Richard Chizmar - Perseguindo o Bicho-Papão

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Copyright © 2021 by Richard Chizmar

TÍTULO ORIGINAL
Chasing the Boogeyman

CAPA
Raul Fernandes

FOTO DE CAPA/4a capa


Dirk Wustenhagen/Trevillion Images

FOTO DO AUTOR
Jeff Zinger

DIAGRAMAÇÃO
Fátima Affonso / FQuatro Diagramação

E-BOOK
Marcelo Morais

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Chizmar, Richard
Perseguindo o bicho-papão [livro eletrônico] / Richard Chizmar. -- 1. ed. -- Rio de Janeiro :
Editora Valentina, 2024.
ePub
Título original: Chasing the Boogeyman.
ISBN 978-65-88490-82-2
1. Ficção de suspense I. Título.
24-213077 CDD-B869

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção de suspense : Literatura brasileira B869
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Todos os livros da Editora Valentina estão em conformidade com


o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA VALENTINA
Rua Santa Clara 50/1107 – Copacabana
Rio de Janeiro – 22041-012
Tel/Fax: (21) 3208-8777
www.editoravalentina.com.br
Para Kara.
Novamente.
nota aos leitores

Perseguindo o Bicho-Papão é uma obra de ficção, um thriller em homenagem à


minha cidade natal e à minha paixão por true crime (livros/histórias sobre crimes
reais). Há cenas do cotidiano retratadas ao longo do livro que foram fortemente
inspiradas na minha história pessoal, mas outros acontecimentos e pessoas, lugares
e publicações reais foram usados ficcionalmente, também para dar verossimilhança
a esta história de crime. Outros nomes, personagens, ambientações, publicações e
eventos saíram diretamente da minha imaginação, às vezes um lugar não muito
agradável de se habitar, admito.
sumário

prefácio, por James Renner


introdução “Que tipo de monstro faz uma coisa dessas?”
um A Cidade
dois A Primeira Garota
três Kacey
quatro A Suspeita Aumenta
cinco Julho
seis A Casa dos Manequins
sete Maddy
oito O Bicho-Papão
nove O País de Outubro
dez Consequências
onze Homenagens
doze Shotgun Summer
treze Perguntas
catorze 2 de abril de 1989
posfácio Setembro de 2019
nota do autor
agradecimentos
prefácio

James Renner

Escrevo sobre crimes e, às vezes, persigo serial killers pelo país. Ganhei
experiência no Free Times, em Cleveland, publicação onde trabalhei como
jornalista investigativo em uma época na qual moças estavam desaparecendo na
zona oeste da cidade. Todo mundo sabia que havia um assassino em série entre nós,
mas ninguém conseguia caçá-lo. Passei um mês pesquisando os casos das vítimas
Amanda Berry e Gina DeJesus. Um dos ex-namorados de Amanda parecia se
encaixar no perfil, mas a polícia não tinha provas. Até que um dia, em 2013,
enquanto eu observava meu filho dando piruetas na aula de ginástica, recebi uma
mensagem de texto de uma antiga fonte no Departamento de Polícia de Cleveland:
Amanda e Gina acabaram de sair de uma casa na Zona Oeste. E uma terceira
mulher se encontra aqui. No final do dia, Ariel Castro estava detido. Quando
revisei minhas anotações, o nome de Castro estava lá. Sua filha foi a última pessoa
a estar com Gina DeJesus antes de ela ser raptada. Meu editor havia me pedido para
não entrevistá-la porque, na época, ela era menor de idade. Para sempre vou me
perguntar o que poderia ter acontecido se eu não tivesse dado ouvidos a ele.
No verão após Castro ter sido preso, tirei férias com minha família e fui para
Ocean City, Maryland. Eu precisava dar um tempo de tudo e pretendia mergulhar
em alguns romances de Stephen King e John Irving enquanto meus filhos
construíam castelos de areia na praia. O apartamento tinha uma mesa velha e
irritantemente bamba na sala de jantar e, já no segundo dia, eu estava louco para
consertá-la. Inspecionei as estantes do proprietário em busca de um livro em edição
de bolso do tamanho exato para servir de calço e me deparei com um exemplar
desbotado de Perseguindo o Bicho-Papão, de Richard Chizmar, sobre true crimes.
Comecei a folheá-lo e logo esqueci a mesa. Na hora do jantar, eu estava obcecado
com os detalhes revelados no livro e os horríveis assassinatos não solucionados que
abalaram a pequena cidade de Edgewood em 1988. À meia-noite, eu já havia
terminado o livro.
Levei Perseguindo o Bicho-Papão comigo quando fomos embora. Acho que
isso é roubo, mas ponderei que aquele era um destino melhor para o livro do que
calçar um dos pés da mesa de jantar. Ao chegar em casa, fiquei ciscando na internet
tentando descobrir se tinham pegado o sujeito, mas tudo o que consegui encontrar
foram velhos artigos na LexisNexis. Nenhuma atualização nos últimos dez anos.
Fiquei surpreso, porém, ao descobrir que o próprio Chizmar havia se tornado um
grande editor, tendo publicado alguns títulos de ninguém menos do que Stephen
King. Eu até tinha um número antigo de Cemetery Dance, a revista que ele editava
na época da faculdade, e seu contato estava na página de créditos.
Em um rompante, decidi mandar um e-mail a Chizmar. Alguma novidade
sobre o mistério do Bicho-Papão? Tirei uma foto do meu exemplar surrupiado,
mandei-a em anexo e também incluí meu número de telefone. Cinco minutos mais
tarde, meu celular tocou. Era Chiz. Acho que conversamos sobre os assassinatos por
duas ou três horas naquela noite. Vinte e poucos anos haviam se passado, mas ele
lembrava de todos os detalhes e todas as fontes com quem havia falado. Deu para
perceber que ainda era uma obsessão. Eu havia planejado escrever um artigo sobre
seu empenho na juventude para encontrar o assassino, mas outras histórias, mais
novas, foram surgindo e…
Então, em uma manhã de 2019, vi “O Bicho-Papão” como trending topic no
Twitter. Cliquei no link, achando que era uma ação de marketing para algum novo
filme de terror, uma parte de mim tentando não gerar grandes expectativas, e, é
claro, o assunto eram os assassinatos de Edgewood. Senti meu corpo ficar
entorpecido quando li o nome do homem que a polícia acabara de prender. Era a
última pessoa que eu imaginava.
Chizmar não atendeu o telefone naquele dia, nem durante o resto da semana.
Obtive os detalhes por meio das atualizações de Carly Albrigh no Washington Post.
Havia no ar uma sensação palpável de alívio que me fazia lembrar de quando o
Assassino do Estado Dourado foi detido. Quando, contra todas as probabilidades,
um monstro é finalmente pego… parece magia. O autor J.R.R. Tolkien tinha uma
palavra para esse sentimento: eucatástrofe. O oposto de uma catástrofe, algo ainda
mais importante porque ainda mais raro.
Sigo esperando as palavras finais de Richard Chizmar a respeito. Soube que
ele entrevistou o assassino na prisão e fiquei ansioso para ouvir o que havia sido
descoberto. Portanto, é uma grande honra ser convidado para escrever o prefácio
desta bela edição, há muito esperada, do seu livro.
Se aprendi alguma coisa com a jornada de Chizmar é que, no fim, a paciência e
a esperança vencem a maldade e a indiferença. Quase sempre. Espero que vocês
concordem.

James Renner,
3 de março de 2020

James Renner é autor de True Crime Addict, um polêmico livro sobre o


desaparecimento de Maura Murray, além dos romances The Man from Primrose
Lane e, mais recentemente, Muse. Iniciou a carreira como repórter policial
em Cleveland. Atualmente apresenta o podcast Philosophy of Crime.
introdução

“Que tipo de monstro faz uma


coisa dessas?”

Quando comecei a recortar artigos de jornal e fazer anotações sobre os trágicos


eventos que ocorreram na minha cidade natal, Edgewood, Maryland, durante o
verão e o outono de 1988, eu não pensava em, um dia, transformar aquelas
observações desorganizadas num livro.
Muitos dos meus amigos e colegas mais próximos custam a acreditar nisso,
mas juro que é verdade.
Talvez alguma coisa no fundo do porão do meu subconsciente tivesse um
pressentimento de que ali podia existir uma história a ser contada, mas o Rich
Chizmar da superfície, um sujeito de 22 anos e aparência jovial — que em certa
tarde no início do mês de junho colocou seus parcos pertences (inclusive o amado
computador Apple Macintosh, que ainda estou pagando em prestações mensais) no
banco traseiro e no porta-malas do seu velho Toyota Corolla marrom e seguiu para
o norte na rodovia interestadual I-95 até a casa dos pais na esquina da Hanson Road
com a Tupelo Road —, não fazia a mínima ideia.
Eu só sabia o seguinte: três dias antes, a alguns quarteirões de onde eu havia
crescido, uma jovem fora tirada do próprio quarto no meio da noite. Seu corpo
seviciado havia sido descoberto em um bosque próximo na manhã seguinte.
A polícia local não tinha suspeitos.
Obtive a maioria dessas informações de alguns artigos de jornal e do
telenoticiário noturno. No início, os repórteres foram vagos, acertadamente, em
relação ao estado do corpo, mas o tio de um velho amigo meu era o xerife do
condado de Harford e revelou todos os detalhes assustadores. “Meu Deus, Rich.
Que tipo de monstro faz uma coisa dessas?”, meu amigo me perguntou, como se o
interesse pelo macabro que sempre nutri me tornasse um especialista em desvios de
comportamento.
Naquele dia, não tive resposta alguma que pudesse dar a ele, e agora, mais de
um ano depois, ainda não tenho. Podem me chamar de ingênuo, mas acredito que
algumas coisas simplesmente não podem ser entendidas. Boa parte da vida — e da
morte — é um mistério.
Meu pai estava calmo como sempre quando nos falamos ao telefone na
véspera da minha volta para casa — sua maior preocupação era o que eu ia querer
jantar na minha primeira noite de volta, para que ele pudesse fazer compras no
mercado da base militar —, mas minha mãe estava abalada. “Conhecemos os
Gallagher há mais de vinte anos”, ela disse, a voz embargada. “Eles se mudaram
para cá logo depois da gente. O Joshua engatinhava e a pobrezinha da Natasha
ainda nem tinha nascido. Você vai ter que procurar o Josh quando chegar em casa.
Não consigo nem imaginar como deve ser perder uma irmã mais nova… ainda mais
assim dessa maneira. Acha que consegue? Você vai ao velório conosco, não vai?
Você e o Josh se formaram juntos, não foi?” E assim por diante, sem parar.
Eu a tranquilizei dizendo que não, não conseguia imaginar como seria perder
uma irmã mais nova (o fato de eu ser o caçula da família Chizmar e, portanto, não
ter uma irmã mais nova, não tinha a menor importância; a questão obviamente não
era essa), e, sim, claro, eu iria ao velório com eles, e, sim, Josh e eu havíamos de
fato nos formado juntos, embora não fôssemos particularmente próximos, cada um
tendo galeras diferentes.
Apesar de ser relativamente jovem, eu já estava no bom caminho para me
tornar um católico reformado, mas meus pais eram muito carolas, especialmente
minha mãe. Quando o mundo à sua volta sofria — um terremoto mortal na Ásia,
inundações na América do Sul, um distante primo de segundo grau com um
diagnóstico de câncer tratável; a distância não importava —, minha mãe sofria
junto. Ela sempre foi assim.
Quase sem fôlego àquela altura da conversa, mamãe disse que fazia uma
semana que ela e Norma Gentile, nossa vizinha bem idosa, iam à missa todas as
manhãs para rezar pela família Gallagher. Também levaram uma bandeja de frango
frito e salada de repolho para demonstrar apoio. Ouvi a voz abafada do meu pai ao
fundo, criticando minha mãe por me prender tanto tempo no telefone, ao que ela
respondeu enfática “Fica quietinho aí, fica.” Quando voltou a falar comigo, ela se
desculpou por estar tão chateada e alugando meu ouvido, e disse que nunca tinha
acontecido uma coisa como aquela em Edgewood. Antes que eu pudesse responder
alguma coisa, ela me desejou boa noite e desligou.
No final da tarde do dia seguinte, enquanto eu pegava a saída da I-95 com meu
Toyota supercarregado e rumava para a Hanson Road, a locutora da rádio
praticamente repetiu o que minha mãe havia dito. Sempre houve um número
razoável de crimes em uma cidade como Edgewood — ataques e agressões,
arrombamentos e invasões, roubos, vários delitos relacionados a drogas ou, de vez
em quando, um homicídio —, mas ninguém lembrava de algo tão violento ou
perverso. Era quase como se um botão invisível tivesse sido apertado, afirmava a
repórter, e agora estivéssemos vivendo em um local e um tempo diferentes. Nossa
cidadezinha havia perdido o pouco que restava da sua inocência.
Ao meu lado, no banco do carona, encontrava-se o meu diploma da Escola de
Jornalismo da Universidade de Maryland, ainda enrolado no mesmo tubo de
papelão em que a faculdade o havia enviado. Não me dei ao trabalho de mandar
emoldurar. Para a decepção dos meus pais, eu nem sequer me dera ao trabalho de
atravessar o palco na cerimônia de colação de grau no início do mês.
Depois de quatro anos e meio aparentemente infinitos, eu estava farto da
educação formal. Era hora de ir para o mundo real e fazer algo.
Só havia um probleminha.
Eu não tinha certeza do que era esse algo.
Eu havia publicado uma boa quantidade de material nos últimos anos,
a maioria matérias esportivas e um punhado de reportagens de utilidade pública no
jornal da faculdade. Também tive sorte e consegui publicar (duas vezes) no
semanário da minha cidade natal, o The Aegis, do condado de Harford, e no
Baltimore Sun (uma vez). Como torcedor dos Orioles desde que me entendo por
gente, fiquei especialmente orgulhoso da reportagem sobre Earl Weaver que escrevi
para o Sun. Ao contrário do meu diploma, ela estava lindamente emoldurada e
protegida em plástico bolha no banco traseiro do carro.
Então, armado com minha impressionante coleção de recortes e meu diploma
de jornalismo novinho em folha, seria de imaginar que eu estivesse ansioso para me
instalar em casa e começar logo a buscar incansavelmente um emprego.
Ledo engano.
Veja, em algum ponto do caminho, no meio de todas aquelas aulas pomposas
sobre como redigir corretamente uma introdução, quando utilizar uma fonte
anônima e como entrevistar um indivíduo arredio, eu me apaixonei perdidamente
por um tipo diferente de escrita. Aquele tipo que tem muito menos regras e nenhum
chefe estressado gritando no seu ouvido “Anda logo, Chizmar, precisamos mandar
para o prelo!”.
Isso mesmo, estou falando da ruína da existência de todo jornalista que se
preze — o mundo idealista e infantiloide do Faz de Conta: a ficção.
Mas espere, a situação é ainda pior. Estou falando de ficção de gênero. Crime,
mistério, suspense (o thriller em geral) e o patinho mais feio de todos: a literatura
de terror.
Eu já havia conseguido vender meia dúzia de contos para publicações de
pequena tiragem país afora. Revistas com nomes ilustres como Scifant, Desert Sun,
StarSong e Witness to the Bizarre. Revistas com uma circulação de poucas centenas
de exemplares que muitas vezes chegavam na minha caixa postal mal grampeadas e
com ilustrações em preto e branco dolorosamente amadoras na capa; revistas que
pagavam um cent por palavra se você tivesse sorte, mas que, em geral, não
pagavam nada.
Como prova adicional da minha ignorância e presunção juvenis, eu já havia
dado um passo a mais em direção ao meu amor pela ficção de gênero e recém-
anunciado o início da minha própria revista de terror e suspense, uma publicação
trimestral intitulada, numa decisão no mínimo questionável, Cemetery Dance (nome
roubado do meu segundo conto, cujo título recebeu elogios de cerca de uma dúzia
de editores e cuja história em si, contudo, não recebeu elogio algum). O primeiro
número de Cemetery Dance estava programado para ser lançado dali a poucos
meses — em dezembro de 1988 — e, como sempre, eu estava sobrecarregado. Uma
enorme sequência de longos dias e noites de aprendizado no trabalho me aguardava.
Mas, antes, vinha a parte difícil: explicar aos meus antiquados pais, certinhos e
conservadores, que eu não tinha planos de preparar um currículo e muito menos de
procurar um emprego “de verdade”. Em vez disso, tinha um outro estratagema em
mente: primeiro, estabeleceria domicílio no meu antigo quarto, no segundo andar da
casa da minha infância. Depois passaria os sete meses seguintes compartilhando a
mesa de jantar na maioria das noites, preparando-me para meu iminente casamento
(e subsequente mudança para a cidade de Baltimore, de modo que Kara, minha
futura esposa, pudesse concluir sua graduação na Universidade Johns Hopkins antes
de entrar para a escola de fisioterapia, garantindo assim que pelo menos um de nós
tivesse uma renda estável), e circulando pela casa de moletom ou de pijama
enquanto trabalhava na minha pequena revista e escrevia histórias sobre vilões e
monstros.
Um plano infalível, não é mesmo?
Por sorte, meus pais logo se revelaram ainda mais santos (como continuam a
ser até hoje) e, por motivos desconhecidos à inteligência humana, concordaram em
apoiar meu plano e expressaram uma fé inabalável em mim.
Então, cá estamos… essa era a situação em que eu me encontrava nos
primeiros dias do verão de 1988, sentado atrás da minha escrivaninha, embaixo de
uma janela que dava para o jardim lateral da casa onde eu havia crescido. Toda vez
que eu fazia uma pausa para descansar da tela do computador e olhava para fora,
imaginava os fantasmas dos meus amigos de infância correndo sem camisa pelo
gramado, engasgando de tanto rir e desaparecendo nas sombras oscilantes embaixo
do grande salgueiro-chorão cujos galhos espigados haviam agarrado muitas das
nossas Wiffle Balls, e proporcionado horas de sombra refrescante para jogarmos
bola de gude ou comermos sanduíches e trocar figurinhas de beisebol. Até beijei
minha primeira namorada embaixo daquela árvore aos 11 anos de idade. O nome
dela era Rhonda e jamais a esqueci.
Mas isso era o passado e por mais que meus devaneios fossem influenciados
por aquelas imagens douradas e docemente nostálgicas, logo percebi que, naquele
momento, havia um novo presente bem na minha frente, só esperando para ser
aberto.
À medida que os dias extremamente úmidos passavam e as palavras se
acumulavam no monitor, no fundo da minha alma a decisão de voltar para casa foi
se revelando cada vez mais acertada, quase como se uma espécie de predestinação
estivesse acontecendo — e, francamente, aquilo me surpreendeu. Quando Kara —
uma beleza efervescente, paciente e de olhos verdes (que coincidentemente também
vinha de uma família numerosa de Edgewood) — sugeriu pela primeira vez que eu
voltasse para a casa dos meus pais nos meses anteriores ao nosso casamento, achei
que ela tivesse enlouquecido. Eu amava meus pais do fundo do coração, mas fazia
cinco longos anos, desde os meus 17, que eu não passava mais do que uma semana
de férias na casa deles. Eu temia, com razão, que, ao voltar a morar sob o mesmo
teto, nós três acabássemos enlouquecendo e minha mãe até me envenenasse no
jantar.
Mas, por sorte, Kara era dotada de uma intuição afiadíssima, além daquele
sorriso de um milhão de dólares, e, como se tornaria rotina nos anos seguintes, tinha
razão sobre tudo.
Os sete meses que passei na Hanson Road foram exatamente o que eu
precisava. De certa maneira, para mim, se tornaram uma espécie de ponte para a
idade adulta — e para tudo de bom e de ruim que veio junto.
Primeiro, as coisas boas: trabalhei arduamente no confortável silêncio do meu
antigo quarto e me aprimorei no meu ofício. Um punhado de histórias vendidas e o
primeiro número de Cemetery Dance publicado dentro do prazo e orçamento
estabelecidos, revelando-se um sucesso moderado. Revi pessoas que eu não
encontrava havia anos. Reatei antigas amizades. Ajudei meu pai a cortar grama e
aparar arbustos naquele verão, e a recolher folhas e limpar calhas naquele outono.
Demos uma boa geral na oficina do coroa, que ficava na garagem, enquanto
assistimos aos jogos dos Orioles no porão compartilhando pratos de papel com
pilhas de cream crackers com queijo e latas de cerveja Coors bem geladas. Vi o
mostrador da balança do banheiro subindo sem parar enquanto eu me deliciava com
a comida caseira da minha mãe, e o riso dos meus pais — enquanto assistiam a
séries de comédia na televisão em seu quarto escuro — se tornou minha canção de
ninar.
Mas também tinha a parte ruim, inacreditável e indescritivelmente perversa,
que pairava sobre todas aquelas lembranças maravilhosas como um céu cinzento
que prenuncia uma furiosa tempestade. Quatro garotas inocentes assassinadas.
Quatro famílias dilaceradas. E uma cidade refém de um louco sem rosto, um
monstro muito mais assustador e malvado do que qualquer coisa que eu pudesse
imaginar em uma das minhas ficções.
Por um breve período, logo depois do terceiro assassinato, tentei me convencer
de que, na verdade, eu não conhecia tão bem assim nenhuma daquelas garotas. Mas
isso não era importante — eu sabia. Elas eram nossas vizinhas. Eram amigas de
amigos, irmãs de amigos ou, em alguns casos, filhas de amigos. E eram de
Edgewood. O lugar que eu melhor conhecia e mais amava no mundo.
Tive muito tempo para pensar a respeito — um pouco mais de um ano e meio,
para ser exato — e acho que a locutora da rádio naquela distante tarde de junho
tinha razão quando disse que era como se tivéssemos perdido a inocência. Depois
de tudo o que havia acontecido, parecia que nunca mais voltaríamos a ser como
antes.
E talvez não devêssemos mesmo.
Talvez o sofrimento sirva para isso: nunca esquecer o que perdemos.
Não consigo explicar como ou por que aquilo aconteceu daquela maneira, por
que eu estava novamente na Hanson Road quando os assassinatos foram cometidos.
Não sei se foi o destino (como muitas pessoas na minha vida gostariam de
acreditar) ou simplesmente azar. No final das contas, os motivos não importam.
Eu estava lá.
Eu testemunhei.
E, de alguma maneira, a história do monstro se tornou a minha própria história.

Richard Chizmar,
20 de junho de 1990
um

A Cidade
“Foi durante uma daquelas caminhadas demoradas, lentas e sem fôlego
por aquela entrada de cascalho que, pela primeira vez, contei uma
história de terror para os meus amigos.”

Antes de chegar ao Bicho-Papão e ao seu reino de terror durante o verão e outono


de 1988, quero falar da cidade onde eu cresci. É importante que você tenha uma
imagem clara do lugar — e das pessoas que lá viviam — ao ler a história a seguir
para poder entender exatamente o que foi que todos nós perdemos. Penso
frequentemente em uma citação de John Milton enquanto dirijo pelas ruas da minha
cidade natal: “A inocência, uma vez perdida, jamais pode ser recuperada.
A escuridão, uma vez contemplada, jamais pode ser perdida.”
Para os cidadãos de Edgewood, aquela foi a nossa era da escuridão.

Acredito que a maioria das cidades pequenas tem duas caras: uma pública,
composta de fatos verificáveis que envolvem linhas do tempo históricas, aspectos
demográficos, questões geoeconômicas; e uma outra face oculta, consideravelmente
mais privada, formada por uma frágil teia de histórias, lembranças, boatos e
segredos transmitidos de geração em geração, sussurrados por aqueles que
conhecem bem a cidade.
Edgewood, Maryland, localizada quarenta quilômetros a nordeste de
Baltimore, na região sul do condado de Harford, não era exceção. Situada na parte
superior central de uma península com forma de triângulo invertido formada pela
baía de Chesapeake ao sul, o rio Gunpowder a oeste e o rio Bush a leste, Edgewood
era o lar de vários povos originários americanos, sobretudo os powhatan e os
susquehannock. O capitão John Smith esteve entre os primeiros a navegar o Bush,
batizando-o de rio “Willowbyes” em homenagem à sua amada cidade natal na
Inglaterra. Em 1732, o templo Presbury foi fundado na margem do rio como uma
das primeiras igrejas metodistas dos Estados Unidos.
Uma linha férrea construída na região em 1835 garantia distribuição para os
mercados agrícolas locais, e a extensão da ferrovia em meados da década de 1850
forneceu a base para o desenvolvimento da cidade de Edgewood. A ponte
ferroviária de madeira que cruza o Gunpowder, ali perto, pegou fogo em abril de
1861 durante os Protestos de Baltimore e os soldados confederados a queimaram
pela segunda vez em julho de 1864.
Embora a população nativa de Edgewood fosse de apenas três dúzias de
habitantes em 1878, a ferrovia e as exuberantes terras agrícolas vizinhas
contribuíram para que a cidade florescesse. Pouco tempo depois, um grande número
de casas novas surgiu na área, inclusive várias residências extravagantes, muitas
construídas por homens de negócios que iam trabalhar diariamente em Baltimore de
trem. Uma escola, uma agência dos correios, um hotel, uma mercearia e um ferreiro
logo se estabeleceram.
A estação ferroviária de Edgewood também se popularizou devido
à proximidade com valiosos terrenos destinados à caça dotados de várias espécies
de aves aquáticas. Logo, cavalheiros desportistas de cidades do nordeste tão
distantes quanto Nova York e Boston começaram a viajar até Edgewood para
participar das caçadas. O general George Cadwalader, um exuberante herói de
guerra e respeitado advogado da Filadélfia, foi gradualmente adquirindo grandes
lotes na região, perfazendo quase três mil e trezentos hectares, e costumava
convidar amigos abastados e influentes para visitá-lo. Alugou terrenos de frente
para o mar para vários clubes de caça e estabeleceu mais de uma dúzia de fazendas
na propriedade. Os rendeiros davam duro e pagavam a Cadwalader uma polpuda
porcentagem de suas colheitas sazonais.
Outro personagem proeminente nos primórdios de Edgewood foi Herman W.
“Boss” Hanson. Um próspero cavalheiro membro de longa data da Assembleia
Estadual de Maryland, Hanson também era um astuto homem de negócios. Os
tomates eram a cultura mais rentável da sua empresa e, a certa altura, ele
comandava quatro fábricas de conservas na região e comprava os tomates de todos
os outros fazendeiros locais para dar conta das encomendas. O fruto enlatado era
comercializado sob a marca Queen e vendida em todo o país, chegando até a ser
exportada.
O único drama verdadeiro na história da cidade até aquela altura aconteceu no
verão de 1903, quando um grupo de bandidos armados tentou roubar um trem
pagador parado na estação de Edgewood. Houve um tiroteio feroz com o chefe da
polícia local e seus homens, resultando na morte de dois policiais, um funcionário
da empresa de pagamentos e todos os seis bandidos. O repórter de um jornal local
contou mais de duzentos e cinquenta buracos de bala nas paredes da estação.
Felizmente, violência desse tipo era rara na cidadezinha ainda rural.
A pouca distância dos trilhos ficava a estação Magnolia, cujo nome era uma
homenagem às lindas árvores de magnólia que floresciam ali. Do outro lado da
estação, ficava o parque Magnolia Meadows, um local popular para piqueniques,
eventos ao ar livre e excursões de grupos vindos de Baltimore. Um espaçoso
pavilhão no centro do parque era usado para bailes e casamentos e, no início dos
anos 1900, o entorno da estação Magnolia podia se orgulhar de ter uma agência dos
correios, uma igreja, uma escola, uma fábrica de conservas, uma mercearia, uma
sapataria e uma barbearia.
A vida bucólica daqueles que moravam em Edgewood e nos seus arredores
mudou dramaticamente em outubro de 1917, quando o governo dos EUA se
apropriou de todas as terras ao sul dos trilhos para criar o complexo militar do
Arsenal de Edgewood. Milhares de pessoas foram para a região construir
instalações projetadas com o intuito de lidar com os vários aspectos da produção de
armas químicas. O governo construiu fábricas enormes de produtos químicos
extremamente tóxicos, como gás mostarda, cloro, cloropicrina e fosgênio. Até
foram produzidas máscaras de gás para cavalos, burros e cães. No auge, em julho de
1918, o número de pessoas empregadas totalizava 8.342 civis e 7.175 militares.
Enquanto residentes ricos como o general Cadwalader eram indenizados pelas
propriedades perdidas, os rendeiros e meeiros locais não recebiam nada. Vários
fazendeiros negros se mudaram e estabeleceram uma pequena comunidade de casas
modestas na área da Magnolia conhecida como Dembytown. Uma mercearia, uma
escola com duas salas e um clube de jazz caindo aos pedaços chamado Black Hole
foram erguidos em três construções feitas de ripas de madeira ao longo da fronteira
nordeste de Dembytown. O clube pegou fogo em 1920 em circunstâncias suspeitas.
A crescente presença militar logo transformou Edgewood. Escolas, casas e
uma série de empresas se espalharam pela região. A Segunda Guerra Mundial
trouxe mais uma onda de pessoal militar e civil para a cidade. Uma estação
ferroviária moderna foi construída às pressas para dar conta da grande afluência de
gente. Mais residências temporárias para civis e moradias militares fora das bases
foram erguidas em vários locais de Edgewood, inclusive em um complexo de dez
hectares chamado Cedar Drive. A profusão de novos moradores, unida à conclusão
da Route 40, uma rodovia de quatro pistas que atravessa Edgewood, estimulou mais
crescimento econômico. Edgewood Meadows, uma extensa comunidade de casas
unifamiliares, foi estabelecida no início da década de 1950. A Old Edgewood Road
e a Hanson Road atravessavam o extenso complexo residencial e, em ambas as ruas,
logo surgiram vários estabelecimentos comerciais. Mais ao sul da Hanson Road,
uma extensa comunidade de sobrados com preços acessíveis chamada Courts of
Harford Square foi construída, tomando o lugar de mais de quarenta hectares de
férteis terras aráveis. No alto de um morro verde com vista para o novo complexo
residencial ficava a “Hanson House” original, construída por Thomas Hanson no
início do século 19. A mansão vitoriana tinha cinquenta e uma janelas e sete
empenas, e foi a primeira casa em Edgewood a ter encanamento na parte interna.
Em 1963, a Biblioteca Pública de Edgewood foi inaugurada na Hanson Road, em
frente ao movimentado supermercado Acme. Mais tarde, no mesmo ano, a saída
para Edgewood na rodovia interestadual I-95 foi aberta, disseminando um número
ainda maior de bairros residenciais. Para dar conta do afluxo de jovens estudantes
na região, três espaçosas escolas — uma secundária, uma ginasial e uma primária
— foram construídas em quarenta e um hectares ao longo da Willoughby Beach
Road.
Mas, depois de toda expansão, vem a inevitável retração — e, nos anos após o
envolvimento dos Estados Unidos no Vietnã, inúmeros programas de testes de
armamentos no Arsenal de Edgewood foram reduzidos ou totalmente eliminados.
Tropas e civis foram transferidos para outras bases na Costa Leste e, logo em
seguida, partes mais remotas do Arsenal ganharam a aparência de uma cidade
fantasma. Durante anos, correram boatos de que o governo americano estava
planejando abrir uma escola de paraquedismo nas áreas abandonadas, mas tais
planos nunca se materializaram.
No final da década de 1980, a região metropolitana de Edgewood se estendia
por cerca de quarenta e cinco quilômetros quadrados. A população chegava a quase
18.000 pessoas — 68% brancos, 27% afro-americanos e 3,5% hispânicos. A renda
familiar mediana ficava um pouco abaixo da média nacional: US$ 40.500. A média
de habitantes por residência era de 2,81 ocupantes e o tamanho médio das famílias
era de 3,21 pessoas.
Essa era a face pública de Edgewood, Maryland.
3

Essa é a Edgewood que conheço e amo.


Cresci em uma modesta casa de dois andares com venezianas verdes e uma
entrada de garagem inclinada na esquina da Hanson com a Tupelo. Aquela casa e as
calçadas, ruas e quintais que a cercavam foram o meu mundo desde os 5 anos até
minha partida para a faculdade aos 17. Meus pais ainda moram nela.
Eu sou o caçula de cinco filhos — seguindo os passos de três irmãs (Rita,
Mary e Nancy) e do mais velho da turma, meu irmão (John) —, com uma diferença
de idade de quase oito anos. Em outras palavras, eu provavelmente fui um erro.
Nunca perguntei aos meus pais se foi isso mesmo que aconteceu, mas foi o que ouvi
meus irmãos repetirem muitas vezes, até acabar acreditando que era verdade. De
qualquer maneira, isso nunca teve real importância.
Meu pai (aposentado da Força Aérea dos EUA, um homem correto e íntegro,
calado e trabalhador) e minha mãe (de pequena estatura, uma dona de casa de
primeira que, razoavelmente conservada, ainda é a beleza equatoriana com quem
meu pai se casou) tratavam com amor, compreensão e paciência todos os filhos,
igualmente. Bem, quase. Tenho de admitir que, como caçula — e, segundo alguns,
o mais fofo — e também o último membro do clã Chizmar a ter saído de casa, é
provável que eu fosse o favorito.
Mas estou divagando.
A porta de entrada pintada de branco e o janelão saliente davam para a Hanson
Road, uma das vias mais movimentadas de toda Edgewood. Uma placa bem do
outro lado da rua indicava o limite de velocidade de quarenta quilômetros por hora,
mas poucos motoristas obedeciam. O lado direito da nossa casa dava para a Tupelo
Road, uma avenida de três faixas, muito mais tranquila e arborizada, que ia da
Tupelo Court, do outro lado da rua, até a Igreja Metodista Unificada Presbury, na
Edgewood Road. Uma pequena marquise ligava nossa sala de jantar a uma garagem
para um só carro. A garagem era o domínio particular do meu pai, seu refúgio. Ao
crescer, eu me sentia alternadamente intimidado e fascinado por ela. Por algum
motivo, sempre me fazia pensar na mágica e caótica oficina do feiticeiro do filme
Fantasia, da Disney. Uma bancada de trabalho estreita e de fabricação caseira se
estendia por boa parte da parede dos fundos. Pendurados acima dela, cobrindo todos
os centímetros disponíveis dos painéis de aglomerado perfurado que revestiam a
parede, ficavam dezenas de ferramentas e engenhocas, misteriosamente etiquetadas
e organizadas segundo uma lógica que, até hoje, ainda não entendo. Nas laterais da
bancada, encostados na parede e empilhados uns sobre os outros, ficavam quatro
organizadores cúbicos com fileiras de pequenas gavetas de plástico, cada uma
etiquetada com precisão e cheias de porcas, parafusos, pregos e arruelas. Presas na
parte frontal, em cada lado da bancada, ficavam duas grandes prensas de aço.
Embaixo, pilhas ordenadas de tábuas de madeira pré-cortada, alguns baldes de
plástico e duas velhas escadas-banquetas. O espaço restante nas paredes da garagem
era ocupado por folhas de compensado inclinadas, velhos móveis esperando
conserto e máquinas grandes, de aspecto perigoso: uma serra de mesa com dentes
metálicos brilhantes, uma lixadeira de cinta, um jogo de fresas e uma furadeira de
coluna. Para meus amigos e para mim, todas as máquinas pareciam sofisticados
instrumentos de tortura. Mais acima nas paredes, ficavam prateleiras e mais
prateleiras, também de fabricação caseira, cheias de pequenas caixas de papelão,
recipientes de vidro e velhas latas de café etiquetadas com faixas de fita adesiva
cobertas pela grafia do meu pai, toda em caixa alta: CORDA. FITA. ARAME.
ESCORAS. GRAMPOS. ROLAMENTOS. Em outras palavras, coisas mágicas
quando você tem 8 anos de idade.
Infelizmente, o restante da casa não era nem de longe tão interessante. Uma
pequena cozinha, sala de jantar, sala de estar e uma antessala ocupavam o primeiro
andar. Uma aparelhagem de som antiga, contendo a impressionante coleção de
discos de jazz do meu pai, ficava centrada embaixo da janela saliente, enquanto
várias estantes de mogno cobriam as paredes. O sofá e a poltrona que a
acompanhavam eram inexplicavelmente verdes. No andar de cima, três quartos de
dimensões modestas e um banheiro. Meu quarto ficava situado no canto dos fundos,
com janelas que davam tanto para o jardim lateral como para o dos fundos. No nível
mais baixo, ficava um porão propenso a alagamentos com paredes de lambri escuro,
um sofá modulado, duas poltronas reclináveis, uma mesinha de centro de mármore
preto e branco na qual meu pai jogava paciência quase todas as noites, um televisor
RCA e um espetacular relógio-cuco entalhado à mão centralizado na parede dos
fundos.
Um dos meus lugares favoritos da casa era a varanda dos fundos, fechada por
uma tela, acessível através de uma porta corrediça de vidro na parte posterior da
sala de jantar. Passei inúmeras noites de verão naquela varanda — lendo histórias
em quadrinhos e livros em edição de bolso, organizando figurinhas de beisebol e de
futebol americano ou brincando de jogos de tabuleiro com amigos. Minha mãe
trazia uma jarra de limonada caseira e cookies com gotas de chocolate recém-
tirados do forno, ainda quentes e pegajosos, e meus amigos e eu nos sentíamos
como os reis do mundo. Também dormíamos lá quando o tempo estava
suficientemente quente.
Apesar do meu amor precoce pela leitura, para não falar da obsessão pelos
filmes de terror e de faroeste que passavam na tevê, eu gostava mesmo era de ficar
ao ar livre. Desde o dia em que entramos naquela casa, passei inúmeras horas
embaixo do eterno salgueiro-chorão que montava guarda no nosso jardim lateral
fingindo ser Jim Palmer, o arremessador do Baltimore Orioles vencedor do prêmio
Cy Young. Eu usava o calcanhar dos meus tênis velhos, cavado na terra,
de montinho de arremesso no gramado, depois tomava impulso levantando o mais
alto possível a perna esquerda e arremessava à toda velocidade uma bola atrás da
outra contra uma parede de concreto aparente, onde desenhei um quadrado
perigosamente próximo à janela do porão. Ainda considero um pequeno milagre
nunca ter quebrado aquela janela, mas a veneziana verde que delimita seu canto
esquerdo pagou caro pela minha arrogância juvenil. Desfigurada por mossas e
pancadas causadas por centenas de arremessos errantes — altos e fechados demais
para os meus imaginários rebatedores destros —, ela mal conseguia ficar presa à
parede, sustentada por um par de pregos tortos e enferrujados. Aquela veneziana
surrada é até hoje um assunto delicado entre pai e filho.
A calçada na frente da minha casa, paralela à Hanson Road, tinha trinta e três
rachaduras de diferentes tamanhos e formas. A calçada da Tupelo Road tinha
dezenove. Eu as conhecia como a palma da minha mão. Durante doze anos, passei
em cima delas todos os dias, caminhando, andando de skate ou de BMX. Eu e meus
amigos, quando pequenos, construíamos rampas com tábuas e blocos de concreto
que resgatávamos de canteiros de obras ou “pegávamos emprestado” da oficina do
meu pai para dar saltos de bicicleta. Na maioria das vezes, estávamos sem camisa e
não havia capacete algum por perto. Uma vez, até convencemos um menino que
morava a alguns quarteirões a saltar com os olhos vendados. A façanha não
terminou bem e nunca mais a tentamos novamente. Às vezes, nos arriscávamos
ainda mais, voando sobre latas de lixo ou sacos plásticos cheios de grama e folhas.
Outras vezes, ficávamos deitados enfileirados na calçada e saltávamos uns sobre os
outros. Acredite, o auge da lealdade cega adolescente é ficar deitado de costas em
uma calçada de concreto castigada pelo sol, com os braços esticados ao longo do
corpo e os olhos fechados, e deixar que um amigo idiota que se acha o Evel Knievel
salte de bicicleta sobre você.
Em uma tarde de verão, Melody, a irmã mais velha do meu amigo Norman —
uma verdadeira força da natureza que já tinha carteira de motorista e fumava
cigarros sem filtro —, embicou seu Trans Am na entrada da casa ao lado, saltou do
carro e implorou que nós a deixássemos tentar. Depois de inicialmente recusar,
Norm cedeu e entregou a ela sua bicicleta Huffy verde-cheguei estilo chopper.
Lembro como se fosse hoje. A voz de David Bowie saía a todo volume dos alto-
falantes negros como a noite do possante Trans Am enquanto Melody empurrava,
sem olhar para trás, a bike rumo ao topo da ladeira na Tupelo Road, só dando meia-
volta na altura do hidrante na esquina da Cherry Court. Então, ela começou a
pedalar. Depressa. Depressa demais. Eu e meus amigos estávamos em pé no meio-
fio, boquiabertos, quando ela alcançou a base da rampa a não menos do que
quarenta quilômetros por hora e se lançou no ar, atingindo pelo menos cinco ou seis
metros de altura, os longos cabelos louro-acinzentados esvoaçando como a capa de
um super-herói. Quando os pneus da Huffy tocaram o chão novamente com um
estrondo, todos nós soltamos gritos de alegria e, logo em seguida, voltamos a nos
calar, pois as rodas começaram na mesma hora a oscilar e balançar
descontroladamente. Antes que algum de nós pudesse adverti-la aos gritos sobre o
tráfego na Hanson Road, a bicicleta — com Melody agora se segurando com toda a
força — bateu na placa de PARE na esquina, arremessando-a sobre a calçada como
uma boneca de pano. Corremos até ela, certos de que estávamos prestes a ver nosso
primeiro cadáver. Em vez disso, ela, com as pernas abertas e o antebraço direito
coberto de arranhões e sangue, se apoiou num cotovelo esfolado e começou a rir.
Era inacreditável. Melody não apenas estava viva, mas achava tudo aquilo hilário.
Isso é o que eu chamo de lenda.
Norm foi o único que não ficou impressionado. Furioso porque o quadro da
bicicleta — um recente presente de aniversário dos pais — encontrava-se
irreparavelmente empenado como um pretzel malfeito, ele soltou o verbo,
vociferando um monte de palavrões. O grosso da história, porém, eu só vim a saber
mais tarde, pois, tenho de admitir, eu mal estava prestando atenção. Em pé no
jardim lateral da minha casa, com os olhos arregalados, eu estava era observando a
pele deliciosamente bronzeada do tórax de Melody, que havia sido generosamente
exposta quando a regata laranja que ela usava foi puxada para cima e arrancada
depois de fazer contato com a calçada. Em cima daquela barriga chapada, lisa e
bronzeada, eu só conseguia admirar uma nesga de um sutiã vermelho-escuro
abraçando a saliência pálida de um seio nu — o primeiro sutiã e o primeiro peito
que aquele menino de 9 anos viu na vida real. Meus olhos ficaram colados em tudo
aquilo como os de um velho tarado numa praia lotada até que ela finalmente se
levantou, sacudiu a poeira, entrou novamente no Trans Am e saiu dirigindo. Foi um
dos melhores dias da minha jovem vida.
Meu pai acreditava piamente que as pessoas deviam cuidar bem dos próprios
pertences. Era uma questão de orgulho para ele. Nossos carros sempre estavam
lavados e encerados, e nossa casa estava sempre limpa e arrumada, tanto dentro
como fora. Mas acho que ele dedicava atenção especial ao gramado. Adubava o
solo na primavera e no outono, podava os arbustos e as árvores regularmente,
recolhia galhos caídos após tempestades de verão, aparava a grama na beirada das
calçadas (era especialmente meticuloso nessa tarefa, muitas vezes escavando fossos
profundos dos dois lados do pavimento, o que inevitavelmente prendia os pneus das
nossas bicicletas, causando vários acidentes espetaculares em alta velocidade; ainda
não me convenci de que ele não fazia aquilo de propósito), e cortava a grama uma
vez por semana pontualmente com um fervor quase religioso.
Por acaso, tínhamos um dos maiores jardins do bairro, que, para desgosto do
meu pai, era frequentemente usado como playground pelos meus amigos.
Brincávamos de tudo, desde beisebol até peladas, passando por minigolfe e guerra.
Trilhas permanentes sulcavam as bases do nosso “campo de beisebol” em forma de
diamante. Tampas de lixeiras e velhos frisbees mastigados por cães eram usados
para marcar as bases. O fio de telefone frouxo que se estendia sobre a Tupelo Road
servia para delimitar automaticamente o território de um home run. O chão muitas
vezes tremia sob os nossos pés enquanto jogávamos e o estrondo abafado de
explosões distantes podia ser ouvido quando as operações de testes de armamentos
começaram no Arsenal de Edgewood. Não era incomum que esquadrões de caças
ou helicópteros sobrevoassem nossas cabeças no vaivém do Campo de Testes
Aberdeen — onde meu pai trabalhava no primeiro turno como mecânico de aviões.
Quando isso acontecia, nós inevitavelmente parávamos qualquer coisa que
estivéssemos fazendo e fingíamos abatê-los com metralhadoras e bazucas
invisíveis.
Muitas vezes, eu montava shows de mágica na marquise, cobrando da plateia
dez centavos por cabeça, e parquinhos de diversão improvisados no jardim lateral,
usando brinquedos e gibis velhos e descartados como prêmio — tudo para tentar
arrancar uns trocados das crianças menores. Eu também montava uma mesa
dobrável de carteado na calçada na esquina da Hanson com a Tupelo e vendia
limonada gelada em copos de papel para os motoristas de passagem.
Uma amoreira madura e um emaranhado de macieiras silvestres cresciam no
canto do jardim, fornecendo bastante munição para nossas frequentes batalhas de
bairro. As árvores também ofereciam uma cobertura perfeita para bombardear
carros. Se eu tinha uma fraqueza quando garoto, um mau hábito do qual não
conseguia me livrar por mais que fosse pego, repreendido e punido, era jogar
maçãs, nacos de terra ou bolas de neve nos carros que passavam. Não tenho
explicação para essa falha de caráter, a não ser dizer que, se você já deitou de
bruços na grama fresca no verão, esperou um veículo se aproximar, se levantou com
um salto, atirou um pequeno objeto redondo no tal veículo e depois ouviu o lindo
bum do impacto, então sabe exatamente do que estou falando. Era até mais
divertido quando o motorista parava e nos perseguia. Para nós, moleques da Hanson
Road, aqueles eram momentos preciosos de pura e desenfreada alegria e adrenalina,
e queríamos revivê-los o tempo todo. Houve um longo período no qual meu pai,
atônito, acreditava piamente que eu fosse parar no reformatório ou até mesmo na
prisão por causa do meu vício. Depois de um tempo, ele desistiu de falar comigo a
respeito. Minha mãe, meiga, tentava me levar de volta para o bom caminho: “Por
que vocês, meninos, não vão caçar vaga-lumes ou jogar bola de gude?” Mas, àquela
altura, já eram brincadeiras de pirralhos e não despertavam mais nosso interesse.
Ninguém ficou mais aliviado do que meus pais quando, pouco antes de ir para a
faculdade, eu finalmente perdi aquele hábito de uma vez por todas.
Se a casa com as venezianas verdes e o velho salgueiro-chorão representavam
o centro do meu mundo ao crescer — o eixo da minha “roda da vida”, como
comecei a chamá-la mais tarde —, então cada caminho, longo ou curto, que me
afastava da casa, parecia um raio naquela roda em constante movimento, cada um
deles se abrindo em uma direção diferente, até esgotar o espaço disponível,
e definindo como um todo os limites externos da minha amada cidade natal.
A despeito de todos os mapas, a cidade de Edgewood, para mim, se estendia da
Courts of Harford Square (cerca de um quilômetro e meio ao norte da minha casa
seguindo pela Hanson Road) até a faixa costeira do Flying Point Park, às margens
do rio Bush (cerca de três quilômetros ao sul do Colégio Edgewood, localizado a
exatamente um quilômetro e meio da minha casa). Sim, o velho clichê se revela
verdadeiro: eu e meus amigos caminhávamos um quilômetro e meio todo dia para ir
e voltar do colégio até termos idade suficiente para dirigir. Ficávamos a não mais do
que um quarteirão e meio do perímetro que permitia o uso do ônibus escolar, mas
não ligávamos para isso. A longa caminhada nos dava mais tempo para ficar de
zoação antes e depois da escola e atrasava a inevitável chatice do dever de casa.
Também nos proporcionava oportunidades adicionais para atirar pequenos objetos
redondos nos carros que passavam, ou, melhor ainda, nos ônibus escolares.
Fui abençoado com um exército de colegas ao crescer, mas meus amigos mais
próximos, meus verdadeiros parceiros de crime, eram Jimmy e Jeffrey Cavanaugh,
que moravam a duas casas da minha, subindo o morro da Hanson Road. Os
Cavanaugh eram astutos e malandros, e era muito divertido tê-los por perto. Brian e
Craig Anderson moravam na casa ao lado da deles. Os irmãos Anderson, dois
destemidos, eram parecidos e esquentadinhos demais para realmente se darem bem
de maneira duradoura. Dois incidentes memoráveis traduzem melhor essa dinâmica.
Em certa ocasião, em meio a uma discussão acalorada, Craig entrou correndo pela
cozinha, pegou uma faca de churrasco na pia e desceu para dar uma facada na parte
superior da coxa de Brian. A seu favor, tenho que dizer que foi Craig que enfaixou a
perna do irmão mais velho naquele dia e acabou chamando a ambulância.
No segundo incidente, Craig, num momento de pura fúria em uma escaldante tarde
de verão, puxou o short até os tornozelos, se agachou no meio da Hanson Road,
defecou na própria mão e começou a perseguir o irmão, varejando um punhado de
cocô fresquinho nas costas nuas de Brian como um macaco mal-humorado no
zoológico. Sei que parece ao mesmo tempo nojento e difícil de acreditar, mas eu
estava presente e testemunhei tudo — e realmente foi uma visão impressionante.
Nunca vou me esquecer.
Jimmy e Brian estavam um ano abaixo de mim na escola (Jeff e Craig, vários
anos abaixo dos irmãos mais velhos que, sabiamente, já não se misturavam com os
pirralhos), então nós três éramos especialmente próximos. Com base na idade mais
avançada e no comportamento mandão naturalmente absorvido por quem tem três
irmãs mais velhas, eu geralmente assumia o papel de líder do nosso grupinho.
Jimmy e Brian nunca demonstraram se importar com isso e também não me lembro
de nenhum plano deles que não tenha sido aceito com entusiasmo. Dependendo da
pessoa a quem você perguntasse, nós éramos os Três Mosqueteiros ou os Três
Patetas. As pessoas nos conheciam e vice-versa: todas as crianças do bairro, bem
como a maior parte dos adultos, estavam no nosso radar diário. E nós também
sabíamos coisas. Sabíamos onde as garotas bonitas moravam, onde ficavam os
atalhos, quais máquinas de cigarro em quais postos de gasolina sempre tinham
caixas de fósforo sobrando largadas na bandeja (uma inestimável moeda de troca,
talvez só igualada por um outro item: bombinhas), quais caçambas continham mais
garrafas retornáveis de refrigerante e quais casas na árvore tinham estoques
escondidos de revistas pornográficas. Sabíamos quais pais batiam nos filhos e quais
bebiam demais; quais vizinhos que tinham piscina iam à igreja nas manhãs de
domingo — o que significava que era seguro para nós invadi-las — e, quando
éramos mais velhos, quais lojas vendiam bebida alcoólica para nós, onde os
policiais guardavam seus radares portáteis e quais estacionamentos eram seguros
para darmos uns amassos nas gatinhas.
Um típico dia de verão para nós trazia uma ampla gama de aventuras juvenis.
Praticávamos todos os esportes ao ar livre conhecidos e mais alguns que
inventávamos por puro tédio. Estourávamos bolhas de piche na rua com os dedos
dos pés. Trapaceávamos brincando de Marco Polo na piscina de armar dos
Cavanaugh. Pescávamos nos córregos, lagos e rios próximos. Explorávamos os
infinitos bosques e construíamos fortes subterrâneos secretos. Às vezes, nosso
amigo Steve Sines se juntava a nós e trazia consigo a espingarda semiautomática
calibre .22 do pai. Passávamos longas tardes caçando corvos e urubus no bosque ou
atirando em latas e garrafas vazias. Outras vezes, colocávamos em prática as
medidas de segurança no uso responsável de armas apontando para os sapatos uns
dos outros e gritando “Pula!” antes de puxar o gatilho e fazer explodir a terra onde
os pés dos nossos amigos estavam segundos antes. É um milagre ainda termos todos
os dedos dos pés.
Em outros dias, podíamos escalar a calha até o telhado da Escola Primária
Cedar Drive e fingir que estávamos no topo de uma montanha nevada em uma terra
distante. Ou subir uma calha semelhante até o topo do posto de gasolina Texaco no
cruzamento das ruas Hanson e Edgewood, baixar as calças e mostrar o traseiro para
os motoristas de passagem (essa brincadeira específica foi interrompida de maneira
lamentavelmente brusca em uma tarde memorável, quando meu pai avistou o brilho
das nossas bundas magras e brancas ao voltar do trabalho para casa. Fiquei uma
semana de castigo).
Vocês precisam entender uma coisa sobre viver em uma cidadezinha como
Edgewood: o tédio cria companheiros peculiares, e muitas vezes não havia muita
lógica no que fazíamos. Certo verão, com nosso amigo Carlos Vargas, criamos um
grupinho exclusivo chamado Daredevil Club. Por algum motivo desconhecido, os
ritos iniciáticos envolviam jogar aleatoriamente, acobertados pela escuridão,
carrinhos de miniatura Matchbox nas piscinas da vizinhança. Outra vez, nos
tornamos estranhamente obcecados por colecionar sapos em potes vazios de
manteiga de amendoim. Uma vez, também passei uma tarde inteira em julho
circulando sem camisa com uma cobra preta morta de quase dois metros enrolada
no pescoço. Até tentei entrar em várias lojas, mas fui enxotado. Ninguém —
inclusive eu mesmo — sabe dizer por que fiz aquilo, mas não importava. Naquele
momento, era tudo diversão.
O Edgewood Shopping Plaza, localizado a vários quarteirões das nossas casas
e bem em frente à Biblioteca, também proporcionava horas de interessante
entretenimento. Lá ficava a Plaza Drugs, onde costumávamos comprar balas,
chicletes e todos os nossos gibis e figurinhas de beisebol e futebol americano. Ali
também comprei todos os presentes de Dia das Mães, desde quando me tornei
grande o suficiente para entrar lá andando sozinho até completar 16 anos e tirar
minha habilitação. Tinha uma loja de bebidas alcoólicas que também vendia por
alguns trocados os melhores sanduíches sabor pizza (com mais de trinta centímetros
de comprimento e queijo perfeitamente derretido) e uma lavanderia automática com
uma máquina de guloseimas nos fundos que vendia pacotes de Bubble Yum pela
incrível pechincha de 10 centavos (na maioria dos outros lugares, custava 25, então
eu enfiava punhados de moedas de 10 naquela máquina várias vezes por semana e
depois vendia cada chiclete por 25 na escola, obtendo assim um belo lucro que,
inevitavelmente, era gasto em mais sanduíches sabor pizza). Deixando o melhor
para o final, havia uma genuína sinuca (cujo dono era o pai do nosso amigo Brook
Hawkins), onde jogávamos pinball, aprendemos a jogar bola oito e procurávamos
por moedas de 25 centavos que os bêbados deixavam cair no carpete imundo. As
luzes eram fracas, os bebuns eram muitos e quase sempre tinha moedas dando sopa.
Fora, nos fundos do estacionamento do shopping, um grupo de garotos mais
velhos havia construído uma rampa de skate de uns três metros com cinquenta
centímetros de desnível e, graças à fileira de postes de iluminação, deslizávamos
por aquela rampa noite e dia. Às vezes, até apareciam carros cheios de garotas que
nos assistiam e nos encorajavam.
Só vou dizer uma coisa: os Cavanaugh e os Anderson passavam muito pouco
tempo na Biblioteca do outro lado da rua, já eu não conseguia ficar longe de lá. Eu
me aboletava nas cadeiras excessivamente estofadas na seção para adultos e
devorava um livro atrás do outro. No início, o general Armstrong Custer era um dos
meus temas favoritos, assim como quase tudo sobre o Velho Oeste, a Guerra Civil e
fenômenos inexplicados. Eu era atraído por mistérios e histórias de crimes e
acreditava piamente em fantasmas e lobisomens, no monstro do lago Ness e no Pé-
Grande.
Em uma tarde qualquer de sábado, um autêntico caçador do Pé-Grande chegou
à cidade vindo de algum lugar no oeste e montou uma grande mostra nos fundos da
Biblioteca. Era um sujeito de fala mansa, costas arqueadas, bigode grisalho eriçado
e sobrancelhas de taturana que deu uma palestra fascinante e nos mostrou
fotografias, mapas, desenhos e até um tufo autêntico de pelo do Pé-Grande preso
num mural com uma tachinha. Eu havia de alguma maneira convencido Jimmy a ir
comigo naquele dia e nos sentamos no centro da primeira fila, prestando total
atenção. Quando a palestra terminou, Jimmy e eu nos agachamos entre duas fileiras
de estantes próximas, unimos nossas mentes e criamos um plano. Logo voltamos
para a área da apresentação, onde o palestrante convidado estava posando para
fotografias e batendo papo com um punhado de admiradores. Jimmy fez um sinal
com a cabeça e ativou a primeira fase do nosso plano criando uma distração — até
hoje não consigo lembrar o que era, mas talvez envolvesse cair no chão e fingir uma
convulsão. Depois que uma multidão preocupada se reuniu em volta do meu amigo
caído no chão, eu fui de fininho até a mesa da exposição, surrupiei vários fios de
pelo autêntico do Pé-Grande e os enfiei no fundo do bolso. Minutos mais tarde,
fugimos e ninguém percebeu nada. Conto essa história aqui pela primeira vez com
uma mistura descarada de orgulho e vergonha. Ainda não faço ideia de que fim
levou aquele tufo de pelos autênticos do Pé-Grande. Se eu tivesse de adivinhar,
imagino minha mãe provavelmente encontrando-o em uma das minhas gavetas,
torcendo o nariz e balançando a cabeça enquanto o jogava fora.
Para mim, depois de passar um tempo na Biblioteca ou no Edgewood
Shopping Plaza, havia duas maneiras de voltar para casa. A primeira envolvia
atravessar a Edgewood Road no sinal de trânsito principal e seguir por vários
quarteirões ao longo da Hanson Road. Essa era a rota que percorríamos
se estivéssemos de bicicleta ou de skate. Mas, se estivéssemos a pé, sempre
pegávamos o atalho.
Isso envolvia atravessar um trecho perigoso da Edgewood Road bem ao lado
do shopping e seguir a longa entrada de cascalho da temida Meyers House. Depois
de deixar aquela monstruosidade para trás, atravessávamos dois quintais — um
pequeno, outro de tamanho médio — e chegávamos à calçada da Tupelo Road,
a apenas um quarteirão da minha casa.
Toda cidade pequena tem sua casa mal-assombrada — um lugar onde, segundo
boatos, coisas terríveis aconteceram e coisas ruins ainda pairam, fazendo seu
coração disparar e seu braço ficar arrepiado toda vez que você passa por ali. Para
nós, era a Meyers House. Construída mais de duzentos anos antes que qualquer um
de nós tivesse nascido e, supostamente, a casa original de um covil de bruxas no
século 19, a Meyers House era uma monstruosa estrutura vitoriana com uma larga e
sombreada varanda que envolvia a fachada inteira, dois frontões de duas águas
idênticos e dezenas de janelas que observavam a cidade com uma intensidade
premonitória. De dia, o lugar era toleravelmente inquietante. Sentíamos a casa nos
observando, mas também tínhamos certeza (esperança) de que não se mexeria. Não
em plena luz do dia — ela era mais inteligente e sinistra do que isso.
Já à noite, eram outros quinhentos. A casa pairava sobre nós na escuridão,
faminta, alerta e sonsa, e ousar passar em frente era uma odisseia aterradora que só
os moleques mais corajosos do bairro cogitariam realizar. “Corajosos” certamente
não era uma palavra que muitas pessoas teriam usado para nos descrever, mas
passávamos por lá de qualquer maneira, numa combinação de lei do menor esforço
(afinal de contas, um atalho é sempre um atalho) e desejo masoquista de nos
torturar.
Foi durante uma daquelas caminhadas demoradas, lentas e sem fôlego por
aquela entrada de cascalho que, pela primeira vez, contei uma história de terror para
os meus amigos. Eu iniciava a coisa lentamente com uma série de incidentes
comuns, construindo, aos poucos, a narrativa, soltando informações interessantes
pelo caminho e sincronizando o ritmo para que os choques mais terríveis e
horripilantes acontecessem justamente quando estivéssemos passando perto da casa.
Na maioria das vezes, àquela altura, era Jimmy que me implorava: “Por favor,
para, pelo amor de Deus, Chiz, para com isso!” Eu raramente lhe dava ouvidos. Às
vezes, até olhava por cima do ombro, os olhos esbugalhados mirando uma nova
visão tenebrosa e soltava um grito de puro horror. Logo depois, saía correndo para
casa. Quando chegávamos na esquina da Hanson com a Tupelo, nossos gritos
geralmente já haviam se transformado em gargalhadas e mal podíamos esperar para
passar por tudo aquilo de novo.
Como na maioria das cidades pequenas, Edgewood tinha muitas histórias
esquisitas e arraigadas lendas circulando. Alguns anos antes, quando eu estava na
escola primária, uma garota, desnorteada por causa de uma gravidez indesejada,
supostamente se matou parando nos trilhos atrás da escola de ensino médio e
deixando que o trem a atropelasse a toda a velocidade. Desde então, muitas
testemunhas afirmam ter visto ou ouvido seu fantasma vagando no bosque ali perto.
Bob Eiring, um amigo nosso considerado confiável, jura até hoje que, quando
entrou às escondidas numa área proibida do Arsenal de Edgewood e espiou pela
janela de um armazém, viu um grupo de cientistas de jaleco realizando um
experimento num alienígena de verdade. Ele dizia que a criatura tinha uma cabeça
do tamanho de um pneu de bicicleta e uma pele empoada azul-clara. No início, não
acreditamos, mas ele passou algumas semanas na Biblioteca vasculhando velhos
arquivos de jornais e voltou com uma pilha de matérias das décadas de 1960 e 1970
fotocopiadas em preto e branco que relatavam boatos semelhantes sobre estudos
ultrassecretos sobre extraterrestres conduzidos no Arsenal. Diante de todas aquelas
provas, sua veracidade não podia ser facilmente contestada.
Ninguém parecia saber quando o Homem-Elástico apareceu pela primeira vez
em Edgewood — perguntei às minhas irmãs e elas ouviram falar dele pela primeira
vez quando eram adolescentes —, mas todas as crianças que eu conhecia morriam
de medo dele. Não se sabia direito se o Homem-Elástico era humano ou alguma
espécie de criatura sobrenatural ou talvez até uma mutação que havia dado errado e
fugido de um laboratório no Arsenal de Edgewood. Se você desse ouvidos aos
boatos — e nem é preciso dizer que nós sempre dávamos —, o Homem-Elástico
tinha quase dois metros e quinze de altura e era magro de doer. Os braços eram
como gravetos e pendiam rígidos nas laterais do corpo. Os cabelos eram corvinos,
curtos e espetados. Os olhos eram fendas negras e a boca era uma sinistra linha reta.
Ninguém jamais havia visto seus dentes. Quer dizer, ninguém que sobreviveu para
contar a história. O Homem-Elástico sempre usava roupas escuras e gostava de
rondar parquinhos isolados e terrenos baldios ao cair da noite, procurando crianças
para roubar e devorar. Uma vez, aos 7 anos, eu estava brincando de esconde-
esconde com amigos no parquinho da igreja, na rua lá de casa. Perto dos balanços,
ficavam dois túneis de concreto pintados com cores fortes, cada um com uns quatro
metros de comprimento. Quando éramos bem pequenos, costumávamos fingir que
eram submarinos. Naquela tarde, eu me escondi em um dos túneis. Depois de um
tempo, quando ninguém foi me procurar, espiei do lado de fora e juro por tudo o
que é mais sagrado que vi uma figura assustadoramente alta e magricela saindo do
bosque à minha frente. Depois de quinze ou vinte metros, a figura mudou
abruptamente de direção e, manquitolando, começou a caminhar na direção do
parquinho. De repente, senti muito medo, pus a cabeça para dentro do túnel
novamente e corri para a parte central, ficando totalmente imóvel. Alguns minutos
mais tarde, senti um terrível fedor azedo, como o de uma cesta de frutas podres
deixada ao sol por dias. Prendi a respiração, tentando segurar os engulhos, e fiquei
paradinho enquanto duas pernas finas como as de uma aranha cobertas por calças
pretas esfarrapadas se arrastavam pela boca do túnel. Esperei o que me pareceu uma
hora até não ouvir mais passos, depois contei mentalmente até cinquenta só para ter
certeza e saí em disparada até a rua. Encontrei meus amigos reunidos na frente da
casa de Bob Eiring e contei o que havia acontecido. Pouco depois, voltamos todos
ao parquinho com o pai de Brian Anderson ao nosso lado. Nenhum sinal da
estranha figura em lugar algum. Mas eu não estou louco. Sei o que vi. E o cheiro
que senti.
E depois, é claro, havia o Acariciador Fantasma. Eu estava fora, na faculdade,
quando tudo começou, mas consegui me manter a par da história graças aos
exemplares semanais do The Aegis que minha mãe guardava para mim. Na verdade,
foi um repórter do The Aegis que criou a alcunha “Acariciador Fantasma”. Desde
agosto de 1986, alguém havia entrado nas casas de pelo menos duas dúzias de
mulheres de Edgewood e tocado seus pés, pernas, barriga e cabelos enquanto elas
dormiam. Todas as vezes, quando a mulher acordava, o homem fugia da casa e
desaparecia noite adentro. Até então, a polícia local não havia conseguido capturar
ou identificar o agressor.
Essas histórias — e muitas outras que eu poderia contar para vocês — dão
apenas uma vaga ideia da natureza mais obscura da minha cidade natal. Apesar do
meu ponto de vista um pouco parcial, minha visão de Edgewood não era totalmente
influenciada pela névoa da nostalgia ou pelas lembranças douradas de um paraíso
americano ao estilo de Norman Rockwell. Como na maioria das cidades pequenas,
havia crime e violência, traição e segredos, tragédias e farças. Havia bairros mal-
afamados e lugares nos quais você não queria ficar sozinho à noite. Quando eu
entrei para a faculdade, fiquei chocado ao descobrir que a maioria dos caras do meu
dormitório nunca tinha se metido numa briga; eu já havia me metido em uma dúzia
ou mais quando me formei no ensino médio. A propósito, o diretor da escola havia
sido preso por apropriação indébita no meu segundo ano e foi, inclusive, condenado
a cumprir pena em regime fechado. Alguns anos antes, um professor do ginasial
havia sido preso por uma série de assaltos a banco à mão armada em Maryland,
Pensilvânia e Delaware, crimes cometidos em seus dias de folga.
Ao contrário da maior parte do condado de Harford, e devido à nossa
proximidade ao Arsenal de Edgewood, éramos uma comunidade heterogênea,
graças ao grande número de famílias de militares que chegavam e partiam com cada
vez mais frequência. Uma grande população de afro-americanos e hispânicos fez de
Edgewood seu lar, frequentando as escolas, e mesmo naqueles tempos modernos e
supostamente progressistas, a simples presença deles era suficiente para intimidar
certas pessoas. Quando eu já tinha idade para dirigir, várias garotas de outras
cidades com quem eu saía não tinham permissão para ir a festas ou eventos
esportivos em Edgewood. “Não me leve a mal”, era a desculpa que os pais
costumavam me dar. Eu sorria educadamente, mas acabava mesmo levando elas
para lá. No meu último ano, quando a equipe de lacrosse do Colégio Edgewood
venceu seu primeiro campeonato estadual da história, alunos da próxima e muito
mais abastada Fallston nos insultavam das arquibancadas cantando “Tá tudo certo,
tá tudo como deveria, todos vocês vão trabalhar pra nós um dia!” Esse tipo de
comportamento elitista só servia para fortalecer o vínculo entre os moradores de
Edgewood — éramos nós contra o mundo, e gostávamos que fosse assim. Éramos
mais do que uma comunidade — éramos uma família. Não, não dirigíamos carros
sofisticados nem morávamos em casas enormes com jardins bem cuidados. Nossos
pais não eram sócios do Country Club nem de organizações empresariais; eram
membros da Legião Americana e da Associação de Pais e Mestres. E, para mim e
para os meus amigos, estava tudo ótimo; era um motivo de orgulho proletário, e era
assim que deveria ser.

Duas lembranças especiais de Edgewood permanecem impressas na minha alma


para sempre. A primeira aconteceu quando eu tinha apenas 5 anos, pouco depois de
termos nos mudado para cá. Era uma noite fria de dezembro e vários centímetros de
neve fresca cobriam o solo. Depois do jantar, meu pai e eu vestimos nossos casacos
pesados de inverno, gorros de esqui, luvas, botas e saímos. A maioria das entradas
das garagens e calçadas já havia sido desobstruída. Luzes natalinas brilhavam nas
janelas e em cima dos telhados de um punhado de casas ao longo da Hanson Road.
Havia pouco trânsito e um silêncio tranquilo pairava no ar. De mãos dadas, nenhum
dos dois dizendo muita coisa, meu pai e eu caminhamos até a Tupelo, passamos
pela Cherry Court e pela Juniper Drive, até chegarmos à esquina no topo do enorme
morro na Bayberry. Meu pai se virou para a esquerda e olhou lá para baixo.
Observando-o, fiz o mesmo — e fiquei pasmo com o que vi. Todas as casas, até
onde minha vista alcançava, nos dois lados da rua, estavam iluminadas por luzinhas
natalinas multicoloridas, muitas delas piscando alegremente. Nos jardins dianteiros,
cobertos de neve resplandecente, acendia-se um caleidoscópio de cores brilhantes
— vermelho e verde, amarelo e vermelho, prata e ouro. Um grupo de cantores
entoava “Noite Feliz” no jardim de uma das casas e um grande Papai Noel de
plástico cercado de renas voadoras balançava com uma suave brisa em cima do
telhado de uma outra casa próxima.
Eu moro aqui, lembro-me de ter pensado. Este lugar é o meu lar… e é mágico,
e eu nunca quero ir embora daqui. Meu pai, percebendo meu encanto ofegante,
apertou minha mão. Fiz o mesmo em retribuição e, depois de ficar em pé ali por
mais algum tempo, descemos a ladeira juntos, apreciando a vista.
Coincidentemente, a segunda lembrança especial que eu guardei com carinho
também aconteceu em uma noite de inverno com neve. Eu estava com 15 anos e
tinha passado a tarde com os meus amigos, subindo e descendo de trenó os morros
em volta da Escola Primária Cedar Drive, a pouca distância das nossas casas. Havia
uma caixa-d’água no topo do morro mais alto e suas pernas longas e finas sempre
preenchiam minha imaginação com as figuras ameaçadoras dos alienígenas
ensandecidos de um dos meus filmes favoritos de todos os tempos, A Guerra dos
Mundos. Eu costumava ter pesadelos com aquela caixa-d’água quando pequeno,
mas já estava mais velho e corajoso e acabei ficando sozinho no alto do morro, já
que meus amigos tinham voltado para casa pouco antes para jantar. Um punhado de
outras crianças do bairro havia ficado para trás comigo, mas, a certa altura, elas
também sumiram e eu estava ocupado demais me divertindo para notar. Com fome,
cansado e meio congelado, desci pela última vez o morro e segui o caminho de
casa.
Quando cheguei no topo de um dos morros menores, abaixo da caixa-d’água,
começou a nevar novamente e, através das árvores, avistei minha casa ao longe,
a cerca de três quarteirões. Lâmpadas natalinas vermelhas piscavam ao longo das
calhas no telhado. As árvores altas e frondosas que ladeavam a entrada da garagem
estavam cobertas por pequenas lâmpadas verdes piscantes. Retângulos de luz pálida
brilhavam na janela saliente e nas duas janelinhas do porão. Imaginei minha mãe
preparando o jantar na cozinha, cantarolando junto com o rádio uma canção
natalina, meu pai no andar de baixo, no sofá, assistindo ao noticiário e jogando
paciência. Fiquei parado em meio à neve que caía e olhei em volta — não havia
carros passando na Hanson Road, nem sequer uma pessoa à vista, o mundo à minha
volta estava completamente silencioso, exceto pelos cliques ritmados dos flocos de
neve pousando no meu casaco encharcado. Olhei novamente para a minha casa —
e, pela primeira vez na minha jovem vida, eu me dei conta.
Em pé naquele momento congelado no tempo e no espaço, percebi que o
mundo à minha volta era imenso e que eu logo iria embora daquele lugar que eu
sempre havia chamado de lar para começar minha própria aventura. Meus amigos
também se espalhariam pelos quatro cantos do mundo, e alguns deles eu nunca mais
veria. Nossos pais, irmãos e irmãs envelheceriam e um dia também teríamos de nos
despedir deles. Nada jamais seria igual.
Minha respiração ficou presa na garganta e, de repente, meus olhos marejaram
e minhas pernas bambearam. Por um instante, eu tinha 5 anos de novo, só que,
daquela vez, meu pai não estava em pé ao meu lado, esticando o braço para segurar
minha mão. Lembro de dizer a mim mesmo naquele momento que tudo ia ficar
bem, que eu cresceria e seria feliz e, um dia, me tornaria um escritor, e que as
palavras que eu pusesse no papel ajudariam as pessoas a dar sentido ao mundo.
Não faço ideia de quanto tempo fiquei ali no meio da nevasca. Só lembro que,
a certa altura e sem perceber o que estava fazendo, comecei a andar, meu trenó
enfiado debaixo do braço, e acabei chegando em casa a tempo para o jantar.
Embora tenha pensado muitas vezes sobre aquele momento ao longo dos anos,
eu nunca havia falado ou escrito a respeito até agora.

(Boa parte das informações históricas incluídas na primeira parte deste capítulo
pode ser encontrada nas páginas de dois ótimos livros: Edgewood, Maryland: Then
and Now, de Jeffrey Zalbreith; e Images of America: Edgewood, de Joseph F.
Murray, Arthur K. Stuempfle e Amy L. Stuempfle. Super-recomendo ambos.)
ACIMA: A sinalização de Edgewood Meadows no cruzamento da Bayberry Drive com a Edgewood
Road (Foto cortesia do autor)

ACIMA: Teste de armamentos no Arsenal de Edgewood (Foto cortesia do The Baltimore Sun)

ACIMA: A velha estação ferroviária de Edgewood (Foto cortesia do The Aegis)


ACIMA: A Meyers House
(Foto cortesia de Alex Baliko)
ACIMA: Moradias militares na Cedar Drive (Foto cortesia do autor)

ACIMA: A Biblioteca de Edgewood (Foto cortesia do The Aegis)


ACIMA: A casa do autor na Hanson Road (Foto cortesia do autor)
dois

A Primeira Garota
“Afinal, os assassinos não costumam voltar à cena do crime para
observar o estrago que causaram?”

A primeira vez que me lembro de ter visto Natasha Gallagher foi na missa matinal
de domingo. Ela estava com a família. Eu tinha 12 anos na época, portanto Natasha
devia ter 6. Eu fui sozinho com meus pais à igreja naquele dia — todos os meus
irmãos mais velhos já tinham saído de casa àquela altura — e sentamos
propositalmente na última fila pois meu pai tinha ingressos para o jogo do
Baltimore Colts e estava decidido a sair voando assim que a missa das dez
terminasse.
Os Gallagher chegaram com alguns minutos de atraso. Ouvi as pesadas portas
se abrindo com um rangido atrás de mim e olhei por cima do ombro. O jovem Josh
estava em pé entre os pais, parecendo tão feliz por estar ali quanto eu, com a
pequena Natasha mais ao lado, de mãos dadas com a mãe. Ela estava usando um
vestido de bolinhas, os longos cabelos louros presos em marias-chiquinhas.
A família deu alguns passos tímidos pelo corredor central e parou, esticando os
pescoços à procura de um lugar para se sentar. Meu pai imediatamente chamou-os
com um gesto, empurrando a mim e a mamãe em direção ao meio do banco.
Os Gallagher foram deslizando um após o outro para o nosso lado. Depois que
todos se acomodaram, eu, disfarçadamente, me curvei para a frente e dei uma
olhada mais de perto. Josh me encarou com olhos sonolentos e fez um aceno de
cabeça tão gélido que teria deixado James Dean e Elvis orgulhosos. Sentada à
esquerda do irmão, Natasha abriu um sorriso largo e banguela e agitou os dedos
para mim num aceno exagerado. Eu imediatamente me recostei e olhei para a
frente, meu rosto e minhas orelhas ficando quentes. Garotas, de todas as idades,
pareciam surtir aquele efeito em mim. Eu odiava.
A vez seguinte em que a vi, era verão e ela estava saltitando pela calçada na
frente da minha casa, balançando os braços acima da cabeça, cantando o tema de
Scooby-Doo com uma voz aguda e anasalada. Passou a uns cinco metros de mim
naquele dia sem sequer me notar.
Um velho carvalho — que já não existe há anos — habitava o centro do jardim
da frente da nossa casa, ocultando convenientemente a varanda com sua densa teia
de galhos frondosos se projetando por cima da calçada. Eu tinha pegado a mania de
subir naquela árvore e me empoleirar a uns três ou quatro metros do chão,
geralmente com um romance de Stephen King em edição de bolso para me fazer
companhia. Eu gostava da sensação de estar invisível para o mundo, de observar o
fluxo de carros e pedestres que passavam lá embaixo, sabendo que eles nem faziam
ideia de que eu me encontrava ali, praticamente perto o suficiente para esticar o
braço e tocá-los. Eu ficava ali sentado, escondido e em silêncio, imaginando como
era a vida deles, aonde estavam indo e se estavam felizes ou tristes, tendo bons ou
maus pensamentos.
Eu sabia de cor a letra da música que ela estava cantando — Scooby-Doo era
meu desenho animado favorito das manhãs de sábado quando criança — e pensei
em cantar junto, mas não quis assustá-la, então fiquei calado e a deixei seguir seu
caminho. Ela chegou ao final da calçada na esquina com a Tupelo, parou de andar
(e de cantar), olhou para os dois lados e atravessou a rua. Quando estava segura do
outro lado, começou a saltitar e cantar novamente, seguindo pela Hanson com um
ritmo ainda mais animado. Olhei para o meu livro, comecei um novo capítulo e,
quando levantei a cabeça novamente, ela já havia sumido.
Mais tarde naquele mesmo verão, Natasha e duas amigas pararam na minha
barraquinha de limonada. As três estavam com os cabelos molhados e toalha em
volta do pescoço, então deduzi que tinham ido nadar. Uma das amigas anunciou que
não tinha dinheiro, então Natasha pegou um porta-moedas e pagou para as três. Ao
contrário da vez em que a vi na igreja, ela parecia quase tímida, mal estabelecendo
contato visual ou falando. Até que subiu novamente na bicicleta, olhou para mim
por cima do ombro e disse: “Até mais, Richie Rich”, em alusão ao personagem
Riquinho.
Surpreso por ela saber meu nome, fiquei ali plantado, observando-as pedalar
para longe.
Era 1982 (sou de 65) e eu estava no último ano do colégio quando a vi pela
última vez. Foi na semana antes das férias de Natal. Jimmy Cavanaugh e eu
estávamos no degrau mais alto das arquibancadas do ginásio. Lá embaixo, na
quadra, as equipes de luta greco-romana de Edgewood e Bel-Air se aqueciam. Os
alto-falantes tocavam Van Halen à toda. Quinze minutos antes do início previsto da
competição, a ala destinada aos estudantes da casa já se encontrava abarrotada,
todos em pé. Ao meu lado, Jimmy estava ocupado sendo Jimmy, mascando,
esticando e enrolando com a ponta do dedo um chiclete, me provocando a desafiá-
lo a jogar a grudenta guloseima nos cabelos fartos e encaracolados de uma aluna do
segundo ano à nossa frente.
Vi o sr. Gallagher primeiro, tirando seu pesado casaco de inverno enquanto
entrava no ginásio. A esposa e a filha vinham logo atrás, todos com as bochechas
coradas e ainda tremendo por causa da congelante caminhada pelo estacionamento.
Natasha tirou sua touca de esqui rosa ao que longas e brilhantes ondas de cabelos
louros foram caindo em seus ombros. Ela havia crescido desde a última vez que a vi
e estava bem encaminhada para se tornar uma destruidora de corações. Era bom que
o irmão Josh estivesse por perto para manter os garotos do ginasial na linha.
O sr. Gallagher acenou para alguém na multidão e os três, então, começaram a
andar em fila indiana rumo às arquibancadas do outro lado do ginásio. No meio do
caminho, Natasha mudou abruptamente de direção, aproximando-se do tapete
acolchoado vermelho e branco da equipe de luta greco-romana do Edgewood Rams
no centro da quadra.
Então vi Josh deitado de costas na ponta do tapete, as pernas dobradas
embaixo do corpo, costas e braços esticados em uma posição que deveria ser
impossível. Natasha parou na frente dele e disse algo. Ele olhou para cima surpreso.
Em vez de ficar irritado pela interrupção causada pela irmã caçula, como eu
esperava, Josh se levantou rapidamente, um grande sorriso iluminando seu rosto, e a
abraçou. Quando terminaram de se abraçar, bateram um toca aqui e Natasha saiu
correndo atrás dos pais.
Lembro-me de ter pensado naquele momento: Talvez irmãs não sejam tão
ruins assim. Depois, os alto-falantes começaram a tocar AC/DC e, não mais que de
repente, o pensamento morreu e eu estava novamente tentando impedir que Jimmy
grudasse o chiclete no cabelo de uma inocente.

Durante os cinco anos em que estive na faculdade, Natasha Gallagher sem dúvida
cresceu. Com um metro e sessenta de altura e nem quarenta e cinco quilos de peso,
ela se tornou naturalmente uma ginasta de talento. Natasha adorava o esporte e era
disciplinada em sua prática, treinando cinco vezes por semana na Harford
Gymnastics, no William Paca Business Center. Solo e trave eram suas
especialidades. Ela também adorava ser cheerleader e era a única aluna do primeiro
ano a fazer parte da equipe oficial do Colégio Edgewood. Se você pedisse à família
e aos amigos de Natasha para falarem de algo memorável a respeito dela, eles
evocariam a imagem de uma adolescente bonita e perenemente feliz. Era viciada em
chiclete sabor canela e prendedores de cabelo coloridos, enlouquecidamente
apaixonada pela vida. Adorava rir e fazer os outros rir. Péssima cantora, nunca
deixou que isso a impedisse de ser a mais barulhenta do grupo. Era brincalhona e
animada, adorava uma palhaçada, e nem um pouco tímida, coisa rara para uma
garota daquela idade. Gostava de rabiscar e sonhar acordada. Adorava flores e
ajudar a mãe com a jardinagem. E, para uma atleta tão talentosa, era
encantadoramente desengonçada fora do tablado de ginástica. Natasha era o tipo de
garota que recolhia lixo do chão e desejava um ótimo dia a estranhos. Costumava
chorar assistindo a filmes e dava os melhores abraços.
Pelo menos é o que dizia seu obituário.

Eu estava ajudando meus colegas de quarto a carregar móveis para fora da zona de
catástrofe inatural que era nosso apartamento de três quartos, localizado nos
arredores do campus da Universidade de Maryland, quando ouvi a notícia de que
Natasha Gallagher havia sido assassinada.
Eu tinha perdido uma disputa de cara ou coroa mais cedo naquela manhã e
estava indo comprar comida chinesa para todos quando o rádio do carro começou a
transmitir um boletim de notícias. Quase pisei com toda a força no freio no meio da
Greenbelt Road quando ouvi o repórter mencionar “uma jovem do subúrbio de
Edgewood” e o sobrenome da vítima. Rezando para estar enganado, liguei para casa
assim que voltei ao apartamento e falei com meu pai. Ele não sabia muito mais do
que eu, só o suficiente para confirmar que tinha de fato sido nossa vizinha Natasha.
A conversa foi breve e soturna.
O crime ganhou destaque no noticiário da noite e na primeira página de vários
jornais locais no dia seguinte. Naquela mesma tarde, liguei para alguns velhos
amigos e ouvi o resto da história.
As informações que obtive foram as seguintes:
Duas noites antes — em 2 de junho de 1988, uma quinta-feira —, Natasha
Gallagher, 15 anos de idade, passara a noite com a mãe e o pai, vendo televisão na
sala de estar no porão de casa até as 21h. Quando o programa terminou, ela desejou
um boa-noite e subiu para se preparar para dormir. Eram férias de verão e nove da
noite era cedo para ela, mas Natasha havia passado a maior parte da tarde na piscina
da casa de uma amiga. Estava queimada de sol e exausta.
Aproximadamente às 21h10, ela gritou um segundo boa-noite do topo da
escada e o sr. e a sra. Gallagher a ouviram atravessar o corredor e fechar a porta do
quarto. Cerca de uma hora mais tarde, o casal desligou a tevê, subiu, verificou se a
porta da frente estava trancada e foi dormir. Só estavam os três na casa, pois Josh,
que havia abandonado a faculdade no segundo ano após uma grave contusão no
ombro praticando luta greco-romana, morava num sobrado alugado na vizinha
Joppatowne, onde trabalhava em tempo integral na loja de materiais de construção
Andersen’s.
Na manhã seguinte, após se despedir do marido que estava a caminho do
trabalho e colocar a lava-louça para trabalhar, Catherine Gallagher olhou para o
relógio da cozinha e ficou surpresa ao ver que já eram quase 9h. Natasha havia se
comprometido a cuidar dos cães dos vizinhos enquanto eles tiravam férias, e não
era do seu feitio perder a hora. O rádio da cozinha está meio alto hoje. Talvez ela já
tenha acordado e esteja tomando banho, e eu simplesmente não a ouvi, pensou a
sra. Gallagher enquanto cruzava o corredor, fazendo de tudo para dar à filha o
benefício da dúvida.
Ao encontrar o banheiro vazio, a sra. Gallagher, irritada, bateu à porta do
quarto de Natasha, duas vezes, e, como não obteve resposta, abriu-a e entrou.
A cama da filha estava vazia. O short e a camiseta que ela havia separado na noite
anterior ainda se encontravam dobrados sobre a cadeira na frente da escrivaninha.
Seus chinelos de dedo amarelos favoritos estavam no chão, ao lado da cama.
A sra. Gallagher, àquela altura não mais irritada e sim confusa, começou a dar
meia-volta quando percebeu algo estranho na janela. Na semana anterior, uma onda
de calor precoce havia estacionado sobre Edgewood, com temperaturas chegando à
faixa dos trinta graus. Natasha implorou ao pai para ligar o ar-condicionado central,
mas, como já era esperado, ele se recusou.
“Só na primeira semana de julho, você sabe que essa é a regra”, retrucou. “Está
pensando que nosso dinheiro cresce em árvore?”
Natasha ficou emburrada, mas passou logo. Nada de mais.
A sra. Gallagher se aproximou lentamente da janela. Estava quase totalmente
aberta, as cortinas transparentes farfalhando na úmida brisa matinal — contudo, não
foi isso que chamou sua atenção. Estava faltando a tela.
Ela se aproximou e imediatamente percebeu uma sujeira escura, no máximo do
tamanho de uma moeda de 10 centavos, no parapeito. Incapaz de se conter, lambeu
a ponta do dedo indicador, esticou a mão e a tocou. O dedo ficou com uma mancha
vermelha opaca. Ela aproximou a mão do rosto. Parecia muito com sangue,
ela disse à polícia mais tarde, mas eu não tinha certeza.
Com os primeiros sinais de pânico se manifestando em seu corpo,
a sra. Gallagher se debruçou sobre o parapeito, tomando cuidado para não encostar
a blusa naquela coisa vermelha, e olhou para fora. A pouca distância, no gramado à
sua frente, estava a tela da janela. Quase dobrada ao meio.
Com o coração martelando no peito, forçando-se a não sair correndo, a sra.
Gallagher voltou à cozinha e ligou para o escritório do marido.
Eram 9h07.

Os dois primeiros policiais chegaram à residência dos Gallagher na Hawthorne


Drive às 9h20. Encontraram Catherine Gallagher andando pra frente e pra trás na
entrada da garagem. O rosto estava molhado de lágrimas e as mãos estavam
entrelaçadas com força na altura do peito, mas ela conseguiu transmitir as
informações de maneira eficiente e com clareza. Mais tarde, os agentes da Polícia
Estadual de Maryland a descreveram em seu relatório como “assustada e agitada,
mas totalmente controlada. A sequência de acontecimentos relatada foi clara e
coerente”.
Um dos policiais acompanhou a sra. Gallagher para dentro de casa e, depois de
pedir que ela esperasse na sala de estar, examinou brevemente o quarto de Natasha.
O segundo policial foi para o jardim lateral e, tomando cuidado para não alterar
nada, inspecionou a janela aberta do quarto e a tela avariada no chão.
Enquanto o policial voltava para a frente da casa, duas viaturas do xerife do
condado de Harford encostaram na calçada. Antes de entrar e se unir ao colega que
interrogava a sra. Gallagher, o agente atualizou rapidamente os policiais que
estavam chegando e pediu que eles começassem a fazer buscas na área circundante.
Àquela altura, uma pequena multidão de vizinhos já havia se reunido na calçada.
Às 9h29, Russell Gallagher chegou em casa, estacionou seu Cadillac na
entrada da garagem e correu para dentro. Os vizinhos relataram terem ouvido gritos
raivosos dentro da casa e, mais tarde, soube-se que o sr. Gallagher teve que ser
contido para evitar que alterasse a cena do crime no quarto da filha.
Às 9h41, Joshua Gallagher, para quem a mãe também havia ligado, chegou.
Fez o percurso de carro de Joppatowne, que normalmente demora quinze minutos,
em pouco menos de dez. Josh falou rapidamente com vários vizinhos que
esperavam na calçada, depois entrou.

Às 10h07, menos de quarenta e cinco minutos depois de os primeiros policiais


chegarem na Hawthorne Drive, o corpo de Natasha Gallagher foi encontrado no
bosque atrás da casa por um sujeito do Departamento de Polícia do condado de
Harford. Ainda usando o conjunto de short e top azul-claro que vestira para dormir,
Natasha estava com as costas apoiadas em uma árvore, com os tornozelos cruzados
e as mãos no colo. Havia vários hematomas profundos e tumefações em torno do
pescoço, um zigomático fraturado, os olhos roxos e o polegar e o anular da mão
direita quebrados. O médico-legista sugeriu que a maioria dos ferimentos ocorreu
durante uma luta prolongada. O que não aconteceu durante a luta foi o seguinte:
a certa altura, sua orelha esquerda foi decepada por uma lâmina afiada de formato
desconhecido. Nenhum sinal da arma nem da orelha foi localizado na cena do
crime. Relatórios preliminares apontavam estrangulamento como causa mortis.
A hora aproximada do óbito ainda precisava ser determinada.

Os boatos começaram quase que imediatamente.


Vizinhos ligavam para vizinhos e cochichavam nos jardins ou dentro de casa,
tomando chá ou café. Estranhos e amigos conversavam no bar, no corredor de
congelados do supermercado Santoni’s, na fila dos correios… Crianças ouviam os
pais falando a respeito e, nos campos de beisebol e nos parquinhos, repetiam o que
haviam escutado.
Ao chegar em casa, três dias depois, eu já tinha ouvido meia dúzia de teorias
diferentes a respeito do que havia acontecido com Natasha Gallagher.
O palpite mais prevalente era que o misterioso Acariciador Fantasma de
Edgewood havia finalmente passado das insinuações voyeurísticas e toques
libidinosos ao assassinato e à mutilação a sangue-frio. Havia até muita especulação
de que ele poderia voltar a agir, e logo. A polícia local rapidamente refutou as
afirmações e pediu que a população ficasse alerta, mas mantivesse a calma.
Desesperados para dizer algo, eles até forneceram novos detalhes surpreendentes
sobre a investigação do Acariciador pela primeira vez em quase seis meses.
“A esta altura, não acreditamos que haja alguma ligação”, disse o major Buck
Flemings, do Departamento de Polícia do Condado de Harford. “Por inúmeros
motivos, que no momento não podemos divulgar, acreditamos que esses crimes
foram cometidos por dois indivíduos diferentes. De fato, durante nossa longa
investigação, pensamos recentemente que sabíamos quem era o Acariciador.
Tínhamos um suspeito que havia sido preso devido a uma outra acusação e os
incidentes cessaram. Na época, tudo levava a crer que era o homem que estávamos
procurando.”
“O tal indivíduo foi libertado e logo preso novamente”, informou.
“Os incidentes recomeçaram enquanto ele estava solto, parecendo confirmar nossas
suspeitas, porém, embora o sujeito que estávamos investigando tivesse acabado
mais uma vez sendo detido, a coisa voltou a acontecer. Agora… não sabemos o que
pensar.”
Em outra surpreendente revelação, Flemings relatou que o último incidente de
importunação sexual ocorrera havia apenas duas semanas, mas não fora divulgado a
pedido do departamento de polícia.
“O padrão foi o mesmo. A mulher acordou no meio da noite com um homem
em pé, ao lado da cama. Ele estava acariciando os cabelos e o rosto dela. Ela gritou
e o homem fugiu.
“Então, agora, estamos de volta à estaca zero. Não sabemos se foi o mesmo
sujeito ou se foi algum tipo de imitador que está circulando por aí. Sabemos, porém,
que não houve grandes mudanças. O que ele fez duas semanas atrás é igual ao que
fazia em 1986 e 1987. É exatamente o mesmo modus operandi e não há nenhuma
semelhança probatória com o caso de Natasha Gallagher. Mas fiquem tranquilos,
todos os meus agentes estão trabalhando vinte e quatro horas por dia para resolver
esse crime horrendo.”
Outra teoria que circulava pela cidade e que se mostrou particularmente
inquietante envolvia o pai de Natasha. Segundo vários vizinhos próximos, Russell
Gallagher exibira um comportamento excessivamente estranho nos dias após a
descoberta do cadáver. Normalmente estoico e firme — alguns até diriam
toxicamente masculino —, o sr. Gallagher mal conseguira se arrastar para fora da
cama nas quarenta e oito horas seguintes.
“Era como se ele estivesse em transe ou algo assim”, afirmou um vizinho. “Ele
chorou o tempo todo em que estive lá e só resmungava ‘Sinto muito, sinto muito’.
Os olhos estavam tão inchados que quase não abriam.”
No início, a sra. Gallagher teve que lidar praticamente sozinha com a procissão
de policiais, detetives, vizinhos e repórteres que entravam e saíam da casa o dia
inteiro, mas Josh rapidamente tomou a frente da situação e estabeleceu limites, e a
irmã mais nova de Catherine, que morava em Orlando, Flórida, pegou um avião e
chegou na semana seguinte para ajudar. De acordo com Rose Elliott, que era
vizinha dos Gallagher desde sempre, a sra. Gallagher até pensou em internar o
marido num hospital. Tamanho era o nível do desespero.
Para a maioria das pessoas, o comportamento do sr. Gallagher podia ser
explicado pelo fato óbvio de que sua única filha acabara de ser violentamente
assassinada. Ele estava desnorteado demais, sofrendo uma dor inimaginável. Além
disso, percebia-se claramente que o sr. Gallagher jogava sobre os próprios ombros a
maior parte da culpa pela morte de Natasha. Afinal, foi ele quem não havia
permitido que ela ligasse o ar-condicionado. O motivo para a janela ter sido deixada
aberta naquela fatídica noite fora a rigidez dele.
“Não há sequer um argumento racional”, lançou Frank Logan, um dos colegas
de Russell na seguradora “que aponte para o envolvimento do Russ na morte da
filha. Considerar ele suspeito não só é totalmente ridículo. É algo irresponsável!”.
Mas algumas pessoas logo alegaram que, mesmo nos dias que antecederam o
assassinato, o sr. Gallagher já vinha se comportando de forma estranha.
“Foi a coisa mais esquisita”, um morador do bairro disse. “Ele puxou uma
discussão comigo semana passada. Do nada, me acusou de deixar meus cães
fazerem as necessidades no jardim dele. Moro perto dos Gallagher há quinze anos e
nunca deixei nenhum dos meus cães fazer cocô no gramado deles. Ele estava muito
estressado. Não sei o que deu nele.”
Outro morador da Hawthorne Drive demonstrou preocupações semelhantes.
“Ele geralmente é super na dele. Quer dizer, ele é bem simpático e educado,
cumprimenta, deseja bom-dia, esse tipo de coisa. Mas, ultimamente, parecia
nervoso e aéreo. E estava falando muito mais do que de costume, quase como se
estivesse encobrindo algo, sei lá.”
Para outros munícipes, a suspeita imediatamente recaiu sobre Lenny Baxter.
Lenny era um veterano do Vietnã, condecorado, que passava seus dias catando PET
na Edgewood Road e fazendo serviço de jardinagem se achasse alguém que o
contratasse. Lenny nunca pediu dinheiro e não aceitava doações. Antigamente
morava com a mãe na Perry Avenue, perto do colégio, mas, depois que ela morreu,
no final dos anos 70, ele não conseguiu mais pagar a hipoteca e perdeu a casa. Na
maior parte do ano — primavera, verão e outono —, ele morava numa barraca, no
bosque atrás da agência dos correios. Corriam boatos de que havia espalhado
armadilhas em volta do local onde acampava, mas eu não acreditava. Ninguém com
quem falei sabia para onde ele ia nos meses de inverno.
A questão de Lenny era a seguinte: embora, à primeira vista, parecesse forte o
suficiente para estrangular uma adolescente, ele também já andava mancando muito
por causa de um ferimento no quadril e mal conseguia olhar na cara das pessoas
quando falava, muito menos manter uma conversa, digamos, razoável. Também
fedia bastante e estava quase banguela. A ideia de Lenny Baxter atraindo Natasha
Gallagher para fora de casa e levando-a para o bosque parecia um pouco esdrúxula.
A ideia de ele ter feito isso sem deixar um monte de provas parecia simplesmente
impossível; a teoria se baseava apenas em conveniência e nada mais. Eu não tinha
dúvida alguma de que, se Lenny Baxter tivesse cometido o crime, a essa altura já
estaria preso.
Outros boatos, menos populares, também surgiram. Uma história envolvia um
diário escondido, achado numa caixa de sapato no quarto de Natasha, que detalhava
uma série de encontros amorosos com um garoto mais velho. Outra descrevia uma
discussão com uma namorada ciumenta que, de repente, se tornou violenta.
Nenhuma dessas histórias locais se baseava em prova alguma, mas continuavam a
ser sussurradas, como era de se esperar.
Na primeira semana após voltar para Edgewood, conversei com praticamente
todas as pessoas que estivessem dispostas a falar comigo sobre o assassinato de
Natasha Gallagher — velhos amigos e conhecidos, o caixa do meu banco e a
atendente dos correios, vizinhos de longa data e gente totalmente desconhecida.
Também me peguei escutando escondido a conversa de outras pessoas. Eu não me
orgulhava disso, mas não conseguia admitir que uma garota que eu conhecia —
mesmo que superficialmente — tivesse sido assassinada perto da rua onde eu havia
crescido. Parecia um filme. Parecia um pesadelo.

O velório acabou sendo adiado para a sexta-feira seguinte. Deduzi que a família
precisava esperar que o corpo fosse liberado pelo médico-legista, o que era algo
bastante macabro para se levar em consideração. Minha mãe tinha razão: eu não
conseguia imaginar algo assim acontecendo conosco.
Eu só havia estado em meia dúzia de velórios na vida — alguns tios e a mãe de
um amigo que morrera de câncer durante nosso último ano do ensino médio —,
mas, mesmo assim, já havia conseguido criar um conjunto rígido de expectativas
para eventos daquele tipo. A primeira: falava-se bem pouco, quando muito aos
sussurros e numa forma rudimentar de língua dos sinais. Minha segunda noção
preconcebida era de que o clima inevitavelmente combinaria com o espírito dos
presentes — soturno, tempestuoso e deprimente. Uma chuva fria e insistente era
praticamente certa.
O dia do velório de Natasha Gallagher amanheceu ensolarado e com uma
temperatura amena. Pequenas e esparsas nuvens brancas corriam por um céu azul
resplandecente, do tipo que convida para piqueniques na praia, soltar pipa e passear
de barco no rio. Parecia errado, quase obsceno.
A cerimônia aconteceu na Prince of Peace, na Willoughby Beach Road,
a mesma igreja em que eu havia visto Natasha pela primeira vez. O padre Francis
celebrou a missa — insuportavelmente solene e cheia — e fez o que pôde para
tentar dar algum sentido ao que havia ocorrido. Acho que ele também se esforçou
para abreviar ao máximo a cerimônia; havia dor e sofrimento suficientes naquele
local para encher uma dúzia de cerimônias daquele tipo.
Meus pais e eu nos sentamos mais para a frente da igreja com os Gentile,
nossos vizinhos, minha mãe e Norma trocando lenços de papel amassados durante o
sermão. O sr. e a sra. Gallagher e Josh estavam sentados na primeira fila com um
grupo que não reconheci, mas presumi que fossem parentes. Apesar das histórias
que eu tinha ouvido na cidade, o sr. Gallagher estava firme e circunspecto. Talvez já
tivesse chorado tudo o que podia. A sra. Gallagher soluçou o tempo todo,
cabisbaixa, os ombros magros tremendo. A certa altura, Josh pôs o braço em volta
da mãe e ela apoiou a cabeça no ombro dele. Foi nesse momento que quase não
consegui me conter. Eu queria que Kara estivesse lá comigo, mas ela estava num
curso de verão na Hopkins e não podia se dar ao luxo de faltar à primeira sessão no
laboratório.
Em uma tentativa egoísta de me distrair da tristeza da família, fiz de conta que
estava me alongando e dei uma olhada na igreja. Quase todos os bancos estavam
cheios. Reconheci dezenas de rostos familiares do bairro (muitos deles mais
enrugados e rechonchudos, poucos mais magros, todos mais velhos), amigos dos
meus pais que fazia anos que eu não via, ex-professores e treinadores, e um
punhado de velhos amigos da escola — mas nenhum dos rapazes do meu círculo
mais íntimo. A maioria já tinha ido embora. Os Cavanaugh se mudaram para a
Carolina do Sul logo após Jeff ter terminado o ensino médio. Brian Anderson
também estava num curso de verão na faculdade na Virgínia Ocidental. Eu não
sabia o que Craig andava fazendo; nenhum de nós sabia. Steve Sines havia entrado
para a Aeronáutica e estava aquartelado no norte, no Maine. Carlos Vargas morava
nos arredores de Washington, D.C., onde havia começado a trabalhar como
engenheiro. Tommy Noel e alguns outros tinham emprego em tempo integral no
Arsenal. A maior parte dos demais estava espalhada pelo país como sementes de
dente-de-leão ao vento. De repente, fiquei triste ao pensar naquilo.
Senti um cotovelo pontiagudo cutucando minhas costelas, me virei e vi meu
pai me olhando com aquela conhecida expressão de “preste atenção” estampada no
rosto. Assenti com um pouco de culpa e voltei a escutar o padre Francis.
No entanto, pouco antes do meu pai me dar bronca, notei dois homens que eu
nunca havia visto sentados nos fundos da igreja. Trajavam ternos escuros e os
semblantes não demonstravam expressão alguma. Os queixos salientes apontavam
direto para a frente, na direção do padre Francis, mas os olhos vasculhavam a
multidão como águias. Polícia, pensei imediatamente, um arrepio correndo pelas
minhas escápulas. Fazia todo o sentido. Afinal, os assassinos não costumam voltar à
cena do crime para observar o estrago que causaram?

Nos dias de verão encharcados de umidade após o velório de Natasha Gallagher,


várias coisas intrigantes começaram a acontecer.
Por motivos desconhecidos, toda vez que eu ia de carro à agência dos correios
ou à Frank’s Pizza na Route 40, ou então ao mercado na Edgewood Road para
comprar algo para minha mãe, eu me pegava voltando para casa pelo caminho mais
longo. Em vez de pegar a saída da Route 24 ou seguir direto pela Hanson Road, eu
optava pelo caminho secundário, dirigindo por uma série de ruas menos
movimentadas, que inevitavelmente me levavam direto para a Hawthorne Drive —
passando bem na frente da casa dos Gallagher.
Da primeira vez que passei por lá, vi que o sr. Gallagher tinha acabado de parar
na entrada da garagem e estava saltando do carro carregando uma sacola de papel
pardo. Abaixando-me no banco do motorista, acelerei ao chegar na altura da casa.
Um grande laço vermelho havia sido preso ao tronco da árvore no jardim frontal
dos Gallagher. Uma fita amarela da polícia isolava uma parte do jardim lateral
embaixo da janela do quarto de Natasha. Da segunda vez, alguns dias mais tarde,
tanto o laço como a fita da polícia tinham desaparecido. Mas, na semana seguinte,
uma homenagem com flores, velas e fotografias os havia substituído embaixo
da árvore.
Não sei ao certo por que comecei a passar de carro pela casa de Natasha.
Natureza humana? Talvez. Curiosidade mórbida? Provavelmente. Início de uma
obsessão? Sem dúvida. Eu tinha vergonha de admitir uma coisa dessas, mas o que
mais poderia ser? Eu costumava ocupar meus dias e noites com histórias, romances
e filmes que se debruçavam sobre os profundos e obscuros poços da maldade
humana. Caramba, como eu queria começar uma carreira em cima disso. Então…
não fazia sentido aquelas fascinações se deslocarem para a vida real? Sinceramente,
eu não tinha certeza, e não gostava de pensar a respeito.
Nesse período, também comecei a ligar para Carly Albright. Ela era uma das
melhores amigas de infância de Kara — eu a conhecia como uma garota inteligente
e alegre que usava óculos vermelhos e falava alto demais —, mas não éramos
especialmente próximos. As duas haviam crescido na mesma rua em Long Bar
Harbor, uma comunidade majoritariamente costeira a pouca distância da Route 40,
mas acabaram se afastando quando a família de Carly se mudou para uma casa
maior no Centro de Edgewood e Carly foi transferida para o John Carroll, um
colégio católico particular, no primeiro ano do ensino médio.
Após terminar a faculdade no Goucher College, Carly havia voltado para
Edgewood, estava morando com os pais e trabalhando para o The Aegis. Segundo
ela, o grosso do trabalho não tinha muito valor: escrever anúncios voltados à
comunidade local sobre brechós caseiros, bazares de igrejas e o atendimento
gratuito de primeiros socorros na ACM. Era só acrescentar um obituário aqui e ali
ou uma matéria sobre os jogos escolares e pronto, lá estava uma jornalista novata
seriamente entediada.
E esse era o motivo do meu interesse inicial por Carly — apesar das próprias
ressalvas, ela era uma jornalista de verdade. Estava nas ruas, mas também tinha
acesso à redação, aos teletipos e aos repórteres experientes que, havia décadas,
cobriam grandes histórias. Eu ficava fascinado por ela ter apenas 22 anos e estar
recebendo o contracheque de um emprego em tempo integral num jornal de
verdade. Ironicamente, ela pensava algo semelhante de mim e do meu sofisticado
diploma da Universidade de Maryland (“Sabe, né, eles têm um dos três melhores
cursos de jornalismo do país!”, ela me disse certa vez numa festa), isso sem falar
dos poucos contos que eu já havia vendido. Então, sim, podemos dizer que
tínhamos uma certa admiração mútua e, nas semanas seguintes, Carly se mostraria
não apenas uma fonte inestimável de informações, mas também se tornaria uma
amiga de confiança.
Nem todos os desdobramentos foram de natureza pessoal. Para grande alívio
da comunidade, fora relatado mais cedo naquela semana que Natasha Gallagher não
havia sido sexualmente abusada — nem antes nem depois do homicídio. O horário
do óbito também havia sido restringido até pouco depois da meia-noite, indicando
que ela provavelmente fora tirada de casa logo após ter subido para dormir.
A questão de como Natasha havia sido retirada do quarto sem que os pais
ouvissem barulhos de luta, ou qualquer outro som na verdade, era a segunda
pergunta na mente de todos àquela altura. A primeira, obviamente, era: Quem havia
cometido aquele terrível crime?
A polícia não deu respostas — embora, naturalmente, a teoria mais aceita
indicasse que Natasha conhecia o agressor e tinha deixado o quarto voluntariamente
— e, à medida que os dias passavam, nem os representantes da lei tampouco a
mídia forneciam novas informações relacionadas ao assassinato.
“É frustrante demais ”, disse Martha Blackburn, moradora de longa data de
Edgewood, ao ser questionada por um repórter do Baltimore Sun. “Tudo o que nos
dizem é que ‘se trata de uma investigação em curso e estamos trabalhando dia e
noite, seguindo várias pistas’. Ora, é óbvio que estão. Uma das nossas jovens foi
assassinada há duas semanas. O que mais eles vão fazer?
“O que realmente queremos saber é se eles já têm algum suspeito. Foi alguém
daqui ou de fora? Eles acham que o criminoso vai agir novamente? Eu tenho três
filhos, então, sabe como é, né?…”
Enquanto isso, lá em casa, minha mãe quase não suportava falar sobre
o ocorrido — as poucas vezes que ela participava de uma conversa, invariavelmente
terminava com os olhos cheios d’água e pedindo licença para ir se deitar —, mas o
meu pai tinha sua própria teoria. Ele achava que o assassino era alguém que
Natasha conhecia superficialmente, ou seja, não o bastante para segui-lo por
vontade própria, mas o suficiente para não gritar de susto quando a pessoa entrou
pela janela do quarto.
“Provavelmente alguém que mora em uma cidade próxima”, ele explicou,
“mas não um vizinho de verdade. E, provavelmente, também foi alguém jovem,
mais ou menos da sua idade, Rich.”
Ele estava convencido de que, uma vez dentro do quarto, o assassino usou
alguma substância química, como clorofórmio, para deixar Natasha inconsciente,
e depois a carregou para fora pela janela, até o bosque. Meu pai insistia que a
polícia devia estar levando em consideração pessoas como os salva-vidas da piscina
da ACM ou vendedores de loja, e verificando se Natasha havia frequentado alguma
colônia de férias local no verão para depois investigar os monitores.
Achei que era uma teoria tão boa quanto qualquer outra — para ser sincero, até
melhor do que a maioria que eu havia ouvido —, mas não houve nenhuma menção
pública a qualquer tipo de substância química ou droga detectada na autópsia de
Natasha e, sem ter acesso aos relatórios policiais, era impossível ter certeza. O
resto, porém, fazia todo o sentido. A maioria dos jovens de 15 anos leva uma vida
muito diferente daquela que seus pais veem diariamente. Palavras não ditas,
pensamentos não externalizados, pequenos e grandes segredos — tudo isso sempre
fez parte da adolescência.
Embora eu tenha ficado inicialmente surpreso por meu pai ter pensado tanto a
respeito, depois concluí que eu não deveria ter me espantado. Ele havia me
transmitido sua paixão por histórias cruéis de detetive. Aquele homem tinha todos
os velhos livros de bolso da coleção Gold Medal enfileirados numa estante no
porão. Adorava assistir àqueles filmes policiais antigos em preto e branco na
televisão, e muitas vezes os gravava para um dia ver novamente.
Logo me peguei imaginando se meu pai não tinha voltado uma ou duas vezes
para casa pelo caminho mais longo.

Havia um dado superfascinante que, na época, não foi divulgado pela polícia nem
pela mídia. De fato, eu só fui ter certeza de que a imprensa tinha conhecimento dele
algumas semanas mais tarde, quando Carly deu com a língua nos dentes e
confirmou muitos dos detalhes. Quem me falou a respeito pela primeira vez foi um
conhecido que era parente de uma pessoa envolvida na investigação. Uma Bud
Light a mais… e ele desembuchou. Na hora, tive que jurar segredo, e mantive
minha palavra, mesmo depois de Carly ter aberto o jogo comigo em outra ocasião.
Eu simplesmente fiquei sentado escutando e me fazendo de bobo, surpreso — um
talento especial que eu descobri que tinha.
O furo de reportagem era o seguinte: na manhã em que o cadáver de Natasha
Gallagher foi descoberto, vários observadores e a polícia notaram algo estranho na
frente da casa dos Gallagher. Alguém havia usado giz azul para desenhar uma
amarelinha na calçada. Em vez da sequência usual de números, de 1 a 10, a pessoa
havia desenhado o número 3 dentro de cada um dos quadrados. Os detetives
verificaram com o sr. e a sra. Gallagher, e também com o círculo de amigos da filha,
e Natasha já não brincava de amarelinha desde antes de completar 10 anos. Nenhum
giz, de cor alguma, foi encontrado na garagem dos Gallagher ou no quarto de
Natasha. Também foi rapidamente confirmado que nenhuma criança pequena
morava em um raio de quatro casas da residência dos Gallagher, e todas as crianças
que moravam mais longe na rua negaram ter desenhado a amarelinha.
Os detetives tinham certeza absoluta de que nem Natasha Gallagher nem outra
criança da vizinhança havia desenhado na calçada.
Então, quem havia sido?
E qual era o significado, se é que tinha algum?
ACIMA: Natasha Gallagher (Foto cortesia de Catherine Gallagher)
ACIMA: Natasha Gallagher (Foto cortesia de Catherine Gallagher)
ACIMA: a amarelinha encontrada na calçada na frente da residência dos Gallagher (Foto cortesia de
Logan Reynolds)
ACIMA: Residência dos Gallagher, cena do crime (Foto cortesia do The Aegis)
ACIMA: Tela avariada da janela do quarto de Natasha Gallagher (Foto cortesia do The Aegis)
ACIMA: Área arborizada atrás da residência dos Gallagher (Foto cortesia do autor)
ACIMA: Local onde o cadáver de Natasha Gallagher foi encontrado (Foto cortesia do autor)
três

Kacey
“E se realmente existe um bicho-papão?”

Kacey Robinson e Riley Holt, ambas com 15 anos, eram melhores amigas desde a
Escola Primária Cedar Drive. Cresceram a dois quarteirões de distância uma da
outra — Kacey em uma ampla casa na Cherry Road, Riley em uma casa de dois
andares, em estilo colonial, na esquina da Bayberry com a Tupelo —, e várias
pessoas, quando as conheciam, acreditavam que fossem irmãs. Ambas tinham
cabelos longos e escuros, grandes olhos castanhos, sorriso fácil e luminoso e
personalidades ainda mais solares. Kacey e Riley fizeram um pacto quando
chegaram ao ensino médio — depois da formatura, frequentariam a Clemson
University (laranja era a cor favorita de Kacey) e viajariam o mundo juntas antes de
começar suas carreiras como veterinárias. Depois de cinco anos, reuniriam suas
economias e abririam uma clínica própria. A época do ano favorita para as
adolescentes eram as férias de verão, afinal podiam ficar acordadas até tarde e
dormir uma na casa da outra. Elas viam filmes e disputavam jogos de tabuleiro e,
ultimamente, conversavam muito sobre garotos e moda. Riley era filha única e
adorava o caos barulhento, mas acolhedor, da casa dos Robinson nas típicas noite de
verão. Kacey tinha três irmãos — um rapaz um ano mais velho e duas irmãs mais
novas.
Mesmo com o que acontecera havia apenas dezoito dias, Riley estava
despreocupada quando tocou a campainha da casa dos Robinson alguns minutos
após as 21h na segunda-feira 20 de junho de 1988. Na verdade, seu humor estava
especialmente bom, pois ela havia planejado passar a noite na casa da amiga e as
duas iam fazer pipoca para assistir a Grease — Nos Tempos da Brilhantina
provavelmente pela quinquagésima vez. Eram caidinhas pelo John Travolta.
“Olá”, disse o sr. Robinson, sorridente, ao abrir a porta e ver Riley em pé na
varanda com sua mochila rosa L.L. Bean pendurada no ombro. Mas o sorriso do
homem vacilou um pouco quando olhou atrás de Riley. “A Kacey não está com
você?”
“Ela estava”, Riley respondeu. “A gente tava vendo tevê e jogando carta na
minha casa, mas depois viemos pra cá.”
O sr. Robinson gesticulou, com as palmas das mãos viradas para cima, como
se quisesse dizer: Bem, então… onde diabos ela está?
Riley deu um risinho.
“É que no meio do caminho eu reparei que tinha esquecido meus óculos e tive
que voltar correndo em casa pra pegar”, explicou. “Só que quando eu voltei, ela não
estava mais. Então, sei lá, imaginei que tivesse decido não me esperar e resolvido
caminhar pra cá sozinha.”
O sr. Robinson se virou e curvou o corpo para dentro de casa.
“Querida! A Kacey está em casa?”
A voz abafada da sra. Robinson saiu lá de dentro: “Acho que não!”, respondeu.
Em seguida, depois de uma pequena pausa… “A Janie disse que ela foi para a
casa da Riley!”
O sr. Robinson se virou novamente para a adolescente e encolheu os ombros.
“Pra cá ela não veio.”
“Estranho.”
“Será que ela parou na casa de outra pessoa no caminho? Talvez na casa da
Lily?”
“Pode ser, mas a gente tinha planos para esta noite. Só nós duas.”
O rosto dele assumiu uma expressão estranha.
“Onde ela estava quando você entrou correndo em casa para pegar seus
óculos?”
“Umas duas casas depois da minha”, respondeu Riley. “Bem na frente da casa
dos Croft. Eu só demorei uns três ou quatro minutos.”
“E você não viu outra pessoa? Ninguém passando de carro ou circulando a
pé?”
Àquela altura, o sr. Robinson já estava falando mais depressa, a voz cada vez
mais alta.
“Não”, Riley respondeu sem titubear. “Quer dizer… acho que não. Na verdade,
eu não estava prestando atenção”, completou e cobriu a boca com a mão. “Ah, meu
Deus, o senhor não está pensando que alguém…”
“Não sei o que eu estou pensando”, disse o sr. Robinson, saindo para a varanda
e olhando para um lado e para outro da vizinhança escura. Nenhum carro passando
na rua. Ninguém à vista. Em algum lugar distante, um cão estava latindo.
“Talvez seja melhor chamar a polícia”, disse Riley.
“Ainda não”, respondeu o sr. Robinson. Então, atravessou o jardim e começou
a correr na direção da casa dos Riley. Gritou por cima do ombro: “Entre e diga à
minha mulher que fui procurar a Kacey. Peça para ela mandar o David lá de carro.”
Riley assentiu, já começando a chorar e, ao entrar na casa, ouviu a
sra. Robinson gritando o nome de Kacey.

A camiseta da Harley-Davidson do sr. Robinson estava encharcada de suor e ele


arfava quando chegou à entrada da garagem dos Holt. Não ficava tão distante,
talvez uns quatrocentos metros, mas como ele estava fora de forma e havia
praticamente percorrido todo o caminho correndo…
Nenhum sinal da filha em lugar algum.
Ele estava assustado.
“Kaaacey!”, gritou novamente, com as mãos em volta da boca. O latido de um
cachorro foi a única resposta.
Ele se virou e olhou para casa, deslocando-se mais devagar agora, examinando
melhor os arredores. Tantas malditas fileiras de arbustos, disse mais tarde à polícia.
Tantas cercas e árvores para servir de esconderijo que…
“Merda!”, soltou o sr. Robinson de repente em voz alta para a rua vazia. “Eu
devia ter batido na porta dos Holt. Talvez ela tenha voltado lá procurando a
Riley…”
As palavras morreram em sua garganta quando ele o viu. Mais à frente, talvez
a sete metros de distância, emoldurado por um suave círculo de luz de um poste,
estava um calçado.
Ele rapidamente se aproximou e pegou, sem pensar na polícia ou em
adulteração de elementos probatórios ou em qualquer outra coisa, só imaginando o
rosto meigo da filha e rezando para estar enganado.
Mas não estava.
Foi o All Star Chuck Taylor verde limão de cano alto de Kacey, o pé esquerdo,
o motivo para eles terem começado a chamá-la de duendinho irlandês. Pressionando
o tênis da filha contra o peito, o sr. Robinson saiu correndo para casa.

Os irmãos Baliko moravam um pouco mais adiante, na mesma rua da casa de


Kacey e eu soube de boa parte do que havia acontecido naquela noite por Alex,
o mais velho dos dois. O pai de Alex era amigo íntimo do sr. Robinson —
costumavam pescar juntos e jogavam boliche no mesmo campeonato duas sextas-
feiras por mês. Ele havia obtido os detalhes direto do sr. Robinson. A história foi
compartilhada com Alex alguns dias mais tarde enquanto os dois iam à loja de
material de construção, e Alex me disse que nunca havia visto o pai naquele estado.
Na hora, ele ficou muito assustado.
Os outros detalhes daquela noite eu soube por Carly Albright, por várias
reportagens e pelas comunicações via rádio entre a polícia estadual e a local.
Uma semana antes, eu usei um cupom de 25% de desconto que meu pai havia
largado pela casa para comprar um rádio de polícia na Radio Shack do Edgewood
Shopping Plaza. Na maioria das vezes, eu escutava à noite, enquanto escrevia.
Minha irmã Mary, que apareceu de surpresa para jantar naquela mesma semana,
disse que era macabro e que eu estava inconscientemente torcendo para algo mais
acontecer, como aqueles repórteres do Weather Channel durante a temporada dos
furacões.
“Eles nem se dão ao trabalho de esconder a empolgação”, resmungou.
“É nojento.”
Minha irmã não tinha exatamente razão sobre o meu raciocínio quando decidi
comprar o rádio de polícia, mas também não estava de todo enganada. Eu
certamente não estava torcendo para que alguma coisa ruim acontecesse… mas,
de fato, eu estava esperando algo. Eu não sabia o que nem quando, mas sem dúvida
nutria uma expectativa. Eu podia sentir no ar à minha volta — um zumbido, uma
sensação quase elétrica de presságio e ameaça. À medida que os longos dias de
verão passavam, as mesmas palavras assombradas despontavam na minha mente o
tempo todo: Uma tempestade está a caminho.

4
O policial Aaron Hubbard conhecia muito bem o entorno da Escola Primária
Cedar Drive. Sua família havia se mudado de Ohio para Edgewood quando Aaron
tinha 10 anos, e ele frequentara a escola por um ano antes de se formar e ir para o
sexto ano. Na adolescência, passava horas circulando pelos gramados em volta da
Cedar Drive, jogando beisebol, basquete e futebol americano, brincando de
esconde-esconde, polícia-e-ladrão e pique-bandeira. Ele também tinha muitos
amigos que moravam nas residências militares morro acima e costumava ir até lá
depois da escola. Até aprendeu a dirigir um carro manual praticando no Subaru de
cinco marchas do pai nos dois quilômetros e meio de estrada em torno da escola
primária, do jardim de infância e das quadras esportivas adjacentes.
Na noite do desaparecimento de Kacey Robinson, a tarefa do agente Hubbard
foi vasculhar os antigos campos das suas brincadeiras. Ele percorreu aquele círculo
diversas vezes, reduzindo a velocidade e apontando a lanterna presa à viatura para
as costumeiras áreas de interesse: portas e janelas perdidas nas sombras, a fileira de
árvores totalmente escura que ladeava a estrada, a parte de trás das caçambas
espalhadas e os corredores entre as filas de ônibus estacionados.
Tudo parecia estar em ordem, então embicou a viatura no estacionamento da
escola primária e avisou Shirley Rafferty pelo rádio, lá na delegacia, que
completaria o resto das buscas a pé. Saiu do veículo, lanterna na mão, às 23h27.
O pai do agente Hubbard, recentemente aposentado pela Polícia Estadual de
Maryland depois de mais de trinta anos de serviço no condado de Cecil, havia feito
questão de ensinar ao filho os pormenores de uma busca noturna a pé. Nos anos 50,
durante seu segundo ano no emprego, o sr. Hubbard, ao tentar impedir um assalto
na área de carga e descarga de um armazém, quase foi morto. O treinamento da
academia de polícia cobria aquele cenário de conflito — e todos os outros tipos
possíveis — minuciosamente, mas o sr. Hubbard não estava nem um pouco disposto
a correr riscos.
“No exato momento em que você puser o pé fora da viatura, estará exposto”,
ensinava ao seu único filho. “E, além de exposto, o que mais você está?”
“Vulnerável”, foi a obediente resposta, tentando ao máximo parecer
tranquilizador e confiante. Ele sabia que o pai se preocupava e também sabia, por
experiência própria, que aquele tipo de preocupação pode ser desgastante. Era só
olhar para a mãe para ver uma prova.
Você está vulnerável. Essas três palavras agitavam-se na mente do agente
Hubbard enquanto ele caminhava lentamente para os fundos da escola primária.
Segurava a lanterna com a mão direita, o feixe luminoso atravessando as sombras à
sua frente, e mantinha a mão esquerda apoiada sobre a arma no coldre axilar.
Movia-se o mais sorrateiramente possível.
Depois de dar a volta no edifício e puxar várias portas para se certificar de que
estavam trancadas, o agente Hubbard subiu a ladeira em direção ao campo de
beisebol, remodelado alguns anos antes, e ao parque. Reparou no banco de reservas
novinho em folha e no moderno placar eletrônico. O complexo esportivo inteiro
ocupava quase quatro mil metros quadrados de área aberta.
O agente Hubbard iluminou com a lanterna o banco dos reservas na primeira
base para se certificar de que ninguém estava se escondendo ali, depois atravessou o
montinho do arremessador para verificar a área do banco do time adversário.
Quando viu que estava vazio, saiu calmamente pelo portão, tentando não fazer
barulho demais, e entrou no parque.
Varreu a área com o feixe da lanterna e então viu a garota imediatamente,
deitada entre a base e o meio do mais alto dos dois escorregadores. Os olhos
estavam abertos e esbugalhados. Os braços finos, cruzados em cima do peito. Os
pés descalços pendiam vários centímetros acima do solo.
O eterno aviso do pai invadiu a mente de Hubbard: Você está vulnerável.
Sacando a arma do coldre e vasculhando a escuridão, o agente Hubbard
pressionou as teclas do rádio pendurado em seu peito e informou a colega Shirley
que havia encontrado Kacey Robinson.

Logo cedo na manhã seguinte, as quatro redes locais de televisão estavam


transmitindo ao vivo do parque. Àquela altura, o corpo de Kacey Robinson já havia
sido removido, mas ainda tinha bastante coisa para ser mostrada. Mais de uma
dezena de policiais uniformizados e detetives permaneciam no local, muitos deles
agachados, procurando pistas, outros em pé, conversando em grupinhos. Embora
ambas as ruas de acesso à Cedar Drive estivessem fechadas ao tráfego, uma grande
multidão de curiosos encontrava-se reunida atrás de barricadas temporárias, vários
tomando café e fumando. Alguns tiravam fotos com câmeras descartáveis. Todos
haviam ido até lá a pé, muitos a partir do acostamento da Hanson Road, onde
haviam estacionado seus carros, outros, desde casas próximas.
O pequeno grupo de personalidades dos telejornais — três mulheres e um
homem — exibiam expressões sérias e falavam em um tom respeitosamente baixo.
Embora tivesse feito um breve pronunciamento trinta minutos mais cedo, um porta-
voz do departamento de polícia evitara confirmar a identidade da vítima.
Mesmo assim, havia pouca dúvida entre a horda de observadores presentes no
local e de espectadores fascinados que assistiam à tevê em casa. As notícias
viajavam rápido numa cidade pequena como Edgewood.
Logo após o jantar, quando o jornal noturno começou a ser transmitido, os
trágicos detalhes foram confirmados.
A vítima foi oficialmente identificada como Kacey Lynn Robinson, 15 anos de
idade, moradora de Edgewood, Maryland. Em algum momento entre 22h e meia-
noite, ela fora assassinada por um desconhecido, e tanto a natureza dos ferimentos
quanto a posição do corpo — todas as redes agora estavam usando a expressão “em
pose” — revelava semelhanças surpreendentes com o caso Natasha Gallagher.
Todavia, só na manhã seguinte uma extensa reportagem publicada no
Baltimore Sun revelou a verdadeira dimensão do monstruoso crime. Segundo um
porta-voz da polícia, Kacey Robinson tinha vários ferimentos no rosto e na cabeça,
bem como lesões defensivas em suas mãos e braços. Também apresentava uma
profunda marca de mordida em um dos seios e a orelha esquerda havia sido
decepada. A causa mortis oficial foi estrangulamento.
Nenhuma menção a agressão sexual. Isso viria mais tarde.

A edição semanal do The Aegis — publicada na manhã de quarta-feira — trazia


novidades de uma natureza ainda mais macabra. Uma manchete em negrito gritava
no topo da primeira página:

DUAS GAROTAS LOCAIS MORTAS —


TERIA SIDO O BICHO-PAPÃO?

Centralizadas logo embaixo, estavam as fotos, grandes e em preto e branco,


de Kacey Robinson e Natasha Gallagher. As duas garotas apareciam sorrindo.
Embora a família Gallagher tivesse se recusado a se pronunciar para a reportagem,
a sra. Robinson tinha muito a dizer.
“Aconteceu em maio, durante a última semana de aula”, relatou. “Minhas duas
filhas mais novas dividem o quarto. A Janie, a de 7 anos, tem uma imaginação fértil
e costuma ter pesadelos, especialmente após ter visto algo inquietante na televisão.
“Certa noite, de madrugada, ela apareceu no nosso quarto dizendo para mim e
o meu marido que o bicho-papão estava tentando entrar pela janela do quarto dela e
pediu para dormir o resto da noite conosco. Explicamos que bicho-papão não existe,
que havia sido apenas um pesadelo, mas abrimos uma exceção daquela vez e
deixamos ela ficar.
“No dia seguinte, no café da manhã, ela já havia voltado a ser a menina alegre
de sempre e até admitiu que tinha assistido a um programa sobre crimes reais na
televisão pouco antes de ir para a cama. Não pensei mais a respeito… até ouvir a
notícia sobre a Natasha.
“Diante disso tudo, meu marido ligou para a polícia e contou toda a história.
Os detetives vieram até nossa casa mais tarde naquele dia, fizeram buscas no jardim
e procuraram digitais. Não acharam nada e nos disseram que tínhamos razão —
nossa filha provavelmente tinha tido um pesadelo.
“Mas e se todos nós estivermos enganados e a Janie tiver razão? E se alguém
realmente tentou entrar no quarto dela naquela noite? E se realmente existe um
bicho-papão… que voltou e pegou a Kacey?”

O velório, na manhã de sábado, ao contrário da cerimônia de Natasha Gallagher,


se deu sob uma chuva constante, que caía de um céu cinza, trovões ressoando ao
longe. Eu não fui, mas, aproveitando uma carona com Norma e Bernie Gentile,
meus pais resolveram ir. Eu estava supergripado, então dormi até mais tarde naquela
manhã em meio a uma ressaca de xarope Vick com pastilhas para a garganta sabor
limão. Além disso, eu era bem mais velho do que as crianças da família, não
conhecia o sr. Robinson e apenas me lembrava vagamente da esposa, freguesa da
mercearia onde eu havia trabalhado num verão. Kara, que, com evidente falta de
entusiasmo, aturava meu papo cada vez mais focado em true crime, disse que eu só
estava era arrumando desculpas para não ir, e ela provavelmente tinha razão. Droga.
No dia anterior, eu havia recebido uma carta informando a venda do meu
primeiro conto de ficção naquele verão. O título era “Roses and Raindrops” [“Rosas
e pingos de chuva”], sobre uma série de assassinatos misteriosos em uma
cidadezinha rural. Os vilões daquela peculiar história tinham uma condição
sobrenatural e sempre deixavam para trás uma rosa vermelha como cartão de visita.
New Blood [Sangue Novo] era o nome da revista que havia comprado o conto. Nos
dezoito meses anteriores, eu havia acumulado quase uma dúzia de “nãos” ao tentar
chegar até suas páginas em cuchê brilho, portanto, deveria estar exultante com a
notícia. Em vez disso, nem toquei no assunto com ninguém, exceto Kara. Fiquei
com medo de causar um mal-estar se me perguntassem sobre o que era o conto.
Mais tarde naquela manhã, antes que meus pais voltassem da cerimônia
fúnebre de Kacey Robinson, arrastei-me para fora da cama, peguei o carro e fui até
o 7-Eleven na Willoughby Beach Road. Disse a mim mesmo que só estava indo lá
para matar o desejo de tomar uma raspadinha Slurpee de morango, mas eu sabia que
não era verdade. Se havia um local em Edgewood que encarnava o papel do
tradicional ponto de encontro de uma cidade pequena, era aquele. Só que, em vez
dos anciãos da cidade se reunirem em volta de um vetusto fogão à lenha para
compartilhar fofocas e as últimas notícias, os moradores de longa data de
Edgewood desempenhavam suas atividades nos fundos da loja, diante de uma longa
fileira de máquinas automáticas de café.
Toda manhã, sem falta, havia de meia dúzia a pouco mais de uma dúzia de
homens amontoados lá, bebericando café pelando e fumando cigarros sem filtro.
A idade média era de 60 anos. As profissões iam de eletricista a advogado,
passando por professor aposentado e policial. Havia um grupinho principal, três ou
quatro caras que não faltavam um dia sequer. Fred Anderson, o pai de Brian e
Craig, era um deles. Sempre lá nos fundos, e aquela manhã não foi diferente.
Cumprimentei rapidamente o sr. Anderson e fingi que estava tendo dificuldade
em usar a máquina de Slurpee, ouvido dissimuladamente ligado o tempo todo. O
assunto principal do papo era o velório, já que a maioria das esposas havia
comparecido. Dei uma boa olhada no grupo e me perguntei o que o fato de todos
nós estarmos ali, perdendo tempo e jogando conversa fora num 7-Eleven enquanto
nossas caras-metades homenageavam a memória de uma pessoa da nossa
comunidade que havia sido assassinada, revelava sobre nós.
A conversa logo passou para a investigação policial em andamento e a possível
identidade do assassino. A maioria dos homens ali presentes achava que alguém de
fora da cidade estava cometendo os assassinatos, alguém com raiva de garotas
bonitas. Fred Anderson discordava veementemente. Achava que tinha que ser
alguém local, alguém com conhecimento íntimo dos moradores e localidades de
Edgewood.
Pus uma tampa no meu Slurpee e me aproximei do grupo. Sentindo-me
corajoso, esperei um momento de calmaria na conversa e mandei bala. Perguntei se
eles tinham alguma ideia específica sobre quem o assassino poderia ser, um nome…
Fez-se silêncio — do tipo era possível ouvir uma mosca — e todos simplesmente
olharam para mim como se eu tivesse duas cabeças sobre os ombros. Ninguém deu
um pio. Nada. Engolindo nervosamente uma talagada de Slurpee de morango, fiz
um estranho aceno de cabeça e segui para o caixa, meu rosto ardendo de vergonha.
A grande notícia chegou dois dias mais tarde, na segunda-feira, quando o canal
Channel 11 transmitiu uma filmagem exclusiva de um suspeito entrando escoltado
na delegacia. Pelo que todos sabiam, era a primeira vez que algum suspeito era
levado. A jornalista do Channel 11 disse que o nome do homem era Henry
Thornton, 27 anos, de Havre de Grace. Além de cortar grama e fazer serviços de
jardinagem para vários dos seus vizinhos, Thornton trabalhava como entregador da
Domino’s Pizza tanto em Aberdeen como em Edgewood. Na noite do assassinato de
Natasha Gallagher, ele havia feito entregas tarde da noite na Hawthorne Drive e —
a um quarteirão de distância — na Harewood Drive.
Pressionado para dar uma declaração, o policial Seth Higgins disse:
“Falamos com literalmente dezenas de pessoas que acreditamos possam ser
úteis à nossa investigação. O sr. Thornton é apenas um desses indivíduos e é
lamentável que a mídia tenha optado por fazer um escarcéu.”
Mesmo com a notícia de um possível suspeito detido, as pessoas estavam com
os nervos à flor da pele. Duas adolescentes haviam sido violentamente assassinadas
no coração de Edgewood, os corpos mutilados e colocados em poses grotescas. Os
jornais locais competiam por atenção — e aumentavam suas vendas — com
manchetes espalhafatosas, típicas de tabloides:

HÁ UM SERIAL KILLER EM EDGEWOOD?

O BICHO-PAPÃO ATACA NOVAMENTE!

A POLÍCIA NÃO TEM SORTE NA CAÇA AO ASSASSINO VAN GOGH

Os canais de notícias na tevê eram ainda menos decorosos em sua busca


frenética por audiência. Boletins de notícias interrompiam a programação normal ao
longo do dia e quase não era possível ir ao mercado ou ao posto de gasolina sem ser
acossado por um repórter que enfiava um microfone na sua cara. Logo a cidade foi
tomada por esse clima.
Moradores que raramente trancavam as portas passaram a verificá-las várias
vezes por dia. A venda de fechaduras e sistemas de vigilância doméstica disparou.
Moradores pagavam para instalar olhos-mágicos e acrescentavam detectores de
movimento e câmeras com luzes de segurança ao redor de suas casas. A venda de
armas em lojas de artigos esportivos e penhores também cresceu vertiginosamente,
assim como telefonemas de gente angustiada para o atendimento de emergências.
Um morador da Cherry Court — nunca foi confirmado, mas os boatos na rua
diziam que foi Hugo Biermann, um oficial aposentado da Marinha — até pôs
armadilhas de aço para ursos nas floreiras embaixo das janelas do quarto das filhas.
Ao que parece, essa precaução ocasionou a visita de um membro do departamento
de polícia e Biermann foi forçado a guardar as armadilhas de volta na garagem.
No início da semana seguinte, parei de escrever um pouco e fui almoçar com
Carly Albright no Loughlin’s Pub. A caminho do restaurante, passei por alguns
cinegrafistas filmando no bairro. Crianças corriam de bicicleta de um lado para o
outro na rua aos berros, fazendo de tudo para aparecer no noticiário das 18h.
Carly e eu estávamos falando ao telefone com cada vez mais frequência, mas
aquela foi a primeira vez que planejamos nos encontrar pessoalmente. Como
sempre, o bar e o salão estavam apinhados de militares e civis do Arsenal de
Edgewood, localizado na mesma rua, a quatrocentos metros de distância. Ocupamos
uma mesinha de canto e, falando baixo, nos atualizamos sobre as últimas notícias.
Segundo Carly, o tal entregador de pizza Henry Thornton havia sido liberado
após mais de seis horas de interrogatório. Por algum motivo, a polícia se convenceu
da inocência dele nas primeiras duas horas e passou o tempo restante averiguando
se ele havia testemunhado algo importante na noite em que Natasha Gallagher fora
assassinada. Infelizmente, não foi de grande ajuda.
Uma outra teoria ativamente explorada pela polícia, ela me disse, era
a possibilidade do assassino estar usando a estação ferroviária de Edgewood para
entrar e sair da cidade. Eles estavam examinando horários de trens e a emissão de
passagens para determinar se havia algum tipo de padrão.
Por fim, depois de várias hesitações e de me fazer jurar segredo, Carly acabou
revelando que o novo suspeito Nº 1 era o ex-namorado de Kacey Robinson,
Johnathon Dail, um rapaz de 17 anos que havia se metido em encrencas por
consumir álcool sem ter a idade mínima necessária e perturbar a ordem pública. Um
casal improvável, haviam namorado só por algumas semanas durante o ano letivo
antes dos pais terem forçado Kacey a terminar. O moleque morava com os tios no
final da Willoughby Beach Road, mas eles não o viam fazia quase duas semanas.
Achavam que tinha ido para Ocean City com uns amigos, mas não tinham certeza.
A polícia estava à procura.
Pouco tempo depois, Carly e eu atravessamos o Loughlin’s. Enquanto saíamos
do pub, pegamos os últimos trinta segundos de uma matéria de destaque no
noticiário vespertino. Uma chorosa Riley Holt estava em pé diante dos pais na
entrada da garagem de casa.
“Sinto tanta saudade dela…”, disse a adolescente entre soluços na frente da
câmera. “Desejo todo dia que ela ainda estivesse aqui. Queria nunca ter deixado ela
sozinha…”
Com essa frase, Riley se deixou levar pela emoção e o programa voltou para
um comovido apresentador.
No dia seguinte, o público foi apresentado ao detetive encarregado da
investigação por meio da transmissão televisiva de uma coletiva de imprensa
organizada nos degraus do Departamento de Polícia do condado de Harford. Minha
primeira impressão daquele homem foi: afro-americano, entre 40 e tantos e 50 e
poucos anos, alto, austero (como o diretor de uma escola de renome), confiante,
terno barato da Men’s Warehouse.
“Bom dia”, disse ao microfone. “Eu sou o sargento-detetive Lyle Harper. Farei
um breve pronunciamento e, por hoje, será tudo. Não vamos responder a nenhuma
pergunta.”
O pessoal da mídia ali presente resmungou. O detetive levantou imediatamente
as mãos pedindo calma.
“Mas farei um novo pronunciamento amanhã ou no fim de semana e,
na ocasião, terei enorme prazer em responder a suas perguntas”, completou,
pigarreando antes de continuar. “Pouco depois da meia-noite, na última segunda-
feira, 20 de junho, o corpo de Kacey Robinson, 15 anos de idade, foi descoberto no
parque da Escola Primária Cedar Drive. Os pais haviam comunicado o
desaparecimento mais cedo naquela noite, por volta das 21h. O médico-legista e os
investigadores encontraram claras semelhanças entre os ferimentos sofridos pela
srta. Robinson e os de uma vítima precedente da região de Edgewood, Natasha
Gallagher, também de 15 anos de idade. Em ambos os casos, a causa mortis
apontada foi estrangulamento e os corpos parecem ter sido propositalmente
colocados em posições semelhantes. Todavia, várias diferenças significativas
existem entre ambos os casos.”
O detetive Harper remexeu os papéis dos quais estava lendo e pigarreou mais
uma vez.
“Provas encontradas no corpo de Kacey Robinson e à sua volta, inclusive
marcas de mordidas, arranhões, inchaço e hematomas, indicam que ela sofreu
violência sexual antes de morrer. Essa é uma diferença marcante em relação ao caso
de Natasha Gallagher.”
Uma das repórteres, em pé na parte da frente, gritou uma pergunta, mas o
detetive Harper a ignorou.
“No momento, não podemos determinar se o mesmo indivíduo é o responsável
pelos dois crimes ou se foi o trabalho de vários agressores. A esse respeito, eu
gostaria de advertir tanto a mídia quanto o público a respeito do uso indevido de
apelidos que causam facilmente alvoroço como ‘assassino em série’ ou ‘bicho-
papão’. As forças de segurança locais contam com a calma e a vigilância do público
para que possamos conduzir adequadamente nossas investigações. Para terminar,
pedimos a todos os moradores de Edgewood que sejam cautelosos, cuidem bem da
própria segurança e nos notifiquem imediatamente se virem ou ouvirem algo fora
do comum. Obrigado e prometo que teremos mais informações em breve.”

Naquela noite, à mesa do jantar, o assunto da coletiva de imprensa do detetive


Harper veio à tona. Meu pai sentia que o detetive havia causado uma boa primeira
impressão, conseguindo projetar confiança e autoridade de maneira equilibrada.
Achava que estávamos em boas mãos. Para a minha surpresa, minha mãe discordou
veementemente e se lançou num monólogo de cinco minutos, criticando desde o
modo de se vestir do detetive até seu jeito de se balançar para a frente e para trás
enquanto falava, além do fato de ter divulgado que Kacey Robinson havia sido
estuprada.
“Imagine como aquela pobre família deve ter se sentido ao ouvir aquelas
coisas terríveis sendo reveladas para o mundo todo. Qual o motivo de se fazer algo
assim?”
Fiquei tentado a explicar que o público tinha o direito de conhecer aquelas
informações, especialmente quando todos estão amedrontados, vulneráveis e
procurando respostas, mas como eu não era bobo nem nada, fiquei de boca fechada.
Era uma discussão que nem eu nem meu pai — nem qualquer outra pessoa —
ganharia.
Enquanto tirávamos os pratos da mesa, o telefone tocou. Nem meu pai nem
minha mãe fizeram menção de atender e notei que trocaram um olhar estranho.
“O que foi?”, perguntei, olhando para um e para o outro. “Tudo bem,
eu atendo”, então pus meu prato na pia e tirei o fone do gancho. “Alô.”
Nenhuma resposta.
“Alô.”
Mais uma vez, apenas silêncio. Desliguei e olhei para os meus pais.
“Ninguém.”
“De novo”, disse meu pai. “Mais cedo, fizeram o mesmo com a sua mãe
algumas vezes. Ela ficou um pouco apavorada.”
Mamãe estremeceu e abraçou a si mesma.
“Dava para ouvir alguém respirando do outro lado, mas ninguém disse nada.”
“Provavelmente crianças passando trote”, falei, dando de ombros.
Meu pai assentiu.
“Foi exatamente o que eu disse.”
“Mas eu mesma achei esquisitíssimo”, argumentou minha mãe. “Essa
foi a terceira vez. E não dá para saber quem era.”
“Desconfia de alguém, mãe?”, perguntei tentando não rir. “Será que é o bicho-
papão?”
“Isso não tem graça nenhuma”, ela reclamou e bateu no meu braço com um
pano de prato.
“Ai”, levantei as mãos, ainda tentando não rir. “Sinto muito, calma. Eu só
estava brincando.”
“Brincadeira de mau gosto. O que está acontecendo é horrível. E você”,
ela apontou para mim “fica recebendo ligação de sei lá quem para falar a respeito
dos homicídios e aqueles seus livros horripilantes empilhados na escrivaninha.
A enciclopédia dos serial killers? Meu Deus, é muita sorte sua eu não ter jogado
aquilo no lixo.
Eu me curvei e abracei minha mãe, todo o seu metro e meio.
“Agora a senhora está parecendo a Mary. Ela me chamou de demônio outro
dia.”
Os olhos dela se arregalaram.
“Ela chamou você do quê? Espera só até eu falar com aquela sirigaita.”
Dei um beijo em seu rosto e olhei para o meu pai. Ele estava sorrindo e
balançando a cabeça.

Mais tarde, naquela noite, meu pai bateu à porta e esticou a cabeça para dentro do
meu quarto.
“Tá ocupado?”
Ergui os olhos da tela do computador.
“Não. Só estou lendo uma história antiga. Entra.”
Ele entrou e se sentou na beirada da cama.
“Posso te pedir um favor?”
“Claro. Diga.”
“Tenha cuidado.”
“Cuidado com o quê?”, perguntei, realmente confuso.
“Para começo de conversa, com todas as perguntas que você anda fazendo pela
cidade.”
Tentei protestar, mas ele me interrompeu.
“Eu sei que você se interessa… por esse tipo de coisa, tudo bem. Sua mãe faz
muito alarde, mas, para ela, também não tem problema nenhum. Sobretudo porque
ela sabe que você tem uma cabeça boa. Ela também sabe como você gosta dessas
coisas…”, ele gesticulou para o poster de A Mansão Marsten pendurado sobre a
minha cama. “A gente só quer que você tome cuidado. Isso é vida real, Rich,
obviamente se trata de um assunto delicado e algumas pessoas podem não gostar
que você fique fazendo perguntas desse tipo.”
“Você está falando da pessoa que anda telefonando pra cá e desligando?”
Ele olhou para mim e encolheu os ombros.
“Tudo bem. Prometo que vou tomar cuidado. Peça pra mamãe parar de se
preocupar.”
Ele me lançou um certo olhar.
“Isso nunca vai acontecer… e você sabe disso.”
Nós dois rimos.
Ele se levantou da cama olhando mais uma vez para o pôster de A Mansão
Marsten.
“Não sei como você consegue dormir com essa coisa aí em cima. Esse zumbi
tem uma cara horrenda.”
“Essa não, pai”, falei, fingindo indignação. “Aquilo é um vampiro.”
Ele deu mais uma olhada.
“Hummm, tudo bem, é o que eu queria dizer. Um vampiro horrendo.”
“Boa noite”, desejei, começando a rir novamente.
“Boa noite, filho”, desejou ele de volta e fechou a porta atrás de si.

10

Eu sabia que meu pai tinha razão. Eu precisava tomar cuidado. Quer dizer, o que
eu estava fazendo? Tendo ou não um diploma novinho em folha, eu ainda não era
um jornalista de fato. Não trabalhava para um jornal. Não tinha contrato para
escrever um livro. Como eu havia explicado a Carly, eu só era… curioso.
Foi por isso que logo me peguei dirigindo no entorno do parque quase todas as
tardes. A Cedar Drive ficava no meu caminho direto para a agência dos correios —
marcava mais ou menos a metade do percurso —, então era algo natural. Certo?
As barricadas temporárias haviam sido removidas e o parque estava
novamente aberto ao público. Mas eu nunca vi mais do que um punhado de crianças
brincando por lá, e sempre com pelo menos um adulto atento por perto. Entendi que
demoraria muito para que as coisas voltassem ao normal, se é que um dia voltariam.
Na base do escorregador onde Kacey Robinson fora encontrada, havia uma
espécie de tributo, com flores, bichos de pelúcia e cartazes feitos à mão. Velas
haviam sido acesas ali em algum momento e tocos de cera formavam um círculo em
volta do santuário improvisado. Por várias vezes, fiquei tentado a estacionar meu
carro e ir dar uma espiada mais de perto, mas nunca o fiz.

11

Na quarta-feira antes do Quatro de Julho, Carly apareceu lá em casa e ficamos


sentados na varanda da frente botando o papo em dia e bebendo chá gelado. Não
havia uma nuvem no céu e o sol brilhava sem a menor clemência. Carly se
certificou de que havia fechado a porta atrás de nós e, mais uma vez, me fez jurar
que manteria segredo sobre o que estava prestes a me contar. Jurei e voltei a jurar.
Então, ela finalmente me contou.
Assim como havia pedido à mídia para não divulgar ao público em geral a
existência da amarelinha desenhada na calçada bem diante da casa dos Gallagher,
a polícia também pediu que segurassem uma informação sobre o caso Robinson.
Preso ao poste de telefone em frente à casa dos Robinson, havia uma cartolina
branca, desenhada à mão e com uma pequena foto colada do que parecia ser um
poodle adulto. Abaixo da foto estava escrito VOCÊ VIU ESTE CACHORRO? Um
número de telefone também aparecia embaixo: 671-4444.
Nem os Robinson nem os Perkins, que moravam na casa em frente, do outro
lado da rua, jamais viram aquele poodle e não faziam ideia de quem tinha pregado
aquele cartaz. Na verdade, ninguém na Cherry Road fazia. Detetives vasculharam a
vizinhança ao redor e não conseguiram localizar nenhum cartaz adicional. Logo
depois, alguém tentou ligar para o número na parte inferior do cartaz, mas a ligação
sequer completava — só silêncio. Àquela altura, eles verificaram com a companhia
telefônica e, rapidamente, um funcionário confirmou que o número não existia.

12

Mais uma coisa que a polícia não divulgou — e com toda a razão — foi a
crescente frustração devido à total falta de provas nas cenas de ambos os
homicídios. Era extremamente incomum que esse tipo de crime violento fosse
cometido com tamanha precisão e autopreservação.
“É como se o sujeito tivesse entrado por um portal na noite”, um policial
reclamou extraoficialmente “e voltado a desaparecer através dele.”
Nenhuma impressão digital que não fosse de Natasha Gallagher ou de um
membro do círculo familiar próximo foi encontrada em seu quarto ou mesmo nos
vidros e no batente da janela. Como já se suspeitava, a mancha de sangue no
parapeito era da própria vítima. Por causa da recente onda de calor, a terra embaixo
da janela estrava seca e dura. Nenhuma pegada, tampouco marcas na grama.
Ninguém da vizinhança vira algo estranho na noite em que Natasha foi levada.
Nenhum carro suspeito circulando pelas ruas ou estacionado em local incomum.
Ninguém à espreita na escuridão e nem mesmo passeando com um cachorro na
calçada perto da residência dos Gallagher. Quanto ao corpo de Natasha, apesar da
natureza e da ferocidade do ataque, nem um fio de prova — fossem cabelos ou
amostras de fibras, zero vestígio de sangue, saliva ou DNA do assassino — foi
descoberto.
O caso de Kacey Robinson estava se revelando igualmente complicado. Uma
moradora da Bayberry Drive afirmou ter ouvido um carro acelerando por volta do
horário do desaparecimento de Kacey, mas, quando chegou na janela, a rua já estava
vazia. Nenhum dos outros vizinhos ouviu ou viu nada. Além disso, nada de
interessante foi encontrado no All Star que o sr. Robinson descobriu na rua, e o pé
direito do tênis ainda não havia sido localizado. Técnicos forenses coletaram mais
de uma dúzia de impressões digitais utilizáveis e únicas no escorregador do parque
da escola, mas quase todas de crianças. Nada incomum ou útil foi encontrado no
escorregador em si ou no terreno à sua volta. Kacey Robinson sofreu violência
sexual pouco antes de morrer, mas é quase certo que o assassino usou camisinha.
Não havia presença de sêmen nem de saliva. Até a marca de mordida tinha sido
limpa.
E também havia aparente falta de conexões significativas entre as vítimas.
Ambas tinham 15 anos, eram brancas, vinham de famílias sólidas com pai e mãe,
tinham pelo menos um irmão e moravam relativamente perto uma da outra. Ambas
eram atraentes, inteligentes e tinham cabelos compridos. Mas era mais ou menos
por aí que as coincidências terminavam. Edgewood era uma cidade pequena, então
as duas se conheciam da escola e tinham um punhado de amigos em comum, mas
raramente haviam socializado ou passado tempo juntas — tanto sozinhas como em
grupo. Nunca haviam se falado ao telefone nem ido às festas de aniversário uma da
outra. Nenhuma havia namorado ou admitido ter tido uma paixonite pelo mesmo
garoto. Natasha Gallagher era cheerleader; Kacey Robinson era a presidente do
Clube de Matemática. Os detetives estavam procurando qualquer microvestígio que
fosse acerca de conexões adicionais, qualquer coisa que pudesse ligar as duas
adolescentes de alguma maneira, mas, até aquele momento, estavam de mãos
vazias.
A guarda municipal e a polícia também estavam começando a sentir a
crescente pressão da mídia. Após a morte de Kacey Robinson, a pequena cidade de
Edgewood passou a ser assunto nacional. A CNN e a Associated Press já tinham
equipes no local e faziam reportagens diárias sobre a situação. Equipes de
jornalismo de outros Estados fazendo filmagens em ruas residenciais havia se
tornado uma visão comum pela cidade.
Felizmente o apelido “Assassino Van Gogh” que aparecera pela primeira vez
numa manchete do Baltimore Sun acabou não pegando. Já “O Bicho- -papão”… No
final de junho, boa parte da mídia e dos espectadores interessados (especialmente
aqueles com menos de 30 anos) estavam se referindo ao assassino desconhecido de
Edgewood exatamente daquela maneira. Os policiais detestavam o apelido.
Achavam sensacionalista e de mau gosto. E, embora fossem alertados diariamente
pelos superiores para não usá-lo publicamente, a polícia tinha um apelido secreto
próprio para o assassino: “O Fantasma”.
ACIMA: As melhores amigas Kacey Robinson e Riley Holt em Ocean City, Maryland (Foto cortesia de
Rebecca Holt)
ACIMA: Kacey Robinson (Foto cortesia de Robert Robinson)
ACIMA: O ponto na calçada onde Riley Holt foi vista pela última vez com Kacey Robinson (Foto
cortesia do autor)
ACIMA: A cena do crime no parque da Cedar Drive (Foto cortesia do The Baltimore Sun)
ACIMA: Repórter do Channel 11 na cena do crime (Foto cortesia de Logan Reynolds)
quatro

A Suspeita Aumenta
“Porque daria uma história melhor.”

À medida que o escaldante mês de junho terminava — já era hora — e o fim de


semana do Quatro de Julho se aproximava, Kara finalmente teve uma pausa na
faculdade e pudemos passar um tempo juntos. Desde o início dos cursos de verão,
ela era como um fantasma na minha vida. Uma voz cansada do outro lado da linha
telefônica. Eu estava com saudade.
Na sexta-feira, 1o de julho, pedimos comida para viagem no Venetian Palace
na Route 40 — na saída do estacionamento, notei que alguém havia pichado O
BICHO-PAPÃO ESTÁ VIVO na lateral da caçamba de lixo do restaurante — e
jantamos na mesa de piquenique no jardim dos fundos da casa de Kara. Uma brisa
agradável soprava do rio e, pela primeira vez em quase um mês, a noite estava
amena e agradável. Falamos em pegar um cineminha mais tarde, mas decidimos
deixar para outra noite. Estávamos exaustos depois de uma semana longa. Em vez
do cinema, fomos até o Harford Mall, entramos na fila para comprar casquinhas
com cobertura dupla no Friendly’s e olhamos vitrines enquanto tomávamos sorvete.
Até então, havíamos conseguido evitar falar sobre os assassinatos das garotas.
Tínhamos muitos outros papos para pôr em dia, inclusive os preparativos em
andamento para nosso casamento em janeiro. Mas, enquanto caminhávamos pelo
shopping, encontrando ocasionalmente amigos e vizinhos, ouvindo trechos de
conversas de estranhos, tornou-se impossível ignorar o assunto por mais tempo.
“Tudo parece diferente, não acha?”, observou Kara.
Eu assenti.
“Tudo está diferente.”
“Observe. Quase ninguém tá dando risada ou mesmo sorrindo.”
Olhei para um grupo de adolescentes perambulando fora da praça de
alimentação: ela tinha razão. Os jovens pareciam tensos e preocupados. Uma garota
— uma morena magra com longos cabelos encaracolados — tinha os olhos
marejados. O namorado a abraçava com força, tentando consolá-la.
“Tá todo mundo comentando na faculdade”, disse Kara. “Minha parceira de
laboratório me perguntou, zoando, se eu morava em Haddonfield, a cidade de
Halloween.
Dei uma risada. Não consegui me conter.
“Não é engraçado, Rich.”
“Não é engraçado”, concordei, engolindo meu sorriso o mais rápido possível.
“Mas a sacada foi boa.”
“Ouviu que cancelaram o festival?”
“E a Parada?”
“A última coisa que eu soube é que continua de pé, embora não devesse
acontecer. No dia quatro, o assassinato de Kacey Robinson vai fazer duas semanas.”
Calculei rapidamente as datas, confirmando a linha do tempo de Kara. Com a
recente avalanche midiática, parecia que o assassinato tinha acontecido havia dois
meses, e não há menos de quinze dias.
“Não me parece tempo suficiente”, ela continuou. “É quase desrespeitoso. E se
mais alguma coisa acontecer porque um monte de gente resolveu sair para
comemorar? A metade delas bêbada e sem noção.”
“O xerife disse que patrulhas extras vão circular durante todo o fim de semana
do feriado.”
“Sabe em quem eu pensei quando ouvi ele dizer isso na tevê?”
“Em quem?”
“No idiota do prefeito de Tubarão”, Kara respondeu para logo depois fazer
uma péssima imitação de uma voz masculina: “‘Estou muito contente em repetir a
notícia que capturamos e matamos um grande predador que supostamente feriu
alguns banhistas. Mas, como podem ver, o dia está lindo, as praias estão abertas e
as pessoas se divertindo.’”
Sorri. Quando Kara começava, não havia como fazê-la parar.
“Ainda bem que estaremos fora lá na baía por alguns dias”, falou, suspirando.
“Longe de tudo isto.”
“Concordo.”
Procurei a mão dela. Depois de uma longa semana dedicada a escrever,
eu estava ansioso para passar um tempo com Kara e sua família, pescando, fazendo
esqui aquático e acampando na praia.
No caminho de volta para o carro, avistamos uma equipe do noticiário do
Channel 13 entrevistando um casal de idosos no estacionamento e desviamos. Nada
de cair naquela armadilha. Os telejornais estavam cheios de entrevistas com
moradores locais assustados, todos respondendo às mesmas perguntas: Você acha
que existe um assassino em série em Edgewood? Você se sente seguro no
seu bairro? Você conhecia alguma das vítimas ou as famílias?
Embora duas outras coletivas de imprensa tivessem ocorrido após o
assassinato de Kacey Robinson, além de entrevistas ao vivo com policiais,
pouquíssimos detalhes adicionais haviam sido divulgados. Um banco local havia
estabelecido uma recompensa de 10.000 dólares por qualquer informação que
levasse à prisão do assassino, e o Departamento de Polícia do condado de Harford
havia criado um disque-denúncia para os moradores. A polícia também se
manifestou sobre a recente notícia da formação de um programa de vigilância de
bairro em Edgewood, que eu achava que poderia causar problemas de outra
natureza.
“Apesar de agradecermos por toda e qualquer ajuda que o público possa
fornecer nesta investigação”, o detetive Harper lia um texto, “também devemos
alertar os moradores para que sigam várias regras básicas de conduta. Primeiro,
absolutamente nenhum tipo de arma de fogo será permitida nas patrulhas. Nenhuma
exceção será aberta e lançaremos mão de todos os recursos legais para processar
qualquer pessoa que desobedeça a tal ordem. Segundo, e igualmente importante,
nenhum membro da vigilância de bairro deve, em circunstância alguma, agir ao
observar atividades suspeitas. Seu único dever a essa altura é contactar
imediatamente e de forma segura a polícia. Terceiro, se algum item de interesse for
descoberto, ele não deve, em circunstância alguma, ser removido, manuseado ou
mesmo tocado…”

Após deixar Kara na casa dos pais, passei de carro pela Cedar Drive no caminho
para casa. Eram pouco mais de 21h e o parque estava escuro e silencioso. No brilho
dos faróis do carro, notei que o santuário para Kacey Robinson na base do
escorregador havia no mínimo dobrado de tamanho desde a minha última visita.
Mais flores e animais de pelúcia, e vários outros cartazes, muitos com fotografias de
Kacey. Era de partir o coração. Quando eu já estava me afastando, cruzei com uma
viatura da polícia, indo na direção oposta. O policial me encarou intensamente por
um bom tempo. Meneei a cabeça e acenei com a mão. Tenho quase certeza de que
ele me viu, mas não acenou de volta.
Ao chegar em casa, disse um oi rápido para os meus pais, que estavam vendo
televisão no quarto, peguei da mesinha de cabeceira ao lado da minha cama o livro
de John Saul que eu estava lendo e desci para a varanda fechada com tela, nos
fundos. Consegui ler dois capítulos curtos antes de meus pensamentos me levarem
para longe. Fechei o romance e voltei para a cozinha, procurando o telefone sem
fio. Minutos mais tarde, acomodei-me confortavelmente na varanda outra vez,
liguei para Carly Albright e retomamos a conversa que tínhamos começado mais
cedo naquela semana sobre o misterioso conjunto de números 3 da amarelinha e 4
do cartaz do cachorro perdido. Nada daquilo fazia sentido.
“O que mais poderiam significar?”, perguntei.
“Não consigo pensar em nada”, ela respondeu. “Um monte de 3 e 4. Terceiro e
quarto assassinatos? Ele já fez isso antes? Não sei. É tudo o que eu consigo pensar.”
“Sinto que deve ser algo mais inteligente. Algo mais… profundo.”
“Por quê? Por causa de Hannibal Lecter?”
O romance O silêncio dos inocentes, de Thomas Harris, havia sido publicado
com grande alarde no início daquele verão. Ela sabia que eu era fã, então, antes que
eu pudesse argumentar, Carly continuou.
“É um personagem inventado, Rich. Você sabe disso tão bem quanto eu. Ao
contrário dos autores, a maioria desses caras não são gênios. Nem de longe.”
“Eu sei, eu sei”, respirei fundo e tentei encontrar as palavras certas. “Só acho
que… se ele foi suficientemente cuidadoso para não deixar para trás um grão de
prova que fosse, e ousado o suficiente para zombar da polícia com esses padrões
numéricos, então seria razoável acreditar que ele é bem inteligente.”
“Ou que você simplesmente quer que ele seja inteligente. Nem sabemos se a
pessoa que fez isso foi a mesma que deixou para trás a amarelinha e o cartaz. Talvez
seja apenas alguma espécie de jogo bizarro.”
“Por que diabos eu ia querer que ele fosse inteligente?”
“Porque daria uma história melhor”, ela respondeu sem hesitação.
Comecei a argumentar novamente, mas parei. Talvez ela tivesse razão. Talvez
eu só quisesse que aquele monstro fosse brilhante, sagaz e inesquecível — como o
personagem de um romance ou filme foda. Quanto mais eu pensava a respeito, mais
eu percebia que precisava me olhar demoradamente no espelho.
A irmã mais nova de Carly pegou a extensão e pediu para usar o telefone,
então terminamos a conversa, fizemos planos para pôr o papo em dia no fim de
semana e nos desejamos boa noite.
Reabri meu livro e consegui ler outro capítulo antes de fechá-lo novamente.
Olhando para o jardim lateral e a Tupelo Road, imaginei grupos enormes de pessoas
desesperadas e iradas circulando pelas ruas escuras de Edgewood, vasculhando
becos sombrios e cruzamentos mal iluminados. O irmão de Kara conhecia alguém
que estava participando da tal ronda, a vigilância de bairro. O sujeito tinha
comprado walkie-talkies de qualidade militar e óculos de visão noturna. Ouvi de um
amigo que outro grupo de vigilância estava arrastando um carrinho cheio de gelo e
cerveja em suas patrulhas noturnas. E muitos dos homens estavam carregando
armas de choque.
O absoluto silêncio das ruas chamou minha atenção. Era oficialmente o início
do fim de semana do Quatro de Julho e a Hanson Road estava completamente
silenciosa. As conversas abafadas de reuniões familiares ao ar livre e o estardalhaço
de pais bêbados pulando nas piscinas nos fundos das casas deveriam estar ecoando
pelas cercas da vizinhança. As crianças deviam estar ao ar livre, correndo com
varetinhas de chuva de prata e caçando vaga-lumes. Fogos e morteiros deviam estar
explodindo no céu, iluminando as ruas.
Fiquei sentado lá fora por muito tempo naquela noite, sentindo falta daqueles
sons festivos e imagens alegres, pensando sobre as famílias Gallagher e Robinson
na mesma rua que eu e nas palavras que Carly havia dito mais cedo ao telefone,
sentindo-me ligeiramente envergonhado.
Porque daria uma história melhor.

Na manhã seguinte, assim que acordei, meu pai me pediu para ir comprar gasolina
para o cortador de grama e a roçadeira. Depois do café da manhã, coloquei no carro
os dois galões de vinte litros que ele sempre mantinha guardados no canto da
garagem e fui até o posto Texaco.
Quando encostei perto das bombas, Josh Gallagher estava estacionado bem na
minha frente, enchendo o tanque do seu velho Mustang. Eu não o via desde o
velório da irmã e desejei imediatamente ter escolhido um posto de gasolina
diferente. Eu tinha o mau hábito de falar coisas constrangedoras quando ficava
nervoso e a última coisa que eu queria era dizer uma besteira e aborrecê-lo.
Na verdade, eu me preocupei à toa. Assim que desliguei o motor e saí do carro,
o treinador Parks, que havia sido meu técnico de basquete e lacrosse no ensino
médio, parou na bomba ao nosso lado. Ele praticamente pulou para fora da picape.
“Chiz!”, exclamou, um grande sorriso se abrindo em seu rosto rechonchudo.
“Há quanto tempo!”
“E aí, treinador. Como vão as coisas?”
Ele veio andando a passos firmes até mim e batemos um toca aqui, o que
deixou meus dedos formigando.
“Você me conhece, Chiz. Nada extraordinariamente bom nem ruim. Tudo na
mesma.”
O treinador Parks olhou rapidamente para o carro à nossa frente e vi seus olhos
se arregalarem.
“Oi, Josh, não tinha te visto aí.”
Josh terminou de encaixar a pistola da mangueira na bomba e olhou para a
gente.
“Sr. Parks”, cumprimentou com um aceno de cabeça. “Novidades, Rich?”
Tentei manter uma expressão neutra.
“Tudo na mesma, Josh. E você, como está?”
Ele encolheu os ombros e eu me amaldiçoei silenciosamente. Ora, muito bem.
Como diabos você acha que eu estou? Contudo, ele me surpreendeu com o que
disse em seguida.
“Vi você, sua mãe e seu pai no velório. Agradeço demais pela presença de
todos vocês.”
Abri minha boca para responder, mas as palavras não saíam. Tentei
novamente.
“Eu… sinto muito, mesmo, pelo que aconteceu.”
“Eu também”, disse o treinador, o tom de voz bem diferente do usado sessenta
segundos antes. “E sinto muito não ter conseguido ir à cerimônia. Estávamos
acampando com a família do meu irmão e só soubemos da notícia quando
voltamos.”
“Sem problema”, disse Josh, o rosto impenetrável. Tirou um molho de chaves
do bolso do jeans. “É melhor eu ir. Minha mãe está me esperando, vou levar ela no
mercado.”
“Meus sentimentos. Mande lembranças para os seus pais”, o treinador pediu.
Outro aceno de cabeça.
“Pode deixar.”
Levantei a mão num tchau esquisito.
“Se cuida.”
Josh bateu a porta do carro e deu partida. Aquilo fazia meu Toyota Corolla
parecer a máquina de costura da minha mãe. Ficamos observando enquanto ele se
afastava rapidamente e se misturava ao trânsito da Edgewood Road. Quando o
Mustang desapareceu do nosso campo de visão, soltei um suspiro.
“Não é moleza, não”, o treinador falou. “Que coisa terrível!”
Abri o porta-malas e retirei os galões de gasolina. Depois de colocá-los no
chão à minha frente, quando eu já estava esticando o braço para pegar a alavanca da
bomba, o treinador perguntou:
“A polícia já falou contigo?”
Minha mão congelou.
“Sobre o quê?”
“Sobre o que aconteceu com a irmã do Josh.”
Eu estava prestes a perguntar se ele estava brincando comigo, mas dava para
perceber pela expressão em seu rosto que ele estava falando muito sério.
“Comigo? Por que eles iam querer falar comigo? Eu nem estava aqui quando o
crime aconteceu. Eu estava na faculdade, no College Park.”
“Sei lá. Comigo eles falaram. Imaginei que estavam fazendo a mesma coisa
com todos do nosso bairro. Ouvi dizer que interrogaram o Alex Baliko e o irmão.
Charlie Emge. Danny e o Tommy Noel. Tim Deptol.”
Olhei para ele, surpreso.
“O que eles perguntaram ao senhor?”
Ele passou os dedos pelos cabelos cada vez mais ralos, um gesto de nervoso
que eu reconhecia dos anos de treino juntos.
“Mais do que qualquer outra coisa, queriam saber o que eu achava da Natasha.
Se era tão certinha e benquista como todos disseram que era. Se eu conhecia alguém
na escola que tinha inveja ou não gostava dela…”, ele fez uma careta. “Também
perguntaram qual foi a última vez que eu a vi e onde eu estava na fatídica noite.”
“Caramba!”
“Pois é, dá pra acreditar? Você nem imagina como eu fiquei aliviado ao dizer
que estava de férias com a minha família. Tipo, fiquei feliz por ter um álibi de
verdade, sabe como é, né?”
“Eles perguntaram mais alguma coisa?”
“Na verdade, não. Por sorte, foi bastante rápido”, ele riu. “Não me entenda
mal, mas, mesmo assim, quase me borrei todo.”
“Imagino.”
O treinador me deu um tapa contundente nas costas e, como sempre, fingi que
não tinha doído.
“Não se preocupe, Chizinho. Com certeza os policiais vão acabar te
procurando em algum momento.”
4

Como não podia deixar de ser, o algum momento foi no dia seguinte.
Meus pais tinham ido à missa das 10h na Prince of Peace, então eu estava
sozinho na cozinha quando bateram à porta da entrada. Olhei pelo olho mágico e
reconheci imediatamente o homem alto em pé na varanda como alguém cujo rosto
eu andava vendo muito na televisão nos últimos tempos. Abri a porta e convidei o
detetive Harper a entrar. Surpreendentemente, no início, não me senti nem um
pouco ansioso. Nem mesmo com o chefão de toda a investigação sentado ali no sofá
da minha sala de estar, esperando para me interrogar. De fato, eu mal olhei para
o distintivo e a carteira de identificação quando ele os tirou do bolso do paletó.
O detetive Harper tinha uma fala muito mais mansa pessoalmente do que
parecia ter na tevê, e era extremamente educado. Prometeu que não tomaria mais do
que quinze ou vinte minutos do meu tempo, e não tomou mesmo. Quando
terminamos, ele fechou o bloquinho de espiral no qual havia feito suas anotações e
me agradeceu. Então, me entregou um cartão de visita e foi embora.
Quando meus pais voltaram da igreja pouco tempo depois, eu não disse uma
palavra sobre a visita. Já havia decidido que seria melhor esperar até mais tarde.
Pelo que eu me lembro, a entrevista foi assim:

DETETIVE HARPER: Vamos começar com seus dados pessoais.


Nome. Idade. Endereço. Profissão.

EU: Meu nome é Richard Chizmar. Tenho 22 anos. 920 Hanson Road é a
minha residência até janeiro, quando vou me casar e me mudar para
Roland Park, em Baltimore. Moro aqui com os meus pais. Acabei de me
formar agora em maio na Universidade de Maryland. Sou escritor e
editor. Bem, pelo menos estou tentando ser.

DETETIVE HARPER: Parabéns pelo iminente casamento.

EU: Obrigado.

DETETIVE HARPER: E você? Cresceu aqui em Edgewood?


EU: Nos mudamos do Texas para cá quando eu tinha 5 anos. Depois que
meu pai se aposentou da Força Aérea.

DETETIVE HARPER: São só você e seus pais? Ou você tem irmãos?

EU: Tenho três irmãs e um irmão, todos bem mais velhos. Eles saíram de
casa quando eu tinha 9 ou 10 anos.

DETETIVE HARPER: Você conhecia alguma das garotas que foram


mortas recentemente — Natasha Gallagher ou Kacey Robinson?

EU: Eu conhecia a Natasha um pouquinho, de cruzar com ela na


vizinhança. Mas há um tempo que eu não via ela, acho que desde antes de
ter entrado para a faculdade. Cursei o ensino médio com o irmão dela,
mas nunca fomos amigos. A Kacey Robinson eu não conhecia.

DETETIVE HARPER: Nunca passou de carro pela Kacey no bairro?


Esbarrou com ela no mercado?

EU: Se aconteceu, eu não saberia dizer. Eu nem sabia que cara ela tinha
até ver a foto dela nos noticiários e no jornal.

DETETIVE HARPER: Você disse que estudava com Joshua Gallagher.


O que pode me dizer sobre ele?

EU: Bem, um cara legal, pelo menos parecia. Fizemos umas duas
matérias juntos no primeiro ano. Eu encontrava ele em festas de vez em
quando. Ele fazia luta greco-romana e saía com a galera da equipe. Eu
provavelmente só cruzei com ele umas quatro ou cinco vezes desde que
nos formamos.

DETETIVE HARPER: Você sabe se ele alguma vez se meteu em algum


tipo de encrenca? Alguém com quem se desentendeu?
EU: Não que eu saiba, nada desse tipo.

DETETIVE HARPER: E quanto aos demais membros das famílias


Gallagher e Robinson? Algum contato?

EU: Eu meio que conheço o sr. e a sra. Gallagher do bairro e da igreja, da


época que eu costumava frequentar. O suficiente para nos
cumprimentarmos quando nos encontrávamos numa loja ou um aceno de
mão se algum de nós passava de carro. Conheço a sra. Robinson de
quando eu costumava ensacar compras no mercado militar na Post. Foi no
verão antes do meu primeiro ano no ensino médio. Ela costumava ir à loja
umas duas vezes por semana. Já o sr. Robinson, acho que eu nunca
conheci.

DETETIVE HARPER: Pode me dizer onde você estava na noite de 2 de


junho de 1988, a noite em que Natasha Gallagher foi atacada e morta?

EU: Eu ainda estava na faculdade, no meu dormitório.

DETETIVE HARPER: No College Park?

EU: Sim, quer dizer, na verdade, em Greenbelt, logo fora do College


Park. Meus colegas de dormitório e eu morávamos num condomínio
chamado Brittany Place.

DETETIVE HARPER: E você estava no apartamento com os seus


colegas na noite de 2 de junho?

EU: Sim, senhor. Tínhamos começado a fazer nossa mudança mais cedo
naquela semana porque nosso contrato de aluguel estava acabando.

DETETIVE HARPER: Quantos colegas?


EU: Três.

DETETIVE HARPER: E todos os três estavam no apartamento naquela


noite?

EU: Na verdade, só um deles. Os outros dois tinham ido para casa visitar
a família.

DETETIVE HARPER: Você poderia me fornecer os nomes e


informações de contato?

EU: Claro. Bill Caughron. David Whitty. Fred Answell. Posso pegar
minha caderneta de endereços quando terminarmos e passar os contatos.

DETETIVE HARPER: Qual dos três estava com você na noite de 2 de


junho?

EU: O Bill. Ele também é daqui de Edgewood. A mãe dele mora na Perry
Avenue.

DETETIVE HARPER: E ele poderá confirmar que você estava com ele
na noite de 2 de junho?

EU: Sem dúvida.

DETETIVE HARPER: Tudo isso é apenas procedimento padrão, sr.


Chizmar. Estamos fazendo as mesmas perguntas a literalmente dezenas de
moradores. Não quero deixá-lo incomodado.

EU: Tudo bem. É que tudo isso é um pouco… inquietante.


DETETIVE HARPER: Você se sentiria melhor se eu dissesse que fiz
exatamente as mesmas perguntas até para o carteiro?

EU: O velho sr. Rory?

DETETIVE HARPER: Tanto os Gallagher quanto os Robinson estão na


rota de entrega dele, então tive que falar com ele.

EU: Acho que isso faz com que eu me sinta um pouco melhor.

DETETIVE HARPER: Entendo. Verdade. Estamos quase terminando.


Seu colega de quarto Bill, ele ficou com você a noite toda?

EU: Praticamente. Ele saiu para ir à casa da namorada, mas já era bem
tarde.

DETETIVE HARPER: A que horas foi isso?

EU: Acho que por volta das onze, talvez até mais tarde.

DETETIVE HARPER: E ele passou a noite na casa da namorada ou


voltou pro apartamento?

EU: Ele dormiu lá.

DETETIVE HARPER: Pode me dizer o nome da namorada dele?

EU: Claro. É Daniella Appelt.

DETETIVE HARPER: Então, pelo que entendi, você esteve aqui em


Edgewood pouco antes de 2 de junho?
EU: Estive. Foi em algum momento na última semana de maio. Eu tinha
pegado emprestado a picape de um amigo e trouxe para casa minha
escrivaninha, uma estante e mais uns outros móveis.

DETETIVE HARPER: Quanto demora a viagem de carro de Greenbelt


até Edgewood?

EU: Depende da hora. Geralmente cerca de uma hora. Mais se tiver


trânsito em D.C., sabe como é…

DETETIVE HARPER: E quanto à noite de 20 de junho, quando Kacey


Robinson foi morta?

EU: Eu estava aqui em casa, no meu quarto, trabalhando e ouvindo meu


rádio de polícia. Ouvi as chamadas iniciais depois que o sr. Robinson
ligou para a delegacia. Fiquei acordado, escutando a noite toda. Meus pais
podem confirmar isso.

DETETIVE HARPER: E você não saiu de casa em momento algum


naquela noite?

EU: Não, não saí.

DETETIVE HARPER: Tudo bem, mas algumas perguntas e podemos


encerrar. Desde que voltou do College Park… desculpe, Greenbelt… você
viu ou percebeu algo estranho aqui em Edgewood? Seja lá o que for.

EU: Que eu me lembre… não. Fiquei a maior parte do tempo fechado no


meu quarto, trabalhando.

DETETIVE HARPER: Muito bem. A propósito, você disse que era


escritor… o que você escreve?
EU: Humm… ficção, principalmente. Mistério. Suspense. Crime. Terror.

DETETIVE HARPER: Terror? Tipo serial killers?

EU: Às vezes.

DETETIVE HARPER: Obrigado. Muito obrigado pelo seu tempo, sr.


Chizmar.

Depois que o detetive Harper foi embora, saí e peguei o jornal que estava na
entrada da garagem. Sentado no degrau na frente de casa, eu fiquei procurando o
caderno de esportes para saber os resultados do boxe do dia anterior quando uma
manchete logo abaixo da metade da primeira página chamou minha atenção.

ORELHAS DECEPADAS:
UMA LONGA E SÓRDIDA HISTÓRIA

Eu não conseguia acreditar que o tradicional Baltimore Sun tinha publicado


uma manchete tão sensacionalista — e logo na primeira página. A matéria era
assinada por Mark Knauss, um nome que não reconheci. Comecei a ler
imediatamente e, quando cheguei ao final da primeira página, não via a hora de ir
logo para a continuação na página 14 para terminar. Era fascinante.
Segundo o autor, o decepamento — o ato de remover as orelhas de uma pessoa
como forma de punição — está documentado desde os tempos da lei assíria e do
código babilônico de Hamurabi (baseado na Lei de Talião).
Na Inglaterra, no início do século 16, Henrique VIII alterou várias leis sobre
vadiagem para que a primeira infração fosse punida com três dias no tronco;
a segunda, com decepamento; e a terceira, com enforcamento. O decepamento
também acontecia nos Estados Unidos, no final do século 18 — punindo crimes
como perjúrio, difamação, incêndio doloso e falsificação —, sobretudo na
Pensilvânia e no Tennessee.
A prática de cortar as orelhas de adversários derrotados remonta ao tempo das
Cruzadas, mas só se tornou mais prevalente quando os indígenas americanos
começaram a realizar a mutilação ritual de inimigos mortos no campo de batalha.
Durante o envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, muitas
histórias polêmicas começaram a surgir na mídia detalhando incidentes de tropas
americanas que mutilavam soldados e civis vietnamitas mortos, inclusive
decepando suas orelhas. Essa prática teve início originalmente nos primeiros anos
da guerra, quando os conselheiros dos EUA que trabalhavam com tropas indígenas
como os Montagnards ofereciam uma pequena recompensa em dinheiro por
soldados vietecongues mortos. Para receber, eles tinham de apresentar uma prova da
morte e ficou decidido que uma orelha seria suficiente. Fotografias de combate e
filmes das tropas americanas cometendo essas atrocidades e usando colares feitos
de dezenas de orelhas decepadas suscitaram indignação nos Estados Unidos.
Mais recentemente, em 1986, nove vítimas de assassinato em Miami, Flórida,
foram encontradas com as orelhas cortadas. Embora as forças de segurança locais
originalmente acreditassem que os terríveis atos fossem obra de um assassino em
série, uma detenção — conectada a um homicídio — fez com que a polícia
suspeitasse que os assassinatos estivessem ligados a uma seita religiosa chamada
Nação de Yahweh.
O fundador original, Hulon Mitchell Jr. (Yahweh ben Yahweh), “queria que
os demônios brancos fossem mortos como revide ou vingança por qualquer pessoa
negra assassinada na comunidade”, disse Daniel Borrego, um ex-detetive da divisão
de homicídios do condado de Dade.
Membros do culto revelaram que, para se tornarem “Anjos da Morte” —
integrantes altamente respeitados, responsáveis por manter outros seguidores na
linha —, Yahweh exigia: “Tragam para mim as orelhas do demônio branco.”
Por fim, havia Robert Berdella, um assassino em série do Missouri conhecido
como “O Açougueiro de Kansas City” e “O Colecionador”. Entre 1984 e 1987,
Berdella sequestrou, violentou, torturou e matou pelo menos seis homens. Ele
costumava aprisionar suas vítimas por períodos de até seis semanas. Além de
decepar as orelhas, ele cometia várias outras atrocidades, inclusive despejar
desentupidor líquido de ralo e privada nos olhos das vítimas, enfiar agulhas
embaixo de suas unhas e amarrar seus pulsos com cordas de piano.
Misericórdia.
Enquanto eu terminava a leitura da matéria, vários pensamentos cristalinos
surgiram na minha mente: (1) embora interessantes, nenhuma daquelas informações
oferecia uma dica sequer sobre o motivo de alguém ter cortado a orelha de Natasha
Gallagher e Kacey Robinson; (2) as palavras que eu havia acabado de ler deixaram
um gosto desagradável na minha boca e eu realmente precisava escovar os dentes e
tomar um bom banho; e finalmente (3) eu não ia deixar minha mãe ler aquele artigo
de forma alguma.
Antes de voltar para dentro de casa, fui até a entrada da garagem e joguei o
jornal na lata de lixo.

Naquela tarde, Carly Albright me ligou com novidades.


O ex-namorado de Kacey Robinson havia sido localizado em Ocean City,
Maryland, onde tinha passado as últimas semanas trabalhando num quiosque de
praia na Fourth Street, alugando barracas, cadeiras e pranchas de bodyboard. Ele
apresentara um álibi sólido para a noite de 20 de junho e não era mais considerado
uma pessoa de interesse. Havia, segundo relatos, dito aos detetives:
“Todos aqueles babacas de Edgewood deveriam é cuidar da própria vida. Eu
não estava nem perto daquele chiqueiro de merda e também não planejo voltar tão
cedo.”
Sem dúvida, uma pessoa adorável.
Antes de desligarmos, ela passou mais dois dados interessantes: uma de suas
fontes mais confiáveis havia revelado que tinha sido encontrada uma trouxinha de
maconha escondida no quarto de Natasha Gallagher. A polícia não achava que
tivesse algo a ver com o assassinato, mas estavam falando com traficantes locais,
por desencargo de consciência. A mesma fonte relatou que alguém havia ligado
para o disque-denúncia recentemente, afirmando que Kacey Robinson não era tão
certinha quanto todos acreditavam. Obviamente Kacey tinha um péssimo hábito que
só seus amigos mais íntimos conheciam: era cleptomaníaca.

7
Depois do jantar, fiquei um tempo na garagem organizando meu equipamento de
pesca para a viagem de barco com a família de Kara na manhã seguinte. Eu havia
acabado de bobinar uma linha monofilamento no meu carretel preferido quando
meu pai abriu a porta e me disse que havia uma ligação para mim. E me passou o
telefone sem fio.
“Obrigado”, sussurrei. “Quem é?”
“Não disseram.”
Levei o aparelho ao ouvido.
“Alô.”
Nenhuma resposta.
“Alô”, falei mais alto. Às vezes, o telefone sem fio pegava mal na garagem.
Mais uma vez, apenas o chiado baixinho da ligação.
“Alô!”, já irritado.
Depois ouvi um suave clique e o zumbido da linha para discar.
Apertei o botão de desligar no telefone e olhei para o meu pai.
“Caiu. Acho que tá fora de alcance.”
Ele me encarou com olhos duvidosos.
“Tem certeza?”
“Certeza, não. Você não reconheceu a voz?”
Ele fez que não com a cabeça.
“Era um homem. Voz normal. Pediu para falar especificamente com Richard.”
“Ah.”
“Talvez volte a ligar.”
“Talvez.”
“Você tem tomado cuidado como eu pedi?”
“Tenho. Quer dizer, estive com a Kara nos últimos dias. E andei trabalhando
bastante antes disso.”
Ele olhou para minha caixa de apetrechos e minha vara de pescar.
“Já terminou por aqui?”
“Já.”
Apaguei a lâmpada de teto e fui atrás dele para dentro de casa.
Pouco antes de chegarmos à sala de estar, ele se virou e abaixou a voz.
“Não comente nada com a sua mãe, está bem?”
“Pode deixar.”

8
Naquela noite, mesmo exausto, tive dificuldade para pegar no sono. Fiquei me
revirando por um tempo, pensando sobre o homem misterioso que tinha ligado lá
para casa. Os trotes precedentes podiam ser atribuídos a simples atos de travessura.
Meus amigos e eu cansamos de fazer isso quando criança. Ligar para um número
aleatório, ficar em silêncio ou falar alguma bobeira e depois desligar. Mas, dessa
vez, foi diferente. Alguém havia me chamado, usando meu nome. Depois, esperou
até eu atender, ouviu minha voz e só então encerrou a ligação. Quem diabos era?
A ligação era algum tipo de mensagem? Um aviso? Se era, um aviso com que
propósito?
Eu sabia que meu pai estava preocupado e não o culpava por isso. A situação
era estranha… e perturbadora.
Pensei no cartão de visita do detetive Harper enfurnado na gaveta superior da
minha escrivaninha. Devo ligar e contar para ele? Contar o quê? Que alguém
estava passando trotes idiotas e me deixando preocupado? Ele provavelmente
começaria a rir e também desligaria na minha cara.
Mas, então, me lembrei de um incidente que havia acontecido mais cedo
naquela semana. Eu estava na rua resolvendo coisas — minha primeira parada era a
agência dos correios para enviar uma pilha de novas propostas de contos. Tirando
meu carro de uma vaga apertada, dei um totózinho num sedã prata com vidros
filmados, bem escuros, estacionado na vaga em frente. Não dei muita importância
no momento. Mas, logo após, parei na Plaza Drugs para comprar uma resma de
papel e um cartão de aniversário para Norma Gentile que minha mãe havia pedido.
Ao sair, tive que esperar que dois veículos passassem antes de atravessar e ir pegar
o carro no estacionamento. Um deles era um sedã prata com vidro escuro. Minha
última parada foi no First National Bank, para sacar quarenta dólares. Enquanto
esperava na fila do caixa eletrônico externo, notei um homem mais velho, de costas
para mim, segurando a porta aberta do restaurante chinês ao lado. Quando uma
mulher magra de cabelos negros e curtos passou atrás dele, reconheci o sr. e a sra.
Robinson, os pais de Kacey. Baixei imediatamente o olhar para a calçada à minha
frente, segurando a respiração e torcendo para a sra. Robinson não me ver. A única
coisa que eu conseguia pensar naquele momento era: eu nem apareci no velório da
filha deles. Para o meu alívio, eles foram direto para o carro no estacionamento sem
olhar para trás.
Ao voltar para casa, parei no sinal da Edgewood Road. Ainda distraído pelos
pensamentos sobre os Robinson, esperei o sinal ficar verde e depois virei à direita,
seguindo uma caminhonete da UPS pela Hanson Street. No meio do caminho para
casa, olhei pelo retrovisor e notei um sedã prata a dois carros de distância do meu.
Desacelerei para olhar melhor, mas, com o reflexo do sol no para-brisa, não
consegui identificar quem estava ao volante. Quando embiquei na entrada da
garagem de casa, alguns minutos depois, o carro já tinha sumido. Meia hora mais
tarde, e mesmo absorto enquanto escrevia um novo conto, aquilo ainda não tinha
saído da minha cabeça.
Até agora.
Demorei bastante para pegar no sono.
ACIMA: A polícia interrogando moradores na Bayberry Drive (Foto cortesia de Logan Reynolds)
ACIMA: O detetive Lyle Harper (Foto cortesia do The Aegis)
cinco

Julho
“Uma tempestade está a caminho.”

Por sorte, dessa vez, o prefeito de Amity Island, que odeia tubarões, tinha razão.
Os moradores de Edgewood compareceram maciçamente à comemoração
anual do Quatro de Julho e, segundo a polícia, nenhuma prisão por crime violento
foi feita.
A manhã de segunda-feira raiou com um céu perfeito para um feriado e até
parecia que os moradores da cidade tinham se levantado da cama especialmente
eufóricos, felizes por terem um dia a mais de folga, ávidos e determinados a deixar
para trás as más notícias. O café da manhã com panquecas patrocinado pelos Cub
Scouts no quartel dos bombeiros e as duas partidas da Little League em seguida
tiveram um público numeroso e animado. Os churrascos nos jardins atrás das casas
enchiam o ar com o delicioso aroma de hambúrguer, cachorro-quente e frango
grelhado e o som meigo das risadas das crianças. No final da Willoughby Beach
Road, o Flying Point Park mais parecia um circo. Uma armada de barcos
enfileirados de frente para a areia clarinha da praia, caixas de som no volume
máximo, adultos bebendo cerveja em copos de plástico e se bronzeando, as crianças
pulando e brincando de pega-pega e Marco Polo na beira do mar. A pouca distância,
rio abaixo, pescadores atrás de peixes e caranguejos lotavam um píer em forma de L
jogando suas iscas no meio do profundo canal em busca de bagres e percas.
Dezenas de famílias e montes de adolescentes espalhados pelo gramado do parque,
detonando na comida e na bebida, jogando frisbees e ferraduras, e empinando pipas
vermelhas, azuis e brancas. O parque estava apinhado de crianças de olhos
arregalados e eufóricas devido ao consumo de doces e, apesar do sol escaldante,
elas não mostravam sinal algum de que fossem diminuir o ritmo. O ar de verão
estava impregnado do cheiro de churrasqueiras a carvão, protetor solar, caranguejos
cozidos ao vapor e grama recém-cortada.
Quando entardeceu, o povo se encaminhou para o Centro da cidade e grandes
multidões se reuniram nos dois lados da Edgewood Road. A banda do colégio abriu
a Parada com uma versão animada do hino americano e todos se levantaram de suas
espreguiçadeiras, cangas e toalhas e ficaram em posição de sentido enquanto uma
orgulhosa fila de porta-bandeiras desfilava. Os times da Little League e de softball
vieram em seguida, os jogadores, todos uniformizados, acenando com os bonés para
os pais e amigos e posando para fotos. Depois, os carros de bombeiro, ambulâncias
e viaturas policiais, luzes piscando, sirenes berrando; uma fila escalonada de
tratores fazendo publicidade de empresas locais e patrocinadores da Parada;
esquadrões de soldados do Arsenal de Edgewood marchando em perfeita cadência,
os botões dourados de seus uniformes brilhando ao pôr do sol, rodando como se
fossem bastões e lançando para o alto rifles perfeitamente polidos; a Miss Maryland
e a Miss Condado de Harford na traseira de Corvettes conversíveis vermelhos e
brancos, acenando e mandando beijos para a multidão, atirando punhados de doces
para as crianças; e, por fim, como manda a tradição, no final da fila, jipes abertos —
bandeiras americanas presas às antenas — carregando os Veteranos de Guerra de
Edgewood, com suas fardas, medalhas e condecorações tiradas do armário para
serem admiradas por todos.
Assim que a Parada terminou, as pessoas guardaram seus pertences e se
espalharam pela cidade para aproveitar a noite. Muitas apenas subiram a rua até o
estacionamento do shopping, que proporcionava uma ampla visão do iminente show
de fogos de artifício. Vendedores de sorvete e raspadinha misturavam-se à multidão,
tocando seus sininhos, enquanto grupos de crianças risonhas corriam atrás deles.
Outras dobraram suas cangas e toalhas e foram para casa assistir das suas varandas
e jardins ao show pirotécnico. Teve gente, em boa parte idosos, exaustos por causa
das atividades do dia, que foi direto para a cama em busca de uma boa noite de
sono.
Como prometido, havia de fato bastante policiamento extra circulando pelas
ruas de Edgewood — incluindo membros da guarda municipal e agentes tanto da
Polícia Estadual de Maryland como do Departamento de Polícia do Condado de
Harford. Policiais à paisana se infiltraram na multidão. Alguns se passavam por
meros corredores ou casais românticos, fingindo que estavam dando um passeio,
mas vigiando de perto as ruas dos subúrbios. Houve um punhado de prisões por
embriaguez ao volante, bebedeira e desordem pública, fogos de artifício ilegais e
pequenos atos de vandalismo. A operação mais séria do dia ocorreu quando dois
caras de fora da cidade foram detidos durante o show de fogos por uso de maconha,
e uma arma ilegal foi descoberta logo em seguida no porta-luvas do carro deles.
O maior susto da noite se deu depois que a maioria da multidão já havia se
dispersado e ido para casa. Rodney Talbot, 43 anos, conhecido por ser um eterno
criador de caso e pinguço inveterado, saiu de fininho para não pagar a conta do bar,
mas, ao chegar ao próprio carro, estacionado em frente à lanchonete Winters Run
Inn, descobriu que havia trancado a porta com a chave dentro. Chega a ser irônico,
mas o contratempo muito provavelmente evitou que Talbot fosse parado e tivesse
que passar a noite na cadeia, já que um policial estava estacionado um pouco mais à
frente na Route 7, em ótima posição para mandá-lo parar.
Mas a sorte de Rodney Talbot acabou por aí.
Não tendo como pedir carona para alguém no bar, Talbot foi para casa
cambaleando por um trecho de bosque pantanoso ali perto, tropeçando e caindo de
cara no chão em um riacho e parando duas vezes para vomitar.
Quando finalmente chegou em casa, um trailer duplo na Singer Road, ele o
encontrou trancado. Depois de esmurrar a porta e xingar a mulher de todos os
nomes horríveis que conseguiu lembrar, além de vários outros inventados na hora,
Talbot foi para os fundos do trailer, subiu numa velha mesa de piquenique e tentou
se esgueirar pela estreita janela que dava para o quarto.
Dentro do espaço apertado, a mulher de Talbot, Amanda, que também estava
bêbada, acordou de um torpor profundo. Sem reconhecer o rosto enlameado do
marido, ela imediatamente achou que ali estava o tal Bicho-Papão, tentando
arrombar a janela e matá-la. Ela não tinha intenção alguma de deixar aquilo
acontecer sem lutar. Amanda então pegou no armário uma escopeta calibre doze
descarregada e, não conseguindo localizar a munição, começou a dar coronhadas na
parte de trás da cabeça do intruso. Quando teve certeza de que o Bicho-Papão
estava inconsciente e não era mais uma ameaça real, ligou para o 190.
Em minutos, com as sirenes à toda, três viaturas policiais, uma ambulância e
um carro de bombeiro pararam na frente do trailer. Um dos agentes, que conhecia
muito bem as merdas que Rodney era mestre em fazer, reconheceu imediatamente o
suposto assassino e informou a Amanda, com toda a calma do mundo, que ela quase
havia matado o próprio marido.
Mais tarde, de volta à delegacia, o agente não conseguiu conter sua irritação ao
relatar a história:
“Foi inacreditável. Eu esperava que ela começasse a berrar ou xingar. Em vez
disso, ela deu uma boa olhada no companheiro todo esparramado no chão e caiu na
risada. Cinco minutos mais tarde, ainda estava às gargalhadas. Foi uma baita dor de
cabeça. E a questão é que nem podíamos prendê-la por bebedeira ou burrice. Afinal,
agiu em legítima defesa e a arma estava devidamente registrada.”
2

Na quinta-feira após o Quatro de Julho, Carly Albright apareceu inesperadamente


lá em casa. Minha mãe atendeu a porta e anunciou com sua voz mais doce:
“Richard, tem uma garota aqui que quer falar com você.”
Quando entrei na antessala, mamãe levantou suas fofas sobrancelhas para mim
e abriu um sorrisinho maroto. Fingi que não tinha notado. Fechando a porta atrás de
mim, fiquei com Carly na varanda. Mais uma vez, nos acomodamos no degrau
superior.
“Richinho… você não pode convidar mulher pra entrar na sua casa?”, Carly
perguntou, rindo.
“Vai por mim, melhor ficar por aqui. Minha mãe vai te obrigar a aceitar um
almoço com três pratos diferentes e quando você tiver acabado, ela sequer terá
chegado à metade do que tem pra contar. E fará isso sem parar. Então, como foi seu
feriado?”
“Espetacular”, respondeu em um tom de voz sarcástico. “Comecei o dia
cobrindo as corridas de tartarugas, tomando café da manhã com panquecas. Depois
entrevistei um bando de bêbados a tarde toda e tabulei os resultados, um a um, do
concurso de lançamento de ferraduras. Tudo por oito míseros centímetros de texto
no jornal de ontem.”
Eu então brinquei.
“Foi dureza mesmo.”
“Por sorte, lançaram um novo da Nora Roberts para me fazer companhia o
resto da noite.”
“Não foi ver os fogos? E o namorado?”
Ela olhou para mim.
“Rich, estou cinco quilos acima do peso, sou workaholic e péssima ouvinte.
Não saio com ninguém há mais de um ano.”
Desviei o olhar, fingindo observar um caminhão de lixo que estava passando.
“Desculpe ter perguntado.”
“E você? Fez o quê? Como foi o seu feriado?”
Dei de ombros.
“Foi bom. Finalmente consegui ficar um pouco com a Kara. Peguei uns peixes.
Bebi cerveja. Fiquei queimado de sol…”
Ela olhou para a minha testa.
“Dá pra ver.”
“Então… e aí?”
Ela ficou calada uns segundinhos, depois disse:
“Posso te pedir um favor?”
“Claro. Diga.”
“Hoje de manhã eu apresentei para a minha editora uma ideia de pauta e, para
minha surpresa, ela ficou empolgada.”
“Legal”, eu disse, esperando que ela terminasse.
“Bem… a ideia é você.”
“Como assim?”
“Você. Eu gostaria de fazer uma entrevista sobre sua produção literária e sua
revista. Pense bem, se você bombar algum dia, eu terei sido a primeira.”
Soltei um suspiro profundo. Eu realmente não sabia se estava preparado para
que toda a minha cidade natal soubesse o que eu andava fazendo. Procurando uma
escapatória, perguntei:
“Não acha que o momento não é muito propício para algo do gênero?”
“Minha editora e eu já conversamos a respeito. Ela disse que não teria
problema, desde que a gente não aborde nada sinistro ou explícito demais nem
mencione as palavras ‘assassino em série’. Ela acha que a cidade precisa de uma
boa notícia, que, no caso, seria você. Jovem local alcança o sucesso, esse tipo de
coisa.”
“Eu, boa notícia? É a primeira vez que ouço isso.”
“Então, o que me diz? Topa?”, perguntou, inclinando-se para a frente,
de maneira que eu não pudesse desviar o olhar.
Minha cabeça ficou trabalhando na ideia.
“Você é ardilosa, sabia? Não ligou e perguntou porque sabia que seria mais
fácil para mim dizer não pelo telefone.”
Ela me lançou um olhar inocente.
“Ora, ora, sr. Chizmar, eu sinceramente não sei do que o senhor está falando”,
brincou.
“E quando você gostaria de fazer essa pequena entrevista?”
Ela enfiou a mão na bolsa e tirou lá de dentro um gravador volumoso.
“Que tal agora mesmo?”

Eu tinha acabado de lavar o cortador de grama e o estava empurrando para o sol


para secar quando ouvi uma voz rouca:
“Olá, Richard. Pode vir aqui um instante?”
Levantei os olhos e vi o sr. Gentile em pé na varanda, olhando para mim. Ele
curvou um dedo ossudo e artrítico na minha direção e gesticulou para eu me
apressar.
Bernard Gentile — quando éramos crianças, ele insistia para que o
chamássemos de sr. Bernie — estava com quase 90 anos e aparentava toda a idade
que tinha. O rosto, bronzeado o ano inteiro, tinha rugas profundas. De baixa
estatura, não chegava a um metro e setenta e caminhava com as costas fortemente
arqueadas, o que o fazia parecer ainda menor. Algumas das crianças do bairro o
chamavam de Corcunda de Notre Dame quando ele não estava por perto, mas eu
sempre me manifestei contra o apelido. Na minha mente adolescente, o sr. Gentile
era a cara do irascível Mister Magoo, mas nunca revelei esse pensamento a
ninguém, a não ser aos meus pais. Soava desrespeitoso. Um honrado veterano da
Marinha que havia participado de duas guerras mundiais (e ele certamente tinha
medalhas para provar), o sr. Gentile era uma alma querida e um exímio contador de
histórias. Quando garotos, ele nos deleitava regularmente com histórias que iam
desde a Grande Depressão e a Segunda Guerra até os antigos clubes de jazz e a
noite em que conheceu Elvis Presley. Uma vez, ele chamou a mim e a Jimmy
Cavanaugh para ir até sua varanda e passou quase uma hora explicando
minuciosamente o motivo pelo qual nós dois teríamos sido excelentes entregadores
do Pony Express no Velho Oeste.
“Altos e magricelas”, ele nos disse várias vezes. “Vocês certamente se
encaixam no molde.”
No resto daquele verão, toda vez que nos via no jardim ou cruzava comigo na
igreja, ele repetia aquelas mesmas palavras com um grande sorriso em seu rosto
enrugado:
“Aí estão eles! Altos e magricelas!”
Enquanto eu me encaminhava para a varanda, passei a mão, para dar sorte, na
cabeça do burro de cerâmica de tamanho natural que montava guarda no jardim da
casa dos Gentile. Aquele burro estava sentado naquele mesmo lugar praticamente
desde sempre. Em algum lugar da casa, meus coroas tinham uma fotografia minha
em preto e branco, ainda bebê, no lombo do burro, balançando as perninhas, curtas
demais para tocar no chão.
“Como vai, sr. Gentile?”
“Tudo velho”, grasnou enquanto se sentava. “Tudo velho”, e indicou com uma
mão tomada de manchas senis alguns vasos de plantas pendurados em ganchos no
teto da varanda. “Traga para baixo para mim, por favor.”
Fui até lá e, na ponta dos pés, tirei uma planta de cada vez, quase caindo na
última. Aquelas malditas eram mais pesadas do que pareciam.
“Pode deixar aí mesmo”, ele indicou, apontando para os fundos da varanda.
“Vou levá-las lá para trás no carrinho de mão mais tarde. Norma reclamou que não
estão recebendo sol suficiente aqui.”
“Posso levá-las lá para trás sem problema.”
Ele levantou a mão e eu parei imediatamente.
“Não sou aleijado, meu rapaz. Só não conseguia alcançá-las e Norma não me
deixa chegar nem perto de uma escada hoje em dia. Desde que tive de levar pontos
na cabeça ao tentar podar aquela maldita árvore”, explicou e apontou com o
cotovelo para uma cadeira vazia ao seu lado. “Senta um instante. Quero contar uma
coisa.”
Eu me sentei. Ele olhou para longe como se estivesse tentando se lembrar de
algo importante.
“Com tudo o que está acontecendo, pensei que você pudesse achar
interessante”, disse e me encarou. “Aconteceu lá na década de 60, antes que
você e sua família se mudassem para a casa ao lado. Imagino que seu pai ainda
estivesse estacionado no Texas na época ou talvez até no exterior.
Assenti, embora não fizesse a mínima ideia.
“Você precisa entender que Edgewood era muito diferente naquela época.
A Route 40 não existia e a 24 estava engatinhando. Assim como a maioria das lojas
e restaurantes destas bandas. Naquele verão, Nina estava completando 16 anos, eu
me lembro disso porque Norma fez uma festança.”
Nina era a única filha dos Gentile. Eles também tinham dois filhos. Os três
eram muito mais velhos do que eu e já tinham se mudado havia tempo.
“Um dia, um garoto que vivia nas moradias militares lá na Cedar Drive
desapareceu. Ele estava brincando com os amigos em um córrego próximo. Depois
de um tempo, eles foram almoçar em casa e o garoto ficou sozinho, procurando
peixinhos, os amigos disseram mais tarde. Mas acho que, no final das contas, ele
não estava sozinho, pois, quando as outras crianças voltaram ao córrego cerca de
meia hora, quarenta minutos mais tarde, encontraram apenas um dos sapatos do
amigo na margem”, ele disse e olhou para mim. “Lembra algo?”
“Igualzinho a Kacey Robinson”, eu disse.
“Os pais e amigos procuraram o garoto por toda parte. Não conseguindo
encontrá-lo, ligaram para a Guarda Militar, que chamou o departamento de polícia.
Eles procuraram dia e noite durante uma semana antes de suspenderem as buscas.
De qualquer modo, o verão passou e, com exceção da família e dos amigos do
garoto, o incidente foi sendo esquecido por todos. A vida é assim. Outra coisa —
boa, ruim, indiferente — sempre aparece e nos ajuda a seguir nosso caminho, não é
mesmo?
“Mas então, no final de agosto, pouco antes das crianças guardarem as roupas
de banho e as luvas de beisebol e tirarem o pó dos livros didáticos, aconteceu de
novo. Outra criança desapareceu. Daquela vez, uma garotinha negra. Ela estava
brincando no jardim na frente de casa com a mãe tomando conta. O telefone tocou e
a mãe entrou, não demorou mais do que um minuto, como ela mesmo disse à
polícia mais tarde. Quando voltou, a criança tinha sumido. Daquela vez, nem um pé
de sapato ficou para trás. Nem mesmo uma das belas fitas de cabelo cor de rosa que
a menina estava usando naquele dia.
“Depois disso, foi uma repetição quase idêntica do que havia acontecido da
primeira vez. A polícia foi chamada. Expedições de busca foram organizadas,
realizadas e, no final, suspensas. E nunca mais ninguém viu nem ouviu a coitadinha.
“A cidade ficou muito apreensiva depois disso. Muita desconfiança. Pessoas
indevidamente acusadas. A tensão aumentou. Os ânimos se exaltaram. Então,
exatamente como antes, o tempo passou e as coisas começaram a voltar ao normal.
O período das Festas chegou e passou. Os alunos voltaram às aulas. Nenhuma outra
criança desapareceu. Então, sem que ninguém percebesse, já era verão novamente”,
o sr. Gentile apertou os olhos para mim. “Entende o que estou dizendo?”
Assenti, mentindo.
“Creio que sim.”
“Achei que você entenderia. Você é um rapaz esperto. Sempre foi.”
Minha inteligência, obviamente, havia sido superestimada.
Alguns minutos mais tarde, meu pai me chamou, queria a minha ajuda.
Aproveitei a oportunidade para cair fora e, enquanto eu me despedia do sr. Gentile,
só conseguia pensar em uma coisa: Mal posso esperar para ligar para a Carly e
contar para ela a história que acabei de ouvir.

Minha conversa com o sr. Gentile aconteceu na manhã de sábado, 9 de junho. Ao


meio-dia, eu já havia ligado para Carly e passado adiante a assustadora história das
duas crianças desaparecidas em Edgewood. Tão empolgada quanto eu,
ela imediatamente prometeu vasculhar os microfilmes das edições do The Aegis à
época para ver se conseguia algum outro detalhe.
No início da tarde de segunda-feira, Carly e eu estávamos sentados
um na frente do outro na Biblioteca Pública de Edgewood com uma pasta repleta de
fotocópias sobre a mesa entre nós.
Larguei a matéria de página inteira — datada de 11 de julho de 1967 — que
havia acabado de ler e peguei duas páginas, grampeadas no canto superior
esquerdo. A fotografia de uma criança estava centralizada abaixo da manchete:
NENHUM SINAL AINDA DO GAROTO DESAPARECIDO. Tratava-se de
Peter Sheehan, de 7 anos. Li rapidamente a reportagem e, quando terminei, Carly
perguntou:
“Então, o que você acha?”
“Não sei nem o que pensar.”
Usei a ponta do dedo para deslizar pela mesa a matéria seguinte da pilha.
“Além do sapato que foi deixado para trás, não tem muito em comum com o
que está acontecendo agora.”
“Foi o que eu também pensei. A primeira vítima foi do sexo masculino;
a segunda, do sexo feminino. Uma era branca; a outra, afro-americana. E nunca
encontraram nenhum cadáver. Nem sabemos se eles foram assassinados, muito
menos estrangulados.”
“E eram bem mais jovens do que Natasha e Kacey.”
“E nem uma palavra sobre algo relacionado a números deixado nas cenas dos
crimes”, ela disse e me encarou. “Tá decepcionado?”
“Um pouco”, falei, logo me sentindo meio palerma. “Achei realmente que
pudesse existir uma ligação entre todos os assassinatos… mas não há ligação
alguma, não é?”
Ela encolheu os ombros.
“Outra tragédia humana na cidade natal em circunstâncias misteriosas e
inquietantes.”
“Parece que sim”, concordei e, depois de ler rapidamente o texto, ergui os
olhos para ela. “Você vai ser uma ótima jornalista assim que eles te deixarem
escrever alguma coisa.”
O rosto dela se iluminou.
“Espere até ler o que escrevi sobre você!”
“Por favor, não me faça lembrar disso.”
“Tem certeza de que não quer ler antes? Eu me sentiria melhor.”
“Tenho”, afirmei, balançando a cabeça. “Uma vez é suficiente e posso muito
bem esperar para ler ao mesmo tempo que todo mundo.”
“Como quiser.”
Ela pegou a pasta, folheou mais páginas até o fundo da pilha e me entregou o
que encontrou lá embaixo.
“Na verdade… até que achei algo interessante”, falou.
Era uma matéria datada de março de 1972. A manchete dizia:
ADOLESCENTE MORTA EM EDGEWOOD. Eu tinha 6 anos quando foi
publicada.
Li em voz baixa:
“‘No início da noite de quinta-feira, a polícia local descobriu o corpo da jovem
desaparecida Amber Harrison, 15 anos, moradora da Hanson Road, na margem do
córrego Winters Run.’ Isso fica a uma quadra de onde estamos agora.”
Carly assentiu, como se dissesse continue.
“‘A srta. Harrison, aluna do primeiro ano do Colégio Edgewood, estava
desaparecida havia aproximadamente quarenta e oito horas, depois de sumir durante
uma curta caminhada da casa de uma amiga na Cavalry Drive até sua própria
residência.
“‘Segundo relatos preliminares, a srta. Harrison foi espancada e
estrangulada…’”
Parei de ler e olhei para Carly.
“Uau. Alguma outra vítima? Pegaram o responsável?”
“Essa é a parte realmente interessante”, disse ela. “Procurei por toda parte e
não consegui achar mais nada. Nem mesmo uma nota.”
“Isso não faz o menor sentido.”
“Eu sei. O sistema é meio velho e capenga, então acho que de repente posso ter
deixado passar algo. Mas, depois, verifiquei o Baltimore Sun e não havia nenhuma
menção a respeito.”
“Isso é bem interessante”, falei, pensando alto.
“Seus superpoderes de Homem-Aranha estão coçando?”
Olhei para ela surpreso.
“Você também é fã?”
Ela revirou os olhos e começou a arrumar a pilha de fotocópias.
“Por quê? Você acha que só meninos leem histórias em quadrinhos?”

Na manhã seguinte, acordei antes do sol nascer com a bexiga prestes a explodir,
resultado direto de ter tomado um Double Big Gulp de Coca-Cola para acompanhar
um cachorro-quente com chili de noite no 7-Eleven. Enquanto eu seguia para o
banheiro, quase num ato de sonambulismo, ouvi o farfalhar de jornais e o tinido
metálico de uma colher mexendo café. Parei no topo da escada e olhei rapidamente
lá para baixo. Só consegui vislumbrar a silhueta escura do meu pai, curvado sobre a
estreita mesa do canto da cozinha. Ele, de certa forma, parecia pequeno e solitário,
sentado ali, na dele. A casa estava silenciosa e estática, e voltei no tempo para
centenas de outras madrugadas exatamente como aquela. Ali parado, de pijama,
pensei: É isso que você faz quando tem uma família. Você se levanta quando ainda
está escuro lá fora e vai trabalhar para que as pessoas que você ama tenham uma
vida melhor. Mesmo quando você está doente ou cansado e sem vontade. Observei-
o por mais um tempinho, meu coração doendo de uma maneira que eu nunca havia
sentido antes.
“Te amo, pai”, sussurrei na escuridão e depois fui de fininho ao banheiro e
voltei para a cama.

Duas semanas mais tarde, na quarta-feira 27 de julho, o artigo de Carly sobre mim
foi publicado no The Aegis. Embora meus pais tivessem uma assinatura com
entrega em domicílio, comprei meu próprio exemplar na Wawa para ler sozinho no
meu carro. Só li uma vez, e depressa, lá no estacionamento mesmo da loja de
conveniência, me contorcendo cada vez que me deparava com uma citação. Kara
disse mais tarde que eu tinha ficado bonito na foto, com um ar entusiasmado e
inteligente. Eu, porém, tinha quase certeza de que parecia e soava como um idiota
completo. Odiei cada uma das palavras, mas, é claro, não contei isso a Carly. Pelo
contrário, agradeci e disse que a matéria tinha deixado meus pais muito orgulhosos,
o que era inegável. Os dois ficaram em êxtase porque o caçula tinha saído no jornal
local, e logo na capa do caderno Pessoas & Lugares. Mais tarde naquela noite,
Norma e Bernie Gentile foram lá em casa e me pediram para autografar o exemplar
deles. Achei que estivessem brincando, mas não estavam. Minha mãe não parava de
sorrir. No dia seguinte, meu pai foi direto à Biblioteca, fez uma dúzia de fotocópias
da matéria de Carly e as enviou para parentes mundo afora.
A publicação, no entanto, causou duas surpresas agradáveis. A primeira foi
uma ligação, tarde da noite, do meu velho amigo Jimmy Cavanaugh. Seus pais
tinham uma assinatura do The Aegis em outro Estado e contaram para ele tudo a
respeito. Jimmy me ligou para dar os parabéns e me dizer que estaria em Edgewood
no fim de semana para o casamento do primo. Acabamos papeando por mais de
uma hora e fizemos planos para nos encontrar.
A segunda surpresa foi uma ligação do detetive Harper na manhã seguinte me
dando parabéns. Havia visto por acaso a matéria — pelo menos foi o que ele disse,
fazendo de tudo para parecer casual — e tinha realmente gostado. Só queria me
dizer isso. Antes de desligarmos, eu me arrisquei e lancei uma ideia para ele:
“O que o senhor acha de eu acompanhar um dos seus agentes alguma vez? Só
para observar e sentir como é ser um agente de polícia numa cidade pequena como
Edgewood?”
Expliquei que eu já havia acompanhado um amigo que era policial da cidade
de Baltimore no ano anterior. Eu já sabia tudo das autorizações que teria que assinar
e o que esperavam de mim. Ele me prometeu que pensaria a respeito e em breve me
daria uma resposta. Eu mesmo não estava muito confiante.

Na noite daquela mesma quarta-feira, depois do jantar, meus pais foram visitar os
vizinhos Carlos e Priscilla Vargas. Eu tinha quase certeza de que o assunto da
matéria no jornal sobre um tal Richard Chizmar surgiria nos primeiros trinta
segundos de conversa.
Enquanto isso, Kara e eu passamos a noite assistindo a um filme no porão,
depois ela se despediu cedo e foi para casa para fazer um trabalho da faculdade.
Droga. Dois meses já tinham se passado desde a formatura e eu ainda odiava ter que
estudar.
Quando eu estava quase entrando no chuveiro, o telefone tocou. Enrolei
rapidamente uma toalha na cintura e peguei o fone no corredor do andar de cima.
“Alô.”
“Uma notícia rápida”, a voz de Carly Albright soava abafada e distante.
“Pode falar.”
“Um jardineiro aqui da cidade, um tal de Manny Sawyer, 31 anos de idade, foi
levado pra delegacia esta manhã por volta das 11h15. Obviamente, havia trabalhado
com uma equipe que podou algumas árvores no jardim dos fundos na casa dos
Gallagher e plantou alguns arbustos e fez adubagem a duas casas de distância dos
Robinson.
“Opa.”
“Pois é, né? A última notícia que eu tive foi que ele ainda estava lá sendo
interrogado.”
“Me mantenha informado, pode ser?”
“Claro, pode deixar. Até mais.”
Ela desligou. Pus o fone de volta no lugar e fui novamente para o banheiro.
Liguei o chuveiro, mas, antes que eu conseguisse tirar a toalha, o telefone tocou
novamente. Poxa, Carly…
Corri para o corredor e tirei o fone do gancho.
“Fala, a coisa foi rápida, hein?”
“Que que foi rápido?”, a voz de um homem que eu não reconheci.
“Desculpe, achei que fosse outra pessoa.”
O homem soltou um risinho. Grave e rouco — um som nada agradável.
“Quem está falando?”, perguntei, esperando soar mais calmo do que eu de fato
estava.
Nenhuma resposta, mas eu ouvia a respiração dele.
“Por que tá ligando pra cá?”
Clique.
Depois o sinal de discar.
Abaixei a mão e olhei para o telefone por um instante. Pela primeira vez, me
permiti fazer a pergunta: Será que aquele era realmente o Bicho-Papão? Desliguei
o chuveiro e corri lá para baixo para me certificar de que todas as portas estavam
trancadas.

A sensação era de pura nostalgia, dos bons tempos.


O carro de janelas abertas. Som alto no rádio. Um pack de Bud Light no
assoalho do banco traseiro. E Jimmy Cavanaugh no carona.
“Do cacete!”, começou. “Parece uma daquelas histórias assustadoras que você
costumava contar quando a gente era criança. ‘Um Monstro entre Nós’.”
Eu havia acabado de colocá-lo a par dos assassinatos de Natasha e Kacey e do
que Carly Albright tinha descoberto naquela velha reportagem do The Aegis.
Passamos meia hora pondo o papo em dia e zanzando de carro pela cidade,
revisitando todos os nossos locais preferidos. Fazia mais de três anos desde a última
visita de Jimmy, mas pouca coisa havia mudado.
“Sabe do que eu sinto falta?”, perguntou, olhando para fora da janela.
“Do quê?”
“Da velha caixa-d’água. Lembra quando a gente ia andar de trenó lá?”
“Claro!”
“Lembra daquela vez que apareceu um vazamento e o morro inteiro congelou?
Aquele coroa desceu à toda patinando no gelo e quase se matou!”
Eu ri, recordando.
“Sabe que aquele ‘coroa’ tinha provavelmente a mesma idade que nós temos
agora, né?”
“De jeito nenhum!”, ele reagiu, chocado. “Você acha mesmo?”
“Acho. Estamos ficando velhos, cara.”
“E você vai se casar”, ele disse, sorrindo.
“Pois é. E você vai estar bem ao meu lado como padrinho.”
“Eu não perderia isso de jeito nenhum.”
Jimmy olhou em volta para se certificar de que não havia policiais e tomou
logo um golão de cerveja. Arrotou. Gesticulando para fora da janela enquanto
passávamos pelo Edgewood Diner, disse:
“Desse lugar aí eu não sinto falta. Nem um pouco.”
“Nem você nem eu”, eu disse. “Não ponho os pés aí desde os tempos da
escola.”
“O Mel ainda é o dono?”
“O que você acha?”, falei, olhando para ele.
Mel Fullerton era um babaca de um brutamontes — um metro e noventa, pelo
menos cento e dez quilos, barba e bigode de rato, bandeira dos Confederados no
boné de beisebol, maço de Red Man no bolso da calça jeans. Um babaca reaça de
marca maior.
“Lembra quando a gente era criança e ele sempre tentava dar volta no troco?”,
Jimmy perguntou.
“Até que o sr. Anderson ameaçou pegar ele de porrada se fizesse aquilo
de novo.”
“Cara, eu até pagava para ver isso.”
“Eu também”, falei, entrando no estacionamento estreito ao lado do First
National Bank. Escolhi uma vaga e desliguei os faróis.
Jimmy estava olhando bem à nossa frente na Edgewood Road, no fundo da
trilha de cascalho da entrada da garagem. Não disse nada de início, mas depois vi os
olhos se arregalarem.
“Caramba. A Meyers House.”
“Achava que não existia mais?”
“Sei lá, mais ou menos”, ele disse, a voz sumindo. “Para ser sincero, quase
tinha me esquecido dela.”
Olhei para ver se ele estava mentindo, mas deu para sacar que não. Meu
coração chegou a doer ao pensar nele — ou em qualquer um de nós, na verdade —
se esquecendo de um lugar tão importante da nossa infância. A ideia de que aquilo
podia realmente acontecer nunca havia me ocorrido e eu não sabia como reagir. Por
uma fração de segundo, senti uma ardência crescendo no canto dos olhos.
“Eu tinha pesadelos com essa casa”, ele disse, quebrando o silêncio.
Quis dizer para ele que eu ainda tinha pesadelos com ela de vez em quando,
mas resolvi ficar na minha. De repente, não parecia apropriado compartilhar aquilo
com Jimmy.
“Meu pai disse que os proprietários venderam há alguns anos e tem outra
pessoa morando agora.”
“Não brinca”, ele olhou pelo para-brisa. “Já pensou morar ali?”
“Não. Nem mesmo passar uma noite.”
“Nossa, lembra quando o Brian e o Greg ficavam desafiando a gente a passar a
noite no jardim dos fundos? ‘Aposto vinte pratas que vocês não conseguem ficar lá
até de manhã.’ Quanto tempo a gente aguentou? Uma hora?”
“Nem isso”, eu disse. “Tipo meia hora no máximo. Você tava com tanto medo
que correu pra casa sem o saco de dormir.”
“Foi porque eu vi um fantasma”, Jimmy respondeu com um tom de voz de
superioridade. “Quase me mijei nas calças naquela noite.”
Depois começamos a rir e o som das nossas risadas me levou de volta a um
lugar feliz. Era gostoso relembrar uma época mais simples.
Quase como se estivesse lendo minha mente, Jimmy perguntou:
“É estranho voltar a morar aqui?”
“É e não é”, respondi, encolhendo os ombros. “É estranho dormir no meu
velho quarto, sem dúvida. E a cidade parece… diferente, de certa maneira… mas
isso não é uma surpresa atualmente.”
Ele me olhou.
“Imagino que esteja acompanhando os casos bem de perto.”
“Por que acha isso?”, perguntei, esperando não soar defensivo.
“Sei lá”, ele respondeu, mudando de posição no banco. “Você sempre gostou
de… mistérios… de desvendar coisas…”
“Mas nem a polícia está conseguindo dessa vez. O que temos ouvido noite e
dia é que eles estão prestes a prender alguém, mas nada acontece. A cidade inteira
está tensa.
“Você está?”
“Um pouco”, admiti. Pensei em contar para ele dos telefonemas estranhos, mas
desisti. Nem sei bem por quê. “Uma noite dessas, resolvi dar uma corrida, até o
final da Hanson. Mas acabei ficando cabreiro. Tive a impressão de ouvir passos
atrás de mim e ver coisas se mexendo nas sombras.”
“Meeedo!”, ele disse com uma voz imitando filme de terror.
“Apavorante. Voltei pra casa.”
Ele riu e tomou outro gole de cerveja.
“Olha só aquilo ali”, falei, apontando para o outro lado da rua.
Ele seguiu a direção do meu dedo, mas não disse nada.
“Bem ali, ó. Ao lado da casa.”
Uma sombra indistinta estava se mexendo na escuridão, uma luz trêmula
mostrando o caminho.
“Tem alguém carregando um lampião?”
“Parece”, eu disse, sussurrando e me sentindo como se tivesse novamente 10
anos. “Ou talvez uma lanterna com pilha fraca.”
“O que você acha que ele tá fazendo?”
“Não faço ideia.”
“Arrastando um cadáver, será? Ou enterrando!”
Observei a luz sumir nos fundos da casa.
“Quer ir até lá dar uma olhada?”
Ouvi ele engolir em seco.
“Você quer?”
Sorrindo, olhei para meu bom e velho amigo.
“Você sabe que ainda somos dois idiotas, não é?”
“Fale por você, Chiz.”
“Tá com fome?”
“Morrendo.”
Dei a partida no carro e saí do estacionamento. Cinco minutos mais tarde,
estávamos sentados no balcão do Loughlin’s, catando uns trocados para a jukebox e
pedindo sanduíches de filé com queijo e um pitcher de cerveja.

Jimmy peidou de novo e começou a rir.


“Misericórdia”, resmunguei. “Se eles não ouvirem a gente chegando,
certamente vão sentir o cheiro.”
“Desculpa”, sussurrou. “Não te disse pra não deixar eu pedir os anéis de
cebola?”
“Você não devia é ter pedido três jarras de cerveja.”
“Isso também”, concordou enquanto abafava outro risinho.
Era quase meia-noite e, desafiando qualquer lógica, havíamos voltado à
Meyers House. A pé, daquela vez. Jimmy estava bêbado e cheio de disposição. Eu
estava quase sóbrio e morrendo de arrependimento. Era tarde, fazia um friozinho e
tinha começado a chover.
Quando éramos crianças, Jimmy conseguia me convencer a fazer umas
burrices. Às vezes das grossas. Quando garoto, apesar de uma vez eu ter pagado
nove dólares e cinquenta centavos por uma pena mágica, eu não me considerava
ingênuo nem um alvo fácil. Para falar a verdade, era eu que sempre o convencia a
entrar nas nossas frequentes roubadas. Mas acho que eu poderia dizer que o Jimmy
Cavanaugh era a minha criptonita. O cara tinha um jeitinho — era como se
conseguisse apagar as lembranças dos meus pesadelos e me convencer de que o que
ele estava dizendo, fosse lá o que fosse, era a coisa mais legal, a ideia mais racional
do mundo. Ei, Rich, me faz um favor? — essa era uma especialidade dele. Segura
aquela pinha no alto enquanto eu atiro com uma arma de chumbinho? Não se
preocupe, seus dedos não correm perigo. Ei, Chiz, duvido que você consiga subir
naquela árvore e descer balançando naquele cipó que nem o Tarzã. Rich, duvido
você pegar essa vareta e cutucar aquela colmeia. Tenho quase certeza de que tá
vazia. Juro, era como se ele fosse uma espécie de mágico doido me lançando
feitiços só para se divertir.
E, naquele momento, depois de todos aqueles anos, ele estava fazendo a
mesma coisa.
A Meyers House se erguia à nossa frente, o telhado pontudo desaparecendo em
um céu sem estrelas. Todas as janelas da frente da casa estavam escuras. Nem a luz
da varanda estava acesa. Uma gangue de assassinos sedentos de sangue podia estar
sentada na varanda, afiando suas facas e nos esperando, e a gente não tinha como
saber. Ouvindo o som não tão discreto do cascalho estalando embaixo dos nossos
sapatos, eu sabia que alguém já teria há muito tempo percebido nosso chegada.
“Espera”, Jimmy falou, baixinho. “Preciso mijar.”
“De novo?”
Ele não respondeu. Estava escuro demais para enxergar mais do que meio
metro na frente do meu nariz, mas eu o ouvi se afastar um pouco, depois o som de
um zíper sendo abaixado, seguido de um longo suspiro, e, finalmente, um jato
contínuo batendo no cascalho.
“Pô, pelo menos mija na grama.”
Da escuridão perto de mim, uma voz:
“Tarde demais.”
E depois o som de um zíper subindo e o borbotar de outro peido molhado.
“Escapou. Foi mal.”
Mais risinhos.
Estou no inferno, pensei, mas sem levar a sério.
“Ei”, ele sussurrou em algum ponto à minha frente. “Me faz um favor?”
“Não. Nem pede. Seja lá o que for, a resposta é não.”
“Eu só ia dizer para você continuar falando para eu te achar. É assustador
demais ficar sozinho aqui nesse breu.”
“Ah.”
“O que você achou que eu fosse pedir?”
“Para eu fazer alguma idiotice, provavelmente.”
“Continua a falar, acho que estou quase chegando.”
“Quer saber? Eu deveria cair fora. Deixar você aqui sozinho no… aaau!”
Uma das mãos de Jimmy surgiu da escuridão na frente do meu rosto e cutucou
meu olho. Uma fração de segundo mais tarde, ouvi um assobio e sua outra mão me
deu um tapa na orelha.”
“Aí está você”, ele murmurou, sem perceber a minha dor. Mesmo com o olho
em bom estado, eu não conseguia enxergar seu rosto, mas ele estava
suficientemente perto para eu sentir o bafo de cebola e o cheiro azedo de urina.
Eu tinha quase certeza que ele havia mijado nos próprios sapatos.
“Se você fez isso de propósito…”, comecei, “fique sabendo que vai voltar a pé
pra casa.”
“Fiz o que de propósito?”
“Esquece. Ridículo isso aqui. Estamos ficando ensopados. Vamos voltar para o
carro.”
“O que foi aquilo?”
“Aquilo o quê?”
“Ali, ó.”
“Se você está apontando para algum lugar, esquece, eu não consigo enxergar
nada. Tá escuro demais.”
“Lá em cima, à esquerda, atrás da casa dos Baliko.”
Apertando os olhos no escuro, eu só conseguia entrever um halo de uma luz
fraca vinda dos fundos da casa e a silhueta incerta de uma cabana no canto do
jardim.”
“Não tô vendo nada.”
“Continua olhando.”
Continuei observando e, quando me convenci de que Jimmy estava aprontando
alguma, enxerguei: algo pequeno, lúrido e arredondado se deslocando
paralelamente à entrada da garagem, talvez a uns trinta metros de onde estávamos.
“Viu?”, ele perguntou, a voz repentinamente segura.
“Que diabos é aquilo?”
Fosse lá o que fosse, estava se aproximando. Flutuando sobre o chão.
Retroiluminado pelas luzes das varandas das casas ao fundo. Um instante mais
tarde, ouvimos passos se aproximando, sibilando na grama alta na beira da entrada
da garagem.
“É um rosto”, ele sussurrou.
Corremos, como inúmeras vezes antes, como se todos os demônios do inferno
estivessem atrás de nós. O que, naquele momento, poderia ser verdade.

10

Mais tarde, no carro, com o aquecimento no talo…


“Foi uma das coisas mais assustadoras que eu já vi”, disse Jimmy, esfregando
as mãos. “Acha que devemos ligar para a polícia?”
“E dizer o quê?”
“Que vimos um albino assustador circulando por aí no escuro. Talvez fosse o
assassino.”
“Não sei”, eu disse. “Nós dois bebemos. Acho que não seríamos testemunhas
muito confiáveis.”
“Você não disse que eles têm um disque-denúncia anônimo?”
Fiquei impressionado por ele lembrar disso.
“Tudo bem, mas você fala. Você não é mais da casa. Eles não vão reconhecer
sua voz.”
Parando no meio-fio na frente da farmácia Plaza Drugs, pus a mão no console
e entreguei para ele uma moeda de vinte e cinco centavos para o telefone público e
minhas luvas de inverno.
“Para que isso?”, ele perguntou.
“Nada de digitais.”
Ele estalou os dedos.
“Garoto esperto.”
Enquanto ele saía do carro, eu disse:
“Talvez o cara que a gente viu não fosse albino.”
Jimmy ficou me olhando.
“Talvez ele estivesse usando uma máscara.”

11

Assisti ao noticiário e vasculhei os jornais durante dias depois daquele evento.


Contei a Carly o que havia acontecido e ela ficou de orelha em pé para ver se
captava algum sussurro. Eu passava de carro pela Meyers House pelo menos três ou
quatro vezes por dia.
Nada.

12

No final da última tarde de julho, lá estava eu na frente da entrada da garagem,


olhando para uma série de nuvens escuras marchando sobre o horizonte no topo do
morro. Tinha sido um mês tranquilo até então em Edgewood, mas eu pressentia que
aquela paz e aquele silêncio logo chegariam ao fim.
Uma tempestade está a caminho.
Essas cinco palavras ecoavam na minha cabeça havia semanas.

Uma das lembranças mais queridas da minha infância era trabalhar com meu pai na
garagem. Muitos dos amigos que conheci mais tarde achavam isso estranho — com
razão.
Quando eu dizia às pessoas que não levava jeito para coisas mecânicas, estava
usando um grande eufemismo. E, se elas já não conhecessem essa minha
característica, logo vinham a saber. Por mais que tentasse, eu não conseguia
configurar um videocassete, muito menos montar um móvel. A IKEA era minha
inimiga declarada. No que me diz respeito, motores de carros — bem, motores de
qualquer tipo — podiam ser cérebros humanos. Para mim, eram ambos mistérios
eternos.
Durante a minha infância — e ainda hoje em dia —, a imagem do meu pai na
entrada da garagem com a cabeça curvada embaixo do capô de um dos carros da
família era uma visão comum para os motoristas e pedestres que passavam. E eu ao
lado dele para ajudar? Nem tanto. Nós tentávamos. De verdade. Mas,
inevitavelmente, acontecia o seguinte:
Primeiro minuto: Rich em pé ao lado, braços cruzados, balançando o corpo de
tanta empolgação. Prestando muita atenção. Talvez até fazendo uma ou duas
perguntas.
Terceiro minuto: Rich aprendendo, usando os dedos para tamborilar o ritmo
do último comercial do Old Spice na saia lateral do carro, a poucos centímetros de
onde está a cabeça do pai.
Quinto minuto: Rich inquieto como se fosse fazer xixi nas calças a qualquer
momento. Prestando mais atenção num casal de esquilos gordos brincando de
pega-pega no fio de telefone que atravessa a Hanson Road do que naquilo que, com
muita paciência, o pai está tentando ensinar.
Oitavo minuto: Rich girando o corpo para um lado e para outro na entrada da
garagem como um tornado humano enquanto emite sons como os de Cornelius de
O Planeta dos Macacos (um filme que sempre adorei), incapaz de ouvir que o pai
está pedindo para ele pegar uma chave de boca de 3/8.
Décimo minuto: Rich, agora completamente imóvel e silencioso, braços
pendurados em desalento nas laterais do corpo, olhos baixos. O pai em pé na frente
dele, uma mistura complexa de amor e frustração impressa em seu rosto cada vez
mais corado. Finalmente o pai respira fundo e murmura aquelas três palavras
mágicas: “Pode ir embora.” E, antes que o pai possa mudar de ideia, Rich está
subindo desabalado o morro rumo às casas de Jimmy e Brian, berrando por cima
do ombro enquanto avança: “Obrigado, pai! Te amo!”
Isso é mais ou menos o que acontecia. Toda vez. Até que, finalmente, um dia,
simplesmente nos aceitamos mutuamente e paramos de tentar.
Por sorte, trabalhar dentro da garagem, em um dos frequentes “projetos” do
meu pai, era uma experiência totalmente diferente. Falei mais cedo que a garagem
sempre me lembrou a oficina misteriosa e caótica do feiticeiro de Fantasia, da
Disney. Sobretudo naquelas longas noites de verão depois do jantar quando meu pai
ocupava o próprio tempo construindo ou consertando vários objetos em sua bancada
de trabalho. Ele era o mago grisalho, sábio e paciente que não parecia pertencer a
este mundo — e eu era seu ávido aprendiz.
Ele me pedia para pegar uma ripa de madeira da pilha encostada na parede dos
fundos ou a caixa de arames na prateleira e eu prontamente o atendia. Ele baixava a
cabeça e começava a trabalhar e eu ficava bem ao lado dele, espiando atrás das
costas, estudando, tomando cuidado para não cutucá-lo com o cotovelo enquanto
ele operava para minha mãe uma cirurgia delicada num apoio para os pés novinho
em folha ou nas vísceras confusas do televisor quebrado de um vizinho.
Por algum motivo, minhas noites mais memoráveis na garagem eram quase
sempre acompanhadas de tempestades de raios. Enquanto trabalhávamos lá dentro,
o céu lentamente se contorcia e se agitava, mudando e turbilhonando até assumir
aquele tom roxo-escuro de um dos muitos hematomas feios que cobriam meu corpo
magricela aos 10 anos de idade. Longos estrondos mal-humorados de trovões
distantes iam se aproximando cada vez mais, como um exército de gigantes
marchando. Meu pai adorava o som dos trovões e muitas vezes até desligava o rádio
que estava transmitindo o jogo dos Orioles só para que pudéssemos ouvi-los
melhor.
Pouco depois, ele olhava para mim e anunciava:
“O que você acha de fazermos uma pausa para observar a chegada da
tempestade?”
Então, em silêncio, ele largava o que estava fazendo na bancada e ia para a
entrada da garagem. Geralmente se apoiava em um dos carros e fixava o olhar na
Hanson Road. Logo atrás dele, eu imitava todos os movimentos.
Nossa casa estava localizada no fundo de uma depressão natural formada pelo
cruzamento da Hanson com a Tupelo. Às vezes, durante grandes tempestades, a rua
ali inundava, acumulando de setenta centímetros a um metro de água. Quando isso
acontecia, a bomba no nosso porão era obrigada a trabalhar sem parar e meu pai
precisava ficar acordado a noite toda para ter certeza de que não tinha acontecido
nenhum entupimento.
No lado oposto, subindo o morro, ficavam as casas dos Gentile, Cavanaugh e
Anderson, e a casa em dois níveis do vizinho de Brian e Craig marcava o topo de
uma inclinação íngreme.
Eu e meu pai, o aprendiz e o mago, ficávamos em pé na entrada da garagem —
às vezes, falando dos Orioles ou de um dos meus amigos ou de um livro que um de
nós estava lendo; muitas vezes, sem dizer nada — e observávamos a tempestade
passar por cima do morro e chegar ao coração de Edgewood. Em noites especiais,
parecia que estávamos fazendo algo mais, além de observar; parecia que estávamos
dando as boas-vindas à tempestade de braços abertos.
Primeiro, o vento aumentava, assobiando entre as copas das árvores e
despenteando nossos cabelos. Depois, relâmpagos rasgavam o céu e o estrondo dos
trovões só aumentava. A luz diminuía mais um pouco enquanto o céu ia ficando
mais raivoso. Depois, o cheiro do ozônio nos atingia e o aroma de terra úmida
enchia o ar. Era nesse momento que nós sabíamos: um toró estava caindo em algum
lugar ali perto… e se aproximando. Por fim, o zumbido crepitante e elétrico
começava a dançar no ar à nossa volta, uma sensação perigosa e superintensa que
fazia os pelos minúsculos e escuros dos nossos antebraços se arrepiar.
Os primeiros pingos gordos de chuva começavam a cair logo depois. Esparsos
no início; inchados, pesados e famintos por terra seca; respingando em nosso rosto e
infiltrando-se por nossos cabelos; molhando os telhados, o capô dos carros e o
concreto da entrada da garagem sob os nossos pés; ao mesmo tempo, marcando um
profundo ritmo staccato, apagando os sons cotidianos do mundo à nossa volta.
Meu pai e eu ficávamos lado a lado, saboreando cada doce momento, cabeças
inclinadas, olhos fechados, sorvendo a cacofonia da tempestade; só nós dois — os
Senhores de Edgewood.
Depois, sem aviso prévio, nos dávamos conta de que estávamos embaixo de
uma cachoeira majestosa. O mundo inteiro se transformara e nós dois estávamos à
sua mercê — e minha mãe, em pé sob a porta aberta da garagem, gritando para
deixarmos de ser bobos e entrarmos para não pegarmos uma pneumonia. Meu pai e
eu não conseguíamos parar de rir, perdidos demais no meio da cachoeira para ouvir,
consumidos demais pela saudação à tempestade…
Os trovões rosnavam lá em cima. Relâmpagos perfuravam o horizonte.
Olhando para a luz decrescente que envolvia a Hanson Road, pisquei e os sussurros
da memória desvaneceram. Eu não era mais uma criança. Era o último dia de julho
de 1988. E, mais uma vez, eu ouvi, cantarolando nas profundezas do meu ser: uma
tempestade está a caminho.
ACIMA: Parada de Quatro de Julho (Foto cortesia de Deborah Lynn)
ACIMA: Time (divisão de 9 a 10 anos de idade) vencedor do torneio Quatro de Julho (Foto cortesia do
The Aegis)
ACIMA: A comprida trilha de cascalho até a Meyers House (Foto cortesia de Alex Baliko)
ACIMA: A Banda de Edgewood (Foto cortesia de Bernard L. Wehage)
seis

A Casa dos Manequins


“As cabeças tinham sido raspadas e os cabelos substituídos por perucas
vagabundas.”

Minutos após me sentar no sedã marrom chapa fria do detetive Lyle Harper, me
dei conta de quem ele me lembrava: Danny Glover. Mesma voz profunda e rouca;
mesma risada espalhafatosa; mesmos olhos tristes de cachorrinho filhote. Eu não
sabia por que não havia feito a conexão quando o conheci na minha sala de estar —
nervosismo, provavelmente —, mas as semelhanças me fizeram gostar dele
instantaneamente. Glover sempre foi um dos meus atores favoritos.
Dizer que eu havia ficado surpreso no dia anterior quando o detetive me ligou
não apenas para aprovar meu pedido para acompanhar os policiais, mas para se
oferecer para me levar com ele, seria um imenso eufemismo. Inicialmente intrigado
pelo motivo para ele me oferecer tal privilégio, decidi manter minha grande boca
calada e aproveitar a oportunidade, talvez aprender algo ao longo do caminho.
Até então — passados trinta minutos de um turno estimado em quatro horas
—, eu estava certamente fazendo as duas coisas. O detetive Harper, além de ser um
poço de informações e um profissional de primeira, era também engraçado à beça.
Ele já havia falado dos três filhos — duas moças mais velhas e um rapaz da minha
idade — e de suas frequentes desventuras como pai solteiro quando eles eram mais
jovens. Sem dúvida, namorar a filha adolescente de um detetive da divisão de
homicídios não era para os fracos. De repente, fiquei muito grato pelo pai de Kara
ser corretor de seguros. Apesar dos rigores da carreira, Harper se casara novamente
havia pouco tempo e parecia ter uma vida boa. E os filhos ainda o adoravam, o que
ele afirmava ser um pequeno milagre.
Acho que eu fazia Harper lembrar do filho, Benjamin, que era músico
profissional. Durante o dia, dava aulas particulares de piano, violão e saxofone. À
noite, tocava com algumas bandas bastante respeitadas — de jazz e música
contemporânea — em vários clubes e restaurantes na região de Washinton D.C. Até
aquele momento, a questão financeira havia sido complicada, mas o detetive disse
que nunca tinha visto o filho mais feliz ou dedicado, então, como pai, estava
aguentando a barra e dando todo o apoio possível.
Quando o assunto pessoal chegou ao fim, Harper começou a falar do trabalho,
explicando que havia passado a maior parte da tarde revisando declarações por
escrito de parentes, amigos e vizinhos das vítimas, procurando qualquer coisa de
interessante que pudesse ter passado despercebida. Perguntei quantas vezes ele já
havia lido cada declaração e ele me deu um olhar que dizia Você não tem ideia.
Depois de terminar a leitura, ele dava telefonemas de acompanhamento para
determinados interrogados com o intuito de fazer perguntas complementares.
O plano para o resto da noite era patrulhar as ruas de Edgewood — começando
nos arredores ao longo da Route 40 e nos aproximando lentamente e em círculos do
Centro da cidade, depois dando meia-volta e invertendo o percurso — e investigar
qualquer pessoa ou coisa que o detetive Harper julgasse interessante.

Era estranho ver as ruas da minha cidade natal de dentro de uma viatura da polícia.
Não parecia real, era quase como se o para-brisa fosse a tela de um televisor e eu
estivesse sentado no porão com meu pai assistindo a um dos seus programas de
detetives. Por falar em meu pai, ele estava emburrado em casa porque não tinha
sido convidado para ir comigo. Como se eu pudesse decidir. Olhei pela janela do
carona e, mais uma vez, aquela sensação de expectativa cresceu dentro de mim,
como se um acontecimento importante estivesse à espreita logo após o horizonte.
Uma tempestade está a caminho.
Sem que eu perguntasse, o detetive Harper passou a primeira parte da nossa
patrulha me ensinando o que os códigos de chamada queriam dizer cada vez que
eram transmitidos pelo rádio da polícia. Eu disse que havia comprado meu próprio
rádio para ouvir enquanto escrevia à noite e ele não pareceu nem um pouco
surpreso. Depois entendi por quê: eu já havia dito que tinha comprado um rádio
quando ele tinha estado lá em casa para o nosso interrogatório inicial. O que
provavelmente explicava por que ele estava se dando ao trabalho de me explicar os
códigos de chamada. Era uma gentileza da parte dele.
Harper também estava guardando uma outra surpresa para mim. Ele havia
procurado e lido meu artigo sobre Earl Weaver para o Baltimore Sun. Eu não sabia
se deveria ficar nervoso ou lisonjeado. Quando perguntei por que ele havia feito
aquilo, ele sorriu e disse:
“Sou um detetive. Faço o meu dever de casa.”
Quando entramos na Route 24, avistamos um homem e um menino com varas
de pescar em pé na margem do rio Winters Run. Uma pequena fogueira ardia numa
clareira atrás deles.
“O que você acha que eles estão querendo pegar ali?”, perguntou, pisando
suavemente no freio.
“Percas-sol. Percas-amarelas. Bagres. Talvez achigãs ou percas-prateadas se
estiverem usando vairões vivos como isca.”
Ele me olhou impressionado.
“Você é pescador.”
“Pescava quase todo dia quando garoto.”
“E agora?”
“Não mais. Íamos de fininho até o campo de golfe da Universidade de
Maryland de vez em quando e pescávamos nos lagos. Fisguei alguns peixes
grandinhos na baía agora no Quatro de Julho. Mas só isso.”
“Eu só pesco em água doce. Gosto de sair duas ou três vezes por semana para
pescar, quando posso”, contou e olhou para mim. “Ultimamente não tenho saído
muito.”
Harper deu seta e virou à esquerda na Edgewood Road. Vi os vultos das casas
passando enquanto subíamos a longa e sinuosa colina rumo à cidade. Reunindo
coragem, perguntei:
“Então… numa noite como esta, a gente fica dirigindo e procurando o que
exatamente?”
“Para ser sincero, estou pensando tanto quanto procurando. Se é que isso faz
sentido.”
Eu assenti.
“Acho que faz.”
“Geralmente não faço um patrulhamento tão amplo assim. Isso é trabalho dos
fardados.”
Ele entrou no estacionamento do banco e parou a não mais do que cinco
metros de distância de onde eu e Jimmy havíamos estacionado há uma semana. De
repente, meu estômago deu um nó.
“Mas, às vezes, é útil para mim sair de trás da escrivaninha, ficar longe
do telefone e de toda a papelada.”
“Então, enquanto dirige… o senhor pensa sobre todos os detalhes do caso?
Tenta fazer com que tudo se encaixe?”
“Exatamente”, ele disse. “Também penso no que podemos ter deixado passar.
O que está bem na nossa cara e que, por algum motivo, ainda não notamos.”
“Isso acontece muito? Deixar passar algo e depois voltar e encontrar?”
“O tempo todo”, começou, balançando a cabeça. “As pessoas acham que o
trabalho de um detetive é excitante e glamouroso, cheio de tiroteios e perseguições
de carro. Na verdade, raramente é assim”, completou, esticando o braço e
diminuindo o volume do rádio. “É trabalho duro, é peneirar centenas, às vezes
milhares de páginas de relatórios e fotografias, assistir a horas de gravações de
segurança, bater em portas, fazer ligações e falar com pessoas que ou estão ansiosas
demais para falar, mas não têm nada a dizer, ou têm informações cruciais, mas se
recusam a falar.”
“Não parece muito empolgante.”
“Acredite, não é.”
“Há quanto tempo faz esse trabalho?”
Ele respondeu imediatamente.
“Em outubro, vai fazer dezenove anos.”
Eu soltei um assobio.
“Quase a minha vida toda.”
“Deixe-me perguntar uma coisa”, falou, apontando para a trilha de cascalho
que levava até a Meyers House, do outro lado da rua. Merda, lá vem encrenca,
pensei. “Vi um bando de crianças caminhando por ali outro dia. Aonde você acha
que elas estavam indo?”
Fui invadido por um alívio instantâneo.
“Humm… depende”, falei, pensando repentinamente no homem que tínhamos
visto circulando ali na escuridão. “É um atalho tanto para a Cherry como para a
Tupelo. Se você subir um pouco mais da metade do caminho e atravessar um dos
jardins nos fundos das casas à esquerda, vai dar na Cherry. Se você for até o topo e
atravessar o jardim nos fundos da casa grande e continuar pelo jardim da casa dos
Patterson, vai dar na Tupelo. A cinco ou seis casas de distância de onde moram
meus pais.”
“E todo mundo que mora por aqui sabe disso?”
Dei de ombros.
“A molecada toda sabe. Tipo… faz parte de morar aqui.”
O detetive pareceu pensar a respeito por um instante, depois saiu da vaga do
estacionamento e pegou a Edgewood Road. Ao chegar no cruzamento do posto
Texaco, virou à direita na Hanson. Quando desacelerou o carro uns oitocentos
metros mais à frente, eu sabia aonde ele estava nos levando.
“O que você pode me dizer sobre esta área?”, ele perguntou, pegando a
esquerda no circuito em volta da Cedar Drive.
Dei uma olhada nas homenagens para Kacey Robinson na base do escorrega.
Finalmente tinha parado de crescer. Já estava quase na hora do pôr do sol e só havia
duas pessoas ali — uma mãe com a filha — brincando nos balanços. Um cão
grande estava preso à base do trepa-trepa, a uns dez metros delas, talvez. O resto do
parque estava deserto e envolto em sombra.
“Vamos lá”, comecei, olhando em volta e apontando para os pontos de
referência. “Costumávamos andar de trenó ali quando éramos crianças. O campo de
beisebol oficial e o parque ainda não haviam sido construídos. Jogávamos futebol
americano logo ali, perto dos apartamentos militares. Se atravessarmos aquele
campo”, apontei, gesticulando em direção ao outro lado da rua, “e depois o jardim
nos fundos da casa dos Goode, vamos sair na Tupelo Court, bem em frente à minha
casa.”
“E quanto ao Boys and Girls Club, já tinha aberto naquela época?”
“Não. Era só um grande estacionamento vazio. Quando já estávamos um
pouco maiores, a gente ficava bebendo cerveja ou levando garotas pra lá.”
Ao nos aproximarmos da escola primária à nossa esquerda, apontei para uma
fila de árvores que ficava do lado oposto da rua em relação ao local onde os ônibus
estacionavam. Uma trilha estreita havia sido aberta no bosque. Abria-se formando
grandes áreas escuras.
“Tem um outro atalho por ali. Sai atrás do novo edifício comercial em frente
ao 7-Eleven.”
“O que fica na esquina da Edgewood com a Willoughby Beach?”
“Isso mesmo. O 7-Eleven foi o primeiro lugar por aqui com uma máquina de
Space Invaders. Quando eu tinha 9 anos, costumava sair correndo depois do jantar
com uma única moeda de vinte e cinco centavos no bolso. Descia a Hanson, cortava
pela Cedar Drive, atravessava esse bosque e subia o morro. Eu jogava a minha
partida e corria de volta para casa o mais depressa possível na escuridão para que
meus pais não soubessem que eu tinha saído.”
“É muito chão só para uma partida de Space Invaders.”
Eu ri.
“Nem me fale. Especialmente quando você morre no primeiro ou segundo
minuto todas as três vezes. Fazer o quê? Quem mandou ser meio obcecado.”
Quando chegamos na placa de Pare no final da Cedar Drive, o detetive Harper
freou até estacionar e ficou imóvel atrás do volante. Não havia trânsito na rua em
frente, mas, mesmo assim, não avançávamos um milímetro. Estudei a moita de
arbustos do outro lado da rua caso o detetive estivesse monitorando algum
movimento que eu não tivesse percebido, mas não havia nada. Por fim, ele pisou no
acelerador, virou à direita e rumou para o colégio. Quando voltou a falar, sua voz
estava baixa e cautelosa.
“Eu sei que, para vir comigo hoje, você teve de concordar que não me faria
nenhuma pergunta específica sobre o caso”, ele disse. “Mas eu gostaria de te fazer
uma ou duas perguntas, mas só precisa responder se quiser, ok?”
“Tudo bem, claro”, falei, uma cólica nervosa despontando no fundo do
intestino.
Ele olhou para mim e sorriu, mas o sorriso não alcançou os olhos.
“Relaxa, Rich. Não é nada de mais. Eu só estou procurando uma… digamos…
perspectiva diferente.”
“Tudo bem”, repeti.
“Você está a par de alguma tensão racial aqui em Edgewood?”
“Que eu saiba, não”, encolhi os ombros. “Quer dizer, nada fora do normal.
Somos, e sempre fomos, uma comunidade muito diversa.”
“Mas ambas as vítimas foram jovens brancas.”
“Sim, é verdade”, olhei para ele. “O senhor acha isso estranho?”
“Você acha?”
“Acho que não. Só imaginei que isso significa que o assassino também é
branco. A maioria dos serial killers não cruza os limites da própria raça quando
seleciona suas vítimas.”
Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.
“Vejo que não sou o único que fez o dever de casa. Onde você aprendeu isso?”
“Não me lembro bem. Provavelmente em um dos livros que eu li.”
Ele virou à esquerda na Willoughby Beach Road.
“Tudo bem. Próxima pergunta: se você fosse um criminoso de outra cidade e
estivesse procurando raptar uma jovem nas ruas de Edgewood, onde você agiria? O
primeiro lugar que vem à mente.”
Baixei a cabeça e fechei os olhos. Assumindo meu lado escritor, pensei no que
ele estava me perguntando.
“Em algum lugar sem muita gente. Um parque, no início da manhã ou ao pôr
do sol. Uma das ruas paralelas à principal ou, então, perto do rio. Em um dos bares
ou restaurantes, pelo horário de fechamento,” reabri os olhos. “Desculpe, eu falei
mais de um.”
“Não, tudo bem”, ele disse. “Muito bom. Eu só não queria que você pensasse
demais a respeito.”
Harper entrou no estacionamento na frente da escola ginasial e desligou os
faróis do sedã. Já estava totalmente escuro, vaga-lumes salpicavam o céu noturno.
Uma luz quente e amarela vazava das janelas das casas do outro lado da rua e mal
se distinguia o brilho oscilante de telas de televisão nas salas de estar e porões.
“Agora me diga uma coisa… se você fosse um forasteiro, um estranho, qual
seria o último lugar a que você iria para raptar uma adolescente em Edgewood?”
“Um local movimentado”, respondi na lata.
Ele meneou a cabeça, mas não disse nada, só continuou olhando para a
escuridão. Por um instante, achei que tivesse dito algo errado, mas, depois, entendi
o que ele estava fazendo.
“O senhor realmente acha que o assassino é daqui, não é?”
“Acho que ele provavelmente morou aqui a vida toda”, Harper olhou para
mim. “Você não está convencido disso?”
“Certeza, certeza, eu não tenho de nada”, respondi, desviando o olhar.
Ou talvez eu simplesmente não quisesse ter.

“O senhor já sentiu medo ao fazer seu trabalho? Não medo do tipo ‘alguém pode
atirar em mim’ ou ‘estou em perigo’. Estou falando daquele medo que causa
arrepios porque tudo à sua volta é aterrorizante.”
Estávamos voltando para a delegacia quando de repente me ocorreu que aquele
patrulhamento provavelmente tinha sido mais proveitoso para o detetive Harper do
que para mim. Não que isso me importasse. Havíamos percorrido a cidade, de cabo
a rabo, três vezes. Eu havia visto partes de Edgewood que não visitava desde
garoto. Até saltamos e caminhamos pela margem do rio por um tempo. Eu
certamente havia aprendido muito e apreciado a companhia do detetive, mas,
de alguma maneira, ele tinha conseguido extrair de mim mais informações do que
eu dele. Com a noite quase chegando ao fim, pensei que poderia tentar fazer mais
uma ou duas perguntas.
“É claro”, ele disse. “Que já vivi momentos assim.”
“Sério? Qual foi o pior?”
Ele ficou calado por um instante, pensando.
“A Casa dos Manequins.”
“Nossa, parece assustador mesmo. O que aconteceu?”
O sinal abriu e atravessamos o cruzamento.
“Era tarde da noite, eu estava trabalhando em Baltimore. Meu parceiro e eu
atendemos uma ligação de uma senhora preocupada com o vizinho. Ela morava na
rua do Memorial Stadium e fazia um dia mais ou menos que ouvia vozes estranhas
e ruídos de pancadas na casa geminada com a sua. Havia tentado tocar a campainha
e bateu à porta várias vezes, mas ninguém atendeu. O nome do vizinho era Thomas
McGuire. Ela disse que ele estava na faixa dos 60 anos e era bastante simpático,
mas também meio estranho às vezes. Falava sozinho direto e acreditava em óvnis,
cristais e coisas do gênero.
“Bem, fomos lá verificar. Eu fui pela frente e meu parceiro pelos fundos.
Obviamente, ninguém abriu a porta. Tentei espiar pela janela, mas cortinas pesadas
bloqueavam a visão. Bem nessa hora, meu rádio apitou, era meu parceiro pedindo
para eu ir para os fundos.
“Encontrei ele em pé diante de uma janela semiaberta, espiando através de
uma fresta entre as cortinas que ele havia afastado. Mesmo no escuro, vi que ele
estava com o rosto pálido e com o revólver na mão. Ele se afastou para o lado e eu
dei uma olhada.
“Velas ardiam dentro da casa. Centenas delas, por toda parte, inclusive no
chão. Espalhados entre as velas, estavam dezenas de corpos nus, todos colocados
em várias poses. Sentados à mesa de jantar. Apoiados na bancada da cozinha. Em
pé, encostados nas paredes. As bocas haviam sido pintadas com batom vermelho e
os olhos de vidro brilhavam à luz das velas.
“‘Que diabos é isso?!’, exclamei, me afastando da janela.
“‘Tá sentindo o cheiro?’, meu parceiro sussurrou. ‘Tá sentindo o cheiro de
sangue?’
“Saquei a arma do coldre. ‘Você chama o reforço?’
“‘Chamo’, ele disse.’
“Naquele momento, um som saiu de dentro da casa. Alguém chorando. Meu
parceiro não titubeou. Arrombou a porta com um chute. ‘Polícia!’, gritou,
apontando a arma. ‘Sr. McGuire! O senhor está em casa?!’
“Entramos na cozinha e ficamos petrificados. O fedor de sangue fresco era
nauseante. Sombras tremeluziam à nossa volta. De perto, só precisamos de um
segundo para perceber que os corpos não eram humanos, eram manequins. Mas
manequins não sangram. Então… de onde estava vindo o cheiro? Havia dezenas
daquelas coisas espalhadas pela casa. Quatro sentados no sofá da sala de estar, dois
com as pernas cruzadas. Mais três agrupados como se estivessem conversando perto
da tevê. Pus a cabeça dentro do banheiro do andar de baixo e tinha um maldito
manequim sentado na privada, outro se arrumando na frente do espelho. Fomos
para a sala de estar e, à nossa volta, eles nos observavam com aqueles olhos mortos,
brilhantes, e havia mais outros ao longo da escada que levava ao andar de cima. Os
quartos estavam cheios deles. Um casal de conchinha na cama em um quarto, meia
dúzia fazendo uma orgia em outro, um manequim tamanho infantil sozinho no
chuveiro com a água ligada, mais dois sentados no chão, de pernas cruzadas, no
final do corredor. E, por toda parte, velas ardendo em qualquer superfície
disponível.
“Quando voltamos para o andar de baixo, nossos reforços haviam chegado e
estavam tão atônitos quanto nós. Seguimos todos em fila indiana até o porão, onde
o cheiro de sangue e de podre estava ainda mais forte. E lá, no meio de todas as
velas acesas, da máquina de lavar e da secadora, daquelas fileiras de caixas de
papelão empilhadas contra a parede, de pelo menos vinte bicicletas velhas
emaranhadas e de mais ou menos duas dúzias de manequins, encontramos os
cadáveres de três mulheres, todas na faixa dos 40 anos. Duas eram prostitutas e a
terceira era a funcionária de uma creche cujo desaparecimento fora registrado havia
três dias. Estavam nuas, estripadas, penduradas no teto. As cabeças tinham sido
raspadas e os cabelos substituídos por perucas vagabundas. No canto oposto, atrás
de uma pilha de lixo, encontramos o Thomas. Ele também estava nu, encolhido em
posição fetal. Soluçando e chorando. Cada milímetro do corpo estava lambuzado de
sangue das vítimas. Um quarto cadáver, a ex-mulher do sujeito, foi descoberto mais
tarde no porta-malas do carro. Também estava lá havia alguns dias.”
“Misericórdia!”, exclamei, enquanto me subia uma vontade de vomitar.
“Quando foi isso?”
Ele respondeu imediatamente.
“Em 9 de outubro de 1976.”
Não falamos mais durante o resto do caminho até a delegacia.

“Isso não tem graça nenhuma”, eu disse.


Carly Albright estava sentada do outro lado da mesa, sorrindo, claramente se
divertindo. Era o início da tarde do dia seguinte, e havíamos escolhido a mesa de
canto que havia rapidamente se tornado nosso lugar cativo no Loughlin’s Pub.
“Só estou dizendo que é uma tática supercomum usada pela polícia. Sempre
aparece nos filmes. Eles fingem criar intimidade com um suspeito para atraí-lo e
gerar confiança.”
“Não era isso que ele estava fazendo. Ele foi um cara genuinamente
simpático.”
Ela me ignorou.
“E depois o suspeito fica um pouco confiante demais, comete um erro e pimba,
é pego.”
“Não foi isso o que aconteceu. E pego por quê? Não fiz nada de errado.”
“E por acaso ele sabe disso?”, ela perguntou, levantando as sobrancelhas.
“Na verdade, ele pediu minha opinião sobre coisas relacionadas ao caso.”
“Dissimulação clássica.”
“Ah, para. Nem vem”, falei, beliscando o prato de nachos com frango entre
nós. “Você viaja.”
“Só estou dizendo que o detetive Harper talvez não seja o policial camarada
que você está imaginando que ele é.”
“Eu nunca disse isso! Eu simplesmente disse que ele foi simpático.”
“Bem… não sei se você deve confiar nele. O Harper tem uma tarefa a cumprir
e está sob muita pressão.”
“Agora você está parecendo a minha mãe.”
Carly fez uma pilha com vários nachos, atochou-os na boca e começou
a mastigar.
“Fazer o quê”, ela murmurou, migalhas voando para todo lado.

Mais tarde naquela noite, pouco antes de subir para escrever um pouco, fui até a
garagem, pressionei o botão de abertura automática da porta e saí para levar o lixo
até o meio-fio.
Eu estava na metade do caminho quando me dei conta de como estava escuro.
Dando uma olhada rápida na varanda da frente, percebi que a luz externa estava
apagada — ou meu pai havia esquecido de acender depois do jantar (o que quase
nunca acontecia) ou a lâmpada tinha queimado. A lua e as estrelas no céu,
escondidas atrás de uma densa cobertura de nuvens, ofereciam pouca ajuda.
A Hanson Road estava silenciosa e imóvel, de maneira insólita, e o som dos meus
passos… assustadoramente alto. Quando coloquei as duas latas de lixo no meio-fio
para serem recolhidas de manhã cedo, senti que minha nuca se encontrava banhada
de suor frio e eu podia ouvir meu coração batendo. Meu olhar corria de um lado
para outro em meio às sombras.
Então saquei, não sei como nem com tamanha certeza, mas foi o que
aconteceu: o Bicho-Papão estava se escondendo ali perto, me observando.
Em vez de me virar e fugir em direção à porta aberta da garagem — E se ele
entrou escondido enquanto eu estava de costas e agora estivesse me esperando na
escuridão? —, fiquei lá, petrificado de medo, na extremidade da entrada da
garagem, minha mão direita ainda segurando a alça de uma das latas de lixo.
De repente, minha mente retrocedeu para uma história que eu tinha ouvido —
uma história sobre um bom homem, não muito mais novo do que eu naquele
momento, mas consideravelmente mais corajoso.

Eu havia passado o verão antes do meu último ano do ensino médio fazendo
trabalho braçal no Arsenal de Edgewood. O horário era péssimo, mas o local não
era longe de casa e a remuneração era boa. Eu fazia um pouco de tudo — cortava
grama e aparava a vegetação, consertava equipamento quebrado no parque,
asfaltava pequenos buracos… Mas minha tarefa mais memorável naquele verão foi
fragmentar documentos do governo.
Toda manhã, um caminhão encostava e entregava vários paletes com caixas de
papelão contendo milhares de folhas de papel que precisavam ser destruídas. Meu
supervisor — um cavalheiro afro-americano de fala mansa chamado Lonny — e eu
descarregávamos as caixas, empilhando-as na ponta de uma fragmentadora
industrial que parecia muito um triturador de madeira com uma longa porém
estreita esteira que ia dar nos seus famintos dentes de metal.
Depois nos alternávamos alimentando a máquina, um de nós cuidadosamente
espaçando pilhas de documentos em cima da esteira para que os dentes
trituradores não emperrassem e o outro tirando emaranhados de tiras de papel da
caixa de coleta e jogando em caçambas ali perto. O trabalho em si era demorado e
chato. De tempos em tempos, nos deparávamos com algo interessante — as
fotografias em preto e branco de veículos destruídos após várias rodadas de teste
de armas de longo alcance eram as minhas favoritas —, mas, na maior parte
do tempo, era uma rotina maçante e monótona.
Apesar do tédio, no início, Lonny e eu não tínhamos muito a dizer um para
o outro. Éramos ambos naturalmente calados e, na superfície, não podíamos ser
mais diferentes. Eu era um garoto branco e magricela de 17 anos que morava
num subúrbio e estava se preparando para se formar na primavera e partir para
a faculdade. Ele era um pai de família com 30 e poucos anos, musculoso e cheio
de dreadlocks, de uma cidadezinha interiorana no oeste do Texas.
Entretando, certa tarde, tudo isso mudou. Lonny percebeu qual livro eu estava
lendo na hora do almoço. Não me lembro mais exatamente do título, mas o assunto
era a Guerra do Vietnã.
“Você está lendo isso para a escola?”, ele perguntou com aquele seu sotaque
carregado.
“Não, por minha conta mesmo. Leio muitos livros de história.”
“Está aprendendo alguma coisa interessante?”
“Um monte”, eu disse. “Principalmente que aquilo lá foi uma carnificina.
Ainda não acredito que mandaram garotos como eu para lutar naquela selva.
Nem imagino como deve ter sido.”
Então ele olhou para mim, de verdade — depois, quando pensei sobre aquela
conversa, ficou claro que, naquele momento, ele estava decidindo se deveria ou não
contar para mim a sua história.
“Eu estive lá”, Lonny finalmente disse, os olhos baixos.
E era tudo o que precisávamos.
Nas semanas seguintes, ele compartilhou sua história comigo e eu o cravejei
de perguntas. Aprendi sobre armas (por que os soldados americanos preferiam os
AK-47 do inimigo aos próprios fuzis M16), tiroteios (de trinta segundos a cinco
minutos de inferno na terra), racismo em tempos de guerra (como os soldados afro-
americanos quase sempre iam na frente das patrulhas e como sempre acabavam
carregando a pesada metralhadora M60, apelidada de Porco), mas, sobretudo,
aprendi sobre os amigos que ele tinha feito e perdido durante o período de serviço
(ele os chamava de “irmãos”). Foi uma experiência poderosa e emocionante —
para nós dois —, e logo descobri que ele não a havia compartilhado com muitas
pessoas. Senti-me honrado.
De todas as histórias que Lonny me contou naquele verão, uma em especial
sempre se destacou. Ele estava em missão havia menos de uma semana quando
recebeu a ordem de ir para a vanguarda da formação pela primeira vez. Era
totalmente inexperiente e não tinha a menor ideia do que estava fazendo, mas isso
não importava. Era a vez dele. Era um patrulhamento noturno e outra companhia
havia feito contato com o inimigo naquela mesma área poucos dias antes. Depois
de algumas horas, enquanto subia uma trilha íngreme, Lonny levantou o punho,
sinalizando para os homens atrás dele que parassem. Não viu nada à espreita na
selva escura à frente, mas sentiu — com todas as fibras do seu ser, ele sentiu o
inimigo escondido ali perto, observando-os naquele exato momento. A palavra que
ele usou para descrever aquela sensação foi “cabulosa” — depois disse que viria a
ter a mesma sensação várias vezes durante seu tempo no Vietnã, uma espécie de
instinto de sobrevivência — e não fazia ideia de onde ela vinha. Disse que,
agachado naquela trilha escura, sentiu os pelos dos antebraços se eriçarem, o suor
que ensopava sua farda se tornando instantaneamente gelado e um gosto ruim
surgindo na sua boca. O gosto do medo. Trinta segundos mais tarde, ele estava no
meio do seu primeiro tiroteio…

Em pé na entrada da garagem, ainda segurando a tampa da lata de lixo como se


fosse uma âncora de salvação, senti o sabor daquele mesmo medo primordial
inundando minha boca, ameaçando me afogar. Com os olhos vasculhando a
escuridão, eu não conseguia identificar nada fora do comum — mas sabia que havia
algo errado. Tudo à minha volta parecia cabuloso.
Ele estava lá, na escuridão.
Em algum lugar.
Perto.
Não faço ideia de quanto tempo se passou até que uma fileira de carros surgiu
no topo do morro da Hanson Road, iluminando meu retorno frenético para a
garagem e para a segurança da minha casa em seguida. Podem ter sido quarenta e
cinco segundos ou, mais provavelmente, cinco ou dez minutos. Meu cérebro havia
emperrado, parando temporariamente de funcionar.
Eu só sabia o seguinte: nem antes nem depois daquela noite, jamais senti um
medo tão forte a ponto de paralisar completamente minha mente e meu corpo. E
nunca mais soube com tanta certeza de que estava na presença do mal absoluto.
ACIMA: O major Buck Flemings (esquerda) e o detetive Lyle Harper (Foto cortesia de Logan Reynolds)

ACIMA: Moradias militares na Cedar Drive (Foto cortesia do autor)


ACIMA: Escola Primária Cedar Drive (Foto cortesia do autor)
sete

Maddy
“Em meados de agosto, a maioria dos moradores de Edgewood estava
em um estado de total histeria.”

Na manhã de 10 de agosto, eu me encontrava sentado numa cadeira giratória de


barbeiro, cortando o cabelo, ouvindo um monte de velhos ranzinzas — nenhum
deles com menos de 70, inclusive Big Ray, que estava ocupado aparando minhas
costeletas — discutindo sobre a próxima eleição presidencial quando o rádio deu a
notícia: outra garota de Edgewood havia desaparecido.
Seu nome era Madeline Wilcox e ela tinha 18 anos. Maddy, como era
conhecida por parentes e amigos, morava com os pais no final da Hanson Road,
quatro quarteirões a leste da Biblioteca. Bonita e espirituosa, ela se formaria no
Colégio Edgewood na primavera seguinte, mas só se conseguisse ser aprovada nos
dois cursos de verão que estava fazendo: ambos de maquiagem. Até aí, tudo certo
— quando do seu desaparecimento, ela havia tirado B em ambos os cursos. A irmã
mais velha de Maddy, Chrissy, estava passando as primeiras férias da faculdade
trabalhando como salva-vidas em Dewey Beach, ali perto. Maddy estava
planejando visitá-la no fim de semana seguinte.
Mais cedo naquela manhã, como era sua rotina, a sra. Wilcox subiu com um
monte de roupa do porão e, enquanto atravessava o corredor, abriu a porta do quarto
da filha para acordá-la. Para sua surpresa e preocupação imediata, Maddy não
estava lá e parecia que ninguém havia dormido em sua cama.
Na noite anterior, Maddy tinha ido com alguns amigos a uma festa em
Jappatowne, mas a sra. Wilcox dormia cedo e havia ido para a cama às nove e meia,
então não ouviu se a filha havia ou não respeitado o horário-limite de meia-noite.
Seu marido estava viajando a negócios, ficaria fora por três dias, portanto, não
podia ajudar. A sra. Wilcox deu uma olhada no quarto vazio e, de repente, pensou: E
se a Maddy não voltou para casa ontem à noite?
Ela pôs o cesto de roupa sobre a cama e foi até a janela frontal. Olhando para
fora, avistou o Camaro vermelho da filha parado na entrada da garagem.
Imediatamente deu um suspiro de alívio. Obrigada, Senhor, ela chegou sã e salva.
Ao descer a escada, fitou rapidamente o pequeno prato de cristal na mesa da
antessala, procurando as chaves do carro da filha. Não estavam lá. Mais tarde, a sra.
Wilcox disse à polícia que foi naquele momento que uma sensação ruim tomou
conta dela.
Correndo descalça para fora da casa, a sra. Wilcox estava na metade do
gramado quando notou que a porta do Camaro do lado do motorista estava
ligeiramente aberta e a luz interna, acesa. Seu medo cresceu.
Segurando as lágrimas, ela estava prestes a pôr a mão na maçaneta da porta
quando seu pé direito pisou em algo pontiagudo na grama. Ela gritou e olhou para
baixo: era o chaveiro da filha.
Foi então que as lágrimas rolaram livremente e ela voltou correndo para dentro
de casa para ligar para a polícia.

Ao olhar para o rosto de Madeline Wilcox no noticiário vespertino, percebi por


que seu nome parecia tão familiar quando o ouvi pela primeira vez no rádio.
Um velho amigo e companheiro da equipe de lacrosse, Johnny Pullin, tinha
namorado a irmã mais velha dela por uns meses. No início, eu não conseguia me
lembrar do nome nem do rosto da irmã, mas certamente lembrava de Madeline,
e como. Embora eu só a tivesse visto em duas ocasiões, ela havia me causado uma
impressão duradoura.
As duas vezes foram em Rocks, um trecho sinuoso do riacho Deer localizado
no norte do condado de Harford para onde gerações de adolescentes locais fugiam
para beber cerveja, mergulhar pulando da velha ponte ferroviária e descer as
corredeiras em boias infláveis.
Johnny Pullin e eu estávamos com 18 anos naquele verão, portanto Madeline
não tinha mais do que 14. Mas aquilo não a havia intimidado nem um pouco. Jovem
e bonita, falou palavrão como um marinheiro, flertou como a rainha do baile e
gastou onda com aquela sua impetuosidade e sagacidade. Eu até a flagrei
surrupiando cervejas do meu cooler.
Carly tinha feito algumas perguntas rápidas na manhã do desaparecimento e, à
primeira vista, parecia que as coisas não haviam mudado muito nos últimos quatro
anos. Madeline Wilcox era uma estudante abaixo da média e havia se metido em
várias encrencas por fumar nas instalações da escola e matar aula. Na verdade, foi
reprovada no 9o ano por causa de um número excessivo de faltas não justificadas.
Havia, no entanto, várias indicações de que, recentemente, ela andava fazendo
mudanças em seu estilo de vida e finalmente estava entrando nos eixos. Madeline ia
fazer cursos de verão e tinha arrumado um emprego como ajudante três vezes por
semana numa casa de repouso em Bel Air. Os chefes só tinham coisas boas a dizer
do desempenho da garota. Muitos dos vizinhos também a elogiaram, enaltecendo
seu comportamento amistoso e sua consideração. A sra. Peters, uma vizinha idosa
cujo marido morrera de câncer havia pouco tempo, disse que Madeline limpou a
neve da entrada da garagem durante todo o inverno passado sem que ninguém
pedisse e se recusou a aceitar um tostão que fosse quando ela tentou pagar pelo
serviço. Segundo os amigos, Madeline havia recentemente parado de fumar e estava
economizando o dinheiro que costumava gastar em cigarros para comprar um
filhote de golden retriever no final do verão. Planejava chamá-lo de Sawyer.

Após chegar à cena, técnicos forenses começaram imediatamente a trabalhar no


Camaro de Madeline Wilcox, tentando obter impressões digitais e vasculhando o
painel, os assentos e os tapetes em busca de provas. Policiais e detetives
uniformizados bateram de porta em porta ao longo dos dois lados da Hanson Road e
das ruas ao redor. Policiais especializados — acompanhados de duas equipes de
cães — começaram a fazer buscas no bosque que margeava muitos dos jardins nos
fundos das casas naquele trecho da Hanson. O rio Winters Run serpenteava por boa
parte daquela área densamente arborizada, passando, por fim, embaixo da histórica
ponte Ricker’s enquanto seguia sinuoso rumo ao norte, cruzando a Route 24.
Os detetives conversaram por muito tempo com as duas amigas de Madeline
Wilcox que deveriam tê-la acompanhado à festa na noite anterior. Frannie Keele e
Kendall Grant explicaram que as três mudaram de ideia pois estavam cansadas e
decidiram não ir. Em vez disso, passaram a noite na casa de Kendall, a alguns
quarteirões de distância, comendo pizza entregue pela Gus’s e jogando videogame.
Madeline saiu às cinco para a meia-noite para fazer o curto percurso de carro até
sua casa. Segundo as amigas, Maddy demonstrou bom humor a noite toda.
O sr. Wilcox pegou um voo de volta de Nova York uma hora depois do
telefonema da desnorteada esposa. Um vice-xerife estava esperando por ele no
aeroporto de Baltimore para levá-lo em casa. Às 13h20, boletins de notícias
interromperam os episódios de All My Children, The Young and the Restless e Days
of Our Lives para dezenas de milhares de espectadores locais.
O sr. e a sra. Wilcox estavam lado a lado na varanda da casa. O detetive Lyle
Harper estava atrás deles, com uma expressão adequadamente soturna. A sra.
Wilcox, soluçando, olhava diretamente para a câmera e suplicava a quem havia
levado sua filha que a devolvesse ilesa.
“A Maddy é uma garota muito meiga”, a mãe falou, lágrimas escorrendo por
seu rosto trêmulo. “Ela é tudo para a nossa família. Por favor, deixe a Maddy voltar
para casa.”
O sr. Wilcox, impassível, pôs uma mão firme no ombro da esposa, mas não
disse uma palavra.
Quando terminaram, três das quatro redes voltaram à programação normal,
mas a equipe de jornalismo do Channel 13 continuou no ar, primeiro entrevistando
Frannie Keele e Kendall Grant, e depois fechando com um vizinho da mesma rua.
Não demorou muito para alguém criar um cartaz com VOCÊ VIU ESTA GAROTA? e
a foto de Madeline, uma breve descrição (1,65 m, 55 kg, loira, olhos verdes,
pequena cicatriz acima do olho esquerdo, tatuagem de borboleta no tornozelo
direito), além de informações de contato do Departamento de Polícia do Condado
de Harford. No jantar, praticamente todas as lojas em Edgewood tinham pelo menos
um cartaz preso na porta de entrada ou na vitrine.
Naquela noite, Kara e eu nos unimos a um grupo de trinta ou quarenta
voluntários civis para uma busca numa área de bosque paralela à boa parte da Perry
Avenue, a rua de cima. Também surgiram planos para vasculhar os campos de
beisebol e os bosques atrás das três escolas na Willoughby Beach Road na manhã
seguinte. Eu havia convencido meu pai a não ir conosco — a última coisa que ele
precisava era pedir um dia de folga no trabalho e caminhar no meio de hera
venenosa conosco —, mas vi vários outros conhecidos do bairro. O sr. Vargas
estava lá com muitos dos pais da Bayberry Court; o treinador Parks com a esposa;
Carly Albright e a mãe, ambas usando coletes cor de laranja fosforescentes como se
estivéssemos no meio da temporada de cervos; a sra. Tannenbaum, da recepção
da Biblioteca de Edgewood; Jim Solomon, do posto Texaco; e um trio de colegas da
equipe de luta greco-romana da escola: Len Stiller, Frank Hapney e Josh Gallagher.
Várias vezes durante as buscas, lancei olhares de esguelha para Josh. Eu não
conseguia imaginar a coragem necessária para que ele estivesse ali com todos nós.
Kara, ao contrário de mim, fez questão de ir até ele, dizer oi e perguntar sobre seus
pais. Eu o deixei na dele e continuei a vasculhar os arbustos.
O sol logo se pôs e, após quase três horas no bosque, ficou escuro demais para
enxergar alguma coisa, então desistimos. Pelo que sei, nenhum dos participantes das
buscas encontrou nada que tivesse alguma ligação, por mais remota que fosse, com
o desaparecimento de Madeline Wilcox. Os únicos momentos emocionantes foram
quando Jim Solomon descobriu uma caixa novinha em folha de projéteis calibre .22
que algum moleque devia ter deixado cair uma semana antes e quando Frank
Hapney chutou sem querer um ninho de vespas e foi picado meia dúzia de vezes
nos braços e pernas.
Foi nas buscas da manhã seguinte que vários boatos começaram a se espalhar.
O primeiro e menos palatável era de que Madeline Wilcox estava tendo um caso
com um homem casado e o relacionamento ilícito levara ao seu desaparecimento.
Eu nunca soube se as pessoas acreditavam que ela havia sido supostamente raptada
pelo marido infiel ou pela esposa furiosa.
A teoria mais popular que circulou naquele dia dizia respeito à suspeita
crescente de que Madeline Wilcox talvez tivesse simplesmente fugido de casa.
Obviamente ela já havia feito aquilo várias vezes — uma vez, chegando até a
Carolina do Norte —, e muitas pessoas da cidade estavam convencidas de que era o
que havia acontecido novamente.
“Pense bem, Chiz”, começou Kurt Reynolds enquanto alguns de nós
atravessavam com dificuldade um campo aberto, formando uma longa corrente
humana com uma distância de um metro e meio a dois entre cada pessoa. “O Bicho-
Papão mata as vítimas e coloca elas em pose para que alguém rapidamente
encontre. Não é o que está acontecendo. Já se passaram umas trinta e seis horas.”
Kurt havia se formado um ano antes de mim e nunca foi o mais brilhante do
grupo. Jimmy Cavanaugh certa vez vendeu a ele um saquinho de aparas de lápis por
dez pratas e Kurt enrolou e fumou. Ele havia se tornado bombeiro voluntário e toda
a sua equipe estava participando das buscas. Kara não conseguiu ir por causa da
faculdade, então tive que ficar ao lado dele a manhã inteira. Eu amava Kara mais do
que minha própria vida, mas, naquele momento, a culpa pela minha furiosa dor de
cabeça era exclusivamente dela.
“Então por que será que ainda não encontramos o corpo?”, perguntei, baixando
a voz.
“Bem, a questão é exatamente essa. O Bicho-Papão quer que a gente encontre
os corpos. Por que ele começaria a esconder eles agora?”, Kurt questionou e
balançou vigorosamente aquela sua cabeça em formato estranho. “Ã-ã. Se estivesse
morta, a essa altura a gente já teria achado o corpo. Ela provavelmente tá sentada
em alguma praia por aí com uma gelada numa mão e um baseadão na outra.”
É claro que eu discordava da análise criminalística especializada do meu velho
amigo, mas fiquei na minha. Eu sabia que não adiantava discutir com aquele
bobalhão. Pouco depois, quando surgiu uma oportunidade, fingi ficar para trás do
grupo e, de fininho, fui mais para trás da fila. Em vez de um metro e meio ou dois,
agora eram uns dez metros que nos separavam e graças a Deus eu não ouvia uma
palavra do que ele dizia. Milagrosamente, em meia hora, minha dor de cabeça havia
passado.
O namorado de Madeline Wilcox devia estar ouvindo os mesmos boatos
escandalosos circulando sobre o desaparecimento. Boa-pinta e bem articulado, foi
entrevistado naquela noite, no noticiário das 18h do Channel 11. Estava irritado
demais.
“Já é pra lá de ridículo que tenha gente pensando algo do gênero, quanto mais
falando abertamente a respeito. Não apenas ridículo, mas difamatório. Todas as
nossas energias, ferramentas e recursos, tanto da polícia quanto da comunidade,
devem estar focados em achar a Maddy”, disse, apertando os olhos azuis para a
câmera. “Juro pra vocês que ela não sumiu por vontade própria. Não escolheu ir
embora. Ela estava empolgada para voltar à escola e se formar, e mais empolgada
ainda para fazer o vestibular. Outro dia, até fizemos planos para ir visitar a irmã
dela na praia…”
Antes do intervalo comercial, uma rápida tomada apareceu na tela mostrando
um grupo de buscas saindo do bosque atrás do colégio. O âncora do Channel 11
confirmou o que eu já supunha: apesar do grande número de pessoas, nenhuma das
buscas daquele dia havia conseguido descobrir algo interessante. Olhando para o
televisor, reconheci o passo desequilibrado de Kurt Reynolds na frente do grupo.
Parecia um dos zumbis desengonçados de George Romero em A Noite dos Mortos-
Vivos. À sua esquerda estava Danny Earnshaw, um dos velhos colegas de turma da
minha irmã Nancy. Agora ele comandava um conceituado escritório de advocacia
na Route 40. Depois identifiquei meu velho boné de beisebol e minha camiseta
cinza de Além da Imaginação no meio da multidão, e, pouco atrás de mim… uma
surpresa. Olhei duas vezes e me aproximei da tela do televisor para confirmar o que
eu estava vendo: caminhando com passo veloz, quase me alcançando, estava o sr.
Gallagher. Ele carregava um longo cajado, e um chapéu cor de laranja berrante —
um daqueles brindes que são distribuídos nos jogos dos Orioles — cobria sua
cabeça. Olhei para ele, me perguntando como havíamos conseguido não nos cruzar
durante as buscas até que um bebê chorão em um comercial da Pampers surgiu na
tela.
4

Dois pescadores locais descobriram o cadáver de Madeline Wilcox embaixo da


ponte Ricker’s aproximadamente às 8h23 de sexta-feira, 12 de agosto —
exatamente quarente e oito horas após ela ter sido dada como desaparecida.
Ao se aproximarem do local onde costumavam pescar, os dois acharam,
de início, que tinham se deparado com uma sem-teto adormecida ou talvez uma
universitária embriagada e desmaiada. Eles encontravam frequentemente resquícios
de farras sob a ponte — latas e garrafas de cerveja vazias, guimbas de cigarros; vez
por outra, uma camisinha usada — e acharam que a mulher provavelmente estivesse
dormindo depois de uma noitada particularmente animada. Ela estava encostada na
velha fundação de pedras, as longas pernas esticadas à sua frente e as mãos
apoiadas pacificamente sobre a barriga. Então, ao se aproximarem, os homens
perceberam que não se tratava de uma mulher, mas de uma adolescente. Ela estava
com os olhos esbugalhados, o pescoço inchado e ferido, e nua da cintura para baixo.
Não parecia estar respirando. Foi então que eles saíram correndo para pedir ajuda.
Embora a mídia só tenha podido revelar muitos dos detalhes oficiais nas
notícias do dia seguinte — àquela altura, a maioria dos membros do departamento
de polícia não estava a fim de cooperar com os jornalistas, locais ou não —, isso
não fez diferença. A novidade se espalhou como fogo pelas ruas de Edgewood.
Madeline Wilcox havia sido espancada, estuprada e estrangulada até a morte.
Os investigadores encontraram três marcas profundas de dentadas em um dos seios
e no torso. Como já havia acontecido com Natasha Gallagher e Kacey Robinson,
a orelha esquerda tinha sido decepada e o corpo colocado em pose após a morte.
Mais uma vez, nenhum sinal da orelha cortada na cena do crime. Marcas vermelhas
circundavam seus pulsos e tornozelos, evidências de amarras que foram removidas.
O assassino havia escondido, molestado e torturado Madeline Wilcox a seu bel-
prazer e, depois de saciado, livrou-se do corpo.
Para piorar as coisas — se é que isso era possível —, os policiais tiveram então
a certeza de que o assassino estava brincando com eles. A área em torno da
Ricker’s, inclusive a parte escura embaixo do arco de pedra, havia sido
minuciosamente vasculhada pelas autoridades em duas ocasiões diferentes.
A primeira na manhã do desaparecimento de Madeline, poucas horas depois do
angustiado telefonema da mãe para o 190. A segunda na tarde seguinte, quando
quase duas dúzias de cadetes foram trazidos da academia de polícia no Centro de
Baltimore para ajudar nas buscas.
Em ambas as ocasiões, a área havia sido considerada limpa, o que só podia
significar uma coisa. A certa altura, o assassino tinha dobrado a aposta e desovado o
corpo de propósito embaixo da ponte para mandar uma mensagem muito clara à
polícia: Estou de olho em cada um dos seus passos e sou mais esperto do que todos
vocês.

Depois da morte de Madeline Wilcox, os agentes das forças de segurança


passaram a revelar cada vez menos informação. Não podendo mais negar o óbvio,
reconheceram em definitivo o que três assassinatos no espaço de sessenta dias
significava: havia um serial killer em Edgewood. E, em vez de estar fechando o
cerco em torno do psicopata, eles estavam ficando para trás a cada dia que passava.
E, agora, o Bicho-Papão ria e zombava deles.
Até aquele momento, Carly não tinha conseguido descobrir se o criminoso
havia deixado para trás algo que envolvesse números. Suas fontes mais próximas
afirmavam que haviam sido preteridas pelas fontes mais próximas delas. Eu havia
cruzado com o detetive Harper no estacionamento do McDonald’s alguns dias
antes, mas ele praticamente grunhiu para mim quando eu disse oi. De qualquer
forma, eu não podia simplesmente chegar para ele e perguntar. Harper não fazia
ideia de que eu estava a par da amarelinha e do cartaz sobre o cão desaparecido,
e certamente ficaria furioso se viesse a saber.
Finalmente, depois de oito longos dias da descoberta do cadáver de Madeline
Wilcox, uma rachadura surgiu na muralha que guarda os segredos da polícia,
e Carly obteve o furo de reportagem que estávamos esperando.
Cada quadrado da misteriosa amarelinha descoberta após o primeiro
assassinato continha o número 3. Após o segundo, o número que aparecia com
maior frequência, e em sequência, no cartaz sobre o cão desaparecido era o 4.
Daquela vez, durante a realização da autópsia, o legista havia descoberto algo
peculiar depositado no fundo da garganta de Madeline Wilcox: cinco moedas de um
centavo.

6
Mais para o final daquela semana, parei no 7-Eleven para um lanche rápido
quando voltava da Biblioteca para casa. Os cachorros-quentes com chili estavam
em oferta — dois por US$ 1,99, incluindo um refrigerante pequeno de máquina.
Almoço econômico, como meu pai costuma dizer.
Na calçada em frente, cruzei com Parker Sanders, um velho amigo que estava
dois anos abaixo de mim no colégio. Ele estava saindo com um Big Gulp de refri
em uma mão e um saquinho de M&M’s na outra.
“Alimentação saudável, pelo que estou vendo.”
“Fazer o quê”, ele disse. “Eu soube que vocês voltaram a jogar basquete
na escola.”
“Aparece lá.”
“Diz pro Pruitt me chamar da próxima vez que vocês forem jogar. Ele ainda
tem meu telefone”, e, acenando, entrou no carro.
Pode esperar sentado, pensei ironicamente, observando-o sair com o carro.
Jeff Pruitt não suportava o cara.
Com a barriga roncando, virei-me para entrar na loja e dei um encontrão num
homem que estava segurando a porta para um cliente de saída.
“Desculpe”, pedi, recuando para abrir espaço. “Acabei me distraindo e…”
“Tranquilo, tudo bem”, ele disse, continuando rumo ao estacionamento.
Minha boca ficou imediatamente seca. Fiquei lá parado, petrificado, com medo
de me virar e olhar. Eu só havia ouvido a voz do homem misterioso ao telefone uma
vez e, ainda por cima, ele só havia dito quatro palavras — Que que foi rápido? —,
mas tinha quase certeza de que acabara de ouvi-la pela segunda vez.
Finalmente vencendo minha paralisia, entrei na loja e esperei até ouvir a
pesada porta de vidro se fechar atrás de mim, depois arrisquei-me a olhar por cima
do ombro. O homem parecia ter uns 35 anos, era alto e corpulento, cabelos escuros
e curtos escondidos embaixo de um boné de beisebol desbotado do Atlanta Braves.
Estava sentado atrás do volante de um Fusca amarelo e havia colocado óculos
escuros. Não dava para saber se estava olhando para mim ou não. Um instante
depois, deu ré e foi embora.
Eu deveria segui-lo. Ver onde ele mora.
Mas minhas pernas não se mexiam.
Meu apetite sumiu, comprei um Snickers e uma caixinha de leite achocolatado
e fui para casa.

7
Em meados de agosto, a maioria dos moradores de Edgewood estava em um
estado de total histeria. As vendas de armas voltaram a disparar e, após uma trégua
em julho, havia novamente uma longa lista de espera para a instalação de sistemas
de segurança doméstica. O Hair Cuttery no shopping e os salões de beleza locais só
tinham horários disponíveis para final de setembro — a mídia fez questão de deixar
bem claro que todas as três vítimas do Bicho-Papão tinham longas e sedosas
madeixas, o que fez mulheres de todas as idades correrem para cortar os cabelos
bem curtos. Quase da noite para o dia, pelo menos dentro dos aconchegantes limites
do condado de Harford, os cortes à Joana d’Arc e Dorothy Hamill dos anos 70
voltaram a ser uma febre.
E tinha também aquele grupo de pessoas — cujo número parecia aumentar a
cada dia — que dizia que armas e sistemas de segurança não ajudavam em nada
quando se tratava de deter o Bicho-Papão. Citando a natureza horrenda dos
assassinatos, além da desconcertante falta de indícios, um pequeno, mas barulhento,
grupo de moradores estava convencido de que o assassino em série não era um ser
humano, mas algum tipo de criatura sobrenatural.
“Senão, como você explicaria tudo isso?”, um cavalheiro de olhos arregalados
disse ao vivo para um repórter do Channel 2. “Essas garotas estão sendo raptadas
bem debaixo do nariz dos pais, na segurança de suas casas e bairros, mutiladas e
assassinadas brutalmente e depois devolvidas para que todos vejam. Nenhum ser
humano é capaz de fazer esses truques. Isso não é coisa deste mundo.”
Na tarde seguinte, uma mulher usando um roupão atoalhado cor de rosa e
bobes nos cabelos — “que coisa mais ridícula”, minha mãe comentou ao meu lado
— disse a uma equipe do noticiário do Channel 13 que algo havia ativado o
holofote do detector de movimento no jardim dos fundos da sua casa na noite
anterior. Quando ela correu para a janela do quarto no andar de cima, viu um vulto
escuro atravessando o gramado. A mulher afirmava que o vulto tinha pelo menos
dois metros e dez e um único chifre pontudo que saía do centro da sua testa
inclinada e, quando chegou à grade que cercava o jardim, simplesmente alçou voo e
desapareceu no céu noturno. O marido dela, é claro, estava dormindo na hora e não
viu nada.
Ao assistir àquelas histórias sensacionalistas — e muitas outras do tipo —
sendo transmitidas diariamente na televisão, eu não podia deixar de pensar: São
iguaizinhas a cenas de um filme de terror… só que, desta vez, são absolutamente
reais.
Na manhã seguinte, Carly ligou e me pediu para ir até o jornal. Um vídeo não
exibido de um noticiário do Channel 11 andava circulando por lá e ela queria que eu
desse uma olhada. Quando cheguei, ela me acompanhou até a área de convivência,
onde havia um televisor e um videocassete em cima de uma escrivaninha de
madeira que já tinha conhecido dias melhores. A sala cheirava a café, perfume e
cigarro. Carly apertou play e um rosto conhecido surgiu na tela: Blanche Waters,
uma senhora afro-americana que morava na esquina da rua dos meus pais. Dos 12
até ir para a faculdade, cortei grama e limpei a neve da entrada da garagem dela.
Apoiada numa bengala, parecia uma criança ao lado do repórter.
“Meu avô costumava contar a história de Henry Lee Jones, um escravo
fugitivo que havia feito um pacto com o diabo. Em troca da ajuda para que Henry e
a família fugissem para o norte, o diabo exigiu que Henry matasse a filha de 10
anos do dono da fazenda, uma menina de índole meiga que nunca havia feito mal a
ninguém.”
A sra. Waters espirrou e continuou por muito tempo a assoar ruidosamente o
nariz num lenço embolado. Quando terminou, inspecionou cuidadosamente o lenço
e, em seguida, enfiou-o de volta no bolso da blusa sem cerimônia. Segurando o
microfone, o repórter olhou para a câmera e ergueu suas bastas sobrancelhas com ar
de quem estava se divertindo. A velha continuou:
“Henry Lee cumpriu sua parte do pacto naquela mesma noite, estrangulando a
menina na caminha dela, mas acabou descobrindo que o diabo o tinha ludibriado.
Ora, ele manteve a primeira parte da promessa; ajudou Henry e a família a fugir
sãos e salvos. Mas, depois, passou a perna nele, amaldiçoando Henry Lee com a
vida eterna e uma sede insaciável por garotas brancas e inocentes. Pouco depois,
a mulher de Henry pegou os dois filhos e fugiu no meio da noite, e nunca mais
ninguém teve notícia deles. Reza a lenda que Henry Lee Jones ainda anda por aí,
possuído pela ira odiosa do satanás, vagando pelos campos e estrangulando garotas.
Já faz tempo que meu avô está sete palmos embaixo da terra, que Deus o tenha e
proteja sua alma, mas eu acredito que ele estava dizendo a verdade”, no que ela se
vira e olha diretamente para a câmera. “Henry Lee Jones veio para Edgewood e está
com fome. Senão, como é que você explica três garotas brancas mortas com tantas
negras e hispânicas morando aqui?”
Àquela altura, a gravação terminava.
“Misericórdia”, falei, olhando para Carly.
“Já pensou se eles tivessem colocado isso no noticiário da noite?”
Balancei a cabeça.
“Na verdade, estou surpreso que não tenham feito.”
“Eu também.”
“Ainda bem que meus pais nunca vão ver isso. Eles adoram a sra. Waters.
Poxa, eu também. Eu conheço ela desde pequeno”, suspirei. “Ou melhor, achava
que conhecia.”
Carly pegou o controle remoto e desligou a tevê.
“Acho que logo, logo vamos descobrir que não conhecemos muito esta
cidade.”

Nos dias após a morte de Madeline Wilcox, a imprensa nacional invadiu


Edgewood com toda a força, equipes chegavam de lugares distantes como Flórida,
Chicago, Boston e Canadá. Não era incomum dar uma volta de carro à tarde e ver
moradores em um lado da rua conversando com uma equipe de cinegrafistas e, do
outro lado, sendo interrogados por detetives da polícia. Helicópteros das forças de
segurança e dos veículos de comunicação circulando no céu logo se tornaram parte
do cotidiano.
Pais de cidades vizinhas no condado de Harford não tinham
escrúpulo — moral ou de qualquer outro tipo — de proibir seus filhos de pôr os pés
em Edgewood, especialmente à noite, indicando os assassinatos como prova
irrefutável de que “a cidade é um perigoso antro de pecado e degradação, habitada
por viciados em drogas sem instrução e de baixa renda”. Essas palavras pungentes
saíram dos lábios vermelhos de uma mulher de cabelos armados chamada Kemper
Billington, que, por acaso, era a vice-presidente da Associação de Pais e Mestres do
Colégio Fallston, durante uma entrevista ao vivo com uma equipe de reportagem do
Channel 11. Jogando gasolina na fogueira, o The Aegis publicou um editorial
particularmente ofensivo a respeito dos custos galopantes da investigação policial,
provocando o envio de mais de uma dúzia de cartas iradas ao editor — inclusive
uma da funcionária do The Aegis Carly Albright — e um monte de cancelamentos
de assinaturas.
O ciclo de fofocas continuava inalterado. Como depois dos dois primeiros
assassinatos, boatos voltaram a circular com força total pela cidade, o mais
extravagante envolvia uma teoria de que havia um culto satânico operando
clandestinamente na sociedade do condado de Harford. Histórias de vacas e cães
sendo abatidos de maneira misteriosa e brutal tomavam conta das conversas tarde
da noite, bem como uma história particularmente macabra sobre um suposto
incidente de profanação de sepultura que teria acontecido no cemitério de
Edgewood no início daquele verão. Os assassinatos das três jovens de Edgewood
estavam sendo atribuídos a uma nova onda de ritos iniciáticos para o Alto Conselho
Satânico do culto. Supostos membros do conselho incluíam o chefe de polícia,
o vice-diretor da Escola Ginasial de Edgewood e a rica mãe adotiva da capitã da
equipe de cheerleaders. Um telefonema anônimo tarde da noite para o disque-
denúncia informou à polícia onde podia ser encontrado um altar improvisado no
meio do bosque atrás do shopping. Uma equipe de detetives foi verificar e ficou
bem decepcionada.
Outra fofoca que logo se espalhou dizia que a polícia estava procurando dois
homens que trabalhavam em conjunto. Uma equipe de serial killers trabalhando
juntos parecia a explicação mais plausível para o fato de as garotas terem sido pegas
em locais tão conhecidos sem que pista alguma fosse deixada para trás. Um homem
invadiu o quarto de Natasha Gallagher, deixou-a inconsciente e a entregou pela
janela para uma segunda pessoa. Um homem distraiu Kacey Robinson e Madeline
Wilcox enquanto um cúmplice se aproximou e as deixou inconscientes com uma
pancada.
Segundo Carly Albright, nenhuma das histórias tinha muita credibilidade. Pelo
que ela sabia, os investigadores ainda estavam procurando um só assassino,
acreditando fortemente que os modi operandi dos três assassinatos eram idênticos e
disciplinados demais para que fossem o trabalho de vários criminosos.
Carly explicou que uma tendência interessante estava começando a surgir em
Edgewood: assim como o pânico satânico e a teoria dos assassinos múltiplos
podiam ser atribuídos ao recente aumento das fofocas — em algum momento,
a suspeita começou a substituir a precaução —, aquele novo padrão de
comportamento também podia. Nos dias após a morte de Madeline Wilcox, houve
uma disparada repentina no número de discussões e brigas envolvendo os
moradores locais. Línguas soltas e injúrias movidas a álcool ocasionavam
confrontos em estacionamentos e jardins. Gozações se tornavam sérias e, depois,
violentas. Velhas rixas se reacendiam e novas começavam. Uma epidemia de
acusações falsas eclodiu e foi necessária uma advertência oficial da polícia para
atenuá-la. O disque-denúncia recebia chamadas num ritmo recorde, mas a maioria
era sobre bobagens triviais e as forças de segurança estavam pensando até em
desativar tudo aquilo.
Eu havia testemunhado pessoalmente essa nova dinâmica durante uma das
minhas infrequentes corridas matinais. Ao percorrer a Perry Avenue, me deparei
com um grupo de crianças com bicicletas e skates. No meio de uma espécie de
círculo, dois moleques estavam brigando. Não tinham mais do que 11 anos. Corri
até lá e separei a briga.
“Eu sei quem são os pais de vocês”, menti. “Agora tratem de apertar as mãos e
fazer as pazes, senão vou contar para eles o que acabei de ver.”
“Não vou apertar a mão desse babaca”, rosnou o mais novo dos dois.
“Por que não?”, perguntei.
“Ele tá dizendo pra todo mundo que meu pai é o Bicho-Papão.”
E, depois, veio o toque de recolher. A partir de segunda-feira, 15 de agosto, por
ordem do Departamento de Polícia do Condado de Harford, todos os moradores de
Edgewood deveriam estar dentro de casa até as 22h. Exceções foram abertas para
trabalhadores de turnos noturnos, profissionais de saúde e pessoal de empresas de
segurança. Todos os postos de gasolina, restaurantes e bares deviam fechar mais
cedo e, surpreendentemente, os donos fizeram poucas reclamações.
Quando o corpo de Madeline foi liberado pelo instituto médico-legal, a família
Wilcox optou por uma cerimônia privada numa pequena igreja da zona leste, o que
me deixou grato e aliviado. Depois de falar com alguns colegas e vizinhos, percebi
que era bastante óbvio que a maioria das pessoas teve a mesma reação que eu —
velórios demais já haviam acontecido em Edgewood naquele verão.
Apesar da agitação que tomava conta do resto da cidade, o 920 Hanson Road
continuava a ser um porto seguro. Embora tivesse reagido à morte de Madeline com
previsíveis episódios de tristeza e reflexão, minha mãe também ficou
surpreendentemente calma diante da situação. Certa noite, após o jantar, ela me
disse que estava fazendo todo o possível para permanecer confiante e otimista,
mandando empadões, cookies e brownies para a delegacia para ajudar a alimentar
os agentes que estavam fazendo hora extra, e rezando com fervor sempre que
possível. Ela acreditava piamente que tudo estava nas mãos de Deus e, embora não
externasse, acho que, fosse por qual motivo fosse, também acreditava que não
haveria mais assassinatos.
Meu pai não tinha tanta certeza. Ele me acordou cedo num domingo e me
pediu para ajudá-lo a instalar trancas novas na porta do porão e na dos fundos da
garagem.
Mesmo assim, na maioria das noites, nós três conversávamos, ríamos e
jantávamos juntos, e eu ia para a cama agradecendo a bênção de duas pessoas tão
gentis terem se encontrado neste mundo e por eu poder fazer parte da vida delas.
Com o passar do mês, achei que os dias cansativos e a pressão do trabalho
estavam finalmente afetando Carly. Ela tinha ficado a semana inteira de mau humor
e não me deu muito papo ao telefone. Acabei perguntando se ela precisava dar um
tempo nas nossas ligações e, mais em geral, na história do Bicho-Papão como um
todo. Para minha surpresa, ela começou a chorar, baixando a guarda e pondo tudo
para fora.
Mais cedo naquela semana, enquanto trabalhava numa matéria em seu quarto,
ela ouviu algo lá fora. Quando se levantou e correu para a janela, teve quase certeza
de ter visto um vulto que corria na escuridão. No dia seguinte, enquanto circulava
na cidade a trabalho, começou a ter uma sensação estranha, como se alguém a
estivesse seguindo. Naquela noite, começaram os pesadelos. Bem assustadores.
Naquela semana, mal havia conseguido dormir, e o estresse e a exaustão a estavam
afetando. Ela se desculpou, mas eu disse que não era necessário e que compreendia
perfeitamente. O que eu não disse era que eu estava tendo sensações de paranoia e
pesadelos semelhantes.

Na tarde de sexta-feira, 19 de agosto, o detetive Lyle Harper e o major Buck


Flemings do Departamento de Polícia do Condado de Harford organizaram juntos
uma coletiva de imprensa nos degraus do tribunal. Mais de trinta e cinco veículos
de comunicação de todo o país participaram. O major Flemings falou primeiro,
anunciando a formação de uma nova força-tarefa composta por membros da guarda
municipal, do departamento de polícia e do FBI. O detetive Harper chefiaria a
força-tarefa e, quando ele foi ao púlpito logo em seguida, notei imediatamente
como estava abatido e havia emagrecido. Não pude deixar de pensar na esposa em
casa e nos três filhos espalhados pelo Estado, e torci que estivessem ao seu lado
para lhe dar apoio. Ele parecia estar precisando.
A fala de Harper foi breve, encerrada com a promessa, pronunciada com um ar
sombrio, de que a força-tarefa estava “trabalhando sem interrupção para pôr fim
àqueles assassinatos insanos em Edgewood”.
Quando ele terminou, olhei para a minha mãe no sofá, me preparando para
outra rodada de críticas direcionadas ao detetive. Apesar do meu aval, ela ainda
desconfiava dele.
Em vez disso, eu a vi cabisbaixa, de olhos fechados, com os lábios se mexendo
silenciosamente, apertando o rosário entre as mãos.
ACIMA: Madeline Wilcox (Foto cortesia de Frannie Keele)
ACIMA: Entrada da garagem de Madeline Wilcox isolada como cena de crime (Foto cortesia de Logan
Reynolds)
ACIMA: Cartaz VOCÊ VIU ESTA GAROTA? (Foto cortesia do autor)
ACIMA: Madeline Wilcox
(Foto cortesia de Frannie Keele)
ACIMA: Policiais e moradores vasculhando uma área perto da Hanson Road (Foto cortesia do The
Aegis)
ACIMA: Policiais e moradores vasculhando a margem do bosque (Foto cortesia do The Aegis)
ACIMA: Detetives examinando a cena do crime na ponte Ricker’s (Foto cortesia do The Baltimore Sun)
oito

O Bicho-Papão
“Se não era o Bicho-Papão na sua janela, então quem era?”

Curioso como sempre e incapaz de obter muita informação na Encyclopedia


Britannica lá de casa, visitei a Biblioteca ainda naquela semana e pesquisei as
origens do Bicho-Papão.
Embora muitos livros e revistas sobre folclore e criaturas sobrenaturais tenham
fornecido detalhes valiosos, a maioria das minhas anotações saiu de um único
volume: Monsters and Myths, de Robert Carruthers Jr.; Lemming Publications;
Nova York, Nova York; 1974.
A seguir, um pequeno resumo:
Escrito com várias grafias diferentes na língua inglesa, dentre as quais
bogeyman, bogyman e bogieman, o Boogeyman — ou Bicho-Papão — é uma
criatura mítica usada mais comumente por adultos para assustar crianças a fim de
que elas se comportem bem/sejam obedientes: ou seja, a personificação do medo.
Considera-se que os duendes, descritos na Inglaterra no século 16, são a primeira
referência conhecida a um “Bogeyman”. A palavra “bogey” deriva do inglês
medieval “bogge/bugge”, que significa “algo assustador” ou “espantalho”. Pode ter
sido influenciada pelo termo do inglês arcaico “bugbear” — “bug” quer dizer
“trasgo” ou “espantalho”, e “bear” representa um demônio malvado com forma de
urso que come criancinhas. Embora a descrição do Bicho-Papão costume variar ao
redor do mundo, existem muitas características comuns, dentre as quais garras,
olhos vermelhos e dentes pontiagudos. Alguns até são descritos como chifrudos e
cascudos. Criaturas semelhantes ao Bicho-Papão são quase universais, comuns no
folclore de quase todos os países. Homem do Saco, El Coco, Babau, Buba, Bagu e
Babaroga são apenas alguns dos nomes a elas atribuídos.

Na sexta-feira, 9 de setembro, a polícia obteve a tão esperada novidade.


Annie Riggs, 17 anos, era uma das melhores alunas do Colégio Edgewood.
Representante da turma de formandos, Annie só tirava 10 em todas as matérias e era
capitã das equipes de hóquei sobre grama e lacrosse. Tinha um sorriso aberto e
contagiante e um coração maior ainda. Modesta e autoirônica, Annie era querida
tanto pelos alunos como pelos professores.
A tarde daquela sexta-feira marcava o final da primeira semana do ensino
médio — com apenas quatro dias úteis graças ao feriado do Dia do Trabalho na
segunda-feira —, bem como a primeira semana inteira de treino de hóquei sobre
grama. Annie ficou até mais tarde depois do treino da sexta para falar com os
técnicos e auxiliares sobre uma nova tática defensiva e sobre o amistoso que
aconteceria na tarde da segunda. Aproximadamente às 19h15, ela saiu da escola e
foi andando para casa. Pouco depois, em um trecho tranquilo da Sequoia Drive, um
agressor mascarado a atacou por trás. Seguiu-se um embate e ela conseguiu se
libertar e correr até uma casa próxima em busca de socorro.
Apesar da presença de dezenas de repórteres na cidade, a notícia da tentativa
de rapto não vazou, só foi ao ar na manhã seguinte. Por uma vez na vida, os
familiares e envolvidos ficaram de boca fechada.
Na segunda-feira, 12 de setembro, Carly Albright obteve uma cópia do
depoimento policial escrito à mão por Annie Riggs, aqui reproduzido integralmente
pela primeira vez:

Eu era a última no vestiário depois do treino porque fiquei até mais tarde.
Geralmente pego carona com uma amiga ou com um dos meus pais para
ir pra casa, mas minhas colegas de time já tinham ido embora fazia
tempo e meus pais estavam num jantar de trabalho. Pus a blusa do
agasalho, meu relógio e meu colar e peguei minha mochila no armário.
Foi aí que percebi que já estava supertarde. Saí da escola pela porta
lateral do ginásio. Ao sair, vi o sr. Harris e disse que nos veríamos na
segunda-feira. Eu sabia que ia chover, afinal dava para ouvir trovões,
mas, mesmo depois de olhar para o relógio, fiquei surpresa com a
escuridão. Lá fora, parecia uma cidade-fantasma. O estacionamento
estava praticamente vazio e não vi mais ninguém quando atravessei a
Willoughby Beach Road. Mais à frente, um casal de idosos estava
entrando no carro na frente da igreja, mas só isso. Quando cheguei à
Sequoia Road, estava trovejando e relampejando pra valer. Um Jeep
branco virou a esquina mais à frente e desacelerou; por um instante,
achei que fosse minha amiga Lori Anderson parando para me dar uma
carona. Mas não era ela e a pessoa simplesmente seguiu em frente. Olhei
por cima do ombro e vi o Jeep se afastando, foi então que tive uma
sensação estranha, como se alguém estivesse me seguindo. Então
comecei a ouvir coisas. Passos atrás de mim na calçada. O galho de uma
árvore se partindo como se tivesse sido pisado. Mas, toda vez que eu
olhava à minha volta, não havia ninguém. A essa altura, achei que só
estava sendo paranoica e me senti meio boba, mas isso não me impediu
de andar um pouco mais depressa. (Agora há pouco, o detetive altão —
não me lembro o nome dele — me perguntou se eu tinha sentido algo
estranho ou incomum nos últimos meses e eu disse que não. Mas, agora,
lembrei que não é verdade. Outro dia, pouco antes do início das aulas,
eu estava praticando hóquei com umas amigas na escola e tive a mesma
sensação estranha de quando eu estava andando de volta para casa.
Como se alguém estivesse me seguindo. Mas foi no meio de um dia
ensolarado, então não fiquei com medo nem senti perigo algum.
Na verdade, eu tinha me esquecido disso até agora.) Enfim, àquela
altura, eu havia chegado ao trecho da Sequoia sem casas nem postes de
iluminação, onde só tem o que restou daquela velha oficina e todas
aquelas árvores e arbustos grandes. A ventania estava começando a
aumentar e a temperatura estava caindo depressa. Achei que tivesse
ouvido passos novamente, então olhei por cima do ombro mais uma vez.
A mesma coisa. Ninguém. Eu estava começando a me sentir uma idiota.
Estava a um quarteirão e meio de casa e disse a mim mesma que não ia
mais olhar. Seja lá o que acontecesse. Eu não era uma garotinha de 10
anos. Mas aí tive certeza de ter ouvido algo novamente. Passos. Logo
atrás de mim. Mais alto daquela vez. Forcei-me a não olhar, mas resolvi
acelerar ainda mais o passo. E o barulho sumiu. Até soltei uma risadinha
pensando que havia vencido, depois, acho que por hábito, dei uma
olhada por cima do ombro — e lá estava ele. Um homem. Muito alto.
Muito grande. Calças escuras e camisa de manga comprida escura. E
estava usando uma máscara. Parecia a máscara do filme Assassino
Invisível. Minhas amigas e eu alugamos esse filme algumas vezes. Tipo
um saco de pano com dois buracos para os olhos. Antes que eu pudesse
correr, gritar ou fazer qualquer outra coisa, ele me deu uma gravata e me
suspendeu. Deixei minha mochila cair e, logo em seguida, estávamos
andando de costas rumo às árvores. Ele era muito forte. Comecei a gritar
e a tentar acertar socos e chutes, mas era difícil alcançá-lo porque ele
estava atrás de mim. Ele tampou minha boca para me fazer parar de
gritar. Estava usando algum tipo de luva, mas não consegui ver. A certa
altura, mordi a mão dele com muita força e lembro que a luva tinha gosto
de borracha, mas ele nem pareceu notar. Quer dizer, deve ter doído, mas
ele não deu nem um pio. O braço em volta do meu pescoço começou a me
apertar e senti que logo ia desmaiar. Foi então que me lembrei do spray
de pimenta que minha mãe tinha me dado. Não é muito maior do que um
tubinho de protetor labial e eu havia colocado no bolso do agasalho
quando estava no vestiário. Consegui pegar o spray, estiquei o braço
para trás e comecei a borrifar — pelo que pareceu muito tempo. No
início, achei que não estivesse funcionando ou que eu não estivesse
acertando o rosto. Ele não diminuiu o ritmo nem me soltou e nem gritou.
Não fez nada além de continuar a me arrastar para mais longe da minha
casa. Lembro que pensei: VOU MORRER. Aí, de repente, o braço que
estava agarrando meu pescoço soltou e eu caí no chão, olhando para ele
em cima de mim, e o homem estava balançando a cabeça, como um
cachorro que acabou de nadar, depois ele arrancou a máscara e começou
a esfregar os olhos. Então, de repente, simplesmente saiu correndo. Só vi
a cara dele por um segundo, e de lado, mas percebi que ele tinha cabelos
escuros e curtos e um queixo bem pronunciado. Eu me levantei e corri
para a casa mais próxima. Quando eu estava esmurrando a porta,
percebi que o homem não havia dito nem uma palavra, mesmo depois de
eu ter usado o spray na cara dele. Eu ouvi ele arfando, sem ar, mas só
isso. Em nenhum momento ele pronunciou uma palavra. Quer dizer, como
isso é possível? Tenho quase certeza de que é tudo que eu consigo
lembrar agora.

3
Quando a notícia foi divulgada na manhã seguinte, teve a força de um tsunami.
Embora um porta-voz da polícia tivesse logo advertido que o ataque a Annie
Riggs ainda precisava ser oficialmente ligado aos homicídios das três outras garotas
de Edgewood, o público não acreditou. Annie Riggs era jovem, bonita e tinha
longos e ondulados cabelos de um castanho brilhante. Para a maioria das pessoas,
era o suficiente.
Na hora do almoço, um retrato falado do agressor — com uma foto da máscara
que ele havia usado — tinha sido transmitido pelas redes locais, além da CNN. Em
poucas horas, as ligações para o 190 e o disque-denúncia não paravam mais. Um
senhorzinho reconheceu a pessoa no retrato falado: o genro. Uma professora de
música da escola primária tinha certeza de que era seu ginecologista. Outra mulher
afirmou com certeza que só podia ser seu ex-marido. E assim por diante.
A máscara deixada para trás era feita de aniagem rústica. Fendas para os olhos
e a boca haviam sido cortadas com tesouras afiadas ou alguma espécie de estilete,
e pedaços curtos de barbante haviam sido amarrados atrás para mantê-la no lugar. O
Laboratório de Criminalística do Condado de Harford a estava submetendo a uma
série de testes.
Eu não podia ter certeza absoluta, mas achava que existia uma boa
possibilidade de que fosse o que eu e Jimmy Cavannaugh havíamos visto flutuando
na nossa direção na escuridão naquela noite perto da Meyers House. À tarde, em
casa, na Carolina do Sul, Jimmy deu uma boa olhada na máscara pela CNN e me
ligou para dizer que concordava comigo.
Annie Riggs foi interrogada por horas e examinada dos pés à cabeça: rasparam
as unhas; passaram um cotonete na boca; vasculharam o rosto, cabelos e roupas em
busca de indícios. Pela primeira vez, a polícia tinha uma testemunha ocular e a
examinou por todos os ângulos. Depois de revisar o depoimento escrito por Annie,
uma equipe de detetives a encorajou a tentar lembrar de qualquer coisa que ela
pudesse ter deixado passar, enfatizando que nenhuma observação, por mínima que
fosse, era irrelevante para eles. Foi aí que ela se lembrou do cheiro estranho do
agressor. Disse que era diferente de todos os cheiros que ela havia sentido até então,
mas teve dificuldade para ser mais específica em seguida.
“Não era cheiro de gente ou de suor”, ela explicou. “Era algo diferente, algo…
indescritível.”
Pressionada, Annie disse que era um cheiro orgânico, quase terroso, que vinha
do próprio homem; ela achava que não vinha das roupas, da máscara ou das luvas.
E essa foi a melhor explicação que ela foi capaz de dar.
Enquanto isso, cada centímetro do lote de quatro mil metros quadrados de
moitas e mato alto na Sequoia Drive foi implacavelmente vasculhado, bem como os
jardins e ruas adjacentes. Nos fundos do lote, atrás dos escombros de uma velha
garagem, uma trilha estreita criada por fileiras paralelas de arbustos da altura de um
homem ia dar na Holly Avenue, onde a polícia acreditava que o homem
provavelmente havia estacionado seu veículo. A Willoughby Beach Road, uma rota
de fuga rápida, ficava a apenas dois quarteirões dali.
O detetive Harper e a maioria dos membros da força-tarefa ficaram otimistas e
com energia renovada graças à corajosa reação de Annie Riggs. Após meses sem
resultados concretos, eles tinham não somente uma testemunha, mas também,
finalmente, uma prova concreta. Entretanto, outros policiais, aqueles cujos
empregos dependiam da volubilidade dos eleitores, estavam menos entusiasmados.
Milhares de dólares e centenas de horas de trabalho haviam sido gastos para pegar o
monstro e o maior avanço em suas investigações se deu graças a uma jogadora de
hóquei sobre grama de um metro e sessenta e cinco de altura e cinquenta quilos de
peso que havia tirado seu aparelho ortodôntico havia quatro meses.
Por falar em Annie Riggs, ela virou uma celebridade nacional da noite para o
dia. A mídia ainda não havia decidido se a coroaria como “A Garota que Venceu o
Bicho-Papão” ou “A Única Sobrevivente”, então, àquela altura, usavam as duas
alcunhas. Um jornal de outro Estado publicou uma foto de Annie no primeiro ano
do ensino médio embaixo da seguinte manchete em letras garrafais: A BELA E A
FERA. Mais perto de casa, muitos dos amigos e colegas de escola a apelidaram de
“Ripley”, a destemida personagem de Sigourney Weaver nos filmes Alien. Muitos
desses mesmos amigos e colegas apareceram ao vivo na televisão, contando
histórias pessoais sobre Annie. Àquela altura, os pais da adolescente já haviam sido
soterrados por pedidos de mais de uma centena de veículos de comunicação, dentre
os quais CNN, Associated Press, The New York Times, Newsweek, People,
Entertainment Tonight e Tonight Show. Recusaram todos, afirmando que a filha
precisava descansar e se recuperar do susto.
Ao cair da noite, o número já constante de ligações para o 190 sofreu um claro
aumento. Um homem que se comportava de maneira suspeita na Bayberry Drive foi
denunciado. Vários moradores ligaram a respeito de uma picape verde circulando
devagar demais na Perry Avenue. Os cidadãos avistavam o homem mascarado atrás
de cada árvore ou poste, à espreita em cada canto escuro de qualquer jardim. Tiros
ecoavam pela cidade enquanto os proprietários das casas miravam em sombras. Foi
um milagre ninguém ter morrido.
Fiquei sentado com meu pai na varanda da nossa casa por quase uma hora,
observando viaturas da polícia indo de um lado para outro da Hanson Road com
seus holofotes iluminando os quintais e os espaços escuros atrás dos carros
estacionados. Parei de contar quando cheguei a trinta. Aquela sensação desconexa
de estar assistindo a um filme voltou de repente e eu a compartilhei com meu pai,
explicando que havia sentido algo parecido na noite do patrulhamento com o
detetive Harper. Meu pai discordou respeitosamente. Disse que parecia que
estávamos participando de um filme. Fui obrigado a admitir que ele tinha razão.
Mais cedo, no jantar, até minha querida mãe entrou na dança. Ela teimava que
o retrato falado da polícia era a cara do filho de 30 anos da cabeleireira dela. Ele se
chamava Vince e já tinha tido problemas com a lei. De que tipo, ela não sabia, mas
o havia visto no salão várias vezes e tinha quase certeza de que era a mesma pessoa.
O que ela não lembrava, porém, era que eu também havia conhecido Vince e, pelo
que me lembrava, o sujeito não tinha nada a ver com o homem no desenho. Por
sorte e para grande alívio meu e do meu pai, conseguimos dissuadi-la de ligar para
o disque-denúncia e comunicar suas suspeitas.
Logo após o jantar, o telefone tocou. No início, não dei importância. Desde a
noite em que meus pais tinham ido visitar Carlos e Prissy Vargas — a noite em que
o Bicho-Papão finalmente falou comigo — não aconteceram mais trotes. Mas,
então, vi a expressão que tomou conta do rosto da minha mãe após ela ter levado o
fone até o ouvido e dito “Alô” e logo percebi que havia algo errado. Ela
imediatamente bateu com o fone no gancho. Meu pai e eu ficamos parados, olhando
para ela, sem dizer uma palavra. Ela nos encarou com fúria nos olhos.
“O seu passador de trotes deve estar de muito bom humor hoje”, ela disse. “Só
ficou rindo. Vai entender…”
Antes que pudéssemos responder, ela subiu a escada marchando, deixando os
pratos do jantar para que nós dois lavássemos.

Os noticiários da hora do almoço no dia seguinte estavam cheios de desventuras


assombrosas — todas da noite anterior. A força-tarefa do detetive Harper
obviamente teve muito trabalho.
Na primeira história, um morador de longa data da Sunshine Avenue, paralela
ao rio, jogou umas dez bombinhas no jardim dos fundos da própria casa para
afugentar um bando de gansos barulhentos. Seu vizinho, achando que tinha acabado
de escutar uma rajada de metralhadora, pegou seu revólver calibre .45 da gaveta da
mesinha de canto e correu para fora de casa para investigar. No caminho, em meio à
escuridão, tropeçou numa espreguiçadeira à beira da piscina e atirou acidentalmente
na própria perna. O vizinho dos gansos irritantes, ouvindo o tiro e os gritos de dor
provenientes da casa ao lado, pulou a cerca e usou a própria camisa para fazer um
torniquete na perna do coitado antes de chamar uma ambulância. Muito heroico, na
minha opinião.
A segunda história envolvia três adolescentes locais que haviam se
embebedado com uma garrafa de Jack Daniels roubada e tido a brilhante ideia de
fazer sua própria versão da máscara do assassino e sair espiando pelas janelas da
vizinhança. Aquela brincadeirinha resultou em meia dúzia de telefonemas para o
190, dentre os quais o de um homem assustado que temia estar tendo um infarto e o
de outro menos assustado que, armado com um facão, saiu correndo para o jardim
nos fundos da casa e por pouco não cortou um dos adolescentes em pedacinhos.
Os três garotos — descobri mais tarde que o líder do grupo era ninguém menos do
que o irmão mais novo do meu não tão querido amigo e bombeiro voluntário Kurt
Reynolds — passaram uma longa noite em celas separadas antes dos pais
aparecerem na delegacia para pagar as respectivas fianças.
A terceira, e mais fascinante, história envolvia um policial que estava fazendo
patrulhamento a pé próximo da Meyers House. Caminhando pela Cherry Road, ele
literalmente quase tropeçou num homem trajando roupas escuras que estava saindo
do jardim dos fundos de uma casa.
“Tropecei num buraco da calçada”, contou mais tarde ao supervisor, “e vi que
meu cadarço estava desamarrado. Me abaixei para amarrar e quando me levantei, lá
estava ele: um sujeito saindo de trás dos arbustos a não mais do que sete metros de
distância. Ele me viu mais ou menos no mesmo momento em que eu olhei para ele e
nós dois ficamos parados por um instante, um encarando o outro. Eu então me
identifiquei e ordenei que ele ficasse onde estava, mas o camarada saiu correndo
pela rua.”
Pedindo reforços pelo rádio, o policial iniciou uma perseguição a pé.
O suspeito atravessou outro jardim e o policial foi atrás — pulando cercas,
desviando de piscinas, atravessando arbustos e correndo por ruas desertas. Por duas
vezes, o policial quase alcançou o homem misterioso, mas acabou sendo despistado.
Por fim, em um jardim escuro, o policial foi obrigado a desistir após ser
inesperadamente atacado — não pelo fugitivo, mas por um pastor-alemão
acorrentado que quase devorou suas pernas. Uma exausta porta-voz da polícia
parecia estar fazendo de tudo para indicar que o suspeito provavelmente não era o
homem que eles estavam procurando. Pouco mais de vinte e quatro horas tinham se
passado desde o ataque a Annie Riggs e as forças de segurança estavam
convencidas de que o suposto assassino não seria tão descarado a ponto de fazer
uma nova tentativa em tão curto intervalo.
“Então quem diabos eles estão procurando?”, meu pai questionou naquela
tarde enquanto guardávamos as ferramentas de jardinagem na garagem. “E em
plena luz do dia?” Naquele momento, olhei para a casa dos Hoffman do outro lado
da rua bem na hora em que dois agentes uniformizados pulavam a cerca de madeira
e desapareciam no quintal dos fundos da casa dos nossos vizinhos.

Minha mãe nunca aprendeu a dirigir. Tendo crescido em uma família rica em
Quito, no Equador — quer dizer, rica de acordo com os padrões locais da época; a
diferença em relação aos padrões do nosso país é enorme —, ela era conduzida até a
escola e aonde quer que precisasse ir pelo motorista da família. Depois, quando
estava na casa dos 20 anos, após ter conhecido e se casado com meu pai, em suas
próprias palavras, “nunca consegui fazer o exame de direção e tirar a carteira de
motorista”. Quando eu e meus irmãos éramos mais jovens, sua incapacidade de
dirigir legalmente era motivo de muita gozação, mas ela parecia não se importar.
Levava na esportiva e se vingava de nós se recusando a entrar no carro com outra
pessoa ao volante que não fosse meu pai — exceto em circunstâncias
desesperadoras, motivo pelo qual ela me permitiu levá-la ao Santoni’s naquela tarde
de domingo. Meu pai estava ocupado ajudando um vizinho, ela precisava de mais
ingredientes para o jantar e, obviamente, não me julgava capaz de escolhê-los
sozinho.
Percorremos os corredores do mercado para a frente e para trás, um do lado do
outro, enchendo a cestinha que eu carregava com as marcas que ela indicava nas
prateleiras. Cumprimentando, entre uma parada e outra, praticamente toda a cidade
de Edgewood. Entre a igreja, as atividades do bairro e as noites mensais de bingo no
centro comunitário, minha mãe conhecia quase todo mundo. Quando saímos do
mercado trinta e cinco minutos mais tarde, sabíamos quem na cidade estava doente,
quem estava esperando neném, quem iria para a faculdade no outono, quem acabara
de ser promovido no trabalho e quem fora demitido pela segunda vez em dois
meses. Eu estava exausto.
Enquanto atravessávamos o estacionamento, notei alguém em pé na calçada na
frente do banco nos espiando atrás de um poste de luz. Um homem alto, de boné de
beisebol e óculos escuros. Quando percebeu que eu o estava encarando, ele
rapidamente se virou e desapareceu dobrando a esquina. Eu não tinha certeza
absoluta, mas quase: o homem que estava nos espiando era o detetive Harper.
Ao sairmos do estacionamento, passei pelo banco e olhei mais de perto. O
detetive — se de fato era ele — havia sumido. Por que diabos ele estaria me
observando? Ou será que ele estava vigiando o mercado e o fato de eu ter
aparecido havia sido uma mera coincidência?
Naquela noite, deitado na cama, assisti ao noticiário das onze. A locutora
introduziu a matéria de abertura e, obviamente, estava relacionada à heroína local
Annie Riggs e à caçada em curso ao Bicho-Papão. Quando o rosto desconsolado do
detetive Harper apareceu e sua profunda voz de barítono tomou conta do meu
quarto, peguei o controle remoto, desliguei a tevê e fui dormir.

No final de setembro, eu havia estabelecido uma nova rotina. Depois do último


telefonema da noite, com Kara, trabalhei na minha revista — principalmente lendo
a bela pilha de manuscritos, fazendo revisão e diagramando os anúncios — até não
conseguir mais manter os olhos abertos. Geralmente desligava a luminária da
escrivaninha e só me enfiava na cama depois da meia-noite. Na maioria das
manhãs, acordava por volta das oito e meia. Em alguns dias, dependendo do tempo
lá fora e do meu humor, saía para correr ou fazer alguns arremessos de basquete e
só então voltava para casa, tomava banho e começava a escrever. Outras vezes, eu
começava o dia com calma, lendo alguns capítulos na cama antes de descer, ainda
de pijama, para comer uma tigela de cereal e ler o jornal.
Na quarta-feira, 14 de setembro, minha mãe bateu à porta do meu quarto às
7h25, me acordando de um sono profundo. Mesmo sem ter olhado para o
despertador e visto a hora, eu sabia pela expressão em seu rosto que era algo
importante.
“A Carly quer falar com você”, avisou, entregando o telefone sem fio. “Ela me
pediu para te acordar. Acho que está chateada.”
Peguei o telefone.
“Oi.”
“Você precisa vir pra cá imediatamente”, disse Carly com a voz trêmula.
“Onde você está?”, perguntei, bocejando.
“Em casa. Voa.”
E desligou.
7

Carly morava com os pais do outro lado de Edgewood Meadows, mais ou menos
na metade do caminho entre a Biblioteca e o Colégio Edgewood. Levei menos de
dez minutos para me vestir, achar a chave do carro e ir correndo para a casa dela.
Quando estacionei, ela estava sentada na varanda, o queixo apoiado nas mãos
entrelaçadas. Os olhos estavam inchados e avermelhados.
“O que foi?!”, perguntei assim que saltei do carro.
Ela se levantou com dificuldade, parecendo tão exausta e fragilizada que senti
uma repentina vontade de abraçá-la.
“Ontem à noite, logo após ter apagado as luzes e ido deitar, escutei algo na
minha janela novamente”, contou, olhando em volta como se os vizinhos tivessem
saído de casa para ouvir às escondidas. Aparentemente contente por ninguém estar
bisbilhotando, ela prosseguiu. “Eu estava com tanto medo que nem consegui me
levantar e ir verificar dessa vez. O quarto estava escuro, a janela estava escura, e,
por um instante, tive certeza de que, embaixo da minha cama, havia alguém
escondido, pronto para me agarrar.”
Ela começou a tossir, cobrindo a boca com a mão trêmula.
“Calma”, pedi.
“Alguns minutos depois, escutei o mesmo barulho, como se alguém estivesse
arranhando algo, tentando arrancar a tela, e eu sabia que não era minha imaginação.
Puxei o cobertor até a altura dos olhos e fiquei ali deitada. Eu não conseguia me
mexer; não conseguia abrir a boca para chamar meus pais; não conseguia fazer
nada. Estava totalmente paralisada. Depois de um tempo, o barulho sumiu…
precisei de umas três ou quatro horas para finalmente fechar os olhos e dormir.
Olhei para a lateral da casa.
“Por que você não espera aqui e eu vou dar uma olhada na sua janela?”
Balançando a cabeça, ela disse:
“Já fiz isso. Não encontrei nada.”
“Tudo bem. Então por que não vamos comer alguma coisa e depois te trago de
volta e você tenta botar o sono em dia?”
“Escuta… não encontrei nada na janela, mas, um pouco depois, quando saí pra
trabalhar, isto aqui estava esperando por mim.”
Carly se afastou para o lado, permitindo que eu visse o que estava atrás dela.
No meio da varanda, a poucos centímetros do capacho com MARYLAND É PARA OS
CARANGUEJOS escrito, alguém havia desenhado com giz azul uma carinha triste.
Bem embaixo, havia três números: 666.
“O que nós vamos fazer?!”, ela se exasperou, começando a chorar.
“Acho que está na hora de ligarmos para o detetive Harper”, respondi sem tirar
os olhos do desenho.

Como esperado, ele não ficou nada satisfeito.


Primeiro, Harper nos passou um pito por meter o bedelho onde não devíamos e
possivelmente atrapalhar uma investigação em andamento. Em seguida, explicou
meticulosamente por que o desenho da amarelinha, o cartaz do cachorro de
estimação e as moedas de um centavo eram provas críticas que o público não podia,
em circunstância alguma, conhecer. Por fim, nos fez prometer que não diríamos
uma palavra a respeito a mais ninguém, repetindo várias vezes com aquela sua
assustadora voz de policial que estávamos pondo em risco todo o árduo trabalho
realizado por seus agentes.
“E pensar que confiei em você”, disse ele, olhando atravessado para mim.
“Não cometerei esse erro novamente.”
Imóvel no gramado, minha vontade era de sumir.
E aquela, como descobrimos depois, foi a parte fácil.
A parte difícil foi quando chegou a hora de Carly ligar para o pai no trabalho
— antes que um dos vizinhos fosse mais rápido no gatilho — e explicar por que
havia uma van do laboratório de criminalística estacionado na entrada da sua
garagem e uma equipe de detetives por toda parte na varanda e no jardim lateral. O
pai, surpreendentemente calmo diante daquela notícia, telefonou na mesma hora
para a esposa, e ambos estavam em casa em trinta minutos. A sra. Albright não teve
o mesmo sangue-frio. Depois de abraçar Carly e se certificar de que ela estava bem,
entrou com a filha para falar com o detetive Harper. Antes da porta se fechar,
entreouvi a sra. Albright dizendo ao detetive que ainda estava escuro quando eles
saíram para trabalhar naquela manhã e nenhum dos dois havia notado o desenho a
giz na varanda.
Mais tarde, as coisas ficaram ainda mais difíceis quando foi minha vez de
pegar o telefone e contar aos meus pais o que havia acontecido. Basta dizer que
coisas desagradáveis foram ditas (muitas delas murmuradas em um espanhol
ininteligível) e muitas lágrimas de medo rolaram.
Para piorar a situação — se é que ainda era possível —, a mãe de Carly saiu de
casa pouco depois e deixou bem claro que também não estava nada satisfeita
comigo. Para ela, minha curiosidade egoísta havia contribuído para tornar sua filha
o alvo de um serial killer sádico que já havia torturado e assassinado três jovens. E
agora ele sabia onde os Albright moravam.
Pela segunda vez naquela manhã, levei um puxão de orelha e uma bela bronca.
“Bem que, desde o início, eu tive a sensação de que você ia ser um problema”,
a sra. Albright vociferou, botando o dedo na minha cara. “Minha Carly está dando
duro para construir uma carreira respeitável e não precisa que um viciado em terror
a arraste para essa confusão. E você tem uma noiva… não deveria estar
frequentando a minha filha.”
Apesar da condição fragilizada mais cedo, Carly tomou a frente da situação e
assumiu toda a culpa. Com tudo o que tinha direito. Fiquei muito orgulhoso dela.
Primeiro, se dirigiu ao detetive Harper:
“Fui eu que contactei minhas fontes internas para obter informações sobre a
investigação. Richard não teve nada a ver com isso.”
Quando o detetive Harper a pressionou para revelar aquelas fontes anônimas,
Carly se recusou, citando questões de confidencialidade. Também se manteve firme
e ratificou que tínhamos o direito de levar adiante nossa investigação jornalística,
contanto que não interferíssemos com o trabalho que a polícia estava fazendo.
Depois foi a vez da mãe:
“Como você se atreve a falar assim com o meu amigo? Sou uma mulher
adulta, perfeitamente capaz de decidir com quem trabalho e quem frequento.
Quanto à noiva do Richard, o nome dela é Kara e é uma querida. Ele sempre se
comportou como um cavalheiro.”
Eu já falei de como fiquei orgulhoso dela?
Quando a poeira baixou, notícias surpreendentes estavam à nossa espera.
Embora Carly não tivesse encontrado nada de interessante no jardim lateral mais
cedo, o mesmo não podia ser dito dos detetives. Um canteiro de flores estreito,
delimitado por pedras redondas, se estendia por todo o lado esquerdo da casa dos
Albright. O solo ali havia sido adubado, mas as tempestades de verão haviam
carregado boa parte da cobertura orgânica. Em um ponto onde só havia terra, bem
embaixo da janela do quarto de Carly, os detetives descobriram a marca quase
perfeita de uma bota. Um técnico do laboratório começou a trabalhar
imediatamente, tirando fotos da pegada em todos os ângulos possíveis. Depois de
confirmar com Carly e seus pais que ninguém da família tinha um par de botas com
aquele desenho de sola específico, um segundo técnico — usando um pequeno
balde d’água, um saquinho de gesso odontológico em pó e algum tipo de spray
fixador — tirou um molde. Eu já tinha visto aquele procedimento várias vezes na
televisão — geralmente realizado por caçadores profissionais do Pé-Grande nas
terras selvagens do noroeste do Pacífico —, mas nunca o havia presenciado. Todo o
processo era fascinante e, apesar do clima soturno que reinava, eu me peguei
desejando que meu pai estivesse lá comigo.
Ao retornar para casa naquela tarde, comecei de repente a dar voltas no
quarteirão, a cabeça a mil. Eu sabia que era velho demais para ser mandado para o
meu quarto ou posto de castigo — pelo amor de Deus, eu ia me casar dali a alguns
meses —, mas devo admitir que essa ideia me passou pela cabeça. Também fiquei
com medo de que minha mãe se recusasse a me servir sua comida pelo resto da
minha estada na sua casa, mas isso também não aconteceu. Até depois, quando as
coisas pioraram ainda mais, ela continuou a me alimentar.
Quanto a Carly, sua vida mudou de uma maneira dramática. O detetive Harper
determinou que um rodízio de policiais vigiasse a casa dos Albright por um período
de três semanas, além de segurança vinte e quatro horas para Carly. Embora meu
nome — e qualquer menção ao desenho em giz na varanda — não tenha aparecido
em nenhuma reportagem da mídia, Carly, é claro, não teve a mesma sorte. Ela virou
o destaque, a última estrela na produção do Teatro de Marionetes do Bicho-Papão,
e a imprensa estava ávida.
“Foi nojento…”, ela me disse mais tarde “fui atacada por todos os lados com
milhares de microfones e flashes. Eles estavam me esperando como urubus fora da
minha casa e do meu escritório, gente sem escrúpulos.”
Não demorou muito até ela parar de falar totalmente com a mídia.
Se teve uma coisa boa que resultou de toda essa confusão, foi que, logo depois,
Carly Albright foi promovida no jornal. O The Aegis, com toda a sua sabedoria
oportunista e avidez, percebeu que tinha na equipe uma escritora contratada que
estava intimamente ligada à principal matéria do jornal: o Bicho-Papão. Adeus,
eventos comunitários e obituários; olá, reportagens de primeira página e aumento de
salário.
Nos dias seguintes, fiquei várias vezes tentado a perguntar ao detetive Harper
se ele estava me vigiando naquela tarde no mercado, ou se algum dos seus homens
dirigia um sedã prateado com vidros escuros — mas nunca reuni coragem. Já era
constrangedor demais o fato de ele ter começado a se referir a Carly e a mim como
Nancy Drew e Joe Hardy (da série de livros de mistério Hardy Boys que eu adorava
quando era criança). Todavia, acabei baixando a guarda e contei a ele dos trotes que
andávamos recebendo. Ele me perguntou se eu, ou algum membro da minha
família, havia sido ameaçado; quando eu disse que não, não exatamente, ele ignorou
a questão e mudou de assunto.

9
Kara, ao contrário, não subestimou os telefonemas, especialmente em vista do que
acabara de acontecer na casa de Carly. O sol estava se pondo e nós estávamos
sentados na grama ainda morna embaixo do salgueiro-chorão, observando vaga-
lumes dançando no jardim, quando ela voltou a tocar no assunto.
“Não entendo por que eles simplesmente não grampeiam o seu telefone”,
ela reclamou. “Isso está acontecendo desde que você voltou para casa. Não é uma
coincidência. Caramba, o sujeito até disse o seu nome.”
“Mas foi tudo o que ele fez. Ele não me ameaçou. Não ameaçou meus pais.”
“E você não acha que passar esse tipo de trote não é intimidação?”
Encolhi os ombros sem muito ânimo. Eu estava cansado, com dor de cabeça e
ansioso para mudar de assunto.
“E a mensagem que ele deixou na porta da casa da Carly não é uma forma de
ameaça?”
“Entendo o que está dizendo. Sério. Só não sei direito o que você quer que eu
faça a respeito.”
“Para começo de conversa, você pode dizer para o detetive Harper levantar a
bunda da cadeira e fazer o trabalho dele.”
“Já tentei fazer isso”, eu disse, olhando para ela na escuridão. “Você acha
mesmo que é o Bicho-Papão que está ligando lá para casa e não alguém querendo
tirar sarro da minha cara?”
“Acho”, ela disse, sem hesitar. “Pra mim, ele tá querendo te desestabilizar.”
“Por que ele faria isso? E por que logo comigo?”
Ela cruzou as pernas e se virou para mim, segurando minha mão.
“Por quê? Porque ele é um doente que gosta de infernizar e machucar
as pessoas. Por que você? Não sei… talvez ele saiba que você é um escritor
de histórias de terror. Ou talvez te conheça pessoalmente.”
“Nem fala uma coisa dessas.”
“Se ele te escolheu é porque algum motivo ele tem, Rich”, ela disse, apertando
minha mão. “E agora a Carly. Estou começando a ficar apavorada.”
“Não fica assim”, pedi. “Vai ficar tudo bem.”
Eu não acreditava totalmente naquilo, mas não sabia o que mais podia dizer.

10
Alguns dias depois, atendi a porta e encontrei uma sorridente Carly Albright em
pé na minha varanda. Na verdade, ela não estava exatamente em pé — estava
saltitando, ficando na ponta de cada pé alternadamente, como uma garotinha prestes
a fazer xixi nas calças.
“Não foi ele!”, exclamou.
“Ele quem?”
“O homem na minha casa… o homem que desenhou na minha varanda… não
foi o Bicho-Papão!”
Saí para a varanda.
“Do que você tá falando?”
“O detetive Harper acabou de sair da minha casa. Disse que um dos vizinhos
da rua de trás tinha imagens da câmera de segurança, de um homem atravessando o
jardim deles na noite em que tudo aconteceu. A dona da casa reconheceu o rosto do
homem; fazia parte de uma equipe de jardinagem que ela havia contratado pouco
antes.
“Os detetives foram lá e conversaram com o sujeito, que admitiu tudo
imediatamente. O detetive Harper disse que ele parecia quase aliviado por ter sido
filmado.”
“E como eles sabem que ele não estava envolvido nos homicídios?”
“Álibis muito consistentes para duas das três noites. E ele também não tem
nada a ver com o retrato falado da polícia. É baixinho e magro, as orelhas com
rombos de alargadores… Disse que tudo não passava de uma brincadeira idiota. O
cara é metaleiro raiz, curte rock satânico: Ozzy, Danzig, Black Sabbath, Darkthrone,
essas coisas. Ficou muito puto quando o The Aegis publicou uma matéria sobre
satanismo, e concluiu que estávamos tirando sarro deles. Quando descobriu que
alguém no bairro trabalhava para o jornal, achou que seria engraçado ficar chapado,
ir até a minha casa de fininho e desenhar um 666 na minha varanda. Também estava
planejando desenhar um pentagrama invertido na entrada da garagem, mas
amarelou. Disse à polícia que só queria me assustar.”
“Caramba… Então o giz azul e os números… foi tudo uma bizarra
coincidência?”
“Foi!”
“É difícil de acreditar.”
“Eu sei, mas parece que é verdade. Que loucura, né? O cara disse que queria
ter comprado um spray, mas como estava duro, pegou o giz emprestado com um dos
caras que divide apê com ele. Até levou os detetives ao quarto do coinquilino e
mostrou a caixa de giz azul que estava numa gaveta.”
“Eles interrogaram o tal coinquilino?”
“Sim, ele também não tá metido em nada disso.”
“Que doideira!”, exclamei. “Pelo menos já deu desse troço de ter polícia
estacionada na frente da sua casa, né? Só que também já eram os guarda-costas
galãs e fortões.”
Pensei que acharia graça, mas ela ficou bem séria.
“Bem, aí é que a coisa fica interessante.”
“Como assim?”
“O assecla de belzebu, apesar da estatura, tem um pé quarenta e cinco.”
Olhei para ela.
“Que diabos isso significa?”
Ela suspirou como se eu fosse um idiota.
“A marca da bota embaixo da minha janela era tamanho quarenta e dois.”
“Aaah, tá. Saquei”, eu disse, entendendo finalmente. “Então foram duas
pessoas diferentes naquela noite?”
“É o que parece”, ela falou. “O metaleiro jura que não chegou nem perto da
minha janela, e os detetives não encontraram nenhuma bota no armário dele que
correspondesse à pegada… então vão continuar a vigiar a casa, e a mim, por mais
uma semana. Por desencargo de consciência.”
“Ou seja, eles não estão cem por cento convencidos de que não foi o assassino
que andou perto da sua janela.”
“Noventa e cinco. Quais as chances de dois esquisitões terem circulado perto
da minha casa na mesma noite?”
“Quais as chances de um sujeito qualquer resolver te dar uma provocada
usando giz azul e o número 666?”
“É verdade”, ela disse, inclinando a cabeça para o lado, pensativa.
“Se não era o Bicho-Papão na sua janela, então quem era?”
“A molecada brincando. O Acariciador Fantasma. Ou talvez eu simplesmente
não andasse dormindo o suficiente… e imaginei tudo.”
“Você não imaginou a pegada da bota, Carly.”
Ela anuiu.
“Devem ter sido uns adolescentes querendo aparecer.”
“Tomara que você esteja certa.”
“Pois é”, ela disse, os olhos focando algo a distância. “Tomara mesmo.”

11
O restante de setembro foi tranquilo.
ACIMA: Annie Riggs (Foto cortesia de Molly Riggs)
ACIMA: Colégio Edgewood (Foto cortesia do autor)
ACIMA: O lote abandonado onde Annie Riggs foi atacada (Foto cortesia de Carly Albright)
ACIMA: A máscara do assassino, achada na Sequoia Drive (Foto cortesia de Logan Reynolds)
ACIMA: Membros da força-tarefa revelando a máscara do assassino para a mídia (Foto cortesia do The
Baltimore Sun)

ACIMA: Retrato falado do assassino (Foto cortesia de Alex McVey)


ACIMA: O misterioso desenho a giz na varanda dos Albright (Foto cortesia de Logan Reynolds)
nove

O País de Outubro
“… um ato de insanidade.”

“Para começo de conversa, era outubro, um mês peculiar para os meninos…”


De todos os trechos liricamente belos e de tirar o fôlego com que Ray
Bradbury brindou os leitores durante sua vida, essas doze palavras que abrem seu
romance seminal Algo sinistro vem por aí talvez sejam as minhas favoritas.
Bradbury vai além, descrevendo uma paisagem mítica, o País de Outubro,
onde o Outono é Rei, a Maldade é Rainha e tudo é possível. O bem, o mal,
o milagroso, o inimaginável — está tudo ali, esperando você no mês de outubro,
pairando ligeiramente fora do seu alcance.
Desde pequeno, aquele era meu período do ano favorito — uma estação de
magia absoluta. O ar cheirava a maçãs maduras, folhas mortas e lenha queimada. O
vento doía em algum lugar mais profundo do que os ossos. O céu tinha camadas de
ricos tons de laranja, amarelo, roxo e vermelho, além de uma miríade de cores
turbilhonantes belas demais para terem um nome. A lua das colheitas — cheia e
magnífica, tão próxima do horizonte que era quase possível esticar a mão e tocá-la
— fazia sua visita anual e nos deixava querendo mais. As nuvens flutuavam,
espiando por cima dos ombros, relutantes em abrir caminho para o avançar do
inverno. Galhos nus se alongavam enquanto passávamos por eles, os dedos
esqueléticos, famintos pelo nosso toque, e montículos de folhas caídas estalavam
sob os nossos pés enquanto suas infinitas irmãs esvoaçavam passando por nós na
brisa fria do outono como miniaturas de fantasmas assombrando a paisagem. O
crepúsculo demorava. A meia-noite durava para sempre. Grandes abóboras
entalhadas projetavam sorrisos meio banguelas nas cercas das varandas e nas
janelas, seus tremeluzentes olhos laranja perscrutando todos os nossos movimentos.
E, depois, acontecia.
O dia mais mágico de todos enfim chegava.
Não apenas para os jovens, mas também para os jovens de espírito.
A noite se insinuava pela cidade como um ladrão silencioso, e finalmente era
chegada a hora. Halloween.

Na cidade de Edgewood, a segunda-feira, 31 de outubro, amanheceu clara e fria,


com uma sensação de otimismo esperançoso envolvendo as ruas.
Fazia quase dois meses desde a reação e a fuga por um triz de Annie Riggs na
Sequoia Drive e, nesse ínterim, não houvera outros ataques. A mídia local, ávida
por manter a história (e as vendas nas bancas) viva, mal mencionava esse fato,
concentrando-se, pelo contrário, nos últimos avistamentos possíveis e em
entrevistas ocasionais com membros de baixo escalão da força-tarefa — qualquer
desculpa que mantivesse aquelas palavras mágicas “O Bicho-Papão” nas
manchetes. Enquanto isso, os rostos artificialmente esculpidos e bronzeados da
imprensa nacional foram lentamente abandonando o barco, as despesas e as diárias
dos hotéis eram altas demais para que eles ficassem na cidade sem que houvesse
mais violência ou derramamento de sangue a cobrir. A polícia continuava seu
trabalho, na maior parte do tempo em silêncio. Mais ou menos toda semana, um
porta-voz surgia para fazer uma breve declaração oficial — todas parecendo
bastante iguais àquela altura: a força-tarefa estava trabalhando dia e noite e os
cidadãos deviam se manter vigilantes. Quase um mês havia se passado desde a
última coletiva de imprensa do detetive Harper. Naquela ocasião, ele falou por
alguns minutos antes de revelar um retrato falado atualizado do agressor de Annie
Riggs. Fora as sobrancelhas mais grossas e o lábio superior mais fino, parecia
idêntico ao primeiro.
Quanto aos edgewoodianos, a maioria acreditava (ou pelo menos diziam a si
mesmos) que o assassino havia finalmente terminado o serviço. Fazia cinquenta e
dois dias que nada de ruim acontecia. Após a perda do anonimato na noite do
ataque a Annie Riggs e a quase captura algum tempo depois numa perseguição a pé
com a polícia, o Bicho-Papão teria que ser um tolo desleixado para ficar por lá e
tentar mais alguma coisa. E ele já havia mostrado que não era nada disso.
Embora vários moradores já se sentissem mais otimistas, o toque de recolher
continuava a vigorar — porém, três semanas antes, havia sido flexibilizado para
começar às 23h — e vários decretos extraordinários foram instituídos para o Dia
das Bruxas. A diretoria do Edgewood Shopping Plaza anunciou uma coleta de
doces alternativa para as crianças menores. Das 17h às 19h, cada uma das lojas
distribuiria guloseimas e as famílias participantes foram estimuladas a distribuir
doces apenas no estacionamento. Além disso, crianças com menos de 12 anos não
podiam ficar nas ruas dos bairros sem a supervisão de um adulto, e todas as
brincadeiras, a despeito da idade das crianças, deveriam terminar às 21h. Pela
segunda semana seguida, Halloween 4: O Retorno de Michael Myers foi a principal
atração nos cinemas de Edgewood, mas as sessões noturnas foram canceladas. Se
você queria festejar a noite de Halloween com um balde de pipoca amanteigada,
vidrado na última onda de homicídios de Michael Myers e seu caminhar arrastado,
tinha que entrar na fila para a sessão das 17h ou das 19h15, senão, azar o seu.
Por sorte, o mês de outubro também havia sido tranquilo para Carly Albright.
Ela havia tirado um pouco o pé do acelerador, exatamente como o médico havia
sugerido. A imprensa enfim tinha desistido de tentar convencê-la a falar e, apesar de
alguns pesadelos esparsos, na casa dos Albright não havia mais nervosismo ou
intrigas relacionadas ao Bicho-Papão. Nenhum outro desenho a giz. Nenhum outro
maluco na janela de Carly. Nem viaturas da polícia estacionadas na frente da casa.
A teoria final era de que a pegada que a polícia havia encontrado no canteiro de
flores embaixo do quarto dela provavelmente era de algum jovem da vizinhança.
Relembrando meus dias de caçador de sapos, quando meus amigos e eu passávamos
embaixo de praticamente todas as janelas de Edgewood Meadows, achei que a
chance de eles terem razão era alta. Embora ainda não tivesse sido indicada para o
Pulitzer — o que, embora ela negasse, era sua ambição secreta —, Carly estava
gostando de cobrir notícias de verdade, só para variar, e de ver sua assinatura no
semanário The Aegis. Ela até tinha recebido do editor um pager, para que estivesse
disponível vinte e quatro horas por dia, o que, para mim, parecia algo hediondo,
mas não era o que Carly pensava. Ela ficou mais feliz com aquela geringonça dos
infernos do que com o aumento de salário.
Outubro também havia sido um mês bom para mim. Sentindo-me
especialmente inspirado, tive a sorte de vender mais três contos, um novo recorde
pessoal para um único mês. Nenhuma daquelas histórias seria indicada para
o Pulitzer — ou qualquer outro prêmio, na verdade —, mas todas foram vendidas
para mercados bastante importantes, dos quais eu podia me orgulhar. Eu estava
ganhando confiança como escritor e, sem a distração constante da caça à sombra do
Bicho-Papão, pude passar períodos mais longos e mais produtivos na frente do
teclado. Até parei de ouvir o rádio da polícia na maioria das noites.
De vez em quando, porém, eu ainda tinha a sensação de que estava sendo
vigiado em público e podia jurar ter avistado aquele mesmo sedã prata atrás de mim
certa noite na Route 40, mas, até então, aquela noite terrível em que levei o lixo
para fora — e de alguma forma soube que o Bicho-Papão estava à espreita por perto
— não havia se repetido. Os trotes que atormentaram a casa dos Chizmar
diminuíram bastante nos dois meses anteriores; em todos eles, alguém
simplesmente desligava sem dizer nada. Eu estava voltando a acreditar que se
tratava apenas de uma pessoa qualquer, um adolescente entediado se divertindo
tentando me assustar. Depois de ler a matéria no The Aegis, devia ter achado que eu
era um alvo fácil.
Até minha mãe estava bem mais alegre, quase tão sossegada e meiga como de
costume. Seguindo a tradição, ela havia passado boa parte da tarde na cozinha,
assando pão fresco e preparando almôndegas com sua receita secreta de molho de
tomate. Desde que me entendo por gente, sempre convidamos amigos e vizinhos
para a noite de Halloween. O pessoal se fartava com generosos pratos de espaguete
com almôndegas e salada, e, depois que as crianças saíam para catar balas e doces,
os adultos se apinhavam na sala de estar e no porão para conversar ou assistir aos
jogos de futebol americano universitário na tevê. Quem se sentava mais perto da
porta da casa, geralmente um dos meus pais ou o louco do meu tio Ted, ficava
responsável pela entrega de doces a cada toque da campainha. Lembro que eu
sempre ficava espantado ao voltar para casa tarde da noite — minha fronha
abarrotada de guloseimas e quase pesada demais para ser carregada — e via que
praticamente todos os adultos ainda estavam ali sentados, conversando. O que eles
tanto tinham para falar?

Às 17h30 daquela tarde de Halloween, nossa casa estava lotada. Na sala de estar e
no porão só havia lugar em pé, e, na cozinha, a situação não era muito diferente.
Norma e Bernie Gentile estavam sentados à mesa de jantar com minha irmã Mary,
o marido dela, Glenn, meu tio Ted e minha tia Pat. Todos estavam se entupindo de
comida e tentando não falar de boca cheia.
Kara e eu estávamos sentados em cadeiras dobráveis na antessala, uma grande
tigela de doces equilibrada sobre uma mesinha entre nós. Estava quase escuro lá
fora e bandos de crianças já circulavam atrás de doces. Já estávamos na ativa havia
vinte minutos — jogadores de futebol americano e fadas, astronautas e alienígenas,
princesas e Smurfs —, mas a montanha de doces mal havia sofrido alguma erosão.
Eu não tinha me fantasiado para a ocasião (a menos que você considere
fantasia um agasalho de moletom cinza), mas, como sempre, Kara não havia
poupado esforços. Essa era uma das várias coisas que eu adorava nela. Kara
abraçava e celebrava a vida ao máximo. Fosse se transformando no bobo da corte
mais fofo que você já viu (como fez naquele ano), fosse dedicando semanas para
encontrar o presente de Natal perfeito para alguém ou parando o carro no
acostamento da estrada para assistir ao pôr do sol no inverno, Kara era capaz de
encontrar beleza, graça e significado em momentos triviais do dia a dia. Se eu era
sombras, luar e histórias de morte e terror, ela era o brilho do sol, risadas e a estrada
de tijolos amarelos de O Mágico de Oz. Equilibrávamos um ao outro.
Logo depois das 19h, Kara anunciou que enfrentaria uma viagem de volta à
cozinha para renovar nossos drinques e me deixou sozinho na porta. Depois de
alguns minutos, liderado por Darth Vader e Elvis Presley, o maior grupo da noite
atravessou a entrada da garagem, rindo, saltitando, arrotando, e se aglomerou na
varanda. Elvis tocou a campainha. Levando a tigela comigo, saí e comecei a jogar
punhados de doces em fronhas, sacolas de compras e abóboras de plástico. À
medida que a horda se afastava em meio a um coro de agradecimentos berrados, por
acaso dei uma olhada do outro lado da rua. Uma figura escura e solitária estava
imóvel como um espantalho na calçada da casa dos Hoffman. Alto demais para ser
uma criança e sem fazer nenhum esforço para esconder a própria presença,
o homem parecia estar me observando. Provavelmente um pai entediado esperando
o filho, pensei. Talvez até um policial disfarçado; eles estão por toda parte esta
noite. Ou, melhor ainda, o detetive Harper me espionando outra vez.
Eu estava prestes a me virar quando uma picape fez a curva na esquina
da Tupelo e a luz dos faróis iluminou o jardim da casa dos Hoffman. Naquele
instante, eu o vi claramente. E não era o detetive Harper.
O homem estava usando roupas escuras e uma máscara — que parecia muito
com a máscara grosseira que eu havia visto na televisão e no jornal recentemente.
Minha boca ficou instantaneamente seca e senti um suor frio despontando na nuca.
O estranho continuou lá, imóvel, os braços caídos ao longo do corpo,
observando.
O flash de uma câmera espocou de repente no final da entrada da garagem,
próximo ao meio-fio, desviando minha atenção.
“Mais uma. Só mais uma!”, ela implorou, embora parecesse exausta.
O Incrível Hulk e o Super-Homem puseram a língua para fora e fizeram pose
— o flash brilhou novamente. Quando voltei a olhar para o outro lado da rua,
o homem mascarado tinha desaparecido.
“Tudo bem?”, perguntou Kara, aproximando-se com as nossas bebidas.
“Tudo”, respondi, entrando em casa. Tomei um gole de limonada e não disse
nada sobre o que eu tinha acabado de ver. Provavelmente só uma brincadeira, disse
a mim mesmo. Como a cena em Halloween II na qual um dos caras se veste como
Michael Myers.
À medida que a noite avançava, Kara e eu fomos assumindo o papel de
porteiros da casa 920 da Hanson Road, cumprimentando os retardatários na porta e
nos despedindo dos convidados com um abraço. Os Gentile foram os primeiros a ir
embora, correndo para a casa ao lado para distribuir barras de chocolate Baby Ruth
tamanho família, algo que faziam desde que eu era criança. Antes de saírem, o sr.
Bernie tirou um resplandecente dólar de prata do bolso do casaco e o jogou para
mim sem dizer nada. Meu tio Ted — irmão mais novo do meu pai e o cara mais
infantiloide que eu já conheci — tentou aplicar um cuecão em mim enquanto saía,
mas eu consegui me safar, então ele se contentou em me dar só um cascudo.
Tia Pat foi comendo ele no esporro até chegarem no carro. Logo depois das 19h30,
Carly Albright, com orelhas de Mickey Mouse alegremente encaixadas no topo da
cabeça, deu uma passada e nos ajudou a distribuir doces para os infindáveis
grupinhos de crianças. Ouvir ela e Kara pondo a conversa em dia — Carly com um
prato de espaguete equilibrado no colo — foi minha parte favorita da noite. Era
fácil entender por que as duas tinham tanta intimidade.
Mais tarde, na cama, notei que o Bicho-Papão não havia sido mencionado em
nenhuma conversa naquela noite. Eu já nem me lembrava da última vez que aquilo
tinha acontecido na presença de um grupo de pessoas reunido no mesmo lugar.
Apesar do inquietante incidente que havia acontecido mais cedo — àquela altura, eu
já estava quase convencido de que se tratava de uma brincadeira, e tal constatação
me fez sorrir —, peguei no sono com facilidade. Contudo, no meio da noite, ao
acordar para fazer xixi, aquelas conhecidas e assustadoras palavras — Uma
tempestade está a caminho — voltaram à tona na minha cabeça… só que, dessa
vez, eu estava convencido de que ela havia passado direto.

4
Na manhã seguinte, acordei me sentindo revigorado, pronto e disposto a enfrentar
uma longa sessão no teclado. Eu estava trabalhando em uma nova história sobre pai
e filho. Para mudar de ares, daquela vez não era, nem deveria ser, uma história de
terror. Mais do que tudo, era um relato de um recorte da vida que capturava um
momento específico muito significativo para mim. Eu suspeitava que a história
fosse sobre o meu pai, mais ainda não havia ficado muito claro. Eu estava ansioso
para descobrir.
Desci para pegar uma tigela de cereal Wheaties e voltar para a minha
escrivaninha, mas, assim que vi o rosto da minha mãe, percebi que algo
horrível tinha acontecido.
“O que foi?”, perguntei.
Ela desviou o olhar e, através da janela da cozinha, ficou observando o jardim
nos fundos da casa.
“Uma menina não voltou para casa na noite passada.”

Cassidy Burch, 16 anos, morava com a mãe e a irmã mais nova na última casa
geminada da Courts of Harford Square. O pai, um caminhoneiro, havia morrido três
anos antes num acidente na I-95. Embora miúda — um metro e sessenta, cinquenta
quilos —, Cassidy tinha um sorriso brilhante e uma personalidade extrovertida que
preenchia qualquer lugar onde decidisse entrar. Estava cursando o segundo ano no
Colégio Edgewood, jogava hóquei sobre grama e era a tesoureira do Clube de
Latim. Esforçava-se em sala de aula para manter média oito e trabalhava em regime
de meio expediente no Burger King da Route 40. Cassidy Burch tinha olhos azuis
reluzentes e lindos cabelos loiros compridos.
Por volta das 17h30, no dia de Halloween, enquanto a mãe ficou em casa para
distribuir doces, Cassidy levou a irmã Maggie, de 11 anos, para brincar de “doçura
ou travessura”. Maggie estava vestida de Buttercup, a personagem do seu filme
favorito, A Princesa Prometida, que ela havia visto três vezes no cinema no ano
passado. De fato parecia uma linda princesa com seus longos cabelos loiros
trançados e um vestido esvoaçante feito em casa, e recebeu muitos elogios. As
irmãs perambularam pelo bairro por quase noventa minutos, enchendo duas
abóboras de plástico com guloseimas antes de finalmente voltarem para casa.
Enquanto Buttercup separava os milhares de doces na mesa da sala de jantar,
Cassidy subiu para trocar de roupa.
Às 19h20, uma buzina tocou na frente do sobrado dos Burch. Cassidy desceu
correndo a escada, seu manto com capuz de veludo vermelho abrindo-se em forma
de leque atrás dela, como a capa da Mulher Maravilha. Com uma saia cinza de
comprimento médio, meias-calças brancas e sapatos baixos pretos completando a
fantasia, Chapeuzinho Vermelho se despediu da mãe e da irmã com um abraço e
saiu para festejar com a melhor amiga, Cindy Gibbons, de 17 anos.
Não era exatamente uma festa. Jessica Lepp havia convencido os pais a
permitirem que um pequeno grupo de amigas fosse à sua casa — oito, talvez dez
adolescentes — com duas condições: ninguém dormiria lá, afinal, no dia seguinte,
todas tinham escola e, portanto, deviam ir embora até as 22h45. A mãe de Jessica
insistiu que não queria levar a culpa se alguma das garotas desobedecesse ao toque
de recolher. Os Lepp moravam na Larch Drive, uma ladeira a cinco minutos de
carro da Courts of Harford Square. Íngreme e sinuosa, a Larch Drive — no seu
ponto mais alto — cruzava com a Hanson Road, a apenas cinquenta metros de
distância da casa dos meus pais.
A maioria das garotas estava fantasiada naquela noite — uma vampira sexy,
uma nerd de óculos remendados com esparadrapo, uma Mulher-Gato e algumas
cheerleaders. Elas se reuniram no porão da casa dos Lepp, dançaram ao som de
música disco dos anos 70 e devoraram sacos de pretzels e batatas fritas. Depois de
um tempo, Jessica pôs A Hora do Pesadelo no videocassete e todas se amontoaram
no sofá e na poltrona, muitas das garotas — inclusive Cassidy — tapando os olhos
durante as partes mais assustadoras. Diversão à moda antiga, inocente. Sem garotos,
sem álcool ou cigarros, sem fofocas maldosas. Só muitas risadinhas e arrotos
incontidos por causa do excesso de refrigerante.
Às 22h45, como prometido, as garotas começaram a ir embora. Cassidy e
Cindy ficaram mais um pouquinho, ajudando a amiga a jogar fora caixas de pizza,
pratos de papel e latas de refrigerante vazias que estavam no porão. A sra. Lepp fez
questão de agradecer às duas e as botou para fora de casa às 22h55. Da varanda,
viu-as entrando no carro de Cindy e partindo.
Naquele mesmo momento, a mãe de Cassidy estava sentada na cama com um
romance histórico no colo, olhando para o despertador. Enquanto observava o correr
dos minutos, a sra. Burch prestava atenção para tentar detectar o som de um carro
estacionando na frente do sobrado. Aquela mesma rotina já havia se repetido em
muitas outras noites e sempre a deixava apreensiva. Um dia essa garota vai
entender o que uma mãe sente, ela costumava pensar enquanto morria de
preocupação.
Vendo o relógio marcar 23h, e ainda nada de Cassidy, ela começou a roer as
unhas, um hábito horrível que estava decidida a eliminar… a partir do dia seguinte.
Às 23h02, a sra. Burch ouviu a porta de um carro sendo aberta, alguns
segundos de um rock abafado e, depois, a porta batendo. Soltou um suspiro de
profundo alívio e voltou a dedicar a atenção ao livro. A heroína da história estava
prestes a enfrentar uma gangue de arruaceiros armados que planejava saquear a
cabana da família, e a sra. Burch estava ansiosa para saber como tudo ia terminar.
Ela finalizou a página antes de perceber que não tinha ouvido o som da chave
de Cassidy entrando na fechadura nem o som da porta da casa abrindo e fechando
ou mesmo o som do ferrolho sendo passado.
Pulando da cama como se os pés estivessem em chamas, desceu correndo,
chamando o nome da filha. A antessala estava vazia, a luz interna ainda acesa, e a
porta trancada. Ela a abriu e foi para a varanda, chamando por Cassidy novamente.
Nada. Observou o estacionamento bem iluminado à direita e esquadrinhou o terreno
vazio à esquerda. A noite estava silenciosa. Imóvel.
Correndo de volta para dentro de casa, a sra. Burch encontrou o telefone sem
fio no sofá, onde havia deixado mais cedo, e ligou para os Lepp. A mãe de Jessica
atendeu ao primeiro toque e garantiu que fazia mais de dez minutos que havia visto
Cassidy e Cindy saindo de carro. Talvez elas tenham parado no Stop and Shop para
abastecer o carro ou algo do gênero, conjecturou. A sra. Burch agradeceu e
desligou.
Tomada pela angústia, ligou em seguida para os Gibbons. Cindy atendeu logo,
parecia ofegante. Disse à sra. Burch que havia acabado de chegar, depois de ter
deixado a amiga em casa e corrido para atender o telefone antes que os pais
acordassem.
“Você deixou a Cassidy aqui na frente de casa?”, perguntou.
“Como assim?”, Cindy respondeu confusa. “É o que eu sempre faço.”
“Eu sei, mas… cinco minutos atrás… eram você e a Cassidy aqui em frente?”
“Bem, talvez faça um pouquinho mais de cinco minutos, mas, sim, tia,
eu deixei ela e vim direto para casa.”
“Você viu a Cassidy depois que ela saltou do carro? Reparou em alguma
coisa?”
Cindy hesitou antes de responder.
“Geralmente espero até ela entrar… mas acho que fui embora dessa vez. Eu
não queria me atrasar por causa do toque de recolher.”
“E você não viu…”
“Como assim?”, Cindy disse, sua voz ficando mais alta. “A senhora está
dizendo que a Cassidy não entrou em casa? Ela não está aí com a senhora?!”
“É exatamente o que estou dizendo.”
“Ai, meu Deus!”, Cindy exclamou, parecendo angustiada. “Ai, meu Deus.
Acho melhor acordar meus pais.”
“Faça isso, minha querida. Eu vou ligar para a polícia.”

Tudo isso aconteceu na mesma rua, a pouca distância de onde eu estava dormindo.

Após uma breve busca, a polícia encontrou o corpo de Cassidy Burch às 2h27 no
cemitério Edgewood Memorial Gardens, na Trimble Road. No início, o policial —
um novato — que a localizou perto da entrada principal pensou que havia se
deparado com a cena de um trote de Halloween, pois o cadáver estava posicionado
na frente de uma lápide e cercado de lanternas ainda acesas feitas de abóboras
esculpidas. Parcialmente vestida com a fantasia de Chapeuzinho Vermelho, Cassidy
Burch havia sido espancada, estuprada e estrangulada. A orelha esquerda fora
decepada e não estava presente na cena. Cerca de uma dúzia de marcas de mordida
cobriam o corpo, como se o assassino a tivesse atacado a dentadas em meio a uma
frenética sede de sangue. Um policial — desta vez um veterano — descreveu aquilo
como “um ato de insanidade”.
ACIMA: Cassidy Burch (Foto cortesia de Candice Burch)
ACIMA: Cassidy Burch (Foto cortesia de Candice Burch)
ACIMA: Edgewood Memorial Gardens (Foto cortesia do autor)
ACIMA: Polícia e detetives procurando provas perto da casa dos Burch na Courts of Harford Square
(Foto cortesia de Logan Reynolds)
dez

Consequências
“Ele gosta da sensação de matar e vai agir novamente se não o
detivermos.”

A cidade de Edgewood acordou dentro de um pesadelo na terça-feira após o


Halloween.
Boletins de notícias interrompiam os talk shows matutinos nas quatro redes de
televisão locais e os detalhes macabros do assassinato de Cassidy Burch
dominavam as ondas das estações de rádio durante o horário de ida para o trabalho.
Ansiosos para compartilhar a notícia, vizinhos corriam para pegar seus telefones e
se reuniam em pequenos grupos nas varandas e entradas das garagens. Muitos
moradores pegaram os carros e foram até o cemitério, mas acabaram rechaçados
pelas barricadas da polícia que bloqueavam a única via de acesso. No meio da
manhã, a maioria dos edgewoodianos já havia ouvido que o Bicho-Papão está de
volta.
Após consolar minha mãe na cozinha, subi correndo e telefonei para Carly
Albright. Ela não se encontrava, então deixei um recado e ela logo retornou a
ligação. Estava tão atônita quanto eu por causa da notícia. Falei do homem de
máscara que eu tinha visto do outro lado da rua na noite anterior e ela me deu uma
bronca por não ter contado antes. Por sorte, ela estava com pressa, senão eu teria
escutado poucas e boas. Falando rápido, Carly disse que estava saindo para ir ao
colégio entrevistar o diretor e vários membros do corpo docente. As aulas haviam
sido canceladas, mas os professores deviam se apresentar. Fizemos planos para nos
falarmos à noite e lá foi ela.
A abertura da edição do meio-dia do telejornal local foi com a imagem ao vivo
do detetive Harper fazendo uma breve declaração na frente do portão do cemitério:
“Neste momento, posso confirmar que o corpo de Cassidy Burch, de 16 anos,
foi descoberto esta manhã aqui no Edgewood Memorial Gardens.”
Enquanto o detetive falava, a câmera deu um zoom por cima do seu ombro,
focando num grupinho de policiais caminhando entre as lápides. Cada um deles
carregava um pequeno maço de bandeirolas vermelhas presas a arames grossos com
quarenta centímetros de comprimento. Antes de se deslocar, a câmera capturou um
dos policiais se ajoelhando e examinando algo no chão diante dos seus pés e,
depois, enfiando uma bandeira na grama para marcar o local.
“Gostaríamos de pedir que todos deem à família Burch tempo e privacidade
suficientes para lidarem com tamanha e trágica perda”, continuou o detetive Harper.
“Membros da força-tarefa estão, neste exato momento, seguindo pistas vitais.
Teremos mais informações disponíveis ainda esta noite. Obrigado.”
Eu me senti perdido e fiquei inquieto pelo resto da tarde. Não conseguia parar
de pensar no mascarado. Foi por volta das 19h que vi o sujeito pela primeira vez me
observando lá do outro lado da rua. A polícia acreditava que Cassidy Burch havia
sido assassinada pouco depois de ter saltado do carro por volta das 23h. Quatro
horas. Será que o Bicho-Papão tinha me visitado naquela noite e, depois,
simplesmente perambulou pela rua à caça de uma nova vítima? Esse pensamento
era quase insuportável.
Incapaz de ficar sentado por mais do que alguns minutos, eu sabia que tentar
escrever seria causa perdida e não confiava suficientemente em mim mesmo para
editar de forma satisfatória aquele punhado de textos que eu tinha à disposição para
a revista. Depois de um tempo, simplesmente saí para espairecer e fui dar uma volta
de carro. Evitando o cemitério e a Courts of Harford Square, circulei sem rumo pela
outra metade de Edgewood, passando pelo shopping, pelo 7-Eleven e pelo colégio,
onde avistei o carro de Carly numa vaga logo na frente do estacionamento para
visitantes. Depois de ficar sentado no carro olhando para o nada durante mais ou
menos meia hora à beira do espelho d’água do Flying Point Park, completei o
tanque no posto Texaco e dei mais uma circulada antes de pegar o caminho de volta.
Sem perceber, passei pelas casas das três primeiras vítimas.
O noticiário das 20h — ao qual assisti no porão com meus pais — deu poucos
detalhes novos sobre o assassinato de Cassidy Burch. Os policiais estavam
ocupados com a investigação e relutavam em falar diante das câmeras, sobretudo
porque não tinham nada de novo a acrescentar. Imagens mostrando quase uma dúzia
de policiais uniformizados fazendo buscas no gramado perto do sobrado dos Burch
logo deram lugar a uma reportagem com os chorosos amigos e vizinhos de Cassidy
compartilhando histórias pessoais sobre a adolescente assassinada. Uma garota de
cabelos escuros chamada Mallory mostrou a aquarela de um pôr do sol, explicando
que a amiga concluíra a tela na aula de artes no ano anterior e, para sua surpresa, foi
o presente de aniversário que ganhou de Cassidy. Outra colega de turma, Lindsey,
falou sobre a generosidade de Cassidy, que sempre a ajudava com os deveres de
matemática. Disse também que a amiga tinha adoração pela irmã menor, Maggie.
Um homem de meia-idade que morava no mesmo grupo de casas geminadas que os
Burch repetiu aquelas alusões bondosas antes de acrescentar que acreditava que
satanistas eram os responsáveis pela morte de Cassidy. Afirmou que tinha visto
gangues de adolescentes drogados vestidos de preto dos pés à cabeça com brincos
de crucifixos invertidos e tatuagens de pentagramas nos braços circulando à noite.
“Largaram o corpo da pobrezinha no cemitério. De quais outras provas os
policiais precisam?”
Achei interessante que Cindy Gibbons, a garota que havia deixado Cassidy em
casa na noite do homicídio, não apareceu em nenhuma das redes. Também não
retornou nenhum dos telefonemas de Carly. Provavelmente está em choque, pensei,
mudando de canal.
Depois de um intervalo comercial, o âncora grisalho do Channel 11 agitou de
forma dramática os papéis que estava segurando e começou a ler uma longa lista do
que chamou de “últimas providências”. Com efeito imediato, toda a cidade deveria
obedecer a um toque de recolher às 21h. Diversos bares e restaurantes anunciaram
que fechariam mais cedo, bem como vários varejistas locais, entre eles Walmart,
Baskin-Robins, Radio Shack e o Santoni’s. Além disso, todas as aulas do Colégio
Edgewood estavam suspensas pelo resto da semana. A escola primária e a ginasial
permaneceriam abertas, mas a frequência não seria obrigatória e ficaria a critério
dos pais/responsáveis. O colégio anunciou planos provisórios de reabertura para a
quarta-feira seguinte, 9 de novembro — terça-feira era dia de votação —,
e prometeu chamar um grupo de terapeutas especializados em luto para ajudar os
alunos a lidar com a tragédia.
Mais tarde naquela noite, subi a escada até meu quarto me sentindo
entorpecido e exausto. Eu não conhecia Cassidy Burch, a mãe nem a irmã caçula.
Pelo que me lembrava, nunca havia cruzado com nenhuma delas em uma loja ou na
rua, nem em lugar algum, para dizer a verdade. Ao contrário dos amigos de Cassidy
na televisão, eu jamais a ouvira cantar ou pintar ou gargalhar. Nem sequer sabia que
voz tinha.
Então por que meu coração estava doendo tão profundamente? Por que eu
sentia tanta raiva? Cassidy Burch era a quarta vítima do Bicho-Papão. Por que
agora a sensação era tão diferente? Eu estava me sentindo culpado por ter visto o
homem de máscara pouco antes do homicídio e não ter dito nada? Ou, meu Deus,
depois de todos aqueles anos… eu estava finalmente me transformando na minha
mãe?
Arrastei-me até a cama e liguei para Kara provavelmente pela quinta vez
naquela noite. Embora tivesse uma prova no dia seguinte e uma montanha de
trabalho, ela fez o que pôde para me alegrar antes de me desejar boa noite. Carly
Albright ligou logo depois, como prometido, mas eu já havia apagado a luz da
mesinha de cabeceira, desativado o toque do telefone e caído no sono.

Quando falei com Carly logo cedo na manhã seguinte, ela estava de mau humor,
tinha dormido mal e pouco. Nenhuma das costumeiras fontes havia conseguido
descobrir o que o assassino deixara para trás daquela vez na cena do crime de
Cassidy Burch. O detetive Harper tinha obviamente atormentado seus subordinados
para que não vazassem informações para a mídia e agora ninguém estava abrindo o
bico.
Carly acreditava que o Bicho-Papão manteria o, digamos, hábito. Deixaria, de
alguma forma, algo relacionado ao número 6. Eu concordei com ela. Depois de um
breve debate, decidimos que a conclusão mais provável poderia estar relacionada
com as abóboras. A polícia havia revelado para o público a história sobre as
lanternas de abóboras esculpidas que foram encontradas em volta do corpo, mas não
mencionou uma vez sequer quantas eram. A cena, dentro do contexto montado,
fazia todo o sentido — abóboras, cemitério, Halloween… —, mas era irritante e,
de certa maneira, estranho não ter essa informação. Ficou parecendo que nem tudo
tinha sido revelado.
Com a notícia da volta do Bicho-Papão, a mídia nacional voltou em peso para
a cidade com o intuito de cobrir o que começaram então a chamar de “O Halloween
do Terror”. Houve até boatos de que o America’s Most Wanted estava a caminho de
Edgewood para fazer uma simulação do último assassinato. O programa é um
sucesso nacional. Embora a maioria dos comerciantes locais ocultasse o próprio
entusiasmo, um grupo — que incluía Mel Fullerton, aquele idiota da lanchonete —
estava descaradamente inebriado com a perspectiva de colher os frutos das diárias
do pessoal da mídia. Reconheci muitas das personalidades dos noticiários que eu
via na televisão e, embora nenhuma delas me impressionasse demais, quase
consegui me tornar uma lenda local quando, dando marcha à ré, por pouco não
amassei o carro alugado de Maury Povich, do programa A Current Affair, no
estacionamento do shopping. Com aquele mau humor que não me largava,
eu provavelmente teria saltado do carro e dado um soco naquela carinha de
convencido. E se eu tivesse cruzado com Geraldo Rivera em algum lugar na cidade,
teria feito coisa até pior.
Também tinha uma história circulando de que o FBI estava planejando realizar
uma busca de casa em casa em toda a cidade. Defensores dos direitos civis já
haviam se reunido, fazendo um piquete na frente da delegacia e do tribunal. Muitos
donos de imóveis entrevistados no noticiário diziam que planejavam defender suas
propriedades com unhas e dentes, inclusive se armando.
Edgewood estava se transformando num barril de pólvora, prestes a explodir a
qualquer momento.

Quando o Colégio Edgewood reabriu na quarta-feira seguinte — já com George


H.W. Bush eleito presidente dos Estados Unidos da América —, dois terapeutas
especializados em luto trazidos de Baltimore haviam assumido o gabinete do
orientador educacional. No final daquela primeira semana, um terceiro terapeuta foi
acrescentado à equipe para ajudar a atender à multidão de adolescentes
transtornados que continuava aparecendo no gabinete todos os dias.
Os alunos do ensino médio que voltavam às aulas também eram recebidos pela
imagem de três detetives sentados atrás de mesas dobráveis na entrada do velho
ginásio. Visitando série a série, turma a turma, os detetives conseguiram entrevistar
cada um dos 857 estudantes matriculados. Tarefa que durou quase duas semanas.
Depois, eu mesmo conversei com um punhado de alunos, curioso para saber
quais perguntas haviam sido feitas. As respostas não foram surpreendentes: Você
conhecia bem as garotas que foram assassinadas? Sabe de algum problema
envolvendo as garotas — ressentimentos, boatos, namoros que terminaram mal,
qualquer coisa? As garotas eram especialmente próximas de algum membro do
corpo docente ou de outros funcionários da escola? Você viu algo estranho ou
incomum na cidade nos últimos meses?…
Logo depois, uma história interessante começou a circular. A polícia estaria
supostamente concentrando esforços em um homem de 31 anos chamado Aaron
Unger. Professor de inglês e treinador de futebol muito querido no Colégio
Edgewood, ele se mudara para a região havia apenas dois anos, proveniente de sua
cidade natal, Flint, no Michigan. Segundo várias pessoas, inclusive Bernie Gentile,
Unger já havia sido interrogado por detetives quatro vezes, mas ainda estava
devendo um álibi consistente.
Carly Albright acompanhou de perto a história por dias a fio e pôde confirmar
que muitos dos detalhes relatados sobre o interrogatório eram verídicos. Mas, logo
depois, as suspeitas caíram por terra quando ela recebeu a notícia de que Unger
havia finalmente revelado o motivo da sua relutância inicial em fornecer à polícia
um álibi. Obviamente, ele tinha um motivo: havia passado a noite de Halloween na
companhia de duas garotas de programa e temia que, se a notícia se tornasse
pública, ele (a) perderia o emprego de professor e (b) seria processado por
favorecimento à prostituição.
No final das contas, a polícia decidiu não apresentar denúncia e manteve
silêncio sobre toda a situação. Mas… acabou que não fez diferença. Ao término do
ano letivo, o professor Aaron Unger pediu demissão e voltou para o Michigan.

Na sexta-feira, 18 de novembro, Carly se encontrou com o famoso perfilador


criminal do FBI Robert Neville e o entrevistou para uma reportagem especial no
The Aegis.
A prática do perfilamento criminal — a análise de crimes para construir perfis
psicológicos e comportamentais de suspeitos em potencial — se tornara prevalente
na comunidade policial havia apenas uma década, quando o trabalho do agente do
FBI John E. Douglas sobre os assassinatos de crianças em Atlanta ocorridos de
1979 a 1981 o projetou nacionalmente.
Se John Douglas era amplamente considerado o pai do perfilamento criminal
— como de fato era —, Robert Neville estava rapidamente ganhando o título de
filho favorito.
Jovem, bonito e brilhante, Neville traçou um perfil aprofundado e controverso
do homem conhecido como “O Açougueiro de Boston”, que levou à prisão e
condenação, em 1985, de um amado padre de Massachusetts pelo homicídio e
estupro de sete prostitutas locais. Um ano mais tarde, seu trabalho de análise dos
“Assassinatos Brady Bunch”, ocorridos em um subúrbio de Chicago, rendeu-lhe a
segunda promoção em dois anos e a capa da revista People.
Apesar de todos os reconhecimentos, Carly não foi com a cara dele. Disse que
Neville era machista e arrogante, além de ter um mau hálito terrível. A entrevista só
durou trinta minutos, mas ela mal podia esperar que acabasse. Quando perguntei se
ela havia compartilhado alguma daquelas observações com o chefe ou o próprio
Neville, ela não captou o sarcasmo, me lançou um olhar de superioridade e
retrucou:
“O que que você acha?”
Eu sabia que era melhor não dizer mais nada.
O seguinte trecho da entrevista de Carly Albright com o criminologista do FBI
Robert Neville é reproduzido abaixo com a permissão tanto da autora como do The
Aegis:

CARLY ALBRIGHT: O que faz de um perfilador criminal um


profissional gabaritado?

ROBERT NEVILLE: A capacidade de estar na pele e entrar na mente de


um criminoso — para ver o mundo com olhos diferentes. Pensamento
crítico, lógica, razão… essas coisas. Intuição afiada e habilidades
analíticas. Distanciamento emocional. Estômago forte.

CARLY ALBRIGHT: O senhor alguma vez já se sentiu assombrado


pelo próprio trabalho? Digo… Pesadelos? Depressão?

ROBERT NEVILLE: Nunca. Algumas coisas perduram, é claro. Mas


tenho tendência a zerar tudo e seguir em frente. É necessário.

CARLY ALBRIGHT: Por que foi importante vir a Edgewood


pessoalmente? O senhor não poderia ter desenvolvido um perfil do
assassino lendo relatórios e conversando com os membros da força-tarefa
por telefone?

ROBERT NEVILLE: Sim, eu até poderia ter feito isso, mas, devido à
natureza dos crimes, ficou claro para mim que eu deveria estar aqui.
CARLY ALBRIGHT: O que o senhor quer dizer com “a natureza dos
crimes”?

ROBERT NEVILLE: Não se iluda, os ataques em Edgewood mostram


uma perigosa escalada de violência e perversão. Quatro homicídios em
151 dias. Ele gosta da sensação de matar e vai agir novamente se não o
detivermos.

CARLY ALBRIGHT: E o senhor tem certeza de que se trata de um


homem?

ROBERT NEVILLE: Claro. Mesmo sem uma testemunha ocular, eu


tenho certeza absoluta de que é um homem.

CARLY ALBRIGHT: O que mais o senhor pode nos dizer sobre o perfil
do Bicho-Papão?

ROBERT NEVILLE: Bem, ele está gostando de ser chamado por esse
apelido. Gosta de atenção e notoriedade. Conhece os que vieram antes
dele. Filho de Sam. BTK. O Perseguidor da Noite. De alguma forma, nós
permitimos que ele se sentisse parte de algo agora.

CARLY ALBRIGHT: O que mais?

ROBERT NEVILLE: Homem branco. Entre 25 e 30 anos.


Provavelmente solteiro ou divorciado. Inteligência média ou ligeiramente
acima da média. Boa forma física. Desempregado ou tem um trabalho que
permite que ele se movimente livremente tarde da noite. Mora perto, em
um lugar isolado, ou dirige uma picape ou van. Violenta e mata as vítimas
em algum local ermo e depois as desova em outro lugar.

CARLY ALBRIGHT: Então o senhor acredita que ele mora aqui em


Edgewood?
ROBERT NEVILLE: Acredito, não. Tenho certeza. Ele conhece bem as
ruas e os pontos de desova.

CARLY ALBRIGHT: Ele conhecia pessoalmente as vítimas?

ROBERT NEVILLE: Não necessariamente. Na verdade, é bem provável


que não. Mas, quando elas capturam seu interesse, quando ele toma sua
decisão, observa-as por muito tempo antes de dar o bote.

CARLY ALBRIGHT: O senhor está dizendo que ele dirige pela cidade
escolhendo aleatoriamente as vítimas?

ROBERT NEVILLE: Não. De forma alguma. Ele claramente prefere


um tipo específico. Adolescentes, atraentes, populares, de cabelos
compridos. Ele tem raiva dessas garotas. Quer dominá-las e destruí-las.
Por quê? A navalha de Ockham: a resposta mais provável é a mais
simples. Alguém que se encaixa nessa descrição física o magoou no
passado. Ele se sente ofendido, maltratado ou enganado. Sacaneado até.
Talvez ache que tenham mentido para ele, fazendo-o parecer bobo e fraco.

CARLY ALBRIGHT: Por que ele morde as vítimas?

ROBERT NEVILLE: Morder é algo pessoal, íntimo, e demonstra seu


poder sobre as vítimas. O mesmo motivo pelo qual ele as estrangula em
vez de usar uma arma. Ele quer que essas garotas — e o público —
saibam que são impotentes, incapazes de impedir que ele faça o que bem
quiser.

CARLY ALBRIGHT: E as orelhas decepadas?

ROBERT NEVILLE: A mesma coisa. Ele as leva como souvenires,


lembranças. Controla tudo. Muito provavelmente, com o passar do tempo,
ele tira esses souvenires do esconderijo e vivencia novamente a
experiência.
CARLY ALBRIGHT: Por que ele põe os corpos em pose?

ROBERT NEVILLE: Os motivos podem ser vários. É parte do que nós


chamamos de “assinatura”. Mais uma vez, ele pode estar exibindo seu
poder sobre as vítimas. “Eu não apenas controlei você quando viva,
também quando morta.” Ou, quando o ato é completado, ele pode vir a
ter uma sensação de remorso, por mais fugaz que seja.

CARLY ALBRIGHT: Vários policiais com os quais conversei se


referiram ao assassino como “O Fantasma”. Como é possível capturar um
fantasma, sr. Neville?

ROBERT NEVILLE: Apelido divertido, mas impreciso. O homem que


estamos procurando tem se mostrado fugidio, mas garanto que ele é
totalmente de carne e osso. E vai acabar cometendo um erro, e nós vamos
pegá-lo.

CARLY ALBRIGHT: O senhor acha que ele está zombando da polícia?

ROBERT NEVILLE: Acho que ele está jogando e gostando. Ele gosta
de matar e está se tornando cada vez melhor.

E lá estava, preto no branco: O assassino era, sem dúvida, alguém da cidade. Ele
conhece bem as ruas e os pontos de desova.
Joguei o jornal no lixo e afastei minha cadeira da escrivaninha. Quem era eu
para questionar o grande Robert Neville?
Ao sair do quarto e descer para pegar o carro e ir à agência dos correios para
verificar minha caixa postal, percebi por que andava me sentindo tão irritadiço e
rabugento nas últimas semanas. Por mais que eu quisesse que não fosse verdade, eu
sempre soube, no fundo do meu coração, que o detetive Harper e Robert Neville
tinham razão: O assassino era um de nós.

Naquela manhã de domingo, enquanto meus pais estavam no final da rua, na


igreja Prince of Peace, encontrei alguns amigos atrás do colégio para jogar
basquete. Meu ex-colega de quarto Bill Caughron apareceu lá com o irmão mais
velho, Lee, além de Jeff Pruitt, John Schaech, os irmãos Crawford e alguns caras
mais jovens, que eu não conhecia muito bem e haviam voltado para casa no feriado
do Dia de Ação de Graças. Jogamos uma partida rápida em meia quadra, de vinte e
um pontos, para aquecer e, depois, uma de quadra inteira por mais uma hora e meia.
Era uma sensação boa estar ao ar livre, suando como um porco e pondo o
assunto em dia com velhos amigos. Exatamente o que precisava para deixar para
trás o desânimo em que eu me encontrava. Claro, o assassinato de Cassidy Burch
foi o assunto principal. Jeff Pruitt, Kenny e Bobby Crawford cresceram na Boxelder
Drive, a dois minutos a pé da casa de Jessica Lepp, onde Cassidy festejou com as
amigas antes de ser morta naquela noite. Bobby conhecia tanto Jessica como
Cassidy e ainda estava irritado por Cindy Gibbons não ter esperado a amiga entrar
em casa na noite de Halloween.
“E eu não sou o único a achar que foi culpa dela. Soube que ela está
até recebendo ameaças de morte.”
Um dos caras mais jovens disse que a mãe trabalhava com a sra. Burch, que
estava tentando segurar as pontas e ser forte para a irmã caçula de Cassidy. Um
grupo de mães havia se reunido e organizado uma agenda de entrega de refeições
para que a família Burch não tivesse que se preocupar em cozinhar. Também
estavam se revezando para fazer compras para a família.
Sedento e dolorido depois do jogo, parei no 7-Eleven a caminho de casa.
Como sempre, o corredor dos fundos perto da máquina de café estava abarrotado.
Cumprimentei com a cabeça o sr. Anderson e Larry Noel, pedi licença aos demais
para passar e fui em direção à máquina de Slurpee no final do balcão. Um garotinho
ruivo e sardento com um catarro amarelo esverdeado pendurado na narina esquerda
chegou na minha frente e começou a preparar um Blueberry Smash tamanho jumbo.
Enquanto eu esperava a minha vez, fazendo de tudo para não ficar olhando
para o ranho que se aproximava perigosamente do lábio superior do moleque —
toda vez que ele inspirava, a meleca desaparecia dentro da narina e, toda vez que ele
expirava, ela reaparecia —, não pude deixar de ouvir trechos da conversa ao lado.
“Usando aquele chapéu horroroso…”
“… e ele estava de novo lá ontem de noite. Eu vi eles…”
“Aquele filho da puta é preguiçoso demais pra matar alguém.”
“… lá perto do corpo de bombeiros…”
“Ainda aposto no Stan. Ele tem uma…”
“… não é tão difícil de descobrir que ele tem uma ficha corrida mais
comprida que o meu braço.”
“… e, se a polícia não faz, nós é que deveríamos fazer.”
“Quatro garotas brancas mortas e um policial negro… como assim o que tem
de errado nisso?”
De repente, um dos homens pigarreou. Alto.
“Você vai pegar uma bebida ou vai ficar aqui bisbilhotando a conversa alheia a
manhã inteira?”
Pisquei e percebi que o homem estava falando comigo. O ruivinho melequento
havia sumido. Olhei para o sujeito e tentei forçar um sorriso. Todos os homens
estavam me encarando.
“Eu não estava escutando. Estava sonhando acordado. Desculpe.”
Ignorando os resmungos, peguei um copo e comecei a enchê-lo. Quando
terminei, tirei um canudo da caixa sobre o balcão e respirei fundo. Só havia um
caminho até o caixa. Virando-me de lado para ocupar o menor espaço possível, pedi
licença várias vezes e comecei a atravessar o corredor. Até que um ombro duro
bateu no meu braço, interrompendo meu avanço.
“Você precisa prestar mais atenção por onde anda”, disse um homem careca e
atarracado que não reconheci.
“Deixa ele em paz”, alguém se manifestou, atrás de mim. Virei-me e o sr.
Anderson estava lá, em pé. Cheirava a cigarro e café. “Como vai, Rich?”
Engoli em seco, aliviado.
“Tudo bem. E o senhor?”
“Tudo ótimo”, respondeu. “Feliz Dia de Ação de Graças para os seus pais.”
“Obrigado. Mande lembranças minhas para a sra. Joyce também.”
Ele assentiu e eu segui em frente, ansioso para sair dali. Pouco antes do final
do corredor, ouvi um sussurro às minhas costas:
“É assim que se acaba se metendo em encrenca, garoto.”
Continuei andando e não olhei para trás.
7

A segunda metade de novembro foi especialmente frenética para a força-tarefa do


Bicho-Papão. Com as festas de final de ano batendo à porta, as pessoas estavam
eufóricas com os preparativos — compras de mantimentos para o feriadão de Ação
de Graças e também de presentes antecipados e decorações de Natal —, mas, ao
mesmo tempo, com os nervos em frangalhos. Ligações para o 190 e para o disque-
denúncia continuavam em ritmo recorde.
Um homem que morava em frente à escola primária relatou ter ouvido passos
no telhado de casa no meio da madrugada.
Uma moradora da Sequoia Drive ouviu um baque surdo fora de casa enquanto
lavava a louça. Olhou pela janela da cozinha e viu um vulto escuro pulando a cerca
do jardim dos fundos.
Uma das atendentes da agência dos correios deixou um recado no disque-
denúncia descrevendo uma misteriosa pilha de guimbas de cigarro que havia
descoberto atrás da cabana que a família tinha no jardim. O marido, envergonhado,
ligou uma hora mais tarde para pedir desculpa. Os cigarros eram dele. No último
mês, ele saíra de casa várias vezes por dia para fumar escondido, embora tivesse
jurado à esposa que havia parado.
Uma funcionária da contabilidade do Harford Community College caiu em
prantos enquanto contava a uma telefonista veterana do 190 que tinha acabado de
ouvir o grito de uma mulher vindo do terreno baldio atrás de casa.
Um homem disse que o portão dos fundos fora deixado aberto durante a noite;
uma mulher irritada reclamou que a luminária da varanda havia sido vandalizada;
uma menina de 9 anos ligou para dizer que seu cachorro da raça corgi chamado
Elvis havia sumido do jardim cercado nos fundos de casa.
E o detetive Harper e sua equipe da força-tarefa investigavam cada um dos
telefonemas.

Na antevéspera do Dia de Ação de Graças, o Channel 13 interrompeu uma reprise


de M*A*S*H às 19h30 para noticiar que, minutos antes, um homem havia entrado
no Departamento de Polícia do Condado de Harford e confessado os homicídios
recentes das quatro garotas de Edgewood.
A equipe de jornalistas não tinha foto nem o nome do sujeito, mas, segundo o
repórter que estava no gabinete do xerife, ele parecia ter uns 35 anos, era alto e
corpulento, com cabelos escuros curtos e bigode.
Naquela noite, a cidade inteira — inclusive meus pais e eu — fomos dormir
torcendo e rezando para que o pesadelo tivesse finalmente terminado.
Infelizmente, nosso otimismo durou pouco.
Na manhã seguinte, foi amplamente noticiado que a confissão do homem era
uma farsa — afinal, ele estava numa penitenciária na Pensilvânia, detido por
arrombamento e invasão, quando as duas primeiras garotas foram mortas. O homem
não identificado havia sido detido pela polícia e estava sendo submetido a um
exame psiquiátrico.

Eu estava sentado à mesa na sala de jantar na manhã após o Dia de Ação de


Graças, ainda de pijama, me sentindo gordo e sonolento, lendo o jornal, quando
Carly apareceu sem avisar.
“Fazendo o que aqui?”, perguntei. “Como você entrou na minha casa?”
Ela se acomodou numa cadeira à minha frente.
“Sua mãe abriu a porta pra mim.”
“Não ouvi a campainha.”
“Porque não toquei. Sua mãe estava lá fora, varrendo a calçada.”
“Acho que eu preferia quando você e minha mãe não se conheciam.”
Ela sorriu.
“Aquela mulher é uma santa.”
Eu não tinha como negar isso.
“Então, por que você…?”
“Tenho uma coisa pra te mostrar”, ela me interrompeu e, curvando-se para a
frente, tirou um envelope de papel pardo do compartimento lateral da bolsa igual à
da Lois Lane, porém exageradamente grande, que ela havia começado a usar. Abriu
o envelope e fez deslizar quatro fotos brilhosas em cima da mesa.
“O que é isso?”, perguntei, bocejando.
“O que parece?”
Olhei mais de perto.
“Que você tirou fotos das homenagens que as pessoas deixaram para as
garotas. Meio assustador.”
“Eu, não. Um dos fotógrafos da nossa equipe.”
“Ah, tá”, falei. “E daí?”
“Olhe novamente”, pediu, gesticulando em direção às fotos. “Elas estão em
ordem. Nota algo interessante?”
Estudei a primeira foto por muito tempo. Estava prestes a dizer que eu não
tinha a menor ideia sobre o que ela estava falando quando percebi do que se tratava
— no canto direito inferior da fotografia.
Passei imediatamente para a segunda foto. Inclusive, demorei um pouco mais
daquela vez, mas, no final, localizei o que estava procurando — no canto superior
esquerdo.
“Puta merda!”, exclamei, olhando para ela.
“Incrível, né?”
ACIMA: O 7-Eleven na Edgewood Road
(Foto cortesia do autor)
ACIMA: Equipe jornalística local entrevistando Lindsey Pollard, amiga de Cassidy Burch (Foto cortesia
do The Baltimore Sun)
onze

Homenagens
“A imagem estava desenhada grosseiramente, mas a representação era
cristalina…”

Reuni as fotografias em uma pilha ordenada.


“Você desvendou tudo isso sozinha?”
“É tão difícil assim de acreditar?!”, perguntou Carly, lançando aquele seu olhar
cortante. “Caramba. Você acha que eu preciso de um homem brilhante ao meu lado,
tipo você ou o Neville, não é?
“Bem… não. Eu só estava me perguntando se outra pessoa no jornal havia
visto. Um fotógrafo talvez?”
“Ah, bom”, ela disse, relaxando. “Ninguém sabe. Só você.”
“E estava tudo ali o tempo todo”, suspirei. “Você sabe que temos que contar
para o detetive Harper, não sabe?”
Ela franziu o cenho.
“Eu temia que você fosse dizer isso.”
“Faz questão de ter a honra ou topa deixar pra mim?”
“Quer levar todo o crédito, né, espertinho?”, brincou. “Dããã… não, obrigada.
Eu mesma ligo pra ele.”

2
Enquanto Carly ligava para o detetive Harper da extensão da cozinha, espalhei as
quatro fotografias sobre a mesa de jantar e as reexaminei.
Eram fotos coloridas tamanho 20x25 — nítidas e em foco —, suaves ao toque,
pois foram reveladas em papel matte. A primeira foi tirada no jardim da frente da
casa dos Gallagher pouco depois do velório de Natasha. Quando a fita vermelha que
alguém tinha amarrado em volta do carvalho dos Gallagher desapareceu, não
demorou muito até ser substituída por uma homenagem um pouco mais elaborada.
Alguém — muito provavelmente uma amiga — havia escrito NATASHA PARA SEMPRE
EM NOSSOS CORAÇÕES no centro de uma enorme cartolina e desenhado um coração
vermelho em volta. Várias fotografias pequenas de Natasha foram coladas ou presas
com durex de cada lado do coração. O espaço branco restante foi coberto por
dezenas de mensagens manuscritas — DESCANSE EM PAZ! SAUDADE! VOU TE
AMAR PARA SEMPRE! VOCÊ NUNCA SERÁ ESQUECIDA — e um punhado de
desenhos (corações, mãos em oração, passarinhos, arco-íris e carinhas tristes com
lágrimas escorrendo dos olhos). O cartaz havia sido pregado ou grampeado na base
da árvore. Logo em cima, uma cruz de madeira, coberta de flores, estava pendurada
num prego. Embaixo, espalhado sobre a grama, um pequeno exército de pelúcias:
ursos e girafas, elefantes e dinossauros coloridos; além de uma fileira desalinhada
de vasinhos de vidro com buquês de flores murchas e os tocos de uma dúzia de
velas.
Meus olhos se deslocaram para o canto inferior direito do cartaz, focando em
uma pequena imagem espremida entre um coração partido ao meio por uma
rachadura entrecortada e uma carinha triste com uma expressão exagerada.
A imagem estava desenhada grosseiramente, mas a representação era cristalina:
uma amarelinha em miniatura. Dentro de cada um dos quadrados, havia o número
3.
Engoli em seco e passei para a segunda fotografia: o altar dedicado a Kacey
Robinson que havia sido erguido pertinho da base do escorregador no parque Cedar
Drive. Em vez de uma enorme cartolina, a homenagem a Kacey era composta de
três cartazes caseiros menores. Fiquei olhando para o sinal retangular no meio.
Canto superior esquerdo. Logo embaixo de uma foto de Kacey Robinson andando
de bicicleta sem segurar no guidom e com um grande sorriso estampado, alguém
havia desenhado uma pequena réplica, talvez com dez centímetros de altura, do
cartaz que foi encontrado pendurado no poste de telefone na frente da casa dos
Robinson. VOCÊ VIU ESTE CACHORRO? estava escrito apertado na parte superior do
cartaz e LIGUE PARA 4444 estava rabiscado na parte inferior. No meio, o desenho de
um cão com um sorriso cheio de dentes.
Com o coração ainda disparado, peguei a terceira fotografia: outra homenagem
no jardim, nesse caso para Madeline Wilcox. Montes de flores, várias cruzes
pequenas e dois maços de Marlboro fechados estão sobre a grama, na frente de um
pôster de Madeline. Ela estava usando um vestido de verão amarelo e chinelos de
dedo, sentada feliz da vida no capô de um carrão clássico, parecendo livre, leve e
solta. O pôster media pelo menos um metro e meio por noventa centímetros e estava
preso a uma longa estaca de madeira que havia sido fincada na grama, como um
galhardete. Um feixe de balões em formato de coração flutuava na brisa sobre a
cabeça de Madeline. Olhei para o para-choque dianteiro do carro, a poucos
centímetros do pé direito de Madeline, onde o assassino havia usado um pedaço de
durex para prender cinco moedas brilhantes de um centavo no pôster.
Antes que eu pudesse mudar de ideia, passei para a última fotografia.
No momento em que a foto foi tirada, a homenagem a Cassidy Burch ainda estava
em estágio inicial. Só um punhado de cartazes caseiros e cartões de condolências
presos às barras de ferro forjado da grade que circunda o cemitério, bem como
alguns balões e uma vela solitária. Eu havia acabado de assistir a uma reportagem
no noticiário e o tamanho do altar tinha mais que quadruplicado. Na parte inferior
do maior cartão de condolências, embaixo da assinatura da pessoa que o deixara,
o assassino havia desenhado uma abóbora gorda com um sorriso torto — e seis
olhos triangulares. Chegava a ser obsceno.
“Ele vem nos buscar em quinze minutos”, Carly me informou por cima do meu
ombro, e eu quase gritei.

“Vocês dois são impossíveis, sabiam?”


O detetive Harper balançou a cabeça e levantou os olhos das fotografias com
um misto de incredulidade e admiração. Pelo menos era o que eu esperava que a
expressão em seu rosto quisesse dizer. Era difícil saber, talvez ele só estivesse
novamente com raiva.
Estávamos estacionados na frente do Boys and Girls Club na Cedar Drive,
a poucos minutos de distância da casa dos meus pais. Por ser um cavalheiro — para
não falar do medo que eu sentia do detetive Harper naquela época —, eu havia
aberto a porta do passageiro para Carly, que, não tendo outra alternativa, aceitou.
Uma decisão da qual ela talvez estivesse se arrependendo naquele exato momento.
“O senhor não ficou nem um pouquinho impressionado?”, Carly perguntou
baixinho.
Ele a encarou. Em seguida, balançou lentamente a cabeça.
“Fiquei, sim. Mas..”
“Mas…?”
“Mas já sabemos dos desenhos e das moedas de um centavo há algumas
semanas.
“Ã-hã… Fala sério!”, deixei escapar e imediatamente me arrependi.
O detetive virou para trás.
“Como é que é?”
“Desculpe”, pedi, baixando os olhos. “Não era minha intenção levantar a voz.
Só estou… surpreso.”
“Bem, não deveria. E você…”, ele estava falando novamente com Carly, “você
sabe que não pode escrever sobre isso, não sabe? E nenhum dos dois pode dar um
pio a respeito, com quem quer que seja.”
“Eu sei”, ela disse, fazendo beiço.
“E o Hardy Boy no banco traseiro… também sabe, não é mesmo?”
Assenti com a cabeça, era mais seguro do que falar.
“Você se incomoda se eu levar isto aqui comigo?”, perguntou Harper
levantando as fotografias.
“Fique à vontade”, ela disse. “Mas… posso fazer uma pergunta?”
“Diga.”
“Vocês estão de tocaia perto das homenagens? Caso ele volte?”
Harper pensou a respeito por um instante antes de responder.
“Todas as noites, há duas semanas.”
“Todas as quatro?”
Ele fez outra pausa antes de responder.
“Todas.”
“E?”
“Nada que eu possa compartilhar com vocês.”
“Ah, para, vai”, ela reagiu com um tom que me surpreendeu. “Só eu e o Joe
Hardy aqui atrás…”
“Opa!”, exclamei, voltando a me sentar direito.
“Nunca demos motivo para o senhor duvidar da gente. Nem antes nem agora.
Ligamos para o senhor hoje, não foi? Não precisávamos ter feito isso. Podíamos
ter…”
“Tudo bem, tudo bem… vocês venceram”, Harper levantou as mãos em sinal
de rendição. Havíamos conseguido convencer o policial. Ele expirou por vários
segundos antes de dizer: “Escutem só… tudo isso tem que permanecer em segredo,
está bem?”
“Claro, morre aqui”, ela garantiu.
Ele olhou para o banco traseiro.
“Sim, claro”, repeti.
“Só começamos a vigiar em tempo integral as homenagens duas semanas atrás
porque foi quando descobrimos o que ele estava fazendo. Esse foi o nosso erro.
Devíamos ter pescado antes. Se o povo soubesse, nos expulsariam da cidade, e com
razão”, Harper contou e se movimentou pesadamente no banco. “Mas, mesmo antes
de termos percebido, tínhamos agentes de olho nas homenagens. Praticamente
desde o primeiro dia, uma ronda pelo menos a gente fazia.”
“E viram algo?”, Carly perguntou.
Deitei a cabeça para tentar olhar para ela e, pela primeira vez, eu me dei conta
de que ela um dia talvez realmente ganharia um Pulitzer.
“O suficiente para pedir a familiares, amigos e certos membros da mídia
fotografias ou vídeos das vigílias que foram realizadas nos locais onde as
homenagens foram depositadas. Muitos rostos diferentes naquelas multidões. Ainda
estamos analisando tudo o que recebemos. Um por um.”
“Decisão inteligente”, ela disse.
“Obrigado por aprovar.”
Carly soltou um risinho.
“Então, imagino que algum padrão começou a surgir? Visitantes repetidos?
Rostos conhecidos que apareciam sempre?…”
“Você ficaria surpresa”, ele disse, assentindo. “Algumas pessoas visitaram ou
passaram de carro por lá quase todos os dias. Fizemos uma lista dessas pessoas.”
Essa não. Meu rosto começou a ficar quente.
“Geralmente eram parentes ou amigos, pessoas com as quais já tínhamos
falado e que tinham álibis consistentes.”
Minhas mãos estavam suando.
“Mas, vez por outra, alguém interessante aparecia.”
Meu estômago embrulhou.
“Alguém cujo comportamento achamos incomum… ou até mesmo estranho.”
“Estranho como?”, Carly perguntou.
“Vimos de tudo. Ataques histéricos de choro. Surtos de raiva. Preces
exageradas. Algumas pessoas até levavam consigo souvenires quando iam embora.
Animais de pelúcia. Fotografias…”
Tentei engolir, mas minha boca estava seca demais.
“Quando isso acontecia, geralmente verificávamos o histórico da pessoa e, às
vezes, até destacávamos uma unidade de vigilância à paisana para ficar de olho
nela, só para ver se surgia algum outro… comportamento estranho.”
Merda. Mais dez segundos daquilo e eu ia vomitar.
“Desculpe”, Carly pediu de repente. “Acabei de receber uma mensagem no
pager. Preciso ligar para o jornal.”
Graças a Deus, graças a Deus, graças a Deus. Que Deus abençoe seu
precioso pager!
O detetive Harper deu a partida no motor e saiu do estacionamento. Alguns
minutos mais tarde, enquanto virávamos na entrada da garagem dos meus pais,
olhei para o retrovisor e vi que ele estava me encarando. Antes que eu conseguisse
desviar o olhar, ele piscou para mim.
ACIMA: Carly Albright correndo atrás de uma matéria para o The Aegis (Foto cortesia de Brooklyn
Ewing)
doze

Shotgun Summer
“Foi ele.”

Desde o encontro com o detetive Harper uma semana antes, algo estava me
incomodando. Demorei alguns dias para superar aquela piscadela no retrovisor e a
ideia de que a polícia sabia tudo a respeito das vezes em que eu havia passado de
carro pelos locais das homenagens e, muito provavelmente, pelas casas das vítimas
também. Estava claro que eu não era tão esperto quanto achava.
Além disso tudo, ainda havia uma fotografia guardada dentro de um envelope
no fundo da gaveta da minha escrivaninha.
Eu tinha achado a foto havia uns meses, num trecho de grama pisoteada
embaixo da árvore onde os amigos e familiares de Natasha Gallagher tinham
erguido o altar. Uma imagem 10x10 de Natasha comendo caranguejos cozidos
numa mesa, um típico piquenique ao lado de uma piscina; a foto estava desbotada e
amassada devido à exposição às intempéries. Atrás, tinha uma parte de uma pegada
e um minúsculo rasgo irregular no canto superior esquerdo onde havia sido fixada
ao cartaz com um grampo ou uma tachinha. Deduzi que o vento devia tê-la soltado.
Na noite de setembro em que me deparei com ela, olhei à minha volta para ter
certeza de que ninguém estava observando, depois me curvei, fingindo amarrar o
sapato, peguei e guardei a foto no bolso traseiro do meu short enquanto me
afastava. Como o detetive Harper havia dito, sem dúvida um comportamento
estranho. Naquele momento, eu já não entendi bem por que havia roubado a
fotografia, e continuava sem entender. Eu só sabia que Harper ou um dos seus
agentes havia testemunhado tudo.
Mesmo assim, não era aquilo que me incomodava. Constrangimento dá e
passa. Foi algo que aprendi na marra ao longo dos anos. Era outra coisa — algo
importante — rastejando logo abaixo da superfície da minha consciência, fazendo
de tudo para se libertar e vir à tona, mas, até então, sem êxito.
Aquilo estava me enlouquecendo.
Até tentei um velho truque ensinado por um professor — um mestre do
jornalismo — que eu detestava, mas que, a contragosto, passei a respeitar ao final
do curso. Ele havia sugerido que, para lembrar fatos importantes ou enredos que
haviam de alguma forma escapado da memória, um escritor deveria fazer uma lista
de todas as coisas — por mais triviais que fossem — que haviam preenchido
recentemente seus dias.
Minha lista se parecia com esta:

Dia de Ação de Graças


Kara
Mamãe
Papai
Carly
Detetive Harper
Homenagens
Bicho-Papão
Escorregador
Fotografias
Cedar Drive
Basquete
Biblioteca
Agência dos correios
Shopping/Mercado
Impressora
Revista
Conto
Recusa
Banco
Pizza Hut
Stephen King
Cinema
Sebo da Carol
Troca de óleo
Neve fofa
Cemitério
Boys and Girls Club

Pensei em acrescentar paraquedismo, automobilismo e rafting só para fazer


minha vida parecer um pouco mais interessante, mas desisti. Não fazia diferença.
Por mais que eu a examinasse, a lista não funcionava e eu voltava à estaca zero.

Acordei tarde na manhã de terça-feira, 6 de dezembro, vesti meu velho e surrado


roupão marrom, calcei os chinelos e logo comecei a trabalhar em um novo conto
que eu havia iniciado na noite anterior. Não era lá grandes coisas, mas eu gostava
bastante dos protagonistas e achava que a história tinha potencial se eu melhorasse
as próximas versões. O título era “Shotgun Summer” e a trama girava em torno das
aventuras de dois namorados adolescentes fugitivos que acabam se metendo com
uma violenta gangue de ladrões de banco. A certa altura, o garoto saca que vai dar
merda, e sente que precisa cair fora o quanto antes, desaparecer, sumir dali, mas a
namorada de 16 anos tem outros planos. Depois de sentir o gostinho de dinheiro
fácil e derramamento de sangue, ela acaba gostando. Eu estava provavelmente na
metade da história quando escrevi esta cena:
Nos arredores de Toledo, eles pararam num posto Phillips 66 para
reabastecer a van. Enquanto Jeremy e Trudy iam para os fundos para usar o
banheiro, Hank entrou sozinho e pagou à funcionária trinta dólares de gasolina
comum, além de refrigerantes, cigarros e a edição daquela manhã do Plain Dealer.
A senhora atrás da registradora em momento algum tirou os olhos da revista que
estava lendo.
Quando Hank voltou para a van, jogou o jornal no painel, na frente de Leroy,
e disse:
— Vai dar ruim.
Na primeira página, estava impressa uma fotografia do banco que eles haviam
roubado dois dias antes. Ao fundo, na calçada, jaziam dois corpos.
E, do nada… eu lembrei.
Revirando a escrivaninha atrás do cartão de visita, peguei o telefone e liguei
para o detetive Harper.
3

Para minha surpresa, ele não ficou zangado comigo. Na verdade, não me chamou
de Joe Hardy sequer uma vez.
Comecei a descrever o incidente que havia ocorrido na frente da minha casa na
noite de Halloween. O homem vestido de preto, olhando para mim do outro lado da
rua, no jardim dos Hoffman. Uma picape virando a esquina e os faróis
possibilitando que eu visse com clareza a máscara que o homem estava usando.
Eu disse que, embora tivesse ficado nervoso de início, especialmente porque
Cassidy Burch havia sido assassinada mais tarde naquela mesma noite, achei que
fosse só mais uma brincadeira de um adolescente — como os garotos que se
meteram em encrenca há cerca de um mês por assustarem pessoas em casa. Por isso
eu havia ficado em silêncio.
Mas alguma coisa a respeito daquela noite continuava a rondar minha mente,
embora cinco semanas tivessem se passado. Só que, até aquela manhã, eu não me
lembrava o que era.
A mulher que tinha tirado duas fotografias na entrada da minha garagem
estava virada de frente para o homem de máscara. Dependendo do zoom e
do enquadramento das fotos, era bem capaz do homem aparecer no fundo.
O detetive Harper precisava apenas descobrir quem eram o Incrível Hulk e o
Super-Homem.

Só demorou um dia.
Após mandar seus homens irem de porta em porta na Hanson Road e nos
arredores, o detetive Harper conseguiu descobrir a identidade e o endereço da
mulher. Seu nome era Marion Caples e ela morava com o marido e o filho de 6
anos, Bradley, vulgo Incrível Hulk, no final da Harewood Drive. Já o Super-Homem
era Todd Richardson, 7 anos de idade, filho da sua vizinha.
Marion Caples ainda não havia mandado revelar o filme da noite de
Halloween, então o detetive Harper encarregou o laboratório da polícia daquela
tarefa. A primeira foto saiu tremida e descentralizada, e provavelmente foi por isso
que eu tinha ouvido a sra. Caples implorar às crianças para tirar “só mais uma”.
A segunda foto, no entanto, estava absolutamente perfeita. Não podia ter sido tirada
em um momento mais oportuno. Enquanto, no primeiro plano, o Hulk e o Super-
Homem mostravam seus músculos e suas línguas manchadas de pirulitos de cereja,
atrás deles, o homem mascarado, iluminado pelos faróis da picape, aparecia de
perfil.
No início, o detetive Harper disse que não poderia nos mostrar a fotografia
porque se tratava de uma investigação em andamento. Mas quando Carly
mencionou que havíamos prometido sigilo em troca de mais informações, ele
cedeu. Aquela garota estava se tornando uma repórter e tanto.
A foto que ele empurrou sobre a escrivaninha na tarde do dia seguinte era uma
ampliação de 20x25, colorida e absolutamente nítida. Eu não disse muita coisa
enquanto estávamos na delegacia, mas, quando voltei com Carly para o carro, as
primeiras palavras que saíram da minha boca foram:
“Foi ele. Não me pergunte como eu sei, mas eu sei.”
treze

Perguntas
“Já assustado, ele se virou e viu o contorno da máscara branca do
assassino flutuando na escuridão…”

Na quarta-feira, 14 de dezembro, a cidade de Edgewood acordou, espantada, com


quinze centímetros de neve fresca. As escolas precisaram cancelar as aulas e muitos
moradores faltaram ou chegaram atrasados ao trabalho. A previsão do tempo na
noite anterior tinha falado apenas de cinquenta por cento de chance de neve fraca,
por isso nenhuma das ruas recebeu sal e os caminhões limpa-neve não madrugaram.
Resultado: às 10h, a maioria das ruas ainda estava coberta. Era uma neve molhada,
perfeita para fazer bolas e, no final da manhã, uma batalha épica estava sendo
travada na Tupelo Drive. De um lado da rua, três garotos se encontravam em pé
atrás de um muro de neve compactada que chegava até o peito; do outro, mais perto
da minha casa, cinco garotos menores contra-atacavam corajosamente, mas eram
impiedosamente rechaçados. De tempos em tempos, batiam em retirada,
reagrupavam-se atrás de um carro coberto de neve na entrada da garagem do meu
vizinho, carregavam um novo lote de munição e, valentes, lançavam um novo
ataque à fortaleza. Fiquei observando por um bom tempo, em total segurança, da
janela do meu quarto, pensando melancolicamente que daria tudo para sair e me
juntar a eles.
Seis semanas tranquilas haviam se passado desde a noite de Halloween e o
assassinato de Cassidy Burch. Segundo a última coletiva de imprensa do detetive
Harper no primeiro dia do mês, a força-tarefa estava seguindo uma série de pistas e
trabalhando em conjunto com agentes do FBI para manter o maior nível de
segurança possível dentro da comunidade. Seja lá o que isso significasse. Eu só
sabia que havia notado menos viaturas circulando pela cidade desde o Dia de Ação
de Graças. Meu pai havia dito a mesma coisa para mim um dia antes.
Desde o feriado, dois outros suspeitos haviam sido detidos e interrogados. O
primeiro era um dos motoristas de ônibus do Colégio Edgewood, tinha 39 anos e
seu itinerário diário incluía as casas de duas das garotas assassinadas. O segundo
era um ex-segurança do Harford Mall que morava com a mãe na Hornbeam Road.
Várias queixas de assédio haviam sido prestadas contra ele pelas clientes — todas
adolescentes de cabelos compridos —, então o shopping o demitira logo depois da
Black Friday.
Carly Albright cobriu as duas detenções para o The Aegis e me disse que não
deram em nada. O motorista apresentou álibis para os quatro assassinatos e o ex-
segurança tinha cabelos louros compridos e eriçados que não batiam com o retrato
falado da polícia, além de uma grave lesão na mão direita devido a um antigo
acidente de carro. As forças policiais concluíram que não havia chance alguma de
aquele homem ter estrangulado alguém.
O detetive Harper não tocou mais no assunto da fotografia da noite de
Halloween e eu também não perguntei a respeito. Eu continuava esperando a
imagem aparecer no jornal ou em algum noticiário noturno, mas, até aquele
momento, não havia sido sequer mencionada.
Enquanto eu fazia compras uma tarde com minha mãe, notei que o salão de
beleza ao lado da Radio Shack parecia particularmente movimentado.
Imediatamente pensei, lá vem tudo de novo, mas minha mãe me garantiu que o
único motivo eram as festas de fim de ano e que, segundo fontes bem-informadas,
a “febre dos cabelos curtos” em Edgewood havia terminado. Mais ou menos no
mesmo período, Carly conversou com Joe French da loja de penhores, que disse que
ninguém mais estava comprando armas. Considerei uma boa notícia.
Outra coisa havia mudado nas seis semanas desde a noite de Halloween: em
todo aquele tempo, recebemos só um trote telefônico. Enquanto no período anterior,
com o passar dos dias os telefonemas começaram a lentamente rarear, daquela vez
eles praticamente pararam por completo. Eu nem conseguia me lembrar da última
vez que havia acontecido. Na semana antes do Dia de Ação de Graças, talvez.
O tempo parecia passar mais rápido em dezembro, o chamariz dos feriados e
de um ano novinho em folha exercia sobre nós uma atração inexorável.
Na sexta-feira, 16 de dezembro, um fato muito importante aconteceu na minha
vida. Um caminhão da UPS encostou no meio-fio na frente do número 920 da
Hanson Road e eu ajudei o motorista a descarregar vinte caixas pesadas na
garagem. Finalmente o primeiro número da Cemetery Dance era uma realidade. Mil
exemplares. Quarenta e oito páginas. Um monte de malditos erros de digitação,
apesar de uma meia dúzia de revisões.
Meu pai, Kara e eu passamos o fim de semana enfiando quatrocentos
exemplares de assinantes em envelopes de papel pardo e colocando outros trezentos
e cinquenta em caixas de vários tamanhos para lojas de gibis. Seria a primeira de
centenas de vezes em que nós três trabalhamos lado a lado para que eu tentasse
realizar grandes sonhos, mas eu nunca esqueceria a sensação daquele momento
específico.
Na semana seguinte, nevou novamente e, em 21 de dezembro, comemorei meu
aniversário de 23 anos com Kara, meus pais, minha irmã Mary e a família dela.
Para a sobremesa, minha mãe preparou meu bolo de chocolate preferido, com
cobertura de chocolate, e eu fiz um pedido secreto antes de apagar as velinhas.
Mais tarde naquela noite, Kara e eu nos encontramos com Carly Albright e o
homem que logo se tornaria seu namorado — um policial do Condado de Baltimore
em seu primeiro ano de trabalho — para tomar um drinque e trocar presentes de
Natal. Não sou muito de frequentar bares, mas ver Carly sorrindo e dando risadas
com alguém que parecia realmente se importar com ela foi a cereja no bolo de uma
noite maravilhosa. Antes de nos despedirmos, Carly me deu uma caneta-tinteiro
gravada com a frase “para assinar contratos e autógrafos quando ficar famoso” e eu
dei a ela um sofisticado minigravador Sony para ajudá-la com as entrevistas.
Miraculosamente nenhum de nós tocou no assunto do Bicho-Papão durante a
noitada.
Logo cedo na manhã seguinte, Kara e eu pegamos a Route 40 e dirigimos até o
White Marsh Mall para tentar terminar nossas compras de Natal. Claro, não éramos
os únicos que acordaram e tiveram aquela ideia brilhante. O shopping parecia um
zoológico.
Enquanto abria caminho pela multidão de consumidores que fervilhava nos
corredores do primeiro e do segundo piso, comecei a ter a mesma sensação
assustadora de estar sendo observado, era a primeira vez que acontecia em muito
tempo. A hora sucessiva foi confusa, eu não conseguia parar de olhar por cima do
ombro e dizer “hein?, o quê?” para minha noiva repetir, obviamente exasperada,
o que ela havia acabado de falar. No entanto, por mais irritada que estivesse, não
abri o jogo porque não queria deixá-la preocupada.
Pouco depois, paramos na praça de alimentação para comprar duas fatias de
pizza e refrigerantes e vimos o sr. e a sra. Gallagher na fila do quiosque de pretzels.
Foi uma agradável surpresa ver como o sr. Gallagher estava diferente. Ele havia
engordado pelo menos uns cinco ou seis quilos desde a última vez que tínhamos nos
encontrado e seu rosto estava novamente corado. Também estava usando óculos e
segurando a mão da esposa. Decidi não incomodá-los e não os cumprimentei.
Mais tarde, após terminarmos as compras, cruzamos com Mike Meredith no
estacionamento. Havíamos terminado o ensino médio na mesma turma e jogado
lacrosse juntos. Além de ser o melhor goleiro com quem já joguei, ele também era
um dos caras mais esquisitos que já conheci. Por isso, nem me dei ao trabalho de
perguntar por que tinha pintado o cabelo de verde. Mike também era tagarela, e foi
por isso que ele acabou dando a notícia.
“Tá sabendo?”, ele perguntou.
“Sabendo do quê?”
“Nossa, não acredito! Não tá mesmo?”, ele perguntou novamente, os olhos
arregalados.
“Mike, não faço ideia do que você está falando.”
“De ontem à noite… a ronda da vizinhança…”
“O que aconteceu?”
“Deu a maior merda, Chiz.”
“Como assim?”
Ele balançou a cabeça.
“Foi horrível, meu camarada. Sem dúvida é o fim da ronda da vizinhança.”
E depois nos contou o que houve.

Às 23h15 aproximadamente, na noite de quarta-feira, Mel Fullerton, Ronnie


Finley e Mark Stratton — todos membros da Ronda da Vizinhança de Edgewood —
estavam percorrendo a Perry Avenue na enorme picape de Mel, bem em frente ao
colégio. Fazia muito frio, e Mel e Ronnie haviam batizado o café com bourbon.
Também tinham levado um pack de doze latinhas de Budweiser e já haviam
descartado as vazias mais ou menos uma hora antes num trecho escuro da
Willoughby Beach Road. O “turno” deles ia terminar em quinze minutos e os três
estavam cansados e irritados, especialmente Mel, que havia demonstrado mau
humor desde o início.
Eles tinham acabado de virar à esquerda na Hornbeam Road, subindo a longa e
íngreme ladeira rumo à Biblioteca e ao shopping center quando alguém vestindo
roupas escuras cruzou a rua correndo bem na frente da picape e desapareceu numa
vala do outro lado.
Mel pisou imediatamente no freio e escancarou a porta, precipitando-se em
direção à rua. Os outros dois homens o seguiram, Ronnie descendo às pressas o
morro gramado e entrando na vala, as botas chapinhando na água corrente e rasa.
“Mark, você fica de olho naquele lado”, ordenou Mel, apontando para a
esquerda, “caso ele se esgueire pela tubulação de drenagem e tente voltar!”
Sem dizer nada, Mark seguiu em direção à escuridão, o feixe da lanterna
oscilando sobre o terreno congelado.
Mel abriu caminho morro abaixo, mas lentamente para não cair e se espatifar
no chão. Ele sabia que estava bêbado, entretanto, só percebeu o nível de embriaguez
quando saltou da picape. Estava arfando e o vapor embaçava o ar na frente do seu
cabeção.
“Ronnie!”, ele gritou na escuridão.
Um cachorro respondeu com um latido ao longe.
Mel chegou ao sopé do morro e, enquanto seus ouvidos registravam o som de
água correndo pelas pedras, o pé escorregou no limo e ele caiu sentado na água
gélida.
“Filha da puta!”, ele gritou, esforçando-se para se levantar e quase caindo
novamente. “Caralho, Ronnie, onde você se meteu?!”
Nenhuma resposta — dessa vez nem mesmo o cachorro.
“Tudo bem aí, chefe?”, Mark gritou do outro lado da tubulação de drenagem
que passava sob a rua.
Que maravilha, Mel pensou, ele provavelmente viu tudo e com certeza vai
espalhar a fofoca amanhã de manhã na lanchonete.
“Tô bem”, ele disse. “Onde a porra do Ronnie se meteu?”
“Sei lá.”
Mel ouviu passos lentos e furtivos atrás de si, descendo a ladeira do outro lado
do córrego. Se era Ronnie, por que ele ainda não tinha dito nada?
Já assustado, ele se virou e viu o contorno da máscara branca do assassino
flutuando na escuridão, acelerando o passo em sua direção.
Enfiou a mão no bolso da jaqueta e pegou o 38 que havia levado. Erguendo-o
até a altura do peito, ordenou “Para aí, porra!”, depois puxou o gatilho três vezes,
bum, bum, bum.
“Que merda é essa?!”, Mark gritou.
“Peguei ele!”, Mel respondeu. “Peguei o Bicho-Papão!”
Ainda com a arma em riste, Mel atravessou a vala.
Ao mesmo tempo, um Mark ofegante apareceu em cima dele, debruçado na
grade de proteção. Ao ver o corpo encolhido no aclive, sussurrou:
“Puta merda.”
Mel se curvou, esticando lentamente a mão livre para desmascarar o assassino,
já pensando no que ia fazer com todo aquele dinheiro da recompensa, quando
nuvens esparsas se afastaram da lua… e Mel Fullerton percebeu que não havia
máscara alguma e que ele acabara de matar Ronnie Finley, seu melhor amigo,
e ficaria preso por muito tempo.

Parecia que eu havia piscado e o Natal e o Ano Novo eram fantasmas no espelho
retrovisor. Foi nessa velocidade que aquelas duas semanas passaram.
Sabendo o que tínhamos pela frente, Kara e eu ficamos em casa no réveillon e
assistimos à contagem regressiva com Dick Clark na televisão. Meus pais tinham
ido se deitar mais cedo, e ficar de chamego embaixo de um cobertor no sofá do
porão foi como se os velhos tempos de namoro, quando ainda estávamos no
colégio, estivessem de volta. Deixei Kara em casa à meia-noite e já estava de volta,
roncando na minha cama, antes da uma hora.
Já a noite seguinte… não foi tão tranquila. Um grupo de amigos — liderado
por Jimmy Cavanaugh e Brian Anderson, que haviam pousado na cidade naquela
tarde — apareceu lá em casa. A galera me arrastou para minha despedida de
solteiro. Logo se seguiram rodadas animadas de boliche e pôquer e uma quantidade
grande demais para ser contada de canecas de cerveja no Loughlin’s Pub. Depois de
fecharmos o bar, cismamos que seria uma boa ideia jogar bolas de neve nos carros
na Route 24. Nenhum de nós tinha condições de dirigir, então percorremos a pé
aqueles dois quilômetros e meio. Eram quase 2h30 quando assumimos nossas
posições ao longo da beirada do bosque. Não tinha muito trânsito. Até que
finalmente vimos faróis se aproximando a toda velocidade no sentido leste. Tirando
proveito de anos de experiência, esperamos até o momento exato e, sincronizando
cuidadosamente nossos arremessos, atiramos nossas bolas de neve. Ploft ploft ploft
— três delas atingiram o alvo! Antes que pudéssemos começar a comemorar nosso
sucesso, o carro freou repentinamente no meio da estrada e acendeu o pisca-alerta e
a sirene. Por acaso, tínhamos acertado a viatura do xerife do condado de Harford. O
motorista deu meia-volta e começou a acelerar na contramão em nossa direção.
Largamos imediatamente as bolas de neve restantes e fugimos a toda para o bosque,
escapando por um triz.
Na manhã seguinte, acordei no porão dos meus pais, cercado por oito dos meus
melhores amigos. Brian Anderson estava sem camisa, o peito e os ombros eram um
mosaico de arranhões sofridos durante nossa fuga. Uma das costeletas de Jimmy
Cavanaugh havia sido misteriosamente raspada e seus dois pés de sapato sumido.
Steve Sines, que viera do Maine, tinha um belo olho roxo, mas ninguém conseguia
lembrar como ele havia conseguido aquela façanha.
Quanto ao convidado de honra… acordei com a cabeça dentro de uma caixa de
papel que horas antes havia abrigado doze latinhas de Bud Light. Um dos meus
amigos — até hoje, nenhum dos filhos da puta assumiu a autoria — havia
desenhado um pênis na minha testa com um pilô atômico. A coitada da minha mãe
quase desmaiou quando viu. E, como se as lembranças enevoadas daquela noite não
fossem suficientes, eu tinha várias Polaroids para comemorar a ocasião especial.
Guardei-as no fundo de uma gaveta na minha escrivaninha.

Na quarta-feira, 4 de janeiro, o grande dia finalmente chegou: diante de 125


familiares e amigos queridos, com meu pai nervoso ao meu lado como padrinho,
Kara e eu trocamos nossos votos nupciais. A cerimônia e a recepção foram tudo o
que havíamos esperado, e ver todos reunidos em um salão — rindo, dançando,
comemorando — foi um presente precioso que Kara e eu sabíamos que
carregaríamos conosco para sempre. Foi o dia mais feliz da minha vida… mas,
infelizmente, durou pouco.
Devido ao início antecipado do semestre de inverno de Kara, não tivemos
tempo para uma lua de mel como manda o figurino. Em vez disso, passamos um
fim de semana incrível numa cabana escondida nas montanhas nevadas da Virgínia
Ocidental antes de voltar para casa para empacotar minhas coisas e nos mudar para
o nosso novo apartamento em Roland Park, a quarenta e cinco minutos de carro de
Edgewood e a poucos quarteirões da universidade Johns Hopkins.
Em meados de janeiro, já havíamos estabelecido nossas novas rotinas: Kara
passava a maior parte das manhãs e tardes no campus, exceto às sextas-feiras,
quando ela só tinha uma aula cedo, e eu me mantinha ocupado no apartamento,
escrevendo novas histórias e trabalhando no segundo número da revista.
Os longos dias eram preenchidos por uma solidão silenciosa, proporcionando à
minha mente muito tempo para vagar. Portanto, era perfeitamente natural, depois de
tudo o que havia acontecido, que meus pensamentos me levassem de volta a
Edgewood.
Dez semanas se passaram desde o assassinato de Cassidy Burch na noite de
Halloween e, fora os tiros disparados por Mel Fullerton, a cidade permanecera
tranquila. Mel havia pagado a fiança e responderia em liberdade, afastado de todos,
segundo Carly, mas tudo havia se revelado uma grande confusão, complicada pela
revelação de que Ronnie Finley estava tendo um caso com a mulher de Mel. Por
isso, muitas pessoas na cidade não acreditavam que os disparos haviam sido
acidentais.
Comecei a fazer longas caminhadas superagasalhado depois do almoço para
quebrar a monotonia dos meus dias e me ajudar a desanuviar a mente. Durante
aqueles passeios, eu costumava ruminar a situação do Bicho-Papão. Baseado nas
frequentes atualizações fornecidas por Carly, nada de muito importante estava
acontecendo na investigação. Ainda algumas denúncias ocasionais de vagabundos
ou voyeurs, além do vizinho dela que havia chamado a polícia na semana anterior
para reclamar de um fiscal suspeito da Baltimore Gas and Electric perambulando
pela vizinhança, mas só isso. Por capricho, fui visitar a Biblioteca Pública Enoch
Pratt no Centro de Baltimore uma tarde e acabei entrando num buraco negro: fiquei
cinco horas procurando no acervo de microfilmes artigos de jornal sobre
assassinatos recentes na Pensilvânia, Delaware e Virgínia. O fato de os homicídios
terem parado em Edgewood não significava que o Bicho-Papão não tivesse ido para
outro lugar e começado tudo de novo. Com os olhos cansados, voltei de mãos
abanando para Roland Park naquela tarde.
Todavia, as perguntas persistiam: Por que os assassinatos pararam de
repente? O Bicho-Papão estava só esperando, dando um tempo antes de atacar
novamente? Ou ele havia finalmente desistido e ido embora da cidade, ou quem
sabe sido preso por algum outro delito qualquer?
Eu sabia que o detetive Harper estava fazendo as mesmas perguntas para si
mesmo dia e noite, e estava numa posição muito melhor para formular respostas,
mas isso não me deixava parar de pensar. O Bicho-Papão fazia parte da minha vida
— da vida de todos nós. Foi durante aquelas longas caminhadas ao meio-dia —
Bruce Springsteen e os Rolling Stones no volume máximo nos meus fones de
ouvido — que comecei a contemplar a ideia de escrever um livro sobre os
assassinatos. Se meu ex-vizinho Bernie Gentile tinha razão, o tempo continuaria a
avançar, os moradores de Edgewood seguiriam tocando suas vidas e as lembranças
das quatro garotas mortas desvaneceriam até não passarem de uma nota de rodapé
na história da cidade. Aquilo não me parecia correto.
Mais para o final do mês, meus pais foram me visitar. Meu pai entrou no
apartamento carregando duas sacolas de papel repletas de mantimentos — “Peguei
umas coisinhas a mais no mercado da base” — e minha mãe chegou trazendo um
mês de exemplares antigos do The Aegis, além de um exemplar recente da Seleções
com “todos os artigos interessantes marcados” para que eu lesse. Já era um pouco
tarde quando nós quatro almoçamos sopa e sanduíches na cozinha apertada e
pusemos as novidades em dia. David Goode, que cresceu na casa em frente à nossa
na Tupelo Road, tinha ficado noivo de uma garota que ele conheceu na faculdade.
Tal Taylor, um velho amigo do colégio, havia recentemente começado a trabalhar
para a UPS. Norma Gentile estava de novo no hospital para tratar uma hérnia, mas
os prognósticos eram excelentes. Não ligaram mais passando trotes, minha mãe
anunciou satisfeita e fez imediatamente o sinal da cruz para que continuasse
daquela maneira. Nenhum dos dois tocou no assunto do Bicho-Papão — não sei se
de propósito ou por acaso. Eu quase disse que estava pensando em escrever sobre os
assassinatos, mas, no final, fiquei de boca calada. Eu não queria estragar o clima.
Naquela noite, antes de irem embora, minha mãe me deu um beijo no rosto e
enfiou discretamente um envelope com cinquenta dólares no bolso da minha
camisa, para que “você e Kara saiam para jantar”. Tentei devolver, mas ela não
aceitou de jeito nenhum. Meu pai me deu um meio abraço esquisito no meio-fio
antes de sentar no banco do motorista. Cinco minutos depois da partida, eu ainda
sentia o cheiro da sua loção pós-barba na minha camisa. Já estava morrendo de
saudade dos dois.

Mais tarde naquela mesma noite, Carly ligou para me dizer que o motorista do
Colégio Edgewood estava de novo em apuros. Seu nome era Lloyd Bennett e,
obviamente, seus álibis para as noites dos assassinatos do Bicho-Papão, no final das
contas, não eram tão sólidos. A mulher com quem ele dissera que havia estado nas
quatro ocasiões ficou com medo e admitiu para a polícia que ele estava mentindo.
Ela não sabia onde ele tinha estado, mas certamente não foi na sua companhia.
A última notícia que Carly ouviu foi que Bennett e seu advogado estavam na
delegacia sendo interrogados e os detetives estavam preenchendo a papelada para
obter um mandado de busca para o carro e o apartamento dele.
6

Carly ligou novamente alguns dias depois para me dizer que havia sido escolhida
para fazer a matéria: as famílias das vítimas do Bicho-Papão. Ela sabia que, desde o
primeiro dia, eu estivera recortando artigos e fazendo anotações por conta própria
sobre os assassinatos — uma espécie de álbum de recortes ou diário vagamente
organizado — e queria saber se eu estava interessado em ser coautor do texto. Ela já
havia obtido a permissão do editor.
Eu disse que ia pensar no assunto e avisaria. Naquela noite, conversei a
respeito com Kara e depois saí sozinho para dar uma corrida e refletir um pouco
mais. Por um lado, seria um desafio interessante e uma boa experiência. Por outro,
com ou sem livro, eu tinha pouca vontade de conversar com familiares e amigos
ainda de luto e correr o risco de reabrir feridas recentes. Naquela noite, fui para a
cama decididamente indeciso, mas, ao acordar na manhã seguinte, todas as minhas
indecisões haviam desaparecido. De repente, eu sabia: contar as histórias dos
sobreviventes era a coisa certa a ser feita e eu queria fazer parte daquilo. Liguei para
Carly logo depois do café da manhã e aceitei.
Passamos boa parte da semana seguinte sentados em salas de estar e quartos
silenciosos, entrevistando familiares das adolescentes assassinadas — com exceção
do sr. e da sra. Wilcox, que haviam vendido a casa no início de janeiro e se mudado
para a Costa Leste, e do sr. Gallagher, que declinou educadamente. Foi uma
experiência sombria, muitas vezes cheia de lágrimas, mas também
surpreendentemente edificante. Inspirado pelo amor arrebatador e pela coragem que
senti naqueles lugares — no meio daquelas pessoas especiais —, comecei a ver o
mundo sob um outro prisma. Era difícil dar uma explicação melhor ou até entender
completamente o que estava acontecendo, mas eu mal podia esperar para ver como
aquela experiência afetaria minha escrita. Falando com Carly, descobri que ela
sentia algo bastante parecido.
“Tudo isso me transformou”, ela me disse uma noite enquanto voltávamos para
a redação do jornal. “Nunca mais serei a mesma.”
Depois que começamos, só levamos três dias para escrever a matéria.
Eu nunca havia colaborado antes e esperava inúmeras dores de cabeça e brigas, que
jamais se materializaram. Na sexta-feira, 17 de fevereiro, com dois dias de
antecedência, entregamos cinco mil palavras, nosso limite máximo.
Em 22 de fevereiro, a matéria foi publicada no The Aegis com uma manchete
em letras garrafais: AS FAMÍLIAS CHORAM E RECORDAM. Minha mãe
ligou aos prantos para me dizer que tínhamos feito um excelente trabalho e as três
famílias que havíamos entrevistado nos enviaram notas de agradecimento por
termos escrito tributos tão humanos e atenciosos. Meu pai mandou emoldurar a
primeira página para mim e para Carly. A minha ainda está pendurada acima da
minha escrivaninha como um lembrete diário da coragem dos familiares
sobreviventes.
O The Aegis ficou com todos os direitos de publicação do texto, por isso não
pude reproduzi-lo aqui, mas nossa editora, Karen Lockwood, gentilmente me deu
permissão para reproduzir trechos selecionados das nossas entrevistas.

SRA. CATHERINE GALLAGHER

Albright: Como a senhora e sua família estão lidando com a situação?

Sra. Gallagher: Da única maneira que conhecemos: um minuto de cada


vez, uma hora de cada vez, um dia de cada vez. Já se passaram oito meses
e todo santo dia ainda parece trazer um novo desafio.

Chizmar: Está de alguma maneira mais fácil?

Sra. Gallagher: Sim e não. Meu marido e eu estamos fazendo terapia há


quase seis meses. Terapia específica para luto. Ajuda. Agora temos um
número maior de ferramentas necessárias para lidar com o que aconteceu
com a Natasha. E aprendemos como nos apoiar mutuamente de maneira
saudável. É importante. Meu Deus, no início foi tão difícil… Nós dois
estávamos muito perdidos e com tanta raiva…

Chizmar: A raiva ainda persiste?

Sra. Gallagher: Ah, em alguns dias, persiste. Passo uns quatro ou cinco
dias seguidos me sentindo bastante forte, agarrando-me a lembranças
felizes, depois… bum, do nada, eu explodo. Há algumas semanas, eu
estava pondo os pratos na lava-louça e comecei a pensar na vez em que a
Nat pôs detergente demais e inundou a cozinha de espuma. No início,
comecei a rir, depois veio o choro. Antes de me dar conta do que estava
fazendo, eu já havia jogado dois pratos contra a parede. Meu marido
chegou correndo, assustadíssimo, e eu me senti péssima.

Albright: Como seu filho está lidando com a morte da irmã?

Sra. Gallagher: Josh não fala muito a respeito. Ele se recusou a ir à


terapia conosco, mas sei que está sofrendo tanto quanto a gente. Ele nos
deu o presente de Natal mais lindo do mundo: um álbum cheio de
fotografias da Natasha, desde quando era bebê até a morte dela… até ter
sido assassinada.

SR. ROBERT E SRA. EVELYN ROBINSON

Albright: O que está sendo mais difícil em relação à perda da sua filha?

Sr. Robinson: Tudo. Não ouvir a voz dela. A risada. Saber que ela foi
raptada a duzentos, trezentos de metros da nossa porta e não ter sido
capaz de fazer nada para impedir.

Sra. Robinson: Para mim, a parte mais difícil tem sido ajudar as irmãs
mais novas da Kacey a entender o que aconteceu. Elas ainda têm muita
dificuldade para entender como e por que algo assim pode acontecer.
Com qualquer pessoa. A hora em que elas vão dormir é especialmente
difícil.

Chizmar: Como os parentes e amigos têm ajudado?

Sra. Robinson: Todos têm sido incríveis. Não sei como teríamos
suportado o velório e o primeiro mês sem o apoio de todos. Eu nem me
lembro da maior parte. Os amigos das meninas e do David têm sido
maravilhosos.
Albright: Vocês acham que a polícia algum dia vai pegar o homem que
fez isso?

Sr. Robinson: Torço muito para que isso aconteça, mas não estou muito
esperançoso. Não mais. No que diz respeito ao homicídio de Kacey, acho
que a polícia não avançou nada em relação à noite em que ela foi
assassinada.

SRA. CANDICE BURCH

Chizmar: Segundo todas as pessoas com quem conversei, e a julgar pelo


tempo que passamos juntos, a senhora é uma mulher extraordinária.
Perdeu o marido há muitos anos e agora a filha, mas continua a ser uma
das mulheres mais fortes e positivas que já conheci.

Sra. Burch: Obrigada pelas palavras. Tenho dias bons e dias ruins.
Na maior parte dos dias ruins, fico na minha, assim ninguém precisa me
aturar. Mas eu também tenho outra filha, uma linda menina com uma vida
inteira pela frente e não quero que ela sofra mais do que já sofreu. Eu e
Maggie somos uma equipe e vamos homenagear a memória de Cassidy
todo dia ficando juntas e tentando fazer deste mundo um lugar melhor.

Albright: A senhora falou com a polícia ultimamente? Tem alguma


novidade?

Sra. Burch: Um dos detetives liga para mim de tempos em tempos para
perguntar se Cassidy conhecia fulano ou sicrano. Ou se conhecia esse ou
aquele lugar. Sempre pergunto se eles estão fazendo algum progresso e,
toda vez, a resposta é a mesma: estão seguindo pistas e localizando
pessoas para interrogar.

Chizmar: A família Wilcox recentemente se mudou de Edgewood.


No seu jardim, tem uma placa de VENDE-SE. Para onde a senhora pretende
ir?
Sra. Burch: Para não muito longe. Seguindo a [Route] 40, na direção de
Havre de Grace. Quero que a gente acorde todo dia com um horizonte
novo, um novo começo, mas a Maggie ainda vai continuar na Escola
Ginasial de Edgewood no outono. Conseguimos acertar tudo com a
secretaria de educação, o que é uma verdadeira bênção.

SRTA. VALERIE WATSON, PROFESSORA DE INGLÊS,


COLÉGIO EDGEWOOD

Albright: Você foi professora tanto da Natasha Gallagher como da Kacey


Robinson, correto?

Srta. Watson: Correto. A Natasha foi minha aluna no primeiro ano e


Kacey no segundo.

Albright: Que tipo de alunas elas eram?

Srta. Watson: Ambas eram meninas muito especiais, mas de maneiras


diferentes. A Natasha tinha tanta energia que mal conseguia ficar parada
em certos dias. Eu costumava brincar a respeito, mas ela só ria e dizia que
eu parecia a mãe dela. Ela era ótima aluna e sempre tomava conta dos
colegas, se certificando de que todos à volta estivessem felizes, é só assim
que consigo descrever o comportamento dela. A Kacey era a melhor aluna
da minha turma de inglês. A despeito da matéria, por mais difícil que
fosse, ela entendia… e como escrevia bem! Os trabalhos levariam nota
dez até na faculdade. Sei que ela estava decidida a se tornar veterinária,
mas teria dado uma ótima professora ou até mesmo uma escritora. Ela era
brilhante, mas nunca se gabou disso, por isso os colegas adoravam a
Kacey.

SR. CARL RATCLIFFE, VIZINHO DOS GALLAGHER

Chizmar: Qual é a sua principal lembrança da Natasha?


Sr. Ratcliffe: Ela e as amigas estavam sempre no jardim dando estrelas e
saltos e coisas malucas desse tipo. Sempre rindo, brincando e fazendo
bagunça, mas nunca de maneira desrespeitosa, nunca me incomodaram…
ao contrário do que acontece com muitas crianças hoje em dia. Ela
sempre cumprimentava, sempre perguntava se precisávamos de ajuda
com as compras. Os pais fizeram um ótimo trabalho com aquela mocinha.
O que aconteceu foi uma enorme tristeza.

SRA. JENNIFER STARSIA, VIZINHA DOS ROBINSON

Albright: Qual é a sua principal lembrança da Kacey?

Sra. Starsia: Temos dois galgos que resgatamos de uma pista de corridas
na Flórida. Ela amava muito esses meus cachorros e vinha sempre aqui
em casa para visitá-los. E também falava com eles, por muito tempo,
batiam papo pra valer, como se eles entendessem o que ela dizia. Era uma
garota que estava sempre feliz.

Chizmar: Como a senhora se sente quando sai à noite aqui no bairro?

Sra. Starsia: Depois do que aconteceu, eu fiquei muito tempo sem sair
sozinha… nem de dia. Agora estou um pouco melhor. Durante o dia, tudo
bem, mas geralmente espero meu marido se preciso ir a algum lugar
depois que anoitece. Pusemos uma cerca no jardim dos fundos para não
termos mais que sair com os cachorros. Eles podem correr quanto
quiserem. E agora é meu marido que leva o lixo para fora.

SRTA. ANNIE RIGGS

Albright: É a primeira vez que você fala com a mídia sobre o que
aconteceu na noite de 9 de setembro. Por que mudou de ideia e decidiu
falar?
Srta. Riggs: Foi uma decisão dos meus pais. Logo depois do que
aconteceu, a gente foi bombardeado com pedidos de entrevista e eles
tiveram medo que eu ficasse traumatizada. Também não queriam que eu
dissesse nada que pudesse contrariar a pessoa que me atacou. Eles ainda
estão superpreocupados com isso.

Albright: Ainda teme que ele possa vir atrás de você?

Srta. Riggs: Às vezes, mas confio na polícia. Eles têm sido ótimos. Sei
que estão me protegendo e à minha família.

Albright: O que você lembra com mais frequência do homem que te


atacou naquela noite?

Srta. Riggs: Sei lá, ele parecia… errado. Tirando a respiração, ele não
emitiu nenhum outro som durante todo o tempo e, quando vi os olhos dele
através dos buracos na máscara, eles estavam mortos, sem emoção. Às
vezes, eu ainda tenho pesadelos com os olhos dele.

SRTA. RILEY HOLT, A MELHOR AMIGA DE KACEY


ROBINSON

Chizmar: Se você tivesse que escolher só uma coisa, do que mais você
sente falta em relação a Kacey?

Srta. Holt: Uma coisa só é difícil demais, posso dizer duas? A primeira é
o sorriso. Nunca era falso ou forçado. Dava para perceber que era sincero.
Era algo com que eu sempre podia contar. A segunda é a generosidade.
Ela sempre dava para você o último chiclete, sempre.

7
Foi meu pai que me ligou para dar a notícia com dois dias de atraso. Falei com
Carly naquela mesma tarde — após sair para dar uma volta com o intuito de tentar
entender o que eu acabara de ouvir — e ela me forneceu os detalhes.
Na madrugada anterior, o pai de Natasha Gallagher saiu de fininho da cama,
tomando cuidado para não acordar a esposa, calçou suas botas e vestiu um casaco
de inverno. Saiu de casa por uma porta deslizante de vidro e entrou no bosque
usando uma lanterna. Quando chegou ao local onde o cadáver da filha havia sido
encontrado, largou a lanterna e sacou um revólver calibre .38 do bolso da jaqueta.
Enfiou o cano na boca e puxou o gatilho.

Na primeira sexta-feira de março, peguei o carro, fui até Edgewood e passei a


tarde na casa dos meus pais. Eles tinham uma pilha de correspondências para mim
que, por algum motivo, os correios não reencaminharam. Além disso, meu pai
precisava de ajuda para consertar um longo trecho da calha que havia se soltado do
telhado durante uma tempestade recente. Quando entramos em casa após ter
terminado o serviço, minha mãe tinha canecas de chocolate quente esperando por
nós em cima da mesa da sala de jantar. Fazia mais de um mês que não nos víamos e
foi gostoso ficar ali conversando um pouco com eles; eu estava sentindo falta. E
também estava com saudade dos rostos deles. Falávamos ao telefone várias vezes
por semana — geralmente depois do jantar, quando eu sabia que estariam vendo
televisão juntos no porão —, mas não era igual. Dava para perceber que eles
sentiam a mesma coisa. A casa parecia mais silenciosa do que de costume — na
verdade, todo o bairro parecia — e, antes de ir embora, subi de fininho e fui dar
uma espiada no meu antigo quarto. Embora não fizesse tanto tempo desde a minha
partida, meus pais já o tinham convertido em um segundo quarto de hóspedes, mas,
sem minha escrivaninha, minhas prateleiras e meus pôsteres na parede, ficou meio
vazio e triste.
Pouco depois das 17h, minha mãe anunciou que começaria a preparar o jantar
e, depois de eu dizer pela terceira vez que realmente não ia poder ficar, abracei
meus pais e fui embora.
Afinal de contas, havia uma terceira razão para eu ter decidido visitar
Edgewood naquele dia, e ela estava me esperando na Route 40.
Quando entrei no estacionamento do Giovanni’s quase às 17h30, flocos de
neve bailavam nos feixes dos faróis do meu carro. Entrei correndo, esperando ser o
primeiro a chegar, mas imaginando que não seria.
E eu tinha razão.
O detetive Lyle Harper já se encontrava lá, sentado. Usando um terno marrom,
ele estava muito parecido com a primeira vez que o vi na televisão — talvez,
naquela época, estivesse um tiquinho mais gordo, e também estava de gravata na
noite da coletiva de imprensa. Ele conversava com uma garçonete quando me
aproximei da mesa. Ela anotou meu pedido de bebida e desapareceu nos fundos do
salão.
Eu tinha ficado agradavelmente surpreso quando Harper aceitou meu convite
para jantar. Eu não sabia ao certo se ele aceitaria, tampouco por que o havia
convidado. Era apenas uma ideia que vinha flutuando na minha cabeça nos últimos
tempos e decidi colocá-la em prática.
Ficamos uns trinta minutos beliscando brusquetas e mexilhões gratinados,
falando sobre nossas famílias, a vida de recém-casado e a matéria que havia sido
publicada no The Aegis na semana anterior. Eu nunca tinha visto o detetive tão
descontraído. Pouco antes dos pratos principais chegarem, ele até fez uma piada
sobre minhas frequentes voltas de carro passando diante das casas das garotas
mortas. Antes que eu pudesse reagir, Harper piscou para mim como naquele dia no
carro e caiu na risada.
Foi durante o prato principal que finalmente fomos direto ao assunto e
começamos a falar sobre o Bicho-Papão. Mantivemos o tom de voz baixo por
motivos óbvios.
“Então, a Carly me disse que não há nada sólido contra Lloyd Bennett”,
comecei.
“Até agora, não, mas estamos trabalhando nisso.”
“Ele ainda não tem um álibi?”
Harper comeu outra garfada de lasanha.
“Estamos verificando algumas coisas que ele nos disse. Sujeito interessante.
Estamos sem dúvida de olho nele.”
“Vi uma foto dele no noticiário. Até que parece com o retrato falado da
polícia.”
“É, mas não tanto assim.”
Eu não tinha como contra-argumentar.
“Sinto muito por aquele editorial desagradável do Sun”, falei. “Totalmente
difamatório.”
Ele encolheu os ombros.
“Faz parte do jogo. Já estou acostumado.”
“O sujeito que escreveu não sabe a diferença entre uma cena de crime e o
próprio nariz. Tá na cara que ele só estava atrás de votos.”
“Tudo bem. Podemos pedir uma retratação depois de pegarmos o culpado.”
Eu olhei atentamente para ele. Tinha alguma coisa que ele não estava me
dizendo?
“Acha que ainda vão pegar…?”
“Eu acho que sim.”
“Mesmo que ele… não entre em ação novamente?”
“Sim.”
Eu não sabia ao certo o que dizer, então não disse absolutamente nada. Mesmo
com o tal do Bennett novamente sob suspeita, eu tinha minhas dúvidas, bastante
sérias, de que o Bicho-Papão seria um dia capturado. Na verdade, se eu fosse
obrigado a apostar em um desfecho, arriscaria meu dinheiro no palpite de que a
identidade do assassino ficaria para sempre em segredo — como aconteceu com
Jack, o Estripador, o Assassino do Zodíaco e o Assassino de Green River, além de
muitos outros casos famosos.
Então por que ele parecia tão confiante?
“Tudo bem, abre o jogo, vai. O que você não está me dizendo?”, finalmente
perguntei.
Ele mordeu um naco de focaccia e apontou para a própria boca, fingindo que
não conseguia falar. Eu ri e tentei novamente.
“Eu espero.”
“Já quase pegamos ele duas vezes”, revelou, aproximando-se depois de ter
tomado o que restava da sua cerveja. “Na terceira…”
“Duas vezes?”, perguntei confuso. “A noite em que o policial foi mordido pelo
cachorro…”
“Essa foi a primeira vez.”
“Qual foi a segunda?”
“No início de dezembro. Dois dos meus homens o encurralaram num jardim,
mas ele conseguiu fugir. De novo. Ele parece o maldito Houdini.”
“E você tem certeza de que era ele?”
“Tenho.”
“Como pode ter tanta certeza?”
Harper gesticulou para a garçonete trazer outra cerveja, depois disse:
“Vou abrir o jogo. Mas tem que ficar só entre a gente, entendeu?”
“Claro.”
“E você vai jurar que não vai compartilhar essa informação com a sua amiga
repórter?”
Depois de uma leve hesitação, respondi.
“Dou minha palavra.”
“O filho da puta estava usando uma máscara. Juro pelo meu distintivo, era
ele.”

O estacionamento do restaurante estava polvilhado de neve e uma rápida olhada


para as luzes dos postes confirmou o que a garçonete havia nos avisado minutos
antes: nevaria forte esta noite. O vento também havia aumentado, penetrando pelo
colarinho da minha jaqueta leve e descendo pela minha coluna como dedos gélidos.
Quando chegamos no sedã chapa fria do detetive Harper, olhei para trás e vi os dois
rastros que nossas pegadas deixaram na neve. Não sei por que motivo, mas aquilo
me deu a descarga de coragem que eu estava buscando.
“Foi um prazer, Rich”, Harper disse, tirando as chaves do bolso. “Ótimo jantar.
Vamos ter que repetir alguma outra…”
“O que mais você não está me dizendo?”, perguntei, interrompendo-o. Ele me
olhou surpreso. “Desculpe, detetive, mas tem mais alguma coisa, não tem?”
Ele ficou me olhando por muito tempo, os cabelos curtos embranquecendo
com flocos de neve que iam derretendo. Então:
“Morre aqui, certo?”
“Claro.”
Ele suspirou.
“Tudo bem, foda-se. De qualquer maneira, logo vai sair no Baltimore
Sun. Alguém vazou a informação para um dos repórteres, mas conseguimos
convencer os responsáveis a esperar até abril.”
“Não direi nada a ninguém, prometo.”
“Temos o DNA dele.”
Olhei boquiaberto para ele.
“O quê?! Quando?”
“Encontramos um rastro de sangue numa lápide no cemitério e outra na
fantasia de Halloween da Cassidy Burch. Ambas pertenciam à mesma pessoa, e não
era da Cassidy.”
“Que notícia ma-ra-vi-lho-sa!”, exclamei, mal conseguindo conter minha
empolgação.
Ele assentiu, seus olhos eram fendas negras.
“O filho da puta finalmente vacilou.”

10

Quando saí do estacionamento do Giovanni’s, já eram 21h20 e a neve caía


oblíqua. De acordo com a meteorologista da rádio 98 Rock, a condição das estradas
estava piorando a cada minuto — eu já tinha visto vários caminhões limpa-neve
passando —, o que tornou minha decisão seguinte ainda mais questionável.
Em vez de virar à esquerda e seguir para oeste na Route 40 rumo a Kara e ao
apartamento, fiz duas curvas rápidas à direita e comecei a subir a ladeira íngreme e
escorregadia até a Edgewood Road. Cinco minutos depois, parei na entrada da
Tupelo Court, bem na frente da casa dos meus pais, e desliguei os faróis.
Observando os retângulos de luz dourada que era filtrada pelas janelas do
porão, imaginei-os lá dentro, aconchegados e quentinhos, de pijama e roupão: meu
pai refestelado em sua poltrona, um livro policial aberto sobre o colo, o áudio de um
programa sobre crimes ao fundo; minha mãe aninhada sob um cobertor na própria
poltrona dela, os olhos esquadrinhando o último número da Seleções ou costurando
um buraquinho numa camisa social do meu pai. Talvez uma tigela com cookies,
queijo cortado em quadradinhos ou maçãs fatiadas estivesse apoiada em uma
mesinha entre eles. Ou potes vazios de sorvete — ambos eram verdadeiras
formiguinhas. Às 22h, quando o programa terminasse, eles desligariam a tevê,
verificariam as portas e subiriam para se preparar para dormir. A porta do meu
antigo quarto estaria aberta. O quarto escuro e silencioso.
Um caminhão limpa-neve passou por mim fazendo barulho, os faróis brilhando
na escuridão turbilhonante como algum tipo de monstro pré-histórico. Fiquei
olhando as lanternas traseiras desaparecerem na curva em meio a um borrifo de
neve enquanto seguiam rumo ao norte, na direção da Cedar Drive — e meus
pensamentos retornaram àquela longínqua noite de inverno quando eu tinha 15 anos
e fiquei na rua até mais tarde para descer o morro uma última vez com meu trenó
novinho em folha. Fazia muito tempo que eu não pensava naquela noite, o que era
bastante estranho, já que o topo do morro onde eu havia parado assim que vi minha
casa a distância não ficava muito longe do local onde o corpo de Kacey Robinson
havia sido encontrado, na base do escorregador.
Eu tinha razão, sabe, pensei, meu olhar retornando para o número 920 da
Hanson Road. Nada nunca mais seria igual depois daquela noite. O mundo havia
mudado — crescido — e eu não podia fazer nada para detê-lo. Todos nós
crescemos. Nos mudamos. Perdemos contato. Até mesmo eu.
Naquele exato momento, sentado sozinho dentro do meu carro, com o coração
doendo, lágrimas furtivas ardendo nos cantos dos olhos, eu teria dado qualquer
coisa para voltar no tempo e ser mais uma vez aquele adolescente tresloucado.
Subir a Hanson Road com meu trenó de plástico debaixo do braço; as roupas
encharcadas; o coração cheio; a cabeça girando; uma caneca de chocolate quente
esperando por mim na mesa da cozinha, além de roupas secas e um abraço de mãe
sorridente; o cheiro da loção pós-barba do meu pai e a sensação áspera dos calos em
suas mãos enquanto ele se aproximava e apertava minha nuca, a sabedoria gentil em
sua voz.
Por um breve instante, pensei em atravessar a rua, embicar na entrada da
garagem e bater à porta.
Mas, então, uma rajada de vento atingiu o carro, pondo um ponto final nos
meus devaneios, e uma lufada de neve cruzou o para-brisa, tapando a minha visão
— e eu me dei conta de que era tarde demais.
Em outra ocasião, pensei, acendendo os faróis. Em breve.
Engatei a marcha, os pneus traseiros patinando para ganhar tração. Quando
encontraram atrito, pisei no acelerador, antecipando o deslizamento, mas sabendo
que ia precisar da velocidade extra para chegar ao topo da ladeira na frente da
antiga casa dos Anderson. Na janela do lado do carona, a casa dos meus pais passou
rapidamente e, antes de pisar no freio já na descida, só tive tempo de pensar: Quem
vai tirar a neve da entrada da garagem amanhã de manhã?
Cinco minutos mais tarde, eu estava seguindo um caminhão limpa-neve na
Route 40, finalmente a caminho de casa, as luzes de Edgewood desaparecendo no
meu retrovisor.
ACIMA: Capa do primeiro número da Cemetery Dance (Foto cortesia do autor)
ACIMA: A vala na Hornbeam Road onde Mel Fullerton matou a tiros Ronnie Finley (Foto cortesia do
autor)
catorze

2 de abril de 1989
“… permaneciam sem solução.”

No sábado, 2 de abril de 1989, exatamente dez meses depois da noite em que


Natasha Gallagher, 15 anos de idade, desapareceu do próprio quarto e seu corpo foi
descoberto — seviciado, torturado, molestado — no bosque atrás da sua casa,
o detetive Lyle Harper estava em pé nos degraus diante do Tribunal do Condado de
Harford, dirigindo-se aos jornalistas. O detetive falou por cinco minutos e meio e,
após terminar, não abriu para perguntas.
A notícia que ele compartilhou naquela tarde foi tão desalentadora quanto
breve: a análise do DNA ainda estava engatinhando — o primeiro caso a utilizar
DNA como prova para obter uma condenação havia acontecido apenas em julho de
1987 — e, por isso, só um punhado de laboratórios estava equipado para fazer a
testagem adequadamente. O período de espera dos resultados dos testes na época
era de três a cinco meses. Além disso, não existia um banco nacional de dados de
DNA.
Depois de uma espera de quatro meses e meio, os resultados chegaram no
início de março. Nenhum perfil de DNA correspondia aos rastros de sangue que a
polícia encontrou na cena do crime de Cassidy Burch. A força-tarefa — composta
por membros do Departamento de Polícia do Condado de Harford, da Polícia
Estadual de Maryland e do FBI — prometeu continuar a seguir pistas e testar outros
suspeitos. O disque-denúncia continuava funcionando.
Os assassinatos de Natasha Gallagher, Kacey Robinson, Madeline Wilcox e
Cassidy Burch — todas moradoras de Edgewood — permaneciam sem solução.
posfácio

Setembro de 2019

A tarde de outono está perfeita, digna de cartão-postal, e eu aqui aparando o


gramado, sentado no meu carrinho cortador de grama, tentando chegar o mais perto
possível da borda do lago sem cair dentro dele — o que já aconteceu, apenas uma
vez, mas pode crer, foi o suficiente — quando sinto o celular vibrar no bolso. Eu o
puxo para fora e olho para a tela: CARLY ALBRIGHT.
Faz tempo desde a última vez que nos falamos — pelo menos um mês, talvez
até mais —, então paro o cortador de grama e desligo o motor. Alguns gansos
grasnam em sinal de aprovação do outro lado do lago.
“Alô.”
Carly diz algo com seu tom de voz atrevido, mas não consigo entender. Meus
ouvidos estão zumbindo por causa do silêncio repentino e ela está falando depressa
demais. Tento novamente.
“Alô. Carly?”
“…aram ele!”
“Não ouvi de novo, foi mal. É que estou aqui fora e…”
“Pegaram ele!”
“Quem?”
“Pegaram!!!”, ela repete, gritando dessa vez. “Pegaram o Bicho-Papão!”

2
Faz tanto tempo desde a última vez que ouvi aquele nome dito em voz alta que a
ficha demora a cair. Um filme de terror de baixo orçamento com aquele mesmo
título foi lançado direto em streaming há não muito tempo e vi por acaso alguns
anúncios e um trailer on-line, mas, fora isso, faz séculos.
É difícil acreditar que mais de trinta anos se passaram desde o reinado de terror
do Bicho-Papão na minha cidade natal, Edgewood — mas o calendário não mente,
por mais que a gente queira.
Muito havia mudado em três décadas, mas algumas coisas permaneceram
iguais.
Kara e eu ainda estamos juntos, mais unidos do que nunca, principalmente por
causa do seu coração magnífico e de sua paciência e compreensão sem limites. Ao
longo do caminho, fomos abençoados com dois filhos, já crescidos — Billy, 21
anos, cujo nome é uma homenagem ao meu pai; e Noah, 17, que tem o mesmo
nome de um caro amigo, um dos pacientes de fisioterapia favoritos de Kara, um
homem grande e gentil que, um dia, desembarcou numa praia da Normandia e, por
meio de atos de coragem inimagináveis, salvou a vida de muitos outros grandes
homens naquele dia histórico.
No outono e na primavera, Billy frequenta o Colby College, no Maine — a
cerca de uma hora da casa do nosso grande amigo Stephen King —, onde estuda
literatura inglesa e redação, e joga lacrosse. Noah está no penúltimo ano do ensino
médio, é um mago da matemática e já foi convocado para fazer parte da equipe de
lacrosse da Marquette University depois da formatura. Durante o verão, ficamos
todos juntos numa casa reformada de duzentos anos de idade que compramos
recentemente em Bel Air, Maryland. A propriedade tem um lago, um riacho,
campos e bosques, e, embora faça apenas alguns anos, parece que moramos lá
desde sempre.
Como eu gostaria que meus pais tivessem vivido mais para vê-la. Eles teriam
curtido cada centímetro do lugar. Minha mãe ficaria horas sentada na varanda dos
fundos, observando as tartarugas perseguindo umas às outras no lago e os gaviões
circulando no céu. Ela se apaixonaria pelos vários jardins. Meu pai ficaria fascinado
com a arquitetura secular, especialmente os troncos de duzentos anos que sustentam
o telhado no nosso porão de pedra, e teríamos que arrastá-lo para fora da garagem
para quatro carros toda noite para vir jantar.
Nosso plano sempre foi trazê-los para morar conosco quando atingissem a
melhor idade, mas vocês conhecem o velho ditado sobre Deus e nossos planos.
Minha mãe nos deixou em fevereiro de 2001. Meu pai partiu para ficar com ela seis
anos mais tarde, em 7 de julho de 2007. Penso neles e sinto saudade todo santo dia.
O pai de Kara também faz muita falta, tendo nos deixado há poucos anos, mas
a mãe, com 91 anos, segue conosco, morando em uma suíte própria no primeiro
andar da casa. Assim como a filha caçula, ela é cheia de vida e teimosa, e acho que
gosta de morar aqui comigo, Kara e os netos. Pelo menos, é o que eu espero.
Agradecemos todos os dias a bênção de poder estar com ela.
É claro que nem sempre desfrutamos de tanta sorte e, ao longo dos anos,
tivemos que nos despedir de vários entes queridos: Rita, minha irmã mais velha,
faleceu pouco depois de este livro ter sido publicado; meu tio Ted, ainda hoje um
dos seres humanos mais encantadores e engraçados que conheci; Craig Anderson,
o irmão mais novo do meu camarada Brian; Bernie e Norma Gentile; Michael
Meredith; e meu velho amigo, o detetive Harper. Todos já partiram, mas jamais
foram esquecidos.
Eu mesmo, uma vez, escapei por um triz. Aos 29 anos, recebi o diagnóstico de
tumor de testículo. Os médicos agiram imediatamente e deram conta do recado com
duas cirurgias bem-sucedidas. Quando tudo terminou, me disseram que eu tinha
99% de chance de cura. Com tamanha sorte e mais ou menos um mês de
recuperação, eu me senti novinho em folha. Mas ainda bem que não sou de apostar,
pois eles se enganaram feio. Seis meses mais tarde, depois de sentir dores agudas na
barriga e na região lombar e me submeter a uma longa série de tomografias e
radiografias, os mesmos médicos descobriram que o câncer havia voltado com força
total, espalhando-se para os pulmões, fígado, estômago e linfonodos. Marcaram
imediatamente doze semanas de quimioterapia intensiva e me deram 50% de chance
de sobrevivência, sem se dar muito ao trabalho de disfarçar o fato de estarem
exagerando aquelas chances para me manter encorajado e combativo.
Mas eles não precisavam ter se preocupado. Com familiares e amigos ao meu
lado o tempo todo, e Deus cuidando de mim — sim, eu realmente acredito que Ele
interveio na minha recuperação, e, sim, sei que minha mãe está lá em cima sorrindo
para mim enquanto digito estas palavras —, consegui mais uma vez driblar as
probabilidades. Em julho do ano passado, completei vinte e cinco anos vivendo sem
câncer.
Ainda hoje, muitos amigos me dizem que fui salvo para um dia me tornar um
escritor de sucesso e compartilhar minhas histórias com o mundo. Sou eternamente
grato a eles pela gentileza e dou sempre a mesma resposta: creio que fui salvo para
um dia ser pai dos meus dois filhos.
Depois de mais de uma década morando em apartamentos apertados, comendo
miojo ou sanduíches de manteiga de amendoim no jantar e catando os trocados
entre as almofadas do sofá ou nos tapetinhos dos carros, quase todos os grandes
sonhos que nasceram em meu coração durante aqueles primeiros anos em
Edgewood se tornaram realidade. Minha pequena revista, a Cemetery Dance, está
em seu trigésimo segundo ano de publicação. Em 1991, decidimos cerrar os dentes
e expandir a editora para incluir livros de capa dura. Até o momento, publicamos
mais de quatrocentos títulos. Escrevi e vendi quase cem contos, bem como vários
livros, dentre os quais A pequena caixa de Gwendy, uma fábula sombria escrita em
conjunto com Stephen King. Logo após sua publicação, um repórter perguntou se
eu algum dia tinha sonhado escrever um livro com Stephen King. Eu sorri, olhei no
fundo dos olhos dele e disse a mais pura verdade:
“Sempre fui um sonhador, mas nunca sonhei tão alto.”
Tenho total consciência de todas as bênçãos que recebi — e continuo
recebendo —, e todos os dias sinto, espantado, uma enorme gratidão. Para ser
sincero, ainda não sei ao certo como tudo aconteceu. Muita sorte, muito trabalho
árduo e o apoio e o amor inabaláveis de muitas pessoas incríveis — é meu melhor
palpite.

A casa está silenciosa quando eu entro. Kara saiu faz uma hora para fazer
compras e meus moleques estão na escola. No final do corredor, minha sogra está
cochilando em seu quarto. A porta está fechada. Esqueci de tirar minhas botas e, ao
caminhar rumo à sala de estar, deixo um rastro de grama cortada no assoalho de
madeira atrás de mim. Sentando no sofá, pego o controle remoto da mesinha de
centro. Minhas mãos estão tremendo. Lembrando o que Carly Albright me disse
pouco antes de encerrarmos a ligação — e ignorando a vibração quase constante do
celular no meu bolso — ligo a televisão e ponho na CNN.
A repórter é jovem e está em forma, com as maçãs do rosto saltadas e um
indício de raízes escuras aparecendo em seus cabelos louros bem penteados. A tarja
ao pé da tela mostra: LAURIE WYATT, CNN — HANOVER, PENSILVÂNIA. Uma faixa com
uma manchete em letras vermelhas atravessa o canto superior da tela: “O BICHO-
PAPÃO” DETIDO. Embaixo, a imagem de uma pessoa que não reconheço.
“… recapitulando a notícia de última hora divulgada à tarde: as forças policiais
de Maryland e da Pensilvânia executaram um mandado de busca e apreensão em
uma casa no quarteirão do número 1600 da Evergreen Way, em Hanover,
Pensilvânia, e detiveram Joshua Gallagher, 54 anos, sob a acusação de ter cometido,
em 1988, os assassinatos de quatro adolescentes em Edgewood, Maryland, inclusive
da própria irmã mais nova, Natasha.
“De acordo com um porta-voz da polícia, Gallagher, funcionário de longa data
da Reuter’s Machinery, estava sendo vigiado há algum tempo enquanto a polícia
esperava os resultados do teste de DNA…”

A publicação, em 1990, de Perseguindo o Bicho-Papão: uma história verídica


sobre o mal em uma cidade pequena continua a ser até hoje uma bizarrice na minha
carreira. O único livro de não ficção que escrevi, vendeu um total de 2.650
exemplares antes de sair de catálogo em 1995 — longe de ser um campeão de
vendas, mas tampouco um número desastroso para uma pequena editora regional
que lançava regularmente livros sobre iscas para caçar patos e faróis (auxiliares de
navegação).
Ao longo dos anos, vi um punhado de exemplares aparecer no eBay,
geralmente com a encadernação destruída e sobrecapa rasgada, por um valor não
muito superior ao preço de capa original. No entanto, uma vez vi um exemplar
autografado ser vendido por pouco mais de US$ 150 por uma conhecida livraria on-
line.
O livro ainda tem um pequeno, mas dedicado, grupo de fãs — meu filho mais
velho, Billy, adora aquele troço; as margens do exemplar dele estão repletas de
anotações —, mas eu mesmo não sou um deles. A história traz de volta muitas
lembranças dolorosas.
Ed Bryant, o finado e excelente resenhista de livros da Locus e do Rocky
Mountain News, certa vez escreveu: “À medida que os abafados dias de verão iam
passando, Chizmar ia não apenas ficando cada vez mais assombrado pela história
do Bicho-Papão da sua cidade natal, mas também se tornando um personagem da
história, um participante ativo e destemido. Como tal, quando chegou a inevitável
hora de sentar e pôr as palavras no papel, Chizmar corajosamente escolheu o ponto
de vista mais difícil, porém infinitamente mais íntimo de todos, para narrar a
história: o próprio. E, através daqueles olhos penetrantes, e às vezes ingênuos, os
leitores obtêm um retrato franco e honesto do tempo e do lugar, conscientes de que
será difícil largar.”
Acho que a resenha excessivamente generosa de Ed foi responsável por uma
grande porcentagem dos 2.650 exemplares vendidos. Suspeito também que ele
estava imbuído de gentileza e generosidade no dia em que sentou na frente do
teclado para escrever aquela resenha. Pensando em retrospecto, eu, na verdade, não
escolhi nenhum ponto de vista autoral quando chegou a hora de escrever
Perseguindo o Bicho-Papão; simplesmente contei a história da única maneira que
eu sabia contar.
Mais cedo esta semana, quando meu agente literário ligou com a surpreendente
notícia de que várias editoras haviam perguntado sobre uma versão atualizada de
Perseguindo o Bicho-Papão, fiquei tentado a me sentar imediatamente atrás da
escrivaninha e encarar uma reescrita integral. Em vez disso, refleti um pouco e
decidi que Ed Bryant tinha razão sobre pelo menos uma coisa: a história que eu
decidi contar em 1988 foi o retrato mais sincero e bem elaborado de um tempo e de
um lugar que um jovem escritor era capaz de criar. E, até mesmo agora, a meu ver,
está ótimo. Por isso, embora eu tenha copidescado trechos enormes do manuscrito
original para que a leitura ficasse mais fluida, deixei intactos o coração e a alma da
história. Com as verrugas e tudo o mais, como se costuma dizer.
Uma observação final sobre a edição original de 1990, um aparte curioso que
sempre me faz sorrir: ela transformou em heróis duas das pessoas que mais amo:
minha mãe e Carly Albright. Até hoje, em noites de autógrafos em livrarias e outros
eventos, sigo sendo abordado por leitores que me perguntam se eu tenho alguma
foto da minha adorável mãe para mostrar. Quanto a Carly, durante quase um ano
após a publicação do livro, ela recebeu tantos convites para sair que acabou tendo
que trocar o número do telefone. É claro que ela reclamou, resmungou e me culpou
pelo incômodo, mas tenho quase certeza de que aproveitou cada minuto.

Falando de Carly Albright, mesmo com uma pomposa promoção e um generoso


aumento de salário — para não falar do pager —, ela não durou muito no The
Aegis. Aos 27 anos de idade, era uma das colunistas mais lidas do Baltimore Sun.
De lá, foi para o Philadelphia Inquirer e, após um breve e infeliz período na Vanity
Fair, estabeleceu-se no Washington Post, onde ainda exerce o cargo de jornalista
sênior. A vida pessoal de Carly prosperou na mesma medida. Quando ainda estava
na faixa dos 30, inscreveu-se num clube de leitura e, na reunião inaugural, conheceu
um cara muito simpático chamado Walter Scroggins. Os dois logo ficaram
encantados um pelo outro. Walter, careca e de óculos, era um ex-jogador
profissional de futebol americano que, na época, tinha uma bem-sucedida clínica de
fisioterapia em Rockville, Maryland. Um gigante gentil, era agradável e engraçado,
e nunca lia jornais, hábito que desenvolveu nos tempos de jogador. Após um
romance arrebatador de seis meses, Carly e Walter se casaram e criaram três filhas
adoráveis, cada uma mais teimosa e atrevida que a outra.
Depois de me mandar entrar e sintonizar na CNN, Carly promete que vai me
ligar assim que tiver mais detalhes e bate o telefone na minha cara. Demora três
longas horas para finalmente cumprir a promessa, mas em momento algum eu
duvidei. Depois de todos esses anos, ela jamais me deixou na mão. Nos quarenta e
cinco minutos seguintes, lê suas abrangentes anotações. É isso que me diz:
A tenente Clara McClernan é a detetive responsável pelos casos arquivados no
Departamento de Polícia do Estado de Maryland. Encerrou uma série de casos de
assassinato importantes durante seus anos nas ruas e é conhecida como uma
investigadora minuciosa e implacável. A certa altura, ela se interessa pelo Bicho-
Papão. McClernan conhece o detetive Lyle Harper, já tendo revisado vários dos
seus relatórios de casos antigos e ouvido os papos de sempre nas delegacias.
Respeita o histórico de trabalho e aprecia muito a companhia do detetive nas poucas
vezes em que os dois se encontram antes de Harper morrer, em março de 2019. Até
a aposentadoria quinze anos antes — e mesmo depois, para ser sincero —,
o detetive Harper jamais parou de pensar nos assassinatos das quatro garotas de
Edgewood e no assassino em série que escapou da justiça de maneira quase
sobrenatural durante todos aqueles anos. Os últimos itens removidos do seu mural
no dia em que ele deixou o escritório pela última vez foram as fotografias de
Natasha Gallagher, Kacey Robinson, Madeline Wilcox e Cassidy Burch. Quando a
tenente McClernan pediu, ele ficou feliz em entregar sua pilha de blocos com
anotações pessoais a respeito do caso sem solução.
E, escondido no fundo de um desses pequenos blocos espiralados, McClernan
descobre o primeiro fio solto — e o puxa com força.
Após a morte de Natasha Gallagher em 2 de junho de 1988, não foi coletado o
DNA de nenhum dos familiares imediatos. O motivo inicial para esse deslize foi a
natureza atordoante do crime. Edgewood era uma cidade pequena, não propensa a
tamanha violência — um rapto que se transformou em assassinato envolvendo
mutilação e um cadáver em pose eram algo inaudito e a polícia estava tendo
dificuldade para fazer tudo certo. O segundo motivo para não terem coletado o
DNA dos parentes na época do homicídio foi o total desespero da família,
especialmente do pai da garota. O detetive Harper até rabiscou uma anotação a esse
respeito: “Necessário coletar DNA do pai/mãe/irmão, mas família precisa de
tempo.”
A despeito do motivo — talvez porque a polícia não tenha conseguido
encontrar prova alguma na cena do crime de Natasha Gallagher ou simplesmente
por causa de um descuido — ninguém tocou mais no assunto até o dia após o
homicídio de Kacey Robinson, em 20 de junho de 1988. Na época, depois de
conduzir a coleta de DNA da família Robinson, o detetive Harper ordenou que
membros do Departamento de Polícia do Condado de Harford coletassem amostras
da família Gallagher. Em 24 de junho, o adjunto do xerife coletou material do sr. e
da sra. Gallagher na casa deles na Hawthorne Drive. O mesmo adjunto anotou em
seu relatório que não conseguiu obter uma amostra de Joshua Gallagher porque o
jovem estava trabalhando fora, fazendo entregas de madeira o dia todo. Recados
telefônicos foram deixados na residência e no trabalho, instruindo o sr. Gallagher a
retornar a ligação para marcar um horário para a coleta de material.
E essa é a última menção ao fato que a tenente McClernan consegue encontrar
onde quer que seja. Por isso, a questão entra para a “lista dela”.
Tal lista cresce diariamente, composta de buracos negros e cantos empoeirados
da investigação que ela tem certeza de que já foram verificados várias vezes, mas é
a isso que se reduz o exame de um caso arquivado. Refazer o trabalho com novos
olhos e ouvidos. Procurar não apenas o que pode ter passado batido da primeira vez,
mas também o que pode ter sido visto sob uma luz diferente. Mude a iluminação da
sala, ela gosta de dizer, e você não sabe o que poderá ver.
O item número um da lista da tenente McClernan é reexaminar uma teoria que
nenhum veículo de comunicação conhecia em 1988 — a suspeita de que o Bicho-
Papão talvez fosse um membro das forças de segurança. Essa ideia explicaria a
ausência de combate no quarto de Natasha Gallagher, bem como de gritos por
socorro nos outros três casos. Um policial de Maryland, Michael Moore (nenhuma
relação com o premiado diretor de documentários), fora identificado como um
suspeito em potencial. Na época dos assassinatos, ele havia se divorciado duas
vezes e estava morando num local afastado, para o lado dos bosques do condado de
Harford. Durante um período de sete anos, várias ex-namoradas de Moore haviam
ligado para a polícia para denunciar abuso físico e sexual, mas, em seguida, se
negaram a apresentar queixa. Moore também se parecia bastante com o retrato
falado do Bicho-Papão feito pela polícia e havia uma certa confusão em relação à
validade do seu perfil de DNA. Sabendo que era melhor não ficar empolgada tão
cedo, a tenente dá uma série de telefonemas e conduz algumas pesquisas. O
resultado é decepcionante, mas não surpreendente. Em abril de 2001, Moore foi
preso por cárcere privado e estupro e está atualmente cumprindo pena em
Cumberland, Maryland. Seu perfil de DNA foi atualizado na época do julgamento e
não corresponde ao rastro de sangue deixado na cena do crime de Cassidy Burch.
Depois de riscar o nome de Moore da lista, a tenente passa para o item número
dois: um xerife adjunto chamado Harold Foster, que foi forçado a entregar seu
distintivo em 1998 por causa de acusações de tráfico de drogas e furto em
Baltimore. A ex-mulher de Foster, moradora de longa data de Fallston, havia dito ao
advogado, à época do divórcio, que não ficaria surpresa se Foster fosse responsável
pelos assassinatos das três garotas em Edgewood (isso foi antes da morte de
Cassidy Burch). Segundo a ex-mulher, Foster nutria fantasias sexuais violentas
envolvendo sufocamento e mordidas, e não tinha álibi para nenhuma das três noites
em questão. O advogado transmitiu a um colega policial a informação, que foi
considerada suficientemente boa para ser relatada aos superiores e investigada.
Todavia, um mês mais tarde, quando a amostra de DNA foi descoberta no
cemitério, ninguém tocou mais no assunto e não foram feitas novas análises do
DNA de Foster. Muito provavelmente, deve ter caído no esquecimento.
Infelizmente, uma série de telefonemas rápidos esclarece tudo para a tenente
McClernan, fornecendo provas de que os testes foram de fato feitos e não foi
encontrada nenhuma correspondência, eliminando a suspeita sobre Foster.
Os itens de três a sete da lista são relativamente mais simples em comparação
com os outros e a tenente leva apenas quarenta e oito horas para examiná-los e
descartá-los. Mesmo assim, ela não esmorece. A lista é longa e continua crescendo.
McClernan tem tempo.
Ela, então, chega ao item número oito: Joshua Gallagher e a tal questão da
amostra de DNA faltante. Começa examinando com mais atenção seu álibi. Na
noite do assassinato da irmã, Joshua está com Frank Hapney, um colega de trabalho
e ex-colega de turma. Eles passam a noite bebendo no Loughlin’s Pub até por volta
das 22h, depois retornam para o apartamento de Hapney na Edgewood Road.
Chegando lá, veem televisão e continuam bebendo até quase meia-noite. A essa
altura, Joshua vai embora e volta para casa, aonde chega por volta de 0h15.
Levando em consideração o horário estimado da morte de Natasha Gallagher,
a linha do tempo fornecida pelo álibi de Joshua Gallagher é apertada — além de
difícil de verificar —, mas a tenente não se preocupa muito com isso. Joshua
Gallagher não tem antecedentes, nenhuma queixa e, segundo todos, é um filho e
irmão carinhoso. Jamais apareceu em qualquer lista de suspeitos.
Como se quisesse provar seu argumento, ela abre outro dossiê e olha o rosto de
Gallagher aos 22 anos de idade. Compara-o a uma fotocópia do retrato falado do
Bicho-Papão. Nada a ver. E ainda tem o seguinte: na noite em que escapou por um
triz, Annie Riggs afirmou que o assassino era um homem grande — de pelo menos
um metro e oitenta, musculoso e forte. Joshua Gallagher tem um metro e setenta e
cinco, e pesa setenta e dois quilos.
Tendo já verificado os antecedentes de Gallagher há algumas semanas, quando
acrescentou o nome dele à lista, a tenente McClernan sabe que agora ele está
casado, tem dois filhos adolescentes e mora e trabalha em Hanover, Pensilvânia. É o
treinador dos times de beisebol dos filhos durante o verão, participa de um torneio
de dardos nas noites de sábado e é um ávido caçador. Parece ter construído uma
vida confortável para si mesmo. Em seguida, verifica os antecedentes de Frank
Hapney, para a eventualidade de resolver falar com ele. Prontuário limpo. Ainda
mora em Edgewood, em uma casa alugada na Willoughby Beach Road. Trabalha na
loja de materiais de construção Lowe’s, em Bel Air.
Depois ela procura os pais, Russell e Catherine Gallagher. Fica desolada ao
descobrir que o sr. Gallagher cometeu suicídio no início de 1989, porém, mais uma
vez, não fica surpresa. Divórcio e suicídio são muito comuns entre pais de
adolescentes que foram vítimas de assassinato. Uma vez que os sentimentos de
culpa e responsabilização entram em cena, é difícil voltar atrás. E, às vezes, a mera
presença do outro é uma lembrança dolorosa demais do que foi perdido. De acordo
com o arquivo informatizado, a sra. Gallagher está com 73 anos e ainda mora na
Hawthorne Drive, em Edgewood. Nunca se casou novamente.
Remexendo nos blocos de anotação do detetive Harper e em uma pilha de
velhos relatórios, a tenente se depara com várias anotações esparsas a respeito de
Joshua Gallagher. Na primeira, o detetive Harper menciona que Gallagher só
frequentou três semestres da faculdade na Pensilvânia antes de voltar para casa em
Edgewood. Nenhum motivo sobre o retorno precoce está elencado. Mais uma coisa
a ser verificada, a tenente pensa e acrescenta esse ponto à uma lista própria dentro
da lista. A segunda anotação diz respeito ao local de trabalho de Joshua na época do
assassinato da irmã — a loja de materiais de construção Andersen’s, na Route 40,
entre a Edgewood e a Joppatowne. Não existe mais, mas ela conhece bem a loja,
afinal, o pai havia sido um requisitado marceneiro na cidade e costumava comprar
madeira e ferramentas lá. Lembrando que Joshua Gallagher afirmou estar ocupado
fazendo entregas de madeira no dia em que as amostras de DNA dos pais foram
coletadas, a tenente faz uma anotação para verificar quais tipos de veículos os
empregados usavam para fazer essas entregas. Já se passaram mais de trinta anos,
mas alguém deve lembrar.
A tenente deita a caneta no bloco amarelo quase totalmente preenchido com a
letra do detetive Harper, e se recosta na cadeira, sua expressão demonstrando
concentração. Um acidente grave aconteceu na Route 24 há noventa minutos — um
Mustang conversível atravessou a faixa central e colidiu com um caminhão que
carregava uma caçamba cheia de entulho — e a delegacia está alvoroçada.
A tenente não deu a mínima. Um instante mais tarde, inclina-se para a frente, volta
a pegar a caneta e rabisca rapidamente uma só frase ao pé da página: Natasha
Gallagher — primeira vítima e única garota que não foi estuprada. É uma
observação que o detetive Harper havia destacado várias vezes em suas anotações,
mas, de repente, ela sente o desejo de pesquisar mais a fundo.
Finalmente pronta para começar pra valer, a tenente McClernan pega o
telefone na sua mesa e liga para a casa de Joshua Gallagher. A secretária eletrônica
atende depois do terceiro toque e ela desliga. A seguir, tenta o celular — um toque e
vai direto para a caixa postal. Dessa vez, ela deixa o nome e o número de telefone e
pede a Gallagher que retorne a ligação.
Para sua surpresa, ele liga em cinco minutos. Ela explica que está reanalisando
o caso da irmã e os outros três assassinatos de 1988. Em nenhum momento
menciona a amostra de DNA faltante. De fala mansa e tom constrangido, Gallagher
parece perplexo pelo fato de o caso ainda estar aberto. Parece ainda mais perplexo
alguns minutos mais tarde quando a tenente pergunta se pode encontrá-lo assim que
possível, deixando claro que está disposta a dirigir rumo ao norte, até Hanover. Sem
hesitar, Gallagher diz à detetive que seria um prazer ir até Maryland para encontrá-
la, mas que teria de ser na semana seguinte; é a temporada dos achigãs-boca-
pequena e ele tem uma viagem de quatro dias programada para pescar no
Susquehanna. Depois de fazerem planos para se encontrarem na delegacia central
de polícia na quarta-feira seguinte às 11h, a detetive McClernan agradece a atenção
dispensada e os dois desligam.
Seu próximo telefonema é para Catherine Gallagher, a mãe de Joshua, que
atende ao segundo toque. Às 14h, então, a tenente já está sentada na sala de estar
daquela senhora com uma xícara de chá na sua frente, cercada por dezenas de
estatuetas de porcelana Hummel e três gatos de pelo longo. A tenente McClernan
inicia a conversa perguntando sobre Natasha, depois, como acontece muitas vezes,
fica sentada e apenas escuta. É um prazer para a sra. Gallagher falar do sorriso e do
quarto bagunçado da filha, e de como ela estava treinando para tentar entrar para a
equipe de ginástica artística dos EUA e ir para as Olimpíadas. Fala à tenente
de todos os planos de Natasha para fazer aula de teatro na faculdade e se mudar
para Nova York após a formatura. Depois pega de uma gaveta embaixo da mesa de
centro um grande álbum de fotografias — sua vida outrora feliz congelada no
tempo sob páginas plastificadas — e convida a tenente McClernan para sentar no
sofá e folheá-lo com ela.
Vendo uma foto de Joshua Gallagher jovem montado em uma motocicleta na
entrada da garagem, a tenente aproveita a oportunidade para desviar o rumo da
conversa. Ao ouvir o nome do filho, a sra. Gallagher imediatamente aponta para
uma fotografia em cima da prateleira da lareira. Os netos, ela explica. Andrew e
Phillip. Eles moram na Pensilvânia, mas a visitam regularmente com Joshua e sua
adorável esposa, Samantha. A tenente toma um gole de chá e faz uma pergunta
sobre o tempo em que Joshua estudou na Penn State. Alguns minutos mais tarde,
tem suas respostas.
Joshua frequentou a universidade graças a uma bolsa de estudos de luta greco-
romana, mas, logo após lesionar o ombro, decidiu que os sacrifícios para ser um
estudante-atleta da Primeira Divisão eram altos demais em termos de tempo e
estresse para a sua personalidade tipo A. Após muitas noites insones, ele abandonou
a equipe de luta greco-romana e focou nos estudos. Logo em seguida, começou a
trabalhar em regime de meio expediente num armazém para ajudar a pagar as
mensalidades. Também conheceu uma garota. Seu nome era Anna e vinha de uma
família rica dos subúrbios abastados de Nova York. Por um tempo, foram
inseparáveis. Depois, de repente, era o final do semestre de primavera e hora de
cada um voltar para suas respectivas cidades natais para passar o verão. Joshua
queria ficar em Happy Valley para trabalhar e alugar um apartamento para os dois
morarem juntos. Anna não queria — sentia falta da família e queria passar o verão
no litoral com eles. Joshua não ficou feliz, mas os dois se visitaram durante as férias
e conseguiram manter o relacionamento. Até o outono, quando ambos voltaram
para o campus e o irrequieto Josh entendeu que estava farto e que era hora de
conhecer outras garotas. Anna ficou arrasada. Incapaz de dormir ou de se
concentrar nos estudos, acabou largando a faculdade e voltando para Nova York
logo antes das férias de Natal. Pouco depois, Joshua ligou para casa deprimido e
explicou aos pais que a faculdade não fazia mais parte do seu destino. Estava pronto
para encontrar um trabalho de verdade e dar um rumo à própria vida. Os pais
ficaram decepcionados, é claro, mas acabaram apoiando sua decisão.
Agora, enfim, a tenente McClernan entra no assunto derradeiro da tarde: o sr.
Gallagher. Tomando todo o cuidado para ser o mais delicada possível, pergunta à
sra. Gallagher sobre o estado de espírito do finado marido após a perda da filha.
Enquanto a sra. Gallagher dá uma longa resposta, a tenente faz muitas anotações:
“Num primeiro momento, ele ficou totalmente desnorteado, não era capaz de reagir.
Pensamos em interná-lo, mas, na manhã do velório de Natasha, ele parecia ter se
recuperado. Decidimos fazer terapia juntos, e fizemos por um bom período. Parecia
mesmo que estava funcionando. Ele estava melhorando, tenho certeza. Até voltou a
jogar golfe nos fins de semana. Depois tudo desandou novamente. Ele começou a
ter dificuldade para dormir, aí deu para beber toda noite para ajudar o sono, mas
também não funcionou. Só deixava ele com mais raiva. Não sei o que desencadeou
tudo novamente, mas algo deve ter acontecido. Ele… mudou. Tentei conversar a
respeito, mas ele não me abria espaço. Depois parou de ir à terapia. Por fim, como
último recurso, inventei uma desculpa para ficar fora de casa um dia, depois do
jantar, e mandei Josh ter uma conversa a sós com ele. Mas não ajudou. Ele ficou
furioso porque agi sem consultá-lo e as coisas só pioraram ainda mais. Poucos dias
depois disso… ele se foi. E, em todos esses anos, eu nunca descobri o que estava
por trás daquela piora tão repentina.”
No caminho de volta à delegacia — com os olhos vermelhos e espirrando por
causa dos malditos gatos da sra. Gallagher —, a tenente liga para o número de
informações e obtém o telefone da secretaria da Penn State University. Esperando
que, àquela hora da tarde, a ligação caísse na secretária eletrônica, ela fica
agradavelmente surpresa quando uma mulher de voz alegre atende. A tenente
explica o que está procurando e é imediatamente transferida para o departamento
competente. Uma mulher com uma voz igualmente alegre anota o nome completo e
o número da identidade de Joshua Gallagher, além do celular da tenente, e promete
que entrará em contato assim que localizar as informações solicitadas.
Prestes a jogar o celular no banco do carona e dar o dia por encerrado,
a tenente McClernan muda de ideia e digita o número da casa de Frank Hapney,
o único que conseguiu obter. São 16h55, então ela calcula uns cinquenta por cento
de chance de encontrá-lo em casa. Desta vez, ela dá sorte: Hapney atende e parece
que andou bebendo.
Cinco minutos mais tarde, McClernan já tem tudo o que precisa.
Frank Hapney não vê nem fala com Joshua Gallagher há mais de uma década.
Lembra vagamente da noite do assassinato de Natasha Gallagher e sabe que falou
com a polícia naquela mesma semana para confirmar o álibi de Josh, mas conta à
tenente a mesma coisa que disse aos policiais naquela época: tinha bebido demais e
apagou. Ele acha que lembra de Josh indo embora por volta da meia-noite, mas
pode ter sido muito mais cedo ou até mesmo muito mais tarde. É impossível ter
certeza, especialmente depois de tantos anos. A tenente McClernan finalmente
pergunta a Hapney sobre a loja de materiais de construção Andersen’s e os dezoito
meses que ele e Joshua trabalharam lá juntos.
“Isso mesmo”, diz Hapney, embolando as palavras. “Eu era um novato, mas o
Josh já estava lá há um bom tempo quando eu entrei e se encarregava de muitas
entregas. Tinha noite que ele até ia para casa dirigindo um daqueles caminhões
basculantes, em outras, ia com a van mesmo. Tudo dependia do tipo de carga que
ele tinha entregado no dia.
A tenente McClernan adormece naquela noite com uma sensação boa em
relação ao item oito da sua lista. Afinal de contas, Joshua Gallagher não tem nada
que corresponda ao perfil do Bicho-Papão: era jovem demais na época dos
assassinatos, morava num sobrado com vizinhos dos dois lados, não tem qualquer
ligação com três das quatro vítimas e não se parece nem um pouco com o retrato
falado do assassino feito pela polícia. Além do mais, o sororicídio — o ato de matar
a própria irmã — é extremamente raro entre os serial killers modernos. Se a
investigação da tenente continuar nessa direção, vai ser fácil riscar Joshua
Gallagher da lista e passar para o item nove.
No entanto… várias questões preocupantes que surgiram com o item oito não a
deixam em paz.
A ausência de um teste de DNA, um álibi questionável, problemas com garotas
e acesso fácil a uma van. Não é suficiente para disparar seu alarme interno, mas sem
dúvida é suficiente para acionar alguns bipes ruidosos e esporádicos. Pelo menos
um padrão interessante está começando a surgir e a tenente McClernan acha que, na
semana que vem, vai obter as respostas que está procurando.
Mas, por obra do destino, tudo acontece mais depressa.
Dois dias mais tarde, Jennifer Schall, funcionária do Administrativo da Penn
State, retorna a ligação de McClernan e a tenente descobre a verdade sobre a saída
precoce de Joshua Gallagher da universidade. Depois de uma queixa por
perseguição e assédio ter sido feita contra Joshua em outubro de 1985 por sua ex-
namorada Anna Garfield — na verdade ela é que havia rompido com Joshua, e não
o contrário —, ele recebeu uma advertência e foi instruído a não contatá-la
novamente. Quando a srta. Garfield fez uma segunda reclamação no início de
dezembro de 1985, acusando-o de invadir seu quarto no dormitório e vandalizar
seus pertences pessoais — um incidente capturado em vídeo pelas câmeras de
segurança no corredor dos dormitórios —, Joshua Gallagher foi sumariamente
expulso e permanentemente proibido de entrar no campus. Os agentes de segurança
da universidade perguntaram se a srta. Garfield queria dar queixa, mas ela declinou
e assinou uma declaração confirmando sua decisão. Como ele tinha 18 anos e já era
considerado legalmente maior, a reitoria não se deu ao trabalho de telefonar para os
pais de Joshua. Apenas uma carta de afastamento, de uma página, em tom brusco,
foi enviada para a casa da família.
Interessante, a tenente McClernan pensa. Depois de todos esses anos, será
que Catherine Gallagher está mentindo para proteger o filho? Ou será que ela
desconhece a verdade?
A tenente agradece a Jennifer Schall pelas informações e pergunta se a Penn
State mantém fotos dos ex-alunos em arquivo — talvez de velhos anuários ou fichas
de identificação. Ela gostaria de examinar bem a foto de Anna Garfield. Jennifer diz
que terá de verificar e promete dar uma resposta.
Após informar a Jennifer seu endereço de e-mail e encerrar o telefonema,
a tenente liga imediatamente para a Reuter’s Machinery em Hanover e pede para
falar com o supervisor de Joshua Gallagher. Ela sabe que aquela é uma situação
delicada e a última coisa que quer fazer é assustar Gallagher, mas seu alarme
interno está começando a emitir bipes um pouco mais altos agora e ela precisa de
uma certa e valiosa resposta. Depois de quase cinco minutos de espera, um homem
com um tom grosseiro pega a extensão. A tenente se identifica e afirma que tem
uma pergunta importante para Joshua Gallagher a respeito do caso da irmã. Ela sabe
que ele não está trabalhando hoje, e pergunta se por acaso alguém saberia dizer
onde encontrá-lo. A tenente não fica nem um pouco chocada com a resposta do
supervisor — e o volume do alarme dentro da sua cabeça imediatamente sobe. Ao
que parece, Joshua Gallagher não está pescando no rio Susquehanna. Na verdade,
ele apenas ligou de manhã para avisar que não iria trabalhar, alegando uma forte
diarreia e febre alta.
A tenente desliga o telefone e pega o envelope de papel pardo que contém os
perfis de DNA do sr. e da sra. Gallagher. Olhando para as impressões de trinta anos
atrás, recorda da conversa na sala de estar de Catherine Gallagher e de algo que sua
interlocutora disse enquanto folheava o álbum de fotografia. A tenente achou o
comentário estranho, mas não disse nada na hora porque não queria interromper a
fluidez da conversa. Com anos de experiência adquirida a duras penas, ela sabia
que, uma vez que você interrompe alguém no meio de um exposição sobre um
assunto particularmente difícil, geralmente é impossível recomeçar.
A tenente pega o telefone, localiza no bloco de notas o número que está
procurando e digita. Catherine Gallagher atende após o segundo toque e parece ficar
sinceramente contente em ouvi-la. Depois dos cumprimentos de praxe, a tenente
McClernan vai direto ao assunto.
“Eu estava revisando minhas anotações esta manhã…”, começa, “e vi que há
algumas coisas que eu gostaria de esclarecer.”
“Claro. No que eu puder ajudar…”
A tenente começa com uma pergunta vaga.
“A senhora mencionou que sua filha estava planejando fazer aula de teatro na
faculdade e se mudar depois da formatura. A senhora até disse para onde, mas eu
não anotei. Era Nova York ou Los Angeles?”
“Ah, era Nova York”, a sra. Gallagher informa, um tom melancólico
insinuando-se na voz. “Ela sempre quis atuar em uma peça da Broadway.”
“Isso mesmo. Agora lembrei. Obrigada.”
“De nada.”
“Só mais uma última pergunta, sra. Gallagher. Quando a senhora estava me
mostrando as fotografias do seu filho e da sua filha, comentou algumas vezes que os
dois se pareciam muito. Acho que a palavra que a senhora usou ao falar da
semelhança entre eles foi “insólita”.
Segue-se então um longo silêncio e, quando a sra. Gallagher finalmente
responde, sua voz soa diferente.
“Ah… eu disse isso?”
“Disse, sim. Até anotei no meu caderno, pois achei estranho. A primeira vez
que a senhora disse isso foi depois de me mostrar uma foto dos dois na praia. Eles
eram muito pequenos e acho que estavam construindo um castelo de areia.
A segunda vez foi quando estávamos vendo uma fotografia que seu marido tirou
durante uma visita da família à Penn State.
“Receio não estar lembrando bem. Sinto muito.”
“Não se preocupe, sra. Gallagher”, a tenente diz e remexe nos papéis para dar a
impressão de que está ocupada. “Então, antes de desligar, a pergunta que eu gostaria
de fazer para a senhora é a seguinte, e preciso que seja muito sincera comigo. É
muito importante que a senhora me diga a verdade agora.”
“Tudo bem”, a voz é quase um sussurro.
“Seu filho Joshua… ele foi adotado, não foi?”
A tenente ouve um respiro fundo do outro lado da linha e sabe que seu palpite
está correto.
“Está tudo bem, sra. Gallagher?”
“A decisão de não contar a Josh foi do meu marido.”
A tenente McClernan se endireita na cadeira e espera que a sra. Gallagher
prossiga.
“Ele não queria que o Josh se sentisse excluído quando crescesse. Queria que
ele se sentisse parte da família. Depois, alguns anos mais tarde, quando Natasha
nasceu — um milagre, foi o que os médicos disseram — e os dois se pareciam
tanto… ficou ainda mais fácil manter o segredo.”
“Ninguém mais sabe?”
“Minha irmã e um casal de tios na Carolina do Sul, mas só eles.”
“Joshua nunca ficou sabendo?”
“Não, nunca”, ela começa a chorar. “Tudo que a gente mais queria é que ele
fosse feliz…”
Depois de desligar o telefone, a tenente McClernan escreve Adotado — não
haveria correspondência familiar na parte inferior da página impressa do perfil de
DNA da sra. Gallagher e a põe de volta no envelope de papel pardo. Joga-o sobre a
mesa e passa o resto da manhã examinando os cadernos do detetive Harper. Ela já
fez isso meia dúzia de vezes, mas acha que repetir mais uma vez não vai fazer mal a
ninguém. Alguns minutos após o meio-dia, recebe um e-mail de Jennifer Schall, da
Penn State. Uma foto colorida desbotada está anexada. A tenente olha atentamente
para a foto, o coração e o alarme interno em disparada, e pensa: Dá para entender
por que Josh estava tão gamado nela. Anna Garfield é uma jovem linda com
grandes olhos castanhos, lábios carnudos, um delicado nariz aristocrático e longos e
brilhantes cabelos castanho-claros.
Na mosca.
A tenente levanta da escrivaninha e bate à porta do capitão Bradford. Após
colocá-lo rapidamente a par de todos os detalhes, sai para contatar o xerife do
condado de Harford e volta à escrivaninha para ligar para a equipe de
investigadores do condado de York. Em York, assim como nos condados vizinhos
de Lancaster e Adams, o resultado é nulo. Nenhuma adolescente de cabelos longos
foi morta por estrangulamento nos últimos dez anos. Nenhuma orelha decepada
nem marcas de mordida ou cenas de crime com corpos posados.
Mas quando expandem a busca para incluir mais meia dúzia de condados, os
detetives logo obtêm uma resposta positiva.
Dois anos atrás, a noroeste do condado de Juniata, o cadáver de uma garota de
17 anos com longos cabelos loiros foi encontrado: morte por estrangulamento.
A vítima, Sheila Rafferty, tinha o que parecia ser uma única mordida no ombro
esquerdo, mas o legista não deu certeza porque o corpo havia ficado muito tempo
no rio. Pescadores se depararam com o cadáver em águas rasas ao longo das
margens rochosas do Susquehanna.
Tudo está se encaixando agora. E rápido.
Quando chega à delegacia central de polícia do Estado de Maryland dois dias
mais tarde, Joshua Gallagher já está sendo vigiado vinte e quatro horas por dia. Ele
não dá um passo sem que os detetives não saibam exatamente o que ele está
fazendo. A tenente McClernan cumprimenta Gallagher no saguão e o convida a se
sentar na única cadeira à frente da sua escrivaninha. Eles conversam por
aproximadamente trinta minutos. O comportamento da tenente é descontraído,
quase amistoso. Ela não faz perguntas difíceis. Gallagher afunda na cadeira,
parecendo quase entediado às vezes. A voz é firme; as repostas, breves e diretas.
A certa altura, ele até boceja.
Alguns minutos antes de terminarem, a tenente, da forma mais discreta
possível, começa a mexer num pequeno brinco de argola na orelha esquerda. Do
outro lado da sala, a detetive Janet Ellis vê o sinal e imediatamente se levanta da
mesa, carregando um envelope de papel pardo. Seus longos cabelos castanhos
chegam quase até a cintura, uma clara violação das regras do departamento. Ela se
aproxima da mesa da tenente McClernan e, abrindo um sorriso amistoso para
Joshua Gallagher, diz:
“Desculpe interromper, tenente, mas aqui está a pasta que a senhora pediu.”
“Muito obrigada, Anna”, a tenente responde, pegando a pasta.
Joshua Gallagher imediatamente se endireita na cadeira e tem dificuldade para
desviar os olhos da detetive Ellis enquanto ela volta para a própria mesa. A tenente
McClernan abre a pasta e finge ler o que tem dentro. Espiando pela parte de cima
do dossiê, observa o esforço no rosto de Gallagher. Após cerca de trinta segundos,
fecha a pasta e termina a conversa.
Enquanto Joshua Gallagher atravessa o estacionamento da Central, a tenente
McClernan permanece sentada atrás da escrivaninha, observando os apoios para os
braços da cadeira da qual Gallagher acabou de se levantar — e a marca brilhante de
suor que ele deixou para trás. Calçando luvas, a tenente se levanta, retira um
cotonete do tubo estéril onde estava armazenado e coleta cuidadosamente amostras
de cada um dos apoios.

Não haverá julgamento. Nada de flashes espocando fora do tribunal. Nada de


transmissões dramáticas do processo na televisão. Nada de imagens diárias do
monstro. Do Bicho-Papão. De Joshua Gallagher.
Ele admite tudo e vai além: afora as quatro garotas de Edgewood em 1988,
inclusive a própria irmã, mais outras três — uma em 2001 no oeste de Maryland e
outras duas, em 2006 e 2018, na Pensilvânia.
E a polícia acredita que ainda tem mais.

Na segunda-feira, 2 de dezembro de 2019, estou sentado atrás da escrivaninha no


meu home office, imprimindo as páginas do dia, quando meu celular começa a
tocar. Olho para a tela: P. E. MD. Curioso, atendo.
“Alô.”
“Senhor Richard Chizmar?”, pergunta uma voz feminina.
“Sim, sou eu mesmo. Quem está falando?”
“Sou a tenente McClernan, da Polícia do Estado de Maryland.”
“Sei quem é”, digo. “Andei te vendo por tudo quanto é lugar ultimamente.”
Ela ri. Mas não de alegria.
“Eu também não me aguento mais.”
“Não foi o que eu quis dizer.”
“Ouça”, ela pede, indo direto ao assunto. “Tenho uma proposta incomum para
lhe fazer.”
“Pode falar.”
“Está escrevendo um novo livro sobre o caso Joshua Gallagher.”
“Isso é uma pergunta?”, questiono, sem saber que rumo a conversa tomaria.
“Não.”
Espero um pouco mais, mas ela não diz nada.
“Recebi uma proposta para revisar o manuscrito original e escrever um novo
posfácio.”
“Bom para você”, ela diz, parecendo estar falando sério. “Mas espero que
ainda não tenha assinado o contrato.”
“Por quê?”
“Porque acho que, em breve, vão fazer uma proposta bem melhor.”
“Por quê?”
“Joshua Gallagher quer falar com você, só com você.”

As regras básicas são simples. Não posso entrar com nada na sala. Nenhum papel
ou instrumento para escrever, nenhum tipo de dispositivo de gravação. O áudio e o
vídeo da entrevista serão gravados pela polícia e eu terei total acesso ao material
não editado. Além da minha lista de perguntas, a polícia vai me fornecer algumas
outras. Todos os direitos de impressão da entrevista pertencem a mim. O material
em vídeo, porém, é de propriedade exclusiva da Polícia do Estado de Maryland.
Durante toda a entrevista, Joshua Gallagher ficará com pernas e braços algemados.
Um guarda armado ficará na sala conosco o tempo todo. Terei sessenta minutos
para realizar a entrevista.

Data da Entrevista: quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Hora: 13h30

Local: Penitenciária de Maryland, Baltimore, MD


[Joshua Gallagher não se parece em nada com o adolescente altivo, mas
na dele, e sarado da época do colégio. Os anos não lhe foram gentis.
Josh está gordo e barbado. Sua expressão mansa não muda enquanto os
guardas o põem sentado do outro lado da mesa. Cheirando a suor e a
sabão em pó barato, não parece contente nem descontente em me ver.
Tem um leve tique no olho direito. Bate nervosamente com o pé no chão,
fazendo tilintar a corrente que prende seus tornozelos. Não se assemelha
nem um pouco a um homem que admitiu ter matado sete jovens
mulheres.]

RICHARD CHIZMAR: Por que eu, Josh? Por que eu estou aqui?

JOSHUA GALLAGHER: Por vários motivos. [Pigarreia.] Segui sua


carreira com muito interesse. Você se saiu bem. Até aluguei Matador de
Aluguel 2, na Redbox. Também nunca esqueci que você foi ao velório da
minha irmã.

CHIZMAR: Metade da cidade compareceu.

GALLAGHER: Você esteve presente o tempo todo. Se tornou parte de


tudo.

CHIZMAR: Quando exatamente me tornei parte de tudo?

GALLAGHER: Quando você e sua amiga repórter começaram a fazer


perguntas para metade da cidade. Quando você começou a montar um
álbum de recortes sobre os assassinatos.

CHIZMAR: Vejo que você de fato leu o livro.

GALLAGHER: Claro que li.


CHIZMAR: Suponho que foi você que começou a ligar para o meu
apartamento e desligar na semana em que o livro foi publicado.

GALLAGHER: Eu queria ouvir sua voz.

CHIZMAR: E foi você que ligou todas aquelas vezes para a casa dos
meus pais?

GALLAGHER: [Assente.] Sim.

CHIZMAR: Por quê?

GALLAGHER: Não sei exatamente. Eles se tornaram parte de tudo,


acho.

CHIZMAR: Minha mãe ficou morrendo de medo.

GALLAGHER: Sinto muito. Ela não merecia. Mas acho que talvez o
motivo fosse esse: te assustar.

CHIZMAR: Você queria que eu parasse?

GALLAGHER: Acho que não. Não sei o que eu realmente queria.

CHIZMAR: Você me seguiu?

GALLAGHER: Quando?

CHIZMAR: Em 88. Em Edgewood.


GALLAGHER: [Assente.] Às vezes. Um pouco depois, também.

CHIZMAR: Depois que o livro foi lançado?

GALLAGHER: [Assente.]

CHIZMAR: Onde?

GALLAGHER: Isso não é importante.

CHIZMAR: Para mim, é.

GALLAGHER: Você não tem outras perguntas para mim?

CHIZMAR: [Pausa.] Anna Garfield. Tudo isso começou com ela?

GALLAGHER: [Respira fundo.] Sim e não.

CHIZMAR: Pode explicar o que quer dizer com isso?

GALLAGHER: Posso tentar. [Longa pausa; as batidas no chão ficam


mais rápidas.] Algo dentro de mim está partido. Sempre esteve, desde que
eu me entendo por gente. Algo na minha cabeça está escangalhado.
Está… está errado.

CHIZMAR: Continue.

GALLAGHER: Não sei explicar melhor. Li os livros. Sei que parece


clichê, mas…
CHIZMAR: Livros?

GALLAGHER: Livros sobre assassinos. Serial killers.

CHIZMAR: Você aprendeu alguma coisa sobre si mesmo com esses


livros?

GALLAGHER: [Pausa.] Que não estou sozinho.

CHIZMAR: A Natasha foi a primeira? Ou houve outras antes dela?

GALLAGHER: [Faz que não com a cabeça.] Pensei a respeito. Muito.


Cheguei perto algumas vezes.

CHIZMAR: O que te deteve?

GALLAGHER: Medo. Eu tinha medo de cruzar aquela linha. Medo de


ser pego. Medo de gostar. Então me contentei com outras coisas.

CHIZMAR: Animais?

GALLAGHER: [Assente.]

CHIZMAR: Quando você começou a ferir animais?

GALLAGHER: Eu devia ter uns 8 ou 9 anos.

CHIZMAR: Animais de que tipo?


GALLAGHER: Ah, de todos os tipos. Peixes. Sapos. Coelhos. Depois,
gatos e cachorros. Um cavalo num matagal, uma vez. Foi de noite. Foi
incrível.

CHIZMAR: E você sabia que era errado?

GALLAGHER: Sabia.

CHIZMAR: O que você achava que tinha de errado?

GALLAGHER: Não sei. Eu só sabia que tinha… alguma coisa dentro de


mim, uma coisa ruim, que precisava daquilo, e eu não podia contar pra
ninguém. Eu tentava manter essa coisa trancada atrás de uma porta, mas,
às vezes, eu não era forte o bastante.

CHIZMAR: Você gostava de maltratar animais?

GALLAGHER: No início, não… mas isso foi mudando com o tempo.


Ficou mais fácil. E eu fui ficando melhor.

CHIZMAR: Teve alguma coisa na sua infância que pode ter


desencadeado pensamentos desse tipo? Alguma espécie de gatilho, ponto
de partida ou catalisador?

GALLAGHER: Você quer saber se fui abusado sexualmente ou


fisicamente? Se meus pais me batiam ou me trancavam num armário o dia
todo? Se eu caí e sofri uma lesão que afetou o funcionamento do meu
cérebro? [Faz que não com a cabeça.] Não. Nada desse tipo.

CHIZMAR: Qual é sua primeira lembrança dessa “coisa ruim” dentro de


você?
GALLAGHER: [Longa pausa.] Eu tinha 7 anos e estava na festa de
aniversário de um amigo. A irmã mais velha dele estava no balanço no
jardim dos fundos da casa. Ela me olhou e sorriu, e eu me lembro de ter
ficado ali em pé, segurando meu pedaço de bolo no prato de papel,
pensando: Vou voltar hoje à noite, entrar de fininho na casa e esmagar
teu crânio com um tijolo. Foi um pensamento que simplesmente surgiu na
minha cabeça, do nada. Por que eu queria machucar ela? Não sei. Por que
um tijolo? Eu… eu não sei.

CHIZMAR: Você era popular no ensino médio. Lembro de te ver nas


festinhas. Circulando com garotos e garotas.

GALLAGHER: [Faz que não com a cabeça.] Era porque eu era bom na
luta greco-romana. Aquelas pessoas nunca me conheceram de verdade,
nem quiseram me conhecer.

CHIZMAR: E ao longo de todos aqueles anos — os torneios de luta


greco-romana, as festas da escola e da formatura — você estava lutando
contra aqueles sentimentos ruins?

GALLAGHER: [Assente.] Às vezes, por uma ou duas semanas, até que


passava, mas sempre voltava. Sempre.

CHIZMAR: Quero voltar à faculdade e a Anna Garfield. Você pode me


dizer o que aconteceu?

GALLAGHER: Estávamos apaixonados. Tínhamos feito planos para


ficar juntos pra sempre. E, do nada, ela me trocou por outra pessoa.

CHIZMAR: E então quis machucá-la?

GALLAGHER: Na época, não. Eu fiquei deprimido demais. Estava sem


chão. Eu só queria fazer ela mudar de ideia de alguma maneira. Mas
depois… sim. Eu queria machucar ela. Eu odiava ela pelo que ela havia
feito comigo, pelo que havia feito eu sentir. E por isso eu me odiava
também.

CHIZMAR: Você seguiu ela pelo campus, invadiu o carro e o quarto


dela no dormitório, mas nunca tentou machucar ela fisicamente?

GALLAGHER: Ah, tentei, sim. Duas vezes, no verão seguinte, fui até
onde ela morava com os pais, mas amarelei no último minuto. E por isso
senti ainda mais ódio de mim mesmo.

CHIZMAR: A Anna Garfield disse recentemente a um repórter que você


tinha sido sexualmente bruto com ela.

GALLAGHER: É mesmo, é? Bem, era disso que ela gostava. Foi ela
que me pediu para ser amarrada. Foi ela que me pediu para ser
estrangulada. Eu nunca tinha feito nada disso antes dela. Pode perguntar
pras minhas antigas namoradas.

CHIZMAR: A atração por cabelos compridos… era por causa da Anna?

GALLAGHER: Sabe, é engraçado… eu só percebi que estava fazendo


aquilo depois, quando li a respeito.

CHIZMAR: [Longa pausa.] Você sabe que eu tenho que perguntar isso:
por que você matou a Natasha?

GALLAGHER: Cedo ou tarde, ia acontecer. Eu pensei muito a respeito


quando a gente era mais jovem. Quase fui até o fim uma vez, cerca de um
ano antes. A gente tava fazendo um passeio em Loch Raven e eu peguei
uma pedra mais ou menos do tamanho do meu punho. Então me
aproximei por trás e só não fui em frente por isso aqui [faz com o polegar
e o indicador sinal de pouquinho].
CHIZMAR: Desistiu por que naquele dia?

GALLAGHER: Fiquei com medo.

CHIZMAR: Então o que aconteceu na noite de 2 de junho? Por que


dessa vez você conseguiu?

GALLAGHER: [Suspira.] Olha, eu sei que você quer que eu diga que
algo espantoso aconteceu… que eu, tipo, senti uma espécie de descarga
de energia extraterrestre atravessar meu corpo ou que tive um sonho ou
ouvi vozes. [Os olhos de Josh se arregalam.] Ou talvez que o diabo me
forçou a fazer aquilo. Mas… não. Não foi isso que aconteceu. Mais cedo
naquele dia, enquanto eu estava malhando na academia e, depois,
enquanto eu estava no chuveiro, vi tudo com muita clareza na minha
mente: como eu levaria ela para o bosque, como mataria, como faria
parecer que tivesse sido outra pessoa, tudo. De repente, tudo se encaixou.
Eu tinha combinado de encontrar o [Frank] Hapney depois da academia,
então fiquei com ele algumas horas, então, em vez de ir pra casa, fui pra
casa dos meus pais em Edgewood.

CHIZMAR: E bateu na janela dela?

GALLAGHER: [Faz que não com a cabeça.] Não, em nenhum momento


cogitei entrar pela janela dela. Já era mais de meia-noite quando eu
cheguei. Eu tinha a chave, entrei pela porta da frente na ponta dos pés
e atravessei o corredor. Saímos às escondidas da mesma maneira.

CHIZMAR: E a tela? O sangue no parapeito da janela?

GALLAGHER: Ela deu um cortezinho no dedo sei lá como procurando


as botas no fundo armário. Estava muito escuro e ela não conseguia ver o
que estava fazendo. Usei minha camisa para limpar o sangue e, quando
ela se distraiu, deixei de propósito uma manchinha no parapeito.
Ao mesmo tempo, abri totalmente a janela e arranquei a tela.
CHIZMAR: Exatamente como você havia planejado mais cedo no
chuveiro?

GALLAGHER: Isso mesmo.

CHIZMAR: O que você disse para ela naquela noite? Como conseguiu
convencer ela a te acompanhar?

GALLAGHER: Ela só tinha 15 anos. Não foi difícil. Eu disse que tinha
ficado bebendo com o Hapney no nosso lugar de sempre no bosque e que
ele tinha apagado. E eu precisava que ela me ajudasse a pôr ele
novamente no carro.

CHIZMAR: Aí você levou sua irmã para o bosque e matou ela?

GALLAGHER: Sim.

CHIZMAR: Mas ela resistiu, certo? Lutou com você.

GALLAGHER: Sim.

CHIZMAR: [Pausa.] E as três outras garotas de Edgewood… por que


elas?

GALLAGHER: Mais ou menos pelo mesmo motivo. Assim que eu vi


elas eu sabia. Na hora. Sabia que ia matar. E sabia exatamente como.

CHIZMAR: A polícia não conseguiu estabelecer nenhuma ligação direta


entre suas vítimas. Você não conhecia nenhuma das outras garotas?

GALLAGHER: [Faz que não com a cabeça.] Não. Vi a Kacey Robinson


saindo da Biblioteca uma tarde. Ela estava sozinha e eu estava saindo do
estacionamento do Santoni’s. Eu segui ela até a casa dela naquele dia e
fiquei só stalkeando durante a semana seguinte. Com as outras, foi
a mesma coisa. Vi a Madeline Wilcox num sinal de trânsito. A Riggs
estava jogando hóquei na frente do colégio. A Cassidy Burch no Stop and
Shop comprando uma Coca zero e um saco de batata frita. Eu estava logo
atrás dela na fila, pagando a gasolina.

CHIZMAR: E, além dos cabelos compridos, elas não tinham nenhuma


característica física ou de personalidade em comum?

GALLAGHER: [Pausa.] A maneira como elas olharam para mim. Como


sorriram… como se estivessem gozando da minha cara.

CHIZMAR: A Annie Riggs identificou o homem que a atacou como


alguém muito maior do que você.

GALLAGHER: [Dá de ombros.] Nunca fui grande, mas sempre fui forte
e rápido. O resto foi tudo coisa da cabeça dela. Assim como o retrato
falado da polícia não tinha nada a ver comigo.

CHIZMAR: Por que você cortou as orelhas delas?

GALLAGHER: Castigo.

CHIZMAR: Castigo por qual motivo?

GALLAGHER: Por acharem que eram melhores do que eu.

CHIZMAR: A polícia nunca conseguiu encontrar as orelhas decepadas.


Correm boatos que… você comeu.

GALLAGHER: [Faz que não com a cabeça.] Nada disso. Guardei elas
numa velha lata de café por um tempo, mas começaram a feder, então eu
joguei no Gunpowder. Os bagres devem ter comido.

CHIZMAR: Deixar os corpos em pose se tornou parte da sua assinatura.


Por quê?

GALLAGHER: Eu queria que elas parecessem estar em paz para quem


encontrasse. Para as famílias.

CHIZMAR: A amarelinha, o cartaz do cachorro desaparecido, os cinco


centavos e as abóboras… o que queriam dizer? Numerologia?

GALLAGHER: [Pausa.] Ainda não estou preparado para falar a respeito.

CHIZMAR: Por que não?

GALLAGHER: Porque isso abre a porta para algo que eu não estou
preparado para discutir.

CHIZMAR: Quando você acha que vai estar preparado?

GALLAGHER: Não sei.

CHIZMAR: Por que você mordia suas vítimas?

GALLAGHER: Não me lembro de ter mordido nenhuma delas. Eu disse


isso à polícia, mas parece que não acreditaram.

CHIZMAR: Nenhuma lembrança?

GALLAGHER: [Faz que não com a cabeça.] Zero.


CHIZMAR: Então, a certa altura, evitar ser capturado se tornou um jogo
para você? Ridicularizar a polícia; deixar sua marca nas homenagens;
ligar para a minha casa e desligar; circular perto da casa da Carly
Albright.

GALLAGHER: Nunca cheguei perto da casa da Carly Albright. Nunca


gostei muito dela. Não sei exatamente por que fiz essas outras coisas.
Talvez para me distrair do que eu realmente estava fazendo.

CHIZMAR: O que você realmente estava fazendo?

GALLAGHER: Eu estava matando aquelas garotas.

CHIZMAR: A mídia criou vários apelidos para você. “Bicho-Papão” foi


o que pegou. Você gostou do apelido ou ficou indiferente?

GALLAGHER: Gostei. [Pausa.] Parecia adequado, e foi a primeira vez


que consegui dar um nome àquela coisa ruim que vivia dentro de mim.

CHIZMAR: Você realmente começou a pensar sobre aquela parte de


você mesmo como o “Bicho-Papão”?

GALLAGHER: Sim, comecei.

CHIZMAR: O que você quer dizer com “o nome parecia adequado”?

GALLAGHER: Nas noites em que eu caçava, eu me sentia… diferente.


Me sentia poderoso. Ousado. Invencível. Como se eu e a noite à minha
volta fôssemos uma coisa só. Como se eu pudesse voar, atravessar
paredes e ficar invisível.

CHIZMAR: Você realmente acreditava que podia fazer essas coisas?


GALLAGHER: Eu podia. E fiz. Foi por isso que eles nunca me
pegaram.

CHIZMAR: Você se acha clinicamente perturbado, como algumas


pessoas sugeriram?

GALLAGHER: [Pausa.] Sabe, às vezes, eu gostaria de ser. Mas, não.


Tem algo de errado em mim, mas não sou louco.

CHIZMAR: Como você conseguiu ser sempre tão cuidadoso e nunca


deixar provas?

GALLAGHER: Bom senso, principalmente. Eu não queria ser pego,


então tentava planejar tudo de antemão. Eu usava luvas cirúrgicas, duas
em cada mão, que eu comprei pagando em dinheiro na Pensilvânia. Usava
camisinhas. E sempre comprava uma nova muda de roupas para vestir nas
noites de caça. Pagava em dinheiro em brechós. Todas básicas. Até essa
altura, a polícia sempre estava alguns passos atrás. Sinceramente, minha
sorte acabou naquela noite no cemitério. Eu sabia que tinha ferido o pulso
na cerca, mas não passava de um arranhão. Nem rasgou a manga da
minha camisa. Depois, quando verifiquei em casa, como não tinha
sangue, então calculei que estava tudo bem.

CHIZMAR: E a máscara?

GALLAGHER: O que é que tem?

CHIZMAR: Você poderia ter usado uma máscara de esqui ou muitas


outras coisas para esconder o rosto. Por que fazer sua própria máscara?
Você estava imitando um filme de terror, como algumas pessoas dizem?

GALLAGHER: Era a máscara do Bicho-Papão. Era o que ele queria.


CHIZMAR: [Pausa.] Voltando à noite no cemitério, se você não sabia
que a polícia tinha uma amostra do seu sangue, por que parou depois da
Cassidy Burch?

GALLAGHER: Pelo mesmo motivo de eu não ter matado ninguém antes


que tudo isso começasse. Consegui manter o Bicho-Papão trancado atrás
daquela porta. Fiquei tentado depois da Cassidy Burch, muitas vezes, mas
consegui resistir. Até pensei em me matar algumas vezes, mas não tive
coragem. Então continuei a manter aquela porta fechada.

CHIZMAR: Até a Louise Rutherford em 2001, a Colette Bowden em


2006 e a Erin Brown em 2018.

GALLAGHER: [Assente.] Sim.

CHIZMAR: O que mudou? O que essas mulheres tinham de diferente?

GALLAGHER: Era a mesma coisa de antes. Era só bater o olho nelas e


eu sabia… não podia evitar que acontecesse. Eu tinha deixado de ser forte
outra vez. Nada mais profundo ou místico do que isso.

CHIZMAR: Teve um motivo para você não cortar as orelhas delas dessa
vez? Ou deixar algo para a polícia?

GALLAGHER: Achei que já não era necessário.

CHIZMAR: Tem mais mulheres, Josh?

GALLAGHER: [Longa pausa.]

CHIZMAR: Tem, não é?


GALLAGHER: Sim.

CHIZMAR: Pode dizer à tenente McClernan quem elas são? Onde


estão?

GALLAGHER: [Longa pausa.]

CHIZMAR: Pode dizer só para mim?

GALLAGHER: Hoje, não.

CHIZMAR: Então quando?

GALLAGHER: Em breve. [Pausa.] Talvez.

CHIZMAR: As famílias precisam de um desfecho. Elas merecem saber.

GALLAGHER: Eu disse talvez.

CHIZMAR: Você falou com sua mãe desde a prisão?

GALLAGHER: Não.

CHIZMAR: Por que não?

GALLAGHER: Não tentei.

CHIZMAR: Você sente falta dela? E da sua mulher e dos seus filhos?

GALLAGHER: Sinto. Todos os dias.


CHIZMAR: E quanto a Natasha?

GALLAGHER: Sinto. Eu amava muito ela.

CHIZMAR: Você sente falta do seu pai?

GALLAGHER: [Longa pausa.]

CHIZMAR: Não?

GALLAGHER: Eu não disse isso. Claro que sinto falta dele.

CHIZMAR: Segundo sua mãe, você e seu pai passaram uma noite juntos
alguns dias antes da morte dele. Sobre o que vocês conversaram?

GALLAGHER: Minha mãe me pediu para tentar descobrir o que estava


incomodando o coroa. Ele não queria falar com ela.

CHIZMAR: Além do fato da filha dele ter sido assassinada.

GALLAGHER: Além disso.

CHIZMAR: E o que seu pai descobriu?

GALLAGHER: [Pausa, sorrindo.] Você sabe, não é?

CHIZMAR: Sei o quê?

GALLAGHER: Você sabe sobre o que conversamos naquela noite.


CHIZMAR: Não tenho certeza. Talvez, não saiba.

GALLAGHER: Sabe. Você sabe, sim. [Pausa, o sorriso desaparecendo.]


Foi por isso que eu pedi pra falar contigo, Rich. Você é inteligente. Por
isso as pessoas leem as suas histórias.

CHIZMAR: Acredite, não sou tão inteligente assim. Pode perguntar para
qualquer pessoa.

GALLAGHER: Você é, sim. E você sabe exatamente sobre o que eu e


meu pai conversamos. Sabe que ele viu alguma coisa ou lembrou de algo
e estava ficando desconfiado. Sabe que ele estava pensando em falar com
a polícia.

CHIZMAR: O que seu pai viu, Joshua?

GALLAGHER: [Longa pausa.] O filho de 10 anos brincando no bosque


atrás de casa um dia. Ele foi bem silencioso, só ouvi ele chegar quando já
tava em pé atrás de mim. Aí ele gritou comigo quando viu o que eu estava
fazendo com o cachorro. Era só um vira-lata que eu tinha encontrado
perto dos trilhos da ferrovia, magricela e pulguento. Eu prendi ele no chão
com o joelho e parti pra estrangular ele com as duas mãos. Tentei
explicar, inventei que o cachorro tava ferido e que eu só tava tentando
acabar com o sofrimento dele. No início, ele até pareceu que estava
acreditando em mim, ou pelo menos fingindo que queria acreditar em
mim. Mas, depois, viu o sangue nas minhas mãos e o que eu tinha feito
com a orelha do cachorro com o meu canivete, e aí ele soube. Eu nunca
tinha visto ele com tanta raiva. Ele me arrastou pelo colarinho até em casa
e nunca mais a gente falou a respeito.

CHIZMAR: Seu pai não se suicidou naquela noite, não é?

GALLAGHER: [Olhando para a mesa.] Não.


CHIZMAR: [Longa pausa.] Você alguma vez pensou em me machucar?

GALLAGHER: [Levantando os olhos.] Lembra do dia que você estava


treinando uns arremessos na quadra de basquete atrás do colégio e eu
cheguei de carro e comecei a jogar contigo?

CHIZMAR: [Assente.] Lembro.

GALLAGHER: Sabia que aquele foi um dos dias mais felizes da minha
vida?

CHIZMAR: Como assim?

GALLAGHER: [Dá de ombros.] Simplesmente foi. Um pouco antes,


eu estava dando uma volta de carro perto do rio em Flying Point. Tava
com a janela aberta e o som no máximo, e estava me sentindo tão
bem… Nenhum pensamento ruim. Nenhuma preocupação. Nenhum
Bicho-Papão. Tava me sentindo quase… normal. Aí, na volta, vi você
treinando arremessos e decidi parar. Você foi legal comigo. Não disse
muita coisa, mas foi simpático. Jogamos H-O-R-S-E e ganhei duas das
três partidas.

CHIZMAR: [Assente.]

GALLAGHER: E quando você teve que ir embora, disse pra eu ficar


com a bola se quisesse continuar jogando. Disse que tinha outras três ou
quatro em casa.

CHIZMAR: Lembro.

GALLAGHER: Um pouco depois, no caminho pra casa, lembro de ter


pensado que eu podia parar. Talvez eu pudesse ir a algum lugar buscar
ajuda e, ao voltar, eu seria como todas as outras pessoas. Como você.
[Pausa.] Mas isso nunca aconteceu e…

GUARDA: Com licença. O tempo acabou, sr. Chizmar.

10

A tenente McClernan está me esperando no saguão depois da entrevista. Ela me


entrega o celular, a carteira e as chaves do carro, e saímos juntos. O sol da tarde está
alto no céu, mas a temperatura caiu e há poças no estacionamento. Choveu
enquanto estávamos lá dentro.
“Você está bem?”, ela pergunta.
“Acho que sim.”
“Você se saiu bem. Fez ele começar a falar. Quando isso acontece, eles
geralmente continuam falando.”
“Ele não respondeu muitas das perguntas que você me deu.”
“Ele respondeu o suficiente”, ela diz. “E a história do pai… foi a primeira vez
que ele admitiu que foi ele que matou. Como você sabia que devia perguntar
aquilo? Não estava na lista.”
Antes que eu consiga responder, tropeço nos meus próprios pés e derrubo as
chaves do carro num buraco cheio de água suja. Fazendo uma careta, eu me curvo e
as pesco cuidadosamente, limpando minha mão molhada na perna da calça.
“Você vai conseguir dirigir?”
“Sem problema”, digo e me viro para olhar para a tenente. “Ele não era o que
eu esperava.”
“Eles raramente são.”
“Eu tinha certeza de que ele ia dizer que o pai tinha contado que ele foi
adotado. Na noite em que o Josh matou ele”, digo, balançando a cabeça. “Mas acho
que ele não faz a menor ideia.”
“E queremos que continue assim pelo maior tempo possível.”
Não digo nada. Só entro no carro e vou embora.
11

De acordo com um estudo de 2009 realizado pelo FBI, quase 16% dos serial
killers americanos foram crianças adotadas, e os adotados representam apenas 3%
da população.
Até existe uma condição chamada Síndrome da Criança Adotada que foi usada
como defesa jurídica bem-sucedida em vários casos de pena de morte em que o
acusado havia sido adotado.

12

A entrada principal do cemitério Green Mount no Centro de Baltimore parece o


portão de um castelo medieval. Só falta a ponte levadiça. Enquanto estou sentado na
minha picape no estacionamento, fico olhando para as duas torres de pedra,
esperando ver arqueiros vestindo armaduras e flexionando seus arcos.
Finalmente, poucos minutos depois das 17h, um Audi vermelho-fogo deixando
um rastro de poeira entra em alta velocidade no estacionamento e encosta do meu
lado. Carly Albright, usando uma jaqueta de inverno grande demais, calças de esqui
pretas e largas e galochas cor de rosa, sai do carro. Parece uma esquimó grávida.
Salto da minha picape e olho ostensivamente para o relógio.
“Você tá atrasada.”
“Vá se catar”, ela diz, cobrindo o penteado de duzentos e cinquenta dólares
com um capuz forrado de pelo sintético. “Alguém tem que trabalhar, sabia?”
“Eu trabalho.”
“Alguns de nós têm empregos de verdade”, ela me alfineta, esticando-se no
banco dianteiro do carro e pegando um ramalhete. “Eu devia ter comprado flores de
plástico. Essas aqui vão estar mortas amanhã.”
“Tenho certeza de que já estão mortas.”
Caminho até a caçamba da minha picape e pego a pequena coroa natalina que
comprei de um florista no caminho.”
“Bonita”, ela diz, e dá para perceber que está sendo sincera. Carly me dá o
braço e começamos a caminhar.
“Se vier a nevasca que você está esperando…”, brinco, tentando não rir.
“Dããã”, reage, me cutucando com o cotovelo. “Você sabe que odeio frio”,
comenta e olha para o que estou vestindo, que não é muita coisa. “Não me culpe
quando você morrer congelado.”
Naquele exato momento, quando entramos no escuro túnel de pedra que marca
a entrada principal do cemitério, a temperatura cai uns dez graus. Ao sairmos do
outro lado, estamos em uma aleia com calçamento de pedra cercada por quase trinta
hectares de monumentos ornamentados e lápides. O que restou da tempestade de
neve da semana passada cobre os morros ondulados. Se não fosse pela silhueta dos
prédios de Baltimore, visível ao longe, poderíamos estar numa pitoresca colina
congelada na Nova Inglaterra.
“Sempre me esqueço de como este lugar é bonito”, ela diz.
“Eu também.”
“Qual foi a última vez que você esteve aqui?”
“Kara e eu demos uma passada no final do verão”, digo e olho para ela.
“E você?”
Ela balança a cabeça.
“No velório.”
“Vamos”, digo, voltando a caminhar. “Já já vai escurecer.”
“Alguma notícia da tenente McClernan ou do advogado de Joshua?”
“Nada ainda.”
Joshua Gallagher pediu recentemente uma continuação da nossa conversa para
o início do mês. Apesar de eu ter demonstrado pouco entusiasmo, a tenente
McClernan e meu agente literário estão ansiosos para que aconteça. Agora é só
questão de cumprir os trâmites burocráticos.
“Eu gostaria que ele estivesse aqui para ver tudo isto”, ela diz.
“Eu, não.”
“Por que não?”
“Sei que ele ficaria feliz de encerrar o caso, tirar o assassino das ruas,
especialmente esse, sem dúvida nenhuma”, respondo, levantando os ombros. “Mas
acho que ele ficaria decepcionado quando descobrisse que foi o Josh. Durante todo
esse tempo, estávamos procurando um monstro… mas parece que encontramos algo
diferente.”
“Ele matou oito pessoas, Rich. Pelo menos oito. Eu diria que isso faz dele um
monstro.”
Faço que sim com a cabeça.
“Você tem razão.”
“Parece que você tem pena dele.”
“Não é isso. Eu só não… entendo.”
“Bem, então somos dois.”
Caminhamos em silêncio e acabamos saindo da aleia e atravessando um campo
aberto. Enquanto avançamos com neve na altura dos tornozelos, sinto minhas meias
ficando encharcadas, mas não digo nada. Senão a bronca não vai ter fim.
“Sabe quem está enterrado aqui?”, Carly pergunta, finalmente quebrando o
silêncio.
“John Wilkes Booth.”
Ela para e olha para mim.
“Como diabos você sabe disso?”
“Você me disse no velório.”
“Ah…”
Ela segura meu braço e começa a andar novamente.
Paramos no topo de um pequeno aclive cercado por pinheiros esparsos.
“Esta é uma última morada muito tranquila”, Carly observa, olhando em volta.
Apoio-me imediatamente em um joelho e uso as mãos para afastar a neve,
o gelo e os gravetos de uma modesta lápide de granito. Quando termino, ponho a
coroa de flores ao lado e me levanto novamente.

LYLE ALVIN HARPER


1938-2019
Pai amoroso

“Interessante”, diz Carly, abaixando-se e deixando o ramalhete na base


da lápide. “Nenhuma menção sobre a carreira de policial.”
“Também notei.”
“Acha que não por quê?”
“Creio que, no final, ele se orgulhava muito mais de ter sido um bom pai do
que um bom policial.”
Ela olha para mim.
“Você sente falta dele, não é?”
“Sinto.”
“Qual foi a última vez que vocês se viram?”
“A questão é exatamente essa”, digo, enxugando os olhos. “Faz treze anos.
Fomos pescar na semana logo após o velório do meu pai. Não faz sentido eu me
sentir assim.”
“Para mim, faz.”
Ficamos ali em pé, em silêncio, olhando para a lápide, perdidos em nossos
próprios pensamentos. Finalmente, pigarreio.
“Faz questão de ter a honra ou topa deixar pra mim?”, pergunto e ela me olha,
confusa. “Quem vai contar pra ele que finalmente pegamos o filho da puta?”
“Ahhh… saquei”, Carly diz, sorrindo. “Quer levar todo o crédito, né,
espertinho?”, brinca. Não, obrigada. Eu mesma conto pra ele.”
Ela segura meu braço novamente, com força, e apoia a cabeça no meu ombro.
Nosso riso ecoa pelas montanhas onduladas e cobertas de neve. É um som gostoso.
ACIMA: O sobrado em Jappatowne onde Joshua Gallagher morava aos 22 anos, na época dos
assassinatos (Foto cortesia do autor)
ACIMA: Joshua aos 19 anos na Penn State University (Foto cortesia de Shane Leonard)
ACIMA: A casa em Hanover, Pensilvânia, onde Joshua Gallagher morava com a esposa e os dois filhos
(Foto cortesia do autor)
ACIMA: Joshua Gallagher no trabalho (Foto cortesia de Shane Leonard)
ACIMA: Foto de fichamento policial de Joshua Gallagher aos 54 anos (Foto cortesia do The Baltimore
Sun)
ACIMA: Joshua Gallagher sendo escoltado ao sair do Tribunal do Condado de Harford (Foto cortesia de
Logan Reynolds)
ACIMA: Um colar de ouro pertencente a Madeline Wilcox encontrado pela polícia na oficina de Joshua
Gallagher localizada no porão de casa (Foto cortesia do The Baltimore Sun)
ACIMA: Natasha e Joshua Gallagher durante uma visita ao campus da Penn State University (Foto
cortesia de Shane Leonard)
ACIMA: Russell Gallagher segurando o jovem Joshua Gallagher (Foto cortesia de Shane Leonard)
nota do autor

Começando em agosto de 1986 e prosseguindo até os primeiros meses de 1990,


alguém entrou nas casas de pelo menos vinte e cinco mulheres de Edgewood,
Maryland, e, enquanto elas dormiam, tocou em seus pés, pernas, barriga e cabelos.
Quando as mulheres acordavam, encontravam o homem em pé, próximo da cama,
olhando fixamente para elas ou deitado no chão ali perto. Em todas essas
ocorrências, o homem fugiu e desapareceu noite adentro. A polícia local só foi
capaz de capturar e identificar o agressor em outubro de 1993, quando um ex-
morador de Edgewood, preso em Baltimore por arrombamento e invasão, confessou
que era o tal “Acariciador Fantasma”, como muitos jornais o apelidaram. As
impressões digitais correspondiam às encontradas em várias cenas de crime em
Edgewood, e o caso foi finalmente encerrado.
Essa parte de Perseguindo o Bicho-Papão se baseia em fatos verídicos. Assim
como várias aventuras da minha infância, as observações carinhosas sobre meus
pais e muitas outras saudosas lembranças da época em que eu morei na Hanson
Road antes de atravessar a nave da igreja e me casar com minha namorada de
colégio. A própria cidade de Edgewood, as lojas e postos de gasolina, as escolas e
parques, os bairros e ruas, são todos reais. Todos existem. Pelo menos, existiam em
1988, a época em que a maior parte dessa história se passa.
O resto de Perseguindo o Bicho-Papão — inclusive, por exemplo, as quatro
garotas assassinadas, a investigação policial, a cidadezinha em estado de sítio e
personagens como Carly Albright, o detetive Lyle Harper e Joshua Gallagher —
não passam de ficção. O resultado de uma imaginação hiperativa, uma atração pela
exploração das sombras ao longo de toda a vida e uma veia nostálgica com um
quilômetro de extensão.
Eu sempre quis escrever um romance ambientado na minha cidade natal. Se
você leu boa parte dos meus contos, já sabe que Edgewood desempenha um papel
significativo no meu catálogo narrativo. Assim como a Hanson Road, o córrego
Winters Run, os salgueiros-chorões e inúmeras outras lembranças da minha
juventude.
Há alguns anos, pouco depois de me mudar para minha nova casa, minha
esposa, Kara, e eu estávamos olhando fotos do nosso álbum de casamento quando
fiz um comentário inusitado sobre como tinha sido estranho, depois de todos
aqueles anos, voltar a morar com meus pais depois de me formar. Lembro daqueles
meses anteriores ao nosso casamento de maneira vívida e afetuosa. Kara, é claro, só
lembra que não ajudei o suficiente com os convites e outros preparativos do
casamento. “Com exceção da comida”, ela me disse. “Verdade seja dita, você foi
superproativo na escolha do cardápio.”
Logo após fechar o álbum de fotos e recolocá-lo na caixa de papelão onde eu o
havia descoberto, senti uma outra viagem no túnel do tempo abrindo caminho na
minha mente: o Acariciador Fantasma.
Era a primeira vez que eu pensava nele em anos e foi como um raio caindo em
um céu de verão sem nuvens. Fui levado instantaneamente de volta para as várias
manchetes admonitórias que dominavam nosso pequeno jornal semanal e me
lembrei da tensão que tomou conta dos moradores de Edgewood, as pessoas
trancando as janelas à noite e instalando sistemas de alarme, preocupadas e com
medo de que o misterioso intruso um dia começasse a fazer outras coisas além de
tocar suas vítimas adormecidas.
E foi assim que a ideia de Perseguindo o Bicho-Papão nasceu.
Como muitos escritores dirão, certas histórias nascem prematuramente; você
pode ter em mente o esqueleto de uma ideia razoável ou até mesmo um
protagonista, mas todo o resto — personagens secundários, elementos da trama, um
começo, um meio e um fim — ainda está faltando. É claro, muitas outras histórias
nascem robustas e saudáveis; nesses casos, todos os elementos da trama já estão
engatilhados, um elenco completo de personagens está presente e soa verdadeiro,
e tudo o que resta a fazer é ligar os pontos e criar uma narrativa fluida e cativante.
Existem ainda outras narrativas, preciosas como joias, que nascem completamente
formadas, como se estivessem simplesmente enterradas sob uma camada de areia
que só precisa ser varrida para que a história completa seja descoberta — cheia de
vida, energia e encanto — ali embaixo.
Perseguindo o Bicho-Papão foi assim para mim: estava esperando sob
a superfície.
Completamente formada, transbordando de mistério e repleta de surpresas.
Surpresa número 1: por algum motivo desconhecido, imaginei imediatamente
Perseguindo o Bicho-Papão sendo contado no formato estruturado de um livro
sobre um crime verídico; na verdade, apresentado como “uma história verídica do
mal em uma cidade pequena” (que, por acaso, era o subtítulo original do romance).
Surpresa número 2: apesar de uma merecida reputação de pessoa esquiva e que não
gosta muito da luz dos refletores, também vi com absoluta certeza que a história
precisava ser contada a partir do meu ponto de vista pessoal. O Richard Chizmar de
22 anos seria não apenas o narrador da história macabra do Bicho-Papão, mas
também agiria como sua consciência. Surpresa número 3: como fã desde sempre de
livros sobre true crime, uma das primeiras coisas que costumo fazer é ir direto para
a seção de fotos — na maioria das vezes, posicionada perto do centro do livro, com
impiedosas imagens em preto e branco — para ver como eram realmente as pessoas
e lugares envolvidos. O estudo daqueles rostos e cenas de crime — casas, becos e
bosques — muitas vezes acrescenta uma outra camada de realidade e contundência
às palavras que estou lendo. Entendi logo de cara que Perseguindo o Bicho-Papão
teria dezenas de fotos desse tipo — que deveriam parecer inquestionavelmente
autênticas. A primeira providência que tomei nesse sentido foi chamar a talentosa
equipe da Sympatico Media (uma produtora local com quem tive a sorte de
trabalhar em vários filmes). Forneci a eles uma longa e detalhada lista de
fotografias, e eles contrataram atores para interpretar os papéis de policiais,
detetives, personalidades jornalísticas e moradores locais. Depois passaram dois
longos dias e noites clicando a maioria das imagens para este livro. Várias outras
boas amigas se apresentaram como voluntárias para posar como vítimas do Bicho-
Papão. Uma jovem vizinha assumiu o papel de Annie Riggs, a única sobrevivente.
Como eu cruzava com minha vizinha frequentemente, não tive coragem de matar
Annie Riggs. Meu filho Billy e eu conseguimos produzir e tirar as fotografias
restantes. Surpreendentemente, apesar de todos os vários papéis/atores e cenários
envolvidos, cometemos um único erro, por sinal constrangedor: um dos detetives de
1988 também aparece em uma foto de 2020 — e, imagine só, ele não envelheceu
um dia sequer.
Bem, aqui está: os aspectos práticos, o como e o porquê de Perseguindo o
Bicho-Papão. Uma fusão ficcional — singular e satisfatória, assim espero —
do que “realmente aconteceu” e do que “poderia ter acontecido”, e também
um retrato pessoal de um período muito peculiar da minha vivência em uma
cidadezinha tão especial. Espero que vocês tenham gostado da viagem tanto quanto
eu.
agradecimentos

Como sempre acontece, tive muita ajuda para escrever este livro. Eu gostaria de
agradecer de coração a:
Kara, Billy e Noah, por praticamente tudo; meus pais, em quem penso com
saudade todos os dias; John, Rita, Mary e Nancy, irmãos e anjos da guarda; e meus
velhos amigos do Wood, todos irmãos de sangue, especialmente os Hanson Road
Boys.
Os Tipton, por gentilezas demais para serem elencadas nesta página.
Annie Keele, Natasha Slutzky, Kacey Newman, Madeline Anderson e Cassidy
Ward, por terem colocado à disposição seu talento e sua confiança.
Brian Anderson, Steve Sines, Doug Sharretts e Melvin Futrell, por terem
dedicado tempo de seus atribulados dias para brincar de faz de conta.
Bev Vincent, Billy Chizmar (mais uma vez), Robert Mingee e Jeff Martin,
pelas primeiras leituras e generosos conselhos.
Brandon Lescure e Everett Glovier, da Sympatico Media, pela excelência
fotográfica e pela mediocridade na atuação.
Gail Cross, da Desert Isle Design, pela assistência técnica e de design.
Vários membros do Federal Bureau of Investigation, da Polícia do Estado de
Maryland e da Polícia do Condado de Harford, pelos inestimáveis conselhos
técnicos. Vocês sabem quem são.
Dave Wehage, Deborah Lynn, Alex Baliko e Matt e Nate Slutzky,
por me deixarem saquear seus álbuns de fotos.
Alex McVey, pelo excelente retrato falado.
A família Keele, por ajudar com minha ideia maluca e aturar o estranho —
mas encantador — vizinho.
Jimmy Cavanaugh, por estar presente desde o início.
James Renner, por lutar por uma causa justa e pelo maravilhoso prefácio.
Stephen King, pela amizade e pelos conselhos.
Danielle Marie e Jason Myers, pela amizade, pelo apoio e encorajamento
incansáveis.
A “Equipe de Rua” de Perseguindo o Bicho-Papão, por acreditar neste autor e
neste projeto, e por todo o seu árduo trabalho.
Brian Freeman, Mindy Jarusek e Dan Hocker, por tomarem conta de tudo e me
manterem na linha. Não é fácil.
Ryan Lewis, por ser um dos mocinhos e por ter navegado pelo labirinto
infinito que é La-La Land (como meu pai costumava dizer).
Kristin Nelson, por trabalhar com tanto afinco por mim, sempre com um
sorriso na voz. Não sei bem como ela faz isso, mas sou imensamente grato.
Ed Schlesinger, por ajudar a dar a Perseguindo o Bicho-Papão a forma de um
livro do qual me orgulho muito, e por fazer isso com tanta gentileza e generosidade.
E por fim, mas certamente não menos importante, todas as boas pessoas de
Edgewood, do passado e de hoje, por me darem um lugar que sempre poderei
chamar de “lar”.
sobre o autor

Richard Chizmar é o coautor (com Stephen King) da trilogia A caixa de


Gwendy, best-seller do New York Times. Seus livros recentes incluem The Girl on
the Porch; The Long Way Home, sua quarta coletânea de contos; e Widow’s Point,
uma assustadora história sobre um farol mal-assombrado escrita em parceria com o
filho Billy Chizmar, que recentemente se tornou um longa-metragem. Seus contos
apareceram em dezenas de publicações, dentre as quais a Ellery Queen Mystery
Magazine e a The Year’s 25 Finest Crime and Mystery Stories. Foi agraciado com
dois World Fantasy Awards, quatro International Horror Guild Awards e com o
HWA’s Board of Trustees Award. Perseguindo o Bicho-Papão foi finalista do
prêmio Goodreads e eleito um dos melhores livros de terror dos últimos cinco anos
também pelo Goodreads. Chizmar teve suas obras traduzidas em mais de 15
idiomas mundo afora e participou de várias conferências como instrutor de técnica
literária, palestrante, debatedor e convidado de honra. Você pode segui-lo no X em
@RichardChizmar ou visitar RichardChizmar.com.

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