627 Geopolitica Brasileira e Relacoes Internacionais
627 Geopolitica Brasileira e Relacoes Internacionais
627 Geopolitica Brasileira e Relacoes Internacionais
o pensamento do general
golbery do couto e Silva
Ministério das Relações Exteriores
Brasília, 2010
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H
Anexo II, Térreo
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Capa:
Mary Vieira - Ponto de Encontro, 1969 - polivolume
de alumínio de configuração variável - 230 placas de
alumínio móveis ao redor do eixo central mais blocos
de mármore
160 x 100 x 28 cm
Equipe Técnica:
Eliane Miranda Paiva
Maria Marta Cezar Lopes
Cíntia Rejane Sousa Araújo Gonçalves
Erika Silva Nascimento
Júlia Lima Thomaz de Godoy
Juliana Corrêa de Freitas
ISBN: 978.85.7631.195-9
“I have taken in hand that which I know not how to accomplish. Yea,
it hath even bereaved me of my wits to think of it”.
Introdução, 11
PARTE I – O CONTEXTO
11
thiago bonfada de carvalho
1
Como na literatura já é padrão que as referências ao general Golbery do Couto e Silva sejam
feitas pelo primeiro nome ao invés do sobrenome (“Golbery” ou “general Golbery” ao invés de
“Silva” ou “Couto e Silva”), não irei inovar neste quesito no corpo do texto. Na bibliografia,
porém, as obras de Golbery estarão sob o nome “Couto e Silva”.
2
A pouca influência do general Golbery antes de 1964 é assinalada por vários autores, entre eles
Elio Gaspari (2003a) e Oliveiros Silva Ferreira (1988:14).
3
Essa visão tanto esteve presente que esse caráter legitimador é explicitamente negado por
Afonso Arinos de Melo Franco, em sua introdução de 1967 à Geopolítica do Brasil (Melo Franco
1967:xii-xiv). Os estudiosos, porém, ressaltam a influência sobre o governo Castello Branco ou
mesmo sobre o regime militar como um todo (e.g., Ferreira 1988).
4
Por exemplo, o livro Geopolítica do Brasil foi utilizado como “prova” da estratégia imperialista
do Brasil, tanto por autores hispano-americanos, quanto pela oposição brasileira de esquerda.
Como exemplo do primeiro caso, Morador-Wettstein 1978; do segundo, Schilling 1978.
5
Miyamoto (1995:16). É verdade, porém, que a partir dos anos 90 tem surgido algum interesse
acadêmico por Golbery. Localizamos duas dissertações recentes de mestrado a seu respeito, de
Birkner (1996) e Koch (1999). Ambas, porém, discutem apenas aspectos pontuais de sua obra: a
relação entre “segurança” e “desenvolvimento”, em Birkner, e o conceito de “Ocidente”, em Koch.
A última dissertação analisa o pensamento de Golbery em relação ao pensamento conservador
católico, representado principalmente pela obra do arcebispo de Porto Alegre D. João Becker,
indo em direções bastante específicas e distantes das almejadas pelo presente trabalho.
12
introdução
13
thiago bonfada de carvalho
8
V. abaixo, p. 15ss.
9
A questão do desenvolvimento no pensamento de Golbery foi analizada por Birkner (1996).
10
Por exemplo, Couto e Silva, 1952b e 1960b.
14
introdução
Golbery foi um dos militares que foi enviado aos Estados Unidos para
formação, servindo depois na FEB, mas sem chegar a combater. Depois,
a principal ligação institucional do então tenente-coronel foi com a
Escola Superior de Guerra, criada em 1948, para onde foi transferido
em março de 1952. Depois esteve na 4º Divisão de Infantaria, em Belo
Horizonte (novembro de 1955)11, sendo transferido para o Estado-Maior
do Exército, Seção de Operações, Subseção de Doutrina, em março de
1956. Em setembro de 1960 passou ao Estado-Maior das Forças Armadas,
e, em fevereiro de 1961, tornou-se chefe de gabinete do Conselho de
Segurança Nacional, cargo que ocupou até setembro, quando passou à
reserva, inconformado com o fato de João Goulart ter podido assumir
a presidência. Só retornou ao serviço público após o golpe de 1964,
quando fundou o Sistema Nacional de Informações (SNI). Nos governos
Costa e Silva e Médici, trabalhou no Tribunal de Contas da União e, na
iniciativa privada, como presidente da Dow Chemical do Brasil. Seu
último cargo público foi chefe do Gabinete Civil dos governos Geisel e
Figueiredo, permanecendo neste posto no período 1974-1981, quando
pediu demissão devido ao caso Riocentro.
Se a dissertação será sobre história intelectual, a análise, necessariamente
hermenêutica, deverá ser baseada sobre os textos produzidos na época.
Será utilizada a edição das obras de Golbery publicada em 2003, pela
UniverCidade do Rio de Janeiro, sob o título Geopolítica e Poder. O
livro contém toda a obra escrita do general, incluindo, além de seus dois
livros (Planejamento Estratégico, de 1955, e Geopolítica do Brasil, de
1967), alguns discursos e, principalmente os manifestos (não assinados)
11
Birkner traz a informação de que, no contra-golpe de Lott em novembro de 1955, Golbery
foi mantido preso incomunicável por oito dias (Birkner 1996:118), dado que não encontrei em
qualquer outro lugar e para o qual o autor não dá referências. De qualquer maneira, ele é provável,
pois a ESG era contra a posse de Juscelino Kubitschek (Magalhães 1982:141).
12
Foram eles: o Memorial dos Coronéis, de 1954, primeiro passo da crise que levaria ao suicídio
de Vargas; o discurso pronunciado pelo general Jurandyr de Bizarria Mamede, O Adeus a
Canrobert, origem do golpe “preventivo” do ministro da Guerra Henrique Teixeira Lott em 1955;
e o Manifesto dos Ministros Militares contra a posse de João Goulart em 1961. Como disse Élio
Gaspari, prefaciador dessa edição: “era o estilo de Golbery: os textos que ele assinou, pouco
barulho fizeram, os que não assinou foram estrondosos” (Gaspari 2003:vii).
13
Para facilitar a referência cruzada, os artigos publicados em 1967 são os seguintes: Couto e Silva
1952a; 1952b; 1958; 1959b; 1959f; 1960a; 1960b; 1967. Na edição de 2003 não é explicitado
quando os demais artigos tratados em nosso trabalho foram publicados, mas é possível que
alguns sejam inéditos.
14
É o único que tanto na edição de 1967 quanto na de 2003 aparece sem indicação da data em
que foi escrito.
15
Capítulo 1
1. Introdução
17
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mas com origens nas décadas de 50 e 60, na “contraposição e na busca de uma alternativa a um
outro paradigma anterior na história da política externa brasileira: o da ‘aliança especial’ com os
Estados Unidos” (2000:26). Vemos assim que, para alguns autores, a questão do relacionamento
com os EUA aparece na própria definição do “paradigma desenvolvimentista”.
17
A respeito desse tema, ver a recente tese de doutoramento de Luiz Fernando de Freitas Ligiéro
(Ligiéro 2000).
18
Nesse sentido vão autores como Rubens Ricupero (1996) e Maria Regina Soares de Lima
(Lima & Hirst 1994).
19
Nessa linha seguem autores como Paulo Vizentini (1994, 1998) e Amado Luiz Cervo (1994,
1998; Cervo & Bueno 2002).
18
o brasil dos anos 1950: política externa e projeto desenvolvimentista
ao “autônomo” indica.
Vemos assim que, perpassando as diferentes propostas de periodização
do nacional-desenvolvimentismo em política externa, há a questão da
relação Brasil-Estados Unidos ou, mais especificamente, da posição que
o Brasil dá a si mesmo nessa relação: “alinhado” ou “independente”20.
O debate ideológico em torno do tema ajuda a solidificar posições e, ao
mesmo tempo, a dificultar a análise, ao disseminar rótulos muitas vezes
pouco profundos e que podem ser utilizados de maneira propagandística.
Os melhores exemplos são exatamente os que acabamos de
citar: “alinhamento” e “independência”. Dizemos isso porque, vistos
abstratamente, os dois conceitos não delimitam objeto algum. Se
“alinhamento” é seguir a política de algum outro país, isso não nos diz
nada quanto ao valor intrínseco da política, ou às motivações que levaram
o tomador de decisão a “alinhar-se”. Assim, o conceito em si torna-se
apenas descritivo da política de um país X em relação a um país Y em
um determinado período de tempo21.
Problemas semelhantes afligem o termo “independência”. Primeiro,
porque sua a fronteira que a separa do “alinhamento” é no mínimo
indistinta: se o país X toma medidas que seguem a política de Y, ele o faz
porque está alinhado com Y – que portanto lidera o processo – ou tomaria
as mesmas decisões independentemente das posturas de Y? Em outros
termos, temos o paradoxo: como classificar um país que viesse a adotar
de maneira independente (processo) uma política alinhada (resultado)?
E como um país soberano poderia adotar políticas “não independentes”,
excetuando-se casos extremos como uma ocupação estrangeira?
Por isso, afirmamos que o debate entre “alinhamento” ou
“independência”, e a atribuição de um ou outro rótulo à política
externa de determinado período ou país, é na realidade um debate
sobre a definição do interesse nacional. Um corolário dessa definição
20
Dizemos que a diferença é quanto à posição que o Brasil dá a si mesmo na relação com os EUA
porque nem os defensores do “alinhamento” nem os defensores da “independência” afirmam
que os Estados Unidos não são importantes para o Brasil. Em 1961, o embaixador Henrique
Valle expôs de maneira clara as circunstâncias dessa relação, ao afirmar que: “Conviria sempre
atentarmos isso: a importância do Brasil para os Estados Unidos e a importância dos Estados
Unidos para o Brasil é uma importância permanente. Pode ser mais grave ou mais aguda num ou
noutro setor conforme a conjuntura, mas a importância independe da conjuntura: é permanente”
(Valle 1961:16).
21
Enfatizamos “apenas descritivo” no sentido de que perceber um “alinhamento” não é fator
explicativo.
19
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20
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21
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3. O Governo Kubitschek
26
Como exemplos da orientação “nacionalista” de Vargas estão a criação da Petrobras (1953),
a lei de regulamentação das remessas de lucros (03 de janeiro de 1952), e a recusa ao envio de
tropas brasileiras à Coreia.
27
Como exemplos da orientação “americanista” de Vargas estão o acordo de assistência militar
recíproca (1952), que é colocado em termos de “defesa do Ocidente”, e a manutenção da
exportação de minerais atômicos sem “compensações específicas”, i.e., sem transferência de
tecnologia atômica.
28
É o caso de Paulo Vizentini, para quem não apenas Café Filho retorna ao alinhamento
automático, mas o faz de maneira consciente e premeditada. Vizentini afirma que Café Filho
significou “a afirmação da diplomacia da ESG e sua concepção de segurança e desenvolvimento”
(1994:27), o que parece dar peso demais à influência que ESG possuía no período 1954-1955,
quando mal havia completado cinco anos de existência, e, especificamente dá peso demais à
influência da ESG sobre o governo Café Filho.
22
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23
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32
Juscelino afirmava que “os capitais que vierem ajudar-nos nessa conquista [do desenvolvimento]
devem ser considerados amigos. Não há capital colonizador a não ser nas colônias. Num país
como o Brasil, o que é colonizador é a ausência de investimentos, ausência de emprego e capitais.
Não somos mais nação colonizável. Acreditar na possibilidade de sermos escravizados por
influências do dinheiro estrangeiro é o mesmo que concluir pela nossa fragilidade, pela nossa
anemia completa e irremediável, é ofensa à nossa personalidade nacional e ao nosso caráter de
povo formado” (1957:33).
33
O Presidente Kubitschek diria que “uma das mais importantes atribuições do Conselho de
Segurança Nacional diz respeito à defesa do País contra a ameaça de ideologias extremistas. O
problema do comunismo, sua expansão e articulação como movimento político internacional,
continua a ser preocupação constante do Governo” (1956:103).
34
Juscelino reclamaria disso em seu livro A Marcha do Amanhecer (1962): “O auxílio de fora
foi escasso – excetuada a colaboração de algumas empresas privadas. Enfrentamos ainda a
indiferença norte-americana. A nação pioneira, que tanto admiramos, nem sempre, através de seus
agentes oficiais, aceitou com simpatia que avançássemos o sinal que detém os pobres no estado
de pobreza. O esforço despendido – salvo com reduzidas ajudas – foi todo ele de brasileiros, de
nós próprios” (1962:32).
24
o brasil dos anos 1950: política externa e projeto desenvolvimentista
35
Ver abaixo p. 26.
36
Esse apoio aparece inequivocamente no Acordo de Fernando de Noronha de 19 de janeiro
de 1957, mediante o qual permitimos aos EUA construir instalações para acompanhamento de
mísseis naquele arquipélago, e que ancorou ainda mais firmemente a segurança brasileira com a
aliança americana. Merece ser citado, ainda, o Acordo sobre Energia Atômica firmado no mesmo
ano de 1957, quando da visita de Eisenhower ao Brasil.
25
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28
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46
O Brasil, por exemplo, se absteve na votação da ONU a favor da independência da Argélia
(Ligiéro 2000:25).
47
Porém, alguns setores da intelectualidade, tanto diplomática quanto extra-diplomática, começa
a defender uma política africana para o Brasil (José Honório Rodrigues, Álvaro Lins, Adolpho
Justo Bezerra de Menezes, etc.).
48
Vizentini (1994:34) afirma que o ISEB contribuiu para uma concepção “implícita” de “Brasil-
Potência”, que estaria presente na PEI.
49
A preocupação em enfatizar sua “novidade” é constante nos pronunciamentos da PEI. Em seu
principal artigo sobre política externa, Presidente Quadros marcaria a mudança dizendo que
“abandonamos a diplomacia subsidiária e inócua de uma Nação jungida a interesses dignos, mas
estrangeiros, e, para proteger nossos direitos, colocamo-nos na primeira linha, convencidos que
estávamos de nossa capacidade para contribuir com nossos próprios meios para a compreensão
entre os povos” (1961:19). E repetiria: “É preciso frisar que a idéia por trás da política externa do
Brasil, e sua implementação, tornaram-se agora o instrumento de uma política de desenvolvimento
nacional”. (1961:27, grifo meu). Quadros ainda qualificaria a política anterior de “irreal” e
“acadêmica”.
50
A PEI permaneceu como política de Estado através de mudanças de presidente (Jânio até
set.1961 e Jango até abr.1964), de regime (presidencialismo até set.1961, parlamentarismo em
set.1961, e presidencialismo após jan.1963), e numerosas alterações de ministros das Relações
Exteriores: Afonso Arinos de Melo Franco (jan.-set.1961), San Tiago Dantas (set.1961-jul.1962),
Afonso Arinos (jul.-set.1962), Hermes Lima (set.1962-jun.1963), Evandro Lins e Silva (jun.-
ago.1963) e João Augusto de Araújo Castro (ago.1963-abr.1964).
29
thiago bonfada de carvalho
pela PEI, mas é indubitável que ela permanece, até hoje, como um dos
grandes marcos da política externa brasileira. Para os contemporâneos,
ela representou uma grande ruptura, em especial no discurso diplomático
brasileiro49.
É difícil definir a PEI de uma maneira consistente e que ao
mesmo tempo englobe todo o período que existiu, bem como as
diferentes lideranças que teve 50. Em sua análise, José Humberto de
Brito Cruz (1989), após enfatizar as diferenças entre os vários momentos
da PEI, lista como elemento unificador a presença dos seguintes objetivos:
(a) expansão e diversificação das exportações brasileiras; (b) aumento do
poder de barganha com os EUA; e (c) contribuição à manutenção da paz
mundial51. A bipolaridade rígida é pressuposta, pois só aí é possível a ideia
de que os Estados menores podem ser mediadores entre as superpotências,
e a obtenção de trunfos com a potência hegemônica. Essa pressuposição
se coaduna bem com o cenário internacional do período, pois em 1961-
1963 a Guerra Fria agudizou-se na América Latina, com a invasão da Baía
dos Porcos (abr.1961) e o bloqueio norte-americano a Cuba (out.1962),
estopim da crise dos mísseis que quase levou à Terceira Guerra Mundial,
e na Europa, com a construção do Muro de Berlim (jun.1961). Frente
a essa situação internacional e à necessidade de impedir a exportação
da Revolução Cubana, os EUA alteraram sua política após 1959. Já
em setembro de 1960 é desenvolvido o Plano Eisenhower, que previa
uma ajuda de US$ 500 milhões à América Latina, e que seria depois
transformado na Aliança para o Progresso de Kennedy (Ligiéro 2000:26).
A PEI tornou-se política pública, paradoxalmente, sobre
o primeiro presidente eleito pela conservadora UDN, Jânio
Quadros, que aplicou domesticamente um plano de ajuste
51
Há variantes dessa visão. Se Cruz (1989) vê pouca coerência interna dentro da PEI, Paulo
Vizentini, a considera “um projeto coerente, articulado e sistemático visando transformar a
atuação internacional do Brasil” (1994:30). Para caracterizá-la, Vizentini lista os elementos:
(a) ampliação do mercado externo; (b) formulação autônoma dos planos de desenvolvimento
econômico; (c) paz mundial via coexistência pacífica e desarmamento geral; (d) não intervenção,
autodeterminação e primado do Direito Internacional; (e) emancipação completa dos territórios
não autônomos (1994:28-29).
52
Era essa a opinião, ao menos inicial, dos Estados Unidos (telegrama 7237, Embaixada dos EUA
no Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, de 10.mar.1961, apud Ligiéro 2000:93, n. 86).
Alguns autores, como Vera Álvares, consideram por esse motivo que a PEI teve internamente
efeitos “francamente desastrosos” (1989:86), pois não conseguiu satisfazer ninguém, nem a
esquerda nem, muito menos, a direita.
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Essa autora afirma que “se ponto havia que não pudesse suportar revisão na ideologia política
janista era a sua política externa, pois ela definia não só uma política, mas a condição de
sobrevivência da Nação” (1972:300); em momento posterior ela diria que “já de muito venho
insistindo, a partir da análise qualitativa, que este [Quadros 1961] é o texto mais relevante e
significativo da ideologia janista, e que ele é o que melhor define a sua feição política própria”
(1972:363). Essa posição também transparece nas interpretações que apontam que Afonso Arinos
moderou as tendências neutralistas do Presidente, em especial no episódio da invasão de Cuba
em abril de 1961 (Moniz Bandeira 1973:409).
54
Presidente Quadros: “O grau de intimidade das relações do Brasil com os países vizinhos do
Continente e com as nações afro-asiáticas, embora baseado em motivos diferentes, tende para
o mesmo fim. [...] O fato comum a todos eles é o de que a nossa situação econômica coincide
com o dever de formar uma frente unida na batalha contra o subdesenvolvimento e todas as
formas de opressão”. Depois retoma o ponto e o relaciona ao anti-colonialismo: “Sobressaem
certos pontos que podem ser considerados básicos para a política externa do meu Governo.
Um deles é o reconhecimento da legitimidade da luta pela liberdade econômica e política. O
desenvolvimento é um objetivo comum ao Brasil e às nações com as quais nós nos empenhamos
em ter relações mais estreitas, e a rejeição do colonialismo é o corolário inevitável e imperativo
deste objetivo” (1961:21-22).
55
Presidente Quadros: “A posição ideológica do Brasil é ocidental e não variará. O reconhecimento
dessa verdade, porém, não exaure o conteúdo de nossa política exterior. (1961b:91-92). Nas
palavras de Flávia de Campos Mello, com a PEI “o distanciamento [brasileiro dos EUA] tornou-
se uma atitude sistemática” (2000:29).
31
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Cardoso (1972:437-438ss) tece considerações a respeito desse elemento do pensamento de Jânio.
57
Ligiéro (2000:113-115) lista as seguintes visitas: em mar.1960, Jânio vai a Cuba, e retorna
defendendo a autodeterminação de Cuba, o reatamento com a URSS, o reconhecimento da China
Popular e a legalização do PCB (2000:114). Em jul.1961, chanceler do Chile visita o Brasil, e,
em ago.1961, uma missão comercial é enviada a Cuba.
58
Segundo Moniz Bandeira (1995:125), Frondizi não aceitou a proposta de Quadros de formar
um bloco neutralista na América Latina, sugerida durante o Encontro de Uruguaiana em abr.1961
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59
Ver abaixo, p. 61.
60
Daí sua afirmação de que “a política exterior brasileira não sofreu, ao passar a ser chamada
de independente, nenhuma solução de continuidade, pois jamais a Chancelaria brasileira se
inspirou em outro objetivo que não fosse a defesa da soberania e da independência do Brasil.
O qualificativo apenas indica o alargamento voluntário de uma área de iniciativa própria” (San
Tiago Dantas 1962:14).
61
Presidente Quadros: “Não sendo membro de bloco algum, nem mesmo do bloco neutralista,
preservamos nossa liberdade absoluta de tomar nossas próprias decisões em casos específicos e à
luz de sugestões pacíficas em consonância com nossa natureza e história” (1961:26-27, grifo meu).
33
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62
Quatro ex-chanceleres – José Carlos de Macedo Soares, João Neves da Fontoura, Vicente Ráo
e Horácio Lafer – publicaram, n’O Globo de 17.jan.1962, artigo criticando a posição brasileira
na conferência. O chanceler San Tiago Dantas lhes responderia citando elementos da atuação
deles no MRE que indicariam o caráter de continuidade da PEI frente às antigas diretivas, apenas
atualizadas para o momento presente (Dantas 1962:110-115).
63
Segundo Ligiéro (2000:109), citando documentos diplomáticos norte-americanos sem
numeração e sem data, Goulart teria, em encontro com Tito, deplorado a existência de dois
blocos de poder no mundo, dito que o Brasil não pertencia a nenhum deles, e afirmado que o
Brasil defende a reforma da carta da ONU, das relações econômicas internacionais, e a criação
de um sistema de segurança econômica coletiva.
64
Ligiéro (2000:113-115) lista as seguintes: em abril de 1962, Goulart visita o México, e recebe
o chanceler da Bolívia no Brasil; em abril de 1963, Goulart vai ao Uruguai e ao Chile e, em
julho de 1963, encontra Stroessner em
34
o brasil dos anos 1950: política externa e projeto desenvolvimentista
com os EUA para uma visão mais principista, e nesse sentido mais radical,
chegando a questionar o próprio quadro de referência Leste-Oeste, e
exigindo mudanças mais profundas no sistema internacional.
Podem ser listados como principais medidas da PEI no período de
João Goulart: (1) o reatamento diplomático com a União Soviética em 23
de novembro de 1961 – com a concomitante retirada do reconhecimento
da Lituânia, Letônia e Estônia – e reatamento com Hungria, Romênia,
Bulgária e Albânia, até abril de 1963; (2) a recusa brasileira, na Conferência
de Punta del Este, a aceitar a expulsão de Cuba da OEA, em 22-31 de
janeiro de 1962, a qual teve ampla repercussão interna62; (3) a visita de
João Goulart à Iugoslávia em setembro de 196363; (4) numerosas visitas
presidenciais à América Latina64.
Os resultados dessas iniciativas aparecem de várias maneiras, como
no adensamento das relações comerciais com o Leste: o comércio
bilateral Brasil-URSS, por exemplo, passou de US$ 70 milhões em
1962 para US$ 200 milhões em 1964 (Ligiéro 2000:109), e a URSS
ofereceu-se para financiar a longo prazo e construir a hidroelétrica de
Itaipu (Moniz Bandeira 1989:105). O aumento da influência brasileira no
sistema internacional é demonstrado pela atuação brasileira na Crise dos
Mísseis de Cuba, quando, aparentemente a pedido do embaixador norte-
americano, Lincoln Gordon, o Brasil envia o general Albino Silva, chefe
da Casa Militar da Presidência, a Cuba, para oferecer seus préstimos.
Albino conversa com Fidel Castro e com o Secretário-Geral da ONU,
U Thant, e retorna ao Brasil, sem resultados. Ligiéro, que relata esse
incidente, supõe que a iniciativa fora esvaziada pela recusa mexicana
ao pedido iugoslavo de que México e Brasil atuassem como mediadores
da crise (Ligiéro 2000:118).
Por outro lado, continua por vezes a existir uma distância entre
o discurso e a prática. O Brasil não votou consistentemente contra
as potências coloniais na ONU, tanto que uma frase de apoio à
independência de Angola presente em discurso de Goulart foi expurgada
pelo chanceler Hermes Lima (Saraiva 2001), e o Brasil se absteve na
votação da Resolução 1603, de abril de 1961, sobre a o mesmo tema.
65
Deve ser lembrado que, para essa autora, esse paradigma “tradicional” amadureceu apenas
com o pragmatismo responsável do governo Geisel. Mesmo assim, a discussão que ela faz desses
conceitos no discurso diplomático brasileiro nos interessa muito, pois as raízes do pragmatismo
responsável encontram-se nos anos 1950 e 1960.
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thiago bonfada de carvalho