Análise Fílmica Ícaro de Medeiros Fernandes

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

CURSO DE CINEMA E AUDIOVISUAL

Disciplina: Cinema e Estética I


Discente: Ícaro de Medeiros Fernandes

Exercício de Análise Fílmica: a Ancestralidade e o Caráter Estético em


BAKUËBON BOMPISËN TËKIKBO (Meninos soprando cana fina)
BAKUËBON BOMPISËN TËKIKBO (Meninos soprando cana fina) é um curta-
metragem documental que mostra uma atividade realizada por crianças de um povo
indígena na construção de uma espécie de brinquedo fabricado a partir de uma cana fina
que funciona como uma zarabatana não letal. A partir disso, o espectador passa a
experienciar todo o processo de construção desse objeto, desde a coleta da matéria-prima
até a técnica utilizada em seu manuseio. Com isso, para além de uma mera observação de
um exercício “infantil”, é interessante levar em conta alguns elementos que são expostos
não só no enredo como no modo em que o filme é construído.
Em primeiro lugar, sua ambientação desperta um caráter sensorial muito evidente
que levanta a questão se o objetivo da obra está mais focado em sua experiência estética
do que na estrutura narrativa em si. Essa percepção se constrói a partir do espaço onde
acontecem as cenas (a floresta) e é intensificada pela decupagem e o som.
No que diz respeito a escolha dos planos, há a predominância de planos médios e
fechados e, mesmo nos planos mais abertos, não há um ponto de respiro visual, ou seja,
a tela está constantemente preenchida pelos elementos silvestres, pelo verde vivo em
conjunto a tinta vermelha na pele dos meninos, evocando um ambiente vivaz e vibrante.
Em seguida, o som empregado é somente ambiente, não havendo a presença de
trilhas sonoras ou qualquer outro tipo. São os sons de pássaros, vento, água, chuva, insetos
que não colocados em um segundo ou terceiro plano, mas sim em primeiro, talvez
primeiríssimo plano, tornando-se também um personagem narrativo. Vale destacar que,
durante a exibição do filme, a forma como o som é ouvido muda também a forma com
que é percebido. Através dos alto-falantes: disperso, homogêneo. Por fones de ouvido:
concentrado, intenso.
É possível afirmar, portanto, que o filme quer que o espectador esteja presente na
cena, que seja ele também personagem, construindo seus próprios sentidos, imergindo
naquele universo que está sendo apresentado. Pode-se arriscar, inclusive, que o
espectador seja também diegético.
Em segundo lugar, a narrativa apresentada não pode passar despercebida. Vê-se
uma atividade lúdica: a criação de um brinquedo, por assim dizer. O filme se preocupa
com todos os passos do processo de montagem desse objeto e as crianças o
complementam ao dizer como vão utiliza-lo.
O objetivo é simples: matar gafanhotos, mas há muito mais coisas por trás dessa
fala. Cada criança remete a um parente que usa da zarabatana nas atividades ordinárias
de caça. A cana fina que usa bolinhas de argila como munição é, então, um reflexo de
uma prática adulta, mostrando como os costumes e a cultura de um povo se desenvolvem
desde a infância, aliás, o tema que fica em destaque nesse filme é a ancestralidade.
Em um pequeno gesto, numa pequena amostra cultural, abre-se um leque de
discussões que fazem de Bakuëbon uma espécie de estopim ou, quem sabe, a porta de
entrada, o convite, para um aprofundamento acerca da cultura indígena. Não está sendo
apresentada uma atividade banal, frívola, sem importância. Está sendo exposta uma
tradição e identidade que perdurou apesar da colonização, não só por meio de sua
atividade física, mas também de sua linguística, já que o filme todo se passa no idioma
de seu povo. Há aqui uma série de camadas antropológicas e conceituais que vêm à tona
a cada nova reprodução da obra.
À guisa de conclusão, ao fundir ambos elementos discutidos ao longo da análise,
é possível perceber que BAKUËBON BOMPISËN TËKIKBO (Meninos soprando cana
fina) não é um filme de cotidiano somente, de intuito contemplativo. É um expositor
sociocultural que, através de um suporte tão popular e cada vez mais acessível, propõe
um debate sobre um tema necessário para se discutir, principalmente, o Brasil em suas
raízes.
Ademais, é importante levar em consideração que essa obra foi realizada também
por indígenas, ou seja, não é o olhar de alguém de fora que está sendo mostrado. É o olhar
de quem convive intimamente com o objeto narrativo e que, por isso, o trata com tanta
propriedade e com caráter tão identitário. É a cultura indígena sendo apresentada por ela
mesma construindo uma experiência estética própria embebida em suas influências
internas.
Isso traz também uma discussão importante de ser levantada que é o quanto as
tecnologias atuais, e aqui precisamente as do audiovisual, proporcionaram a difusão,
divulgação e debate de temáticas e costumes que, na inexistência desses suportes,
estariam invisíveis às demais sociedades correndo o risco de sumirem em um futuro
próximo ou de nunca serem abordadas. A era da reprodutibilidade técnica ao mesmo
tempo que desfiou a autenticidade, ou a aura, das obras artísticas, como discute Walter
Benjamin, também tornou possível o surgimento de novas expressões que produziram sua
própria autenticidade evoluindo, com isso, o modo de fazer artístico.
REFERÊNCIAS:

BARROS, Laan Mendes de. Experiência estética e experiência poética: a questão da


produção de sentidos. In: ANAIS DO 21° ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS,
2012, Juiz de Fora. Anais eletrônicos... Campinas, Galoá, 2012. Disponível em:
https://proceedings.science/compos/compos-2012/papers/experiencia-estetica-e-
experiencia-poetica--a-questao-da-producao-de-sentidos?lang=pt-br

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In. Obras
Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. Vol.1. São Paulo, Brasiliense, 1994.
7a edição.

LIMA, Afonso Dos Santos; CRUZ JUNIOR, Gilson. ENTRE A ANCESTRALIDADE


E A CIBERCULTURA: UM ESTUDO DE REVISÃO SOBRE TECNOLOGIAS
DIGITAIS E POVOS INDÍGENAS. Revista Docência e Cibercultura, [S. l.], v. 7, n. 3,
p. 55–76, 2023. DOI: 10.12957/redoc.2023.70621. Disponível em: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/re-doc/article/view/70621. Acesso em: 09 jul. 2024.

TREVISAN, Diego Kosbiau. Estética como “ciência do sensível” em Baumgarten e


Kant. In. ArteFilosofia, Ouro Preto, n.17, Dezembro 2014. (p. 170 a 181)

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