Richard Chizmar - Perseguindo o Bicho-Papão
Richard Chizmar - Perseguindo o Bicho-Papão
Richard Chizmar - Perseguindo o Bicho-Papão
TÍTULO ORIGINAL
Chasing the Boogeyman
CAPA
Raul Fernandes
FOTO DO AUTOR
Jeff Zinger
DIAGRAMAÇÃO
Fátima Affonso / FQuatro Diagramação
E-BOOK
Marcelo Morais
EDITORA VALENTINA
Rua Santa Clara 50/1107 – Copacabana
Rio de Janeiro – 22041-012
Tel/Fax: (21) 3208-8777
www.editoravalentina.com.br
Para Kara.
Novamente.
nota aos leitores
James Renner
Escrevo sobre crimes e, às vezes, persigo serial killers pelo país. Ganhei
experiência no Free Times, em Cleveland, publicação onde trabalhei como
jornalista investigativo em uma época na qual moças estavam desaparecendo na
zona oeste da cidade. Todo mundo sabia que havia um assassino em série entre nós,
mas ninguém conseguia caçá-lo. Passei um mês pesquisando os casos das vítimas
Amanda Berry e Gina DeJesus. Um dos ex-namorados de Amanda parecia se
encaixar no perfil, mas a polícia não tinha provas. Até que um dia, em 2013,
enquanto eu observava meu filho dando piruetas na aula de ginástica, recebi uma
mensagem de texto de uma antiga fonte no Departamento de Polícia de Cleveland:
Amanda e Gina acabaram de sair de uma casa na Zona Oeste. E uma terceira
mulher se encontra aqui. No final do dia, Ariel Castro estava detido. Quando
revisei minhas anotações, o nome de Castro estava lá. Sua filha foi a última pessoa
a estar com Gina DeJesus antes de ela ser raptada. Meu editor havia me pedido para
não entrevistá-la porque, na época, ela era menor de idade. Para sempre vou me
perguntar o que poderia ter acontecido se eu não tivesse dado ouvidos a ele.
No verão após Castro ter sido preso, tirei férias com minha família e fui para
Ocean City, Maryland. Eu precisava dar um tempo de tudo e pretendia mergulhar
em alguns romances de Stephen King e John Irving enquanto meus filhos
construíam castelos de areia na praia. O apartamento tinha uma mesa velha e
irritantemente bamba na sala de jantar e, já no segundo dia, eu estava louco para
consertá-la. Inspecionei as estantes do proprietário em busca de um livro em edição
de bolso do tamanho exato para servir de calço e me deparei com um exemplar
desbotado de Perseguindo o Bicho-Papão, de Richard Chizmar, sobre true crimes.
Comecei a folheá-lo e logo esqueci a mesa. Na hora do jantar, eu estava obcecado
com os detalhes revelados no livro e os horríveis assassinatos não solucionados que
abalaram a pequena cidade de Edgewood em 1988. À meia-noite, eu já havia
terminado o livro.
Levei Perseguindo o Bicho-Papão comigo quando fomos embora. Acho que
isso é roubo, mas ponderei que aquele era um destino melhor para o livro do que
calçar um dos pés da mesa de jantar. Ao chegar em casa, fiquei ciscando na internet
tentando descobrir se tinham pegado o sujeito, mas tudo o que consegui encontrar
foram velhos artigos na LexisNexis. Nenhuma atualização nos últimos dez anos.
Fiquei surpreso, porém, ao descobrir que o próprio Chizmar havia se tornado um
grande editor, tendo publicado alguns títulos de ninguém menos do que Stephen
King. Eu até tinha um número antigo de Cemetery Dance, a revista que ele editava
na época da faculdade, e seu contato estava na página de créditos.
Em um rompante, decidi mandar um e-mail a Chizmar. Alguma novidade
sobre o mistério do Bicho-Papão? Tirei uma foto do meu exemplar surrupiado,
mandei-a em anexo e também incluí meu número de telefone. Cinco minutos mais
tarde, meu celular tocou. Era Chiz. Acho que conversamos sobre os assassinatos por
duas ou três horas naquela noite. Vinte e poucos anos haviam se passado, mas ele
lembrava de todos os detalhes e todas as fontes com quem havia falado. Deu para
perceber que ainda era uma obsessão. Eu havia planejado escrever um artigo sobre
seu empenho na juventude para encontrar o assassino, mas outras histórias, mais
novas, foram surgindo e…
Então, em uma manhã de 2019, vi “O Bicho-Papão” como trending topic no
Twitter. Cliquei no link, achando que era uma ação de marketing para algum novo
filme de terror, uma parte de mim tentando não gerar grandes expectativas, e, é
claro, o assunto eram os assassinatos de Edgewood. Senti meu corpo ficar
entorpecido quando li o nome do homem que a polícia acabara de prender. Era a
última pessoa que eu imaginava.
Chizmar não atendeu o telefone naquele dia, nem durante o resto da semana.
Obtive os detalhes por meio das atualizações de Carly Albrigh no Washington Post.
Havia no ar uma sensação palpável de alívio que me fazia lembrar de quando o
Assassino do Estado Dourado foi detido. Quando, contra todas as probabilidades,
um monstro é finalmente pego… parece magia. O autor J.R.R. Tolkien tinha uma
palavra para esse sentimento: eucatástrofe. O oposto de uma catástrofe, algo ainda
mais importante porque ainda mais raro.
Sigo esperando as palavras finais de Richard Chizmar a respeito. Soube que
ele entrevistou o assassino na prisão e fiquei ansioso para ouvir o que havia sido
descoberto. Portanto, é uma grande honra ser convidado para escrever o prefácio
desta bela edição, há muito esperada, do seu livro.
Se aprendi alguma coisa com a jornada de Chizmar é que, no fim, a paciência e
a esperança vencem a maldade e a indiferença. Quase sempre. Espero que vocês
concordem.
James Renner,
3 de março de 2020
Richard Chizmar,
20 de junho de 1990
um
A Cidade
“Foi durante uma daquelas caminhadas demoradas, lentas e sem fôlego
por aquela entrada de cascalho que, pela primeira vez, contei uma
história de terror para os meus amigos.”
Acredito que a maioria das cidades pequenas tem duas caras: uma pública,
composta de fatos verificáveis que envolvem linhas do tempo históricas, aspectos
demográficos, questões geoeconômicas; e uma outra face oculta, consideravelmente
mais privada, formada por uma frágil teia de histórias, lembranças, boatos e
segredos transmitidos de geração em geração, sussurrados por aqueles que
conhecem bem a cidade.
Edgewood, Maryland, localizada quarenta quilômetros a nordeste de
Baltimore, na região sul do condado de Harford, não era exceção. Situada na parte
superior central de uma península com forma de triângulo invertido formada pela
baía de Chesapeake ao sul, o rio Gunpowder a oeste e o rio Bush a leste, Edgewood
era o lar de vários povos originários americanos, sobretudo os powhatan e os
susquehannock. O capitão John Smith esteve entre os primeiros a navegar o Bush,
batizando-o de rio “Willowbyes” em homenagem à sua amada cidade natal na
Inglaterra. Em 1732, o templo Presbury foi fundado na margem do rio como uma
das primeiras igrejas metodistas dos Estados Unidos.
Uma linha férrea construída na região em 1835 garantia distribuição para os
mercados agrícolas locais, e a extensão da ferrovia em meados da década de 1850
forneceu a base para o desenvolvimento da cidade de Edgewood. A ponte
ferroviária de madeira que cruza o Gunpowder, ali perto, pegou fogo em abril de
1861 durante os Protestos de Baltimore e os soldados confederados a queimaram
pela segunda vez em julho de 1864.
Embora a população nativa de Edgewood fosse de apenas três dúzias de
habitantes em 1878, a ferrovia e as exuberantes terras agrícolas vizinhas
contribuíram para que a cidade florescesse. Pouco tempo depois, um grande número
de casas novas surgiu na área, inclusive várias residências extravagantes, muitas
construídas por homens de negócios que iam trabalhar diariamente em Baltimore de
trem. Uma escola, uma agência dos correios, um hotel, uma mercearia e um ferreiro
logo se estabeleceram.
A estação ferroviária de Edgewood também se popularizou devido
à proximidade com valiosos terrenos destinados à caça dotados de várias espécies
de aves aquáticas. Logo, cavalheiros desportistas de cidades do nordeste tão
distantes quanto Nova York e Boston começaram a viajar até Edgewood para
participar das caçadas. O general George Cadwalader, um exuberante herói de
guerra e respeitado advogado da Filadélfia, foi gradualmente adquirindo grandes
lotes na região, perfazendo quase três mil e trezentos hectares, e costumava
convidar amigos abastados e influentes para visitá-lo. Alugou terrenos de frente
para o mar para vários clubes de caça e estabeleceu mais de uma dúzia de fazendas
na propriedade. Os rendeiros davam duro e pagavam a Cadwalader uma polpuda
porcentagem de suas colheitas sazonais.
Outro personagem proeminente nos primórdios de Edgewood foi Herman W.
“Boss” Hanson. Um próspero cavalheiro membro de longa data da Assembleia
Estadual de Maryland, Hanson também era um astuto homem de negócios. Os
tomates eram a cultura mais rentável da sua empresa e, a certa altura, ele
comandava quatro fábricas de conservas na região e comprava os tomates de todos
os outros fazendeiros locais para dar conta das encomendas. O fruto enlatado era
comercializado sob a marca Queen e vendida em todo o país, chegando até a ser
exportada.
O único drama verdadeiro na história da cidade até aquela altura aconteceu no
verão de 1903, quando um grupo de bandidos armados tentou roubar um trem
pagador parado na estação de Edgewood. Houve um tiroteio feroz com o chefe da
polícia local e seus homens, resultando na morte de dois policiais, um funcionário
da empresa de pagamentos e todos os seis bandidos. O repórter de um jornal local
contou mais de duzentos e cinquenta buracos de bala nas paredes da estação.
Felizmente, violência desse tipo era rara na cidadezinha ainda rural.
A pouca distância dos trilhos ficava a estação Magnolia, cujo nome era uma
homenagem às lindas árvores de magnólia que floresciam ali. Do outro lado da
estação, ficava o parque Magnolia Meadows, um local popular para piqueniques,
eventos ao ar livre e excursões de grupos vindos de Baltimore. Um espaçoso
pavilhão no centro do parque era usado para bailes e casamentos e, no início dos
anos 1900, o entorno da estação Magnolia podia se orgulhar de ter uma agência dos
correios, uma igreja, uma escola, uma fábrica de conservas, uma mercearia, uma
sapataria e uma barbearia.
A vida bucólica daqueles que moravam em Edgewood e nos seus arredores
mudou dramaticamente em outubro de 1917, quando o governo dos EUA se
apropriou de todas as terras ao sul dos trilhos para criar o complexo militar do
Arsenal de Edgewood. Milhares de pessoas foram para a região construir
instalações projetadas com o intuito de lidar com os vários aspectos da produção de
armas químicas. O governo construiu fábricas enormes de produtos químicos
extremamente tóxicos, como gás mostarda, cloro, cloropicrina e fosgênio. Até
foram produzidas máscaras de gás para cavalos, burros e cães. No auge, em julho de
1918, o número de pessoas empregadas totalizava 8.342 civis e 7.175 militares.
Enquanto residentes ricos como o general Cadwalader eram indenizados pelas
propriedades perdidas, os rendeiros e meeiros locais não recebiam nada. Vários
fazendeiros negros se mudaram e estabeleceram uma pequena comunidade de casas
modestas na área da Magnolia conhecida como Dembytown. Uma mercearia, uma
escola com duas salas e um clube de jazz caindo aos pedaços chamado Black Hole
foram erguidos em três construções feitas de ripas de madeira ao longo da fronteira
nordeste de Dembytown. O clube pegou fogo em 1920 em circunstâncias suspeitas.
A crescente presença militar logo transformou Edgewood. Escolas, casas e
uma série de empresas se espalharam pela região. A Segunda Guerra Mundial
trouxe mais uma onda de pessoal militar e civil para a cidade. Uma estação
ferroviária moderna foi construída às pressas para dar conta da grande afluência de
gente. Mais residências temporárias para civis e moradias militares fora das bases
foram erguidas em vários locais de Edgewood, inclusive em um complexo de dez
hectares chamado Cedar Drive. A profusão de novos moradores, unida à conclusão
da Route 40, uma rodovia de quatro pistas que atravessa Edgewood, estimulou mais
crescimento econômico. Edgewood Meadows, uma extensa comunidade de casas
unifamiliares, foi estabelecida no início da década de 1950. A Old Edgewood Road
e a Hanson Road atravessavam o extenso complexo residencial e, em ambas as ruas,
logo surgiram vários estabelecimentos comerciais. Mais ao sul da Hanson Road,
uma extensa comunidade de sobrados com preços acessíveis chamada Courts of
Harford Square foi construída, tomando o lugar de mais de quarenta hectares de
férteis terras aráveis. No alto de um morro verde com vista para o novo complexo
residencial ficava a “Hanson House” original, construída por Thomas Hanson no
início do século 19. A mansão vitoriana tinha cinquenta e uma janelas e sete
empenas, e foi a primeira casa em Edgewood a ter encanamento na parte interna.
Em 1963, a Biblioteca Pública de Edgewood foi inaugurada na Hanson Road, em
frente ao movimentado supermercado Acme. Mais tarde, no mesmo ano, a saída
para Edgewood na rodovia interestadual I-95 foi aberta, disseminando um número
ainda maior de bairros residenciais. Para dar conta do afluxo de jovens estudantes
na região, três espaçosas escolas — uma secundária, uma ginasial e uma primária
— foram construídas em quarenta e um hectares ao longo da Willoughby Beach
Road.
Mas, depois de toda expansão, vem a inevitável retração — e, nos anos após o
envolvimento dos Estados Unidos no Vietnã, inúmeros programas de testes de
armamentos no Arsenal de Edgewood foram reduzidos ou totalmente eliminados.
Tropas e civis foram transferidos para outras bases na Costa Leste e, logo em
seguida, partes mais remotas do Arsenal ganharam a aparência de uma cidade
fantasma. Durante anos, correram boatos de que o governo americano estava
planejando abrir uma escola de paraquedismo nas áreas abandonadas, mas tais
planos nunca se materializaram.
No final da década de 1980, a região metropolitana de Edgewood se estendia
por cerca de quarenta e cinco quilômetros quadrados. A população chegava a quase
18.000 pessoas — 68% brancos, 27% afro-americanos e 3,5% hispânicos. A renda
familiar mediana ficava um pouco abaixo da média nacional: US$ 40.500. A média
de habitantes por residência era de 2,81 ocupantes e o tamanho médio das famílias
era de 3,21 pessoas.
Essa era a face pública de Edgewood, Maryland.
3
(Boa parte das informações históricas incluídas na primeira parte deste capítulo
pode ser encontrada nas páginas de dois ótimos livros: Edgewood, Maryland: Then
and Now, de Jeffrey Zalbreith; e Images of America: Edgewood, de Joseph F.
Murray, Arthur K. Stuempfle e Amy L. Stuempfle. Super-recomendo ambos.)
ACIMA: A sinalização de Edgewood Meadows no cruzamento da Bayberry Drive com a Edgewood
Road (Foto cortesia do autor)
ACIMA: Teste de armamentos no Arsenal de Edgewood (Foto cortesia do The Baltimore Sun)
A Primeira Garota
“Afinal, os assassinos não costumam voltar à cena do crime para
observar o estrago que causaram?”
A primeira vez que me lembro de ter visto Natasha Gallagher foi na missa matinal
de domingo. Ela estava com a família. Eu tinha 12 anos na época, portanto Natasha
devia ter 6. Eu fui sozinho com meus pais à igreja naquele dia — todos os meus
irmãos mais velhos já tinham saído de casa àquela altura — e sentamos
propositalmente na última fila pois meu pai tinha ingressos para o jogo do
Baltimore Colts e estava decidido a sair voando assim que a missa das dez
terminasse.
Os Gallagher chegaram com alguns minutos de atraso. Ouvi as pesadas portas
se abrindo com um rangido atrás de mim e olhei por cima do ombro. O jovem Josh
estava em pé entre os pais, parecendo tão feliz por estar ali quanto eu, com a
pequena Natasha mais ao lado, de mãos dadas com a mãe. Ela estava usando um
vestido de bolinhas, os longos cabelos louros presos em marias-chiquinhas.
A família deu alguns passos tímidos pelo corredor central e parou, esticando os
pescoços à procura de um lugar para se sentar. Meu pai imediatamente chamou-os
com um gesto, empurrando a mim e a mamãe em direção ao meio do banco.
Os Gallagher foram deslizando um após o outro para o nosso lado. Depois que
todos se acomodaram, eu, disfarçadamente, me curvei para a frente e dei uma
olhada mais de perto. Josh me encarou com olhos sonolentos e fez um aceno de
cabeça tão gélido que teria deixado James Dean e Elvis orgulhosos. Sentada à
esquerda do irmão, Natasha abriu um sorriso largo e banguela e agitou os dedos
para mim num aceno exagerado. Eu imediatamente me recostei e olhei para a
frente, meu rosto e minhas orelhas ficando quentes. Garotas, de todas as idades,
pareciam surtir aquele efeito em mim. Eu odiava.
A vez seguinte em que a vi, era verão e ela estava saltitando pela calçada na
frente da minha casa, balançando os braços acima da cabeça, cantando o tema de
Scooby-Doo com uma voz aguda e anasalada. Passou a uns cinco metros de mim
naquele dia sem sequer me notar.
Um velho carvalho — que já não existe há anos — habitava o centro do jardim
da frente da nossa casa, ocultando convenientemente a varanda com sua densa teia
de galhos frondosos se projetando por cima da calçada. Eu tinha pegado a mania de
subir naquela árvore e me empoleirar a uns três ou quatro metros do chão,
geralmente com um romance de Stephen King em edição de bolso para me fazer
companhia. Eu gostava da sensação de estar invisível para o mundo, de observar o
fluxo de carros e pedestres que passavam lá embaixo, sabendo que eles nem faziam
ideia de que eu me encontrava ali, praticamente perto o suficiente para esticar o
braço e tocá-los. Eu ficava ali sentado, escondido e em silêncio, imaginando como
era a vida deles, aonde estavam indo e se estavam felizes ou tristes, tendo bons ou
maus pensamentos.
Eu sabia de cor a letra da música que ela estava cantando — Scooby-Doo era
meu desenho animado favorito das manhãs de sábado quando criança — e pensei
em cantar junto, mas não quis assustá-la, então fiquei calado e a deixei seguir seu
caminho. Ela chegou ao final da calçada na esquina com a Tupelo, parou de andar
(e de cantar), olhou para os dois lados e atravessou a rua. Quando estava segura do
outro lado, começou a saltitar e cantar novamente, seguindo pela Hanson com um
ritmo ainda mais animado. Olhei para o meu livro, comecei um novo capítulo e,
quando levantei a cabeça novamente, ela já havia sumido.
Mais tarde naquele mesmo verão, Natasha e duas amigas pararam na minha
barraquinha de limonada. As três estavam com os cabelos molhados e toalha em
volta do pescoço, então deduzi que tinham ido nadar. Uma das amigas anunciou que
não tinha dinheiro, então Natasha pegou um porta-moedas e pagou para as três. Ao
contrário da vez em que a vi na igreja, ela parecia quase tímida, mal estabelecendo
contato visual ou falando. Até que subiu novamente na bicicleta, olhou para mim
por cima do ombro e disse: “Até mais, Richie Rich”, em alusão ao personagem
Riquinho.
Surpreso por ela saber meu nome, fiquei ali plantado, observando-as pedalar
para longe.
Era 1982 (sou de 65) e eu estava no último ano do colégio quando a vi pela
última vez. Foi na semana antes das férias de Natal. Jimmy Cavanaugh e eu
estávamos no degrau mais alto das arquibancadas do ginásio. Lá embaixo, na
quadra, as equipes de luta greco-romana de Edgewood e Bel-Air se aqueciam. Os
alto-falantes tocavam Van Halen à toda. Quinze minutos antes do início previsto da
competição, a ala destinada aos estudantes da casa já se encontrava abarrotada,
todos em pé. Ao meu lado, Jimmy estava ocupado sendo Jimmy, mascando,
esticando e enrolando com a ponta do dedo um chiclete, me provocando a desafiá-
lo a jogar a grudenta guloseima nos cabelos fartos e encaracolados de uma aluna do
segundo ano à nossa frente.
Vi o sr. Gallagher primeiro, tirando seu pesado casaco de inverno enquanto
entrava no ginásio. A esposa e a filha vinham logo atrás, todos com as bochechas
coradas e ainda tremendo por causa da congelante caminhada pelo estacionamento.
Natasha tirou sua touca de esqui rosa ao que longas e brilhantes ondas de cabelos
louros foram caindo em seus ombros. Ela havia crescido desde a última vez que a vi
e estava bem encaminhada para se tornar uma destruidora de corações. Era bom que
o irmão Josh estivesse por perto para manter os garotos do ginasial na linha.
O sr. Gallagher acenou para alguém na multidão e os três, então, começaram a
andar em fila indiana rumo às arquibancadas do outro lado do ginásio. No meio do
caminho, Natasha mudou abruptamente de direção, aproximando-se do tapete
acolchoado vermelho e branco da equipe de luta greco-romana do Edgewood Rams
no centro da quadra.
Então vi Josh deitado de costas na ponta do tapete, as pernas dobradas
embaixo do corpo, costas e braços esticados em uma posição que deveria ser
impossível. Natasha parou na frente dele e disse algo. Ele olhou para cima surpreso.
Em vez de ficar irritado pela interrupção causada pela irmã caçula, como eu
esperava, Josh se levantou rapidamente, um grande sorriso iluminando seu rosto, e a
abraçou. Quando terminaram de se abraçar, bateram um toca aqui e Natasha saiu
correndo atrás dos pais.
Lembro-me de ter pensado naquele momento: Talvez irmãs não sejam tão
ruins assim. Depois, os alto-falantes começaram a tocar AC/DC e, não mais que de
repente, o pensamento morreu e eu estava novamente tentando impedir que Jimmy
grudasse o chiclete no cabelo de uma inocente.
Durante os cinco anos em que estive na faculdade, Natasha Gallagher sem dúvida
cresceu. Com um metro e sessenta de altura e nem quarenta e cinco quilos de peso,
ela se tornou naturalmente uma ginasta de talento. Natasha adorava o esporte e era
disciplinada em sua prática, treinando cinco vezes por semana na Harford
Gymnastics, no William Paca Business Center. Solo e trave eram suas
especialidades. Ela também adorava ser cheerleader e era a única aluna do primeiro
ano a fazer parte da equipe oficial do Colégio Edgewood. Se você pedisse à família
e aos amigos de Natasha para falarem de algo memorável a respeito dela, eles
evocariam a imagem de uma adolescente bonita e perenemente feliz. Era viciada em
chiclete sabor canela e prendedores de cabelo coloridos, enlouquecidamente
apaixonada pela vida. Adorava rir e fazer os outros rir. Péssima cantora, nunca
deixou que isso a impedisse de ser a mais barulhenta do grupo. Era brincalhona e
animada, adorava uma palhaçada, e nem um pouco tímida, coisa rara para uma
garota daquela idade. Gostava de rabiscar e sonhar acordada. Adorava flores e
ajudar a mãe com a jardinagem. E, para uma atleta tão talentosa, era
encantadoramente desengonçada fora do tablado de ginástica. Natasha era o tipo de
garota que recolhia lixo do chão e desejava um ótimo dia a estranhos. Costumava
chorar assistindo a filmes e dava os melhores abraços.
Pelo menos é o que dizia seu obituário.
Eu estava ajudando meus colegas de quarto a carregar móveis para fora da zona de
catástrofe inatural que era nosso apartamento de três quartos, localizado nos
arredores do campus da Universidade de Maryland, quando ouvi a notícia de que
Natasha Gallagher havia sido assassinada.
Eu tinha perdido uma disputa de cara ou coroa mais cedo naquela manhã e
estava indo comprar comida chinesa para todos quando o rádio do carro começou a
transmitir um boletim de notícias. Quase pisei com toda a força no freio no meio da
Greenbelt Road quando ouvi o repórter mencionar “uma jovem do subúrbio de
Edgewood” e o sobrenome da vítima. Rezando para estar enganado, liguei para casa
assim que voltei ao apartamento e falei com meu pai. Ele não sabia muito mais do
que eu, só o suficiente para confirmar que tinha de fato sido nossa vizinha Natasha.
A conversa foi breve e soturna.
O crime ganhou destaque no noticiário da noite e na primeira página de vários
jornais locais no dia seguinte. Naquela mesma tarde, liguei para alguns velhos
amigos e ouvi o resto da história.
As informações que obtive foram as seguintes:
Duas noites antes — em 2 de junho de 1988, uma quinta-feira —, Natasha
Gallagher, 15 anos de idade, passara a noite com a mãe e o pai, vendo televisão na
sala de estar no porão de casa até as 21h. Quando o programa terminou, ela desejou
um boa-noite e subiu para se preparar para dormir. Eram férias de verão e nove da
noite era cedo para ela, mas Natasha havia passado a maior parte da tarde na piscina
da casa de uma amiga. Estava queimada de sol e exausta.
Aproximadamente às 21h10, ela gritou um segundo boa-noite do topo da
escada e o sr. e a sra. Gallagher a ouviram atravessar o corredor e fechar a porta do
quarto. Cerca de uma hora mais tarde, o casal desligou a tevê, subiu, verificou se a
porta da frente estava trancada e foi dormir. Só estavam os três na casa, pois Josh,
que havia abandonado a faculdade no segundo ano após uma grave contusão no
ombro praticando luta greco-romana, morava num sobrado alugado na vizinha
Joppatowne, onde trabalhava em tempo integral na loja de materiais de construção
Andersen’s.
Na manhã seguinte, após se despedir do marido que estava a caminho do
trabalho e colocar a lava-louça para trabalhar, Catherine Gallagher olhou para o
relógio da cozinha e ficou surpresa ao ver que já eram quase 9h. Natasha havia se
comprometido a cuidar dos cães dos vizinhos enquanto eles tiravam férias, e não
era do seu feitio perder a hora. O rádio da cozinha está meio alto hoje. Talvez ela já
tenha acordado e esteja tomando banho, e eu simplesmente não a ouvi, pensou a
sra. Gallagher enquanto cruzava o corredor, fazendo de tudo para dar à filha o
benefício da dúvida.
Ao encontrar o banheiro vazio, a sra. Gallagher, irritada, bateu à porta do
quarto de Natasha, duas vezes, e, como não obteve resposta, abriu-a e entrou.
A cama da filha estava vazia. O short e a camiseta que ela havia separado na noite
anterior ainda se encontravam dobrados sobre a cadeira na frente da escrivaninha.
Seus chinelos de dedo amarelos favoritos estavam no chão, ao lado da cama.
A sra. Gallagher, àquela altura não mais irritada e sim confusa, começou a dar
meia-volta quando percebeu algo estranho na janela. Na semana anterior, uma onda
de calor precoce havia estacionado sobre Edgewood, com temperaturas chegando à
faixa dos trinta graus. Natasha implorou ao pai para ligar o ar-condicionado central,
mas, como já era esperado, ele se recusou.
“Só na primeira semana de julho, você sabe que essa é a regra”, retrucou. “Está
pensando que nosso dinheiro cresce em árvore?”
Natasha ficou emburrada, mas passou logo. Nada de mais.
A sra. Gallagher se aproximou lentamente da janela. Estava quase totalmente
aberta, as cortinas transparentes farfalhando na úmida brisa matinal — contudo, não
foi isso que chamou sua atenção. Estava faltando a tela.
Ela se aproximou e imediatamente percebeu uma sujeira escura, no máximo do
tamanho de uma moeda de 10 centavos, no parapeito. Incapaz de se conter, lambeu
a ponta do dedo indicador, esticou a mão e a tocou. O dedo ficou com uma mancha
vermelha opaca. Ela aproximou a mão do rosto. Parecia muito com sangue,
ela disse à polícia mais tarde, mas eu não tinha certeza.
Com os primeiros sinais de pânico se manifestando em seu corpo,
a sra. Gallagher se debruçou sobre o parapeito, tomando cuidado para não encostar
a blusa naquela coisa vermelha, e olhou para fora. A pouca distância, no gramado à
sua frente, estava a tela da janela. Quase dobrada ao meio.
Com o coração martelando no peito, forçando-se a não sair correndo, a sra.
Gallagher voltou à cozinha e ligou para o escritório do marido.
Eram 9h07.
O velório acabou sendo adiado para a sexta-feira seguinte. Deduzi que a família
precisava esperar que o corpo fosse liberado pelo médico-legista, o que era algo
bastante macabro para se levar em consideração. Minha mãe tinha razão: eu não
conseguia imaginar algo assim acontecendo conosco.
Eu só havia estado em meia dúzia de velórios na vida — alguns tios e a mãe de
um amigo que morrera de câncer durante nosso último ano do ensino médio —,
mas, mesmo assim, já havia conseguido criar um conjunto rígido de expectativas
para eventos daquele tipo. A primeira: falava-se bem pouco, quando muito aos
sussurros e numa forma rudimentar de língua dos sinais. Minha segunda noção
preconcebida era de que o clima inevitavelmente combinaria com o espírito dos
presentes — soturno, tempestuoso e deprimente. Uma chuva fria e insistente era
praticamente certa.
O dia do velório de Natasha Gallagher amanheceu ensolarado e com uma
temperatura amena. Pequenas e esparsas nuvens brancas corriam por um céu azul
resplandecente, do tipo que convida para piqueniques na praia, soltar pipa e passear
de barco no rio. Parecia errado, quase obsceno.
A cerimônia aconteceu na Prince of Peace, na Willoughby Beach Road,
a mesma igreja em que eu havia visto Natasha pela primeira vez. O padre Francis
celebrou a missa — insuportavelmente solene e cheia — e fez o que pôde para
tentar dar algum sentido ao que havia ocorrido. Acho que ele também se esforçou
para abreviar ao máximo a cerimônia; havia dor e sofrimento suficientes naquele
local para encher uma dúzia de cerimônias daquele tipo.
Meus pais e eu nos sentamos mais para a frente da igreja com os Gentile,
nossos vizinhos, minha mãe e Norma trocando lenços de papel amassados durante o
sermão. O sr. e a sra. Gallagher e Josh estavam sentados na primeira fila com um
grupo que não reconheci, mas presumi que fossem parentes. Apesar das histórias
que eu tinha ouvido na cidade, o sr. Gallagher estava firme e circunspecto. Talvez já
tivesse chorado tudo o que podia. A sra. Gallagher soluçou o tempo todo,
cabisbaixa, os ombros magros tremendo. A certa altura, Josh pôs o braço em volta
da mãe e ela apoiou a cabeça no ombro dele. Foi nesse momento que quase não
consegui me conter. Eu queria que Kara estivesse lá comigo, mas ela estava num
curso de verão na Hopkins e não podia se dar ao luxo de faltar à primeira sessão no
laboratório.
Em uma tentativa egoísta de me distrair da tristeza da família, fiz de conta que
estava me alongando e dei uma olhada na igreja. Quase todos os bancos estavam
cheios. Reconheci dezenas de rostos familiares do bairro (muitos deles mais
enrugados e rechonchudos, poucos mais magros, todos mais velhos), amigos dos
meus pais que fazia anos que eu não via, ex-professores e treinadores, e um
punhado de velhos amigos da escola — mas nenhum dos rapazes do meu círculo
mais íntimo. A maioria já tinha ido embora. Os Cavanaugh se mudaram para a
Carolina do Sul logo após Jeff ter terminado o ensino médio. Brian Anderson
também estava num curso de verão na faculdade na Virgínia Ocidental. Eu não
sabia o que Craig andava fazendo; nenhum de nós sabia. Steve Sines havia entrado
para a Aeronáutica e estava aquartelado no norte, no Maine. Carlos Vargas morava
nos arredores de Washington, D.C., onde havia começado a trabalhar como
engenheiro. Tommy Noel e alguns outros tinham emprego em tempo integral no
Arsenal. A maior parte dos demais estava espalhada pelo país como sementes de
dente-de-leão ao vento. De repente, fiquei triste ao pensar naquilo.
Senti um cotovelo pontiagudo cutucando minhas costelas, me virei e vi meu
pai me olhando com aquela conhecida expressão de “preste atenção” estampada no
rosto. Assenti com um pouco de culpa e voltei a escutar o padre Francis.
No entanto, pouco antes do meu pai me dar bronca, notei dois homens que eu
nunca havia visto sentados nos fundos da igreja. Trajavam ternos escuros e os
semblantes não demonstravam expressão alguma. Os queixos salientes apontavam
direto para a frente, na direção do padre Francis, mas os olhos vasculhavam a
multidão como águias. Polícia, pensei imediatamente, um arrepio correndo pelas
minhas escápulas. Fazia todo o sentido. Afinal, os assassinos não costumam voltar à
cena do crime para observar o estrago que causaram?
Havia um dado superfascinante que, na época, não foi divulgado pela polícia nem
pela mídia. De fato, eu só fui ter certeza de que a imprensa tinha conhecimento dele
algumas semanas mais tarde, quando Carly deu com a língua nos dentes e
confirmou muitos dos detalhes. Quem me falou a respeito pela primeira vez foi um
conhecido que era parente de uma pessoa envolvida na investigação. Uma Bud
Light a mais… e ele desembuchou. Na hora, tive que jurar segredo, e mantive
minha palavra, mesmo depois de Carly ter aberto o jogo comigo em outra ocasião.
Eu simplesmente fiquei sentado escutando e me fazendo de bobo, surpreso — um
talento especial que eu descobri que tinha.
O furo de reportagem era o seguinte: na manhã em que o cadáver de Natasha
Gallagher foi descoberto, vários observadores e a polícia notaram algo estranho na
frente da casa dos Gallagher. Alguém havia usado giz azul para desenhar uma
amarelinha na calçada. Em vez da sequência usual de números, de 1 a 10, a pessoa
havia desenhado o número 3 dentro de cada um dos quadrados. Os detetives
verificaram com o sr. e a sra. Gallagher, e também com o círculo de amigos da filha,
e Natasha já não brincava de amarelinha desde antes de completar 10 anos. Nenhum
giz, de cor alguma, foi encontrado na garagem dos Gallagher ou no quarto de
Natasha. Também foi rapidamente confirmado que nenhuma criança pequena
morava em um raio de quatro casas da residência dos Gallagher, e todas as crianças
que moravam mais longe na rua negaram ter desenhado a amarelinha.
Os detetives tinham certeza absoluta de que nem Natasha Gallagher nem outra
criança da vizinhança havia desenhado na calçada.
Então, quem havia sido?
E qual era o significado, se é que tinha algum?
ACIMA: Natasha Gallagher (Foto cortesia de Catherine Gallagher)
ACIMA: Natasha Gallagher (Foto cortesia de Catherine Gallagher)
ACIMA: a amarelinha encontrada na calçada na frente da residência dos Gallagher (Foto cortesia de
Logan Reynolds)
ACIMA: Residência dos Gallagher, cena do crime (Foto cortesia do The Aegis)
ACIMA: Tela avariada da janela do quarto de Natasha Gallagher (Foto cortesia do The Aegis)
ACIMA: Área arborizada atrás da residência dos Gallagher (Foto cortesia do autor)
ACIMA: Local onde o cadáver de Natasha Gallagher foi encontrado (Foto cortesia do autor)
três
Kacey
“E se realmente existe um bicho-papão?”
Kacey Robinson e Riley Holt, ambas com 15 anos, eram melhores amigas desde a
Escola Primária Cedar Drive. Cresceram a dois quarteirões de distância uma da
outra — Kacey em uma ampla casa na Cherry Road, Riley em uma casa de dois
andares, em estilo colonial, na esquina da Bayberry com a Tupelo —, e várias
pessoas, quando as conheciam, acreditavam que fossem irmãs. Ambas tinham
cabelos longos e escuros, grandes olhos castanhos, sorriso fácil e luminoso e
personalidades ainda mais solares. Kacey e Riley fizeram um pacto quando
chegaram ao ensino médio — depois da formatura, frequentariam a Clemson
University (laranja era a cor favorita de Kacey) e viajariam o mundo juntas antes de
começar suas carreiras como veterinárias. Depois de cinco anos, reuniriam suas
economias e abririam uma clínica própria. A época do ano favorita para as
adolescentes eram as férias de verão, afinal podiam ficar acordadas até tarde e
dormir uma na casa da outra. Elas viam filmes e disputavam jogos de tabuleiro e,
ultimamente, conversavam muito sobre garotos e moda. Riley era filha única e
adorava o caos barulhento, mas acolhedor, da casa dos Robinson nas típicas noite de
verão. Kacey tinha três irmãos — um rapaz um ano mais velho e duas irmãs mais
novas.
Mesmo com o que acontecera havia apenas dezoito dias, Riley estava
despreocupada quando tocou a campainha da casa dos Robinson alguns minutos
após as 21h na segunda-feira 20 de junho de 1988. Na verdade, seu humor estava
especialmente bom, pois ela havia planejado passar a noite na casa da amiga e as
duas iam fazer pipoca para assistir a Grease — Nos Tempos da Brilhantina
provavelmente pela quinquagésima vez. Eram caidinhas pelo John Travolta.
“Olá”, disse o sr. Robinson, sorridente, ao abrir a porta e ver Riley em pé na
varanda com sua mochila rosa L.L. Bean pendurada no ombro. Mas o sorriso do
homem vacilou um pouco quando olhou atrás de Riley. “A Kacey não está com
você?”
“Ela estava”, Riley respondeu. “A gente tava vendo tevê e jogando carta na
minha casa, mas depois viemos pra cá.”
O sr. Robinson gesticulou, com as palmas das mãos viradas para cima, como
se quisesse dizer: Bem, então… onde diabos ela está?
Riley deu um risinho.
“É que no meio do caminho eu reparei que tinha esquecido meus óculos e tive
que voltar correndo em casa pra pegar”, explicou. “Só que quando eu voltei, ela não
estava mais. Então, sei lá, imaginei que tivesse decido não me esperar e resolvido
caminhar pra cá sozinha.”
O sr. Robinson se virou e curvou o corpo para dentro de casa.
“Querida! A Kacey está em casa?”
A voz abafada da sra. Robinson saiu lá de dentro: “Acho que não!”, respondeu.
Em seguida, depois de uma pequena pausa… “A Janie disse que ela foi para a
casa da Riley!”
O sr. Robinson se virou novamente para a adolescente e encolheu os ombros.
“Pra cá ela não veio.”
“Estranho.”
“Será que ela parou na casa de outra pessoa no caminho? Talvez na casa da
Lily?”
“Pode ser, mas a gente tinha planos para esta noite. Só nós duas.”
O rosto dele assumiu uma expressão estranha.
“Onde ela estava quando você entrou correndo em casa para pegar seus
óculos?”
“Umas duas casas depois da minha”, respondeu Riley. “Bem na frente da casa
dos Croft. Eu só demorei uns três ou quatro minutos.”
“E você não viu outra pessoa? Ninguém passando de carro ou circulando a
pé?”
Àquela altura, o sr. Robinson já estava falando mais depressa, a voz cada vez
mais alta.
“Não”, Riley respondeu sem titubear. “Quer dizer… acho que não. Na verdade,
eu não estava prestando atenção”, completou e cobriu a boca com a mão. “Ah, meu
Deus, o senhor não está pensando que alguém…”
“Não sei o que eu estou pensando”, disse o sr. Robinson, saindo para a varanda
e olhando para um lado e para outro da vizinhança escura. Nenhum carro passando
na rua. Ninguém à vista. Em algum lugar distante, um cão estava latindo.
“Talvez seja melhor chamar a polícia”, disse Riley.
“Ainda não”, respondeu o sr. Robinson. Então, atravessou o jardim e começou
a correr na direção da casa dos Riley. Gritou por cima do ombro: “Entre e diga à
minha mulher que fui procurar a Kacey. Peça para ela mandar o David lá de carro.”
Riley assentiu, já começando a chorar e, ao entrar na casa, ouviu a
sra. Robinson gritando o nome de Kacey.
4
O policial Aaron Hubbard conhecia muito bem o entorno da Escola Primária
Cedar Drive. Sua família havia se mudado de Ohio para Edgewood quando Aaron
tinha 10 anos, e ele frequentara a escola por um ano antes de se formar e ir para o
sexto ano. Na adolescência, passava horas circulando pelos gramados em volta da
Cedar Drive, jogando beisebol, basquete e futebol americano, brincando de
esconde-esconde, polícia-e-ladrão e pique-bandeira. Ele também tinha muitos
amigos que moravam nas residências militares morro acima e costumava ir até lá
depois da escola. Até aprendeu a dirigir um carro manual praticando no Subaru de
cinco marchas do pai nos dois quilômetros e meio de estrada em torno da escola
primária, do jardim de infância e das quadras esportivas adjacentes.
Na noite do desaparecimento de Kacey Robinson, a tarefa do agente Hubbard
foi vasculhar os antigos campos das suas brincadeiras. Ele percorreu aquele círculo
diversas vezes, reduzindo a velocidade e apontando a lanterna presa à viatura para
as costumeiras áreas de interesse: portas e janelas perdidas nas sombras, a fileira de
árvores totalmente escura que ladeava a estrada, a parte de trás das caçambas
espalhadas e os corredores entre as filas de ônibus estacionados.
Tudo parecia estar em ordem, então embicou a viatura no estacionamento da
escola primária e avisou Shirley Rafferty pelo rádio, lá na delegacia, que
completaria o resto das buscas a pé. Saiu do veículo, lanterna na mão, às 23h27.
O pai do agente Hubbard, recentemente aposentado pela Polícia Estadual de
Maryland depois de mais de trinta anos de serviço no condado de Cecil, havia feito
questão de ensinar ao filho os pormenores de uma busca noturna a pé. Nos anos 50,
durante seu segundo ano no emprego, o sr. Hubbard, ao tentar impedir um assalto
na área de carga e descarga de um armazém, quase foi morto. O treinamento da
academia de polícia cobria aquele cenário de conflito — e todos os outros tipos
possíveis — minuciosamente, mas o sr. Hubbard não estava nem um pouco disposto
a correr riscos.
“No exato momento em que você puser o pé fora da viatura, estará exposto”,
ensinava ao seu único filho. “E, além de exposto, o que mais você está?”
“Vulnerável”, foi a obediente resposta, tentando ao máximo parecer
tranquilizador e confiante. Ele sabia que o pai se preocupava e também sabia, por
experiência própria, que aquele tipo de preocupação pode ser desgastante. Era só
olhar para a mãe para ver uma prova.
Você está vulnerável. Essas três palavras agitavam-se na mente do agente
Hubbard enquanto ele caminhava lentamente para os fundos da escola primária.
Segurava a lanterna com a mão direita, o feixe luminoso atravessando as sombras à
sua frente, e mantinha a mão esquerda apoiada sobre a arma no coldre axilar.
Movia-se o mais sorrateiramente possível.
Depois de dar a volta no edifício e puxar várias portas para se certificar de que
estavam trancadas, o agente Hubbard subiu a ladeira em direção ao campo de
beisebol, remodelado alguns anos antes, e ao parque. Reparou no banco de reservas
novinho em folha e no moderno placar eletrônico. O complexo esportivo inteiro
ocupava quase quatro mil metros quadrados de área aberta.
O agente Hubbard iluminou com a lanterna o banco dos reservas na primeira
base para se certificar de que ninguém estava se escondendo ali, depois atravessou o
montinho do arremessador para verificar a área do banco do time adversário.
Quando viu que estava vazio, saiu calmamente pelo portão, tentando não fazer
barulho demais, e entrou no parque.
Varreu a área com o feixe da lanterna e então viu a garota imediatamente,
deitada entre a base e o meio do mais alto dos dois escorregadores. Os olhos
estavam abertos e esbugalhados. Os braços finos, cruzados em cima do peito. Os
pés descalços pendiam vários centímetros acima do solo.
O eterno aviso do pai invadiu a mente de Hubbard: Você está vulnerável.
Sacando a arma do coldre e vasculhando a escuridão, o agente Hubbard
pressionou as teclas do rádio pendurado em seu peito e informou a colega Shirley
que havia encontrado Kacey Robinson.
Mais tarde, naquela noite, meu pai bateu à porta e esticou a cabeça para dentro do
meu quarto.
“Tá ocupado?”
Ergui os olhos da tela do computador.
“Não. Só estou lendo uma história antiga. Entra.”
Ele entrou e se sentou na beirada da cama.
“Posso te pedir um favor?”
“Claro. Diga.”
“Tenha cuidado.”
“Cuidado com o quê?”, perguntei, realmente confuso.
“Para começo de conversa, com todas as perguntas que você anda fazendo pela
cidade.”
Tentei protestar, mas ele me interrompeu.
“Eu sei que você se interessa… por esse tipo de coisa, tudo bem. Sua mãe faz
muito alarde, mas, para ela, também não tem problema nenhum. Sobretudo porque
ela sabe que você tem uma cabeça boa. Ela também sabe como você gosta dessas
coisas…”, ele gesticulou para o poster de A Mansão Marsten pendurado sobre a
minha cama. “A gente só quer que você tome cuidado. Isso é vida real, Rich,
obviamente se trata de um assunto delicado e algumas pessoas podem não gostar
que você fique fazendo perguntas desse tipo.”
“Você está falando da pessoa que anda telefonando pra cá e desligando?”
Ele olhou para mim e encolheu os ombros.
“Tudo bem. Prometo que vou tomar cuidado. Peça pra mamãe parar de se
preocupar.”
Ele me lançou um certo olhar.
“Isso nunca vai acontecer… e você sabe disso.”
Nós dois rimos.
Ele se levantou da cama olhando mais uma vez para o pôster de A Mansão
Marsten.
“Não sei como você consegue dormir com essa coisa aí em cima. Esse zumbi
tem uma cara horrenda.”
“Essa não, pai”, falei, fingindo indignação. “Aquilo é um vampiro.”
Ele deu mais uma olhada.
“Hummm, tudo bem, é o que eu queria dizer. Um vampiro horrendo.”
“Boa noite”, desejei, começando a rir novamente.
“Boa noite, filho”, desejou ele de volta e fechou a porta atrás de si.
10
Eu sabia que meu pai tinha razão. Eu precisava tomar cuidado. Quer dizer, o que
eu estava fazendo? Tendo ou não um diploma novinho em folha, eu ainda não era
um jornalista de fato. Não trabalhava para um jornal. Não tinha contrato para
escrever um livro. Como eu havia explicado a Carly, eu só era… curioso.
Foi por isso que logo me peguei dirigindo no entorno do parque quase todas as
tardes. A Cedar Drive ficava no meu caminho direto para a agência dos correios —
marcava mais ou menos a metade do percurso —, então era algo natural. Certo?
As barricadas temporárias haviam sido removidas e o parque estava
novamente aberto ao público. Mas eu nunca vi mais do que um punhado de crianças
brincando por lá, e sempre com pelo menos um adulto atento por perto. Entendi que
demoraria muito para que as coisas voltassem ao normal, se é que um dia voltariam.
Na base do escorregador onde Kacey Robinson fora encontrada, havia uma
espécie de tributo, com flores, bichos de pelúcia e cartazes feitos à mão. Velas
haviam sido acesas ali em algum momento e tocos de cera formavam um círculo em
volta do santuário improvisado. Por várias vezes, fiquei tentado a estacionar meu
carro e ir dar uma espiada mais de perto, mas nunca o fiz.
11
12
Mais uma coisa que a polícia não divulgou — e com toda a razão — foi a
crescente frustração devido à total falta de provas nas cenas de ambos os
homicídios. Era extremamente incomum que esse tipo de crime violento fosse
cometido com tamanha precisão e autopreservação.
“É como se o sujeito tivesse entrado por um portal na noite”, um policial
reclamou extraoficialmente “e voltado a desaparecer através dele.”
Nenhuma impressão digital que não fosse de Natasha Gallagher ou de um
membro do círculo familiar próximo foi encontrada em seu quarto ou mesmo nos
vidros e no batente da janela. Como já se suspeitava, a mancha de sangue no
parapeito era da própria vítima. Por causa da recente onda de calor, a terra embaixo
da janela estrava seca e dura. Nenhuma pegada, tampouco marcas na grama.
Ninguém da vizinhança vira algo estranho na noite em que Natasha foi levada.
Nenhum carro suspeito circulando pelas ruas ou estacionado em local incomum.
Ninguém à espreita na escuridão e nem mesmo passeando com um cachorro na
calçada perto da residência dos Gallagher. Quanto ao corpo de Natasha, apesar da
natureza e da ferocidade do ataque, nem um fio de prova — fossem cabelos ou
amostras de fibras, zero vestígio de sangue, saliva ou DNA do assassino — foi
descoberto.
O caso de Kacey Robinson estava se revelando igualmente complicado. Uma
moradora da Bayberry Drive afirmou ter ouvido um carro acelerando por volta do
horário do desaparecimento de Kacey, mas, quando chegou na janela, a rua já estava
vazia. Nenhum dos outros vizinhos ouviu ou viu nada. Além disso, nada de
interessante foi encontrado no All Star que o sr. Robinson descobriu na rua, e o pé
direito do tênis ainda não havia sido localizado. Técnicos forenses coletaram mais
de uma dúzia de impressões digitais utilizáveis e únicas no escorregador do parque
da escola, mas quase todas de crianças. Nada incomum ou útil foi encontrado no
escorregador em si ou no terreno à sua volta. Kacey Robinson sofreu violência
sexual pouco antes de morrer, mas é quase certo que o assassino usou camisinha.
Não havia presença de sêmen nem de saliva. Até a marca de mordida tinha sido
limpa.
E também havia aparente falta de conexões significativas entre as vítimas.
Ambas tinham 15 anos, eram brancas, vinham de famílias sólidas com pai e mãe,
tinham pelo menos um irmão e moravam relativamente perto uma da outra. Ambas
eram atraentes, inteligentes e tinham cabelos compridos. Mas era mais ou menos
por aí que as coincidências terminavam. Edgewood era uma cidade pequena, então
as duas se conheciam da escola e tinham um punhado de amigos em comum, mas
raramente haviam socializado ou passado tempo juntas — tanto sozinhas como em
grupo. Nunca haviam se falado ao telefone nem ido às festas de aniversário uma da
outra. Nenhuma havia namorado ou admitido ter tido uma paixonite pelo mesmo
garoto. Natasha Gallagher era cheerleader; Kacey Robinson era a presidente do
Clube de Matemática. Os detetives estavam procurando qualquer microvestígio que
fosse acerca de conexões adicionais, qualquer coisa que pudesse ligar as duas
adolescentes de alguma maneira, mas, até aquele momento, estavam de mãos
vazias.
A guarda municipal e a polícia também estavam começando a sentir a
crescente pressão da mídia. Após a morte de Kacey Robinson, a pequena cidade de
Edgewood passou a ser assunto nacional. A CNN e a Associated Press já tinham
equipes no local e faziam reportagens diárias sobre a situação. Equipes de
jornalismo de outros Estados fazendo filmagens em ruas residenciais havia se
tornado uma visão comum pela cidade.
Felizmente o apelido “Assassino Van Gogh” que aparecera pela primeira vez
numa manchete do Baltimore Sun acabou não pegando. Já “O Bicho- -papão”… No
final de junho, boa parte da mídia e dos espectadores interessados (especialmente
aqueles com menos de 30 anos) estavam se referindo ao assassino desconhecido de
Edgewood exatamente daquela maneira. Os policiais detestavam o apelido.
Achavam sensacionalista e de mau gosto. E, embora fossem alertados diariamente
pelos superiores para não usá-lo publicamente, a polícia tinha um apelido secreto
próprio para o assassino: “O Fantasma”.
ACIMA: As melhores amigas Kacey Robinson e Riley Holt em Ocean City, Maryland (Foto cortesia de
Rebecca Holt)
ACIMA: Kacey Robinson (Foto cortesia de Robert Robinson)
ACIMA: O ponto na calçada onde Riley Holt foi vista pela última vez com Kacey Robinson (Foto
cortesia do autor)
ACIMA: A cena do crime no parque da Cedar Drive (Foto cortesia do The Baltimore Sun)
ACIMA: Repórter do Channel 11 na cena do crime (Foto cortesia de Logan Reynolds)
quatro
A Suspeita Aumenta
“Porque daria uma história melhor.”
Após deixar Kara na casa dos pais, passei de carro pela Cedar Drive no caminho
para casa. Eram pouco mais de 21h e o parque estava escuro e silencioso. No brilho
dos faróis do carro, notei que o santuário para Kacey Robinson na base do
escorregador havia no mínimo dobrado de tamanho desde a minha última visita.
Mais flores e animais de pelúcia, e vários outros cartazes, muitos com fotografias de
Kacey. Era de partir o coração. Quando eu já estava me afastando, cruzei com uma
viatura da polícia, indo na direção oposta. O policial me encarou intensamente por
um bom tempo. Meneei a cabeça e acenei com a mão. Tenho quase certeza de que
ele me viu, mas não acenou de volta.
Ao chegar em casa, disse um oi rápido para os meus pais, que estavam vendo
televisão no quarto, peguei da mesinha de cabeceira ao lado da minha cama o livro
de John Saul que eu estava lendo e desci para a varanda fechada com tela, nos
fundos. Consegui ler dois capítulos curtos antes de meus pensamentos me levarem
para longe. Fechei o romance e voltei para a cozinha, procurando o telefone sem
fio. Minutos mais tarde, acomodei-me confortavelmente na varanda outra vez,
liguei para Carly Albright e retomamos a conversa que tínhamos começado mais
cedo naquela semana sobre o misterioso conjunto de números 3 da amarelinha e 4
do cartaz do cachorro perdido. Nada daquilo fazia sentido.
“O que mais poderiam significar?”, perguntei.
“Não consigo pensar em nada”, ela respondeu. “Um monte de 3 e 4. Terceiro e
quarto assassinatos? Ele já fez isso antes? Não sei. É tudo o que eu consigo pensar.”
“Sinto que deve ser algo mais inteligente. Algo mais… profundo.”
“Por quê? Por causa de Hannibal Lecter?”
O romance O silêncio dos inocentes, de Thomas Harris, havia sido publicado
com grande alarde no início daquele verão. Ela sabia que eu era fã, então, antes que
eu pudesse argumentar, Carly continuou.
“É um personagem inventado, Rich. Você sabe disso tão bem quanto eu. Ao
contrário dos autores, a maioria desses caras não são gênios. Nem de longe.”
“Eu sei, eu sei”, respirei fundo e tentei encontrar as palavras certas. “Só acho
que… se ele foi suficientemente cuidadoso para não deixar para trás um grão de
prova que fosse, e ousado o suficiente para zombar da polícia com esses padrões
numéricos, então seria razoável acreditar que ele é bem inteligente.”
“Ou que você simplesmente quer que ele seja inteligente. Nem sabemos se a
pessoa que fez isso foi a mesma que deixou para trás a amarelinha e o cartaz. Talvez
seja apenas alguma espécie de jogo bizarro.”
“Por que diabos eu ia querer que ele fosse inteligente?”
“Porque daria uma história melhor”, ela respondeu sem hesitação.
Comecei a argumentar novamente, mas parei. Talvez ela tivesse razão. Talvez
eu só quisesse que aquele monstro fosse brilhante, sagaz e inesquecível — como o
personagem de um romance ou filme foda. Quanto mais eu pensava a respeito, mais
eu percebia que precisava me olhar demoradamente no espelho.
A irmã mais nova de Carly pegou a extensão e pediu para usar o telefone,
então terminamos a conversa, fizemos planos para pôr o papo em dia no fim de
semana e nos desejamos boa noite.
Reabri meu livro e consegui ler outro capítulo antes de fechá-lo novamente.
Olhando para o jardim lateral e a Tupelo Road, imaginei grupos enormes de pessoas
desesperadas e iradas circulando pelas ruas escuras de Edgewood, vasculhando
becos sombrios e cruzamentos mal iluminados. O irmão de Kara conhecia alguém
que estava participando da tal ronda, a vigilância de bairro. O sujeito tinha
comprado walkie-talkies de qualidade militar e óculos de visão noturna. Ouvi de um
amigo que outro grupo de vigilância estava arrastando um carrinho cheio de gelo e
cerveja em suas patrulhas noturnas. E muitos dos homens estavam carregando
armas de choque.
O absoluto silêncio das ruas chamou minha atenção. Era oficialmente o início
do fim de semana do Quatro de Julho e a Hanson Road estava completamente
silenciosa. As conversas abafadas de reuniões familiares ao ar livre e o estardalhaço
de pais bêbados pulando nas piscinas nos fundos das casas deveriam estar ecoando
pelas cercas da vizinhança. As crianças deviam estar ao ar livre, correndo com
varetinhas de chuva de prata e caçando vaga-lumes. Fogos e morteiros deviam estar
explodindo no céu, iluminando as ruas.
Fiquei sentado lá fora por muito tempo naquela noite, sentindo falta daqueles
sons festivos e imagens alegres, pensando sobre as famílias Gallagher e Robinson
na mesma rua que eu e nas palavras que Carly havia dito mais cedo ao telefone,
sentindo-me ligeiramente envergonhado.
Porque daria uma história melhor.
Na manhã seguinte, assim que acordei, meu pai me pediu para ir comprar gasolina
para o cortador de grama e a roçadeira. Depois do café da manhã, coloquei no carro
os dois galões de vinte litros que ele sempre mantinha guardados no canto da
garagem e fui até o posto Texaco.
Quando encostei perto das bombas, Josh Gallagher estava estacionado bem na
minha frente, enchendo o tanque do seu velho Mustang. Eu não o via desde o
velório da irmã e desejei imediatamente ter escolhido um posto de gasolina
diferente. Eu tinha o mau hábito de falar coisas constrangedoras quando ficava
nervoso e a última coisa que eu queria era dizer uma besteira e aborrecê-lo.
Na verdade, eu me preocupei à toa. Assim que desliguei o motor e saí do carro,
o treinador Parks, que havia sido meu técnico de basquete e lacrosse no ensino
médio, parou na bomba ao nosso lado. Ele praticamente pulou para fora da picape.
“Chiz!”, exclamou, um grande sorriso se abrindo em seu rosto rechonchudo.
“Há quanto tempo!”
“E aí, treinador. Como vão as coisas?”
Ele veio andando a passos firmes até mim e batemos um toca aqui, o que
deixou meus dedos formigando.
“Você me conhece, Chiz. Nada extraordinariamente bom nem ruim. Tudo na
mesma.”
O treinador Parks olhou rapidamente para o carro à nossa frente e vi seus olhos
se arregalarem.
“Oi, Josh, não tinha te visto aí.”
Josh terminou de encaixar a pistola da mangueira na bomba e olhou para a
gente.
“Sr. Parks”, cumprimentou com um aceno de cabeça. “Novidades, Rich?”
Tentei manter uma expressão neutra.
“Tudo na mesma, Josh. E você, como está?”
Ele encolheu os ombros e eu me amaldiçoei silenciosamente. Ora, muito bem.
Como diabos você acha que eu estou? Contudo, ele me surpreendeu com o que
disse em seguida.
“Vi você, sua mãe e seu pai no velório. Agradeço demais pela presença de
todos vocês.”
Abri minha boca para responder, mas as palavras não saíam. Tentei
novamente.
“Eu… sinto muito, mesmo, pelo que aconteceu.”
“Eu também”, disse o treinador, o tom de voz bem diferente do usado sessenta
segundos antes. “E sinto muito não ter conseguido ir à cerimônia. Estávamos
acampando com a família do meu irmão e só soubemos da notícia quando
voltamos.”
“Sem problema”, disse Josh, o rosto impenetrável. Tirou um molho de chaves
do bolso do jeans. “É melhor eu ir. Minha mãe está me esperando, vou levar ela no
mercado.”
“Meus sentimentos. Mande lembranças para os seus pais”, o treinador pediu.
Outro aceno de cabeça.
“Pode deixar.”
Levantei a mão num tchau esquisito.
“Se cuida.”
Josh bateu a porta do carro e deu partida. Aquilo fazia meu Toyota Corolla
parecer a máquina de costura da minha mãe. Ficamos observando enquanto ele se
afastava rapidamente e se misturava ao trânsito da Edgewood Road. Quando o
Mustang desapareceu do nosso campo de visão, soltei um suspiro.
“Não é moleza, não”, o treinador falou. “Que coisa terrível!”
Abri o porta-malas e retirei os galões de gasolina. Depois de colocá-los no
chão à minha frente, quando eu já estava esticando o braço para pegar a alavanca da
bomba, o treinador perguntou:
“A polícia já falou contigo?”
Minha mão congelou.
“Sobre o quê?”
“Sobre o que aconteceu com a irmã do Josh.”
Eu estava prestes a perguntar se ele estava brincando comigo, mas dava para
perceber pela expressão em seu rosto que ele estava falando muito sério.
“Comigo? Por que eles iam querer falar comigo? Eu nem estava aqui quando o
crime aconteceu. Eu estava na faculdade, no College Park.”
“Sei lá. Comigo eles falaram. Imaginei que estavam fazendo a mesma coisa
com todos do nosso bairro. Ouvi dizer que interrogaram o Alex Baliko e o irmão.
Charlie Emge. Danny e o Tommy Noel. Tim Deptol.”
Olhei para ele, surpreso.
“O que eles perguntaram ao senhor?”
Ele passou os dedos pelos cabelos cada vez mais ralos, um gesto de nervoso
que eu reconhecia dos anos de treino juntos.
“Mais do que qualquer outra coisa, queriam saber o que eu achava da Natasha.
Se era tão certinha e benquista como todos disseram que era. Se eu conhecia alguém
na escola que tinha inveja ou não gostava dela…”, ele fez uma careta. “Também
perguntaram qual foi a última vez que eu a vi e onde eu estava na fatídica noite.”
“Caramba!”
“Pois é, dá pra acreditar? Você nem imagina como eu fiquei aliviado ao dizer
que estava de férias com a minha família. Tipo, fiquei feliz por ter um álibi de
verdade, sabe como é, né?”
“Eles perguntaram mais alguma coisa?”
“Na verdade, não. Por sorte, foi bastante rápido”, ele riu. “Não me entenda
mal, mas, mesmo assim, quase me borrei todo.”
“Imagino.”
O treinador me deu um tapa contundente nas costas e, como sempre, fingi que
não tinha doído.
“Não se preocupe, Chizinho. Com certeza os policiais vão acabar te
procurando em algum momento.”
4
Como não podia deixar de ser, o algum momento foi no dia seguinte.
Meus pais tinham ido à missa das 10h na Prince of Peace, então eu estava
sozinho na cozinha quando bateram à porta da entrada. Olhei pelo olho mágico e
reconheci imediatamente o homem alto em pé na varanda como alguém cujo rosto
eu andava vendo muito na televisão nos últimos tempos. Abri a porta e convidei o
detetive Harper a entrar. Surpreendentemente, no início, não me senti nem um
pouco ansioso. Nem mesmo com o chefão de toda a investigação sentado ali no sofá
da minha sala de estar, esperando para me interrogar. De fato, eu mal olhei para
o distintivo e a carteira de identificação quando ele os tirou do bolso do paletó.
O detetive Harper tinha uma fala muito mais mansa pessoalmente do que
parecia ter na tevê, e era extremamente educado. Prometeu que não tomaria mais do
que quinze ou vinte minutos do meu tempo, e não tomou mesmo. Quando
terminamos, ele fechou o bloquinho de espiral no qual havia feito suas anotações e
me agradeceu. Então, me entregou um cartão de visita e foi embora.
Quando meus pais voltaram da igreja pouco tempo depois, eu não disse uma
palavra sobre a visita. Já havia decidido que seria melhor esperar até mais tarde.
Pelo que eu me lembro, a entrevista foi assim:
EU: Meu nome é Richard Chizmar. Tenho 22 anos. 920 Hanson Road é a
minha residência até janeiro, quando vou me casar e me mudar para
Roland Park, em Baltimore. Moro aqui com os meus pais. Acabei de me
formar agora em maio na Universidade de Maryland. Sou escritor e
editor. Bem, pelo menos estou tentando ser.
EU: Obrigado.
EU: Tenho três irmãs e um irmão, todos bem mais velhos. Eles saíram de
casa quando eu tinha 9 ou 10 anos.
EU: Se aconteceu, eu não saberia dizer. Eu nem sabia que cara ela tinha
até ver a foto dela nos noticiários e no jornal.
EU: Bem, um cara legal, pelo menos parecia. Fizemos umas duas
matérias juntos no primeiro ano. Eu encontrava ele em festas de vez em
quando. Ele fazia luta greco-romana e saía com a galera da equipe. Eu
provavelmente só cruzei com ele umas quatro ou cinco vezes desde que
nos formamos.
EU: Sim, senhor. Tínhamos começado a fazer nossa mudança mais cedo
naquela semana porque nosso contrato de aluguel estava acabando.
EU: Na verdade, só um deles. Os outros dois tinham ido para casa visitar
a família.
EU: Claro. Bill Caughron. David Whitty. Fred Answell. Posso pegar
minha caderneta de endereços quando terminarmos e passar os contatos.
EU: O Bill. Ele também é daqui de Edgewood. A mãe dele mora na Perry
Avenue.
DETETIVE HARPER: E ele poderá confirmar que você estava com ele
na noite de 2 de junho?
EU: Acho que isso faz com que eu me sinta um pouco melhor.
EU: Praticamente. Ele saiu para ir à casa da namorada, mas já era bem
tarde.
EU: Acho que por volta das onze, talvez até mais tarde.
EU: Às vezes.
Depois que o detetive Harper foi embora, saí e peguei o jornal que estava na
entrada da garagem. Sentado no degrau na frente de casa, eu fiquei procurando o
caderno de esportes para saber os resultados do boxe do dia anterior quando uma
manchete logo abaixo da metade da primeira página chamou minha atenção.
ORELHAS DECEPADAS:
UMA LONGA E SÓRDIDA HISTÓRIA
7
Depois do jantar, fiquei um tempo na garagem organizando meu equipamento de
pesca para a viagem de barco com a família de Kara na manhã seguinte. Eu havia
acabado de bobinar uma linha monofilamento no meu carretel preferido quando
meu pai abriu a porta e me disse que havia uma ligação para mim. E me passou o
telefone sem fio.
“Obrigado”, sussurrei. “Quem é?”
“Não disseram.”
Levei o aparelho ao ouvido.
“Alô.”
Nenhuma resposta.
“Alô”, falei mais alto. Às vezes, o telefone sem fio pegava mal na garagem.
Mais uma vez, apenas o chiado baixinho da ligação.
“Alô!”, já irritado.
Depois ouvi um suave clique e o zumbido da linha para discar.
Apertei o botão de desligar no telefone e olhei para o meu pai.
“Caiu. Acho que tá fora de alcance.”
Ele me encarou com olhos duvidosos.
“Tem certeza?”
“Certeza, não. Você não reconheceu a voz?”
Ele fez que não com a cabeça.
“Era um homem. Voz normal. Pediu para falar especificamente com Richard.”
“Ah.”
“Talvez volte a ligar.”
“Talvez.”
“Você tem tomado cuidado como eu pedi?”
“Tenho. Quer dizer, estive com a Kara nos últimos dias. E andei trabalhando
bastante antes disso.”
Ele olhou para minha caixa de apetrechos e minha vara de pescar.
“Já terminou por aqui?”
“Já.”
Apaguei a lâmpada de teto e fui atrás dele para dentro de casa.
Pouco antes de chegarmos à sala de estar, ele se virou e abaixou a voz.
“Não comente nada com a sua mãe, está bem?”
“Pode deixar.”
8
Naquela noite, mesmo exausto, tive dificuldade para pegar no sono. Fiquei me
revirando por um tempo, pensando sobre o homem misterioso que tinha ligado lá
para casa. Os trotes precedentes podiam ser atribuídos a simples atos de travessura.
Meus amigos e eu cansamos de fazer isso quando criança. Ligar para um número
aleatório, ficar em silêncio ou falar alguma bobeira e depois desligar. Mas, dessa
vez, foi diferente. Alguém havia me chamado, usando meu nome. Depois, esperou
até eu atender, ouviu minha voz e só então encerrou a ligação. Quem diabos era?
A ligação era algum tipo de mensagem? Um aviso? Se era, um aviso com que
propósito?
Eu sabia que meu pai estava preocupado e não o culpava por isso. A situação
era estranha… e perturbadora.
Pensei no cartão de visita do detetive Harper enfurnado na gaveta superior da
minha escrivaninha. Devo ligar e contar para ele? Contar o quê? Que alguém
estava passando trotes idiotas e me deixando preocupado? Ele provavelmente
começaria a rir e também desligaria na minha cara.
Mas, então, me lembrei de um incidente que havia acontecido mais cedo
naquela semana. Eu estava na rua resolvendo coisas — minha primeira parada era a
agência dos correios para enviar uma pilha de novas propostas de contos. Tirando
meu carro de uma vaga apertada, dei um totózinho num sedã prata com vidros
filmados, bem escuros, estacionado na vaga em frente. Não dei muita importância
no momento. Mas, logo após, parei na Plaza Drugs para comprar uma resma de
papel e um cartão de aniversário para Norma Gentile que minha mãe havia pedido.
Ao sair, tive que esperar que dois veículos passassem antes de atravessar e ir pegar
o carro no estacionamento. Um deles era um sedã prata com vidro escuro. Minha
última parada foi no First National Bank, para sacar quarenta dólares. Enquanto
esperava na fila do caixa eletrônico externo, notei um homem mais velho, de costas
para mim, segurando a porta aberta do restaurante chinês ao lado. Quando uma
mulher magra de cabelos negros e curtos passou atrás dele, reconheci o sr. e a sra.
Robinson, os pais de Kacey. Baixei imediatamente o olhar para a calçada à minha
frente, segurando a respiração e torcendo para a sra. Robinson não me ver. A única
coisa que eu conseguia pensar naquele momento era: eu nem apareci no velório da
filha deles. Para o meu alívio, eles foram direto para o carro no estacionamento sem
olhar para trás.
Ao voltar para casa, parei no sinal da Edgewood Road. Ainda distraído pelos
pensamentos sobre os Robinson, esperei o sinal ficar verde e depois virei à direita,
seguindo uma caminhonete da UPS pela Hanson Street. No meio do caminho para
casa, olhei pelo retrovisor e notei um sedã prata a dois carros de distância do meu.
Desacelerei para olhar melhor, mas, com o reflexo do sol no para-brisa, não
consegui identificar quem estava ao volante. Quando embiquei na entrada da
garagem de casa, alguns minutos depois, o carro já tinha sumido. Meia hora mais
tarde, e mesmo absorto enquanto escrevia um novo conto, aquilo ainda não tinha
saído da minha cabeça.
Até agora.
Demorei bastante para pegar no sono.
ACIMA: A polícia interrogando moradores na Bayberry Drive (Foto cortesia de Logan Reynolds)
ACIMA: O detetive Lyle Harper (Foto cortesia do The Aegis)
cinco
Julho
“Uma tempestade está a caminho.”
Por sorte, dessa vez, o prefeito de Amity Island, que odeia tubarões, tinha razão.
Os moradores de Edgewood compareceram maciçamente à comemoração
anual do Quatro de Julho e, segundo a polícia, nenhuma prisão por crime violento
foi feita.
A manhã de segunda-feira raiou com um céu perfeito para um feriado e até
parecia que os moradores da cidade tinham se levantado da cama especialmente
eufóricos, felizes por terem um dia a mais de folga, ávidos e determinados a deixar
para trás as más notícias. O café da manhã com panquecas patrocinado pelos Cub
Scouts no quartel dos bombeiros e as duas partidas da Little League em seguida
tiveram um público numeroso e animado. Os churrascos nos jardins atrás das casas
enchiam o ar com o delicioso aroma de hambúrguer, cachorro-quente e frango
grelhado e o som meigo das risadas das crianças. No final da Willoughby Beach
Road, o Flying Point Park mais parecia um circo. Uma armada de barcos
enfileirados de frente para a areia clarinha da praia, caixas de som no volume
máximo, adultos bebendo cerveja em copos de plástico e se bronzeando, as crianças
pulando e brincando de pega-pega e Marco Polo na beira do mar. A pouca distância,
rio abaixo, pescadores atrás de peixes e caranguejos lotavam um píer em forma de L
jogando suas iscas no meio do profundo canal em busca de bagres e percas.
Dezenas de famílias e montes de adolescentes espalhados pelo gramado do parque,
detonando na comida e na bebida, jogando frisbees e ferraduras, e empinando pipas
vermelhas, azuis e brancas. O parque estava apinhado de crianças de olhos
arregalados e eufóricas devido ao consumo de doces e, apesar do sol escaldante,
elas não mostravam sinal algum de que fossem diminuir o ritmo. O ar de verão
estava impregnado do cheiro de churrasqueiras a carvão, protetor solar, caranguejos
cozidos ao vapor e grama recém-cortada.
Quando entardeceu, o povo se encaminhou para o Centro da cidade e grandes
multidões se reuniram nos dois lados da Edgewood Road. A banda do colégio abriu
a Parada com uma versão animada do hino americano e todos se levantaram de suas
espreguiçadeiras, cangas e toalhas e ficaram em posição de sentido enquanto uma
orgulhosa fila de porta-bandeiras desfilava. Os times da Little League e de softball
vieram em seguida, os jogadores, todos uniformizados, acenando com os bonés para
os pais e amigos e posando para fotos. Depois, os carros de bombeiro, ambulâncias
e viaturas policiais, luzes piscando, sirenes berrando; uma fila escalonada de
tratores fazendo publicidade de empresas locais e patrocinadores da Parada;
esquadrões de soldados do Arsenal de Edgewood marchando em perfeita cadência,
os botões dourados de seus uniformes brilhando ao pôr do sol, rodando como se
fossem bastões e lançando para o alto rifles perfeitamente polidos; a Miss Maryland
e a Miss Condado de Harford na traseira de Corvettes conversíveis vermelhos e
brancos, acenando e mandando beijos para a multidão, atirando punhados de doces
para as crianças; e, por fim, como manda a tradição, no final da fila, jipes abertos —
bandeiras americanas presas às antenas — carregando os Veteranos de Guerra de
Edgewood, com suas fardas, medalhas e condecorações tiradas do armário para
serem admiradas por todos.
Assim que a Parada terminou, as pessoas guardaram seus pertences e se
espalharam pela cidade para aproveitar a noite. Muitas apenas subiram a rua até o
estacionamento do shopping, que proporcionava uma ampla visão do iminente show
de fogos de artifício. Vendedores de sorvete e raspadinha misturavam-se à multidão,
tocando seus sininhos, enquanto grupos de crianças risonhas corriam atrás deles.
Outras dobraram suas cangas e toalhas e foram para casa assistir das suas varandas
e jardins ao show pirotécnico. Teve gente, em boa parte idosos, exaustos por causa
das atividades do dia, que foi direto para a cama em busca de uma boa noite de
sono.
Como prometido, havia de fato bastante policiamento extra circulando pelas
ruas de Edgewood — incluindo membros da guarda municipal e agentes tanto da
Polícia Estadual de Maryland como do Departamento de Polícia do Condado de
Harford. Policiais à paisana se infiltraram na multidão. Alguns se passavam por
meros corredores ou casais românticos, fingindo que estavam dando um passeio,
mas vigiando de perto as ruas dos subúrbios. Houve um punhado de prisões por
embriaguez ao volante, bebedeira e desordem pública, fogos de artifício ilegais e
pequenos atos de vandalismo. A operação mais séria do dia ocorreu quando dois
caras de fora da cidade foram detidos durante o show de fogos por uso de maconha,
e uma arma ilegal foi descoberta logo em seguida no porta-luvas do carro deles.
O maior susto da noite se deu depois que a maioria da multidão já havia se
dispersado e ido para casa. Rodney Talbot, 43 anos, conhecido por ser um eterno
criador de caso e pinguço inveterado, saiu de fininho para não pagar a conta do bar,
mas, ao chegar ao próprio carro, estacionado em frente à lanchonete Winters Run
Inn, descobriu que havia trancado a porta com a chave dentro. Chega a ser irônico,
mas o contratempo muito provavelmente evitou que Talbot fosse parado e tivesse
que passar a noite na cadeia, já que um policial estava estacionado um pouco mais à
frente na Route 7, em ótima posição para mandá-lo parar.
Mas a sorte de Rodney Talbot acabou por aí.
Não tendo como pedir carona para alguém no bar, Talbot foi para casa
cambaleando por um trecho de bosque pantanoso ali perto, tropeçando e caindo de
cara no chão em um riacho e parando duas vezes para vomitar.
Quando finalmente chegou em casa, um trailer duplo na Singer Road, ele o
encontrou trancado. Depois de esmurrar a porta e xingar a mulher de todos os
nomes horríveis que conseguiu lembrar, além de vários outros inventados na hora,
Talbot foi para os fundos do trailer, subiu numa velha mesa de piquenique e tentou
se esgueirar pela estreita janela que dava para o quarto.
Dentro do espaço apertado, a mulher de Talbot, Amanda, que também estava
bêbada, acordou de um torpor profundo. Sem reconhecer o rosto enlameado do
marido, ela imediatamente achou que ali estava o tal Bicho-Papão, tentando
arrombar a janela e matá-la. Ela não tinha intenção alguma de deixar aquilo
acontecer sem lutar. Amanda então pegou no armário uma escopeta calibre doze
descarregada e, não conseguindo localizar a munição, começou a dar coronhadas na
parte de trás da cabeça do intruso. Quando teve certeza de que o Bicho-Papão
estava inconsciente e não era mais uma ameaça real, ligou para o 190.
Em minutos, com as sirenes à toda, três viaturas policiais, uma ambulância e
um carro de bombeiro pararam na frente do trailer. Um dos agentes, que conhecia
muito bem as merdas que Rodney era mestre em fazer, reconheceu imediatamente o
suposto assassino e informou a Amanda, com toda a calma do mundo, que ela quase
havia matado o próprio marido.
Mais tarde, de volta à delegacia, o agente não conseguiu conter sua irritação ao
relatar a história:
“Foi inacreditável. Eu esperava que ela começasse a berrar ou xingar. Em vez
disso, ela deu uma boa olhada no companheiro todo esparramado no chão e caiu na
risada. Cinco minutos mais tarde, ainda estava às gargalhadas. Foi uma baita dor de
cabeça. E a questão é que nem podíamos prendê-la por bebedeira ou burrice. Afinal,
agiu em legítima defesa e a arma estava devidamente registrada.”
2
Na manhã seguinte, acordei antes do sol nascer com a bexiga prestes a explodir,
resultado direto de ter tomado um Double Big Gulp de Coca-Cola para acompanhar
um cachorro-quente com chili de noite no 7-Eleven. Enquanto eu seguia para o
banheiro, quase num ato de sonambulismo, ouvi o farfalhar de jornais e o tinido
metálico de uma colher mexendo café. Parei no topo da escada e olhei rapidamente
lá para baixo. Só consegui vislumbrar a silhueta escura do meu pai, curvado sobre a
estreita mesa do canto da cozinha. Ele, de certa forma, parecia pequeno e solitário,
sentado ali, na dele. A casa estava silenciosa e estática, e voltei no tempo para
centenas de outras madrugadas exatamente como aquela. Ali parado, de pijama,
pensei: É isso que você faz quando tem uma família. Você se levanta quando ainda
está escuro lá fora e vai trabalhar para que as pessoas que você ama tenham uma
vida melhor. Mesmo quando você está doente ou cansado e sem vontade. Observei-
o por mais um tempinho, meu coração doendo de uma maneira que eu nunca havia
sentido antes.
“Te amo, pai”, sussurrei na escuridão e depois fui de fininho ao banheiro e
voltei para a cama.
Duas semanas mais tarde, na quarta-feira 27 de julho, o artigo de Carly sobre mim
foi publicado no The Aegis. Embora meus pais tivessem uma assinatura com
entrega em domicílio, comprei meu próprio exemplar na Wawa para ler sozinho no
meu carro. Só li uma vez, e depressa, lá no estacionamento mesmo da loja de
conveniência, me contorcendo cada vez que me deparava com uma citação. Kara
disse mais tarde que eu tinha ficado bonito na foto, com um ar entusiasmado e
inteligente. Eu, porém, tinha quase certeza de que parecia e soava como um idiota
completo. Odiei cada uma das palavras, mas, é claro, não contei isso a Carly. Pelo
contrário, agradeci e disse que a matéria tinha deixado meus pais muito orgulhosos,
o que era inegável. Os dois ficaram em êxtase porque o caçula tinha saído no jornal
local, e logo na capa do caderno Pessoas & Lugares. Mais tarde naquela noite,
Norma e Bernie Gentile foram lá em casa e me pediram para autografar o exemplar
deles. Achei que estivessem brincando, mas não estavam. Minha mãe não parava de
sorrir. No dia seguinte, meu pai foi direto à Biblioteca, fez uma dúzia de fotocópias
da matéria de Carly e as enviou para parentes mundo afora.
A publicação, no entanto, causou duas surpresas agradáveis. A primeira foi
uma ligação, tarde da noite, do meu velho amigo Jimmy Cavanaugh. Seus pais
tinham uma assinatura do The Aegis em outro Estado e contaram para ele tudo a
respeito. Jimmy me ligou para dar os parabéns e me dizer que estaria em Edgewood
no fim de semana para o casamento do primo. Acabamos papeando por mais de
uma hora e fizemos planos para nos encontrar.
A segunda surpresa foi uma ligação do detetive Harper na manhã seguinte me
dando parabéns. Havia visto por acaso a matéria — pelo menos foi o que ele disse,
fazendo de tudo para parecer casual — e tinha realmente gostado. Só queria me
dizer isso. Antes de desligarmos, eu me arrisquei e lancei uma ideia para ele:
“O que o senhor acha de eu acompanhar um dos seus agentes alguma vez? Só
para observar e sentir como é ser um agente de polícia numa cidade pequena como
Edgewood?”
Expliquei que eu já havia acompanhado um amigo que era policial da cidade
de Baltimore no ano anterior. Eu já sabia tudo das autorizações que teria que assinar
e o que esperavam de mim. Ele me prometeu que pensaria a respeito e em breve me
daria uma resposta. Eu mesmo não estava muito confiante.
Na noite daquela mesma quarta-feira, depois do jantar, meus pais foram visitar os
vizinhos Carlos e Priscilla Vargas. Eu tinha quase certeza de que o assunto da
matéria no jornal sobre um tal Richard Chizmar surgiria nos primeiros trinta
segundos de conversa.
Enquanto isso, Kara e eu passamos a noite assistindo a um filme no porão,
depois ela se despediu cedo e foi para casa para fazer um trabalho da faculdade.
Droga. Dois meses já tinham se passado desde a formatura e eu ainda odiava ter que
estudar.
Quando eu estava quase entrando no chuveiro, o telefone tocou. Enrolei
rapidamente uma toalha na cintura e peguei o fone no corredor do andar de cima.
“Alô.”
“Uma notícia rápida”, a voz de Carly Albright soava abafada e distante.
“Pode falar.”
“Um jardineiro aqui da cidade, um tal de Manny Sawyer, 31 anos de idade, foi
levado pra delegacia esta manhã por volta das 11h15. Obviamente, havia trabalhado
com uma equipe que podou algumas árvores no jardim dos fundos na casa dos
Gallagher e plantou alguns arbustos e fez adubagem a duas casas de distância dos
Robinson.
“Opa.”
“Pois é, né? A última notícia que eu tive foi que ele ainda estava lá sendo
interrogado.”
“Me mantenha informado, pode ser?”
“Claro, pode deixar. Até mais.”
Ela desligou. Pus o fone de volta no lugar e fui novamente para o banheiro.
Liguei o chuveiro, mas, antes que eu conseguisse tirar a toalha, o telefone tocou
novamente. Poxa, Carly…
Corri para o corredor e tirei o fone do gancho.
“Fala, a coisa foi rápida, hein?”
“Que que foi rápido?”, a voz de um homem que eu não reconheci.
“Desculpe, achei que fosse outra pessoa.”
O homem soltou um risinho. Grave e rouco — um som nada agradável.
“Quem está falando?”, perguntei, esperando soar mais calmo do que eu de fato
estava.
Nenhuma resposta, mas eu ouvia a respiração dele.
“Por que tá ligando pra cá?”
Clique.
Depois o sinal de discar.
Abaixei a mão e olhei para o telefone por um instante. Pela primeira vez, me
permiti fazer a pergunta: Será que aquele era realmente o Bicho-Papão? Desliguei
o chuveiro e corri lá para baixo para me certificar de que todas as portas estavam
trancadas.
10
11
12
Uma das lembranças mais queridas da minha infância era trabalhar com meu pai na
garagem. Muitos dos amigos que conheci mais tarde achavam isso estranho — com
razão.
Quando eu dizia às pessoas que não levava jeito para coisas mecânicas, estava
usando um grande eufemismo. E, se elas já não conhecessem essa minha
característica, logo vinham a saber. Por mais que tentasse, eu não conseguia
configurar um videocassete, muito menos montar um móvel. A IKEA era minha
inimiga declarada. No que me diz respeito, motores de carros — bem, motores de
qualquer tipo — podiam ser cérebros humanos. Para mim, eram ambos mistérios
eternos.
Durante a minha infância — e ainda hoje em dia —, a imagem do meu pai na
entrada da garagem com a cabeça curvada embaixo do capô de um dos carros da
família era uma visão comum para os motoristas e pedestres que passavam. E eu ao
lado dele para ajudar? Nem tanto. Nós tentávamos. De verdade. Mas,
inevitavelmente, acontecia o seguinte:
Primeiro minuto: Rich em pé ao lado, braços cruzados, balançando o corpo de
tanta empolgação. Prestando muita atenção. Talvez até fazendo uma ou duas
perguntas.
Terceiro minuto: Rich aprendendo, usando os dedos para tamborilar o ritmo
do último comercial do Old Spice na saia lateral do carro, a poucos centímetros de
onde está a cabeça do pai.
Quinto minuto: Rich inquieto como se fosse fazer xixi nas calças a qualquer
momento. Prestando mais atenção num casal de esquilos gordos brincando de
pega-pega no fio de telefone que atravessa a Hanson Road do que naquilo que, com
muita paciência, o pai está tentando ensinar.
Oitavo minuto: Rich girando o corpo para um lado e para outro na entrada da
garagem como um tornado humano enquanto emite sons como os de Cornelius de
O Planeta dos Macacos (um filme que sempre adorei), incapaz de ouvir que o pai
está pedindo para ele pegar uma chave de boca de 3/8.
Décimo minuto: Rich, agora completamente imóvel e silencioso, braços
pendurados em desalento nas laterais do corpo, olhos baixos. O pai em pé na frente
dele, uma mistura complexa de amor e frustração impressa em seu rosto cada vez
mais corado. Finalmente o pai respira fundo e murmura aquelas três palavras
mágicas: “Pode ir embora.” E, antes que o pai possa mudar de ideia, Rich está
subindo desabalado o morro rumo às casas de Jimmy e Brian, berrando por cima
do ombro enquanto avança: “Obrigado, pai! Te amo!”
Isso é mais ou menos o que acontecia. Toda vez. Até que, finalmente, um dia,
simplesmente nos aceitamos mutuamente e paramos de tentar.
Por sorte, trabalhar dentro da garagem, em um dos frequentes “projetos” do
meu pai, era uma experiência totalmente diferente. Falei mais cedo que a garagem
sempre me lembrou a oficina misteriosa e caótica do feiticeiro de Fantasia, da
Disney. Sobretudo naquelas longas noites de verão depois do jantar quando meu pai
ocupava o próprio tempo construindo ou consertando vários objetos em sua bancada
de trabalho. Ele era o mago grisalho, sábio e paciente que não parecia pertencer a
este mundo — e eu era seu ávido aprendiz.
Ele me pedia para pegar uma ripa de madeira da pilha encostada na parede dos
fundos ou a caixa de arames na prateleira e eu prontamente o atendia. Ele baixava a
cabeça e começava a trabalhar e eu ficava bem ao lado dele, espiando atrás das
costas, estudando, tomando cuidado para não cutucá-lo com o cotovelo enquanto
ele operava para minha mãe uma cirurgia delicada num apoio para os pés novinho
em folha ou nas vísceras confusas do televisor quebrado de um vizinho.
Por algum motivo, minhas noites mais memoráveis na garagem eram quase
sempre acompanhadas de tempestades de raios. Enquanto trabalhávamos lá dentro,
o céu lentamente se contorcia e se agitava, mudando e turbilhonando até assumir
aquele tom roxo-escuro de um dos muitos hematomas feios que cobriam meu corpo
magricela aos 10 anos de idade. Longos estrondos mal-humorados de trovões
distantes iam se aproximando cada vez mais, como um exército de gigantes
marchando. Meu pai adorava o som dos trovões e muitas vezes até desligava o rádio
que estava transmitindo o jogo dos Orioles só para que pudéssemos ouvi-los
melhor.
Pouco depois, ele olhava para mim e anunciava:
“O que você acha de fazermos uma pausa para observar a chegada da
tempestade?”
Então, em silêncio, ele largava o que estava fazendo na bancada e ia para a
entrada da garagem. Geralmente se apoiava em um dos carros e fixava o olhar na
Hanson Road. Logo atrás dele, eu imitava todos os movimentos.
Nossa casa estava localizada no fundo de uma depressão natural formada pelo
cruzamento da Hanson com a Tupelo. Às vezes, durante grandes tempestades, a rua
ali inundava, acumulando de setenta centímetros a um metro de água. Quando isso
acontecia, a bomba no nosso porão era obrigada a trabalhar sem parar e meu pai
precisava ficar acordado a noite toda para ter certeza de que não tinha acontecido
nenhum entupimento.
No lado oposto, subindo o morro, ficavam as casas dos Gentile, Cavanaugh e
Anderson, e a casa em dois níveis do vizinho de Brian e Craig marcava o topo de
uma inclinação íngreme.
Eu e meu pai, o aprendiz e o mago, ficávamos em pé na entrada da garagem —
às vezes, falando dos Orioles ou de um dos meus amigos ou de um livro que um de
nós estava lendo; muitas vezes, sem dizer nada — e observávamos a tempestade
passar por cima do morro e chegar ao coração de Edgewood. Em noites especiais,
parecia que estávamos fazendo algo mais, além de observar; parecia que estávamos
dando as boas-vindas à tempestade de braços abertos.
Primeiro, o vento aumentava, assobiando entre as copas das árvores e
despenteando nossos cabelos. Depois, relâmpagos rasgavam o céu e o estrondo dos
trovões só aumentava. A luz diminuía mais um pouco enquanto o céu ia ficando
mais raivoso. Depois, o cheiro do ozônio nos atingia e o aroma de terra úmida
enchia o ar. Era nesse momento que nós sabíamos: um toró estava caindo em algum
lugar ali perto… e se aproximando. Por fim, o zumbido crepitante e elétrico
começava a dançar no ar à nossa volta, uma sensação perigosa e superintensa que
fazia os pelos minúsculos e escuros dos nossos antebraços se arrepiar.
Os primeiros pingos gordos de chuva começavam a cair logo depois. Esparsos
no início; inchados, pesados e famintos por terra seca; respingando em nosso rosto e
infiltrando-se por nossos cabelos; molhando os telhados, o capô dos carros e o
concreto da entrada da garagem sob os nossos pés; ao mesmo tempo, marcando um
profundo ritmo staccato, apagando os sons cotidianos do mundo à nossa volta.
Meu pai e eu ficávamos lado a lado, saboreando cada doce momento, cabeças
inclinadas, olhos fechados, sorvendo a cacofonia da tempestade; só nós dois — os
Senhores de Edgewood.
Depois, sem aviso prévio, nos dávamos conta de que estávamos embaixo de
uma cachoeira majestosa. O mundo inteiro se transformara e nós dois estávamos à
sua mercê — e minha mãe, em pé sob a porta aberta da garagem, gritando para
deixarmos de ser bobos e entrarmos para não pegarmos uma pneumonia. Meu pai e
eu não conseguíamos parar de rir, perdidos demais no meio da cachoeira para ouvir,
consumidos demais pela saudação à tempestade…
Os trovões rosnavam lá em cima. Relâmpagos perfuravam o horizonte.
Olhando para a luz decrescente que envolvia a Hanson Road, pisquei e os sussurros
da memória desvaneceram. Eu não era mais uma criança. Era o último dia de julho
de 1988. E, mais uma vez, eu ouvi, cantarolando nas profundezas do meu ser: uma
tempestade está a caminho.
ACIMA: Parada de Quatro de Julho (Foto cortesia de Deborah Lynn)
ACIMA: Time (divisão de 9 a 10 anos de idade) vencedor do torneio Quatro de Julho (Foto cortesia do
The Aegis)
ACIMA: A comprida trilha de cascalho até a Meyers House (Foto cortesia de Alex Baliko)
ACIMA: A Banda de Edgewood (Foto cortesia de Bernard L. Wehage)
seis
Minutos após me sentar no sedã marrom chapa fria do detetive Lyle Harper, me
dei conta de quem ele me lembrava: Danny Glover. Mesma voz profunda e rouca;
mesma risada espalhafatosa; mesmos olhos tristes de cachorrinho filhote. Eu não
sabia por que não havia feito a conexão quando o conheci na minha sala de estar —
nervosismo, provavelmente —, mas as semelhanças me fizeram gostar dele
instantaneamente. Glover sempre foi um dos meus atores favoritos.
Dizer que eu havia ficado surpreso no dia anterior quando o detetive me ligou
não apenas para aprovar meu pedido para acompanhar os policiais, mas para se
oferecer para me levar com ele, seria um imenso eufemismo. Inicialmente intrigado
pelo motivo para ele me oferecer tal privilégio, decidi manter minha grande boca
calada e aproveitar a oportunidade, talvez aprender algo ao longo do caminho.
Até então — passados trinta minutos de um turno estimado em quatro horas
—, eu estava certamente fazendo as duas coisas. O detetive Harper, além de ser um
poço de informações e um profissional de primeira, era também engraçado à beça.
Ele já havia falado dos três filhos — duas moças mais velhas e um rapaz da minha
idade — e de suas frequentes desventuras como pai solteiro quando eles eram mais
jovens. Sem dúvida, namorar a filha adolescente de um detetive da divisão de
homicídios não era para os fracos. De repente, fiquei muito grato pelo pai de Kara
ser corretor de seguros. Apesar dos rigores da carreira, Harper se casara novamente
havia pouco tempo e parecia ter uma vida boa. E os filhos ainda o adoravam, o que
ele afirmava ser um pequeno milagre.
Acho que eu fazia Harper lembrar do filho, Benjamin, que era músico
profissional. Durante o dia, dava aulas particulares de piano, violão e saxofone. À
noite, tocava com algumas bandas bastante respeitadas — de jazz e música
contemporânea — em vários clubes e restaurantes na região de Washinton D.C. Até
aquele momento, a questão financeira havia sido complicada, mas o detetive disse
que nunca tinha visto o filho mais feliz ou dedicado, então, como pai, estava
aguentando a barra e dando todo o apoio possível.
Quando o assunto pessoal chegou ao fim, Harper começou a falar do trabalho,
explicando que havia passado a maior parte da tarde revisando declarações por
escrito de parentes, amigos e vizinhos das vítimas, procurando qualquer coisa de
interessante que pudesse ter passado despercebida. Perguntei quantas vezes ele já
havia lido cada declaração e ele me deu um olhar que dizia Você não tem ideia.
Depois de terminar a leitura, ele dava telefonemas de acompanhamento para
determinados interrogados com o intuito de fazer perguntas complementares.
O plano para o resto da noite era patrulhar as ruas de Edgewood — começando
nos arredores ao longo da Route 40 e nos aproximando lentamente e em círculos do
Centro da cidade, depois dando meia-volta e invertendo o percurso — e investigar
qualquer pessoa ou coisa que o detetive Harper julgasse interessante.
Era estranho ver as ruas da minha cidade natal de dentro de uma viatura da polícia.
Não parecia real, era quase como se o para-brisa fosse a tela de um televisor e eu
estivesse sentado no porão com meu pai assistindo a um dos seus programas de
detetives. Por falar em meu pai, ele estava emburrado em casa porque não tinha
sido convidado para ir comigo. Como se eu pudesse decidir. Olhei pela janela do
carona e, mais uma vez, aquela sensação de expectativa cresceu dentro de mim,
como se um acontecimento importante estivesse à espreita logo após o horizonte.
Uma tempestade está a caminho.
Sem que eu perguntasse, o detetive Harper passou a primeira parte da nossa
patrulha me ensinando o que os códigos de chamada queriam dizer cada vez que
eram transmitidos pelo rádio da polícia. Eu disse que havia comprado meu próprio
rádio para ouvir enquanto escrevia à noite e ele não pareceu nem um pouco
surpreso. Depois entendi por quê: eu já havia dito que tinha comprado um rádio
quando ele tinha estado lá em casa para o nosso interrogatório inicial. O que
provavelmente explicava por que ele estava se dando ao trabalho de me explicar os
códigos de chamada. Era uma gentileza da parte dele.
Harper também estava guardando uma outra surpresa para mim. Ele havia
procurado e lido meu artigo sobre Earl Weaver para o Baltimore Sun. Eu não sabia
se deveria ficar nervoso ou lisonjeado. Quando perguntei por que ele havia feito
aquilo, ele sorriu e disse:
“Sou um detetive. Faço o meu dever de casa.”
Quando entramos na Route 24, avistamos um homem e um menino com varas
de pescar em pé na margem do rio Winters Run. Uma pequena fogueira ardia numa
clareira atrás deles.
“O que você acha que eles estão querendo pegar ali?”, perguntou, pisando
suavemente no freio.
“Percas-sol. Percas-amarelas. Bagres. Talvez achigãs ou percas-prateadas se
estiverem usando vairões vivos como isca.”
Ele me olhou impressionado.
“Você é pescador.”
“Pescava quase todo dia quando garoto.”
“E agora?”
“Não mais. Íamos de fininho até o campo de golfe da Universidade de
Maryland de vez em quando e pescávamos nos lagos. Fisguei alguns peixes
grandinhos na baía agora no Quatro de Julho. Mas só isso.”
“Eu só pesco em água doce. Gosto de sair duas ou três vezes por semana para
pescar, quando posso”, contou e olhou para mim. “Ultimamente não tenho saído
muito.”
Harper deu seta e virou à esquerda na Edgewood Road. Vi os vultos das casas
passando enquanto subíamos a longa e sinuosa colina rumo à cidade. Reunindo
coragem, perguntei:
“Então… numa noite como esta, a gente fica dirigindo e procurando o que
exatamente?”
“Para ser sincero, estou pensando tanto quanto procurando. Se é que isso faz
sentido.”
Eu assenti.
“Acho que faz.”
“Geralmente não faço um patrulhamento tão amplo assim. Isso é trabalho dos
fardados.”
Ele entrou no estacionamento do banco e parou a não mais do que cinco
metros de distância de onde eu e Jimmy havíamos estacionado há uma semana. De
repente, meu estômago deu um nó.
“Mas, às vezes, é útil para mim sair de trás da escrivaninha, ficar longe
do telefone e de toda a papelada.”
“Então, enquanto dirige… o senhor pensa sobre todos os detalhes do caso?
Tenta fazer com que tudo se encaixe?”
“Exatamente”, ele disse. “Também penso no que podemos ter deixado passar.
O que está bem na nossa cara e que, por algum motivo, ainda não notamos.”
“Isso acontece muito? Deixar passar algo e depois voltar e encontrar?”
“O tempo todo”, começou, balançando a cabeça. “As pessoas acham que o
trabalho de um detetive é excitante e glamouroso, cheio de tiroteios e perseguições
de carro. Na verdade, raramente é assim”, completou, esticando o braço e
diminuindo o volume do rádio. “É trabalho duro, é peneirar centenas, às vezes
milhares de páginas de relatórios e fotografias, assistir a horas de gravações de
segurança, bater em portas, fazer ligações e falar com pessoas que ou estão ansiosas
demais para falar, mas não têm nada a dizer, ou têm informações cruciais, mas se
recusam a falar.”
“Não parece muito empolgante.”
“Acredite, não é.”
“Há quanto tempo faz esse trabalho?”
Ele respondeu imediatamente.
“Em outubro, vai fazer dezenove anos.”
Eu soltei um assobio.
“Quase a minha vida toda.”
“Deixe-me perguntar uma coisa”, falou, apontando para a trilha de cascalho
que levava até a Meyers House, do outro lado da rua. Merda, lá vem encrenca,
pensei. “Vi um bando de crianças caminhando por ali outro dia. Aonde você acha
que elas estavam indo?”
Fui invadido por um alívio instantâneo.
“Humm… depende”, falei, pensando repentinamente no homem que tínhamos
visto circulando ali na escuridão. “É um atalho tanto para a Cherry como para a
Tupelo. Se você subir um pouco mais da metade do caminho e atravessar um dos
jardins nos fundos das casas à esquerda, vai dar na Cherry. Se você for até o topo e
atravessar o jardim nos fundos da casa grande e continuar pelo jardim da casa dos
Patterson, vai dar na Tupelo. A cinco ou seis casas de distância de onde moram
meus pais.”
“E todo mundo que mora por aqui sabe disso?”
Dei de ombros.
“A molecada toda sabe. Tipo… faz parte de morar aqui.”
O detetive pareceu pensar a respeito por um instante, depois saiu da vaga do
estacionamento e pegou a Edgewood Road. Ao chegar no cruzamento do posto
Texaco, virou à direita na Hanson. Quando desacelerou o carro uns oitocentos
metros mais à frente, eu sabia aonde ele estava nos levando.
“O que você pode me dizer sobre esta área?”, ele perguntou, pegando a
esquerda no circuito em volta da Cedar Drive.
Dei uma olhada nas homenagens para Kacey Robinson na base do escorrega.
Finalmente tinha parado de crescer. Já estava quase na hora do pôr do sol e só havia
duas pessoas ali — uma mãe com a filha — brincando nos balanços. Um cão
grande estava preso à base do trepa-trepa, a uns dez metros delas, talvez. O resto do
parque estava deserto e envolto em sombra.
“Vamos lá”, comecei, olhando em volta e apontando para os pontos de
referência. “Costumávamos andar de trenó ali quando éramos crianças. O campo de
beisebol oficial e o parque ainda não haviam sido construídos. Jogávamos futebol
americano logo ali, perto dos apartamentos militares. Se atravessarmos aquele
campo”, apontei, gesticulando em direção ao outro lado da rua, “e depois o jardim
nos fundos da casa dos Goode, vamos sair na Tupelo Court, bem em frente à minha
casa.”
“E quanto ao Boys and Girls Club, já tinha aberto naquela época?”
“Não. Era só um grande estacionamento vazio. Quando já estávamos um
pouco maiores, a gente ficava bebendo cerveja ou levando garotas pra lá.”
Ao nos aproximarmos da escola primária à nossa esquerda, apontei para uma
fila de árvores que ficava do lado oposto da rua em relação ao local onde os ônibus
estacionavam. Uma trilha estreita havia sido aberta no bosque. Abria-se formando
grandes áreas escuras.
“Tem um outro atalho por ali. Sai atrás do novo edifício comercial em frente
ao 7-Eleven.”
“O que fica na esquina da Edgewood com a Willoughby Beach?”
“Isso mesmo. O 7-Eleven foi o primeiro lugar por aqui com uma máquina de
Space Invaders. Quando eu tinha 9 anos, costumava sair correndo depois do jantar
com uma única moeda de vinte e cinco centavos no bolso. Descia a Hanson, cortava
pela Cedar Drive, atravessava esse bosque e subia o morro. Eu jogava a minha
partida e corria de volta para casa o mais depressa possível na escuridão para que
meus pais não soubessem que eu tinha saído.”
“É muito chão só para uma partida de Space Invaders.”
Eu ri.
“Nem me fale. Especialmente quando você morre no primeiro ou segundo
minuto todas as três vezes. Fazer o quê? Quem mandou ser meio obcecado.”
Quando chegamos na placa de Pare no final da Cedar Drive, o detetive Harper
freou até estacionar e ficou imóvel atrás do volante. Não havia trânsito na rua em
frente, mas, mesmo assim, não avançávamos um milímetro. Estudei a moita de
arbustos do outro lado da rua caso o detetive estivesse monitorando algum
movimento que eu não tivesse percebido, mas não havia nada. Por fim, ele pisou no
acelerador, virou à direita e rumou para o colégio. Quando voltou a falar, sua voz
estava baixa e cautelosa.
“Eu sei que, para vir comigo hoje, você teve de concordar que não me faria
nenhuma pergunta específica sobre o caso”, ele disse. “Mas eu gostaria de te fazer
uma ou duas perguntas, mas só precisa responder se quiser, ok?”
“Tudo bem, claro”, falei, uma cólica nervosa despontando no fundo do
intestino.
Ele olhou para mim e sorriu, mas o sorriso não alcançou os olhos.
“Relaxa, Rich. Não é nada de mais. Eu só estou procurando uma… digamos…
perspectiva diferente.”
“Tudo bem”, repeti.
“Você está a par de alguma tensão racial aqui em Edgewood?”
“Que eu saiba, não”, encolhi os ombros. “Quer dizer, nada fora do normal.
Somos, e sempre fomos, uma comunidade muito diversa.”
“Mas ambas as vítimas foram jovens brancas.”
“Sim, é verdade”, olhei para ele. “O senhor acha isso estranho?”
“Você acha?”
“Acho que não. Só imaginei que isso significa que o assassino também é
branco. A maioria dos serial killers não cruza os limites da própria raça quando
seleciona suas vítimas.”
Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.
“Vejo que não sou o único que fez o dever de casa. Onde você aprendeu isso?”
“Não me lembro bem. Provavelmente em um dos livros que eu li.”
Ele virou à esquerda na Willoughby Beach Road.
“Tudo bem. Próxima pergunta: se você fosse um criminoso de outra cidade e
estivesse procurando raptar uma jovem nas ruas de Edgewood, onde você agiria? O
primeiro lugar que vem à mente.”
Baixei a cabeça e fechei os olhos. Assumindo meu lado escritor, pensei no que
ele estava me perguntando.
“Em algum lugar sem muita gente. Um parque, no início da manhã ou ao pôr
do sol. Uma das ruas paralelas à principal ou, então, perto do rio. Em um dos bares
ou restaurantes, pelo horário de fechamento,” reabri os olhos. “Desculpe, eu falei
mais de um.”
“Não, tudo bem”, ele disse. “Muito bom. Eu só não queria que você pensasse
demais a respeito.”
Harper entrou no estacionamento na frente da escola ginasial e desligou os
faróis do sedã. Já estava totalmente escuro, vaga-lumes salpicavam o céu noturno.
Uma luz quente e amarela vazava das janelas das casas do outro lado da rua e mal
se distinguia o brilho oscilante de telas de televisão nas salas de estar e porões.
“Agora me diga uma coisa… se você fosse um forasteiro, um estranho, qual
seria o último lugar a que você iria para raptar uma adolescente em Edgewood?”
“Um local movimentado”, respondi na lata.
Ele meneou a cabeça, mas não disse nada, só continuou olhando para a
escuridão. Por um instante, achei que tivesse dito algo errado, mas, depois, entendi
o que ele estava fazendo.
“O senhor realmente acha que o assassino é daqui, não é?”
“Acho que ele provavelmente morou aqui a vida toda”, Harper olhou para
mim. “Você não está convencido disso?”
“Certeza, certeza, eu não tenho de nada”, respondi, desviando o olhar.
Ou talvez eu simplesmente não quisesse ter.
“O senhor já sentiu medo ao fazer seu trabalho? Não medo do tipo ‘alguém pode
atirar em mim’ ou ‘estou em perigo’. Estou falando daquele medo que causa
arrepios porque tudo à sua volta é aterrorizante.”
Estávamos voltando para a delegacia quando de repente me ocorreu que aquele
patrulhamento provavelmente tinha sido mais proveitoso para o detetive Harper do
que para mim. Não que isso me importasse. Havíamos percorrido a cidade, de cabo
a rabo, três vezes. Eu havia visto partes de Edgewood que não visitava desde
garoto. Até saltamos e caminhamos pela margem do rio por um tempo. Eu
certamente havia aprendido muito e apreciado a companhia do detetive, mas,
de alguma maneira, ele tinha conseguido extrair de mim mais informações do que
eu dele. Com a noite quase chegando ao fim, pensei que poderia tentar fazer mais
uma ou duas perguntas.
“É claro”, ele disse. “Que já vivi momentos assim.”
“Sério? Qual foi o pior?”
Ele ficou calado por um instante, pensando.
“A Casa dos Manequins.”
“Nossa, parece assustador mesmo. O que aconteceu?”
O sinal abriu e atravessamos o cruzamento.
“Era tarde da noite, eu estava trabalhando em Baltimore. Meu parceiro e eu
atendemos uma ligação de uma senhora preocupada com o vizinho. Ela morava na
rua do Memorial Stadium e fazia um dia mais ou menos que ouvia vozes estranhas
e ruídos de pancadas na casa geminada com a sua. Havia tentado tocar a campainha
e bateu à porta várias vezes, mas ninguém atendeu. O nome do vizinho era Thomas
McGuire. Ela disse que ele estava na faixa dos 60 anos e era bastante simpático,
mas também meio estranho às vezes. Falava sozinho direto e acreditava em óvnis,
cristais e coisas do gênero.
“Bem, fomos lá verificar. Eu fui pela frente e meu parceiro pelos fundos.
Obviamente, ninguém abriu a porta. Tentei espiar pela janela, mas cortinas pesadas
bloqueavam a visão. Bem nessa hora, meu rádio apitou, era meu parceiro pedindo
para eu ir para os fundos.
“Encontrei ele em pé diante de uma janela semiaberta, espiando através de
uma fresta entre as cortinas que ele havia afastado. Mesmo no escuro, vi que ele
estava com o rosto pálido e com o revólver na mão. Ele se afastou para o lado e eu
dei uma olhada.
“Velas ardiam dentro da casa. Centenas delas, por toda parte, inclusive no
chão. Espalhados entre as velas, estavam dezenas de corpos nus, todos colocados
em várias poses. Sentados à mesa de jantar. Apoiados na bancada da cozinha. Em
pé, encostados nas paredes. As bocas haviam sido pintadas com batom vermelho e
os olhos de vidro brilhavam à luz das velas.
“‘Que diabos é isso?!’, exclamei, me afastando da janela.
“‘Tá sentindo o cheiro?’, meu parceiro sussurrou. ‘Tá sentindo o cheiro de
sangue?’
“Saquei a arma do coldre. ‘Você chama o reforço?’
“‘Chamo’, ele disse.’
“Naquele momento, um som saiu de dentro da casa. Alguém chorando. Meu
parceiro não titubeou. Arrombou a porta com um chute. ‘Polícia!’, gritou,
apontando a arma. ‘Sr. McGuire! O senhor está em casa?!’
“Entramos na cozinha e ficamos petrificados. O fedor de sangue fresco era
nauseante. Sombras tremeluziam à nossa volta. De perto, só precisamos de um
segundo para perceber que os corpos não eram humanos, eram manequins. Mas
manequins não sangram. Então… de onde estava vindo o cheiro? Havia dezenas
daquelas coisas espalhadas pela casa. Quatro sentados no sofá da sala de estar, dois
com as pernas cruzadas. Mais três agrupados como se estivessem conversando perto
da tevê. Pus a cabeça dentro do banheiro do andar de baixo e tinha um maldito
manequim sentado na privada, outro se arrumando na frente do espelho. Fomos
para a sala de estar e, à nossa volta, eles nos observavam com aqueles olhos mortos,
brilhantes, e havia mais outros ao longo da escada que levava ao andar de cima. Os
quartos estavam cheios deles. Um casal de conchinha na cama em um quarto, meia
dúzia fazendo uma orgia em outro, um manequim tamanho infantil sozinho no
chuveiro com a água ligada, mais dois sentados no chão, de pernas cruzadas, no
final do corredor. E, por toda parte, velas ardendo em qualquer superfície
disponível.
“Quando voltamos para o andar de baixo, nossos reforços haviam chegado e
estavam tão atônitos quanto nós. Seguimos todos em fila indiana até o porão, onde
o cheiro de sangue e de podre estava ainda mais forte. E lá, no meio de todas as
velas acesas, da máquina de lavar e da secadora, daquelas fileiras de caixas de
papelão empilhadas contra a parede, de pelo menos vinte bicicletas velhas
emaranhadas e de mais ou menos duas dúzias de manequins, encontramos os
cadáveres de três mulheres, todas na faixa dos 40 anos. Duas eram prostitutas e a
terceira era a funcionária de uma creche cujo desaparecimento fora registrado havia
três dias. Estavam nuas, estripadas, penduradas no teto. As cabeças tinham sido
raspadas e os cabelos substituídos por perucas vagabundas. No canto oposto, atrás
de uma pilha de lixo, encontramos o Thomas. Ele também estava nu, encolhido em
posição fetal. Soluçando e chorando. Cada milímetro do corpo estava lambuzado de
sangue das vítimas. Um quarto cadáver, a ex-mulher do sujeito, foi descoberto mais
tarde no porta-malas do carro. Também estava lá havia alguns dias.”
“Misericórdia!”, exclamei, enquanto me subia uma vontade de vomitar.
“Quando foi isso?”
Ele respondeu imediatamente.
“Em 9 de outubro de 1976.”
Não falamos mais durante o resto do caminho até a delegacia.
Mais tarde naquela noite, pouco antes de subir para escrever um pouco, fui até a
garagem, pressionei o botão de abertura automática da porta e saí para levar o lixo
até o meio-fio.
Eu estava na metade do caminho quando me dei conta de como estava escuro.
Dando uma olhada rápida na varanda da frente, percebi que a luz externa estava
apagada — ou meu pai havia esquecido de acender depois do jantar (o que quase
nunca acontecia) ou a lâmpada tinha queimado. A lua e as estrelas no céu,
escondidas atrás de uma densa cobertura de nuvens, ofereciam pouca ajuda.
A Hanson Road estava silenciosa e imóvel, de maneira insólita, e o som dos meus
passos… assustadoramente alto. Quando coloquei as duas latas de lixo no meio-fio
para serem recolhidas de manhã cedo, senti que minha nuca se encontrava banhada
de suor frio e eu podia ouvir meu coração batendo. Meu olhar corria de um lado
para outro em meio às sombras.
Então saquei, não sei como nem com tamanha certeza, mas foi o que
aconteceu: o Bicho-Papão estava se escondendo ali perto, me observando.
Em vez de me virar e fugir em direção à porta aberta da garagem — E se ele
entrou escondido enquanto eu estava de costas e agora estivesse me esperando na
escuridão? —, fiquei lá, petrificado de medo, na extremidade da entrada da
garagem, minha mão direita ainda segurando a alça de uma das latas de lixo.
De repente, minha mente retrocedeu para uma história que eu tinha ouvido —
uma história sobre um bom homem, não muito mais novo do que eu naquele
momento, mas consideravelmente mais corajoso.
Eu havia passado o verão antes do meu último ano do ensino médio fazendo
trabalho braçal no Arsenal de Edgewood. O horário era péssimo, mas o local não
era longe de casa e a remuneração era boa. Eu fazia um pouco de tudo — cortava
grama e aparava a vegetação, consertava equipamento quebrado no parque,
asfaltava pequenos buracos… Mas minha tarefa mais memorável naquele verão foi
fragmentar documentos do governo.
Toda manhã, um caminhão encostava e entregava vários paletes com caixas de
papelão contendo milhares de folhas de papel que precisavam ser destruídas. Meu
supervisor — um cavalheiro afro-americano de fala mansa chamado Lonny — e eu
descarregávamos as caixas, empilhando-as na ponta de uma fragmentadora
industrial que parecia muito um triturador de madeira com uma longa porém
estreita esteira que ia dar nos seus famintos dentes de metal.
Depois nos alternávamos alimentando a máquina, um de nós cuidadosamente
espaçando pilhas de documentos em cima da esteira para que os dentes
trituradores não emperrassem e o outro tirando emaranhados de tiras de papel da
caixa de coleta e jogando em caçambas ali perto. O trabalho em si era demorado e
chato. De tempos em tempos, nos deparávamos com algo interessante — as
fotografias em preto e branco de veículos destruídos após várias rodadas de teste
de armas de longo alcance eram as minhas favoritas —, mas, na maior parte
do tempo, era uma rotina maçante e monótona.
Apesar do tédio, no início, Lonny e eu não tínhamos muito a dizer um para
o outro. Éramos ambos naturalmente calados e, na superfície, não podíamos ser
mais diferentes. Eu era um garoto branco e magricela de 17 anos que morava
num subúrbio e estava se preparando para se formar na primavera e partir para
a faculdade. Ele era um pai de família com 30 e poucos anos, musculoso e cheio
de dreadlocks, de uma cidadezinha interiorana no oeste do Texas.
Entretando, certa tarde, tudo isso mudou. Lonny percebeu qual livro eu estava
lendo na hora do almoço. Não me lembro mais exatamente do título, mas o assunto
era a Guerra do Vietnã.
“Você está lendo isso para a escola?”, ele perguntou com aquele seu sotaque
carregado.
“Não, por minha conta mesmo. Leio muitos livros de história.”
“Está aprendendo alguma coisa interessante?”
“Um monte”, eu disse. “Principalmente que aquilo lá foi uma carnificina.
Ainda não acredito que mandaram garotos como eu para lutar naquela selva.
Nem imagino como deve ter sido.”
Então ele olhou para mim, de verdade — depois, quando pensei sobre aquela
conversa, ficou claro que, naquele momento, ele estava decidindo se deveria ou não
contar para mim a sua história.
“Eu estive lá”, Lonny finalmente disse, os olhos baixos.
E era tudo o que precisávamos.
Nas semanas seguintes, ele compartilhou sua história comigo e eu o cravejei
de perguntas. Aprendi sobre armas (por que os soldados americanos preferiam os
AK-47 do inimigo aos próprios fuzis M16), tiroteios (de trinta segundos a cinco
minutos de inferno na terra), racismo em tempos de guerra (como os soldados afro-
americanos quase sempre iam na frente das patrulhas e como sempre acabavam
carregando a pesada metralhadora M60, apelidada de Porco), mas, sobretudo,
aprendi sobre os amigos que ele tinha feito e perdido durante o período de serviço
(ele os chamava de “irmãos”). Foi uma experiência poderosa e emocionante —
para nós dois —, e logo descobri que ele não a havia compartilhado com muitas
pessoas. Senti-me honrado.
De todas as histórias que Lonny me contou naquele verão, uma em especial
sempre se destacou. Ele estava em missão havia menos de uma semana quando
recebeu a ordem de ir para a vanguarda da formação pela primeira vez. Era
totalmente inexperiente e não tinha a menor ideia do que estava fazendo, mas isso
não importava. Era a vez dele. Era um patrulhamento noturno e outra companhia
havia feito contato com o inimigo naquela mesma área poucos dias antes. Depois
de algumas horas, enquanto subia uma trilha íngreme, Lonny levantou o punho,
sinalizando para os homens atrás dele que parassem. Não viu nada à espreita na
selva escura à frente, mas sentiu — com todas as fibras do seu ser, ele sentiu o
inimigo escondido ali perto, observando-os naquele exato momento. A palavra que
ele usou para descrever aquela sensação foi “cabulosa” — depois disse que viria a
ter a mesma sensação várias vezes durante seu tempo no Vietnã, uma espécie de
instinto de sobrevivência — e não fazia ideia de onde ela vinha. Disse que,
agachado naquela trilha escura, sentiu os pelos dos antebraços se eriçarem, o suor
que ensopava sua farda se tornando instantaneamente gelado e um gosto ruim
surgindo na sua boca. O gosto do medo. Trinta segundos mais tarde, ele estava no
meio do seu primeiro tiroteio…
Maddy
“Em meados de agosto, a maioria dos moradores de Edgewood estava
em um estado de total histeria.”
6
Mais para o final daquela semana, parei no 7-Eleven para um lanche rápido
quando voltava da Biblioteca para casa. Os cachorros-quentes com chili estavam
em oferta — dois por US$ 1,99, incluindo um refrigerante pequeno de máquina.
Almoço econômico, como meu pai costuma dizer.
Na calçada em frente, cruzei com Parker Sanders, um velho amigo que estava
dois anos abaixo de mim no colégio. Ele estava saindo com um Big Gulp de refri
em uma mão e um saquinho de M&M’s na outra.
“Alimentação saudável, pelo que estou vendo.”
“Fazer o quê”, ele disse. “Eu soube que vocês voltaram a jogar basquete
na escola.”
“Aparece lá.”
“Diz pro Pruitt me chamar da próxima vez que vocês forem jogar. Ele ainda
tem meu telefone”, e, acenando, entrou no carro.
Pode esperar sentado, pensei ironicamente, observando-o sair com o carro.
Jeff Pruitt não suportava o cara.
Com a barriga roncando, virei-me para entrar na loja e dei um encontrão num
homem que estava segurando a porta para um cliente de saída.
“Desculpe”, pedi, recuando para abrir espaço. “Acabei me distraindo e…”
“Tranquilo, tudo bem”, ele disse, continuando rumo ao estacionamento.
Minha boca ficou imediatamente seca. Fiquei lá parado, petrificado, com medo
de me virar e olhar. Eu só havia ouvido a voz do homem misterioso ao telefone uma
vez e, ainda por cima, ele só havia dito quatro palavras — Que que foi rápido? —,
mas tinha quase certeza de que acabara de ouvi-la pela segunda vez.
Finalmente vencendo minha paralisia, entrei na loja e esperei até ouvir a
pesada porta de vidro se fechar atrás de mim, depois arrisquei-me a olhar por cima
do ombro. O homem parecia ter uns 35 anos, era alto e corpulento, cabelos escuros
e curtos escondidos embaixo de um boné de beisebol desbotado do Atlanta Braves.
Estava sentado atrás do volante de um Fusca amarelo e havia colocado óculos
escuros. Não dava para saber se estava olhando para mim ou não. Um instante
depois, deu ré e foi embora.
Eu deveria segui-lo. Ver onde ele mora.
Mas minhas pernas não se mexiam.
Meu apetite sumiu, comprei um Snickers e uma caixinha de leite achocolatado
e fui para casa.
7
Em meados de agosto, a maioria dos moradores de Edgewood estava em um
estado de total histeria. As vendas de armas voltaram a disparar e, após uma trégua
em julho, havia novamente uma longa lista de espera para a instalação de sistemas
de segurança doméstica. O Hair Cuttery no shopping e os salões de beleza locais só
tinham horários disponíveis para final de setembro — a mídia fez questão de deixar
bem claro que todas as três vítimas do Bicho-Papão tinham longas e sedosas
madeixas, o que fez mulheres de todas as idades correrem para cortar os cabelos
bem curtos. Quase da noite para o dia, pelo menos dentro dos aconchegantes limites
do condado de Harford, os cortes à Joana d’Arc e Dorothy Hamill dos anos 70
voltaram a ser uma febre.
E tinha também aquele grupo de pessoas — cujo número parecia aumentar a
cada dia — que dizia que armas e sistemas de segurança não ajudavam em nada
quando se tratava de deter o Bicho-Papão. Citando a natureza horrenda dos
assassinatos, além da desconcertante falta de indícios, um pequeno, mas barulhento,
grupo de moradores estava convencido de que o assassino em série não era um ser
humano, mas algum tipo de criatura sobrenatural.
“Senão, como você explicaria tudo isso?”, um cavalheiro de olhos arregalados
disse ao vivo para um repórter do Channel 2. “Essas garotas estão sendo raptadas
bem debaixo do nariz dos pais, na segurança de suas casas e bairros, mutiladas e
assassinadas brutalmente e depois devolvidas para que todos vejam. Nenhum ser
humano é capaz de fazer esses truques. Isso não é coisa deste mundo.”
Na tarde seguinte, uma mulher usando um roupão atoalhado cor de rosa e
bobes nos cabelos — “que coisa mais ridícula”, minha mãe comentou ao meu lado
— disse a uma equipe do noticiário do Channel 13 que algo havia ativado o
holofote do detector de movimento no jardim dos fundos da sua casa na noite
anterior. Quando ela correu para a janela do quarto no andar de cima, viu um vulto
escuro atravessando o gramado. A mulher afirmava que o vulto tinha pelo menos
dois metros e dez e um único chifre pontudo que saía do centro da sua testa
inclinada e, quando chegou à grade que cercava o jardim, simplesmente alçou voo e
desapareceu no céu noturno. O marido dela, é claro, estava dormindo na hora e não
viu nada.
Ao assistir àquelas histórias sensacionalistas — e muitas outras do tipo —
sendo transmitidas diariamente na televisão, eu não podia deixar de pensar: São
iguaizinhas a cenas de um filme de terror… só que, desta vez, são absolutamente
reais.
Na manhã seguinte, Carly ligou e me pediu para ir até o jornal. Um vídeo não
exibido de um noticiário do Channel 11 andava circulando por lá e ela queria que eu
desse uma olhada. Quando cheguei, ela me acompanhou até a área de convivência,
onde havia um televisor e um videocassete em cima de uma escrivaninha de
madeira que já tinha conhecido dias melhores. A sala cheirava a café, perfume e
cigarro. Carly apertou play e um rosto conhecido surgiu na tela: Blanche Waters,
uma senhora afro-americana que morava na esquina da rua dos meus pais. Dos 12
até ir para a faculdade, cortei grama e limpei a neve da entrada da garagem dela.
Apoiada numa bengala, parecia uma criança ao lado do repórter.
“Meu avô costumava contar a história de Henry Lee Jones, um escravo
fugitivo que havia feito um pacto com o diabo. Em troca da ajuda para que Henry e
a família fugissem para o norte, o diabo exigiu que Henry matasse a filha de 10
anos do dono da fazenda, uma menina de índole meiga que nunca havia feito mal a
ninguém.”
A sra. Waters espirrou e continuou por muito tempo a assoar ruidosamente o
nariz num lenço embolado. Quando terminou, inspecionou cuidadosamente o lenço
e, em seguida, enfiou-o de volta no bolso da blusa sem cerimônia. Segurando o
microfone, o repórter olhou para a câmera e ergueu suas bastas sobrancelhas com ar
de quem estava se divertindo. A velha continuou:
“Henry Lee cumpriu sua parte do pacto naquela mesma noite, estrangulando a
menina na caminha dela, mas acabou descobrindo que o diabo o tinha ludibriado.
Ora, ele manteve a primeira parte da promessa; ajudou Henry e a família a fugir
sãos e salvos. Mas, depois, passou a perna nele, amaldiçoando Henry Lee com a
vida eterna e uma sede insaciável por garotas brancas e inocentes. Pouco depois,
a mulher de Henry pegou os dois filhos e fugiu no meio da noite, e nunca mais
ninguém teve notícia deles. Reza a lenda que Henry Lee Jones ainda anda por aí,
possuído pela ira odiosa do satanás, vagando pelos campos e estrangulando garotas.
Já faz tempo que meu avô está sete palmos embaixo da terra, que Deus o tenha e
proteja sua alma, mas eu acredito que ele estava dizendo a verdade”, no que ela se
vira e olha diretamente para a câmera. “Henry Lee Jones veio para Edgewood e está
com fome. Senão, como é que você explica três garotas brancas mortas com tantas
negras e hispânicas morando aqui?”
Àquela altura, a gravação terminava.
“Misericórdia”, falei, olhando para Carly.
“Já pensou se eles tivessem colocado isso no noticiário da noite?”
Balancei a cabeça.
“Na verdade, estou surpreso que não tenham feito.”
“Eu também.”
“Ainda bem que meus pais nunca vão ver isso. Eles adoram a sra. Waters.
Poxa, eu também. Eu conheço ela desde pequeno”, suspirei. “Ou melhor, achava
que conhecia.”
Carly pegou o controle remoto e desligou a tevê.
“Acho que logo, logo vamos descobrir que não conhecemos muito esta
cidade.”
O Bicho-Papão
“Se não era o Bicho-Papão na sua janela, então quem era?”
Eu era a última no vestiário depois do treino porque fiquei até mais tarde.
Geralmente pego carona com uma amiga ou com um dos meus pais para
ir pra casa, mas minhas colegas de time já tinham ido embora fazia
tempo e meus pais estavam num jantar de trabalho. Pus a blusa do
agasalho, meu relógio e meu colar e peguei minha mochila no armário.
Foi aí que percebi que já estava supertarde. Saí da escola pela porta
lateral do ginásio. Ao sair, vi o sr. Harris e disse que nos veríamos na
segunda-feira. Eu sabia que ia chover, afinal dava para ouvir trovões,
mas, mesmo depois de olhar para o relógio, fiquei surpresa com a
escuridão. Lá fora, parecia uma cidade-fantasma. O estacionamento
estava praticamente vazio e não vi mais ninguém quando atravessei a
Willoughby Beach Road. Mais à frente, um casal de idosos estava
entrando no carro na frente da igreja, mas só isso. Quando cheguei à
Sequoia Road, estava trovejando e relampejando pra valer. Um Jeep
branco virou a esquina mais à frente e desacelerou; por um instante,
achei que fosse minha amiga Lori Anderson parando para me dar uma
carona. Mas não era ela e a pessoa simplesmente seguiu em frente. Olhei
por cima do ombro e vi o Jeep se afastando, foi então que tive uma
sensação estranha, como se alguém estivesse me seguindo. Então
comecei a ouvir coisas. Passos atrás de mim na calçada. O galho de uma
árvore se partindo como se tivesse sido pisado. Mas, toda vez que eu
olhava à minha volta, não havia ninguém. A essa altura, achei que só
estava sendo paranoica e me senti meio boba, mas isso não me impediu
de andar um pouco mais depressa. (Agora há pouco, o detetive altão —
não me lembro o nome dele — me perguntou se eu tinha sentido algo
estranho ou incomum nos últimos meses e eu disse que não. Mas, agora,
lembrei que não é verdade. Outro dia, pouco antes do início das aulas,
eu estava praticando hóquei com umas amigas na escola e tive a mesma
sensação estranha de quando eu estava andando de volta para casa.
Como se alguém estivesse me seguindo. Mas foi no meio de um dia
ensolarado, então não fiquei com medo nem senti perigo algum.
Na verdade, eu tinha me esquecido disso até agora.) Enfim, àquela
altura, eu havia chegado ao trecho da Sequoia sem casas nem postes de
iluminação, onde só tem o que restou daquela velha oficina e todas
aquelas árvores e arbustos grandes. A ventania estava começando a
aumentar e a temperatura estava caindo depressa. Achei que tivesse
ouvido passos novamente, então olhei por cima do ombro mais uma vez.
A mesma coisa. Ninguém. Eu estava começando a me sentir uma idiota.
Estava a um quarteirão e meio de casa e disse a mim mesma que não ia
mais olhar. Seja lá o que acontecesse. Eu não era uma garotinha de 10
anos. Mas aí tive certeza de ter ouvido algo novamente. Passos. Logo
atrás de mim. Mais alto daquela vez. Forcei-me a não olhar, mas resolvi
acelerar ainda mais o passo. E o barulho sumiu. Até soltei uma risadinha
pensando que havia vencido, depois, acho que por hábito, dei uma
olhada por cima do ombro — e lá estava ele. Um homem. Muito alto.
Muito grande. Calças escuras e camisa de manga comprida escura. E
estava usando uma máscara. Parecia a máscara do filme Assassino
Invisível. Minhas amigas e eu alugamos esse filme algumas vezes. Tipo
um saco de pano com dois buracos para os olhos. Antes que eu pudesse
correr, gritar ou fazer qualquer outra coisa, ele me deu uma gravata e me
suspendeu. Deixei minha mochila cair e, logo em seguida, estávamos
andando de costas rumo às árvores. Ele era muito forte. Comecei a gritar
e a tentar acertar socos e chutes, mas era difícil alcançá-lo porque ele
estava atrás de mim. Ele tampou minha boca para me fazer parar de
gritar. Estava usando algum tipo de luva, mas não consegui ver. A certa
altura, mordi a mão dele com muita força e lembro que a luva tinha gosto
de borracha, mas ele nem pareceu notar. Quer dizer, deve ter doído, mas
ele não deu nem um pio. O braço em volta do meu pescoço começou a me
apertar e senti que logo ia desmaiar. Foi então que me lembrei do spray
de pimenta que minha mãe tinha me dado. Não é muito maior do que um
tubinho de protetor labial e eu havia colocado no bolso do agasalho
quando estava no vestiário. Consegui pegar o spray, estiquei o braço
para trás e comecei a borrifar — pelo que pareceu muito tempo. No
início, achei que não estivesse funcionando ou que eu não estivesse
acertando o rosto. Ele não diminuiu o ritmo nem me soltou e nem gritou.
Não fez nada além de continuar a me arrastar para mais longe da minha
casa. Lembro que pensei: VOU MORRER. Aí, de repente, o braço que
estava agarrando meu pescoço soltou e eu caí no chão, olhando para ele
em cima de mim, e o homem estava balançando a cabeça, como um
cachorro que acabou de nadar, depois ele arrancou a máscara e começou
a esfregar os olhos. Então, de repente, simplesmente saiu correndo. Só vi
a cara dele por um segundo, e de lado, mas percebi que ele tinha cabelos
escuros e curtos e um queixo bem pronunciado. Eu me levantei e corri
para a casa mais próxima. Quando eu estava esmurrando a porta,
percebi que o homem não havia dito nem uma palavra, mesmo depois de
eu ter usado o spray na cara dele. Eu ouvi ele arfando, sem ar, mas só
isso. Em nenhum momento ele pronunciou uma palavra. Quer dizer, como
isso é possível? Tenho quase certeza de que é tudo que eu consigo
lembrar agora.
3
Quando a notícia foi divulgada na manhã seguinte, teve a força de um tsunami.
Embora um porta-voz da polícia tivesse logo advertido que o ataque a Annie
Riggs ainda precisava ser oficialmente ligado aos homicídios das três outras garotas
de Edgewood, o público não acreditou. Annie Riggs era jovem, bonita e tinha
longos e ondulados cabelos de um castanho brilhante. Para a maioria das pessoas,
era o suficiente.
Na hora do almoço, um retrato falado do agressor — com uma foto da máscara
que ele havia usado — tinha sido transmitido pelas redes locais, além da CNN. Em
poucas horas, as ligações para o 190 e o disque-denúncia não paravam mais. Um
senhorzinho reconheceu a pessoa no retrato falado: o genro. Uma professora de
música da escola primária tinha certeza de que era seu ginecologista. Outra mulher
afirmou com certeza que só podia ser seu ex-marido. E assim por diante.
A máscara deixada para trás era feita de aniagem rústica. Fendas para os olhos
e a boca haviam sido cortadas com tesouras afiadas ou alguma espécie de estilete,
e pedaços curtos de barbante haviam sido amarrados atrás para mantê-la no lugar. O
Laboratório de Criminalística do Condado de Harford a estava submetendo a uma
série de testes.
Eu não podia ter certeza absoluta, mas achava que existia uma boa
possibilidade de que fosse o que eu e Jimmy Cavannaugh havíamos visto flutuando
na nossa direção na escuridão naquela noite perto da Meyers House. À tarde, em
casa, na Carolina do Sul, Jimmy deu uma boa olhada na máscara pela CNN e me
ligou para dizer que concordava comigo.
Annie Riggs foi interrogada por horas e examinada dos pés à cabeça: rasparam
as unhas; passaram um cotonete na boca; vasculharam o rosto, cabelos e roupas em
busca de indícios. Pela primeira vez, a polícia tinha uma testemunha ocular e a
examinou por todos os ângulos. Depois de revisar o depoimento escrito por Annie,
uma equipe de detetives a encorajou a tentar lembrar de qualquer coisa que ela
pudesse ter deixado passar, enfatizando que nenhuma observação, por mínima que
fosse, era irrelevante para eles. Foi aí que ela se lembrou do cheiro estranho do
agressor. Disse que era diferente de todos os cheiros que ela havia sentido até então,
mas teve dificuldade para ser mais específica em seguida.
“Não era cheiro de gente ou de suor”, ela explicou. “Era algo diferente, algo…
indescritível.”
Pressionada, Annie disse que era um cheiro orgânico, quase terroso, que vinha
do próprio homem; ela achava que não vinha das roupas, da máscara ou das luvas.
E essa foi a melhor explicação que ela foi capaz de dar.
Enquanto isso, cada centímetro do lote de quatro mil metros quadrados de
moitas e mato alto na Sequoia Drive foi implacavelmente vasculhado, bem como os
jardins e ruas adjacentes. Nos fundos do lote, atrás dos escombros de uma velha
garagem, uma trilha estreita criada por fileiras paralelas de arbustos da altura de um
homem ia dar na Holly Avenue, onde a polícia acreditava que o homem
provavelmente havia estacionado seu veículo. A Willoughby Beach Road, uma rota
de fuga rápida, ficava a apenas dois quarteirões dali.
O detetive Harper e a maioria dos membros da força-tarefa ficaram otimistas e
com energia renovada graças à corajosa reação de Annie Riggs. Após meses sem
resultados concretos, eles tinham não somente uma testemunha, mas também,
finalmente, uma prova concreta. Entretanto, outros policiais, aqueles cujos
empregos dependiam da volubilidade dos eleitores, estavam menos entusiasmados.
Milhares de dólares e centenas de horas de trabalho haviam sido gastos para pegar o
monstro e o maior avanço em suas investigações se deu graças a uma jogadora de
hóquei sobre grama de um metro e sessenta e cinco de altura e cinquenta quilos de
peso que havia tirado seu aparelho ortodôntico havia quatro meses.
Por falar em Annie Riggs, ela virou uma celebridade nacional da noite para o
dia. A mídia ainda não havia decidido se a coroaria como “A Garota que Venceu o
Bicho-Papão” ou “A Única Sobrevivente”, então, àquela altura, usavam as duas
alcunhas. Um jornal de outro Estado publicou uma foto de Annie no primeiro ano
do ensino médio embaixo da seguinte manchete em letras garrafais: A BELA E A
FERA. Mais perto de casa, muitos dos amigos e colegas de escola a apelidaram de
“Ripley”, a destemida personagem de Sigourney Weaver nos filmes Alien. Muitos
desses mesmos amigos e colegas apareceram ao vivo na televisão, contando
histórias pessoais sobre Annie. Àquela altura, os pais da adolescente já haviam sido
soterrados por pedidos de mais de uma centena de veículos de comunicação, dentre
os quais CNN, Associated Press, The New York Times, Newsweek, People,
Entertainment Tonight e Tonight Show. Recusaram todos, afirmando que a filha
precisava descansar e se recuperar do susto.
Ao cair da noite, o número já constante de ligações para o 190 sofreu um claro
aumento. Um homem que se comportava de maneira suspeita na Bayberry Drive foi
denunciado. Vários moradores ligaram a respeito de uma picape verde circulando
devagar demais na Perry Avenue. Os cidadãos avistavam o homem mascarado atrás
de cada árvore ou poste, à espreita em cada canto escuro de qualquer jardim. Tiros
ecoavam pela cidade enquanto os proprietários das casas miravam em sombras. Foi
um milagre ninguém ter morrido.
Fiquei sentado com meu pai na varanda da nossa casa por quase uma hora,
observando viaturas da polícia indo de um lado para outro da Hanson Road com
seus holofotes iluminando os quintais e os espaços escuros atrás dos carros
estacionados. Parei de contar quando cheguei a trinta. Aquela sensação desconexa
de estar assistindo a um filme voltou de repente e eu a compartilhei com meu pai,
explicando que havia sentido algo parecido na noite do patrulhamento com o
detetive Harper. Meu pai discordou respeitosamente. Disse que parecia que
estávamos participando de um filme. Fui obrigado a admitir que ele tinha razão.
Mais cedo, no jantar, até minha querida mãe entrou na dança. Ela teimava que
o retrato falado da polícia era a cara do filho de 30 anos da cabeleireira dela. Ele se
chamava Vince e já tinha tido problemas com a lei. De que tipo, ela não sabia, mas
o havia visto no salão várias vezes e tinha quase certeza de que era a mesma pessoa.
O que ela não lembrava, porém, era que eu também havia conhecido Vince e, pelo
que me lembrava, o sujeito não tinha nada a ver com o homem no desenho. Por
sorte e para grande alívio meu e do meu pai, conseguimos dissuadi-la de ligar para
o disque-denúncia e comunicar suas suspeitas.
Logo após o jantar, o telefone tocou. No início, não dei importância. Desde a
noite em que meus pais tinham ido visitar Carlos e Prissy Vargas — a noite em que
o Bicho-Papão finalmente falou comigo — não aconteceram mais trotes. Mas,
então, vi a expressão que tomou conta do rosto da minha mãe após ela ter levado o
fone até o ouvido e dito “Alô” e logo percebi que havia algo errado. Ela
imediatamente bateu com o fone no gancho. Meu pai e eu ficamos parados, olhando
para ela, sem dizer uma palavra. Ela nos encarou com fúria nos olhos.
“O seu passador de trotes deve estar de muito bom humor hoje”, ela disse. “Só
ficou rindo. Vai entender…”
Antes que pudéssemos responder, ela subiu a escada marchando, deixando os
pratos do jantar para que nós dois lavássemos.
Minha mãe nunca aprendeu a dirigir. Tendo crescido em uma família rica em
Quito, no Equador — quer dizer, rica de acordo com os padrões locais da época; a
diferença em relação aos padrões do nosso país é enorme —, ela era conduzida até a
escola e aonde quer que precisasse ir pelo motorista da família. Depois, quando
estava na casa dos 20 anos, após ter conhecido e se casado com meu pai, em suas
próprias palavras, “nunca consegui fazer o exame de direção e tirar a carteira de
motorista”. Quando eu e meus irmãos éramos mais jovens, sua incapacidade de
dirigir legalmente era motivo de muita gozação, mas ela parecia não se importar.
Levava na esportiva e se vingava de nós se recusando a entrar no carro com outra
pessoa ao volante que não fosse meu pai — exceto em circunstâncias
desesperadoras, motivo pelo qual ela me permitiu levá-la ao Santoni’s naquela tarde
de domingo. Meu pai estava ocupado ajudando um vizinho, ela precisava de mais
ingredientes para o jantar e, obviamente, não me julgava capaz de escolhê-los
sozinho.
Percorremos os corredores do mercado para a frente e para trás, um do lado do
outro, enchendo a cestinha que eu carregava com as marcas que ela indicava nas
prateleiras. Cumprimentando, entre uma parada e outra, praticamente toda a cidade
de Edgewood. Entre a igreja, as atividades do bairro e as noites mensais de bingo no
centro comunitário, minha mãe conhecia quase todo mundo. Quando saímos do
mercado trinta e cinco minutos mais tarde, sabíamos quem na cidade estava doente,
quem estava esperando neném, quem iria para a faculdade no outono, quem acabara
de ser promovido no trabalho e quem fora demitido pela segunda vez em dois
meses. Eu estava exausto.
Enquanto atravessávamos o estacionamento, notei alguém em pé na calçada na
frente do banco nos espiando atrás de um poste de luz. Um homem alto, de boné de
beisebol e óculos escuros. Quando percebeu que eu o estava encarando, ele
rapidamente se virou e desapareceu dobrando a esquina. Eu não tinha certeza
absoluta, mas quase: o homem que estava nos espiando era o detetive Harper.
Ao sairmos do estacionamento, passei pelo banco e olhei mais de perto. O
detetive — se de fato era ele — havia sumido. Por que diabos ele estaria me
observando? Ou será que ele estava vigiando o mercado e o fato de eu ter
aparecido havia sido uma mera coincidência?
Naquela noite, deitado na cama, assisti ao noticiário das onze. A locutora
introduziu a matéria de abertura e, obviamente, estava relacionada à heroína local
Annie Riggs e à caçada em curso ao Bicho-Papão. Quando o rosto desconsolado do
detetive Harper apareceu e sua profunda voz de barítono tomou conta do meu
quarto, peguei o controle remoto, desliguei a tevê e fui dormir.
Carly morava com os pais do outro lado de Edgewood Meadows, mais ou menos
na metade do caminho entre a Biblioteca e o Colégio Edgewood. Levei menos de
dez minutos para me vestir, achar a chave do carro e ir correndo para a casa dela.
Quando estacionei, ela estava sentada na varanda, o queixo apoiado nas mãos
entrelaçadas. Os olhos estavam inchados e avermelhados.
“O que foi?!”, perguntei assim que saltei do carro.
Ela se levantou com dificuldade, parecendo tão exausta e fragilizada que senti
uma repentina vontade de abraçá-la.
“Ontem à noite, logo após ter apagado as luzes e ido deitar, escutei algo na
minha janela novamente”, contou, olhando em volta como se os vizinhos tivessem
saído de casa para ouvir às escondidas. Aparentemente contente por ninguém estar
bisbilhotando, ela prosseguiu. “Eu estava com tanto medo que nem consegui me
levantar e ir verificar dessa vez. O quarto estava escuro, a janela estava escura, e,
por um instante, tive certeza de que, embaixo da minha cama, havia alguém
escondido, pronto para me agarrar.”
Ela começou a tossir, cobrindo a boca com a mão trêmula.
“Calma”, pedi.
“Alguns minutos depois, escutei o mesmo barulho, como se alguém estivesse
arranhando algo, tentando arrancar a tela, e eu sabia que não era minha imaginação.
Puxei o cobertor até a altura dos olhos e fiquei ali deitada. Eu não conseguia me
mexer; não conseguia abrir a boca para chamar meus pais; não conseguia fazer
nada. Estava totalmente paralisada. Depois de um tempo, o barulho sumiu…
precisei de umas três ou quatro horas para finalmente fechar os olhos e dormir.
Olhei para a lateral da casa.
“Por que você não espera aqui e eu vou dar uma olhada na sua janela?”
Balançando a cabeça, ela disse:
“Já fiz isso. Não encontrei nada.”
“Tudo bem. Então por que não vamos comer alguma coisa e depois te trago de
volta e você tenta botar o sono em dia?”
“Escuta… não encontrei nada na janela, mas, um pouco depois, quando saí pra
trabalhar, isto aqui estava esperando por mim.”
Carly se afastou para o lado, permitindo que eu visse o que estava atrás dela.
No meio da varanda, a poucos centímetros do capacho com MARYLAND É PARA OS
CARANGUEJOS escrito, alguém havia desenhado com giz azul uma carinha triste.
Bem embaixo, havia três números: 666.
“O que nós vamos fazer?!”, ela se exasperou, começando a chorar.
“Acho que está na hora de ligarmos para o detetive Harper”, respondi sem tirar
os olhos do desenho.
9
Kara, ao contrário, não subestimou os telefonemas, especialmente em vista do que
acabara de acontecer na casa de Carly. O sol estava se pondo e nós estávamos
sentados na grama ainda morna embaixo do salgueiro-chorão, observando vaga-
lumes dançando no jardim, quando ela voltou a tocar no assunto.
“Não entendo por que eles simplesmente não grampeiam o seu telefone”,
ela reclamou. “Isso está acontecendo desde que você voltou para casa. Não é uma
coincidência. Caramba, o sujeito até disse o seu nome.”
“Mas foi tudo o que ele fez. Ele não me ameaçou. Não ameaçou meus pais.”
“E você não acha que passar esse tipo de trote não é intimidação?”
Encolhi os ombros sem muito ânimo. Eu estava cansado, com dor de cabeça e
ansioso para mudar de assunto.
“E a mensagem que ele deixou na porta da casa da Carly não é uma forma de
ameaça?”
“Entendo o que está dizendo. Sério. Só não sei direito o que você quer que eu
faça a respeito.”
“Para começo de conversa, você pode dizer para o detetive Harper levantar a
bunda da cadeira e fazer o trabalho dele.”
“Já tentei fazer isso”, eu disse, olhando para ela na escuridão. “Você acha
mesmo que é o Bicho-Papão que está ligando lá para casa e não alguém querendo
tirar sarro da minha cara?”
“Acho”, ela disse, sem hesitar. “Pra mim, ele tá querendo te desestabilizar.”
“Por que ele faria isso? E por que logo comigo?”
Ela cruzou as pernas e se virou para mim, segurando minha mão.
“Por quê? Porque ele é um doente que gosta de infernizar e machucar
as pessoas. Por que você? Não sei… talvez ele saiba que você é um escritor
de histórias de terror. Ou talvez te conheça pessoalmente.”
“Nem fala uma coisa dessas.”
“Se ele te escolheu é porque algum motivo ele tem, Rich”, ela disse, apertando
minha mão. “E agora a Carly. Estou começando a ficar apavorada.”
“Não fica assim”, pedi. “Vai ficar tudo bem.”
Eu não acreditava totalmente naquilo, mas não sabia o que mais podia dizer.
10
Alguns dias depois, atendi a porta e encontrei uma sorridente Carly Albright em
pé na minha varanda. Na verdade, ela não estava exatamente em pé — estava
saltitando, ficando na ponta de cada pé alternadamente, como uma garotinha prestes
a fazer xixi nas calças.
“Não foi ele!”, exclamou.
“Ele quem?”
“O homem na minha casa… o homem que desenhou na minha varanda… não
foi o Bicho-Papão!”
Saí para a varanda.
“Do que você tá falando?”
“O detetive Harper acabou de sair da minha casa. Disse que um dos vizinhos
da rua de trás tinha imagens da câmera de segurança, de um homem atravessando o
jardim deles na noite em que tudo aconteceu. A dona da casa reconheceu o rosto do
homem; fazia parte de uma equipe de jardinagem que ela havia contratado pouco
antes.
“Os detetives foram lá e conversaram com o sujeito, que admitiu tudo
imediatamente. O detetive Harper disse que ele parecia quase aliviado por ter sido
filmado.”
“E como eles sabem que ele não estava envolvido nos homicídios?”
“Álibis muito consistentes para duas das três noites. E ele também não tem
nada a ver com o retrato falado da polícia. É baixinho e magro, as orelhas com
rombos de alargadores… Disse que tudo não passava de uma brincadeira idiota. O
cara é metaleiro raiz, curte rock satânico: Ozzy, Danzig, Black Sabbath, Darkthrone,
essas coisas. Ficou muito puto quando o The Aegis publicou uma matéria sobre
satanismo, e concluiu que estávamos tirando sarro deles. Quando descobriu que
alguém no bairro trabalhava para o jornal, achou que seria engraçado ficar chapado,
ir até a minha casa de fininho e desenhar um 666 na minha varanda. Também estava
planejando desenhar um pentagrama invertido na entrada da garagem, mas
amarelou. Disse à polícia que só queria me assustar.”
“Caramba… Então o giz azul e os números… foi tudo uma bizarra
coincidência?”
“Foi!”
“É difícil de acreditar.”
“Eu sei, mas parece que é verdade. Que loucura, né? O cara disse que queria
ter comprado um spray, mas como estava duro, pegou o giz emprestado com um dos
caras que divide apê com ele. Até levou os detetives ao quarto do coinquilino e
mostrou a caixa de giz azul que estava numa gaveta.”
“Eles interrogaram o tal coinquilino?”
“Sim, ele também não tá metido em nada disso.”
“Que doideira!”, exclamei. “Pelo menos já deu desse troço de ter polícia
estacionada na frente da sua casa, né? Só que também já eram os guarda-costas
galãs e fortões.”
Pensei que acharia graça, mas ela ficou bem séria.
“Bem, aí é que a coisa fica interessante.”
“Como assim?”
“O assecla de belzebu, apesar da estatura, tem um pé quarenta e cinco.”
Olhei para ela.
“Que diabos isso significa?”
Ela suspirou como se eu fosse um idiota.
“A marca da bota embaixo da minha janela era tamanho quarenta e dois.”
“Aaah, tá. Saquei”, eu disse, entendendo finalmente. “Então foram duas
pessoas diferentes naquela noite?”
“É o que parece”, ela falou. “O metaleiro jura que não chegou nem perto da
minha janela, e os detetives não encontraram nenhuma bota no armário dele que
correspondesse à pegada… então vão continuar a vigiar a casa, e a mim, por mais
uma semana. Por desencargo de consciência.”
“Ou seja, eles não estão cem por cento convencidos de que não foi o assassino
que andou perto da sua janela.”
“Noventa e cinco. Quais as chances de dois esquisitões terem circulado perto
da minha casa na mesma noite?”
“Quais as chances de um sujeito qualquer resolver te dar uma provocada
usando giz azul e o número 666?”
“É verdade”, ela disse, inclinando a cabeça para o lado, pensativa.
“Se não era o Bicho-Papão na sua janela, então quem era?”
“A molecada brincando. O Acariciador Fantasma. Ou talvez eu simplesmente
não andasse dormindo o suficiente… e imaginei tudo.”
“Você não imaginou a pegada da bota, Carly.”
Ela anuiu.
“Devem ter sido uns adolescentes querendo aparecer.”
“Tomara que você esteja certa.”
“Pois é”, ela disse, os olhos focando algo a distância. “Tomara mesmo.”
11
O restante de setembro foi tranquilo.
ACIMA: Annie Riggs (Foto cortesia de Molly Riggs)
ACIMA: Colégio Edgewood (Foto cortesia do autor)
ACIMA: O lote abandonado onde Annie Riggs foi atacada (Foto cortesia de Carly Albright)
ACIMA: A máscara do assassino, achada na Sequoia Drive (Foto cortesia de Logan Reynolds)
ACIMA: Membros da força-tarefa revelando a máscara do assassino para a mídia (Foto cortesia do The
Baltimore Sun)
O País de Outubro
“… um ato de insanidade.”
Às 17h30 daquela tarde de Halloween, nossa casa estava lotada. Na sala de estar e
no porão só havia lugar em pé, e, na cozinha, a situação não era muito diferente.
Norma e Bernie Gentile estavam sentados à mesa de jantar com minha irmã Mary,
o marido dela, Glenn, meu tio Ted e minha tia Pat. Todos estavam se entupindo de
comida e tentando não falar de boca cheia.
Kara e eu estávamos sentados em cadeiras dobráveis na antessala, uma grande
tigela de doces equilibrada sobre uma mesinha entre nós. Estava quase escuro lá
fora e bandos de crianças já circulavam atrás de doces. Já estávamos na ativa havia
vinte minutos — jogadores de futebol americano e fadas, astronautas e alienígenas,
princesas e Smurfs —, mas a montanha de doces mal havia sofrido alguma erosão.
Eu não tinha me fantasiado para a ocasião (a menos que você considere
fantasia um agasalho de moletom cinza), mas, como sempre, Kara não havia
poupado esforços. Essa era uma das várias coisas que eu adorava nela. Kara
abraçava e celebrava a vida ao máximo. Fosse se transformando no bobo da corte
mais fofo que você já viu (como fez naquele ano), fosse dedicando semanas para
encontrar o presente de Natal perfeito para alguém ou parando o carro no
acostamento da estrada para assistir ao pôr do sol no inverno, Kara era capaz de
encontrar beleza, graça e significado em momentos triviais do dia a dia. Se eu era
sombras, luar e histórias de morte e terror, ela era o brilho do sol, risadas e a estrada
de tijolos amarelos de O Mágico de Oz. Equilibrávamos um ao outro.
Logo depois das 19h, Kara anunciou que enfrentaria uma viagem de volta à
cozinha para renovar nossos drinques e me deixou sozinho na porta. Depois de
alguns minutos, liderado por Darth Vader e Elvis Presley, o maior grupo da noite
atravessou a entrada da garagem, rindo, saltitando, arrotando, e se aglomerou na
varanda. Elvis tocou a campainha. Levando a tigela comigo, saí e comecei a jogar
punhados de doces em fronhas, sacolas de compras e abóboras de plástico. À
medida que a horda se afastava em meio a um coro de agradecimentos berrados, por
acaso dei uma olhada do outro lado da rua. Uma figura escura e solitária estava
imóvel como um espantalho na calçada da casa dos Hoffman. Alto demais para ser
uma criança e sem fazer nenhum esforço para esconder a própria presença,
o homem parecia estar me observando. Provavelmente um pai entediado esperando
o filho, pensei. Talvez até um policial disfarçado; eles estão por toda parte esta
noite. Ou, melhor ainda, o detetive Harper me espionando outra vez.
Eu estava prestes a me virar quando uma picape fez a curva na esquina
da Tupelo e a luz dos faróis iluminou o jardim da casa dos Hoffman. Naquele
instante, eu o vi claramente. E não era o detetive Harper.
O homem estava usando roupas escuras e uma máscara — que parecia muito
com a máscara grosseira que eu havia visto na televisão e no jornal recentemente.
Minha boca ficou instantaneamente seca e senti um suor frio despontando na nuca.
O estranho continuou lá, imóvel, os braços caídos ao longo do corpo,
observando.
O flash de uma câmera espocou de repente no final da entrada da garagem,
próximo ao meio-fio, desviando minha atenção.
“Mais uma. Só mais uma!”, ela implorou, embora parecesse exausta.
O Incrível Hulk e o Super-Homem puseram a língua para fora e fizeram pose
— o flash brilhou novamente. Quando voltei a olhar para o outro lado da rua,
o homem mascarado tinha desaparecido.
“Tudo bem?”, perguntou Kara, aproximando-se com as nossas bebidas.
“Tudo”, respondi, entrando em casa. Tomei um gole de limonada e não disse
nada sobre o que eu tinha acabado de ver. Provavelmente só uma brincadeira, disse
a mim mesmo. Como a cena em Halloween II na qual um dos caras se veste como
Michael Myers.
À medida que a noite avançava, Kara e eu fomos assumindo o papel de
porteiros da casa 920 da Hanson Road, cumprimentando os retardatários na porta e
nos despedindo dos convidados com um abraço. Os Gentile foram os primeiros a ir
embora, correndo para a casa ao lado para distribuir barras de chocolate Baby Ruth
tamanho família, algo que faziam desde que eu era criança. Antes de saírem, o sr.
Bernie tirou um resplandecente dólar de prata do bolso do casaco e o jogou para
mim sem dizer nada. Meu tio Ted — irmão mais novo do meu pai e o cara mais
infantiloide que eu já conheci — tentou aplicar um cuecão em mim enquanto saía,
mas eu consegui me safar, então ele se contentou em me dar só um cascudo.
Tia Pat foi comendo ele no esporro até chegarem no carro. Logo depois das 19h30,
Carly Albright, com orelhas de Mickey Mouse alegremente encaixadas no topo da
cabeça, deu uma passada e nos ajudou a distribuir doces para os infindáveis
grupinhos de crianças. Ouvir ela e Kara pondo a conversa em dia — Carly com um
prato de espaguete equilibrado no colo — foi minha parte favorita da noite. Era
fácil entender por que as duas tinham tanta intimidade.
Mais tarde, na cama, notei que o Bicho-Papão não havia sido mencionado em
nenhuma conversa naquela noite. Eu já nem me lembrava da última vez que aquilo
tinha acontecido na presença de um grupo de pessoas reunido no mesmo lugar.
Apesar do inquietante incidente que havia acontecido mais cedo — àquela altura, eu
já estava quase convencido de que se tratava de uma brincadeira, e tal constatação
me fez sorrir —, peguei no sono com facilidade. Contudo, no meio da noite, ao
acordar para fazer xixi, aquelas conhecidas e assustadoras palavras — Uma
tempestade está a caminho — voltaram à tona na minha cabeça… só que, dessa
vez, eu estava convencido de que ela havia passado direto.
4
Na manhã seguinte, acordei me sentindo revigorado, pronto e disposto a enfrentar
uma longa sessão no teclado. Eu estava trabalhando em uma nova história sobre pai
e filho. Para mudar de ares, daquela vez não era, nem deveria ser, uma história de
terror. Mais do que tudo, era um relato de um recorte da vida que capturava um
momento específico muito significativo para mim. Eu suspeitava que a história
fosse sobre o meu pai, mais ainda não havia ficado muito claro. Eu estava ansioso
para descobrir.
Desci para pegar uma tigela de cereal Wheaties e voltar para a minha
escrivaninha, mas, assim que vi o rosto da minha mãe, percebi que algo
horrível tinha acontecido.
“O que foi?”, perguntei.
Ela desviou o olhar e, através da janela da cozinha, ficou observando o jardim
nos fundos da casa.
“Uma menina não voltou para casa na noite passada.”
Cassidy Burch, 16 anos, morava com a mãe e a irmã mais nova na última casa
geminada da Courts of Harford Square. O pai, um caminhoneiro, havia morrido três
anos antes num acidente na I-95. Embora miúda — um metro e sessenta, cinquenta
quilos —, Cassidy tinha um sorriso brilhante e uma personalidade extrovertida que
preenchia qualquer lugar onde decidisse entrar. Estava cursando o segundo ano no
Colégio Edgewood, jogava hóquei sobre grama e era a tesoureira do Clube de
Latim. Esforçava-se em sala de aula para manter média oito e trabalhava em regime
de meio expediente no Burger King da Route 40. Cassidy Burch tinha olhos azuis
reluzentes e lindos cabelos loiros compridos.
Por volta das 17h30, no dia de Halloween, enquanto a mãe ficou em casa para
distribuir doces, Cassidy levou a irmã Maggie, de 11 anos, para brincar de “doçura
ou travessura”. Maggie estava vestida de Buttercup, a personagem do seu filme
favorito, A Princesa Prometida, que ela havia visto três vezes no cinema no ano
passado. De fato parecia uma linda princesa com seus longos cabelos loiros
trançados e um vestido esvoaçante feito em casa, e recebeu muitos elogios. As
irmãs perambularam pelo bairro por quase noventa minutos, enchendo duas
abóboras de plástico com guloseimas antes de finalmente voltarem para casa.
Enquanto Buttercup separava os milhares de doces na mesa da sala de jantar,
Cassidy subiu para trocar de roupa.
Às 19h20, uma buzina tocou na frente do sobrado dos Burch. Cassidy desceu
correndo a escada, seu manto com capuz de veludo vermelho abrindo-se em forma
de leque atrás dela, como a capa da Mulher Maravilha. Com uma saia cinza de
comprimento médio, meias-calças brancas e sapatos baixos pretos completando a
fantasia, Chapeuzinho Vermelho se despediu da mãe e da irmã com um abraço e
saiu para festejar com a melhor amiga, Cindy Gibbons, de 17 anos.
Não era exatamente uma festa. Jessica Lepp havia convencido os pais a
permitirem que um pequeno grupo de amigas fosse à sua casa — oito, talvez dez
adolescentes — com duas condições: ninguém dormiria lá, afinal, no dia seguinte,
todas tinham escola e, portanto, deviam ir embora até as 22h45. A mãe de Jessica
insistiu que não queria levar a culpa se alguma das garotas desobedecesse ao toque
de recolher. Os Lepp moravam na Larch Drive, uma ladeira a cinco minutos de
carro da Courts of Harford Square. Íngreme e sinuosa, a Larch Drive — no seu
ponto mais alto — cruzava com a Hanson Road, a apenas cinquenta metros de
distância da casa dos meus pais.
A maioria das garotas estava fantasiada naquela noite — uma vampira sexy,
uma nerd de óculos remendados com esparadrapo, uma Mulher-Gato e algumas
cheerleaders. Elas se reuniram no porão da casa dos Lepp, dançaram ao som de
música disco dos anos 70 e devoraram sacos de pretzels e batatas fritas. Depois de
um tempo, Jessica pôs A Hora do Pesadelo no videocassete e todas se amontoaram
no sofá e na poltrona, muitas das garotas — inclusive Cassidy — tapando os olhos
durante as partes mais assustadoras. Diversão à moda antiga, inocente. Sem garotos,
sem álcool ou cigarros, sem fofocas maldosas. Só muitas risadinhas e arrotos
incontidos por causa do excesso de refrigerante.
Às 22h45, como prometido, as garotas começaram a ir embora. Cassidy e
Cindy ficaram mais um pouquinho, ajudando a amiga a jogar fora caixas de pizza,
pratos de papel e latas de refrigerante vazias que estavam no porão. A sra. Lepp fez
questão de agradecer às duas e as botou para fora de casa às 22h55. Da varanda,
viu-as entrando no carro de Cindy e partindo.
Naquele mesmo momento, a mãe de Cassidy estava sentada na cama com um
romance histórico no colo, olhando para o despertador. Enquanto observava o correr
dos minutos, a sra. Burch prestava atenção para tentar detectar o som de um carro
estacionando na frente do sobrado. Aquela mesma rotina já havia se repetido em
muitas outras noites e sempre a deixava apreensiva. Um dia essa garota vai
entender o que uma mãe sente, ela costumava pensar enquanto morria de
preocupação.
Vendo o relógio marcar 23h, e ainda nada de Cassidy, ela começou a roer as
unhas, um hábito horrível que estava decidida a eliminar… a partir do dia seguinte.
Às 23h02, a sra. Burch ouviu a porta de um carro sendo aberta, alguns
segundos de um rock abafado e, depois, a porta batendo. Soltou um suspiro de
profundo alívio e voltou a dedicar a atenção ao livro. A heroína da história estava
prestes a enfrentar uma gangue de arruaceiros armados que planejava saquear a
cabana da família, e a sra. Burch estava ansiosa para saber como tudo ia terminar.
Ela finalizou a página antes de perceber que não tinha ouvido o som da chave
de Cassidy entrando na fechadura nem o som da porta da casa abrindo e fechando
ou mesmo o som do ferrolho sendo passado.
Pulando da cama como se os pés estivessem em chamas, desceu correndo,
chamando o nome da filha. A antessala estava vazia, a luz interna ainda acesa, e a
porta trancada. Ela a abriu e foi para a varanda, chamando por Cassidy novamente.
Nada. Observou o estacionamento bem iluminado à direita e esquadrinhou o terreno
vazio à esquerda. A noite estava silenciosa. Imóvel.
Correndo de volta para dentro de casa, a sra. Burch encontrou o telefone sem
fio no sofá, onde havia deixado mais cedo, e ligou para os Lepp. A mãe de Jessica
atendeu ao primeiro toque e garantiu que fazia mais de dez minutos que havia visto
Cassidy e Cindy saindo de carro. Talvez elas tenham parado no Stop and Shop para
abastecer o carro ou algo do gênero, conjecturou. A sra. Burch agradeceu e
desligou.
Tomada pela angústia, ligou em seguida para os Gibbons. Cindy atendeu logo,
parecia ofegante. Disse à sra. Burch que havia acabado de chegar, depois de ter
deixado a amiga em casa e corrido para atender o telefone antes que os pais
acordassem.
“Você deixou a Cassidy aqui na frente de casa?”, perguntou.
“Como assim?”, Cindy respondeu confusa. “É o que eu sempre faço.”
“Eu sei, mas… cinco minutos atrás… eram você e a Cassidy aqui em frente?”
“Bem, talvez faça um pouquinho mais de cinco minutos, mas, sim, tia,
eu deixei ela e vim direto para casa.”
“Você viu a Cassidy depois que ela saltou do carro? Reparou em alguma
coisa?”
Cindy hesitou antes de responder.
“Geralmente espero até ela entrar… mas acho que fui embora dessa vez. Eu
não queria me atrasar por causa do toque de recolher.”
“E você não viu…”
“Como assim?”, Cindy disse, sua voz ficando mais alta. “A senhora está
dizendo que a Cassidy não entrou em casa? Ela não está aí com a senhora?!”
“É exatamente o que estou dizendo.”
“Ai, meu Deus!”, Cindy exclamou, parecendo angustiada. “Ai, meu Deus.
Acho melhor acordar meus pais.”
“Faça isso, minha querida. Eu vou ligar para a polícia.”
Tudo isso aconteceu na mesma rua, a pouca distância de onde eu estava dormindo.
Após uma breve busca, a polícia encontrou o corpo de Cassidy Burch às 2h27 no
cemitério Edgewood Memorial Gardens, na Trimble Road. No início, o policial —
um novato — que a localizou perto da entrada principal pensou que havia se
deparado com a cena de um trote de Halloween, pois o cadáver estava posicionado
na frente de uma lápide e cercado de lanternas ainda acesas feitas de abóboras
esculpidas. Parcialmente vestida com a fantasia de Chapeuzinho Vermelho, Cassidy
Burch havia sido espancada, estuprada e estrangulada. A orelha esquerda fora
decepada e não estava presente na cena. Cerca de uma dúzia de marcas de mordida
cobriam o corpo, como se o assassino a tivesse atacado a dentadas em meio a uma
frenética sede de sangue. Um policial — desta vez um veterano — descreveu aquilo
como “um ato de insanidade”.
ACIMA: Cassidy Burch (Foto cortesia de Candice Burch)
ACIMA: Cassidy Burch (Foto cortesia de Candice Burch)
ACIMA: Edgewood Memorial Gardens (Foto cortesia do autor)
ACIMA: Polícia e detetives procurando provas perto da casa dos Burch na Courts of Harford Square
(Foto cortesia de Logan Reynolds)
dez
Consequências
“Ele gosta da sensação de matar e vai agir novamente se não o
detivermos.”
Quando falei com Carly logo cedo na manhã seguinte, ela estava de mau humor,
tinha dormido mal e pouco. Nenhuma das costumeiras fontes havia conseguido
descobrir o que o assassino deixara para trás daquela vez na cena do crime de
Cassidy Burch. O detetive Harper tinha obviamente atormentado seus subordinados
para que não vazassem informações para a mídia e agora ninguém estava abrindo o
bico.
Carly acreditava que o Bicho-Papão manteria o, digamos, hábito. Deixaria, de
alguma forma, algo relacionado ao número 6. Eu concordei com ela. Depois de um
breve debate, decidimos que a conclusão mais provável poderia estar relacionada
com as abóboras. A polícia havia revelado para o público a história sobre as
lanternas de abóboras esculpidas que foram encontradas em volta do corpo, mas não
mencionou uma vez sequer quantas eram. A cena, dentro do contexto montado,
fazia todo o sentido — abóboras, cemitério, Halloween… —, mas era irritante e,
de certa maneira, estranho não ter essa informação. Ficou parecendo que nem tudo
tinha sido revelado.
Com a notícia da volta do Bicho-Papão, a mídia nacional voltou em peso para
a cidade com o intuito de cobrir o que começaram então a chamar de “O Halloween
do Terror”. Houve até boatos de que o America’s Most Wanted estava a caminho de
Edgewood para fazer uma simulação do último assassinato. O programa é um
sucesso nacional. Embora a maioria dos comerciantes locais ocultasse o próprio
entusiasmo, um grupo — que incluía Mel Fullerton, aquele idiota da lanchonete —
estava descaradamente inebriado com a perspectiva de colher os frutos das diárias
do pessoal da mídia. Reconheci muitas das personalidades dos noticiários que eu
via na televisão e, embora nenhuma delas me impressionasse demais, quase
consegui me tornar uma lenda local quando, dando marcha à ré, por pouco não
amassei o carro alugado de Maury Povich, do programa A Current Affair, no
estacionamento do shopping. Com aquele mau humor que não me largava,
eu provavelmente teria saltado do carro e dado um soco naquela carinha de
convencido. E se eu tivesse cruzado com Geraldo Rivera em algum lugar na cidade,
teria feito coisa até pior.
Também tinha uma história circulando de que o FBI estava planejando realizar
uma busca de casa em casa em toda a cidade. Defensores dos direitos civis já
haviam se reunido, fazendo um piquete na frente da delegacia e do tribunal. Muitos
donos de imóveis entrevistados no noticiário diziam que planejavam defender suas
propriedades com unhas e dentes, inclusive se armando.
Edgewood estava se transformando num barril de pólvora, prestes a explodir a
qualquer momento.
ROBERT NEVILLE: Sim, eu até poderia ter feito isso, mas, devido à
natureza dos crimes, ficou claro para mim que eu deveria estar aqui.
CARLY ALBRIGHT: O que o senhor quer dizer com “a natureza dos
crimes”?
CARLY ALBRIGHT: O que mais o senhor pode nos dizer sobre o perfil
do Bicho-Papão?
ROBERT NEVILLE: Bem, ele está gostando de ser chamado por esse
apelido. Gosta de atenção e notoriedade. Conhece os que vieram antes
dele. Filho de Sam. BTK. O Perseguidor da Noite. De alguma forma, nós
permitimos que ele se sentisse parte de algo agora.
CARLY ALBRIGHT: O senhor está dizendo que ele dirige pela cidade
escolhendo aleatoriamente as vítimas?
ROBERT NEVILLE: Acho que ele está jogando e gostando. Ele gosta
de matar e está se tornando cada vez melhor.
E lá estava, preto no branco: O assassino era, sem dúvida, alguém da cidade. Ele
conhece bem as ruas e os pontos de desova.
Joguei o jornal no lixo e afastei minha cadeira da escrivaninha. Quem era eu
para questionar o grande Robert Neville?
Ao sair do quarto e descer para pegar o carro e ir à agência dos correios para
verificar minha caixa postal, percebi por que andava me sentindo tão irritadiço e
rabugento nas últimas semanas. Por mais que eu quisesse que não fosse verdade, eu
sempre soube, no fundo do meu coração, que o detetive Harper e Robert Neville
tinham razão: O assassino era um de nós.
Homenagens
“A imagem estava desenhada grosseiramente, mas a representação era
cristalina…”
2
Enquanto Carly ligava para o detetive Harper da extensão da cozinha, espalhei as
quatro fotografias sobre a mesa de jantar e as reexaminei.
Eram fotos coloridas tamanho 20x25 — nítidas e em foco —, suaves ao toque,
pois foram reveladas em papel matte. A primeira foi tirada no jardim da frente da
casa dos Gallagher pouco depois do velório de Natasha. Quando a fita vermelha que
alguém tinha amarrado em volta do carvalho dos Gallagher desapareceu, não
demorou muito até ser substituída por uma homenagem um pouco mais elaborada.
Alguém — muito provavelmente uma amiga — havia escrito NATASHA PARA SEMPRE
EM NOSSOS CORAÇÕES no centro de uma enorme cartolina e desenhado um coração
vermelho em volta. Várias fotografias pequenas de Natasha foram coladas ou presas
com durex de cada lado do coração. O espaço branco restante foi coberto por
dezenas de mensagens manuscritas — DESCANSE EM PAZ! SAUDADE! VOU TE
AMAR PARA SEMPRE! VOCÊ NUNCA SERÁ ESQUECIDA — e um punhado de
desenhos (corações, mãos em oração, passarinhos, arco-íris e carinhas tristes com
lágrimas escorrendo dos olhos). O cartaz havia sido pregado ou grampeado na base
da árvore. Logo em cima, uma cruz de madeira, coberta de flores, estava pendurada
num prego. Embaixo, espalhado sobre a grama, um pequeno exército de pelúcias:
ursos e girafas, elefantes e dinossauros coloridos; além de uma fileira desalinhada
de vasinhos de vidro com buquês de flores murchas e os tocos de uma dúzia de
velas.
Meus olhos se deslocaram para o canto inferior direito do cartaz, focando em
uma pequena imagem espremida entre um coração partido ao meio por uma
rachadura entrecortada e uma carinha triste com uma expressão exagerada.
A imagem estava desenhada grosseiramente, mas a representação era cristalina:
uma amarelinha em miniatura. Dentro de cada um dos quadrados, havia o número
3.
Engoli em seco e passei para a segunda fotografia: o altar dedicado a Kacey
Robinson que havia sido erguido pertinho da base do escorregador no parque Cedar
Drive. Em vez de uma enorme cartolina, a homenagem a Kacey era composta de
três cartazes caseiros menores. Fiquei olhando para o sinal retangular no meio.
Canto superior esquerdo. Logo embaixo de uma foto de Kacey Robinson andando
de bicicleta sem segurar no guidom e com um grande sorriso estampado, alguém
havia desenhado uma pequena réplica, talvez com dez centímetros de altura, do
cartaz que foi encontrado pendurado no poste de telefone na frente da casa dos
Robinson. VOCÊ VIU ESTE CACHORRO? estava escrito apertado na parte superior do
cartaz e LIGUE PARA 4444 estava rabiscado na parte inferior. No meio, o desenho de
um cão com um sorriso cheio de dentes.
Com o coração ainda disparado, peguei a terceira fotografia: outra homenagem
no jardim, nesse caso para Madeline Wilcox. Montes de flores, várias cruzes
pequenas e dois maços de Marlboro fechados estão sobre a grama, na frente de um
pôster de Madeline. Ela estava usando um vestido de verão amarelo e chinelos de
dedo, sentada feliz da vida no capô de um carrão clássico, parecendo livre, leve e
solta. O pôster media pelo menos um metro e meio por noventa centímetros e estava
preso a uma longa estaca de madeira que havia sido fincada na grama, como um
galhardete. Um feixe de balões em formato de coração flutuava na brisa sobre a
cabeça de Madeline. Olhei para o para-choque dianteiro do carro, a poucos
centímetros do pé direito de Madeline, onde o assassino havia usado um pedaço de
durex para prender cinco moedas brilhantes de um centavo no pôster.
Antes que eu pudesse mudar de ideia, passei para a última fotografia.
No momento em que a foto foi tirada, a homenagem a Cassidy Burch ainda estava
em estágio inicial. Só um punhado de cartazes caseiros e cartões de condolências
presos às barras de ferro forjado da grade que circunda o cemitério, bem como
alguns balões e uma vela solitária. Eu havia acabado de assistir a uma reportagem
no noticiário e o tamanho do altar tinha mais que quadruplicado. Na parte inferior
do maior cartão de condolências, embaixo da assinatura da pessoa que o deixara,
o assassino havia desenhado uma abóbora gorda com um sorriso torto — e seis
olhos triangulares. Chegava a ser obsceno.
“Ele vem nos buscar em quinze minutos”, Carly me informou por cima do meu
ombro, e eu quase gritei.
Shotgun Summer
“Foi ele.”
Desde o encontro com o detetive Harper uma semana antes, algo estava me
incomodando. Demorei alguns dias para superar aquela piscadela no retrovisor e a
ideia de que a polícia sabia tudo a respeito das vezes em que eu havia passado de
carro pelos locais das homenagens e, muito provavelmente, pelas casas das vítimas
também. Estava claro que eu não era tão esperto quanto achava.
Além disso tudo, ainda havia uma fotografia guardada dentro de um envelope
no fundo da gaveta da minha escrivaninha.
Eu tinha achado a foto havia uns meses, num trecho de grama pisoteada
embaixo da árvore onde os amigos e familiares de Natasha Gallagher tinham
erguido o altar. Uma imagem 10x10 de Natasha comendo caranguejos cozidos
numa mesa, um típico piquenique ao lado de uma piscina; a foto estava desbotada e
amassada devido à exposição às intempéries. Atrás, tinha uma parte de uma pegada
e um minúsculo rasgo irregular no canto superior esquerdo onde havia sido fixada
ao cartaz com um grampo ou uma tachinha. Deduzi que o vento devia tê-la soltado.
Na noite de setembro em que me deparei com ela, olhei à minha volta para ter
certeza de que ninguém estava observando, depois me curvei, fingindo amarrar o
sapato, peguei e guardei a foto no bolso traseiro do meu short enquanto me
afastava. Como o detetive Harper havia dito, sem dúvida um comportamento
estranho. Naquele momento, eu já não entendi bem por que havia roubado a
fotografia, e continuava sem entender. Eu só sabia que Harper ou um dos seus
agentes havia testemunhado tudo.
Mesmo assim, não era aquilo que me incomodava. Constrangimento dá e
passa. Foi algo que aprendi na marra ao longo dos anos. Era outra coisa — algo
importante — rastejando logo abaixo da superfície da minha consciência, fazendo
de tudo para se libertar e vir à tona, mas, até então, sem êxito.
Aquilo estava me enlouquecendo.
Até tentei um velho truque ensinado por um professor — um mestre do
jornalismo — que eu detestava, mas que, a contragosto, passei a respeitar ao final
do curso. Ele havia sugerido que, para lembrar fatos importantes ou enredos que
haviam de alguma forma escapado da memória, um escritor deveria fazer uma lista
de todas as coisas — por mais triviais que fossem — que haviam preenchido
recentemente seus dias.
Minha lista se parecia com esta:
Para minha surpresa, ele não ficou zangado comigo. Na verdade, não me chamou
de Joe Hardy sequer uma vez.
Comecei a descrever o incidente que havia ocorrido na frente da minha casa na
noite de Halloween. O homem vestido de preto, olhando para mim do outro lado da
rua, no jardim dos Hoffman. Uma picape virando a esquina e os faróis
possibilitando que eu visse com clareza a máscara que o homem estava usando.
Eu disse que, embora tivesse ficado nervoso de início, especialmente porque
Cassidy Burch havia sido assassinada mais tarde naquela mesma noite, achei que
fosse só mais uma brincadeira de um adolescente — como os garotos que se
meteram em encrenca há cerca de um mês por assustarem pessoas em casa. Por isso
eu havia ficado em silêncio.
Mas alguma coisa a respeito daquela noite continuava a rondar minha mente,
embora cinco semanas tivessem se passado. Só que, até aquela manhã, eu não me
lembrava o que era.
A mulher que tinha tirado duas fotografias na entrada da minha garagem
estava virada de frente para o homem de máscara. Dependendo do zoom e
do enquadramento das fotos, era bem capaz do homem aparecer no fundo.
O detetive Harper precisava apenas descobrir quem eram o Incrível Hulk e o
Super-Homem.
Só demorou um dia.
Após mandar seus homens irem de porta em porta na Hanson Road e nos
arredores, o detetive Harper conseguiu descobrir a identidade e o endereço da
mulher. Seu nome era Marion Caples e ela morava com o marido e o filho de 6
anos, Bradley, vulgo Incrível Hulk, no final da Harewood Drive. Já o Super-Homem
era Todd Richardson, 7 anos de idade, filho da sua vizinha.
Marion Caples ainda não havia mandado revelar o filme da noite de
Halloween, então o detetive Harper encarregou o laboratório da polícia daquela
tarefa. A primeira foto saiu tremida e descentralizada, e provavelmente foi por isso
que eu tinha ouvido a sra. Caples implorar às crianças para tirar “só mais uma”.
A segunda foto, no entanto, estava absolutamente perfeita. Não podia ter sido tirada
em um momento mais oportuno. Enquanto, no primeiro plano, o Hulk e o Super-
Homem mostravam seus músculos e suas línguas manchadas de pirulitos de cereja,
atrás deles, o homem mascarado, iluminado pelos faróis da picape, aparecia de
perfil.
No início, o detetive Harper disse que não poderia nos mostrar a fotografia
porque se tratava de uma investigação em andamento. Mas quando Carly
mencionou que havíamos prometido sigilo em troca de mais informações, ele
cedeu. Aquela garota estava se tornando uma repórter e tanto.
A foto que ele empurrou sobre a escrivaninha na tarde do dia seguinte era uma
ampliação de 20x25, colorida e absolutamente nítida. Eu não disse muita coisa
enquanto estávamos na delegacia, mas, quando voltei com Carly para o carro, as
primeiras palavras que saíram da minha boca foram:
“Foi ele. Não me pergunte como eu sei, mas eu sei.”
treze
Perguntas
“Já assustado, ele se virou e viu o contorno da máscara branca do
assassino flutuando na escuridão…”
Parecia que eu havia piscado e o Natal e o Ano Novo eram fantasmas no espelho
retrovisor. Foi nessa velocidade que aquelas duas semanas passaram.
Sabendo o que tínhamos pela frente, Kara e eu ficamos em casa no réveillon e
assistimos à contagem regressiva com Dick Clark na televisão. Meus pais tinham
ido se deitar mais cedo, e ficar de chamego embaixo de um cobertor no sofá do
porão foi como se os velhos tempos de namoro, quando ainda estávamos no
colégio, estivessem de volta. Deixei Kara em casa à meia-noite e já estava de volta,
roncando na minha cama, antes da uma hora.
Já a noite seguinte… não foi tão tranquila. Um grupo de amigos — liderado
por Jimmy Cavanaugh e Brian Anderson, que haviam pousado na cidade naquela
tarde — apareceu lá em casa. A galera me arrastou para minha despedida de
solteiro. Logo se seguiram rodadas animadas de boliche e pôquer e uma quantidade
grande demais para ser contada de canecas de cerveja no Loughlin’s Pub. Depois de
fecharmos o bar, cismamos que seria uma boa ideia jogar bolas de neve nos carros
na Route 24. Nenhum de nós tinha condições de dirigir, então percorremos a pé
aqueles dois quilômetros e meio. Eram quase 2h30 quando assumimos nossas
posições ao longo da beirada do bosque. Não tinha muito trânsito. Até que
finalmente vimos faróis se aproximando a toda velocidade no sentido leste. Tirando
proveito de anos de experiência, esperamos até o momento exato e, sincronizando
cuidadosamente nossos arremessos, atiramos nossas bolas de neve. Ploft ploft ploft
— três delas atingiram o alvo! Antes que pudéssemos começar a comemorar nosso
sucesso, o carro freou repentinamente no meio da estrada e acendeu o pisca-alerta e
a sirene. Por acaso, tínhamos acertado a viatura do xerife do condado de Harford. O
motorista deu meia-volta e começou a acelerar na contramão em nossa direção.
Largamos imediatamente as bolas de neve restantes e fugimos a toda para o bosque,
escapando por um triz.
Na manhã seguinte, acordei no porão dos meus pais, cercado por oito dos meus
melhores amigos. Brian Anderson estava sem camisa, o peito e os ombros eram um
mosaico de arranhões sofridos durante nossa fuga. Uma das costeletas de Jimmy
Cavanaugh havia sido misteriosamente raspada e seus dois pés de sapato sumido.
Steve Sines, que viera do Maine, tinha um belo olho roxo, mas ninguém conseguia
lembrar como ele havia conseguido aquela façanha.
Quanto ao convidado de honra… acordei com a cabeça dentro de uma caixa de
papel que horas antes havia abrigado doze latinhas de Bud Light. Um dos meus
amigos — até hoje, nenhum dos filhos da puta assumiu a autoria — havia
desenhado um pênis na minha testa com um pilô atômico. A coitada da minha mãe
quase desmaiou quando viu. E, como se as lembranças enevoadas daquela noite não
fossem suficientes, eu tinha várias Polaroids para comemorar a ocasião especial.
Guardei-as no fundo de uma gaveta na minha escrivaninha.
Mais tarde naquela mesma noite, Carly ligou para me dizer que o motorista do
Colégio Edgewood estava de novo em apuros. Seu nome era Lloyd Bennett e,
obviamente, seus álibis para as noites dos assassinatos do Bicho-Papão, no final das
contas, não eram tão sólidos. A mulher com quem ele dissera que havia estado nas
quatro ocasiões ficou com medo e admitiu para a polícia que ele estava mentindo.
Ela não sabia onde ele tinha estado, mas certamente não foi na sua companhia.
A última notícia que Carly ouviu foi que Bennett e seu advogado estavam na
delegacia sendo interrogados e os detetives estavam preenchendo a papelada para
obter um mandado de busca para o carro e o apartamento dele.
6
Carly ligou novamente alguns dias depois para me dizer que havia sido escolhida
para fazer a matéria: as famílias das vítimas do Bicho-Papão. Ela sabia que, desde o
primeiro dia, eu estivera recortando artigos e fazendo anotações por conta própria
sobre os assassinatos — uma espécie de álbum de recortes ou diário vagamente
organizado — e queria saber se eu estava interessado em ser coautor do texto. Ela já
havia obtido a permissão do editor.
Eu disse que ia pensar no assunto e avisaria. Naquela noite, conversei a
respeito com Kara e depois saí sozinho para dar uma corrida e refletir um pouco
mais. Por um lado, seria um desafio interessante e uma boa experiência. Por outro,
com ou sem livro, eu tinha pouca vontade de conversar com familiares e amigos
ainda de luto e correr o risco de reabrir feridas recentes. Naquela noite, fui para a
cama decididamente indeciso, mas, ao acordar na manhã seguinte, todas as minhas
indecisões haviam desaparecido. De repente, eu sabia: contar as histórias dos
sobreviventes era a coisa certa a ser feita e eu queria fazer parte daquilo. Liguei para
Carly logo depois do café da manhã e aceitei.
Passamos boa parte da semana seguinte sentados em salas de estar e quartos
silenciosos, entrevistando familiares das adolescentes assassinadas — com exceção
do sr. e da sra. Wilcox, que haviam vendido a casa no início de janeiro e se mudado
para a Costa Leste, e do sr. Gallagher, que declinou educadamente. Foi uma
experiência sombria, muitas vezes cheia de lágrimas, mas também
surpreendentemente edificante. Inspirado pelo amor arrebatador e pela coragem que
senti naqueles lugares — no meio daquelas pessoas especiais —, comecei a ver o
mundo sob um outro prisma. Era difícil dar uma explicação melhor ou até entender
completamente o que estava acontecendo, mas eu mal podia esperar para ver como
aquela experiência afetaria minha escrita. Falando com Carly, descobri que ela
sentia algo bastante parecido.
“Tudo isso me transformou”, ela me disse uma noite enquanto voltávamos para
a redação do jornal. “Nunca mais serei a mesma.”
Depois que começamos, só levamos três dias para escrever a matéria.
Eu nunca havia colaborado antes e esperava inúmeras dores de cabeça e brigas, que
jamais se materializaram. Na sexta-feira, 17 de fevereiro, com dois dias de
antecedência, entregamos cinco mil palavras, nosso limite máximo.
Em 22 de fevereiro, a matéria foi publicada no The Aegis com uma manchete
em letras garrafais: AS FAMÍLIAS CHORAM E RECORDAM. Minha mãe
ligou aos prantos para me dizer que tínhamos feito um excelente trabalho e as três
famílias que havíamos entrevistado nos enviaram notas de agradecimento por
termos escrito tributos tão humanos e atenciosos. Meu pai mandou emoldurar a
primeira página para mim e para Carly. A minha ainda está pendurada acima da
minha escrivaninha como um lembrete diário da coragem dos familiares
sobreviventes.
O The Aegis ficou com todos os direitos de publicação do texto, por isso não
pude reproduzi-lo aqui, mas nossa editora, Karen Lockwood, gentilmente me deu
permissão para reproduzir trechos selecionados das nossas entrevistas.
Sra. Gallagher: Ah, em alguns dias, persiste. Passo uns quatro ou cinco
dias seguidos me sentindo bastante forte, agarrando-me a lembranças
felizes, depois… bum, do nada, eu explodo. Há algumas semanas, eu
estava pondo os pratos na lava-louça e comecei a pensar na vez em que a
Nat pôs detergente demais e inundou a cozinha de espuma. No início,
comecei a rir, depois veio o choro. Antes de me dar conta do que estava
fazendo, eu já havia jogado dois pratos contra a parede. Meu marido
chegou correndo, assustadíssimo, e eu me senti péssima.
Albright: O que está sendo mais difícil em relação à perda da sua filha?
Sr. Robinson: Tudo. Não ouvir a voz dela. A risada. Saber que ela foi
raptada a duzentos, trezentos de metros da nossa porta e não ter sido
capaz de fazer nada para impedir.
Sra. Robinson: Para mim, a parte mais difícil tem sido ajudar as irmãs
mais novas da Kacey a entender o que aconteceu. Elas ainda têm muita
dificuldade para entender como e por que algo assim pode acontecer.
Com qualquer pessoa. A hora em que elas vão dormir é especialmente
difícil.
Sra. Robinson: Todos têm sido incríveis. Não sei como teríamos
suportado o velório e o primeiro mês sem o apoio de todos. Eu nem me
lembro da maior parte. Os amigos das meninas e do David têm sido
maravilhosos.
Albright: Vocês acham que a polícia algum dia vai pegar o homem que
fez isso?
Sr. Robinson: Torço muito para que isso aconteça, mas não estou muito
esperançoso. Não mais. No que diz respeito ao homicídio de Kacey, acho
que a polícia não avançou nada em relação à noite em que ela foi
assassinada.
Sra. Burch: Obrigada pelas palavras. Tenho dias bons e dias ruins.
Na maior parte dos dias ruins, fico na minha, assim ninguém precisa me
aturar. Mas eu também tenho outra filha, uma linda menina com uma vida
inteira pela frente e não quero que ela sofra mais do que já sofreu. Eu e
Maggie somos uma equipe e vamos homenagear a memória de Cassidy
todo dia ficando juntas e tentando fazer deste mundo um lugar melhor.
Sra. Burch: Um dos detetives liga para mim de tempos em tempos para
perguntar se Cassidy conhecia fulano ou sicrano. Ou se conhecia esse ou
aquele lugar. Sempre pergunto se eles estão fazendo algum progresso e,
toda vez, a resposta é a mesma: estão seguindo pistas e localizando
pessoas para interrogar.
Sra. Starsia: Temos dois galgos que resgatamos de uma pista de corridas
na Flórida. Ela amava muito esses meus cachorros e vinha sempre aqui
em casa para visitá-los. E também falava com eles, por muito tempo,
batiam papo pra valer, como se eles entendessem o que ela dizia. Era uma
garota que estava sempre feliz.
Sra. Starsia: Depois do que aconteceu, eu fiquei muito tempo sem sair
sozinha… nem de dia. Agora estou um pouco melhor. Durante o dia, tudo
bem, mas geralmente espero meu marido se preciso ir a algum lugar
depois que anoitece. Pusemos uma cerca no jardim dos fundos para não
termos mais que sair com os cachorros. Eles podem correr quanto
quiserem. E agora é meu marido que leva o lixo para fora.
Albright: É a primeira vez que você fala com a mídia sobre o que
aconteceu na noite de 9 de setembro. Por que mudou de ideia e decidiu
falar?
Srta. Riggs: Foi uma decisão dos meus pais. Logo depois do que
aconteceu, a gente foi bombardeado com pedidos de entrevista e eles
tiveram medo que eu ficasse traumatizada. Também não queriam que eu
dissesse nada que pudesse contrariar a pessoa que me atacou. Eles ainda
estão superpreocupados com isso.
Srta. Riggs: Às vezes, mas confio na polícia. Eles têm sido ótimos. Sei
que estão me protegendo e à minha família.
Srta. Riggs: Sei lá, ele parecia… errado. Tirando a respiração, ele não
emitiu nenhum outro som durante todo o tempo e, quando vi os olhos dele
através dos buracos na máscara, eles estavam mortos, sem emoção. Às
vezes, eu ainda tenho pesadelos com os olhos dele.
Chizmar: Se você tivesse que escolher só uma coisa, do que mais você
sente falta em relação a Kacey?
Srta. Holt: Uma coisa só é difícil demais, posso dizer duas? A primeira é
o sorriso. Nunca era falso ou forçado. Dava para perceber que era sincero.
Era algo com que eu sempre podia contar. A segunda é a generosidade.
Ela sempre dava para você o último chiclete, sempre.
7
Foi meu pai que me ligou para dar a notícia com dois dias de atraso. Falei com
Carly naquela mesma tarde — após sair para dar uma volta com o intuito de tentar
entender o que eu acabara de ouvir — e ela me forneceu os detalhes.
Na madrugada anterior, o pai de Natasha Gallagher saiu de fininho da cama,
tomando cuidado para não acordar a esposa, calçou suas botas e vestiu um casaco
de inverno. Saiu de casa por uma porta deslizante de vidro e entrou no bosque
usando uma lanterna. Quando chegou ao local onde o cadáver da filha havia sido
encontrado, largou a lanterna e sacou um revólver calibre .38 do bolso da jaqueta.
Enfiou o cano na boca e puxou o gatilho.
10
2 de abril de 1989
“… permaneciam sem solução.”
Setembro de 2019
2
Faz tanto tempo desde a última vez que ouvi aquele nome dito em voz alta que a
ficha demora a cair. Um filme de terror de baixo orçamento com aquele mesmo
título foi lançado direto em streaming há não muito tempo e vi por acaso alguns
anúncios e um trailer on-line, mas, fora isso, faz séculos.
É difícil acreditar que mais de trinta anos se passaram desde o reinado de terror
do Bicho-Papão na minha cidade natal, Edgewood — mas o calendário não mente,
por mais que a gente queira.
Muito havia mudado em três décadas, mas algumas coisas permaneceram
iguais.
Kara e eu ainda estamos juntos, mais unidos do que nunca, principalmente por
causa do seu coração magnífico e de sua paciência e compreensão sem limites. Ao
longo do caminho, fomos abençoados com dois filhos, já crescidos — Billy, 21
anos, cujo nome é uma homenagem ao meu pai; e Noah, 17, que tem o mesmo
nome de um caro amigo, um dos pacientes de fisioterapia favoritos de Kara, um
homem grande e gentil que, um dia, desembarcou numa praia da Normandia e, por
meio de atos de coragem inimagináveis, salvou a vida de muitos outros grandes
homens naquele dia histórico.
No outono e na primavera, Billy frequenta o Colby College, no Maine — a
cerca de uma hora da casa do nosso grande amigo Stephen King —, onde estuda
literatura inglesa e redação, e joga lacrosse. Noah está no penúltimo ano do ensino
médio, é um mago da matemática e já foi convocado para fazer parte da equipe de
lacrosse da Marquette University depois da formatura. Durante o verão, ficamos
todos juntos numa casa reformada de duzentos anos de idade que compramos
recentemente em Bel Air, Maryland. A propriedade tem um lago, um riacho,
campos e bosques, e, embora faça apenas alguns anos, parece que moramos lá
desde sempre.
Como eu gostaria que meus pais tivessem vivido mais para vê-la. Eles teriam
curtido cada centímetro do lugar. Minha mãe ficaria horas sentada na varanda dos
fundos, observando as tartarugas perseguindo umas às outras no lago e os gaviões
circulando no céu. Ela se apaixonaria pelos vários jardins. Meu pai ficaria fascinado
com a arquitetura secular, especialmente os troncos de duzentos anos que sustentam
o telhado no nosso porão de pedra, e teríamos que arrastá-lo para fora da garagem
para quatro carros toda noite para vir jantar.
Nosso plano sempre foi trazê-los para morar conosco quando atingissem a
melhor idade, mas vocês conhecem o velho ditado sobre Deus e nossos planos.
Minha mãe nos deixou em fevereiro de 2001. Meu pai partiu para ficar com ela seis
anos mais tarde, em 7 de julho de 2007. Penso neles e sinto saudade todo santo dia.
O pai de Kara também faz muita falta, tendo nos deixado há poucos anos, mas
a mãe, com 91 anos, segue conosco, morando em uma suíte própria no primeiro
andar da casa. Assim como a filha caçula, ela é cheia de vida e teimosa, e acho que
gosta de morar aqui comigo, Kara e os netos. Pelo menos, é o que eu espero.
Agradecemos todos os dias a bênção de poder estar com ela.
É claro que nem sempre desfrutamos de tanta sorte e, ao longo dos anos,
tivemos que nos despedir de vários entes queridos: Rita, minha irmã mais velha,
faleceu pouco depois de este livro ter sido publicado; meu tio Ted, ainda hoje um
dos seres humanos mais encantadores e engraçados que conheci; Craig Anderson,
o irmão mais novo do meu camarada Brian; Bernie e Norma Gentile; Michael
Meredith; e meu velho amigo, o detetive Harper. Todos já partiram, mas jamais
foram esquecidos.
Eu mesmo, uma vez, escapei por um triz. Aos 29 anos, recebi o diagnóstico de
tumor de testículo. Os médicos agiram imediatamente e deram conta do recado com
duas cirurgias bem-sucedidas. Quando tudo terminou, me disseram que eu tinha
99% de chance de cura. Com tamanha sorte e mais ou menos um mês de
recuperação, eu me senti novinho em folha. Mas ainda bem que não sou de apostar,
pois eles se enganaram feio. Seis meses mais tarde, depois de sentir dores agudas na
barriga e na região lombar e me submeter a uma longa série de tomografias e
radiografias, os mesmos médicos descobriram que o câncer havia voltado com força
total, espalhando-se para os pulmões, fígado, estômago e linfonodos. Marcaram
imediatamente doze semanas de quimioterapia intensiva e me deram 50% de chance
de sobrevivência, sem se dar muito ao trabalho de disfarçar o fato de estarem
exagerando aquelas chances para me manter encorajado e combativo.
Mas eles não precisavam ter se preocupado. Com familiares e amigos ao meu
lado o tempo todo, e Deus cuidando de mim — sim, eu realmente acredito que Ele
interveio na minha recuperação, e, sim, sei que minha mãe está lá em cima sorrindo
para mim enquanto digito estas palavras —, consegui mais uma vez driblar as
probabilidades. Em julho do ano passado, completei vinte e cinco anos vivendo sem
câncer.
Ainda hoje, muitos amigos me dizem que fui salvo para um dia me tornar um
escritor de sucesso e compartilhar minhas histórias com o mundo. Sou eternamente
grato a eles pela gentileza e dou sempre a mesma resposta: creio que fui salvo para
um dia ser pai dos meus dois filhos.
Depois de mais de uma década morando em apartamentos apertados, comendo
miojo ou sanduíches de manteiga de amendoim no jantar e catando os trocados
entre as almofadas do sofá ou nos tapetinhos dos carros, quase todos os grandes
sonhos que nasceram em meu coração durante aqueles primeiros anos em
Edgewood se tornaram realidade. Minha pequena revista, a Cemetery Dance, está
em seu trigésimo segundo ano de publicação. Em 1991, decidimos cerrar os dentes
e expandir a editora para incluir livros de capa dura. Até o momento, publicamos
mais de quatrocentos títulos. Escrevi e vendi quase cem contos, bem como vários
livros, dentre os quais A pequena caixa de Gwendy, uma fábula sombria escrita em
conjunto com Stephen King. Logo após sua publicação, um repórter perguntou se
eu algum dia tinha sonhado escrever um livro com Stephen King. Eu sorri, olhei no
fundo dos olhos dele e disse a mais pura verdade:
“Sempre fui um sonhador, mas nunca sonhei tão alto.”
Tenho total consciência de todas as bênçãos que recebi — e continuo
recebendo —, e todos os dias sinto, espantado, uma enorme gratidão. Para ser
sincero, ainda não sei ao certo como tudo aconteceu. Muita sorte, muito trabalho
árduo e o apoio e o amor inabaláveis de muitas pessoas incríveis — é meu melhor
palpite.
A casa está silenciosa quando eu entro. Kara saiu faz uma hora para fazer
compras e meus moleques estão na escola. No final do corredor, minha sogra está
cochilando em seu quarto. A porta está fechada. Esqueci de tirar minhas botas e, ao
caminhar rumo à sala de estar, deixo um rastro de grama cortada no assoalho de
madeira atrás de mim. Sentando no sofá, pego o controle remoto da mesinha de
centro. Minhas mãos estão tremendo. Lembrando o que Carly Albright me disse
pouco antes de encerrarmos a ligação — e ignorando a vibração quase constante do
celular no meu bolso — ligo a televisão e ponho na CNN.
A repórter é jovem e está em forma, com as maçãs do rosto saltadas e um
indício de raízes escuras aparecendo em seus cabelos louros bem penteados. A tarja
ao pé da tela mostra: LAURIE WYATT, CNN — HANOVER, PENSILVÂNIA. Uma faixa com
uma manchete em letras vermelhas atravessa o canto superior da tela: “O BICHO-
PAPÃO” DETIDO. Embaixo, a imagem de uma pessoa que não reconheço.
“… recapitulando a notícia de última hora divulgada à tarde: as forças policiais
de Maryland e da Pensilvânia executaram um mandado de busca e apreensão em
uma casa no quarteirão do número 1600 da Evergreen Way, em Hanover,
Pensilvânia, e detiveram Joshua Gallagher, 54 anos, sob a acusação de ter cometido,
em 1988, os assassinatos de quatro adolescentes em Edgewood, Maryland, inclusive
da própria irmã mais nova, Natasha.
“De acordo com um porta-voz da polícia, Gallagher, funcionário de longa data
da Reuter’s Machinery, estava sendo vigiado há algum tempo enquanto a polícia
esperava os resultados do teste de DNA…”
As regras básicas são simples. Não posso entrar com nada na sala. Nenhum papel
ou instrumento para escrever, nenhum tipo de dispositivo de gravação. O áudio e o
vídeo da entrevista serão gravados pela polícia e eu terei total acesso ao material
não editado. Além da minha lista de perguntas, a polícia vai me fornecer algumas
outras. Todos os direitos de impressão da entrevista pertencem a mim. O material
em vídeo, porém, é de propriedade exclusiva da Polícia do Estado de Maryland.
Durante toda a entrevista, Joshua Gallagher ficará com pernas e braços algemados.
Um guarda armado ficará na sala conosco o tempo todo. Terei sessenta minutos
para realizar a entrevista.
Hora: 13h30
RICHARD CHIZMAR: Por que eu, Josh? Por que eu estou aqui?
CHIZMAR: E foi você que ligou todas aquelas vezes para a casa dos
meus pais?
GALLAGHER: Sinto muito. Ela não merecia. Mas acho que talvez o
motivo fosse esse: te assustar.
GALLAGHER: Quando?
GALLAGHER: [Assente.]
CHIZMAR: Onde?
CHIZMAR: Continue.
CHIZMAR: Animais?
GALLAGHER: [Assente.]
GALLAGHER: Sabia.
GALLAGHER: [Faz que não com a cabeça.] Era porque eu era bom na
luta greco-romana. Aquelas pessoas nunca me conheceram de verdade,
nem quiseram me conhecer.
GALLAGHER: Ah, tentei, sim. Duas vezes, no verão seguinte, fui até
onde ela morava com os pais, mas amarelei no último minuto. E por isso
senti ainda mais ódio de mim mesmo.
GALLAGHER: É mesmo, é? Bem, era disso que ela gostava. Foi ela
que me pediu para ser amarrada. Foi ela que me pediu para ser
estrangulada. Eu nunca tinha feito nada disso antes dela. Pode perguntar
pras minhas antigas namoradas.
CHIZMAR: [Longa pausa.] Você sabe que eu tenho que perguntar isso:
por que você matou a Natasha?
GALLAGHER: [Suspira.] Olha, eu sei que você quer que eu diga que
algo espantoso aconteceu… que eu, tipo, senti uma espécie de descarga
de energia extraterrestre atravessar meu corpo ou que tive um sonho ou
ouvi vozes. [Os olhos de Josh se arregalam.] Ou talvez que o diabo me
forçou a fazer aquilo. Mas… não. Não foi isso que aconteceu. Mais cedo
naquele dia, enquanto eu estava malhando na academia e, depois,
enquanto eu estava no chuveiro, vi tudo com muita clareza na minha
mente: como eu levaria ela para o bosque, como mataria, como faria
parecer que tivesse sido outra pessoa, tudo. De repente, tudo se encaixou.
Eu tinha combinado de encontrar o [Frank] Hapney depois da academia,
então fiquei com ele algumas horas, então, em vez de ir pra casa, fui pra
casa dos meus pais em Edgewood.
CHIZMAR: O que você disse para ela naquela noite? Como conseguiu
convencer ela a te acompanhar?
GALLAGHER: Ela só tinha 15 anos. Não foi difícil. Eu disse que tinha
ficado bebendo com o Hapney no nosso lugar de sempre no bosque e que
ele tinha apagado. E eu precisava que ela me ajudasse a pôr ele
novamente no carro.
GALLAGHER: Sim.
GALLAGHER: Sim.
GALLAGHER: [Dá de ombros.] Nunca fui grande, mas sempre fui forte
e rápido. O resto foi tudo coisa da cabeça dela. Assim como o retrato
falado da polícia não tinha nada a ver comigo.
GALLAGHER: Castigo.
GALLAGHER: [Faz que não com a cabeça.] Nada disso. Guardei elas
numa velha lata de café por um tempo, mas começaram a feder, então eu
joguei no Gunpowder. Os bagres devem ter comido.
GALLAGHER: Porque isso abre a porta para algo que eu não estou
preparado para discutir.
CHIZMAR: E a máscara?
CHIZMAR: Teve um motivo para você não cortar as orelhas delas dessa
vez? Ou deixar algo para a polícia?
GALLAGHER: Não.
CHIZMAR: Você sente falta dela? E da sua mulher e dos seus filhos?
CHIZMAR: Não?
CHIZMAR: Segundo sua mãe, você e seu pai passaram uma noite juntos
alguns dias antes da morte dele. Sobre o que vocês conversaram?
CHIZMAR: Acredite, não sou tão inteligente assim. Pode perguntar para
qualquer pessoa.
GALLAGHER: Sabia que aquele foi um dos dias mais felizes da minha
vida?
CHIZMAR: [Assente.]
CHIZMAR: Lembro.
10
De acordo com um estudo de 2009 realizado pelo FBI, quase 16% dos serial
killers americanos foram crianças adotadas, e os adotados representam apenas 3%
da população.
Até existe uma condição chamada Síndrome da Criança Adotada que foi usada
como defesa jurídica bem-sucedida em vários casos de pena de morte em que o
acusado havia sido adotado.
12
Como sempre acontece, tive muita ajuda para escrever este livro. Eu gostaria de
agradecer de coração a:
Kara, Billy e Noah, por praticamente tudo; meus pais, em quem penso com
saudade todos os dias; John, Rita, Mary e Nancy, irmãos e anjos da guarda; e meus
velhos amigos do Wood, todos irmãos de sangue, especialmente os Hanson Road
Boys.
Os Tipton, por gentilezas demais para serem elencadas nesta página.
Annie Keele, Natasha Slutzky, Kacey Newman, Madeline Anderson e Cassidy
Ward, por terem colocado à disposição seu talento e sua confiança.
Brian Anderson, Steve Sines, Doug Sharretts e Melvin Futrell, por terem
dedicado tempo de seus atribulados dias para brincar de faz de conta.
Bev Vincent, Billy Chizmar (mais uma vez), Robert Mingee e Jeff Martin,
pelas primeiras leituras e generosos conselhos.
Brandon Lescure e Everett Glovier, da Sympatico Media, pela excelência
fotográfica e pela mediocridade na atuação.
Gail Cross, da Desert Isle Design, pela assistência técnica e de design.
Vários membros do Federal Bureau of Investigation, da Polícia do Estado de
Maryland e da Polícia do Condado de Harford, pelos inestimáveis conselhos
técnicos. Vocês sabem quem são.
Dave Wehage, Deborah Lynn, Alex Baliko e Matt e Nate Slutzky,
por me deixarem saquear seus álbuns de fotos.
Alex McVey, pelo excelente retrato falado.
A família Keele, por ajudar com minha ideia maluca e aturar o estranho —
mas encantador — vizinho.
Jimmy Cavanaugh, por estar presente desde o início.
James Renner, por lutar por uma causa justa e pelo maravilhoso prefácio.
Stephen King, pela amizade e pelos conselhos.
Danielle Marie e Jason Myers, pela amizade, pelo apoio e encorajamento
incansáveis.
A “Equipe de Rua” de Perseguindo o Bicho-Papão, por acreditar neste autor e
neste projeto, e por todo o seu árduo trabalho.
Brian Freeman, Mindy Jarusek e Dan Hocker, por tomarem conta de tudo e me
manterem na linha. Não é fácil.
Ryan Lewis, por ser um dos mocinhos e por ter navegado pelo labirinto
infinito que é La-La Land (como meu pai costumava dizer).
Kristin Nelson, por trabalhar com tanto afinco por mim, sempre com um
sorriso na voz. Não sei bem como ela faz isso, mas sou imensamente grato.
Ed Schlesinger, por ajudar a dar a Perseguindo o Bicho-Papão a forma de um
livro do qual me orgulho muito, e por fazer isso com tanta gentileza e generosidade.
E por fim, mas certamente não menos importante, todas as boas pessoas de
Edgewood, do passado e de hoje, por me darem um lugar que sempre poderei
chamar de “lar”.
sobre o autor