Proteção Materna em Face Ao Abuso Sexual Intrafamiliar
Proteção Materna em Face Ao Abuso Sexual Intrafamiliar
Proteção Materna em Face Ao Abuso Sexual Intrafamiliar
SALVADOR
2011
ISABELA ALVES MATTOS
SALVADOR
2011
UCSAL. Sistema de Bibliotecas
Agradeço a Deus pelo dom da vida, por ter me concedido força e saúde para alcançar esta
etapa repleta de desafios e descobertas.
Aos meus amados pais e irmão que sempre me apoiaram, em especial à minha mãe pela
constante presença, colo e amizade, apesar da distância geográfica que nos separa.
Agradeço a minha orientadora Prof.ª Dr.ª Isabel Maria Sampaio Oliveira Lima pela confiança,
sábias lições e tão grandioso suporte e estímulo essenciais para a realização do meu trabalho.
Ao grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Direito à Saúde e Família, por ter possibilitado o
meu primeiro contato com a pesquisa. A todos os membros do grupo agradeço o carinho com
que fui recebida, as contribuições e apoio.
Agradeço à Prof.ª Dr.ª Ana Cecília Bastos pela atenção dispensada e acolhida.
Ao grupo „maternos‟, pela valorosa oportunidade de conhecer um mundo novo, pelo qual
pretendo mergulhar.
Agradeço à Prof.ª Dr.ª Marilena Ristum pela disponibilidade em estar presente nessa etapa tão
importante da minha caminhada.
Aos meus queridos amigos e familiares que me apoiaram ao longo dessa trajetória. Em
especial à vovó Santinha pelas orações diárias que tanto me fortalece.
MATTOS, I. A. Minha filha: proteção materna em face ao abuso sexual infantil intrafamiliar.
2011. 72 f. Dissertação (Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea) – Programa de
Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea, Universidade Católica do Salvador,
Salvador, 2011.
A temática do abuso sexual infantil consiste em um recente objeto de estudo nas diversas
áreas do conhecimento. Os avanços das ciências juntamente com o movimento acerca dos
Direitos da Criança favoreceram um novo olhar sobre a infância e sua proteção. Pesquisas
sobre o tema sugerem uma maior frequência do abuso sexual no ambiente familiar.
Considerando que os principais perpetradores são do sexo masculino, propõe-se uma reflexão
sobre a figura materna. A presente dissertação de mestrado teve como objetivo analisar a
proteção materna em face ao abuso sexual infantil intrafamiliar. O trabalho foi dividido em
dois artigos de natureza qualitativa, sendo um nomeadamente teórico e outro de caráter
mais empírico. No primeiro analisa-se a maternidade quando defrontada com casos de abuso
sexual infantil intrafamiliar, mediante revisão de literatura e revisão legislativa. Pondera-se
acerca das atuais concepções que envolvem a maternidade e a sua atribuição com os cuidados
e proteção da prole, sobretudo nas adversidades, como na ocorrência do abuso sexual. O
segundo artigo analisou a proteção materna quando da prática de abuso sexual com crianças
do sexo feminino no seio familiar. O delineamento empregado foi o estudo de um caso único
identificado no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente. Após a imersão no caso
emblemático, apreende-se que a resposta materna poderá ser determinante no rompimento da
violência e punição do agressor. Destaca-se a necessidade de programas públicos voltados
para as mães, visando à prestação de auxílio financeiro e psicológico que favoreçam a
realização da denúncia e o exercício da proteção. A dissertação cumpre o proposto e convida
à ampliação do necessário estudo sobre a proteção da filha pela mãe em circunstâncias de
abuso sexual intrafamiliar.
The issue of child sexual abuse is a recent object of study in the many fields of knowledge.
Science development, along with the Rights of the Child movement, furthered a new outlook
on childhood and its protection. Researches on the subject suggest sexual abuse within the
family has been occurring more frequently. Considering that the main perpetrators are male, a
reflection on the mother figure is incumbent. The objective of this dissertation is to analyze
maternal protection in the face of intrafamilial child sexual abuse. This work has been divided
in two qualitative articles, whereby one is particularly theoretical, and the other, more
empirical. The former analyzes motherhood when confronted with cases of child sexual abuse
within the family, through literature and legislative reviews. It ponders current concepts
involving motherhood and their ascription to care and protection of offspring, especially
amidst adversity, such as sexual abuse. The latter examined motherly protection when girls
were sexually abused within the family. As its design the study of a unique case that occurred
at the Child and Adolescent Defense Center was employed. Through immersion in the typical
case, it is understood that the maternal response may be decisive to punish aggressors and put
an end to violence. This study highlights the need for public programs aimed at mothers and
at providing financial and psychological assistance that will encourage the pressing of charges
and the exercise of protection. This dissertation accomplishes what it sets out to do, and calls
for further studies on daughter protection by her mother in the event of sexual abuse within
the family.
Apresentação
08
ARTIGO I: Maternidade e o abuso sexual infantil intrafamiliar: garantir um colo
protetor 11
13
Introdução
Histórico sobre a maternidade 15
A maternidade no Brasil 18
A mãe na contemporaneidade 22
O desafio do abuso sexual infantil intrafamiliar e a maternidade 26
Comentário final 32
Referências 34
42
Introdução
Abuso sexual infantil 43
O abuso sexual infantil intrafamiliar e a proteção materna 47
Método 51
Resultados e discussão 55
Indícios dos abusos e a percepção materna 57
A culpa dos abusos 58
Entre a escuta da criança e a ação 59
Sentimento materno 60
Os passos até a realização da denúncia 61
Consequências familiares para a mãe após a revelação 63
Consequências financeiras após a realização da denúncia 64
Apoio recebido pela mãe 64
A sentença e uma nova posição 65
Considerações Finais 65
Referências 67
73
Reflexões Finais
8
APRESENTAÇÃO
atividade entre uma criança e um adulto que, em razão da idade e da fase do desenvolvimento,
se encontra em uma relação de responsabilidade, confiança ou poder (HABIGZANG, 2006).
A idealização da família como um locus de amor e proteção para as suas crianças, nem
sempre se mostra na prática. De tal modo, o presente trabalho fundamenta-se na concepção de
que o abuso sexual contra a criança infringe não somente um sujeito de direito vulnerável,
mas trata-se de uma maneira cruel de violar a sua formação física e psicológica, bem como
consiste no descumprimento do dever legal de proteção existente na legislação nacional e
internacional.
A apresentação em forma de artigos busca contemplar a natureza teórica e empírica da
temática. O primeiro artigo analisa a maternidade quando defrontada com casos de abuso
sexual infantil intrafamiliar. Enquanto o segundo artigo analisa a proteção materna em face ao
abuso sexual infantil intrafamiliar.
11
ARTIGO I
Resumo
Diversas têm sido as mudanças relativas à condição feminina ao longo das últimas décadas.
No entanto, no discurso dominante ainda persiste a função materna enquanto atribuição da
mulher no cuidado e na proteção da prole. A mulher continua a ser concebida socialmente
como a responsável pelo equilíbrio familiar. O presente artigo visa analisar a maternidade
quando defrontada com casos de abuso sexual infantil intrafamiliar. Adota-se estratégia
qualitativa mediante uma revisão de literatura e revisão legislativa. A primeira foi realizada
com levantamento de artigos científicos em periódicos observando-se palavras-chave e
levantamento de livros. O resultado da revisão evidencia que variáveis sobre origem
econômico-social da mãe pode influenciar sua reação. Ademais, observa-se que a concepção
acerca da maternidade poderá alterar-se consoante determinada cultura ou contexto histórico-
social. Esta atuação feminina ganha relevância, sobretudo, na ocorrência de adversidades, tais
como o abuso sexual praticado contra seus filhos.
Abstract
Many were the changes over the past decades regarding the status of women. However, the
dominant discourse is still set on the maternal role as being the women's duty to care for, and
protect, their offspring. Women are still seen as largely responsible for family balance. This
article intends to analyze motherhood when confronted with cases of child sexual abuse
within the family. A qualitative approach has been adopted, by means of literature and law
reviews. The first of them was conducted using scientific articles, and their keywords, in
journals, and books. Review conclusion shows that variables relative to the mothers' socio-
economic roots may influence their reaction. Moreover, it has been noted that the conception
of motherhood may change depending on cultural or socio-historical contexts. This female
role becomes important especially amid adversities, such as the sexual abuse against their
children.
Introdução
O presente artigo visa analisar a maternidade quando defrontada com casos de abuso
sexual infantil intrafamiliar. Adota-se uma estratégia qualitativa mediante uma revisão de
literatura e revisão legislativa. A primeira foi realizada com levantamento de artigos
científicos em periódicos observando-se palavras-chave e levantamento de livros. O resultado
da revisão evidencia que variáveis sobre origem econômico-social da mãe pode influenciar
sua reação. Ademais, observa-se que a concepção acerca da maternidade poderá alterar-se
consoante determinada cultura ou contexto histórico-social. Esta atuação feminina ganha
relevância, sobretudo, na ocorrência de adversidades, tais como o abuso sexual praticado
contra seus filhos.
O parto e a maternidade são importantes acontecimentos que conferem à mulher uma
nova condição. Consiste a maternidade em um momento de transição que enseja a redefinição
do lugar ocupado pela mulher (DIAS; LOPES, 2003) a partir do nascimento do filho. Esta
nova percepção emerge da vivência e desempenho da função de mãe. Identificando-se, pois,
neste papel culturalmente qualificado, a mulher cresce, diante de si e do significado que a
sociedade se lhe atribui.
As sociedades ocidentais modernas vivenciam nas últimas décadas uma grande
modificação dos valores e do papel social exercido pela mulher. Contudo, a presença de um
discurso dominante persiste ao enfatizar a tradicional visão de realização da mulher na
experiência da maternidade, quando reforça a adoção de práticas que são socialmente
encaradas enquanto „naturais‟(ROCHA-COUTINHO, 1994).
A existência de alguns mitos acerca da maternidade e suas atribuições orienta as
diversas atitudes e comportamentos condizentes com o exercício da “boa maternidade”
(TAKEI, 2008). Esta compreensão gera uma idealização do ser mãe enquanto uma obrigação
a ser conhecida por todas as mulheres, devendo ser experienciada de uma mesma maneira,
atendendo aos padrões previamente estabelecidos (FORNA, 1999).
Na cultura ocidental a maternidade consiste em uma experiência individual e
intergeracional, que assimila valores da cultura e requer da mãe determinadas atuações,
práticas e responsabilizações que são exercidas além da gestação e da primeira infância do
filho. Esta relação irá estender-se por um longo tempo de criação, pois envolve a prestação de
assistência e a proteção que possibilitem o desenvolvimento físico e psicoemocional da prole.
14
Em uma análise acerca da maternidade, Correia (1998) ressalta que a maneira como a
gravidez e a maternidade são vividas pela mulher relaciona-se com dois fatores: o elemento
cultural que interfere no sentir e nas atitudes; além dos elementos intrínsecos que se
relacionam com os traços individuais de personalidade da mulher. Não é possível, portanto,
falar em um único padrão de maternidade, mas em distintas maternidades (SOLE; PARELLA,
2004) que irão variar de acordo com uma gama de elementos.
A vivência da maternidade relaciona-se com a dinâmica da sociedade em um dado
momento histórico. Oscilando o modo de ser encarada de acordo com as percepções e valores
existentes acerca da infância, dos direitos dos homens e mulheres no contexto social, a
maternidade varia, sobretudo de acordo com a classe social (ENGELS, 2002).
Trabalhos de revisão histórica acerca da família e dos seus membros indicam que o
incondicional amor da mãe para com seus filhos é característica relativamente atual dentro na
história da civilização ocidental. Ressalta-se que contrariamente ao pensamento dominante
acerca da maternidade na sociedade contemporânea, o amor materno não consiste em algo
intrínseco à natureza feminina, mas em um mito (BADINTER, 1985; FORNA, 1999;
MOURA; ARAÚJO, 2004).
Observa-se que o interesse e a afeição das mães modificam-se em cada época. Ao
discutir o assunto Correia (1998, p. 366) salienta a relação entre os valores e o papel dos pais:
“Será em função das exigências e dos valores dominantes de uma sociedade determinada que
são determinados os papéis respectivos do pai, da mãe e da criança”.
A maternidade é permeada por uma diversidade de sentimentos e práticas, que traduz
elementos sociohistóricos. Para Badinter (1985) o amor materno consiste em algo imperfeito e
extremamente complexo distante de ser extinto, uma vez que não se observa ao longo da
história uma conduta universalmente atribuída à mãe.
Ao fazer uma análise antropológica acerca da maternidade, Kitginzer (1978) aponta
que grande parte do que é entendido como natural, consiste, em verdade, como produto da
cultura. Afirma a autora que somente nos primeiros momentos de vida e nas iniciais relações
entre a mãe e o bebê se observa algo de instintivo. No entanto, nas sociedades com padrões
tecnológicos, como na ocidental, este primeiro contato mostra-se influenciado por práticas
culturais.
A literatura ressalva que até meados do século XVIII inexistia um sentimento acerca
da infância e uma afeição entre os membros da família (ÀRIES, 2006). Como o amor materno
16
não era reconhecido enquanto um valor social, as mães dispensavam pouco ou nenhum
cuidado ou atenção especial para sua prole, sendo as práticas com relação às crianças muitas
vezes pautadas em condutas violentas. Nessa perspectiva o homem ocupava o lugar central na
estrutura familiar igualando a condição da esposa à da criança, isto é, de subordinação e
domínio (MOURA; ARAÚJO, 2004).
Ao pesquisar a maternidade e o nascimento em diversas civilizações e contextos
históricos, Kitzinger (1978) lembra que o abandono e o infanticídio foram práticas comuns ao
longo da história. Enquanto Pereira (2008) assinala que na família romana o pai possuía um
domínio absoluto sobre os seus filhos exercendo um direito de proprietário, concepção que
lhe permitia castigar, mandar flagelar ou banir da família. O controle da vida ou de morte dos
filhos pela autoridade paterna poderia ser motivado por razões de ordem religiosa ou
meramente para a manutenção do controle de natalidade.
Na Grécia Antiga apenas eram conservadas vivas as crianças fortes, sendo admissível
o abandono de crianças defeituosas pelas próprias famílias. O abandono era uma prática
corriqueira na Antiguidade, sendo legal e moralmente aceitável o poder de escolha do pai pela
vida da sua prole (AMIN, 2008).
Tecendo considerações acerca dos cuidados dispensados às crianças na Antiguidade,
estudos revelam que os adultos tinham o pensamento que estas “[...] existiam para atender às
necessidades e à comodidade [...]” dos mais velhos (SANDERSON, 2008, p. 2). Consoante o
pensamento existente as crianças defeituosas eram vistas como responsáveis pelas desgraças
na família. Esta compreensão conferia certa naturalidade às práticas de infanticídio e
abandono que, à época, não despertavam nenhuma oposição social ou materna.
A violência contra as crianças existente outrora não ocorria somente no plano físico,
mas também através do envolvimento destas em atividades de natureza sexual. O fato de
serem as crianças encaradas enquanto adultos em miniatura favorecia que os jogos e assuntos
sexuais fossem práticas socialmente permitidas em todas as classes sociais
independentemente da idade (ÀRIES, 2006).
Um dos primeiros indicadores da rejeição materna, contudo, era observado na recusa
da mãe em dar o seio para o seu filho. Para exercer esse encargo as famílias contratavam amas
de leite, prática muito comum na França entre os séculos XIII e XVIII, quando o costume se
estendeu por todas as camadas sociais (BADINTER, 1985). Nesse período os textos
direcionados para as mães pregavam que as carícias e ternuras eram sinônimos de fraqueza e
de pecado. Legitimava-se, assim, o afastamento do contato físico entre a mãe e a criança,
embora estivesse a prole em fase de crescimento, desenvolvimento e a demandar cuidados.
17
da maternidade como a atividade mais doce e primordial na vida da mulher, circunstância que
permitiu a criação do mito que perdura até os dias atuais: o do instintivo amor da mãe por
seus filhos (COUTINHO; MENANDRO, 2005).
A solidificação do novo pensamento no decorrer do século XIX materializou-se em
uma ideologia que exalta a função da mulher como mãe, restringindo a sua atribuição social à
concretização da maternidade (SCAVONE, 2004). Houve um declínio do poder patriarcal e o
crescimento da responsabilidade das mães acerca da criação dos filhos. Nessa época cria-se
para mulher um novo dever, prevalente sobre todos os demais, qual seja, o de ser mãe.
A maternidade no Brasil
razão da saída das mulheres mais pobres do seu lar para realizar uma atividade remunerada
em outros ambientes, motivadas pela necessidade de assumirem a condição de chefes da
família (SOIHET, 2007).
No século XX o modelo de família dominante no Brasil ligava-se aquele no qual a
família formada pelos cônjuges e os filhos viviam sob o mesmo teto. Observou-se, a partir de
então, uma rígida divisão do trabalho e de papéis dentro do grupo social, sendo o homem o
provedor e a mulher a responsável pelos filhos e pela casa (DINIZ; COELHO, 2005). As
diferenças entre os homens e mulheres na sociedade “acarretou o sentido de inferioridade da
mulher e produziu uma forma muito particular de subjetividade” (ROCHA-COUTINHO,
1994, p. 43), baseada no sentimento de passividade feminino.
Um movimento histórico composto de duas vertentes deu origem à nova mãe, ou seja,
ao mesmo tempo em que as mulheres alcançaram a libertação do poder patriarcal, distintos
poderes passaram a controlá-la, tal como o poder médico. A construção, pela ciência da
época, de uma natureza tipicamente feminina, fez com que toda a mulher que adotasse uma
postura contrária ao novo padrão social dominante fosse encarada como uma mãe
„desnaturada‟, ou seja, como alguém que não observava a disposição que lhe era „natural‟
(ROCHA-COUTINHO, 1994).
Apreciando as mudanças na família brasileira, Samara (2002) destaca, que nessa fase
de consolidação de um ideal burguês, apesar das mudanças nas atribuições da mulher e da sua
importância, das novas concepções acerca da infância e do despertar do amor familiar, a vida
seguiu girando em torno da figura masculina, detentor dos espaços públicos, característica
respaldada pela legislação da época.
No Código Civil de 1916 o marido continuava a ser o chefe da família e o detentor do
pátrio poder. A mulher casada só estaria autorizada a trabalhar com prévia autorização do
marido (NARVAZ; KOLLER, 2006). Restringia-se o acesso ao emprego formal e à
propriedade das mulheres, pois eram entendidas como incapazes de exercer os atos da vida
civil, ocasião em que somente a ausência do marido permitia à estas assumirem a liderança da
família. Da mesma maneira, crianças não eram legalmente encaradas como sujeitos de
direitos.
A escolarização para as meninas no Brasil continuou defasada por um longo período.
O acesso restringia-se apenas ao ensino básico, que favorecesse um bom desempenho dos
cuidados e a transmissão de valores aos filhos, bem como a supervisão das atividades
domésticas. No entanto, algumas mudanças no tocante ao papel da mulher na sociedade
21
brasileira aconteceram em meados do século XX, alcançando aquelas que faziam parte das
classes médias urbanas e da elite.
Lentamente as mulheres foram se profissionalizando e ocupando espaços em
profissões menos valorizadas, uma vez que, até a década de 1930 a presença destas nos cursos
superiores era insignificante. Todavia, ressalta-se a constante presença feminina nos setores
informais, sobretudo as mulheres das classes mais baixas que contribuíam no orçamento da
família (SAMARA, 2002). No início do século XX, a participação feminina se limitava às
atividades de nível não qualificado do país, especialmente na indústria têxtil (VIODRES
INOUE, 2007).
A delimitação de limites para a atuação social feminina favoreceu a consolidação das
desigualdades entre os homens e mulheres, gerando um maior poder do sexo masculino, que
prosseguiu inabalado por um extenso período da história (COUTINHO; MENANDRO,
2009). No entanto, como as identidades não consistem em determinantes estáveis e imutáveis,
outras possibilidades foram possíveis para as mulheres em decorrência das mudanças
desencadeadas no decorrer do século XX (ROCHA-COUTINHO, 2005).
Alterações mais expressivas desse contexto começaram a acontecer na década de
1970, com o advento do movimento feminista (DE SOUZA; BALDWIN, 2000). O
feminismo, ao propor uma nova posição social para a mulher, trouxe em seu conteúdo um
novo discurso, através do qual visava vencer o antigo pensamento de passividade e docilidade
femininas, passando a questionar o papel das mães e as suas funções voltadas exclusivamente
para os cuidados dos filhos e da casa. Nesse movimento, aquilo que antes era compreendido
como essencial na vida das mulheres, passa à condição de desvalorizado e diminuído
(BAPTISTA, 1995).
O aperfeiçoamento da medicina, aliado ao desenvolvimento de novas tecnologias
favoreceu o surgimento dos métodos de contracepção que possibilitaram para as mulheres o
rompimento com um determinismo biológico, conferindo a estas um maior domínio sobre o
seu corpo e uma livre escolha da maternidade. Nesse momento ocorre a dissociação entre a
sexualidade da mulher e a reprodução (BRANDÃO; RABINOVICH, 2008).
O maior acesso à educação, o aumento da formação profissional, somada à efetiva
possibilidade de inserção das mulheres no mercado de trabalho, em decorrência da
regulamentação do trabalho feminino pela Consolidação das Leis do Trabalho no ano de
1941, favoreceram o questionamento da condição no qual estas se encontravam na sociedade,
passando a dividirem o seu papel de mãe com o trabalho fora do lar.
22
Nesse novo contexto, a função materna deixa de ser considerada a única fonte de
alegria e preocupação na vida das mulheres, surgindo novos ideais a serem alcançados
conjuntamente ao exercício da maternidade. A identidade feminina passa a estruturar-se a
partir dessa variedade de papéis por ela desempenhados, sem, todavia, retirar a importância do
papel materno (TAKEI, 2008).
Ao passo em que a mulher se desligava de um determinismo biológico no tocante à
maternidade, a importância não só da figura feminina, mas também de toda a família com os
cuidados e proteção da criança foi reforçada pelas novas concepções internacionais acerca da
Dignidade da Pessoa Humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações
Unidas, de 1948, preceituou que à infância é conferido o “direito a cuidados e assistência
especiais”, sentimento oriundo do pós-guerra, que imprimiu um novo olhar para os segmentos
menos favorecidos, como as mulheres e crianças.
A mãe na contemporaneidade
cobrança feita pelas próprias mulheres em torno do exercício da maternidade, função esta que
muitas vezes se inicia durante a infância ou adolescência através dos cuidados com os irmãos
mais novos.
No mesmo sentido, um estudo realizado através de aplicação de questionário com 170
universitários que faziam curso de diferentes áreas, na capital e interior do estado da Bahia,
aponta que para 93,5% dos participantes a mãe é vista como aquela que mais protege a
família. Do mesmo modo, a responsabilidade pela estabilidade familiar foi atribuída à mãe
para 84,1% dos participantes, merecendo ainda destaque o papel de suporte emocional,
creditado em 91,7% das respostas à figura feminina (RABINOVICH; MOREIRA; FRANCO,
no prelo).
Moreira e Rasera (2010) sugerem que os significados e os sentidos que as mulheres
conferem ao fenômeno da maternidade nos dias atuais persistem amplamente influenciados
por concepções de natureza sociohistórica. Estas descrevem a maternidade como algo
revestido de extrema beleza, amor, instinto, isto é, como um evento natural e divino, que deve
ser vivenciado por todas as mulheres. Compreensão que solidifica peculiares sentidos acerca
do que é ou necessitaria ser a maternidade, instituindo formas e padrões para bem exercê-la
que interferem nas práticas diárias das mães.
Os autores elucidam que as mudanças sociais, econômicas, assim como a propagação
das normas de conteúdo higienistas, dentre outras, possibilitaram o surgimento de um
discurso que dedica à mulher a responsabilidade pelo cuidado e educação dos filhos. Edifica-
se a noção da boa mãe, passando a ser encarada enquanto tal aquela mulher que busca cumprir
o que lhe é atribuído, sendo a figura feminina visualizada como a única ativa nesse contexto
cabendo o papel de cuidado, proteção e desenvolvimento do seu filho.
Meyer (2006) denominou de “politização da maternidade” aos diversos movimentos
das redes de poder-saber que sustentam o discurso sobre as práticas, políticas, programas que
criam os modos de monitorar, produzir e definir a maternidade. Essas redes são influenciadas
por diversos discursos, sobretudo pelas ciências, como a medicina, psicologia e o direito.
A racionalidade neoliberal, juntamente com os avanços legislativos acerca dos direitos
da criança, provocou o surgimento de políticas que imputam a responsabilidade da mulher ao
tornar-se mãe, de conceber e criar filhos saudáveis e equilibrados, independentemente das
condições e problemas por ela enfrentados (MEYER, 2006).
Juntamente com a concepção oriunda do movimento sociocultural acerca da
maternidade e das suas funções nos dias atuais, temos a previsão o dever de proteção imposto
pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989), adotado pela Constituição
25
Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) que atribui em regime de
corresponsabilidade à família, sociedade e ao Estado o papel de proteção e cuidado com as
crianças.
Resta claro, todavia, através da análise dos dispositivos legais, a intenção do legislador
nacional e internacional em atribuir à família como o primeiro núcleo responsável pelo
cuidado e dedicação às suas crianças. Visando assegurar-lhes um crescimento adequado a
Convenção Internacional dos Direitos da Criança (1989) prevê expressamente no seu
preâmbulo a importância da família para a formação destas, “Reconhecendo que a criança,
para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da
família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão” (ONU, 1989).
Essa atribuição decorre de elementos como a consanguinidade e do fato da família ser
o ambiente através do qual a criança se insere na relação da vida em sociedade. A família
consiste no primeiro contexto de desenvolvimento onde são construídos diversos
“significados e práticas que orientam e influenciam as trajetórias desenvolvimentais dos
indivíduos” (BASTOS et al., 2007, p. 164-165).
A família possui um importante papel de formação, proteção e segurança das crianças.
Para tanto, se atribui um poder-dever aos pais que deverão zelar pelo sadio desenvolvimento
dos seus filhos, concedendo afeto e os recursos materiais necessários para um crescimento
digno. As funções da família estão centradas em três pontos apontados por Biasoli-Alves e
Moreira (2007): consiste no principal agente de socialização, determinando como as práticas
na educação serão dimensionadas; permite o convívio de pessoas de diversas idades,
possibilitando a formação da identidade primeira; abarca na natureza do vínculo afetivo entre
pais e filhos, o cuidado e a transmissão de valores.
A família mantém, assim, a sua importância enquanto instituição, independentemente
do arranjo ou desenho com a qual se estrutura. De acordo com a nova perspectiva
constitucional e estatutária as responsabilidades e funções da instituição familiar adquiriram
grande relevância, sendo amplamente demandadas, sobretudo nas hipóteses de adversidades.
Em algumas situações, contudo, a instituição familiar não consegue bem desempenhar a
função de proteção dos seus membros atribuída legalmente, a exemplo das situações de
violência, como abuso sexual de crianças, onde ocorre uma quebra nos limites internos das
relações familiares.
Na contramão da previsão legislativa, o que se observa nos casos de abuso sexual
intrafamiliar é uma inversão dos papéis atribuídos aos pais, onde aquele que deveria moralizar
e proteger passa a violar o mais frágil. Nesse sentido Donati (2008, p. 40) expressa “A família
26
é capaz de mediar relações que geram saúde, e também causar carências e desvios, como nos
casos de abuso de crianças e isoladamente de um idoso”.
O abuso sexual infantil é uma espécie de violência sexual em que um adulto aproveita-
se de uma criança ou adolescente para atender o seu prazer sexual (DEZA, 2005). Para tanto,
o abusador utiliza-se de diversos artifícios para envolver a criança que não possui capacidade
e maturidade suficiente para entender a prática dos atos abusivos. Sendo um fenômeno
observado nas mais diversas classes sociais (BAPTISTA et al., 2008).
Algumas pesquisas, ao não distinguirem a violência sexual do abuso sexual, acabam
correndo no risco de favorecer outra ambiguidade entre os conceitos de abuso e exploração
sexual, afirmando que o conceito daquela “engloba ainda a situação de exploração sexual
visando lucros, como prostituição e pornografia” (ROCHA, 2004, p. 92). A utilização do
abuso sexual e da exploração sexual enquanto sinônimos, revela distinta falta de clareza das
práticas por parte da literatura. Apesar do abuso e da exploração sexual consistirem em
conceitos muito próximos e em formas de violência sexual que vitima crianças e adolescentes,
tratam-se de situações diversas, que não se confundem, na medida em que possuem marcantes
traços distintivos.
No presente artigo adota-se, em fidelidade à necessária distinção, os conceitos
estabelecidos por Faleiros e Radicchi (2010) ao instituírem que a diferenciação entre os dois
fenômenos se fundamenta na natureza da relação constituída entre a vítima e o agressor. Na
prática do abuso sexual tem-se uma relação de natureza pessoal, íntima com caráter sexual,
enquanto na exploração sexual observa-se uma relação de natureza mercantil, onde a criança é
explorada sexualmente visando lucro, estando configurada nas formas de turismo sexual e
prostituição. Esta distinção é apontada tanto por organizações especializadas em proteção de
direitos da criança como o Childhood (VASCONCELOS, 2006), quanto por especialistas
(FALEIROS; CAMPOS, 2000; ARAÚJO, 2002; CARDOSO; MENEZES, 2009; VERAS,
2010; VASCONCELOS et al., 2010).
Entende-se o abuso sexual como uma espécie de violência que envolve a prática de
qualquer ato sexual entre uma criança ou adolescente com pessoa que possui um estágio
psicossexual mais avançado, sendo a vítima utilizada pelo perpetrador para a sua gratificação
ou estimulação sexual (HABIGZANG et al., 2005). Esclarecendo as questões conceituais
entende Faleiros e Campos (2000, p. 7) que:
Em síntese, o abuso sexual deve ser entendido como uma situação de ultrapassagem
(além, excessiva) de limites, de direitos humanos, legais, de poder, de papéis, do
nível de desenvolvimento da vítima, do que esta sabe e compreende, do que o
abusado consentir, fazer e viver, de regras sociais e familiares e de tabus.
mãe como participante ativa no contexto do abuso sexual, situação em que figura como
cúmplice ou facilitadora da violência (QUIROZ; PEÑARANDA, 2009), circunstâncias em
que são apontadas enquanto negligentes e permissivas, deixando assim de exercer a função de
cuidado e proteção.
Nessas circunstâncias a mãe se mostra presente nas situações de abuso sexual, o que
sugere o conhecimento da violência por ela, que acaba por constituir “um conluio perverso
com o pai” (DIAS, 2010, p. 169), apoiando o agressor ao permanecer em silêncio. Em muitos
desses casos, a mãe por ser dependente financeiramente e emocionalmente do agressor, acaba
por ser forçada a participar das práticas abusivas, situação em que a filha passa a ocupar o
lugar até então atribuído a mãe dentro do contexto familiar, exercendo a função sexual
(FORWAR; BUCK, 1989).
Ao tomar conhecimento do abuso, a mãe poderá adotar, contudo, uma atitude
socialmente esperada de cuidado e proteção. Tal conduta poderá acontecer através do
oferecimento da denúncia pela mãe, uma vez que ela propicia a intervenção da esfera pública
no ambiente privado (lar), elemento que favorece ao afastamento do abusador e a inclusão da
vítima em algum programa de tratamento.
Acerca da iniciativa de proteção através da denúncia do agressor, um estudo realizado
a partir da análise de processos de casos de violência, que foram ajuizados pelas Promotorias
Especializadas na Infância e Juventude no município de Porto Alegre no período de 1992 a
1998, na análise de 71 expedientes observou-se que a denúncia da violência sexual foi feita
pela mãe em 37,6% dos casos, em 29% a própria vítima ofereceu a denúncia, em 15,1%
outros parentes, e em 6,5% a denúncia foi feita por instituições, como escolas, hospitais
(HABIGZANG et al., 2005), verificando-se o diligente papel materno.
Todavia, a atitude de proteção por meio da denúncia da mãe não consiste em um dado
uniforme. Em sentido diverso, pesquisa realizada por Martins e Jorge (2010) em análise dos
prontuários sobre os casos notificados de abuso sexual no município de Londrina no ano de
2006, verificou que das 186 notificações realizadas, 67,2% foi feita principalmente por
pessoas da família, como tios, irmãos, cunhados e primos, a mãe aparece na pequena
porcentagem de 8,1% dentre os denunciantes, seguida de diretor de escola e pai e
profissionais da saúde.
O estudo realizado por Pires-Filho (2009) na Região Metropolitana de Recife, através
entrevistas semiestruturadas realizadas com sete psicólogas que trabalhavam em instituições
que prestam atendimento às crianças vítimas de abuso sexual, quatro participantes apontaram
a mãe exclusivamente como a pessoa que mais realiza a denúncia, e que o abusador é afastado
31
do ambiente familiar. O estudo traz, igualmente, o olhar das participantes acerca das
dificuldades enfrentadas pelas famílias. Estas, ao realizar a denúncia, deparam-se com o
problema de sobrevivência, pois, em muitos casos, o abusador é o próprio provedor da casa.
Esclarece o autor, contudo, que em alguns casos o abusador encontra a proteção da família,
que nega a violência por diversas motivações, dentre elas, em razão da percepção deste como
uma pessoa doente que necessita de cuidados.
A literatura atenta para o fato de que a denúncia consiste em uma iniciativa muitas
vezes difícil de ser tomada, tanto pela mãe, como pelos demais membros da família
apontando que, em muitos dos casos de seu oferecimento junto ao órgão competente, não
ocorreu no momento em que se tomou conhecimento do abuso sexual, elemento que sugere
dificuldade em oferecer a denúncia e quebrar com o ciclo de violência.
Nesse sentido Habigzang et al. (2005) identificou em sua pesquisa realizada por meio
da análise de processos denunciados nos anos de 1992 a 1998 no Município de Porto Alegre,
que dos 71 expedientes identificados, em 61,7% dos casos alguma pessoa relatou já ter
conhecimento da violência sem ter oferecido a denúncia. Destes casos, dentre as pessoas que
já tinham conhecimento anterior da situação abusiva 55,2% eram a mãe, 54,3% os irmãos e
10,3% outras pessoas que não faziam parte do contexto familiar, dados que demonstram a
dificuldade não só da família, mas também da sociedade em denunciar as suspeitas ou
constatação de abuso sexual.
Acerca da dificuldade materna em adotar um papel de cuidado e proteção, tal como o
oferecimento da denúncia, estudos indicam que embora a grande parcela das mães confiasse,
ao menos em parte, no relato da criança, “algumas não conseguiam emitir respostas de apoio e
proteção, evidenciando ambivalência ou inconsistência” (SANTOS; DELL‟AGLIO, 2009,
p.86-87). Esta circunstância de conferir pouca credibilidade ao relato infantil demonstra não
existir uma constante entre as mães que acreditam nas revelações dos filhos enquanto mães
protetoras ou não. Acreditar no relato não implica, pois, em uma atitude diligente. Pode
ocorrer, inclusive, o silêncio e a conivência. Entende-se a proteção como um papel proativo
que gere segurança para a vítima e imediata interrupção da prática abusiva.
Elementos outros tais como “a percepção do papel de ser mãe” (SANTOS;
DELL‟AGLIO, 2009, p. 91) e algumas concepções e aspectos que guardam relação com a
maternidade, podem ainda influenciar nas respostas maternas. Podendo ainda a mãe não
reconhecer o abuso buscando manter o aparente equilíbrio e segurança familiar, “pois revelá-
lo representaria reconhecer o fracasso de seu papel como mãe e esposa” (MARTINS; JORGE,
2010, p. 251).
32
Comentário Final
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ARTIGO II
Resumo
O tema abuso sexual infantil intrafamiliar tem sido objeto de estudos recentes em diversas
áreas do conhecimento. Tem-se que a partir da Convenção sobre Direitos da Criança de 1989,
a proteção da criança constituiu matéria de estudos específicos. O presente artigo objetiva
analisar a proteção materna em face ao abuso sexual praticado contra suas filhas dentro do
círculo familiar. Trata-se de um estudo qualitativo com seleção de um caso emblemático. O
delineamento utilizado foi o estudo de caso, realizado através de visita, diário de campo,
entrevistas em profundidade e análise documental da ação penal pública. Esta apura a
responsabilidade penal do autor do abuso, instaurado em razão da iniciativa materna. Os
resultados evidenciam que a atitude materna pode vir a ser decisiva no rompimento do ciclo
da violência. Ademais, constata-se ausência de programas públicos direcionados às mães que
visem o auxílio psicológico e financeiro e a limitada especialização dos profissionais
envolvidos no atendimento às situações de abusos contra crianças.
Abstract
The topic of child sexual abuse within the family has been the subject of recent studies in
several fields of knowledge. It is necessary to start with the 1989 Convention on the Rights of
the Child, in which child protection was a matter of specific studies. This article aims to
analyze motherly protection in the face of sexual abuse against their daughters, in their
families. It is a qualitative study whereby a representative case has been selected. This case
study stands for the design used, and was carried out through visitations, field diaries, in-
depth interviews and criminal prosecution documentary analyses. The latter investigates the
criminal responsibility of the actor of the abuse, and was instituted by reason of the mother's
initiative. Results show that the maternal attitude may be decisive in breaking the cycle of
violence. Moreover, there are no mother-directed public programs aimed at psychological and
financial aid or at the limited expertise by professionals working in child abuse services.
Introdução
O tema abuso sexual infantil intrafamiliar tem sido objeto de estudos recentes em
diversas áreas do conhecimento (AMAZARRAY; KOLLER, 1998; DREZETT, 2001;
MACHADO et al., 2005; PFEIFFER; SALVAGNI, 2005; GRANJEIRO; COSTA, 2008;
HABIGZANG et al., 2008; RANGEL, 2009; PASSARELA; MENDES, 2010). Tem-se que a
partir da Convenção sobre Direitos da Criança de 1989, a proteção da população infanto-
juvenil passou a constituir matéria de estudos específicos (MENDEZ; COSTA, 1994;
VERONESE; COSTA, 2006; ARANTES, 2009). Sob a égide do novo paradigma do direito
da criança, promovido na década de 1980, compreende-se a proteção integral como sendo
uma proteção de direitos, que deve ser conferida em todas as esferas e nas diversas situações
que envolva o interesse da criança (BELOFF, 1999).
O presente artigo objetiva analisar a proteção materna em face ao abuso sexual
praticado no ambiente intrafamiliar contra suas filhas. Trata-se de um estudo qualitativo com
seleção de um caso emblemático. O delineamento utilizado foi o estudo de caso, realizado
através de visita, diário de campo, entrevistas em profundidade e análise documental da ação
penal pública. Para tanto, parte-se da contribuição dos trabalhos acerca da maternidade que
apontam em sentido convergente para a permanência das antigas concepções socialmente
existentes acerca das atribuições maternas na contemporaneidade (ROCHA-COUTINHO,
2003; NARVAZ; KOLLER, 2006; JABLONSKI, 2007; AMAZONAS et al., 2009).
Entre as diversas mudanças pelas quais passou a sociedade ocidental no decorrer do
século XX algumas se destacam na contextualização do papel da mãe na proteção da criança.
O desenvolvimento das ciências conjuntamente com os novos programas e políticas públicas
favoreceram o fortalecimento das representações maternas voltadas à promoção da saúde da
sua prole (MEYER, 2003). A valorização da representação das mães demanda-lhes uma
diligente atuação nos cuidados e proteção, fator que sugere uma responsabilização materna
por todos os eventos que envolvam os seus filhos, tal como o abuso sexual.
A prática do abuso sexual contra crianças, especialmente a perpetrada no ambiente
familiar, consiste em um dos males da sociedade contemporânea. A Organização Mundial da
Saúde (OMS) considera a sua incidência como um grave problema de saúde pública e fator de
morbimortalidade de crianças e adolescentes (AMAZARRAY; KOLLER, 1998;
SALVAGNI; WAGNER, 2006).
Em sentido convergente, estudos apontam que grande parte dos abusos sexuais
originados no contexto familiar, tem nos pais e nos padrastos os principais perpetradores
43
Enquanto uma das formas de violência sexual praticada contra crianças, o abuso
sexual sempre existiu em grande parte das culturas (AMAZARRAY; KOLLER, 1998), há
relatos da sua prática desde a antiguidade (ADED et al., 2006). Atualmente, o abuso sexual é
compreendido como um grave evento que atinge crianças e adolescentes de todo mundo. A
sua prática é considerada pela OMS enquanto um problema de saúde pública em razão das
sérias consequências que podem ser desencadeadas nas suas vítimas (PFEIFFER;
SALVAGNI, 2005). A literatura especializada ressalta, todavia, que a real incidência dos
crimes sexuais ainda é desconhecida, circunstância que decorre da grande subnotificação
estimada no tocante a essa espécie de violência (BRINO; WILLIAMS, 2003; RANGEL,
2009; LIMA; ALBERTO, 2010).
44
A preocupação com a temática do abuso sexual emergiu socialmente com a luta pelos
direitos da criança e adolescentes, que juntamente com o movimento dos direitos humanos e o
movimento feminista trouxeram à pauta de discussão temas até então tidos como tabus. O
movimento médico, da mesma maneira, contribuiu com o estudo que relacionou a saúde física
das crianças com a sua saúde mental (FURNISS, 1993). Tais elementos fomentaram uma
crescente abordagem do tema na mídia impressa e televisa (LANDINI, 2006), circunstância
que sugere ser o abuso sexual um fenômeno recente.
Foi a partir da década de 1990 que a violência sexual, dentre elas, o abuso sexual
contra crianças e adolescentes adquiriu sua expressão de natureza política no Brasil,
integrando o fenômeno à pauta de discussão da sociedade civil. Vinculava-se o tema
emergente, à mobilização que ocorria no plano nacional e internacional acerca dos direitos
humanos das crianças conforme já prescritos na Convenção dos Direitos da Criança (CDC)
em 1989, na Constituição Federal (CF) em 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA), de 1990.
O período seguinte à publicação dos diversos documentos foi marcado por um amplo
percurso de articulação com o intuito de fortalecer a sociedade civil a adotar a denúncia
enquanto uma forma de enfrentamento contra a violência sexual de crianças e adolescentes no
país. A inclusão da violência sexual contra crianças e adolescentes na agenda pública nacional
agregou diversos segmentos. Destaca-se nesse contexto de luta o papel mobilizador da
sociedade civil, mediado por Organizações Não Governamentais (ONGs), junto aos Poderes
Executivo e Legislativo. Este movimento cívico em prol do segmento infanto-juvenil
silencioso, e até então silenciado pela violência, resultou na elaboração de um Plano Nacional
de Enfretamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil. Este plano visava atender ao
compromisso assumido pelo governo brasileiro aprovado em 1996 no I Congresso Mundial
contra Exploração Sexual de Crianças realizado em Estocolmo, e consistiu em um
instrumento para garantia e defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
Consoante dados disponibilizados pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República (SEDH/PR), nota-se um relevante crescimento do número de denúncias de
abuso sexual contra crianças e adolescentes a cada ano (BRASIL, 2011). Esta ocorrência pode
sugerir, ainda que lenta, uma maior mobilização, informação e consciência da sociedade
acerca da gravidade do fenômeno e da importância da denúncia para o rompimento do ciclo
de violência, bem como, um efetivo aumento do número de crimes sexuais contra crianças
(VIODRES INOUE; RISTUM, 2010).
45
Altos índices de abuso sexual foram registrados no serviço Disque Direitos Humanos
(disque 100) no módulo referente à criança e ao adolescente da SEDH/PR em 2010, atingindo
um total de 8.370 denúncias em todo território nacional, com 1.032 referentes a Bahia.
Somente nos três primeiros meses de 2011 foram realizadas 389 denúncias de abuso sexual no
Estado da Bahia, sendo a cidade de Salvador responsável pela maior quantidade de denúncias,
totalizando 123 (BRASIL, 2011).
O abuso sexual pode ser entendido como uma espécie de violência sexual
(FALEIROS; RADICCHI, 2010) na qual existe uma relação entre pessoas que não possuem o
mesmo estágio de desenvolvimento psicossexual. Nesta relação, a vítima é utilizada pelo
agressor com a finalidade de obter a sua gratificação sexual (AMAZARRAY; KOLLER,
1998), não englobando o conceito, situações em que observa as relações de natureza
mercantil, através da exploração sexual (VASCONCELOS, 2006; CONTI, 2008; VERAS,
2010).
Consiste o abuso sexual infantil em um fenômeno que abrange o poder e a sedução
(ARAÚJO, 2002), utilizando-se o abusador da força ou confiança da vítima. A prática desta
violência específica é caracterizada pelo envolvimento de uma criança em uma atividade de
natureza sexual na qual, em razão da sua imaturidade e do estágio de desenvolvimento, não
possui a criança suficiente discernimento para compreender o caráter do ato nem sequer para
o consentir como parceiro. Encontra-se a criança, portanto, fora da brincadeira, no lugar de
vítima.
A ocorrência do abuso sexual pode variar entre atos nos quais não haja o contato
físico, aos diversos atos onde os contatos se mostram presentes, com ou sem penetração
(HABIGZANG et al., 2008). Alguns autores entendem em sentido convergente que, para a
configuração do abuso sexual, elementos fundamentais como a assimetria de idade, as
práticas de coerção e o tipo de comportamento exercido devem estar presentes (PETERS;
WYATT; FINKELHOR, 1986; DEZA, 2005).
Levando-se em consideração o contexto em que é praticado, o abuso sexual pode ser
dividido em extrafamiliar ou intrafamiliar (FALEIROS; CAMPOS, 2000; HABIGZANG;
CAMINHA, 2004; LIMA, 2009). Compreende-se por abuso extrafamiliar aquele que ocorre
fora da atmosfera da família, geralmente em ocorrências únicas, figurando como agressor uma
pessoa desconhecida da criança. Quando essa espécie de violência é perpetrada na esfera
familiar, podendo acontecer na própria casa da vítima, tem-se o abuso sexual intrafamiliar
(SANTOS; DELL‟AGLIO, 2009).
46
Sob a nova égide acerca dos direitos daqueles cuja voz pouco ou nada ecoavam, foi
preconizada na Convenção dos Direitos da Criança a Doutrina da Proteção Integral.
Considera-se que esta “pressupõe uma tensão, e não uma contradição, entre proteção e
autonomia, entre sujeitos de direitos e pessoas em desenvolvimento, entre prioridade absoluta
e os demais interesses existentes na sociedade” (ARANTES, 2009, p. 447). Visando assegurar
a proteção integral, a Convenção preceitua no seu preâmbulo que a criança deverá crescer no
seio da sua família, visando o pleno desenvolvimento da sua personalidade (ONU, 1989).
Ressalta-se, dessa maneira, a atribuição à instituição familiar pela legislação nacional
e internacional enquanto núcleo principal e preponderante no desenvolvimento das crianças.
Tal se deve ao fato de a família ser o primeiro espaço de convivência, onde são construídos os
significados e práticas que interferem em todo percurso desenvolvimental (BASTOS et al.,
2007). A família por ser o primeiro núcleo social de inserção desempenha “também, um
poderoso papel no desenvolvimento das habilidades comportamentais da criança” (LIMA,
2009, p. 39), sendo de atribuição essencial o dever de proteção das crianças.
Não obstante, pesquisas têm assinalado à ocorrência crescente do abuso sexual no
contexto familiar (MACHADO, 2005; SALVAGNI; WAGNER, 2006), como “local
„privilegiado‟ para seu surgimento, mantido pelo silêncio e pela cumplicidade imposta à
vítima” (OLIVEIRA, p. 99, 1989). A situação adquire relevo pela proximidade do abusador,
pessoa com a qual a criança estabelece uma relação de confiança.
As informações reveladas propõem uma reflexão sobre os componentes familiares,
dentre eles, a figura materna, pois enquanto o abuso sexual é praticado predominantemente
por homens, a proteção das crianças recai nas mulheres (HOPPER, 1994). A proteção materna
à criança sexualmente abusada poderá ser efetivada no primeiro momento com o
oferecimento da denúncia, circunstância que possibilita a intervenção da esfera pública no
ambiente privado, estabelecendo afastamento do agressor e a inclusão da vítima em programa
de tratamento.
Este componente adquire maior relevância ao se observar que no contexto do abuso
sexual, a mãe é uma das pessoas mais procuradas pela criança na busca por ajuda (FURNISS,
1993; HABIGZANG et al., 2005). Para Azevedo e Guerra (1989) a resposta materna à
violência assume grande importância, na medida em que possibilita a permanência do
sentimento de proteção do filho. O apoio da mãe é também considerado um dos fatores mais
significativos para a recuperação e rompimento dos efeitos dos abusos, tanto em curto como
em longo prazo (HOPPER, 1994).
49
outros, o de ser mãe. A restrição do papel social das mulheres à realização da maternidade
(SCAVONE, 2004) gerou uma idealização desta enquanto uma obrigação a ser vivenciada por
todas as mulheres, que deverão desempenhá-la consoante padrões previamente estabelecidos,
circunstância que transforma a maternidade em um processo rígido, repleto de normas
(FORNA, 1999).
O mito da maternidade é o mito da “Mãe Perfeita”. Ela deve ser completamente
devotada não só aos filhos, mas a seu papel de mãe. Deve ser a mãe que compreende
os filhos, que dá amor total e, o que é mais importante, que se entrega totalmente.
Deve ser capaz de enormes sacrifícios (FORNA, 1999, p. 11).
Diversos avanços vivenciados pela sociedade nas últimas décadas, decorrentes dos
movimentos de natureza científica, jurídica e social, tiveram grande influência na modificação
da posição da mulher na sociedade (DE SOUZA; BALDWIN, 2000), com o direito ao voto, a
inserção no mercado de trabalho, e o surgimento das tecnologias contraceptivas, que
desvinculou a sexualidade feminina da reprodução, possibilitando para as mulheres outras
vivências e escolhas além da maternidade (ROCHA-COUTINHO, 2007).
Paralelamente, antigos discursos sociais persistiam robustecendo o papel das mulheres
enquanto mães e esposas. Consoante Araújo (2002) a mãe prossegue a ser compreendida
como a responsável pela mediação dos conflitos no lar e a personificar a afetividade entre os
membros da família. Ainda que tenha conquistado os espaços públicos e exerça uma atividade
remunerada fora de casa, os cuidados com os filhos e a casa continuam a ser atribuições
eminentemente femininas, cabendo ao homem o provimento financeiro da família
(JABLONSKI, 2007).
Em sentido convergente, pesquisas têm apontado para a predominância dos valores,
discurso e prática social patriarcal e burguesa na sociedade brasileira, nas mais diversas
classes sociais (MOURA, ARAÚJO, 2004; ROCHA-COUTINHO, 2005). A prevalência das
concepções patriarcais poderá acarretar para as mulheres, condição de inferioridade na relação
conjugal, elemento facilitador de atitudes abusivas, ao ser delegado diversos poderes aos
maridos e pais (ARAÚJO, 2002).
51
Método
Delineamento
Na presente pesquisa optou-se por uma abordagem de natureza qualitativa, uma vez
que esta proporciona uma melhor compreensão dos fenômenos investigados, permitindo a
visualização e aproximação entre o sujeito e o objeto pesquisado (MINAYO; SANCHES,
1993). Este enfoque potencializa o acesso ao objetivo geral da pesquisa: a análise da proteção
materna em face ao abuso sexual infantil intrafamiliar. Configura-se o estudo qualitativo uma
condição de realidade que não pode ser quantificada, que demanda a compreensão do
fenômeno sob o ponto de vista dos participantes da circunstância analisada. Para tanto, é
necessária a busca da apreensão dos significados, valores, motivos e crenças, isto é, um maior
aprofundamento e compreensão do objeto.
Para uma melhor compreensão e composição do estudo de natureza qualitativa, a
presente pesquisa foi estruturada com base no delineamento do Estudo de Caso Único (YIN,
2001). O estudo de caso, em razão da sua proposta de coleta de dados, mostra-se de grande
utilidade quando são colocados questionamentos que pretendem alcançar „como‟ e „por que‟
do objeto pesquisado, sendo adequado aos estudos cujo foco encontra-se em fenômenos atuais
imersos em contexto de vida real. O estudo de caso mostra-se também apropriado para
pesquisas que se propõem a verificar uma teoria já existente.
Optou-se pela escolha de uma unidade-caso de natureza típica (GIL, 1991), isto é,
aquela que consoante às prévias informações melhor demonstre a categoria. Ao observar-se
nas pesquisas sobre o abuso sexual intrafamiliar que alguns dados mostravam a
predominância nessa espécie de violência, utilizou-se como critério de inclusão da mãe
participante da pesquisa, que esta fosse genitora de criança(s) do sexo feminino que
tivesse(m) sofrido abuso sexual intrafamiliar pela figura do pai biológico ou civil, tendo a
violência sido denunciada pela própria mãe.
Para localização do caso a ser utilizado como objeto de análise, foram procurados
distintos órgãos e profissionais com atividades relacionadas ao tipo de violência enfocada,
tendo se deparado com uma grande dificuldade de identificação de participante voluntária.
Após diversas abordagens institucionais, obteve-se uma resposta espontânea e positiva de
uma mãe, que se encontrava dentro dos critérios de inclusão da pesquisa. Mediante conversa
prévia, a participante foi comunicada sobre os objetivos e das questões éticas que envolvem o
trabalho.
52
Acerca das fontes de evidências para a realização do Estudo de Caso Único, Yin
(2001) sugere seis possibilidades a serem utilizadas: a documentação, o registro em arquivos,
as entrevistas, a observação direta, a observação de participante e os artefatos físicos.
Consoante Gil et al. (2005) aconselham o estudo de caso, por envolver diversas variáveis
significantes. Consiste em um método que requer na coleta de seus dados a aplicação de
distintas técnicas. Na presente pesquisa utilizou as seguintes estratégias para a coleta de
dados: as fontes da entrevista em profundidade, a análise documental do processo judicial
instaurado em decorrência da denúncia realizada pela participante acerca do abuso sexual
praticado contra as suas filhas, realizando-se também visitas e a elaboração de um diário de
campo.
Segundo Yin (2001) duas são as possíveis estratégias para a análise dos dados, uma
delas baseando-se nas proposições teóricas e a outra através da abordagem descritiva do caso.
Para o autor a primeira estratégia mostra-se mais adequada ao seguir as proposições teóricas
que levaram ao estudo de caso, as revisões realizadas na literatura, traçando as novas
proposições porventura observadas. Assim, procurou-se analisar os dados, consoante as
proposições que nortearam a revisão teórica.
Participante
O estudo de caso único teve como participante uma mãe, localizada na fase
exploratória através do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan, que
vivenciou a situação de abuso sexual das duas filhas pela figura paterna.
Descrição do caso
“Eu vivia num contexto familiar aparentemente normal até porque nós éramos um
casal que frequentava uma determinada religião, uma Congregação. Éramos assíduos. Ele
participava bem, era até um membro de destaque lá dentro e tudo” (Maria).
Após aproximadamente cinco anos da chegada de Paula, Maria teve a sua segunda
gestação, que contrariamente à primeira, não foi desejada. Maria à época havia retomado os
estudos e estava determinada a retornar ao mercado de trabalho, motivada pela descoberta da
traição de Joaquim, e pela mudança de comportamento deste, que passou a criticar o seu peso
e lhe atribuir diversos defeitos, circunstância que levou a participante a desejar seguir seus
passos sem depender do seu marido. Maria relata que pensou em separar-se de Joaquim, mas
que isso não chegou a acontecer, até por influência religiosa, mas que a partir desse novo
comportamento do marido, mudou os seus objetivos, passando a cuidar mais de si mesma.
A segunda gravidez apresentou um risco maior do que a primeira, tendo Maria dado à
luz a segunda filha aos oito meses de gestação. Quando Ana nasceu Maria passou por grande
estresse devido às constantes crises de choro da filha e ao fato desta aparentar nunca estar
satisfeita com a amamentação. Maria contava com a ajuda dos seus pais que cuidavam de Ana
para que fosse possível ter poucas horas de sono. Relata que teve seu estresse agravado, pois
durante a segunda gestação, Joaquim ficou desempregado, circunstância que acarretou uma
dificuldade financeira para a família:
Eu tive um estresse terrível depois, porque ela chorava muito mesmo e, às vezes, eu
não queria amamentar e ela sugava demais. E, depois de mamar bastante, ela ficava
horas ali sendo amamentada e parecia que nunca alimentava. Aquilo me causava um
estresse que eu não tinha ânimo pra nada. [...] E outro detalhe: quando ela nasceu ou
durante um bom período da minha gravidez ele tava dentro de casa, então eu tive um
estresse ainda pior.
Mas tinha dias que ele aparentava assim, como se quisesse reparar alguma coisa, de
querer demonstrar a maior perfeição: cuidar dela, que eu deveria dormir, que eu
deveria descansar, que eu tava muito cansada, que eu tava de olheiras, até limpava a
casa, ela fazia, ele às vezes preparava uma bandeja, levava no quarto e tudo. Mas o
futuro me fez compreender porquê. Era porque ele queria mascarar coisas que ele
fazia, né?
Maria disfarçava estar dormindo quando percebeu que Joaquim ao sair do quarto do
casal, para levar Ana para a sua cama, demorou a retornar. Ao chegar no corredor ouviu Paula
chorando: “[...] e eu vi que ele tava demorando aí eu levantei de pontinha de pé. Quando eu
levantei e vi no corredor a mais velha dizer: “Eu quero minha mãe! Eu quero minha mãe!”. E
aí me bati com ele, ele se assustou e eu disse assim: “O que foi que aconteceu?.
Após alguns minutos tentando acalmar a filha, Maria conversou com Paula, que
relatou os abusos sofridos pelo pai. Lembrou-se de três. Maria acredita que os abusos já
vinham acontecendo há alguns anos, sem que ela percebesse, pois a filha lhe havia contado:
“O meu pai mexeu no meu bumbum”.
Resultados e discussão
Diante da revelação do abuso sexual por uma das filhas, analisa-se a dimensão da
proteção materna. Para tanto, são considerados elementos como a percepção materna diante
dos indícios, a culpa dos abusos, as relações entre a escuta e a ação, o sentimento materno, os
passos para realização da denúncia, passando pelas implicações de natureza familiar,
financeira e social após a revelação, bem como o apoio encontrado pela participante.
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Quanto à percepção dos sinais de existência da violência emitidos pela criança, assim
como demonstrado em outros trabalhos, Maria não compreendeu os sinais antes da revelação
do abuso pela filha. Conforme Viodres Inoue (2007) observou, em seu estudo realizado com
oito mães no município de Salvador-Bahia, nem sempre as genitoras identificam sinais da
vitimização antes de sua descoberta. Muitas vezes, as mães só voltam seus olhares para os
indícios após a revelação direta pela criança, que poderá ser feito para as próprias mães, ou
para algum outro componente em que a criança confie como o professor (BRINO;
WILLIAMS, 2002; VIODRES INOUE; RISTUM, 2008).
Mesmo quando a filha, então com menos de 9 anos, perguntou sobre como se fazia
relação anal, a mãe sequer alcançou o sentido da pergunta:
Ela passou um período também perguntando algumas coisas a respeito de relação
anal e tudo... Eu disse “não, você é muito nova pra perguntar isso” e tudo... Inclusive
eu deixei claro que, pelo menos na congregação que a gente pertencia, não era
permitido, entendeu? E eu mostrei a ela ali, sentei, conversei...aí ela “mas tem
homem que faz isso?”, e eu disse “tem...mas... isso não é...você não tá na idade
disso”, e eu fiquei muito preocupada. Isso antes de, mas ela tava querendo de
alguma forma me chamar atenção.
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Em sua pesquisa, Furniss (1993) observa que em famílias moralistas e rígidas, as mães
equilibram com o cuidado compulsivo dos seus filhos, as atitudes rigorosas e punitivas em
relação à sexualidade. Emergindo a distância da mãe e da criança quando se refere às questões
de proteção contra o abuso sexual, apesar de demonstrar cuidados bastante diligentes com
relação à prole.
Esse componente é analisado por Santos (2007), que traça a distinção entre o crédito e
a ação das mães nos casos de abuso sexual infantil intrafamiliar, estando à dimensão da
credibilidade ligada ao fato de as mães acreditarem ou não no relato dos filhos, enquanto a
dimensão da ação relaciona-se com o fato de ter ou não realizado a denúncia. Na pesquisa
realizada pela autora com dez mães de meninas que foram vítimas de abuso sexual, que
estavam sendo acolhidas em serviços especializados no Município de Porto Alegre, observou-
se que o período entre o conhecimento dos abusos variou de um a dois dias a dois anos.
Constatando-se que as mães, mesmo mostrando reações positivas poderiam necessitar de um
tempo para realizar a denúncia, parecendo este tempo necessário para estas em razão do temor
das consequências e impactos na esfera familiar.
Nesse sentido, Elliot e Carnes (2001) ressalvam que as mães podem não emitir
respostas de apoio e proteção aos filhos, apesar de manifestarem algum crédito frente à
revelação. Em estudo de caso qualitativo realizado por Narvaz (2005) com uma mãe que teve
suas filhas sexualmente abusadas, e também havia sido vítima na infância, observou que a
mãe apresentou diversas reações face à revelação dos abusos sexuais. Evidenciando a mãe um
descrédito ao tomar conhecimento dos abusos sofridos pela filha mais velha, todavia, alguns
anos após, ao conhecer dos abusos sofridos pela filha mais nova, manifestou apoio e crédito.
Elementos que para a autora evidenciam a complexidade dos fatores envolvidos a atitude
materna.
60
Apesar de relatar ter acreditado no relato da filha, a participante não emitiu uma
resposta imediata à violência. Inicialmente Maria procurou ajuda de diversas maneiras, e
buscou confirmar a ocorrência dos abusos antes de concretizar a denúncia. Esta circunstância
demonstra certa ambiguidade de Maria:
Uma semana de sofrimento... eu tava louca pra sair, mas minha amiga “não, você
tem que tirar coisas dele, adquirir prova...”, e tudo... mas foi assim...e ele chegava
perto de mim e eu com aquela aversão, uma vontade de, sabe, de praticar um delito,
de dizer coisas...até que eu tinha que...vi que eu tinha que realmente tirar elas de lá,
do convívio.
Apesar de narrar desde o início ter ouvido e acreditado no relato da filha, Maria
demonstra certa dúvida com relação à veracidade do abuso sofrido por sua filha: “[...] e eu
querendo de toda forma que não foi verdade. E ela...a mente da gente dá um nó”.
Sentimento materno
como eu falei no depoimento, uma pessoa inocente, ela tem... inocente, de bem... ela tem
vontade de cometer um assassinato.
Apesar de seguir as regras e preceitos da religião a que era seguidora, Maria dirigiu-se
a delegacia especializada da criança e do adolescente, com a intenção de realizar a denúncia.
Ela narra o despreparo da equipe que a recebeu e a falta de amparo por parte dos profissionais
que a atenderam:
Eu fui pedir orientação na delegacia da criança e adolescente. Quando eu fui pedir
orientação, eles disseram que eu tinha que ter prova. “Ele trabalha onde?”, aí eu
disse “dentro de uma, uma empresa de...enorme aqui, a maior empresa do Brasil”.
Aí ele disse “não, um funcionário dessa empresa não ia fazer isso”.
Na delegacia a mãe foi instruída a procurar um médico para que então tivesse um
laudo que a ajudasse na comprovação do abuso. Maria levou as filhas para uma profissional
de sua confiança. Ela relatou que somente após ver a reação da médica ao examinar as suas
filhas que compreendeu a gravidade do problema. Contudo, a médica instruiu Maria a não
denunciar:
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Aí eu fui na médica que fez o parto delas, levei elas duas e, pedi depois, que ela
fizesse um relatório. Aí ela conversou, eu saí e ela conversou. Ela disse “minha
filha, aconteceu, porque ela não tem condição de descrever coisas a um adulto que
tivesse vivenciado a experiência, e foi mais de uma vez”. Aí eu disse “não é
possível...”, porque por mais que eu tivesse, eu não tinha ideia da gravidade até uma
profissional entrar. Aí...”você quer que eu olhe a, a menor?”, aí eu fiz assim...”tsc,
não precisa porque não foi com ela, mas se a senhora quiser...”, ela fez “é bom...”.
Aí quando ela olhou, as lágrimas desciam assim, porque ela tava com o ânus
parecendo que tinha cortado de faca de serra! Entendeu, todo assim, retalhado. Aí
ela passou uma, uma medicação, uma pomada cicatrizante, passou ali na hora e
mandou que eu ficasse usando e me disse o seguinte: “olhe, por causa da doença da
menor não denuncie não, porque ele vai perder o emprego”.
Maria se vê em grande angústia após ouvir a congregação e a médica, uma vez que
ambos aconselharam-lhe a não denunciar o marido. Apesar de não ter encontrado apoio no
grupo religioso do qual fazia parte, tampouco da profissional da saúde, Maria dirigiu-se à
delegacia com o laudo médico para realizar a denúncia, acompanhada por sua irmã. Ela
ressalta o fato da filha ter sido ouvida por diversas vezes.
[...] fomos na delegacia, relatamos...a equipe que pegamos já foi outra, outra cabeça,
porque tem isso também...é...ele ouviu minha filha, mas é uma situação assim que é
traumatizante pra ela. Todos os agentes homens. .... aí chamou ela pra escutar. Ela
contou e tudo...aí ele chamou o colega dele, aí ela repetiu, aí chamou outro. Eu sei
que, por último teve que relatar ainda pra a delegada.
Em uma análise dos documentos a partir dos processos de violência sexual ajuizados
pelas Promotorias Especializadas na Infância e Juventude, no Município de Porto Alegre, no
período entre 1992 a 1998, num total de 71 expedientes, a mãe foi identificada como a
principal protetora (59,4%), seguida de outros (25,5%). Constatando-se que a principal forma
de proteção adotada foi a denúncia (78,3%), seguida do afastamento do agressor (20,3%).
(HABIGZANG, et. al., 2005).
Consoante Viodres Inoue e Ristum (2010), em pesquisa realizada com oito mulheres
mães de meninas vítimas de violência sexual, na cidade de Salvador, dentre as estratégias de
proteção e prevenção identificadas no estudo, encontra-se a denúncia da violência, que foi
realizada por sete mães.
Após ter realizado a denúncia, foi solicitada a realização do exame pericial para
comprovação da violência. Maria relata a dificuldade em fazer o exame de corpo de delito no
IML. Por se tratar de uma situação de violência, a constatação processual ocorre por
intermédio de perícia médica, sendo este elemento de extrema importância para a condenação
do acusado. A participante aponta a falta de qualidade no atendimento e greve no serviço:
Aí tá, fui, fui pro IML...outra coisa...isso eu consegui a guia pra fazer esse exame de
corpo delito precisou esperar que teve greve, não sei o que, uns dois dias, eu sei que
passou praticamente uma semana do fato, do que a médica olhou e pra fazer o
exame. E a médica lá também, muito grossa, ainda dizendo que tava...grossa no
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falar, grossa no atender...e assim, tudo aquilo eu tava vendo que tava sendo bem
traumatizante pra ela.
Após ouvir os profissionais e ver que não restava dúvida acerca do abuso, Maria saiu
de casa com suas duas filhas.
O total descrédito em relação aos abusos por parte da família de Maria, fez com que a
sua mãe figurasse no processo como testemunha de defesa de Joaquim. Segundo a
informante: E piorou, parecia que eu ia morrer quando eu soube que ela ia ser testemunha.
Porque assim, eu já desconfiava que fosse alguém, aí foi a irmã dele, uma das irmãs dele ser
testemunha e ele botou minha mãe.
A falta de apoio estendeu-se à família de seu esposo. Os pais de Joaquim procuraram
Maria numa tentativa de reatar o casamento e convencê-la retirar a denúncia. No entanto, ela
persistiu com sua decisão. Ao perceber a falta de apoio e crédito dos seus pais e sogros, Maria
relata um sentimento de total desamparo:
[...] depois ela virou pra mim que independente de qualquer coisa eu era casada com
ele, que ele era bom marido e que eu deveria passar por cima de tudo, inclusive
convenceu até a minha mãe pra ela conversar comigo, minha mãe e meu pai, foi um
dos momentos em que eu me senti totalmente sozinha.
Sem acreditar em Maria, a mãe de Joaquim tentou pressionar a sua neta Paula falando-
lhe acerca dos prejuízos que a denúncia provocaria em a sua vida:
A mãe dele, em vez de ser neutra, começou a me pressionar, e outra, pediu pra
conversar com minha filha só pra saber, a mãe e a irmã, aí começou a pressionar
“seu pai vai perder o emprego, você não vai ter isso, não vai ter aquilo...” eu disse
“Epa! Pare! A senhora vai defender seu filho, porque minhas filhas eu defendo com
unhas e dentes, vou até o fim. Se ele é inocente...vai ser provado no final.
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Ela expõe que após ter saído de casa com as filhas, encontrando-se em grande
dificuldade emocional e financeira, procurou o serviço de assistência social existente na
empresa em que o esposo trabalhava, tendo sido tratada de maneira indiferente pela
profissional que realizou o atendimento.
[...] aí conversei com a assistente social da [empresa onde o marido trabalha], que
também foi uma questão assim, muito difícil, que ela “um funcionário daqui, fazer
isso? A [empresa] pode te processar”, eu disse “o que é que eu vou fazer, eu não
tenho nada pra dar as meninas”, ela disse “o que eu posso te dar é um chocolate
quente”, pegou lá na máquina e deu pra mim e pra minha filha. Aí foi assim,
totalmente indiferente.
Somente na segunda tentativa Maria encontrou amparo de uma assistente social, que
ao perceber a sua situação, orientou-lhe a procurar o Centro de Defesa da Criança e do
Adolescente. Como discorreu a informante: [...] então essa assistente social foi outra coisa, ela
foi na minha casa, viu o que tava acontecendo, mostrei a ela tudo, ela teve paciência de
escutar tudo e aí foi que ela me encaminhou pra lá, foi essa outra assistente social que me
encaminhou pro CEDECA.
Maria ressalta a importância do apoio que recebeu no Centro de Defesa da Criança e
do Adolescente:
[...] e foi aí que foi o centro de defesa da criança, o papel que, o apoio que eles me
deram...é... foi fundamental, foi crucial, porque eu acho que se não fosse eles eu
acho que eu tinha enlouquecido com aquela situação, porque é uma desestrutura
emocional, uma desestrutura financeira [...] Ah, foi o CEDECA, foi tudo. Foi...foi
tudo, grupo de pais...e tinham pessoas assim, a gente acha que é única na situação,
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quando eu cheguei lá eu vi, parecendo que era, às vezes eu não precisava nem relatar
minhas histórias, minha história.
Maria discorreu que quando a sentença foi proferida, sentiu a sensação de alívio:
É... e foi uma sensação de alívio, ele foi sentenciado a 7 anos e meio. Então, ali veio
a prova que eu não estava mentindo, eu consegui provar, que minha filha não estava
mentindo mediante a família. Uma das coisas que mais me doeu foi ele ter colocado
minha mãe como testemunha dele. Eu quase morri com isso! [...] Mas hoje a história
mudou, todo mundo me respeita.
Dessa forma, ela exprime o seu atual sentimento acerca da atitude tomada quando
descobriu os abusos: E assim, a sensação hoje que eu tenho é que tenho a consciência limpa
de que eu fiz o meu papel de mãe, porque infelizmente me chocou alguns relatos quando eu
fui no grupo pra...no grupo de pais é... que sofreram...que os filhos sofreram algum tipo de
violência.
Considerações Finais
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72
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REFLEXÕES FINAIS
O presente trabalho teve como principal objetivo analisar a proteção materna em face
ao abuso sexual infantil intrafamiliar. Ao analisar a prática do abuso sexual pela figura
paterna contra crianças do sexo feminino depara-se com o nível de complexidade que envolve
o contexto familiar e social, quando da realização de denúncia pela mãe.
Através da revisão de literatura, foi possível observar a construção de uma concepção
europeia na qual se atribui de maneira exclusiva para as mulheres a responsabilidade pelo
cuidado com a casa e os filhos por volta do século XVIII, motivado por discursos de natureza
diversa, tais como o político, filosófico e econônimo. A assimilação pela sociedade brasileira
dos padrões criados na Europa favoreceu a adoção de semelhantes valores, sobretudo pela
classe dominante, que, do mesmo modo, compreendia as mulheres enquanto as responsáveis
pelas atividades domésticas e dedicação com a sua prole.
Esta concepção acerca da função materna influencia os padrões e atitudes a serem
desempenhados pelas mães até os dias atuais, apesar das diversas mudanças ocorridas no
decorrer do século XIX na sociedade brasileira. Investigações acerca do tema apontam
algumas modificações no contexto familiar, com uma maior participação masculina. Persiste,
contudo, a identificação materna enquanto a principal responsável pelo cuidado com a casa e
os filhos, bem como pela harmonia familiar, cabendo a estas uma atitude diligente com a sua
prole, principalmente nas hipóteses de maior gravidade.
Os discursos do campo da psicologia e medicina fortalecem as recentes representações
das mulheres voltadas para a saúde dos filhos, sobretudo nos casos de abuso sexual
intrafamiliar, onde a resposta materna é identificada em alguns estudos enquanto um dos
principais fatores de recuperação da criança. Da mesma maneira, o campo jurídido reforça os
padrões e exigências acerca do cumprimento da legislação nacional e internacional, visando à
proteção integral das crianças, colocando-as a salvo de todas as formas de violência e
negligência.
Sob essa concepção, por ser o abuso sexual uma espécie de violência que acarreta
diversas consequências de ordem física e emocional para as crianças, deveria a mãe, no
exercício de uma função de cuidado e proteção que lhe é atribuida, realizar a denúncia e
romper com o ciclo em que sua família encontra-se imersa, todavia, diversos fatores poderão
dificultar ou até mesmo impedir a realização da denúncia.
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apoio familiar e social, depreende-se pela atitude diligente, tratar-se de uma proteção da prole,
ao realizar e denúncia e afastar as filhas do agressor.
Ressalva-se sobre a necessidade de uma intensificação das políticas e programas,
visando a um maior esclarecimento acerca dos abusos, enquanto um possível facilitador do
cumprimento da proteção das crianças de uma forma mais eficaz. Por estar o núcleo familiar e
social mais próximo à mãe, o apoio desses componentes poderá ser fundamental na decisão
materna de denunciar.
Sugere-se uma reflexão sobre o tema e os modelos de assistência vigentes, que não
contemplam de forma devida as mães destas crianças, bem como uma melhoria na
capacitação dos profissionais das diversas áreas, tais como a jurídica, da saúde e assistência
social. A adequada resposta dos profissionais poderá falicitar a atuação materna na busca por
ajuda nas agências públicas quando necessitassem, favorecendo um melhor cumprimento da
norma nacional e internacional na proteção infantil.