Proteção Materna em Face Ao Abuso Sexual Intrafamiliar

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 76

UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR

SUPERINTENDÊNCIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


MESTRADO EM FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

ISABELA ALVES MATTOS

MINHA FILHA: PROTEÇÃO MATERNA EM FACE AO


ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR

SALVADOR
2011
ISABELA ALVES MATTOS

MINHA FILHA: PROTEÇÃO MATERNA EM FACE AO


ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Família na Sociedade Contemporânea
da Universidade Católica do Salvador como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Família na Sociedade Contemporânea.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Isabel Maria Sampaio


Oliveira Lima

SALVADOR
2011
UCSAL. Sistema de Bibliotecas

M435 Mattos, Isabela Alves


Minha filha: proteção materna em face ao abuso sexual infantil
intrafamiliar/Isabela Alves Mattos. – Salvador, 2011.
75f.

Dissertação (mestrado) - Universidade Católica do Salvador.


Superintendência de Pesquisa e Pós-Graduação. Mestrado em
Família na Sociedade Contemporânea.
Orientação: Profa. Dra. Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima

1 Abuso Sexual 2. Proteção da Criança 3.Maternidade 4.Família


I.Universidade Católica do Salvador. Superintendência de Pesquisa
e Pós-Graduação II.Lima, Isabel Maria Sampaio Oliveira - Orientadora
III.Título.
CDU: 159.9.019.4
AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pelo dom da vida, por ter me concedido força e saúde para alcançar esta
etapa repleta de desafios e descobertas.

Aos meus amados pais e irmão que sempre me apoiaram, em especial à minha mãe pela
constante presença, colo e amizade, apesar da distância geográfica que nos separa.

Agradeço a minha orientadora Prof.ª Dr.ª Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima pela confiança,
sábias lições e tão grandioso suporte e estímulo essenciais para a realização do meu trabalho.

Ao grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Direito à Saúde e Família, por ter possibilitado o
meu primeiro contato com a pesquisa. A todos os membros do grupo agradeço o carinho com
que fui recebida, as contribuições e apoio.

Agradeço à Prof.ª Dr.ª Ana Cecília Bastos pela atenção dispensada e acolhida.

Ao grupo „maternos‟, pela valorosa oportunidade de conhecer um mundo novo, pelo qual
pretendo mergulhar.

Agradeço à Prof.ª Dr.ª Marilena Ristum pela disponibilidade em estar presente nessa etapa tão
importante da minha caminhada.

Aos meus queridos amigos e familiares que me apoiaram ao longo dessa trajetória. Em
especial à vovó Santinha pelas orações diárias que tanto me fortalece.

Ao corpo docente e administrativo do Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade


Contemporânea da Universidade Católica do Salvador.
RESUMO

MATTOS, I. A. Minha filha: proteção materna em face ao abuso sexual infantil intrafamiliar.
2011. 72 f. Dissertação (Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea) – Programa de
Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea, Universidade Católica do Salvador,
Salvador, 2011.

A temática do abuso sexual infantil consiste em um recente objeto de estudo nas diversas
áreas do conhecimento. Os avanços das ciências juntamente com o movimento acerca dos
Direitos da Criança favoreceram um novo olhar sobre a infância e sua proteção. Pesquisas
sobre o tema sugerem uma maior frequência do abuso sexual no ambiente familiar.
Considerando que os principais perpetradores são do sexo masculino, propõe-se uma reflexão
sobre a figura materna. A presente dissertação de mestrado teve como objetivo analisar a
proteção materna em face ao abuso sexual infantil intrafamiliar. O trabalho foi dividido em
dois artigos de natureza qualitativa, sendo um nomeadamente teórico e outro de caráter
mais empírico. No primeiro analisa-se a maternidade quando defrontada com casos de abuso
sexual infantil intrafamiliar, mediante revisão de literatura e revisão legislativa. Pondera-se
acerca das atuais concepções que envolvem a maternidade e a sua atribuição com os cuidados
e proteção da prole, sobretudo nas adversidades, como na ocorrência do abuso sexual. O
segundo artigo analisou a proteção materna quando da prática de abuso sexual com crianças
do sexo feminino no seio familiar. O delineamento empregado foi o estudo de um caso único
identificado no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente. Após a imersão no caso
emblemático, apreende-se que a resposta materna poderá ser determinante no rompimento da
violência e punição do agressor. Destaca-se a necessidade de programas públicos voltados
para as mães, visando à prestação de auxílio financeiro e psicológico que favoreçam a
realização da denúncia e o exercício da proteção. A dissertação cumpre o proposto e convida
à ampliação do necessário estudo sobre a proteção da filha pela mãe em circunstâncias de
abuso sexual intrafamiliar.

Palavras chave: abuso sexual; proteção da criança; maternidade; família.


ABSTRACT

The issue of child sexual abuse is a recent object of study in the many fields of knowledge.
Science development, along with the Rights of the Child movement, furthered a new outlook
on childhood and its protection. Researches on the subject suggest sexual abuse within the
family has been occurring more frequently. Considering that the main perpetrators are male, a
reflection on the mother figure is incumbent. The objective of this dissertation is to analyze
maternal protection in the face of intrafamilial child sexual abuse. This work has been divided
in two qualitative articles, whereby one is particularly theoretical, and the other, more
empirical. The former analyzes motherhood when confronted with cases of child sexual abuse
within the family, through literature and legislative reviews. It ponders current concepts
involving motherhood and their ascription to care and protection of offspring, especially
amidst adversity, such as sexual abuse. The latter examined motherly protection when girls
were sexually abused within the family. As its design the study of a unique case that occurred
at the Child and Adolescent Defense Center was employed. Through immersion in the typical
case, it is understood that the maternal response may be decisive to punish aggressors and put
an end to violence. This study highlights the need for public programs aimed at mothers and
at providing financial and psychological assistance that will encourage the pressing of charges
and the exercise of protection. This dissertation accomplishes what it sets out to do, and calls
for further studies on daughter protection by her mother in the event of sexual abuse within
the family.

Keywords: sexual abuse; child protection; motherhood; family.


SUMÁRIO

Apresentação
08
ARTIGO I: Maternidade e o abuso sexual infantil intrafamiliar: garantir um colo
protetor 11

13
Introdução
Histórico sobre a maternidade 15
A maternidade no Brasil 18
A mãe na contemporaneidade 22
O desafio do abuso sexual infantil intrafamiliar e a maternidade 26
Comentário final 32
Referências 34

ARTIGO II: Proteção materna em face ao abuso sexual infantil intrafamiliar 40

42
Introdução
Abuso sexual infantil 43
O abuso sexual infantil intrafamiliar e a proteção materna 47
Método 51
Resultados e discussão 55
Indícios dos abusos e a percepção materna 57
A culpa dos abusos 58
Entre a escuta da criança e a ação 59
Sentimento materno 60
Os passos até a realização da denúncia 61
Consequências familiares para a mãe após a revelação 63
Consequências financeiras após a realização da denúncia 64
Apoio recebido pela mãe 64
A sentença e uma nova posição 65
Considerações Finais 65
Referências 67

73
Reflexões Finais
8

APRESENTAÇÃO

O abuso sexual perpetrado contra crianças é uma temática de crescente notoriedade


nas áreas do conhecimento que estudam a infância e por grupos voltados a efetivação dos
direitos humanos. Nas últimas décadas, avanços nas áreas médicas, pesquisas no campo da
Psicologia e o reconhecimento jurídico como sujeitos de direitos, são fatores que favoreceram
a construção de um novo olhar para as crianças e as suas peculiares necessidades enquanto
pessoas em desenvolvimento.
A mobilização de diversos segmentos da sociedade, motivada pelas discussões que
ocorriam no plano internacional favoreceu a consolidação dos Direitos da Criança no Brasil
na década de 1990. A partir de então, debates, campanhas e mecanismos de incentivo à
denúncia da prática de abuso sexual contra a criança adquiriram força na mídia impressa e
televisiva, revelando para a sociedade um fenômeno que por centenas de anos permaneceu
restrito e silenciado ao recôndito espaço familiar.
O abuso sexual de crianças, enquanto uma espécie de violência sexual é um fenômeno
identificado em todo mundo, que em razão da gravidade e diversidade consequências
provocadas nas suas vítimas passou a ser considerada pela Organização Mundial da Saúde
como um sério problema de saúde pública. Contudo, a literatura adverte que esta espécie de
violência mostra-se bastante presente na história da humanidade, constituindo-se em uma
prática reconhecidamente influenciada pelos contornos de natureza sociohistórica e cultural.
No Brasil, o número de denúncias sobre essa espécie de violência sexual cresce a cada
ano. O serviço Disque Direitos Humanos (disque 100), criado pela Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência (SEDH/PR), o módulo atinente à criança e adolescente recebeu
4.911 denúncias de abuso sexual no Estado da Bahia, de maio de 2003 a março de 2011.
Somente nos três primeiros meses de 2011 foram realizadas 389 denúncias de abuso sexual no
Estado da Bahia, sendo a cidade de Salvador responsável pela maior quantidade de denúncias
no Estado, totalizando 123 (BRASIL, 2011).
A temática ora pesquisada, que congrega a proteção da criança pela figura materna nos
casos de abuso sexual intrafamiliar, surge a partir de uma confluência de acontecimentos na
trajetória da mestranda. Compõe esses fatos o primeiro contato com o fenômeno da violência
envolvendo crianças e adolescentes, quando estagiária da Defensoria Publica da Infância e
Juventude durante a graduação no curso de Direito.
9

A condição de professora da disciplina de Direito da Criança e do Adolescente fez


crescer a inquietação acerca do tema, que se fortaleceu com visitas realizadas a Organizações
Não Governamentais e serviços de atendimentos a crianças vítimas de violência sexual,
realizadas incialmente com o intuito de melhorar a exposição da disciplina ministrada, bem
como possibilitar visitas dos alunos.
Ao longo da investigação acerca da temática da violência contra a criança, novas
inquietações provocaram uma redefinição do objeto de pesquisa, que se voltava inicialmente
para os aspectos jurídicos e a infringência de princípios norteadores da norma constitucional e
infraconstitucional na prática de violência contra a criança.
Na revisão da literatura, a observação de dados que indicam uma grande ocorrência
dos abusos de natureza intrafamiliares, além da predominância dos agressores do sexo
masculino, apontou ao questionamento acerca do componente familiar do sexo feminino, com
uma nova questão de pesquisa: a mãe de crianças sexualmente abusadas.
Nesta fase de redefinição realizou-se uma revisão da produção acadêmica nacional
publicada no banco de teses da CAPES, no período entre 1987 e 2009. Esta atividade de
pesquisa foi articulada com os graduandos participantes do grupo de pesquisa Direitos
Humanos, Direito a Saúde e Família. No levantamento realizado, foram encontrados 91
trabalhos, entre teses e dissertações, utilizando os descritores “abuso sexual de crianças”,
“violência sexual infantil”, “abuso sexual” e “violência sexual”.
Verificou-se que em pese a farta produção acadêmica acerca da temática do abuso
sexual, há uma escassez de estudos sobre proteção exercida pela figura materna em face ao
abuso sexual infantil intrafamiliar. A análise do componente familiar materno, ganha maior
relevância ao se observar que no contexto de abuso sexual infantil a mãe é uma das pessoas
mais procuradas pela criança na busca por ajuda (FURNISS, 1993; HABIGZANG et al.,
2005). Consiste a resposta materna em um dos importantes fatores de proteção, pois ao
conhecer os abusos poderá adotar uma atitude diligente ao denunciar e favorecer o
rompimento do ciclo de violência.
A proteção materna é reforçada por discursos e programas que tem fortalecido as
representações das mulheres voltadas para a promoção da saúde dos seus filhos, requisitando
das mães uma diligente atuação, que deverá ser exercida durante todo o desenvolvimento da
sua prole (MEYER, 2003).
A prática do abuso contraria não somente um preceito social de conservação da
infância e da inocência das nossas crianças, mas também a legislação nacional. O abuso
sexual infringe os tabus e normas da sociedade (ROCHA, 2004) e se apregoa em qualquer
10

atividade entre uma criança e um adulto que, em razão da idade e da fase do desenvolvimento,
se encontra em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder (HABIGZANG, 2006).
A idealização da família como um locus de amor e proteção para as suas crianças, nem
sempre se mostra na prática. De tal modo, o presente trabalho fundamenta-se na concepção de
que o abuso sexual contra a criança infringe não somente um sujeito de direito vulnerável,
mas trata-se de uma maneira cruel de violar a sua formação física e psicológica, bem como
consiste no descumprimento do dever legal de proteção existente na legislação nacional e
internacional.
A apresentação em forma de artigos busca contemplar a natureza teórica e empírica da
temática. O primeiro artigo analisa a maternidade quando defrontada com casos de abuso
sexual infantil intrafamiliar. Enquanto o segundo artigo analisa a proteção materna em face ao
abuso sexual infantil intrafamiliar.
11

ARTIGO I

MATERNIDADE E O ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR:


GARANTIR UM COLO PROTETOR

Resumo

Diversas têm sido as mudanças relativas à condição feminina ao longo das últimas décadas.
No entanto, no discurso dominante ainda persiste a função materna enquanto atribuição da
mulher no cuidado e na proteção da prole. A mulher continua a ser concebida socialmente
como a responsável pelo equilíbrio familiar. O presente artigo visa analisar a maternidade
quando defrontada com casos de abuso sexual infantil intrafamiliar. Adota-se estratégia
qualitativa mediante uma revisão de literatura e revisão legislativa. A primeira foi realizada
com levantamento de artigos científicos em periódicos observando-se palavras-chave e
levantamento de livros. O resultado da revisão evidencia que variáveis sobre origem
econômico-social da mãe pode influenciar sua reação. Ademais, observa-se que a concepção
acerca da maternidade poderá alterar-se consoante determinada cultura ou contexto histórico-
social. Esta atuação feminina ganha relevância, sobretudo, na ocorrência de adversidades, tais
como o abuso sexual praticado contra seus filhos.

Palavras-chave: Maternidade; Abuso sexual; Proteção da Criança; Família.


12

Abstract

Many were the changes over the past decades regarding the status of women. However, the
dominant discourse is still set on the maternal role as being the women's duty to care for, and
protect, their offspring. Women are still seen as largely responsible for family balance. This
article intends to analyze motherhood when confronted with cases of child sexual abuse
within the family. A qualitative approach has been adopted, by means of literature and law
reviews. The first of them was conducted using scientific articles, and their keywords, in
journals, and books. Review conclusion shows that variables relative to the mothers' socio-
economic roots may influence their reaction. Moreover, it has been noted that the conception
of motherhood may change depending on cultural or socio-historical contexts. This female
role becomes important especially amid adversities, such as the sexual abuse against their
children.

Key-words: Motherhood; Sexual abuse; Child protection; Family.


13

Introdução

O presente artigo visa analisar a maternidade quando defrontada com casos de abuso
sexual infantil intrafamiliar. Adota-se uma estratégia qualitativa mediante uma revisão de
literatura e revisão legislativa. A primeira foi realizada com levantamento de artigos
científicos em periódicos observando-se palavras-chave e levantamento de livros. O resultado
da revisão evidencia que variáveis sobre origem econômico-social da mãe pode influenciar
sua reação. Ademais, observa-se que a concepção acerca da maternidade poderá alterar-se
consoante determinada cultura ou contexto histórico-social. Esta atuação feminina ganha
relevância, sobretudo, na ocorrência de adversidades, tais como o abuso sexual praticado
contra seus filhos.
O parto e a maternidade são importantes acontecimentos que conferem à mulher uma
nova condição. Consiste a maternidade em um momento de transição que enseja a redefinição
do lugar ocupado pela mulher (DIAS; LOPES, 2003) a partir do nascimento do filho. Esta
nova percepção emerge da vivência e desempenho da função de mãe. Identificando-se, pois,
neste papel culturalmente qualificado, a mulher cresce, diante de si e do significado que a
sociedade se lhe atribui.
As sociedades ocidentais modernas vivenciam nas últimas décadas uma grande
modificação dos valores e do papel social exercido pela mulher. Contudo, a presença de um
discurso dominante persiste ao enfatizar a tradicional visão de realização da mulher na
experiência da maternidade, quando reforça a adoção de práticas que são socialmente
encaradas enquanto „naturais‟(ROCHA-COUTINHO, 1994).
A existência de alguns mitos acerca da maternidade e suas atribuições orienta as
diversas atitudes e comportamentos condizentes com o exercício da “boa maternidade”
(TAKEI, 2008). Esta compreensão gera uma idealização do ser mãe enquanto uma obrigação
a ser conhecida por todas as mulheres, devendo ser experienciada de uma mesma maneira,
atendendo aos padrões previamente estabelecidos (FORNA, 1999).
Na cultura ocidental a maternidade consiste em uma experiência individual e
intergeracional, que assimila valores da cultura e requer da mãe determinadas atuações,
práticas e responsabilizações que são exercidas além da gestação e da primeira infância do
filho. Esta relação irá estender-se por um longo tempo de criação, pois envolve a prestação de
assistência e a proteção que possibilitem o desenvolvimento físico e psicoemocional da prole.
14

Em razão da existência de certas responsabilidades cultural e socialmente atribuídas ao


papel de mãe, aquelas mulheres que se afastam de um padrão „idealizado‟ podem vir a serem
consideradas egoístas, perversas ou desequilibradas (DIAS; LOPES, 2003). Tal concepção
enseja o surgimento do sentimento de culpa nas mulheres que não desempenham, de maneira
satisfatória, todas aquelas atribuições e exigências que lhes são conferidas (FORNA, 1999).
Entretanto, as experiências maternas não se mostram constantes no decorrer da
história, variando o seu exercício a depender da medida de concessão de cuidados e
envolvimento afetivo dispensado para com a prole. Recentes estudos têm reforçado as
características e padrões de conduta da mulher no exercício da maternidade enquanto uma
produção sócio-cultural, mostrando-a para além de um evento biológico (DIAS; LOPES,
2003; SCAVONE, 2004; SOLE; PARELLA, 2004; COUTINHO; MENANDRO, 2009).
Avanços ocorridos no decorrer do século XX, dentre eles o movimento feminista, as
novas tecnologias contraceptivas, a industrialização e a extensão do ensino superior,
favoreceram a entrada das mulheres nos espaços públicos e no mercado de trabalho,
possibilitando outras vivências além da maternidade. Contudo, Carvalho et al. (2008)
ressaltam que, ao longo da história, qualquer que tenha sido a participação da mulher no
mercado de trabalho, estas exerceram e continuam a exercer uma dupla jornada de cuidados
com os filhos e os afazeres domésticos.
A despeito de todas as transformações sociais sobrevindas nas últimas décadas,
antigos discursos sociais prosseguiram robustecendo o papel das mulheres na família
enquanto mães e esposas. A figura materna ainda guarda o símbolo cultural e socialmente
construído da personificação do amor e do afeto, consistindo na principal intermediadora de
conflitos no lar (SERPA, 2010). Este papel, que deverá ser desempenhado, sobretudo, nas
hipóteses de adversidades relacionadas à prole, também deverá ser cumprido na ocorrência do
abuso sexual intrafamiliar.
O abuso sexual infantil intrafamiliar é considerado um dos grandes males da sociedade
contemporânea. Trata-se de um complicado problema de saúde pública que atinge crianças
em todo mundo (MARTINS; JORGE, 2010), circunstância que demanda uma análise dos
componentes familiares, além do papel da mãe, sua ausência ou eventual silêncio diante do
problema. A análise acerca da figura materna ganha especial relevância, uma vez que estudos
apontam as mães como os atores adultos primordiais na proteção da sua prole, sendo também
a resposta materna face ao abuso elencada como um dos fatores chaves na recuperação da
criança (HOPPER, 1994).
15

Histórico sobre a maternidade

Em uma análise acerca da maternidade, Correia (1998) ressalta que a maneira como a
gravidez e a maternidade são vividas pela mulher relaciona-se com dois fatores: o elemento
cultural que interfere no sentir e nas atitudes; além dos elementos intrínsecos que se
relacionam com os traços individuais de personalidade da mulher. Não é possível, portanto,
falar em um único padrão de maternidade, mas em distintas maternidades (SOLE; PARELLA,
2004) que irão variar de acordo com uma gama de elementos.
A vivência da maternidade relaciona-se com a dinâmica da sociedade em um dado
momento histórico. Oscilando o modo de ser encarada de acordo com as percepções e valores
existentes acerca da infância, dos direitos dos homens e mulheres no contexto social, a
maternidade varia, sobretudo de acordo com a classe social (ENGELS, 2002).
Trabalhos de revisão histórica acerca da família e dos seus membros indicam que o
incondicional amor da mãe para com seus filhos é característica relativamente atual dentro na
história da civilização ocidental. Ressalta-se que contrariamente ao pensamento dominante
acerca da maternidade na sociedade contemporânea, o amor materno não consiste em algo
intrínseco à natureza feminina, mas em um mito (BADINTER, 1985; FORNA, 1999;
MOURA; ARAÚJO, 2004).
Observa-se que o interesse e a afeição das mães modificam-se em cada época. Ao
discutir o assunto Correia (1998, p. 366) salienta a relação entre os valores e o papel dos pais:
“Será em função das exigências e dos valores dominantes de uma sociedade determinada que
são determinados os papéis respectivos do pai, da mãe e da criança”.
A maternidade é permeada por uma diversidade de sentimentos e práticas, que traduz
elementos sociohistóricos. Para Badinter (1985) o amor materno consiste em algo imperfeito e
extremamente complexo distante de ser extinto, uma vez que não se observa ao longo da
história uma conduta universalmente atribuída à mãe.
Ao fazer uma análise antropológica acerca da maternidade, Kitginzer (1978) aponta
que grande parte do que é entendido como natural, consiste, em verdade, como produto da
cultura. Afirma a autora que somente nos primeiros momentos de vida e nas iniciais relações
entre a mãe e o bebê se observa algo de instintivo. No entanto, nas sociedades com padrões
tecnológicos, como na ocidental, este primeiro contato mostra-se influenciado por práticas
culturais.
A literatura ressalva que até meados do século XVIII inexistia um sentimento acerca
da infância e uma afeição entre os membros da família (ÀRIES, 2006). Como o amor materno
16

não era reconhecido enquanto um valor social, as mães dispensavam pouco ou nenhum
cuidado ou atenção especial para sua prole, sendo as práticas com relação às crianças muitas
vezes pautadas em condutas violentas. Nessa perspectiva o homem ocupava o lugar central na
estrutura familiar igualando a condição da esposa à da criança, isto é, de subordinação e
domínio (MOURA; ARAÚJO, 2004).
Ao pesquisar a maternidade e o nascimento em diversas civilizações e contextos
históricos, Kitzinger (1978) lembra que o abandono e o infanticídio foram práticas comuns ao
longo da história. Enquanto Pereira (2008) assinala que na família romana o pai possuía um
domínio absoluto sobre os seus filhos exercendo um direito de proprietário, concepção que
lhe permitia castigar, mandar flagelar ou banir da família. O controle da vida ou de morte dos
filhos pela autoridade paterna poderia ser motivado por razões de ordem religiosa ou
meramente para a manutenção do controle de natalidade.
Na Grécia Antiga apenas eram conservadas vivas as crianças fortes, sendo admissível
o abandono de crianças defeituosas pelas próprias famílias. O abandono era uma prática
corriqueira na Antiguidade, sendo legal e moralmente aceitável o poder de escolha do pai pela
vida da sua prole (AMIN, 2008).
Tecendo considerações acerca dos cuidados dispensados às crianças na Antiguidade,
estudos revelam que os adultos tinham o pensamento que estas “[...] existiam para atender às
necessidades e à comodidade [...]” dos mais velhos (SANDERSON, 2008, p. 2). Consoante o
pensamento existente as crianças defeituosas eram vistas como responsáveis pelas desgraças
na família. Esta compreensão conferia certa naturalidade às práticas de infanticídio e
abandono que, à época, não despertavam nenhuma oposição social ou materna.
A violência contra as crianças existente outrora não ocorria somente no plano físico,
mas também através do envolvimento destas em atividades de natureza sexual. O fato de
serem as crianças encaradas enquanto adultos em miniatura favorecia que os jogos e assuntos
sexuais fossem práticas socialmente permitidas em todas as classes sociais
independentemente da idade (ÀRIES, 2006).
Um dos primeiros indicadores da rejeição materna, contudo, era observado na recusa
da mãe em dar o seio para o seu filho. Para exercer esse encargo as famílias contratavam amas
de leite, prática muito comum na França entre os séculos XIII e XVIII, quando o costume se
estendeu por todas as camadas sociais (BADINTER, 1985). Nesse período os textos
direcionados para as mães pregavam que as carícias e ternuras eram sinônimos de fraqueza e
de pecado. Legitimava-se, assim, o afastamento do contato físico entre a mãe e a criança,
embora estivesse a prole em fase de crescimento, desenvolvimento e a demandar cuidados.
17

A ausência de valorização do status materno e das tarefas desempenhadas pela mãe na


sociedade (FORNA, 1999) provocava nas mulheres um comportamento de rejeição à
maternidade, desencadeando uma ausência de zelo e cuidado com os recém-nascidos e uma
consequente elevação do número de óbitos de crianças.
Com o advento da Revolução Industrial diversas foram as mudanças no panorama
político-econômico da sociedade. Esse novo modelo favoreceu o desaparecimento das
estruturas extensas de parentesco, ao mesmo tempo em que a separação entre os espaços
públicos e privados foi se delineando. O primeiro passou a ser atribuído exclusivamente aos
homens, cabendo à mulher a responsabilidade pelo espaço privado da casa e os cuidados com
a prole. Configurou-se, assim, a passagem da família feudal para a família burguesa.
Sinais de uma primeira mudança começaram a ocorrer por volta do final do século
XVIII, motivadas pela modernização que ocasionou uma espécie de “revolução das
mentalidades” (BADINTER, 1985), florescendo uma nova imagem da mãe e uma valorização
da sua função na família. Este novo papel demandava um preparo: “Ao contrário da família
tradicional, a nova mulher „moderna‟, deveria ser educada para desempenhar o papel de mãe e
de suporte ao homem” (DINIZ; COELHO, 2005, p. 149-150).
As percepções acerca da „nova‟ mulher, bem como as atribuições e a importância na
esfera familiar e social foram modificando-se com o passar dos anos (MOURA; ARAÚJO,
2004). Após o ano de 1760 surgem, na Europa, publicações que passam a exaltar o amor
materno enquanto um valor, aconselhando as mães a amamentar e criar pessoalmente os seus
filhos. Observa-se uma mudança de valores, em face da própria compreensão das relações
humanas que então adviria mediante o estudo das Ciências.
Os discursos de natureza política e filosófica objetivavam convencer as mulheres e a
toda sociedade acerca da relevância da função materna na formação dos filhos (COUTINHO;
MENANDRO, 2009). Da mesma forma que o discurso médico auxiliou na propagação das
novas ideias ao afirmar a responsabilidade da mãe pela vida e saúde da sua prole (MOURA;
ARAÚJO, 2004). Ao analisar a maternidade e a construção do novo papel da mãe, Scavone
(2004) ressalva que ela foi influenciada por um conjunto de elementos, dentre eles, a
construção do lar, o nascimento do ideal do amor romântico e as mudanças nas relações entre
pais e filhos.
A consolidação da família burguesa propiciou a concentração do núcleo familiar com
a mulher assumindo o papel de guardiã do lar e única responsável por seus filhos no que
concerne à educação, à felicidade e aos cuidados, sendo a função de esposa e de mãe,
reconhecida como o alicerce da sociedade. Essa nova mentalidade fez nascer a determinação
18

da maternidade como a atividade mais doce e primordial na vida da mulher, circunstância que
permitiu a criação do mito que perdura até os dias atuais: o do instintivo amor da mãe por
seus filhos (COUTINHO; MENANDRO, 2005).
A solidificação do novo pensamento no decorrer do século XIX materializou-se em
uma ideologia que exalta a função da mulher como mãe, restringindo a sua atribuição social à
concretização da maternidade (SCAVONE, 2004). Houve um declínio do poder patriarcal e o
crescimento da responsabilidade das mães acerca da criação dos filhos. Nessa época cria-se
para mulher um novo dever, prevalente sobre todos os demais, qual seja, o de ser mãe.

A maternidade no Brasil

A configuração familiar do Brasil-colônia possui como ponto de partida o modelo


patriarcal. A sociedade colonial era voltada para a figura do patriarca, dono não somente do
latifúndio, mas também da sua família, sendo a mulher considerada sua propriedade
(NARVAZ, 2005). No contexto social do século XVI, a mulher era vista como uma
mercadoria que compunha a realidade de casamentos arranjados, cabendo a estas após a
celebração da união a atribuição cuidar da casa e servir ao marido como reprodutora
(NARVAZ; KOLLER, 2006).
Não era observada na organização social da colônia a distinção entre os ambientes
privados e públicos (MOURA; ARAÚJO, 2004). No interior da casa confundiam-se o
trabalho com a vida familiar e pequena ou nenhuma diferenciação era feita no tocante a
utilização dos cômodos. Nessa família tradicional, a mulher tinha um lugar subserviente,
devendo obediência ao seu pai, irmão ou marido e, em razão da inexistência de
recomendações ou práticas sociais que aconselhasse zelo ou atenção especial para com as
crianças.
A maternidade, nessa época, não era reconhecida enquanto uma prática com valor
social. O abandono de crianças ocorria nas diversas classes sociais, sendo praticado tanto por
mães escravas, que tinham a esperança que seu filho fosse considerado livre, como também
nas classes mais altas, sobretudo, para acobertar os filhos ilegítimos. O abandono era uma
prática comum na sociedade, não consistindo um crime (VENÂNCIO, 2007).
A literatura especializada tece algumas considerações acerca das diversas
configurações familiares existentes na época colonial. Os múltiplos desenhos oscilavam em
razão da região do país no qual a família se encontrava, gerando uma diversidade no tocante
19

às atividades desempenhadas pelas mulheres (MOURA; ARAÚJO, 2004). Deste modo,


enquanto na região nordeste as mulheres tinham as suas atividades restritas aos afazeres
domésticos, na região sudeste a figura feminina desempenhava um papel social mais ativo
(DINIZ; COELHO, 2005). A participação feminina no meio social se dava em razão da
ausência dos homens que se engajavam no processo de colonização, cabendo às mulheres a
administração da fazenda e escravos, circunstância que não lhes retirava o seu lugar de
submissão.
No final do século XVIII e decorrer do século XIX observa-se no Brasil a passagem
do modelo latifundiário de base feudal para uma nova configuração familiar de influência
burguesa. Com a Proclamação da República no ano de 1889, o país passou por uma série de
modernizações, tais como o projeto de urbanização e a abolição da escravatura (NEDER,
1994).
Com o desenvolvimento das cidades no século XIX, lentas mudanças começaram a
acontecer na disposição do espaço do lar, que se tornou mais aconchegante e distante do
domínio público, circunstância que favoreceu o processo de privatização da família e
valorização da intimidade (D‟INCAO, 2007). Os discursos, as concepções, e
consequentemente, a posição socialmente ocupada pelas mulheres modernizaram-se.
Nessa nova configuração introduzida pela sociedade burguesa o homem cedeu o lugar
de proprietário da família para exercer o papel de pai e provedor da sua esposa e filhos
(NARVAZ; KOLLER, 2006). A mulher moderna deixa de pertencer ao marido e servir
exclusivamente às suas vontades, passando a desempenhar a função de mãe, responsável pela
educação e cuidado com a sua prole e de suporte para o esposo.
Uma nova forma de submissão feminina é criada sob a forte influência do discurso
higienista que atribuía às mulheres uma natureza frágil e dócil, responsável pela vida saudável
da sua família (ROCHA-COUTINHO, 1994). Nessa perspectiva, a presença feminina deveria
estar restrita ao ambiente doméstico para exercer a maternidade de forma plena e dar suporte
para o esposo, que exercia o trabalho fora de casa, posição que implicava no não-desempenho
de atividades remuneradas pela mulher. O processo de modernização provocou mudanças na
vida doméstica, a mãe passou a ver vista socialmente como o símbolo da honra familiar.
Ressalta-se, todavia, que este era o projeto direcionado às mulheres brancas, sobretudo as das
classes mais privilegiadas (DINIZ; COELHO, 2005).
O novo pensamento predominante acabava por gerar constantes pressões e
preconceitos contra as mulheres das classes populares, que não correspondiam aos novos
ideais existentes socialmente de recato e amabilidade. Essas atitudes eram observadas em
20

razão da saída das mulheres mais pobres do seu lar para realizar uma atividade remunerada
em outros ambientes, motivadas pela necessidade de assumirem a condição de chefes da
família (SOIHET, 2007).
No século XX o modelo de família dominante no Brasil ligava-se aquele no qual a
família formada pelos cônjuges e os filhos viviam sob o mesmo teto. Observou-se, a partir de
então, uma rígida divisão do trabalho e de papéis dentro do grupo social, sendo o homem o
provedor e a mulher a responsável pelos filhos e pela casa (DINIZ; COELHO, 2005). As
diferenças entre os homens e mulheres na sociedade “acarretou o sentido de inferioridade da
mulher e produziu uma forma muito particular de subjetividade” (ROCHA-COUTINHO,
1994, p. 43), baseada no sentimento de passividade feminino.
Um movimento histórico composto de duas vertentes deu origem à nova mãe, ou seja,
ao mesmo tempo em que as mulheres alcançaram a libertação do poder patriarcal, distintos
poderes passaram a controlá-la, tal como o poder médico. A construção, pela ciência da
época, de uma natureza tipicamente feminina, fez com que toda a mulher que adotasse uma
postura contrária ao novo padrão social dominante fosse encarada como uma mãe
„desnaturada‟, ou seja, como alguém que não observava a disposição que lhe era „natural‟
(ROCHA-COUTINHO, 1994).
Apreciando as mudanças na família brasileira, Samara (2002) destaca, que nessa fase
de consolidação de um ideal burguês, apesar das mudanças nas atribuições da mulher e da sua
importância, das novas concepções acerca da infância e do despertar do amor familiar, a vida
seguiu girando em torno da figura masculina, detentor dos espaços públicos, característica
respaldada pela legislação da época.
No Código Civil de 1916 o marido continuava a ser o chefe da família e o detentor do
pátrio poder. A mulher casada só estaria autorizada a trabalhar com prévia autorização do
marido (NARVAZ; KOLLER, 2006). Restringia-se o acesso ao emprego formal e à
propriedade das mulheres, pois eram entendidas como incapazes de exercer os atos da vida
civil, ocasião em que somente a ausência do marido permitia à estas assumirem a liderança da
família. Da mesma maneira, crianças não eram legalmente encaradas como sujeitos de
direitos.
A escolarização para as meninas no Brasil continuou defasada por um longo período.
O acesso restringia-se apenas ao ensino básico, que favorecesse um bom desempenho dos
cuidados e a transmissão de valores aos filhos, bem como a supervisão das atividades
domésticas. No entanto, algumas mudanças no tocante ao papel da mulher na sociedade
21

brasileira aconteceram em meados do século XX, alcançando aquelas que faziam parte das
classes médias urbanas e da elite.
Lentamente as mulheres foram se profissionalizando e ocupando espaços em
profissões menos valorizadas, uma vez que, até a década de 1930 a presença destas nos cursos
superiores era insignificante. Todavia, ressalta-se a constante presença feminina nos setores
informais, sobretudo as mulheres das classes mais baixas que contribuíam no orçamento da
família (SAMARA, 2002). No início do século XX, a participação feminina se limitava às
atividades de nível não qualificado do país, especialmente na indústria têxtil (VIODRES
INOUE, 2007).
A delimitação de limites para a atuação social feminina favoreceu a consolidação das
desigualdades entre os homens e mulheres, gerando um maior poder do sexo masculino, que
prosseguiu inabalado por um extenso período da história (COUTINHO; MENANDRO,
2009). No entanto, como as identidades não consistem em determinantes estáveis e imutáveis,
outras possibilidades foram possíveis para as mulheres em decorrência das mudanças
desencadeadas no decorrer do século XX (ROCHA-COUTINHO, 2005).
Alterações mais expressivas desse contexto começaram a acontecer na década de
1970, com o advento do movimento feminista (DE SOUZA; BALDWIN, 2000). O
feminismo, ao propor uma nova posição social para a mulher, trouxe em seu conteúdo um
novo discurso, através do qual visava vencer o antigo pensamento de passividade e docilidade
femininas, passando a questionar o papel das mães e as suas funções voltadas exclusivamente
para os cuidados dos filhos e da casa. Nesse movimento, aquilo que antes era compreendido
como essencial na vida das mulheres, passa à condição de desvalorizado e diminuído
(BAPTISTA, 1995).
O aperfeiçoamento da medicina, aliado ao desenvolvimento de novas tecnologias
favoreceu o surgimento dos métodos de contracepção que possibilitaram para as mulheres o
rompimento com um determinismo biológico, conferindo a estas um maior domínio sobre o
seu corpo e uma livre escolha da maternidade. Nesse momento ocorre a dissociação entre a
sexualidade da mulher e a reprodução (BRANDÃO; RABINOVICH, 2008).
O maior acesso à educação, o aumento da formação profissional, somada à efetiva
possibilidade de inserção das mulheres no mercado de trabalho, em decorrência da
regulamentação do trabalho feminino pela Consolidação das Leis do Trabalho no ano de
1941, favoreceram o questionamento da condição no qual estas se encontravam na sociedade,
passando a dividirem o seu papel de mãe com o trabalho fora do lar.
22

Nesse novo contexto, a função materna deixa de ser considerada a única fonte de
alegria e preocupação na vida das mulheres, surgindo novos ideais a serem alcançados
conjuntamente ao exercício da maternidade. A identidade feminina passa a estruturar-se a
partir dessa variedade de papéis por ela desempenhados, sem, todavia, retirar a importância do
papel materno (TAKEI, 2008).
Ao passo em que a mulher se desligava de um determinismo biológico no tocante à
maternidade, a importância não só da figura feminina, mas também de toda a família com os
cuidados e proteção da criança foi reforçada pelas novas concepções internacionais acerca da
Dignidade da Pessoa Humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações
Unidas, de 1948, preceituou que à infância é conferido o “direito a cuidados e assistência
especiais”, sentimento oriundo do pós-guerra, que imprimiu um novo olhar para os segmentos
menos favorecidos, como as mulheres e crianças.

A mãe na contemporaneidade

No decorrer do século XX houve uma alteração na experiência da maternidade no


Brasil, que acabou por favorecer a impressão de um “novo perfil à família” (WAGNER et al.,
2005). As mudanças sociais, tecnológicas e econômicas favoreceram transformações nas
configurações familiares brasileiras e nas expectativas e funções de seus membros
(RABINOVICH; MOREIRA; FRANCO, no prelo). Observa-se uma diminuição do número
de filhos, sobretudo, nas classes médias e altas (SCAVONE, 2004), proporcionada, dentre
outras, pelo fácil acesso aos métodos contraceptivos, que conferiu à mulher uma maior
liberdade no exercício de sua sexualidade.
Análises acerca das transformações na família brasileira apontam para o crescimento
do acesso das mulheres à educação e sua consequente inserção no mercado de trabalho
enquanto um importante evento para a formação de novos arranjos familiares, assumindo as
mulheres em um número cada vez mais elevado o papel de chefes de família (BRUSCHINI;
PUPPIN, 2004; SCAVONE, 2004; WAGNER et al., 2005).
Apesar de presenciamos diversas mudanças nos discursos e expectativas no que
concerne às atribuições com relação ao papel da mulher na sociedade, culturalmente as
representações sociais acerca da maternidade seguem amplamente baseadas no mito de uma
mãe perfeita (AZEVEDO; ARRAIS, 2006), subsistindo a ideia de que a maternidade é
essencial e inata à mulher.
23

Para Wagner et al. (2005) a entrada da mulher no mercado de trabalho acarretou


diversas transformações nas relações entre os casais, favorecendo o declínio do poder e a
superioridade masculina. A autora ressalta, entretanto, que pesquisas atuais vêm apontando
um descompasso entre esses fenômenos sociais, ou seja, a branda e gradual participação
masculina nos afazeres domésticos e cuidados com os filhos não acompanha, na mesma
proporção, os avanços da participação das mulheres no mercado de trabalho.
Não obstante ao crescente questionamento por parte de alguns grupos acerca da
imposição de um amor absoluto e intrínseco da mãe para com seus filhos, a visão de um ideal
materno que atribui a imagem de amabilidade e de responsabilidade feminina pelo bem estar
psicológico e emocional da família prosseguem até então presente no senso comum
(FALCKE; WAGNER, 2000). Subsiste na contemporaneidade o modelo de família pautado
nas concepções burguesa e patriarcal, no qual as relações de parentesco seguem marcadas
pela autoridade paterna sobre a mãe e filhos (NARVAZ, 2005).
Ao analisarem as condições das mães e as características que o sentimento materno
vem tomando na contemporaneidade, Moura e Araújo (2004) observam que na mesma
medida em que diminui a determinação biológica das mulheres com relação à maternidade,
maior é o espaço que o papel assumido por estas no tocante aos cuidados e proteção dos seus
filhos.
Estudos realizados por (ROCHA-COUTINHO, 2005) reforçam a idéia de que, a
despeito do discurso existente socialmente referir-se ao casamento ideal enquanto aquele onde
o marido e a mulher, na mesma proporção, invistam nas suas carreiras e partilhem a
responsabilidade nos cuidados e educação dos filhos, pesquisas continuam a indicar para o
fato de que tanto os homens quanto as próprias mulheres, demonstram crer que a prole e a
casa são responsabilidade femininas, cabendo ao homem o encargo do provimento financeiro
da família.
Rocha-Coutinho (2005) aponta, ainda, que antigas concepções acerca do papel
materno são observadas nas classes mais altas, ao entrevistar 15 executivas cariocas e concluir
que todas elas encaram a maternidade enquanto essência da condição feminina e a coisa mais
importante na vida da mulher. As participantes afirmam que a mãe é a principal responsável
pelos os filhos, atribuindo-se ao pai um papel secundário.
A mesma concepção é observada nas classes mais baixas consoante revisão de
literatura realizada por Diniz e Coelho (2005), que ressaltam a forte presença de uma
concepção pautada no discurso patriarcal e burguês, sobretudo nas famílias negras e mestiças,
que vivenciaram um grande processo de desvalorização. Ressalta-se a persistência de uma
24

cobrança feita pelas próprias mulheres em torno do exercício da maternidade, função esta que
muitas vezes se inicia durante a infância ou adolescência através dos cuidados com os irmãos
mais novos.
No mesmo sentido, um estudo realizado através de aplicação de questionário com 170
universitários que faziam curso de diferentes áreas, na capital e interior do estado da Bahia,
aponta que para 93,5% dos participantes a mãe é vista como aquela que mais protege a
família. Do mesmo modo, a responsabilidade pela estabilidade familiar foi atribuída à mãe
para 84,1% dos participantes, merecendo ainda destaque o papel de suporte emocional,
creditado em 91,7% das respostas à figura feminina (RABINOVICH; MOREIRA; FRANCO,
no prelo).
Moreira e Rasera (2010) sugerem que os significados e os sentidos que as mulheres
conferem ao fenômeno da maternidade nos dias atuais persistem amplamente influenciados
por concepções de natureza sociohistórica. Estas descrevem a maternidade como algo
revestido de extrema beleza, amor, instinto, isto é, como um evento natural e divino, que deve
ser vivenciado por todas as mulheres. Compreensão que solidifica peculiares sentidos acerca
do que é ou necessitaria ser a maternidade, instituindo formas e padrões para bem exercê-la
que interferem nas práticas diárias das mães.
Os autores elucidam que as mudanças sociais, econômicas, assim como a propagação
das normas de conteúdo higienistas, dentre outras, possibilitaram o surgimento de um
discurso que dedica à mulher a responsabilidade pelo cuidado e educação dos filhos. Edifica-
se a noção da boa mãe, passando a ser encarada enquanto tal aquela mulher que busca cumprir
o que lhe é atribuído, sendo a figura feminina visualizada como a única ativa nesse contexto
cabendo o papel de cuidado, proteção e desenvolvimento do seu filho.
Meyer (2006) denominou de “politização da maternidade” aos diversos movimentos
das redes de poder-saber que sustentam o discurso sobre as práticas, políticas, programas que
criam os modos de monitorar, produzir e definir a maternidade. Essas redes são influenciadas
por diversos discursos, sobretudo pelas ciências, como a medicina, psicologia e o direito.
A racionalidade neoliberal, juntamente com os avanços legislativos acerca dos direitos
da criança, provocou o surgimento de políticas que imputam a responsabilidade da mulher ao
tornar-se mãe, de conceber e criar filhos saudáveis e equilibrados, independentemente das
condições e problemas por ela enfrentados (MEYER, 2006).
Juntamente com a concepção oriunda do movimento sociocultural acerca da
maternidade e das suas funções nos dias atuais, temos a previsão o dever de proteção imposto
pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989), adotado pela Constituição
25

Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) que atribui em regime de
corresponsabilidade à família, sociedade e ao Estado o papel de proteção e cuidado com as
crianças.
Resta claro, todavia, através da análise dos dispositivos legais, a intenção do legislador
nacional e internacional em atribuir à família como o primeiro núcleo responsável pelo
cuidado e dedicação às suas crianças. Visando assegurar-lhes um crescimento adequado a
Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989) prevê expressamente no seu
preâmbulo a importância da família para a formação destas, “Reconhecendo que a criança,
para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da
família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão” (ONU, 1989).
Essa atribuição decorre de elementos como a consanguinidade e do fato da família ser
o ambiente através do qual a criança se insere na relação da vida em sociedade. A família
consiste no primeiro contexto de desenvolvimento onde são construídos diversos
“significados e práticas que orientam e influenciam as trajetórias desenvolvimentais dos
indivíduos” (BASTOS et al., 2007, p. 164-165).
A família possui um importante papel de formação, proteção e segurança das crianças.
Para tanto, se atribui um poder-dever aos pais que deverão zelar pelo sadio desenvolvimento
dos seus filhos, concedendo afeto e os recursos materiais necessários para um crescimento
digno. As funções da família estão centradas em três pontos apontados por Biasoli-Alves e
Moreira (2007): consiste no principal agente de socialização, determinando como as práticas
na educação serão dimensionadas; permite o convívio de pessoas de diversas idades,
possibilitando a formação da identidade primeira; abarca na natureza do vínculo afetivo entre
pais e filhos, o cuidado e a transmissão de valores.
A família mantém, assim, a sua importância enquanto instituição, independentemente
do arranjo ou desenho com a qual se estrutura. De acordo com a nova perspectiva
constitucional e estatutária as responsabilidades e funções da instituição familiar adquiriram
grande relevância, sendo amplamente demandadas, sobretudo nas hipóteses de adversidades.
Em algumas situações, contudo, a instituição familiar não consegue bem desempenhar a
função de proteção dos seus membros atribuída legalmente, a exemplo das situações de
violência, como abuso sexual de crianças, onde ocorre uma quebra nos limites internos das
relações familiares.
Na contramão da previsão legislativa, o que se observa nos casos de abuso sexual
intrafamiliar é uma inversão dos papéis atribuídos aos pais, onde aquele que deveria moralizar
e proteger passa a violar o mais frágil. Nesse sentido Donati (2008, p. 40) expressa “A família
26

é capaz de mediar relações que geram saúde, e também causar carências e desvios, como nos
casos de abuso de crianças e isoladamente de um idoso”.

O desafio do abuso sexual infantil intrafamiliar e a maternidade

O abuso sexual é compreendido enquanto uma danosa forma de violência perpetrada


contra crianças e adolescentes (MACHADO, 2006). Consiste em uma violação aos direitos
fundamentais de integridade física e psicológica da criança, bem como à liberdade para
desempenhar a sua sexualidade consoante o seu grau de desenvolvimento (VASCONCELOS
et al., 2010). A literatura especializada estima ser esta uma prática antiga, mas que somente
despertou a atenção social com o advento do movimento feminista, ao dar publicidade a temas
como a sexualidade, até então considerados como tabus, passando os abusos a partir de então,
a ser objeto de estudo por diversas ciências (MÈLLO, 2006).
Aspectos de natureza médica, psicológica e legal envolvem a prática do abuso sexual
favorecendo um crescente questionamento dos pesquisadores no tocante a essa espécie de
violência ao longo das últimas décadas. Dois fatores instigaram a um novo olhar sobre o
abuso sexual: a consolidação do movimento dos direitos da criança e o reconhecimento e
preocupação com a saúde da criança (FURNISS, 1993).
Na presente revisão, que abrangeu uma vasta pesquisa bibliográfica acerca da temática
em análise, observou-se uma confusão terminológica na utilização dos termos abuso e
violência sexual, empregados como sinônimos e equivalentes a um mesmo conceito.
Evidenciando, assim, a ausência de uma clara definição sobre o tema. Alguns trabalhos
apontam o equívoco na utilização dos termos, nesse sentido Viodres Inoue (2007), ressalta
que os entraves iniciam-se na própria definição acerca da violência sexual, tema bastante
controverso, que envolve elementos de natureza cultural e religiosa.
Ao analisarem os conceitos, Faleiros e Campos (2000, p. 8) constataram a imprecisão
teórica e conceitual, preceituando que “a categoria violência é um elemento
constitutivo/conceitual, e, portanto, explicativo de todas as situações em que crianças e
adolescentes são vitimizados sexualmente”. Concluem serem os abusos sexuais, dentre outras
práticas, como uma espécie de violência sexual. No mesmo sentido compreendem o Relatório
Mundial Sobre Violência e Saúde, realizado em Genebra (2002) e demais pesquisadores
(FALEIROS; CAMPOS, 2000; VASCONCELOS et al., 2010; CARDOSO; MENEZES,
2009; FALEIROS; RADICCHI, 2010).
27

O abuso sexual infantil é uma espécie de violência sexual em que um adulto aproveita-
se de uma criança ou adolescente para atender o seu prazer sexual (DEZA, 2005). Para tanto,
o abusador utiliza-se de diversos artifícios para envolver a criança que não possui capacidade
e maturidade suficiente para entender a prática dos atos abusivos. Sendo um fenômeno
observado nas mais diversas classes sociais (BAPTISTA et al., 2008).
Algumas pesquisas, ao não distinguirem a violência sexual do abuso sexual, acabam
correndo no risco de favorecer outra ambiguidade entre os conceitos de abuso e exploração
sexual, afirmando que o conceito daquela “engloba ainda a situação de exploração sexual
visando lucros, como prostituição e pornografia” (ROCHA, 2004, p. 92). A utilização do
abuso sexual e da exploração sexual enquanto sinônimos, revela distinta falta de clareza das
práticas por parte da literatura. Apesar do abuso e da exploração sexual consistirem em
conceitos muito próximos e em formas de violência sexual que vitima crianças e adolescentes,
tratam-se de situações diversas, que não se confundem, na medida em que possuem marcantes
traços distintivos.
No presente artigo adota-se, em fidelidade à necessária distinção, os conceitos
estabelecidos por Faleiros e Radicchi (2010) ao instituírem que a diferenciação entre os dois
fenômenos se fundamenta na natureza da relação constituída entre a vítima e o agressor. Na
prática do abuso sexual tem-se uma relação de natureza pessoal, íntima com caráter sexual,
enquanto na exploração sexual observa-se uma relação de natureza mercantil, onde a criança é
explorada sexualmente visando lucro, estando configurada nas formas de turismo sexual e
prostituição. Esta distinção é apontada tanto por organizações especializadas em proteção de
direitos da criança como o Childhood (VASCONCELOS, 2006), quanto por especialistas
(FALEIROS; CAMPOS, 2000; ARAÚJO, 2002; CARDOSO; MENEZES, 2009; VERAS,
2010; VASCONCELOS et al., 2010).
Entende-se o abuso sexual como uma espécie de violência que envolve a prática de
qualquer ato sexual entre uma criança ou adolescente com pessoa que possui um estágio
psicossexual mais avançado, sendo a vítima utilizada pelo perpetrador para a sua gratificação
ou estimulação sexual (HABIGZANG et al., 2005). Esclarecendo as questões conceituais
entende Faleiros e Campos (2000, p. 7) que:
Em síntese, o abuso sexual deve ser entendido como uma situação de ultrapassagem
(além, excessiva) de limites, de direitos humanos, legais, de poder, de papéis, do
nível de desenvolvimento da vítima, do que esta sabe e compreende, do que o
abusado consentir, fazer e viver, de regras sociais e familiares e de tabus.

Alguns estudos propõem que a definição do abuso sexual abarque elementos


fundamentais, tais como as diferenças de idade, o tipo de comportamento desempenhado e as
28

práticas de coerção (PETERS; WYATT; FINKELHOR, 1986). No mesmo sentido, Deza


(2005) sugere a presença de elementos básicos para configuração do abuso sexual, tal como a
coerção, a assimetria de idade e o aproveitamento pelo abusador da sua condição de
superioridade.
Os atos que caracterizam o abuso sexual podem variar desde a manipulação da
genitália, carícias, voyeurismo, exibicionismo, além do próprio ato sexual com ou sem
penetração (PFEIFFER; SALVAGNI, 2005). No que concerne ao contexto da prática do
abuso sexual, este poderá ocorrer tanto no ambiente familiar, como fora deste (FALEIROS
CAMPOS, 2000; HABIGZANG; CAMINHA, 2004).
Entende-se por abuso sexual extrafamiliar os atos de caráter sexual que ocorrem fora
do seio familiar, envolvendo na maioria das vezes pessoas desconhecidas das vítimas.
Enquanto o abuso sexual intrafamiliar, também denominado de incesto, trata-se de uma
violência que ocorre dentro da própria família (SANTOS; DELL‟AGLIO, 2008). Esta forma
de abuso é perpetrada, em muitos dos casos, por pessoas próximas à criança e que deveriam
exercer o papel de cuidador, utilizando-se o agressor da proximidade e do vínculo que possui,
não para proteger e promover o bem-estar físico e psicológico, mas sim para abusar.
O abuso sexual perpetrado contra crianças, em especial no ambiente familiar, é um dos
grandes males da sociedade contemporânea, sendo considerado um complicado problema de
saúde pública (MARTINS; JORGE, 2010). O abuso sexual é um grave evento que atinge
crianças e adolescentes de todo mundo, gerando inúmeros impactos de natureza emocional e
psicológica nas suas vítimas (QUIROZ; PEÑARANDA, 2009).
Diversos estudos comprovam as graves consequências desencadeadas com a prática do
abuso sexual envolvendo crianças, dentre eles observa-se a ocorrência de problemas de ordem
social, emocional e cognitivo, que consoante a literatura especializada, podem se manifestar a
curto ou longo prazo nas vítimas. Dentre as possíveis consequências provocadas destacam-se
os transtornos psicológicos de humor, ansiedade, alterações alimentares, hiperatividade,
déficit de atenção e transtorno de estresse pós-traumático (HABIGZANG et. al., 2006).
Furniss (1993) elucida que as consequências psicológicas provocadas na criança em
razão do abuso sexual encontram-se relacionadas a sete fatores, quais sejam: idade do início
do abuso; a duração do abuso; grau de violência ou ameaça de violência; a diferença de idade
entre a pessoa que cometeu o abuso e a criança que sofreu o abuso; quão estreitamente
estavam relacionadas à pessoa que cometeu o abuso e a criança; a ausência de figuras
parentais protetoras; grau do segredo.
29

Embora o abuso sexual ocorra com crianças do sexo masculino, as pesquisas


assinalam que “gran parte de las víctimas son de sexo femenino” (PEREDA et al., 2007, p. 5),
dado que é identificado nas ocorrências do abuso intra e extrafamiliares. O fato das vítimas
mais frequentes do abuso sexual ser meninas encontra sua origem “no padrão falocrático de
relações sociais de gênero” (AZEVEDO, 2004, p. 43), circunstância que é reafirmada ao se
observar que a grande parte dos agressores é do sexo masculino.
Aponta a literatura que nos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar, os principais
agressores são os pais e padrastos. Há estudos que evidenciam a tendência convergente no
tocante aos principais abusadores. Baptista (2008), em pesquisa realizada através de uma
análise documental registrada pelo Programa Sentinela na cidade de Campina Grande no
período de janeiro de 2005 a dezembro de 2006, verificou que dos 27 casos de abuso
intrafamiliares, os principais agressores foram o padrasto (33,3%) e o pai compondo (29,7%)
das notificações.
Ao analisarmos os dados de pesquisas realizadas sobre a prática de abuso sexual
intrafamiliar onde os pais e padrastos são apontados como os grandes perpetradores da
violência (HABIGZANG et al., 2005; MARTINS; JORGE, 2010), temos uma circunstância
que coloca a mãe enquanto uma pessoa a que a situação de violência contra seu (s) filho (s) é
revelada. Nas famílias em que acontece o abuso sexual de crianças, “as mães geralmente têm
o papel do progenitor não-abusivo. Nesse papel a função protetora é crucial no abuso sexual
prolongado” (FURNISS, 1993, p. 53).
A análise acerca da figura materna adquire especial relevância no contexto de abuso
sexual, uma vez que as mães são compreendidas enquanto os atores adultos primordiais na
proteção da sua prole, sendo também a resposta materna face ao abuso elencada como um dos
fatores chaves na recuperação da criança (HOPPER, 1994), diante dessa concepção, mesmo
na ausência de um suporte social ou legal, ainda assim, “as mães são valoradas conforme se
aproximam ou não desse ideal de cuidado associado à maternidade” (MOREIRA; NARDI,
2009, p. 574).
Como a representação social da mulher mostra-se largamente centrada no âmbito
familiar “cabendo a ela o cuidado afetivo aos membros da família à qual pertence” (SERPA,
2010, p. 16), a falta de amor, cuidado e proteção da mãe é socialmente encarada como um
delito imperdoável que não sendo passível de superação por nenhuma outra virtude.
Estudos apontam que a despeito da atribuição social e legal à figura materna do
equilíbrio familiar e intermediação de conflitos, esta poderá esboçar diversas reações em face
ao conhecimento do abuso sexual praticado contra sua prole. Algumas pesquisas mostram a
30

mãe como participante ativa no contexto do abuso sexual, situação em que figura como
cúmplice ou facilitadora da violência (QUIROZ; PEÑARANDA, 2009), circunstâncias em
que são apontadas enquanto negligentes e permissivas, deixando assim de exercer a função de
cuidado e proteção.
Nessas circunstâncias a mãe se mostra presente nas situações de abuso sexual, o que
sugere o conhecimento da violência por ela, que acaba por constituir “um conluio perverso
com o pai” (DIAS, 2010, p. 169), apoiando o agressor ao permanecer em silêncio. Em muitos
desses casos, a mãe por ser dependente financeiramente e emocionalmente do agressor, acaba
por ser forçada a participar das práticas abusivas, situação em que a filha passa a ocupar o
lugar até então atribuído a mãe dentro do contexto familiar, exercendo a função sexual
(FORWAR; BUCK, 1989).
Ao tomar conhecimento do abuso, a mãe poderá adotar, contudo, uma atitude
socialmente esperada de cuidado e proteção. Tal conduta poderá acontecer através do
oferecimento da denúncia pela mãe, uma vez que ela propicia a intervenção da esfera pública
no ambiente privado (lar), elemento que favorece ao afastamento do abusador e a inclusão da
vítima em algum programa de tratamento.
Acerca da iniciativa de proteção através da denúncia do agressor, um estudo realizado
a partir da análise de processos de casos de violência, que foram ajuizados pelas Promotorias
Especializadas na Infância e Juventude no município de Porto Alegre no período de 1992 a
1998, na análise de 71 expedientes observou-se que a denúncia da violência sexual foi feita
pela mãe em 37,6% dos casos, em 29% a própria vítima ofereceu a denúncia, em 15,1%
outros parentes, e em 6,5% a denúncia foi feita por instituições, como escolas, hospitais
(HABIGZANG et al., 2005), verificando-se o diligente papel materno.
Todavia, a atitude de proteção por meio da denúncia da mãe não consiste em um dado
uniforme. Em sentido diverso, pesquisa realizada por Martins e Jorge (2010) em análise dos
prontuários sobre os casos notificados de abuso sexual no município de Londrina no ano de
2006, verificou que das 186 notificações realizadas, 67,2% foi feita principalmente por
pessoas da família, como tios, irmãos, cunhados e primos, a mãe aparece na pequena
porcentagem de 8,1% dentre os denunciantes, seguida de diretor de escola e pai e
profissionais da saúde.
O estudo realizado por Pires-Filho (2009) na Região Metropolitana de Recife, através
entrevistas semiestruturadas realizadas com sete psicólogas que trabalhavam em instituições
que prestam atendimento às crianças vítimas de abuso sexual, quatro participantes apontaram
a mãe exclusivamente como a pessoa que mais realiza a denúncia, e que o abusador é afastado
31

do ambiente familiar. O estudo traz, igualmente, o olhar das participantes acerca das
dificuldades enfrentadas pelas famílias. Estas, ao realizar a denúncia, deparam-se com o
problema de sobrevivência, pois, em muitos casos, o abusador é o próprio provedor da casa.
Esclarece o autor, contudo, que em alguns casos o abusador encontra a proteção da família,
que nega a violência por diversas motivações, dentre elas, em razão da percepção deste como
uma pessoa doente que necessita de cuidados.
A literatura atenta para o fato de que a denúncia consiste em uma iniciativa muitas
vezes difícil de ser tomada, tanto pela mãe, como pelos demais membros da família
apontando que, em muitos dos casos de seu oferecimento junto ao órgão competente, não
ocorreu no momento em que se tomou conhecimento do abuso sexual, elemento que sugere
dificuldade em oferecer a denúncia e quebrar com o ciclo de violência.
Nesse sentido Habigzang et al. (2005) identificou em sua pesquisa realizada por meio
da análise de processos denunciados nos anos de 1992 a 1998 no Município de Porto Alegre,
que dos 71 expedientes identificados, em 61,7% dos casos alguma pessoa relatou já ter
conhecimento da violência sem ter oferecido a denúncia. Destes casos, dentre as pessoas que
já tinham conhecimento anterior da situação abusiva 55,2% eram a mãe, 54,3% os irmãos e
10,3% outras pessoas que não faziam parte do contexto familiar, dados que demonstram a
dificuldade não só da família, mas também da sociedade em denunciar as suspeitas ou
constatação de abuso sexual.
Acerca da dificuldade materna em adotar um papel de cuidado e proteção, tal como o
oferecimento da denúncia, estudos indicam que embora a grande parcela das mães confiasse,
ao menos em parte, no relato da criança, “algumas não conseguiam emitir respostas de apoio e
proteção, evidenciando ambivalência ou inconsistência” (SANTOS; DELL‟AGLIO, 2009,
p.86-87). Esta circunstância de conferir pouca credibilidade ao relato infantil demonstra não
existir uma constante entre as mães que acreditam nas revelações dos filhos enquanto mães
protetoras ou não. Acreditar no relato não implica, pois, em uma atitude diligente. Pode
ocorrer, inclusive, o silêncio e a conivência. Entende-se a proteção como um papel proativo
que gere segurança para a vítima e imediata interrupção da prática abusiva.
Elementos outros tais como “a percepção do papel de ser mãe” (SANTOS;
DELL‟AGLIO, 2009, p. 91) e algumas concepções e aspectos que guardam relação com a
maternidade, podem ainda influenciar nas respostas maternas. Podendo ainda a mãe não
reconhecer o abuso buscando manter o aparente equilíbrio e segurança familiar, “pois revelá-
lo representaria reconhecer o fracasso de seu papel como mãe e esposa” (MARTINS; JORGE,
2010, p. 251).
32

A condição de inferioridade em que muitas mulheres se colocam na relação conjugal,


também acaba por propiciar atitudes abusivas, “ao se colocarem na condição de inferioridade,
as próprias mulheres delegam poderes a seus maridos, companheiros e pais” (ARAÚJO,
2002, p. 9). Outros fatores como as ameaças, medo de perder a família, ou ainda por questões
de dependência financeira do abusador acabam por dificultar o oferecimento da denúncia por
parte da mãe. O temor em relação à vida futura, uma vez que terá de enfrentá-la sem o ajuda
de seu marido ou companheiro. A literatura ressalta que outros elementos favorecem o temor
materno para realizar denúncia, dentre eles, o receio do rompimento com as pessoas da
família e conhecidos.
Em um estudo realizado por Santos e Dell‟Aglio (2009) foram entrevistadas 10 mães
de meninas sexualmente abusadas que estavam sendo atendidas em um programa de um
hospital público do Município de Porto Alegre, sendo que em oito casos, dos dez analisados, a
mãe foi a primeira pessoa a tomar conhecimento sobre o abuso. O que para as autoras
demonstra a importância da mãe, não somente enquanto pessoa a quem se conta sobre a
violência, “mas também para oferecer apoio e poder auxiliar a vítima a lidar com as
repercussões do abuso” (SANTOS; DELL‟AGLIO, 2009, p. 89).
Foi observado no estudo que as respostas das mães à notícia do abuso sexual praticado
contra suas filhas se localizavam em duas dimensões somente: a da credibilidade e a da ação.
Estando a dimensão da credibilidade ligada ao crédito ou descrédito no relato do abuso sexual
pelos filhos, já a dimensão da ação relaciona-se a inciativa ou não de denunciar. Chegando à
conclusão de que não existe uma direta relação entre o crédito no relato da criança e a tomada
de uma atitude protetiva como o afastamento do abusador ou a denúncia.

Comentário Final

O conceito de maternidade é encarado atualmente de uma nova maneira, apesar de


ainda observarmos socialmente a existência da remota lógica de que o “feminino se cumpre
no materno; como se o materno não fosse uma possibilidade do feminino, mas o feminino ele
mesmo” (LEAL, 1995, p. 3).
À mulher, igualmente, mantém-se a antiga atribuição de responsabilidades pela casa,
pelos filhos e do bem-estar do marido (BIASOLI-ALVES, 2000). As diversas mudanças por
que passou a sociedade no decorrer do século XX, favoreceu uma modificação do no lugar
ocupado pela mulher, que passou a atuar na esfera pública e a exercer um maior domínio
33

sobre a sua sexualidade. Apesar da inserção feminina em novos espaços e a possibilidade de


novas escolhas para além da maternidade, esta continua a viver sob o ideal de antigas
representações, sendo exigido das mães o antigo padrão idealizado (AZEVEDO; ARRAIS,
2006). Na família contemporânea por mais que seja observado um aumento da participação
do pai no ambiente doméstico, à mãe persiste uma maior demanda para com a casa e os filhos.
Embora a revisão da literatura e a revisão legislativa tenham apontado para um novo
papel social da mãe na contemporaneidade e o novo status da criança como sujeito de direito,
estes avanços exigem do compromisso do cuidado materno ações diligentes e firmes para a
defesa da prole. Entre essas ações, o abuso sexual infantil intrafamiliar consiste em uma das
circunstâncias definem uma atitude que poderá vir a modificar as relações domésticas.
As análises de pesquisas demonstram não haver uma conduta uniforme das mães
quando se trata dessa espécie de violência. Estas poderão figurar enquanto partícipes ou
perpetradoras dos abusos, podendo a sua conduta em outros casos ser diligente, circunstância
que favorecerá o rompimento do ciclo de violência. Ressalta-se a importância da criação de
programas de auxílio visando amparar as mães e conferir suporte financeiro para que possam
realizar e prosseguir com a denúncia de modo a lhes conferir a força protecional diante da
“minha filha”, enquanto ser que merece e demanda o colo materno e sua voz ativa.
34

Referências

AMIN, A. R. Doutrina da proteção integral. In: Maciel, K. (Org.). Curso de direito da


criança de do adolescente: aspectos teóricos e práticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
p. 11-17.

ARAÚJO, M. F. Violência e abuso sexual na família. Psicol. estud., Maringá, v. 7, n. 2, p. 3-


11, dez. 2002.

ÀRIES, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

AZEVEDO, E. O incesto em série. In: PIZÁ, G.; BARBOSA, G. (Orgs.). A violência


silenciosa do incesto. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Rio de Janeiro:
Clínica Psicanalítica da Violência, 2004. p. 66-77.

AZEVEDO, K. R.; ARRAIS, A. O mito da mãe exclusiva e seu impacto na depressão pós-
parto. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 19, n. 2, p. 269-276, 2006.

AZEVEDO, M.; GUERRA, V. N. Vitimação e vitimização. In: AVEZEDO, M.; GUERRA,


V. (Orgs.). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu, 1989. p.
25-48.

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1985.

BAPTISTA, R. S. et al. Caracterização do abuso sexual em crianças e adolescentes notificado


em um Programa Sentinela. Acta paul. enferm., São Paulo, v. 21, n. 4, p. 602-608, 2008.

BAPTISTA, S. M. Maternidade e profissão: oportunidades de desenvolvimento. São Paulo:


Casa do Psicólogo, 1995.

BASTOS, A. C. S. et al. Conversando com famílias: crise, enfrentamento e novidade. In:


CARVALHO, A. M.; MOREIRA, L. V. (Orgs.). Família, subjetividade, vínculos. São
Paulo: Paulinas, 2007. p. 157-193.

BIASOLI-ALVES, Z. M. Continuidades e rupturas no papel da mulher brasileira no século


XX. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 16, n. 3, p. 233-239, dez. 2000.

BRANDÃO, A.; RABINOVICH, E. P. Crianças com/sem família de Mapele, Salvador.


Temas em psicologia, v. 16, n. 2, p. 159-170, 2008.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.

______. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal n. 8069, de 13 de julho de 1990.


Brasília: Senado Federal, 1990.

BRUSCHINI, C.; PUPPIN, A. Trabalho de mulheres executivas no Brasil no final do século


XX. Cad. Pesqui., São Paulo, v. 34, n. 121, p. 105-138, abr. 2004.
35

CARDOSO, T. A.; MENEZES, R. E. Violência sexual e ausência do Estado: contexto de


violências contra crianças e adolescentes. In: Associação Nacional dos Centros de Defesa da
Criança e do Adolescente. A defesa de crianças e adolescentes vítimas de violências
sexuais. ANCED: São Paulo, 2009. p. 159-166.

CARVALHO, A. M. et al. Mulheres e cuidado: bases psicobiológicas ou arbitrariedade


cultural? Paidéia (Ribeirão Preto), Ribeirão Preto, v. 18, n. 41, p. 431-444, dez. 2008.

ONU. Convenção dos Direitos da Criança. Nova York: ONU, 1989.

CORREIA, M. J. Sobre a maternidade. Análise Psicológica, v. 16, n. 3, p. 365-371, set. 1998.

COUTINHO, S. M.; MENANDRO, P. R. A dona de tudo: um estudo intergeracional sobre


representações sociais de mãe e esposa. Vitória: Ed. Facastelo/GM, 2009.

DEL PRIORI, M. Apresentação. In: DEL PRIORI, M. (Org.). História das mulheres no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2007. p. 7-10.

D‟INCAO, M. A. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007. p. 233-240.

DE SOUZA, E.; BALDWIN, J. R.; ROSA, F. H. A construção social dos papéis sexuais
femininos. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 13, n. 3, p. 485-496, 2000.

DEZA, S. V. Factores protectores en la prevención del abuso sexual infantil. Liberabit, n. 11,
p. 19-24, 2005.

DIAS, A. C.; LOPES, R. C. Representações de maternidade de mães jovens e suas


mães. Psicol. estud., Maringá, v. 8, n. esp., p. 63-73, 2003.

DIAS, M. B. Incesto e o mito da família feliz. In: DIAS, M. B. (Org.). Incesto e alienação
parental: realidades que a justiça insiste em não ver. São Paulo: RT, 2010. p. 153-185.

DINIZ, C.; COELHO, V. A história e as histórias de mulheres sobre o casamento e a família.


In: FERES-CARNEIRO, T. (Org.). Família e casal: efeitos da contemporaneidade. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2005. p. 138-157.

DONATI, P. Família no século XXI: abordagem relacional. São Paulo: Paulinas, 2008.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do estado. São Paulo:


Centauro, 2002.

FALEIROS, E. T.; CAMPOS, J. O. Repensando os conceitos de violência, abuso e


exploração sexual de crianças e adolescentes. Brasília: UNICEF, 2000.

FALEIROS, E. T.; RADICCHI, L. C. Pedofilia, adoecimento e crime. Revista Jurídica


Consulex, a. XIV, n. 315, p. 36-37, fev. 2010.

FALCKE, D.; WAGNER, A. Mães e madrastas: mitos sociais e autoconceito. Estud. psicol.
(Natal), Natal, v. 5, n. 2, p. 421-441, dez. 2000.
36

FORWARD, S.; BUCK, C. O incesto e sua devastação. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

FORNA, A. Mãe de todos os mitos: como a sociedade modela e reprime as mães. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1999.

FURNISS, T. Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre:


Artes Médicas, 1993.

HABIGZANG, L. F. et al. Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: aspectos observados em


processos jurídicos. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 21, n. 3, p. 341-348, dez. 2005.

HABIGZANG, L. F. et al. Grupoterapia cognitivo-comportamental para meninas vítimas de


abuso sexual: descrição de um modelo de intervenção. Psicol. clin., Rio de Janeiro, v. 18, n.
2, p. 163-182, 2006.

HOOPER, C. Madres sobrevivientes al abuso sexual de sus niños. Nueva Visión: Buenos
Aires, 1994.

LIMA, J. A.; ALBERTO, M. As vivências maternas diante do abuso sexual


intrafamiliar. Estud. psicol. (Natal), Natal, v. 15, n. 2, p. 129-136, ago. 2010.

KITGINZER, S. Mães: um estudo antropológico da maternidade. São Paulo: Editorial


Presença/Martins Fontes, 1978.

LEAL, I. Nota de abertura. Análise psicológica, v. 8, n. 4, p. 365-366, 1990.

LEAL, I. Nota de abertura. Análise psicológica, v. 12, n. 1-2, p. 3-4, 1995.

MACHADO, M. L. A revelação do abuso sexual e seu impacto sobre o contexto familiar:


estudo com crianças atendidas em um serviço público para as vítimas de violência sexual.
2006. 154 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006.

MARTINS, C. B.; JORGE, M. H. Abuso sexual na infância e adolescência: perfil das vítimas
e agressores em município do sul do Brasil. Texto contexto - enferm., Florianópolis, v. 19, n.
2, p. 246-255, jun. 2010.

MÉLLO, R. P. A Construção da noção de abuso sexual infantil. Belém: EDUFPA, 2006.

MEYER, D. E. A politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento.


Revista de Gênero, Niterói, v. 6, n. 1, p. 81-104, 2006.

MOREIRA, L. E.; NARDI, H. C. Mãe é tudo igual? Enunciados produzindo maternidade(s)


contemporânea(s). Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 17, n. 2, p. 1-9, ago. 2009.

MOREIRA, R. L.; RASERA, E. Maternidades: os repertórios interpretativos utilizados para


descrevê-las. Psicol. Soc., Florianópolis, v. 22, n. 3, p. 529-537, dez. 2010.

MOURA, S. M.; ARAUJO, M. F. A maternidade na história e a história dos cuidados


maternos. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 24, n. 1, p. 44-55, mar. 2004.
37

NARVAZ, M. G. Submissão e resistência: explodindo o discurso patriarcal da dominação


feminina. 2005. 191 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Curso de Pós-Graduação em
Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2005.

NARVAZ, M. G.; KOLLER, S. H. A concepção de família de uma mulher-mãe de vítimas de


incesto. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 19, n. 3, p. 395-406, 2006.

NARVAZ, M. G.; KOLLER, S. H. Famílias e patriarcado: da prescrição normativa à


subversão criativa. Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 49-55, abr. 2006.

NEDER, G. Ajustando o foco das lentes: um novo olhar sobre a organização das famílias no
Brasil. São Paulo. Cortez/UNICEF, 1994.

QUIROZ, M. I.; PEÑARANDA, F. C. Significados y respuestas de las madres al abuso


sexual de sus hijas(os). Rev. latinoam. cienc. soc. niñez juv. 7, n. 2, p. 1027-1053, 2009.

PASSARELA, C.; MENDES, D. D.; MARI, J. Revisão sistemática para estudar a eficácia de
terapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes abusadas sexualmente com
transtorno de estresse pós-traumático. Rev. psiquiatr. clín., São Paulo, v. 37, n. 2, p. 60-65,
2010.

PEREDA, N. B. et al. Revista d’ Estudis de la Violencia, n. 1, p. 60-65, 2007.

PEREIRA, T. S. Direito da criança e do adolescente: uma proposta interdisciplinar. Rio de


Janeiro: Renovar, 2008.

PETERS, S; WYATT, E; FINKELHOR, D. Prevalence. In: FINKELHOR, D. (Ed.). A


sourcebook on child sexual abuse. London: Sage, 1986.

PFEIFFER, L.; SALVAGNI, E. Visão atual do abuso sexual na infância e adolescência. J.


Pediatr. (Rio J.), Porto Alegre, v. 81, n. 5, p. 197-204, nov. 2005.

PIRES FILHO, M. Abuso sexual em meninos: a violência intrafamiliar através do olhar do


psicólogo que atende em instituições. Curitiba: Juruá, 2009.

RABINOVICH, E. P.; MOREIRA, L. V.; FRANCO, A. Papéis, comportamentos, atividades e


relações entre os membros da família baiana (no prelo).

ROCHA, T. Da violência à denúncia: a violência sexual e os recursos médico-assistenciais.


In: PIZÁ, G.; BARBOSA, G. (Orgs.). A violência silenciosa do incesto. São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo/Rio de Janeiro: Clínica Psicanalítica da Violência, 2004. p.
92-104.

ROCHA-COUTINHO, M. L. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações
familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

______. Quando o executivo é uma “dama”: a mulher, a carreira e as relações familiares. In:
FÉRES-CARNEIRO, T. (Org.). Família e casal: arranjos e demandas contemporâneas. Rio
de Janeiro: Ed. PUC-Rio/São Paulo: Loyola, 2003. p. 57-78.
38

______. Variações sobre um antigo tema: a maternidade para mulheres com uma carreira
profissional bem-sucedida. In: FÉRES-CARNEIRO, T. (Org.). Família e casal: efeitos da
contemporaneidade. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio, 2005. p. 122-137.

SAMARA, E. O que mudou na família brasileira. Psicol. USP, São Paulo, v. 13, n. 2, p. 27-
48, 2002.

SANDERSON, C. Abuso sexual em crianças. São Paulo: M. Books, 2008.

SANTOS, S.; DELL'AGLIO, D. Compreendendo as mães de crianças vítimas de abuso


sexual: ciclos de violência. Estud. psicol. (Campinas), Campinas, v. 25, n. 4, p. 595-606,
dez. 2008.

______. Revelação do abuso sexual infantil: reações maternas. Psic.: Teor. e


Pesq., Brasília, v. 25, n. 1, p. 85-92, mar. 2009.

SERPA, M. G. Perspectivas sobre papéis de gênero masculino e feminino: um relato de


experiência com mães de meninas vitimizadas. Psicol. Soc., Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 14-
22, abr. 2010.

SCAVONE, L. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Ed.
UNESP, 2004.

SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORE, M. (Org.).
História das mulheres no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 2007. p. 362-400.

SOLÉ, C; PARELLA, S. “Nuevas” expressiones de la maternidade: las madres com carreras


professionales “exitosas”. RES, n. 4, p. 67-92, 2004.

TAKEI, R. F. A maternidade adolescente como uma experiência familiar: uma análise de


narrativas de mães de diferentes níveis socioeconômicos. 2008. 167 f. Dissertação (Mestrado
em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2008.

VASCONCELOS, A. M. Navegar com segurança: protegendo seus filhos da pedofilia e da


pornografia infanto-juvenil. São Paulo: CENPEC, 2006.

VASCONCELOS, K. L. et al. Características da violência sexual sofrida por crianças


assistidas por um programa de apoio. Rev. Rene, Fortaleza, v. 11, n. 1, p. 38-47, jan./mar.
2010.

VIODRES INOUE, S. R. Violência sexual contra a criança: significações e estratégias de


enfrentamento adotadas pelas mães. 2007. 218 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) –
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

VIODRES INOUE, S. R.; RISTUM, M. Violência sexual contra a criança: estratégias de


enfrentamento adotadas pelas mães. Revista Interamericana de Psicología, v. 44, n. 3, p.
556-566, 2010.
39

VENÂNCIO, R. P. Maternidade negada. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História das


mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007. p. 189-222.

VERAS, T. O Sistema Nacional de Combate ao Abuso e a Exploração Sexual Infanto-juvenil


e o Plano Nacional: um exemplo de política pública aplicada. Cad. EBAPE. BR, Rio de
Janeiro, v. 8, n. 3, p. 404-421, set. 2010.

WAGNER, Adriana et al. Compartilhar tarefas? Papéis e funções de pai e mãe na família
contemporânea. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 21, n. 2, p. 181-186, ago. 2005.

WHO. World report on violence and health. Geneva: WHO, 2002.


40

ARTIGO II

PROTEÇÃO MATERNA EM FACE AO ABUSO SEXUAL INFANTIL


INTRAFAMILIAR

Resumo

O tema abuso sexual infantil intrafamiliar tem sido objeto de estudos recentes em diversas
áreas do conhecimento. Tem-se que a partir da Convenção sobre Direitos da Criança de 1989,
a proteção da criança constituiu matéria de estudos específicos. O presente artigo objetiva
analisar a proteção materna em face ao abuso sexual praticado contra suas filhas dentro do
círculo familiar. Trata-se de um estudo qualitativo com seleção de um caso emblemático. O
delineamento utilizado foi o estudo de caso, realizado através de visita, diário de campo,
entrevistas em profundidade e análise documental da ação penal pública. Esta apura a
responsabilidade penal do autor do abuso, instaurado em razão da iniciativa materna. Os
resultados evidenciam que a atitude materna pode vir a ser decisiva no rompimento do ciclo
da violência. Ademais, constata-se ausência de programas públicos direcionados às mães que
visem o auxílio psicológico e financeiro e a limitada especialização dos profissionais
envolvidos no atendimento às situações de abusos contra crianças.

Palavras-chave: maternidade; proteção integral; abuso sexual; família.


41

Abstract

The topic of child sexual abuse within the family has been the subject of recent studies in
several fields of knowledge. It is necessary to start with the 1989 Convention on the Rights of
the Child, in which child protection was a matter of specific studies. This article aims to
analyze motherly protection in the face of sexual abuse against their daughters, in their
families. It is a qualitative study whereby a representative case has been selected. This case
study stands for the design used, and was carried out through visitations, field diaries, in-
depth interviews and criminal prosecution documentary analyses. The latter investigates the
criminal responsibility of the actor of the abuse, and was instituted by reason of the mother's
initiative. Results show that the maternal attitude may be decisive in breaking the cycle of
violence. Moreover, there are no mother-directed public programs aimed at psychological and
financial aid or at the limited expertise by professionals working in child abuse services.

Key-words: motherhood; full protection; child abuse; family


42

Introdução

O tema abuso sexual infantil intrafamiliar tem sido objeto de estudos recentes em
diversas áreas do conhecimento (AMAZARRAY; KOLLER, 1998; DREZETT, 2001;
MACHADO et al., 2005; PFEIFFER; SALVAGNI, 2005; GRANJEIRO; COSTA, 2008;
HABIGZANG et al., 2008; RANGEL, 2009; PASSARELA; MENDES, 2010). Tem-se que a
partir da Convenção sobre Direitos da Criança de 1989, a proteção da população infanto-
juvenil passou a constituir matéria de estudos específicos (MENDEZ; COSTA, 1994;
VERONESE; COSTA, 2006; ARANTES, 2009). Sob a égide do novo paradigma do direito
da criança, promovido na década de 1980, compreende-se a proteção integral como sendo
uma proteção de direitos, que deve ser conferida em todas as esferas e nas diversas situações
que envolva o interesse da criança (BELOFF, 1999).
O presente artigo objetiva analisar a proteção materna em face ao abuso sexual
praticado no ambiente intrafamiliar contra suas filhas. Trata-se de um estudo qualitativo com
seleção de um caso emblemático. O delineamento utilizado foi o estudo de caso, realizado
através de visita, diário de campo, entrevistas em profundidade e análise documental da ação
penal pública. Para tanto, parte-se da contribuição dos trabalhos acerca da maternidade que
apontam em sentido convergente para a permanência das antigas concepções socialmente
existentes acerca das atribuições maternas na contemporaneidade (ROCHA-COUTINHO,
2003; NARVAZ; KOLLER, 2006; JABLONSKI, 2007; AMAZONAS et al., 2009).
Entre as diversas mudanças pelas quais passou a sociedade ocidental no decorrer do
século XX algumas se destacam na contextualização do papel da mãe na proteção da criança.
O desenvolvimento das ciências conjuntamente com os novos programas e políticas públicas
favoreceram o fortalecimento das representações maternas voltadas à promoção da saúde da
sua prole (MEYER, 2003). A valorização da representação das mães demanda-lhes uma
diligente atuação nos cuidados e proteção, fator que sugere uma responsabilização materna
por todos os eventos que envolvam os seus filhos, tal como o abuso sexual.
A prática do abuso sexual contra crianças, especialmente a perpetrada no ambiente
familiar, consiste em um dos males da sociedade contemporânea. A Organização Mundial da
Saúde (OMS) considera a sua incidência como um grave problema de saúde pública e fator de
morbimortalidade de crianças e adolescentes (AMAZARRAY; KOLLER, 1998;
SALVAGNI; WAGNER, 2006).
Em sentido convergente, estudos apontam que grande parte dos abusos sexuais
originados no contexto familiar, tem nos pais e nos padrastos os principais perpetradores
43

(HABIGZANG, 2005; VIODRES INOUE, 2007; MARTINS; JORGE, 2010). A trama de


proximidade dos vínculos afetivos, na realização da violência, imprime uma especial
importância para a figura materna. Encontra-se a mãe dentro do espaço de convivência no
qual o rompimento da confiança, entre um adulto que deveria ser cuidador da criança e a
prática do abuso, gera um tensionamento de grande repercussão na configuração familiar. Na
cultura contemporânea e na pauta legislativa nacional é atribuído às mães um papel especial
de proteção desde a gravidez, constituindo para a maternidade determinados valores,
consoante se mostrem próximas ou não do papel para ela idealizado (ROCHA-COUTINHO,
1994; MILLER, 1994; FORNA, 1999).
Contudo, o exercício de uma atitude de proteção dos filhos pela mãe é permeado por
diversas dificuldades oriundas do rompimento das relações familiares, da falta de apoio da
família e da sociedade. Ocorrências outras como a carência de políticas públicas e programas
direcionados para as mulheres que vivenciam a violência intrafamiliar contra a sua prole
acabam por dificultar, ou até mesmo impossibilitar o rompimento do ciclo de violência.
Dentre os elementos que poderão contribuir de forma diferenciada para a atitude protecional
materna podem ser levantados a independência financeira, educação, origem social (SERPA,
2010), também as questões de natureza subjetiva, como a capacidade emocional para lidar
com o conflito (LIMA; ALBERTO, 2010), além da concepção acerca do papel materno
(SANTOS; DELL‟AGLIO, 2009).

Abuso sexual infantil

Enquanto uma das formas de violência sexual praticada contra crianças, o abuso
sexual sempre existiu em grande parte das culturas (AMAZARRAY; KOLLER, 1998), há
relatos da sua prática desde a antiguidade (ADED et al., 2006). Atualmente, o abuso sexual é
compreendido como um grave evento que atinge crianças e adolescentes de todo mundo. A
sua prática é considerada pela OMS enquanto um problema de saúde pública em razão das
sérias consequências que podem ser desencadeadas nas suas vítimas (PFEIFFER;
SALVAGNI, 2005). A literatura especializada ressalta, todavia, que a real incidência dos
crimes sexuais ainda é desconhecida, circunstância que decorre da grande subnotificação
estimada no tocante a essa espécie de violência (BRINO; WILLIAMS, 2003; RANGEL,
2009; LIMA; ALBERTO, 2010).
44

A preocupação com a temática do abuso sexual emergiu socialmente com a luta pelos
direitos da criança e adolescentes, que juntamente com o movimento dos direitos humanos e o
movimento feminista trouxeram à pauta de discussão temas até então tidos como tabus. O
movimento médico, da mesma maneira, contribuiu com o estudo que relacionou a saúde física
das crianças com a sua saúde mental (FURNISS, 1993). Tais elementos fomentaram uma
crescente abordagem do tema na mídia impressa e televisa (LANDINI, 2006), circunstância
que sugere ser o abuso sexual um fenômeno recente.
Foi a partir da década de 1990 que a violência sexual, dentre elas, o abuso sexual
contra crianças e adolescentes adquiriu sua expressão de natureza política no Brasil,
integrando o fenômeno à pauta de discussão da sociedade civil. Vinculava-se o tema
emergente, à mobilização que ocorria no plano nacional e internacional acerca dos direitos
humanos das crianças conforme já prescritos na Convenção dos Direitos da Criança (CDC)
em 1989, na Constituição Federal (CF) em 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), de 1990.
O período seguinte à publicação dos diversos documentos foi marcado por um amplo
percurso de articulação com o intuito de fortalecer a sociedade civil a adotar a denúncia
enquanto uma forma de enfrentamento contra a violência sexual de crianças e adolescentes no
país. A inclusão da violência sexual contra crianças e adolescentes na agenda pública nacional
agregou diversos segmentos. Destaca-se nesse contexto de luta o papel mobilizador da
sociedade civil, mediado por Organizações Não Governamentais (ONGs), junto aos Poderes
Executivo e Legislativo. Este movimento cívico em prol do segmento infanto-juvenil
silencioso, e até então silenciado pela violência, resultou na elaboração de um Plano Nacional
de Enfretamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Este plano visava atender ao
compromisso assumido pelo governo brasileiro aprovado em 1996 no I Congresso Mundial
contra Exploração Sexual de Crianças realizado em Estocolmo, e consistiu em um
instrumento para garantia e defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
Consoante dados disponibilizados pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República (SEDH/PR), nota-se um relevante crescimento do número de denúncias de
abuso sexual contra crianças e adolescentes a cada ano (BRASIL, 2011). Esta ocorrência pode
sugerir, ainda que lenta, uma maior mobilização, informação e consciência da sociedade
acerca da gravidade do fenômeno e da importância da denúncia para o rompimento do ciclo
de violência, bem como, um efetivo aumento do número de crimes sexuais contra crianças
(VIODRES INOUE; RISTUM, 2010).
45

Altos índices de abuso sexual foram registrados no serviço Disque Direitos Humanos
(disque 100) no módulo referente à criança e ao adolescente da SEDH/PR em 2010, atingindo
um total de 8.370 denúncias em todo território nacional, com 1.032 referentes a Bahia.
Somente nos três primeiros meses de 2011 foram realizadas 389 denúncias de abuso sexual no
Estado da Bahia, sendo a cidade de Salvador responsável pela maior quantidade de denúncias,
totalizando 123 (BRASIL, 2011).
O abuso sexual pode ser entendido como uma espécie de violência sexual
(FALEIROS; RADICCHI, 2010) na qual existe uma relação entre pessoas que não possuem o
mesmo estágio de desenvolvimento psicossexual. Nesta relação, a vítima é utilizada pelo
agressor com a finalidade de obter a sua gratificação sexual (AMAZARRAY; KOLLER,
1998), não englobando o conceito, situações em que observa as relações de natureza
mercantil, através da exploração sexual (VASCONCELOS, 2006; CONTI, 2008; VERAS,
2010).
Consiste o abuso sexual infantil em um fenômeno que abrange o poder e a sedução
(ARAÚJO, 2002), utilizando-se o abusador da força ou confiança da vítima. A prática desta
violência específica é caracterizada pelo envolvimento de uma criança em uma atividade de
natureza sexual na qual, em razão da sua imaturidade e do estágio de desenvolvimento, não
possui a criança suficiente discernimento para compreender o caráter do ato nem sequer para
o consentir como parceiro. Encontra-se a criança, portanto, fora da brincadeira, no lugar de
vítima.
A ocorrência do abuso sexual pode variar entre atos nos quais não haja o contato
físico, aos diversos atos onde os contatos se mostram presentes, com ou sem penetração
(HABIGZANG et al., 2008). Alguns autores entendem em sentido convergente que, para a
configuração do abuso sexual, elementos fundamentais como a assimetria de idade, as
práticas de coerção e o tipo de comportamento exercido devem estar presentes (PETERS;
WYATT; FINKELHOR, 1986; DEZA, 2005).
Levando-se em consideração o contexto em que é praticado, o abuso sexual pode ser
dividido em extrafamiliar ou intrafamiliar (FALEIROS; CAMPOS, 2000; HABIGZANG;
CAMINHA, 2004; LIMA, 2009). Compreende-se por abuso extrafamiliar aquele que ocorre
fora da atmosfera da família, geralmente em ocorrências únicas, figurando como agressor uma
pessoa desconhecida da criança. Quando essa espécie de violência é perpetrada na esfera
familiar, podendo acontecer na própria casa da vítima, tem-se o abuso sexual intrafamiliar
(SANTOS; DELL‟AGLIO, 2009).
46

A literatura ressalva a específica dinâmica que contorna o abuso sexual intrafamiliar,


pois, ao ser a violência perpetrada por pessoa da família, independentemente dos laços que os
unem, seja consanguíneo ou socioafetivo, o agressor mantém um padrão: utiliza-se da
proximidade e do poder que possui com a criança para iniciar a prática dos atos abusivos, que,
muitas vezes, não deixa marcas físicas nas vítimas (BRINO; WILLIAMS, 2003; MACHADO
et al., 2005). A característica silenciosa desse envolvimento pode vir a dificultar a percepção
dos abusos pelos membros da comunidade ou familiares, tal como a mãe.
Os estudos especializados apontam que as crianças do sexo feminino são as vítimas
mais atingidas com a prática do abuso sexual, elemento observado nos abusos intra e
extrafamiliares (AZEVEDO; GUERRA, 1989; FORWARD; BUCK, 1989; PEREDA et al.,
2007; CAPITÃO; ROMARO, 2008; PASSARELA et al., 2010; MARTINS; JORGE, 2010).
Os dados da SEDH/PR reforçam os achados da literatura ao indicar a prevalência das vítimas
do sexo feminino nessa espécie de violência sexual. Constata-se que o percentual de
denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes do sexo feminino no ano de 2010
alcançou a marca de 79% das 8.370 denúncias realizadas em todo território nacional
(BRASIL, 2011).
Estudos realizados acerca do abuso sexual, no mesmo sentido, advertem outro dado
predominante no que concerne aos perpetradores dessa espécie de violência. Embora as
mulheres apareçam em algumas pesquisas como possíveis agressoras, existe uma
predominância de abusadores do gênero masculino (AZEVEDO; GUERRA, 1989; ARAÚJO,
2002; BAPTISTA et al., 2008). Na ocorrência do abuso sexual intrafamiliar, são apontados
como principais agressores, os pais e padrastos, seguidos de tios, avós e irmãos (MACHADO
et al., 2005; CAPITÃO; ROMARO, 2008; MARTINS; JORGE, 2010).
Observa-se nesse contexto de violência uma quebra de confiança nas relações
familiares, onde a pessoa que deveria promover o cuidado e bem-estar da criança passa a
abusa-la. Em razão dessa peculiar situação a criança poderá entrar em um estado de angústia,
que dificulta a revelação do abuso (MORALES; SCHRAMM, 2002).
Ao fazer uma análise acerca do abuso sexual, Araújo (2002) ressalta ser um problema
que abarca tanto as esferas de natureza legal, no que concerne à constatação da violência e
proteção da criança, bem como as de natureza terapêutica e atenção à saúde, em razão dos
possíveis problemas a serem provocados. As crianças vítimas de abuso sexual poderão
apresentar sequelas no desenvolvimento emocional, cognitivo e comportamental, que irão
variar de acordo com as particularidades do abuso, as características pessoais da vítima,
47

modificando-se, também, em razão do grau de apoio e cuidado dispensado pela família e


Estado, através dos órgãos de proteção (HABIGZANG et al., 2008).

O abuso sexual infantil intrafamiliar e a proteção materna

A violência perpetrada no ambiente familiar vai de encontro às atuais concepções


sociais e legais acerca da família e do seu papel de instituição social basilar e formadora dos
indivíduos que dela fazem parte (SERPA, 2010). É na família que “se defrontam e se
compõem as forças da subjetividade e do social” (BIASOLI-ALVES; MOREIRA, 2007, p.
197) de cada um dos seus membros. Atribui-se à instituição familiar a tarefa de formação,
educação e proteção da sua prole, com o dever de transmitir valores e as normas de conduta
do grupo.
A previsão legal acerca da assistência das crianças do país encontra-se disposta na
Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que
estabeleceu a criação de uma rede de apoio e proteção não apenas de caráter institucional,
mas, sobretudo, familiar e comunitária que deverão atuar em regime de corresponsabilidade
visando assegurar os direitos das crianças e adolescentes, que se encontram na especial
condição de pessoa em crescimento e formação, necessitando de atenção e cuidados
peculiares que favoreçam a potencialização do seu desenvolvimento social, físico e emocional
em condições saudáveis.
A constituição das redes primárias de apoio potencializa que a efetivação dos direitos
da criança, ao favorecerem a identificação dos abusos sexuais e o oferecimento da denúncia.
Nesse contexto de responsabilidades atinentes a família, a sociedade e ao Estado, um
elemento merece especial destaque: a proteção.
Etimologicamente a palavra “proteção” vem do latim protectio, protegere, que
significa cobrir, amparar abrigar. Ressalta-se, contudo, que a expressão possui natureza
polissêmica, abarcando os “aspectos relacionados à dinâmica de convivência e sobrevivência
de uma sociedade” (LIMA, 2011, p. 53). A nova perspectiva legal existente no plano nacional
e internacional preceitua que a proteção constitui um elemento indispensável, principalmente
às crianças enquanto pessoas em formação, necessitando, para tanto, de cuidado e zelo em
todos os aspectos do seu cotidiano, como alimentação, educação, lazer, integridade física,
dentre outros.
48

Sob a nova égide acerca dos direitos daqueles cuja voz pouco ou nada ecoavam, foi
preconizada na Convenção dos Direitos da Criança a Doutrina da Proteção Integral.
Considera-se que esta “pressupõe uma tensão, e não uma contradição, entre proteção e
autonomia, entre sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento, entre prioridade absoluta
e os demais interesses existentes na sociedade” (ARANTES, 2009, p. 447). Visando assegurar
a proteção integral, a Convenção preceitua no seu preâmbulo que a criança deverá crescer no
seio da sua família, visando o pleno desenvolvimento da sua personalidade (ONU, 1989).
Ressalta-se, dessa maneira, a atribuição à instituição familiar pela legislação nacional
e internacional enquanto núcleo principal e preponderante no desenvolvimento das crianças.
Tal se deve ao fato de a família ser o primeiro espaço de convivência, onde são construídos os
significados e práticas que interferem em todo percurso desenvolvimental (BASTOS et al.,
2007). A família por ser o primeiro núcleo social de inserção desempenha “também, um
poderoso papel no desenvolvimento das habilidades comportamentais da criança” (LIMA,
2009, p. 39), sendo de atribuição essencial o dever de proteção das crianças.
Não obstante, pesquisas têm assinalado à ocorrência crescente do abuso sexual no
contexto familiar (MACHADO, 2005; SALVAGNI; WAGNER, 2006), como “local
„privilegiado‟ para seu surgimento, mantido pelo silêncio e pela cumplicidade imposta à
vítima” (OLIVEIRA, p. 99, 1989). A situação adquire relevo pela proximidade do abusador,
pessoa com a qual a criança estabelece uma relação de confiança.
As informações reveladas propõem uma reflexão sobre os componentes familiares,
dentre eles, a figura materna, pois enquanto o abuso sexual é praticado predominantemente
por homens, a proteção das crianças recai nas mulheres (HOPPER, 1994). A proteção materna
à criança sexualmente abusada poderá ser efetivada no primeiro momento com o
oferecimento da denúncia, circunstância que possibilita a intervenção da esfera pública no
ambiente privado, estabelecendo afastamento do agressor e a inclusão da vítima em programa
de tratamento.
Este componente adquire maior relevância ao se observar que no contexto do abuso
sexual, a mãe é uma das pessoas mais procuradas pela criança na busca por ajuda (FURNISS,
1993; HABIGZANG et al., 2005). Para Azevedo e Guerra (1989) a resposta materna à
violência assume grande importância, na medida em que possibilita a permanência do
sentimento de proteção do filho. O apoio da mãe é também considerado um dos fatores mais
significativos para a recuperação e rompimento dos efeitos dos abusos, tanto em curto como
em longo prazo (HOPPER, 1994).
49

A permanência de uma atribuição social da mulher como a principal responsável pelos


cuidados e proteção da sua prole (ROCHA-COUTINHO, 2005; DINIZ; COELHO, 2005) é
robustecida na ocorrência do abuso sexual intrafamiliar perpetrado pela figura do pai. Esta
característica ganha destaque, na medida em que à figura materna é atribuído o encargo pela
conservação da saúde física e psicológica da sua prole, e a harmonia familiar (LIMA;
ALBERTO, 2010). As mulheres são valoradas a partir da proximidade, ou não, de um ideal de
proteção –, creditado ao bom desempenho da maternidade (MOREIRA; NARDI, 2009).
O papel feminino na sociedade mostra-se reforçado por diversos discursos, como o
médico e jurídico, além da mídia que reproduz as práticas a serem desempenhadas pelas
mulheres no exercício da maternidade (MEYER, 2006). Os avanços das ciências provocaram
grande efeito sobre o exercício dos cuidados com os filhos, através da recomendação de
práticas predominantemente voltadas às mulheres. Os novos discursos robusteceram o ideal
que concebe o papel social da mulher enquanto mãe, agora com a distinção de não mais ter o
caráter romântico do passado, dando ensejo à “mãe científica” (FORNA, 1999).
As concepções acerca da maternidade e do seu papel são oriundas de um movimento
de natureza econômica, política e filosófica que teve início na Europa durante o século XVIII
(BADINTER, 1985). O advento da revolução industrial favoreceu uma distinção entre os
espaços públicos e privados e uma definição dos papéis dentro das respectivas esferas
consoante o gênero dos indivíduos, cabendo à mulher a responsabilidade pelo espaço
doméstico e pelos filhos, ficando o homem com o domínio da esfera pública. No mesmo
momento os movimentos político e filosófico passaram por alterações, trazendo em seu
conteúdo uma “revolução do sentimento” (FORNA, 1999) que valorizou o papel feminino
enquanto mãe e a importância dessa função para o alicerce da sociedade (COUTINHO;
MENANDRO, 2009).
Antigas práticas comumente desempenhadas na sociedade europeia como a
transferência das crianças para serem amamentadas por amas de leite (BADINTER, 1985), a
educação realizada pela aprendizagem junto a adultos, e a ausência de específicos cuidados e
atenção, decorrentes da inexistência do sentimento de infância (ÀRIES, 2006) foram
modificadas. O novo discurso passou a incentivar práticas como a amamentação e educação
dos filhos, florescendo, a partir de então, uma nova mãe voltada para o seu lar e para o
cuidado e formação da prole. Nascendo, deste modo, o mito do amor materno (BADINTER,
1985).
A solidificação desse pensamento no decorrer dos séculos XIX e XX concretizou-se
em uma ideologia que imprime para as mulheres um dever que prevalece sobre todos os
50

outros, o de ser mãe. A restrição do papel social das mulheres à realização da maternidade
(SCAVONE, 2004) gerou uma idealização desta enquanto uma obrigação a ser vivenciada por
todas as mulheres, que deverão desempenhá-la consoante padrões previamente estabelecidos,
circunstância que transforma a maternidade em um processo rígido, repleto de normas
(FORNA, 1999).
O mito da maternidade é o mito da “Mãe Perfeita”. Ela deve ser completamente
devotada não só aos filhos, mas a seu papel de mãe. Deve ser a mãe que compreende
os filhos, que dá amor total e, o que é mais importante, que se entrega totalmente.
Deve ser capaz de enormes sacrifícios (FORNA, 1999, p. 11).

Diversos avanços vivenciados pela sociedade nas últimas décadas, decorrentes dos
movimentos de natureza científica, jurídica e social, tiveram grande influência na modificação
da posição da mulher na sociedade (DE SOUZA; BALDWIN, 2000), com o direito ao voto, a
inserção no mercado de trabalho, e o surgimento das tecnologias contraceptivas, que
desvinculou a sexualidade feminina da reprodução, possibilitando para as mulheres outras
vivências e escolhas além da maternidade (ROCHA-COUTINHO, 2007).
Paralelamente, antigos discursos sociais persistiam robustecendo o papel das mulheres
enquanto mães e esposas. Consoante Araújo (2002) a mãe prossegue a ser compreendida
como a responsável pela mediação dos conflitos no lar e a personificar a afetividade entre os
membros da família. Ainda que tenha conquistado os espaços públicos e exerça uma atividade
remunerada fora de casa, os cuidados com os filhos e a casa continuam a ser atribuições
eminentemente femininas, cabendo ao homem o provimento financeiro da família
(JABLONSKI, 2007).
Em sentido convergente, pesquisas têm apontado para a predominância dos valores,
discurso e prática social patriarcal e burguesa na sociedade brasileira, nas mais diversas
classes sociais (MOURA, ARAÚJO, 2004; ROCHA-COUTINHO, 2005). A prevalência das
concepções patriarcais poderá acarretar para as mulheres, condição de inferioridade na relação
conjugal, elemento facilitador de atitudes abusivas, ao ser delegado diversos poderes aos
maridos e pais (ARAÚJO, 2002).
51

Método

Delineamento

Na presente pesquisa optou-se por uma abordagem de natureza qualitativa, uma vez
que esta proporciona uma melhor compreensão dos fenômenos investigados, permitindo a
visualização e aproximação entre o sujeito e o objeto pesquisado (MINAYO; SANCHES,
1993). Este enfoque potencializa o acesso ao objetivo geral da pesquisa: a análise da proteção
materna em face ao abuso sexual infantil intrafamiliar. Configura-se o estudo qualitativo uma
condição de realidade que não pode ser quantificada, que demanda a compreensão do
fenômeno sob o ponto de vista dos participantes da circunstância analisada. Para tanto, é
necessária a busca da apreensão dos significados, valores, motivos e crenças, isto é, um maior
aprofundamento e compreensão do objeto.
Para uma melhor compreensão e composição do estudo de natureza qualitativa, a
presente pesquisa foi estruturada com base no delineamento do Estudo de Caso Único (YIN,
2001). O estudo de caso, em razão da sua proposta de coleta de dados, mostra-se de grande
utilidade quando são colocados questionamentos que pretendem alcançar „como‟ e „por que‟
do objeto pesquisado, sendo adequado aos estudos cujo foco encontra-se em fenômenos atuais
imersos em contexto de vida real. O estudo de caso mostra-se também apropriado para
pesquisas que se propõem a verificar uma teoria já existente.
Optou-se pela escolha de uma unidade-caso de natureza típica (GIL, 1991), isto é,
aquela que consoante às prévias informações melhor demonstre a categoria. Ao observar-se
nas pesquisas sobre o abuso sexual intrafamiliar que alguns dados mostravam a
predominância nessa espécie de violência, utilizou-se como critério de inclusão da mãe
participante da pesquisa, que esta fosse genitora de criança(s) do sexo feminino que
tivesse(m) sofrido abuso sexual intrafamiliar pela figura do pai biológico ou civil, tendo a
violência sido denunciada pela própria mãe.
Para localização do caso a ser utilizado como objeto de análise, foram procurados
distintos órgãos e profissionais com atividades relacionadas ao tipo de violência enfocada,
tendo se deparado com uma grande dificuldade de identificação de participante voluntária.
Após diversas abordagens institucionais, obteve-se uma resposta espontânea e positiva de
uma mãe, que se encontrava dentro dos critérios de inclusão da pesquisa. Mediante conversa
prévia, a participante foi comunicada sobre os objetivos e das questões éticas que envolvem o
trabalho.
52

Acerca das fontes de evidências para a realização do Estudo de Caso Único, Yin
(2001) sugere seis possibilidades a serem utilizadas: a documentação, o registro em arquivos,
as entrevistas, a observação direta, a observação de participante e os artefatos físicos.
Consoante Gil et al. (2005) aconselham o estudo de caso, por envolver diversas variáveis
significantes. Consiste em um método que requer na coleta de seus dados a aplicação de
distintas técnicas. Na presente pesquisa utilizou as seguintes estratégias para a coleta de
dados: as fontes da entrevista em profundidade, a análise documental do processo judicial
instaurado em decorrência da denúncia realizada pela participante acerca do abuso sexual
praticado contra as suas filhas, realizando-se também visitas e a elaboração de um diário de
campo.
Segundo Yin (2001) duas são as possíveis estratégias para a análise dos dados, uma
delas baseando-se nas proposições teóricas e a outra através da abordagem descritiva do caso.
Para o autor a primeira estratégia mostra-se mais adequada ao seguir as proposições teóricas
que levaram ao estudo de caso, as revisões realizadas na literatura, traçando as novas
proposições porventura observadas. Assim, procurou-se analisar os dados, consoante as
proposições que nortearam a revisão teórica.

Participante

O estudo de caso único teve como participante uma mãe, localizada na fase
exploratória através do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan, que
vivenciou a situação de abuso sexual das duas filhas pela figura paterna.

Apresentação dos personagens

As pessoas envolvidas no estudo foram nomeadas de forma fictícia visando garantir o


anonimato dos processos descritos. Cumpre preservar a identidade dos envolvidos conforme
preceitos éticos de pesquisa e de legislação nacional. Assim, tem-se Maria, a mãe participante
do estudo; Paula, a filha mais velha; Ana, a filha mais nova; Joaquim, o pai das crianças; Lia,
a amiga da mãe participante; Cíntia, a filha de Lia e amiga de Paula.
53

Descrição do caso

Maria é uma mulher com 38 anos de idade, afrodescendente, secretária, residente em


um bairro de classe média baixa de Salvador. Ela sempre conviveu com sua família até o
casamento civil e religioso com Joaquim, o primeiro namorado, aos 22 anos de idade. Foram
cinco anos entre namoro e noivado, para depois de muitos planos e organização celebrarem a
união.
Após cinco meses de casada, Maria engravidou de sua primeira filha, Paula. A notícia
da gravidez foi recebida com muita alegria pelo casal e familiares, por se tratar da primeira
neta. Maria demonstrou alguma preocupação e insegurança no desempenho do papel materno
matriculando-se em um curso para gestantes para aprender os cuidados com o bebê,
realizando diversas leituras e pesquisas sobre os cuidados, educação e disciplina de crianças.
Nas palavras de Maria:
[...] foi muito esperada porque era a primeira neta da família, tanto de um lado como
de outro e a expectativa de ser mãe eu me sentia às vezes insegura se eu teria
capacidade de cuidar. Tanto que eu terminei fazendo um curso, um curso de gestante
e de primeiros cuidados, questão de educação, de disciplina, lia muito. Fiz uma
assinatura também de uma revista de grande repercussão no país e lia tudo sobre a
maternidade, porque, na realidade, eu queria estar preparada e queria evitar falhas .

A primeira gravidez de Maria foi bastante difícil em razão de complicações que


acarretaram dores e sangramentos e exigiram dela total repouso a partir do quinto mês, tendo
conseguido chegar aos nove meses de gestação. Após o nascimento, Paula apresentou um
problema de natureza respiratória, que foi tratado. Maria mostrava-se bastante vigilante nos
cuidados com a sua filha, fato que fez com que ela fosse rotulada pelas pessoas próximas de
„supermãe‟, sendo aconselhada pelos médicos a diminuir constantes excessos.
Segundo Maria: ele dizia que eu tinha excesso de proteção, que ela nunca ia ficar boa
dos problemas respiratórios se eu ficasse assim com aquele cuidado, limpando em excesso
tudo. [...] Que mesmo que... Por mais curso que você faça, por mais que se leia, a experiência
de ser mãe é única.
A pedido de Joaquim, Maria havia deixado de trabalhar e estudar antes de casar-se
para se dedicar integralmente ao marido e a filha, tendo somente retomado os estudos alguns
anos depois, após o conhecimento do envolvimento de Joaquim com uma menor em uma
viagem de trabalho. A vida familiar revestia-se com o padrão de normalidade aos olhos da
participante. Maria e Joaquim faziam parte de uma congregação religiosa que influenciava
amplamente o contexto familiar:
54

“Eu vivia num contexto familiar aparentemente normal até porque nós éramos um
casal que frequentava uma determinada religião, uma Congregação. Éramos assíduos. Ele
participava bem, era até um membro de destaque lá dentro e tudo” (Maria).
Após aproximadamente cinco anos da chegada de Paula, Maria teve a sua segunda
gestação, que contrariamente à primeira, não foi desejada. Maria à época havia retomado os
estudos e estava determinada a retornar ao mercado de trabalho, motivada pela descoberta da
traição de Joaquim, e pela mudança de comportamento deste, que passou a criticar o seu peso
e lhe atribuir diversos defeitos, circunstância que levou a participante a desejar seguir seus
passos sem depender do seu marido. Maria relata que pensou em separar-se de Joaquim, mas
que isso não chegou a acontecer, até por influência religiosa, mas que a partir desse novo
comportamento do marido, mudou os seus objetivos, passando a cuidar mais de si mesma.
A segunda gravidez apresentou um risco maior do que a primeira, tendo Maria dado à
luz a segunda filha aos oito meses de gestação. Quando Ana nasceu Maria passou por grande
estresse devido às constantes crises de choro da filha e ao fato desta aparentar nunca estar
satisfeita com a amamentação. Maria contava com a ajuda dos seus pais que cuidavam de Ana
para que fosse possível ter poucas horas de sono. Relata que teve seu estresse agravado, pois
durante a segunda gestação, Joaquim ficou desempregado, circunstância que acarretou uma
dificuldade financeira para a família:
Eu tive um estresse terrível depois, porque ela chorava muito mesmo e, às vezes, eu
não queria amamentar e ela sugava demais. E, depois de mamar bastante, ela ficava
horas ali sendo amamentada e parecia que nunca alimentava. Aquilo me causava um
estresse que eu não tinha ânimo pra nada. [...] E outro detalhe: quando ela nasceu ou
durante um bom período da minha gravidez ele tava dentro de casa, então eu tive um
estresse ainda pior.

A atitude de Joaquim mudou no decorrer dos anos, agravando-se no período da


segunda gestação de Maria. Ela relata que Joaquim demonstrava oscilações na sua conduta,
pois ao mesmo tempo em que não a ajudava nos cuidados com as filhas, demonstrava-se
extremamente doce e atencioso em outras circunstâncias:
[...] na segunda, durante a gravidez, ele fazia cada coisa assim terrível, eu pensei em
me separar diversas vezes quando eu tava grávida. [...] Então era um comportamento
assim que não dava... Principalmente quando tava eu e ele só, ele demonstrava ser
uma pessoa e, na frente dos outros, aquele homem perfeito, totalmente perfeito:
“Você quer isso? Quer aquilo?”, “Minha querida, meu amor”, toda hora dizia que
me amava. Aí eu ficava olhando assim, tinha dias que eu pensava, será que eu tô
enlouquecendo com isso.

As mudanças nas atitudes de Joaquim à época não eram compreendidas pela


participante, mas hoje esta julga ser a maneira como ele mascarava a ocorrência do abuso
contra suas filhas:
55

Mas tinha dias que ele aparentava assim, como se quisesse reparar alguma coisa, de
querer demonstrar a maior perfeição: cuidar dela, que eu deveria dormir, que eu
deveria descansar, que eu tava muito cansada, que eu tava de olheiras, até limpava a
casa, ela fazia, ele às vezes preparava uma bandeja, levava no quarto e tudo. Mas o
futuro me fez compreender porquê. Era porque ele queria mascarar coisas que ele
fazia, né?

Maria evidencia que apesar dos problemas enfrentados, procurou desempenhar a


função materna da melhor forma possível, buscando auxílio através de acompanhamento
terapêutico, em razão de Ana aos três anos de idade ter passado por uma crise grande
convulsiva decorrente de uma rara doença metabólica.
Alguns anos depois, em uma noite em que estava em casa com Joaquim e suas filhas,
Maria desconfiou da insistência de seu esposo, que se mostrava bastante „agoniado‟ (sic),
tendo-lhe por diversas vezes oferecido um suco, que foi jogado fora. Maria acredita que o
esposo adicionava ao suco medicamento para estimulação do sono:
Só que quando foi um determinado dia, ele tava insistindo muito pra eu tomar esse
suco, toda hora vinha e tudo: “Não. Porque eu quero levar logo pra lavar a louça que
não sei o quê”. Eu: “Tá” e peguei e joguei dentro do vaso sanitário e aí eu deitei. Ele
tava lá no computador, veio aí me balançou, me sacudida, sacudia, sacudia e eu
fingia que tava dormindo.

Maria disfarçava estar dormindo quando percebeu que Joaquim ao sair do quarto do
casal, para levar Ana para a sua cama, demorou a retornar. Ao chegar no corredor ouviu Paula
chorando: “[...] e eu vi que ele tava demorando aí eu levantei de pontinha de pé. Quando eu
levantei e vi no corredor a mais velha dizer: “Eu quero minha mãe! Eu quero minha mãe!”. E
aí me bati com ele, ele se assustou e eu disse assim: “O que foi que aconteceu?.
Após alguns minutos tentando acalmar a filha, Maria conversou com Paula, que
relatou os abusos sofridos pelo pai. Lembrou-se de três. Maria acredita que os abusos já
vinham acontecendo há alguns anos, sem que ela percebesse, pois a filha lhe havia contado:
“O meu pai mexeu no meu bumbum”.

Resultados e discussão

Diante da revelação do abuso sexual por uma das filhas, analisa-se a dimensão da
proteção materna. Para tanto, são considerados elementos como a percepção materna diante
dos indícios, a culpa dos abusos, as relações entre a escuta e a ação, o sentimento materno, os
passos para realização da denúncia, passando pelas implicações de natureza familiar,
financeira e social após a revelação, bem como o apoio encontrado pela participante.
56

Ressalta-se, no entanto, que as pesquisas sobre a temática não observam em todas as


ocorrências um desconhecimento materno acerca dos abusos sexuais dos filhos, podendo a
sua conduta ser a de “cúmplice silenciosa”, conforme descrita por Forward e Buck (1989),
onde a mãe ao se afastar da família não consegue manter qualquer relação de afeto com a
filha. Nessa atitude passiva ou ainda permissiva com relação às práticas abusivas, a mãe
figura como um „silent partner‟ (FELIZARDO et al., 2003), ao ser conivente com as práticas
em que a criança vivencia. Algumas pesquisas apontam que estas poderiam consistir nas
próprias agressoras (FORWARD; BUCK, 1989; DE ANTONI; KOLLER, 2002;
SANDERSON, 2008).
A reação de natureza eminentemente passiva da figura materna pode ter como razão o
papel social desempenhado pela mulher nas culturas ocidentais, no qual a mulher mostra-se
responsável pela estabilidade e harmonia da família (SERPA, 2010). A presença de fortes
elementos da sociedade burguesa e patriarcal implica no dever de ser a responsável pela casa
e cuidados e proteção com os filhos, contudo, permanecendo esta vinculada ao esposo por
meio de uma dependência emocional ou ainda financeira, a quem se espera que deposite toda
a confiança. Dessa forma, reconhecer as práticas abusivas pelo marido “significaria,
consequentemente, ter que reconhecer o próprio fracasso como boa mãe e esposa”
(FELIZARDO et al., 2003, p. 61), circunstância que acaba por favorecer o sigilo materno,
favorecendo a perpetuação do ciclo de violência por várias gerações.
Poderá a mãe adotar uma atitude diligente como reação ao abuso sexual contra sua
prole, ao realizar a denúncia, embora estejam passíveis a enfrentar inúmeras consequências de
ordem familiar e social. A atitude de proteção é elencada por Hopper (1994), que descreve
que a mulher que habitualmente possui uma estreita relação de cuidados com os filhos, tem
uma maior probabilidade de preocupar-se e ser protetora em uma situação de abuso sexual,
este elemento foi também observado por Furniss (1993). Maria, que durante a criação das
filhas demonstrou certa diligência nos cuidados, e uma estreita relação com as filhas adotando
uma atitude protetiva ao realizar a denúncia.
Algumas das características sobre a vítima, bem como a respeito da reação materna
identificadas nesse estudo guardam semelhança às elencadas por autores que investigam o
abuso sexual infantil intrafamiliar. Aspectos relativos à idade da vítima e o segredo, apesar de
não consistirem no objeto do estudo, foram identificados. No caso em estudo, a criança
somente revelou a violência após sua mãe ter ouvido o seu choro em uma das tentativas de
abuso do pai, tendo a partir da insistência materna, relatado outras situações em que os abusos
ocorreram. Distintos estudos apontam, em sentido convergente, ao silêncio da vítima nas
57

ocorrências de abuso sexual, sobretudo os intrafamiliares, que se originam por diversos


sentimentos da vítima ou até mesmo ameaças sofridas pelo agressor (MACHADO et al.,
2005; PRADO, 2008). À época da revelação a vítima encontrava-se com a idade de 9 anos,
consoante Saffioti (2005) a faixa etária da vítima preferida pelos agressores é dos 7 aos 10
anos.

Indícios dos abusos e a percepção materna

Em consonância com algumas pesquisas que analisam as atitudes da criança abusada,


Paula deu indícios de que estava sofrendo a violência, através de mudanças no
comportamento, passando a chamar a atenção da mãe com algumas atitudes, ao recusar-se a
estar com o pai em determinadas situações, apresentando queda no rendimento escolar. Nesse
sentido, Habigzang et al. (2006) reforçam as diversas consequências que as crianças vítimas
de abuso sexual podem desenvolver, dentre elas, os transtornos psicológicos, do humor,
ansiedade, podendo ainda apresentar alterações comportamentais, cognitivas e emocionais.
[...] às vezes, ela chorava na escola, mostrava uma depressão assim... terrível e a
coordenação e a professora chamava e dizia que eu estava falhando, que não é
porque um filho nasceu que eu tenho que deixar de dar atenção ao outro. [...] As
notas dela caíram assim [ela só tirava nota alta] de uma forma considerável. Ela já
tava fazendo a primeira série do ensino fundamental...

Quanto à percepção dos sinais de existência da violência emitidos pela criança, assim
como demonstrado em outros trabalhos, Maria não compreendeu os sinais antes da revelação
do abuso pela filha. Conforme Viodres Inoue (2007) observou, em seu estudo realizado com
oito mães no município de Salvador-Bahia, nem sempre as genitoras identificam sinais da
vitimização antes de sua descoberta. Muitas vezes, as mães só voltam seus olhares para os
indícios após a revelação direta pela criança, que poderá ser feito para as próprias mães, ou
para algum outro componente em que a criança confie como o professor (BRINO;
WILLIAMS, 2002; VIODRES INOUE; RISTUM, 2008).
Mesmo quando a filha, então com menos de 9 anos, perguntou sobre como se fazia
relação anal, a mãe sequer alcançou o sentido da pergunta:
Ela passou um período também perguntando algumas coisas a respeito de relação
anal e tudo... Eu disse “não, você é muito nova pra perguntar isso” e tudo... Inclusive
eu deixei claro que, pelo menos na congregação que a gente pertencia, não era
permitido, entendeu? E eu mostrei a ela ali, sentei, conversei...aí ela “mas tem
homem que faz isso?”, e eu disse “tem...mas... isso não é...você não tá na idade
disso”, e eu fiquei muito preocupada. Isso antes de, mas ela tava querendo de
alguma forma me chamar atenção.
58

A discussão sobre o conhecimento ou não pela mãe da violência praticada contra os


filhos no ambiente familiar divide os autores. Consoante Narvaz (2005) muitas mulheres
podem desconhecer a violência sofrida pelos filhos, mas que em outras ocasiões as mães
encontram barreiras de ordem emocional que dificultam sua aceitação da existência da
violência em sua própria família, sobretudo quando estas mães também foram vítimas de
abusos sexuais. Em sentido diverso, Lima e Alberto (2010) ressaltam que as mães nem
sempre conhecem o fato dos abusos sexuais intrafamiliares, e quando sabem são as que mais
denunciam.

A culpa dos abusos

Ressaltam Santos e Dell‟Aglio (2009), ao investigar 10 mães de meninas que foram


vítimas de abuso sexual intrafamiliar em Porto Alegre, que para as mães que não vivenciaram
a situação de abuso sexual durante a infância, a culpa da violência recai sobre a confiança que
estas depositavam no abusador. No presente estudo a confiança depositada no esposo é
também apontada pela participante, mas sob o argumento de acreditar que as concepções e
padrões de natureza religiosa, por ela seguida, obstaram a percepção da violência, juntamente
com outros elementos como à sua falta de maturidade e a ausência de envolvimento afetivo
com outros homens.
Então, talvez, até uma certa ingenuidade da minha parte, mas assim...eu até
compreendo hoje o motivo, porque eu não tinha tido outra vivência com um outro
homem, foi meu primeiro namorado e assim, como (...) dentro da congregação,
tinha que casar virgem, então tudo isso eu acho que atrapalhou a questão da...da
percepção, da percepção pra, pra...é...ter o discernimento pra certas coisas. Então,
é... essa falta de conhecimento me fez achar e até mesmo quando eu questionava ele,
determinadas coisas e ele passava que era normal, assim...mas, ao mesmo tempo, ele
mostrava um outro lado. Ele dizia pra mim que...que tem uma passagem na bíblia
que, pra que completasse a linhagem...é...eu acredito que foi Noé que teve que ter
relação com a filha. Noé, ou foi Abraão, não me lembro ao certo. E que...aí ele
colocava isso, sempre lia pra mim e colocava isso como se tivesse que ser cumprido
hoje, nos dias atuais e eu não tinha essa...eu não achava que ele tava levando...mas
depois eu percebi que ele fez, durante a nossa convivência, todo um...um
planejamento, todo um... um assédio, uma proteção assim pra ele se cobrir do
porventura fosse descoberto...que ele tinha que passar a ideia do pai exemplar, do
marido exemplar, da pessoa que só vivia pra família.

A forte influência religiosa no núcleo familiar e na formação de Maria gerou um


aparente padrão de moralidade, que para a participante deveria ser desempenhado pelo seu
esposo, circunstância que pode ter dificultado a percepção aos indícios dos abusos. Religiões
como a Testemunhas de Jeová mostram-se norteadas por ideais fundamentalistas, possuindo
vasta influência sobre as ações dos membros que dela fazem parte (GOMES, 2004). Dentre as
59

crenças que estruturam a religião observa-se o preceito de que os cristãos necessitam


harmonizar-se com à moralidade sexual, e, para tanto, a prática sexual deve estar inserida no
casamento, não se admitindo o adultério e o homossexualismo.
E... assim, depois me senti culpada de não conhecer, até porque né, nessa educação
religiosa não era aconselhado a gente ler revistas, era condenada a masturbação, o
homossexualismo, relações antes do casamento, relação anal e qualquer outra forma
que não fosse convencional, então eu seguia a risca e achava que ele seguia também.
E eu tive raiva disso, pela... eu me achei a pessoa mais burra do mundo, mais
ingênua que existia na face da terra (Maria).

Em sua pesquisa, Furniss (1993) observa que em famílias moralistas e rígidas, as mães
equilibram com o cuidado compulsivo dos seus filhos, as atitudes rigorosas e punitivas em
relação à sexualidade. Emergindo a distância da mãe e da criança quando se refere às questões
de proteção contra o abuso sexual, apesar de demonstrar cuidados bastante diligentes com
relação à prole.

Entre a escuta da criança e a ação

Esse componente é analisado por Santos (2007), que traça a distinção entre o crédito e
a ação das mães nos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar, estando à dimensão da
credibilidade ligada ao fato de as mães acreditarem ou não no relato dos filhos, enquanto a
dimensão da ação relaciona-se com o fato de ter ou não realizado a denúncia. Na pesquisa
realizada pela autora com dez mães de meninas que foram vítimas de abuso sexual, que
estavam sendo acolhidas em serviços especializados no Município de Porto Alegre, observou-
se que o período entre o conhecimento dos abusos variou de um a dois dias a dois anos.
Constatando-se que as mães, mesmo mostrando reações positivas poderiam necessitar de um
tempo para realizar a denúncia, parecendo este tempo necessário para estas em razão do temor
das consequências e impactos na esfera familiar.
Nesse sentido, Elliot e Carnes (2001) ressalvam que as mães podem não emitir
respostas de apoio e proteção aos filhos, apesar de manifestarem algum crédito frente à
revelação. Em estudo de caso qualitativo realizado por Narvaz (2005) com uma mãe que teve
suas filhas sexualmente abusadas, e também havia sido vítima na infância, observou que a
mãe apresentou diversas reações face à revelação dos abusos sexuais. Evidenciando a mãe um
descrédito ao tomar conhecimento dos abusos sofridos pela filha mais velha, todavia, alguns
anos após, ao conhecer dos abusos sofridos pela filha mais nova, manifestou apoio e crédito.
Elementos que para a autora evidenciam a complexidade dos fatores envolvidos a atitude
materna.
60

Apesar de relatar ter acreditado no relato da filha, a participante não emitiu uma
resposta imediata à violência. Inicialmente Maria procurou ajuda de diversas maneiras, e
buscou confirmar a ocorrência dos abusos antes de concretizar a denúncia. Esta circunstância
demonstra certa ambiguidade de Maria:
Uma semana de sofrimento... eu tava louca pra sair, mas minha amiga “não, você
tem que tirar coisas dele, adquirir prova...”, e tudo... mas foi assim...e ele chegava
perto de mim e eu com aquela aversão, uma vontade de, sabe, de praticar um delito,
de dizer coisas...até que eu tinha que...vi que eu tinha que realmente tirar elas de lá,
do convívio.

Apesar de narrar desde o início ter ouvido e acreditado no relato da filha, Maria
demonstra certa dúvida com relação à veracidade do abuso sofrido por sua filha: “[...] e eu
querendo de toda forma que não foi verdade. E ela...a mente da gente dá um nó”.

Sentimento materno

Maria demonstrou um sentimento ambivalente com relação à Paula, relatando em


vários momentos sentir culpa pelo que havia ocorrido, mas também demonstrando ter sentido
raiva da filha, sobretudo em razão da difícil situação que a revelação acarretou para a vida da
participante. Corroborando pesquisas que relatam os sentimentos de raiva, ciúme e de culpa
da mãe em relação à filha por não tê-la protegido (ARAÚJO, 2002).
[...] por eu não conseguir evitar uma determinada situação, eu me sentia até
incompetente como mãe. E há momentos até que eu (outros eu não me sinto não,
hoje eu já to bem mais segura), mas houve momentos na maternidade que eu me
senti totalmente despreparada e incompetente. [...] eu passei por uma fase que tinha
momentos que eu sentia ódio de minha própria filha, porque eu tava vivendo uma
situação que...

Maria relatou um sentimento apontado em diversas pesquisas sobre o abuso sexual e


os aspectos ligados à figura materna: a culpa. Este sentimento ocorre em razão de diversos
fatores, como o excesso de confiança que depositaram nos abusadores e por não terem
conseguido proteger as filhas (HOPPER, 1994; LIMA; ALBERTO, 2010). Ressaltam
Forward e Buck (1989) que qualquer que tenha sido o envolvimento da figura materna, esta se
sente culpada quando ocorre a descoberta da violência. Nas palavras de Maria: Aí eu levei
aquele choque, aí eu disse “mas meu Deus, como é que eu não percebi...”, aí comecei a me
culpar. Tinha momentos que eu me culpava.
Apesar da mudança de comportamento de Paula, foi somente após a sua revelação,
que Maria tomou conhecimento dos abusos que a filha sofria. No momento em que recebeu a
notícia revelou ter sentido um extremo ódio por Joaquim: Aí eu tive um ódio tão grande. Aí,
61

como eu falei no depoimento, uma pessoa inocente, ela tem... inocente, de bem... ela tem
vontade de cometer um assassinato.

Os passos até a realização da denúncia

Em estudo exploratório realizado com mães que denunciam o abuso sexual


intrafamiliar contra seus filhos, Viviana (2008) conclui que elas ocupam um papel muito
importante ao realizar e seguir com a denúncia do abuso sexual de seus filhos. Ao levarem o
problema ao conhecimento da lei, protegem e auxiliam na recuperação das crianças.
Após tentar unir provas contra o marido, sem ter obtido sucesso, Maria foi
aconselhada por sua amiga Lia a procurar a Congregação religiosa que fazia parte para relatar
os fatos e pedir ajuda:
Fui. Conversei. “Ah, isso é muito sério, você tem que ter prova, você tem prova?”,
eu disse “eu não tenho, mas eu tenho uma série de indícios, assim, assim...” aí eu ah,
...deixa passar... Aí aconteceu o seguinte: eles passaram a me investigar naquele
momento, perguntar “você não cumpre o seu papel de esposa com ele não?”. Aí eu
disse “vocês estão querendo colocar a culpa em mim agora?” “ não, a gente vai ter
que conversar com ela”. Aí eu disse “mas, conversar isso com ela, vocês são
homens, adultos...”, aí chamou ela pra conversar.

A primeira reação dos líderes religiosos foi de descrédito ao fato. Recebendo a


participante a ordem para não realizar a denúncia:
Aí, o que foi que aconteceu, é...eles viraram pra mim e disseram assim “você vai
esperar a ordem daqui. A gente vai chamar ele pra conversar. E você não vai
denunciar”. Aí eu disse “mas como?”, “não, não pode, escute a ordem de quem toma
a dianteira, que somos os representantes de Deus, não sei o que, não sei o que”.

Apesar de seguir as regras e preceitos da religião a que era seguidora, Maria dirigiu-se
a delegacia especializada da criança e do adolescente, com a intenção de realizar a denúncia.
Ela narra o despreparo da equipe que a recebeu e a falta de amparo por parte dos profissionais
que a atenderam:
Eu fui pedir orientação na delegacia da criança e adolescente. Quando eu fui pedir
orientação, eles disseram que eu tinha que ter prova. “Ele trabalha onde?”, aí eu
disse “dentro de uma, uma empresa de...enorme aqui, a maior empresa do Brasil”.
Aí ele disse “não, um funcionário dessa empresa não ia fazer isso”.

Na delegacia a mãe foi instruída a procurar um médico para que então tivesse um
laudo que a ajudasse na comprovação do abuso. Maria levou as filhas para uma profissional
de sua confiança. Ela relatou que somente após ver a reação da médica ao examinar as suas
filhas que compreendeu a gravidade do problema. Contudo, a médica instruiu Maria a não
denunciar:
62

Aí eu fui na médica que fez o parto delas, levei elas duas e, pedi depois, que ela
fizesse um relatório. Aí ela conversou, eu saí e ela conversou. Ela disse “minha
filha, aconteceu, porque ela não tem condição de descrever coisas a um adulto que
tivesse vivenciado a experiência, e foi mais de uma vez”. Aí eu disse “não é
possível...”, porque por mais que eu tivesse, eu não tinha ideia da gravidade até uma
profissional entrar. Aí...”você quer que eu olhe a, a menor?”, aí eu fiz assim...”tsc,
não precisa porque não foi com ela, mas se a senhora quiser...”, ela fez “é bom...”.
Aí quando ela olhou, as lágrimas desciam assim, porque ela tava com o ânus
parecendo que tinha cortado de faca de serra! Entendeu, todo assim, retalhado. Aí
ela passou uma, uma medicação, uma pomada cicatrizante, passou ali na hora e
mandou que eu ficasse usando e me disse o seguinte: “olhe, por causa da doença da
menor não denuncie não, porque ele vai perder o emprego”.

Maria se vê em grande angústia após ouvir a congregação e a médica, uma vez que
ambos aconselharam-lhe a não denunciar o marido. Apesar de não ter encontrado apoio no
grupo religioso do qual fazia parte, tampouco da profissional da saúde, Maria dirigiu-se à
delegacia com o laudo médico para realizar a denúncia, acompanhada por sua irmã. Ela
ressalta o fato da filha ter sido ouvida por diversas vezes.
[...] fomos na delegacia, relatamos...a equipe que pegamos já foi outra, outra cabeça,
porque tem isso também...é...ele ouviu minha filha, mas é uma situação assim que é
traumatizante pra ela. Todos os agentes homens. .... aí chamou ela pra escutar. Ela
contou e tudo...aí ele chamou o colega dele, aí ela repetiu, aí chamou outro. Eu sei
que, por último teve que relatar ainda pra a delegada.

Em uma análise dos documentos a partir dos processos de violência sexual ajuizados
pelas Promotorias Especializadas na Infância e Juventude, no Município de Porto Alegre, no
período entre 1992 a 1998, num total de 71 expedientes, a mãe foi identificada como a
principal protetora (59,4%), seguida de outros (25,5%). Constatando-se que a principal forma
de proteção adotada foi a denúncia (78,3%), seguida do afastamento do agressor (20,3%).
(HABIGZANG, et. al., 2005).
Consoante Viodres Inoue e Ristum (2010), em pesquisa realizada com oito mulheres
mães de meninas vítimas de violência sexual, na cidade de Salvador, dentre as estratégias de
proteção e prevenção identificadas no estudo, encontra-se a denúncia da violência, que foi
realizada por sete mães.
Após ter realizado a denúncia, foi solicitada a realização do exame pericial para
comprovação da violência. Maria relata a dificuldade em fazer o exame de corpo de delito no
IML. Por se tratar de uma situação de violência, a constatação processual ocorre por
intermédio de perícia médica, sendo este elemento de extrema importância para a condenação
do acusado. A participante aponta a falta de qualidade no atendimento e greve no serviço:
Aí tá, fui, fui pro IML...outra coisa...isso eu consegui a guia pra fazer esse exame de
corpo delito precisou esperar que teve greve, não sei o que, uns dois dias, eu sei que
passou praticamente uma semana do fato, do que a médica olhou e pra fazer o
exame. E a médica lá também, muito grossa, ainda dizendo que tava...grossa no
63

falar, grossa no atender...e assim, tudo aquilo eu tava vendo que tava sendo bem
traumatizante pra ela.

Após ouvir os profissionais e ver que não restava dúvida acerca do abuso, Maria saiu
de casa com suas duas filhas.

Consequências familiares para a mãe após a revelação

Segundo Quiroz e Peñaranda (2009), compreender as consequências do abuso sexual


infantil parte da compreensão da família que a violência ocorre, uma vez que esta afeta não
somente a pessoa agredida, o seu impacto é sentido em toda a esfera familiar. A participante
não recebeu apoio da sua família de origem, circunstância que foi agravada, pois Joaquim
procurou os pais de Maria, para tentar convencê-los da sua inocência:
Mainha ficou sem acreditar, minha mãe, meu pai não queria acreditar e ele ainda
tentava ir convencer as pessoas da minha família dizendo que eu era louca, que eu
tinha distúrbio, que as pessoas precisavam me ajudar, que eu tava criando coisas e
botando coisas na cabeça das meninas. [...] eles não sabiam lidar com essa situação,
minha mãe disse “meu Deus, que vergonha, nunca aconteceu uma coisa dessa na
minha família.

O total descrédito em relação aos abusos por parte da família de Maria, fez com que a
sua mãe figurasse no processo como testemunha de defesa de Joaquim. Segundo a
informante: E piorou, parecia que eu ia morrer quando eu soube que ela ia ser testemunha.
Porque assim, eu já desconfiava que fosse alguém, aí foi a irmã dele, uma das irmãs dele ser
testemunha e ele botou minha mãe.
A falta de apoio estendeu-se à família de seu esposo. Os pais de Joaquim procuraram
Maria numa tentativa de reatar o casamento e convencê-la retirar a denúncia. No entanto, ela
persistiu com sua decisão. Ao perceber a falta de apoio e crédito dos seus pais e sogros, Maria
relata um sentimento de total desamparo:
[...] depois ela virou pra mim que independente de qualquer coisa eu era casada com
ele, que ele era bom marido e que eu deveria passar por cima de tudo, inclusive
convenceu até a minha mãe pra ela conversar comigo, minha mãe e meu pai, foi um
dos momentos em que eu me senti totalmente sozinha.

Sem acreditar em Maria, a mãe de Joaquim tentou pressionar a sua neta Paula falando-
lhe acerca dos prejuízos que a denúncia provocaria em a sua vida:
A mãe dele, em vez de ser neutra, começou a me pressionar, e outra, pediu pra
conversar com minha filha só pra saber, a mãe e a irmã, aí começou a pressionar
“seu pai vai perder o emprego, você não vai ter isso, não vai ter aquilo...” eu disse
“Epa! Pare! A senhora vai defender seu filho, porque minhas filhas eu defendo com
unhas e dentes, vou até o fim. Se ele é inocente...vai ser provado no final.
64

Consequências financeiras após a realização da denúncia

A participante não encontrou apoio em sua família de origem, na família do ex-


marido, nem no meio social que norteava sua conduta e valores (congregação religiosa),
passando por grande dificuldade financeira ao sair de casa com as filhas. No mesmo sentido,
Quiroz e Peñaranda (2009) ressaltam que dentre os efeitos causados pelo abuso sexual para as
mães e seus filhos, encontra-se os transtornos de ordem social e econômica. As famílias se
veem, muitas vezes, obrigadas a mudarem de residência e de escola dos filhos, significando a
denúncia em uma re-acomodação da convivência com outras pessoas:
Quando eu me vi na dificuldade financeira, meu Deus... e que eu pedi ajuda na
congregação, “ah, mas não tem...” e eu disse “e o amor que a gente aprendeu desde
criança aqui e tudo, não podia se unir...”, aí foi que essa amiga minha conseguiu o
quilo de feijão, arroz e tudo, que levou.

Ela expõe que após ter saído de casa com as filhas, encontrando-se em grande
dificuldade emocional e financeira, procurou o serviço de assistência social existente na
empresa em que o esposo trabalhava, tendo sido tratada de maneira indiferente pela
profissional que realizou o atendimento.
[...] aí conversei com a assistente social da [empresa onde o marido trabalha], que
também foi uma questão assim, muito difícil, que ela “um funcionário daqui, fazer
isso? A [empresa] pode te processar”, eu disse “o que é que eu vou fazer, eu não
tenho nada pra dar as meninas”, ela disse “o que eu posso te dar é um chocolate
quente”, pegou lá na máquina e deu pra mim e pra minha filha. Aí foi assim,
totalmente indiferente.

Apoio recebido pela mãe

Somente na segunda tentativa Maria encontrou amparo de uma assistente social, que
ao perceber a sua situação, orientou-lhe a procurar o Centro de Defesa da Criança e do
Adolescente. Como discorreu a informante: [...] então essa assistente social foi outra coisa, ela
foi na minha casa, viu o que tava acontecendo, mostrei a ela tudo, ela teve paciência de
escutar tudo e aí foi que ela me encaminhou pra lá, foi essa outra assistente social que me
encaminhou pro CEDECA.
Maria ressalta a importância do apoio que recebeu no Centro de Defesa da Criança e
do Adolescente:
[...] e foi aí que foi o centro de defesa da criança, o papel que, o apoio que eles me
deram...é... foi fundamental, foi crucial, porque eu acho que se não fosse eles eu
acho que eu tinha enlouquecido com aquela situação, porque é uma desestrutura
emocional, uma desestrutura financeira [...] Ah, foi o CEDECA, foi tudo. Foi...foi
tudo, grupo de pais...e tinham pessoas assim, a gente acha que é única na situação,
65

quando eu cheguei lá eu vi, parecendo que era, às vezes eu não precisava nem relatar
minhas histórias, minha história.

A sentença e uma nova posição

Maria discorreu que quando a sentença foi proferida, sentiu a sensação de alívio:
É... e foi uma sensação de alívio, ele foi sentenciado a 7 anos e meio. Então, ali veio
a prova que eu não estava mentindo, eu consegui provar, que minha filha não estava
mentindo mediante a família. Uma das coisas que mais me doeu foi ele ter colocado
minha mãe como testemunha dele. Eu quase morri com isso! [...] Mas hoje a história
mudou, todo mundo me respeita.

Dessa forma, ela exprime o seu atual sentimento acerca da atitude tomada quando
descobriu os abusos: E assim, a sensação hoje que eu tenho é que tenho a consciência limpa
de que eu fiz o meu papel de mãe, porque infelizmente me chocou alguns relatos quando eu
fui no grupo pra...no grupo de pais é... que sofreram...que os filhos sofreram algum tipo de
violência.

Considerações Finais

O presente estudo analisou a dimensão da proteção materna em face ao abuso sexual


infantil intrafamiliar através de um estudo de caso emblemático. O olhar sobre o amparo
exercido pela figura materna referenciou-se em pesquisas que apontam pais e padrastos como
principais agressores neste tipo de violência. A predominância dos agressores do gênero
masculino faz com que a proteção das crianças recaia sobre as mães. Espera-se mais das
mães, pois devido à posição e papel social relaciona-se às mulheres a sensibilidade e
habilidade para enfrentarem as questões emocionais na família (HOPPER, 1994).
O presente trabalho, não visou problematizar a participação da mãe nos casos de abuso
sexual infantil intrafamiliar. Reconhece-se, todavia, a previsão da literatura que identifica a
ausência da proteção materna dos filhos sexualmente abusados em algumas pesquisas. A mãe
poderá assumir também o papel de principal agressora. Buscou-se nesse estudo analisar o
âmbito da proteção atribuído à figura materna pela legislação vigente e pelas concepções
sociais acerca do papel feminino, que imprime para as mulheres o dever de proteção e
cuidado com a sua prole.
A análise do caso evidenciou que a dimensão da proteção mostra-se permeada por
diversos fatores. A revelação da violência, a emissão de uma resposta de crédito e amparo a
66

criança, além da posterior efetivação da denúncia mostram-se voltadas para condutas


diligentes e protetivas. Contudo, elementos como a confiança no esposo e os padrões
religiosos seguidos pela participante dificultaram a percepção dos sinais da violência sofridos
pela filha. O estudo permitiu evidenciar que a proteção não consiste em uma constante.
A análise do caso emblemático demonstrou que a proteção materna, quando da
revelação do abuso, não consiste em uma atitude simples de ser tomada, diversas foram as
dificuldades encontrados pela mãe das crianças vítimas de abuso sexual praticado pelo
genitor. Os problemas foram observados tanto na esfera familiar, como social e legal,
observando-se uma ausência de suporte e de políticas públicas voltadas para as mulheres que
vivenciam esse complexo e peculiar contexto de violência. “Muitas dessas mães são
maltratadas, negligenciadas nos serviços que procuram, sendo duplamente vítimas” (INOUE,
2007, p. 17). Sugerindo uma reflexão sobre o tema e os modelos de assistência vigentes, que
não contemplam de forma devida as mães destas crianças.
Adverte-se acerca da necessidade de um maior debate sobre a temática visando,
sobretudo, favorecer um maior preparo dos profissionais públicos, da área de saúde e
assistência, bem como a implantação de programas de acolhimento e auxílio para as mães que
vivenciam esse contexto de violência, para que seja possível o cumprimento da difícil
atribuição de proteção dos seus filhos.
67

Referências

ADED, N. L. et al. Abuso sexual em crianças e adolescentes: revisão de 100 anos de


literatura. Rev. psiquiatr. clín., São Paulo, v. 33, n. 4, p. 204-213, 2006.

ARANTES, E. M. Proteção integral à criança e ao adolescente: proteção versus


autonomia? Psicol. clin., Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 431-450, 2009.

ÀRIES, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006.

AVEZEDO, M. A. et al. Incesto ordinário: a vitimização sexual doméstica da mulher-criança


e suas consequências psicológicas. In: AVEZEDO, M. A.; GUERRA, V. (Orgs.). Infância e
violência doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2000. p. 195-209.

AVEZEDO, M. A.; GUERRA, V. Vitimação e vitimização: questões conceituais. In:


AVEZEDO, M. A.; GUERRA, V. (Orgs.). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno
poder. São Paulo: Iglu, 1989. p. 25-48.

AMAZARRAY, M. R.; KOLLER, S. H. Alguns aspectos observados no desenvolvimento de


crianças vítimas de abuso sexual. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 11, n. 3, p. 559-578,
1998.

AMAZONAS, M. C.; OLIVEIRA, P. A.; MELO, L. M. Repercussões do abuso sexual


incestuoso sobre a relação mãe X filha. Psicol. rev. (Belo Horizonte), Belo Horizonte, v.
15, n. 3, p. 82-100, dez. 2009.

ARAÚJO, M. F. Violência e abuso sexual na família. Psicol. estud., Maringá, v. 7, n. 2, p.


3-11, dez. 2002.

BADINTER, E. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1985.

BAPTISTA, R. S. et al. Caracterização do abuso sexual em crianças e adolescentes notificado


em um Programa Sentinela. Acta paul. enferm., São Paulo, v. 21, n. 4, p. 602-608, 2008.

BASTOS, A. C. S. et al. Conversando com famílias: crise, enfrentamento e novidade. In:


CARVALHO, A. M.; MOREIRA, L. V. (Orgs.). Família, subjetividade, vínculos. São
Paulo: Paulinas, 2007. p. 157-193.

BIASOLI-ALVES, Z. M.; MOREIRA, L. V. Repensando as questões da tolerância e dos


direitos humanos vinculados à família. In: CARVALHO, A. M.; MOREIRA, L. V. (Orgs.).
Família, subjetividade, vínculos. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 233-239.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal n. 8069, de 13 de julho de


1990. Brasília: Senado Federal, 1990.
68

BRINO, R.; WILLIAMS, L. C. Concepções da professora acerca do abuso sexual


infantil. Cad. Pesqui., São Paulo, n. 119, p. 113-128, 2003.

COHEN, C. O incesto. In: AVEZEDO, M. A.; GUERRA, V. (Orgs.). Infância e violência


doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2000. p. 211-225.

CONTI, M. C. Da pedofilia: aspectos psicanalíticos, jurídicos e sociais do perverso sexual.


Rio de Janeiro: Forense, 2008.

COUTINHO, S. M.; MENANDRO, P. R. A dona de tudo: um estudo intergeracional sobre


representações sociais de mãe e esposa. Vitória: Ed. Facastelo/GM, 2009.

DE ANTONI, C.; KOLLER, S. H. Violência doméstica e comunitária. In: CONTINI, M. L.;


KOLLER, S. H.; BARROS M. N. (Orgs.). Adolescência e psicologia: concepções, práticas e
reflexões críticas. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Psicologia, 2002. p. 85-91.

DE SOUZA, E.; BALDWIN, J. R.; ROSA, F. H. A construção social dos papéis sexuais
femininos. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 13, n. 3, p. 485-496, 2000.

DEZA, S. V. Factores protectores en la prevención del abuso sexual infantil. Liberabit, n. 11,
p. 19-24, 2005.

DINIZ, C.; COELHO, V. A história e as histórias de mulheres sobre o casamento e a família.


In: FERES-CARNEIRO, T. (Org.). Família e casal: efeitos da contemporaneidade. Rio de
Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2005. p. 138-157.

DREZETT, J. et al. Estudo de mecanismos e fatores relacionados com o abuso sexual em


crianças e adolescentes do sexo feminino. J. Pediatr. (Rio J.), Porto Alegre, v. 77, n. 5, p.
413-419, out. 2001.

ELLIOT, A. N.; CARNES, C. N. Reactions of no offending parents to the sexual abuse of


their child: a review of the literature. Child maltreatment, v. 6, p. 314-331, 2001.

FELIZARDO, D.; ZÜRCHER, E.; MELLO, K. De medo e sombra: abuso sexual contra
crianças e adolescentes. Natal: A.S. Editores, 2003.

FORNA, A. Mãe de todos os mitos: como a sociedade modela e reprime as mães. Rio de
Janeiro: Ediouro, 1999.

FORWARD, S.; BUCK, C. O incesto e sua devastação. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

FURNISS, T. Abuso sexual da criança: uma abordagem multidisciplinar. Porto Alegre:


Artes Médicas, 1993.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo: Atlas, 1991.

GIL, A. C.; LICHT, R.; OLIVA, E. A utilização de estudos de caso na pesquisa em


administração. BASE – Revista de Administração e Contabilidade da Unisinos, n. 40, p.
47-56, 2005.
69

GOMES, E. C. Família, sexualidade e trajetórias em contexto religioso plural. Disponível


em: http://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/EdlaineGomes.pdf. Acesso em: 02 nov. 2011.

HABIGZANG, L. F; CAMINHA, R. Abuso sexual contra crianças e adolescentes:


Conceituação e intervenção clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

HABIGZANG, L. F. et al. Abuso sexual infantil e dinâmica familiar: aspectos observados em


processos jurídicos. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 21, n. 3, p. 341-348, dez. 2005.

HABIGZANG, L. F. et al. Grupoterapia cognitivo-comportamental para meninas vítimas de


abuso sexual: descrição de um modelo de intervenção. Psicol. clin., Rio de Janeiro, v. 18, n.
2, p. 163-182, 2006.

HABIGZANG, L. F. et al. Entrevista clínica com crianças e adolescentes vítimas de abuso


sexual. Estud. psicol. (Natal), Natal, v. 13, n. 3, p. 285-292, dez. 2008.

HOOPER, C. Madres sobrevivientes al abuso sexual de sus niños. Nueva Visión: Buenos
Aires, 1994.

JABLONSKI, B. O cotidiano do casamento contemporâneo: a difícil e conflitiva divisão de


tarefas e responsabilidades entre homens e mulheres. In: FÉRES-CARNEIRO, T. (Org.).
Família e casal: saúde, trabalho e modos de vinculação. São Paulo: Casa do psicólogo, 2007.
p. 203-225.

LANDINI, T. S. Violência sexual contra crianças na mídia impressa: gênero e geração. Cad.
Pagu, Campinas, n. 26, p. 225-252, jun. 2006.

LIMA, A. K. M. Proteção social e família da pessoa com deficiência no Timor Leste.


2011. 81 f. Dissertação (Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea) – Programa de
Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea, Universidade Católica do Salvador.
Salvador, 2011.

LIMA, C. M. Infância ferida: os vínculos da criança abusada sexualmente em seus diferentes


espaços sociais. Curitiba: Juruá, 2009.

LIMA, J. A.; ALBERTO, M. As vivências maternas diante do abuso sexual


intrafamiliar. Estud. psicol. (Natal), Natal, v. 15, n. 2, p. 129-136, ago. 2010.

MACHADO, H. B. et al. Abuso sexual: diagnóstico de casos notificados no município de


Itajaí/SC, no período de 1999 a 2003, como instrumento para a intervenção com famílias que
vivenciam situações de violência. Texto contexto - enferm., Florianópolis, v. 14, n.
esp., p.54-63, 2005.

MACHADO, M. L. A revelação do abuso sexual e seu impacto sobre o contexto familiar:


estudo com crianças atendidas em um serviço público para as vítimas de violência sexual.
2006. 186 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006.
70

MARTINS, C. B.; JORGE, M. H. Abuso sexual na infância e adolescência: perfil das vítimas
e agressores em município do sul do Brasil. Texto contexto - enferm., Florianópolis, v. 19, n.
2, p. 246-255, jun. 2010.

MENDEZ, E. G.; COSTA, A. C. G. Das necessidades aos direitos. São Paulo: Malheiros,
1994.

MEYER, D. E. Educação, saúde e modos de inscrever uma forma de maternidade nos corpos
femininos. Movimento: Revista da Escola de Educação Física, v. 9, p. 33-58, 2003.

MEYER, D. E. A politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento.


Revista de Gênero, Niterói, v. 6, n. 1, p. 81-104, 2006.

MILLER, A. C. O relacionamento mãe-filha e a distorção da realidade nos abusos sexuais na


infância. In: PERELBERG, R. J.; MILLER, A. C. (Orgs.). Os sexos e o poder nas famílias.
Rio de Janeiro: Imago, 1994. p. 151-162.

MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo:


HUCITEC/ABRASCO, 2000.

MINAYO, M. C. S.; SANCHES, O. Quantitativo-qualitativo: oposição ou


complementaridade? Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 239-262, set. 1993.

MORALES, A. E.; SCHRAMM, F. A moralidade do abuso sexual intrafamiliar em


menores. Ciênc. saúde coletiva, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 265-273, 2002.

MOREIRA, L. E.; NARDI, H. C. Mãe é tudo igual? Enunciados produzindo maternidade(s)


contemporânea(s). Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 17, n. 2, p. 1-9, ago. 2009.

MORGADO, R. Abuso sexual incestuoso: o que sentem as mulheres/mães? Disponível em:


http://www.ts.ucr.ac.cr/binarios/congresos/reg/slets/slets-017-020.pdf. Acesso em: 05 out.
2011.

NARVAZ, M. G. Submissão e resistência: explodindo o discurso patriarcal da dominação


feminina. 2005. 191 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Curso de Pós-Graduação em
Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2005.

NARVAZ, M. G.; KOLLER, S. H. A concepção de família de uma mulher-mãe de vítimas de


incesto. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 19, n. 3, p. 395-406, 2006.

______. Famílias e patriarcado: da prescrição normativa à subversão criativa. Psicol.


Soc., Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 49-55, abr. 2006.

OLIVEIRA, A. B. Saúde e vitmização. In: AVEZEDO, M.; GUERRA, V. (Orgs.). Crianças


vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu, 1989. p. 99-104.

RANGEL, P. C. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Juruá, 2009.


71

ROCHA-COUTINHO, M. L. Quando o executivo é uma “dama”: a mulher, a carreira e as


relações familiares. In: FÉRES-CARNEIRO, T. (Org.). Família e casal: arranjos e demandas
contemporâneas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/São Paulo: Loyola, 2003. p. 57-78.

QUIROZ, M. I.; PEÑARANDA, F. C. Significados y respuestas de las madres al abuso


sexual de sus hijas(os). Rev. latinoam. cienc. soc. niñez juv. 7, n. 2, p. 1027-1053, 2009.

PASSARELA, C.; MENDES, D. D.; MARI, J. Revisão sistemática para estudar a eficácia de
terapia cognitivo-comportamental para crianças e adolescentes abusadas sexualmente com
transtorno de estresse pós-traumático. Rev. psiquiatr. clín., São Paulo, v. 37, n. 2, p. 60-65,
2010.

PETERS, S; WYATT, E; FINKELHOR, D. Prevalence. In: FINKELHOR, D. (Ed.). A


sourcebook on child sexual abuse. London: Sage, 1986.

PEREDA, N. B. et al. Revista d’ Estudis de la Violencia, n. 1, p. 60-65, 2007.

PFEIFFER, L.; SALVAGNI, E. Visão atual do abuso sexual na infância e adolescência. J.


Pediatr. (Rio J.), Porto Alegre, v. 81, n. 5, p. 197-204, nov. 2005.

PRADO, M. C.; PEREIRA, A. C. Violências sexuais: incesto, estupro e negligência


familiar. Estud. psicol. (Campinas), Campinas, v. 25, n. 2, p. 277-291, jun. 2008.

SAFFIOTI, H. I. Filhas de pais sexualmente abusivos. In: HOLLANDA, H. B.; CAPELATO,


M. H. (Orgs.). Relações de gênero e diversidades nas Américas. São Paulo: EDUSP, 1999.
p. 113-143.

SAFFIOTI, H. I. Abuso sexual pai-filha. 2005. Disponível em: bibliotecavirtual.


clacso.org.ar/ar/libros/brasil/pesqui/saffioti.rtf. Acesso em: 01 nov. 2011.

SALVAGNI, E.; WAGNER, M. Estudo de caso-controle para desenvolver e estimar a


validade discriminante de um questionário de avaliação de abuso sexual em crianças. J.
Pediatr. (Rio J.), Porto Alegre, v. 82, n. 6, p.431-436, dez. 2006.

SANDERSON, C. Abuso sexual em crianças. São Paulo: M. Books, 2008.

SANTOS, S. S. Mães de Meninas que sofreram abuso sexual intrafamiliar: reações


maternas e multigeracionalidade. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-
Graduação em Psicologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2007.

SANTOS, S. S.; DELL'AGLIO, D. Compreendendo as mães de crianças vítimas de abuso


sexual: ciclos de violência. Estud. psicol. (Campinas), Campinas, v. 25, n. 4, p. 595-606,
dez. 2008.

SANTOS, S. S.; DELL'AGLIO, D. Revelação do abuso sexual infantil: reações


maternas. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, v. 25, n. 1, p. 85-92, mar. 2009.

SCAVONE, L. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Ed.
UNESP, 2004.
72

SERPA, M. G. Perspectivas sobre papéis de gênero masculino e feminino: um relato de


experiência com mães de meninas vitimizadas. Psicol. Soc., Florianópolis, v. 22, n. 1, p. 14-
22, abr. 2010.

SILVA, C. G. et al. Religiosidade, juventude e sexualidade: entre a autonomia e a


rigidez. Psicol. estud., Maringá, v. 13, n. 4, p. 683-692, dez. 2008.

VASCONCELOS, A. M. Navegar com segurança: protegendo seus filhos da pedofilia e da


pornografia infanto-juvenil. São Paulo: CENPEC, 2006.

VERAS, T. O Sistema Nacional de Combate ao Abuso e a Exploração Sexual Infanto-juvenil


e o Plano Nacional: um exemplo de política pública aplicada. Cad. EBAPE. BR, Rio de
Janeiro, v. 8, n. 3, set. 2010.

VERCELONE, P. Comentário ao artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente. In:


CURY, M (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 10ª. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010. p. 34-38.

VERONESE, J. R. P.; COSTA, M. M. Violência doméstica: quando a vítima é criança ou


adolescente: uma leitura interdisciplinar. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006.

VIODRES INOUE, S. R. Violência sexual contra a criança: significações e estratégias de


enfretamento adotadas pelas mães. (Mestrado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação
em Psicologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2007.

VIODRES INOUE, S. R.; RISTUM, M. Violência sexual: caracterização e análise de casos


revelados na escola. Estud. psicol. (Campinas), Campinas, v. 25, n. 1, p. 11-21, mar. 2008.

______. Violência sexual contra a criança: estratégias de enfrentamento adotadas pelas mães.
Revista Interamericana de Psicología, v. 44, n. 3, p. 556-566, 2010.

VIVIANA, M. T. Abuso sexual intrafamiliar estudio exploratorio de la madre que denuncia.


Subjetividad y Procesos Cognitivos, v. 12, p. 223-256, 2008.

YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookman, 2001.


73

REFLEXÕES FINAIS

O presente trabalho teve como principal objetivo analisar a proteção materna em face
ao abuso sexual infantil intrafamiliar. Ao analisar a prática do abuso sexual pela figura
paterna contra crianças do sexo feminino depara-se com o nível de complexidade que envolve
o contexto familiar e social, quando da realização de denúncia pela mãe.
Através da revisão de literatura, foi possível observar a construção de uma concepção
europeia na qual se atribui de maneira exclusiva para as mulheres a responsabilidade pelo
cuidado com a casa e os filhos por volta do século XVIII, motivado por discursos de natureza
diversa, tais como o político, filosófico e econônimo. A assimilação pela sociedade brasileira
dos padrões criados na Europa favoreceu a adoção de semelhantes valores, sobretudo pela
classe dominante, que, do mesmo modo, compreendia as mulheres enquanto as responsáveis
pelas atividades domésticas e dedicação com a sua prole.
Esta concepção acerca da função materna influencia os padrões e atitudes a serem
desempenhados pelas mães até os dias atuais, apesar das diversas mudanças ocorridas no
decorrer do século XIX na sociedade brasileira. Investigações acerca do tema apontam
algumas modificações no contexto familiar, com uma maior participação masculina. Persiste,
contudo, a identificação materna enquanto a principal responsável pelo cuidado com a casa e
os filhos, bem como pela harmonia familiar, cabendo a estas uma atitude diligente com a sua
prole, principalmente nas hipóteses de maior gravidade.
Os discursos do campo da psicologia e medicina fortalecem as recentes representações
das mulheres voltadas para a saúde dos filhos, sobretudo nos casos de abuso sexual
intrafamiliar, onde a resposta materna é identificada em alguns estudos enquanto um dos
principais fatores de recuperação da criança. Da mesma maneira, o campo jurídido reforça os
padrões e exigências acerca do cumprimento da legislação nacional e internacional, visando à
proteção integral das crianças, colocando-as a salvo de todas as formas de violência e
negligência.
Sob essa concepção, por ser o abuso sexual uma espécie de violência que acarreta
diversas consequências de ordem física e emocional para as crianças, deveria a mãe, no
exercício de uma função de cuidado e proteção que lhe é atribuida, realizar a denúncia e
romper com o ciclo em que sua família encontra-se imersa, todavia, diversos fatores poderão
dificultar ou até mesmo impedir a realização da denúncia.
74

No estudo de natureza empírica, observa-se que algumas conclusões guardam


consonância com outras pesquisas. A dificuldade em perceber os sinais dos abusos,
sentimentos como a culpa, a ambiguidade, bem como a dimensão entre a escuta e a ação
materna. Ao analisar-se a dimensão da proteção materna em face ao abuso sexual infantil
intrafamiliar, o estudo possibilitou desvelar alguns elementos, tais como as dificuldades
encontradas pela mulher/mãe ao quebrar o ciclo de violência vivenciado por suas filhas
quando da realização da denúncia e exercício da proteção que lhe é atribuída social e
legalmente.
Porém, algumas limitações cumprem ser apontadas. A primeira correspondente acerca
dos contornos de natureza metodológica, por consistir o presente trabalho em um estudo de
caso único realizado com um dos membros familiares. Não obstante a profundidade e valor
dos dados levantados na presente pesquisa, a pouca abrangência do método utilizado não
fornece dados para generalizações de ordem científica, necessitando-se de outros estudos que
analisem a proteção exercida pela mãe nos casos de abuso sexual intrafamiliar. Ressalva-se,
do mesmo modo, a realização da investigação com o componente familiar materno, sendo
importante que se exceda a análise para outros membros do grupo familiar, para que seja
possível uma melhor compreensão do fenômeno analisado.
As conclusões do trabalho resultam da realização de entrevista, análise do processo
judicial, visitas e diário de campo obtidos por meio do estudo com uma participante,
admitindo-se a possibilidade dos resultados encontrados não refletirem plenamente a
realidade enfrentada por outras mulheres em semelhante condição. Cumpre ainda ressaltar,
que o presente trabalho investigou uma mãe que quando do conhecimento dos abusos sofridos
pela filha, rompeu com o silêncio, apesar de todas as dificuldades. Deste modo, os resultados
não poderão ser estendidos para todas as ocorrências, reconhecendo ser o abuso sexual uma
espécie de violência que muitas vezes não é notificada, podendo a mãe figurar como autora ou
até mesmo partícipe, ao ser conivente com esta prática.
No que concerne ao abuso sexual infantil intrafamiliar, a função que é atribuída às
mães atualmente na nossa sociedade, tais como a de ser a principal personagem
intermediadora entre a família, bem como entre a sociedade e esfera pública reverte-se de
certa complexidade e diversos são os fatores que dificultam o exercício da proteção materna.
A ausência de apoio e suporte dos membros da família e da sociedade poderá
desempenhar um importante papel na manutenção do seu silêncio. Observou-se, no presente
estudo, que a mãe ao buscar ajuda, nem sempre a recebe, ou recebe da forma inadequada.
Apesar das dificuldades enfretadas pela participante, sobretudo, em razão da ausência de
75

apoio familiar e social, depreende-se pela atitude diligente, tratar-se de uma proteção da prole,
ao realizar e denúncia e afastar as filhas do agressor.
Ressalva-se sobre a necessidade de uma intensificação das políticas e programas,
visando a um maior esclarecimento acerca dos abusos, enquanto um possível facilitador do
cumprimento da proteção das crianças de uma forma mais eficaz. Por estar o núcleo familiar e
social mais próximo à mãe, o apoio desses componentes poderá ser fundamental na decisão
materna de denunciar.
Sugere-se uma reflexão sobre o tema e os modelos de assistência vigentes, que não
contemplam de forma devida as mães destas crianças, bem como uma melhoria na
capacitação dos profissionais das diversas áreas, tais como a jurídica, da saúde e assistência
social. A adequada resposta dos profissionais poderá falicitar a atuação materna na busca por
ajuda nas agências públicas quando necessitassem, favorecendo um melhor cumprimento da
norma nacional e internacional na proteção infantil.

Você também pode gostar