. Entretanto, do
ponto de vista chinês, o Japão surgia como uma grande ameaça, que bus-
cava escravizar a China, estabelecer a hegemonia no Pacífico e, então,
expandir sua influência ao resto do mundo (JUNG-SUN, 2005, p. 506).
Conforme sugerido, essa perspectiva nacionalista japonesa ganhou
força na década de 1930. Tal mudança está relacionada com a hegemonia
conquistada pelos militares na política japonesa. Segundo Beasley
(1989), as duas principais facções dentro do exército imperial japonês
eram a Facção do Caminho Imperial (Kōdōha - 皇道派) e a Facção do Con-
trole (Tōseiha - 統制派). Ambos os grupos foram influenciados por ideias
vindas da Alemanha e Itália; entretanto, a Facção do Caminho Imperial
pregava uma revolução que eliminaria os burocratas e o poder dos zai-
batsus, deixando o Estado diretamente nas mãos do Imperador Showa.
Apesar de ter sido derrotada, essas ideias fomentaram os passos
decisivos para o militarismo japonês, pois em uma perspectiva compa-
rada “As diferenças entre as duas facções eram em muitos aspectos uma
questão de ênfase, tendo em vista que ambas reconheciam o objetivo
comum na criação de um Japão ‘puro’ e poderoso” 54 (BEASLEY, 1989, p.
181). Foram justamente esses elementos militaristas os modificadores
da política exterior/imperialista japonesa, pois podemos considerar que

54 “Differences between the two factions were in many respects a matter of emphasis, since both
acknowledged a common objective in creating a 'purer' and more powerful Japan”.
86 • O espírito de Yamato

até a década de 1930 o Japão manteve uma política externa agressiva,


mas relacionada com um imperialismo econômico. Essa forma de atua-
ção imperialista foi modificada e se tornou mais direta com a anexação
de territórios autônomos (exceção da Coreia, anexada em 1910). Em uma
tentativa de conclusão, Beasley (1989, p. 251) argumenta que

Análises do imperialismo muitas vezes tratam-no como estático. [...] o Japão


começou com o que pode ser chamado de um período de “dependência” [...]
Na segunda etapa, a partir de 1905, o imperialismo japonês tornou-se mais
assertivo. Como a Alemanha de Bismarck, uma geração antes, o Japão se
comportou após a guerra Russo-japonesa como um atrasado altivo, bus-
cando igualdade de estima não apenas pela insistência nos direitos dos
tratados, mas também pela aquisição de esferas de influência. Finalmente,
depois de 1930 – embora já houvessem indícios disso desde a Primeira
Guerra Mundial -, os líderes japoneses começaram a substituir um sistema
de imperialismo centrado no Japão no Leste Asiático pelo que herdaram do
Ocidente no século XIX. Fazer isso exigiu uma reestruturação dos padrões
econômicos e a promoção de uma ideologia especificadamente “asiática” 55.

Dessa forma, as etapas de crescimento econômico pelas quais o Ja-


pão passou estavam relacionadas à forma com que a política externa foi
desenvolvida, sendo processos como o imigratório e o investimento do
capital japonês no exterior partes de lógicas próprias do capitalismo. É
importante lembrar que esse aparato foi sustentado com base na

55 “Analyses of imperialism too often treat it as static. [...] Japan's began with what might be called a period of
'dependency' [...] In the second stage, starting in 1905, Japanese imperialism became more self-assertive. Like
Bismarck's Germany a generation earlier, Japan behaved after the Russo-Japanese War as an abrasive latecomer,
seeking equality of esteem not only through an insistence on treaty rights, but also through the acquisition of
spheres of influence. Finally, after 1930 - though there had been indications of it as early as the First World War
- Japanese leaders set out to substitute a Japan-centred system of imperialism in East Asia for that which they
had inherited from the nineteenth-century West. To do so required both a restructuring of economic patterns
and the promotion of a specifically 'Asian' ideology”.
Leonardo Henrique Luiz • 87

construção de um forte nacionalismo interno, no qual o xintoísmo foi


apropriado como habitus e reproduzido nas escolas pelo Kyōiku Chougo.
Ao longo do capítulo, buscamos demonstrar o processo de moder-
nização pelo qual a sociedade japonesa passou a partir de 1868. Nesse
processo, diferentes grupos disputaram qual projeto político de nação
deveria ser implementado, e em meio a essas disputas sobressaíram-se
as formulações intelectuais provindas da Escola de Mito. Ao ser apro-
priado pelos líderes Meiji, o discurso de Mito ressaltou a importância do
imperador e do Estado como centrais na organização nacional. Esse re-
pertório discursivo nacionalista foi decisivo para a promulgação de
práticas imperialistas na Ásia, nas quais o xintoísmo de Estado assumiu
um papel central como legitimador das ações japonesas. Por isso, no
próximo capítulo, buscamos analisar como a religião se tornou parte in-
tegrante da estratégia política japonesa.
2
XINTOÍSMO: UMA RELIGIÃO JAPONESA

É preciso enfatizar que o presente livro é essencialmente uma in-


vestigação centrada na questão religiosa do xintoísmo. Dessa forma,
este capítulo se dedica, também, a fazer um mapeamento do tema, bus-
cando examinar o estado bibliográfico da discussão. Como entendemos
que o Kyōiku Chokugo se constituiu na materialização do discurso do
xintoísmo de Estado, passaremos brevemente pelas outras formas de
xintoísmos, assim como pelas manifestações do xintoísmo em outros
períodos, pois buscamos enfatizar a bibliografia que discute a aproxi-
mação do xintoísmo e do Estado durante a Era Meiji.
Do ponto de vista de um trabalho em História, buscamos entender
as “lutas de representações” (BOURDIEU; CHARTIER, 2012) presente nas
discussões, assim como os “lugares” onde os autores produzem (CER-
TEAU, 1982). É preciso esclarecer esse ponto, pois conforme sugerido na
introdução, o objeto do presente livro está conectado a uma série de po-
lêmicas que são sensíveis na memória pública. De fato, a aproximação
entre o xintoísmo, o Estado e o processo imperialista realizado com base
em um discurso nacionalista é um lugar de disputa acirrado na memó-
ria, e a maneira de conceituar um desses elementos muda
completamente o entendimento da questão.
O próprio conceito ocidental de religião, ao ser aplicado no caso do
xintoísmo, provoca uma série de mudanças nas interpretações. Da
Leonardo Henrique Luiz • 89

mesma forma, a definição do que foi o xintoísmo de Estado se tornou


amplamente usada com base em uma visão ocidental (pela “Diretiva
xintoísta” discutida no presente capítulo), em que vários problemas in-
terpretativos surgiram, pois, ao mesmo tempo em que a “Diretiva
xintoísta” elaborou uma interpretação do que foi o xintoísmo de Estado,
esse documento atuou em meio ao processo de democratização da soci-
edade japonesa durante a ocupação dos Aliados. Isto é, no período de
eliminação de todos os elementos considerados responsáveis para a en-
trada do Japão na Guerra, o xintoísmo de Estado foi considerado, pelo
governo norte-americano, a justificativa ideológica e, portanto, deveria
ser extinta (SHIMAZONO, 2005).
Nesse sentido, o xintoísmo de Estado, e os elementos que o com-
põem, ocupa um lugar sensível na memória e justamente por isso há
tantas interpretações conflitantes na sua definição. No Japão pós-
guerra, a ruptura direta das práticas e a abolição do xintoísmo de Estado
ocorreram em meio a um processo de silenciar o passado, no qual surgiu
uma lacuna explicativa que não foi preenchida pela preocupação em não
tocar em um assunto recente e delicado. Anos depois do final da Se-
gunda Guerra, essas lacunas voltaram para o debate público, causando
surpresas por terem sido superadas em termos políticos, mas isso não
quer dizer que as práticas, os conflitos e a memória deixaram de existir.
Por isso, conhecer os lugares sociais ondes os autores interpretam a
questão revela as disputas em torno da definição legítima e socialmente
aceita do que foi o xintoísmo de Estado.
90 • O espírito de Yamato

A PRODUÇÃO SOBRE O XINTOÍSMO

Um primeiro ponto a ser levantado é a questão da produção acadê-


mica sobre o xintoísmo. De maneira geral, parte desse mapeamento do
campo já foi feita por outros pesquisadores, que buscaram discutir a
história das diversas expressões dos xintoísmos em diferentes períodos.
Dessa forma, partimos dessas discussões já colocadas acerca do xinto-
ísmo e, posteriormente, enfocamos nas produções que têm o Estado
xintoísta como foco. Especificamente em língua portuguesa, o tema só
aparece quando é relacionado ao budismo ou às Novas Religiões Japo-
nesas 56 (Shin Shūkyō – 新宗教), e são poucos os autores que se
arriscaram a discutir essa temática.
Um dos poucos trabalhos que tem o xintoísmo como foco e foi pro-
duzido em português é o artigo de Ronan Alves Pereira, “Ishizuchi Jinja:
sobrevivência xinto-budista no contexto brasileiro” (2011). Nesse texto,
o autor discute o estabelecimento de ritos de fertilidade xintoístas na
região da Serra do Mar, entre Mogi das Cruzes e Suzano no estado de
São Paulo. Esse xintoísmo, assim como outros exemplos destacados por
Pereira, seria uma expressão espontânea da busca por proteção xinto-
ísta no Brasil por parte dos nikkeis. Segundo o autor, a formação desses
pequenos grupos no Brasil espelha a situação religiosa japonesa, na qual
a religiosidade foi organizada “[...] no formato de confraria ou associa-
ção religiosa (kôsya 講社) [...]” (PEREIRA, 2011, p. 62), não se tornando
uma instituição codificada e burocratizada, sendo, portanto, uma das

56 Grupo de religiões que surgiram a partir da segunda metade do século XIX, tendo a maior expansão com o
término da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Algumas dessas religiões são: Seicho-No-Ie, Igreja Messiânica
Mundial, Perfect Liberty, Tenrikyo.
Leonardo Henrique Luiz • 91

“[...] principais expressões da religiosidade popular japonesa” (PEREIRA,


2011, p. 62). Esse é um trabalho que traz luz sobre a formação do xinto-
ísmo como religiosidade e sua transformação (no Japão) em religião
institucionalizada, e a posterior presença da crença no Brasil.
Outro trabalho em português que enfocou o xintoísmo é o artigo
“Shintoísmo e culto aos kami: aproximações e distanciamentos”, de Ri-
chard Gonçalves André (2008). No texto, o autor tem como objetivo
discutir a narrativa segundo a qual o xintoísmo seria a religião mais an-
tiga do Japão. Grande parte das considerações sugeridas por André são
baseadas nas proposições de Toshio Kuroda (1981). Kuroda defende a hi-
pótese de que o xintoísmo só passou a se constituir institucionalmente
a partir do século XIV, só sendo representado como religião indepen-
dente no século XIX pelo discurso Meiji (TEEUWEN; SCHEID, 2002).
Antes disso, existiu o que Kuroda (1981) chama de “culto aos kami”, con-
forme é apontado a seguir.
Além desses artigos, há trabalhos como o de Sergio Bath, Xintoísmo:
o caminho dos deuses (1998), que apresenta uma visão bastante geral e
lacunar do xintoísmo, e o de Covington Scott Littleton, Conhecendo o
xintoísmo (2010), que oferece uma perspectiva introdutória e geral da
religião. De qualquer forma, como podemos perceber, os trabalhos de
Pereira e André são importantes contribuições acadêmicas para uma
área escassa em língua portuguesa. Entretanto, ao mesmo tempo, são
artigos circunscritos, cuja temática possivelmente surgiu em paralelo a
outros assuntos da religiosidade japonesa.
Em um mapeamento mais global, podemos perceber que a maior
parte da produção se encontra em língua estrangeira, principalmente
92 • O espírito de Yamato

em japonês e inglês. Consideramos que um dos mais significativos le-


vantamentos sobre o tema se encontra no dossiê organizado por
Bernhard Scheid e Mark Teeuwen na Japanese Journal of Religious Studies
(2002). Logo na introdução dessa edição especial sobre o xintoísmo, os
autores argumentam:

Os estudos sobre o xintoísmo em línguas ocidentais são poucos e distantes


entre si. Também nesta revista os artigos sobre xintoísmo têm sido raros.
Comparando ao budismo japonês ou às Novas Religiões Japonesas, o xinto-
ísmo tem apresentado pouco apelo, tanto aos pesquisadores quanto aos
estudantes, mesmo no Japão. Ainda, poucos cursos universitários sobre cul-
tura japonesa, história e religião conseguem abarcar o objeto em sua
totalidade (TEEUWEN; SCHEID, 2002, p. 195) 57.

De maneira complementar a essa postura, Inoue Nobutaka (2005)


argumenta que “Também, existem argumentos que questionam se é
apropriado considerar o xintoísmo como uma religião. Portanto, temos
um problema fundamental em quais pontos o xintoísmo se distingue da
cultura japonesa em geral” 58 (2005), isto é, mesmo no Japão existem es-
tudiosos que defendem que os estudos sobre o xintoísmo não
constituem um campo, mas um “tópico” dos estudos da cultura japonesa
como um todo.
Nesse mesmo texto, de Nobutaka (2005), o autor faz um levanta-
mento dos principais assuntos debatidos nos simpósios internacionais

57 “Studies of shinto in Western languages are few and far between. In this journal, too, articles on Shinto have
been rare. Compared to Japanese Buddhism, or Japanese New Religions, Shinto has had little appeal to both
scholars and students even in Japan. Yet, few university courses about Japanese culture, history, and religion
manage to get around the subject altogether”.
58 “Also there exist argument whether it is appropriate to regard Shinto as religion. Therefore, we have
fundamental problem in what points Shinto is distinguished from Japanese culture in general”.
Leonardo Henrique Luiz • 93

realizados na Kokugakuin University (ver sobre essa instituição mais


abaixo). Ao discutir sobre o 4° simpósio, o autor revela uma caracterís-
tica marcante dos estudos japoneses sobre o xintoísmo.

No andamento de uma série de simpósios, uma questão básica foi levantada.


Isto é, se o xintoísmo deveria ou não ser considerado uma religião indepen-
dente na história japonesa. E se xintoísmo deve ser considerado como uma
religião nos tempos antigos. Entre os estudiosos japoneses do xintoísmo,
essas questões quase nunca foram discutidas. No entanto, as ideias suge-
ridas por Toshio Kuroda de que o xintoísmo foi construído no início da era
moderna foram aceitas entre alguns estudiosos europeus (NOBUTAKA,
2005, grifos nossos) 59.

É surpreendente que parte dos estudiosos japoneses naturalizem


de forma tão emblemática a contextualização do xintoísmo como reli-
gião. Essa postura tem consequências teóricas e epistemológicas
significativas; entretanto, tal ponto de vista pode ser explicado pela am-
biguidade de definição criada pelos valores ocidentais ao realizar a
aproximação entre religião e Estado, pois essa é uma separação ociden-
tal cujas definições foram introduzidas tardiamente no Japão (ver a
discussão do xintoísmo como religião no presente texto). Além disso,
devemos considerar como a religião foi usada para explicar a identidade
nacional. Ao longo do livro, apresentaremos apontamentos que comple-
xificam esse quadro e tentam dar explicações para essa lacuna de

59 “In the course of a series of symposium, a basic question has been brought about. It is whether or not Shinto
should be regarded as independent religion in Japanese history. And Shinto is regarded as a religion from
ancient time. Among Japanese scholars of Shinto studies, these questions have ever hardly been argued.
However, ideas suggested by Kuroda Toshio that Shinto had been constructed in the early modern age was
accepted among some European scholars” (grifos nossos).
94 • O espírito de Yamato

historicização do tema mesmo entre os japoneses. Uma das observações


a serem feitas diz respeito a complexidade própria do tema, pois, esse
assunto ainda sucinta sentimentos na memória individual e coletiva.
Em outras palavras, notamos posições que apresentam apenas partes do
debate em razão dos filtros de análise empregados. Em certos autores,
conforme mostraremos a seguir, é possível perceber certa perspectiva
engajada no sentido de criar memória, principalmente na disputa da de-
finição da abrangência do Estado xintoísta.
Outro ponto fundamental, levantado por Teeuwen e Scheid (2002),
é o papel desempenhado por Toshio Kuroda (1981) na definição do xin-
toísmo como uma categoria histórica. Para Kuroda (1981), é importante
distinguir a noção de culto aos kami da concepção moderna de xinto-
ísmo como um fenômeno religioso autônomo. Segundo o autor, o
xintoísmo como um sistema independente do budismo Kenmitsu 60
(Kenmitsu Bukkyō - 顕密仏教) e religião nativa japonesa é uma invenção
moderna. Nas palavras de Teeuwen e Scheid (2002, p. 199),

Distinguindo entre os cultos aos kami por um lado, e xintoísmo por outro,
torna-se possível observar o xintoísmo como uma série de tentativas de im-
por um foco unificado sobre o fragmentado culto aos kami, ou criando uma

60 Ao contrário da maioria dos estudiosos do budismo até então, Kuroda formula uma teoria denominada
“Sistema Kenmitsu” (顕密体制 – kenmitsutaisei). Essa teoria defende que, no período “medieval japonês”
(séculos XII-XVI), as religiões dominantes não eram os “Novos Budismos de Kamakura”, isto é, as escolas Zen,
Jodô e Nichiren, mas sim o Budismo Kenmitsu, composto por escolas como Tendai e Shingon. Essas escolas
dominantes incorporavam um sistema exotérico-esotérico, no qual as práticas da religiosidade xintoísta eram
incorporadas ao repertório budista (KURODA, 1981). Esse processo era justificado por intermédio do sistema
honji suijaku (本地垂迹), em que os kami xintoístas eram apropriados pelos monges budistas como
manifestações dos Budas no Japão. Sobre isso, ver também Gonçalves (1971) e Rambelli (2002).
Leonardo Henrique Luiz • 95

tradição religiosa distinta pela transformação dos cultos locais em algo


maior 61.

No entanto, a postura de Kuroda é contestada por outros autores,


reflexo direto da maneira de entenderem as mudanças e permanências,
assim como qual a melhor definição de Estado. Exemplo visível de opo-
sição da visão de Kuroda é Antoni Klaus (2016). Grande parte da
argumentação defendida por Klaus é expressa da seguinte forma:

Meu propósito foi – e ainda é – mostrar os profundos vínculos entre o Japão


pré-moderno e moderno por meio da história religiosa e intelectual do xin-
toísmo, especialmente, investigando as funções do xintoísmo como sistema
religioso de legitimação politica, isto é, o poder imperial, uma tendência que
culminou no conceito de uma política nacional (kokutai) específica durante
o final da era Tokugawa e início da Era Meiji (KLAUS, 2016, p. 379-380, grifos
no original) 62.

Essa postura estabelece um debate mais específico com as análises


feitas por Mark Teeuwen. De acordo com Klaus (2016, p. 379), “Ele [Tee-
uwen] critica particularmente essa apresentação da história do
xintoísmo como tendo um desenvolvimento contínuo e direto desde os
tempos pré-modernos até o moderno do xintoísmo de Estado” 63. Com

61 “Distinguishing between kami cults on the one hand, and Shinto on the other, makes it possible to view
Shinto as a series of attempts at imposing a unifying framework upon disparate kami cults, or at creating a
distinct religious tradition by transforming local kami cults into something bigger”.
62 “My purpose was – and still is – to show the deep links between pre-modern and modern Japan in the
intellectual history of Shintô and religious thought, especially by investigating the function of Shintô as a
religious system to legitimize political, i.e., imperial power, a trend which culminated in the concept of a specific
Japanese national polity (kokutai) during late Tokugawa and early Meiji times” (grifos no original).
63 “He [Teeuwen] particularly criticizes its presentation of Shintô history as a straight, continuous development
from pre-modern times to modern governmental State Shintô”.
96 • O espírito de Yamato

isso, Klaus elabora uma série de respostas 64 às críticas de Teeuwen e à


abordagem de Kuroda, que atribui mais destaque para o processo de “in-
venção” do xintoísmo, no século XIX, como a religião nativa do Japão. A
perspectiva de Klaus é centrada nas continuidades presentes no xinto-
ísmo antes e depois da Restauração Meiji. Apesar de não recuar sua
análise para os tempos mitológicos, o autor aponta as continuidades
presentes na religião. Assim, conforme sugerido no presente capítulo,
adotamos a perspectiva proposta por Shimazono (2009), que busca um
entendimento “amplo” sobre do xintoísmo de Estado (ver a discussão a
seguir).
Além dessa questão conceitual acerca da abrangência do termo
xintoísmo, outro ponto de discussão é a abrangência do Estado japonês
e a relação estabelecida com o xintoísmo. Como o presente livro é do
campo da História, defendemos que os usos de conceitos como xinto-
ísmo e Estado xintoísta devem ser contextualizados no tempo e no
espaço, e que essas diferenças interpretativas surgem mais pela falta de
contextualização do que de informações obtidas em fontes diferentes e
por posturas ideológicas com implicações epistemológicas. Como apon-
tado, esse é um ponto no qual a discussão se torna um pouco obscura,
na medida em que alguns estudos buscam as origens (em alguns casos,
mitológicas) da relação entre o Estado, ou a dinastia imperial, com o
xintoísmo. Esse movimento ocorre pela maneira com que o próprio

64 Para uma visão mais ou menos completa desse debate, ver a resenha feita por Teeuwen (1999) sobre a
primeira publicação do livro de Klaus e o “Epilogue” (KLAUS, 2016, p. 379) acrescentado à nova versão do livro
Kokutai.
Leonardo Henrique Luiz • 97

Estado moderno japonês, a partir de 1868, legitimou a identidade naci-


onal pelo sistema de crenças.
Mesmo em pesquisas que não têm o xintoísmo como foco, é possí-
vel perceber esse movimento de olhar as origens. Um exemplo desse
tipo de trabalho é a dissertação de mestrado defendida por Takashi
Maeyama (1967), intitulada O imigrante e a religião: estudo de uma seita
religiosa japonesa em São Paulo. No primeiro capítulo dessa dissertação
sobre a Seicho-No-Ie, Maeyama discute a “Vida religiosa no Japão”, re-
cuando, por exemplo, a 300 a.C. para mostrar o processo de
estabelecimento da agricultura do arroz e como se formaram “aldeias-
estados” (MAEYAMA, 1967, p. 2). Segundo o autor, “[...] com a vinda dês-
ses [sic] grupos humanos, foram introduzidas, de cada procedência,
magias e crenças que, fundindo-se vieram a se constituir no xintoísmo
japonês” (MAEYAMA, 1967, p. 2). Outro caso interessante está no artigo
de Joseph M. Kitagawa (1990), intitulado “Algumas reflexões sobre a re-
ligião japonesa e sua relação com o sistema imperial”, no qual é possível
perceber a preocupação do autor (e de outros que também são citados)
em estabelecer qual foi o ponto inicial do Estado japonês. Esses traba-
lhos apresentam uma carência na sistematização da análise do ponto de
vista histórico, isto é, os autores assumem abordagens demasiadamente
estáticas e lidam de forma inadequada com a historicidade do tema e
das fontes, não estabelecendo os conceitos de Estado japonês e xinto-
ísmo dentro de uma ordem temporal e espacial (apesar de Kitagawa
mostrar como a relação entre as religiões e o sistema imperial variou ao
longo do tempo).
98 • O espírito de Yamato

Um aspecto fundamental que influência essa tendência é a forma-


ção desses autores, que variam principalmente nas áreas da Sociologia,
Antropologia, Estudos Orientais e Estudos das Religiões. Dessa forma,
pode-se dizer que o rigor exigido do método da História em relação à
contextualização temporal da fonte não é o foco da análise dessas disci-
plinas. Por outro lado, esses trabalhos apresentam importantes
contribuições, que ajudam a compreender as relações de continuidade
no discurso Meiji. Apesar disso, é preciso ressaltar que esse aspecto não
é regra. Há trabalhos sobre o xintoísmo com as mesmas preocupações
presentes em um trabalho no campo da História; destacamos principal-
mente as contribuições de Susumu Shimazono (2009; 2005), que realizou
o debate entre as mais impactantes versões adotadas na investigação do
xintoísmo.
De acordo com Shimazono (2009), a literatura convencional a res-
peito da relação entre Estado e xintoísmo pode ser encontrada no
trabalho de Shigeyoshi Murakami (1970), no qual esse autor defende que
o Estado xintoísta foi formulado com a promulgação do Kyōiku Chokugo
em 1890. Além disso, para Murakami, os santuários xintoístas se torna-
ram as bases ideológicas para o discurso de Estado por meio da apologia
à doutrina Kokugaku (国学 - Estudos nacionais), que “[…] apoiou os em-
preendimentos militares estrangeiros através do conceito do mundo
como uma única família” 65 (SHIMAZONO, 2009, p. 96), e os próprios sa-
cerdotes xintoístas teriam grande poder como agentes que propagavam
o interesse do império.

65 “[...] supported the foreign military ventures through the concept of the world as a single family”.
Leonardo Henrique Luiz • 99

A interpretação de Murakami desperta certo desconforto para os


indivíduos ligados ao xintoísmo, na medida em que liga de forma direta
todos os tipos de xintoísmos com o processo imperialista, seguido pela
Segunda Guerra Mundial e os crimes de guerra, que ainda são motivos
de inquietações na sociedade japonesa e nos países envolvidos no con-
flito. Isto é, essa interpretação entende os xintoísmos como um
conjunto essencial que constituiu o Estado japonês. Conforme aponta
Shimazono (2009), essa visão de Murakami é questionada por grupos de
intelectuais japoneses ligados aos santuários xintoístas.

Fortemente ofendidos por essa interpretação, estudiosos do pós-guerra afi-


liados aos Xintoísmos de Santuários, que estão ativos até hoje, como Ashizu
Uzuhiko, Sakamoto Koremaru e Nitta Hitoshi, tentam traçar um quadro di-
ferente baseado nas transformações históricas do xintoísmo de Estado.
Esses estudiosos sugerem que o Xintoísmo de Santuário nem sempre foi ali-
nhado aos ideólogos militaristas, expansionistas e totalitários que
defendiam o discurso do Kokutai. Dividindo o Xintoísmo de Santuário a par-
tir do sistema de práticas baseado no discurso do Kokutai e no culto
imperial, eles enfatizam certos eventos que revelam que o Xintoísmo de
Santuário não foi consistentemente bem tratado pelo Estado 66 (SHIMA-
ZONO, 2009, p. 96).

Nesse ponto, é preciso fazer um parêntese para discutir outra pro-


blemática em relação ao estudo das religiões: o diálogo, necessário, com

66 “Strongly offended by this interpretation, postwar scholars affiliated with Shrine Shinto who are active even
now, such as Ashizu Uzuhiko, Sakamoto Koremaru, and Nitta Hitoshi have tried to draw a different picture based
on the historical evolution of State Shinto. These scholars suggest that Shrine Shinto was not always allied with
the militarist, expansionist, and totalitarian ideologues who advocated the Kokutai discourse. Dividing Shrine
Shinto from the practice system based on the Kokutai discourse and emperor worship, they emphasize certain
events that reveal that Shrine Shinto was not consistently treated well by the state”.
100 • O espírito de Yamato

as próprias produções intelectuais dos praticantes da religião em ques-


tão. No caso dos estudos sobre o xintoísmo, são mais ou menos visíveis
os principais centros de produção acadêmica e os lugares sociais (CER-
TEAU, 1982) que os indivíduos ocupam. Atualmente no Japão há duas
universidades que oferecem, especificamente, um programa de estudos
xintoísta (habilitando também a formação sacerdotal): a Universidade
Kokugakuin (Kokugakuin Daigaku – 國學院大學), em Tóquio, e a Univer-
sidade Kogakkan (Kogakkan Daigaku - 皇學館大学), em Ise (atualmente,
ambas são instituições privadas).
Conforme aponta Inoue Nobutaka (2002), em 1882 foram fundadas
duas instituições voltadas para os estudos xintoístas, o Institute for the
Study of the Imperial Classics e o Ise Hall of Imperial Study, que se tor-
naram, respectivamente, as universidades de Kokugakuin e Kogakkan.
Apesar disso, de acordo com Nobutaka (2002, p. 412) 67,

Em contraste com o Ise Hall of Imperial Studies, o Institute for the Study of
the Imperial Classics não foi uma instituição pública, mas sua fundação re-
fletia as preocupações do governo, na medida em que podemos
anacronicamente descrevê-lo como uma instituição do “terceiro setor” 68.

Esse terceiro setor seriam os estudos acadêmicos que, somados aos


rituais e à educação religiosa, completavam a política religiosa Meiji.
Portanto, podemos sugerir a existência de uma relação próxima dos es-
tudos sobre o xintoísmo da formação sacerdotal. A maioria dos outros

67 É preciso lembrar que Nobutaka foi professor na Kokugakuin.


68 “In contrast to the Ise Hall of Imperial Studies, the Institute for the Study of the Imperial Classics was not a
public institution, but nevertheless its founding reflected government concerns to the extent that we may
anachronistically describe it as a 'third sector' facility”.
Leonardo Henrique Luiz • 101

autores que não fazem parte dessas duas instituições são professores,
principalmente no Japão, Alemanha e Estados Unidos, em departamen-
tos de Sociologia, Estudos Orientais e Estudos das Religiões, como
apontado acima.
De qualquer forma, as críticas dos intelectuais xintoístas à inter-
pretação de Murakami, apresentadas por Shimazono (2009, p. 97),
tiveram como principal contribuição a ênfase na necessidade da con-
textualização no uso do termo Estado xintoísta. De acordo com esse
grupo, Murakami estabelece a ligação da religião com o Estado como um
contínuo, enquanto essa relação teria variado desde a Restauração
Meiji, com aproximações mais intensas nos anos anteriores à Segunda
Guerra Mundial.
Nesse sentido, no presente livro, adotamos a maneira conceitual
que Shimazono (2009, p. 99) define a relação do xintoísmo com o Estado:
“O xintoísmo pode ser entendido com um sistema coerente de práticas
e ideias religiosas unidas em torno da crença nos kami japoneses. O ‘Es-
tado xintoísta’ foi formando quando esse sistema conceitual e de
práticas se relacionaram com Estado, encontrado em partes do xinto-
ísmo, uma nova coerência.” 69 Essa distinção é importante, pois
possibilita perceber a gradual aproximação da religião com o Estado (no
período de 1868 até 1945) e como o currículo escolar reforçava o ensino
da ética e da história com formas nacionalistas, sacralizadas pela publi-
cação do Kyōiku Chokugo em 1890.

69 “Shinto might be understood as a somewhat coherent system of practices and religious ideas united in the
belief in the kami of the Japanese land. ‘State Shinto’ was formed when those conceptual systems and practices
that related to the state, found in part of Shinto, acquired a new coherence”.
102 • O espírito de Yamato

O XINTOÍSMO E O ESTADO

Ao relacionarmos o desenvolvimento do xintoísmo na sociedade


japonesa com o processo imperialista descrito no capítulo anterior, po-
demos perceber como a expansão das fronteiras nacionais abriu
também a possibilidade da expansão religiosa. No texto introdutório,
em um dossiê temático na Japanese Journal of Religious Studies, Richard
M. Jaffe (2010) aponta para as principais questões que mostram a relação
entre as religiões japonesas e o Império japonês com base no ponto de
vista do colonialismo/imperialismo. Segundo o autor, existem interpre-
tações que buscam mostrar que modelos simples de análise, como os
que retratam todos os atores envolvidos como agentes do Estado, são
insuficientes. Da mesma forma, há outras interpretações que buscam
mostrar que os interesses privados (dos japoneses no Japão ou no exte-
rior e também dos nativos colonizados) e a atuação em funções oficiais
nas áreas colonizadas não podem ser entendidos em termos de simples
escolha entre resistência ou colaboração (os indivíduos e organizações
tinham interesses próprios) ou, às vezes, esses dois caminhos não eram
distintos.
No mesmo dossiê, o artigo de Suga Koji (2010) analisa as atividades
de Ogasawara Shozo (1892-1970), que cunhou o termo “Santuários xin-
toístas no Exterior” (kaigai jinja - 海外神社) e se dedicou ao
estabelecimento de instituições xintoístas fora do Japão até a derrota na
Segunda Guerra Mundial. Segundo o autor, essa atuação mostra como
Ogasawara tentou fazer do xintoísmo uma religião universal por meio
de uma visão politeísta, que buscou incorporar os deuses locais à esfera
Leonardo Henrique Luiz • 103

dos kami, permitindo a criação de uma suposta harmonia étnica e for-


talecendo o império.
A ideia de “Santuários xintoístas no Exterior” leva em conta inclu-
sive os santuários criados por imigrantes nos outros países. Koji
também parte das considerações feitas por Murakami Shigeyoshi (ver a
discussão sobre a interpretação desse autor acima), que enfatiza como
o Estado xintoísta não limitou suas influências à esfera religiosa, e os
santuários fora do Japão são interpretados como parte da agressividade
expansionista do Estado. Nesse sentido, o xintoísmo aparece como uma
ferramenta política para uma “cruzada” (KOJI, 2010, p. 50) contra as re-
giões de interesse do Japão. Entretanto, essa interpretação é contestada
por Koji, que argumenta como entre 1880 a 1930 não existiu a presença
do Estado na construção dos santuários fora do Japão (havia santuários,
mas construídos pela iniciativa individual dos imigrantes japoneses).
Nas palavras do autor, “Na época da Restauração Meiji, o único santuá-
rio fora do território japonês existia na área residencial japonesa
próximo de Pusan, o único porto coreano aberto ao Japão no início do
período moderno” 70 (KOJI, 2010, p. 52).
Entretanto, ainda de acordo com Koji (2010, p. 53),

Como uma prática costumeira desde que Hokkaido foi incorporada no co-
meço do período Meiji, o governo local estabeleceu um santuário estatal
classificado como o mais alto em cada colônia. Esses santuários eram

70 “At the time of the Meiji Restoration, the only shrine outside of Japanese territory existed in the Japanese
residential area near Pusan, the only Korean port open to Japan in the early modern period”.
104 • O espírito de Yamato

conhecidos como Sō Chinju 総鎮守, e eram dedicados às deidades guardiãs


de cada região 71.

Um desses santuários criados pelo governo foi o Chōsen Jingū (朝


鮮神宮) de 1920, em Seul, na Coreia. Esse santuário representou um im-

portante ponto de modificação na história do xintoísmo no exterior,


pois foi o primeiro desses santuários, tendo sido dedicado a Amaterasu.
Para o autor, esse fenômeno indica o importante papel da Coreia dentro
do império em termos de proximidade cultural e histórica com o Japão.
É nesse cenário que Ogasawara Shozo atuou. Quarto filho de uma
pequena família que possuía um santuário xintoísta, Ogasawara termi-
nou sua formação sacerdotal em 1912 em Tóquio, tornando-se um
escritor sobre mitologia e história japonesas, mas sem nenhum vínculo
específico a santuários como sacerdote. Segundo Koji, Ogasawara apon-
tava para a necessidade de criar um culto no Chōsen Jingū que
envolvesse algum aspecto religioso coreano. Essa era uma tentativa de
“reunificar” as duas nações, que eram muito parecidas do ponto de vista
histórico e cultural. Na prática, buscava-se argumentar que a descen-
dência da deusa solar era compartilhada com os coreanos; portanto, o
imperador japonês era também o soberano legítimo da Coreia.
As atividades de Ogasawara não se limitaram a territórios conquis-
tados pelos japoneses, pois em 1928 ele foi convidado, pelo sacerdote
chefe da cidade de Nagano, para conhecer o projeto de criar uma filial
do Santuário Suwa (Suwa Jinja – 諏訪神社) na colônia de Aliança, estado

71 “As a customary practice since Hokkaido was incorporated at the beginning of the Meiji period, the home
government established one state shrine to be ranked highest in each colony. Those shrines were known as Sō
Chinju 総鎮守, and were dedicated to the general guardian deities in each region”.
Leonardo Henrique Luiz • 105

de São Paulo. Segundo Koji (2010, p. 59), a partida de Ogasawara encon-


trou várias dificuldades, entre as quais “[…] As autoridades diplomáticas
japonesas também não cooperaram e não estavam dispostas a emitir um
passaporte porque queriam evitar o atrito cultural que poderia resultar
de suas atividades xintoístas em um país majoritariamente cristão” 72.
De qualquer forma, Ogasawara chegou ao Brasil em 23 de setembro e
visitou outras colônias, além da Aliança, durante três meses.
Na colônia de Aliança,

[…] Ele visitou a casa de cada colono e conversou avidamente com cada pes-
soa. Descrevendo-a como ‘minha guerra sagrada (seisen 聖戦), ele tentou
convencer os colonos a construírem o santuário, compartilhando sua con-
vicção de que ‘a devoção dos imigrantes japoneses ao culto nos Santuários
xintoístas podem mudar as pessoas do país acolhedor. Transformando os
sentimentos anti-japonês em sentimentos pró-japoneses’ 73 (KOJI, 2010, p.
59).

Mesmo com seus esforços, a colônia de Aliança rejeitou a necessi-


dade da construção de um santuário xintoísta. Além disso,

Ele foi autorizado a construir apenas um pequeno santuário provisório


usando pedaços de madeira e vigas para consagrar o talismã do Santuário
de Suwa no jardim de um simpatizante. Suas atividades, às vezes, eram ri-
dicularizadas por jornais nipo-brasileiros e, posteriormente, o Comitê dos

72 “[…] Japanese diplomatic authorities were also uncooperative and had been unwilling to issue him a
passport because they wanted to avert cultural friction that might result from his Shinto activities in a mainly
Christian country”.
73 “[…] he visited each settler’s home and eagerly talked with the people. Describing it as “my sacred war”
(seisen 聖戦), he zealously tried to persuade the settlers to build the shrine, sharing his conviction that the
“Japanese immigrants’ pious worship of Shinto shrines may move the people in host countries. It can turn anti-
Japanese sentiment into pro-Japanese feelings.”
106 • O espírito de Yamato

Colonos de Aliança fez um pedido ao Ministro Japonês das Relações Exteri-


ores para proibir a entrada no Brasil de qualquer um com tentativas de
construir Santuários xintoístas 74 (KOJI, 2010, p. 59).

Apesar disso, Ogasawara ficou impressionado com os santuários


existentes no Brasil, entre os quais um pequeno, em Promissão (São
Paulo), que muito chamou sua atenção. Esse santuário havia sido dedi-
cado aos espíritos ancestrais das tribos nativas da região, que viviam
antes da chegada dos japoneses. O gesto desse pequeno santuário foi ao
encontro com o pensamento de Ogasawara a respeito do papel do xin-
toísmo no exterior, pois ele estava convencido de que a fé xintoísta
deveria ultrapassar as fronteiras nacionais por meio dos imigrantes,
que deveriam deificar as entidades da sociedade receptora. Essa cosmo-
visão era uma forma de estabelecer a integração de imigrantes e
receptores.
Ao retornar ao Japão em 1929, ele passou a defender a necessidade
de mais santuários no exterior, em busca de um xintoísmo mais polite-
ísta e universal. Entretanto, esse processo no qual o xintoísmo seria o
elo não deveria ser imposto pela coerção do Estado; para Ogasawara, di-
ferente do colonialismo europeu (branco) que impôs o cristianismo
como algo perfeito, o Japão apresentava uma proposta de se esforçar
para se tornar perfeito, o que produziria a harmonia para os indivíduos
buscarem voluntariamente a adoração das divindades locais por meio
do xintoísmo, fortalecendo espontaneamente o império.

74 “He was permitted to build only a tiny tentative shrine using scraps of wood and timber to enshrine the
Suwa Shrine’s talisman in a sympathizer’s yard. His activities were sometimes ridiculed by the Japanese-Brazilian
newspapers, and later the Aliança Settlers Committee petitioned the Japanese Minister of Foreign Affairs to
prohibit anyone who intended to build Shinto shrines from entering Brazil again”.
Leonardo Henrique Luiz • 107

Entre as sugestões de criação de santuários xintoístas no exterior,


Koji apresenta casos “surpreendentes” propostos por Ogasawara, entre
os quais a criação de um santuário em homenagem a fundação dos Es-
tados Unidos, no formato da Casa Branca, em que o espírito deificado
seria de George Washington; ou um santuário iluminado em homena-
gem ao espírito do “Senhor da Eletricidade”, Thomas Edison.
Entretanto, com a crescente aproximação do projeto colonialista japo-
nês perpetuada pelos poderes ocidentais durante a década de 1930 e a
efetivação da Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia Oriental, o mo-
vimento defendido por Ogasawara perdeu forças frente ao crescente
nacionalismo. A partir da entrada do Japão no Eixo, os números de visi-
tantes e de santuários nas colônias aumentaram, no entanto esse
aumento foi “[…] resultado da hegemonia forçada no continente da ‘na-
ção japonesa’ sobre as outras fronteiras” 75 (KOJI, 2010, p. 66). Após a
derrota japonesa, Ogasawara não tentou mais criar santuários no exte-
rior.
Apesar dessa perspectiva de Ogasawara, em defender a supremacia
do xintoísmo e não dos japoneses, por meio do qual o xintoísmo deveria
superar a condição de religião étnica, sugerimos que os santuários den-
tro e fora do Japão foram importantes locais onde circulou o habitus
nacionalista japonês. Entretanto, é difícil precisar até que ponto o Es-
tado japonês vislumbrava essas áreas como pontos de apoio para o
estabelecimento de um domínio. Conforme apontado, o caso de territó-
rios diretamente ocupados, como a Coreia, revela a atuação do Estado

75 “[…] were the result of forced hegemony of the mainland ‘Japanese nation’ upon others in the frontiers”.
108 • O espírito de Yamato

por intermédio desses santuários, mas, em regiões nas quais os santuá-


rios xintoístas foram construídos por conta dos imigrantes, percebemos
um cenário um pouco diferente, em que o habitus nacionalista existiu
com outros contornos.
Ao observarmos o caso do Havaí, por exemplo, podemos perceber
as relações entre o nacionalismo, o xintoísmo e as ressignificações ope-
radas a partir da situação de guerra. De acordo com Paul G. Gomes III
(2007), no Havaí o xintoísmo se tornou um “Kama’aina”, uma palavra
havaiana utilizada para designar pessoas ou coisas que não nasceram na
região, mas existem há um longo tempo, suficiente para desenvolver
uma profunda conexão local.
A imigração japonesa para o Havaí teve início oficial em 1885, e em
1897 surgiram os primeiros santuários xintoístas; entretanto, só após
1900 esses santuários passaram a contar com sacerdotes. Parte signifi-
cativa da história desses santuários foi registrada por Takakazu Maeda,
“[…] que foi um jornalista afiliado com a mais prestigiosa instituição de
ensino xintoísta no Japão, a Universidade de Kokugakuin” 76 (GOMES III,
2007, p. 1). Esse jornalista registrou a existência de 59 santuários antes
da guerra, com tamanhos variados e muitas vezes refletiam a existência
de filiais e confrarias religiosas espalhadas na ilha, ao longo da qual os
principais santuários criaram zonas de influências.
De uma maneira geral, o xintoísmo no Havaí foi desenvolvido em
torno das questões de benefícios diretos para a vida cotidiana, como cu-
ras, adivinhações, casamentos etc. Além disso, está intimamente

76 “[…] who is a journalist affiliated with the most prestigious Shinto educational institution in Japan,
Kokugakuin University”.
Leonardo Henrique Luiz • 109

conectado com a região do Japão de onde os imigrantes partiram. Na


prática, isso influenciou a própria organização dos santuários. Con-
forme aponta Gomes III, vários santuários possuíam uma deidade local
(ujigami – 氏神), que refletia a ligação regional de origem do imigrante.
Esse é um aspecto importante, pois os santuários deviam exercer o pa-
pel de identificação com o Japão. Inclusive eram os próprios indivíduos
que mantinham a estrutura em troca de proteção local. Nas palavras do
autor (GOMES III, 2007, p. 27):

Em uma passagem dando sua opinião [Maeda] sobre a propagação do Xin-


toísmo no Havaí, que ele atribui ao trabalho missionário, qualifica sua
declaração final com a ressalva de que os santuários foram sustentados pelo
sistema ujiko [pessoas sob a proteção da divindade local] e pela ‘simples fé’.
Esta importância não pode ser subestimada devido ao fato de que ujigami e
ujiko foram um dos principais marcadores de uma identidade regional no
Japão, a tal ponto que foram eles que definiram e unificaram a unidade da
comunidade em oposição à aldeia vizinha durante alguma disputa 77.

Ligado a isso, podemos perceber que os santuários não formavam


uma grande unidade coesa, pois o senso de diferença institucional se
sobrepunha ao pertencimento nacional. Apesar disso, Gomes III (2007,
p. 32) descreve um trabalho antropológico realizado em Koma, entre
1937-1938, em que na descrição de “uma típica casa japonesa” é possível

77 “In a passage giving his opinion [Maeda] on the spread of Shinto in Hawaii, which he attributes to missionary
work, qualifies his statemets at the end with the caveat that the shrines were sustained by the ujiko [people
under protection of local deity] system and ‘plain faith’. This importance cannot be underrated due to the fact
that ujigami and ujiko were one of the main markers of a binding regional identity in Japan, to the point that
they were what defined and unified the community unit in opposition to neighboring village during disputes”.
110 • O espírito de Yamato

encontrar objetos como o butsudan, o kamidana 神棚 78, além dos retratos


do imperador e da imperatriz. Isto é, mesmo existindo um nível de ên-
fase nos santuários deificados para os ujigami da região de origem, há
também elementos que remetem ao nacionalismo japonês mais amplo.
Observando a situação desses imigrantes podemos perceber trans-
formações significativas, nas quais a primeira geração construiu os
santuários visando à realização de necessidades cotidianas. Entretanto,
a gradual aproximação entre o xintoísmo e a narrativa nacionalista no
Japão suscitou o desenvolvimento de práticas voltadas ao patriotismo (a
manutenção dos retratos imperiais, por exemplo). Com o passar dos
anos, e o nascimento da segunda geração, surgiu a preocupação em es-
tabelecer compromissos com a sociedade americana (o Havaí se tornou
parte do território dos Estados Unidos em 1900); um desses primeiros
passos foi a elaboração de materiais em inglês pelos santuários xintoís-
tas. Parte desse movimento foi “[…] para responder às preocupações
sobre o Xintoísmo ser uma vanguarda do imperialismo japonês” 79 (GO-
MES III, 2007, p. 52). Dessa forma, os santuários passaram a buscar
atingir a comunidade mais ampla.
Um terceiro movimento ocorreu após o ataque a Pearl Harbor, no
qual rapidamente as comunidades passaram a rejeitar seus laços com a
cultura japonesa. De acordo com Gomes III (2007, p. 59), “Mesmo que a
vasta maioria dos Issei [primeira geração de imigrantes] se esforçassem

78 São os altares domésticos onde se faz o culto aos kami. Em seu interior é possível encontrar as imagens
imperiais e as representações dos kami do panteão xintoísta. Normalmente o kamidana fica no mesmo cômodo
que o butsudan (仏壇) - altar budista onde é realizado o culto aos ancestrais.
79 “[…] in order to address concerns about Shinto being a vanguard of Japanese imperialism.”
Leonardo Henrique Luiz • 111

para acostumar com a indumentária americana, aprender inglês e pro-


var sua lealdade à nação, era difícil para a maioria deles abandonar os
modos de pensamento culturalmente arraigados, modos de pensamento
parcialmente influenciados pelo Xintoísmo” 80, isto é, o modo de vida
americanizado não estava em consonância com o habitus aprendido e
partilhado. Como sugerido, esses valores não eram compartilhados ape-
nas nos santuários xintoístas, pois mesmo em outras organizações
religiosas, como a Seicho no Ie, o nacionalismo japonês também era
forte.
Gomes III cita uma líder local ligada à Seicho no Ie que atuou no
final e após a guerra. Essa líder era uma “mulher idosa”, sem filhos e
cujo marido tinha sido expatriado do Japão. Ela ocupou o papel deixado
pelos sacerdotes xintoístas e monges budistas que foram impedidos de
exercer suas atividades durante a guerra. Nas suas atividades religiosas,
oferecia habilidades de cura e de proteção aos filhos dos fiéis que luta-
vam na guerra. Segundo Gomes III (2007, p. 65), “Ao fazer sermões, ela
exortava seus seguidores a manterem o Yamato Damashii [Espírito Ja-
ponês] e que mantendo a crença na vitória do Japão, esta certamente
ocorreria. Vários panfletos em japonês foram distribuídos em reuniões,
incluindo alguns com fortes mensagens do Xintoísmo de Estado” 81 A
existência desse discurso é significativa, pois revela que para além dos
espaços dos santuários o habitus nacionalista estava presente de

80 “Even as the vast mayority of Issei strove to accustom themselves to American dress, learn English and prove
their loyalty to the nation, it was difficult for most of them to drop culturally engrained modes of thinking,
modes of thought partially influenced by Shinto.”
81 “When giving sermons, she exhorted her followers to maintain proper Yamato Damashii [Japanese Spirit]
and that by maintaining belief in Japan’s victory, it would surely occur. Various pamphlets from Japanese
sources were distributed at meetings, including some with strong State Shinto messages”.
112 • O espírito de Yamato

maneira não institucionalizada entre os imigrantes. Essa reflexão está


relacionada com a maneira que o próprio xintoísmo de Estado era en-
tendido na sociedade japonesa, isto é, como essas concepções foram
transformadas em práticas não religiosas, que deveriam ser realizadas
por todos, independentemente do credo particular.

XINTOÍSMO: UMA RELIGIÃO?

Todo esse quadro de legitimação do sistema imperial pela religião


e a profunda penetração do xintoísmo de Estado em todas as esferas da
vida dos japoneses (essencialmente na escola) é estranho ao aspecto oci-
dental/moderno, que separa religião de Estado. O que queremos
argumentar aqui é que para os japoneses o xintoísmo de Estado não era
considerado uma religião em um sentido tradicional, mas algo que
constituiu as concepções e práticas em termos de habitus. Apesar de
muitas vezes não ser evidente, essa é uma perspectiva que está presente
na maior parte da produção acadêmica sobre o xintoísmo de Estado,
como em Shoji (2008), Teeuwen e Scheid (2002), Benedict (1972) e Kita-
gawa (1990). Por exemplo, para Ruth Benedict (1972, p. 78), as práticas
do xintoísmo de Estado podem ser entendidas antes de tudo como um
ato patriótico, “[...] tal qual nos Estados Unidos a saudação à bandeira
[...]”. Dessa forma,

O Japão podia, portanto, exigi-lo de todos os cidadãos, sem violar o dogma


ocidental da liberdade religiosa mais do que os Estados Unidos ao demandar
a saudação à bandeira. Era um simples gesto de obediência. Por “não ser
religião”, o Japão podia ensiná-lo nas escolas sem arriscar-se à crítica
Leonardo Henrique Luiz • 113

ocidental. O xintó de Estado nas escolas torna-se a história do Japão desde


a era dos deuses e a veneração do Imperador, “sempiterno governante”. Era
sustentado e regulamentado pelo Estado (BENEDICT, 1972, p. 78).

Sendo um ato patriótico, o xintoísmo de Estado deveria ser reali-


zado por todos, independentemente da religião individual. Os demais
campos religiosos, desde o budismo, o cristianismo, até as “Seitas xin-
toístas” “[...] eram entregue[s] à iniciativa individual [...]” (BENEDICT,
1972, p. 78). Isso é fundamentalmente a diferença entre as “Seitas xinto-
ístas” do “Xintoísmo de Santuário”, pois “Os sacerdotes do xintó do
Estado – já que não constituía uma religião – eram proibidos por lei de
ensinar qualquer dogma e não podia haver ofícios de igreja à maneira
ocidental” (BENEDICT, 1972, p. 79). Podemos perceber que essa distinção
só é feita a partir do entendimento ocidental de religião, que leva em
consideração apenas as instalações como santuários, o quadro de sacer-
dotes e os ritos. Entretanto, segundo Shimazono (2005), o Estado
xintoísta deve ser visto em um sentido mais amplo, abrangendo os as-
pectos constituintes da nacionalidade japonesa.

[...] O Estado xintoísta foi uma expressão do nacionalismo que se desenvol-


veu em muitos países no mundo nos séculos XIX e XX. O que é entendido
como Sistema Imperial Nacionalista do ponto de vista da história política
ou da história política ideológica, pode ser visto de um ângulo diferente da
história religiosa como o Estado xintoísta. (SHIMAZONO, 2005, p. 1092) 82.

82 “[...] State Shinto is one of the expressions of nationalism that developed in many countries of the world in
the nineteenth and twentieth centuries. What is understood as Emperor System Nationalism from the
standpoint of political history or political ideological history can be seen from a different angle of religious
history to be State Shinto”.
114 • O espírito de Yamato

Nesse ponto entramos em um debate teórico, no qual é necessário


pensar a definição de religião. No presente livro, sugerimos uma defi-
nição inicial de religião com base nas discussões de Mircea Eliade (2010),
que conceitua religião pela ligação entre o sagrado e o profano. Apesar
de Eliade realizar uma discussão fenomenológica da religião, defende-
mos que a relação entre sagrado e profano deva ser operada em termos
de historicidade. Dessa forma, entendemos que a fronteira entre o sa-
grado e profano é móvel de acordo com o tempo e o espaço. Da mesma
forma, os indivíduos e os grupos ressignificam o tempo e o espaço, atri-
buindo-lhes a qualidade de sagrado ou profano, isto é, o significado de
“religioso” não está no objeto/lugar, mas pela atribuição da representa-
ção religiosa.
De acordo com Eliade, o sagrado pode ser definido como aquilo que
contrasta com o profano, sendo essa díade não dicotômica, mas ambi-
valente. Por meio dessa definição, a abrangência do termo religião se
torna significativa. Além disso, ela abre espaço para o estudo das práti-
cas não institucionais sem passar por um critério valorativo. Por outro
lado, é preciso certo cuidado com uma possível hipertrofia do religioso
na argumentação de Eliade porque, segundo o autor, há certos lugares
que adquirem (para cada indivíduo/grupo) valores qualitativamente di-
ferentes:

Todos esses locais guardam, mesmo para o homem mais francamente não-
religioso, uma qualidade excepcional, “única” são os “lugares sagrados” do
seu universo privado, como se neles um ser não-religioso tivesse tido a re-
velação de uma outra realidade, diferente daquela de que participa em sua
existência cotidiana (ELIADE, 2010, p. 28).
Leonardo Henrique Luiz • 115

Dessa forma, se os espaços a que o homem não religioso e o religi-


oso atribuem valores de sagrados possuem sentidos parecidos, a
distinção entre eles acaba se perdendo conceitualmente. Por isso, de-
fendemos que as crenças podem ser definidas pela relação entre
sagrado e profano, desde que historicamente contextualizada. Por outro
lado, com a institucionalização religiosa e, portanto, a formação de um
campo, outros elementos são agregados ao conceito. Esse fenômeno
torna o modo de atuação da religião institucionalizada diferente da não
institucionalizada, pois com a formação de especialistas que possuem o
monopólio legítimo dos bens de salvação, com o estabelecimento de ri-
tos mais ou menos definidos e com a criação de santuários/templos,
pode-se dizer que a crença fragmentada se torna teologia coerente do
ponto de vista religioso. No presente livro, defendemos que o xintoísmo
de Estado foi entendido pelos japoneses a partir da Era Meiji como per-
tencente à esfera do sagrado que alcançou um patamar de
institucionalização.
Nesse sentido, adotamos a conceituação de campo religioso pro-
posta por Pierre Bourdieu (2005) para o caso do xintoísmo de Estado, em
que a religião atuou como legitimadora da ordem social formando um
campo relativamente estabelecido. Assim, o discurso nacionalista japo-
nês se uniu ao discurso da autoridade religiosa, de base xintoísta, e foi
reproduzido nos ambientes escolares por meio do Kyōiku Chokugo. Dessa
forma, “É apropriado entender o ‘Xintoísmo de Santuário’ como parte
do Estado xintoísta que foi controlada pelo Estado e que se relacionava
116 • O espírito de Yamato

apenas com um aspecto específico do Estado xintoísta [...]” 83 (SHIMA-


ZONO, 2009, p. 1094).
Como o xintoísmo de Estado se relacionou principalmente com o
discurso nacionalista e com a legitimação da nação, outros aspectos da
vida cotidiana foram deixados de lado, e

[…] O Estado xintoísta não teve competência e recursos simbólicos sufici-


entes para responder às necessidades espirituais individuais das pessoas.
Mesmo as crianças ensinadas com os princípios do xintoísmo de Estado nas
escolas, mais tarde, encontraram outras religiões e seitas em busca de re-
cursos para sua vida espiritual. Nesse sentido, o Estado xintoísta e outras
religiões coexistiram com base em uma relação de divisões de papéis (SHI-
MAZONO, 2009, p. 1094) 84.

Dessa forma, ao legitimar o discurso nacional pela crença, o xinto-


ísmo de Estado atuou como um discurso religioso em um aspecto
seletivo da vida japonesa. Essa religião/nacionalismo foi complemen-
tada por outras práticas religiosas, xintoístas ou não, que atuavam, por
exemplo, na cura de doenças, em cerimônias de casamento, em ritos fu-
nerários, etc. Ao aproximarmos essa discussão teórica do caso japonês,
o conceito de religião se torna mais delimitado.
Para uma abordagem mais profunda, devemos nos perguntar qual
o entendimento a palavra “religião” tem no próprio idioma japonês. De
acordo com Pereira (2013, p. 100),

83 “It is appropriate to understand ‘Shrine Shinto’ as a part of State Shinto that was controlled by the state and
that related only to a specific aspect of the State Shinto [...]”
84 “[...] State Shinto did not have sufficient competence and symbolic resources to respond to people's
individual spiritual needs. Even children indoctrinated with the principles of State Shinto at school would later
find other religions and sects to have more resources to turn to for their spiritual life. In this sense, State Shinto
and other religions coexisted based on a relation of a kind of division of roles”.
Leonardo Henrique Luiz • 117

Esta palavra expressa um conceito de origem ocidental judaico-cristã, para


a qual os japoneses tiveram que criar um neologismo no final do século XIX,
simplesmente porque ainda não possuíam tal conceito em sua cultura. Com
este propósito, juntaram dois ideogramas, shû (宗) e kyô (教), formando a
palavra shûkyô 宗教 como correspondente do vocábulo “religião”. 宗 (shû, sô,
mune) é entendido como “religião, seita, denominação (religiosa)”; mas
também significa “o ponto principal, essência, origem”. Por sua vez, 教 (kyô,
oshie) também é um ideograma polissêmico abrangendo a ideia de “ensina-
mento, fé, lição, preceito, doutrina”. Originalmente, no entanto, shûkyô se
relacionava com “princípios e ensinamentos” (do Budismo, em particular).

Ou seja, se comparado ao significado ocidental, há uma falta de ter-


mos que corresponda ao conceito de religião no idioma japonês. Dessa
forma, existe certa indefinição, inclusive entre os japoneses (SHIMA-
ZONO, 2009), no uso do conceito de religião para o Japão. Além disso, no
caso do xintoísmo e principalmente do Estado xintoísta, utilizar esses
termos sem uma definição clara dificulta o processo de análise.
Conforme aponta Shimazono (2009), parte dessa confusão está na
existência de, pelo menos, duas definições dicotômicas para o conceito
de Estado xintoísta. A primeira definição é baseada na “Diretiva Xinto-
ísta” emitida pelas forças Aliadas em 1945. Esse documento estabeleceu
que

O termo Estado xintoísta, na acepção desta diretiva, refere-se ao ramo do


xintoísmo (Kokka Shinto ou Jinja Shinto) que, através dos atos oficiais do
governo japonês, foi diferenciado da religião xintoísta (Shusha Shinto ou
Kyoha Shinto) e foi classificado como um culto nacional não-religioso
118 • O espírito de Yamato

conhecido como Estado xintoísta, Xintoísmo Nacional ou Xintoísmo de San-


tuário 85 (SHIMAZONO, 2009, p. 1080).

Essa interpretação, que estabeleceu um vínculo entre o Estado e o


“Xintoísmo de Santuário da pre-guerra”, é chamada por Shimazono
(2009, p. 1080) de “uso restrito”. Por outro lado, o autor chama atenção
para o “uso amplo” do termo que apareceu nesse mesmo documento, no
qual “Xintoísmo de Estado é entendido como incluindo todos os esforços
do governo que utilizaram as concepções e práticas xintoístas como pi-
lares da integração nacional desde a Restauração Meiji (1868) até o fim
da Segunda Guerra Mundial (1945)” 86 (SHIMAZONO, 2009, p. 1080). As-
sim, no mesmo documento surgem duas interpretações ambíguas, na
qual a primeira define a existência de um xintoísmo de Estado, e outro
religioso ou não nacionalista; já na segunda definição o Estado xintoísta
é visto como algo que englobou toda a sociedade japonesa e, portanto,
todas as expressões do xintoísmo.
De acordo com Shimazono, as várias interpretações acadêmicas se-
guem uma dessas duas definições. Para a definição de sentido restrito,
a formação do Estado xintoísta ocorreu com a separação do “Xintoísmo
de Santuário” das outras organizações religiosas e com o estabeleci-
mento, em 1900, do Departamento dos Santuários Xintoístas, enquanto
as outras religiões eram legadas ao “Departamento da Religião dentro

85 “The term State Shinto within the meaning of this directive will refer to that branch of Shinto (Kokka Shinto
or Jinja Shinto) which by official acts of the Japanese government has been differentiated from the religion of
Sect Shinto (Shusha Shinto or Kyoha Shinto) and has been classified a non-religious national cult commonly
known as State Shinto, National Shinto or Shrine Shinto”.
86 “State Shinto is understood to include the whole efforts of the government that utilized the Shinto thought
and practice as the pillar for national integration from the Meiji Restoration (1868) to end of World War II (1945)”.
Leonardo Henrique Luiz • 119

do Ministério dos Assuntos Internos” (SHIMAZONO, 2009, p. 1081).


Dessa forma, haveria duas instâncias administrativas que diferencia-
vam os santuários xintoístas das outras religiões. Nessa interpretação,
o xintoísmo de Estado só passou a existir institucionalmente, pelo me-
nos, a partir de 1900.
No outro lado, a definição do Estado xintoísta no sentido amplo
teve como principal referência os trabalhos de Murakami Shigeyoshi,
citado no tópico anterior, que

[…] considera o Xintoísmo de Estado como sendo consistente do Xintoísmo


de Santuário, do Xintoísmo da Casa Imperial, e da Doutrina Kokutai (Política
Nacional) que define o Japão como um único sistema desde a antiguidade
baseado no culto Imperial. Ele também assume que esse sistema se infiltrou
na consciência de cada pessoa 87 (SHIMAZONO, 2009, p. 1083).

Como apontado, essa interpretação de Murakami é criticada como


sendo arbitrária, pois define o fenômeno como algo coerente. Além
disso, é controverso definir até que ponto os indivíduos assumiram es-
sas ideias sem resistências. Por outro lado, usar o termo xintoísmo de
Estado em um sentido restrito exclui uma série de eventos que tiveram
um papel importante no desenvolvimento do processo de modernização
japonesa. Dessa forma, usaremos a proposta sugerida por Shimazono
(2009), que utiliza o conceito de Estado xintoísta em um sentido amplo,
mas reconhece os limites desse uso, assim como os movimentos de
aproximação e distanciamentos do Estado com o xintoísmo.

87 “[...] considers State Shinto to consist of Shrine Shinto, Imperial House Shinto, and the Kokutai (National Polity)
Doctrine which advocates that Japan has a unique state system from ancient times based upon Emperor
worship. He also assumes that this system has infiltrated into every person's consciousness”.
120 • O espírito de Yamato

Ligado a esse problema de qual definição de Estado xintoísta usar,


está a questão de qual a definição de religião a análise está partindo. No
caso do sentido restrito, “religião” é entendida principalmente em ter-
mos estruturais de santuários e sacerdotes.

A população japonesa da Restauração Meiji ao período inicial da Era Meiji,


entretanto, não considerou a estrutura social e a ordem de pensamento
apenas baseadas em tal conceito de “religião”. […] O Xintoísmo, o Confucio-
nismo e o Budismo têm sido considerados como os “Três Ensinamentos
(Sankyo)” do Japão por um longo tempo. Mas é questionável se essas religi-
ões foram consideradas três corpos de ensinamentos equiparados,
respectivamente, com organizações religiosas diferentes. Como o termo ja-
ponês shukyo, traduzido como “religião”, ganhou um conceito institucional,
tentativas de usar outras termos como chikyo (ensinamento), kyogaku (cul-
tivo) e Koudou (o benevolente Caminho Imperial) surgiram. 88 (SHIMAZONO,
2009, p. 1085-1086).

Dessa forma, como argumentado tanto do ponto de vista teórico


como da perspectiva específica do caso japonês, defendemos o uso do
conceito de religião e de Estado xintoísta em sentido amplo. Assim, con-
sidera-se que o Estado xintoísta, como religião, atuou de maneira ampla
na sociedade japonesa, criando uma série de mecanismos que legitima-
ram o discurso no qual o imperador era considerado um ser sagrado, o
Japão uma terra escolhida e, consequentemente, os japoneses

88 “The Japanese populace from the Meiji Restoration to the early period of the Meiji Era, however, did not
consider the social structure and the order of thought based only on such a concept of ‘religion’. [...] Shinto,
Confucianism, and Buddhism have been considered as the ‘Three Teachings (Sankyo)’ in Japan for a long time.
But it is questionable if these religions have been considered to be three different bodies of teachings equipped
with religious organizations, respectively. As the Japanese term shukyo as a translation for ‘religion’, gained an
institutional concept, attempts to use other terms such as chikyo (indoctrination), kyogaku (cultivation), and
Koudou (the benevolent Imperial way) emerged”.
Leonardo Henrique Luiz • 121

possuiriam elementos que os tornavam únicos, e, em alguns casos mais


radicais, superiores. Toda essa estrutura formou o sistema imperial e
enraizou uma série de práticas que foram socialmente reproduzidas
como habitus (BOURDIEU, 1989) entre os indivíduos.
No entanto, conforme apontado, surgiram vários tipos de resistên-
cia a essa posição oficial, variando desde reinterpretações, também
nacionalistas, propondo outras formas educacionais, até críticas diretas
a todo o sistema imperial. Conforme mostra André (2011), ao discutir as
ideias de Tatsuzō Ishikawa 89,

As ideias de Ishikawa indicam que a devoção absoluta ao imperador, lugar


comum no que se relaciona às obras ocidentais sobre o Japão, não pode ser
generalizada. Vozes dissonantes podem ser encontradas nos momentos de
mais forte autoritarismo da história japonesa, inclusive no movimento so-
cialista (ANDRÉ, 2011, p. 63).

Essas vozes dissonantes se tornaram mais claras ao analisar a


aproximação entre o xintoísmo de Estado com a educação, por meio da
qual sugerimos que a criação de um edito como o Kyōiku Chokugo não foi
uma diretiva unilateralmente obedecida. Esse esforço revela que é pos-
sível argumentar como o xintoísmo se tornou parte do habitus dos
japoneses antes da imigração.
Ao longo do capítulo, fizemos um panorama acerca da produção
acadêmica do xintoísmo, mostrando os principais autores e interpreta-
ções sobre a questão. Em seguida, buscamos evidenciar as aproximações

89 Literato japonês cujo estilo é marcado por romances realistas. Entre suas obras está o romance Sôbô, de
1933, que apresenta as diversas críticas ao processo imigratório.
122 • O espírito de Yamato

entre o xintoísmo e o Estado, dando destaque à presença da religião nos


processos imperialistas e na imigração. Argumentamos como a ligação
entre esses fenômenos foi realizada por meio do xintoísmo como dis-
curso e prática não religiosa, portanto, deveria ser realizado por todos
os japoneses, isto é, formando o xintoísmo de Estado. Por fim, mostra-
mos que esse xintoísmo de Estado encontrou possibilidades de
reprodução em vários lugares da sociedade japonesa e foi incorporado
em termos de habitus. É justamente nessa conjuntura, visando estabe-
lecer e fortalecer o discurso oficial em torno da organização japonesa,
que dentro do campo educacional o Kyōiku Chokugo foi criado.
3
EDUCAÇÃO NO IMPÉRIO JAPONÊS

Tendo em vista que entendemos as transformações da Era Meiji


como um processo com diversas novidades na organização política sob
a forma do discurso da tradição xintoísta, o presente capítulo busca dis-
cutir como essa construção foi politicamente ajustada para ser
reproduzida no discurso escolar. Como apontado, o processo de tornar-
se moderno passou pela transformação de camponeses em japoneses.
Esse fenômeno teve na educação compulsória a forma mais eficaz de
propagar uma ideia legítima de nação e identidade nacional.
Entretanto, o estabelecimento de um discurso que buscou refletir
sobre a consciência nacional não foi um processo linear, pois existiram
outras versões que lutaram por espaço político. Esses discursos foram
suplantados em 1890 com a elaboração do Kyōiku Chokugo, por intermé-
dio do qual apresentou a versão oficial da identidade japonesa, cujo
cerne foi o patriotismo de base xintoísta. Entretanto, mesmo a publica-
ção do edito não eliminou por completo os outros projetos políticos para
a educação/nação, pois após o lançamento do edito diversos movimen-
tos de resistência e hesitação foram visíveis.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO KYŌIKU CHOKUGO

Conforme aponta Mark E. Lincicome (1999), o Japão é citado por


diversos estudiosos como o caso exemplar da formação e disseminação
124 • O espírito de Yamato

de uma consciência nacional que não existia antes. Geralmente, o perí-


odo de 1868 a 1890 é tido como o momento do estabelecimento de uma
revivificada identidade nacional, isso a partir da fórmula: imperador
(centro do nacionalismo) somado à propaganda pelo sistema escolar.
Essa posição, de modo geral, cita o Kyōiku Chokugo, ligando-o ao empre-
endimento imperialista após a vitória do Japão na Primeira Guerra
Sino-japonesa (1894-95). Entretanto, conforme argumenta Lincicome
(1999, p. 339),

O problema com essa consideração é que ela reifica o nacionalismo, a edu-


cação e o estado, e considera a relação entre eles como estática e imutável.
Como resultado, tende a ignorar, subestimar ou descartar evidências de
mudanças do status quo que supostamente foi estabelecido no início da dé-
cada de 1890 90.

O autor não pretende refutar essa tese “unânime”, de acordo com


o próprio autor, de que o Japão controlou e estendeu seu domínio sobre
a educação de 1890 a 1945 como forma de obter suporte ideológico à
guerra do Pacífico, mas sim evidenciar os múltiplos programas educa-
cionais existentes, e principalmente, que a proposta de educação
nacional contida no Kyōiku Chokugo sofreu resistências. Para nossa in-
vestigação, tal discussão auxilia a questionar o impacto do discurso
oficial proposto pelos ideólogos Meiji, pois a perspectiva de Lincicome
busca ampliar o entendimento de nacionalismo e olhar as disputas de
diferentes grupos em torno da definição legítima da nação.

90 “The problem with this account is that it reifies nationalism, education, and the state, and treats the
relationships among them as static and unchanging. As a result, it tends to overlook, downplay, or dismiss
evidence of challenges to the status quo that was allegedly established by the early 1890s”.
Leonardo Henrique Luiz • 125

Essas resistências são analisadas pelo autor no movimento Kokusai


Kyōiku Undo (Movimento de Educação Internacional, surgiu entre o fim
da Guerra Russo-japonesa e o Incidente da Manchúria: 1905-1931), que
propunha menos tempo de ensino em torno da lealdade e patriotismo
(dentro e fora da sala de aula), e um novo nacionalismo (diferente do
defendido pelo Estado). Isto é, defendiam uma educação liberal, na qual
se privilegiava as liberdades, talentos e habilidades individuais, em vez
do currículo padronizado. Os defensores desse movimento (professores,
políticos, oficiais de educação e intelectuais) se viam também como sú-
ditos do Estado e fiéis ao imperador, e lhes interessava a preservação
dessa instituição, ou seja, eram reformadores do campo da educação, e
não revolucionários (LINCICOME, 1999).
Para entender de maneira clara como não existiu um domínio
completo do sistema de ensino, é interessante observar o processo de
elaboração do Kyōiku Chokugo. Um dos autores que discute o processo
de formação do edito de forma detalhada é Benjamin Duke (2009). Em-
bora esse texto seja bastante criticado pela forma de análise, o
levantamento do autor sobre os detalhes bibliográficos dos envolvidos
na composição do edito são substanciais. Em uma resenha crítica do li-
vro, Brian Platt (2009, p. 1287-1288) aponta que

Esses detalhes constituem a força do livro. Eles não apenas explicam os in-
divíduos-chave que participaram nos debates sobre a política educacional,
mas também eles demonstraram as maneiras pelas quais as conexões
126 • O espírito de Yamato

pessoais entre as elites facilitaram a circulação global de ideias e institui-


ções modernas no século XIX 91.

Apesar disso, Platt considera que o autor falhou ao não consultar


“[...] os estudiosos do seu campo [...]” (2009, p. 1288). Nesse mesmo sen-
tido argumentativo, outra resenha crítica ao trabalho de Duke foi feita
por Lincicome (2010); de forma mais concisa, o autor argumenta que,

De fato, os problemas que afligem a narrativa de Duke são pressagiados em


sua decisão de dedicar o livro “Aos samurais japoneses que levaram sua na-
ção à era moderna”, uma linha que cheira à narrativa heroica que dominou
uma geração anterior de pesquisas em inglês, cobrindo a transformação do
Japão de país insular e feudal em um Estado-nação moderno a um poder
mundial em desenvolvido 92 (LINCICOME, 2010, p. 456).

Ao longo dessa resenha, assim como na realizada por Platt, Lin-


cicome critica a falta de referências aos trabalhos anteriores em língua
inglesa (grande parte das referências de Duke são em japonês), além de
apontar pontos específicos que seriam equivocados na interpretação de
Duke. Para o presente livro, atentaremos para a discussão sobre o
Kyōiku Chokugo; nesse sentido, Lincicome, ao analisar a interpretação
de Duke do edito, sugere que

91 “These details constitute the strength of the book. Not only do they flesh out the key individuals who
participated in the debates on educational policy, but also they demonstrate the ways in which personal
connections among elites facilitated the global circulation of modern ideas and institutions in the nineteenth
century”.
92 “Indeed, the problems that plague Duke's narrative are presaged in his decision to dedicate the book ‘To the
Japanese samurai who led their nation into the modern era,’ a line that smacks of the heroic narrative that
dominated an earlier generation of English-language surveys covering Japan's transformation from insular,
feudal backwater to modern nation-state and budding world power”.
Leonardo Henrique Luiz • 127

[…] pode-se dizer que Duke se afasta da narrativa padrão em sua interpre-
tação bondosa do edito – não, como frequentemente se afirma, como um
precursor do fascismo e ultranacionalismo japonês, mas como a “conver-
gência de ideias entre modernistas e tradicionalistas” e a síntese da “Ciência
Ocidental e da moralidade Oriental no século XX” (pp. 348-49) – e em seu
relato mais detalhado dos bastidores de como a versão final do edito tomou
forma 93 (LINCICOME, 2010, p. 459).

Nossa interpretação do Kyōiku Chokugo será apresentada detalha-


damente no tópico seguinte, mas, por enquanto, é necessário
compreender que seguiremos partes específicas dessas interpretações
divergentes. De toda forma, apesar das divergências, os autores concor-
dam que a publicação do edito significou a “finalização” de um projeto
político para o Japão que vinha sendo construído ao longo do processo
de “tornar-se moderno”, tendo em vista que a educação pode ser enten-
dida como a forma de representar e propagar legitimamente um
discurso de identidade sobre a nação. Até o estabelecimento desse dis-
curso oficial, houve diversas disputas de poder. De acordo com Duke
(2009), durante a década de 1870, inicialmente houve uma influência
americana sobre as possibilidades educacionais, mas nenhum plano
educacional ocidental era entendido como capaz de ser adequado para
o Japão. Isso mudou ao longo da década de 1880, quando intelectuais e
políticos da Era Meiji começaram a recorrer aos modelos alemães. Além
disso, em paralelo a essas influências externas, grupos nacionalistas

93 “[...] it may be said that Duke departs from the standard narrative is in his more charitable interpretation of
the rescript – not, as is often claimed, as harbinger of Japanese fascism and ultranationalism but as the
'convergence of ideas from the modernists and the traditionalists' and a synthesis of 'Western Science and
Eastern morality for the twentieth century' (pp. 348-49) - and in his more detailed behind-the-scenes account
of how the final version of the rescript took shape”.
128 • O espírito de Yamato

enfatizaram a necessidade de organizar o sistema escolar de acordo com


os padrões da cultura japonesa, em termos de uma moral confucionista.
Essas diferentes possibilidades de planos para a educação foram
representadas por políticos que ocuparam importantes cargos no go-
verno Meiji. Duke, por exemplo, estabelece o protagonismo dessas
posições com base nas negociações entre dois indivíduos: por um lado,
Motoda Nagazane (1818-1891), que serviu como “orientador” do Impera-
dor Meiji (especialista no pensamento confucionista) e, portanto,
representante da “Casa Imperial” (DUKE, 2009, p. 349); e, por outro lado,
Inoue Kowashi (1843-1895), a quem é atribuído a autoria da Constituição
Meiji de 1889 e do próprio Kyōiku Chokugo em 1890, representando as
influências alemãs.
Promovendo os debates sobre a educação, em 1879 Nagazane es-
creveu um documento chamado “A vontade imperial na educação”, no
qual respondia à excessiva ocidentalização da educação japonesa du-
rante a década de 1870. Esse texto apresenta uma versão da moral
confucionista para a educação, e Duke (2009, p. 349) o interpreta como
“[...] a versão inicial do ‘Edito Imperial de Educação’ de 1890” 94. Um
grande opositor da política educacional de Motoda Nagazane foi o Mi-
nistro da Educação entre 1886 e 1889, Mori Arinori (1847-1889),
apontado por Duke como um dos principais responsáveis por ocidenta-
lizar a educação japonesa. Há inclusive um episódio bastante
significativo narrado pelo autor 95 (DUKE, 2009, p. 350), no qual esses

94 “[…] the initial version of ‘The Imperial Rescript on Education’ of 1890”.


95 A descrição de Duke é feita com base na obra de Hebert Passin, Society and education in Japan, de 1965.
Passin narra esse evento “[...] conforme relatado pelo Secretário-chefe Yoshii Tomomi, da Casa Imperial, que
Leonardo Henrique Luiz • 129

dois políticos discutem a relação entre “[…] a educação japonesa e a ins-


tituição imperial no mundo moderno” 96. Nessa discussão, Mori defende
que “até agora o imperador não estava diretamente relacionado à edu-
cação [...]” 97; no entanto, no episódio, essa visão foi contestada por
Yoshii Tōmomi e Motoda, que lembraram das visitas do Imperador Meiji
às escolas, das quais ele saiu insatisfeito ao ver que os alunos não con-
seguiam explicar, em japonês, o que eles estavam estudando nos livros
ocidentais. Além disso,

Com base em suas observações em sala de aula, de acordo com Motoda, o


imperador concluiu que a razão orientadora da educação deveria ser chukun
aikoku “lealdade e amor ao país”. A implicação disso foi certamente enten-
dida por ambas as partes que isso significava lealdade ao imperador. Sem
dúvidas, isso foi pretendido como uma crítica à Era Tanaka Fujimaro [Vice-
Ministro da Educação em 1874], quando o novo currículo escolar foi forte-
mente dedicado à adoção da cultura e tecnologia ocidentais e negligenciava
a cultura e costumes japoneses 98 (DUKE, 2009, p. 350, grifos no original).

Essa narrativa dos eventos é significativa, pois ao enfatizar a pre-


sença do imperador no debate o autor dá a entender que o próprio
Imperador Meiji teve um papel ativo nas negociações políticas. Em 1888,
o cenário para esse campo de disputas alcançou um novo patamar, pois

também estava presente [...]”. No original: “[...] as reported by Chief Secretary Yoshii Tōmomi from the Imperial
Household who was also in attendance [...]” (DUKE, 2009, p. 350).
96 “[...] Japanese education and the imperial institution in the modern world”.
97 “that up to now the emperor had not been directly related to education [...]”
98 “On the basis of his classroom observations, according to Motoda, the emperor concluded that the guiding
motive in education should be chukun aikoku, ‘loyalty and love of country’. The implication was certainly
understood by both parties that this meant loyalty to the emperor. Without doubt this was intended as a
criticism of the Tanaka Fujimaro [Vice-Ministro da Educação em 1874] era, when the new school curriculum was
overwhelmingly devoted to the adoption of western culture and technology to the perceived neglect of
Japanese culture and customs” (grifos no original).
130 • O espírito de Yamato

o Primeiro-Ministro Ito Hirobumi (1841-1909) foi substituído, e seu lu-


gar é assumido pelo general Yamagata Aritomo; além disso, em 1889
Mori Arinori foi assassinado 99. Essas constantes trocas de políticos cri-
aram espaços para projetos educacionais alternativos.
Nesse cenário, a preparação do Kyōiku Chokugo recebe atenção de
cinco figuras: “Yamagata Arimoto, o primeiro-ministro; Inoue Kowashi,
oficial sênior do governo e autor da Constituição Meiji de 1889; Yoshi-
kawa Akimasa, ministro da educação; e Motoda Nagazane, o mais antigo
tutor do imperador, estavam todos profundamente envolvidos no pro-
cesso” 100 (DUKE, 2009, p. 352), além das supostas influências do
imperador “por trás da cena”.
De acordo com Duke, o novo Primeiro-Ministro foi um dos princi-
pais entusiastas de uma reforma moral na educação com base nos
princípios da cultura japonesa. Além disso, “Yamagata recordou em suas
memórias que o imperador havia pessoalmente pedido ao governo que
fortalecesse a educação moral” 101 (DUKE, 2009, p. 353). Mais uma vez,

99 O motivo do assassinato é revelador das tensões da época. Mori era abertamente cristão e defendia os
valores do cristianismo para uma educação mais próxima do Ocidente. Ver, por exemplo, a citação de um
trecho do prefácio de um livro didático feito por Mori em 1888 (DUKE, 2009). Sobre o motivo do assassinato:
“Uma carta escrita pelo assassino revelou o motivo. Em um conhecido acidente, Mori teria negligenciado os
costumes no Santuário de Ise, sagrado na crença xintoísta e intimamente relacionado com a tradição imperial.
O Japan Weekly Mail relatou que Mori violou o procedimento aceito de ‘entrando no Santuário principal sem
remover seus sapatos e erguendo uma cortina sagrada com sua bengala’. Independente da veracidade do
relato dos eventos, o assassino de Mori interpretou o relato como uma afronta ao imperador”. No original: “A
letter written by the killer revealed the motive. In a well-known incident, Mori had reportedly disregarded
custom at the Ise Shrine sacred to the Shinto belief that is intimately related to the imperial tradition. The Japan
Weekly Mail reported that Mori violated accepted procedure by ‘entering the principal Shrine without removing
his shoes and by raising a sacred curtain with his cane.’ Regardless of the veracity of the accounts of the event,
the assassin interpreted Mori’s reported actions as an affront to the emperor” (DUKE, 2009, p. 345).
100 “Yamagata Arimoto, the prime minister; Inoue Kowashi, senior government official and author of the Meiji
Constitutions of 1889; Yoshikawa Akimasa, minister of education; and Motoda Nagazane, elder tutor to the
emperor were all deeply involved in the process”.
101 “Yamagata recalled in his memoirs that the emperor had personally urged the government to strengthen
morals education”.
Leonardo Henrique Luiz • 131

aparece a figura do imperador ativo, mas é difícil saber exatamente o


que o ele pensava e fazia. Várias pessoas falam em nome dele, mas ele
mesmo não fala ou, pelo menos, não produziu documentos, apesar do
Kyōiku Chokugo ser assinado com seu nome.
Essa é uma grande polêmica, que reflete também no debate sobre
a culpabilidade da instituição imperial nos processos imperialistas,
principalmente no caso do imperador Hirohito (conhecido como Impe-
rador Showa) na medida em que ele era o representante imperial no
final da Segunda Guerra Mundial. Apesar de ter sobressaído a imagem
de que os militares manipularam o imperador, em vários momentos da
sua argumentação Igarashi (2011, p. 104) apresenta alegações de que Hi-
rohito atuou ativamente, a começar que “Ele estava ciente da
importância dos EUA para protegê-lo do Julgamento de Tóquio (Tribu-
nal Militar e Internacional para o Extremo Oriente)”. Igarashi
argumenta que uma das formas de apagar a imagem ativa do imperador
foram as destruições das evidências: “Na ausência de evidência material
– muitos documentos-chave foram destruídos antes da chegada das
Forças de Ocupação Americanas –, não foi difícil corroborar a teoria de
que o Imperador fora um monarca amante da paz e da constituição, uma
marionete para os militares japoneses” (IGARASHI, 2011, p. 104).
Duke argumenta que Yoshikawa Akimasa foi apontado como Mi-
nistro da Educação justamente para elaborar o edito. Além disso, Inoue
Kowashi passou a trocar correspondências com o Primeiro-Ministro,
nas quais
132 • O espírito de Yamato

Ele argumentou que um “Edito Imperial” não deveria semear as controvér-


sias religiosas, apoiando ou criticando qualquer religião em particular. Nem
deveria ter um viés político a favor de qualquer partido. Além disso, não
deveria indicar um viés em direção ao Ocidente ou Oriente. Em vez disso,
um edito imperial deveria incorporar os desejos do imperador, refletidos
em uma ampla perspectiva 102 (DUKE, 2009, p. 356).

É interessante notar de que forma a vontade imperial não era vista


como religiosa ou política, apesar das claras justificativas do xintoísmo
à figura do imperador, portanto refletiria a vontade nacional acima de
interesses particulares. Após essas trocas de correspondências, foi atri-
buída a Inoue a responsabilidade de escrever o edito. Reconhecendo a
importância e a influência de Motoda Nagazane, Inoue passa a trocar
cartas com ele. Essas correspondências entre Motoda e Inoue foram
analisadas por Kaigo Tokiomi, segundo o qual há 33 versões do edito,
com revisões, críticas, pequenas alterações etc., e o texto final é apre-
sentado em 1890 e aprovado pelo Primeiro-Ministro. Duke considera
essa atuação conjunta de Motoda e Inoue como representação da junção
tanto dos aspectos “tradicionais” do Oriente quanto dos “modernos” do
Ocidente, que estão presentes no Kyōiku Chokugo. Mas, mesmo Inoue
Kowashi tendo sido considerado o autor, Duke enfatiza: “A evidência es-
crita sobrevivente indica que Motoda Nagaze era, em essência, o
original autor do ‘Edito Imperial de Educação’ de 1890. Em outras

102 “He argued that an ‘Imperial Rescript’ should not sow the seeds of religious controversy by supporting or
criticizing any particular religion. Nor should it have a political bias favoring any party. In addition, it should not
indicate a bias toward East or West. Rather, an imperial edict must embody the emperor's desires, reflecting a
broad prospective”.
Leonardo Henrique Luiz • 133

palavras, embora Inoue fosse o autor do ‘Edito’, Motoda era o mentor


por trás dele” 103 (DUKE, 2009, p. 362). 104
Assim como Duke, Klaus (2016) considera que o fato do edito ter
sido escrito pelo mesmo autor da Constituição Meiji revela como os dois
documentos atuaram de forma conjunta. Será mostrado na análise do
conteúdo do edito, inclusive, que há a referência direta à Constituição
Imperial Japonesa. Desse modo, Klaus (2016, p. 206) defende que a Cons-
tituição Meiji se situou entre os polos de interesses “[…] da ideologia
xintoísta da terra dos deuses e do pensamento liberal contemporâneo
através da lei constitucional” 105.
Nesse ponto, a interpretação de Duke e Klaus se distancia um
pouco da feita por Lincicome. Para esse autor, foi principalmente pela
educação que o xintoísmo de Estado entra na vida das pessoas, sendo o
Kyōiku Chokugo parte do movimento de contra-ataque à ocidentalização
japonesa:

Tendo rapidamente inaugurado um programa de Ocidentalização durante


a primeira década após a Restauração Meiji – incluindo o estabelecimento
do primeiro sistema asiático de escolarização universal e compulsória, no
qual a metafísica Neoconfucionista atuou similar ao positivismo e ao utili-
tarismo ocidental – os oligarcas Meiji, somos informados, foram
persuadidos pelas elites conservadores de que o pêndulo havia avançado
demais. Isso levou a um “contra-ataque conservador” que culminou em

103 “The surviving written evidence indicates that Motoda Nagaze was, in essence, the originator of ‘The
Imperial Rescript on Education’ of 1890. In other words, even though Inoue was the author of the ‘Rescript’,
Motoda was the mastermind behind it” (tradução nossa).
104 Para uma versão oficial do processo de elaboração do edito, consultar o site do Ministério da Educação do
Japão (MEXT, 2018a).
105 “[...] of the Shintôist ideology of the land of the gods and contemporary liberal thought on constitutional
law”.
134 • O espírito de Yamato

medidas como: a promulgação do Edito Imperial sobre a Educação, uma


forte ênfase no currículo; a reintrodução da ética Confucionista no currí-
culo; a introdução da educação física de estilo militar para incutir disciplina
e respeito pela autoridade; e maior controle governamental sobre o currí-
culo e os livros didáticos 106 (LINCICOME, 1999, p. 340-341).

A principal divergência está em Klaus e Duke considerarem o


Kyōiku Chokugo o resultado de equilíbrio entre os pensamentos do Oci-
dente e do Oriente, enquanto Lincicome enfatiza o edito como uma
resposta à ocidentalização que se torna a base do imperialismo e nacio-
nalismo japonês. Em meio a essas várias possíveis interpretações, que
acabam se justapondo em alguns aspectos e se contradizendo em outros,
propomos que o Kyōiku Chokugo seja analisado como um documento no
qual os princípios da crença com base no xintoísmo de Estado foram
ressignificados para atender a um modelo de Estado-nação moderno e
que serviu como discurso nacionalista, pois a própria publicação do
edito revela a necessidade de enquadrar as ideias do xintoísmo de Es-
tado em um manifesto oficial que deu suporte à entrada do discurso do
Estado xintoísta na vida das pessoas. Além disso, a circulação do edito
nas escolas evidencia como esse discurso foi estrategicamente pensado
para ser propagado em um sistema escolar moderno.

106 “Having ushered in a hasty program of Westernization during the first decade after the Meiji Restoration –
including the establishment of Asia's first system of universal, compulsory schooling, in which Neo-Confucian
metaphysics have way to Western positivism and utilitarianism – the Meiji oligarchs, we are told, were
persuaded by conservative elites that the pendulum had swung too far. This prompted a ‘conservative
counterattack’ that culminated in such measures as: promulgation of the Imperial Rescript on Education, a
stronger emphasis into the curriculum; and the reintroduction of Confucian ethics into the curriculum; the
introduction of military-style physical education (heishiki taiso) to instill discipline and respect for authority; and
increased government control over curricula and textbooks”.
Leonardo Henrique Luiz • 135

Nesse sentido, é preciso estar atento às estratégias de circulação


do Kyōiku Chokugo no Japão. Conforme aponta Shimazono (2009; 2005),
os primeiros indícios de eventos escolares fazendo reverência sistema-
ticamente ao imperador só são datados a partir da segunda metade da
década de 1880. De acordo com o autor, em 1891, foi promulgada o “Re-
gras Relacionadas aos Rituais dos Feriados e Festivais no Ensino
Fundamental”, que continha várias regras a serem seguidas, desde re-
verências às imagens do imperador e da imperatriz até a leitura do
Kyōiku Chokugo. Antes do período Meiji, não eram claros os rituais rea-
lizados nas escolas; a própria relação entre os eventos escolares e a
reverência ao imperador floresceram pela influência do Ministro da
Educação, Mori Arinori (1847-1889), que via nas escolas locais ideais
para se aprender, também, a ética ligada ao imperador.
Com o passar do tempo, foram estabelecidos protocolos para lidar
com os materiais alvos da reverência, que se tornaram cada vez mais
rígidos e padronizados, sendo incorporados gradativamente na vida co-
tidiana dos japoneses. Nesse sentido, temos de estabelecer algumas
reflexões sobre o sentido que esses artefatos tinham para os japoneses.
Como é indicado no nome, foi um edito imperial emitido pelo Imperador
Meiji. Esse texto foi revogado em 1948 por conta das exigências das au-
toridades americanas, responsável pela ocupação do Japão. No entanto,
conforme aponta Sharon H. Nolte (1983, p. 284),

A revogação pelo Parlamento é um irônico testemunho do poder do Edito,


pois, para começar, o Edito nunca teve força de lei. Foi emitido sem a con-
tra-assinatura de um ministro de Estado, que a Constituição exigia de todas
136 • O espírito de Yamato

as leis, decretos imperiais e editos imperiais relevantes para os assuntos de


Estado 107.

Esse parece ser um grande impasse, pois logo surge uma série de
questões, que podem ser resumidas da seguinte forma: se o edito não
tinha poder de lei, então qual era o peso real desse documento para as
diretrizes curriculares? Conforme argumenta Nolte (1983, p. 284), “Por
esse procedimento, seus autores claramente definiram o Edito como
moral, em vez de legal ou político [...]” 108. Esse objetivo moral se torna
claro ao analisar as propostas contidas no Kyōiku Chokugo (no próximo
tópico).
Apesar dessa aparente limitação de atuação do edito, é abundante
na literatura especializada a afirmação que define como esse docu-
mento teve grande prestígio quando disseminado pelo país
(SHIMAZONO, 2009). Mesmo para o governo de ocupação norte-ameri-
cano, o edito representou o xintoísmo de Estado nas esferas moral e
educacional, por isso a necessidade de revogá-lo em 1948. Segundo Shi-
mazono (2009, p. 110), o texto “Foi considerado o princípio sagrado da
educação revelado pelo imperador e, como tal, era o centro da educação
ética” 109. Por isso, no “Princípios Fundamentais das Regras do Ensino
Fundamental (Shōgakkō kyōsoku taikō 小学校教則大綱)” de 1891, é

107 “Repeal by the Diet stands in ironic testimony to the Rescript's power, for the Rescript never had the force
of law to begin with. It was issued without the counter-signature of a minister of state, which the Constitution
required of all laws, imperial ordinances, and imperial rescripts that were relevant to affairs of state”.
108 “By this procedure its framers clearly meant to define the Rescript as moral rather than legal or political [...]”
109 “It was considered the sacred principle of education revealed by the emperor, and as such, was the center
of ethics education”.
Leonardo Henrique Luiz • 137

destacado que, com base nos objetivos do Kyōiku Chokugo, o propósito


da educação era promover a bondade e a virtude para as crianças.
Além desse grande prestígio, a própria categoria de edito era dife-
rente e em vários momentos ultrapassou a força da lei. Para Benedict
(1972, p. 179),

Os Editos de Meiji de advertência, entretanto, são verdadeiras Escrituras


Sagradas. São lidos como rituais sagrados perante auditórios silenciosos,
curvados em reverência. São manuseados com [sic] a torá, retirados de um
sacrário para a leitura e para lá devolvidos com uma reverência, antes de
despedir o público.

Uma abordagem que propomos para compreender o fenômeno é


entender o Kyōiku Chokugo como um objeto de cultura material, com
peso semelhante a outros objetos religiosos xintoístas, como o kami-
dana. Isto é, assim como o kamidana traz a presença do kami ao
ambiente, o Kyōiku Chokugo pode trazer a presença do imperador e, por-
tanto, do nacionalismo japonês em qualquer lugar pela materialidade,
incluindo a forma de escrita, o papel utilizado e o lugar onde o edito era
mantido 110. É preciso lembrar que em alguns países orientais, como a
China e o Japão, a escrita tem uma conotação diferente do Ocidente.
Nesses países a escrita assume a forma de arte, conhecida no Japão
como Shodō (書道 - Caminho da Escrita), que possui uma série de técni-
cas e regras específicas. Dentro do universo budista japonês também

110 Esses lugares eram miniaturas de templo budistas ou santuários xintoístas, e chamados de Hôanden (奉安
殿). Normalmente, esses pequenos santuários eram instalados dentro das escolas e guardavam as imagens do
casal imperial e uma cópia oficial do Kyōiku Chokugo. Em ocasiões solenes, como o aniversário do imperador,
a comemoração do dia da Fundação Nacional etc., esses santuários eram abertos e o diretor realizava
ritualmente a leitura do edito reverenciada pelos alunos (KITAGAWA, 1990; SHIMAZONO, 2009).
138 • O espírito de Yamato

podemos encontrar indícios da importância da escrita, como no ihai,


uma “Tábua feita de madeira ou metal na qual é escrito o hômyô (法名)
ou kaimyô (戒名, nome póstumo) do falecido, hospedando seu espírito
para ser reverenciado” (NAKAMURA; FUKUNAGA, 1989, p. 44) 111.
Todo esse aspecto sagrado do Kyōiku Chokugo que incorporou a fi-
gura do imperador exigiu uma série de regras para manuseio e
preservação. Segundo Shimazono (2009, p. 103),

O protocolo para evocar a imagem imperial e o Edito se tornaram gradual-


mente mais rígidos, pois foram investidos de caráter sagrado. A partir da
década de 1890, cada prefeitura criou regras para seu armazenamento, cha-
madas de Para o Armazenamento das Cópias da Imagem Imperial e do Edito de
Educação (Gyoei narabini chokugo tōhon hōzō kitei 御影並勅語謄本奉蔵規程).

Além disso, seu altar se tornou um lugar sagrado e um número crescente de


províncias disponibilizou pessoas próximas a ele para protegê-lo. Eventu-
almente, passou a ser visto como algo para se proteger, mesmo às custas da
vida de alguém 112.

É interessante comparar esse aspecto sagrado com o relato de Ki-


tagawa (1990) presente no artigo Algumas reflexões sobre a Religião
Japonesa e sua Relação com o Sistema Imperial; o último tópico desse ar-
tigo é significativo, intitulado “Epílogo – Uma Perspectiva
Autobiográfica”. Como fica sugerido pelo nome, nessa seção o autor

111 Tradução de Richard Gonçalves André.


112 “The protocol for invoking the imperial image and Rescript became gradually stricter as they were invested
with a sacred character. From the 1890s, each prefecture created rules for their storage, called For the Storage
of Copies of the Imperial Image and the Rescript on Education (Gyoei narabini chokugo tōhon hōzō kitei 御影
並勅語謄本奉蔵規程). In addition, their enshrinement altar became a sacred place and an increasing number
of provinces posted staff near it in order to protect it. Eventually, it came to be seen as something to protect
even at the expense of one’s life”.
Leonardo Henrique Luiz • 139

(1990, p. 169) mostra como seu “[…] ensaio sobre a religião japonesa e
sua relação com o sistema imperial está inextricavelmente ligado às mi-
nhas próprias memórias de infância [...]” 113. Algumas experiências
relatadas nesse tópico são reveladoras, como um evento no qual o dire-
tor da escola primária onde Kitagawa estudou, durante a década de 1920,
teria sido demitido devido a uma “pronúncia errada” (KITAGAWA, 1990,
p. 170) do Kyōiku Chokugo. Segundo o autor, o diretor tinha grandes res-
ponsabilidades em relação aos objetos imperiais.

O diretor da escola preservou o edito não apenas lendo e implementando


seu programa, mas protegendo o texto. Um dos deveres extremamente im-
portantes do diretor era guardar constantemente a pequena casa de ferro
entesourada no pátio da escola, no qual era mantida uma cópia oficial do
decreto, assim como retratos do imperador e da imperatriz. Esses retratos
foram exibidos cerimonialmente em ocasiões importantes para que as pes-
soas pudessem reverenciá-las 114 (KITAGAWA, 1990, p. 170).

Além disso, o diretor deveria fazer diversos discursos públicos (no


presente caso, durante a semana de luto nacional após a morte do Im-
perador Taisho, em 1926) sobre a importância do kokutai, do patriotismo
e da lealdade ao imperador. Kitagawa resumiu o discurso de seu diretor
(pela memória) em três principais pontos: a glória do kokutai japonês é
derivada da história da linhagem inquebrável da casa imperial, que

113 “[...] essay on Japanese religion and its relationship to the imperial system is inextricably bound up with my
own childhood memories [...]”
114 “The school principal preserved the edict not only by reading and implementing its program but by
guarding the text. One of the supremely important duties of the principal was to guard constantly the little iron
treasure house situated in the school yard, in which an official copy of the edict, as well as portraits of the
emperor and empress, were kept. These portraits were displayed ceremonially on important occasions so that
people could make obeisance to them”.
140 • O espírito de Yamato

descende da deusa Amaterasu-o-mi-kami; a instituição imperial não


dependia das virtudes ou habilidades individuais dos imperadores como
indivíduos, mas da eterna “‘alma imperial’ (tenno-rei 天皇霊)” (KITA-
GAWA, 1990, p. 171) passada de geração a geração desde os ancestrais
imperiais; o trono imperial tem quatro características principais: 1 – é
ocupado por um “‘kami vivo’” (KITAGAWA, 1990, p. 172, grifos nossos), 2
– é o “‘sacerdote-chefe’” da nação, 3 – é o único governante legítimo da
nação, e 4 – é o “‘chefe da comunidade nacional como uma família’”, isto
é, todo japonês é súdito e deve lealdade filial ao imperador como chefe
da família nacional.
Esse grande esforço empregado na devoção imperial fez surgir um
conjunto de histórias (fantasiosas ou não) nas quais diversos indivíduos
eram punidos por danos aos símbolos imperiais. Essas histórias apare-
cem em muitos estudos como exemplos da extrema devoção japonesa
ao imperador e a importância da lealdade para os japoneses. Além da
relatada por Kitagawa, há outras histórias descritas por Benedict (1972,
p. 130) de diretores que se suicidaram depois que incêndios em suas es-
colas ameaçaram o retrato imperial ou de professores que morreram
tentando salvar esses objetos. Em certo sentido, tais histórias, indepen-
dentemente se verdadeiras ou falsas, serviam para dar exemplos de
conduta moral e nacionalismo para os japoneses.

ANÁLISE DO EDITO

Do ponto de vista dos usos, a mensagem contida no Kyōiku Chokugo


serviu como base à elaboração de diversos materiais didáticos, inclusive
Leonardo Henrique Luiz • 141

de acordo com o site do Ministério da Educação japonês: “[…] muitos li-


vros didáticos ofereciam o texto completo do Edito Imperial de
Educação no início de cada volume, e em livros didáticos para o ensino
elementar superior, um volume ou uma parte do volume era geralmente
dedicada a uma interpretação do Edito Imperial” 115 (MEXT, 2018b). Havia
uma preocupação em tornar conhecida a mensagem do texto, e a inter-
pretação correta do conteúdo também foi priorizada (CHARTIER, 2002).
De fato, mesmo após a publicação do Kyōiku Chokugo, surgiram di-
versos comentários oficiais interpretativos publicados pelo próprio
Ministério da Educação durante as Eras Meiji, Taisho e Showa. Segundo
Klaus (2016, p. 221), existiram aproximadamente 600 comentários ofici-
ais, sendo o primeiro produzido por Inoue Tetsujiro (1855-1944) e
chamado Chokugo engi, de 1891; esse primeiro comentário estabeleceu a
interpretação canônica seguida pelos demais intelectuais. Inoue foi
convidado pelo próprio Ministro da Educação, Yoshikawa Akimasa, para
realizar esse trabalho. Na época, ele ocupava o cargo de professor de
filosofia na Universidade Imperial de Tóquio, tendo acabado de voltar
de um intercâmbio de seis anos na Alemanha. O período de estudos no
exterior deixou Inoue impressionado com o patriotismo da Alemanha,
ao qual ele comparava à perda do espírito autônomo e independente do
Japão pós-Restauração Meiji, reconhecendo o edito como um grande es-
forço em mudar esse quadro. Dessa forma, Inoue acreditava que os
princípios morais contidos no edito deveriam servir de base para a

115 “[...] many textbooks offered the complete text of the Imperial Rescript on Education at the beginning of
every volume, and in textbooks for higher elementary schools, one volume or one part of one volume was
usually devoted to an interpretation of the Imperial Rescript”.
142 • O espírito de Yamato

transformação social, isto é, as virtudes individuais eram vistas como


princípios da organização social.

Assim, Inoue afirma claramente que os pontos essenciais do Edito são, por
um lado, as virtudes pessoais (Confucionistas), e por outro lado, o apelo ao
patriotismo. Mas em sua opinião, essas não são áreas separadas, mas que se
fundem em um todo espiritual inseparável sob o termo chûkun-aikoku, “le-
aldade ao governante, amor pelo país” 116 (KLAUS, 2016, p. 221-222, grifos no
original).

De acordo com essa interpretação de Klaus, que também adotamos


aqui, o discurso nacionalista, em relação às virtudes individuais, foi li-
gado às propostas da Escola de Mito, portanto há também uma negação
das influências estrangeiras. Contradição curiosa, pois, conforme de-
monstrado, grande parte do discurso moral japonês xintoísta tem base
no confucionismo; entretanto, os autores de Mito ressaltavam que essas
virtudes japonesas eram de origem xintoísta, portanto, sui genesis de
todos os japoneses, “[…] enquanto a China teve de recorrer a um com-
plicado sistema racional baseado na ética para colocar sob controle seu
caos espiritual” 117 (KLAUS, 2016, p. 224). Nesse sentido, o próprio Inoue
argumentou que a introdução do confucionismo no Japão não causou
nenhum distúrbio interno, pois aquelas ideias estavam em harmonia

116 “Thus, Inoue clearly states that the essential points of the Rescript are, on the one hand, (Confucian)
personal virtues, and on the other hand, the call to widespread patriotism. But in his view, these two areas are
not separate, but rather, they merge into an inseparable spiritual whole under the term chûkun-aikoku, ‘loyalty
to the ruler, love for the country’” (tradução nossa).
117 “[...] while China must resort to complicated systems of rationally based ethics in order to bring its supposed
spiritual chaos under control”.
Leonardo Henrique Luiz • 143

com a tradição (xintoísta) já presente, diferente do cristianismo, que se-


ria incompatível com o Japão 118.
Como defendemos ao longo do presente livro, esse é um discurso
de identidade, que buscou estabelecer a ligação entre o xintoísmo e o
nacionalismo. Na ordem do discurso, essa ligação era algo constante e
retomado como forma de diferenciação identitária. Segundo Klaus
(2016, p. 226), “[…] Inoue declara que o xintoísmo e a nação japonesa nas-
ceram ao mesmo tempo; a mitologia japonesa possui um caráter único
e forma a base do culto aos ancestrais japoneses” 119, Se de fato, como
afirma Klaus, essa primeira interpretação feita por Inoue foi a base para
as criadas posteriormente e que eram anexadas aos livros de formação
superior (de professores), o quadro de atuação dessas interpretações
oficiais adquire um complexo significado dentro do sistema de ensino.
Essas várias evidências apontam para a formação de uma complexa
rede pedagógica que legitimou a reprodução dos saberes. Nesse sentido,
analisaremos esse mecanismo por meio da proposta teórica de Bourdieu
e Passeron (1992), segundo os quais o sistema de ensino é considerado
como o meio privilegiado para a reprodução da ordem. Particularmente,
essa abordagem tem grande parte da carga teórica tributária aos con-
ceitos (como habitus, campo, capital simbólico, etc.) elaborados por
Bourdieu em outros trabalhos. Dessa forma, tem a mesma fragilidade
encontrada na teoria do sociólogo francês, isto é, lidar com as

118 Ver, por outro lado, o comentário sobre o Kyōiku Chokugo de Οnishi Hajime (1864-1900), que era cristão.
Uma análise da interpretação de Onishi foi realizada por Nolte (1984) e o comentário do autor pode ser
encontrado como anexo no artigo de Nolte.
119 “[...] Inoue declares that Shintô and the Japanese nation both came into being at the same time; Japanese
mythology possesses a unique character and forms the basis of Japanese ancestor worship”.
144 • O espírito de Yamato

resistências e transformações dentro de um cenário de “reprodução so-


cial do arbitrário”. A teoria sociológica de Bourdieu consegue explicar
de maneira ímpar os mecanismos de reprodução, mas poucas vezes ele
dedicou atenção para as transformações e descontinuidades 120. Por
exemplo: em uma das poucas vezes na qual as transformações foram
abordadas (ao discutir os mecanismos de reprodução do discurso mas-
culino sobre o feminino), Bourdieu argumenta que somente uma
transformação radical nas estruturas de reprodução da dominação pos-
sibilitaria a ruptura da dominação (BOURDIEU, 2014, p. 65).
Dito isso, apesar de analisarmos os usos do Kyōiku Chokugo com
base nessa ferramenta teórica, é preciso ter em vista os processos de
negociação, apropriação e ressignificação, táticas realizada pelos gru-
pos (CERTEAU, 2014). De qualquer forma, parece que essa postura de
privilegiar os processos de dominação e perpetuação da ordem possibi-
lita explicar de maneira mais precisa os fenômenos em torno do edito
no Império japonês, pois, em vista das evidências apresentadas neste
livro, pode-se dizer que os líderes Meiji efetivamente atuaram em um
incessante trabalho de reprodução por meio do sistema de ensino. Essa
reprodução é conceituada por Bourdieu como uma “violência simbó-
lica”, podendo ser entendida como a imposição de um poder/saber
arbitrário, visando à perpetuação da ordem social, cuja atuação dissi-
mula as condições historicamente estabelecidas, representando-as
como condições supostamente naturais.

120 Essa crítica também pode ser encontrada brevemente em Bourdieu e Chartier (2012, p. 133). Entretanto, é
preciso pontuar que o presente trabalho não tem por objetivo um exame exaustivo dos conceitos de Bourdieu.
Essa é uma consideração que pode ser problematizada em uma análise mais completa.
Leonardo Henrique Luiz • 145

No caso das transformações ocorridas no Japão, defendemos que a


publicação do Kyōiku Chokugo em 1890 é o marco do estabelecimento de
um grupo/discurso sobre os outros que competiam por legitimidade
desde, pelo menos, 1868. Ou seja, a partir de 1890, o discurso naciona-
lista de base xintoísta passou a ocupar um lugar de legitimidade e ser
reproduzido como “natural” e genuinamente japonês. Isso não quer di-
zer que os demais discursos sumiram, apenas passaram a atuar nas
margens e brechas do poder. O que diferencia radicalmente a atuação
desses discursos é que o Sistema de Ensino, como um sistema, tem uma
série de elementos que garantiu a consagração e a reprodução de deter-
minado saber, seja por exames admissionais e de avaliação, seja pela
emissão de diplomas, agentes especializados, manuais, etc.
Com esse complexo sistema, o qual o Kyōiku Chokugo foi a base, en-
tendemos que em 1890 houve a formação de um habitus
nacionalista/xintoísta no Japão imperial, servindo não apenas para a le-
gitimação e a reprodução da ordem, mas também como meio pelo qual
os japoneses, mesmo que parcialmente, definiram suas identidades
como membros de uma mesma nação 121. Dessa forma, partimos do pres-
suposto de que existiu uma ligação intrínseca entre as práticas, a
formação do habitus e as ideias presentes do Kyōiku Chokugo.
Em termos de conteúdo, surgem várias problemáticas ao se anali-
sar esse edito, sendo a primeira relacionada com a localização do

121 Contudo, isso não quer dizer que defendemos a existência de uma suposta homogeneidade cultural no
Japão, mas, na ordem discursiva dos líderes Meiji, essa homogeneidade era um marco identitário, que
possibilitava a diferenciação em termos de identidade nacional. Esse discurso foi certamente propagado pelos
meios oficiais, como o Kyōiku Chokugo nas escolas, mas não anulou as diferenças culturais que marcaram as
classes sociais, os gêneros e as religiões.
146 • O espírito de Yamato

documento original. Como sugerido, esse texto foi amplamente divul-


gado no Japão, mas o documento original teria sido danificado em 1923
e perdido em 1960, só sendo reencontrado em 2012 122. Assim como a
Constituição Meiji, o texto original do edito foi escrito no sistema bungo
文語 (sistema de escrita antigo), que tem um estilo de escrita diferente
do japonês contemporâneo (日本語 – nihongo). Esse estilo de escrita clás-
sico, por exemplo, era comum em documentos legais, que usavam o
katakana para fazer inflexões, estabelecer partículas e conjugações ver-
bais, função que contemporaneamente o hiragana 123 exerce. Como esse
sistema foi mudado durante a década de 1940, os Kyōiku Chokugo rema-
nescentes trazem variações desses tipos de escrita, o que constitui outro
grande empecilho. Por exemplo, no Brasil há editos que mesclam os
kanjis do sistema de escrita 新字体 (Shinjitai) proposto oficialmente em
1946 e do sistema 旧字体/舊字體 (Kyuujitai), além de outra versão nas
quais todo o edito está inteiro em kanji. Na prática, isso pode tornar o
texto ilegível mesmo para alguém fluente no japonês moderno, como na
palavra kokutai, contemporaneamente escrita como 国体, mas, na

122 “O edito original foi danificado em 1923 em um terremoto catastrófico que atingiu Tóquio, e foi perdido
nos anos 1960. Mas, como o Japan Times relata, foi redescoberto no Museu Nacional de Tóquio em 2012 –
ainda danificado, mas de volta às mãos do governo. A segunda metade do documento de 315 caracteres não
pode ser aberta por causa dos graves danos, e o Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia
planeja colocá-lo no Arquivo Nacional do Japão em Tóquio para o trabalho de restauração”. No original: “The
original edict itself was badly damaged in 1923 in a catastrophic earthquake that tore Tokyo to shreds. And it
was lost all together in the 1960s. But as the Japan Times reports, it was rediscovered in the Tokyo National
Museum in 2012—still damaged, but back in government hands. The latter half of the 315-character document
cannot be opened because of severe damage, and the Ministry of Education, Culture, Sports, Science and
Technology said it plans to place it with the National Archives of Japan in Tokyo for restoration work”
(BLAKEMORE, 2017). Ver também texto no site do The Japan Times (LOST EDUCATION, 2014).
123 Segundo Sakane e Hinata, “O hiragana e o katakana são dois tipos de escrita silábica japonesa, ou seja, uma
espécie de escrita fonética, em contraposição ao kanji, ou ideograma chinês, que é uma escrita figurativa. Se o
kanji é originário da China, o hiragana e o katakana são produtos nacionais, embora estes derivem daquele. Se,
em linhas gerais, o hiragana nasceu de uma forma abreviada do kanji, o katakana é uma parte extraída do
ideograma chinês” (SAKANE; HINATA, 1997).
Leonardo Henrique Luiz • 147

forma antiga (presente na fonte), a escrita é 國體, tem a mesma leitura


e o mesmo significado. Cabe nos perguntamos até que ponto a “atuali-
zação” para um novo sistema de escrita, mesmo dentro do japonês, não
ocasionou mudanças de interpretação do conteúdo. Por isso, mesmo
usando determinada versão do Kyōiku Chokugo, pode ser que outros au-
tores encontrem pequenas diferenças no conteúdo. Nesse sentido,
adotamos a seguinte versão do sistema bungo:

朕惟フニ我カ皇祖皇宗國ヲ肇ムルコト宏遠ニ徳ヲ樹ツルコト深厚ナリ我カ臣民克ク
忠ニ克ク孝ニ億兆心ヲ一ニシテ世世厥ノ美ヲ濟セルハ此レ我ガ國軆ノ精華ニシテ教
育ノ淵源亦實ニ此ニ存ス爾臣民父母ニ孝ニ兄弟ニ友ニ夫婦相和シ朋友相信シ恭儉己
レヲ持シ博愛衆ニ及ホシ學ヲ修メ業ヲ習ヒ以テ智能ヲ啓發シ徳器ヲ成就シ進テ公益
ヲ廣ノ世務ヲ開キ常ニ國憲ヲ重ジ國法ニ遵ヒ一旦緩急アレハ義勇公ニ奉ジ以テ天壌
無窮ノ皇運ヲ扶翼スヘシ是ノ如キハ獨リ朕カ忠良ノ臣民タルノミナラズ又以テ爾祖
先ノ遺風ヲ顕彰スルニ足ラン
斯ノ道ハ實ニ我カ皇祖皇宗ノ遺訓ニシテ子孫臣民ノ倶ニ遵守スヘキ所之ヲ古今ニ通
シテ謬ラス之ヲ中外ニ施シテ悖ラス朕爾臣民ト倶ニ挙挙服膺シテ咸其徳ヲ一ニセン
コトヲ庶幾フ
明治二十三年十月三十日
御名御璽
大日本帝国 (Dai Nippon Teikoku – Império do Japão), 1890.

Um segundo problema para o presente trabalho está na necessi-


dade de uma tradução para o leitor não familiarizado com o idioma
japonês. Como se trata de um documento com conceitos próprios da cul-
tura japonesa, a tradução implica em uma modificação de sentido. De
qualquer forma, houve um esforço oficial, partindo do próprio Ministé-
rio da Educação do Japão, em traduzir o edito para o inglês. Yuji Hirata
(1994) analisou uma das primeiras traduções de caráter oficial, realizada
por Kikuchi Dairoku em 1907; essa tradução foi feita a partir de um
148 • O espírito de Yamato

convite da Universidade de Londres, onde Kikuchi lecionou sobre a edu-


cação japonesa, tendo o Kyōiku Chokugo como foco.
Segundo Hirata, ao realizar esse trabalho de tradução, Kikuchi
contou com a ajuda de intelectuais japoneses e ingleses, e é possível per-
ceber as limitações da tradução e como o trabalho de Kikuchi sofreu
diversas críticas metodológicas, principalmente pelo uso de determina-
dos conceitos em inglês. Em um primeiro esboço da tradução, Kikuchi
apresentou a primeira parte do edito em 1906, e esse texto foi publicado
em diversas revistas.

Our Imperial Ancestors have laid the foundation of Our Empire on a broad
basis and have deeply implanted their virtues: Our subjects all united in
their loyalty and filial piety have for generations (1) achieved their beauty.
This is the glory of Our national constitution, and on this also must Edu-
cation be based.
Ye, Our subjects, be filial to your parents, affectionate to your brothers; as
husbands and wives be harmonious; as friends be true; bear yourselves in-
humility and moderation; (2) extend your benevolence widely to all;
cultivate knowledge and practice arts, thereby developing intellectual fac-
ulties and perfecting moral capacity; further more advance public good and
promote common interests; always respect the Constitution and observe
the laws; (3) should emergency arise, offer yourselves to the state loyally
and bravely; and thus support Our Imperial Throne coeval with the Heav-
ens and the Earth. So shall ye not only be Our good and faithful subjects,
but make manifest the character inherited from your ancestors (HIRATA,
1994, p. 60-61, grifos no original) 124.

124 Segundo Hirata, essa tradução foi feita com base nessa versão do edito:
朕惟フニ我力皇祖皇宗国ヲ肇ムルコト宏遠二徳ヲ樹ツルコト深厚ナリ我力臣民克ク忠二克ク孝二
億兆心ヲーニシテ世々蕨ノ美ヲ済セルハ此レ我力国体ノ精華ニシテ教育ノ淵源亦実二此二存ス爾
Leonardo Henrique Luiz • 149

Todos os pontos grifados por Hirata são conceitos e frases cujas


traduções foram motivos de grande controvérsia. As especificidades do
debate podem ser conferidas no artigo do autor, mas, de maneira geral,
as críticas são dirigidas para a gramática e para a escolha das palavras
utilizadas. Essas críticas eram acompanhadas por versões próprias em
inglês do Kyōiku Chokugo. Hirata (1994) mostra, por exemplo, que alguns
autores sugeriram traduzir o edito com base em conceitos bíblicos para
tornar o conteúdo mais acessível aos ocidentais. Apesar dessas diversas
críticas, “Kikuchi defendeu a sua própria tradução: ‘Surgiram muitas
revisões teóricas e correções’, mas dizia sem hesitar: ‘Ainda assim,
penso que a minha tradução é a melhor’” 125 (HIRATA, 1994, p. 64). Nessa
defesa, Kikuchi argumenta que o estilo de tradução “bíblico” deveria ser
evitado, pois o edito tem um estilo literário próprio, de origem japo-
nesa-chinesa.
Além disso, como apontado, “Na verdade, nesse período aproxima-
damente 100 tipos do Edito Imperial de Educação foram tornados
públicos, nessa conjuntura a diversidade de interpretações do Edito Im-
perial de Educação foi uma grande dificuldade na sua tradução” 126
(HIRATA, 1994, p. 64), isto é, mesmo no Japão havia versões do edito 127.

臣民父母二孝二兄弟二友二夫婦相和シ朋友相信シ恭倹己レヲ持 シ博愛衆二及ホシ学 ヲ修メ業ヲ習


ヒ以テ智能ヲ啓発シ徳器ヲ成就シ進テ公益 ヲ広メ世務ヲ開キ常二国憲ヲ重シ国法二遵ヒー旦緩急
アレハ義勇公二奉シ以テ天壌無窮ノ皇運ヲ扶翼スヘシ是ノ如キハ独リ朕力忠良ノ臣民タルノミナ
ラス又以テ爾祖先ノ遺風ヲ顕彰スルニ足 ラン
125 「自らの翻訳を弁護する菊池は, 「随分種々な修正説や訳文が来た」ものの,「併し僕は矢張り
自分の翻訳が一番宜いと思ふ」といって憚らなかった。」
126 「事実, この頃百種以上の教育勅語の衍義書類が公にされており, 教育勅語の解釈の多様性は, そ
れを翻訳する際の大きな難点であった。」
127 Aqui um debate pode ser estabelecido, pois se o texto tinha tanta importância assim, por que o governo
permitiu essas variações? Sugerimos que esse fenômeno deve ser entendido como as apropriações dos grupos
em torno do edito e que não se trata de uma “permissão”, mas sim de lutas de representação em busca de
150 • O espírito de Yamato

Após esses debates, uma “官訳” (kanyaku), ou “Tradução Autorizada”, foi


apresentada em 1907 na aula inaugural de Kikuchi em Londres. Segundo
Hirata (1994), essa tradução foi examinada pelo Ministério da Educação
e entregue para diversas revistas especializadas. Nesse exame, foi reco-
nhecida a dificuldade em traduzir os significados do edito para não
falantes de japonês, além de admitir possíveis divergências com outras
traduções. Entretanto, enfatizava-se o proveito que essa tradução traria
aos ocidentais por apresentar os princípios morais da educação japo-
nesa, que poderiam ser modelos para outros países (HIRATA, 1994).
Outro exemplo de tradução para o inglês, desta vez do texto todo,
pode ser encontrado em Duke (2009, p. 359-360 – grifos no original):

Imperial Rescript on Education, 1890


Inoue Kowashi
Know ye, Our subjects:
Our Imperial Ancestors have founded Our Empire on a basis broad and ev-
erlasting, and had deeply and firmly implanted virtue. Our subjects ever
united in loyalty and filial piety from generation to generation illustrated
the beauty thereof. This is the glory of the fundamental character of Our
Empire, and herein lies the source of Our education.
Ye, Our subjects, be filial to your parents, affectionate to your brothers and
sisters; as husbands and wives be harmonious, as friends true; bear your-
selves in modesty and moderation, extend your benevolence to all; pursue
learning and cultivate arts, and thereby develop intellectual faculties and
perfect moral powers; furthermore, advance the public good and promote
common interests; always respect the constitution and observe the laws;

legitimidade (lembrar que o Ministério da Educação incentivava comentadores oficiais). A existência dessa
variedade inclusive reforça o poder do Kyōiku Chokugo como discurso legitimador da nação e, portanto,
cobiçado por diferentes grupos.
Leonardo Henrique Luiz • 151

should emergency arise, offer yourselves courageously to the State; and


thus guard and maintain the prosperity of our Imperial Throne coeval with
heaven and earth. So shall ye not only be Our good and faithful subjects, but
render illustrious the best traditions of your forefathers.
The Way here set forth is indeed the teaching bequeathed by our Imperial
Ancestors, to be observed alike by Their Descendants and the subjects, in-
fallible for all ages and true in all places. It is Our wish to lay it to heart in
all reverence, in common with you, Our subjects, that we may all attain the
same virtue.

Por outro lado, Klaus (2016) cita uma tradução que possui pequenas
diferenças na versão em inglês. A partir dos exemplos mostrados, po-
demos perceber as possíveis variações das traduções. Dessa forma, a
tradução para o português que sugerimos também deve ser considerada
como uma interpretação do texto em japonês, portanto, possui limites.
A tradução a seguir foi realizada por nós, cotejando a versão em japonês
com as versões em inglês citadas; além disso, atentamos para as críticas
presentes em Hirata (1994) e Pereira (2013). Apesar de ser um texto
curto, a fonte apresenta grande dificuldade para ser traduzida, portanto
buscamos dar mais prioridade às referências em relação ao xintoísmo
de Estado, ao mesmo tempo em que mantemos o texto inteligível para o
leitor contemporâneo.

Sabei, Nossos súditos: Nossos Ancestrais Imperiais fundaram Nosso Impé-


rio em amplas e eternas bases e implantaram profunda e firmemente a
virtude; Nossos súditos têm, de geração a geração, com lealdade e piedade
filial ilustrado essa beleza. Esta é a característica fundamental da glória do
Nosso Império, e também é a fonte da verdade da Nossa educação. Vós, Nos-
sos súditos, sejam filiais para com seus pais, afetuosos com seus irmãos e
152 • O espírito de Yamato

irmãs; sejam harmoniosos como marido e esposa, como verdadeiros amigos


com confiança mútua; porte-se com modéstia; estenda sua mão fraternal-
mente para todos; persiga o aprendizado, a disciplina e cultive as artes, e
assim, desenvolva as faculdades intelectuais e um caráter nobre; além disso,
advogue pelo bem público e promova os interesses em comum; sempre res-
peitando a Constituição Nacional e observando as leis; em caso de
emergência, ofereça-se leal e corajosamente ao bem público; e dessa forma,
guarde e mantenha a prosperidade da Fortuna do Nosso Trono Imperial,
eterno como o céu e a terra. Então, você não será apenas Nosso bom e fiel
súdito, mas honrará publicamente as melhores tradições dos antepassados;
Este Caminho é certamente o ensino legado por Nossos Ancestrais Imperi-
ais, para ser observado igualmente por seus descendentes e súditos,
infalível para todas as eras e verdadeiro para todos os lugares. É Nosso de-
sejo estabelecer no coração com toda reverência, em comum com vós,
Nossos súditos, que todos possamos alcançar essa mesma virtude. 30°dia do
10°mês do 23°ano de Meiji [1890]. [Selo Imperial].

Comparando essas diferentes traduções com o texto em japonês,


podemos notar uma série de limitações. A primeira é que no japonês não
existem letras maiúsculas e minúsculas; portanto, há uma diferença
enorme, por exemplo, ao traduzir e escrevermos “Educação” ou “educa-
ção”. Na língua portuguesa uma palavra grafada no maiúsculo
apresenta uma conotação mais forte do que a minúscula, além disso, às
vezes, o próprio significado da palavra pode mudar, como o caso de edu-
cação, que é campo ou fenômeno, dependendo da grafia. Ao escrever em
maiúsculo, estamos sugerindo uma interpretação que não se faz neces-
sária no texto em japonês, que seria simplesmente “教育” (Kyōiku -
Educação). Além disso, certas palavras têm significados próprios, alcan-
çando a categoria de conceito, como “國軆”, que significa kokutai e, como
Leonardo Henrique Luiz • 153

mostrado ao longo do texto, se refere à estrutura/política nacional.


Como traduzir esse termo sem perder a fluidez do texto, ao mesmo
tempo mantendo o significado? Esse exemplo se repete em outros casos
e evidencia os problemas inerentes da tradução.
Mesmo assim, ao ler o texto em português, a primeira impressão é
que se trata de uma lista de condutas morais a serem seguidas. Entre-
tanto, ao atentar para a estrutura textual, fica evidente como estão
presentes de forma intrínseca uma série de elementos indiciários de
origens xintoísta e nacionalista. Esses indícios podem ser observados
com base no papel da memória como interdiscurso, atuando na forma
do já dito. Nas palavras de Orlandi (2009, p. 62), “[...] todo discurso se
estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro.
Não há discurso fechado em si mesmo mas um processo discursivo do
qual se podem recortar e analisar estados diferentes”. Nesse sentido,
mesmo a construção discursiva presente no Kyōiku Chokugo não sendo
necessariamente direta em relação ao xintoísmo, é possível dizer que o
edito fez parte de uma rede discursiva que estabeleceu sentidos nacio-
nalistas derivados de outros discursos.
Podemos perceber isso no caso do uso de conceitos como o “國軆”
kokutai, “皇祖皇宗” kousokouso (Ancestrais Imperiais) ou “孝” kou (Pie-
dade filial). Em todos esses casos, ao pronunciar essas palavras, uma
série de sentidos é emitida, sem necessariamente precisar ser relem-
brada. O sentido dessas palavras que formam o Kyōiku Chokugo derivam
das formações discursivas presentes na Era Meiji. Isso é particular-
mente importante, pois, como será argumentado no capítulo 4, ao trazer
esse edito ao Brasil e consequentemente ocasionar uma relativa ruptura
154 • O espírito de Yamato

com o discurso nacionalista japonês, os significados do Kyōiku Chokugo


foram alterados.
Ao interpretar o conteúdo do Kyōiku Chokugo, fica compreensível
como esse documento atuou na legitimação da ideia de nação japonesa.
É preciso lembrar que o edito era lido ritualmente em ocasiões especiais
nas escolas, como feriados nacionais, além de ser estudado como parte
do currículo obrigatório nas disciplinas de Moral e História 128 japonesas
desde o ensino primário. Portanto, era algo imposto, visando à sujeição
das identidades individuais em nome de um coletivo nacional harmô-
nico pela presença sagrada do imperador.
O ponto principal do edito é a sequência de virtudes que devem ser
cultivadas, cujo objetivo principal era criar “súditos” que deveriam “res-
peitar a Constituição e as leis”, além de, “em caso de emergência,
oferecer-se corajosamente ao bem público”. A presença desses princí-
pios no Kyōiku Chokugo foi sustentada por três bases amplas: a ideia de
piedade filial, o incentivo ao culto aos ancestrais e a noção de kokutai.
A piedade filial (孝) remete ao conceito chinês confucionista que
enfatiza a importância do respeito pelos mais velhos (especialmente os
pais) mesmo após a morte. Essa noção pode ser percebida em diversos
trechos dos Analectos 129, dentre os quais: “[...] O Mestre disse: ‘Quando

128 Podemos inferir que tais disciplinas foram organizadas com base em pressupostos que apresentaram ideias
de uma longa continuidade na história japonesa, desde a fundação mitológica até os atuais reinados dos
imperadores. Nesse sentido, a história cumpriu um papel ligado à moral, de ser a mestra da vida. Em termos de
formulação de uma “consciência histórica” japonesa, Ricardo Mário Gonçalves (1975) demostra como as
formulações do budismo voltadas ao culto ao Buda Amida elaboraram uma “Teoria da Decadência” para
explicar os eventos trágicos durante o período Kamakura (segunda metade do século XII a fins do século XIII).
Segundo o autor (GONÇALVES, 1975, p. 6), essas ideias “[…] tiveram a função de dar, nas épocas de crise uma
explicação para as incertezas e calamidades e de apontar aos indivíduos um caminho para sua superação”.
129 Formam a compilação de ensinamentos atribuídos a Confúcio (551-479 a.C.).
Leonardo Henrique Luiz • 155

teus pais estão vivos, serve-os de acordo com o ritual. Quando eles mor-
rem, enterra-os de acordo com o ritual, oferece-lhes sacrifícios de
acordo com o ritual’” (CONFÚCIO, 2005, p. 8). No discurso do Kyōiku
Chokugo, a piedade filial é estendida para a figura do imperador, que
oferece sua proteção sagrada em troca da devoção. Mesmo tendo origem
chinesa, esse discurso foi mesclado ao culto aos ancestrais e transfor-
mado em algo teoricamente autêntico do Japão e sem influências
estrangeiras, principalmente com os discursos nacionalistas da Escola
de Mito.
A questão dos ancestrais imperiais (皇宗) é entendida por alguns
autores, entre os quais Benedict Anderson (2008), como o aspecto mais
importante no estabelecimento da devoção imperial e do nacionalismo,
pois é por meio desse elemento discursivo que a identidade do Império
foi construída. Inclusive, é comum a grande importância dada pelos ja-
poneses à realização do culto aos ancestrais em esfera doméstica,
mesmo teoricamente o indivíduo não pertencendo a nenhuma religião.
Por fim, o Kokutai (国体), pode ser definido como “corpo nacional”,
englobando o sistema de governo e a identidade nacional, portanto
constituiu a própria ideia de nacionalidade japonesa. Juntos, esses três
elementos formaram as principais características xintoístas presentes
no edito. Pode-se perceber que esses três elementos estão estritamente
relacionados com o imperador, pois a piedade filial confucionista era
estendida dos familiares para o governante; ao mesmo tempo, a legiti-
midade do governante Meiji vinha da suposta ancestralidade divina. Por
fim, o discurso da organização nacional não era pensado sem a presença
do imperador.
156 • O espírito de Yamato

Além disso, o documento é um texto pequeno e deveria ser lido so-


lenemente e até decorado pelos alunos. A intenção desse grande esforço
era naturalizar o discurso nacionalista como algo que sempre existiu e,
ao mesmo tempo, incentivar a harmonia social por meio das qualidades
a serem desenvolvidas por todos, “persiga o aprendizado, a disciplina e
cultive as artes, e assim, desenvolva as faculdades intelectuais e um ca-
ráter nobre” em prol do Estado ou “bem público”. Esses princípios são
apresentados como “a fonte da verdade da Nossa educação”, portanto
deveriam ser cultivados independentemente das divergências internas,
em nome dos “interesses em comuns”; essa era uma forma de relegar
outras propostas educacionais e demais projetos de nação à margem.
Outro ponto que chama atenção é a presença da ênfase em “sempre
respeite a Constituição Nacional e observando as leis”. Como argumen-
tado, o autor do Kyōiku Chokugo (Inoue Kowashi) foi o mesmo da
Constituição Meiji; dessa forma, intencionalmente, Kowashi fez a men-
ção direta ao seu trabalho anterior. Essa menção é significativa, pois
evidencia que os elementos do edito estavam em consonância com uma
organização do Estado moderno e a tentativa de universalizar esses cos-
tumes pelas leis. Isso mostra como o Kyōiku Chokugo foi um importante
documento que serviu para aumentar o “valor simbólico” do projeto de
nação em implementação, principalmente por meio da popularização de
seus valores, que assumiam o aspecto sagrado. Efetivamente, desenvol-
ver as qualidades morais contidas no edito não era apenas um dever
cívico dos japoneses, pois essa tarefa foi apresentada como um dever
sagrado em honra aos ancestrais fundadores da nação.
Leonardo Henrique Luiz • 157

Ao longo do documento, dois princípios oferecem interpretações


controversas: a primeira está na frase “em caso de emergência, ofereça-
se leal e corajosamente ao bem público; e dessa forma, guarde e mante-
nha a prosperidade da Fortuna do Nosso Trono Imperial eterno como o
céu e a terra”. Em uma interpretação feita após os eventos da Segunda
Guerra Mundial, fica difícil não fazer a ligação desse valor presente no
edito com a atuação de diversos grupos japoneses que sacrificaram suas
vidas em prol dos objetivos de guerra do Estado, sejam os pilotos kami-
kaze ou indivíduos que continuaram lutando mesmo após a rendição do
Japão, como Teruo Nakamura (lutando na Indonésia até 1974); Hiroo
Onoda (selvas filipinas até 1974) ou Shoichi Yokoi (permaneceu na Ilha
de Guam até 1972).
O segundo elemento está na oração que afirma os valores contidos
no edito como “infalível para todas as eras e verdadeiro para todos os
lugares.”. Uma possível interpretação pode atribuir a perspectiva de que
esse elemento foi reforçado visando uma expansão para vários lugares.
Essa asserção lembra todo o processo imperialista descrito no capítulo
1 e como a educação foi peça fundamental no treinamento dos solda-
dos/colonos na Manchúria. Mesmo no caso da imigração, esse trecho do
edito, junto à posição de ser a “verdade” para a Educação, contribuiu
fundamentalmente, a ponto de o texto ser reproduzido pelos nikkeis em
outros países, como o Brasil.
Ainda em termos de conteúdo, Duke (2009, p. 361) analisa-o pela
comparação com o texto produzido por Motoda Nagazane em 1879, “A
Vontade Imperial na Educação”. Segundo o autor, ambos estão ligados à
158 • O espírito de Yamato

valorização das virtudes confucionistas e tomam a forma de uma breve


mensagem do imperador para seus súditos. Além disso,

[…] ambos usaram caracteres chineses quase idênticos para enfatizar os


principais temas que correm ao longo deles. Embora os caracteres para be-
nevolência, justiça, lealdade e piedade filial (jingi chûkô) fossem usados em
diferentes combinações de palavras ou variações nos dois documentos, o
significado era essencialmente o mesmo 130 (DUKE, 2009, p. 361).

Apesar disso, Duke defende que o edito incorporou os elementos


nacionalistas com base no modelo alemão, formando um par com a
Constituição de 1889. O autor argumenta que, apesar do Kyōiku Chokugo
ter sido criado para não apresentar uma conotação religiosa, o edito as-
sociou os ensinamentos morais à tradição imperial xintoísta. Grande
parte dessa análise de Duke é baseada na interpretação oficial de Inoue
Tetsujiro (1855-1944), filósofo que se opunha à compatibilidade entre o
cristianismo e os “valores japoneses”. O autor divide o edito em três par-
tes: a primeira se refere à fundação do Império com base na
descendência divina do primeiro Imperador Jimmu, supostamente des-
cendente de Amaterasu-o-mi-kami, portanto uma ligação com as
narrativas do Kojiki e do Nihon Shoki foram estabelecidas, e essa ligação
partiu das bases teóricas dos autores do kokutai; segunda parte são as
virtudes relacionadas à tradição imperial, pois, essas virtudes tinham
raízes confucionistas, que eram negadas pelo discurso nacionalista ja-
ponês, com base nos discursos da Mitogaku; já a parte final do texto diz

130 “[...] both used nearly identical Chinese characters to emphasize the primary themes that run throughout
them. Although the characters for benevolence, justice, loyalty, and filial piety (jingi chūkō) were used in
different combinations of words or variations in the two documents, the meaning was essentially the same”.
Leonardo Henrique Luiz • 159

respeito a como a educação e os valores morais devem ser usados em


prol do desenvolvimento da nação. Aqui há uma significativa incorpo-
ração dos “[…] princípios modernos de um Estado baseado em leis
enraizadas no estilo constitucional ocidental” 131 (DUKE, 2009, p. 367).
Portanto, segundo essa interpretação, o Kyōiku Chokugo é formado por:
elementos xintoístas, nos quais o imperador assumiu o papel central
como um sinônimo da identidade japonesa; aspectos confucionistas,
vistos como pertencentes aos valores tradicionais/xintoístas do Japão;
e pela incorporação da modernidade de origem alemã.
Assim como Duke, Klaus (2016, p. 219) baseia sua análise na inter-
pretação de Inoue Tetsujiro, porém o autor faz uma descrição analítica
mais pormenorizada, buscando na autobiografia, em palestras e nos li-
vros de Tetsujiro as motivações da sua interpretação. Klaus destaca
principalmente o trabalho intitulado “[...] Kokumin dôtoku gairon (»Es-
boço da Moralidade Nacional, «ou» Esboço da Moralidade da nação«)
[...]” (KLAUS, 2016, p. 222), de 1912. Nele, Tetsujiro dedicou um capítulo
para a discussão de cada elemento que constituiu o discurso nacional
japonês.

[…] os princípios básicos da “moralidade nacional” japonesa, a relação entre


a “moralidade nacional” e o kokutai (Capítulo III), a importância do xinto-
ísmo (Capítulos IV e V), o bushidô (cap. VI), as características do sistema
familiar japonês (kazoku-seido; capítulos VII-IX), etc. Inoue também enfati-
zou que os princípios da moralidade nacional japonesa são encontrados em

131 “[...] modern principles of statehood built on laws rooted in western-style constitutionalism”.
160 • O espírito de Yamato

sua forma mais pura no Edito Imperial de Educação de 1890 132 (KLAUS, 2016,
p. 223, grifos no original).

A conclusão de Klaus estabelece certa aproximação entre o dis-


curso nacionalista japonês do alemão, em que “A agressiva política de
expansão do Japão, que começou em 1890, estava arraigada em grande
parte do nacionalismo religioso e na crença da superioridade do caráter
divino da nação, baseada no xintoísmo” 133 (KLAUS, 2016, p. 229). Essas
várias interpretações do edito nos auxiliam a compreender seus possí-
veis significados, dessa forma, como argumentado ao longo do livro,
defendemos que o xintoísmo de Estado se tornou parte indissociável do
discurso nacionalista, sendo materializado no Kyōiku Chokugo como o
discurso legítimo sobre a sociedade japonesa. Esse discurso, ao ser re-
produzido nas escolas, atuou formando um habitus
nacionalistas/xintoísta, ou seja, as estruturas de reprodução social (lei-
tura do edito) se tornaram inscritas na subjetividade das estruturas
cognitivas, formando um sistema simbólico socialmente partilhado.
Por outro lado, os alunos, ao prestarem reverência à foto do impe-
rador e fazerem a recitação do Kyōiku Chokugo, também atuavam de
maneira tática. Hipoteticamente, poderiam estar simplesmente obede-
cendo instruções de seus professores sem estabelecer uma crença 134

132 “[...] the basic principles of the Japanese »national morality,« the relationship between »national morality«
and the kokutai (Chapter III), the importance of Shintô (Chapters IV and V), bushidô (ch. VI), the characteristics
of Japanese familism (kazoku-seido; chapters VII-IX) etc. Inoue also emphasizes that the principles of the
Japanese national morality are found in their purest form in the Imperial Rescript on Education of 1890”.
133 “Japan's aggressive policy of expansion, which began in 1890, was rooted to a great extent in religious
nationalism and the belief in the superiority of the divine character of the nation, based on Shintô”.
134 De acordo com Certeau (2014, p. 253, grifo no original), “[...] entendo por ‘crença’ não o objeto do crer (um
dogma, um programa etc.), mas o investimento das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-la
considerando-a verdadeira – noutros termos, uma ‘modalidade’ da afirmação e não o seu conteúdo”.
Leonardo Henrique Luiz • 161

profunda no discurso nacionalista. Na própria literatura Meiji podemos


perceber as ineficiências da suposta autoridade escolar. No romance de
1906 Botchan, de Natsume Soseki (2016), o personagem principal, que dá
nome ao livro, é um jovem professor de matemática que enfrenta uma
série de dificuldades ao sair de Tóquio e ir lecionar em uma aldeia na
ilha de Shikoku para alunos ginasiais, que não respeitavam as ordens
dos professores 135.
Um caso concreto das várias resistências ao discurso do Kyōiku
Chokugo no Japão é relatado por Klaus (2016), segundo o qual em 1911 o
Ministro da Educação, Komatsubara Eitarō, estabeleceu um decreto em
que todos os professores deveriam levar seus alunos para uma visita
pública a algum santuário xintoísta. No entanto, um grupo de estudan-
tes católicos da Universidade de Sophia se recusou a “[…] se curvar
diante do Santuário Yasukuni. Eles justificaram sua recusa referindo-se
à garantia da liberdade religiosa no Artigo 28 da Constituição” 136
(KLAUS, 2016, p. 230). Esses casos são exemplos da atuação de um dis-
curso estratégico quando encontra diversas respostas.
Um último elemento presente na recitação do Kyōiku Chokugo no
Japão é o “Resposta ao Edito Imperial”. Segundo Shimazono (2009, p.
1090-1091), esse texto servia como uma resposta dada após a leitura do
edito, com o seguinte conteúdo:

135 Além de vários pequenos confrontos com os alunos ao longo do romance, Botchan reclamava da falta de
ordem durante as comemorações públicas da vitória japonesa na guerra contra a Rússia, pois “Os alunos
cantavam os hinos militares à revelia, sem terem sido instruídos a fazê-lo, e ao terminar soltavam gritos de
guerra sem motivo aparente. Pareciam um bando de samurais desgarrados a percorrer a cidade” (SOSEKI, 2016,
p. 143).
136 “[...] to bow before Yasukuni Shrine. They justified their refusal by referring to the guarantee of freedom of
religion in Article 28 of the Constitution”.
162 • O espírito de Yamato

[Resposta ao Edito Imperial]


O Edito Imperial foi graciosamente concedido pela nossa majestade, o nobre
Imperador.
É a base dos ensinamentos do nosso auspicioso país do sol nascente.
É o modelo para todos as pessoas do país do sol nascente.
Vamos viver de acordo com os ensinamentos do Edito Imperial e responder
aos desígnios do nosso respeitado Imperador 137 (SHIMAZONO, 2009, p. 1091)

Nessa resposta, podemos perceber mais diretamente do que no


Kyōiku Chokugo como o edito era representado como uma dádiva do im-
perador (a posição, não o indivíduo). Sendo essa graça dada pelo
imperador, era a forma pela qual a sociedade poderia ser organizada
harmonicamente e que proporcionou, e continuaria proporcionando, o
desenvolvimento pleno do Japão. Além disso, o edito era caracterizado
como possuidor do ensinamento válido para todo o Japão, ligando-o de
forma paradigmática aos elementos formadores do discurso naciona-
lista, como o “Caminho Imperial”. É justamente essa ligação que foi
reproduzida na forma de habitus, formando uma representação oficial
e homogênea da identidade japonesa.
Como visto no decorrer do capítulo, houve um longo processo de
formulação do Kyōiku Chokugo, no qual diferentes grupos disputaram
esse dispositivo do discurso oficial. As bases do edito foram definidas
com base na relação entre o xintoísmo, a figura divina do imperador e a

137 “[Reply to the Imperial Rescript]


The Imperial Rescript was granted graciously by our majestic, noble Emperor.
It is the base of the teachings of the auspicious country of the rising sun.
It is the paragon of all the people of the country of the rising sun.
We will live up to the teachings in the Imperial Rescript, and reply to the design of our respected Emperor”
Leonardo Henrique Luiz • 163

nação, que formariam um todo coeso, em torno do qual a tradição im-


perial foi sustentada. Defendemos que todos esses elementos estavam
presentes na vida cotidiana dos japoneses e formaram aquilo que Taka-
shi Maeyama (1973b, p. 245, grifos no original) chamou de niponicidade:
“Todos estes fatores contribuíram para que a identificação de grupo dos
japoneses fosse fundamentada na etnicidade de em [sic.] termos de ‘ni-
ponicidade’ dramatizada no culto ao imperador”. É justamente essa
niponicidade, em termos de religião, que estamos definindo como habi-
tus xintoísta, que simbolizou o próprio nacionalismo japonês.
4
O HABITUS XINTOÍSTA NO BRASIL

Conforme demonstrado ao longo do livro, há diversos indícios que


apontam as conexões entre o nacionalismo de base xintoísta e o impe-
rialismo, sendo que os indivíduos que participaram do processo
imigratório tiveram contatos com esse mesmo repertório discursivo.
Nas políticas governamentais implementadas, principalmente na Man-
chúria, é possível perceber uma tendência expansionista/imperialista
sendo efetivada por meio da migração. Isso não quer dizer que estamos
defendendo que todos os imigrantes japoneses eram agentes do impé-
rio, já que as resistências aos discursos da educação oficial apontadas
no capítulo anterior deixam isso perceptível, mas também não podemos
considerar que os imigrantes simplesmente abandonaram suas crenças
e práticas ao sair do Japão. Portanto, temos que refletir até que ponto as
ideias nacionalistas reproduzidas no Japão estavam de fato presentes
entre os imigrantes no Brasil. Dessa forma, buscamos explorar a atua-
ção desse horizonte nacionalista japonês no Brasil, mostrando como
esses valores pré-migratórios podem ser compreendidos como habitus
que perpassaram as atividades de parte dos nikkeis no Brasil até, pelo
menos, os anos 1980.
Circunscrevendo a análise, buscamos ressaltar a circulação do
edito no norte do Paraná, privilegiando a região de Assaí, onde é possí-
vel perceber a sobrevivência desse discurso nacionalista entre os
Leonardo Henrique Luiz • 165

nikkeis. Nesse cenário, o Kyōiku Chokugo foi apropriado por meio de duas
tendências gerais: servindo como suporte ao nacionalismo japonês no
Brasil e, principalmente, às atividades de organizações nacionalistas
como a Shindō Renmei; que levaram esse discurso aos extremos; por
outro lado, esse mesmo discurso do edito que definia o ser japonês foi
apropriado servindo para a negociação da identidade dos descendentes
como “nipo-brasileiros”, realizado por meio da mudança de uma série
de significados do discurso nacionalista japonês. No presente capítulo,
buscamos discutir essas duas tendências com base nas fontes disponí-
veis, que evidenciam as apropriações do Kyōiku Chokugo.

A COLÔNIA DE ASSAÍ: UM ESPAÇO NIKKEI

Consideramos que o discurso nacionalista japonês esteve presente


em diversos lugares do território brasileiro onde houve a formação de
uma colônia japonesa, apesar de ter sido expresso em graus variados de
intensidade. Esse discurso pode ser constatado pela presença de vários
elementos, sendo o Kyōiku Chokugo um deles, no qual parte dos imigran-
tes se apegou para reforçar uma identidade japonesa dentro do Brasil.
Pode-se dizer que o fenômeno da imigração reforçou o pertencimento
nacional japonês no momento em que as diferenças em relação à cultura
presente no Brasil foram sentidas pelos imigrantes. Localmente, esse
processo está relacionado com a organização de pequenas “comunida-
des imaginárias”, as quais tinham o objetivo de promover estruturas e
práticas se remetendo à cultura japonesa.
166 • O espírito de Yamato

Em termos de contextualização histórica, na historiografia há al-


guns trabalhos que já discutiram a presença dos japoneses em Assaí.
Destacamos os de Handa (1987), Asari (1992), Sato (1999) e André (2011).
Segundo esses autores, o planejamento da Colônia de Assaí contou com
a implementação de diversas estruturas, como escolas, hospitais e ar-
mazéns, visando à permanência definitiva dos imigrantes na região.
Diferente da política migratória que marcou o primeiro período da imi-
gração japonesa ao Brasil (1908-1924), a construção de Assaí se insere no
segundo período (1924-1941), quando é possível perceber a intervenção
do governo japonês no sentido de estabelecer colônias produtivas. Con-
forme aponta Asari (1992, p. 1), “A implantação da Colônia Três Barras
[antigo nome de Assaí] inseriu-se numa política migratória do governo
japonês, que visava a emigração de agricultores-proprietários”. A mai-
oria das famílias que reocuparam Assaí eram “reimigrantes”, isto é,
eram antigos colonos vindos principalmente de São Paulo que buscaram
se estabelecer como proprietários de terras.
Segundo André (2011, p. 129), a constituição da comunidade japo-
nesa fixada pela condição de proprietários permitiu “[...] que diversas
formas da cultura pré-migratória fossem reconstruídas no Brasil, o que
era até então dificultado pela intensa mobilidade e fragmentação geo-
gráfica das famílias [...]”. Com esse tipo de organização, a vida desses
imigrantes se tornou relativamente independente das instituições bra-
sileiras, apesar da dependência de integração para com a economia
nacional. Segundo o autor, do ponto de vista organizacional, a
Leonardo Henrique Luiz • 167

BRATAC 138 adotou a divisão em seção a partir do sistema japonês de


mura (村) como referência, onde cada seção “possuía um líder que orga-
nizava a vida social, econômica e cultural do local, ainda que integradas
à região de modo geral” (ANDRÉ, 2011, p. 129). Para o autor, toda essa
organização privilegiando a vida dos imigrantes pode ser representada
pela utilização do japonês.

[...] a média de nikkeis falantes de japonês antes da Segunda Guerra Mundial


correspondia a 64,8% do total de chefes de família na região, superando a
média nacional de 62,8%. Por outro lado, o uso do português era apenas de
3,2%, ao passo que a média para o país dizia respeito a 8,4% (ANDRÉ, 2011,
p. 131).

Como aponta Asari (1992), a língua ocupou um importante papel,


pois a preservação da língua japonesa possibilitava diversas opções: fa-
cilitava uma ocasional oportunidade de retorno ao Japão; permitia um
contato com todo o grupo étnico; e viabilizava a preservação de hábitos
e costumes da cultura japonesa. Mesmo nos anos de recrudescimento
das políticas governamentais de Vargas contra os nikkeis que proibiram,
por exemplo, o uso do japonês, os imigrantes buscaram criar formas tá-
ticas de manter aulas de japonês para seus filhos.
Nesse sentido, a iniciativa de construir escolas partiu dos próprios
imigrantes (e não do Estado), o que indica a apropriação do habitus na-
cionalista japonês: as escolas não seriam apenas meios de manter uma
educação de qualidade para os filhos, mas também de ensinar os valores

138 “[...] Brasil Takushoku Kumiai – ブラジル拓殖組合, Corporação de Colonização do Brasil, também
conhecida como BRATAC [...]” (ANDRÉ, 2011, p. 127). Foi a empresa responsável pelo loteamento da região.
168 • O espírito de Yamato

nacionalistas japoneses. Asari (1992, p. 53) aponta que “[...] os colonos


mais cultos formaram uma espécie de ‘clube de amigos’ e revezavam-
se, ministrando aulas, à revelia das ordens do Governo [...]”. Dessa
forma, segundo a autora,

Notemos que antes havia o esforço desesperado dos “colonos” no sentido de


não perderem suas referências culturais e agora, há o interesse da manu-
tenção da cultura como uma oportunidade de fazer parte deste “mundo
desenvolvido”, pois, o Japão é considerado uma potência mundial (ASARI,
1992, p. 53-54).

Na tentativa de “não perder as referências culturais”, a língua se


tornou um dos tópicos norteadores da educação nikkei, pois, “[...] além
do ensino da leitura e da escrita preocupava-se sobremodo com a pre-
servação de valores de seu povo” (ASARI, 1992, p. 50). É nesse aspecto
que o Kyōiku Chokugo ocupou um espaço importante nas escolas, pois
esse texto serviu como a materialização da identidade ensinada no Ja-
pão, portanto sua reprodução no Brasil era parte essencial da
preservação de certa cultura japonesa.
Em termos organizacionais, a cidade de Assaí era um núcleo cujo
entorno foi composto por seções, como Cabiúna, Figueira, Palmital, en-
tre outras. Em entrevista de 2019, a professora de língua japonesa
Naomi Saiki (nissei 139) argumenta que essas seções serviram para melhor
organizar e acomodar as famílias na época (LUIZ, 2019). A família de
Saiki pertencia à seção de Cabiúna e, na década de 1960, período que

139 Segunda geração de japoneses.


Leonardo Henrique Luiz • 169

compreende a infância da entrevistada, essa seção tinha em torno de


100 famílias. A organização básica dessas seções constituía-se de uma
escola de língua japonesa, um salão (Kaikan – 会館) e um campo despor-
tivo. Mesmo sendo um relato sobre uma época relativamente tardia,
diversos elementos organizacionais, principalmente da escola, podem
ser percebidos na fala de Saiki. A escola de língua japonesa de Cabiúna
contava com quatro salas, que tinham em torno de 30 crianças; a entre-
vistada conta que entrou nessa escola em 1966, mas já convivia com a
língua japonesa no ambiente doméstico, sendo inclusive ensinada pela
mãe a ler e a escrever. Só em 1967 que Saiki passou a frequentar o Grupo
Escolar da região e teve os primeiros contatos com a língua portuguesa.
Esse relato é bastante significativo, pois mostra como mesmo na
década de 1960 ainda existiam famílias que educavam seus filhos em
casa na língua japonesa e essas crianças só tinham contatos tardios com
o português, passando por diversas dificuldades no processo de apren-
dizado. Os materiais usados para aprender japonês eram
confeccionados no Brasil, tendo como modelo os existentes no Japão.
Entretanto, segundo Saiki (LUIZ, 2019), esses livros passaram por mu-
danças, e na década de 1960 foram empregados novos textos, ainda com
base no modelo japonês, mas versando mais enfaticamente sobre temas
relacionados ao Brasil por meio da tradução de poemas e canções brasi-
leiros para o japonês. Sobre os livros usados nas décadas anteriores,
Saiki conjectura que eles poderiam ser mais voltados ao ensino da cul-
tura do Japão, inclusive empregando kanjis no sistema de escrita antiga
descrito no capítulo anterior. Os materiais da década de 1960
170 • O espírito de Yamato

enfatizavam os aspectos culturais brasileiros nos livros iniciais e, com


o passar dos anos, faziam gradualmente a introdução aos temas japone-
ses.
Quando perguntado para Saiki quando se deu o contato com o
Kyōiku Chokugo, o relato apresenta importantes indícios das apropria-
ções e da circulação do edito. Segundo a entrevistada, foi dentro de casa
que o Kyōiku Chokugo esteve presente pela primeira vez em sua vida:

NS: Eu via aquele raio de quadro, pendurado dentro de casa, cheio de letri-
nhas... ficava pensando: “o que será que é aquilo? Será que é uma reza, uma
oração, uma coisa budista, né”. E minha mãe... sabe, todo respeito falava:
“Tem que respeitar”… Ninguém sabia porque que tinha que respeitar aquilo
sabe? Minha mãe lia para mim (LUIZ, 2019).

Essa cópia do Kyōiku Chokugo foi adquirida pelos pais isseis, que
contrataram um japonês mascate com habilidades de escrita que pas-
sava pela região. Saiki conta que seus pais compraram o edito devido à
importância que o texto teria para eles. Essa importância foi aprendida
nas escolas no Japão, onde os alunos eram obrigados a memorizar a re-
citação, inclusive com castigos para os que não conseguiam decorar.
Segundo Saiki, até hoje, aos 95 anos de idade sua mãe consegue recitar
partes do Kyōiku Chokugo. Em suas palavras, o conteúdo estaria mais do
que “gravado”, estaria “cravado” em sua mãe; além disso, ela recita
como forma de “exercício de memória”. Houve a tentativa de passar esse
ensinamento para os filhos, ainda em âmbito doméstico, por meio de
explicações e leituras do edito (embora a entrevistada não lembre com
clareza como se davam essas explicações, além de serem “palavras do
Leonardo Henrique Luiz • 171

imperador” que foram transcritas e serviam de orientação para todas as


crianças). Possivelmente, no caso do Brasil, um dos últimos refúgios da
existência desse habitus se deu com a figura do imperador. Saiki relata
a importância da imagem do soberano japonês na época: “Então, até na
minha casa tinha foto do imperador. E na maioria das casas de japoneses
tinha foto do imperador...” (LUIZ, 2019).
Paralelo a essas práticas no seio doméstico, no ambiente escolar
não há uma memória clara da presença do Kyōiku Chokugo, mesmo que
“Na escola japonesa... eu acho que tinha uma cópia daquilo pendurado
em algum... pendurado em algum lugar...” (LUIZ, 2019). Da mesma
forma, os professores do período já não exigiam a memorização, e po-
demos sugerir hipoteticamente que, por ser na década de 1960, já
existiam movimentos de mudança nas percepções em torno da impor-
tância do Kyōiku Chokugo como algo pertencente a outra época;
entretanto, isso não significou a eliminação completa do longo habitus
nacionalista.
Nas lembranças da depoente, é significativo um evento realizado
no kaikan da seção de Cabiúna. Ao se formarem na escola japonesa, os
alunos eram levados ao kaikan junto com os professores e responsáveis,
onde era realizada uma cerimônia solene. No kaikan havia um altar que
“Parece altarzinho do budismo...” (butsudan) que ficava fechado e guar-
dado em um canto protegido. Nessas cerimônias de formatura, esse
altar era aberto solenemente e mostrava as fotografias do casal impe-
rial.
172 • O espírito de Yamato

NS: [...] Onde ele chegava lá, fazia reverência e aí ele levantava a cabeça, todo
mundo em silêncio total. Eu achava que era uma grande coisa que estava
fazendo né… Fica assim... sabe? Aquele silêncio, coração ficava até a 1000 né
[risos] Aí ele abria, amarrava de um lado, amarrava do outro, assim sabe?
Tudo muito formal.
LHL: Aham... Abria as cortininhas...
NS: [ininteligivel] A hora que da... amarrava tudo, estava aberto, né.. com a
fotografia a mostra. Dava aquele 1, 2, 3 passo assim... não sei quantos passos,
era tudo contado… dava os passos, fazia reverência de novo. Aí começava
o... encerramento. A hora que terminava, ele ia lá, só terminava na hora que
fechava aquilo... (LUIZ, 2019).

No relato, Saiki narra que na época não sabia exatamente o que


existia dentro daquele altar no kaikan, mas que era algo sagrado, e só
posteriormente descobriu que se tratavam da fotografia do casal impe-
rial. A entrevistada, que tinha aproximadamente 10 anos, portanto por
volta de 1971, não lembra com clareza, “poderia ter” uma cópia do Kyōiku
Chokugo junto das fotos (prática existente no Japão antes de 1945). Nes-
sas ocasiões, os alunos ficavam longe e só os formandos conseguiam
enxergar dentro do altar: “E mexer naquilo, era como se fosse mexer em
algo sagrado, ninguém podia relar a mão naquilo. Era mais ou menos
assim, era bem rigoroso na época...” (LUIZ, 2019).
É possível notar pelo relato que essas cerimônias passaram por um
período de declínio nessa mesma época, e tal declínio está relacionado
à própria diminuição na quantidade de alunos de língua japonesa: “A
escola foi ficando assim, salas reduzidas, antigamente quando entrei ti-
nha uns 3, 4 salas funcionando... Com o passar dos anos, isso foi
diminuindo para 2 salas, e as 2 salas foi levando assim... poucos alunos
Leonardo Henrique Luiz • 173

dentro...” (LUIZ, 2019). De certa forma, a pressão em ultrapassar o grupo


étnico, criada tanto por parte dos membros da primeira geração sob os
descendentes como pela sociedade brasileira, que exigia a aproximação
aos padrões culturais brasileiros, fomentou mais vínculos com a língua
portuguesa.
Mesmo a ascensão social tinha melhores garantias com o domínio
mais amplo do português, portanto ampliando a sociabilidade dos nik-
keis. Nesse processo, a língua japonesa foi sendo deixada de lado, junto
aos elementos que constituíam parte do habitus. É nesse processo que
podemos perceber as ressignificações do discurso nacionalista. Como
demonstrado, um dos aspectos presentes no edito é o papel da piedade
filial aos pais e do patriotismo.
Tais elementos em específico são possivelmente os que foram mais
reforçados nas escolas japonesas no Brasil entre os nikkeis. Esses prin-
cípios podem ser encontrados de maneira generalizada por intermédio
de ideias em torno dos imigrantes como portadores do “espírito de sa-
murai”, que viviam miseravelmente, mas bravamente, centrados em
trabalhar e visando acumular recursos para voltarem, triunfantes, ao
Japão. Em momentos comemorativos, como os 100 anos da imigração
japonesa para o Brasil, esse discurso é mais enfatizado publicamente,
criando uma imagem polida e identitária, que coloca no “esquecimento”
as hesitações e as falhas presentes na vida dos nikkeis no Brasil (ANDRÉ,
2009).
A questão filial presente no edito era reforçada em vários momen-
tos. Conforme mostra Asari, na década de 1990
174 • O espírito de Yamato

[...] evidencia-se que a vida do imigrante japonês e seus descendentes no


Brasil, buscou seguir o comportamento pregado pelos pais, que é também
bastante ressaltado nas escolas japonesas ainda em nossos dias, como rela-
tou uma professora de língua japonesa, “diariamente, antes de iniciar as
atividades propriamente didáticas, discorro, a partir de exemplos sobre as ati-
tudes que se deve tomar diante dos pais, da sociedade da nação” (ASARI, 1992,
p. 71, grifos no original).

Sugerimos que a observância desse tipo de conduta era comum, e


não realizada apenas como uma forma “saudosista” da vida japonesa,
mas sim parte de uma longa duração que essencialmente se fundamen-
tava no habitus nacionalista/xintoísta como uma maneira de afirmação
da própria identidade japonesa. Entretanto, diferente da sociedade ja-
ponesa, na qual o discurso nacionalista esteve presente em vários
setores, como nas repartições públicas com a imagem do imperador, no
Brasil essa função foi incorporada substancialmente na escola japonesa,
até porque na mesma época o nacionalismo presente nas instituições
públicas era o brasileiro. Nesse sentido, o nacionalismo japonês teve que
se acomodar nos pequenos espaços dentro das colônias japonesas.
Outra forma de perceber a presença do xintoísmo no Paraná é ana-
lisando os dados contidos nos levantamentos demográficos realizados
dentro da colônia japonesa, mesmo apresentando uma série de contro-
vérsias. Por exemplo, o levantamento de 1964 “ブラジルの日本移民” (Os
imigrantes japoneses no Brasil) apresenta várias estatísticas, entre as
quais um capítulo dedicado para a questão religiosa. Na primeira tabela
desse capítulo é mostrada a distribuição religiosa de acordo com a
Leonardo Henrique Luiz • 175

localidade. Reproduziremos apenas a parte que toca ao Paraná e à soma


total do Brasil.
Tabela 1 – Religião por região
Total Católicos Espíritas Sincretismo com Protestantismo Sem Budistas Sincretismo com Xintoísta, Novas
catolicismo religião não-católico religiões no Japão
Brasil 350684 150137 66 2354 6478 20498 156005 2462 12684
Paraná 61440 24192 6 451 677 2801 29694 867 2752
Tomasina 2660 1376 - 19 10 127 1064 11 53
Jacarezinho 3104 1464 3 10 43 87 1355 46 96
Cornélio Procópio 6848 2871 - 85 45 348 3151 109 239
Londrina 21278 7592 3 121 291 832 11137 261 1041
Apucarana 5503 2665 - 16 75 151 2388 83 125
Maringá 11987 4255 - 153 78 665 5747 299 790
Paranavaí 4184 1378 - 20 6 227 2326 27 200
Cruzeiro do Oeste 2093 784 - 6 18 137 1074 24 50
Litoral 943 321 - 2 28 136 450 1 5
Castro 3 2 - - - - 1 - -
Curitiba 2673 1376 - 17 77 84 967 5 147
Campos Gerais 137 91 - 2 6 4 27 1 6
Sudoeste do Paraná 27 17 - - - 3 7 - -
Fonte: Comissão, 1964, p. 280-281
Leonardo Henrique Luiz • 177

De acordo com essa tabela, mesmo os considerados xintoístas es-


tando somados ao grupo das Novas Religiões, a quantidade total dos
praticantes é extremamente pequena, principalmente se comparada aos
católicos e budistas. No caso do Paraná, em torno de apenas 4,4% dos
nikkeis se consideravam do grupo xintoísta/Novas Religiões. Então,
como afirmar, genericamente, que os nikkeis possuíam um habitus xin-
toísta que sustentava a identificação com o Japão? Se olharmos as outras
tabelas que destacam o aspecto religioso, essa indagação se torna ainda
mais forte, como a opção religiosa por geração, que é ainda mais precisa.

Tabela 2 – Religião por geração


Total Católi- Espíri- Sincretismo Protes- Sem Budista Sincretismo Xin- Novas re-
cos tas com catoli- tantismo religião com não-ca- toísta ligiões no
cismo tólico Japão
Total 350591 150101 66 2354 6477 20481 155969 2461 2891 9791
Primeira
geração 136694 21293 25 1407 2937 6449 96448 1625 1925 4585

Segunda
184510 108248 38 845 3230 11905 53947 740 917 4640
geração
Terceira
geração 29387 20560 3 102 310 2127 5574 96 49 556

Fonte: Comissão, 1964, p. 282-283

Podemos notar a existência de algumas disparidades com relação


à tabela anterior. Por exemplo, na tabela 1 existiam 350684 no total de
recenseados, enquanto na tabela 2 esse número é reduzido para 350591.
Apesar disso, é possível observar separadamente a quantidade de xin-
toístas, sendo apenas 0,8% declarados. Teoricamente, esses números
mostram de forma aparentemente categórica que a existência desse ha-
bitus não pode ser sustentada. Entretanto, defendemos que a pretensa
objetividade desses dados estatísticos pode ser questionada e que esses
números apresentam imprecisões em alguns sentidos.
Um primeiro questionamento a ser feito está relacionado às meto-
dologias e aos pressupostos desse tipo de pesquisa. Segundo Bourdieu
178 • O espírito de Yamato

(1987), um dos alicerces das pesquisas de opinião, também está presente


nesse tipo de pesquisa demográfica, é de que todo mundo tem uma opi-
nião, além de ser implícita “[...] a hipótese de que há um consenso sobre
os problemas, ou seja, que há um acordo sobre as questões que merecem
ser colocadas” (BOURDIEU, 1987, p. 137). Isto é, para o presente caso, su-
bentende-se que todos os indivíduos entrevistados possuíam uma
definição clara de religião. Além disso, é possível questionar como esse
censo foi realizado: as questões eram apresentadas com alternativas?
Era possível responder mais de uma alternativa? Por exemplo, entre os
imigrantes japoneses era comum a multiplicidade de adesão religiosa, o
que permitia ao fiel praticar várias religiões ao mesmo tempo (ANDRÉ,
2011). No momento de fazer a escolha para os recenseadores, talvez essa
multiplicidade não aparecesse.
No entanto, o maior problema das pesquisas de opinião, e nesse
caso também das demográficas, “[...] consiste precisamente em colocar
pessoas respondendo perguntas que elas não se perguntaram.” (BOUR-
DIEU, 1987, p. 140), pois, conforme sugerido, mesmo no Japão a definição
de religião para designar o xintoísmo de Estado que constituiu o habitus
xintoísta é extremamente complexa. Portanto, cabe perguntar se os
imigrantes consideravam o xintoísmo de Estado, como nacionalismo li-
gado à figura do imperador, uma religião equivalente ao cristianismo
ou ao budismo. Nesse sentido, devemos considerar que aqueles que res-
ponderam que eram xintoístas estavam mais ligados ao Kyoha shinto, e
que aqueles que mesmo tendo fotos do imperador em casa, mesmo
Leonardo Henrique Luiz • 179

recitando o Kyōiku Chokugo ou mantendo um kamidana, não se conside-


ram “xintoístas” nesses termos de religião.
Nesse ponto, mais uma crítica deve ser feita: alguns autores equi-
param a leitura do Kyōiku Chokugo com a da Bíblia (conforme
demonstrado no capítulo 3 a respeito das traduções do edito para o in-
glês). Entretanto, defendemos que, do ponto de vista de um japonês
comum do começo do século XX, a Bíblia era essencialmente religiosa,
enquanto o Kyōiku Chokugo, apesar de sagrado, não era religioso. Con-
forme apontado, isso não significa uma hierarquização da crença, mas
sim diferentes tipos de divisão do sagrado em relação ao profano.
Outra crítica aos dados estatísticos pode ser encontrada em Gon-
çalves (2005), ao discutir a afirmação sobre uma possível diminuição do
número de budistas no Brasil, baseada nos censos do IBGE entre 1991 e
2000. O autor argumenta:

[...] devo dizer que os dados estatísticos não refletem necessariamente o real
impacto do budismo sobre a sociedade brasileira. A maior parte das organi-
zações budistas abre suas portas para os interessados em ouvir palestras,
freqüentar cursos ou participar de retiros de meditação sem exigir adesão
formal dos mesmos ao budismo. Muitas pessoas têm tido suas vidas influ-
enciadas ou transformadas pelo budismo sem necessariamente terem
sentido necessidade de se converter ao mesmo (GONÇALVES, 2005, p. 206).

Assim, até que ponto os números podem medir a interiorização ou


não de uma crença? 140 Além disso, no próprio Japão há uma curiosa
“contradição” (aos olhos ocidentais) da relação entre religião e

140 Sobre essa questão, ver também André (2011, p. 132).


180 • O espírito de Yamato

xintoísmo. Por exemplo, Furuno (1990) apresenta duas pesquisas de opi-


nião realizadas pelo jornal Asahi Shinbun e pela empresa de
telecomunicações pública NHK (Nippon Hōsō Kyōkai – Corporação de
Radiodifusão do Japão) em relação à crença religiosa. O autor (1990, p.
75-76) organiza uma pequena tabela comparando as respostas, em que
na primeira questão “Você acredita em uma religião específica?”, apenas
4% responderam para o Asahi Shibun que acreditavam no xintoísmo, en-
quanto a opção “sem religião” foi apontada por 62%. Na mesma questão,
foram apenas 3,4% que apontaram o xintoísmo, e outros 65,2% disseram
não ter religião para a NHK. No entanto, na segunda questão “Você tem
um altar familiar do xintoísmo?”, aproximadamente 62% e 59,9%, res-
pectivamente, responderam que sim. Por fim, a quarta questão “Você
acredita em alguma coisa sobrenatural, como punição divina?”, 72% e
86,5%, respectivamente, responderam que sim.
Para Furuno (1990, p. 76), isso aponta como “Embora a maioria das
pessoas seja considerada paroquiano do Xintoísmo de Santuário, elas
não se consideram xintoístas, ou não consideram o xintoísmo como
uma religião” 141. Nesse mesmo sentido, os dados sobre os xintoístas no
Norte do Paraná podem não indicar necessariamente a inexistência de
um conjunto de crenças xintoístas em torno do Kyōiku Chokugo que
eram compartilhadas entre os nikkeis, mas sim que essas práticas não
eram consideradas religiosas.

141 “Although most people are counted as parishioners of Shinto shrines, they do not think themselves
Shintoists, or they do not regard Shinto as a religion”.
Leonardo Henrique Luiz • 181

Tendo em vista essa argumentação, podemos inferir que esse caso


possivelmente se trata de uma compreensão equivocada da natureza da
estatística, e que os números podem indicar algo, mas suas circunstân-
cias apresentam interpretações alternativas. Então, como entender
esses dados para o contexto do presente trabalho? Uma das maneiras é
entender que o processo de inculcação do discurso xintoísta atuou na
transformação de algo arbitrário em natural, “[...] isto é, um hábitus
como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural ca-
paz de perpetuar-se após a cessação da AP [Ação Pedagógica] e por isso de
perpetuar nas práticas os princípios do arbitrário interiorizado.” (BOUR-
DIEU; PASSERON, 1992, p. 44, grifos no original). Isto é, o habitus atua
justamente na interiorização e reprodução de práticas e discursos
mesmo após a cessação de uma ação pedagógica.

A EDUCAÇÃO NIKKEI NO BRASIL

Conforme argumentado, em uma perspectiva que considera o qua-


dro da educação japonesa no Brasil, o papel da escola japonesa (nihon
gakkō - 日本学校) extrapolou o entendimento moderno do que seria o
ambiente escolar, pois teria desempenhado o papel de centros sagrados
da organização comunitária. Ao entrar em contato com alguns traba-
lhos que discutem temas ligados a essa questão, como Cardoso (1973),
Ono (1973) e Maeyama (1973a), notamos que esses autores percebem e
destacam o importante papel das escolas japonesas para os
182 • O espírito de Yamato

imigrantes 142. No entanto, não descrevem de maneira sistemática como


as confluências entre escola e o sistema imperial podem representar in-
dícios da religiosidade xintoísta no Brasil, e que essa religiosidade na
escola era fruto do Estado xintoísta.
Esse silêncio está ligado com a percepção da religião apenas em
termos institucionais, deixando de notar os demais canais pelos quais
as religiosidades japonesas estão presentes no Brasil. Como discute An-
dré (2011), no caso do budismo, a religiosidade foi canalizada para o
âmbito doméstico e para os cemitérios antes da construção dos templos
a partir de 1950. De forma análoga, defendemos que a religiosidade xin-
toísta/habitus nacionalista foi canalizada para a escola japonesa. Apesar
de existiram pequenos casos de práticas xintoístas no Brasil (por exem-
plo, Tomoo Handa [1987] cita a construção do templo xintoísta em
Promissão-SP, que logo foi abandonado, além das atividades em torno
do Ishizuchi Jinja descritas por Pereira [2011]), defendemos que o xinto-
ísmo no Brasil não forma um campo religioso autônomo. E,
principalmente, que o xintoísmo presente nas escolas esteve mais li-
gado ao xintoísmo de Estado como discurso de identidade japonesa. Esse
xintoísmo foi em essência étnico e, portanto, não teve condições para a
reprodução fora do grupo de nikkeis e, principalmente, dos isseis.
Ao analisar o papel das escolas japonesas, autores como Cardoso
(1973) e Ono (1973) afirmam que a instrução escolar cumpriu o papel de
ensinar o idioma japonês, além de “[...] informar o aluno sobre o Japão,

142 Segundo Kumasaka e Saito (1973, p. 450), “Nos fins da década de 30, as escolas japonesas multiplicavam-
se de tal maneira que, nesta época, cerca de trinta mil filhos de emigrantes japoneses estudavam em mais de
quinhentas escolas”.
Leonardo Henrique Luiz • 183

desenvolvendo o ensino de patriotismo e civismo, e complementar o pa-


pel da família na imposição de uma disciplina rígida [...]” (CARDOSO,
1973, p. 321). Entretanto, o autor que melhor trabalha o aspecto religioso
da escola japonesa no Brasil é Maeyama (1973a). De acordo com esse au-
tor, as escolas eram espaços centrais na organização da colônia
japonesa, nas quais se realizavam discussões políticas, faziam-se reuni-
ões e “[...] levavam-se a efeito todas as espécies de cerimônias”
(MAEYAMA, 1973a, p. 436). Além disso,

Nas comunidades japonesas no Brasil, a escola japonesa servia como centro


espiritual, emprestando uma atmosfera religiosa pelas práticas do culto ao
Imperador, convertendo-se, consequentemente, em um tipo de santuário
do ujigami (deidade padroeira) da comunidade. Ela era sagrada. A escola era
o santuário, o Imperador a deidade, e a sutra sagrada era a Escritura Impe-
rial sobre Educação. Dessa maneira, o culto ao Imperador se assemelhava
estritamente ao culto aos antepassados. Mesmo nos anos de 1950 e 1960, em
diversas escolas japonesas ainda se observavam essas mesmas práticas
(Koya no Hoshi, n°42, junho de 1957; n°55, agosto de 1959; e muitas outras
fontes em publicações, observações e entrevistas.) (MAEYAMA, 1973a, p. 437
– grifos no original).

Por meio dessas fontes apresentadas por Maeyama, podemos per-


ceber a extensão dessas práticas, mesmo que elas já tivessem sido
rejeitadas no próprio Japão. Além disso, Handa (1987, p. 725) descreve
que “Evidentemente, uma boa parte do espírito religioso dos imigrantes
devia estar voltada à veneração do imperador, em torno do Kyōiku-
chokugo (edito imperial acerca da educação)”. No entanto, para o autor,
essa devoção não foi suficiente para preencher, sozinha, as crenças dos
184 • O espírito de Yamato

imigrantes. Além disso, é significativa a reflexão feita por Handa em re-


lação à religiosidade e ao sentimento nacionalista entre os nikkeis.

De qualquer forma, na vida espiritual dos imigrantes japoneses, mais forte


que o sentimento por “Buda ou deus xintoísta” era o sentimento pela pátria
ou pela raça, que, não se podia negar, constituía o seu pilar de sustentação
espiritual. Será que não foi por isso que no Brasil, embora não “sentissem”
pressões de cunho religioso por parte dos católicos, sentiram, e muito, pres-
sões sobre seu nacionalismo e etnocentrismo, fazendo debelar todo aquele
movimento de resistência que se viu antes, durante e depois da guerra?
(HANDA, 1987, p. 726).

Sugerimos que o fato da veneração do imperador, pelo Kyōiku


Chokugo ou por outros meios, ser considerada insuficiente, é indiciário
de como essa veneração estava mais ligada ao sentimento nacionalista
e identitário do que a uma crença capaz de explicar todos os fenômenos
cotidianos. É justamente por isso que esse xintoísmo de Estado teve que
“dividir” espaço com outras religiões que dessem conta dessa lacuna e
oferecessem respostas para os problemas práticos da vida, como os cris-
tianismos, algumas formas de budismos, xintoísmos e demais Novas
Religiões Japonesas.
Além desses trabalhos, em 2015 a historiadora Selma da Araujo
Torres Omuro defendeu seu doutorado A escolarização da comunidade
nipo-brasileira de Registro (1913-1963), no qual a autora analisa o papel
das escolas japonesas durante o período de nacionalização do ensino
brasileiro. Omuro argumenta que, embora existisse o “discurso mode-
rado” das autoridades japonesas,
Leonardo Henrique Luiz • 185

[...] a influência do governo japonês na organização das escolas nipo-brasi-


leiras foi forte. Considerando que a educação era um elemento muito
importante no projeto expansão [sic.] imperialista do Japão – por meio da
educação eram reforçados os valores que alicerçavam o poder do Estado, na
figura divinizada do Imperador [...] (OMURO, 2015, p. 63).

Essa influência pode ser percebida nos materiais didáticos usados


nessas escolas, assim como nas próprias entrevistas utilizadas como
fonte pela autora. Além disso, Omuro destaca que é possível perceber
nas escolas a presença de quatro elementos importantes do naciona-
lismo japonês: a bandeira, o hino japonês, a foto do imperador e o Kyōiku
Chokugo 143. Entretanto, a autora argumenta que esse nacionalismo
(exemplificado na Shindō Renmei) tomou formas extremas de “[...] aten-
tados violentos contra pessoas e propriedades da comunidade nipo-
brasileira, não se dirigiu contra a sociedade e o governo brasileiro”
(OMURO, 2015, p. 142), portanto não classifica esse processo como im-
perialista. Mas, apesar de não ter as instituições brasileiras como alvo,
defendemos que os elementos que constituem o habitus da Shindō Ren-
mei tiveram bases imperialistas e constituem fatores que possibilitam
uma análise mais precisa da presença dos imigrantes japoneses no Bra-
sil.

143 Entretanto, a discussão feita por Omuro não teve como objetivo principal analisar esses elementos. Além
disso, em algumas das entrevistas realizadas, a autora não perguntou sobre o Edito da educação, como é
destacado: “Então novas questões foram acrescentadas nas entrevistas realizadas por último. Uma questão
sobre o Kyōiku Chokugo, um Edito Imperial sobre a Educação, que era declamado diariamente nas escolas
japonesas até o final da Segunda Guerra Mundial. A pesquisadora desconhecia havia [sic.] essa prática no Japão
e também em algumas escolas japonesas instaladas no Brasil. Outra questão que passou a ser acrescentada nas
últimas entrevistas foi a referente ao movimento Shindô Renmei” (OMURO, 2015, p. 31).
186 • O espírito de Yamato

Ainda sobre os materiais didáticos usados por imigrantes no Bra-


sil, Lesser argumenta que, de uma perspectiva comparativa, durante a
década de 1930, “[...] o número bruto de material japonês superava em
muito o importado da Itália, apesar de a colônia japonesa ser muito me-
nor” (LESSER, 2001, p. 167). Normalmente, os autores entendem que essa
preocupação de se fundamentar nos materiais japoneses está relacio-
nada com o desejo de que a educação dos filhos no Brasil fosse análoga
a dos japoneses, visando a um possível retorno ao Japão. Entretanto, é
preciso lembrar que os imigrantes desejavam não apenas que seus filhos
soubessem a língua japonesa, mas todo o repertório discursivo sobre a
constituição da nação, no qual o Kyōiku Chokugo ocupou um espaço im-
portante junto com as figuras imperiais.
Nesse sentido, entendemos que a preservação do edito, no Japão e
no Brasil, pode ser explicada pela maneira com que o discurso do Kyōiku
Chokugo influenciou na construção da ideia de nação japonesa. Como
apontado, no Japão pós-Segunda Guerra Mundial, há uma ruptura di-
reta por meio das tentativas de remover o discurso nacionalista das
instituições públicas. Segundo Igarashi (2011), a explosão das bombas
atômicas no final da Segunda Guerra Mundial cumpriu um papel signi-
ficativo na reconstrução, pois serviram como marcos da finalização do
caos e da abertura para a nova ordem; esse discurso foi apropriado pelos
líderes Aliados e japoneses. Na prática, a própria vida dos japoneses pas-
sou por alterações marcantes. Igarashi (2011, p. 165) mostra como o pós-
Guerra também trouxe um novo regime regulatório “[…] que procurava
produzir japoneses com corpos limpos e democráticos”.
Leonardo Henrique Luiz • 187

Além disso, é preciso lembrar que a destruição causada pelas bom-


bas incendiárias acabou com a infraestrutura das cidades. Nessa
condição, os japoneses tiveram que lutar para manter suas necessidades
básicas. O autor aponta que “A falta de comida que caracterizou a guerra
cresceu e piorou imediatamente depois, forçando as pessoas a disputar
os itens básicos de comida” (IGARASHI, 2011, p. 137). As porções distri-
buídas pelo governo eram insuficientes e muitas vezes os indivíduos
tiveram que recorrer ao mercado negro em busca de sobrevivência: “O
lixo dos desorganizados corredores das instalações militares america-
nas também vinha a ser um recurso valioso, sendo cozido e servido no
mercado negro. O cozido feito desse tipo de lixo era um item popular
que esgotava em minutos” (IGARASHI, 2011, p. 139). Esse tipo de experi-
ência do pós-Guerra (além de uma infinidade de situações) levou os
japoneses a uma nova maneira de encarar a sociedade e a ressignificar
as práticas e representações adquiridas durante o período nacionalista.
Entretanto, no Brasil essa ruptura não ocorreu da mesma forma,
pois, apesar das dificuldades enfrentadas, ainda havia maneiras de
manter certas práticas ligadas à identidade japonesa nacionalista. Esse
fenômeno apresentou repercussões significativas em termos de etnici-
dade. Segundo Siân Jones (2005, p. 33), “[...] a etnicidade envolve a
construção subjetiva da identidade com base na cultura compartilhada
real ou pressuposta e/ou descendência comum [...]”. No caso dos nikkeis
que têm essa consciência de pertencimento, ao preservar o edito e, por-
tanto, o discurso nacionalista japonês, o imigrante assumiu aspectos de
uma identidade estereotipada do seu país de origem.
188 • O espírito de Yamato

Conforme será demonstrado, o discurso nacionalista japonês foi


apropriado de diversas maneiras no Brasil. Possivelmente a mais co-
mum está no deslocamento do discurso nacionalista para o “bem” do
Brasil. Lesser (2001, p. 153) denominou esse fenômeno de “Busca de um
hífen”, no qual os indivíduos lutam (em termos de representação) para
serem reconhecidos como nipo-brasileiros. Podemos perceber isso ao
observar o exemplo de José Yamashiro, discutido por Lesser:

Yamashiro tentou explicar como a etnicidade hifenizada poderia beneficiar


a sociedade brasileira, numa conversa, talvez hipotética, entre um imi-
grante mais velho e um jovem estudante nipo-brasileiro. O mais novo
perguntava sobre o conceito de “Yamato damashii”, que o mais velho inter-
pretou como “alma japonesa”, que levava a uma lealdade imorredoura ao
imperador. O jovem reagiu com surpresa, perguntando por que razão ele,
nascido no Brasil, deveria ser leal ao imperador. A resposta do mais velho,
contudo, foi puramente nikkei: “Vocês devem defender a bandeira brasi-
leira com o mesmo ardor e a mesma dedicação de um soldado japonês
defendendo seu soberano. O que vocês não devem é interpretar o ‘Yamato
damashii’ unicamente ligado ao Mikado ... se vocês juram defender a inte-
gridade da Pátria Brasileira, suas instituições e a ordem ... Eis a essência do
‘Yamato damashii’” (LESSER, 2001, p. 223).

Essa relação estabelecida entre o conceito de Yamato damashii e a


dedicação ao Brasil revela uma das formas com que o nacionalismo ja-
ponês foi apropriado. Devemos levar isso em conta ao analisar o Kyōiku
Chokugo no Brasil, pois a circulação do texto está condicionada de
acordo com a maneira com que os indivíduos interpretaram a mensa-
gem. O caso de Yamashiro demonstra de maneira prévia o que ocorreu
Leonardo Henrique Luiz • 189

com o Kyōiku Chokugo, pois, como será demonstrado, o edito também foi
interpretado no Brasil como uma forma de legitimar a contribuição dos
imigrantes japoneses na sociedade brasileira.

O KYŌIKU CHOKUGO NO BRASIL

Com base nas reflexões apresentadas em todo o livro, podemos


afirmar com segurança que todos os imigrantes que chegaram ao Brasil
tiveram algum contato (com graus de intensidade variados) com o apa-
rato de ideias xintoístas descritos e que constituiu o sistema imperial.
Nas palavras de Shoji,

Tendo sido educados desde o final da Era Meiji até o início da Era Showa, a
maioria dos japoneses no Brasil aprenderam a cultivar o espírito japonês
(yamato damashii) para acreditar na divindade do imperador, e se necessá-
rio, para morrer por ela e pelo imperialismo japonês que resultaria na
Esfera de Co-Prosperidade do Grande Leste Asiático (daitôa kyôeiken) 144
(SHOJI, 2008, p. 14).

De acordo com essa interpretação, que também adotamos aqui, di-


versos eventos que marcaram a história dos japoneses no Brasil têm
como base essa cultura pré-migratória 145. Entretanto, é preciso ressaltar
que as percepções sobre os eventos, como a Guerra do Pacífico, variaram
conforme a geração. De acordo com Igarashi (2011), para os intelectuais

144 “Having been educated from the end of Meiji Era through the beginning of Showa Era, the majority of the
Japanese in Brazil had learned to cultivate the Japanese spirit (yamato damashii) to believe in the divinity of the
emperor, and if necessary to die him and for the Japanese imperialism that was to result in the Greater East Asia
Co-Prosperity Sphere (daitôa kyôeiken)”.
145 É necessário destacar que termos como “cultura pré-migratória” são generalizações, pois abrangem
aspectos seletivos da sociedade japonesa.
190 • O espírito de Yamato

nascidos no início do século XX, a guerra representou o mal, enquanto


para os nascidos nos anos 1920, a guerra foi vista como necessária para
engrandecer o Império japonês. Portanto, isso apresenta uma variação
geracional na maneira com que o nacionalismo foi percebido dentro da
sociedade japonesa. De qualquer forma, um dos eventos internos que
mais abalou a história dos nikkeis no Brasil e que evidencia as perma-
nências desse habitus nacionalista foi a atuação das organizações
nacionalistas japonesas.
Segundo a interpretação de Diego Avelino de Moraes Carvalho
(2017), apesar das diferenças organizacionais, a formação dessas associ-
ações/agremiações partiu de uma tentativa de resistência ao processo
de aculturação, e a formação desses grupos buscava se proteger das res-
trições impostas pelo Estado Novo, ao mesmo tempo em que
pretendiam preservar aspectos considerados tradicionais da cultura ja-
ponesa. Nesse sentido, várias organizações foram elaboradas; entre as
quais, a que ganhou mais destaque foi a Shindō Renmei 146, criada ofici-
almente em 1945 pelo coronel Junji Kikawa, que, por meio de um
discurso anti-assimilacionista, argumentava que os líderes da imigra-
ção japonesa tinham abandonado os imigrantes à própria sorte com a
deflagração da guerra. Segundo Carvalho (2017, p. 445),

146 Existem linhas contraditórias de interpretação sobre a atuação da Shindō Renmei. Por não ser o objetivo
principal do presente texto, apresentaremos aquela que pode ser considerada com maior embasamento
historiográfico. Entretanto, existem análises que não foram ainda amplamente abordadas do ponto de vista
historiográfico e que contestam a narrativa padrão dos eventos, destacando o documentário “Yami no Ichinichi
- O Crime que abalou a Colônia Japonesa no Brasil” (2012). Nele, o diretor buscou mostrar que a Shindō Renmei
não teria relação com os assassinatos contra membros da colônia japonesa. Consideramos que essa
interpretação busca criar novas memórias sobre o evento e apresenta uma perspectiva controversa pela falta
de embasamento na documentação. Trabalhos futuros podem contribuir para entender esse fenômeno: ver
também a discussão em Carvalho (2017).
Leonardo Henrique Luiz • 191

Eis o mote para o surgimento da Shindô-Renmei: servir como aporte moral


e de liderança para os japoneses que aqui haviam ficado desguarnecidos
pela omissão, seja dos diplomatas e cônsules, seja das Companhias e Coope-
rativas. [...] Ao que consta, a organização aparece como uma forma de
preencher uma lacuna de liderança dentro da colônia supostamente dei-
xada pelos diplomatas e pela “classe dominante”. Nesse ponto, não se
diferenciava de outras dezenas de associações que transitavam naquele in-
tercurso.

Esse é um aspecto importante, pois, segundo o autor, efetivamente,


a Shindō Renmei nasceu a partir de outras agremiações do período: “O
seu líder maior, Junji Kikawa, estava àquela época incorporando as di-
versas associações clandestinas japonesas formadas no interior dos
Estados de São Paulo e do Paraná e angariando tantos outros simpati-
zantes da causa” (CARVALHO, 2017, p. 447). Nesse sentido, o autor
apresenta um extenso debate sobre a data de fundação da Shindō Ren-
mei, citando uma série de outras produções historiográficas sobre a
organização. Carvalho argumenta que há divergências na datação exata.
Autores como Tomoo Handa apontam para 22 de julho de 1944, “Tese
improvável [...] uma vez que os documentos do DEOPS/SP apontam seu
surgimento para o ano de 1942” (CARVALHO, 2017, p. 447). O próprio ad-
vogado da Shindō Renmei, Herculano Neves, data a origem da
associação em 1942, mesmo assim Carvalho sustenta a dificuldade de
precisar a data. Por outro lado, estabelece que o consenso sobre a fun-
dação foi na cidade de Marília-SP.
De acordo com Dezem (2000), a Shindō Renmei atuou principal-
mente nos estados de São Paulo e Paraná. Os anos mais sensíveis dessa
192 • O espírito de Yamato

atuação foram no contexto de conflito interno após a Segunda Guerra


Mundial, em que a comunidade japonesa foi dividida entre os que acre-
ditavam na derrota, os “makegumi (derrotistas)” 147, e os que defendiam
que o Japão tinha vencido a guerra, os “kachigumi (vitoristas)”. De acordo
com Lesser,

O principal objetivo da sociedade, que se tornou público em agosto de 1945,


logo após a rendição do Japão, era a manutenção, no Brasil, de um espaço
permanentemente japanizado, por meio da preservação, em meio aos nik-
keis, da língua, da cultura e da religião, bem como o restabelecimento das
escolas japonesas. Uma coisa que a Shindô Renmei não promovia era o re-
torno ao Japão (LESSER, 2001, p. 241, grifos nossos).

Tendo como base esse objetivo, a Shindō Renmei realizou diversos


atentados contra os “derrotistas” 148. Em linhas gerais, pode-se argu-
mentar que atuou em diferentes frentes: “1) ataque às plantações de
hortelã e cultivo de bicho-da-seda; 2) criação de uma imprensa própria
que propagava seus ideais; 3) Ameaças e ataques contra os ‘derrotistas’”
(CARVALHO, 2017, p. 455). Essas ações eram, do ponto de vista estrutu-
ral, organizadas pela angariação de fundos: “Segundo o que foi possível
ser apurado pelo DOPS, a associação conseguiu se espalhar por cerca de
64 municípios paulistas, perfazendo um total de aproximadamente 100

147 Esse grupo se autodenominava “esclarecidos” (LESSER, 2001, p. 242).


148 Esses ataques foram realizados pelo grupo Tokkōtai (特攻隊), que atuou como braço armado da Shindō
Renmei (CARVALHO, 2017). A atuação da Shindō Renmei, assim como os atentados, se tornaram célebres pelo
romance de Fernando Morais, Corações sujos (2000), segundo o qual “Durante os treze anos de atuação da
Shindô Renmei, 23 pessoas foram mortas pela organização e 147 ficaram feridas. Ao todo, a polícia paulista
deteve, identificou e fichou 31380 imigrantes japoneses suspeitos de ligações com a seita [...]” (MORAIS, 2000,
p. 331).
Leonardo Henrique Luiz • 193

mil sócios-contribuintes, além de outros 60 mil que colaboram na con-


dição voluntária de não-associados” (CARVALHO, 2017, p. 454).
A interpretação de Carvalho busca mostrar como as atividades da
Shindō Renmei foram mais complexas do que aparece em trabalhos
como o do jornalista Fernando Morais, em sua obra Corações sujos
(2000), ou em matérias da imprensa da época. Segundo o autor, dentro
das associações nacionalistas, entre as quais a Shindō Renmei, nunca
houve homogeneidade. Inclusive, os assassinatos teriam sido estraté-
gias tardias e justamente essas ações levaram às deserções que
fundaram novas associações após os primeiros ataques contra os “der-
rotistas”. Nas palavras de Carvalho (2017, p. 464),

Muitos preferem não mais colaborarem (ainda que indiretamente) com os


propósitos extremos da (naquele contexto transformado em) milícia. Optam
por se associarem a outras organizações nacionalistas ou simplesmente
comporem o grupo dos chamados “Lero-Lero” [Grupo intermediário entre
os vitoristas e os derrotistas] de modo a não gerarem indisposições com os
“vitoristas”.

Dentro da Shindō Renmei, era o grupo denominado Tokkōtai (特攻


隊) que realizava esses ataques. Embora alguns Tokkōtai neguem vee-
mentemente a ligação com a Shindō Renmei (ver a nota 145) e atribuem
suas ações a tentativas individuais de eliminar os “traidores”, os indí-
cios do processo criminal apontam que foi a Shindō Renmei quem
forneceu as bases, materiais e ideologias para os assassinatos. Além
disso, segundo Carvalho (2017, p. 465, grifos no original), um dos mem-
bros que recrutavam os Tokkōtai, Kamegoro Ogazawara, teria dito que
194 • O espírito de Yamato

“[...] preferia vê-los mortos do que vê-los confessar que eram membros da
Shindô [...]”.
De uma perspectiva cronológica dos atentados, o autor aponta abril
de 1946 como o primeiro pico de ataques causando feridos e mortes. O
segundo pico deu-se em julho de 1946, com a prisão dos principais líde-
res da Shindō Renmei; os assassinatos continuam, mas de forma
desordenada (CARVALHO, 2017, p. 482). Em termos oficiais, o autor ob-
serva que

Entre março de 1946 a janeiro de 1947 – encerrando com o último assassi-


nato ocorrido no Bairro da Aclimação, na capital paulista – o computo [sic]
do caso chegou a marca de 23 mortes e 147 feridos. Este é o saldo oficial,
embora seja sempre possível multiplicar esta conta em virtude das dezenas
de casos não denunciados. Uma cifra também não possível de ser aferida é
quanto às mortes que continuaram a existir nos anos seguintes até o fim
dos anos 1950 (CARVALHO, 2017, p. 483).

O autor também aponta que podem ter existido outras organiza-


ções que atuaram contra os ataques da Shindō Renmei e eram
compostas por “derrotistas”. Além disso, “A prisão/condenação dos
principais líderes não aplacou uma sede de justiça ou reparação por
parte das famílias e comunidades onde residiam os 'esclarecidos' mor-
tos ou feridos” (CARVALHO, 2017, p. 483).
Ao analisar esse evento, Shoji (2008) estabelece uma ligação direta
entre a Shindō Renmei com o xintoísmo de Estado, argumentando que
o fenômeno Shindō Renmei deve ser entendido como um movimento
Leonardo Henrique Luiz • 195

religioso e parte da atuação do xintoísmo de Estado no Brasil. Segundo


o autor,

Shindô Renmei pode ser entendida como um novo movimento religioso que
teve como objetivo a restauração do xintoísmo de Estado dentro do micro-
cosmo representado pelos imigrantes japoneses no Brasil, propagando uma
nova crença na vitória japonesa como o reforço de sucessivas profecias fra-
cassadas 149 (SHOJI, 2008, p. 24).

Essa interpretação de Shoji vai além das análises feitas até então
sobre a Shindō Renmei, pois acrescenta de maneira reveladora o aspecto
religioso da organização. Além disso, contribui para o presente livro ao
demonstrar a influência do Estado xintoísta na vida dos imigrantes no
Brasil, e que essa influência teve uma conexão importante com a edu-
cação: “O Estado japonês não foi transplantado para o Brasil, mas os
trabalhadores japoneses migrantes (dekasegi) no Brasil, educados nas
escolas japonesas no começo do século XX, sustentaram a religiosidade
do xintoísmo Imperial mesmo depois da Segunda Guerra Mundial” 150
(SHOJI, 2008, p. 15).
Em termos de identidade, normalmente o fenômeno da Shindō
Renmei é entendido como uma rejeição violenta da identidade brasileira
(LESSER, 2001). Entretanto, de maneira complementar, defendemos que
essa rejeição só é possível pela existência de um discurso nacionalista

149 “[…] Shindô Renmei can be understood as a new religious movement that had as its objective the
restoration of the State Shinto inside the microcosm represented by the Japanese immigrants in Brazil,
propagating a new belief in Japanese victory as the reinforcement of successive failed prophecies”.
150 “The Japanese State was not transplanted to Brazil, but the Japanese migrant workers (dekasegi) in Brazil
alone, educated at Japanese schools at the beginning of the twentieth century, sustained the religiosity of
Imperial Shinto even after the Second World War.”
196 • O espírito de Yamato

japonês dentro do Brasil. Mais que uma simples “desilusão coletiva”


provocada por um pequeno grupo dentro da colônia japonesa (KUMA-
SAKA; SAITO, 1973), entendemos que a Shindō Renmei só se desenvolveu
por existirem princípios nacionalistas compartilhados na forma de ha-
bitus em grande parte dos imigrantes.
De fato, as referências para grandes quantidades de “membros” na
Shindō Renmei podem ser explicadas nesses termos. Por exemplo, Les-
ser (2001, p. 245) aponta para a atuação da polícia na sede da Shindō
Renmei em 1946, que apreendeu “[...] pilhas de material de propaganda,
um mimeógrafo usado para produzir o jornal semanal da organização e
uma lista de 130 mil membros foram encontrados”. É improvável que
todas essas 130 mil pessoas fossem de fato membros ativos da organi-
zação, mas as pessoas que se aproximaram das atividades da Shindō
Renmei provavelmente compartilhavam aspectos desse habitus.
Em uma análise detalhada entre os membros fundadores da Shindō
Renmei, encontramos todo esse repertório que estamos caracterizando
como “habitus imperialista/xintoísta” ligado ao Kyōiku Chokugo. Um
exemplo consistente, em termos de documentação, é o de Masanobu
Sato, que escreveu uma autobiografia intitulada A minha vida é de amor
(SATO, 2003). Esse livro foi escrito na forma de diário e tem caracterís-
ticas memorialistas, portanto é repleto de narrativas cotidianas e de
impressões sobre o passado vivido pelo autor, sendo justamente entre
esse emaranhado de informações que podemos encontrar resquícios do
habitus nacionalista.
Leonardo Henrique Luiz • 197

Sato nasceu em 1918 em Hokkaido (norte do Japão) e veio ao Brasil


em 1928 com 17 membros da família, entre os quais tios, tias, avós, pais
e bisavó materna (SATO, 2003). Entre os acontecimentos narrados, Sato
descreve o processo de criação da Shindō Renmei como uma sociedade
pública em 1945, em que assumiu o cargo de tesoureiro; seu pai, Masao
Sato, foi o chefe da filial da Shindō Renmei em Pompeia (SATO, 2003).
Ambos foram presos em 1946 e ficaram reclusos no presídio da Ilha An-
chieta; o autor foi colocado em liberdade condicional em 1948 151.
O envolvimento de Sato com a Shindō Renmei começou a partir de
uma discussão com um amigo, Manabu Higashitani, sobre a situação da
guerra. Esse amigo o convidou para um encontro em Tupã-SP com Sei-
ichi Tomari, “reservista, sargento do Japão” (SATO, p. 2003, p. 35). Dessa
conversa em Tupã que versou sobre a guerra e a preocupação entre os
japoneses no exterior e o que eles poderiam fazer para ajudar seu país
de origem, Sato foi convidado para outra reunião: “Da reunião em São
Paulo com o ex-tenente coronel da guerra do Japão, Junji Kichikawa,
nasceu a associação secreta de Koodocha, e não podíamos falar dela a
qualquer pessoa. A fundação foi em 2 de maio de 1945” (SATO, 2003, p.
36). Da perspectiva de Sato, a Shindō Renmei nasceu dentro da própria
Koodocha.

A cada dia aumentava o número de novos companheiros e não podíamos


mais continuar como associação secreta, por isso, resolvemos mudar o

151 Antes de ser enviado para o presídio de Anchieta, Sato relata que “Eu fiquei três meses preso no
Departamento de Ordem da Política Social, dando depoimentos e sendo torturado, para contar onde estava o
dinheiro da sociedade, uma vez que eu era tesoureiro. Mas eu não abri a boca, apesar de sofrer muito. A sede
não tinha tanto dinheiro nem armas” (SATO, 2003, p. 41)
198 • O espírito de Yamato

nome para Shindô Renmei, uma associação pública, registrada por inter-
médio de um advogado brasileiro. A associação secreta foi fechada antes do
término da 2° Guerra Mundial e nasceu a Shindô-Renmei (SATO, 2003, p.
37-38).

Esse processo contou com discordâncias entre os membros direto-


res da Koodocha, em que os mais “enérgicos e bravos” fundaram a
Shindō Renmei, enquanto os mais “pacientes” fundaram outras organi-
zações (SATO, 2003, p. 39). Segundo Sato, no dia 1 de abril de 1946, após
os primeiros ataques dos Tokkōtai, a polícia fez uma batida na sede da
Shindō Renmei e levou vários membros presos. Entretanto, o autor frisa
que a organização não era uma sociedade terrorista e não tinha relação
com os atentados. Tão revelador quanto essa não associação com os
atentados é a negação do envolvimento da Shindō Renmei com os este-
lionatos. Segundo Sato (2003, p. 185):

Os oportunistas aproveitaram a confusão e venderam bastantes cédulas de


ienes japonês que já tinham perdido o valor e não circulavam mais no Japão.
Os grandes empresários, que eram derrotistas, faziam uma falsa propa-
ganda de que o Japão ganhara a guerra e que os japoneses podiam regressar
ao seu país. Por isso, os vitoristas compravam os ienes já desvalorizados.
Este foi um grande crime que estas pessoas cometeram! Eles eram os cabe-
ças da colônia japonesa e até foram condecorados pelo governo Japonês.

Sugerimos que essa narrativa dos eventos é uma tentativa de des-


vencilhar a Shindō Renmei de qualquer crime. Uma hipótese que surge
é que na literatura sobre a imigração japonesa, abarcando diários e li-
vros de memória dos imigrantes, há versões alternativas de vários
eventos do processo imigratório, materiais ainda não explorados nos
Leonardo Henrique Luiz • 199

trabalhos acadêmicos devido à inacessibilidade da língua (a maioria está


em japonês) para a maioria dos pesquisadores 152.
De qualquer forma, em vários momentos da narrativa de Sato, há
indícios que revelam o habitus que remete ao xintoísmo de Estado in-
corporado ao discurso nacionalista, principalmente em práticas
aparentemente despretensiosas. Por exemplo, em 1998,

No dia 20 de junho, vai ter a festa dos 90 anos da imigração japonesa, pedi-
ram à associação Rosso Tomono-kai, para as pessoas idosas fazerem a
limpeza do Museu [Histórico da Imigração Japonesa do Paraná – em Rolân-
dia] e exporem objetos nos lugares. Neste Museu, há muitas fotos do
passado e também fotos da família imperial. Cada vez que nos visitam, eu
sinto falta da foto do imperador Meiji que é importante e significa muito
para este Museu, uma vez que, o imperador Meiji foi quem fez o pacto de
amizade Brasil-Japão, e a primeira imigração veio no tempo dele. Como em
casa, eu tinha uma foto do imperador Meiji com a Imperatriz, doei pra o
Museu, e coloquei-o num lugar mais alto que o das outras fotos. Coloquei,
também, um quadro em que o imperador Meiji distribui, à nação: ‘Palavra
Imperial sobre a Educação’, em que fala como a pessoa deve se comportar
neste mundo: ter piedade, honestidade, Alma moral (Espírito justo), paz,

152 Sato (2003, p. 185-186) faz uma longa menção a um desses textos: “Um dia o amigo Shigueo Nishida
emprestou-me um livro que trouxe da Biblioteca Municipal de Londrina, cujo título era ‘Tasukon 100 Anos’, que
foi publicado em 20 de janeiro de 1990, escrito por Toyoshima Hidesaku, e impresso no Japão por uma editora
de Tokyo. O livro conta toda a história da venda de ienes desvalorizados, pelos oportunistas que se
aproveitaram dos patrícios, em São Paulo, e de todos os visitantes, autoridades, e de pessoas importantes do
Japão, que vieram ao Brasil após o término da guerra. Eles agradavam esses visitantes para esconder o que
fizeram aos patrícios. Eles ficaram na boa! Este livro não existe mais para ser comprado, porque os derrotistas
incineraram os volumes para não fica como prova. Mas ficou um exemplar do livro na Biblioteca Pública
Municipal de Londrina, e doado em 10 de novembro de 1999, pelo Senhor Uchikubo. Eu tenho a fotocópia de
uma parte do livro. No livro conta, como na verdade, o Japão tinha sido derrotado na 2° Guerra Mundial. As
pessoas que reconheceram logo a derrota e as pessoas que possuíam bastantes ienes, já desvalorizados, não
queriam perder e fizeram mais propaganda com notícias falsas, deixando os patrícios confusos. Estas pessoas
eram os derrotistas e ficaram como membros das diretorias das associações dos Nipo-Brasileiros. Estas pessoas,
a maioria, foram condecoradas pelo Governo do Japão, e os membros dos vitoristas, que tanto amavam a pátria,
não foram condecorados”.
200 • O espírito de Yamato

relação amigável com todo mundo, união, amor à nação, educação dos fi-
lhos, respeito aos idosos (SATO, 2003, p. 170-171, grifos nossos).

Atualmente, no referido museu de Rolândia, há alguns espaços que


representam como era organizado o interior das casas dos imigrantes;
nesses espaços é marcante a presença dos kamidana com fotos do impe-
rador e da imperatriz. Além disso, o quadro doado por Sato, Palavra
imperial sobre a educação, faz parte de uma área destinada a explicações
sobre o Kyōiku Chokugo, em que existem as versões do edito em japonês
e português. Possivelmente, a versão em japonês foi a doada por Sato,
um indício muito importante para o presente texto, pois revela a ligação
entre o Kyōiku Chokugo como materialização do nacionalismo e as soci-
edades que defendiam o nacionalismo japonês no Brasil (a própria
Shindō Renmei seria uma). Ao confrontarmos tal circunstância com ou-
tros indícios, essa relação se torna mais evidente. Consultando os
arquivos do Deops-PR preservados no Arquivo Público de Curitiba 153,
podemos perceber a preocupação da Shindō Renmei de Assaí em manter
diversos materiais educacionais.
Esses materiais foram apreendidos a partir das investigações do
delegado João André Dias Paredes, de Cornélio Procópio, e enviados em
relatório para o major Antonio Pereira Lira, chefe de polícia do estado,
em Curitiba. No relatório, o delegado (1948) argumenta que

Entre o material apreendido na séde da Shindô RENMEI, em ASSAÍ, e que se


encontra na delegacia de policia, figura um nicho simbólico, com o emblema

153 Essa documentação foi cortesia de Richard Gonçalves André, que gentilmente cedeu a documentação.
Leonardo Henrique Luiz • 201

da mesma organização e disticos em idioma japonês, o que demonstra o ca-


rater litúrgico empregado para impressionar, principalmente os neófitos
que prestam juramento aos ideais da Shindô RENMEI (DELEGADO, 1948).

Em anexo a esse relatório, é apresentado uma cópia do que seria os


estatutos da Shindō Renmei. Nesse documento, é argumentado que “Em
bora [sic.] se modifique o sistema politica do Brasil ou mesmo do
mundo, deveo japonez [sic.] conservar sempre o sentimento espiritual
de sua patria [sic.]” (DELEGADO, 1948). Além disso, entre os tópicos
desse estatuto está a necessidade da “Compenetração ao espirito japo-
nez” pela “Educação japoneza” (DELEGADO, 1948).
Em seguida, no mesmo dossiê do Deops, diversos materiais escola-
res em japonês que foram apreendidos e transformados pela polícia em
material de prova contra as atividades subversivas das “Sociedades Ter-
roristas” foram anexados. O tradutor que atuou no caso na época,
Yoshito Mori, relatou que entre tais documentos apreendidos estava o
“Caderno manuscrito N° 1 – Mensagem e explicação do Imperador Meiji,
que foi proclamado no ano de 1890, sobre a instrução pública” (DELE-
GADO, 1948). Mesmo não sendo nominalmente chamado de Kyōiku
Chokugo, não é coincidência que, pela descrição do tradutor, o ano e o
conteúdo sejam o mesmo do edito. Esse indício aponta de maneira re-
veladora como a mensagem nacionalista do Kyōiku Chokugo esteve
presente entre esse tipo de organização japonesa no Brasil.
No mesmo dossiê estão presentes diversas cartas ameaçando de
morte indivíduos que residiam no Paraná, principalmente em cidades
como Londrina, Assaí, Cambé, Carlópolis, Arapongas e até o estado de
202 • O espírito de Yamato

São Paulo, em cidades como Santa Cruz do Rio Pardo. De certa forma,
essas várias ocorrências revelam mais uma vez a circularidade das prá-
ticas entre várias regiões onde havia a presença de nikkeis.
Conjecturamos que o próprio Kyōiku Chokugo também circulou nessas
regiões. Em termos de documentação, o relatório do Deops aponta que
tais ameaças ocorreram até a década de 1950.
Por outro lado, existe a variante em português exposta no Museu
de Rolândia. Esse Kyōiku Chokugo é uma tradução de Isami Morita (mé-
dico que atuou na região de Paranaguá), mas conjecturamos que essa
versão também esteve presente no norte do Paraná. Mas, o que exata-
mente significa a tradução de um texto, base do nacionalismo japonês,
para o português? Em primeiro lugar, é revelador a existência de tradu-
ções do Kyōiku Chokugo, tendo em vista que o texto era recitado nas
escolas japonesas, onde a língua foi um importante elemento étnico.
Uma primeira hipótese que lançamos é de que a tradução de Morita pre-
sente no museu pode ser datada um pouco mais tardiamente, e tinha o
papel de alcançar os descendentes que não sabiam falar o japonês. De
fato, no documento é assinado como sendo da década de 1980, ou seja,
uma época em que o nacionalismo japonês da Era Meiji não fazia mais
tanto sentido, pois os japoneses já estavam relativamente bem estabe-
lecidos no Brasil; portanto, defendemos que essa tradução deve ser
entendida em meio às disputas na definição da identidade nikkei.
Podemos pensar esse fenômeno em termos de negociação de iden-
tidade, no sentido proposto por Lesser (2001). Em um panorama
generalizado do período, identificamos grupos nikkeis buscando
Leonardo Henrique Luiz • 203

estabelecer laços afetivos, em termos de memórias e práticas com os


elementos que remeteriam a uma “identidade japonesa”; essa necessi-
dade surgiu pelo sentimento de perda do laço étnico. Esse sentimento
está relacionado com uma possível crise da cultura japonesa no Brasil,
acentuada no pós-guerra e percebida, principalmente, pela primeira e
segunda gerações. Ela seria marcada pelos casamentos interétnicos,
pela decadência do familismo e do culto aos ancestrais, da reverência
imperial e da queda dos falantes da língua japonesa (ANDRÉ, 2011).
De acordo com Francisca Isabel Schurig Vieira (1973), a família foi
a primeira base das atividades grupais dos japoneses no Brasil: “O casa-
mento, consequentemente, é um arranjo entre famílias visando à
unidade e continuidade da família patrilineal, virilocal, com inibição dos
interesses individuais e com nítida acentuação dos valores hierárqui-
cos” (VIEIRA, 1973, p. 303). Com base na ideia de “assimilação”, a autora
argumenta que as transformações nessa estrutura familiar, principal-
mente pelos casamentos interétnicos, levaram a uma profunda
alteração da percepção dos valores tradicionais japoneses. Os dados co-
lhidos pela autora apontam que, quanto mais afastado do grupo étnico,
maior a aceitação/possibilidade de casamentos com não descendentes.
Além disso, “Em todos os casos, a não ser algumas exceções, há forte
resistência por parte da família ao intercasamento, sobretudo por parte
dos pais e ascendentes” (VIEIRA, 1973, p. 314). Dessa forma, o casamento
misto foi visto como uma ameaça tanto aos padrões familiares japone-
ses como à estrutura familiar que sustentava a ordem e o pertencimento
ao grupo étnico. No Brasil, a gradual ruptura com essa instituição levou
204 • O espírito de Yamato

ao enfraquecimento da identidade japonesa e à aproximação com a con-


dição brasileira do indivíduo.
Por outro lado, conforme sugere Lesser (2001, p. 20), por mais que
houvesse uma tentativa de aproximação com a condição brasileira, era
evidente a condição de nikkei no caso dos descendes de japoneses. As
feições características orientais deslocam os nikkeis para a condição de
não pertencentes à “brasilidade”; ao mesmo tempo, esses indivíduos se
veem cada vez mais distantes dos modos de vida japonês. Inclusive, no
caso dos nisseis (segunda geração), houve uma dupla expectativa do
ponto de vista dos isseis (primeira geração). Por um lado, esperava-se
que eles mantivessem padrões culturais japoneses (a exigência em saber
a língua japonesa é significativa); por outro lado, desejava-se que o nis-
sei ultrapassasse o círculo fechado da convivência familiar alcançando
a ascensão social. Nas palavras de Cardoso (1973, p. 322), havia uma “[…]
dupla orientação que tem o nissei mesmo dentro da sua família: pressão
para tornar-se um membro da comunidade japonesa e, ao mesmo
tempo, expectativa de que, através de uma formação profissional, con-
siga ascender na escala social”.
Do ponto de vista das religiões japonesas, esse fenômeno implicou
uma série de transformações. Por exemplo, Frank Usarski (2002) aponta
para o enfraquecimento do “budismo de imigração” marcado pelo fale-
cimento dos praticantes isseis e a não continuidade da prática entre os
nisseis, portanto levando à diminuição de budistas dentro do grupo nik-
kei. Na esfera doméstica, André (2011) demostra que o culto aos
ancestrais realizados nos butsudan passou por diversas alterações no
Leonardo Henrique Luiz • 205

Brasil, incluindo a cemiterização do culto aos ancestrais como forma de


se distanciar de práticas cada vez mais longe do repertório dos nikkeis
não praticantes.
Mesmo do ponto de vista estatístico, é possível perceber as sutis
implicações do fenômeno. Conforme mostra o levantamento realizado
na colônia japonesa (COMISSÃO, 1964, p. 371), houve uma relação signi-
ficativa entre os casamentos mistos com a língua, quando o domínio da
língua japonesa predominava e mais casamentos entre nikkeis ocorriam.
O bilinguismo ofereceu a oportunidade deles se relacionarem com não
descendentes; ao relacionarmos esses números com os que demons-
tram o declínio dos falantes de japonês, fica evidente como a situação
do grupo étnico passou por transformações. Buscando superar essas di-
ficuldades, os nikkeis estabeleceram laços que permitiram pontes entre
essas diferentes condições.
A criação desses laços foi ligada à construção de uma identidade
nipo-brasileira, mesmo que apoiada sobre aspectos bastante seletivos
da cultura japonesa. Como sugere o título de sua obra, Lesser (2001) con-
ceitua essa “busca de um hífen” em termos de “Negociação da
identidade nacional”, isto é, os descendentes de japoneses negociam seu
pertencimento entre a condição japonesa e a brasileira, assumindo
identidades múltiplas. Nas palavras do autor (2001, p. 297), “Muitos mes-
tiços nikkeis rejeitam suas origens japonesas quando em situações
sociais, embora, na esfera econômica, quer se trate de candidatar-se a
um emprego ou de oferecer serviços sexuais, prevaleça a crença de que
ser ‘japonês’ representa uma vantagem importante”. Marcos
206 • O espírito de Yamato

importantes desse fenômeno foram as mudanças sociais dos nipo-bra-


sileiros, que passaram por um processo de ascensão social, bem como as
mudanças do Japão no cenário internacional devido ao crescimento eco-
nômico acelerado no pós-guerra, e isso tornou a identificação com o
Japão algo positivo na sociedade brasileira. Lesser (2001, p. 299) mostra
como empresas adotaram esse discurso em que produtos de origem ja-
ponesa eram bons por serem feitos por japoneses “(leia-se, honestos e
trabalhadores)”, e melhores que os feitos por não nikkeis (“leia-se, cor-
ruptos e preguiçosos”). Da mesma forma, no campo político, vários
indivíduos buscam se associar com sua descendência japonesa em busca
de transformar esse prestígio social em votos (LESSER, 2001, p. 299).
Entretanto, sugerimos que a categoria “negociação” não revela os
conflitos e as relações de poder que tal processo carrega. O conceito de
negociação pressupõe relações de poder entre forças equivalentes. To-
davia, esse processo em busca de uma brasilidade foi marcado por
relações conflituosas e, no próprio dizer de Lesser (2001, p. 299), houve
uma “[…] rejeição generalizada dos brasileiros às identidades hifeniza-
das”. Dessa forma, buscamos analisar esse processo como táticas, no
sentido proposto por Certeau, empregadas frente aos discursos da soci-
edade majoritária.
A tradução do edito para o português deve ser analisada nesse con-
texto, pois uma tradução não teria sentido em um ambiente onde os
indivíduos soubessem ler em japonês. Traduzir e, portanto, expor (pos-
sivelmente dentro do consultório médico ou escola) o Kyōiku Chokugo
nesse período seria uma forma de apropriação do discurso Meiji que não
Leonardo Henrique Luiz • 207

apenas tentava dar sugestões de conduta moral, mas também almejava


definir a própria identidade dos japoneses dentro do Brasil.
Ao analisarmos essa apropriação, pode-se revelar uma das várias
manifestações do nacionalismo japonês no Brasil, além de evidenciar
que a mensagem formadora do habitus xintoísta foi ressignificada cria-
tivamente de diversas formas. Esse parece ser o caso da presente fonte,
pois ao analisar a tradução é possível observar que o conteúdo passou
por um processo de interpretação que visou reconstruir o discurso Meiji
para o contexto brasileiro. Se, conforme argumentado ao longo do livro,
o Kyōiku Chokugo em 1890 atuou como discurso legítimo do naciona-
lismo japonês de base xintoísta, ao relembrar esse discurso no Brasil em
1980 Isami Morita estabelece uma ligação direta com as ideias Meiji do
que era “ser japonês”, e ao traduzir o conteúdo o autor busca transmitir
esse discurso para os nikkeis não falantes de japonês.
Efetivamente, defendemos que a tradução do Kyōiku Chokugo foi
uma leitura estratégica do discurso Meiji, que atualizou a definição da
identidade japonesa no Brasil, ao afirmar as vantagens e deveres dos
nipo-brasileiros para a sociedade. Como se trata de uma tradução, as
palavras que remeteriam ao xintoísmo no texto em japonês não estão
presentes (caso principal do kokutai), mas o texto é perpassado de indí-
cios dos elementos que compunham o xintoísmo de Estado. Segue a
transcrição dessa tradução
208 • O espírito de Yamato

RESCRITO IMPERIAL REFERENTE À EDUCAÇÃO

EU PENSO QUE OS MEUS ANTEPASSADOS CONSTITUIRAM ESTA NAÇÃO


EM TEMPOS LONGÍNQUOS, PRATICANDO A IMENSA E PROFUNDA VIR-
TUDE MORAL, E O POVO, POR SUA VEZ, OBSERVOU A FIDELIDADE
ABSOLUTA AOS IMPERADORES E AOS PAIS, UNIDO EM UMA SÓ ALMA, DE-
MONSTRANDO A SUA BELDADE DE GERAÇÃO A GERAÇÃO,
CARACTERIZADA PELA MAGNIFICÊNCIA DA FORMAÇÃO DO PAÍS, E, EIS
AQUÍ REALMENTE, O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA EDUCAÇÃO.

PEÇO, PORTANTO, A VÓS, O POVO NIPÔNICO, QUE SEJAIS BEM FIÉIS AOS
PAIS, AMIGOS ENTRE IRMÃOS, HARMONIOSOS OS CASAIS, CONFIANTES
EM COLEGAS ÍNTIMOS, HUMILDES NO COMPORTAMENTO, FILANTRO-
POS, ESTUDIOSOS EM CIÊNCIAS, PORTADORES DE PROFISSÃO,
DESENVOLTOS EM FACULDADES INTELECTUAIS, PRATICANTES DA VIR-
TUDE MORAL, DEDICADOS A INTERÊSSES PÚBLICOS, CUMPRIDORES DE
DEVERES E OBRIGAÇÕES, RESPEITADORES DA CONSTITUIÇÃO NACIO-
NAL, OBEDIENTES ÀS LEIS E HERÓICOS NOS ACONTECIMENTOS
ABSOLUTAMENTE INEVITÁVEIS, AJUDANDO SEMPRE A SORTE DA IN-
FINDA CORTE IMPERIAL.

TUDO ISSO, NÃO QUER SIGNIFICAR QUE APENAS SEJAIS SINCEROS, LEAIS
E FIÉIS À MINHA PESSOA, MAS TAMBÉM FICAIS REVELADORES DOS BONS
COSTUMES DOADOS POR VOSSOS ANCESTRAIS.

ESTE CAMINHO É O CONSELHO DE NOSSOS PASSADOS, VERDADEIRO EN-


SINAMENTO A SER CUMPRIDO RIGOROSAMENTE POR DESCENDENTES
DE UM POVO JUSTO E HONESTO, E O QUAL NÃO APRESENTA QUALQUER
EQUÍVOCO ATRAVÉS DE TODOS OS TEMPOS E NENHUMA DISCREPÂNCIA
EM SEU DIVULGAR, DENTRO E FORA DA PÁTRIA.
Leonardo Henrique Luiz • 209

ASSIM SENDO, DESEJO QUE EU E VÓS, EM CONJUNTO, EFETUEMOS DE


TODO O CORAÇÃO, ESTA VIRTUDE ESSENCIAL DA HUMANIDADE.

EM 30 DE OUTUBRO DE MEIJI 23 (1890)

(A.A. ) IMPERADOR MEIJI (122° IMPERADOR DO JAPÃO)

(TRADUZIDO LITERALMENTE POR DR. ISAMI MORITA, EM 30/10/1980)


Fonte: JAPÃO, 1890 [1980]

É difícil afirmar se foi intencional, mas de certa forma o autor con-


torna o problema da inexistência de letras maiúsculas e minúsculas no
japonês ao traduzir tudo em maiúsculo para o português. Em termos tex-
tuais, os principais elementos xintoístas presentes que podemos indicar
dizem respeito à piedade filial (agora aparecendo como uma espécie de
“respeito pelos mais velhos”), à insistência em ressaltar os antepassados
(partilhados) como fundadores do império e ao incentivo a uma conduta
moral de acordo com o caminho já percorrido pelos antepassados. No en-
tanto, a ligação desses elementos parece ser bastante diferente do que o
proposto pelo texto Meiji, pois em vez de um documento que visava esta-
belecer a identidade japonesa ligada à figura do imperador como
aglutinador da nação, essa tradução sugere algo um pouco mais maleável,
isto é, apesar da figura do imperador estar presente, o ponto principal é
a origem japonesa, que deve ser lembrada, pois ela remonta a uma supe-
rabundância de qualidades. Essas ideias foram resumidas na seguinte
frase: “TUDO ISSO, NÃO QUER SIGNIFICAR QUE APENAS SEJAIS SINCE-
ROS, LEAIS E FIÉIS À MINHA PESSOA, MAS TAMBÉM FICAIS
210 • O espírito de Yamato

REVELADORES DOS BONS COSTUMES DOADOS POR VOSSOS ANCES-


TRAIS”, em que o imperador ocuparia um lugar secundário para os
nikkeis, enquanto a ligação mais forte com o Japão seriam os ancestrais.
O foco do texto foi mantido nas qualidades morais a serem desen-
volvidas pelos indivíduos, e a obediência a elas foram a responsáveis
pela “[…] MAGNIFICÊNCIA DA FORMAÇÃO DO PAÍS”; portanto, seria
imprescindível sua continuidade. É significativa a exclusão da menção
ao sacrifício em nome da corte imperial presente no texto Meiji. Na tra-
dução aparece como uma “ajuda” frente aos “ACONTECIMENTOS
ABSOLUTAMENTE INEVITÁVEIS”. A maneira como o tradutor usou cer-
tas palavras revelam as tensões da crise de identidade presentes na
época, pois independentemente do local de nascimento e até da geração,
o texto implica certa união entre “O POVO NIPÔNICO”, que seria passada
de geração a geração.
Por fim, conforme mencionado na tradução, ainda se mantém a
presença do imperador. Todavia, essa manutenção está diretamente re-
lacionada à nova posição da instituição imperial no Japão democrático.
Com a derrota na guerra, houve a construção de uma narrativa segundo
a qual Hirohito teria realizado uma “intervenção divina” (IGARASHI,
2011, p. 65), visando salvar toda a humanidade. Entretanto, “A autori-
dade do imperador foi reconhecida pelos oficiais americanos como uma
ferramenta útil para o cumprimento dos termos de rendição [...]” (IGA-
RASHI, 2011, p. 69). Isto é, o imperador foi mantido visando cumprir um
papel ao longo da transição política do pós-guerra, sendo nesse con-
texto que a menção na tradução deve ser pensada.
Leonardo Henrique Luiz • 211

Ao longo do capítulo, buscamos discutir a presença do habitus na-


cionalista japonês no Brasil, estabelecendo como recorte espacial a
região de Assaí, no norte do Paraná. Tal escolha nos permitiu observar
as circulações do edito, assim como de que maneira foi estruturado o
processo de organização da educação nikkei. Em meio a esse contexto, o
Kyōiku Chokugo foi um instrumento de deferência para a orientação da
educação, estando presente inclusive entre as organizações nacionalis-
tas, como a Shindō Renmei. O processo de aproximação dos nikkeis com
os aspectos da cultura brasileira, essencialmente da língua portuguesa,
foi importante marca que conduziu a modificações na identidade japo-
nesa no Brasil, evidenciadas pelo distanciamento gradual do idioma
japonês. É nesse novo contexto que o edito foi traduzido para o portu-
guês, visando a novas orientações em termos de identidade para os
nipo-brasileiros.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi possível perceber ao longo do livro, a partir da Restaura-


ção Meiji houve a construção de um nacionalismo no Japão, no qual o
xintoísmo teve papel decisivo como legitimador da nova ordem política.
Mesmo no âmbito discursivo existindo a ênfase nos aspectos tradicio-
nais do governo imperial, como algo que sempre existiu entre os
japoneses, defendemos que as estruturas nas quais esse discurso foi
propagando era algo historicamente recente e próprio da formação da
nação moderna. Esse processo de construir a modernidade foi realizado
por meio da apropriação dos discursos provindos da Mitogaku, nos quais
o imperador e o Estado foram personagens centrais.
Nesse processo, a instituição imperial passou a ser representada e
reconhecida como o elo de todos os japoneses, por intermédio dos an-
cestrais compartilhados. Todo o repertório mitológico xintoísta foi
ressignificado visando à construção da narrativa, que colocou o impe-
rador como chefe da nação e, ao mesmo tempo, postulou os japoneses
como seres escolhidos pelos deuses. Concomitante a essa construção
discursiva, o Japão passou a assumir a proeminência na Ásia, entrando
nas disputas internacionais por recursos e influências na região. Essas
características foram fundamentais para a perpetuação do processo im-
perialista na Ásia, pois, ao se colocarem como escolhidos pelos deuses,
Leonardo Henrique Luiz • 213

os governantes e intelectuais japoneses elaboraram justificativas para


exercerem influências políticas e econômicas em outros países. É nesse
contexto que surgiu a ideia da Esfera de Coprosperidade da Grande Ásia
Oriental como forma de organizar e juntar os países da Ásia em um
bloco coeso, liderado pelo Japão, que deveria enfrentar o imperialismo
ocidental.
Paralelo a esse imperialismo, destacamos o papel da imigração
como forma de levar esse mesmo repertório discursivo para outras re-
giões. Salientamos que são fenômenos diferentes com interesses
distintos; todavia, os indivíduos que participaram de ambos os proces-
sos estiveram em contato com todo o repertório discursivo que, ao longo
do livro, definimos de habitus nacionalista/xintoísta. Esse contato deu-
se em diversos âmbitos da vida cotidiana do Japão; nesse sentido, evi-
denciamos o papel do Kyōiku Chokugo como uma das formas sobre as
quais esse habitus foi construído e propagado. No caso em questão, mos-
tramos como a construção do discurso que se tornou habitus esteve em
disputas, em termos oficiais, a partir do processo de tornar-se moderno
(discursivamente, essas disputas podem ser datadas até como anterio-
res ao processo de Restauração Meiji). Efetivamente, os conflitos entre
os vários projetos de nação revelam diferentes percepções de como de-
veria ser organizada a sociedade japonesa.
É nesse sentido que, ao longo do texto, argumentamos que a publi-
cação do Kyōiku Chokugo pode ser entendida como a vitória de um
projeto específico de nação que passou a exercer o discurso oficial den-
tro do Sistema Escolar. Com o passar dos anos, esse discurso foi sendo
214 • O espírito de Yamato

interiorizado e naturalizado, tornando-se habitus socialmente parti-


lhado. Enfocamos nos aspectos religiosos visando entender as bases
sobre as quais esse habitus foi construído, argumentando que a forma-
ção do aparato do Estado xintoísta foi completada com a publicação
desse edito. Entretanto, frisamos que a aproximação entre os aparelhos
do Estado e as diversas manifestações religiosas do xintoísmo variaram
com o tempo. É nesse sentido que defendemos uma “interpretação am-
pla” do xintoísmo de Estado, isto é, essa religião atuou como algo não
religioso (pelo menos do ponto de vista do homem comum) e exerceu
grande influência em todos os aspectos que compunham a sociedade ja-
ponesa. Todavia, seu grau de atuação variou com o tempo. Essa variação
pode ser percebida com as práticas e discursos mais efervescentes im-
plementados a partir da ascensão da ala militar dentro da política
japonesa na década de 1930.
Mesmo com o recrudescimento do Estado, outras expressões do
nacionalismo continuaram a exercer um papel importante na vida po-
lítica e intelectual japonesa, mas tais manifestações eram relegadas às
margens do poder. No processo de criação do Kyōiku Chokugo, essas ou-
tras visões tentaram galgar espaço no discurso oficial, ao apresentarem
propostas do que deveria ser a educação japonesa. Entretanto, foram as
bases xintoístas que exerceram a maior influência nesse novo disposi-
tivo disciplinar. Mesmo assim, tendências que podem ser apontadas
como do “Ocidente” também estavam presentes, como é o caso da men-
ção ao respeito à Constituição Meiji e o próprio uso de mecanismos
modernos (o Sistema de Ensino) como forma de propagar essas ideias.
Leonardo Henrique Luiz • 215

A análise do edito revelou os principais aspectos que compunha o


discurso oficial. Além de partirmos das considerações realizadas por
trabalhos anteriores, demonstramos como a formação discursiva do
Kyōiku Chokugo esteve atrelada a diversos elementos do xintoísmo de
Estado, principalmente a questão da piedade filial, os ancestrais impe-
riais e o kokutai (a política nacional). Ao ser lido ritualmente nas escolas,
esse discurso era relembrado em uma constante atualização do habitus.
Inclusive, a obrigação em memorizar o conteúdo foi uma das principais
maneiras de torná-lo um dispositivo de poder que sujeitou as identida-
des individuais.
O ponto principal do edito são as virtudes obrigatórias para a ins-
trução correta dos japoneses. Efetivamente, seguir as palavras do
imperador era o que tornava os indivíduos autênticos japoneses, na me-
dida em que essas virtudes garantiram e continuariam a garantir a
existência e prosperidade do império. Ao ser levado ao Brasil, o Kyōiku
Chokugo foi, juntamente às fotos imperiais, mantido dentro dos ambi-
entes em que existiam concentrações das atividades nikkeis, sejam nas
escolas, associações, salões ou nos próprios lares. Com o passar dos
anos, as transformações que acompanharam a presença japonesa no
Brasil afetaram consideravelmente as práticas e discursos em torno de
tais objetos.
No caso do Kyōiku Chokugo, sua presença pode ser de maneira in-
diciária encontrada entre as organizações japonesas que professavam
um discurso nacionalista, caso da Shindō Renmei. Conforme demos-
trado pela documentação analisada, os membros da Shindō Renmei
216 • O espírito de Yamato

tiveram contatos diretos com o edito e, possivelmente, se apropriaram


do seu conteúdo para afirmarem suas identidades como descendentes.
Por outro lado, o Kyōiku Chokugo também passou por modificações no
território brasileiro. Tais alterações foram percebidas pela tradução do
seu conteúdo para o português, no qual os nikkeis buscaram no docu-
mento Meiji a construção de suas próprias identidades no Brasil.
Efetivamente, o discurso sugerido pela leitura da tradução do edito
é possivelmente um dos que encontra grande repercussão, em termos de
senso comum, tanto na autorrepresentação dos nikkeis como na repre-
sentação que a sociedade brasileira atribui atualmente aos descendentes,
isto é, como um povo possuidor das diversas qualidades listadas no edito.
Nessa representação não há espaço para contradições, desvios, conflitos,
pois acima de tudo os nikkeis seguiriam à risca esse “[...] VERDADEIRO
ENSINAMENTO A SER CUMPRIDO RIGOROSAMENTE POR DESCENDEN-
TES DE UM POVO JUSTO E HONESTO” (grifos nossos).
Como demonstrado por André (2009), eventos públicos, como as
comemorações associadas ao Imin 100, enfatizam esse aspecto linear e
homogêneo da imigração. Essa é uma postura tática que revela a criati-
vidade dos indivíduos ao elaborarem suas respostas em situações em
que havia tentativas de impor interpretações sobre os sentidos do naci-
onalismo japonês. Grande parte desses elementos morais supostamente
constituiriam a contemporânea niponicidade. Essa seria uma mutação
pela qual passou o espírito de Yamato mencionado no poema introdu-
tório, de Natsume Soseki, que todos os nikkeis supostamente teriam e
deveriam preservar, mesmo sem saber direto o que seria.
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